as donas da palavra - Pagu
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Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais Departamento de Antropologia Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social AS DONAS DA PALAVRA GÊNERO, JUSTIÇA E A INVENÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM TIMOR-LESTE Daniel Schroeter Simião Brasília 2005 AS DONAS DA PALAVRA GÊNERO, JUSTIÇA E A INVENÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM TIMOR-LESTE Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Daniel Schroeter Simião Orientador: Luís Roberto Cardoso de Oliveira A Kelly, A meus pais, A vida. 2 AGRADECIMENTOS Esta pesquisa não existiria sem a dedicação de meu orientador, Luís Roberto Cardoso de Oliveira. Durante o trabalho de campo, mesmo com toda a distância que nos separava, Luís nunca deixou de responder prontamente minhas mensagens eletrônicas, não apenas devolvendo-as com preciosas dicas de pesquisa como transmitindo uma confiança tranqüilizadora. Nossas conversas, no período de escrita da tese, foram fundamentais para estabelecer os recortes que, aos poucos, foram dando forma ao objeto de pesquisa, tal como desenhado neste texto. Certamente a presença de Luís Roberto pode ser percebida aqui para muito além das referências bibliográficas. Devo também muito a Leo Howe pelo apoio e orientação que recebi durante o período em que estive em Cambridge, como estudante visitante. Sua paciência e seu cuidado para com os dados empíricos foram um aprendizado tão importante quanto aquele proveniente da bibliografia que por lá conheci. Miguel Vale de Almeida foi, igualmente, um estímulo importante durante o tempo em que estive em Portugal, antes do trabalho de campo. Os professores que gentilmente aceitaram compor a banca examinadora desta tese têm sido para mim, há um bom tempo, referências para o trabalho antropológico. Mariza Corrêa, a quem devo a opção pela antropologia e o interesse pelo tema do gênero, marcou minha graduação e meu mestrado. Gustavo Lins Ribeiro foi um grande entusiasta da pesquisa no exterior, e seu estímulo foi muito importante. A leitura atenta de Wilson Trajano Filho quando esta pesquisa ainda estava em projeto foi fundamental para o desenvolvimento posterior de alguns temas. Mais recentemente, Roberto Kant de Lima passou a fazer parte de um universo de interlocução relativamente novo para mim, e suas observações certamente influenciam este texto. Um conjunto de outros professores marcou especialmente o desenvolvimento desta pesquisa. Cada um ao seu modo, foram fundamentais os apoios de Marisa Peirano, Adriana Piscitelli, Marylin Strathern, Heloísa Pontes, Bibia Gregori, Miriam Grossi, Mireya Suarez e Lia Machado. 3 Foram ainda importantes os apoios do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, do Darwin College e da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, da OIKOS e da OXFAM, em Timor-Leste e da Universidade Católica de Brasília (UCB). Sou grato à CAPES e ao CNPq pelo apoio com recursos de bolsa de pesquisa para realização de parte de meu doutorado. À CAPES devo ainda o financiamento do período em que estive na Inglaterra, com uma bolsa sanduíche. Muitas das idéias desenvolvidas nesta tese devem algo aos espaços de interlocução proporcionados pelos colegas que aceitaram discuti-las. Agradeço aqui aos colegas do grupo de trabalho “administração de conflitos: violência e processos institucionais de administração de conflitos”, na V Reunião de Antropologia do Mercosul; grupo de trabalho “gênero e sexualidade”, no 28º Encontro Anual da ANPOCS; bem como aos colegas de seminário de pesquisa na UnB. Aos colegas de turma, na UnB, sou especialmente grato a Cristhian Teófilo da Silva, Patrícia Costa, Lea Tomas e Sílvia Guimarães. Meus pais, Cristina e Paulo, e meus sogros, Sandra e Caetano, foram fundamentais para a segurança afetiva necessária a um empreendimento destes. Além do carinho e da disposição para compartilhar bons e maus momentos, devo a essas pessoas um apoio logístico sem o qual esta pesquisa não se realizaria. O apoio afetivo também veio de grandes amizades, locais e distantes, como as de Lia, Cristhian, Leão, Beto, Ricardo, Maria Lúcia, Marília, os colegas da pró-reitoria de Extensão e da área de metodologia científica da UCB e tantas outras amizades que, por absoluta e injustificável injustiça, estou esquecendo de mencionar neste momento. Um grupo especial de amizades nasceu desta pesquisa, e cabe aqui agradecer aos apoios recebidos em Portugal, Timor-Leste e Inglaterra, de gente como Lúcia, Joana, João Dias (a quem devo as primeiras palavras de tétum), Luís, Cássia, Simone e Levi, Maria e Filomeno, Nuno e Nádia, Keryn, Leanne, Inga, Mary, Marito, os colegas com quem convivi no GPI, na UPV de Dili, na Oxfam em Dili e em Suai, Rosely e a turma do Crocodilo Voador, entre tantas outras pessoas. Por fim, se há uma pessoa a quem devo radicalmente esta pesquisa, é Kelly C. Silva. Foi Kelly quem praticamente me levou a Timor-Leste. Com ela aprendi muito sobre o tema, sobre a disciplina da pesquisa e sobre o amor à vida. É com ela que comecei esta Tese, e é ainda com ela que discuto seus últimos detalhes. Espero poder retribuir-lhe isto tudo um pouco a cada dia, e por muitos, muitos anos. 4 RESUMO O processo de construção recente do Estado-nação em Timor-Leste tem proporcionado um contexto de múltiplos discursos acerca da modernização, dos quais um dos mais elaborados diz respeito a narrativas de gênero. Organizado por uma parcela da elite local, em parceria com instituições do mundo globalizado (ONU e ONGs internacionais), um discurso fundado na igualdade de gênero vem criando uma nova moralidade para dar significado aos atos de agressão física intrafamiliar. Gestos de outra maneira percebidos como naturais, passam a ser lidos como atitude de violência e categorizados como “violência doméstica”. A invenção desta nova categoria no cotidiano timorense, em especial na capital do país, vem criando uma situação de conflito de novo tipo, para a resolução da qual é preciso instituir uma arena própria de negociação: um sistema de justiça de Estado que aparentemente se opõe às arenas locais de resolução de disputas. Esta tese analisa o processo de instituição desta arena em relação à invenção da “violência doméstica”, entendo tal processo como de negociação de uma esfera pública e formação de uma sociedade civil. Ao mesmo tempo, é um espaço para emergência de usos múltiplos do gênero e da justiça no país, em que princípios e valores de diferentes origens são evocados pela população para negociar o sentido de uma resolução equânime de seus conflitos. Palavras-chave: Gênero, justiça, direito, violência doméstica, resolução de conflitos ABSTRACT The nation-building process in East Timor allows a context of multiple discourses on modernization. One of them concerns to gender narratives and is organized by sectors of the indigenous elite in alliance with international organizations (UN and NGOs). Based on the ideology of gender equality, this discourse creates a new morality for acts of use of the force into the family. Acts that, otherwise, would be understood as normal procedures to education and punition, are now being perceived as an attitude of violence, qualified as “domestic violence”. By the invention of this new category to daily life, a conflict of a new kind is emerging, especially in Dili, the capital of the Country. In order to deal with this new conflict, a new arena needs to be set up: a formal justice system, which, apparently, opposes to the traditional local forms of dispute resolution. This thesis analyses the process of setting up this arena, focusing on the invention of domestic violence. It is said that this is a process of negotiating the public sphere and an emerging civil society. At the same time, it allows multiple uses of gender and justice in the Country, in which principles and values from different origins are used by people in order to negotiate a fair resolution of their own conflicts. Key-words: Gender, justice, law, domestic violence, dispute resolution 5 SUMÁRIO Agradecimentos ............................................................................................................. 03 Resumo .......................................................................................................................... 05 Lista de abreviaturas e siglas ......................................................................................... 08 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 09 CAPÍTULO 1 Modernidades Timorenses .......................................................................................... 18 A dialética da modernização timorense: o dilema de Manufahi ........................ 18 Gênero e o sudeste asiático insular .................................................................... 21 Gênero e resolução de disputas .......................................................................... 39 Violência doméstica e os processos de resolução de disputas ........................... 45 CAPÍTULO 2 Acorrentadas pela Cultura: os sentidos da violência e a educação dos sentidos ................................................... 51 O projeto ............................................................................................................ 51 O distrito ............................................................................................................ 74 A capital ................................................................... ......................................... 94 CAPÍTULO 3 Construindo a “violência doméstica” em Timor-Leste .......................................... 102 O ensaio geral .................................................................................................. 106 Primeiro movimento: Baucau e a justiça tradicional ....................................... 121 Segundo movimento: Ainaro e os serviços multissetoriais ............................. 131 O entreato de Micató ........................................................................................ 139 Terceiro movimento: Maliana ......................................................................... 140 Quarto movimento: Oecussi ............................................................................ 144 Último movimento: Dili ................................................................................... 148 Epílogo: uma ditadura participativa? ............................................................... 148 CAPÍTULO 4 Criadoras de caso: o lugar e o modo para resolver violensia domestika ................................................ 152 Estragada ou encrenqueira? ............................................................................. 153 Os idiomas do Tribunal .................................................................................... 155 “Como deveria ser a vida”: um manual para os procuradores ......................... 180 6 Treinando a polícia .......................................................................................... 181 CAPÍTULO 5 O Feiticeiro em Desencanto, o Parteiro e o Genitor: Recursos ao sistema de justiça e pluralismo jurídico em Dili ................................ 195 A Polícia .......................................................................................................... 196 O Tribunal ........................................................................................................ 214 A Mediação ...................................................................................................... 221 Dili: quando o feiticeiro perde sua magia ........................................................ 228 CONCLUSÃO A Violensia Domestika não faz parte da Cultura de Timor-Leste ......................... 232 Em busca de uma sociedade civil .................................................................... 232 A dimensão moral da violência ....................................................................... 235 Em busca da legitimidade ................................................................................ 237 Comunicação Imperfeita .................................................................................. 239 Criar uma nova arena ....................................................................................... 242 Pretensão equânime: legitimidade e os usos da justiça .................................... 243 As donas da palavra ......................................................................................... 249 Referências Bibliográficas ........................................................................................ 252 Mapas e Figuras Mapa 1: Ilhas e países do sudeste asiático ..................................................................... 22 Mapa 2: O arquipélago centrista vs o arquipélago da troca ........................................... 29 Mapa 3: Covalima entre os distritos de Timor-Leste .................................................... 77 Mapa 4: Subdistritos de Covalima ................................................................................. 80 Mapa 5: Principais grupos lingüísticos de Timor-Leste ................................................ 89 Figura 1: Cartaz da campanha “Labele violensia domestika” ....................................... 96 Figura 2: Cena do spot de TV “Só os covardes batem em suas mulheres” ................... 96 Figura 3: Cartaz do IRC: “Violência contra os direitos da mulher” .............................. 99 Figura 4: Mapping produzido pela grupo focal em Ainaro ......................................... 138 Figura 5: Mapping produzido pela grupo focal em Maliana ....................................... 143 Figura 6: Capa do manual de treinamento a policiais ................................................. 188 7 Lista de Abreviaturas e Siglas ASEAN – Association of Southeast Asian Nations APEC – Asian Pacific Economic Cooperation CAVR – Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação CEDAW – Conference on Elimination of all forms of Discrimination Against Women CNRT – Conselho Nacional da Resistência Timorense ETTA – East Timor Transitional Administration ETWAVE – East Timor Women Against Violence FALINTIL – Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste FOKUPERS – Forum Komunikasi Untuk Perempuam FNUAP – Fundo das Nações Unidas para as Populações FRETILIN – Frente Revolucionário de Timor-Leste Independente GAO – Gender Affairs Office GPI – Gabinete para Promoção da Igualdade ICRC – International Committee of the Red Cross INTERFET – International Force for East Timor IOM – International Organization for Migration IRC – International Rescue Committe JSMP – Judicial System Monitoring Program OCAA – Oxfam Community Aid Abroad OMT – Organização da Mulher Timorense ONG – Organização Não-Governamental OPMT – Organização Popular da Mulher Timorense PNTL – Polícia Nacional de Timor-Leste PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento RDTL – República Democrática de Timor-Leste TVTL – Rede de Televisão de Timor-Leste TOT – Training of Trainers UDT – União Democrática Timorense UNMISET – United Nations Mission of Support in East Timor UNDP – United Nations Development Programme UNFPA – United Nations Fund for Population UNICEF – United Nations Children’s Fund UNPOL – United Nations Police UNTAET – United Nations Transitional Administration in East Timor UPV – Unidade de Pessoas Vulneráveis VPU – Vulnerable Persons Unit 8 INTRODUÇÃO Tão rapidamente quanto tomou as manchetes da mídia brasileira, de 1999 a 2002, Timor-Leste saiu do primeiro plano internacional depois de concluída a missão de administração transitória das Nações Unidas no território. A atenção internacional já vinha sendo chamada para aquele pequeno pedaço de ilha – Timor-Leste ocupa 14 mil quilômetros quadrados da metade oriental da ilha de Timor – havia bem umas duas décadas. Entre 1975 e 1999 a antiga colônia portuguesa foi ocupada por tropas indonésias, na tentativa de transformar o território na 27ª província do mais populoso país do sudeste asiático insular. A ocupação provocou uma reação de forte resistência local, iniciada principalmente pela via da guerrilha, mas que, ao longo dos anos, foi se desdobrando em duas outras frentes: uma civil e clandestina, que, de dentro do território, organizava o apoio logístico necessário à guerrilha; e outra diplomática, conduzida por timorenses da diáspora que, a partir de países como a Austrália, Portugal, Moçambique e Estados Unidos, conduziam campanhas e iniciativas para manter a chamada “questão timorense” na agenda internacional. A presença da questão timorense na agenda internacional atingiu seu clímax no final dos anos 1990. A circulação das imagens da repressão indonésia à população descontente com a ocupação – especialmente as gravações do massacre de 1991, no cemitério de Santa Cruz, em Dili – contribuíram para criar um cenário favorável à agenda de reivindicações da resistência, deslocando o foco dos acontecimentos do tema da independência para o tema do respeito aos direitos humanos. Por outro lado, um amplo conjunto de eventos políticos e econômicos – desde a crise econômica asiática de 1997, que, na Indonésia, derrubou o governo de Suharto, até a pressão de Portugal na 9 Comunidade Européia pela não validação de acordos comerciais com a ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático) enquanto não se resolvesse a questão timorense – enfraqueceu a mão-de-ferro com que a Indonésia vinha lidando com o tema, até que, em 1999, o governo daquele país concordou com a realização de um referendo sob a supervisão das Nações Unidas. Realizado em 30 de agosto de 1999, o referendo revelou que mais de 90% da população timorense era contrária à proposta de tornar o território uma província autônoma da República Indonésia. Isto significava uma forte expressão da vontade de se tornar um país independente, e obrigou a Indonésia a retirar-se do território timorense. A retirada, porém, não se deu sem grandes conflitos. Grupos milicianos favoráveis à integração à Indonésia deflagraram uma campanha de terror a qual resultou, em um período de menos de duas semanas, na destruição de 70% da infraestrutura física do território e na morte de cerca de um terço da população nativa. Ao desastre de 1999 seguiram-se duas grandes missões das Nações Unidas para reconstrução do país – a missão pacificadora (INTERFET) e a administração transitória (UNTAET). Esta última foi reconhecida internacionalmente como um marco nas missões da ONU – era a primeira vez que as Nações Unidas tomavam a si a montagem dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de um país em embrião. Foi também responsável por um enorme afluxo de pessoas, recursos materiais e financeiros, projetos, princípios e valores para o território. Com o fim da UNTAET e a restauração oficial da independência da República Democrática de Timor-Leste, em 20 de maio de 2002, os holofotes da mídia internacional tornaram-se bem mais modestos no país. Mas se hoje Timor-Leste saiu do palco em que circulam mensagens e valores internacionalizados, este palco não saiu de Timor-Leste. É impressionante como um universo de valores internacionais circula pelo país, em especial pelas ruas de sua capital, Dili. Conceitos, valores, modos de pensar e estar no mundo próprios de ideologias globalizadas fazem-se presentes com a mesma força e vigor que formas muito próprias de organizar a vida cotidiana. Dili, terra de encontros Este texto é o resultado de uma experiência de campo de um ano em TimorLeste, em um momento bastante particular. Chegamos a Dili em novembro de 2002. O país mal tinha completado seis meses de vida, e a presença internacional ainda era incrivelmente marcante no cotidiano da cidade. Dili era uma cidade entre padrões 10 indonésios, portugueses e australianos. Até nos tipos de tomada elétrica, havia os três. Botijões de gás? Tínhamos que observar se o nosso regulador era australiano ou indonésio, caso contrário não comprávamos o botijão, ou comprávamos o errado, como fizemos. Havia placas de lojas que diziam “Dili - Timor Leste”. Outras, “Dili - Timor Timur” (em indonésio), e outras ainda “Dili - East Timor” (em inglês). Emblemático. Os restaurantes eram um espetáculo à parte. Estávamos no país havia duas semanas, e fomos a um chamado Ali Asian Food, uma lojinha de 10X5m. Na entrada, um balcão tipicamente local, com a comida exposta em vitrine. Aponta-se ao funcionário, geralmente mulheres, o que se quer e ele/ela monta o seu prato. Paga-se por prato. Neste restaurante, ficava uma indonésia atendendo no balcão. Passando o balcão estavam as mesas, de madeira, cobertas com toalhas xadrez, estilo cantina italiana. Havia tantas manchas que não precisávamos do cardápio, podia-se escolher o prato pelas manchas da toalha. Mas havia também um menu em plástico com bem uma centena de pratos, todos identificados com fotos bem feitas. Nas várias sessões do menu, cozinha Malaia, Tailandesa, Timorense e Ocidental (assim posta, "Western Food"). Tudo em bom inglês, e com os preços riscados. Os novos preços, escritos com caneta hidrocor, eram a metade dos antigos. Sinal óbvio do esvaziamento de internacionais que Dili viveu com a independência. Uma vez sentados, veio nos atender um garçom indiano. Rosto moreno, bem escuro, cabelos absolutamente negros e lisos. O estereótipo do indiano. Combinava bem com o filme, também indiano, sucesso recente de Bolliwood (o centro de produção do cinema indiano), a passar, em VCD, na televisão 29 polegadas ao fundo. Como era normal naquelas semanas, nunca sabíamos em que língua nos dirigir às pessoas. Começamos a nos arriscar com um tétum rudimentar para sermos simpáticos. O garçom se atrapalhou. Não falava tétum, e, rápido, faz sinal para um sujeito que ia passando pela porta do restaurante. O sujeito entrou e se ofereceu para ser nosso intérprete. Falava um português perfeito. Perguntou de onde éramos. Do Brasil? Conhecia bem o Brasil, já havia estado em Brasília, no Rio, em São Paulo. Nos espantamos. Ele já havia sido viceministro na Administração Transitória, no tempo da UNTAET. Depois de conversarmos um bocado, pedimos explicações sobre um prato. Imaginei que o garçom devesse falar indonésio. Vimos então o vice-ministro virar-se para o garçom e traduzir a nossa dúvida... em inglês! O garçom falava inglês! E nós a fazer todo aquele espetáculo com um vice-ministro de intérprete, para traduzir uma pergunta simples sobre um prato para o inglês... Todas as dúvidas tiradas, escolhemos nosso prato. Descobrimos ainda que o 11 vice-ministro, vestido em um jaleco branco, trabalhava na farmácia ao lado. Vamos a um restaurante bastante popular e temos como intérprete um ex-ministro que trabalha no balcão de uma farmácia, fala português, conhece bem o Brasil e nos traduz para um garçom indiano, em inglês. Não é algo que se veja em qualquer lugar. Não é difícil entender como se formou esta cidade, tão diferente do resto de Timor-Leste. Até 1974, Dili era o palco em que conviviam os colonos portugueses e uma elite urbana nativa, cujos jovens protagonizariam, em breve, a luta pela independência abortada pela invasão militar indonésia em dezembro de 1975. Durante o período de ocupação Indonésia, Dili continuou a ser praticamente o único centro urbano de Timor-Leste. Nela se concentraram as universidades, para onde afluía parte da juventude dos demais distritos, ampliando a quantidade de grupos étnicos do interior rural do país que se encontravam neste ambiente urbano. De cerca de 40 mil habitantes em 1974, Dili passou a 120 mil em 1999 (um sexto de toda a população de TimorLeste), quando a desastrosa retirada da ocupação militar indonésia arrasou com grande parte da cidade, obrigando a fuga de quase toda sua população para as montanhas. No período de intervenção das Nações Unidas e na reconstrução do país de 1999 aos dias de hoje, Dili recebeu grandes afluxos populacionais. Expatriados, como funcionários do sistema ONU, militares e representantes diplomáticos de vários países, voluntários e funcionários de ONGs, passaram a ser presença visível na administração pública, nos quartéis-generais da CIVPOL (polícia da ONU) e da PKF (Forças de Manutenção de Paz da ONU), nas bases militares dos diversos contingentes nacionais, nas casas das ONGs, nos hotéis (provisórios e flutuantes) e nas frotas de jipes. No rastro desta gente, floresceram os empreendedores, como os do Ali Asian Food. Entre 1999 e 2000, surgiram em Dili 10 novos hotéis (8 australianos, um de Singapura e um da Tailândia) e 50 novos restaurantes (de propriedade de timorenses, chineses, australianos e portugueses), além de lojas e mercados (cf. SEIXAS, 2002). Além deles, voltaram a Dili os timorenses das várias diásporas que a ocupação indonésia provocara: gente que vivia em Portugal, Austrália, Jakarta (este, em geral, o destino de estudantes), e mesmo outros países da região. Por fim, os espaços vazios deixados por javaneses, balineses e indonésios de outras ilhas que tiveram de abandonar suas casas na retirada indonésia do território foram rapidamente ocupados pelo êxodo das montanhas em direção a Dili, um movimento de gente em busca de oportunidades econômicas em um país recente e de futuro incerto. 12 Tudo isto fez de Dili um lugar único em Timor-Leste, incrivelmente contrastante com a vida marcada por um registro rural-agrícola e fortemente estruturado por grupos de parentesco patrilinear, predominante nas demais localidades do país. A invenção da violência doméstica Dili era o espaço propício para que circulassem idéias e valores oriundos de diferentes grupos. Lideranças tradicionais, autoridades políticas locais, grupos ligados à Igreja Católica, ONGs internacionais, jovens urbanos educados em universidades de Bali e Java, todos estes atores tinham algo a dizer neste grande mercado de idéias e modos de viver que marcava o cotidiano de Dili. Uma das grandes preocupações da missão das Nações Unidas, diante desta pluralidade, dizia respeito a assegurar a igualdade entre homens e mulheres (idéia nada evidente para muitos dos atores locais) no processo de construção do novo país. A intenção de assegurar esta preocupação como orientadora de políticas e projetos de ação levou a UNTAET a instituir um gabinete para assuntos de gênero (Gender Affairs Office), posteriormente transformado em uma unidade do Executivo timorense, a quem cabia a elaboração de campanhas, treinamentos e quaisquer iniciativas de sensibilização para combater a chamada “desigualdade de gênero”. A partir desta perspectiva montou-se um grande projeto de cooperação entre o governo timorense e a Fundo das Nações Unidas para as Populações (FNUAP) voltado a combater o que era visto como um mal endêmico no país: a agressão física intrafamiliar. De novembro de 2002 a outubro de 2003 pude acompanhar a circulação de dezenas de cartazes, spots de rádio e televisão, oficinas e treinamentos de sensibilização comunitária e para agentes legais, de saúde e da educação, todos voltados a inibir a violência doméstica. Mas como isto era percebido pela população em Dili e no interior do país? De que forma este novo discurso, mais um no grande mercado simbólico da capital timorense, era incorporado na rotina das pessoas? Um primeiro efeito deste novo discurso foi tornar possível a emergência de um conflito de novo tipo. Situações até então vistas com grande naturalidade passavam a poder ser vistas como inadmissíveis à luz de uma nova moralidade que mudava radicalmente o sentido da agressão doméstica. Gestos antes tolerados passavam a ser vistos como indevidos, motivadores de uma sensação de injustiça a ser, de algum modo, reparada. A mudança do significado da agressão, a invenção deste novo sentimento 13 associado à agressão física tinha nome: violência doméstica. E deveria ser um conflito a ser resolvido; um problema de justiça. Gênero e justiça em Timor-Leste Dili é também uma cidade em que se encontram representantes dos mais de 20 grupos etnolingüísticos que formam Timor-Leste. Cada um destes grupos possui diferentes tradições locais para resolução de conflitos. Todas elas, porém, compartilham princípios comuns e possuem várias semelhanças processuais, sendo em geral designadas pela expressão nahe biti ou tesi lia. O lugar destas formas locais de justiça no sistema judicial que agora se monta para o novo Estado timorense é ainda uma questão em aberto e que desperta grandes dilemas. No que se referia à construção da violência doméstica como uma prática condenável, era parte deste projeto de modernização transferir a resolução dos conflitos definidos como tais do espaço da justiça tradicional – tida como parcial e injusta para com as mulheres – para esferas modernas e institucionais (ou modernamente institucionais, uma vez que o nahe biti é também uma instituição, mais sólida até que o insipiente sistema judicial timorense) de resolução de conflitos. Estas novas formas se resumiam, basicamente, ao recurso à polícia com conseqüente encaminhamento do caso ao tribunal e a sessões de mediação conduzidas por ONGs e grupos legais. Esta tese busca tornar compreensíveis as contradições desse processo. Quem são os atores envolvidos nele? Qual o papel de agentes nacionais e internacionais? Como este processo se relaciona com a emergência de uma sociedade civil timorense? Como ele põe em jogo diferentes sensos de justiça? Como atores institucionais negociam entre si os sentidos de um processo de resolução de conflitos? Como a população de Dili incorpora ao seu modo e subverte grande parte dos conceitos e valores subjacentes à intenção modernizadora de parte destes agentes? Em síntese, esta tese é um estudo da construção do campo social que se forma nos encontros e desencontros de diferentes sentidos de gênero e justiça em um país que negocia consigo mesmo a construção de seu Estado e de sua Sociedade Civil. No primeiro capítulo construo a questão da pesquisa tomando como referência realidades semelhantes no Sudeste Asiático. Os dilemas da negociação entre valores vistos como modernos/globais e aqueles tidos como tradicionais/locais já foram abordados por autores com diferentes perspectivas em outros países próximos a Timor14 Leste. Analisando o modo pelo qual algumas abordagens rendem melhor que outras, procuro ferramentas que me permitam evitar a oposição simplista entre modernidade e tradição. Ao mesmo tempo, aproveito a ocasião para traçar um pano de fundo acerca do peso que têm as realidades locais em Timor-Leste, valendo-me das poucas etnografias sobre alguns de seus vários grupos étnicos. Por fim, exploro a dimensão que o campo da justiça e a questão do pluralismo jurídico vêm ganhando para a bibliografia regional e para a construção nacional em vários países da região, apontando para questões que deverão guiar nosso olhar no restante do texto. No segundo capítulo inicio o mapeamento do campo em que gênero e justiça se imbricam em Timor-Leste por meio da descrição das condições de existência de um discurso altamente orientado pela ideologia individualista, encapsulado pelo termo nativo “gender”. Procuro entender quem são, de onde vem e como pensam atores institucionais locais que, operando e se apropriando daquele termo produzem um “discurso do gender”, capaz ele mesmo de produzir narrativas sobre a sociabilidade desejada entre os timorenses e instituir um novo sentido para o ato de agressão interpessoal – transformando o ato de agressão em atitude de violência. Um dos grandes eventos por meio do qual este processo vinha se dando foi a elaboração de um projeto de legislação de combate à violência doméstica, que teve como atividade central a realização de uma consulta nacional acerca do tema. O terceiro capítulo é uma descrição etnográfica deste grande ritual de produção de legitimidade para o discurso do gender. Nele apresento o que parece ser uma grande negociação dos sentidos de termos como “violência doméstica”, “direitos humanos” e “direitos das mulheres”, mas que, no final das contas, mostra-se menos um espaço de produção de consenso do que um ritual de reposição de valores previamente estabelecidos. Legislação preparada, deve-se investir na qualificação da justiça de Estado como arena apropriada para resolução da violência doméstica. Assim, no quarto capítulo analiso o processo de consolidação deste espaço, enfocando eventos de capacitação de policiais, promotores e juízes e os conflitos que esta nova arena estabelece com as formas locais de mediação e adjudicação (o nahe biti e o tesi lia). Por fim, observo os usos que são feitos da justiça de Estado pelos habitantes de Dili, pessoas que chegam a esta nova arena marcados por sensos de justiça e sensibilidades jurídicas muito próprios. Neste capítulo, procuro entender os conflitos entre expectativas acerca da justiça (e das formas de equacionar disputas) entre os usuários, os operadores e os formuladores do sistema formal de justiça em Timor-Leste, 15 descobrindo, a partir daí, que aquilo que parecia mais uma relação de oposição (da forma moderna com as locais) transforma-se em uma gama de criativas sobreposições de idiomas de justiça bastante diferentes. De onde falo A experiência do campo é a base de tudo o que está (melhor ou pior) desenvolvido nas próximas páginas. Os 12 meses em que vivi em Timor-Leste como pesquisador poderiam ser agrupados em dois grandes eixos de pesquisa. Um primeiro eixo, baseado em Dili, foi o da convivência que construí com timorenses e estrangeiros a serviço dos programas e organizações que operavam o discurso do gender. Foi a partir dela que acompanhei de perto os eventos analisados na tese, realizei dúzias de entrevistas, tive acesso aos arquivos da polícia em Dili e acompanhei os casos que chegavam ao Tribunal. Atuei como voluntário na consulta analisada no terceiro capítulo e construí relações de sincera amizade com muitas das pessoas com quem dialoguei. Um outro eixo foi o do, assim chamado, “Timor Profundo”. Por várias vezes fiz pequenas incursões pelo interior do país. Dos 13 distritos timorenses, apenas Viqueque ficou fora de meu alcance. Nestas rápidas visitas, circulava menos como antropólogo que como curioso, convidado, amigo ou pesquisador de pequenos serviços de consultoria que apareciam aqui e ali. A exceção disso foi minha experiência de um mês de imersão no distrito de Covalima, a partir da qual pude produzir muito do material analisado no segundo capítulo desta tese, e que me deu bem a dimensão do contraste entre o mudo de Dili e o interior do país. Voltando de Timor-Leste, tive a oportunidade de passar um termo letivo como estudante visitante junto ao departamento de antropologia social da Universidade de Cambridge, sob a generosa orientação de Leo Howe. Com isto tive acesso a uma bibliografia específica sobre o sudeste asiático (e a Indonésia, em especial), fundamental para contextualizar muitas das questões levantadas pelo trabalho de campo. A experiência do campo, porém, não incluiu apenas o contato com o mundo nativo. Tive o privilégio de poder contar, durante todo o campo, e depois, com a interlocução constante com uma colega brilhante e generosa. Refiro-me a Kelly Silva, com quem compartilhei o campo e compartilho a vida. Não fomos o primeiro casal de antropólogos a fazer seus périplos juntos pelo sudeste asiático. Ao contrário, esta parece 16 ser uma prática comum na região.1 A presença de Kelly teve um impacto profundo para a pesquisa. Não me refiro apenas ao fato de ser visto, em campo, como um homem casado. Refiro-me, principalmente, ao fato de ter tido a oportunidade de construir e desenvolver minhas leituras do material etnográfico em um diálogo constante no qual, muitas vezes, a autoria das idéias se perdia na dinâmica do conversar. Não tenho dúvida de que, se as regras da academia expressassem melhor as condições de produção de uma obra, esta tese devia possuir, no mínimo, dois autores. Isto certamente não me isenta de assumir integralmente a responsabilidade pelas idéias postas aqui, no que elas têm de bom e de ruim, mas revela, para quem as lê, um forte contexto de interlocução a ser pesado na leitura do texto. Como último alerta de uma introdução, não poderia deixar de lembrar a dupla tarefa da antropologia, a que este trabalho tenta responder minimamente – a descrição densa da vida local e o diálogo teórico com nossos pares. Se, por um lado, nos é demandado um esforço de reflexão teórica capaz de ultrapassar o conhecimento localizado que o campo nos proporciona, por outro esta reflexão deve partir sempre de uma observação atenta da vida. Grande parte deste texto é isso. Embora saiba, como o leitor há de ver adiante, que não consegui, na produção do texto, seguir plenamente o ensinamento abaixo, procurei incluir muito do material vivo do campo em um CR-ROM multimída, de modo a que a experiência do olhar possa ser melhor compartilhada. Assim, fica aqui o convite para que, antes de seguir com a leitura do texto, o leitor ou leitora aventure-se pelo CD-ROM, em busca de tornar mais verdadeiras as palavras de Mario Quintana: Olha! O melhor é te descrever, simplesmente, A paisagem, Descrever sem nenhuma imagem, nenhuma... Cada coisa é ela própria a sua maravilhosa imagem! 1 Mead e Bateson em Bali nos anos 1930; Rosemary e Raimond Firth, na Malásia, nos anos 1940; Hildred e Clifford Geertz, também em Bali, nos anos 1950 e 60; Keebet e Franz Benda-Beckmann, em Sumatra, nos anos 1980; Michelle e Renato Rosaldo, em Luzon, nos anos 1980; além de Maria Olímpia Lameiras e Henry Campagnolo, em Timor-Leste nos anos 1960. 17 Capítulo 1 MODERNIDADES TIMORENSES A dialética da modernização timorense: o dilema de Manufahi Estávamos em um treinamento aos policiais que integravam as Unidades de Pessoas Vulneráveis (UPV/VPU) do distrito de Manufahi, na costa sul da ilha. A Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL) tinha sido instituída havia menos de um ano, e sua estrutura comportava esta seção, responsável pelo atendimento a casos que envolvessem mulheres, crianças, idosos e pessoas desaparecidas. Era, como outras estruturas de funcionamento do Estado no país, o resultado do planejamento técnico e político da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET). Uma vez extinta a UNTAET, em maio de 2002, o acompanhamento à recém-instituída PNTL continuou sendo feito de perto pela Missão de Suporte da ONU no país. Assim, a polícia das Nações Unidas (UNPOL) dividia com a PNTL instalações físicas e a condução dos casos que chegavam às delegacias. A parceria entre os policiais timorenses e suas contrapartes internacionais tinha também um sentido “pedagógico”. Agindo juntos, esperava-se que os policiais timorenses, muitos dos quais sem nenhuma experiência prévia no campo policial, pudessem ser treinados em ação – on job training, como se dizia. Mas esta não era a única forma pela qual aqueles policiais aprendiam sobre seu (novo) ofício, especialmente aqueles integrantes da UPV. Um programa financiado pelo Fundo das Nações Unidas para as Populações (FNUAP/UNFPA) estabelecera uma agenda de treinamentos com foco em violência doméstica e sexual, especialmente destinada aos que atuavam nas UPVs de todo o país. Uma equipe de policiais timorenses do escritório nacional da UPV estava encarregada de percorrer todos os 13 distritos do país treinando as equipes locais em questões relativas ao atendimento e processamento de casos de violência doméstica e sexual. Como atender uma vítima de violência doméstica e sexual, como recolher amostras de sêmen para comprovação posterior, quando e como encaminhar o caso à promotoria pública, que tipos de pergunta fazer e quais evitar. Era sobre isso que os cerca de 20 policiais, homens e mulheres da UPV de Manufahi, estavam sendo instruídos naquele treinamento. Na pequena sala em que, durante as noites, funcionava um bar dos funcionários civis e policiais a serviço da Missão das Nações Unidas, duas policiais da UPV nacional conduziam o treinamento a homens e mulheres que atuavam nos vários sub-distritos de Manufahi. Um dos policiais locais levantou o braço. Tinha uma dúvida. Nos últimos meses estavam recebendo um grande número de queixas de violação sexual. Muitas queixas eram prestadas por pais que vinham acusar um ou outro jovem de sua aldeia de ter seduzido sua filha, e pediam à polícia que o jovem fosse preso sob a acusação de estupro. Ao proceder à investigação, contudo, os policiais descobriam que o quadro era um pouco diferente. Em muitos casos os jovens envolvidos já namoravam há algum tempo e tinham a intenção de casar, mas as famílias não tinham entrado em acordo quanto às trocas matrimoniais envolvidas na riqueza da noiva. Em alguns casos havia impasses na negociação, e, envolvendo a polícia na história, a família da moça buscava pressionar a família do rapaz a aceitar suas exigências. O policial não sabia como agir nessas situações. Estava ou não diante de um caso criminal? Devia ou não aceitar a acusação de estupro? Era ou não um caso a ser levado ao tribunal? Parecia-lhe que não, mas os pais se enfureciam quando lhes dizia que talvez não se tratasse de um crime. O policial temia pela própria credibilidade da polícia, pois com tantas campanhas para que a população denunciasse casos de violência contra as mulheres, parecia-lhe ruim que a polícia não pudesse dar encaminhamento às queixas que chegavam. O dilema do policial de Manufahi envolve bem mais que a credibilidade da PNTL. Estão em jogo, neste caso, diferentes sistemas para resolução de conflitos, diferentes sentidos de justiça, diferentes significados para os direitos individuais e compromissos coletivos, diferentes formas de se entender o papel do Estado e suas instituições na relação com os problemas localizados dentro de uma aldeia, enfim, diferentes sentidos para a violência e para os direitos das mulheres. Diferentes práticas e discursos a respeito da “modernidade” e da “tradição” parecem se enfrentar em uma situação como essa. Na constelação de valores evocados pelos atores deste pequeno 19 caso podemos ver, por exemplo, instituições locais, ancoradas e legitimadas por hábitos e costumes culturalmente percebidos como tradicionais, como a riqueza da noiva. Vemos ainda formas de organização social em que as diferenças de gênero fazem, sim, uma grande diferença, operando ativamente na construção da pessoa e das relações assimétricas entre os sujeitos sociais. Por outro lado, faz parte também do repertório evocado por este caso a lógica de um sistema de justiça ancorado em uma legislação de Estado, definidora de situações criminais pré-definidas e cristalizadas em um código orientado por padrões internacionalizados. Podemos ainda falar de uma narrativa de gênero igualmente marcada por padrões internacionais igualitários que ostensivamente marginaliza práticas diferentes. O encontro desses mundos de significado gerava situações imprevisíveis e que muitas vezes, como no dilema daquele policial, deixava a cena aberta para interpretações ambíguas das normas sociais. Mas esta não é certamente uma questão exclusiva de Timor-Leste e de seus dilemas pós-independência. Para entender a extensão das questões postas neste caso, e, a partir delas, as questões que orientarão grande parte desta tese, é preciso levantar um pouco o olhar e observar como processos semelhantes têm marcado a história recente do sudeste asiático, e como uma certa bibliografia tem lidado com estes cenários semelhantes. Algumas questões de fundo devem ser bem construídas – trata-se de uma simples oposição entre modernidade e tradição; entre saber local e valores globalizados? Se não, quais os diferentes sistemas que operam na negociação e na subversão que atores localizados no tempo e no espaço fazem de narrativas produzidas, muitas vezes, em tempos e espaços totalmente diferentes? Este capítulo busca construir um chão para estas questões, a partir do qual o material empírico será analisado. Para isso, começo revisando a bibliografia recente sobre gênero no sudeste asiático. Nela vamos de estudos mais atomizados, focados em etnografias de grupos altamente localizados e amarrados por saberes locais, a estudos mais recentes, ancorados na crítica feminista e nos estudos de globalização que buscam contextualizar historicamente processos de transformação cultural, localizando a construção de múltiplas modernidades asiáticas. Com isto procuro, por um lado, situar que tipo de preocupações povoa o cotidiano de boa parte da população das aldeias timorenses, cuja vida opera, em grande medida, com valores locais ancorados no que se percebe como “tradições ancestrais” a serem respeitadas. Por outro lado, busco construir um caminho para entender como estes saberes locais se relacionam com discursos que circulam em uma geografia ampliada de produção e negociação de narrativas de gênero, 20 como aquela por trás da própria existência de uma Unidade para Pessoas “Vulneráveis” na polícia timorense. Procuro mostrar que, mais do que uma oposição de mundos “modernos” e “tradicionais”, podemos ver, em casos como o de Manufahi, um processo dialético de modernização por meio do qual se constroem modernidades timorenses. Na seqüência, ainda explorando os dilemas deste caso, sugiro que a negociação da modernidade timorense não pode ser pensada sem referência aos conflitos no setor judiciário e às formas (mais ou menos) institucionalizadas de resolução de conflitos, área em que diferentes narrativas de gênero desempenham um papel fundamental. De fato, as maiores fontes de conflito entre diferentes sensibilidades jurídicas e modelos de resolução de disputa envolvem percepções diferenciadas acerca de direitos individuais, particularmente no tocante aos assim considerados “direitos das mulheres”. Assim, se em outros países da região a disputa pela validação de diferentes narrativas de gênero se deu prioritariamente na construção de projetos para a identidade nacional ou em processos de rápida industrialização, em Timor-Leste esta disputa se dá no campo da resolução de conflitos, especialmente por meio de um processo que deverá ser entendido, como veremos no restante da tese, com base no combate à violência doméstica e na definição de uma arena apropriada para resolução deste tipo de conflito. Gênero e o sudeste asiático insular A “Indonésia oriental” A diversidade cultural e lingüística encontrada nos países que compõem o chamado sudeste asiático é já motivo suficiente para, afora as considerações teóricas, fazer com que olhemos com desconfiança a caracterização daquela miríade de povos como uma área etnográfica. É, contudo, corrente, nas etnografias da região, o uso de categorias que agrupam e classificam as ilhas e seus povos em grandes áreas em que predominam tais ou quais sistemas de descendência, este ou aquele princípio orientador de sistemas classificatórios, estas ou aquelas regras matrimoniais, e assim por diante. É assim que facilmente encontramos referências aos princípios igualitaristas das sociedades budistas do sudeste asiático continental (Mianmar, Tailândia, Camboja, Laos e Vietnã), ao islamismo hibridizado ou mesmo marcadamente hinduista das ilhas à oeste do sudeste asiático insular (Sumatra, Java, Bali, a península Malaia e Borneo), e aos 21 sistemas sociais dualistas da Indonésia oriental (Ilhas Sunda, Celebés, Molucas e Filipinas, embora as últimas três sejam um caso à parte – cf. mapa1). Timor-Leste fica na mais oriental das ilhas Sunda, compondo, com Sumba, Flores, Alor, Solor e outras pequenas ilhas o que as etnografias da área chamam de Indonésia Oriental (Eastern Indonesia). No quadro geral das etnografias sobre sociedades do sudeste asiático insular, os grupos que compõem essas ilhas guardam características relativamente distintas dos grupos mais a oeste e ao norte, e ainda mais diferenciadas das sociedades do sudeste asiático continental. O holandês Frans van Wouden e seus trabalhos sobre organização e estrutura social nas ilhas da região nos anos 1930 inaugurou uma linhagem de pesquisadores que, seguindo seu método comparativo, passaram a ver ali uma região relativamente homogênea. Focando em “uma região particular, definida em termos de certas características, [van Wouden] desenvolveu um modelo de relato de tais características para então conduzir uma série de comparações entre sociedades particulares da área” (FOX; 1980:3) até recentemente visto como um passo importante no estudo de variações locais na organização social regional. MAPA 1: ilhas e países do Sudeste Asiático fonte: KING, V,; WILDER, W., 2003. 22 Nos anos 1970, uma retomada dos trabalhos de van Wouden se fez a partir do, então paradigmático, modelo de análise estruturalista. É desta corrente que vieram os trabalhos do grupo formado em torno de James Fox (1980). A ilha de Timor foi o foco privilegiado para os trabalhos de Brigitte Clamagirand, Shepard Forman, Gérard Francillon, Claudine Friedberg e Elizabeth Traube. Preocupados em etnografar e classificar formas de organização social e simbólica de diferentes grupos étnicos da ilha, estes trabalhos concentram-se no estudo de rituais e sistemas de parentesco – em geral lidos com menor ênfase nos sistemas de descendência do que nas obrigações e trocas matrimoniais e suas conseqüências para a organização social e política de clãs e casas. Quando abordava aspectos propriamente históricos ou políticos nos grupos estudados, este conjunto de autores o fazia, em geral, de modo periférico, por meio dos efeitos que as políticas coloniais baseadas no indirect rule traziam para o arranjo das relações de aliança que provia a base de legitimiação para a organização política.2 Estes trabalhos traziam também uma ênfase na noção de casa como uma categoria cultural fundamental na Indonésia oriental para “designar um tipo particular de unidade social” (FOX; 1980:12) baseada em um espaço fixo, fortemente hierarquizado, mas estruturado por diferenças predominantemente geracionais a ordenar as relações intra e inter-casas. As diferenças de gênero acabavam, assim, postas em segundo plano na regulação das obrigações sociais. Elas viriam a surgir com força, porém, como marcadores na lógica da troca. “A aliança”, diz Fox, “na Indonésia Oriental tem a ver com a transmissão da vida” (Ibid.:12), ou, ainda, com o “fluxo da vida que circula por meio das mulheres” (CLAMAGIRAND; 1980:145). As mulheres operariam assim, como veremos mais abaixo, um papel central na transmissão da vida, mas periférico na organização social e política. A idéia de que as diferenças de gênero se prestavam ali a elaborações dualistas ficou ainda mais clara nos textos deste grupo que buscaram lidar com sistemas de classificação simbólica e rituais – o eixo, por exemplo, do estudo de Elizabeth Traube (1986) sobre os Mambai, um dos grupos étnicos de Timor-Leste. É aqui também que se retoma o tema do dualismo característico dos sistemas classificatórios da região (van 2 Quanto a isso, o resgate histórico que Francillon faz sobre as mudanças e permanências do antigo reino de Wehali, na região central da ilha de Timor, é bastante esclarecedor da forma como a complexa base de relações de aliança entre grupos vizinhos na região central da ilha continuou em paralelo à administração colonial, dando suporte ao antigo reino – por sinal, o maior da ilha, abrangendo grupos tétum e bunak. 23 Wouden) e que marca, para muitos autores, grandes diferenças em relação às demais áreas do sudeste asiático insular.3 Esta idéia havia sido sugerida por Nordhold ao se dedicar ainda nos anos 1940 a estudar, entre os Atoni de Timor, os usos múltiplos das categorias de “masculino” e “feminino” como um dos vários conjuntos de categorias duais daquela sociedade. No grupo de Fox este é o caminho para fazer, como veremos abaixo, a análise de categorias operativas em uma gama de rituais que vai de ritos agrícolas a cerimônias de nascimento e funeral. Categorias pouco operativas: o status das mulheres e a simetria de gênero na região Não é, porém, por meio destes textos que gênero de tornou tema de produção antropológica na região. Na realidade, até meados dos anos 1970 gênero parecia ser uma área de pouca elaboração cultural, e, portanto, rendera poucos estudos como tema específico. Por um lado, é verdade que a análise das relações entre homens e mulheres e suas diferentes atribuições na construção da cultura, como nota Rosemary Firth (1995), sempre fez parte dos estudos antropológicos no sudeste asiático. Em seu trabalho de campo em uma aldeia da Malásia, no final dos anos 40, ela mesma tratou da posição das mulheres em Kelantan e sua relação com os homens, estimulada em parte por uma divisão de tarefas com seu marido. Por outro, por mais que se percebesse, aqui ou ali, que o dimorfismo sexual era base para a construção de diferentes expectativas em relação ao comportamento de homens e mulheres, consolidou-se, a partir de trabalhos como os de Geertz e Belo, nos anos 1960, sobre Bali, a idéia de que as relações de gênero eram, na região, muito mais complementares que assimétricas (ERRINGTON, 1990. KING e WIDER, 2000). Masculino e feminino formariam uma complementaridade do tipo “Yin-Yang” que permitiria a Geertz se referir a Bali como uma “sociedade unissex”, em que, da religião às formas de vestir, passando pela política, pela economia e pelo parentesco, o ‘status das mulheres’ (como se dizia à 3 Na trilha de van Wouden, Rodney Needham elegeu a ilha de Sumba (uma das ilhas Sunda) para seu estudo comparativo, estabelecendo seis princípios fundamentais para a estrutura da sociedade Sumbanesa: identidade, dualidade, desigualdade, assimetria, complementaridade e intransitividade. Fox reconhece, contudo, que a percepção acerca do dualismo possa ter sido um tanto exagerada pelo fato de ser uma convenção lingüística de muitas daquelas sociedades expressar a linguagem ritual (altamente formalizada) sempre em termos dualistas – fenômeno identificado por ele como o de “paralelismo semântico”. Este fenômeno faz com que “o discurso formal se dê por meio de pequenos conjuntos usando imagens figurativas em pares para atingir um sentido comum. (FOX; 1980:16) 24 época) pouco diferia daquele dos homens. Assim, como as diferenças sexuais pareciam pouco se prestar à elaboração cultural naquele canto do mundo, parecia haver pouco a dizer sobre elas. A partir do final dos anos 1970 o que era um confortável anátema nas etnografias da região começa a ser, ele mesmo, tema de inquietação de alguns autores. Nos termos de Errington, “tão espantoso como o alegado alto status das mulheres na região é a parca atenção acadêmica dada ao tema” (ERRINGTON, 1990:2). Isto leva algumas antropólogas a buscar compreender melhor os nuances das diferenças de gênero na construção da pessoa em sociedades que, embora não elaborassem, no plano normativo, grandes distinções baseadas em gênero, acabavam por apresentar, na prática social, participações distintas de homens e mulheres. O trabalho de Jane Atkinson entre os Wana da região central de Sulawesi (Indonésia), bem como o de Michelle Rosaldo entre os Ilongot, no norte de Luzon (oeste das Filipinas), é expressivo deste tipo de abordagem. Atkinson (1990) faz uma comparação entre o papel que gênero (pouco) desempenha na diferenciação social entre os Wana e os Ilongot, baseada em seu trabalho de campo e no de Rosaldo. Embora gênero seja uma “diferença que faz a diferença”, isto é, uma diferença que regula níveis diferenciados de acesso a algumas esferas da vida social (especialmente a política e a religiosa), não chega a criar subjetividades opostas, tampouco idéias dualistas acerca de homens e mulheres. De acordo com a autora, a diferença masculino-feminino é minimizada no imaginário cultural dos Wana acerca da pessoa – mesmo nas imagens da reprodução. Muitos aspectos das representações culturais minimizam as diferenças de gênero, sublinhando a semelhança de homens e mulheres. Atkinson sugere que isto é ainda mais forte do que entre os Ilongot. Entre estes, a caça de cabeças é a maior – e, praticamente, a única – instituição que separa os reinos masculino e feminino.4 Entre os Wana sequer esta instituição existe a segregar universos por gênero. Embora a caça em geral seja, para os Wana, uma atividade masculina, uma pessoa não se torna mais masculina sendo um bom caçador. Isto tem a ver com o fato de os Wana se representarem como uma sociedade de gente ruim para a caça – no jogo de caça às cabeças, eles costumavam ser as cabeças, diz Atkinson. Mesmo em uma instituição 4 Nos termos de Atkinson, “a análise de Rosaldo acerca do gênero entre os Ilongot sugere que mulheres e homens são pensados como sendo fundamentalmente uma mesma coisa, mas os homens, por meio de atos epitomizados pela caça de cabeças, são, de algum modo, ‘um pouco mais’” (ATKINSON; 1990:86). 25 como o casamento, comumente vista como o período do ciclo de vida no qual a diferença de gênero opera mais fortemente, os Wana a preterem em favor da diferença geracional. A riqueza da noiva é interpretada, segundo Atkinson, como uma forma de os mais velhos unirem suas crianças, obrigando os mais velhos do grupo do noivo a se responsabilizar por aconselhar e disciplinar o jovem casal. Embora haja uma divisão sexual do trabalho ela não se traduz, sempre segundo Atkinson, em desigualdade. Este seria um fator pequeno comparado com a ênfase na igualdade e identidade das relações humanas, dada pelos discursos culturais. No plano religioso, tais discursos sugerem um mesmo potencial para mulheres e homens em alcançar o mundo sobrenatural por meio de práticas xamânicas. Contudo, como acontece de os homens estarem mais tempo nas florestas (caçando), onde estão os espíritos, é mais provável que eles façam estes contatos. Com relação à reprodução, os Wana dividem a agencialidade entre homens e mulheres de várias maneiras. Até que ponto vão as responsabilidades de cada sexo na reprodução é matéria controversa. Alguns afirmam que o bebê é concebido no homem e inoculado na mulher. Outros dizem que a concepção se dá na mulher e o homem apenas alimenta o feto com a “água” certa. Diz-se ainda que no passado eram os homens quem engravidavam, e isso somente mudou recentemente por conta da distração de um homem. De qualquer modo, homens e mulheres seriam vistos como doadores de vida (life-givers) – ao contrário do que normalmente ocorre em sociedades da Indonésia Oriental, em que as mulheres são life-givers e os homens life-takers. Essas características são, entre outras, relacionadas por Errington com a excessiva preocupação que este grupo de sociedades tem com a unidade social a ponto de considerar a fratura e o divisionismo como resultado e causa de doenças, infortúnios e fracasso político (Errigton, 1990:54). Isso a leva a chamar o grupo de sociedades das ilhas centrais da região de “centrista”, em claro contraste com o dualismo que marcaria as ilhas da Indonésia Oriental. Entre estes grupos, as diferenças de gênero seriam menos operativas no plano das representações culturais do que no das práticas políticas. Segundo a autora, “no caso dos Wana, a desigualdade de gênero emerge principalmente em contextos políticos no nível da comunidade e para além dele, sendo mais discernível na prática política do que nas representações que a prática evoca (ATKINSON, 1990:61). Assim, embora a igualdade fosse a tônica nos discursos culturais da região, a arena política continuaria sendo um domínio em que a presença dos homens é significativamente superior à das mulheres. 26 Vários estudos sobre os grupos deste “arquipélago centrista” se debruçaram sobre esta questão, encontrando respostas semelhantes para esta assincronia entre representações e práticas. Isto é bastante explorado, por exemplo, no estudo de Anna Tsing (1990), sobre os Meratus do sul de Kalimantan e que diz respeito exatamente à maneira como gênero opera em processos de resolução de disputas. Neste caso, o que chama a atenção de Tsing é o fato de, mesmo sem haver restrição formal à participação de mulheres em tais processos, elas serem franca minoria na operação dos mesmos. Ao contrário do que veremos no caso timorense, entre os Meratus a adat (a lei costumeira) não é prerrogativa de um grupo ou sujeito específico, sendo o processo de tomada de decisão franqueado a quaisquer homens e mulheres. Assim, “sem uma autoridade claramente reconhecida para o tema, as questões específicas da adat são sempre uma questão de negociação e opinião” (TSING, 1990:103). Contudo, é muito raro que se vejam mulheres atuando como mediadoras na resolução de conflitos. Tsing relaciona isso com o fato de o sucesso da resolução de disputas estar fortemente assentado na performance de quem a promove. O fato de não haver regras fixas e o destaque para a performance faz com que a habilidade individual em desempenhar um discurso efetivamente persuasivo seja fator crucial para que se “crie um caso” dentro da comunidade. A ausência de parâmetros prévios para configuração de um conflito faz com que os casos tenham que ser criados como tal pela força retórica e pela capacidade individual de agregar em torno do querelante um público interessado. Assim, o poder político e a liderança entre os Meratus pressupõem a habilidade de dramatizar e desempenhar uma performance de si mesmo como bravo; como atração para uma platéia potencial. É neste jogo de demonstração de bravura que os homens ganham vantagem. Segundo a autora, os “recursos masculinos” para chamar a si a centralidade social são mais úteis do que os das mulheres na performance de resoluções de disputas. Ameaças e palavras agressivas são parte necessária da presença dramática que estabelece a autoridade de uma pessoa, bem como sua reputação. Assim, embora não haja, no plano normativo, obstáculo à presença das mulheres como mediadoras de conflitos, o foco no processo da adat, mais do que no seu conteúdo, faz com que a mensagem de gênero torne-se masculina neste caso. Com isso, Tsing sugere que podemos entender uma vantagem dos homens na arena política sem que isso represente o reconhecimento de uma hierarquia das categorias de gênero. É também um bom caso 27 para se ver que discursos não-marcados por gênero tampouco significam igualdade de gênero nas práticas sociais. A percepção destas nuances permite aos autores superar o uso de conceitos vagos e universalizantes, como o de “status das mulheres”, e passar a falar em modos como homens e mulheres são inseridos em sistemas de prestígio por meio de normas e práticas sociais. É com isso que se faz a crítica da bibliografia que, pela relativa igualdade econômica entre homens e mulheres e pela relativa ausência de expressões simbólicas das diferenças de gênero, tomava como dada a pouca importância do tema para o estudo de sociedades da região. Segundo Errington, isso acabava por ser o resultado de uma “ilusão de ótica” (ERRINGTON;1990: 7) decorrente de se ter retirado o relativo empoderamento econômico das mulheres de seu contexto específico e tomado-o como o fator mais importante na construção de um suposto alto prestígio, uma ilusão “baseada na importação de idéias eurocêntricas sobre relações de poder e prestígio”. Em lugar disto, Errington propõe que se trabalhe com o conceito desenvolvido por Ortner e Whitehead de “sistemas de prestígio”. Assim, passa a ser importante perguntar não só como gênero opera na construção da pessoa, mas também na localização desta pessoa em um sistema de prestígio. Em muitos casos, no “arquipélago centrista” (península malaia, Kalimantan, Java, Sulawesi, Mindanao, as Visayas, Luzon e outras ilhas das Filipinas), vê-se que o “acesso ao poder tende a estar localizado, na teoria local, não no nível das características marcadas por gênero intrínsecas à ‘pessoa’, mas nas práticas” (Ibid.: 40). É a isso que se refere Atkinson, quando afirma que “a sociedade Wana não tem uma única e masculina rota para a igualdade, o poder e a influência” (ATKINSON; 1990:88). Tal sociedade apresenta um conjunto amplo de especializações às quais um indivíduo pode aspirar, e alcançá-las é mais uma questão de habilidade individual (limitada por diferenças geracionais) do que uma questão de diferenças de gênero.5 Este princípio parece se inverter na região que Errington chama de “arquipélago da troca” (a Indonésia Oriental e partes de Sumatra). Todo o sistema de trocas matrimoniais está fortemente ancorado em distinções entre masculino e feminino e na 5 Nos termos de Atkinson “ ‘anyone’ can become a shaman, a rice specialist, or a legal expert. That those ‘anyones’ are predominantly male is treated as fluke of fortune, rather than a categorical process of inclusion and exclusion. In this sense, Wana women represent the ‘everyman’ (…) who because of lack of bravery, fortune good memory, or inclination never come to excel at what it takes to be a political leader in a Wana community” (1990:88). 28 prescrição para que a mulher deixe sua Casa natal de modo a casar com homens que não sejam seus irmãos. Aqui, a construção dos sistemas simbólicos por pares de oposição deixa sua marca na elaboração cultural das diferenças de gênero. (cf. Mapa 2). MAPA 2: O arquipélago centrista vs o arquipélago da troca Fonte: ATKINSON; ERRINGTON, 1990. Um bom exemplo é o trabalho de Brigitte Clamagirand sobre os Kemak, um dos grupos etnolingüísticos de Timor.6 Nele se vê a centralidade das casas como grupos corporados e o papel de destaque das diferenças de gênero no estabelecimento das relações entre as casas. Entre os Kemak, doadores e recebedores de mulheres costumam estabelecer uma relação triangular que não se confunde com um sistema de troca generalizada. Um grupo A possui uma relação fixa com um grupo B e este com um grupo C. É comum, porém, que grupos que não sejam parceiros diretos estabeleçam relações de aliança. Neste caso (uma relação entre C e A), é necessário que a mulher de A seja adotada pelo grupo B para poder ser dada em casamento a um homem de C. Assim: 6 Seu trabalho de campo, nos anos 1970, se deu em uma aldeia do distrito de Ermera, entre a capital, Gleno, e Railaco. 29 “a mulher de A dá à luz a uma filha para B; a filha vai para C onde dá à luz a uma garota que é dada em casamento a A. Desta jovem garota diz-se que ‘voltou ao ninho’ (casa A), a casa de sua avó materna. Esta casa (...) é considerada a fonte da vida que a garota possui, transmite e devolve à casa de seu marido” (CLAMAGIRAND; 1980:142). As mulheres são, aqui, as doadoras de vida. É por meio delas que se dá o “fluxo da vida”. Gênero diferencia também a circulação de riquezas entre as casas. O pagamento de prestações e contraprestações matrimoniais circula em duas direções: da família da noiva vindo os bens femininos (porcos e tecidos) e da família do noivo os masculinos (discos de ouro e prata, búfalos e cabritos). Também este fluxo de trocas marcado por gênero desempenha papel importante na reprodução. Segundo Clamagirand: “o fluxo regular de trocas evoca a imagem do fluxo da vida que circula por meio das mulheres. Se não houver condições para efetuar os pagamentos e contrapagamentos, a transmissão da vida poderia não ocorrer normalmente, e a criança poderia acabar ficando presa dentro do útero da mulher, sem achar a saída” (Ibid.:145). Embora internamente predominem relações horizontais e um maior igualitarismo, no plano das relações entre casas – o plano do que Clamagirand chama de vida comunitária – observa-se um forte sentido de hierarquia. Papéis a serem desempenhados em atividades rituais, nas quais se incluem as resoluções de disputa, são claramente prescritos para homens de casas específicas (casas centrais de chefia, segundo a autora). Tais homens são, na cosmologia local, identificados como os “donos da palavra” – lia na’in, em tétum. A importância da troca – não apenas matrimonial, mas também mortuária – para a continuidade do fluxo da vida é também destacada por Shepard Forman com relação a outro grupo étnico timorense, os Makassae. “Para os Makassae, a continuidade na vida depende da troca de comida e seus meios de produção entre grupos doadores e recebedores de mulheres. O sentido do casamento é visto como o de juntar a força de dois sangues e dois espermas – “dos quais ambos podem ser encontrados em corpos masculinos e femininos” (FORMAN; 1980:159). Em uma divisão comum em vários grupos da região, no plano classificatório o céu corresponde a um princípio masculino, enquanto a terra é o pólo feminino de uma relação fundamental à continuidade da vida. Assim, nos ritos agrícolas, a comida, “alternadamente vista como a carne da Mãe Terra 30 e como sua filha, é levada a crescer pelas ações complementares do orvalho (o esperma do Pai Céu) e da chuva (seu sangue)” (Ibid.:160-1). Um estudo sobre rituais de fertilidade entre os Bunak (FRIEDBERG; 1980), outro grupo timorense, enfatiza ainda mais o papel da dualidade na produção e na reprodução social por meio dos princípios de calor e frio. No ciclo agrícola anual, o instante exato do plantio (entre os meses de setembro e dezembro) é um momento crítico. “Para que a fertilização ocorra (...) o solo deve estar o mais quente possível no momento da semeadura, e as sementes, por contraste, devem estar frias. De modo similar, durante o ato sexual, o corpo da mulher deve estar quente e o sêmen do homem, frio” (FRIEDBERG, 1980: 271). O paralelo estabelecido entre a terra e a mulher é reproduzido em um ritual que se segue ao parto. Nele, a mulher deve ficar ao lado de um fogo preparado pelo seu marido com a parte de cima do corpo coberta por panos embebidos em água. “De modo a restituir-lhe a fertilidade – ou seja, renovar as sementes femininas – uma mulher bunak deve ser ‘cozida’”(Ibid.:281). Assim, embora os homens manipulem o fogo, “a associação de água e fogo é o atributo da mulher. Carne cozida é o alimento de um casal. Um homem solteiro come apenas a carne que foi assada ou sapecada” (Ibid.:281) A agência social e o acesso a determinadas práticas são, assim, plenos de regulações prescritivas e restritivas, definidoras de reinos ou esferas de ação claramente diferenciados por gênero. Das ilhas aos países Não é por acaso que venho me referindo, até o momento, muito mais a ilhas que a países – os Wana de Sulawesi ou os Meratus de Kalimantan, e não da Indonésia; os Ilongot de Luzon, e não das Filipinas; os Makassae, Kemak e Bunak da ilha de Timor, e não de Timor-Leste. Até meados dos anos 1980 é difícil encontrar estudos que não tomem os grupos étnicos da região como unidades sociais relativamente autônomas e alheias aos processos políticos à sua volta. A história aparece de maneira periférica e quase ocasional, em contraste com outra bibliografia, produzida nos anos 1990, dedicada prioritariamente aos processos de modernização asiáticos e seus impactos sobre os saberes locais. Estes trabalhos partem da sofisticação analítica no tratamento das relações de gênero presente de modo pioneiro nos trabalhos de Strathern (1988), Atkinson e Errington (1990), para as quais não se tratava apenas de falar no papel de homens e 31 mulheres, mas de um sistema cultural de práticas e símbolos elaborados a partir da apropriação simbólica do dimorfismo sexual. Contudo, buscam situar disputas internas deste sistema em um contexto histórico marcado pelas lutas nacionais dos anos 1950 a 1970 e pela rápida expansão industrial das últimas três décadas na região. Aihwa Ong e Michael Peletz, por exemplo, afirmam que seus trabalhos diferenciam-se de outros sobre gênero na região na medida em que “posicionam gênero tanto em relação ao enquadramento de significação simbólica quanto a forças históricas e político-econômicas específicas definidoras de vários meios pós-coloniais” (ONG e PELETZ; 1995:2). Neste tipo de abordagem, identidades de gênero não são vistas como categorias fixas de um sistema monolítico, mas como possibilidades de localização de sujeitos em uma teia de outros marcadores, articuladas pelos sujeitos sociais em relações e situações específicas. Usando como referência debates recentes da crítica feminista (BUTLER, 1990) tais autores buscam identificar discursos possíveis sobre gênero em competição dentro de determinados contextos nacionais. Constroem assim descrições de processos por meio dos quais sujeitos inseridos em várias redes de relações sociais negociam a construção de suas identidades de gênero fazendo recurso a diferentes narrativas disponíveis acerca do “dever ser” masculino e feminino (BRENNER, 1995). Ao mesmo tempo, e em outra dimensão, alguns estudos se dedicam a entender as disputas entre diferentes narrativas por consolidarem-se como narrativas hegemônicas sobre gênero em uma região (PELETZ, 1995). A isto somam-se discussões sobre os impactos de processos de globalização e modernização que levam tais autores a dizer que “no mundo pós-colonial, as intersecções do passado e do presente, do local e do global, definem os eixos para explorar a negociação e a ressignificação do gênero” (ONG e PELETZ, 1995: 1). Esta linha de estudos busca contextualizar a construção de narrativas hegemônicas sobre gênero nos países da região e as disputas envolvidas nesta construção. Neste processo, “noções indígenas apoiadas na masculinidade e feminilidade, na igualdade de gênero e na complementaridade e em vários critérios de prestígio e estigma estão sendo retrabalhadas nos dinâmicos contextos pós-coloniais de migrações camponesas, construção da nação (nation building), nacionalismo cultural e o mundo dos negócios internacionais” (Ibid.: 2). Os processos de construção dos estados nacionais no contexto de descolonização da região e a mais recente explosão de crescimento econômico desses países são os dois eixos históricos recorrentes nesta bibliografia para falar das mudanças dos significados de gênero dentro de contextos 32 hegemônicos mais amplos, revelando as conexões de gênero com outras diferenças ligadas à cultura, classe e nacionalidade. Enfatiza-se assim a impossibilidade de se pensar relações de gênero na região (e em qualquer outra área) como constituídas por sistemas fixos, “pois que são tipicamente compostas de ideologias contraditórias que estão constantemente passando por mudanças, e que estão, igualmente, criando continuamente novas possibilidades de subversão e resistência” (Ibid.: 4). Kumari Jayawardena (1994) faz um bom relato de como se dão estas disputas nos diferentes nacionalismos asiáticos ao analisar o surgimento do feminismo e os movimentos pela participação feminina em lutas nacionalistas de países do Oriente Médio e Ásia no final do século XIX e primeiras décadas do século XX.7 Um primeiro resultado de seu estudo é perceber que a bandeira dos direitos das mulheres não representou um movimento totalmente estrangeiro nas lutas nacionalistas, mas fez parte da construção das retóricas nacionais de diferentes movimentos locais, sendo que, em muitos casos, as lutas nacionalistas implicaram uma redefinição da posição das mulheres na sociedade como um todo. As pequenas burguesias nascentes em vários destes países, frutos do próprio processo de expansão colonial, foram atores importantes em lutas que, para afirmar o desejo de um Estado independente, muitas vezes se voltavam contra monarquias e oligarquias locais. Isto fez com que, em muitos casos, o discurso nacionalista fosse sinônimo de “modernização”. Esta palavra trouxe um novo corpo de idéias costuradas pelas burguesias locais e usadas como instrumento para forjar uma nova consciência nacional. O discurso da modernização teve impactos sobre alguns temas relativos a situação das mulheres nestas sociedades, especialmente quando se traduzia na idéia da emancipação feminina em relação aos “abusos do passado”, como a queima das viúvas na Índia, o uso do véu, a poligamia e o enclausuramento, em países muçulmanos, e a deformação dos pés na China. A construção de uma nova identidade nacional passou pela construção de uma “nova mulher”, em um processo assumido não apenas por grupos organizados de mulheres, como por reformadores de vários dos países estudados. Contudo, embora tomando o modelo de igualdade formal de gênero à época conquistado no Ocidente, o discurso nacionalista destes países não negou as tradições locais, reservando à imagem das mulheres o papel de guardiãs da tradição legitimamente nacional. Segundo Jayawardena, “embora certas práticas manifestamente 7 A autora estuda, especificamente, os movimentos nacionalistas nos seguintes países: Egito, Irã, Turquia, Índia, Siri Lanka, China, Japão, Coréia, Filipinas, Vietnã e Indonésia. 33 injustas devessem ser abolidas e as mulheres envolvidas em atividades fora do lar, elas ainda tiveram que atuar como as guardiãs da cultura nacional, da religião nativa e das tradições familiares – em outras palavras, ser tanto ‘modernidade’ quanto ‘tradição’” (JAYAWARDENA; 1994). Para tanto, alguns reformadores idealizaram um passado em sua própria cultura no qual as mulheres supostamente já teriam tido muito maior liberdade. O resultado desta química é, em muitos dos casos estudados, a defesa de uma família nuclear moderna, na qual as mulheres, embora tendo acesso público à educação e profissionalização, mantém, no espaço doméstico, sua posição tradicional. No caso específico da luta nacionalista na Indonésia o processo descrito por Jayawardena nos outros países ganha o pano de fundo de um islamismo renovado que, no início do século XX, contra o domínio dos “infiéis” (holandeses), torna-se bastante popular entre o povo e a inteligentsia local. Diferentes atores políticos – estudantes, comerciantes e socialistas – vão se organizando em grupos de pressão que, com maior ou menor sucesso, marcam a cena política local entre os anos 1920 e 1950, incorporando, em sua retórica, a questão de gênero nos termos do dilema “modernidade/tradição”. É neste contexto que bandeiras como o fim da poligamia e do casamento infantil, no plano familiar, e a luta pelo direito ao voto feminino, no político, vão caracterizando o discurso da nova nacionalidade.8 O que Jayawardena deixa de enfatizar, porém, é que este movimento esteve praticamente restrito a Java e parte de Sumatra, influenciando muito pouco as milhares de ilhas que viriam a constituir a periferia da República Indonésia. Muitas das questões que Jayawardena aponta nos anos pós-independência para a Indonésia na década de 1950 são retomadas por Ong (1995) na análise do revivalismo islâmico na Malásia dos anos 1970. Ali, ainda mais, tratava-se de entender como 8 Motivadas pela trajetória de Raden Ardjen Kartini – filha de um alto burocrata local que, na virada do século XIX para o XX, marcou a luta das mulheres pela igualdade de direitos na Indonésia – muitas mulheres indonésias se organizam, ao longo dos anos 1920, em movimentos religiosos, regionais e nacionalistas, engajando-se ativamente no processo de independência. O movimento de mulheres local se desenvolveu neste período ao ponto de se ter, nos anos 1930, tendências e facções diferentes, com propostas e bandeiras de luta diferenciadas interferindo na agenda do movimento nacionalista. A Federação das Associações de Mulheres Indonésias (PPII), formada basicamente por mulheres da classe média local, caracterizava-se por uma ação mais moderada, tomando como temas de luta o direito a educação, o combate à poligamia e a reforma do código civil. Fundamentando-se no nacionalismo, na ação social e na neutralidade religiosa, assumiam seu compromisso em “inspirar patriotismo nas crianças, uma vez que tinham o dever de ser ‘mães do povo’” (JAYAWARDENA, 1994:150-151). Por outro lado havia uma corrente mais radical – o Isteri Sedar (A mulher alerta) – ligada ao movimento de estudantes que iria, em 1950, chegar ao poder com o primeiro presidente da República da Indonésia, Sukarno. Deste jogo político entre representações de diferentes compromissos entre gênero, modernidade e tradição é que surgiriam aos poucos narrativas hegemônicas sobre o que seria a “mulher Indonésia”. 34 imagens em disputa acerca da mulher e da família malaia eram elementos centrais na construção da “sociedade malaia moderna”. Para Ong, “o projeto de Estado e o ressurgimento islâmico devem ser vistos como formas em competição de um nacionalismo pós-colonial que fixa a família malaia e a mulher como ícones de formas particulares de modernidade” (Ibid.:161). A autora faz isso por meio de uma reconstituição histórica do processo de industrialização do país e do embate entre os discursos do Estado laico e do Islamismo renovado. Nos anos 1970 o Estado malaio desencadeia um processo de industrialização que acaba por promover uma forte intervenção sobre as noções de parentesco, direitos conjugais e gênero nos kampung, as aldeias da península malaia; um projeto de forte engenharia social promovido por um conjunto de leis agrupadas sob a sigla NEP (New Economic Policy) – uma versão da “Nova Ordem” de Suharto, na Indonésia. Como parte desta política estava a redistribuição de gerações mais jovens para partes menos habitadas, por meio da criação de cidades com zonas de livre comércio. Dezenas de milhares de jovens, principalmente mulheres, migraram para estas áreas especiais destinadas a acolher subsidiárias de multinacionais com alta demanda por mão-de-obra, especialmente do setor eletro-eletrônico. Este “exército de filhas trabalhadoras” teria alterado significativamente as relações nas unidades domésticas camponesas, de onde vinham estas jovens e cujo sustento passava a depender, em muitos casos, de seus salários. Além disso, o espaço de mercado de trabalho no qual circulavam dava-lhes muito maior liberdade do que a que tinham em seus kampung. Segundo Ong, “pela primeira vez na história malaia, um grande número de mulheres nubentes tinha o dinheiro e a liberdade social para experimentar um recém-despertado sentido de self (...) Rapazes e moças viram-se dependentes do mercado de trabalho e do Estado, mais do que de seus pais, enquanto negociavam seu caminho para a vida adulta” (Ibid.:172). Nos anos 1980 este sentido é estimulado por programas de erradicação de pobreza que, marcados pelas políticas internacionais de inclusão das mulheres no desenvolvimento (WID-Women in Development), vêm nas mulheres um agente central na promoção de modelos de desenvolvimento e acabam promovendo novos sentidos de obrigações femininas na família. “Funcionários do Estado ditavam séries de tarefas que as mulheres deveriam empreender para melhorar a saúde e a renda de suas famílias. Mães camponesas eram instruídas a ignorar as práticas ‘costumeiras’ ao preparar seus filhos para uma ‘sociedade progressista’ (...) instadas a cultivar em seus filhos valores como ‘eficiência’ e ‘auto-confiança’”. O discurso oficial desenhava assim dois modelos 35 de mulheres modernas: as filhas trabalhadoras, responsáveis por retirar as famílias do “atraso” material, e as donas de casa, a quem cabia fomentar os valores progressistas nas gerações futuras. Este discurso porém não deixa de estar marcado por classe social. No final dos anos 1970 começa a ganhar força entre a classe média universitária um movimento de jovens educados em Londres, Cairo e Islamabad que, de volta ao país, dão-se conta do fosso existente entre eles e as elites malaias que chegaram ao poder durante o domínio britânico. Estes grupos passam a se opor tanto aos antigos líderes religiosos, propondo uma leitura própria dos textos sagrados, como ao que chamavam uma elite de novosricos deslumbrados com o desenvolvimento ocidentalizado. Diziam opor-se a um desenvolvimento que levava à desigualdade e era vazio de valores espirituais, propondo em seu lugar uma reinvenção de tradições religiosas que encontrava na mulher e no seu corpo um terreno fértil para a representação icônica deste suposto resgate da tradição não-ocidental. É assim que, de uma hora para a outra, se dá em todo um segmento da população malaia a inserção do véu e do manto (purdah) como símbolos de resistência à ocidentalização das elites de Estado e a seu projeto de modernização.9 Segundo Ong, mais do que uma resistência à cultura capitalista, o recrutamento dessas mulheres para o ressurgimento islâmico implicava uma “reorientação da agência das mulheres para reconstruir uma identidade malaio-muçulmana” (Ibid.:179) em um movimento que ganhava força principalmente entre jovens de classe média.10 A força que este movimento ganha ao longo dos anos 1980 leva o Estado a lançar campanhas próprias de islamização, promovendo o ideal da mulher-mãe-defamília e ligando a isso um compromisso com a identidade nacional. Para esta narrativa de gênero, “o corpo grávido em casa pode ser ainda mais patriótico que o corpo feminino no trabalho” (Ibid.:183). É assim que “a despeito de suas diferenças quanto ao desenvolvimento econômico, tanto o ressurgimento islâmico quando o Estado secular criaram a imagem de uma modernidade islâmica, com sua poderosa influência sobre as mulheres e seus corpos, o elemento chave em suas visões concorrentes da sociedade malaia” (Ibid.:183). 9 “Estudantes andando por aí trajando um purdah completo eram fonte de irritação para os oficiais do governo, preocupados em que trajes ‘arábicos’ pudessem afugentar investidores internacionais”. (ONG, 1995: 179). 10 Esta observação é reforçada por Maila Stivens (1998), para quem ao mesmo tempo em que gênero tem sido um elemento sistematicamente presente na modernização e globalização da Ásia, “relações de gênero têm sido centrais na constituição das classes médias” da região. 36 Ong apresenta assim dois níveis de discursos que produzem narrativas de gênero: de um lado, o das “condições locais e das interações históricas dos costumes (adat) com o Islã [, que] formataram as crenças e práticas malaias relativas ao parentesco, residência e propriedade” (Ibid.:163).11 De outra parte, o discurso construído em paralelo ao do revivalismo islâmico, por uma elite de Estado preocupada com a integração do país a projetos de desenvolvimento e às respostas que isto implicava dar às demandas de agências internacionais, especialmente às Nações Unidas. Permanência e mudança: superando a dicotomia moderno vs. tradicional Processos como o descrito por Ong se desdobram em outros países, produzindo soluções múltiplas e localizadas, o que leva autoras como Mina Roces e Louise Edwards a dizerem que, de “tão diversas que são as imagens e experiências da modernidade é mais frutífero explorar as múltiplas modernidades das mulheres asiáticas, ou, nos termos de Maila Stivens, suas ‘modernidades divergentes’” (ROCES e EDWARDS, 2000: 1). Enquanto Ong e Peletz analisam discursos em competição pela instituição de narrativas de gênero na construção nacional daqueles países, Edward e Roces buscam entender “a maneira como as mulheres têm mobilizado desenvolvimento e globalização para suas próprias causas feministas nacionais”. Buscando ferramentas em discussões sobre os dilemas da relação entre globalização e saber local, constroem perguntas do tipo: “Como elas têm negociado pela diversificação nos traços do ícone da mulher moderna, tão evocado no discurso nacionalista? Como as mulheres na Ásia usam as narrativas da globalização – desenvolvimento e modernidade – para criar novas possibilidades e expandir suas oportunidades?” (Ibid.: 2). Esta bibliografia analisa processos que levam à criação de várias narrativas de gênero possíveis, competindo por ganhar hegemonia em determiados campos. Processos cujas complexidades, contradições e ambivalências acabam muitas vezes materializadas em figuras como Wan Ismail, a ativista malaia, líder do movimento reformasi, considerada o alter-ego de seu marido, principal líder oposicionista ao primeiro-ministro nos anos 1990, mas também uma médica que abandonou sua profissão para assumir seu papel de mãe e esposa e, como tantas outras, usa o véu como símbolo de oposição à modernidade ocidental. 11 Aqui é interessante notar que muito do que seria a ênfase igualitarista da adat (a descendência bilateral, ausência de prescrições para resolução de disputas, etc.) acabou sendo contrabalançado por interpretações mais hierarquizadas das diferenças de gênero, relacionadas à lei islâmica. 37 “A tensão entre uma narrativa de gênero oficial e as outras múltiplas narrativas de gênero é um tema central que permeia a experiência das mulheres entre 1970-2000” na região. Para as autoras, o paradigma dos discursos oficiais é dado por idéias-valores que vêm de fora, “como parte das idéias globalizadas do feminismo liberal e dos direitos humanos”, fortemente incentivados por organizações como as Nações Unidas (com declarações como a CEDAW e as conferências sobre mulheres e populações) e os fóruns regionais asiáticos (APEC – Asian Pacific Economic Cooperation e ASEAN Association of Southeast Asian Nations). Contudo, em uma estratégia semelhante, como veremos, ao que parece acontecer em Timor-Leste, as ativistas asiáticas “têm sido bastante proativas em ajustar o foco dos argumentos para longe da percepção de um caráter alienígeno ou desestabilizador do feminismo liberal ocidental, enfatizando o aspecto ‘nacionalista’ de tais princípios ao liberar as mulheres para o ‘desenvolvimento’”. Desta estratégia surgem composições locais epitomizadas por discursos pelos quais não pode haver desenvolvimento sem a igualdade de gênero – “a igualdade nos direitos de divórcio, de mulheres refugiadas, de legislações de combate à violência contra as mulheres e de pagamentos iguais”. Assim, “quando enquadrado dentro de uma rubrica nacionalista, o desenvolvimento das mulheres torna-se um ato patriótico, mais do que contra os homens” (Ibid.: 4). A incorporação, porém, de tais ou quais aspectos dos princípios de igualdade de gênero não se faz sem um sem-número de efeitos colaterais imprevisíveis. Na Coréia, por exemplo, muitas “mulheres, ao buscar a educação superior, o fazem com o intuito principal de adquirir melhores maridos” (Ibid.: 8). Gestos ou atitudes que nos padrões internacionalizados da modernidade ocidental têm um significado derivado do ideal da igualdade de gênero podem ganhar, nas modernidades locais, um significado por vezes contrário àquele espírito original. Da mesma forma, o gesto dos pais que procuravam a polícia em Manufahi para prestar queixas de violência sexual contra suas filhas não significava exatamente uma adesão aos valores apregoados pelas campanhas de combate à violência doméstica no país. Padrões da modernidade ocidental são, nestes processos, constantemente subvertidos pelos saberes locais. Edward e Roces apontam outro exemplo “de tal ‘subversão’ de elementos ‘modernos’ por forças tradicionais” nas conseqüências imprevistas de políticas de controle de natalidade que, ao invés de proporcionarem maior liberdade e segurança para as mulheres, acabam instrumentalizadas por práticas de preferência de filhos homens. 38 Mais do que um embate entre moderno e tradicional, estas situações representam o resultado da interação de sujeitos sociais com um repertório ampliado de narrativas de gênero que pode ser evocado de maneiras mais ou menos limitadas, conforme a arena em que ocorra e as redes de pertencimento em que os sujeitos estejam envolvidos. Assim, se por um lado Ong e Peletz acertam ao dizer que no final do século XX “identidades de gênero são construídas não apenas de acordo com conhecimentos locais, mas em geografias de produção, comércio e comunicação cada vez mais abrangentes”,12 é também verdade que, no caso timorense, as aldeias representam redes fortes o bastante para limitar e subverter os usos possíveis dos discursos produzidos pela geografia globalizada. Gênero e resolução de disputas Durante os 12 meses em que estive em campo, não houve situação melhor para observar processos de subversão e síntese local, como os referidos acima, do que os problemas relativos à esfera da justiça. Ao contrário dos casos descritos por Jayawardena e Ong, no caso timorense gênero não desempenhou um papel especial na construção do imaginário nacional durante o processo de luta pela independência e tampouco agora parece produzir um discurso mobilizador de uma retórica de integração nacional qualquer. Da mesma forma, tampouco a industrialização bate à porta timorense – um país sem indústrias, com mais de 70% da população vivendo em pequenas aldeias rurais e os 30% restantes concentrados em duas cidades. Então, onde podemos encontrar, em Timor-Leste, as situações de conflito e manipulação das tais modernidades divergentes? O dilema do policial de Manufahi, com o qual abrimos o capítulo, é um dos vários casos envolvendo o sistema de justiça em que pude observar algo assim acontecendo. Assim como outras instituições recentes no país, a polícia timorense (especialmente a UPV) está montada com base no respeito aos valores dos “direitos humanos” em geral e, mais especificamente, dos “direitos das mulheres”. Kelly Silva 12 Quanto a isso, dizem ainda que, em relação ao sudeste asiático: “os processos de formação do Estado e da Nação, a reestruturação econômica global e migrações de mão-de-obra para além-mar criaram geografias fluidas de gênero, raça e classe que cruzam fronteiras nacionais. Como conseqüência, do mesmo modo que os sujeitos pós-coloniais dificilmente conseguem equilibrar as forças descentradoras e recentradoras das reviravoltas cultural e nacional, assim também os entendimentos culturais do que seja ser masculino e feminino estão se tornando cada vez mais borrados, variados e problemáticos” (EDWARDS e ROCES, 2000). 39 (2004) aponta os complexos mecanismos por meio dos quais se foi costurando, nos últimos anos, um arco de alianças em torno de um projeto modernizador para o Estado e suas instituições, em que se envolvem elites urbanas, retornados de comunidades de diáspora, agências e missões das Nações Unidas e comunidades de países doadores. Neste cenário, o que opera a presença da nova geografia à qual Ong e Peletz se referem não é (até o momento) a modernização capitalista ou a industrialização globalizada, mas sim a formação de um Estado assentado em categorias globalizadas de gênero e justiça. É, portanto, na relação com as instituições de Estado em que mais se epitomizam estes valores, que os saberes locais encontram terreno fértil para produção de suas múltiplas modernidades. As maiores fontes de tensão nesta área, como veremos nos próximos capítulos, passam pela definição da autoridade legítima para regular situações de conflito no exercício da justiça. As instituições do Estado possuem esta legitimidade por definição constitucional. Contudo, ao dar forma a valores muitas vezes pouco gramaticais para a vida das aldeias, perdem espaço para formas locais de resolução de disputas. E, no plano da resolução de disputas, uma corda extremamente sensível para falar da “subversão” de valores modernos tem sido o tipo de caso em que gênero opera como um marcador significativo. Não é, portanto, aleatório que o tema da violência doméstica tenha se tornado presente de modo tão penetrante na agenda política timorense. Ao se medir práticas locais com o gabarito dos valores globalizados, criam-se situações de conflito a serem resolvidas. Mas não basta que se transformem situações antes normais em motivo para uma disputa a ser resolvida. É preciso estabelecer os termos nos quais esta disputa há de ser resolvida, e as formas locais de resolução de disputa, embora preferidas pela população, estão longe de alcançar os padrões de respeito aos “direitos humanos” esperados por quem promove a modernização do sistema de justiça. Antes de construir, contudo, uma abordagem adequada para colocar em análise esta questão, temos que perceber que Timor-Leste, como outros países da região, vive uma situação de pluralismo jurídico no qual os limites das interações possíveis entre os diferentes sistemas legais não estão claramente definidos. Pluralismo jurídico Tecnicamente, pluralismo legal, ou jurídico, indica “uma condição na qual mais de um sistema ou instituição legal coexistem em relação a um mesmo conjunto de 40 atividades e relacionamentos” (BENDA-BECKMANN; BENDA-BECKMANN, 2001: 3). No caso de várias comunidades do sudeste asiático isso está historicamente ligado à experiência colonial, que produziu, por meio dos sistemas de domínio ou administração indireta (indirect rule), realidades jurídicas em que, ao lado das leis coloniais, sistemas locais de justiça permaneceram plenamente (ou quase) vigentes. Ao longo do século XIX e começo do XX chegou-se mesmo a tratar as formas locais de organização social como sistemas legais. Assim, a “adat”, literalmente “costume” em malaio, passou a ser estudado por holandeses e ingleses como “adat recht”, a lei costumeira (GEERTZ, 1983; BENDA-BECKMANN, 1979). Nas últimas décadas, esta abordagem foi sendo revista e perdendo sustentação, na medida em que o trabalho etnográfico mostrava o caráter reducionista e etnocêntrico de se tentar reduzir complexos sistemas de regulação de disputas a um quadro normativo fixo, sob o título de uma “lei” ou “código” tradicionais. Assim, o foco dos estudos preocupados com estas realidades foi sendo alterado deste suposto “sistema legal tradicional” para os conflitos entre diferentes fontes de autoridade para o exercício do poder, por trás da capacidade de administrar e resolver disputas. Alguns estudos deixaram também de estar colados apenas aos conflitos entre lei colonial e sistemas locais. Franz e Keebet Benda-Beckmann (2001) lembram a centralidade que hoje tem o pluralismo jurídico para o comércio internacional, marcado por conflitos entre o direito internacional e direitos nacionais. Da mesma forma, o direito de uso de áreas consideradas ecologicamente importantes é um campo fértil para o tipo de conflito intensificado pela globalização (tanto econômica quanto dos valores, no caso os preservacionistas). Mas se a globalização acentua estes conflitos, certamente não é ela quem inaugura este fenômeno no mundo. Os Benda-Beckmann lembram o caso de Minangkabau, no oeste da ilha de Sumatra, região na qual o casal vem desenvolvendo pesquisas desde meados dos anos 1970. Maior comunidade matrilinear do mundo, Minangkabau vive uma situação de pluralismo jurídico (e os conflitos dele decorrentes) desde antes do período colonial holandês. Na região, há séculos a adat regula a transmissão da terra pela linha materna. Ao mesmo tempo, Minangkabau é, desde antes da chegada dos holandeses, uma das comunidades de Sumatra com mais forte presença do islamismo, sendo a lei islâmica observada com rigor. Como a lei islmâmica é baseada em princípios de autoridade patriarcal, em questões de herança ela nunca foi aplicada em Minangkabau, valendo para tanto as regulações da adat. 41 Na Indonésia mesmo, durante os anos 1970, estabeleceu-se, por meio de sucessivas reformas judiciárias, um sistema que reconhece oficialmente duas leis: a lei civil e a lei islâmica. Qualquer pessoa pode escolher, para casos não-criminais, se deseja que seu caso seja conduzido por um tribunal de Estado ou por um tribunal religioso, sendo que a lei civil, em muitos distritos, leva em consideração princípios da adat local. Evidentemente isso não se dá sem conflitos e situações de sobreposição, alguns dos quais são bem explorados no estudo de Herman Slaats e Karen Portier (1986) sobre uma sociedade do norte de Sumatra, em que podemos ver um caso expressivamente marcado por gênero. Sendo os Karo Batak uma sociedade patrilinear, seu sistema de hereditariedade estabelece que as terras de um homem devem ser herdadas pelos filhos homens. No caso de um homem ter um único filho homem, este recebe toda a propriedade. O sistema deixa, contudo, subentendido que o filho deve levar em conta necessidades específicas de suas irmãs, especialmente no caso de ainda haver filhas solteiras no sibling. O uso de um tal sistema em sociedades complexas está longe de ser exclusividade asiática, podendo ser encontrado com algumas variações até mesmo entre colonos do sul de Minas Gerais (MOURA, 1978). Ocorre que entre os Karo Batak, a divisão da terra deve ser sancionada socialmente por meio de uma estrutura de deliberação formal em um processo chamado Ruggun, baseado em consultas mútuas organizadas pelos homens mais velhos dos clãs a quem a decisão diz respeito. É também por meio do Ruggun que se resolvem quaisquer disputas locais, especialmente as relativas à herança. Slaats e Portier (1986) apresentam um caso de disputa pelo direito de uso de campos de arroz envolvendo a linhagem central de uma das aldeias da região. Neste caso, o herdeiro era o último filho do chefe daquela linhagem (o único filho homem), que, tendo o pai morrido poucos anos após seu nascimento, fora criado pelas irmãs mais velhas, todas do primeiro casamento do pai. À medida em que foram se casando, as irmãs continuaram utilizado os arrozais para cultivo. Quando o jovem se casou , época na qual se oficializou a herança, todas as irmãs já estavam casadas, à exceção de uma, que, com a idade que tinha, dificilmente viria a se casar um dia. Assim, para assegurar a subsistência da irmã solteira e em respeito à sua saúde debilitada, deu-se a ela o usufruto de metade de um campo de arroz irrigado, além dos campos de arroz de sequio que ela já utilizava. Às demais irmãs caberia o direito de usar a outra metade do campo de arroz irrigado, alternadamente. Todos os demais campos e árvores frutíferas ficariam na posse 42 do herdeiro e à sua disposição. Embora estivesse de acordo com os padrões estabelecidos pela adat, a decisão do Ruggun desagradou muito às irmãs, que esperavam, pelo fato de terem criado o herdeiro desde pequeno, serem agraciadas com o direito de continuar utilizando os campos que já cultivavam. Ademais, o herdeiro conseguira um emprego como professor na vila – empregos públicos na Indonésia são altamente desejados e asseguram melhores condições econômicas que a agricultura. Desta forma, decidiram não respeitar a decisão do Ruggun e continuar utilizando os arrozais. Isto levou o herdeiro a apelar para a justiça de Estado, levando o caso para o tribunal do Distrito. Em sua petição, o herdeiro pedia que se fizesse valer a decisão acordada no Ruggun, e que estava sendo ostensivamente descumprida por suas irmãs. No tribunal, porém, o caso seria analisado à luz de parâmetros bastante diferentes daqueles operantes no Ruggun. Nos anos 1960 uma decisão da Suprema Corte indonésia havia considerado que: “com base nos sentimentos gerais de humanidade e justiça e de direitos absolutamente iguais entre homens e mulheres, deve-se considerar lei vigente na Indonésia que filhas e filhos são igualmente habilitados à herança paterna, no sentido de que a parte dos filhos seja igual à parte de suas irmãs” (SLAATS e PORTIER; 1986:233). Os juízes do tribunal distrital tinham, porém, o discernimento de saber que se esta determinação fosse aplicada sem mediação alguma, os resultados seriam catastróficos para a ordem social local. Ela dava o direito de propriedade das terras do morto aos seus genros, tanto quanto aos seus filhos. Ou seja, “desafiando as regras da adat e da prática generalizada, ela permitiria aos grupos tomadores de mulheres (via filhas/irmãs) reclamar [a herança] em pleno direito, no mesmo nível dos doadores de mulheres, virando, assim, de ponta-cabeça, não apenas o sistema de direitos sobre a terra (...), mas também a relevância social das relações de parentesco e, com isto, a base de organização da sociedade” (Ibid.:233). A solução intermediária que se estabeleceu definia dois tipos de herança: aquela que fosse adquirida pelo morto ao longo de sua vida (harta pencaharian) devia ser distribuída igualmente entre filhos e filhas; já a terra originalmente pertencente à patrilinhagem do morto (harta pusaka) só poderia ser herdada pelos filhos. Ao analisar a demanda do herdeiro de Karo Batak, porém, o tribunal levou em conta argumentos apresentados pelas irmãs segundo os quais elas já cultivavam campos que estavam em usufruto de sua mãe (a primeira esposa do falecido) bem antes da morte 43 dela, o que, segundo a adat, tornava aquelas terras parte da “penjayon”, o que não podia ser classificado na categoria de harta pusaka. Com base nisso, o tribunal encerrou o caso, considerando a demanda do herdeiro improcedente. O que Slaats e Portier mostram é que este argumento das irmãs não se sustenta de fato na adat local. Penjayon refere-se à unidade de terra dada a um filho homem para sua subsistência no caso deste precisar montar uma unidade doméstica antes da morte do pai. Fora do contexto comunitário, esta categoria da adat pôde ser manipulada com relativa facilidade no tribunal do Estado, criando uma situação favorável às irmãs do herdeiro. Reconhecendo que a definição de uma disputa depende muito da forma como os participantes formulam suas demandas, Slaats e Portier mostram, com este caso, que “os participantes estão continuamente tentando refrasear a disputa impondo categorias estabelecidas para classificar eventos e relações ou pintando um quadro que desafia as categorias estabelecidas.” (Ibid.:235). As diferentes categorias (da adat e do tribunal) são, assim, arsenais disponíveis no repertório local para manipulação dos atores em uma ou outra arena, conforme lhes pareça mais estratégico. Com isso os autores chamam a atenção – mais do que para a compreensão dos sistemas legais e seus princípios – para as formas como “as partes em disputa usam sua lei costumeira ao apresentar a disputa para a corte de Estado”, pondo em operação um processo que “envolve transformações não só dentro dos limites de uma única ordem legal, mas também entre conjuntos distintos de categorizações normativas representadas pelas distintas ordens legais”. (Ibid.:.217). Estes mesmos usos sobrepostos podiam ser vistos na narrativa aflita daquele policial de Manufahi. Os pais que se dirigiam à delegacia invocavam categorias da justiça de Estado, como a de abuso sexual, baseados em um sentido de direito próprio de costumes locais. Buscavam, com isso, construir um caso na arena do Estado quando, provavelmente, as instâncias internas da comunidade já estavam esgotadas. Ao faze-lo, exigiam do policial uma resposta que teria de ser formulada em termos de uma outra gramática que não a da adat. Uma gramática produtora de (e, ao mesmo tempo, alimentada por) narrativas de gênero bem diferentes daquelas que operam nos costumes locais, narrativas aprendidas pelos policiais em seus treinamentos e espalhadas para a população pelas campanhas de combate à violência doméstica. 44 Violência doméstica e os processos de resolução de disputas Ao contrário do que ocorre na Indonésia, em Timor-Leste o sistema formal de justiça não permite escolhas entre diferentes modelos legais. Não há regulamentação que permita incorporar decisões baseadas na adat à justiça de Estado e tampouco existe uma justiça religiosa. A ausência de regulamentação, porém, não inibe a sobreposição de formas de resolução de disputas. Pelo contrário. Por não haver clareza sobre os limites entre categorias e esferas de atuação dos diferentes sistemas, o terreno permanece mais facilmente aberto para situações de múltiplas interpretações e dilemas, como as do policial de Manufahi. A força da adat como forma de resolução de disputas em Timor-Leste vem, em grande parte, da história recente daquele território. Quando a presença colonial portuguesa começa de fato a existir, na virada para o século XX, os mecanismos de administração preservaram os sistemas locais de justiça, fato que sofreu poucas mudanças até os anos 1970, quando da ocupação indonésia. De 1975 a 1999, uma lei indonésia de 1974 assegurou a existência das formas locais de resolução de disputas (BABO SOARES, 1999:10), ao mesmo tempo em que a situação de ocupação e resistência enfraquecia a credibilidade do sistema formal de justiça. Além disso, a justiça indonésia tinha, entre a população local, a fama de estar impregnada pela corrupção – Babo Soares cita um ditado em tétum que diz: “aquele que tem dinheiro, este ganha o caso; o que não tem, este perde” (Ibid.:12). Com o fim da ocupação indonésia e durante a regência da ONU no território (1999-2002), a situação jurídica se tornou ainda mais plural e complexa. A administração transitória (UNTAET) determinou que, enquanto não se promulgasse a Constituição timorense, a legislação aplicável em Timor-Leste continuaria sendo aquela vigente até então (supõe-se, a lei indonésia), ressalvados artigos que ferissem princípios internacionais de direitos humanos. Em segundo lugar, na hierarquia legal, viria um conjunto de regulamentações legais produzidas pela própria UNTAET, visando os casos omissos na lei indonésia. Em terceiro lugar viriam as leis porventura promulgadas pelo Parlamento Timorense, que, aos poucos, iriam substituindo as regulamentações da UNTAET e os códigos indonésios. Este emaranhado de quatro conjuntos normativos (Constituição da República, códigos indonésios, regulamentos da UNTAET e leis do parlamento) deveria ser interpretado e operado por juízes timorenses recém nomeados, 45 gente que se formara em direito em universidades indonésias, mas que nunca chegara a exercer a magistratura (SILVA, 2004). Além disso, dos 13 distritos do país apenas 4 possuíam tribunais, fazendo com que as partes de um caso tivessem que se deslocar por vezes durante longas horas e péssimos caminhos em um veículo da polícia para chegar a um tribunal, muitas vezes sem a garantia de que a audiência fosse realizada naquele dia. O acesso difícil e os custos envolvidos tornaram ainda menos atrativo o recurso à justiça de Estado, reforçando o apelo à resolução local das disputas. A grande prevalência do uso de formas locais de resolução de disputas, aliado aos problemas da frágil estrutura da justiça de Estado (o emaranhado de códigos, a inexperiência dos juízes e a infraestrutura insuficiente) foram objeto de muitas críticas por parte de ONGs que viam, nas formas locais de justiça, um impedimento ao exercício dos direitos humanos. Muitas destas organizações desenvolveram pesquisas acerca da adat, seu grau de penetração na população e os problemas que seus princípios punham para a efetivação de padrões de justiça baseados nos direitos humanos, produzindo, com isso, um bibliografia relativamente rica sobre o tema, uma parte da qual será analisada mais adiante (cf. Capítulo 4). Em um estudo para a Australian Legal Resource International, o antropólogo David Mearns mostra como, desde o início da presença policial da ONU em Timor, a preocupação com as formas locais de justiça inquietava quem estava na ponta do sistema de Estado. “Os policiais internacionais rapidamente entenderam o que a polícia local já sabia. Era crucial para todos os envolvidos que uma solução rápida e visivelmente justa para tais situações fosse alcançada de modo a permitir que a vida social retornasse à normalidade.” (MEARNS; 2002: 39). Em muitos casos, os policiais temiam o que consideravam a “volatilidade da população e sua propensão para respostas violentas” (lembremos que a memória dos massacres de setembro de 1999 ainda estava fresca). O acesso fácil às katanas (facões) nas aldeias rurais significava que surtos de violência podiam rapidamente se tornar mortais. Isto levava muitos policiais internacionais a estimular a resolução de conflitos pelos meios tradicionais. Mearns relata a experiência de um UNPOL que, em menos de 3 semanas em campo, já havia atuado como mediador de um encontro entre chefes de duas aldeias para acertar compensações pelo furto de um cavalo. O estímulo ao recurso a soluções extrajudiciais, contudo, nem sempre terminava bem. Mearns descreve um caso que lhe foi narrado em Oecussi, enclave timorense no lado indonésio da ilha, no qual a polícia fora procurada por um senhor visivelmente 46 agitado que pedia intervenção imediata da força policial contra um outro homem da aldeia que estava assediando sua esposa, acusando-a de feitiçaria. Sem condições de lidar formalmente com acusações de feitiçaria, o policial disse que nada podia fazer e sugeriu ao senhor que buscasse resolver o caso “pelos meios tradicionais”. Alguns dias depois o senhor retornou, dizendo que havia seguido o conselho e resolvera o caso à moda tradicional, matando o acusado. “Desnecessário dizer que foi preso por homicídio” (Ibid.: 46). Se, por um lado, muitos policiais compartilhavam o sentido dado pelos moradores nas aldeias, de que “o sistema de justiça da aldeia continuava e continuaria sendo a forma mais imediata, efetiva e relevante para resolver disputas e punir pequenos crimes”, esta certamente não era a opinião dos consultores internacionais na área legal e de direitos humanos. Segundo Tanja Höhe e Rod Nixon (também antropólogos), em um estudo para o United States Institute for Peace “a comunidade internacional nunca prestou atenção para a natureza e relevância dos sistemas locais na determinação de estratégias. Tomava-se como dado que novos sistemas seriam imediatamente aceitos pelas sociedades, mesmo que não combinassem com conceitos locais e a despeito de experiências negativas com o anterior sistema de justiça indonésio.” (HOHE e NIXON, 2003:2). Assim, quando os conflitos começaram a se tornar evidentes, vozes dos assessores internacionais e de ONGs passaram a tecer duras críticas às formas locais de justiça. Os discursos produzidos contra os sistemas locais eram incapazes de perceber a lógica por trás destes processos, vendo apenas a ausência de parâmetros pressupostos na justiça de Estado. Mearns mostra como várias críticas enfatizavam o que se considerava a “inconsistência dos resultados das decisões locais”. Para tais críticos, as deliberações locais eram comprometidas pela falta de sistematicidade e impessoalidade, o que impediria decisões “justas”. Chefes de aldeia “tratavam cada caso subjetivamente e não havia nenhum sentido de que devesse haver um tratamento igualitário” (MEARNS, 2002:40). Estas características são sensivelmente enfatizadas nas críticas à maneira como as justiças locais lidavam com casos classificados, no discurso destas “vozes da modernidade”, de “violência doméstica”. A dimensão de gênero, marcada nos processos tradicionais de resolução de disputa por uma clara assimetria – as mulheres praticamente não participam destes processos – tornava as diferenças entre os padrões dos sistemas jurídicos ainda mais acentuadas. As oposições e conflitos entre os sistemas jurídicos fornecia, assim, a arena perfeita para encontrarmos diferentes narrativas de gênero disputando legitimidade. 47 Ao longo dos próximos capítulos encontraremos várias situações em que categorias de diferentes sistemas de justiça e diferentes narrativas de gênero se cruzarão para dar o eixo dos dilemas da construção de “modernidades timorenses”. Em geral, o resultado destes encontros e desencontros é imprevisível e bastante localizado, a depender de como os sujeitos consigam mobilizar o arsenal de categorias à sua disposição. Mearns relata uma variação do nosso caso de Manufahi, segundo o qual haveria uma certa recorrência em casos de mulheres solteiras que buscavam a polícia para cobrar que os pais de seus filhos reconhecessem a paternidade dos mesmos. “Vários oficiais de diferentes distritos afirmaram suspeitar que algumas mulheres estavam alegando que tinham originalmente sido forçadas a fazer sexo – mesmo quando a primeira ocasião havia sido vários anos antes de terem engravidado – buscando punir ou pressionar o homem que as abandonara por meio da acusação de estupro. Às vezes a estratégia funcionava, e a queixa era retirada uma vez que se chegasse a um acordo, por meio do processo dito ‘tradicional’, quanto à compensação ou suporte futuro” (Ibid.:42). Em um caso específico, porém, que chegara a ir a tribunal, o juiz de instrução entrevistou o homem acusado, tentando convence-lo a assumir responsabilidades pela criança. Como o homem se recusava obstinadamente a fazer qualquer acordo, o juiz determinou sua prisão temporária por 30 dias sob a acusação de “fraude” (swindle). A resolução do juiz, neste caso, pareceu pouco eficaz. Por um lado, estava assentada em uma interpretação, digamos, bastante criativa da legislação vigente. Por outro lado, sua sentença não dava nenhuma resposta efetiva para a reclamante, nos termos em que a adat daria.13 Diferenças como esta levam Höhe e Nixon a falar em um “choque de paradigmas” (clash of paradigms) entre o sistema e os valores da justiça de Estado e aqueles comumente ordenadores das formas locais de justiça. Este confronto de paradigmas – idéia extensível às diferentes narrativas de gênero em competição no país – pode ser entendido, à luz das observações de Geertz (1989), como um confronto entre diferentes sensibilidades jurídicas e, principalmente, diferentes sensos de justiça. Até que ponto estes paradigmas conflitantes produzem práticas híbridas socialmente eficazes ou apenas grandes mal-entendidos culturais é o que veremos a partir daqui. 13 É um princípio recorrente em várias tradições locais de adat, a idéia de que o restabelecimento da harmonia no grupo passa pelo pagamento de compensações (GEERTZ; 1983. BABO SOARES; 1999), coisa que a prisão – o padrão da justiça de Estado – está longe de prover. 48 *** As disputas por esferas legítimas para resolução de conflitos e construção da justiça têm sido, em Timor-Leste, um espaço privilegiado para compreender os dilemas envolvidos na negociação de diferentes narrativas de gênero. Em sua dimensão mais visível, aquela dada em torno de um discurso sobre a “violência doméstica”, estas disputas envolvem, com a mesma centralidade, princípios e categorias vindas tanto de geografias de produção bastante restritas quanto amplamente globalizadas. Por razões históricas, formas locais de organização social mantém-se tão operativas quanto as mais globalizadas estruturas do Estado. Temos assim que Timor-Leste abriga, a um só tempo e com a mesma centralidade, os Mambai de tal ou qual aldeia, os Bunak de tal ou qual distrito, e os princípios de tal ou qual projeto patrocinado pelas Nações Unidas na construção da estrutura de um Estado moderno. Estes dilemas serão explorados nos próximos capítulos seguindo uma estrutura em espiral que inicia pelos diferentes discursos de gênero construídos presentemente em Timor-Leste (2002/2003) e vai gradualmente se aproximando da esfera normativa da resolução de conflitos. Dito de modo mais simples, temos à frente quatro capítulos. No primeiro apresento o cenário que encontrei em Dili em novembro de 2002 e que fez com que o tema do combate à violência doméstica se tornasse um objeto incontornável para esta pesquisa. Este será o tema em torno do qual atores e discursos bastante variados explicitarão suas divergências. Os atritos que estas diferenças causam começarão a ser analisados no capítulo seguinte, no qual procuro fazer a etnografia do processo de elaboração de uma legislação de combate à violência doméstica e que apresentará situações em que diferentes sensibilidades jurídicas começam a emergir, associadas a práticas que dão sentidos bastante diferentes à violência, gênero e justiça. Na seqüência dirijo o foco especificamente para o sistema de justiça de Estado e a maneira como nele se dá a construção de uma narrativa hegemônica em relação à violência doméstica. Analisarei aí a construção do campo social em que opera o sistema de justiça timorense, dando especial atenção a um conjunto de eventos relacionados à capacitação e instrumentalização da polícia e do judiciário timorense, fortemente suportados por projetos internacionais. Por último, voltamos ao cotidiano das “pessoas comuns” e às práticas decorrentes de suas relações possíveis com as formas de 49 resolução de disputas, por meio da análise de casos de violência doméstica a serem resolvidos na polícia, no tribunal e por mediação em ONGs. Por fim, para os que dizem que os antropólogos nunca contam o final de suas histórias, vale registrar a resposta que a policial de Dili deu ao angustiado policial de Manufahi. A instrução dada pelas treinadoras, adequada aos procedimentos formais, era para que o policial não recebesse aquele tipo de caso, uma vez que, se a relação sexual fora consentida, não havia crime nenhum em causa. O que ele poderia fazer era sugerir que a família entrasse com um processo civil no tribunal distrital. Zeloso, o policial anotou a instrução em seu caderno e deu-se por satisfeito. 50 Capítulo 2 ACORRENTADAS PELA CULTURA: OS SENTIDOS DA VIOLÊNCIA E A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS Neste capítulo discuto a noção de violência tal como ela é utilizada por diferentes atores em Timor, em relação a diferentes discursos sobre gênero. De início apresento diferentes narrativas de gênero presentes no país, caracterizando os atores políticos que as articulam. Na seqüência faço um mergulho na realidade de um dos distritos do interior do país, buscando qualificar os sentidos dados localmente ao que o discurso oficial chama de ‘violência doméstica’. Aqui, o capítulo apresenta as formas como usualmente as diferenças de gênero marcam relações entre grupos em Timor-Leste. Para além de uma forte divisão sexual do trabalho, as diferenças de gênero são enfatizadas em muitas outras arenas da vida social, regulando o acesso às esferas política e religiosa e produzindo dicotomias estéticas acerca do mundo circundante. Contudo, mesmo sendo um tema marcante, gênero não é a única diferença a fazer a diferença em Timor-Leste. Recortes geracionais e de linhagem compõem parte fundamental das fronteiras sociais e das identidades localizadas dos sujeitos timorenses. Por fim, voltamos à capital para entender como a introdução de um novo conceito (violensia domestika) corresponde à criação de uma nova moralidade para a significação do ato de uso da força. Nisso, o capítulo apresenta novos discursos e práticas orientados por uma ideologia de Estado que bate de frente com muitas das formas usuais de articulação das diferenças de gênero no país. São retratadas aqui práticas de novos atores políticos urbanos (ONGs e movimento de mulheres) e projetos oficiais (governo, ONU e cooperação internacional) que põem em cheque muitas das crenças locais referidas acima. Para isso, procuro descrever um campo de ação política, seus atores e alguns eventos-chave do período 2002-2003. O Projeto ‘Violensia baseia ba gender la’os kultura Timor-Leste nian’ Na primavera de 2002 a chuva demorou a chegar a Timor-Leste. Em fins de novembro a seca e o calor tornavam as ruas de Dili difíceis de serem percorridas a pé. Uma exceção era a rua Bispo de Medeiros, no trecho que ladeava o palácio do governo e o parlamento. Ali, o amplo sombreado das árvores centenárias, herança do período português que, como o nome da rua, passara incólume pela ocupação indonésia, permitia ao transeunte andar com a calma necessária para observar uma curiosa faixa que atravessava a rua, suspensa entre um poste e uma árvore. Uma frase em tétum dizia que a violência de gênero não faz parte da cultura de Timor-Leste – Violensia baseia ba gender la’os kultura Timor-Leste nian. A faixa chamara minha atenção desde que a vira, alguns dias antes de ser pendurada entre as árvores da movimentada rua central de Dili, no lançamento de uma campanha alusiva ao dia internacional de combate à violência contra a mulher (dia 25 de novembro). Duas coisas me intrigavam na faixa. Por um lado, a mensagem em si, uma clara alusão a críticas que, aqui e ali, se ouvia sobre o impacto que este “tal discurso de gênero” podia trazer para as tradições timorenses. O texto punha em foco a “cultura” local, buscando com isso revesti-la de um significado que atenuasse a oposição entre o que se entendia por tradição e os valores da igualdade de gênero. Por outro lado, o uso da palavra “gender” – assim mesmo, em sua forma anglófona – em meio a uma frase em tétum parecia evidenciar o caráter alienígena daquele conceito e dos valores que encarnava. A faixa e sua mensagem foram obra de Maria Domingas Fernandes Alves, a Micató. Nascida ainda no período de domínio português, Micató era filha de um personagem importante do Distrito de Manatuto – o mesmo de Xanana Gusmão, presidente da República. Seu pai fora uma liderança tradicional na região de Lacló e trabalhava para o Estado português. Ainda criança, Micató foi levada a estudar na escola das irmãs Canossianas de Manatuto e logo enviada ao colégio de Soibada, um dos melhores colégios católicos do território, por onde passou boa parte da elite nativa timorense.14 De 1972 a 75, fez a Escola Técnica em Dili, no Liceu Francisco Machado, outro ponto de referência para a formação de uma geração de jovens filhos de lideranças locais que se envolveram diretamente nos conflitos em torno da independência nacional. A trajetória de Micató, tal como a de seus colegas de Soibada e do Liceu, fora marcada pelo processo de descolonização português e pelos acontecimentos que sucederam a retirada dos administradores portugueses do território timorense em 1975. Nos meses seguintes ao 25 de abril de 1974, Portugal iniciou em Timor-Leste um processo eleitoral destinado a formar uma assembléia que conduziria o processo de independência do país. Estas eleições acabaram opondo, sob a forma de dois partidos relativamente representativos, dois grupos de elite nativa (ou crioula) que apostavam em 14 Estudaram lá também o atual ministro de negócios estrangeiros, José Ramos Horta, o ex-deputado do parlamento e um dos fundadores da Fretilin, Xavier do Amaral e o próprio Nicolau Lobato, fundador da Fretilin, primeiro comandante das FALINTIL, considerado o primeiro presidente de Timor-Leste, morto pelos indonésios em 1975 e hoje um herói nacional. 52 projetos nacionais distintos: os partidários da Fretilin (Frente Revolucionária de TimorLeste Independente), partido de inspiração marxista, e a UDT (União Democrática Timorense), com um projeto próximo do que hoje se chamaria social-democrata. Esta rivalidade acabou no centro da estratégia de invasão indonésia, nos meses finais de 1975. Preocupado com a vitória da Fretilin e de seu projeto socialista, a Indonésia de Suharto, com o apoio explítico dos EUA de Ford e Kissinger, desencadearam uma operação de desestabilização no território, por meio da intensificação de conflitos entre os partidos.15 A situação caminhou facilmente para um cenário de embates armados, qualificado como o de uma guerra civil, intensificada no final de 1975 com a retirada da administração portuguesa do território. O pai de Micató foi um dos líderes locais da UDT. Com a intensificação dos conflitos, acabou preso pela Fretilin em setembro, mantido incomunicável em lugar incerto. A prisão de seu pai levou Micató a receber com desconfiança, alguns meses depois, o convite para assumir uma secretaria na Organização Popular das Mulheres Timorenses (OPMT). A OPMT era uma seção da Fretilin criada por uma jovem militante do partido, Rosa Muki Bonaparte, que mantinha contatos com um dos movimentos de mulheres da Indonésia (GERWANI) ligado ao Partido Comunista e crítico às organizações oficiais do regime de Suharto. Rosa Bonaparte descrevia a OPMT como: “uma organização da Frente Revolucionária para um Timor-Leste Independente – Fretilin – que possibilita a participação das mulheres na revolução. (...) A criação da OPMT tem um duplo objetivo: primeiro, participar diretamente na luta contra o colonialismo, e, segundo, lutar de todas as formas possíveis contra a discriminação violenta que as mulheres timorenses sofreram na sociedade colonial” (Aditjondro apud. UNTAET, 2002:129). Com a retirada da administração portuguesa, a Fretilin ganhara espaço no território, chegando a declarar unilateralmente a independência de Timor-Leste em novembro de 1975 e a instituir um governo. Acuada, parte da UDT se retirou para o lado indonésio da ilha e foi levada a crer que, assinando um acordo com o país vizinho, poderia retomar o território timorense. Amparada por esta “solicitação de ajuda”, as tropas indonésias começaram a invasão da ilha, tomando Dili em dezembro do mesmo ano. A necessidade de se estruturar como rede clandestina de resistência levou a OPMT a buscar quadros qualificados, de onde surgiu o convite a Micató. Em suas palavras: 15 Para mais detalhes acerca da operasi komodo, como foi chamada a operação, e da participação norteamericana no processo, ver TAYLOR,1990 e RETBOLL, 1998. 53 “Pouco depois, com a Indonésia já aqui dentro, fui convidada a trabalhar como secretária da OPMT, ligada à Fretilin. A princípio, recusei porque àquela altura ainda não sabia o que tinha acontecido com meu pai, qual era o paradeiro dele. Eles [da Fretilin] se prontificaram a me apoiar, a responder onde meu pai estava e a trazê-lo até nós.”16 A possibilidade de se reaproximar de seu pai a levou a aceitar o convite e entrar em uma rotina de resistência clandestina de onde viria sua preocupação com os direitos das mulheres. Segundo a própria Micató: “Estive nas matas durante três anos, do final de 75 até princípios de 79, na região ao redor de Lacló, Laclubar e Remexiu. Tinha 15 anos. Foi lá que aprendi a trabalhar na organização das bases. Aprendi também sobre política e direitos da mulher. Tomei consciência de minha dimensão política na guerra. Como já disse, era secretária da OPMT, trabalhando na organização das massas. Algum tempo depois, passei à assistente da OPMT. Em Lacló existiam poucas mulheres com formação suficiente para organizar o povo e ajudar a Fretilin a resistir. Dessa forma, fui solicitada a entrar para a luta. Participei nos acampamentos de vários cursos intensivos de política, que duravam um mês.” Chegou a ser escolhida para ser a comandante de um destacamento feminino da resistência armada, mas não teve tempo de usar as armas. Em 1979, capturada nas montanhas juntamente com centenas de homens e mulheres da Fretilin, voltou a Dili, onde passou a viver com o marido – com quem se casara ainda nos acampamentos da resistência – e a operar na retaguarda da rede de resistência que continuava atuante por todo o país. Nos anos 1990 esteve à frente da criação de uma das primeiras organizações locais voltadas ao atendimento a mulheres vítimas de violência, a Fokupers (acrônimo para o nome indonésio “Forum Komunikasi Untuk Perempuam”, ou fórum de comunicação para a mulher). Destacando-se como figura chave no movimento de mulheres, passou a ser uma interlocutora importante com as missões das Nações Unidas na reconstrução do país. Já em 2001 era cogitada como um nome consensual para assumir uma divisão na estrutura da Administração Transitória destinada a promover os direitos das mulheres na implementação de políticas públicas. Micató, contudo, acreditava que era preciso consolidar as instituições da sociedade civil antes de assumir uma estrutura de Estado. Chegou a garantir, em uma entrevista dada em 2001, que nunca deixaria a Fokupers para assumir uma posição no governo. Embora não dissesse isso na entrevista, a sua associação com um governo da Fretilin poderia criar problemas 16 Entrevista concedida à revista Democracia Viva, n. 12, nov 2001-fev 2002. As demais citações de Micató nos próximos parágrafos reportam à mesma fonte. 54 para manter unidas organizações de mulheres que, tensionadas por uma clivagem política local, não aceitariam ser representadas por alguém com filiação partidária. Realmente, o movimento de mulheres timorense em Dili era atravessado por diferenças por vezes irreconciliáveis, o que o tornava bastante fragmentado. A tensão mais visível tocava exatamente na corda partidária. Em 1999 o Conselho Nacional de Resistência Timorense (CNRT – uma organização suprapartidária que teve papel central na articulação das diferentes frentes de resistência à ocupação indonésia) realizou na Austrália um congresso no qual boa parte de seus membros decidiu que o caráter partidário da OPMT podia ser um entrave para se conseguir recursos internacionais para a instituição. O termo “popular” estaria ainda associado a uma ideologia datada e deveria ser suprimido. Surgiu com isso a Organização da Mulher Timorense (OMT), como contraponto à OPMT e não vinculada a nenhum partido. OMT e OPMT, contudo, compartilham basicamente a mesma base social, sendo que em muitos distritos as representantes são as mesmas pessoas. No plano institucional e diretivo, porém, são concorrentes. Assim, se assumisse diretamente uma posição na Fretilin, Micató poderia ser acusada de favorecer a OPMT, em detrimento da OMT e de outras associações nãovinculadas ao partido. Era neste terreno altamente segmentado que Micató buscava ser uma força aglutinadora. Casada, mãe de 6 filhos (5 vivos), filha de um líder tradicional e formalmente não vinculada a nenhum partido, estava em condições de assumir tal tarefa. Um ano depois de dizer que não deixaria a Fokupers, Micató acabou aceitando a indicação para coordenar o Gabinete para Promoção da Igualdade (GPI) – herdeiro do Gender Affairs Office (GAO/UAG) da UNTAET – sem se filiar, contudo, ao partido do governo. Em sua primeira resolução após ser instituída, em novembro de 1999, a Adminstração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET) incorporou a preocupação com a “igualdade de gênero” como uma de suas metas. A segunda seção do regulamento 1999/01 “obriga todos os responsáveis públicos a respeitar os padrões e princípios internacionais de direitos humanos, incluindo a Convenção para a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).” (UNTAET, 2002). Nos termos de um documento produzido pelo próprio GPI: “Ao abrigo das Nações Unidas, a UNTAET foi mandatada para integrar a perspectiva de igualdade de gênero no processo de desenvolvimento da administração do território. A UNTAET empenhou-se, ao mais alto nível, no alcance dos objectivos da promoção, implementação, supervisão e avaliação da 55 integração da meta da igualdade do gênero na UNTAET/ETTA bem como assegurar que a mulheres e homens fosse concedida participação igual no processo de reconstrução. Para tal, estabeleceu a Unidade dos Assuntos de Gênero (UAG) como mecanismo institucional facilitador da integração das perspectivas do gênero no desenho, implementação, supervisão e avaliação de todos os programas e políticas da UNTAET” (UNTAET, 2002:7) 17 A preocupação da missão da ONU com a igualdade entre homens e mulheres na reconstrução do país levou o Gender Affairs Office a estimular a realização, em julho de 2000, do “Primeiro Congresso das Mulheres Timorenses”, evento que reuniu representantes de grupos de mulheres e ONGs de todo o país e definiu uma pauta de preocupações emergenciais que incluía o acesso das mulheres à educação e saúde, o combate à violência contra as mulheres, a implementação de mecanismos legais e de justiça para proteção das mulheres e o estímulo à sua participação política. Na época planejavam-se as eleições para uma Assembléia Constituinte, a ser realizadas no ano seguinte. No embalo das demandas do Congresso de Mulheres, um conjunto de campanhas para a participação de mulheres na política foi deflagrado. Com o apoio de ONGs internacionais (inclusive de uma missão brasileira) e com a criação de uma ONG local voltada especificamente para o tema – o grupo CAUCUS, estruturado e financiado pelo IRI (o Instituto do Partido Republicano dos EUA), assegurou-se uma presença de 27% de mulheres na Assembléia Constituinte – praticamente a meta de 30% estabelecida no Congresso de Mulheres e bastante acima da participação feminina em parlamentos de países vizinhos. Ainda em 2000 a UNTAET instituiu a Administração Transitória de TimorLeste (ETTA), um ensaio do que seria um governo timorense. Neste processo, o Gender Affairs Oficce tornou-se Office for Promotion of Equality (ou Gabinete para Promoção da Igualdade), um órgão de assessoria diretamente ligado ao Gabinete do PrimeiroMinistro. Coube ao GPI dar conta dos desafios postos pelas demandas do Primeiro Congresso Nacional das Mulheres, entre elas: “a situação sanitária das mulheres, as suas oportunidades educacionais e econômicas, a violência baseada no gênero e, ainda, a sua participação na tomada de decisão” (UNTAET, 2002:7). Com a restauração da independência, em maio de 2002, Micató foi efetivada como assessora do PrimeiroMinistro para a Igualdade de gênero. Era nesta condição que, naquele novembro seco de 17 O texto de onde extraí a citação vem de uma versão oficial em português do original em inglês. Como não tive acesso ao original em inglês, mantenho aqui a tradução pouco elaborada. UAG corresponde à versão de GAO – Gender Affairs Office. Ao longo do capítulo, a maior parte dos documentos aos quais faço referência são os originais em inglês, dos quais farei tradução livre para tornar a leitura mais confortável. Quando o original for em outra língua (português, tétum ou indonésio), farei menção. 56 2002, ela estava à frente de uma parceria com o Fundo das Nações Unidas para as Populações (FNUAP/UNFPA) firmada havia pouco mais de um ano, com vistas ao combate à violência de gênero em Timor-Leste. O projeto O projeto, intitulado Strengthening Response Capacity to Gender-based Violence, fora firmado em setembro de 2001, à época entre o FNUAP e a Administração Transitória (ETTA). Com prazo de execução de dois anos e um aporte de recursos de cerca de trezentos mil dólares, o projeto tinha por objetivo fortalecer a capacidade da sociedade civil e do governo timorense em combater o que se definia como “violência baseada em gênero”. O texto de 32 páginas começa a seção de histórico e justificativa definindo violência de gênero como “violência envolvendo homens e mulheres na qual a mulher é freqüentemente a vítima e que deriva de relações desiguais de poder entre homens e mulheres”, e que pode incluir “dano físico, sexual e psicológico (incluindo intimidação, sofrimento, coerção, e/ou privação da liberdade dentro da família ou da comunidade em geral)”, incluindo ainda a violência perpetrada pelo Estado.18 (UNFPA, 2001:2) Na seqüência, apresenta o que chama de “reconhecimento da violência de gênero no plano internacional”, resgatando como este tema surgiu em eventos como a Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993), a Conferência sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), a IV Conferência Mundial para as Mulheres (Pequim, 1995), e as recomendações dos Encontros de Cairo+5 (1999) e Pequim+5 (2000). Por fim, a seção enfoca a realidade timorense, apresentando a violência de gênero como intrinsecamente relacionada às situações de conflito vividas no território, especialmente no período posterior ao referendo de agosto de 1999, em que se “notou que graves violações dos direitos humanos foram perpetradas por milícias armadas favoráveis à integração [do território à Indonésia] e membros das forças armadas indonésias” (p.4). Para isso o texto cita um relatório do Alto Comissariado da ONU para 18 No original, em inglês: “Gender-based violence can be defined as: ‘...violence involving men and women, in which the women is (SIC) usually the victim and which is derived from unequal power relationships between men and women. Violence is directed specifically against a woman because she is a woman, or affects women disproportionally. It includes, but is not limited to, physical, sexual and psychological harm (including intimidation, suffering, coercion, and/or deprivation of liberty within the family or within the general community). It includes that violence which is perpetrated or condoned by the state...’ (UNFPA Gender Theme Group)”. 57 os Direitos Humanos (UNHCHR) e relatos de um membro da Comissão Indonésia para os Direitos Humanos em que os tipos de violência elencados referem-se basicamente a estupros. Ainda na apresentação do histórico, o projeto cita um documento produzido pela Fokupers sobre os abusos sofridos pelas mulheres durante a resistência à ocupação Indonésia em que, novamente, a violência sexual é a tônica. Segundo a Fokupers, no ano de 1999 teriam sido atendidos pela instituição 182 casos de “gender based violence”. Outra ONG local de atendimento a mulheres vítimas de violência, a ETWAVE (East Timor Women Against Violence), coordenada por outra liderança timorense, Olandina Caeiro, é citada no projeto como tendo registrado 232 vítimas de abuso sexual entre janeiro e setembro de 1999, casos perpetrados “pelos militares indonésios e milícias pró-Indonésia” (Ibid.:5). Na sessão de justificativa, o projeto afirma que, diante do quadro acima, violência de gênero surgiu como um tema importante no I Congresso de Mulheres de Timor-Leste. Neste sentido, o projeto seria a resposta a uma demanda local das mulheres timorenses. “No Primeiro Congresso de Mulheres de Timor Lorosae, de 14 a 17 de junho de 2000, foi adotada uma Plataforma de Ação para o Avanço das Mulheres que chamava a atenção para a violência de gênero (incluindo violência doméstica) experimentada por muitas mulheres durante os anos de conflito e para a necessidade de ação urgente nesta área. Ela pede, entre outras coisas, por justiça, proteção e apoio às mulheres vítimas, reforma legal e educação comunitária de massa sobre os direitos das mulheres”. (Ibid.: 5)19 Esta demanda viria a ser formalizada em um documento dirigido às Nações Unidas, assinado pela Rede de Mulheres Timorenses (Rede Feto Timor Lorosa’e, ou simplesmente, REDE). A REDE foi, ao menos até 2003, uma tentativa de agrupar organizações de mulheres e ativistas timorenses no intuito de fortalecer ações em favor dos direitos das mulheres. Patrocinada pela CIIR (Catholic Institute for International Relations, uma ONG britânica que desde 1995 atua com mulheres timorenses), a REDE integrava, além da ETWAVE, Fokupers, OPMT, OMT e CAUCUS, a PAS (Prontu Atu Serbi – pronto a servir), uma iniciativa de Maria Dias, liderança de Dili, Santa Bakita, 19 “At the First Congress of Women of Timor Loro Sae, 14-17 June 2000, A Platform for Action for the Advancement for Women was adopted which draws attention to the gender-based violence (including domestic violence) experienced by many women during the years of conflict and to the need for urgent action in this area. It calls, among others, for justice, protection and support for women victims, law reform and mass community education on women's rights.” 58 outra ONG de Dili, o Grupo Feto Foensa’e Timor-Leste (Grupo de jovens mulheres timorenses), entre outras menores. Eram todas iniciativas timorenses, tocadas por mulheres locais e com diferentes níveis de organização burocrática e relação com a cooperação internacional. Com a criação da REDE, a CIIR investia exatamente em tornar mais homogêna a capacidade institucional destes atores, basicamente por meio de oficinas de planejamento e qualificação. Até dezembro de 2003, porém, embora possuísse formalmente uma diretoria, contasse com uma sala emprestada no prédio de uma associação comunitária e tivesse a assessoria de uma consultora internacional paga pela CIIR, a REDE tinha tido pouca existência efetiva. Micató sabia disso e sabia também da dificuldade de fazer sentar à mesma mesa um movimento tão segmentado, especialmente a partir da separação e da rivalidade (ora velada, ora explícita) entre OPMT e OMT. Ao longo de 2003, as ocasiões em que efetivamente pude ver ações da REDE foram duas – um conjunto de oficinas de planejamento estratégico para OPMT, OMT (dadas separadamente) e para outras organizações menores (no mês de junho); e a organização de grupos de artesanato feito por mulheres para venda dos produtos durante a visita oficial do Primeiro-Ministro da Malásia. A organização dos grupos de artesanato era parte das atividades de uma organização não-governamental recente, a Alola Foundation, criada pela esposa do presidente Xanana Gusmão, a australiana Kristy Sword Gusmão. De qualquer forma, em outubro de 2000 a REDE apresentou ao Conselho de Segurança da ONU – e reafirmou, em dezembro, na Reunião de Países Doadores em Timor-Leste – demanda no sentido de responder aos desafios postos no Congresso de Mulheres. De acordo com o relato feito no projeto da UNFPA, o discurso feito pela REDE em nome das mulheres timorenses: “solicitou, entre outras coisas, que todo crime sexual cometido em 1999 fosse investigado e ouvido por uma corte internacional; que se protegessem os refugiados em Timor Ocidental, especialmente mulheres que eram vítimas de violência sexual; e que se garantisse a segurança e a proteção das vítimas durante as investigações e julgamentos. Além disso, a REDE pedia que se aplicassem leis adequadas para proteger as mulheres vítimas de violência doméstica e se estabelecessem os serviços necessários para dar-lhes apoio. Pediam que se adotassem políticas e estratégias para conter a alta incidência de violência contra mulheres dentro e fora do lar, e que a saúde e os direitos reprodutivos das mulheres fossem respeitados, bem como que se disponibilizassem fundos para permitir a jovens e meninas o acesso a um ambiente escolar seguro.”20 (UNFPA, 2001:5) 20 “In addition to the above, REDE asked for adequate laws to be enacted to protect women victims of domestic violence and necessary services established to support them. Strategies and policies to be 59 O projeto menciona ainda as iniciativas que se seguiram ao Congresso, destacando que: “algumas pequenas iniciativas de ONGs locais foram iniciadas na área de prevenção e apoio a vítimas de violência de gênero em Timor-Leste. Uma casaabrigo foi estabelecida em Dili e algumas poucas ONGs de mulheres começaram programas especiais de aconselhamento para mulheres e crianças vítimas de estupro e abuso sexual.”21 (Ibid.:5-6). A casa-abrigo a que o projeto se refere foi uma iniciativa da Fokupers. Os serviços de aconselhamento, contudo, eram feitos principalmente por profissionais da área de psicologia e enfermagem de uma outra ONG local, o PRADET Timor Lorosa’e. O PRADET surgira em 2000 como uma iniciativa de profissionais australianos que, levantando fundos junto ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), estruturaram um serviço de atendimento a mulheres e crianças que haviam passado por experiências de violência sexual. O foco do serviço era o “trauma” e o tratamento do “trauma” que supostamente estas vítimas portavam. Aos poucos, foi-se formando uma equipe de profissionais timorenses, e o serviço acabou se instituindo com uma ONG timorense após a restauração da independência, em 2002. Em 2003, 14 profissionais atuavam no PRADET, em integração com a Unidade de Pessoas Vulneráveis da polícia timorense, com o hospital de Dili e com a Fokupers. Ao enfatizar, porém, o caráter local e a pequena dimensão das iniciativas, o projeto do UNFPA buscava argumentar pela necessidade de um aporte de recursos internacionais para o fortalecimento e ampliação das iniciativas já existentes. “As organizações locais, contudo, têm experiência e capacidades limitadas nesta área e necessitam urgentemente de maior apoio e fortalecimento. Além da UNIFEM e OXFAM – a qual atualmente garante ajuda de pequena escala para programas de ONGs voltados à prevenção da violência de gênero – o IRC tem apoiado organizações comunitárias timorenses que trabalham para por um fim à violência contra mulheres, desde janeiro de 2000. (...) Algumas ONGs locais e internacionais também tem implementado atividades de advocacy/IEC22 sobre a violência de gênero ou temas relacionados a gênero em geral. (...) Isto inclui adopted to counter the high prevalence of violence against women in and outside the home; and women’s reproductive rights and health to be respected as well as adequate funding to permit young women and girls' access to a safe schooling environment.” 21 “some small-scale-local-NGO-initiatives have started in the area of prevention and support for victims of gender violence in East Timor. One shelter has been established in Dili and few women NGOs have initiated special counseling programmes for raped and abused women and girls.” 22 O termo advocacy costuma ser usado no Brasil sem tradução, no campo das organizações da sociedade civil que atuam pela promoção dos direitos humanos, denotando ações para promoção e defesa de princípios, valores e direitos de grupos específicos. IEC (Informação, Educação e Comunicação) refere-se às estratégias comumente usadas para promoção de tais princípios. 60 ainda o desenvolvimento de capacidades [capacity building] na área de advocacy e IEC. AusAID [a agência de cooperação australiana] patrocinou um projeto de capacity building para “gender mainstreaming” na administração transitória de Timor-Leste”.23 (Ibid.:6). Termos consagrados nos documentos da cooperação internacional, especialmente após a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, advocacy (promoção e defesa) e IEC (informação, educação e comunicação) referem-se a práticas sistemáticas de promoção e defesa de valores, princípios e direitos de um ou mais grupos considerados em desvantagem. Neste campo de embate político,24 “gênero” (ou gender, como na faixa de Micató) passa a ser uma categoria nativa para falar de processos de modernização e desenvolvimento orientados por uma ideologia de igualdade entre os sexos (SIMIÃO, 1999). Da mesma forma, é característico dos discursos que circulam neste campo a idéia de que gender deve se tornar um tema com grande penetração, transversal em todos os projetos que visam o desenvolvimento local. É a isso que se refere a categoria gender mainstreaming. Um exemplo interessante deste tipo de preocupação é um livreto, produzido pelo Gender Affairs Office em 2001 e totalmente reescrito pelo GPI em 2003, em que se busca apresentar, de forma bastante pragmática, como monitorar projetos de modo a controlar a presença de uma perspectiva de gender nos mesmos. Algumas das iniciativas a que o projeto do FNUAP se referia estavam ainda bem ativas em 2003. Um exemplo eram as atividades de treinamento da Fokupers. Além do atendimento direto a vítimas de violência, a ONG operava como uma referência para o treinamento de outros grupos timorenses, oferecendo cursos e oficinas não apenas relativas a gender, mas a organização comunitária e estratégias de advocacy. Em campo, tive ocasião de acompanhar um destes treinamentos, uma oficina de quatro dias sobre advocacy, na sede da ONG em Dili. Dela participaram representantes de cinco distritos – além de Dili, vieram representantes de grupos de Maliana, Ermera, Suai e 23 “The local organizations have however limited experience and capacity in this field and urgently need further support and strengthening . Besides UNICEF and OXFAM - which currently provide small-scale support to some NGO prevention programmes for gender-based violence. The IRC has supported East Timorese community based organizations working to end violence against women since January 2000. IRC is currently provides support to local groups for gender-based violence response and prevention. Some local and international NGOs have also implemented some advocacy/IEC activities on genderbased violence or gender issues in general (e.g., FOKUPERS, ANEMETIL, IRC, CARITAS-Australia). This also includes capacity building in the fields of advocacy and IEC. AusAID funded a capacitybuilding project for mainstreaming gender in the East Timorese transitional government and administration.” 24 Para a caracterização do universo de ação de organizações de direitos humanos com um campo social relativamente autônomo, ver SIMIÃO, 1997. 61 Liquiçá – que atuavam com questões diversas – problemas de posse de terra, assistência a gestantes, organização da produção cafeeira e mulheres vítimas de violência sexual. Na introdução do tema, Manuela, a presidente da Fokupers, dizia que, embora o termo advocacy fosse novo, a prática era antiga e conhecida em Timor-Leste. Na luta pela independência, por exemplo, o que a frente diplomática fazia no exterior era advocacy.25 Apenas a palavra era nova – possivelmente como gender. A equipe da Fokupers conduzia a forma do evento, aplicando dinâmicas de descontração, conduzindo debates e organizando os trabalhos em grupo. O conteúdo propriamente dito estava a cargo de um conjunto de ativistas indonésios, vindos a convite da Fokupers e coordenados por um javanês que trabalhava em Dili para a ONG britânica Oxfam-GB. No treinamento, os participantes se organizaram em grupos por afinidade temática para desenvolver tarefas relacionadas aos vários elementos do ciclo do advocay: “formação de uma equipe para advocacy” e as etapas necessárias a tanto (levantamento dos atores envolvidos, critérios para escolha dos parceiros, como identificar cada ator, que trabalho fazer com cada um); “conceitos básicos sobre legislação vigente em Timor-Leste” (os códigos aplicáveis, a produção de novas leis no parlamento, como participar ativamente em cada esfera de discussão de um projeto de lei); “a definição de lobby” e a “elaboração de um plano de lobby”; “a elaboração de campanhas para a opinião pública”; entre outros. Neste evento podia-se ver o quanto treinamento e formação operavam praticamente como formas de transferência de tecnologia – os mesmos temas e técnicas que eu vira, alguns anos antes, em um treinamento em advocacy para direitos sexuais e reprodutivos em Bogotá, promovido por uma organização colombiana com recursos da cooperação internacional, podiam ser vistos na pequena sala avarandada da Fokupers, em Dili. Neste processo, a participação do público era sensivelmente desigual. Em um dos grupos de que participei com quatro timorenses, com a tarefa de mapear um problema e construir uma equipe de advocacy, era visível o silêncio dos dois integrantes provenientes dos distritos (do interior do país) frente à eloqüência das duas ativistas de Dili, que eram também parte da equipe da própria Fokupers. Eram também elas, as ativistas de Dili, quem, nos debates em plenário, melhor dominavam as categorias em causa. 25 A resistência à ocupação Indonésia, entre 1975 e 1999, estruturou-se em três frentes principais: a resistência armada (guerrilha); a frente clandestina, destinada a dar suporte logístico à guerrilha; e a frente diplomática, composta por timorenses no exílio (as diásporas em Portugal, Austrália, Moçambique, bem como representação na ONU, em Nova Iorque). 62 Em outubro de 2003 pude ainda acompanhar um outro evento semelhante, parte de um TOT (Training of Trainer, ou treinamento de multiplicadores) da Caritas australiana para grupos que trabalhavam direta ou indiretamente no atendimento a mulheres vítimas de violência sexual em vários pontos do interior do país. O treinamento durou uma semana em regime de internato, em um centro de treinamento católico próximo ao Seminário de Dare – aldeia a alguns quilômetros de Dili, já na subida para as montanhas. O objetivo do evento era familiarizar os cerca de 15 participantes com conceitos e procedimentos elementares para o atendimento a vítimas de violência sexual, fornecendo informações sobre o funcionamento do sistema de justiça e os serviços de apoio legal, médico e psicológico existentes no país. Com isso, esperava-se que os participantes pudessem levar seu aprendizado de volta a suas organizações de base. Vários convidados assumiram o papel de treinadores neste processo. O staff local da Cáritas discutiu com o grupo a definição de “sexual assault”. Um convidado de uma importante organização local de direitos humanos (Yayasan HAK) apresentou as implicações penais da violência sexual segundo o código indonésio. Uma ativista da Fokupers tratou de técnicas e procedimentos de aconselhamento (counseling) para as vítimas. Em dois momentos diferentes, integrantes do PRADET apresentaram informação sobre os efeitos psicológicos do sexual assault e prestaram informações sobre o processo de exame médico forense em aplicação no hospital de Dili e os projetos para levar o safe-room para outros distritos. Um representante do governo falou sobre a definição dos “grupos de risco” e o tipo de ajuda a ser dada aos mesmos e uma procuradora apresentou o processo de julgamento de casos de violência sexual. Era a atividades deste tipo que o texto do projeto do FNUAP se referia e que, de alguma forma, criavam um coletivo de atores razoavelmente integrado. De um modo geral, todas estas iniciativas compartilhavam com o projeto do FNUAP uma concepção e um discurso semelhantes acerca da violência de gênero e que caracteriza o que poderíamos chamar de um discurso ou narrativa oficial de gênero – ou, simplesmente, gender – que se encaixava como uma peça importante no processo de construção de um Estado moderno em Timor-Leste. Nos termos do próprio projeto: “O FNUAP, com seu forte compromisso com os princípios da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento que dão suporte ao empoderamento das mulheres e à necessidade de eliminação da discriminação e da violência de gênero, está em condições de contribuir substantivamente para o 63 pedido urgente feito no Primeiro Congresso das Mulheres de Timor Lorosa’e por ações nesta área. O instante apropriado para iniciativas nesta área e para alcançar o máximo impacto é exatamente agora, uma vez que a administração local e nacional estão sendo formadas neste momento e legislação e políticas estão sendo formuladas. Ademais, programas de sensibilização e treinamento nacional estão sendo desenvolvidos para (re)treinar grandes parcelas da população no país, incluindo profissionais de saúde, a polícia, o judiciário, professores e outras profissões, nos quais o público poderia ser alcançado por meio de um programa de educação cívica nacional apoiado pela UNTAET. A integração dos temas dos direitos das mulheres e da violência de gênero nestas iniciativas nacionais seria altamente relevante e efetiva”.26 (Ibid.:6. Grifos meus) Este discurso era assumido pelo GPI e por Micató, que tinha, com os recursos disponibilizados pelo projeto com o FNUAP, que implementar uma série de atividades que pautassem gender na formatação do Estado. Uma destas ações era justamente o lançamento de uma campanha nacional de “16 dias de ativismo contra a violência doméstica”, evento realizado no ginásio municipal de Dili, em 25 de novembro de 2002, e no qual se vira pela primeira vez a faixa com a qual iniciamos este capítulo. Labele halo violensia domestika O ginásio municipal era um edifício construído no tempo indonésio e que vinha sendo usado com alguma regularidade para eventos cívicos e reuniões do governo e da presidência. Naquele 25 de novembro, cerca de 70 pessoas vieram de vários distritos para se reunir ali no lançamento da campanha alusiva ao dia internacional de combate à violência contra as mulheres. À entrada do ginásio, como nas tradicionais festas de casamento timorense, jovens trajadas em tais (o tradicional tecido timorense) recebiam os convidados. Com recursos do projeto, haviam sido trazidos a Dili homens e mulheres com alguma ascendência sobre a organização social das aldeias de vários sub-distritos,27 organizados localmente pelos “gender focal point”, mulheres (geralmente lideranças 26 “UNFPA, with its strong commitment to the ICPD principles, upholding women's empowerment and the need for elimination of discrimination and gender-based violence, is in a position to contribute substantially to the urgent call made at the First Congress of Women of Timor Loro Sae for action in this area. The appropriate time for initiatives in this area and for achieving maximum impact is right at this moment, as currently the national and local administration is being formed and legislation and policies are being formulated. In addition, national training and awareness raising programmes are being developed for (re)training large sections of the population in the country, including health workers, the police, the judiciary, teachers and other professions, whereas the public could be reached through a national civic education programme supported by UNTAET. The integration of women's rights and gender-based violence issues into these national initiatives would be highly relevant and effective”. 27 Geralmente eram mulheres de famílias de liu ra’is, aquelas de onde vinham os chefes políticos ancestrais dos conjuntos de aldeia agrupados em um suco. No caso dos homens, vinham chefes de aldeia, chefes de suco e alguns liu ra’is. 64 locais da OPMT e OMT) encarregadas pelo GPI de funcionarem como pontos de representação local do gabinete. Uma parte do público vestia a camiseta da campanha, um desenho de mãos algemadas sobre o qual se lia “Pare com a violência doméstica!” (Hapara violensia domestika!). As algemas, símbolo da ênfase punitiva da campanha – pouco se falava acerca de ações de reeducação dos agressores – estavam também estampadas nos cartazes da campanha, pelas paredes do ginásio. À medida que entravam no ginásio, os convidados eram recebidos pela música do conjunto Os Cinco do Oriente, um grupo musical bastante conhecido composto por jovens (todos homens) da geração criada sob o domínio indonésio mas que utilizava o mesmo nome de um grupo do tempo português. Seu estilo musical sincrético misturava influências do reggae e do pop com batidas tradicionais timorenses e suas músicas falavam tanto de amor e saudades quanto da liberdade e da luta pela independência nacional. Costumavam estar presentes em vários eventos promovidos por ONGs locais e internacionais, cantando hinos da resistência e composições próprias. Uma assessora do GPI fazia as vezes de mestre-de-cerimônia e, entre uma música e outra, trocava palavras com o líder do grupo, fazendo referências jocosas ao amor e à negativação da violência.28 Mas os cantores não eram os únicos homens a participar ativamente do evento. Marito e Tomé, integrantes de um grupo chamado “Associação de Homens Contra a Violência” (Asosiasaun Mane Kontra Violensia), também usavam o microfone para passar sua mensagem. A Associação era composta basicamente por ativistas de ONGs de Dili que resolveram se organizar em um grupo para promover atividades de sensibilização contra a violência doméstica nos Distritos de Timor-Leste a partir da visita de ativistas latino-americanos que tinham uma experiência semelhante em seus países. Ao lado do palco de onde vinham as músicas e os comentários, estava a mesa que seria composta para a abertura solene da campanha, à frente da faixa em que se lia não ser a violência doméstica parte da cultura timorense. No centro da mesa, Micató. No momento da abertura, todos se levantam, como que para ouvir o hino nacional, mas, em lugar disso, ouve-se uma oração, puxada por uma senhora da OPMT. Depois de alguns contratempos com o gerador – Dili sofria diariamente com um racionamento de energia elétrica – o evento começou com a apresentação do vídeo “Harahun O nia nonok” (Quebre o teu silêncio) produzido pelo projeto GPI-FNUAP 28 Uma das músicas mais famosas do grupo se chama “Hadomi Timor” (amo Timor). A mestre de cerimônias perguntava-lhe se ele amava só Timor, ou as moças timorenses. 65 sobre o tema da violência doméstica. O vídeo, que trazia depoimento de lideranças carismáticas como o presidente Xanana Gusmão e a própria Micató, era destinado a sensibilizar e capacitar os agentes do Estado envolvidos no atendimento às vítimas, por meio da divulgação de informações básicas sobre procedimentos para o atendimento policial, médico e jurídico. A realização do vídeo fora uma das atividades preparatórias da segunda das três frentes em que o projeto GPI-FNUAP investia. Na primeira etapa o projeto financiara uma pesquisa realizada pela ONG norte-americana IRC (International Rescue Committe) para identificar os tipos de violência de gênero mais comuns em TimorLeste e a forma como a população os percebia. A pesquisa fora realizada em 4 distritos, mas, por atrasos no cronograma, seus resultados ainda não estavam prontos para divulgação em novembro – acabaram sendo divulgados em abril do ano seguinte, e alguns deles serão comentados na próxima seção. A segunda frente tratava da formação para agentes da polícia, do judiciário e do serviço de saúde. Por fim, a última etapa seria a elaboração de uma legislação específica de combate à violência doméstica – tema central do próximo capítulo. O documentário apresentava didaticamente, por meio de desenhos e dramatizações, os quatro tipos de violência a que uma mulher está sujeita (“física, psicológica, sexual e econômica”), a descrição do processo judicial (desde a queixa à polícia até o encaminhamento ao tribunal), o tratamento médico já disponível (as salas de aconselhamento do PRADET, o safe-room no hospital de Dili), o suporte das ONGs (a casa-abrigo da Fokupers), além da legislação aplicável para punir os agressores. O vídeo fora dirigido e roteirizado por uma documentarista australiana e começava e terminava com uma cena bastante expressiva. Um grupo de crianças repetia, palavra a palavra, o refrão que era soprado, ao fundo, pela diretora: “Labele halo violensia domestika” (Não se pode cometer violência doméstica). Depois da apresentação do vídeo e antes de um almoço comunitário – grandes mesas de bufê são tradição em festas e eventos comunitários em Timor-Leste – deu-se um debate com o público, mediado por Marito, da Associação de Homens Contra a Violência. No debate, que durou mais de uma hora com participações acaloradas, mais de uma intervenção questionou o uso do estrangeirismo gender na faixa que dizia: “Violensia baseia ba gender la’os kultura Timor-Leste nian”. Era uma crítica curiosa, pois o tétum-praça (o idioma veicular do país) é uma língua crioula e, tendo como base o tétum terek, traz boa parte de seu vocabulário emprestado de outras línguas – 66 mormente do português.29 No próprio texto da faixa vê-se isso acontecendo em relação a violência, baseada e cultura. Mas não era exatamente com esta vocação para o hibridismo lingüístico que se estava implicando. O que se questionava era a importação de um conceito novo – gender – que parecia, naquele contexto, uma imposição da presença malai (estrangeira) no país. Dulce, assessora de Micató e companheira dos tempos da resistência clandestina, intercedeu em favor do gender, argumentado que havia uma diferença entre falar em gender e falar em mulheres, uma vez que aquele conceito enfatizava o compromisso da parte dos homens com suas responsabilidades para uma relação mais justa entre os sexos. Micató reforçou a defesa, afirmando que gender era também parte da realidade timorense e da luta de homens e mulheres daquele país. Mas, mesmo com a polêmica sobre o gender, a mensagem da faixa estava dada. Com ela, Micató costurava uma estratégia que lhe permitia falar em combate à violência doméstica sem ameaçar (ou parecer ameaçar) a valorizada tradição cultural local. Era também um jeito de trazer para sua arena a possibilidade de dizer o que era ou não a “cultura de Timor-Leste”. A faixa era, sem dúvida, um excelente instrumento de advocacy. Mas aquela frase não era, como vimos, o único fato do evento a fazer a aproximação entre elementos percebidos como pertencentes a uma “tradição local” e os valores da igualdade de gênero por trás do discurso de combate à violência doméstica. As jovens recebendo os convidados, a oração de abertura, o sincretismo musical dos Cinco do Oriente, o almoço comunitário, eram todos elementos bastante timorenses. O respeito às hierarquias locais que trouxera aquelas pessoas em particular até o evento de Dili – um evento do governo, para todos os efeitos – tudo aquilo criava uma atmosfera de familiaridade e respeito aos valores locais que desmistificava a idéia de que o combate à violência doméstica fosse “coisa de malai”.30 Ainda assim, gender causava um certo estranhamento. Mesmo entre o grupo de ativistas timorenses, não era coisa simples de 29 Com base em um estudo sobre o tétum utilizado nos jornais de Dili, a lingüista Catharina van Klinken afirmou, em 2003, que 80% das palavras utilizadas vinham da língua portuguesa (VAN KLINKEN, 2003). Evidentemente isto se refere ao fato de os jornais trazerem grande parte das notícias relativas à política e economia, para as quais o uso de expressões técnicas era fundamental. 30 Malai, em tétum, significa estrangeiro e é o termo comumente usado pelos timorenses como vocativo para se dirigir a qualquer não-timorense. No contexto de reconstrução do país, contudo, a palavra ficou fortemente associada aos funcionários internacionais a serviço das Nações Unidas e das ONGs. Pode-se também dizer que ganhou uma carga semântica ambivalente, por vezes representando o que de positivo a ajuda estrangeira significava, mas, em muitas ocasiões, tendo a conotação pejorativa de alguém arrogante e, ao mesmo tempo, que não entende o que se passa. 67 se entender que nuances levavam a se usar gender em lugar de mulheres. Era ainda necessário afinar o discurso quanto a isso. Essa era uma das preocupações da advisor (a assessora internacional, contratada por um projeto das Nações Unidas) de Micató no GPI, a irlandesa Katherine Farelli.31 Por iniciativa sua, montou-se um grupo de estudos no GPI sobre o tema, envolvendo vários dos atores que vimos até aqui. No final de março de 2003, este grupo fazia a segunda de uma série de reuniões para discutir o que se entendia por gender e planejar um modelo para treinamentos de treinadores (TOT) que possibilitasse uma ação multiplicadora. Estavam presentes naquela reunião uma funcionária do IRC, uma da Fokupers, três da Oxfam, a secretária geral da OPMT e uma representante da OMT, todos timorenses. Os únicos malai ali presentes éramos eu e Katherine. Além de Katherine, representavam o GPI duas funcionárias timorenses, assessoras de Micató. Antes de iniciar a discussão propriamente dita, o grupo passou alguns minutos travando uma animada conversa sobre as perspectivas da então iminente guerra americana no Iraque e sobre uma polêmica lei de imigração aprovada pelo parlamento timorense havia pouco, mas que ainda devia ir à sanção presidencial. Foi ali que uma distinção – distinção nativa, aliás – começou a me chamar a atenção: aquela feita entre “grupos de mulheres”, como eram a OPMT e a OMT, e as ONGs (como Fokupers, Oxfam e IRC). As ativistas das ONGs participavam animadamente da discussão sobre o cenário político internacional e tinham sempre uma opinião para criticar aspectos da legislação recentemente aprovada. Já as representantes dos grupos de mulheres pareciam pouco familiarizadas com o debate que movimentava o ambiente internacional. O perfil profissional das ativistas a serviço das ONGs (especialmente das organizações internacionais) as punha em contato diário com estruturas relativamente burocratizadas de trabalho que exigiam um corpo técnico qualificado e que precisava dominar a linguagem dos projetos de cooperação internacional. Isso parecia diferenciar claramente a participação delas em relação à das mulheres da OMT e OPMT, que não se envolviam profissionalmente com o mundo do gender. Esta diferença de posição em relação ao tema (e ao mundo da cooperação internacional, em geral) chegava a criar, como descobri mais tarde, um certo mal-estar entre aquelas duas categorias. Muitas 31 Como parte do processo de construção do Estado em Timor-Leste, várias posições no Estado contavam com um técnico a serviço das Nações Unidas atuando como contra-parte internacional do funcionário timorense. Estes técnicos eram comumente referidos como advisor. Para mais detalhes sobre a estrutura de funcionamento do Estado em sua relação com as missões das Nações Unidas ver SILVA, 2004. 68 integrantes da OPMT e OMT sentiam-se injustiçadas por não poder acessar com a mesma facilidade o mundo dos projetos (e dos recursos materiais e financeiros) que movimentava o campo das ONGs. Logo elas, diziam, mulheres que tiveram um papel fundamental na organização da resistência à ocupação Indonésia, muitas das quais sofreram graves privações por isso, viam-se agora alijadas dos financiamentos por não estar estruturadas burocraticamente sob a forma de ONG e não circular na esfera conceitual e material da cooperação internacional. A direção da OPMT não perdia ocasião para externalizar essa percepção, muitas vezes em tom de ressentimento, agravado ainda mais pelo fato de a OMT, por não ter vinculação partidária, estar conseguindo mais facilmente se aproximar do mundo da cooperação internacional. A própria diretora da Fokupers, Manuela Leong, reconhecia a validade desta percepção. Jovem nascida no período indonésio, tendo feito sua graduação em Bali e circulado pelo mundo das organizações internacionais, definiu nos seguintes termos esta oposição, que não deixava de ser também geracional: “Ainda não trabalhamos junto porque não há uma boa coordenação. Depois, tem o problema de sermos uma organização nova, com muita gente jovem. As mulheres [das outras organizações] acham que vamos bem porque temos muitos doadores. Elas nunca se perguntam: isto está funcionando, vamos ver como aprender com elas. Às vezes fazemos atividades aqui e elas não querem vir. Como a OPMT e a OMT, elas são organizações de massa. Elas dizem que chegaram antes, eram quem estava sempre junto, lutaram, elas é quem sofreram com a luta pela independência. ‘E agora, como é que os doadores vem e dão mais atenção à Fokupers? Dão mais atenção a quem tem trabalhos, a quem tem muitas atividades para dar ajuda. Eles não querem dar para organização de massa porque temos tendência política.’ Então isso estraga a nossa relação com elas. Nós não conseguimos fazer um bom trabalho juntas porque sempre há desconfiança. Nós queremos ajudar, elas dizem: ‘elas vão ajudar, nós temos que colocar nossos nomes, e elas vão buscar dinheiro com isso’. Mas o que queremos é ver um jeito para que muitas mulheres possam desenvolver a capacidade de fazer os trabalhos, para não sobrecarregar a gente. Mas o problema da desconfiança sempre atrapalha.”32 32 “Serbisu hamutuk seidauk di’ak tamba, ida katak koordenasaun seidauk di’ak. Depois problema ida katak ami organizasaun nebe’e foun, ema foin sa’e mak barak. Feto sira sempre haree katak organizasaun ida ne’e lao di’ak tamba iha doador barak. Sira nunka haree katak ida ne’e dia’k, oinsa atu aprende hamutuk. As vezes, ami halo atividade iha ne’e sira lokohi mai. Hanesan OPMT, OMT, sira ne’e organisasaun massa. Sira nebe’e uluk sente, sira mai iha uluk, sira mak hamutuk, sira mak luta, sira mak terus, hodi luta ba independensia. Mas agora nusá mak doadores sira mai haré liu ba Fokupers. Haré liu ba ide nebe’e serbisu, haré liu ba ida nebe’e actividades barak atu fo ajuda. Sira lakohi fo ba organisasaun masa tamba ami iha tendensia politika. Entaun ida ne’e estraga relasaun ami ho sira. Ami labele serbisu hamutuk di’ak tamba sempre deskonfia ba malu. Ami hakarak ajuda, sira dehan: sira ajuda, precisa tau ita nia naran, sira ba husu osan. Mas ami nia hakarak dehan oinsa feto barak bele iha kapasidade hanesan di’ak para bele servisu hotu, para labele todan ba ami. Mas problema deskonfiansa sempre halo ladiak.” (Entrevista concedida em 14/04/2003). 69 Seja como for, no treinamento organizado por Katherine sentavam à mesa representantes destas duas categorias (ou gerações). Cabia a eles se entender com relação aos significados e usos do gender, um conceito central na gramática da cooperação internacional. Entendê-lo e saber fazer a mediação do mesmo para as realidades locais era fundamental tanto para a sobrevivência institucional de todos como para a eficácia de seus projetos políticos locais. O tema daquela reunião em particular era pensar como se poderia estruturar um curso básico sobre gender para grupos que não sabem o que isso significa. Marito, staff local da Oxfam Austrália e, como já vimos, integrante da Associação de Homens Contra a Violência, sugeriu uma tempestade de idéias em que cada um acabou por trazer suas próprias experiências com treinamentos na área em suas organizações de origem. O desafio visto por todos era o de mudar interpretações que o grupo considerava equivocadas, mas bastante comuns: a confusão entre gender e mulher, a idéia de que falar em gender ameaçava a unidade familiar (valor fundamental em vários níveis de discurso em Timor-Leste); e a idéia de que gender era um conceito importado, coisa de malai. Segundo Laura, representante da Fokupers, nossa tarefa era “montar um modelo claro e simples de treino para mostrar às pessoa que estas idéias não estavam certas”. Pensou-se em várias dinâmicas para inserir o tema, cuidando-se sempre para contornar o constrangedor tabu que envolve a conversa sobre sexo. Fernando Pires, timorense retornado da diáspora australiana33 e responsável pelos treinamentos da Cáritas Austrália sobre violência sexual, já havia alertado, em outra ocasião, para este problema. Caso a abordagem do assunto não fosse feita com cuidados rituais – normalmente utilizava-se uma frase padrão em que se pedia desculpas pelo uso dos termos relacionados a sexo e sexualidade – o “facilitador” (termo usado para designar o treinador em uma oficina) poderia ser visto como “mal-criado”, e sua autoridade acabaria indo toda por água abaixo. Como atividade para superar este bloqueio, Laura sugeriu uma cantiga envolvendo frutas de duplo sentido que punha por terra todas as histórias que costumávamos ouvir dos funcionários internacionais da ONU sobre a inabilidade dos nativos para o pensamento abstrato.34 33 Durante a ocupação indonésia formaram-se três diásporas principais de timorenses em exílio: na Austrália, em Portugal e em Moçambique. Para mais detalhes, ver SILVA, 2004. 34 A música seguia a melodia de Frère Jaques e tinha como letra: “Melancia, Melancia, (passa-se a mão pela barriga, no formato de uma melancia, indicando a mulher grávida), Aidilá, Aidilá [mamão papaia], (gesticulando para os lados, como a embalar um bebê), Udi, Udi, [banana, pronunciado com o “u” prolongado para dar a métrica] (apoiando-se o antebraço na vertical sobre a palma da mão com o punho 70 Apresentada uma boa dinâmica para introdução do tema, outras foram surgindo. Algumas eram claramente emprestadas do Manual de Formação em Gênero da OXFAM – um guia elaborado por uma consultora inglesa que tem, inclusive, uma versão brasileira, adaptação feita pela ONG SOS Corpo, de Recife (WILLIAMS, 1999). Tratavam-se basicamente de dinâmicas de grupo que trabalhavam a idéia do gênero como a construção social do sexo, evidenciando os seus efeitos negativos sobre o acesso das mulheres ao desenvolvimento pessoal e econômico. Além das dinâmicas em si, outros elementos comumente encontrados na linguagem dos projetos internacionais povoavam a discussão, como técnicas de planejamento baseadas na “árvore de problemas” do método ZOPP, os modelos da Caroline Moser sobre condição de gênero versus posição da mulher, ou ainda, necessidades práticas de gênero versus interesses estratégicos (SIMIÃO, 1997).35 Para dar uma idéia do grau de sofisticação do debate, um dos exercícios sugeridos, chamado “jogo do gênero”, propunha a distribuição de frases sobre as diferenças entre homens e mulheres que deveriam ser classificadas pelos participantes em “frases relativas ao sexo” (do tipo “mulheres podem dar à luz, homens não”) e “frases relativas ao gênero” (“as mulheres não têm vocação para a política”). Uma das frases lidas na simulação da dinâmica do jogo do gênero provocou alguma discussão. “Os homens podem usar barba, as mulheres não”, dizia o exemplo. Aparentemente a frase se referia a uma diferença biológica, e vários afirmaram se tratar de uma questão de “sexo”. Dulce, Laura e Cecília (respectivamente, do GPI, Fokupers e Oxfam), contudo, diziam que isso se referia a gender, pois, mesmo que houvesse uma mulher com hormônios que lhe permitissem crescer pêlos na face, o uso da barba não seria socialmente aceito por razões definidas culturalmente. cerrado, num claro símbolo fálico), Fruit Salad, Fruit salad [salada de frutas, em indonésio, que segue o termo em inglês] (rebolando com as mãos na cintura, a indicar o coito)”. A dinâmica vinha do movimento de mulheres indonésio, mas fazia grande sucesso em workshops locais. 35 O método ZOPP (Planejamento orientado por objetivos) é uma ferramenta de planejamento de projetos desenvolvida pela agência alemã de cooperação (GTZ). A discussão sobre necessidades práticas e estratégicas é uma discussão do feminismo da segunda metade dos anos 1980, preocupada em incorporar o conceito de gênero sem perda do espaço para a categoria identitária mulher. Segundo Moser, há dois níveis de necessidades de gênero: as necessidades práticas, que derivam da condição prática das mulheres como pessoas (seres ‘gendrados’) e definem interesses práticos de sobrevivência (serviços de assistência, socorro, etc.), e as necessidades estratégicas, aquelas que definem interesses estratégicos para atingir uma organização social mais igualitária. Sua proposta é uma tentativa de acomodar o potencial disruptivo de gênero no discurso feminista. Gênero e seu potencial disruptivo caberiam muito bem no nível estratégico da ação política, enquanto que a categoria identitária mulher continuaria tendo sua utilidade no nível “prático” da ação social. 71 Cuidadosamente Katherine tentava costurar as diferentes familiaridades que aqueles atores construíam com o tema. Naquela tarde aquelas pessoas desempenhavam um jogo em que se negociavam sentidos de sexo e gênero que oscilavam entre uma perspectiva mais analítica, focada na construção relacional de compromissos entre homens e mulheres, e uma perspectiva política, constituinte de um sujeito de identidade fixa – a “mulher”. Quando se discutia, por exemplo, a forma de abordar, em um treinamento, a tripla jornada de trabalho das mulheres, alguns levantaram a questão: vamos apresentar apenas o “triple role” da mulher, ou vamos falar dos papéis da mulher e do homem? Katerine diz que o homem também tem papéis (que o sobrecarregam), mas devíamos focar apenas na mulher. Era importante marcar uma posição política. Ao fim do dia, o grupo conclui, enfim, por um modelo de treinamento. Uma boa agenda seria a seguinte: 1. 2. 3. 4. Mostrar que gênero é diferente de sexo Mostrar que gênero forma estereótipos e papéis Mostrar que estes papéis prejudicam/ sobrecarregam as mulheres Mostrar que esta sobrecarga atrapalha a participação das mulheres no processo de desenvolvimento do país; 5. Concluir pela importância da igualdade de gênero no desenvolvimento de Timor-Leste. Foi neste momento que começou a me chamar a atenção a ausência de um termo em especial na constelação de conceitos evocados para construir aquele arrazoado em favor do gender. Durante todo o dia a palavra “cidadania” não surgiu em momento algum. Mesmo em um item da pauta que mais relacionava gênero a cidadania (a questão de por que a igualdade de gênero é importante para o desenvolvimento de Timor-Leste) a explicação não mencionava o exercício da cidadania. A justificativa passava por razões mais concretas: “É importante valorizar o trabalho das mulheres para o crescimento econômico do país; se as mulheres estiverem sobrecarregadas não podem participar nas decisões e no desenvolvimento do país”. Em contraste com a experiência brasileira (cf. SIMIÃO, 1999), em que gênero e desenvolvimento fazem um tripé com cidadania, aqui a equação prescinde deste último termo. Nos documentos que compõem o universo do gender em Timor-Leste – projetos, como o do FNUAP; declarações e cartas, como as da REDE e do Congresso de Mulheres; vídeos, cartazes, camisetas e peças de divulgação, como os da campanha de novembro; guias, como o livreto sobre gender mainstreaming; agendas de treinamento, como os TOT da Fokupers, Cáritas e GPI – em nenhum deles se encontra referência à idéia de “exercer cidadania”. 72 A utilização do termo cidadania nos discursos sobre gênero e desenvolvimento, no caso brasileiro, é uma forma de explicitar a referência a compromissos com a igualdade de direitos – não apenas no plano formal, da relação dos indivíduos com o Estado e sua lei, mas no plano da participação da sociedade civil na construção de novos direitos (DAGNINO, 1994). Neste uso, o termo deixa de ser apenas um conceito e entra para as bandeiras de organizações como um termo nativo, referindo-se a um tipo especial de compromisso entre sociedade civil e Estado e dos indivíduos entre si. Assim, o fato de não se ver referência, no caso timorense, ao termo cidadania, fazia-me perguntar de imediato que tipo de relação entre sociedade e Estado estava em gestação, e que palavra a representaria. No caso timorense, estas questões estavam postas, mas eram encapsuladas por outro termo. A esfera da igualdade de direitos era construída sobre o termo “democracia” – é ele quem aprece em diversos momentos como referência para o tratamento igualitário, como veremos mais abaixo. A não ser pela ausência do termo “cidadania”, porém, a discussão daquela tarde no GPI poderia ter-se dado em qualquer ONG brasileira. Com esta única ausência, os demais termos em circulação na transferência de tecnologias do gender promovida por instituições multilaterais estavam presentes em Timor-Leste. Se gender era realmente um termo sobre o qual se vinha investindo reflexão, discussão e negociação de significados, havia um outro sobre o qual, mesmo sendo central nos discursos em causa, pouco ou nada se discutia. Enquanto gender gerava controvérsias, como os questionamentos do evento de novembro, ninguém parecia estranhar o termo violensia. Violência parecia um conceito auto-evidente, imbuído de uma factualidade, de uma dimensão tão concreta e presente na memória recente do país que o tornava profundamente eloqüente. Ninguém precisava dar explicações por e para ele. É, porém, explorando o silêncio em torno deste termo aparentemente autoexplicado, que podemos encontrar o melhor caminho para entender as dificuldades para conciliar os valores e compromissos do gender com aqueles dos saberes locais. Trilhando o silêncio acerca da violensia podemos encontrar os primeiros conflitos entre as narrativas contrastantes que operam a dialética da modernização timorense. 73 O Distrito Violência Doméstica em Timor-Leste: o que pensamos saber Rede, Fokupers, ETWAVE, GPI, todas estas instituições reproduzem, em seus discursos, a violência como algo factual, prontamente quantificável por estatísticas de atendimento e queixas prestadas. É raro encontrar algum documento que, buscando caracterizar um cenário geral da violensia domestika em Timor-Leste, não faça recurso aos números para sustentar a idéia de que o país vive uma avassaladora presença deste problema. Entre os dados comumente citados estão os atendimentos feitos pela Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL). Entre eles, os casos de violência doméstica ocupavam o quinto lugar em 2001, representando 8% das ocorrências em todo o país. No ano seguinte esta participação praticamente dobrou, chegando a 15% e empatando com “furto” no segundo lugar do ranking de ocorrências policiais. Um folheto do FNUAP intitulado “Action Against Gender-Based Violence in Timor-Leste”, no qual se divulgam as ações do projeto com o GPI, apresenta uma tabela comparativa com dados de 1999 a 2002 sobre casos de violência de gênero encaminhados por diferentes instituições – polícia, tribunal, mediação, ETWAVE e Fokupers. Nela mostram-se números relativos a casos de domestic violence, sexual assault/harassment, Rape/attempted rape, Incest e Torture (female victim). Estas são também as categorias utilizadas pela Unidade de Pessoas Vulneráveis da polícia timorense para categorizar os casos que chegam. Segundo o folheto, “Domestic violence é a forma mais prevalente de violência de gênero”. Tanto a polícia quanto as organizações de mulheres no país reconhecem, porém, que as queixas que chegam a ser registradas são apenas uma pequena parte dos casos que poderiam ser classificados como violensia domestika (UNTAET, 2002; GPI, 2003). Isto ocorre tanto porque a maior parte dos conflitos tende a ser resolvida por mecanismos tradicionais de mediação e justiça quanto pelo fato de que muitas mulheres não vêem a agressão física como ofensa a algum direito (por exemplo, à integridade física) e, portanto, como motivo de queixa. Esta última observação, reconhecida em parte pelo discurso oficial, faz-nos pensar até que ponto o termo violensia pode ser tão auto-evidente. Para além da dimensão factual de um tapa, até que ponto este gesto não teria que ser percebido subjetivamente como uma agressão para poder ser qualificado de “violência”? E, na 74 ausência desta percepção, como o tapa seria significado para quem o recebe; que sistema classificatório lhe daria sentido? Afinal, mesmo para o sistema classificatório que orienta nossa percepção cotidiana da violência, é necessário um mínimo de intencionalidade para que um ato qualquer seja tomado como atitude de violência. Perseguindo estas questões podemos encontrar outros discursos possíveis acerca das situações classificadas oficialmente como violensia domestika. Neste sentido, para além das estatísticas policiais e dos casos reportados nos relatórios de ONGs, existe todo um universo de significados subjetivamente partilhados a ser explorado. Na medida em que o discurso oficial busca simplesmente a incidência deste tipo de violência, não se pergunta pelo que se define, localmente, como tal. Conhecer a situação da “violência doméstica” em Timor-Leste exige, em primeiro lugar, colocar em suspensão a percepção óbvia da palavra “violência” e buscar os sentidos localizados que ela pode receber. Uma das organizações internacionais que há mais tempo vem atuando com projetos de gênero e desenvolvimento em Timor-Leste é o braço australiano da inglesa Oxfam International. Praticamente uma holding multinacional no campo da cooperação internacional, a Oxfam International integra hoje 12 organizações relativamente independentes que atuam em 100 países com mais de 3.000 parceiros.36 No ano de 2003 a Oxfam-Austrália (Oxfam Community Aid Abroad, ou simplesmente OCAA) mantinha em Timor-Leste três escritórios. O principal funcionava na capital, Dili, em um prédio compartilhado com as representações da Oxfam-Grã-Bretanha e a Oxfam-Hong Kong. Além de uma base na capital, a OCAA tinha equipes permanentes em Oecussi, o enclave timorense no lado indonésio da ilha, e em Suai, capital do distrito de Covalima, na costa sul do país. Nos tempos de emergência, logo após os massacres de setembro de 1999, chegou-se ter mais um escritório, em Maliana, próximo à fronteira com a Indonésia. Cada escritório mantinha projetos próprios, coordenados pela gerência nacional de projetos, baseada em Dili. Em junho de 2003 uma data e um projeto preocupavam a gerente nacional de projetos, Keryn Clark, uma australiana que já trabalhara em projetos de 36 Segundo a página da Oxfam International na internet: “Oxfam International is an international confederation, comprised of 12 independent non-government organizations dedicated to fighting poverty and related injustice around the world. Our mission is a just world without poverty and our goal is to enable people to exercise their rights and manage their own lives.” (Who we are. In: www.oxfam.org/eng/about_who.htm. Acesso em fev. 2005) 75 desenvolvimento no Brasil e na Ásia. A data, 30 de setembro, era o prazo final para a execução da atividade-chave de um dos projetos centrais do escritório de Suai. O projeto, intitulado “Social, Economic and Political Participation Program in Covalima”, buscava dar suporte a iniciativas locais para fortalecimento da participação de mulheres em atividades econômicas e espaços de decisão política no distrito, bem como reduzir os riscos a que estavam expostas na área de saúde, saneamento e violência doméstica. A atividade central era uma pesquisa para o levantamento das causas profundas da desigualdade de gênero no distrito, que forneceria os elementos para dar diretrizes ao restante das ações do projeto. Como eu tinha experiência em pesquisa, havia trabalhado com projetos de gênero e desenvolvimento, falava a língua local e havia participado como observador e voluntário na consulta que a OCAA havia feito para o GPI acerca de legislação de combate à violência doméstica (ver próximo capítulo), fui selecionado para coordenar a atividade em Suai. Com isso pude passar um mês trabalhando em conjunto com a equipe local da Oxfam em Covalima, recolhendo discursos sobre gênero e violência em todos os 7 subdistritos daquele que é um dos distritos de mais precária ligação com a capital do país (ver mapa 3). Foi a partir desta experiência de contato próximo com o “Timor profundo”, como diziam alguns colegas de Dili, que pude explorar melhor os sentidos locais da violensia. Evidentemente o que posso apresentar desta experiência não tem a pretensão de retratar categorias definitivas ou centrais para a vida dos grupos Bunak, Kemak ou Tetum de Covalima, muito menos pode ser tomado como padrão para todo o interior do país, mas certamente fornece boas pistas para entendermos narrativas divergentes sobre o tema do gender e da justiça em Timor-Leste. 76 MAPA 3: Covalima entre os distritos de Timor-Leste fonte: Atlas de Timor-Leste. GERTIL. Baku atu hanorin: é apanhando que se aprende A estratégia da pesquisa, acordada com a equipe local da Oxfam em Suai, consistia de um processo em três etapas. Em um primeiro momento, com o objetivo de levantar os trabalhos que já haviam sido feitos na região, realizamos um encontro com os chamados “parceiros locais” – grupos comunitários, ONGs e líderes locais que pudessem estabelecer parceria futura com o programa da Oxfam. Participaram deste encontro representantes de três ONGs locais, uma ONG internacional, três grupos comunitários e dois funcionários do hospital local.37 As atividades destes grupos abrangiam programas de micro-crédito a grupos de mulheres, atendimento a órfãos e viúvas, obras de saneamento básico e treinamentos no que se chamava “educação cívica”, uma linha de ação fortemente apoiada pela ONU na reconstrução do país. Num segundo momento organizamos grupos focais nos subdistritos, convidando lideranças locais, professores, enfermeiros, policiais e religiosos. Nos grupos, duas técnicas foram usadas. De início apresentávamos frases sobre os temas a serem discutidos: oportunidades econômicas para as mulheres, situações de risco para elas (em especial violência doméstica e saúde sexual e reprodutiva) e oportunidades de 37 As ONGs locais eram: Fundação Caridade, de amparo a órfãos e viúvas; Moris Rasik, de projetos de micro-crédito; e Bia Hula, de projetos de água e saneamento. A ONG internacional era o NDI (o instituto do partido democrata americano). Além destes, houve representação do grupo Mate Restu, grupo de ajuda mútua de viúvas do massacre de 1999, Centro Comunitário e Centro da Juventude de Suai. 77 participação política. Cabia aos participantes, divididos em pequenos grupos, se posicionar em relação às frases, definindo se concordavam ou não com as afirmações e justificando suas posições. Para cada tema, depois de apresentadas as posições dos grupos, fazíamos perguntas direcionadas sobre o assunto, às quais o grupo devia responder coletivamente. Em alguns dos subdistritos as discussões foram feitas apenas com mulheres, em outros apenas com homens, e em outros com grupos mistos. Por fim, os resultados foram apresentados e discutidos com os parceiros de Suai. Na preparação dos grupos focais, tivemos o cuidado de evitar perguntas dirigidas diretamente ao conceito de violensia domestika. Naquela época a pesquisa do IRC financiada pelo projeto FNUAP-GPI já havia sido divulgada, juntamente com um survey estatístico que a organização realizara em todo o país e que revelava, entre outras coisas, que 84% das mulheres concordavam que casos de violência doméstica são assunto para ser resolvido dentro da família e 51% consideravam que um marido tem o direito de bater em sua esposa se esta o desobedecer (IRC, 2003a). Meu interesse era exatamente entender melhor como as pessoas viam o ato de uso da força física no ambiente doméstico, independente de qualifica-lo como violensia domestika. Assim, perguntávamos, por exemplo, se um homem poderia bater em sua mulher para ensinála, ou quando estava nervoso, ou quando esta não cumpria seus deveres ou não o obedecia.38 Na média geral do distrito, a frase que afirmava estar um homem autorizado a bater na mulher para ensina-la (mane bele baku nia fe’en atu hanorin nia fe’en) chegou a 50% de aceitação, tanto entre homens quanto entre mulheres. Mas o que parecia, no relatório do IRC, um caso de simples tolerância excessiva para com a violência, ganhava nos grupos focais de Covalima tons bem mais nuançados. Um dos subdistritos em que a concordância em torno da afirmação foi unânime (Fatumean, na fronteira com o lado indonésio da ilha) chamou minha atenção pelo seu isolamento. Embora distante da capital do distrito, a estrada era relativamente bem conservada, e eu não esperava encontrar tão poucos elementos familiares. A sede do subdistrito era um grande descampado em torno do qual três construções se entreolhavam. Uma pequena casa de alvenaria, onde funcionava a delegacia, formava 38 No original, as frases eram: “Mane bele baku nia fe’en atu hanorin nia fe’en”, “Mane bele baku nia fe’en wainhira nia hirus”, “Mane bele baku nia fe’en wainhira fe’en la tein, la haré labarik ka la halo tuir ninia hakarak”. 78 um “L” com um grande barracão quase em ruínas, onde outrora funcionara a administração do kecematan (o subdistrito indonésio) e hoje servia de dormitório para a polícia de fronteira. A terceira construção era a mais recente e melhor conservada: uma casa de alvenaria com cerca de 100 metros quadrados em que funcionava a clínica local, onde ficamos hospedados. A equipe de dois enfermeiros vinha uma vez por semana à clínica para prestar atendimento. Nos outros dias, circulava por outras pequenas clínicas como aquela em outros lugarejos. Em torno deste “U”, espalhavam-se algumas ruínas de pequenas construções queimadas nos ataques de milícias em 1999. A uma centena de metros dali, um aquartelamento de tropas tailandesas a serviço da ONU fazia a segurança da fronteira. Alguns outros fatores contribuíam para aumentar a sensação de isolamento. Até então, mesmo os menores lugarejos por onde passara possuíam uma praça de mercado, onde as mulheres negociavam hortaliças e enlatados indonésios e os homens vendiam carne. Fatumean não tinha mercado. Quando precisamos, à noite, de alguns vegetais para completar o macarrão que preparamos para o jantar, acabamos indo bater à porta do quartel tailandês. Era interessante notar que os integrantes da equipe local da Oxfam, nativos de Suai, que sempre tinham bons contatos com moradores dos demais lugarejos, ali não pareciam conhecer muita gente. O fato de ficarmos hospedados na clínica, e não na casa de alguém, era mais um sinal da pouca penetração da ONG por lá. Os contatos para organização do grupo focal tinham sido feitos com o administrador do subdistrito, que se encarregara de mobilizar os líderes locais. Naquele lugarejo fizemos dois grupos, um com homens e outro com mulheres. O grupo das mulheres nos recebeu com um mutismo constrangedor. Para muitas era a primeira vez que participavam de uma atividade fora de suas famílias. Não sabiam como se posicionar em relação às frases apresentadas, entreolhavam-se longa e aflitivamente e, com muita reticência, murmuravam sins e nãos. Os homens, bem mais participativos, não tiveram dúvidas em concordar que se podia – e devia – bater para educar uma esposa. “Baku atu hanorin”, diziam, “hahalok di’ak” – bater para ensinar, uma boa conduta. É interessante, contudo, explorar melhor o sentido daquele isolamento. Para chegar ao subdistrito seguinte, Fohorem, tivemos de enfrentar um caminho muito mais precário e complicado, montanha acima. Acontece que Fohorem havia sido a primeira capital do distrito de Covalima, tendo deixado de sê-lo nos anos 1930, quando os portugueses a transferiram para Suai, uma região mais plana e acessível, perto do mar 79 (ver mapa 4). Fohorem permanecera, portanto, com alguma centralidade na geopolítica do distrito. Assim, mesmo eu tendo saído da capital de um dos distritos de ligação mais precária com Dili, mesmo tendo enfrentado uma viagem de horas em uma picape por uma pequena picada que oscilava entre leitos secos de rios e beiradas de precipícios, mesmo assim, chegando ao distante vilarejo, a primeira coisa que ouço é uma voz gritando: “Senhor Daniel, trabalha agora para a Oxfam?” Era um timorense que eu conhecera em Dili, alguns meses antes, em uma oficina sobre projetos de micro-crédito. Ele também estava por ali de passagem, visitando projetos. No mesmo dia descobri que o genro de nossa anfitriã era cadete da polícia e estivera na mesma sessão de treinamento sobre violência doméstica que eu assistira em Dili, havia algumas semanas. Decididamente, havia pessoas que circulavam muito pelo país, e, ao contrário de Fatumean, Fohorem estava no grande circuito por onde estas pessoas, instituições e valores itinerantes faziam suas andanças. Nestes lugares, era de se esperar que o discurso do gender se tornasse mais operativo. Na geografia do gender, o que determinava o isolamento de uma região não eram as distâncias físicas ou a condição das estradas. MAPA 4: Subdistritos de Covalima (destaque para Fatumean, Fohorem e Suai) fonte: Atlas de Timor-Leste. GERTIL. 80 A resposta enfática dos homens de Fatumean e a concordância titubeante das mulheres acerca do direito de se bater para ensinar, não se restringiam, porém àquele vilarejo. E tampouco operava em um único sentido. A lógica segundo a qual apanhando a gente se entende valia para homens e para mulheres. Em Maucatar, por exemplo, o grupo de mulheres concordou com a afirmativa, e complementou-a, explicando que uma mulher também podia bater no marido para educa-lo. Como, porém, muitas vezes eram mais fracas, costumavam castiga-los de outras formas, rasgando suas roupas ao lavá-las ou propositadamente errando a mão na hora de preparar uma refeição. E motivos para uma punição dessas não faltavam: bastava o homem perder dinheiro nas brigas de galo ou embriagar-se freqüentemente. Baku malu, bater-se, era uma forma de restaurar um comportamento desejado. Baku era um caminho (ou as balizas do caminho) para um hahalok di’ak. A Casa de Alice Embora a dinâmica da análise de afirmativas ajudasse a introduzir o tema para discussão no grupo, evidentemente não trazia respostas simples e muitas vezes revelava mais sobre a forma de organização do grupo em si do que sobre o que pensavam a respeito do assunto. Novamente aqui uma diferença importante entre Fatumean e Fohorem chamava a atenção. O silêncio constrangedor que enfrentamos em Fatumean não se repetia entre as mulheres de Fohorem. Em lugar de olhar perdidamente umas para as outras, ali todos os olhares femininos se dirigiram para uma mesma pessoa: mana Alice.39 Alice era uma senhora de meia-idade e de genealogia nobre. Neta de um liu ra’i bunak, casara-se com o liu ra’i de Fohorem, de um grupo tétum. Como nunca conseguira engravidar, seu marido a abandonou – um hábito condenado por alguns, defendido por outros. O marido vivia então com três outras mulheres, em outro suco, mas sem nenhum filho – o que Alice dizia com um indisfarçável sorriso nos lábios. Na casa de Alice, ela era o elemento central. Sem ter filhos biológicos, cercou-se de adotivos – em grande parte sobrinhos e primos. Alguns já não moravam com ela, estavam em Dili trabalhando em restaurantes. Outros, em Suai. Na casa moravam algumas irmãs mais novas e algumas sobrinhas. Uma delas, já casada, morava com 39 “Mana” (irmã) e “maun” (irmão) são vocativos comumente usados como pronomes de tratamento para pessoas da mesma geração com quem se tem alguma familiaridade. Aos mais velhos, costuma-se chamar “tia” e “tio”. “Maun” significa ainda que a pessoa a quem se está dirigindo o pronome é mais velha ou merece alguma deferência dentro desta familiaridade. Para os “mauns” mais novos, usa-se “alin”. 81 Alice e trouxera o marido para morar ali, um jovem cadete da polícia, trabalhando na delegacia, alguns metros acima da casa, na única rua do vilarejo. Uma das irmãs de Alice morrera havia alguns anos, no parto, dando à luz o oitavo filho. Ela pegara a criança para cuidar, e tratava-a como filha própria. O pai da criança era policial no aeroporto de Dili, mas não mantinha muito contato. Na casa (ou Casa) em que morava, Alice era a matriarca. A centralidade de Alice em seu grupo doméstico replicava-se no plano da vida comunitária. A ascendência nobre de Alice representa muito no vilarejo. Embora não tenham mais poder político, os liu ra’i ainda têm grande prestígio no local. Segundo Alice “hoje Timor-Leste é uma democracia. Manda quem tem capacidade. O povo escolhe e, se tem capacidade, manda”. Mas ainda hoje, dizia ela, há um liu ra’i: “Há a Uma Lulik (a Casa Sagrada), que é a casa do liu ra’i. As pessoas têm respeito pelo liu ra’i. Quando alguém ganha uma bandeira, leva ao liu ra’i. Ele a entrega para o chefe de suco que, em respeito, devolve ao liu ra’i para ser guardada na Uma Lulik. Antigamente não se podia fazer tais com os mesmos motivos do tais do liu ra’i. Havia multa. Quando o liu ra’i morria, era enterrado com seu tais, e as pessoas passavam acocoradas pelo lugar do seu túmulo. Ainda hoje fazem assim. É a forma de mostrar respeito ao liu ra’i. Mas o liu ra’i não manda. Nem dá conselhos. Isso não existe”. Alice era a coordenadora da OPMT em Fohorem. Nesta condição, era ela quem organizava e respondia por um grupo de costura que participava de um programa de microcrédito de uma ONG internacional (CARE International) mediado por uma organização local (Hotfoliman). Era ela quem recebia o representante da Hotfoliman mensalmente para fazer prestações de conta. Fora ela também quem organizara os convites às mulheres de outros sucos para participarem do grupo focal. Um dos quartos de sua casa estava cheio de caixas com exemplares da Constituição Timorense, enviadas por uma ONG de Dili (Feto Foin Sa'e) para serem distribuídos entre as mulheres dos sucos de Fohorem. Quando havia reuniões na capital do distrito, em Suai, ou mesmo grandes eventos em Dili nos quais as mulheres do subdistrito precisavam se fazer representar, Alice era a escolha natural. Aquela mulher operava uma série de ligações entre vários níveis institucionais nacionais e a “base” local. Ela já fora indicada para a posição de Administrador do Subdistrito, mas não fora aceita por conta da poligamia de seu marido – um malexemplo na leitura de muitos, do qual ela procurava se afastar agarrando-se tenazmente ao catolicismo e mantendo uma fidelidade de viúva de marido vivo ao seu liu ra’i. Na 82 época, cogitava sair como candidata da OPMT às eleições para escolha de chefe de suco, que seria dali a seis meses. Tinha ainda um forte sentido de hierarquia. Lembrome de, ao nos despedirmos, ela beijar minha mão com uma grande reverência. Tampouco era capaz de criticar o padre local por ele ter uma “namorada”. A culpa, certamente, era da jovem que o seduzira. Durante o grupo focal, Alice se comportava como a mãe do grupo. Cochichava para as outras mulheres o que e quem deveria falar. Às vezes tinha que deixar o grupo para tratar de trazer o almoço ou os lanches, que mandara fazer em sua Casa. Quando saía, as mulheres se afligiam por não ter a quem olhar e punham-se a tomar nota fervorosamente de tudo o que perguntávamos. Aquelas mulheres tinham sua relação com o mundo da voz e das palavras públicas marcada por uma hierarquia bastante evidente. Alice era a porta-voz de suas palavras, mediadora entre as esferas da cotidianidade da aldeia e da sacralidade do Estado. Na sua presença, elas se calavam. Na sua ausência, temiam posicionar-se. Alice garantia toda a infraestrutura para receber as pessoas e fazer encontros. Foi na casa dela que ficamos hospedados, dividindo um pequeno quarto com a máquina de costura do grupo de microcrédito e as caixas com exemplares da constituição. Sua casa, porém, não era maior que as outras da aldeia e seguia os mesmos padrões locais. Mas era a ela que o administrador do subdistrito recorria para hospedar gente de fora.40 Dor física e dor moral Era por meio de pessoas como Alice que a OPMT atuava localmente como um grupo de ajuda mútua e, ao mesmo tempo, nacionalmente como uma organização altamente capilarizada. Assim, além de estar inserido no amplo circuito dos projetos das ONGs, Fohorem tinha uma mana Alice, organizando as mulheres das aldeias e fazendo a mediação com o mundo do gender. Não era de espantar que a participação das mulheres fosse outra e o resultado ali fosse diferente. O mais espantoso é que não foi. O grupo focal com as mulheres concordava que um “homem pode bater em uma mulher para ensiná-la”. Mas havia senões. 40 Na época, os preparativos eram para receber uma delegação do parlamento – um projeto de governação local promovido pelo NDI (Instituto do Partido Democrata norte-americano) levaria comissões de parlamentares a todos os sucos de Timor-Leste para dialogar com as necessidades do povo. Alice estava aborrecidíssima com as exigências que o administrador estava fazendo. Os deputados queriam “cama boa, banheiro bom, água encanada”. “Eles que procurem outro lugar” dizia. 83 Por um lado, segundo o grupo, um homem tinha o direito de bater em sua mulher se ela tivesse alguma culpa – ou seja, se ela tivesse negligenciado qualquer de seus deveres. Esta idéia aparecia de forma recorrente nos outros subdistritos. Em geral, os homens costumavam afirmar: “Se a mulher ficar preguiçosa, o homem pode bater; O homem vai para a roça, se, quando volta, as crianças estão largadas ou não há comida, pode bater; Bate quando a mulher não tem responsabilidade, só quer passear; Quando a mulher não cumpre o seu papel”.41 As mulheres costumavam dizer que: “quando o homem vai trabalhar, a mulher tem que cuidar das crianças e cozinhar, senão o marido pode bater; A gente concorda, pois isso (negligenciar os deveres) é um comportamento ruim”. 42 Uma variação deste raciocínio dizia que o direito de um homem bater em sua esposa dependia das razões que ela apresentasse para ter negligenciado seus deveres – no caso de haver boas razões, como doença ou motivos de força maior, estaria justificada, e a agressão do marido não seria justa. Por outro lado, porém, continuou o grupo, um homem não poderia nunca obrigar sua mulher a obedecê-lo, contra sua vontade. Isso seria uma ofensa ao direito que a mulher tem de ter sua opinião e sua vontade respeitadas dentro de casa – desde que, evidentemente, sua vontade não implicasse o abandono de seus deveres. Curiosamente, o grupo parecia responder com uma sensibilidade simétrica àquela do discurso oficial sobre violensia domestika. Segundo a interpretação do grupo, um ato de desconsideração à vontade da mulher poderia ser mais ofensivo do que um tapa, o que invertia a perspectiva que caracterizava a centralidade da agressão física no conceito de violensia domestika. Lembro de ter estranhado a ênfase com que o grupo considerou o abandono uma grave ofensa por parte do homem. Uma das frases dizia que o “homem pode casar-se com uma segunda mulher” e foi fortemente rechaçada pelo grupo, que considerava aquilo uma grave ofensa à primeira esposa. Quando soube, depois, que esta era a história da própria Alice, compreendi melhor a importância que o grupo deu ao fato. Entender o sentido de agressão, tão presente na desconsideração da vontade quanto ausente no uso da força física, exige deixar bem clara a separação analítica entre 41 “Feto ba vadiu, entaun mane bele Baku; Mane ba to’os, ba serbisu, wainhira nia oan hetan (?) ou la tein, mane bele baku.; Baku tanba laiha responsabilidade feto hakarak pasiar de’it.; Mane ba serbisu iha natar meudia mai hahan laiha entau mane baku feto; Feto la halao nia papel.” (OCAA; 2003:54) 42 “Kuando mane ba serbisu, feto tenke haré labarik no tein. Se lae, laen bele baku; Ami konkorda tanba buat sira ne,e hahalok aat ne”. (OCAA; 2003:54) 84 as dimensões física e moral do ato de agressão, uma questão bastante explorada por L. Cardoso de Oliveira (2002) e, como parece o caso, de grande utilidade para se compreender os sentidos da violência em Timor-Leste. Um ato de uso da força, mesmo podendo ser sentido como agressão física por parte de quem o sofre, pode não ter maiores implicações no plano moral – pode não ser percebido como insulto e, portanto, não gerar ressentimento. O que definiria a percepção de uma agressão como uma ofensa moral, neste sentido, seria a leitura feita por uma das partes acerca da intencionalidade da outra. Voltamos aqui ao papel da intencionalidade em tornar um determinado ato em atitude de violência. L.Cardoso de Oliveira busca em Strawson um exemplo elucidativo de como o ressentimento se relaciona menos aos fatos em si do que à percepção das intenções por trás de uma atitude: Se alguém pisa na minha mão acidentalmente, enquanto tenta me ajudar, a dor pode não ser menos aguda do que se ele pisá-la em um ato de desconsideração ostensiva a minha existência (…) Mas, geralmente, devo sentir no segundo caso um tipo e grau de ressentimento que não devo sentir no primeiro” (Strawson, apud Cardoso de Oliveira, 2002:82). De certa forma é isto que está sendo enunciado por homens e mulheres de Covalima, ao identificarem na intenção supostamente educadora do uso da força um elemento de atenuação do significado moral deste uso. A agressão física não seria, assim, percebida como insulto. Isto ficava ainda mais claro na pesquisa de Covalima quando procuramos ouvir a percepção dos grupos acerca de situações de risco – um dos objetivos do programa da Oxfam. A agressão física não era percebida como fator motivador de sentimento de risco. “Em geral, tanto homens quanto mulheres tendem a considerar certas formas de agressão como normais e, por conseqüência, não vêem tais formas de agressão como situação de risco, mas como parte normal de um relacionamento.” (OCAA, 2003:12). As mulheres participantes da pesquisa enfatizaram que não aceitam uma agressão gratuita, mas a análise do contexto que gerou a agressão pode resultar na validação do gesto. O uso da força, legitimado por uma intenção pedagógica, passa a ser visto como mecanismo de reposição da ordem no domínio das relações interpessoais. Pode ser, portanto, uma ferramenta legitimada socialmente para regular relações na comunidade e seu uso legítimo está longe de ser visto como monopólio do Estado. Por outro lado, o não reconhecimento da vontade alheia – ou não levar em consideração esta vontade – 85 era um gesto que não estava abrigado pela intenção pedagógica. Carecendo de legitimação, acabava caracterizado como gesto ou atitude ofensiva. A idéia de que uma atitude não deve ser julgada por si só, mas pela análise das intenções e do histórico de relações que a originou é, como discutiremos no quarto capítulo, uma característica bastante comum entre as formas locais de justiça. Faz sentido que ela seja replicada na maneira como os grupos dão sentido às experiências de uso da força. Como a dimensão do senso de justiça (um ato justo ou injusto, e, como tal, legitimado) será bastante discutida mais adiante (cf. capítulo 4), gostaria de dirigir o olhar aqui para duas dimensões que ainda se mostram importantes na forma como aqueles grupos entendiam o uso da força e a idéia de violensia: as suas visões do corpo e a maneira como algumas dessas representações locais eram interpretadas pelo discurso da violensia domestika. Visões do corpo O pouco sentido de risco dado à agressão física indicava uma sensibilidade relativa para com a integridade do corpo, evidenciada em outros momentos da pesquisa com os grupos focais. Ao serem indagados, por exemplo, sobre os riscos de sucessivas gestações para as mulheres – estas costumam ter em média 7,5 filhos (UNICEF,2002:xi), mas é comum encontrarmos famílias de até 12 irmãos – os participantes não faziam necessariamente associação entre a atividade reprodutiva e a saúde do corpo. O risco de sucessivas gestações não estava nas possíveis complicações do parto, pressão alta, eclampsia ou depleção. O risco de se ter muitos filhos estava em não se conseguir completar o serviço doméstico por ter que cuidar das crianças, o que justificaria uma agressão por parte do marido. Um caso interessante se deu no grupo focal que realizamos em Suai, capital do Distrito. Tito, um jovem líder local que fazia, inclusive, parte da Associação de Homens Contra a Violência, fez uma interpretação bastante curiosa da idéia de que muitos filhos poderiam representar algum risco à mulher. Para ele, o fato de uma mulher ter muitos filhos não era uma situação de risco, pois ela estaria, assim, cumprindo o que se esperava dela. Seu marido ficaria muito satisfeito. Risco ela correria se não tivesse filhos; aí sim ela certamente corria o risco de ser abandonada pelo companheiro, a exemplo do que acontecera com mana Alice. A própria Alice, cuja irmã morrera no parto de sua oitava filha, não fazia associação direta entre gestação e riscos à saúde. O saber médico que na modernidade 86 ocidental construiu uma sensibilização para os cuidados com o corpo como condição para o bem-estar físico e mental parecia não operar em muitas daquelas aldeias. Mas isto não significava ausência de preocupação com o corpo. O corpo existe e tem muitos significados.43 Com relação ao papel que desempenha na construção das categorias de gênero, o corpo é, entre os grupos de Covalima, um lugar importante – como, aliás, confirma a bibliografia sobre Indonésia oriental em geral, apresentada no capítulo anterior. A atividade reprodutiva, por exemplo, é vista como responsabilidade das mulheres – mais do que simples responsabilidade, costuma ser tida como dever, como o caso do abandono de Alice demonstra. Apesar dos protestos da Igreja, ainda é comum a idéia de que se uma mulher não der filhos ao marido, este está socialmente autorizado a buscar outra esposa. A infertilidade é, assim, sempre um problema da e para a mulher, uma vez que é ela a doadora da vida. Nas representações sobre a constituição do corpo, gênero é um marcador operante e em alguns casos pode ser base para discriminação e violência. O comércio local, por exemplo, costuma ser visto como uma atividade na qual as mulheres são bemvindas, desde que não implique grandes deslocamentos. Isto se relaciona à percepção sobre a constituição corporal de homens e mulheres. Em geral, as mulheres são vistas como não tendo força suficiente para carregar e utilizar armas (a katana) e são, por isso, tidas como vulneráveis nos deslocamentos, não sendo autorizadas a se distanciar de suas aldeias natais. Assim, mesmo sendo objeto de cuidados, e cuidados diferenciados por gênero, o corpo e seus sentidos parecem ter, mais do que um papel para o bem-estar individual, uma função na socialização da pessoa. É pelo castigo corporal que se educa. Isto é evidente nos relatos de estrangeiros acerca do que consideram um uso abusivo da violência (uso da força física e do que consideram situações de humilhação) nas escolas timorenses. Algumas professoras portuguesas que, a serviço da missão portuguesa em Timor-Leste, atuaram durante vários meses em escolas timorenses, costumavam expressar grande constrangimento com o que consideravam castigos despropositados que seus colegas locais aplicavam aos alunos. Eram comum relatos de meninos 43 As partes do corpo funcionam como metáforas para a nomeação de vários lugares em tetum. Praia, por exemplo, é a “boca do mar” (tasi ibum). A porta é o “olho da escada” (oda matan) – muitas casas tradicionais são elevadas e para se chegar à porta sobe-se uma pequena escada. Poço é o olho d’água (be’e matan). 87 obrigados a manter-se em pé debaixo do sol durante horas, ajoelhados sobre grãos de milho ou simplesmente tratados a tapas por pequenas desordens em sala de aula. O que chamaríamos de violência doméstica não está, portanto, apenas relacionado à posição das mulheres na estrutura familiar, mas a certas concepções sobre a punição corporal como forma de educação e à educação do corpo como um instrumento a serviço da produção de subjetividades. Da mesma forma, a violência também não pode ser adequadamente apreendida se focarmos a análise apenas no plano físico, do comportamento bruto, sem atentarmos para a dimensão moral do ato. Gênero e diversidade étnica Se é verdade que o uso da força contra mulheres não se orienta apenas por uma questão de gênero, por outro lado a “posição das mulheres na estrutura familiar” e a referência a uma “cultura patriarcal” são argumentos constantemente evocados nos discursos e práticas de ONGs e governo acerca da violência doméstica (UNTAET, 2002). Algumas observações devem ser feitas com relação a estes argumentos. Falar da posição das mulheres na estrutura familiar é complicado por vários motivos. Do ponto de vista analítico, várias autoras já indicaram que não há muita utilidade em falar em uma posição de sujeito fixada por uma identidade de gênero, uma vez que na dinâmica das relações sociais os sujeitos não estão congelados em identidades fixas (de gênero ou outras), mas articulam identidades variadas, evocadas situacional e relacionalmente (BUTLER, 1990; COSTA, 1994). No caso timorense, em função da diversidade étnica da ilha, criar uma abstração aplicável a todo o país é tão ilusório quanto inútil. Mesmo em Covalima, um Distrito relativamente pequeno, as situações em que gênero faz alguma diferença nas relações sociais variavam bastante entre os subdistritos conforme predominassem grupos bunak, matrilineares, ou tétum e kemak, patrilineares. Ainda assim, alguns traços gerais da organização social dos grupos timorenses podem ser reconhecidos e relacionados às formas como diferenças de gênero são evocadas para justificar tratamentos diferenciados a homens e mulheres. Timor-Leste possui cerca de 30 grupos étnicos diferentes.44 Todos adotam um sistema de descendência unilinear, majoritariamente patrilinear e virilocal – apenas dois 44 O número exato de línguas e grupos étnicos em Timor-Leste é motivo de alguma polêmica. Luís Filipe Thomaz (2002), por exemplo, identifica, em 1974, 5 línguas papuas e 15 línguas austronésias, sendo que neste último grupo haveria ainda 4 variações dialetais do tetum associadas a grupos diferentes 88 são matrilineares (em alguns lugares utilizando-se virilocalidade, em outros a uxorilocalidade). Nas idas e vindas da geografia política produzida pelo processo de ocupação colonial portuguesa, as clivagens étnicas do território acabaram não coincidindo com as divisões administrativas. Nos atuais 13 distritos de Timor-Leste, fronteiras étnicas e políticas nunca coincidem (cf. Mapa 5). MAPA 5: Principais grupos lingüísticos de Timor-Leste fonte: THOMAZ, 2002. A riqueza da noiva (barlaque) existe entre todos estes grupos, mas é especialmente importante entre os grupos patrilineares. Entre estes, o pagamento do barlaque permite ao casal fixar residência entre o grupo do homem. O barlaque, porém, não é condição para que haja o casamento. É comum que jovens casais morem juntos por algum tempo sem o pagamento desta obrigação. Neste caso, contudo, chamado de kaben tama (literalmente “cônjuge entra”), o casal deve morar junto à família da mulher, somente podendo fixar residência própria, junto ao grupo de origem do homem, depois de acertado o pagamento. A virilocalidade implica que a jovem esposa é geralmente “estrangeira”, recémchegada em sua nova casa, devendo prestar obediência às mulheres mais velhas do (THOMAZ, 2002:163-165). Joana Schouten (2001), resenhando a produção da antropologia portuguesa sobre o então Timor Português, refere-se à classificação de Ruy Cinatti de 31 grupos etnolingüísticos no território (SHOUTEN, 2001:163). 89 grupo familiar. Alguns vêem nisso um fator de vulnerabilidade da mulher frente ao cônjuge, que, por ter “pago” o barlaque, sentir-se-ia “dono” da esposa e, portanto, no direito de tratá-la como bem entendesse. Outros, porém, fazem a interpretação inversa, dizendo que o pagamento do barlaque cria uma rede de proteção à esposa. Por ser um compromisso entre famílias (o pagamento é feito pela família do noivo à família da noiva), o barlaque enquadraria o relacionamento entre cônjuges em um contexto que vai além da díade formada pelo casal, obrigando os cônjuges a responderem por seu comportamento perante as famílias. A vontade do marido estaria assim limitada por uma obrigação social. O que algumas organizações de mulheres afirmam é que esta seria a intenção original do barlaque, que hoje teria sido corrompida pela primeira interpretação. (GPI, 2003a:15).45 A hierarquia entre gerações é um princípio altamente observado e, certamente, mais importante que as diferenças de gênero no nível doméstico das aldeias. Assim, a mulher mais velha da casa tem um poder considerável sobre homens e mulheres das novas gerações. A casa de Alice era um exemplo claro. Em um grupo de mesma geração a mulher mais velha pode usar os serviços de suas irmãs mais jovens para execução das tarefas domésticas enquanto estas não se casarem – embora Alice fosse responsável pelo almoço e lanches enquanto estivemos lá, ela raramente os preparava diretamente; havia quem fizesse isso por ela. Deste modo, embora a jovem esposa tenha, a princípio, um baixo prestígio na casa, à medida que o tempo passa e ela envelhece novas mulheres entram na casa (incluindo as filhas do casal) e assumem a manutenção da rotina doméstica. Não é por acaso que os mercados timorenses costumam estar repletos de mulheres idosas negociando principalmente produtos agrícolas – são elas aquelas que não precisam passar todo o dia envolvidas com as atividades domésticas ou de colheita.46 É neste sentido que, nas relações de poder por trás do uso da força nas relações domésticas, gênero não opera sozinho e, talvez, seja um fator menor diante de outros marcadores, como o geracional. Além disso, embora gênero faça diferença em muitos aspectos da vida social, as diferenças étnicas são muito mais marcantes nas relações quotidianas. A grande diversidade étnica dessa metade de ilha produziu uma história de pequenas e grandes batalhas e uma tradição de piadas e provérbios que evocam 45 Para uma interpretação do que significa esta narrativa no contexto do discurso oficial sobre violensia domestika, ver o próximo capítulo. 46 É no mercado também que estas mulheres circulam para além dos espaços da família. E, por isso, a ausência de mercados em Fatumean contava muito para a timidez daquelas mulheres. 90 conflitos ente as identidades locais. Assim, não penso que possamos dizer que gênero estabeleça uma diferenciação crucial nos discursos e práticas sociais em Timor-Leste. Isto depende de que aspecto da vida social se está focando. O reino da cultura Se gênero não era um grande fenômeno em Covalima, gender certamente era. Era preciso achar um lugar para essa idéia nova, e os grupos não se saíram mal nessa empreitada. Um conjunto de questões apresentadas aos grupos se referia à participação das mulheres na tomada de decisões. A quase totalidade dos grupos se mostrava irredutível quanto a um aspecto em particular: mulheres não poderiam tomar parte nas decisões negociadas nas formas locais de justiça. Estes espaços de decisão eram prerrogativas masculinas. Os homens costumavam justificar esta atitude escorados em uma “tradição”. Diziam: “Segundo nossa cultura, a nossa lei não-escrita, não se dá licença para as mulheres tomarem decisão na adat. É nossa tradição, desde o tempo de nossos avós”. Em um dos grupos, instigado pela minha constante insatisfação com este tipo de resposta, um dos senhores racionalizou da seguinte forma este motivo: “Não podem porque as mulheres têm cabeça quente. Não conseguem tomar decisões com a frieza necessária”. Já as mulheres costumavam argumentar de outra forma: “Não podemos porque as mulheres não têm tempo”, ou “têm muita vergonha”. Este tipo de postura punha para mim uma aparente contradição. Como podia haver tanta resistência à presença feminina nas instâncias locais de resolução de disputas – espaços, afinal, de tomada de decisão hierarquicamente inferiores às instâncias de Estado – e ao mesmo tempo o país contar com um dos mais altos índices de participação feminina no parlamento em toda a Ásia? Sendo o sistema eleitoral baseado em listas partidárias, é de se compreender que parte do processo que levou a tal resultado dependia menos do voto individual dos timorenses do que da pressão sobre os partidos políticos. Ainda assim, porém, não houve resistência à indicação de mulheres pelos partidos nem tampouco pressão formal para tanto, uma vez que não havia cotas por sexo – à despeito , diga-se, de um grande esforço de mobilização da REDE para que as cotas fossem instituídas. De qualquer modo, não via como compatibilizar dois fenômenos aparentemente contraditórios. O caminho para acomodar essas incompatibilidades, porém, era mais fácil do que parecia e logo foi encontrado. Segundo um dos grupos de homens, a resposta era simples: “Família é uma coisa, comunidade é outra, Estado é outra. No Estado e na 91 Família, as mulheres podem participar da tomada de decisão. Na comunidade, não”. Segundo aquelas pessoas, tratavam-se de três esferas distintas da vida social. No plano do Estado valia a igualdade de direitos, afinal “Timor-Leste é uma democracia” e, em uma democracia, homens e mulheres tinham os mesmos direitos e deveres. Na família, o respeito à vontade da mulher era fundamental e sua inobservância era percebida, inclusive, como grave ofensa. Já, no plano comunitário, a lógica era, por excelência, hierárquica. O cenário descrito por aqueles grupos encaixava-se perfeitamente na análise já apresentada por Brigitte Clamagirand (cf. Capítulo 1) sobre os Kemak, segundo a qual, embora dentro de uma Casa predominem relações horizontais e um maior igualitarismo, no plano das relações entre casas – o plano do que Clamagirand chama de vida comunitária – observa-se um forte sentido de hierarquia.47 A novidade seria uma terceira esfera, a estatal, também ela igualitária. De qualquer modo, por não se tratar de instâncias de um mesmo sistema, não cabia falar em uma hierarquia de leis ou valores. O que era princípio operativo em uma esfera, não o era em outra. Eram modelos distintos, para regular esferas distintas da vida social.48 Esta forma de enquadrar valores igualitaristas no cotidiano da aldeia é bastante esclarecedora do tipo de relação localizada como a idéia de democracia e o sentido da igualdade de direitos que marca a modernização timorense. O plano da igualdade de direitos, encapsulado pela palavra democracia (e não cidadania), restringia-se à esfera da relação com o Estado – e, de uma outra maneira, à esfera doméstica. É interessante 47 Segundo Clamagirand, para os Kemak há uma separação muito clara entre o domínio interno a cada casa e o das relações comunitárias (inter-casas). A autora usa a divisão, talvez pouco apropriada (ou demasiado ocidental), entre privado e comunitário para falar desta clivagem. De qualquer forma, fica claro, por sua etnografia, que as relações internas em uma Casa diferem bastante daquelas entre casas, especialmente no que se refere à idéia de igualdade. Enquanto as relações internas são marcadas por relações horizontais e de pouca diferenciação para além da geracional, as relações comunitárias têm como melhor metáfora a hierarquia. “No domínio privado, as Casas centrais são ordenadas em uma estrutura horizontal ou igualitária caracterizada por um ciclo de trocas entre wife-givers e wife-takers.” (CLAMAGIRAND, 1980:145). No plano comunitário, onde se daria a resolução de conflitos, a lógica muda. “Como parte de uma comunidade, as Casas centrais são ordenadas em uma estrutura hierárquica em torno das casas centrais da chefia que desempenham um papel central no padrão das alianças matrimoniais e nos rituais coletivos. O poder político das chefias consiste em julgar e regular” (Ibid:146) sendo que na aldeia por ela estudada (Marobo) este poder era exercido exclusivamente por três casas centrais de chefia. 48 A organização da vida social em esferas de princípios e obrigações relativamente independentes não é novidade na região. Em um de seus primeiros artigos sobre Bali, Geertz enfatiza a importância de sete planos distintos de pertencimento social para compreensão da vida de uma aldeia balinesa: “1. obrigações compartilhadas para adoração em um dado templo, 2. residência compartilhada, 3. propriedade de campos de arroz que compartilham a mesma água, 4. pertencimento a uma dada casta ou status social, 5. laços de parentesco consangüíneos ou afins, 6. pertencimento a uma ou outra organização ‘voluntária’, e 7. subordinação comum a um mesmo oficial administrativo do governo.” (GEERTZ, 1967:257). 92 notar que a palavra democracia podia ganhar sentidos bastante particulares na boca daquelas pessoas, mas sempre associados a uma idéia de igualdade, por vezes mais radical do que aquela que imaginamos em nosso senso-comum. Um caso curioso que pude presenciar em Covalima, relativo a um processo seletivo para uma ONG, dá boa mostra disso. O Fórum de ONGs timorenses, com sede em Dili, estava recrutando um representante para Covalima, e 10 pessoas enviaram seus currículos. O fórum préselecionou cinco e enviou uma funcionária a Suai para entrevista-los. Em meio às entrevistas, chegou um dos cinco que não haviam sido chamados e exigiu que fosse também entrevistado. Diante da negativa da funcionária, enfureceu-se, dizendo que aquele não era um processo “democrático”, afinal, em uma democracia todos deveriam ser ouvidos. A divisão naquelas três esferas (casa, comunidade e Estado) com seus princípios próprios de relacionamento era igualmente pacífica em outros subdistritos, inclusive para muitas mulheres. Diante da obstinação em vetar o direito de acesso de mulheres aos processos de decisão da adat, lembrei aos participantes de um grupo em que havia homens e mulheres que no Tribunal Distrital havia mulheres atuando como juízas, e perguntei se eles aceitariam as decisões de uma juíza. Disseram que sim, sem problemas. Por quê? “Vivemos em uma democracia, na democracia o direito de homens e mulheres é o mesmo”. Haviam lido bem a constituição. “Mas na comunidade não, aqui o que vale é a tradição (adat), é a cultura (budaya)”. Como não me dava por satisfeito, pedi que explicassem melhor o que os fazia aceitar (e obedecer) as decisões de uma juíza ou de uma ministra de Estado, mas não os permitia confiar nas mulheres para tomar decisões na aldeia. Fui receber uma explicação mais elaborada em Fohorem, da boca de um professor local: “A mulher que é juíza, ela estudou para isso. A ministra, se chegou a ser ministra é porque estudou muito. Elas sabem o que fazem. E, na democracia, se alguém tem competência, sabe fazer, então deve poder fazer”. Era o mesmo argumento meritocrático que ouvira de Alice – dizendo que os liu ra’i já não mandavam na aldeia, mas qualquer um que tivesse capacidade e fosse escolhido pelo povo – e que parecia evidenciar uma certa ética da competência não marcada por gênero a justificar o exercício do poder. “Já na aldeia, uma mulher não pode receber os conhecimentos necessários para julgar. Estes só podem ser passados para os homens da família. Então elas não 93 têm condições para tomar decisões na adat. Elas não sabem fazer isso, por isso não podem”. Elas não sabem e nem poderiam vir a saber. A questão é que as mulheres estavam impedidas de vir a saber pela necessidade de se respeitar uma tradição ancestral. O raciocínio era perfeito e dava um belo drible sobre as estratégias de advocacy até então utilizadas para promover a participação igualitária das mulheres na tomada de decisão. Não bastava distribuir as caixas de exemplares da Constituição que estavam no quarto de costura de Alice. As lideranças locais sabiam muito bem o sentido da igualdade de gênero e sua importância para a democracia. Mas a democracia operava na esfera do Estado. A comunidade era o reino da cultura, e ali certas regras tinham que ser respeitadas, inclusive aquela que prescrevia o respeito à vontade da mulher dentro da família. A Capital As coisas começam a mudar O cenário encontrado nos subdistritos de Covalima é bastante característico das regiões rurais do país, onde vive 76% da população timorense (UNICEF,2002:vii). O ambiente urbano de Dili, porém, tem trazido constantes desafios para muitas das características descritas acima. Uma história que chegou a meu conhecimento em Dili, em finais de 2002, é bastante expressiva disto. Um timorense, técnico de impressão em uma gráfica local, estava casado havia 11 anos e sempre batera em sua mulher. Ela sempre sentira a dor física, mas nunca se incomodara com isso. Até o momento em que pediu a separação. O marido não compreendeu. Não via motivos, afinal aquele vinha sendo o padrão de conduta do seu relacionamento há mais de uma década, e nunca a incomodara. A novidade era que agora a sua mulher trabalhava no escritório local da Cruz Vermelha (ICRC), junto com vários funcionários estrangeiros. O marido convenceu-se de que os estrangeiros estavam “colocando coisas” na cabeça de sua mulher. Certamente, de algum modo, é isso que aconteceu. A dor física que ela sentiu durante anos agora se somava a uma dor moral. O sentido do ato de agressão mudara, mudando, com isso, as suas conseqüências. 94 Conversando com a chefe do funcionário da gráfica, procurei entender o que teria motivado a esposa a não mais suportar o ato de agressão. Segundo ela, a mulher agora envergonhava-se por apanhar do marido. Diante do grupo que partilhava seu diaa-dia no espaço de trabalho, aquele ato ganhava outra conotação; produzia vergonha e humilhação – um tipo de dor que só ocorre no insulto. Podemos dizer que, diante de um novo contexto, o ato de agressão física tornou-se uma atitude de insulto à pessoa daquela mulher. Como L. Cardoso de Oliveira (2002), não podemos deixar de ver aqui um tipo novo de dor, uma dor que não tem existência ontológica, mas depende da percepção do insulto para existir no mundo. De alguma forma aquela mulher agora se sentia envergonhada por apanhar do marido, e esse novo tipo de dor ela não suportava. Em grande parte por força do convívio com os estrangeiros, a agressão física ganhou um novo significado, motivo de vergonha e humilhação. Penso que podemos dizer, como veremos nas próximas páginas, que o que era antes agressão física tornou-se violência doméstica. Mas certamente a mudança que aquela mulher fizera operar na forma como as agressões físicas do marido faziam sentido não dependeu apenas de seu convívio com os malai do ICRC. Muitos elementos facilmente encontráveis no cotidiano de Dili contribuíam para ampliar o leque de significados possíveis da agressão física. A campanha do 25 de novembro, por exemplo, era um. Os cartazes com as mãos algemadas, iniciativa do GPI financiada pelo projeto do FNUAP, não decoravam apenas as paredes do ginásio municipal de Dili. Estavam por toda a parte. Em vários prédios públicos podia-se ver o par de algemas com as inscrições “Violensia domestika: ne’e krime no kontra direitus humanus. Laiha tan perdua. Stop!!” (“Violência Doméstica: isso é crime e vai contra os direitos humanos. Não há mais perdão. Pare!!”) Acorrentadas pela Cultura O cartaz seguia o mesmo padrão ameaçador de uma campanha lançada na televisão de Dili ainda no tempo da Administração Transitória. No spot televisivo um personagem em desenho animado brigava com a esposa e a agredia: O marido diz “mulher não tem que trabalhar”. A esposa responde que não é a única e que tem os mesmos direitos que ele. O homem se irrita, lhe dá um tapa e sai de casa. Nisso, o dedo de Deus aponta para o marido e diz: Deus: ‘Ei, você. Sim, você mesmo. Só os covardes gostam de bater em suas mulheres. Eu vou estar à sua espera’. Na seqüência, o homem morre atropelado e sua alma sobe para o julgamento. 95 Deus: ‘Venha, vamos ver todos os seus pecados. Quebra-quebra, OK. Aumentar preços, isso pode. Comprou ou usou foguetes, todo mundo faz isso... Oh! Violência doméstica?! Castigo! Ele vai para o inferno!’ E o pobre homem arde nas chamas do inferno, enquanto surge na tela o letreiro: ‘Só os covardes batem em suas mulheres’. Nas duas peças, o perdão já não tem lugar e o castigo aparece como a conseqüência iminente. FIGURA 1: Cartaz da campanha “Labele Violensia Domestika” FIGURA 2: Cena de spot de televisão “Só os covardes batem em suas mulheres” As peças publicitárias na TV local (TVTL) foram parte importante da estratégia do projeto GPI-FUNAP para familiarizar a população de Dili com o conceito de violensia domestika. Mas não era apenas um novo termo que se inseria. Com ele vinha toda uma nova carga de significados para a agressão física. Um dos spots televisivos 96 trazia mensagens do então Bispo de Dili e prêmio Nobel da Paz, dom Carlos Ximenes Belo, condenando enfaticamente a agressão física contra as mulheres como uma ameaça à unidade familiar. Na mesma peça, fazia-se uma dramatização de uma briga doméstica em que se enfocava o sofrimento nos olhos das crianças, filhos do casal que brigava. As mensagens eram claras: violensia domestika trazia dor, sofrimento, desagregação familiar, além, é claro, da punição ao agressor.49 O poder de penetração da TVTL no país, porém, era reduzido. Além das transmissões serem restritas à capital (não havia rede de TV para o interior do país), a audiência era também reduzida. Os custos para aquisição de uma antena parabólica não eram muito maiores que os de um aparelho de televisão, e muitos timorenses costumavam comprar os dois como um conjunto. De posse de uma antena parabólica, dificilmente trocavam os canais indonésios pela transmissão local da TVTL. Era pelas emissões indonésias que assistiam, inclusive, a novelas brasileiras – dubladas em indonésio, como Terra Nostra, em exibição no período em que estivemos em campo. O rádio era, sem dúvida, um meio de comunicação mais eficaz para a divulgação do novo termo e da nova carga moral que deveria revestir o uso da força. Também havia spots para o rádio. Além deles, ONGs como a Caritas australiana e a Fokupers mantinham programas semanais sobre o tema, estimulando as mulheres a não aceitarem a violência dentro de casa e dando dicas de como encaminhar as denúncias. Além do material para mídia na televisão e rádio, a estratégia de advocacy coordenada pelo GPI incluía vários prospectos que buscavam familiarizar a população com alguns termos novos que, aos poucos, iam fazendo parte do vocabulário urbano de Dili. Este é o caso do prospecto da campanha “Labele! violensia domestika” (Não à violência doméstica). Na capa, a mesma imagem do cartaz com as mãos algemadas. No interior, com o intuito de apresentar os diversos tipos de violensia domestika, traz desenhos ilustrativos e pequenos textos descritivos de cada um dos quatro tipos consagrados pelo projeto com o FNUAP: “1. Violensia Fisika”, “2. Violensia Emosional, Psikolojika, Verbal”; “3. Violensia Seksual”; e “4.Violensia Ekonomia”. Ao final, o texto diz: “violensia domestika não é apenas crime; violensia domestika também é contra padrões internacionais de direitos humanos. De acordo com a lei atualmente em vigor em Timor-Leste, apenas a violência física e sexual é considerada crime. Isso significa que as vítimas deste tipo de violação devem prestar queixa na 49 No CD-ROM que acompanha esta tese são reproduzidos vários dos spots televisivos produzidos pela TVTL, além dos cartazes e prospectos comentados neste texto. 97 polícia para receber atenção no tribunal. As outras formas de violência, como a econômica e psicológica, de acordo com o código penal que se utiliza em TimoLeste ainda não são consideradas crime. Ainda assim, todos sabemos que todas as formas de violência não são boas e são contra os direitos humanos”. Na última página, o prospecto reproduz os telefones das Unidades de Pessoas Vulneráveis da PNTL em todos os Distritos do país, além dos telefones da Fokupers, ETWAVE e do PRADET. Um outro prospecto da mesma campanha (Labele! Violensia Domestika) tinha como título “Violensia Domestika: você precisa conhecer o processo da polícia ao tribunal”. Este trazia instruções passo a passo para o encaminhamento de um caso, descrevendo o que cada agente da lei podia fazer para ajudar a vítima. Ao final, trazia dicas de outras ações que podiam ser tomadas pela vítima: “Se o agressor for seu marido ou sua esposa: 1. Quando o processo criminal tiver terminado e a sentença proferida, você poderá entrar com um processo civil para reaver prejuízos materiais; 2. Se o seu marido ou esposa continuar lhe causando sofrimento ou ferimentos, isto pode ser uma grande razão para você pedir o divórcio (Art. 19, regulamento Estado Indonésio n.9, ano 1975) 3. No processo de divórcio, a vítima e os filhos têm o direito de receber sustento do marido/esposa (...) e de sair de casa” Embora escrita em tétum e voltada para a população local, uma boa parte deste material tem a clara influência de assessores internacionais. Ainda assim, nada saía com o carimbo do GPI sem a avaliação e aprovação de Micató. O caso do divórcio é interessante e será retomado no próximo capítulo, quando, discutindo a elaboração da legislação de combate à violência doméstica, poderemos ver alguns dos conflitos derivados da forte presença da Igreja nesta discussão e do grande apelo que se faz à manutenção da unidade familiar. De qualquer modo, a combinação dos apelos à unidade familiar e a clara afirmação do direito ao divórcio é bastante expressiva deste fio de navalha em que se achava a estratégia de advocacy de Micató, tão bem sintetizada na frase pendurada sobre a rua Bispo de Medeiros. Não se negava a cultura, mas certamente buscava-se dar ela um outro sentido. Para não complicarmos já a situação, incluindo uma voz – a da Igreja – que será abordada adiante, fiquemos apenas com mais um prospecto, uma peça de propaganda de uma campanha do IRC intitulada “violência contra os direitos da mulher”. 98 Mais do que combater a violência contra a mulher, a campanha buscava divulgar a idéia de que era preciso defender os direitos da mulher. No interior do prospecto liase: “Violência que se faz contra os direitos da mulher. Violência contra a mulher quando não há tratamento para sua saúde. Violência contra os direitos da mulher de participar das decisões da família. Violência contra a mulher quando ela não encontra oportunidades, quando se faz discriminação contra a mulher. É violência se a mulher não encontra oportunidade para participar da vida social, política, econômica e [ter acesso à] escola.” O mais impactante, contudo, era o desenho de capa do prospecto, reproduzido em um grande cartaz. Nele via-se ao fundo a bandeira timorense. Sobre ela, os dizeres “Violência contra os direitos das mulheres”. À frente da bandeira, uma mulher gritava, segurando um papel no qual se lia: “DIREITOS”. De seu tornozelo saía uma corrente presa a uma grande bola de ferro, pintada de preto, semelhante àquelas utilizadas em caricaturas para representar presidiários acorrentados. FIGURA 3: Cartaz do IRC “Violência contra os direitos da mulher” Retirando o folheto e o cartaz de meus arquivos, mais de um ano depois do campo, um detalhe que nunca percebera me chamou a atenção. Também em preto, mas em um tom mais claro, quase imperceptível, podia-se ler na bola a palavra “budaya” 99 (cultura, em indonésio). A mulher que gritava pelos seus direitos estava acorrentada pela “cultura”. Era uma representação claramente em desacordo com a estratégia de Micató, de não opor gender à idéia de uma tradição timorense. O cartaz do IRC comprava a briga com esta tradição, simbolizada pela budaya, seja lá o que ela fosse. Mas, se a instituição queria mesmo opor-se à “cultura”, por que escrever a palavra com a mesma cor da bola, como a querer escondê-la? Quando recuperei o material para análise, o IRC já havia fechado seu escritório em Timor-Leste, e dificilmente eu encontraria quem me explicasse isso. Contudo, conversando sobre minha descoberta recente com Kelly C. Silva, minha companheira de campo, ela levantou a plausível possibilidade de que a palavra tenha sido encoberta de propósito, depois de pronto o material, por determinação de terceiros. Enquanto não puder confirmar esta hipótese, fica apenas como um indício a mais da tensa relação entre gender e cultura na construção da modernidade timorense. De qualquer forma, é um indício que aponta para o valor que cultura tem na estratégia adotada pelo GPI. No fim, não era só a mulher do prospecto que se achava acorrentada à cultura. A estratégia de Micató também dependia de um apelo à cultura para ser fortalecida. Também ela tinha, em um sentido menos literal, a “cultura” em seus calcanhares. *** O discurso do gender está baseado em uma mulher universal, capaz de responder mental, moral e afetivamente da mesma forma à qualquer tipo de agressão. Mais do que isso, capaz de dar o mesmo sentido de agressão a um conjunto de atitudes. O projeto do FNUAP expressa bem este princípio nos seguintes termos: “A violência de gênero claramente não é apenas uma questão de direitos humanos. Ela tem graves efeitos sobre a saúde e os direitos mentais, reprodutivos e sexuais das mulheres. A violência de gênero é, por isso, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, como um tema prioritário de saúde pública.” Este tipo de construção evoca fortemente uma ideologia individualista, construtora de um sujeito abstrato de direitos, tal como elaborada historicamente por Dumont (2000). Um conjunto de eventos – campanhas, consultas, elaboração de legislação, programas de rádio e televisão – vai aos poucos consolidando, especialmente no ambiente urbano de Dili, o princípio expresso acima por meio da expressão 100 “violensia domestika”. Mais do que um novo termo, ele se propõe a ser uma nova moralidade que torna inaceitável o uso da força dentro da família, especialmente contra as mulheres. Evidentemente esta novidade não é absorvida passivamente. Em muitos casos, não é sequer aceita. Manuela Leong, da Fokupers, reconhece que as ONGs muitas vezes são vistas como ameaça à unidade familiar e à cultura timorense. Mesmo para algumas mulheres ligadas à OPMT, o que as ONGs “novas” fazem é “destruir lares”. Uma timorense a quem entrevistei ainda em Lisboa, prima da Secretaria Geral da OPMT, fazia esta mesma crítica à ação das ONGs: “Essas ONGs não respeitam a cultura local. É preciso ir muito devagar com as mudanças. Houve muitos casais que se separaram por causa dessas ONGs. Houve um caso em que o marido foi preso e algemado em frente da mulher e dos filhos, por denúncias de violência doméstica feitas por essas ONGs. Isso é uma humilhação para um timorense. Depois o marido larga da mulher. ‘Agora já não quero mais essa mulher para nada’. E isso é um problema. As mudanças têm que ser feitas devagar”. Esta nova moralidade vai também mudando a forma como as pessoas procuram resolver o que passam a considerar uma disputa – ou um conflito a ser resolvido. Esta nova categoria engloba diferentes atitudes que antes tinham também diferentes estatutos localmente. Para entender as respostas que homens e mulheres de Dili têm dado a estes novos elementos, vamos analisar, no capítulo final da tese, casos de resolução de conflitos em diferentes instâncias formais. Antes disso, porém, é preciso qualificar este campo da normatização dos conflitos, identificando suas estruturas legais e seus atores. Para isso, analisaremos no próximo capítulo o processo de construção da legislação de combate à violência doméstica, e, no capítulo seguinte, o treinamento dos operadores do direito. 101 Capítulo 3 CONSTRUINDO A “VIOLÊNCIA DOMÉSTICA” EM TIMOR-LESTE “Timor-Leste é um país moderno, embora preserve a tradição.” Este capítulo apresenta e analisa a consulta nacional sobre a legislação de combate à violência doméstica. Por meio de uma descrição etnográfica de suas etapas, o texto evidencia os conflitos emergentes entre as diferentes sensibilidades para o uso da força nas relações domésticas, expressas nos diferentes discursos apresentados no capítulo anterior. Em conjunto com as discussões anteriores, este capítulo consolida a idéia de que o processo que se vive em Timor, mais do que de combate à violência doméstica, é o de instituição/invenção deste conceito por meio da construção de uma nova moralidade para a significação do ato de força. Neste sentido, a discussão sobre a criminalização da violência doméstica (central na consulta descrita) é expressiva do debate sobre a factualidade da percepção: até que ponto se trata da agressão a direitos ou não. Um requisito para que o ato de força se torne violência (e por isso visto como passível de punição) é a apropriação simbólica do ato como atitude de violência. Isto é inventar a “violência doméstica”. Aqui a tese faz uma inflexão e os próximos capítulos vão explorar detalhes deste processo no plano da instituição e resolução de conflitos. No capítulo anterior vimos um conjunto de atores se articulando em um campo político que tem como marcador peculiar a defesa dos direitos das mulheres. Embora altamente diferenciado internamente, o campo reconhece o protagonismo do Gabinete para Promoção da Igualdade em várias áreas de atuação, em especial no que se refere à violência doméstica. Esta presença tem se dado de diversos modos, do treinamento de cadetes na academia de polícia em Dili à elaboração de instruções para o procedimento de promotores nos tribunais. Nenhuma destas ações, contudo, tomou mais tempo e envolveu tamanha diversidade de atores sociais quanto o processo de elaboração de uma legislação específica de combate à violência doméstica. O processo de elaboração e discussão de um projeto de lei sobre a violência doméstica teve três momentos principais. Com a composição de um grupo de especialistas, produziu-se um documento-base para discussão. Em um segundo momento organizou-se uma consulta nacional na qual o documento foi discutido localmente em 5 distritos por lideranças tradicionais, organizações de mulheres, autoridades locais, grupos de igreja e policiais. Por fim, o comitê de especialistas voltou a reunir-se, trabalhando sobre as sugestões e produzindo um projeto de lei a ser encaminhado pelo poder Executivo ao Parlamento timorense. A minha chegada em campo, em novembro de 2002, coincidiu com o final da primeira etapa deste processo. Mais precisamente no meu primeiro dia em Dili realizava-se, no Liceu Dr. Francisco Machado, uma oficina para apresentação do documento-base formulado pelo grupo de especialistas. Nos três dias de oficina o grupo de trabalho apresentou as trinta páginas de seu texto e os participantes foram chamados a discutir várias das questões orientadoras do documento. O grupo de especialistas que produzira o texto era formado por pessoas com diferentes experiências relativas à violência doméstica, incluindo juízes timorenses do tribunal de Dili, um advogado de uma ONG local voltada aos direitos humanos e uma advogada indonésia, contratada como consultora legal. Do outro lado da mesa, o público da oficina incluía lideranças do movimento de mulheres de Dili, representantes de ONGs locais e internacionais e representantes da Igreja Católica. Ao final dos três dias o resultado dos grupos de discussão foi apresentado às autoridades do governo. Devemos lembrar que quem promovia a oficina, bem como todo o processo de elaboração da lei, era, oficialmente, o governo de Timor-Leste, por meio de um convênio entre o Gabinete de Promoção da Igualdade (GPI) e o Fundo das Nações Unidas para as Populações (UNFPA). Assim, estavam na mesa a diretora do GPI, Micató, e a então ministra da Justiça, Ana Pessoa. Após a leitura das sugestões vindas dos grupos, Micató fez suas observações finais e passou a palavra para Ana Pessoa. Até então o evento vinha se dando em uma mistura de tétum e indonésio, o que o tornava bastante opaco para mim, recém-chegado ao país. Apenas as falas oficiais recebiam tradução para o inglês, feita por um intérprete da UNMISET. Em um português alto, claro, consideravelmente ríspido e provavelmente compreendido por poucos na sala, Pessoa criticou o fato de as sugestões dos participantes responsabilizarem excessivamente o governo pela execução de políticas de prevenção à 103 violência. Dizia ela, citando a expressão em tétum recorrente no texto das sugestões: “Fala-se que o governu tengki, governu tengki, governu tengki (o governo deve). E a sociedade, não tengki nada?” De fato as sugestões eram muitas e alguns participantes queixavam-se que o documento somente lhes havia sido apresentado naquele momento, não tendo havido tempo suficiente para reflexão e discussão com outros grupos. Começava assim uma pressão para que a proposta de projeto de lei fosse mais intensamente discutida, e não apenas em Dili, mas nos Distritos, onde certamente haveria maior necessidade de sensibilização para o tema. Naquela época uma consultora portuguesa a serviço do FNUAP estava encarregada de executar o convênio em parceria com o GPI. Diante das reclamações postas no seminário, ela ficou encarregada de preparar uma consulta mais abrangente para discussão do documento-base. Em março de 2003 ainda estava lidando com esta tarefa. Ao que lhe parecia, isto deveria ser feito do modo mais simples possível e sem implicar enormes gastos. Por outro lado, a consulta deveria se dar de modo confiável e preferencialmente com algum respaldo institucional. Foram feitos contatos com uma ONG internacional, mas esta propunha um processo que duraria três meses e com despesas consideradas excessivamente elevadas. Havia também pouca clareza sobre o caráter da consulta, se de fato consultivo ou antes um processo de sensibilização local para a lei. Após mais alguma negociação, a proposta foi reformulada e um contrato fechado entre o FNUAP e a Oxfam australiana (Oxfam Community Aid Abroad – OCAA). A ONG estaria responsável por promover uma consulta a nível nacional sobre o documento de orientação do projeto de lei contra a violência doméstica. O contrato com a OCAA estipulava que a consulta deveria ser feita em cinco distritos do país50 durante dois meses, enfocando três tópicos centrais: a) proteção, mediação e justiça tradicional; b) serviços multi-setoriais de apoio à vítima; e c) suporte econômico para o sustento da vítima durante e depois do processo. Tais tópicos deveriam ser discutidos por meio de grupos focais que envolvessem pessoas com alguma relevância nas aldeias e alguma experiência com casos de violência doméstica: chefes de aldeia e de suco, operadores da justiça local (lia na’in), integrantes de 50 Timor-Leste possui 13 Distritos administrativos. Os cinco selecionados o foram com base em um critério geográfico, de modo a representar diferentes regiões do país: Baucau (leste), Ainaro (sul), Maliana (oeste), Oecussi (o enclave no lado indonésio da ilha) e Dili (o norte, além de ser a capital). Curioso notar a ausência de Los Palos (ponta leste). Micató considerava imprescindível incluir o distrito, mas as restrições de tempo e recursos inviabilizaram a realização da consulta naquele local. 104 organizações de mulheres, policiais, padres e freiras, enfermeiros e parteiras, etc. De modo a discutir os resultados e guiar o processo, um comitê de orientação (steering committee) foi criado, com representantes da OCAA, do grupo de trabalho legal que esboçara o projeto de lei, da Polícia Nacional de Timor-Leste e de organizações de mulheres. Para implementar o processo, a vice-gerente de programa (deputy program manager) da OCAA em Timor-Leste, Inga Mepham, uma australiana que vivera muitos anos na Indonésia, tinha em mente contratar uma consultora. Ela já conhecia, inclusive, uma ativista indonésia de Lombok (pequena ilha a sudeste de Bali) com alguma experiência em treinamentos e técnicas participativas em programas de saúde comunitária. Zubaedah Sjhrizal, ou simplesmente Zubi, foi então contratada como gerente do projeto (project manager) para a consulta. Ela seria a pessoa que conduziria o processo nos distritos, mas não seria a única consultora envolvida. Michelle Burgermeister, uma assistente social australiana com larga experiência em atendimento a casos de violência doméstica, também foi contratada como consultora técnica (technical advisor) e treinadora. Pode-se dizer que dividiram conhecimentos altamente especializados. De um lado, uma profissional com vários anos de experiência nos assim chamados “métodos participativos” assegurava a eficácia da consulta. De outro, uma especialista no tema da violência doméstica proveria as informações adequadas para que os facilitadores compreendessem os dilemas do projeto de lei. Em outras palavras, um formato participativo deveria estar metodologicamente assegurado, enquanto um conhecimento tecnicamente apropriado guiaria o conteúdo do processo. No meio desta partilha multinacional de responsabilidades estava o staff timorense da OCAA, que deveria atuar como facilitador das discussões em grupos focais nos distritos. A descrição deste processo é especialmente interessante para ao menos três propósitos. Primeiro, envolve a questão das nacionalidades, que é crucial para compreensão das disputas políticas em curso na construção de um projeto de modernização timorense. Neste capítulo poderemos ver um consultora australiana, contratada por uma ONG australiana, discutindo os sentidos e significados de justiça e violência com um staff timorense e com uma consultora indonésia, a qual conduzirá um processo de consulta entre líderes locais e tradicionais no interior do país e cujos resultados serão entregues a uma assessora portuguesa, contratada por uma agência das Nações Unidas para atuar dentro de um departamento do governo timorense que contratará uma advogada indonésia para, em conjunto com ativistas timorenses, 105 elaborar uma legislação moderna seguindo padrões internacionais de respeito aos direitos humanos. Portugal, Austrália e Indonésia, as principais influências culturais e políticas em volta de Timor-Leste neste momento, estão aqui encarnados em profissionais específicos e isto pode nos ajudar a compreender nuances importantes entre diferentes sensibilidades para o trato da questão da justiça e da violência. Ainda neste sentido, a descrição do processo de consulta pode ter muito a dizer se tivermos em mente a discussão proposta por Silva (2004) acerca da importância das nacionalidades no contexto da reconstrução timorense, em especial os conflitos entre portugueses e australianos pelo controle de posições hegemônicas no projeto de Estado em construção no país. Em segundo lugar, esta é uma ótima oportunidade para encontrar, lado a lado, diferentes sentidos e percepções do uso da força nas relações interpessoais em TimorLeste. Durante as discussões dos grupos focais, é impressionante a variedade de sentidos com que são revestidos conceitos como “direitos humanos”, “direitos das mulheres”, “crime”, etc. Os mal-entendidos entre os atores deste processo ilustram sobremaneira as diferentes sensibilidades para o tema da violência doméstica. Por fim, o processo de produção do projeto de lei permite-nos compreender como estes choques de sensibilidade são resolvidos na perspectiva da construção de políticas públicas e da invenção de novas moralidades. A sua descrição fornece bons elementos sobre os jogos políticos que opõem não só diferentes formas de ver a violência, mas diferentes projetos para a nação. O ensaio geral A consulta propriamente dita foi precedida de duas semanas de trabalho interno no escritório da Oxfam em Dili. Era necessário estruturar uma grande operação logística para levar a equipe da consulta aos cinco distritos. Além disso, era preciso planejar em detalhes como seriam abordados os três temas da consulta (proteção, mediação e justiça tradicional; serviços multi-setoriais; e suporte econômico para a vítima) e treinar os integrantes da equipe para conduzir adequadamente os grupos focais por meio dos quais a consulta seria realizada. Assim, dois dias deste fervilhante período de incubação foram dedicados a uma oficina interna sobre o documento de orientação. O objetivo da oficina, conduzida pela consultora australiana, Michelle, era o de qualificar a equipe de consulta para o planejamento da mesma. A equipe de consulta era formada por parte do staff local da Oxfam, a consultora indonésia, Zubi, e eu, envolvido no processo como 106 observador e voluntário. Durante aqueles dias deveríamos discutir tanto o conteúdo do documento de orientação quanto as estratégias para levantamento de informações e sugestões durante a consulta.51 Antes de iniciar a discussão sobre o documento de orientação, Michelle sugeriu algumas reflexões sobre o sentido da justiça e o propósito da legislação. Um exercício bastante significativo envolvia pensar em alguma experiência pessoal que tivéssemos tido envolvendo o sistema de justiça. Em duplas, devíamos expor um ao outro nossas histórias. Eu estava bem ao lado de Marito, um dos ativistas timorenses que integram a equipe local da ONG, e contei-lhe a experiência que tive quando minha motocicleta fora roubada, dois meses antes. Disse-lhe que havia registrado queixa na delegacia de Dili e que ficara surpreso e muito contente quando a polícia encontrou a moto e prendeu dois suspeitos, uma semana depois da queixa. Sentira que a justiça havia sido feita, o que me causava um grande alívio. Marito, por sua vez, contou-me uma história bem diferente. Alguns meses antes quatro jovens de sua aldeia haviam roubado alguns objetos da igreja local. O padre ficara muito irritado e decidira prestar queixa à polícia. A comunidade, contudo, pedira ao padre para que não envolvesse a polícia, permitindo que a questão fosse arbitrada pelo chefe de aldeia, em consulta aos lia na’in. Pediram, inclusive, a Marito que intercedesse junto ao padre neste sentido, mas o pároco se mostrara irredutível em sua disposição de levar o caso à delegacia. Com o envolvimento da polícia, os quatro jovens foram presos e tiveram de responder a processo no tribunal. A comunidade ressentiu-se com o padre e mesmo Marito acabou por criticá-lo, dizendome que a cadeia não era um lugar adequado para os jovens e que dificilmente poderia ensinar-lhes alguma coisa. De alguma forma, este pequeno desencontro entre nossas experiências com o sistema de justiça parecia prever muitas das situações que eu viria a presenciar durante a consulta. O exercício proposto por Michelle tentava despertar em nós o sentimento da justiça alcançada; queria fazer-nos perceber a importância que há para uma vítima em ver-se reconhecida e desagravada socialmente. Com isso, esperava-se que compreendêssemos melhor a importância de uma legislação para fazer justiça às vítimas de violência doméstica. Seu intuito, até onde pude perceber, era fazer-nos pensar sobre a 51 O programa da oficina incluía: 1. Justiça e violência doméstica; 2. Porque o documento de orientação é importante (seus objetivos); 3. Compreender os propósitos do documento de orientação para as três áreas da consulta (o papel da polícia e opções de justiça, serviços de base comunitária, segurança económica das vítimas); 4. Áreas que demandem mais investigação na consulta. Michelle não falava outro idioma além do inglês. Assim, a oficina foi conduzida em inglês, cabendo à Inga Mepham fazer a tradução simultânea em indonésio para o staff local da Oxfam. 107 necessidade de que vítimas de violência doméstica tivessem acesso ao sistema de justiça como forma de ver realizado o reconhecimento social de sua dor e o necessário desagravo ao insulto por que haveriam passado. De fato, isso funcionou muito bem comigo. Eu realmente me sentira insultado pelo roubo de minha moto, e ficara plenamente satisfeito com o desfecho do caso. Talvez o exercício também tivesse funcionado bem com o padre da igreja de Becora, mas certamente não foi assim que as coisas se passaram na cabeça de Marito e daqueles que o procuraram para interceder em favor de uma adjudicação local. Para estes, uma decisão justa não necessariamente precisava passar pelo “sistema de justiça”. Como Marito era um jovem que tivera acesso à educação superior, era engajado no movimento local pelos direitos humanos e trabalhava em uma ONG internacional, poderíamos mesmo supor que suas idéias sobre a inadequação da prisão como medida educativa refletissem as atuais tendências do direito penal a rever a eficácia de penas privativas de liberdade. Mas isso dificilmente seria o caso do restante da comunidade de sua aldeia que criticara o padre por ter acionado a polícia. Parece-me razoável entender a reação daquelas pessoas como uma expressão da idéia, relativamente generalizada, de que a comunidade tem bons mecanismos para a resolução de seus conflitos internos. Neste sentido, o envolvimento da polícia e do tribunal era por si só percebido como injusto – “os jovens não mereciam isso”, conforme o relato de Marito. Talvez estivéssemos aqui diante de um caso em que, por diferentes razões e com sentidos ligeiramente diferentes, tendências atuais do campo jurídico ocidental e leituras de aldeãos timorenses convergissem na crítica à privação de liberdade como forma de equacionar conflitos. De qualquer forma, da perspectiva de Marito e de seus vizinhos, um outro senso de justiça emergia neste caso, para o qual um desfecho justo – ou equânime – não implicava necessariamente o reconhecimento de um caso pelas estruturas do Estado ou pelos agentes de sua lei, como postulava Michelle. A questão da percepção da justiça, ou melhor dito, da eqüidade na resolução de um conflito começa aqui a se mostrar presente nas discussões sobre as formas de resolução de disputas em Timor-Leste. Esta é uma dimensão fundamental para a compreensão adequada de processos de resolução de disputas em qualquer sociedade, embora ela tenha recebido historicamente pouca atenção da chamada antropologia do direito. Se por um lado qualquer instituição que vise a resolução de disputas pressupõe que o faz de modo justo, a questão de como as partes envolvidas percebem o processo e o resultado como equânimes é algo a ser estudado. Geertz, em seu artigo sobre o saber 108 local (1983), é um dos primeiros autores a analisar criticamente esta questão, comparando o modo como diferentes sistemas de justiça se orientam para uma decisão justa – o que ele define por “senso de justiça”. Ainda assim, ele não explora em detalhes a dimensão das percepções da justiça pelos sujeitos que a ela recorrem. Esta questão é levada adiante nos trabalhos de L. Cardoso de Oliveira (1989, 2002 e 2004), na direção de se compreender a construção de um sentido de eqüidade (fairness) a partir da perspectiva dos atores envolvidos nas disputas. O caso de Marito e seus vizinhos é apenas mais um dos que poderemos analisar a partir desta perspectiva ao longo do texto. Na sequência, fomos convidados a pensar sobre o documento de orientação e sua estrutura. A preocupação maior de Michelle era com os objetivos do texto. Ela nos disse que discutiríamos as partes do texto sem perder de vista seu propósito, aquilo que o documento busca alcançar. De acordo com sua análise, diferentes propósitos podiam ser identificados no texto. Isto ficará mais claro na medida em que observarmos o documento com mais atenção. A Partitura O “Documento de Orientação para a Legislação Contra a Violência Doméstica” traz, em cerca de 60 páginas (57 na versão em português, 67 no original, em indonésio, 60, em tétum e 47 em inglês) divididas em uma introdução e 4 capítulos, a segunda versão do texto originalmente escrito pelo grupo de especialistas, já incorporando as sugestões apresentadas no seminário de novembro de 2002. A introdução do texto, além de cumprir a função protocolar de resumir a estrutura dos capítulos e suas mensagens centrais, faz questão de afirmar, recorrentemente, o caráter participativo do processo do qual o documento é resultado. Sintetizando uma idéia que voltará ao texto constantemente e sob outra palavras, a introdução afirma “que a redação final do documento representa o interesse público, especialmente dos sobreviventes da violência doméstica” (GPI; 2003a:3). A fonte de legitimidade do texto (e das políticas que enuncia) é, assim, desde a introdução, alicerçada na expressão de interesses e vontades gerais, supostamente consensuais.52 52 Uma análise das diferenças de sentido encontradas nas versões do texto (português, tétum, inglês e indonésio) certamente renderia muito para a análise das diferentes sensibilidades jurídicas em jogo. Infelizmente não estou habilitado a tanto, em função de meu domínio do indonésio (o idioma em que o texto fora originalmente escrito) ser proibitivo para uma tal tarefa. Alguns pontos, porém, chamaram-me a atenção, e pude, com alguma restrição, observá-los melhor. Na passagem citada, por exemplo, a 109 O primeiro capítulo do texto é dedicado à caracterização de um cenário geral da violência doméstica em Timor-Leste. Na primeira de suas seções, o capítulo reconhece a importância da “unidade da família” para a sociedade timorense, sugerindo a preservação da unidade familiar como caminho para legitimar o combate à violência doméstica. Em uma redação que sugere, de forma ambígua, tanto um compromisso sincero com a unidade familiar como valor quanto uma abordagem estratégica deste valor para a legitimação do combate à violência doméstica, a ênfase do texto recai sobre a idéia de unidade e harmonia familiar. Segundo o documento, a unidade familiar é um valor secular, tanto para a tradição local das aldeias quanto para a religião católica, pelo que o combate à violência doméstica deve postular, antes de tudo, a necessidade de preservação da harmonia familiar, ameaçada por este tipo de violência. Trata-se, logo, de preservar valores. Não de mudá-los. Muito menos de destrui-los.53 Mais abaixo, porém, uma outra atitude face aos valores tradicionais é evocada. Após caracterizar a incidência de casos de violência doméstica no país e sintetizar três aspectos que serão enfocados no documento (problemas no enfrentamento da violência concernentes a: 1. agentes da lei, 2. substância legal e 3. cultura), o texto evoca a necessidade de mudar atitudes escoradas na tradição local como condição para se ter uma lei eficaz: expressão “interesse público” corresponde, em tétum e indonésio, ao que literalmente seria traduzido por “interesse de todo o público” (“interese husi publik tomak”, em tétum, e “kepentingan seluruh publik” em indonésio). Esta sutil diferença tem implicações na análise que poderia ser feita acerca da percepção de quem redigiu o texto sobre o espaço de interlocução e disputa política dos sentidos sobre a violência doméstica. “Interesse público” pode, em português, ser tomado como um conceito que expressa um consenso produzido no espaço público que, ao transcender uma somatória de interesses particulares presentes neste espaço, institui novos valores na esfera pública (HABERMAS, 1992). O mesmo não se pode dizer com tanta certeza para o sentido de “interesse de todo o público”, onde “público” passa de adjetivo a substantivo. Nestes temos, a idéia parece apenas descrever um interesse específico compartilhado pelo público. 53 Vemo-nos novamente diante das armadilhas de sentido armadas pelas traduções. A versão em tétum (sempre mais fiel ao original, em indonésio), apresenta aqui uma redação em que o compromisso com a unidade familiar se apresenta mais evidente. Na versão portuguesa, contudo, o sentido estratégico pode ser percebido nas entrelinhas com mais clareza. O texto em português diz: “Indubitavelmente, a unidade da família é um valor essencial para a sociedade timorense, valor promovido em todos os tempos pelos chefes tradicionais, chefes da comunidade e lideres religiosos. Neste contexto, o conceito de unidade familiar deverá constituir uma preocupação essencial ao abordarmos o assunto da violência doméstica. Por outras palavras, todo e qualquer esforço no sentido da eliminação da violência doméstica deverá ser empreendido tendo em vista a conservação da unidade familiar.” A tradução literal do tétum, contudo, é: “A unidade e a harmonia da família, para o povo de Timor-Leste não é um conceito novo e durante muito tempo recebeu apoio da religião (e seus líderes) e da tradição local (e seus líderes) que se esforçaram muito para manter a unidade e a harmonia no interior da família. Este conceito de unidade e harmonia da família pode ser a base para avançar e dar maior atenção ao problema e aos casos de violência doméstica. Assim, segundo o contexto da tradição do povo timorense, qualquer esforço para acabar com a violência doméstica é igual a um esforço para manter a unidade na família”. 110 “O último problema a relevar em relação ao contexto legal prende-se com a resistência cultural subjacente à imposição da lei no que se refere à violência doméstica. Trata-se, com efeito, de uma questão de mentalidade e modos de pensar da população em geral que deve ser seriamente considerado (sic) pelo Governo tendo em atenção que é sobre ele que recai o mandato de promoção dos direitos humanos em Timor-Leste.” (Ibid.:9) Ora algo em que se escorar, ora obstáculo a ser superado por um governo sobre cujos ombros se deposita a tarefa de modernizar o país, a “mentalidade e modos de pensar da população” oscila no texto entre representações mais ou menos positivas, conforme mostrem-se mais ou menos compatíveis com os propósitos por trás da criminalização da violência doméstica – ou, ainda, conforme se aproximem ou não de um modelo católico de unidade familiar. A seção seguinte trata de apresentar fatos sobre a violência doméstica em TimorLeste. O primeiro item se refere ao impacto da violência sobre a família, o indivíduo e o Estado. Vemos aqui uma curiosa composição de valores ora mais próximos a uma ideologia holista, ora individualista (Dumont, 2000). Fiel ao propósito de fazer do combate à violência doméstica uma defesa da unidade familiar, o texto afirma que este tipo de violência “provoca divisões na família, causando danos irreparáveis não apenas nas vítimas, mas também nos restantes membros da célula familiar. As vítimas acabam por abandonar o lar, as crianças ficam deprimidas e frustradas, os demais membros e os serviçais vivem em constante preocupação e cuidado.” (Ibid.:10). A leitura do impacto sobre a família parece partir da percepção de que em Timor-Leste a família implica um conjunto de relações que está para muito além da díade marido-mulher e seus filhos. Na seqüência, contudo, ao apresentar o impacto sobre o indivíduo, o texto pressupõe uma subjetividade que reagirá sempre da mesma maneira frente ao uso da força. Isto fica particularmente evidente no item “impacto sobre a saúde mental”, em que o documento afirma que as “vítimas de violência doméstica (…) desenvolvem traumas psicológicos”, “deixam igualmente de ser produtivas no que toca a trabalho” e “sentem-se deprimidas, impotentes e incapazes de lutar contra o trauma” (Ibid.:11). O uso de estatísticas e a referência a pesquisas feitas em outros países reforçam a idéia individualista dos impactos do uso da força sobre uma subjetividade universal. Esta incursão em uma percepção fortemente individualista da construção do self, expressa de modo mais evidente na dimensão do trauma psicológico, é seguida pela sua versão aplicada ao Estado – o impacto da violência doméstica sobre o Estado se dá pelo aumento de custos com tratamentos, e perda de receita decorrente da baixa de 111 produtividade econômica das mulheres vitimadas. Assim, se na dimensão familiar encontram-se argumentos ancorados em princípios que podemos tomar como holistas (a importância da preservação da unidade e harmonia familiar), para além dela é uma leitura individualista do mundo que orienta a problematização da violência doméstica. Da leitura do texto fica-se com a impressão de que para além dos limites da vida da aldeia (e somente para além deles) existe um indivíduo. Nos limites da vida familiar, a vontade individual deve ser dominada e subordinada à manutenção da harmonia e da unidade familiar. Além dos limites da família, porém, são os valores e as práticas, a “mentalidade e modos de pensar da população”, que devem ser domados em favor dos direitos do indivíduo, ou melhor, dos padrões internacionais de direitos humanos que cabe ao governo timorense “promover”.54 A seção continua, apresentando casos e dados específicos sobre a violência doméstica no país e trata, na seqüência, de descrever o que considera causas profundas deste fenômeno. É neste trecho que o texto mais antagoniza com supostos valores e atitudes tradicionais. O interessante é que não é exatamente com as instituições tradicionais que o texto antagoniza, mas com o que considera desvios no uso destas instituições. O caso do barlaque (a riqueza da noiva) é bastante expressivo disto. Diz o texto: “O dote (sic) é o processo através do qual o homem dá bens materiais à família da mulher que quer receber como noiva. (…) O processo é comparável a uma transacção comercial, em que o homem compra a mulher. De acordo com a informação de inúmeras pessoas entrevistadas, a prática do dote existente actualmente perdeu de vista o seu propósito e objectivo original. O seu significado inicial era o da união de duas famílias através dos laços do matrimónio e a apreciação e simbolismo pela mulher, que se tornava a dona da casa e mãe dos filhos do casal. Contudo, actualmente o dote não é mais do que um processo de ‘compra’ das mulheres (noivas), sendo que assim que este é pago as mulheres tornam-se propriedade dos homens (maridos) e das suas famílias.” (Ibid.:16) Este caso revela uma equação curiosa. Não é a instituição ancestral que é criticada, mas um suposto significado contemporâneo que lhe é dado. Cria-se assim a 54 Curiosamente esta é a mesma separação da vida social em esferas de domínio dos valores individuais e coletivos que foi evocada por vários chefes locais nos grupos focais de que participei no distrito de Covalima (cf. Capítulo 2). Quando confrontados com o fato de a justiça tradicional não permitir a participação de mulheres enquanto que no Tribunal de Dili havia inclusive juízas, todos respondiam que isso não era contradição alguma, afinal a justiça tradicional operava no plano comunitário, onde deviam ser seguidas as tradições ancestrais, enquanto que o Tribunal e o Parlamento eram instituições do Estado, que, como em toda democracia, deviam tratar homens e mulheres com absoluta igualdade. 112 fórmula pela qual pode-se respeitar a instituição ancestral ao mesmo tempo em que se a acusa de fomentar a violência doméstica. A mesma ambigüidade é usada para criticar a maneira como as formas tradicionais de justiça são usadas em muitos lugares. Outros fatores da “cultura e tradição”, porém, não recebem um tratamento tão complacente, e acabam duramente criticadas pelo documento – adultério e poligamia; álcool e briga de galos; intolerância para com a infertilidade da mulher; intervenção da família no casamento; o uso da violência para a educação das crianças e os castigos corporais como instrumento de educação.55 Em todos estes casos, as atitudes qualificadas como da “cultura e tradição” são apresentadas como obstáculos a serem necessariamente superados, em um tom que evoca, por vezes, uma perspectiva evolucionista. Citando a crença generalizada de que as brigas domésticas não são assunto para intervenção pública, o texto afirma que: “tanto o público em geral como os próprios agentes da lei têm extrema relutância em responder e lidar com o caso [de violência doméstica]. O mesmo acontece com os líderes tradicionais que não compreendem ainda que o problema da violência doméstica deveria ser abordado de forma completamente diferente” (Ibid.:19. Grifo meu). A última seção do capítulo trata do enquadramento legal que hoje pode ser utilizado em Timor-Leste para regular o tratamento jurídico de casos de violência doméstica – basicamente uma série de artigos dos códigos penal e civil indonésios, algumas normas da UNTAET e leis avulsas indonésias. O texto analisa artigo por artigo aplicável aos casos de violência doméstica, tratando de mostrar suas inadequações ao atendimento pleno do que se considera o respeito aos direitos das vítimas segundo padrões internacionais de direitos humanos. Aqui, uma das grandes questões se refere ao fato de que, embora vários artigos do Código Penal indonésio possam amparar operadores do direito para enquadrar casos de violência doméstica, tais artigos só cobrem “o tipo de violência doméstica passível de causar danos físicos na vítima” (Ibid.:24), não se aplicando à violência que “produza impacto psíquico, sexual e econômico” (Ibid.:25). O documento compartilha, assim, uma leitura bastante ampliada do que possa ser considerado como violência. O choque 55 Cabe notar ainda uma crítica cheia de dedos que o texto faz à complacência da religião católica para com maridos agressores, bem como o registro de uma suposta cultura da violência herdada do tempo indonésio e da experiência colonial portuguesa. É interessante que esta idéia de cultura da violência não esteja posta nos termos de uma identidade comum a outros grupos do sudeste asiático, mas faça referência à história política recente da ilha. 113 com a leitura restritiva do código indonésio fica ainda mais evidente em momentos como a crítica feita ao artigo sobre maus-tratos, em que o texto censura o fato de que: “a tentativa de cometer maus tratos não é sentenciada. Este é um problema muito grave, uma vez que é sabido que as meras tentativas deixam traumas sérios nas vítimas de violência” (Ibid.:27). Estamos novamente diante de um desenraizamento da pessoa do contexto cultural por meio do qual ela dá sentido às suas experiências – seja de uso de força, seja de sua iminência (tentativa de cometer maus-tratos). O indivíduo “vítima de violência” aparece, assim, como portador de uma subjetividade universal que traz, inscrito em si, o sentido opressivo e traumático das experiências relativas ao uso da força. Mais do que a unidade psíquica da espécie, esta vítima-ideal (ou hiper-real) postula uma unidade cognitiva e afetiva, espelhada em uma sensibilidade para a violência construída em tempo recente e em um contexto histórico específico.56 Por outro lado, e da perspectiva das formas institucionais disponíveis para resolução de conflitos, é interessante notar que a dimensão factual do uso da força física e suas consequências visíveis (para a vítima hiper-real) é mais facilmente reconhecida pela linguagem jurídica. Assim, por mais que as pessoas dêem significados diferentes para uma agressão, um hematoma será sempre um hematoma e dará ao operador do direito condições de amparar-se facilmente nos artigos citados do código indonésio.57 No que se refere ao processo penal, o texto critica a ausência de procedimentospadrão e a possibilidade da vítima retirar a queixa antes de o caso ir a julgamento. O documento aborda ainda a mediação realizada nas delegacias de polícia e por ONGs, criticando-as por não terem fundamento legal e por exporem as vítimas à pressão da família do agressor. Depois de tecer alguns comentários sobre os limites dos agentes da lei (falta de formação específica, de iniciativa, de unidades de apoio e de agentes), o texto aborda o papel da justiça tradicional. O documento reconhece que “a justiça tradicional em Timor 56 A ênfase na idéia de que a vivência de experiências de uso da força (ou de sua iminência) gera traumas sérios, postula não apenas que as pessoas reajam da mesma maneira frente à força (uma unidade psíquica), mas sugere um conteúdo comum para esta reação (a traumatização). É a este conteúdo que vou me referir mais adiante como expressão de uma modernidade ocidental para o significação da violência de gênero. 57 É curioso notar que o documento não critica a ausência, no código indonésio, de medidas educativas para o agressor ou alternativas à pena restritiva de liberdade. Caberia uma comparação interessante com o caso brasileiro, em que o campo dos discursos de combate à violência doméstica, mesmo no âmbito de organizações feministas, enfatizam tanto a repressão quanto a educação e a reeducação. Esta dimensão, no caso timorense, é obliterada pela ênfase na criminalização da violência doméstica e no tratamento do agressor como um criminoso comum. Ver material de divulgação das campanhas e discussão nos grupos focais, mais abaixo. 114 tem um papel muito importante”, especialmente por ser a única forma instituída para resolver casos em lugares distantes dos tribunais. O reconhecimento desta importância, contudo, parece antes factual do que normativo, pois o texto não deixa de criticar severamente as formas locais de justiça. Basicamente são três os problemas levantados: 1. “o sistema de resolução de casos não está de acordo com os valores e padrões de direitos humanos”, o que se relaciona diretamente com o fato de a mulher não ser ouvida nas audiências; 2. “a população a nível local ainda não compreende nem diferencia os casos de crime e casos civis que podem ser lidados através da justiça tradicional”; e 3. os operadores desta forma de justiça nem sempre são imparciais, pois “são muitas vezes parentes de uma das partes, razão pela qual não podem decidir objetivamente em relação ao caso”. (Ibid.:39). A primeira das objeções é especialmente expressiva do jogo de vai-e-vem entre valores holistas e individualistas que se vê em outras partes do texto. Se, como o documento apontou anteriormente, a família é uma instituição central em Timor-Leste (cuja unidade deve ser inspiradora inclusive da legislação de combate à violência doméstica), que surpresa (ou demérito) pode haver no fato de a justiça tradicional operar como um mecanismo de resolução de conflitos entre famílias, e não entre indivíduos? – motivo pelo qual é a família da mulher que é ouvida, e não a mulher. Dito de outra forma, a centralidade da família tem como corolário que a mulher seja representada, perante a justiça local, por sua família de origem. Neste ponto o documento, embora aceite a centralidade da família, nega-a como porta-voz da vontade individual. O segundo capítulo, bem mais breve que o primeiro, é na realidade um manifesto de quatro páginas no qual se enunciam princípios orientadores para a redação da futura lei. Justamente por isso, é onde se explicitam de modo mais sistemático os conflitos de interesses e de discursos diluídos ao longo do documento. É assim que são enunciados, com um mesmo nível de centralidade, princípios como “liberdade face à injustiça”, “liberdade face à discriminação”, “proteção dos direitos humanos fundamentais”, “reconhecimento do valor da luta nacional” e “reconhecimento do valor da unidade familiar”. Ao lado dos direitos humanos, temos novamente a preservação da unidade familiar. Neste capítulo, porém, a família como valor parece ganhar atenção especial. Além de ser elencada na seção “visão filosófica”, a defesa da família é o tema de uma seção inteira, intitulada “visão sociológica”. Diz o texto: 115 “A família é a unidade mais pequena da sociedade com a função de proteger e confortar os membros que lhe pertencem (…). Por outro lado, é obrigação do Estado proteger a família como célula base da sociedade, tal como consagrado no artigo 39 da Constituição da RDTL. (…) Frequentemente a violência doméstica acontece dentro da célula familiar, entre marido e mulher, pais e filhos ou demais membros. Todo o tipo de impacto da violência doméstica na família causa danos irreparáveis nas crianças, pelo que a unidade da família como a célula mais pequena e frágil da comunidade, deverá ser considerada como princípio basilar da futura legislação” (Ibid.:41). Ao analisar o impacto da violência doméstica tomando a família como referência para os efeitos socialmente desagregadores deste fenômeno, o fator negativador deste tipo de atitude oscila ambiguamente entre a violência sobre indivíduos (especialmente as crianças) e a desestruturação de uma unidade social. Caminhos diferentes poderiam ter sido escolhidos para negativar a agressão interpessoal dentro de casa. Argumentos comuns em documentos congêneres no Brasil evocam costumeiramente os “direitos das mulheres”, a “dignidade humana” e o “direito a uma vida sem violência”. É curioso notar a ausência destas categorias no documento timorense. O foco a partir do qual o caráter ameaçador do fenômeno é desenhado não é a “mulher” e tampouco a “pessoa humana”, mas a “família”. O documento poderia ainda ter escolhido enfatizar os impactos da violência sobre o “desenvolvimento humano e social”, um tipo de discurso bastante apreciado pelas agências do sistema ONU. Não o faz. A ênfase na unidade familiar é o argumento predominante (e mesmo central neste capítulo) do arrazoado em favor do combate à violência doméstica, e a família, o centro de preocupações da lei. Poderíamos ver nisto a influência da Igreja Católica sobre os integrantes do grupo legal que produziu o documento. Ou a adoção deste discurso pode ter sido apenas uma escolha estratégica do grupo legal para assegurar uma melhor aceitação, pela população e pelos parlamentares, da necessidade de intervir contra a violência doméstica (cf. nota 53). Seja como for, isso indica a centralidade da família na legitimação do processo de combate à violência doméstica no país. Ainda neste segundo capítulo vemos mais uma sucessão curiosa dos diferentes (e por vezes contraditórios) propósitos que o texto abriga. Ao final da exposição de motivos em favor das mudanças, o texto cita a Declaração Universal dos Direitos Humanos como a base legal que legitima uma legislação de combate à violência doméstica. É o momento em que brilha o “indivíduo”, desenraizado das especificidades culturais timorenses. Diz o texto: 116 “É obrigação do Estado e do governo possibilitar a realização dos direitos fundamentais da população nos termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Esta declara que todos gozam do direito à vida, à liberdade, e segurança pessoal. (…) Esta lei fundamental assegura, em particular, a igualdade de mulheres e homens, proteção das crianças, direitos dos idosos e incapacitados, nos termos que se seguem” (Ibid.:42). Alguns parágrafos adiante, porém, surge a seção “visão religiosa”, na qual se restabelece a primazia de valores holistas, com um texto que afirma: “De acordo com a religião católica, Deus criou o ser humano como mulheres e homens. A dignidade do ser humano é interpretada à semelhança da dignidade de Deus, pelo que a negação desta dignidade implicará a negação da dignidade de Deus. Com efeito, a dignidade do homem não é criação da religião, da igreja ou do Estado, mas directamente de Deus. Neste sentido, é imperioso garantir o respeito desta dignidade através do esforço concentrado para a eliminação de todas as formas de violação dos direitos humanos. Por outro lado, de acordo com os ensinamentos da religião, o valore da unidade da família deve ser promovido. A igreja tem-no feito ao longo de séculos e este deverá constituir um pilar essencial da futura lei contra a violência doméstica” (Ibid.:43) Assim, depois de construir a base legal do texto sobre os valores laicos e individualistas proclamados pelas Nações Unidas em sua Declaração Universal, o documento assenta a legitimidade destes valores em um princípio religioso. A violação da declaração dos Direitos Humanos é a violação da dignidade de Deus. A legitimidade dos direitos humanos está, assim, fundada na religião. Esta curiosa mistura de valores aparentemente oriundos de campos bem distintos ressurge com força e centralidade na primeira seção do terceiro capítulo. O capítulo, destinado a apresentar o enquadramento proposto para a legislação (o capítulo político, propriamente dito) inicia pelo anúncio de quatro princípios fundamentais a animar o “espírito da futura legislação”: “1. Igualdade e Justiça de Gênero”, “2. Igualdade no relacionamento social”, “3. Proteção e cumprimento dos direitos fundamentais (direito à vida, à liberdade e segurança pessoal)” e “4. Proteção da unidade familiar como valor basilar para a população timorense”. Se tomássemos os quatro princípios descolados do contexto do documento, o último certamente nos pareceria posto a golpes de marreta, tal a maneira como destoa dos anteriores. A composição, contudo, já vinha sendo anunciada ao longo dos capítulos anteriores, e sua presença entre os princípios basilares já era de se esperar. Isto não impediu, contudo, que leitores de fora, como Michelle, a consultora australiana, estranhassem bastante a curiosa composição. Era esta uma das preocupações de 117 Michelle ao nos chamar a atenção para princípios conflitantes no texto do documento na oficina em que o analisávamos. Antes de discutir os princípios, porém, Michelle preferiu discutir os dois pressupostos do documento: 1) violência doméstica é crime; e 2) a lei deve tratar a violência na esfera doméstica de maneira diferenciada da que trata outras situações de violência. De acordo com sua análise, o documento poderia sugerir dois encaminhamentos a partir destes postulados: reforçar a legislação existente, adicionando medidas específicas para este ou aquele artigo do código penal e civil; ou desenhar uma lei específica. Todo o processo em curso junto ao FNUAP partia da adoção da segunda opção, mas Michelle estava nos pedindo para pensar nas duas alternativas e nos problemas específicos que uma lei específica enfrentaria – coisas como “quem a lei deve incluir (mulheres, crianças, idosos)? Conseguirá atingir seus objetivos? Fará com que a violência doméstica seja vista como mais ou menos importante do que outros crimes? Será levada a sério?”. Uma ditadora com ferramentas participativas Como eu já havia conversado antes com Michelle, conhecia de antemão suas críticas ao documento. Sabia que ela tinha dúvidas sobre a adequação de se elaborar uma lei específica e temia os problemas e armadilhas que isto poderia trazer para o sistema de justiça. Contudo, ela não explicitava estas críticas na oficina. Seguindo um padrão comum na condução de oficinas, ela nos fazia questões, de modo que pudéssemos alcançar as conclusões por nós mesmos. “Eu tenho minhas próprias críticas”, disse ela, “mas quero que vocês pensem por vocês mesmos”. Da natureza desses workshops é fazer parecer que a resposta está no público quando já está dada no planejamento do “facilitador”. É uma tecnologia de reprodução de conhecimento bem diferente de um treinamento, no qual o responsável apresenta direta e objetivamente suas idéias sobre um dado tema, e estas são tomadas, pela platéia, como fator de autoridade. No workshop a autoridade está do lado de cá da linha, na platéia – “eu sou a facilitadora, não a especialista”, dizia Michelle – e por mais que a facilitadora/especialista tenha sua tese, ela sempre a esconderá do público enquanto o guia, semi-inconsciente, por meio de dinâmicas participativas e perguntas instigadoras, para a conclusão já definida por seus modelos paradigmáticos (em função dos quais, aliás, escolheu os métodos). Estes eventos acabam marcados, portanto, por uma relação 118 ambígua com os poderes do moderador e do público. O facilitador é autoridade reconhecida, mas aparelha-se com um conjunto de mediações metodológicas destinadas a fazer diluir seu papel no processo. Por outro lado, é também praxe nesses eventos dizer coisas como “vocês terão muito trabalho neste dia” ou “essas são perguntas difíceis, e darão trabalho para vocês”, como forma de acentuar a autoridade (e respectiva responsabilidade) assentada sobre a platéia, ou melhor, sobre os “participantes”. Essa tensão já havia surgido na oficina da OCAA. Logo no início, ao apresentar a agenda de trabalho, Michelle sugerira que acordássemos algumas regras, entre as quais o respeito aos horários, para evitar atrasos e respeitar o tempo alheio. Em tom de brincadeira, dissera que saberia ser uma “ditadora, mas com ferramentas participativas”. No momento em que começávamos a discutir as opções estratégicas do documento, as ferramentas participativas de Michelle encobriam suas próprias críticas ao texto, e povoavam a sala com perguntas aos participantes. Depois de muitas perguntas e algumas respostas, Marito perguntou a Michelle se o documento não conteria alguns equívocos, e, neste caso, como deveríamos proceder durante a consulta. Este foi o momento em que realmente começamos a discutir o sentido e o caráter da consulta. As críticas ao documento nos levaram a discutir o que deveríamos fazer com ele naquela oficina: compreendê-lo ou criticá-lo? No mesmo sentido, seria a consulta ocasião para sugerir mudanças nos princípios e pressupostos do documento ou apenas para divulgá-lo nos distritos e sensibilizar as lideranças locais para tais princípios? Isto parecia não estar claro para ninguém no grupo e eu mesmo levei algumas semanas para perceber o que de fato se esperava daquela consulta. Esta dúvida ficou ainda mais aguda quando discutimos os quatro princípios apresentados no terceiro capítulo. Na discussão, feita em grupos, Zubi levantou a questão de que, muitas vezes, manter a “unidade familiar” poderia criar situações em que a “igualdade e justiça de gênero” seriam desrespeitadas. O mesmo acontecia com a justificativa para o suporte econômico às vítimas, que, em nome de assegurar o sustento da mulher enquanto o marido estivesse preso, reforçava a idéia de que o homem era o responsável pelo provimento econômico da casa. O grupo concordou, e ficamos sem saber como tratar este tipo de questão na consulta. Devia a consulta apresentar o documento e recolher reações locais para encaminhá-las ao grupo legal na perspectiva de provocar alterações substanciais nas políticas propostas pelo texto? Ou deveríamos apresentar tais políticas como princípios já definidos e apenas perguntar pela melhor 119 forma de implementá-los? Por trás desta dúvida estava em jogo o caráter “participativo” do processo. O dilema parecia replicar em grande escala a estratégia escolhida por Michelle para conduzir o workshop. Assim como ela, que não apresentava suas críticas diretamente mas nos levava a suas conclusões “por nossas próprias pernas”, corríamos o risco de fazer da consulta um espetáculo, palco para que os participantes parecessem atuar por si mesmos, desde que concluíssem pelos princípios previamente definidos pela partitura do grupo legal. Naquele momento tive a impressão de que o governo, como Michelle naquela oficina, sabia já onde queria chegar e estava apenas fazendo às pessoas algumas questões (por meio da consulta) para guiá-las ao destino previsto. Esta questão não foi resolvida na oficina e voltou à tona na semana seguinte, quando a equipe da consulta começou a planejar os detalhes do processo. O primeiro passo foi construir um consenso sobre o que se esperava alcançar com a consulta. Na sequência, algumas questões centrais deveriam ser esclarecidas: o que deveria ser perguntado na consulta e em que língua? Como deveríamos explicar aos participantes os conceitos apresentados no documento de orientação? Como fazer as pessoas pensarem sobre eles? De acordo com Marito, a consulta deveria “fazer as pessoas pensarem” sobre sua realidade (“pencerahan”, em indonésio, literalmente “esclarecer”, “iluminar”). Neste sentido, a consulta seguiria o padrão de oficinas de sensibilização e mobilização comunitária, relativamente comuns nos projetos de desenvolvimento implantados pelas ONGs em Timor-Leste. Na posição de “pesquisador”, eu intencionalmente advogava em favor de uma abordagem diferente, menos normativa e focada no levantamento de reações acerca do documento e de seus princípios. Zubi compartilhava as duas perspectivas, mas reconhecia que “konsultasi” (consulta, em indonésio) não era o mesmo que “sosializasi” (a socialização ou sensibilização). De qualquer forma, esta tensão acabou parcialmente resolvida pela lista de participantes que seriam convidados aos grupos focais. Como eles seriam pessoas com alguma experiência no trato de casos de violência doméstica, esperava-se que tivessem já alguma reflexão prévia sobre o tema e poderiam, assim, dar sugestões úteis para a elaboração final do projeto de lei. Decidiu-se então que a consulta em cada distrito se daria por meio de 4 grupos focais, tematizando 1) justiça tradicional, 2) suporte econômico às vítimas, 3) serviços multissetoriais e 4) o papel da polícia e do tribunal. O idioma a ser adotado, para minha sorte, foi o tétum. Havia a opção de se fazer as discussões em indonésio, o que tornaria 120 tudo bem mais hermético para mim. O curioso é que Zubi, a consultora indonésia, não falava tétum. Isso aumentava o meu grau de envolvimento no processo, pois passei a ser requerido para a moderação de um dos grupos focais. Ao mesmo tempo em que se finalizavam os ensaios para a consulta, uma integrante do staff local da Oxfam se dirigia a Baucau, primeiro dos distritos a serem visitados, para preparar o terreno. Era necessário convidar as lideranças locais, arranjar local apropriado para o evento e para alojar a equipe, um ritual que se repetiria em todos os distritos a serem visitados. Com tudo pronto, fomos a campo. Primeiro movimento: Baucau e a justiça tradicional As cidades de Baucau, com 25 mil habitantes, e Dili, com 200 mil, são, possivelmente, os dois únicos centros urbanos de Timor-Leste. As demais capitais de distrito são antes pequenos povoamentos em torno de uma igreja, do edifício da administração local e, nos locais em que não foi queimada em 1999, de uma escola. Fora de Dili, apenas em Baucau pode-se encontrar uma agência bancária (a sucursal do banco português Caixa Geral de Depósitos, em Timor-Leste ainda chamada Banco Nacional Ultramarino). É em Baucau também que está o único escritório fora de Dili de um dos dois únicos diários do país à época: o Timor Post. Enquanto Dili e Baucau possuem um hospital cada, os outros distritos dispõem apenas de pequenas clínicas (excluídos, naturalmente, os hospitais de campanha montados pelas missões das Nações Unidas). Baucau chega a ter mesmo uma emissora de televisão independente, apoiada por uma ONG. A estação oficial de TV no país, a TVTL, transmite apenas para Dili. Em termos de fornecimento de energia elétrica, Baucau gozava à época de uma posição bastante privilegiada, com fornecimento de 6 horas diárias de eletricidade. Nas demais capitais de distrito, à exceção de Dili, costumava-se ter 6 horas de eletricidade em dias alternados, três vezes por semana. Baucau também era, ao lado de Dili, uma das duas Dioceses que o Vaticano estabelecera em Timor Timur. A presença da Igreja Católica é ainda hoje bastante forte e evidente no Distrito. A Igreja possui várias propriedades na cidade, incluindo um seminário, uma pousada e um grande edifício para retiros espirituais, no qual, inclusive, a consulta foi realizada. 121 Durante o período colonial português, Baucau fora um Distrito relativamente próspero. Cresceu consideravelmente na década de 1930, quando o administrador português do distrito iniciou um conjunto de obras públicas, como as do Mercado Central e as de várias escolas pelo interior do distrito. É também em Baucau que está o maior aeroporto de Timor-Leste, embora somente seja utilizado para transporte de cargas e de tropas militares. Embora se possa descrever a cidade de Baucau com um espaço urbano, ela não pode ser comparada a Dili no que se refere à presença internacional. Baucau não tinha, à época, mais que quatro restaurantes e dois hotéis. A presença da comunidade de expatriados se restringia, ali, ao aquartelamento português das tropas de manutenção de paz da ONU e a uns poucos funcionários da UNMISET em posições de suporte à administração do distrito. Os habitantes do Distrito de Baucau são majoritariamente do grupo étnico Makassae. Na divisão étnica mais geral do país, os Makassae são vistos como “povo do leste”, usualmente chamados de “firaku” e retratados como de temperamento forte e guerreiro.58 Geograficamente os Makassae estiveram sempre em uma posição intermediária, cercados pelos Fataluko, da ponta leste da ilha, e os Mambai, da região central. Historicamente, estiveram envolvidos em diversas guerras locais por disputas de território com este dois outros povos, o que contribuiu para o estereótipo de agressividade. Dentre os firaku, porém, os Makassae gozam da fama de grandes e perspicazes comerciantes. Tal como a quase totalidade dos grupos étnicos timorenses, são patrilineares, patrilocais e as diferenças de gênero contam muito na participação na esfera pública. Chegamos a Baucau um dia antes da data marcada para a consulta. Instalamonos na casa da Diocese. Zubi e Ana, uma das funcionárias locais da Oxfam, foram ao encontro das autoridades locais de modo a confirmar o convite feito anteriormente. Conosco veio também Idelta, uma representante do GPI, enviada por Micató para 58 Este termo é do tempo português, mas ainda costumeiramente usado. A segunda vez em que estive em Baucau, fui acompanhado de um grupo de jovens que passou quase toda a viagem de Dili a Baucau fazendo gracejos sobre casamento e sexo entre jovens firaku (do leste) e kaladi (do oeste). Eram jovens da chamada geração tim-tim – a geração crescida sob o domínio indonésio. Para alguns, firaku seria uma corruptela de “vira cu”. Quando solicitados pelos portugueses a fazer algo, estes timorenses simplesmente davam-lhes as costas e iam embora. Dizia-se que os do oeste tinham uma reação diversa. Se não concordavam com o que lhes era pedido, simplesmente permaneciam calados, de onde viria a expressão kaladi. 122 acompanhar o processo. À noite, depois do jantar, Zubi chamou-nos para uma reunião de equipe no corredor do prédio. Gastamos uma hora revisando os roteiros para os grupos focais e dividindo responsabilidades. Ao final, Zubi nos disse que, a pedido da gerente de programa da Oxfam, devíamos incluir em cada grupo focal uma pergunta: um plano de ação para os próximos 6 meses para implementação das sugestões que viessem a ser dadas. A consulta começava a se assemelhar aqui a uma oficina de planejamento. Neste distrito eu estava responsável por mediar o grupo focal sobre justiça tradicional. Dez pessoas integravam o grupo: três chefes de aldeia, dois lia na’in, duas mulheres da OPMT, uma policial da Unidade de Pessoas Vulneráveis (UPV) da PNTL, um enfermeiro do hospital de Baucau e um integrante de uma organização de juventude católica da Diocese.59 As duas primeiras questões para discussão eram as mesmas para todos os grupos: “1. Quem e o que deve ser abrangido pela definição de violência doméstica? 2. Violência doméstica é crime. Concorda?” Com relação à primeira questão o grupo chegou logo a um consenso, considerando que a violência doméstica incluía qualquer tipo de agressão praticada dentro de casa, não apenas contra mulheres, mas também contra crianças. Quando coloquei a segunda questão, porém, um sentimento geral de inquietação tomou conta do grupo. O representante da juventude católica disse, enfaticamente, que a violência doméstica era um assunto para ser resolvido dentro da família. “Isso tem que ser esclarecido. Crime? Como assim, crime?”, disse. “Hoje em dia tudo é violência doméstica. Isto não está certo! Violência dentro da família deve-se resolver dentro da família. Violência dentro da comunidade, deve-se resolver dentro da comunidade”. Sua postura causou um murmúrio geral no grupo, mas não motivou nenhuma contestação pública. Assim, ele arrematou: “Eu concordo que violência, em geral, é crime. Mas violência doméstica não é crime.”60 59 Os grupos eram compostos por Zubi, a partir das fichas de identificação dos participantes. Os participantes eram encaminhados para cada um dos 4 grupos a partir de um critério de afinidade com o tema. 60 O original, em tétum: “Ida n’e ita tengki klarifika liu tan. Krime? Krime nusá? Ohin loron buat hotuhotu violensia domestika. Problema ki’ik ne’e ita dehan violensia domestika. Ida ne’e labele! Violensia iha família nia laran, ita tengki rejolve iha família nia laran. Violensia iha komunidade nia laran, ita tengki rejolve iha komunidade nia laran. Ha’u konkorda dehan violensia hanesan jeral, ida ne’e krime ida, maibé violensia domestika la’os krime”. 123 Depois de alguns instantes de silêncio, uma das representantes da OPMT tomou a palavra e disse que aceitava que a violência doméstica fosse considerada como crime, desde que a família concordasse. Se a família desejasse levar o caso ao tribunal, isto deveria ser assegurado. Ela, contudo, não concordava com a criminalização pura e simples da violência doméstica, afinal “problemas na família são normais”. Esta posição em favor de uma decisão baseada na vontade da família foi apoiada por um dos lia na’in do grupo. Até então a discussão vinha se dando em tétum. O velho lia na’in, contudo, começou a se expressar em makassae, a língua local. Disseram-me depois que, embora ele compreendesse tétum, não se sentia à vontade, assim como muitos anciãos da região, para falar a língua. Certamente isso tinha menos a ver com dificuldades de aprendizado (afinal até alguém como eu, havia poucos meses no país, aprendera o idioma) que com algum sentido de autoridade de fala com a qual o velho líder buscava revestir seu pronunciamento. Lembremos que cabe aos lia na’in a guarda da tradição local, entre a qual, seu próprio idioma. De quebra, o ancião conseguia assim ignorar completamente minha presença. Não falava para mim, que evidentemente não compreendia makassae. Falava para os “seus”. Não estava ali para prestar contas ao Estado, muito menos a um malai. Pedi à pessoa ao meu lado, o enfermeiro do hospital, que me traduzisse o que dizia o senhor. Em suma, a sua questão era a seguinte: se a família não desejar a intervenção de estranhos, o que o liu ra’i61 pode fazer? Nada. Ele deve respeitar a vontade da família. Uma posição conciliadora foi adotada pelo enfermeiro. Este propôs que deveria haver duas categorias diferentes para a violência doméstica. Aqueles casos que pudessem ser resolvidos dentro da família não deveriam ser considerados crime. Os demais, poderiam sê-lo. A sugestão foi reforçada pela representante da OPMT: “Há dois tipos de violência doméstica: os problemas familiares e os crimes”.62 “E qual o critério para distingui-los?”, perguntei. “Se a família não quiser tornar o problema público, deve ser apenas um problema familiar”. Todos concordaram. O resultado final da discussão, complementado pelo debate do dia seguinte, apresentou a seguinte definição: “Violência em geral é crime. Dentro da família, pequenos desentendimentos são normais. Casos que devem ser tomados como problema familiar: 61 Liu ra’i, literalmente “acima da terra”, é o título dos líderes políticos tradicionais em um suco ou região. 62 Original: “Iha violensia domestika nain rua. Iha problema família nian nomós iha krime” 124 • casos que podem ser resolvidos na família • casos que a família não quer levar à polícia Casos que devem ser criminalizados: • casos que a família decidir levar à polícia • grandes crimes, mesmo que a família não queira levar o caso à polícia, como: estupro, tortura, arbitrariedades”63 Este último item (arbitrariedades) é uma aproximação de algo que, literalmente, seria traduzido por “comportar-se de acordo com sua vontade”, indicando que o homem não deu atenção a uma manifestação de desejo contrário por parte da mulher. Isto se aplica, como veremos em outros momentos, a várias situações, não apenas ao sexo, e indica uma percepção alargada do sentido de violência. O fato de estar aqui elencado como “grande crime” parece evidenciar que, para o grupo, a dimensão simbólico-moral da “violência” pode caracterizar perfeitamente uma agressão tão objetiva quanto um tapa. O conjunto seguinte de questões dizia respeito ao papel da justiça tradicional na resolução de casos de violência doméstica e ao modo como a legislação deveria tratar o assunto. A primeira questão perguntava como a justiça tradicional poderia ser usada para resolver os casos “com um resultado justo para a vítima”. O principal ponto a este respeito, como visto no documento de orientação, dizia que a justiça tradicional possuía inúmeros problemas se vista a partir de uma perspectiva moderna – não seguia padrões internacionais de direitos humanos, uma vez que não se previa a participação das mulheres nas discussões e muito menos se incluíam os direitos das mulheres na negociação de compensações envolvidas; as pessoas nas aldeias não sabiam diferenciar casos leves, que poderiam ser resolvidos localmente, daqueles que demandavam envolvimento do sistema de justiça; e em muitos casos os líderes locais, responsáveis pelo julgamento tradicional, eram parentes das partes em disputa, e poderiam ter dificuldade para tomar decisões imparciais. Estas idéias foram apresentadas ao grupo e os participantes foram convidados a se posicionar. O enfermeiro começou a falar, assumindo a posição de mestre-de-cerminônias e perguntando um a um o que pensava. Os quatro primeiros a se posicionar (dois chefes 63 Todo o orignal, em tétum: “Violensia em geral hanesan krime./ Iha familia nia laran, desentendimento ki’ik hanesan normal. / Kasos hanesan “problema husi familia”: / - kaso mak bele resolve iha família / kaso nebe’e familia lakohi lori ba polisia / Kasos hanesan crime: / - kaso nebe’e familia deside lori ba polisia / - krime boot, maski familia lakohi lori ba polisia, hanesan: perkosaan, penganyiya’an, halo konforme nia hakarak” 125 de aldeia, o representante da juventude católica, e uma das mulheres da OPMT) mostraram-se bastante críticos à idéia de “padrões internacionais de direitos humanos”. Este conceito claramente não era muito bem-vindo e causava algum desconforto no grupo. Em suas falas, os participantes suspeitavam que os “direitos humanos” pudessem, de algum modo, ameaçar tradições locais. A questão seguinte perguntava por maneiras de se estabelecer uma ligação entre a legislação e a justiça tradicional. Em geral, todos os participantes fizeram uma grande defesa das formas locais de justiça. Começaram criticando o fato de o governo ainda não ter reconhecido a justiça tradicional como uma ferramenta útil para resolução de conflitos. À medida que a discussão rumava para os seus assuntos, os lia na’in estimularam-se a participar mais ativamente e todos eles advogaram em favor de mecanismos de reconhecimento legal de sua autoridade para regular disputas. Mesmo a respresentante da OPMT, que em alguns momentos se opusera aos lia na’in, disse que a lei deveria dar apoio aos líderes tradicionais de modo a encorajá-los a arbitrar disputas. Ainda com relação à valorização da justiça tradicional, o representante da juventude cristã queixou-se: “Hoje em dia, qualquer probleminha já querem levar para a polícia. Isso não pode! Temos que valorizar a justiça tradicional!”.64 De acordo com o grupo a justiça tradicional deveria ser valorizada basicamente por dois motivos: “A legislação deve apoiar a justiça tradicional pois: • a justiça tradicional é lei na qual o povo confia • é parte da identidade de Timor-Leste. Não podemos perder nossa identidade.”65 Um chefe de aldeia acrescentou: “se não houver adat, as pessoas irão para a polícia por qualquer probleminha. adat não é lei escrita, mas é lei”. O representante da juventude católica concordou, dizendo que a lei formal era muito mais recente e que o povo ainda não confiava neste tipo de justiça. “Mesmo com o colonialismo e o imperialismo, a adat foi preservada. Assim, a tradição precisa ser mantida, mesmo com a modernização do país”. E acrescentaram então mais um item à lista: “Timor-Leste é um país moderno, embora mantenha a tradição”.66 64 “Ohin loron problema ida maske ki’ik ema hakarak lori ba polisia. Ida ne’e labele! Ita tengki valoriza adat!” 65 “Lei Estado tenke foo suporta ba Adat tamba: / - Adat hanesan lei nebe’e povo fiar / - Adat hanesan identidade Timor Leste nian. Ita labele lakon ninia identidade” 66 “Timor Leste pais moderno, maske tradisaun iha nafatin”. 126 Finalmente um lia na’in sugeriu que esta discussão deveria ser feita incluindo o Estado, a Igreja e representantes da justiça tradicional de modo a incluir a Adat no sistema formal de justiça (“Lei tenke hare parte husi perspectiva Estado, Igreja no Kultura / tradisaun”). Todos concordaram que a justiça tradicional era muito importante e deveria ser reconhecida e apoiada pelo Estado. Um chefe de aldeia chegou mesmo a me pedir explicitamente para levar esta questão ao conhecimento do governo, como uma demanda do grupo. Percebi, naquele momento, que eu desempenhava ali um papel de representante do Estado perante o grupo, e, de certa forma, porta-voz do grupo perante o Estado – em certo sentido, um operador de um mecanismo de democracia direta. Evidentemente aquela não era a primeira vez que aquelas pessoas participavam de uma discussão daquela natureza. As missões da ONU em Timor-Leste costumavam organizar inúmeros “workshop” com as comunidades locais de modo a levantar informação para o planejamento de projeto. Uma característica destas experiências era a de que eram apresentadas às comunidades como uma tecnologia para “ouvir as necessidades locais”. Esta idéia parecia guiar muitas das expectativas e sugestões que estavam sendo postas na mesa por aquele grupo. Eles pareciam me ver como um representante do Estado, ouvindo suas necessidades e pronto a levá-las às autoridades nacionais. Para muitos dos presentes, este era o papel da consulta. Neste sentido, a ausência de autoridades do governo estava gerando alguns rumores entre o grupo em geral. À noite, quando fizemos uma reunião entre os facilitadores para avaliação do dia, este foi citado como um dos pontos fracos do processo. Na medida em que aquele era um evento promovido pelo GPI (um órgão do governo), os participantes esperavam encontrar gente do governo – gente como o administrador do Distrito ou mesmo seu adjunto. A presença de uma autoridade de Estado, mesmo que apenas em uma cerimônia de abertura, daria ao ritual um estatuto mais próximo de sua importância. Naquela mesma noite, a avaliação mostrou que ainda tínhamos percepções diferentes acerca do papel da consulta. Enquanto eu simplesmente registrara as idéias do grupo, Marito, por exemplo, passara um tempo considerável tentando convencer o seu grupo que violência doméstica deveria ser vista como crime. No segundo dia o grupo focal que eu coordenava deveria discutir o tema da mediação. Três novas pessoas se juntaram ao grupo: um ex-guerrilheiro das Falintil, um chefe de aldeia e um ativista de uma ONG local. A discussão começou com uma questão sobre como decidir se um caso poderia ser resolvido por mediação ou se deveria 127 ser levado a tribunal, e a quem caberia operar um processo de mediação. Cabe aqui observar o que no documento de orientação, mediação aprece como uma prática extrajudicial, levada a cabo sem base legal nas delegacias de polícia por solicitação da vítima, ou, em casos civis, feita por ONGs que empregam operadores do direito e sob encaminhamento do tribunal. Em momento algum o documento sugere considerar as cermimônias da justiça tradicional como forma de mediação. O termo é compreendido estritamente como um mecanismo extrajudicial de resolução de conflitos, mas que deve ser operado por profissionais qualificados para tanto, preferencialmente com formação na área jurídica. Qualquer outra forma de arbitragem é condenada pelo texto. Foi a partir deste critério que começamos a discussão no grupo focal. Logo à partida surgiram argumentos que pareciam desmentir o consenso do dia anterior, em torno do que deveria ser a distinção entre “crime” e “problemas de família”. A idéia geral era a de que um crime não poderia ser resolvido por mediação, o que nos obrigava a definir o que seria considerado um “crime”. A representante da OPMT disse que alguns tipos de violência, como o estupro, deveriam sempre ser considerados crime, independentemente da vontade da família em dar publicidade ou não ao fato. Um dos lia na’in, mantendo-se coerente ao argumento defendido no dia anterior, não concordou, enfatizando o direito da família em decidir como resolver cada caso. O ex-guerrilheiro considerou que os casos em que o estupro tivesse sido “consentido”, tratava-se apenas de um problema familiar. Caso contrário, deveria ser tratado como crime.67 O grupo acabou por construir uma definição de “crime” que inclui alguns casos considerados sérios, como estupro, os quais estariam fora da alçada familiar e da possibilidade de resolução por mediação. Ainda sobre os limites da mediação e da justiça tradicional, o grupo discutiu sua eficácia para evitar a reincidência. O ex-guerrilheiro argumentava que a idéia de uma compensação econômica não era suficiente para inibir um crime. “Se eu estuprar uma mulher e o liu ra’i apenas estipular uma multa, e se eu for um homem rico, posso pagar e continuar cometendo estupros enquanto durar minha riqueza”. Todos concordaram e um consenso se montou em torno da idéia de que alguns crimes deveriam obrigatoriamente ser resolvidos pelo sistema formal de justiça. 67 É comum que casos de relação sexual fora do casamento sejam chamados, por alguns timorenses, de “estupro”. É nesta concepção que faz sentido falar em consentimento. Casos como o retratado no dilema do policial de Manufahi, no capítulo 1, inserem-se nesta perspectiva. 128 Uma discussão interessante sobre o sentido de “vítima” também surgiu. O enfermeiro dissera que deveríamos ter mais cuidado quando falávamos em “vítima”. Às vezes, segundo ele, o homem agressor poderia ser, de fato, vítima de um comportamento prévio da mulher. A senhora da OPMT discordou enfaticamente, dizendo que isto seria tratar a vítima como culpada. A discussão não chegou a um consenso, mas foi útil para expor os limites das categorias fixas de “vítima” e “agressor”, tal como construídas ao longo do documento de orientação. Foram vários os momentos durante a consulta em que tais categorias acabaram subvertidas ou ressignificadas pelo conhecimento local. Este, com certeza, foi um deles. Mais adiante, o ex-guerrilheiro colocou a seguinte questão: “Se eu estupro alguém, o chefe de aldeia pode decidir que eu devo me casar com esta pessoa. Vamos supor que eu já seja casado e minha esposa não concorde que eu tome uma segunda mulher. Então, se eu obedecer ao chefe de aldeia, isto pode ser uma violência contra a minha própria esposa!” A questão é interessante em vários sentidos. Como veremos em outros distritos, a idéia de desconsiderar a opinião do cônjuge é tomada como um grande insulto. Aqui, discutindo sobre poligamia (uma prática comum em muitas aldeias, apesar da condenação enfática da Igreja Católica), o ato de desconsideração do marido sobre a vontade da primeira esposa é percebido como injusto e até mesmo um ato de “violência”. Isto parece apontar para um discurso bastante sofisticado em relação aos sentidos da violência, aparentemente contraditório se lido com os padrões ocidentais. De acordo com este discurso, a punição física, tão problematizada nas leituras ocidentais acerca da violência doméstica, pode não ser percebida como atitude condenável. Por outro lado, um aspecto menor para nossas sensibilidades é fortemente elaborado e percebido como gesto de agressão. A precupação do ex-guerrilheiro materializou-se, no cartaz do grupo, pela expressão que considerava, também, um crime, “agir segundo sua vontade” (halo tuir nia hakarak), traduzido acima como arbitrariedade. Outro tema surgido na discussão mas que não pôde ser aprofundado por falta de tempo refere-se às conseqüências de se relacionar justiça tradicional e mediação ao sistema judiciário. Todos concordaram que no caso de um problema não ser satisfatoriamente resolvido por mediação ou pela adat, a vítima deve ter o direito de levar o caso aos tribunais – mas o primeiro passo deveria ser sempre a busca de uma solução local. Neste ponto comecei a perceber que o sentido de “mediação” em jogo 129 para o grupo não era exatamente o mesmo apresentado pelo documento de orientação. Enquanto o documento entendia “mediação” como um recurso extrajudicial operado por profissionais do direito, o grupo aproximava este processo das formas locais de administração de conflitos, e as pessoas a serem envolvidas como responsáveis pela mediação eram constantemente pensadas como sendo chefes tradicionais e líderes religiosos. Neste sentido, a Igreja aparecia ao lado dos lia na’in como recurso para mediar conflitos, antes de se chegar à delegacia de polícia. A consulta em Baucau terminou com uma plenária na qual os quatro grupos focais apresentaram o resultado de suas discussões. Alguns grupos haviam feito a discussão em indonésio, especialmente aquele em que Zubi atuou como facilitadora. Assim, estes começaram a apresentar seus resultados naquele idioma. Passados poucos minutos teve início um conflito bastante expressivo da questão lingüística em TimorLeste. O ex-guerrilheiro levantou-se e pediu que os resultados fossem apresentados também em tétum, de modo a que todos pudessem compreendê-los. Eu sabia que aquele homem, tendo passado as últimas décadas na guerrilha, não aprendera indonésio. Mas era igualmente possível compreender sua demanda como uma crítica ao uso da “língua do ocupante” no país agora livre.68 Em seguida, outro homem tomou a palavra dizendo que era melhor não se fazer tradução. “Se traduzirmos ao tétum, depois alguém pode pedir para traduzir para o português e para o inglês, e isso vai tomar muito tempo”. Ele provavelmente já tivera tido esta experiência antes, nos workhops promovidos pelas missões da ONU, nos quais o uso de duas ou mesmo quatro línguas é comum. A resposta veio da senhora da OPMT, dizendo que a tradução era fundamental por causa dos katuas – os anciãos ali presentes, especialmente os lia na’in e chefes de aldeia. “Eles, os katuas, são os que vão aplicar estas coisas nas aldeias. Então, é importante que eles entendam muito bem. Temos que traduzir”. Com isto, ela explicitava o recorte geracional que marca a questão lingüística em Timor-Leste69 ao mesmo tempo em que repunha a centralidade de um idioma e não de outro como operativo para comunicações rituais. 68 Essa mesma crítica orientava a atitude da então ministra da Justiça, Ana Pessoa, que não admitia que qualquer funcionário se dirigisse a ela em língua indonésia. Documentos internos tampouco poderiam circular em indonésio. Havia rumores de que ela chegou a proibir o uso do idioma no ministério. 69 As gerações mais novas, educadas na ocupação indonésia, dominam tétum e indonésio, enquanto os mais velhos possuem um domínio bem mais restrito deste idioma. 130 A questão do idioma contribui para tornar ainda mais complexa a questão dos mal-entendidos. Como vimos, expressões como mediação, direitos humanos, crime e mesmo violência doméstica acabavam sendo objeto de percepções bem diferentes, o que nos fazia usar as mesmas palavras sem nunca saber ao certo se estávamos falando da mesma coisa. A sua tradução entre inglês, português, tétum e indonésio implicava mudanças, por vezes sutis, por vezes abissais, de carga semântica. Ainda durante a plenária em Baucau, alguns sentidos diferentes para o significado daquela consulta podiam ser vistos. Alguns grupos pediam para que a consulta fosse estendida aos subdistritos. Um chefe de aldeia pedia ainda uma explicação mais clara sobre “o que seria realmente algo contra os direitos humanos e o que seria apenas um caso de violência doméstica”. Definitivamente, se a idéia de uma consulta como uma ferramenta participativa para fazer as pessoas chegarem a certos conceitos “por suas próprias pernas” já era problemática em um contexto culturalmente homogêneo, tornava-se manifestamente ilusória em contextos em que os referenciais usados pelos diferentes atores eram bastante diferentes. Quando voltamos a Dili, Zubi chamou-me para uma reunião. Ela estava preparando o material que seria apresentado, no dia seguinte, ao comitê de orientação. Trabalhando na forma como os resultados seriam apresentados, pude perceber, enfim, o sentido da consulta. De modo bastante pragmático, não se tratava de registrar o que as pessoas nos distritos pensavam sobre violência doméstica, tampouco o que haviam dito sobre o documento de orientação. Era mais uma questão de trazer dos distritos propostas concretas acerca das melhores maneiras de se implementar as diretrizes do documento. O texto já dera um esqueleto, ao qual caberia à consulta dar a carne e o sangue. Era este o sentido de perguntas do tipo “qual a melhor maneira de se fazer isto”, ou “como fazer isto de modo a assegurar aquilo”, que passaram a dar o tom dos grupos a partir de Baucau. Segundo Movimento: Ainaro e os serviços multissetoriais O segundo distrito visitado foi Ainaro. Embora a capital do distrito esteja a apenas 78 quilômetros de Dili, a viagem de carro leva cerca de 7 horas. É preciso atravessar a cadeia de montanhas que separa o norte e o sul da ilha, por uma estrada repleta de curvas que, entre os timorenses, é conhecida como “super-mi”, em referência 131 a uma marca indonésia de macarrão instantâneo. O acesso difícil torna o distrito um dos mais isolados do país e com menor presença de expatriados e poucas conexões com Dili. Não há pista de pouso para aviões, e o apoio das Nações Unidas costuma ser feito por helicópteros. Durante o domínio português, a região era parte de um extenso reino local do grupo étnico Mambai – o reino de Suro. No início do século XX, uma grande revolta contra o poder colonial foi organizado pelo reino vizinho, Manufahi, e o liu ra’i de Suro desempenhou um papel importante na defesa dos portugueses. Dom Aleixo Corte Real, régulo de Suro, organizou tropas para atacar seu vizinho, Dom Boaventura de Manufahi, em 1912. Em 1943 ele ainda desempenhou um papel significativo na resistência contra a ocupação japonesa do território. Depois de sua morte, recebeu status de herói pela administração colonial portuguesa e um monumento foi erguido em sua homenagem, na sede do distrito. Até hoje a família Corte Real ocupa posições importantes entre as elites timorenses.70 A sede do Distrito é um pequeno vilarejo, com uma praça central em torno da qual se erguem alguns prédios públicos, como a sede da administração do Distrito e o Centro Comunitário, onde foi realizada a consulta. A uns 100 metros da praça ainda se vêem as ruínas de um hospital indonésio, queimado por milícias nos conflitos de 1999. Em Ainaro eu estava responsável pelo grupo que discutiria o papel dos serviços multissetoriais de apoio às vítimas de violência doméstica. Tendo aprendido, com as críticas de Baucau, que uma cerimônia de abertura era importante, assim como a presença de alguma autoridade de Estado, tratamos de assegurar que o administrador do distrito estivesse na mesa de abertura. A consulta foi então iniciada de modo bastante formal. As cadeiras foram alinhadas em fileiras diante de uma grande mesa. Nanda, uma das funcionárias timorenses da Oxfam, fez as vezes de mestre-de-cerimônias, abrindo o evento com uma oração católica em tétum, seguida por todos os participantes. Deu, então, graças a Deus por estarmos ali e pediu a Ele que abençoasse os “trabalhos daqueles que estavam construindo a nação”. Na seqüência, pediu ao vice-administrador do Distrito para que tomasse lugar à mesa e abrisse oficialmente a consulta. Este começou desculpando-se pela ausência do administrador, que estava em reunião com os administradores dos subdistritos e chefes de aldeia para 70 O linguista Benjamim Corte Real, por exemplo, atual reitor da Universidade Nacional em Dili e diretor do instituto nacional de linguística é o responsável pela normalização ortográfica do tétum. 132 preparar as comemorações do primeiro aniversário de restauração da independência, a se comemorar na semana seguinte. Desejou a todos uma consulta bem-sucedida, sublinhou a importância de uma atividade como aquela para a correta elaboração da legislação e declarou oficialmente abertas as atividades. A importância dada à formalidade pôde ainda ser vista em outros detalhes. Mesmo na dinâmica de apresentação dos participantes – um jogo com uma bola em um círculo em que cada um que recebesse a bola deveria apresentar-se – algumas fórmulas de discurso eram usadas como sinal de polidez. Antes de se apresentar, cada um costumava agradecer aos demais dizendo “obrigado pelo tempo que me é dado” (obrigado ba tempo nebe’e fo mai ha’u). Ao final da fala, costumava-se encerrar dizendo “isto é tudo, obrigado”. (mak ne’e de’it, obrigado). Em função dos preparativos para o aniversário da restauração da independência, apenas 6 pessoas estavam em meu grupo: uma parteira, uma moça de um grupo de jovens, um professor, uma policial e duas mulheres da OPMT. As duas primeiras questões eram as mesmas de Baucau, relativas à definição e à criminalização da violência doméstica. Como em Baucau, a criminalização da violência doméstica não foi uma idéia tranqüilamente aceita. De acordo com a maioria, bater (baku) não era crime quando feito por uma boa razão. Duas, em especial, foram citadas: quando o homem bate com amor (baku ho hadomi) e quando bate por estar nervoso, mas depois se arrepende (baku ho nervoso, depois arepende). Quando perguntei como um gesto de agressão podia significar amor, a mulher da OPMT foi enfática, dizendo que assim era “a cultura de Timor”, e que tinha de ser respeitada. Segundo ela, um homem deve educar sua esposa e para isso pode e deve bater. Como eu continuei explorando o assunto pedindo exemplos e casos concretos, a senhora me disse “Veja, Timor-Leste tem duas leis, a da tradição e a do Estado, trazida agora pelos malai (estrangeiros)”. No momento isso me pareceu uma forma de dizer algo como “pare de me aborrecer com seus valores e respeite o nosso direito de viver nossa tradição”. De certa forma, dita de maneira enfática, a frase sobre as leis parecia mesmo uma forma de por fim às minhas perguntas. Era da tradição, e pronto. Mas penso que podemos ver na fala daquela mulher uma percepção bastante clara da possibilidade de se instituir pluralismo legal no país. Haveria esferas diferentes da vida social, na qual caberiam leis diferentes, mesmo que, em certos pontos, antagônicas.71 71 Sobre a questão das diferentes esferas da vida social, ver nota 54. Vê-se também, na sua fala, a idéia de que a lei de Estado é obra de estrangeiros. Não ouvi muitos comentários neste sentido. Em geral os 133 A idéia de “bater para educar” (baku atu hanorin) foi aceita como normal por quase todos no grupo e bastante endossada, especialmente pelo professor, que muito provavelmente utilizava este princípio na relação com seus alunos. Uma voz, contudo, foi dissonante. Para uma moça, integrante de um grupo jovem, qualquer ato de agressão contra as mulheres deveria, sim, ser considerado crime, seja qual fosse a intenção. Carla, uma jovem de cerca de 20 anos, deixava transparecer um grande desconforto com a justificação para o uso da força. Enquanto Alcida, a senhora da OPMT, uma viúva de meia-idade que perdera o marido na resistência à ocupação indonésia, defendia o respeito a uma tradição local que incluía o uso da força como gesto amoroso e pedagógico, Carla sacudia a cabeça negativamente.72 Podia-se ver, enfim, uma clivagem importante operando na forma como se dava sentido ao uso da força, uma clivagem aparentemente geracional. Algumas semanas mais tarde, entrevistando Micató, ouvi-a expressar a certeza de que a difusão de uma sensibilidade contrária à violência doméstica era apenas uma questão de anos. Carla, no grupo focal de Ainaro, representava esta nova geração. Mesmo contrariando as manifestações de Alcida e do professor, e contra o silêncio anuente dos demais, ela disse: “Não concordo. Seja violência pequena, seja grande, é tudo crime” (Ha’u la konkorda. Violensia ne’e, bele ki’ik ka boot, krime nafatin). A discussão não chegou a crescer no grupo, pois a autoridade dos mais velhos fez-se respeitar e passamos ao próximo assunto. De acordo com a metodologia adotada para o registro dos grupos focais, o facilitador devia registrar em pequenas tarjetas retangulares de papel colorido o consenso do grupo e afixá-las em cartazes para sistematização posterior. Assim, a voz dissonante de Carla sumiu, perdida na construção de um consenso que refletia a solução já adotada em Baucau. Ainda nas discussões sobre a definição de violência doméstica, uma situação curiosa veio à tona. Embora os participantes resistissem a ver como crime alguns tipos de “violência”, o escopo do que poderia ser considerado como tal era consideravelmente vasto. De acordo com o grupo, se um homem arranjasse outra mulher sem o consentimento da primeira, isto seria um caso claro de violência – embora não tão grave a ponto de dever ser criminalizada. Tal como em Baucau, desconsiderar a vontade da esposa era um gesto ofensivo, classificado pelo grupo como um gesto de violência, tal timorenses se apoderam rapidamente de elementos exógenos, e a idéia mesmo de democracia (e seus corolários) raramente era apontada como não sendo timorense. 72 Optei por usar, nesta seqüência, nomes fictícios para proteger a identidade dos participantes. 134 como a agressão física. Mesmo com um amplo escopo para o sentido de violência, porém, vários níveis de recriminação eram estabelecidos, ou seja, nem toda agressão (mesmo percebida como violência) era objeto de um mesmo grau de censura. O resultado da discussão (ao menos o que ficou registrado como consenso, excluindo a voz dissonante de Carla) era, como em Baucau, uma definição em vários níveis para a violência doméstica, na qual apenas o último e mais grave deveria ser criminalizado. Quando solicitados a definir os limites entre as ofensas menores e um crime, disseram que um crime devia envolver: “É crime (problema grande) Bater até sangrar, bater até aleijar, ameaçar com facão, estupro, adultério Não é crime (problema pequeno) Ameaça verbal, marido bater na esposa para educá-la, demonstrando amor.”73 Mais tarde, apresentando o resultado da discussão à plenária, Alcida diria: “os casos pequenos não devem ser crime, pois eu não acredito que exista no mundo casal que não tenha problemas desses de vez em quando”.74 A agressão física, mesmo se percebida como um problema, aparecia assim confinada à desconfortável normalidade dos pequenos inconvenientes da vida. Visão bastante diferente, por certo, daquela que inspirara o documento de orientação para o projeto de lei. À noite, Marito estava visivelmente abatido. Abanava a cabeça negativamente e queixava-se das lideranças locais. Muitos participantes estavam dizendo que não voltariam no dia seguinte caso não recebessem diárias para tanto. Sem dinheiro, não “trabalhariam”. Alguns diziam mesmo que aquilo era perda de tempo. Segundo Marito, disseram: “Isso é serviço do governo. Se o governo quer que a gente faça a lei, que nos pague para isso. O conselho de Ministros é que tem que se ocupar com isso”. Estávamos novamente diante de entendimentos diversos sobre o caráter da “consulta”. Para Marito, as lideranças locais deveriam dar graças a Deus que estavam sendo consultadas. Para ele, a elaboração da legislação era algo que exigia a participação da sociedade civil. Já, para os líderes locais, fazer a lei era um serviço do governo, e se o governo os queria envolver nisso, deveria trata-los como funcionários. 73 “Krime (problema boot): / Baku too ran, baku too alizado, ameasa ho katana, violasaun seksual, hola feto rua. / Laos krime (problema kiik): / Ameasa ho ibun, lain baku feen atu hanorin nia feen, hanesan hadomi nia feen.” 74 “Problema kiik la’os krime tamba ha’u la fiar iha kaben iha mundo tomak maak laiha problema hanesan ne’e dalah ruma.” 135 Johnny, outro timorense que fazia parte da equipe da consulta, via nisto uma herança viciosa do período indonésio, em que o Estado derramava dinheiro nos distritos por tudo. O mesmo acontecera durante a UNTAET. O CEP (Community Empowerment Project), um projeto da ONU financiado pelo Banco Mundial, costumava pagar diárias aos moradores para que participassem em encontros comunitários e oficinas.75 Por trás destas queixas podemos ver diferentes expectativas sobre o papel da sociedade civil na elaboração de políticas públicas. Para Marito, a comunidade devia ter protagonismo no processo. Mais do que isso, devia querer ter tal protagonismo, a ponto de se engajar voluntariamente no mesmo. Não era esta a percepção dos queixosos, para quem fazer a lei era papel do governo e de seus ministros – uma interpretação, aliás, bastante coerente com a separação que se costumava fazer entre as esferas comunitária e estatal (cf. capítulo 2). Apesar das reclamações, todos compareceram no dia seguinte. O assunto principal em discussão no meu grupo era o papel dos serviços de apoio às vítimas. A questão central dizia respeito a quem deveria estar envolvido no apoio, que tipo de serviços deveriam estar assegurados e como eles poderiam se integrar em uma rede de suporte às vítimas. Esperava-se que o grupo desse informações úteis à implementação das políticas esboçadas no documento de orientação. Para isso adotou-se como metodologia a criação de um “mapping”, um desenho com a definição dos serviços a serem criados, seus papéis específicos e a relação entre eles. De modo a estimular o desenho do mapa, apresentou-se aos participantes imagens de possíveis atores a serem envolvidos e do tipo de serviço que poderiam prestar. Depois de definir quem deveria ser envolvido no processo, o grupo definiu que serviços deveriam prestar e como fazêlos em rede. Durante a discussão, alguns assuntos se mostraram especialmente delicados. Discutindo o papel do sistema de saúde (a clínica local), expliquei ao grupo que o documento de orientação sugeria a adoção do “mandatory report” (notificação obrigatória), ou seja, tornava obrigatório ao profissional da saúde a comunicação à polícia de casos suspeitos de violência doméstica. Muitos dos participantes se opuseram 75 Com relação ao recebimento de dinheiro, é interessante notar que a única participante que estava tendo lucros com a consulta, em Ainaro, era uma mulher (ligada à OMT, e não à OPMT) contratada pela Oxfam para fazer e servir as refeições e os lanches durante os dois dias da Consulta. Para providenciar alimentação para 40 pessoas, ela havia recebido mais de quatrocentos dólares, o que é uma quantia bastante alta para os padrões locais. Isto estava claramente causando rumores entre o grupo, especialmente entre as outras mulheres. Se o lanche atrasava, mesmo que cinco minutos, logo começavam cochichos e maledicências. Certamente isso deve ter estimulado as observações que deixaram Marito abatido. 136 a isso, dizendo que não se podia desconsiderar a vontade da vítima. “Fazê-lo, pode ser mais uma violência contra a mulher”, disseram. Como em Baucau, desconsiderar a vontade de alguém era percebido como ofensivo, de certo modo no mesmo nível da agressão física. A mesma questão foi posta para o papel da polícia. De acordo com o documento de orientação, uma vez que um caso chega à delegacia, deve ser proibida a retirada de queixa. O grupo foi unânime em condenar esta medida, alegando que a polícia deveria perguntar sempre à vítima se ela desejava ou não que o caso fosse levado ao tribunal. Quanto ao papel da comunidade (especialmente os vizinhos, parentes e chefes de aldeia), o grupo concordou que o apoio à vítima devia também respeitar a sua vontade. Assim, se a vítima não quisesse envolver a polícia, a comunidade deveria encaminhar o caso para resolução pela via da justiça tradicional. Durante a plenária, a importância das fórmulas discursivas e da maneira formal de se dirigir às questões voltou a ser vista. Antes de começar o seu relato, a representante de nosso grupo, Alcida, disse cuidadosamente: “eu sinto que não sou capaz, mas se os colegas acham que eu sou capaz, agarro o desafio com as duas mãos e peço que me ajudem se eu não conseguir”. O grupo que conduzi produzira um belo “mapping”, com a definição precisa dos atores a serem envolvidos, seus papéis e as relações que os interligariam (cf. figura 4, na próxima página). O quadro estava claro para mim. No momento, porém, em que Alcida apresentou o cartaz ao plenário, pude perceber que muitas das categorias que me pareciam auto-evidentes tinham um sentido totalmente diverso para ela. Naquele momento outra característica da consulta ficara óbvia para mim. Já tinha percebido que a consulta não buscava reconstruir o documento de orientação, mas apenas levantar sugestões de como melhor implementar os princípios ali definidos. Tratava-se de dar carne a um esqueleto já plenamente formado. Enquanto Alcida ia interpretando o cartaz ao seu modo, pude perceber que a consulta produzia também um outro efeito. 137 FIGURA 4: Mapping produzido pelo grupo focal em Ainaro para o atendimento multi-setorial: 2.2 RECOMMENDATION FOR SYSTEM OF MULTI SECTOR MANAGEMENT FOR VICTIMS OF DOMESTIC VIOLENCE Victim’s residence Neighbours/Community: Provide testimony for the victim. Separate those who are involved in the quarrel. If unable to separate, can report to the village chief, police, church (not necessary?). If victim requires assistance, take the victim to the hospital. Provide the victim with his or her rights. Victim’s family: Report to the police If the victim requires/they quarrell Police: Get information from the victim (if required, get it from the hospital). Take victim to the clinic. Seek victim’s opinion whether he/she wants the process to be taken further or would be satisfied with traditional process. If the victim requests that the process is dealt further, must assist in transporting the victim to the court (providing transport). OPMT/OMT: To hear police information. Organise safe house: find persons who understand/specialise in counselling, have patience, ability, knowledge to assist individuals with psychological issues. Must get funding from the government, NGO and other organisations. Problem: currently, OPMT/OMT does not have the capacity to get funding. Solution: these organisations must plan together about how to get funding: the Church, village chief, police, district administrator, etc. Provide information about victim’s rights (communicated through radio, loudspeakers). If victim requests solution through traditional law If victim sustains injury If victim sustains injury TRADITIONAL LAW Clinic: Care for the victim Health test. Provide information to the police to be processed. If information is not yet adequate, can provide testimony in the court. Doctor can provide report, If husband continues with If the violence, must not return home Safe House: Provide counseling Provide attention Provide food Provide strength If not traumatised Pradet: Provide counselling for the victim. Provide direction: return home or stay at the clinic, request assistance from midwives. Provide training to the midwives and police. Counselling for women must be provided in the clinic or Uma Feto, not at the police station. Os cartazes que materializavam o “consenso” do grupo prestavam-se a múltiplas interpretações. O que as pessoas haviam dito na discussão dos grupos possuía um sentido muito específico nas suas bocas. Fora contado de um jeito particular, querendo significar coisas próprias. Para serem registradas, contudo, essas falas passavam pelo filtro de uma metodologia redutora de sentido – como as tarjetas, por exemplo – que 138 pedia idéias expressas em frases curtas ou idéias-chave. A partir daí, aquilo que as pessoas falaram passava a ser visto à luz (ou pelo filtro) das categorias do sistema classificatório do facilitador da consulta (ou do workshop). O mesmo viria a ocorrer um nível depois, quando o material seria lido por algum advisor ou consultor encarregado de transformar aquilo em subsídios (análises e sínteses) para a elaboração de políticas públicas. Com estes vários níveis de interpretação, marcados por uma tecnologia de registro que dava margem a múltiplas leituras das intencionalidades originais e pelo uso de ao menos dois idiomas, a quantidade de sentidos que podiam ser perdidos (e criados) na tradução era impressionante. Esta abertura semântica tinha, contudo, um efeito político importante para a legitimação do texto produzido pelo governo. Era essa a faceta da consulta que pude ver a partir daquele momento. A consulta operava como forma de colocar as pessoas frente a um sistema classificatório que lhes era alheio e pedir a elas que se posicionassem, como se dele fizessem parte, e com isso, acabassem por legitimá-lo, mesmo que não o tivessem assimilado. A consulta não é, de fato, e nem se propõe a ser, na interpretação acima, uma forma de democracia direta. Contudo, muitas vezes ela ganha ares disto. Especialmente em função da corda sensível que é a relação do governo com as bases, em Timor. O Entreato de Micató De volta a Dili, a equipe da consulta foi chamada a uma reunião com Micató. Ela estava preocupada com a forma como a consulta estava sendo realizada e com o impacto que isto podia ter para a imagem do governo junto aos Distritos. Com base no relato que Idelta havia lhe passado sobre as críticas feitas em Baucau, Micató avaliava que estava faltando à Oxfam fornecer mais informações prévias sobre o documento. Dizia ainda que a consulta deveria durar três dias, como previsto no contrato, e não apenas dois, como estava sendo o caso. A Oxfam argumentou que os dois dias estavam sendo suficientes para esgotar as discussões e levantar as sugestões desejadas. As questões postas por Micató, contudo, expressavam uma preocupação política. Mais do que a qualidade técnica da consulta, as ferramentas metodológicas utilizadas e o tempo necessário para tal, o que preocupava Micató era a eficácia política do evento. Neste sentido, mais do que a produção da lei, o que lhe inspirava cuidados era a relação do governo com as comunidades locais. Ao preocupar-se com isso, Micató mostrava ter plena consciência de que a consulta era um 139 grande evento destinado a dar existência social para a lei – e, por meio dela, para o discurso do gender. Neste sentido, com mais tempo para discussão, a lei e seu discurso ganhariam maior existência moral. A crítica de Micató à forma como se estava conduzindo a consulta não deixava de ser uma crítica metodológica. Conhecedora de sua sociedade, Micató sabia que as técnicas e o tempo eram fundamentais para alcançar a eficácia que ela buscava; uma eficácia política, mas que dependeria da metodologia segundo a qual o evento era conduzido. Terceiro movimento: Maliana Maliana é a capital do distrito de Bobonaro, um dos dois distritos que fazem fronteira com o lado indonésio da ilha. Esta proximidade com a fronteira permitiu ao vilarejo desenvolver-se relativamente bem a partir de um mercado por meio do qual entravam no país a maior parte dos produtos industrializados indonésios – grande parte sob a forma de contrabando. No centro do vilarejo havia outro mercado, ao lado de um grande ginásio de esportes construído no período indonésio. Alguns restaurantes e albergues podem ser encontrados na cidade. A proximidade com a fronteira também rendeu a Maliana uma presença considerável de funcionários civis e militares das Nações Unidas. A Organização Internacional para Migração (IOM) e o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (UNHCR) desenvolviam ali grandes programas com comunidades de timorenses deslocados, que viviam no lado indonésio da ilha e tiveram de atravessar a fronteira após a crise de 1999. A estrada que liga Díli a Maliana é relativamente boa, e a maior parte do percurso é feito pelo litoral, o que implica poucas curvas e permite que se cumpra a distância em cerca de 3 a 4 horas. Maliana está, assim, conectada com facilidade à Dili, e algumas ONGs da capital costumam ter ali escritórios locais e programas específicos. No Distrito, os dois grupos étnicos predominantes são Bunak e Kemak. Estes são os dois únicos grupos matrilineares de Timor-Leste. Em Maliana a consulta se deu na sede do Centro de Juventude, um pequeno edifício comunitário construído com o apoio de uma ONG internacional. Nas paredes do prédio podia-se ver vários cartazes do tempo da UNTAET e propaganda das eleições presidenciais de 2001. O prédio era bem equipado e recebia boa manutenção. Tinha 140 ainda uma sala com cerca de 10 microcomputadores onde se oferecia curso de informática para os jovens, com energia fornecida por um gerador próprio. Nos fundos, havia ainda uma enorme quadra poliesportiva para futebol, basquete e vôlei. A consulta foi formalmente aberta com uma oração e com a fala do viceadministrador do distrito. Como em Ainaro, coube a mim mediar o grupo sobre serviços multissetoriais. Dez pessoas participaram do grupo, sendo uma representante da OPMT, uma da OMT, uma freira católica, um professor, uma policial, um jornalista, um administrador de sub-distrito e três ativistas de ONGs locais. Uma das minhas expectativas, desde o começo da consulta, era a de encontrar, nos distritos, alguns grupos ou setores sociais organizados que pudessem caracterizar uma “sociedade civil”. Como o público-alvo da consulta eram pessoas com já alguma experiência em lidar com casos de violência doméstica, imaginei que encontraria muitos brokers, gente capaz de compreender e operar com as regras tanto da justiça de Estado quanto dos sistemas locais. Esperava que a consulta fosse mesmo um momento em que estes atores pudessem sugerir pontes entre aqueles dois universos de regras e valores. Devo dizer que não encontrei tais brokers (ao menos organizados como atores socialmente operantes) em Baucau nem em Ainaro, onde os discursos prestavam reverências constantes aos líderes tradicionais ao mesmo tempo em que se mostravam consideravelmente desconfortáveis diante de conceitos como direitos humanos e igualdade de gênero. Ou, dito de outra forma, os brokers em tais lugares eram os próprios líderes tradicionais que, ao seu modo, costuravam a história local com as estruturas do Estado (colonial, no tempo português, ocupante, no indonésio, e nacional, agora), mas sem uma preocupação explícita em se aproximar dos atuais conceitos derivados do valor dos “direitos humanos”. De certo que alguns dos participantes eram exceção, mas, de um modo geral, aqueles que lidavam facilmente com os princípios do documento de orientação, como a jovem Carla, tinham que se curvar diante de outros cuja expressão política no grupo predominava. Mesmo as queixas de Baucau sobre a falta de comunicação entre o governo e as comunidades locais pareciam sublinhar o fato de que não havia quem pudesse construir, sistemática e constantemente, pontes entre os níveis local e nacional. Para isso também apontavam os rumores em Ainaro, com a idéia de que o governo estava pedindo à população para fazer um trabalho que seria seu. A idéia de uma esfera pública (característica de uma leitura política da modernidade ocidental) em que governo e sociedade civil negociassem interesses, conceitos, valores 141 e discursos de igual para igual, não parecia muito operante. Em Maliana, contudo, o retrato era um pouco diferente. Na discussão sobre a criminalização da violência doméstica, uma idéia diferente prevaleceu. O grupo reconheceu que este tipo de violência se expressava em diferentes níveis, mas os participantes não a classificaram a partir do gradual “grande”/ “pequeno” ou “leve”/ “pesada”. Adotaram um distinção entre violência “física” e “verbal” e sugeriram que ambas fossem consideradas crime, mas com diferentes graus de penalização. Por outro lado, a violência verbal, embora considerada crime, deveria poder ser resolvida pela justiça tradicional. Discutindo sobre os atores que deveriam ser envolvidos no suporte às vítimas, o grupo levantou um conjunto bem mais amplo e sofisticado de agentes. Em suas palavras, identificaram um grupo de “organizações da comunidade”, outro “do Estado” e um terceiro, a que chamaram “organizações da sociedade civil”. No nível comunitário estariam os vizinhos, o chefe de aldeia, o conselho de anciãos e o administrador do subdistrito. O nível do Estado incluiria a polícia e o hospital. Por fim, na sociedade civil foram indicados a Igreja, os jornalistas, uma organização local de mulheres (Uma Feto) e uma organização nacional de direitos humanos (Yayasan HAK). As distinções feitas entre estas esferas políticas, tal como o modo como categorizaram a “violência doméstica” eram bem mais próximas dos discursos que podiam ser ouvidos em Dili, bem como dos princípios expressos no documento de orientação. Maliana era, claramente, o lugar em que o fosso entre o documento de orientação e as idéias locais se mostrava mais estreitado. Ou, melhor dito, parecia-me ter encontrado ali atores habilitados a construir pontes eficazes entre os dois lados deste fosso. Os papéis de cada serviço às vítimas foram precisamente descritos. O grupo sugeriu, por exemplo, alguns procedimentos para o serviço de saúde de modo a lidar com a notificação obrigatória (mandatory report) sem chocar-se diretamente com a idéia da prevalência da vontade familiar – na primeira vez em que uma vítima fosse atendida, sua vontade deveria ser respeitada, mas uma vez que a agressão se mostrasse rotineira, a notificação à polícia deveria ser obrigatória. A polícia, por sua vez, deveria sempre levar os casos ao tribunal e, se necessário, prover proteção à vítima levando-a à casa paroquial, uma vez que no distrito ainda não havia casas-abrigo. Com relação ao conselho de katuas, este deveria sempre informar à polícia sobre os casos que lhe chegassem às mãos. Quando fosse o caso de levar um caso para resolução judicial, o 142 conselho deveria fornecer um relatório detalhado do que lhe fora dito pela vítima e dos procedimentos adotados, para instruir o processo e poupar a vítima de ter de dar novamente os mesmos depoimentos já prestados aos katuas. Todas estas sugestões foram expressas na forma do mapa, tal como realizado em Ainaro. A diferença no nível de detalhamento e nas categorias utilizadas parece indicar como esta reflexão se mostrava desenvolvida em Maliana e como seus termos pareciam bem familiares aos participantes daquele distrito (cf. figura 5). FIGURA5: Mapping produzido pelo grupo focal de Maliana para os serviços multi-setoriais: 2.2 Recommendation for the Future Neighbours: Break up/stop the fight. If the victim is injured, take her to hospital. If not, take her to the traditional leader DV VICTIM If the victim goes to the following: If victim does not agree Subdistrict Administrator : Listens to the victim’s grievances Gives advice to the Suco leader Gives advice to the victim Police: Investigation File report to public prosecutor Arrest perpetrator Protects victm: in cases of sexual violence or in cases where the victim has to be removed from the home, she is taken to another place (church, uma feto) Journalists: Provide information on the condition of the victim If victim wishes / perpetrato r continues to make Serious problem (case cannot be resolved elsewhere) It is not possible to organise safe houses at this time. The church and Uma Feto can provide the victim protection. Traditional Council: Resolves the case according to traditional law. If it constitutes a crime, takes it to the police. Provides clear Hospital: Provides treatement for the victim Conducts health tests (doctor) Provides trauma counselling Reports to police on the condition of the victim, especially in cases of sexual violence, report depends on the wishes of the victim, to maintain family relations. If the perpetrator continues to make threats, the doctor must report this to the police Uma Feto: Listens to victims Provides trauma counselling Gives advice Cannot do mediation Takes victim to the police and hospital, if the victim so wishes Yayasan HAK: Gives information to the police Monitors processes carried out by the police (monitors whether the outcome of the process is clear or not, whether or not the victim and perpetrator are statisfied with the outcome). Presses for cases to be pursued. Civil Society Church: Gives advice to the victim Monitoring Listens to victim In minor cases, calls perpetrator for mediation Protects victim In serious cases, brings to police If victim is INJURED Listens to the victim’s statement Government Organs If case is categorised as a CRIME Suco leader: Community Organs Aldeia leader: Listens to the victim’s statement Calls for the perpetrator Carries out mediation 143 Discutindo estratégias para a prevenção da violência doméstica, o grupo decidiu que a escola deveria estar no centro deste processo. Isto é interessante se comparado ao fato de em Ainaro a Igreja ter ocupado esta centralidade e em Dili este papel ter cabido à polícia. É como se o grupo de Maliana tivesse escolhido uma instituição que permitisse traduzir melhor as ambigüidades do documento de orientação, com um pé na religião e outro na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Quarto movimento: Oecussi O quarto distrito a ser visitado foi Oecussi-Ambeno, um enclave timorense no lado indonésio da ilha. Lifau, uma pequena praia em Oecussi, foi o primeiro povoado português na ilha de Timor, no início do século XVI. Fora também o porto principal para o embarque de sândalo até a mudança da capital para Dili, em 1769. Durante os séculos XVIII e XIX a delimitação da fronteira entre o lado português e holandês da ilha foi objeto de muita disputa, até a assinatura de um acordo na década de 1890 que definia a fronteira mais a leste mas assegurava o controle português sobre Lifau e as terras circundantes, criando o enclave de Oecussi, ao mesmo tempo em que o isolava do restante do território controlado por Portugal. Até os dias de hoje a única ligação regular de Ocussi a Dili é um ferry-boat que faz a viagem três vezes por semana, levando de 4 a 7 horas, de acordo com a maré – além dos vôos das Nações Unidas, cada vez mais raros à medida que a presença internacional se contrai. A chegada do ferry a Dili é sempre um espetáculo bonito de se apreciar, com as ruas subitamente tomadas por dezenas de búfalos e pessoas vestidas com os tradicionais tais de Oecussi e carregando grandes sacos. Todos os habitantes de Oecussi são do grupo étnico Baikeno e o tétum é língua praticamente desconhecida fora do pequeno povoado de Pante Makasar, a capital do Distrito. Mesmo no povoado, as pessoas comunicam-se mais usualmente em indonésio que em tétum. Não obstante, os moradores de Oecussi são orgulhosos de seu pertencimento a Timor-Leste, dizendo que “se não existisse Lifau, Dili não existira”76 Ouve-se, nas ruas, um sentimento forte de pertença histórica ao país. 76 Frase ouvida de um funcionário da administração local, em conversa casual nas ruas do centro de Pante Makassar. 144 A consulta em Oecussi foi realizada no escritório da administração distrital, um grande edifício do tempo indonésio completamente restaurado pelas Nações Unidas. Seguindo instruções de Micató, dois representantes do grupo legal (que participaram na elaboração do documento de orientação) nos acompanharam ao distrito. Como autores do documento de orientação, Rosi e Silvério77 poderiam expor melhor os princípios orientadores do documento, dirigindo o grupo para respostas mais objetivas e mais úteis aos propósitos de elaboração da lei. De quebra, Micató assegurava um reconhecimento mais evidente da presença e do interesse do governo na consulta. Depois da abertura formal da consulta – novamente uma solenidade presidida pelo vice-administrador do Distrito, uma vez que o administrador estava no interior, em uma cerimônia de tara bandu, um rito agrícola tradicional – Silvério fez um breve relato de todo o processo que levou à elaboração do documento de orientação. Enfatizou que aquela era a primeira vez que uma lei estava sendo construída de baixo para cima, ouvindo-se as comunidades. “O Primeiro-Ministro recomendou que fosse feita esta consulta”, disse ele. Eu sabia que história não era bem essa – e que a consulta era antes resultado de pressões advindas do seminário de novembro, em que se avaliou que o tempo para discussão do documento havia sido insuficiente – o que deixava ainda mais clara a intenção politicamente orientada de sua fala. Novamente, era a questão da legitimação local para as políticas centrais que estava em jogo. Tratava-se de manter azeitadas as relações entre governo e lideranças locais, e o discurso do “ouvir as bases” era necessário para tanto. A presença de Silvério e Rosi reforçou o lado “sensibilização” da “consulta”. Explicando os princípios do documento de orientação, Silvério deu uma aula detalhada sobre que atores podiam e deviam ser envolvidos no processo e sobre os vínculos possíveis entre o sistema formal de justiça e as formas locais de resolução de disputas. Para isso, ele falava em tétum, mas todos os termos técnicos eram emprestados do vocabulário legal indonésio, o que tornava muito difícil para mim acompanhar seu raciocínio. De todo o modo, mesmo para as pessoas naquela sala que compreendiam perfeitamente o indonésio, penso que muitos daqueles termos deviam soar tão novos quanto soavam a mim. 77 Rosi era uma jovem ativista da Fokupers, uma das duas ONGs de Dili que dava suporte a mulheres vítimas de violência doméstica. Silvério era um advogado timorense, formado em universidades indonésias, e ativista da Associação HAK (Yayaysan HAK), a maior e mais antiga organização timorenses de direitos humanos. 145 Com duas novas pessoas incorporadas à equipe, eu pude abrir mão de meu papel como facilitador de grupos focais e participei apenas enquanto observador no grupo sobre justiça tradicional. No grupo estavam, entre outros, dois policiais, uma jovem representante de uma ONG de mulheres locais, um chefe de aldeia, um lia na’in e uma senhora idosa, já viúva. A discussão começou, como de regra, pela definição de violência doméstica. Aqui surgiu um caso interessante, do tipo que já me havia sido relatado por Marito em Ainaro. Quando o facilitador do grupo, novamente Marito, perguntou se a relação sexual forçada pelo marido sobre a esposa deveria ser considerada um caso de violência, o assunto se revelou bastante polêmico, mas a resposta predominante foi pela negativa. Se a relação se dera dentro do casamento, é um ato legítimo e não poderia ser considerado como estupro.78 A única voz dissonante era a da jovem ativista. Segundo ela, haveria ali dois crimes em curso: o homem estaria forçando o sexo contra a vontade da mulher, e se esta reclamasse, ainda era capaz de apanhar, o que caracterizaria um segundo crime. Respondendo à sua fala, a senhora viúva discordou, dizendo que uma esposa deveria aceitar uma situação dessas, afinal, se ela fosse à polícia por este tipo de coisa, seu marido não a aceitaria de volta. A discussão pareceu-me uma reedição da clivagem geracional observada em Ainaro. A respeito da criminalização da violência doméstica, o grupo começou por tentar estabelecer diferentes níveis de violência, tal como em Baucau e Ainaro, sendo os mais “leves” não classificados como crime. Silvério, porém, entrou na discussão e impôs uma lógica jurídica que não comportava tais nuances. “É crime ou não? Sim? Então agora podemos classificar em diferentes tipos”. Os policiais foram os que mais enfaticamente acenaram a cabeça afirmativamente. O velho lia na’in claramente discordava. Durante as discussões, um caso interessante foi levantado por um chefe de suco. Ao mediar um caso de estupro, um chefe local estabeleceu uma multa de 5 búfalos a ser paga pela família do agressor à família da vítima dentro de um determinado prazo. Findo o prazo, contudo, a multa não havia sido paga e o chefe de aldeia chamou o agressor para um encontro. Como ele não compareceu, o chefe de aldeia foi à polícia e prestou queixa contra o agressor por não pagamento do débito. O caso foi apresentado como uma forma possível de conexão entre a justiça tradicional e a justiça de Estado. A 78 Este sentido para estupro é perfeitamente coerente com o costume de falar em “violação sexual” para casos de sexo fora do casamento, descrito em nota anterior. Não é o consentimento ou o uso da força que caracteriza um intercurso sexual como estupro, mas o fato de ele não se dar dentro de relações sancionadas socialmente. Logo, não faz sentido falar em estupro dentro do casamento. 146 polícia seria, neste caso, uma espécie de “plano B” para os momentos em que a autoridade dos líderes locais não fosse suficiente para impor a justiça. A discussão no grupo prosseguiu acerca dos limites das autoridades locais, mas o que me chamou a atenção neste relato foi o fato impressionante (para mim, por certo) de que fora o débito, e não o estupro, o motivo relevante para a queixa do chefe de aldeia à polícia. Na discussão sobre como estabelecer vínculos entre o sistema formal e o local de justiça, Silvério começou com uma exposição sobre a hierarquia das leis. “Se a adat muda de aldeia para aldeia, a lei do Estado (Hukum Negara) não. Isto é importante para o futuro, quando tivermos uma lei sobre violência doméstica (kekarasan dala rumah tangga). A constituição está acima de todas as leis, incluindo a adat. Assim, se adat quebra a constituição, não pode ser apoiada pela lei.” A lógica jurídica voltava a se impor. Como eu não estava atuando como facilitador, pude prestar mais atenção à dificuldade que as pessoas tinham em compreender o sentido da questão sobre “como incluir a adat no sistema judicial”. Mesmo com todo o didatismo de Silvério, muitos participantes não compreendiam a questão. Por que algo tão natural como a adat precisaria estar apoiada por um enquadramento jurídico formal? Ademais, a adat dizia respeito à vida comunitária, e não ao domínio do Estado, este sim o campo do Hukum Negara. A despeito destes choques de expectativas, a informação precisa de Silvério conseguia alcançar algumas respostas “úteis” sobre mediação. Ele estava conseguindo sugestões como: “de modo a ser legal, uma mediação deve ser realizada no escritório do suco (kantor Desa, espécie de administração regional em que o chefe de suco despacha) ou em algum outro local neutro”. Ele perguntou então por critérios que assegurassem que o mediador atuasse com imparcialidade. Baseado em suas próprias experiências, o grupo respondeu “deve ser alguém com mais de 40 anos”. “Por quê?”, quis saber Silvério. “Porque os jovens não podem tesi lia (dar veredito em um caso)”. Ao fim, o grupo foi ainda convidado a pensar sobre o suporte econômico às vítimas, e uma discussão interessante emergiu sobre a questão da herança. Estavam discutindo quem deveria ter os direitos sobre as propriedades do casal se o marido fosse preso. Uma senhora, já viúva, sugeriu que a propriedade fosse dada aos filhos do casal. Um jovem funcionário de uma ONG acrescentou que, se as crianças fossem ainda muito jovens, a propriedade poderia ficar nas mãos da família da mulher. Nisso, um velho lia na’in que falava apenas baikeno, a língua local, opôs-se furiosamente. “A propriedade 147 não pode ir para a família da mulher, pois o homem já pagou o barlaque (a riqueza da noiva)”. Para complicar as coisas ainda mais a senhora viúva acrescentou: “Acho que a propriedade deve ir diretamente para os filhos, mas, claro, não para as filhas.” Rosi, a ativista da Fokupers, quase teve um ataque. Último movimento: Dili A consulta em Dili foi inicialmente planejada como um momento especial. Michelle, a consultora australiana, preparou uma proposta sofisticada, com grupos temáticos compostos por advogados locais e internacionais, trabalhando com tabelas, quadros, gráficos e perguntas orientadoras. Contudo, a equipe de consulta estava já exausta e Zubi decidiu não tornar as coisas muito complicadas. De qualquer forma, a consulta viria a envolver muitos integrantes de ONGs, ativistas e membros do governo, supondo que se poderia ao mesmo tempo analisar os dados colhidos nos distritos e recolher novas sugestões. Isto aconteceu durante dois dias em junho de 2003. A consulta foi formalmente aberta por Micató, pelo Ministro da Justiça e pelo Procurador Geral da República – e encerrada por Micató e pela Gerente de Programa da OCAA em Dili. Por razões de saúde não pude comparecer aos preparativos da consulta, e mesmo durante o primeiro dia minha observação esteve relativamente prejudicada. Assim, o grupo que eu facilitaria (novamente o multissetorial) acabou sendo assumido por uma ativista timorense a serviço de uma ONG norte-americana. Deste grupo participaram oficiais graduados da Polícia Nacional de Timor-Leste, ativistas de programas voltados à saúde das mulheres, ativistas de organizações de direitos humanos e jornalistas. O resultado da discussão diferi significativamente do que vinha sendo ouvido nos distritos. Em Dili, praticamente todos os princípios orientadores do documento-base foram aceitos e, aparentemente, bem compreendidos. Epílogo: uma ditadura participativa? Depois de tantas oficinas, esperava-se enfim um relatório final. O grupo de trabalho legal que havia esboçado o documento de orientação já estava começando a se reunir novamente para trabalhar no projeto de lei. Dewi, a advogada indonésia que atuara como consultora na elaboração do documento original havia voltado a Timor148 Leste a tempo de acompanhar a consulta em Dili. Zubi encontrara-se informalmente com ela, passando-lhe resultados preliminares da consulta aos demais distritos. Em seu relatório preliminar, Zubi apresentava listas de recomendações vindas dos grupos focais, reforçando os supostos consensos nos grupos e desconsiderando pontos polêmicos ou aos quais não se chegara a um resultado objetivo. Isto era necessário para atender à demanda por informações úteis para a redação legal, e nuances não ajudavam muito. Por outro lado, na construção desta objetividade, os sentidos originais do que havia sido discutido transformavam-se ao atravessar múltiplas camadas interpretativas. Quando as discussões dos grupos focais eram transformadas nas listas de sugestões de um relatório, e mesmo antes, quando o calor dos debates era cristalizado em frases sintéticas sobre tarjetas de cartolina na parede, o sentido de muito do que havia sido enunciado passava pelo filtro de quem redigia as tarjetas ou o relatório. Os significados possíveis da discussão acabavam limitando-se ao leque de opções do sistema classificatório de quem a registrava. Da mesma forma, o mesmo mecanismo operava na leitura das listas de sugestões por um consultor internacional, que trataria de transformar aquele conjunto de tópicos em subsídios tecnicamente coerentes para a elaboração de uma lei. De certo que a consulta não se propusera a ser uma forma de democracia direta, em que a redação da lei fosse entregue às comunidades consultadas – a despeito de muitos pensarem assim em Ainaro, achando inclusive que deveriam ser remunerados para fazer o trabalho do governo. Mesmo assim, discursos como o de Silvério, em Oecussi, reforçavam que se tratava, sim, de discutir propostas com a população local, de modo a encontrar soluções as mais próximas possíveis do universo de preocupações e sentidos válidos para as comunidades. Era uma leitura coerente com os princípios participativos recomendados pelos bons manuais de elaboração e gestão de projetos da ONU. Era isto, contudo, que a aplicação dos múltiplos filtros impedia. Trocando as contradições, nuances e polêmicas das discussões no grupo pela coerência cartesiana de sugestões tecnicamente apropriadas, a consulta parecia se reduzir a um instrumento espetacular destinado a criar um verniz participativo a um procedimento técnico. Mesmo a lista apresentada por Zubi não foi plenamente satisfatória para Dewi. Ela esperava um conjunto de sugestões mais específicas. Segundo comentários, ela teria dito que os dados apresentados pela consulta levantavam muitos “assuntos sociais”, e ela precisava de mais informação “legal”. Não é de se 149 surpreender. Não havia advogados na equipe da consulta – embora os houvesse no comitê de orientação. Quando Silvério, este sim um advogado, foi a campo, as questões mudaram um pouco de tom. Mesmo assim, porém, o conhecimento local não deixou de impor sua própria agenda. De certa forma, o que Dewi esperava era o melhor dos mundos: uma consulta que produzisse resultados tanto tecnicamente corretos quanto expressivos da vontade popular. Como ela provavelmente percebeu, este era um cenário impossível de ser alcançado. Assim, antes mesmo de se concluir o relatório final da consulta, o projeto de lei já havia sido elaborado. A versão final do projeto – divulgada em setembro de 2003, dois meses antes da versão final do relatório da consulta – corresponde a um modelo perfeitamente moderno de legislação na área de direitos humanos. O projeto estabelece, por exemplo, a notificação obrigatória no sistema de saúde e ignora completamente as formas locais de resolução de disputa. Criminaliza ainda todas as modalidades de violência doméstica, conceituada como qualquer tipo de agressão (física, verbal, psicológica e até financeira) contra mulheres e crianças no universo familiar. É uma proposta que traduz, em boa técnica legislativa, a agenda política das organizações de Dili. Pelo resultado do processo, vê-se que importava menos o que viesse das comunidades para o centro e mais o que a consulta levava do centro às comunidades: a sensação de estarem sendo ouvidas. Este parecia ser o saldo final de todo aquele evento. A consulta apresentava as pessoas dos distritos selecionados a um sistema classificatório que lhes era estranho e pedia a elas que se posicionassem, dando-lhes a sensação de que ocupavam um lugar naquele mundo. Assim, mesmo que entendessem os termos daquele sistema em sentidos completamente diversos, aquelas pessoas contribuíam para legitimar o discurso do documento em uma arena política mais ampla. Em setembro de 2003 o projeto de lei foi apresentado. Ana, a assessora portuguesa trabalhando para o FNUAP no GPI, apresentou-me orgulhosamente o texto em três idiomas: português, inglês e indonésio. Já imaginando os problemas de tradução, perguntei a ela: “A versão original é a indonésia, não é mesmo?” “Ah, sim.” “Então, a versão em português é uma tradução da versão inglesa, que é uma tradução do indonésio, certo?” “Ah, não!”, disse ela. “A versão portuguesa é muito melhor que a inglesa, pois mandamos traduzir em um escritório jurídico em Portugal, diretamente do indonésio, enquanto que a verão em inglês é uma simples tradução, feita aqui mesmo”. 150 *** Se, por um lado, o projeto de lei representava o triunfo da expertise técnica sobre o discurso participativo, por outro a consulta fornecera, por meio de um espetáculo de participação, condições para legitimar o discurso do gender, do qual o projeto de lei era uma encarnação. Neste sentido, expertise técnica e discurso participativo não se contradizem, mas são ferramentas complementares para tornar eficaz um determinado projeto modernizante. Operam como valores de um mesmo campo em formação – uma esfera pública que se formava em Dili na qual se afirmava o interesse público em torno da igualdade de direitos e dos mecanismos de justiça para fazer valer este princípio. O processo descrito neste capítulo parece indicar a importância, para os setores que buscam inserir o discurso do gender na constituição deste interesse público, de se falar em uma sociedade civil devidamente consultada, bem como no respeito à opinião das lideranças locais – a conjugação do respeito dos padrões de direitos humanos ao respeito à cultura local. Quando, porém, colocados frente às representações locais, os princípios do discurso do gender encontram grandes dificuldades em estabelecer uma comunicação clara, para não falar em construir consensos com os operadores da autoridade local. Neste sentido, este projeto de modernização implicava também a constituição de uma arena própria para a realização da justiça, em conformidade com o interesse público amalgamado pelo discurso do gender e legitimado pela consulta. O próximo capítulo busca justamente compreender a constituição do judiciário timorense em função da necessidade de dar respostas a esta demanda. Assim, depois de se ter instituído um novo quadro moral para transformação do ato de agressão em atitude de violência, depois de se ter transformado esta atitude em crime – motivo para um conflito a ser institucionalmente resolvido – resta definir a arena institucional em que o conflito se resolverá e qualificar os operadores desta arena para tanto. 151 Capítulo 4 CRIADORAS DE CASO: O LUGAR E O MODO PARA RESOLVER VIOLENSIA DOMESTIKA Instituir uma nova norma legal – a legislação de combate à violência doméstica – é, como vimos no capítulo anterior, um dos modos por meio dos quais se está estabelecendo, em Timor-Leste um novo campo de significados possíveis para o uso da força no relacionamento conjugal. A construção da violensia domestika, implica aí um triplo movimento. Por um lado, como vimos no capítulo 2, há que se estabelecer uma nova moralidade para as relações interpessoais, especialmente para gestos de força que passam a “doer” em corpos até então insensibilizados para tanto. Esta nova moralidade transforma em conflito algo que antes não era percebido como tal – é basicamente isso que faz a legislação. Resta agora estabelecer onde e como este conflito de novo tipo deverá ser arbitrado. É preciso definir a arena na qual violensia domestika se constitui em um caso, bem como definir quem e de que forma deverá operar esta arena. No presente capítulo analiso a constituição deste espaço dentro do sistema de justiça formal, caracterizando os desafios deste processo e sua complicada relação com as formas locais de justiça. Para isso, situo a formação do judiciário timorense na reconstrução do país e analiso documentos e eventos em que se discute sua interação com os casos de violência doméstica. Dos tipos de violência contra mulheres identificados pelo discurso oficial em Timor-Leste, a violência sexual era, de certo, a mais delicada de se tratar. Não por acaso era este o tema que dava sentido a organizações inteiras, como o PRADET, organização destinada a tratar os traumas de mulheres e crianças que tivessem passado por uma experiência de violação sexual. Havia, no discurso destas instituições, a preocupação em lidar com um duplo trauma. De um lado, entendia-se que os efeitos psicológicos deste tipo de violência produziam situações de grave angústia e sofrimento para aquelas mulheres. Um outro trauma, porém, estava por ser vivido: aquele proveniente do estigma de ser vista como uma mulher violentada. Estragada ou encrenqueira? Costuma-se usar em vários lugares do país a expressão “estragada” para se referir a mulheres que mantiveram relações sexuais (consentidas ou não) fora do casamento. O receio de ser estigmatizada como tal levava muitas mulheres a preferir não publicizar a experiência por que haviam passado. Um caso em especial me foi narrado por um casal de missionários brasileiros que atendera uma mulher e a encaminhara à Fokupers. Na ocasião eu estava na instituição fazendo algumas entrevistas. O missionário me informou que a vítima era sua vizinha, e que casos de estupro eram comuns na região. De acordo com o que a polícia lhe informara, somente naquele mês já haviam sido registrados 16 casos em Dili, e estávamos ainda no dia 4 de abril. Mais tarde, conversando com o casal sobre o ocorrido, fui informado de que o caso era basicamente o seguinte: O marido chegara em casa e encontrara a mulher na cama com o vizinho. Não fez escândalo. Simplesmente disse que a mulher estava estragada e que iria devolvê-la ao governo. Expulsou-a de casa e não queria deixa-la sequer ver os filhos. Sem saber o que fazer, a mulher foi procurar a ajuda dos missionários brasileiros. Disse que precisava de muita oração, pois fora estragada e agora já ninguém a quereria. Segundo ela, o vizinho entrara em sua casa e a levara para cama, dizendo que, como emprestava dinheiro ao marido, este lhe permitira servir-se dela. Ela sabia que se gritasse atrairia a atenção dos vizinhos e seria dada por estragada. Preferiu agüentar a situação calada. Em meio ao coito, chegou o marido. O vizinho confirmava a história. Dizia que apenas servira-se da mulher por ter sido autorizado pelo marido, com quem continuava a dar-se muito bem. O marido, por sua vez, disse aos missionários que sua mulher não valia para nada. Já o havia traído três outras vezes. O padre lhe havia dito que não se devia perdoar mais do que três vezes, e que agora ele podia devolver a mulher ao governo. A história permitia várias interpretações. Traição ou estupro? Para os missionários, o marido arquitetara a situação, em conjunto com o vizinho, para poder desfazer-se da esposa sob uma desculpa que legitimasse o abandono. Uma madre, amiga dos missionários, fora categórica: “Não se mete não, menina. Isso aqui é o que mais tem 153 no Timor. Depois eles se acertam”. Para Fokupers, era claramente um caso de estupro e o vizinho teria que responder à acusação no tribunal. Mas, seria o tribunal o melhor caminho para este caso? A justiça de Estado realmente daria conta de reintegrar aquela mulher à sua unidade familiar? Esta era uma pergunta que havia algum tempo me inquietava. Compartilhando a inquietação com o coordenador do programa de prevenção à violência sexual da Cáritas australiana, um timorense retornado da diáspora australiana, encontrei eco para algumas de minhas suspeitas. Segundo ele, muitas jovens “estragadas” preferiam ver seus casos encaminhados pelas formas locais de justiças pois estas, por meio do pagamento de compensações, permitiam a restauração social da honra da jovem. Um caso julgado em tribunal não tinha como foco a restauração para a vítima, mas a punição do culpado, o que resultava em mais problemas para as mulheres: além de estragadas, elas seriam responsabilizadas pela prisão de um membro de sua comunidade. Muitas preferiam o estigma de estragada ao de encrenqueira. Um detalhe em especial no caso narrado pelos missionários os havia intrigado. Estes achavam graça no fato de o marido dizer que agora poderia “devolver” sua mulher “ao governo”. Para nossa análise, o detalhe é perfeito para indicar que não estamos falando de indivíduos que decidem “se separar”. Os sujeitos em questão são personas inscritas em uma rede de pertencimento social poderosa, vinculados por meio de fortes laços de obrigação. Assim, o término do casamento não é visto como uma situação da qual cada um parta livremente para o seu lado. O casamento vinculava grupos de Casas específicas. Termina-lo implicava, portanto, a devolução da esposa à sua Casa de origem. A realidade urbana e híbrida de Dili, porém, introduzia um novo agente nesta equação. O casamento dos dois sujeitos desta história provavelmente havia sido feito também no civil. É possível que, como tantos outros moradores de Dili, os dois tenham vindo de regiões distintas do país, possivelmente oriundos de grupos étnicos diferentes. Neste caso, a unidade de pertencimento que tinham em comum era o Estado, e era a ele que o marido tentaria “devolver” sua esposa. De qualquer modo, a atitude em questão parecia muito mais marcada por uma ideologia holista do que individualista, tornando ainda mais forte a hipótese de que as formas locais de justiça pudessem ser, de fato, mais gramaticais para os atores envolvidos. Esta era uma questão polêmica. O discurso oficial do gender via nas formas locais de justiça muito mais desvantagens que vantagens para as mulheres. Para 154 assegurar o respeito aos direitos humanos, investia-se na consolidação de uma arena de Estado para a resolução destes casos. O judiciário era, para o discurso do gender, o lugar em que casos de violência doméstica – especialmente os de violência sexual – deveriam ser resolvidos. E era investindo na qualificação desta arena, de suas normas e de seus atores que se encontraria o caminho para a justiça. Os idiomas do Tribunal A tarefa de instituir um campo de administração de conflitos baseado em instituições do direito positivo não foi – apenas – o reflexo de um projeto de Estado das atuais elites timorenses. O sistema de justiça tem sido uma preocupação fundamental desde a instituição da Administração Transitória das Nações Unidas no território. O processo mesmo de restauração da independência deu-se marcado por enormes conflitos. O referendo de agosto de 1999, em que foi rejeitada a proposta de o território tornar-se província autônoma da Indonésia, foi seguido por violentos ataques de grupos milicianos favoráveis à integração indonésia que deixaram milhares de mortos e muitos casos a serem resolvidos. Mais do que disputas interpessoais, eram casos que precisavam ser institucionalmente administrados. Assim, desde seu ato instituinte, a administração das Nações Unidas tinha por desafio conceber e estruturar um sistema de justiça de Estado. Segundo o relato de uma organização internacional que vem atuando na monitoração do judiciário timorense desde 2001 (o Judicial System Monitoring Programme – JSMP), a construção deste edifício institucional não se fazia do zero, mas era quase como se o fosse. Embora o Estado indonésio operasse por meio de tribunais e agentes de polícia, essas instituições eram percebidas pela população nativa como pouco confiáveis, e grande parte de sua estrutura física havia sido destruída nos conflitos que sucederam o plebiscito de 1999: “Quando a Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste (UNTAET) foi estabelecida, em 25 de Outubro de 1999, pelo Conselho de Segurança da ONU, tinha o mandado de ‘exercer toda a autoridade legislativa e executiva, incluindo a administração da justiça’. Em relação a este último aspecto, o desafio que a UNTAET enfrentava era imenso. Os edifícios dos tribunais tinham sido destruídos durante a violência e destruição que se seguiram à consulta popular. Existiam muito poucos juristas timorenses habilitados e disponíveis para agir como funcionários judiciais no novo sistema judicial. O conhecimento e a confiança da comunidade nos processos de justiça formais eram ou inexistentes ou muito limitados. Em suma, um sistema judicial novo tinha de ser construído desde o início. 155 O Regulamento da UNTAET n.º 1999/3 estabeleceu a Comissão Transitória do Serviço Judicial, cujas funções compreendiam o estabelecimento do sistema judicial e o recrutamento de juristas e Juizes timorenses, Procuradores e Defensores Públicos. Os primeiros Juizes e Procuradores foram nomeados, numa base experimental, a 7 de Janeiro de 2000. Foram nomeados outros tantos, também numa base experimental, nos processos de recrutamento subsequentes, no decorrer dos seis meses seguintes. Existiam muitos timorenses que, nessa altura, não tinham qualquer experiência anterior como Juizes, sendo que muitos dos recrutados não tinham nenhuma experiência prática de trabalho no sistema judicial. Não obstante, o Regulamento n.º 1999/3 dava aos juristas autoridade completa para agir e exercer as suas responsabilidades a partir do momento em que fossem nomeados. O Regulamento da UNTAET n.º 2000/11, de 6 de Março de 2000, estabeleceu Tribunais Distritais em Dili, Baucau, Suai e Oecussi, com competência para decidirem sobre todas as matérias na qualidade de Tribunais de primeira instância, exceptuando casos de genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade, homicídio, crimes sexuais e tortura, quando os delitos tivessem sido cometidos no período entre 1 de Janeiro e 25 de Outubro de 1999. Para lidar com estes crimes foram criadas as Câmaras com jurisdição exclusiva sobre delitos criminais graves, como parte do Tribunal Distrital de Dili. Outros regulamentos da UNTAET foram promulgados estabelecendo um Serviço do Ministério Público e um Serviço de Assistência Judiciária e, ainda, um outro definindo o papel e as responsabilidades dos Procuradores e dos Defensores Públicos . Pouco mudou com a independência a 20 de Maio de 2002. A Constituição definiu que a organização judiciária vigente até à independência continuaria em funcionamento até à instalação e início de funções do novo sistema judiciário. A nomeação dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, numa base experimental, foi confirmada pelo Decreto-Lei n.º1/2002, datado de 24 de Maio de 2002 e promulgado a 5 de Julho de 2002.” (JSMP; 2003: 15). Os magistrados deste sistema deviam agir segundo procedimentos do direito positivo, com base em um quadro legal relativamente complicado. Ainda segundo o JSMP, eram quatro as fontes de direito que ordenavam o judiciário timorense: “Determinar a lei aplicável em qualquer aspecto em Timor Leste requer uma análise da interacção entre quatro fontes de direito diferentes. O primeiro regulamento da UNTAET promulgado pelo Administrador Transitório definiu que as leis vigentes em Timor Leste, antes de 25 de Outubro de 1999, manter-seiam válidas, desde que não entrassem em conflito com as normas internacionais sobre direitos humanos, a resolução 1272 (1999) do Conselho de Segurança das Nações Unidas ou com qualquer outro regulamento e directiva emitidos pelo Administrador Transitório (Artigo 3º n.º1 do Regulamento da UNTAET n.º1999/1). A Constituição da República Democrática de Timor Leste, em vigor desde 20 de Maio de 2002, definiu que as leis e os regulamentos vigentes em Timor Leste a 20 de Maio de 2002 deviam continuar a aplicar-se a todas as matérias que não se mostrassem contrárias à Constituição ou aos princípios nela consignados. Como resultado, o direito aplicável em Timor Leste deriva em primeiro lugar das leis 156 promulgadas pelas autoridades competentes da República Democrática de Timor Leste. Se nenhuma lei relevante desse tipo existir, a lei aplicável é a lei definida pelos regulamentos da UNTAET, desde que esses regulamentos sejam consistentes com a Constituição. Se não existir nenhum regulamento da UNTAET, então é aplicável a lei indonésia vigente até 25 de Outubro de 1999, desde que seja compatível com as normas internacionais sobre direitos humanos e a Constituição. Em algumas matérias, sobre as quais existe uma lei timorense ou um regulamento da UNTAET, mas não suficientemente explícito, a lei pode mesmo representar uma compilação de leis oriundas de várias fontes simultaneamente. (Ibid.:17) Este cipoal de normas devia ser operado basicamente por três atores institucionais. O Gabinete de Defensoria Pública, composto por jovens advogados timorenses da geração formada em universidades indonésias, o Ministério Público, ligado à Procuradoria Geral da República e formado por procuradores que, como os advogados, tinham tido formação no período indonésio, e os magistrados dos 4 tribunais distritais. Estes eram, na maior parte, advogados e bacharéis com pouca experiência de corte, mas haviam sido transformados em juízes pela UNTAET na instituição do sistema de justiça. Respectivamente em maio e junho de 2003 foram instituídos os dois últimos atores deste sistema, o Conselho Superior de Magistratura e o Tribunal de Recurso, instâncias superiores do judiciário timorense. Para presidir ambas, o presidente da república indicou Cláudio Ximenes, timorense retornado da diáspora portuguesa que construíra uma carreira como renomado jurista em Portugal. Ximenes era, entre os operadores de direito daquele sistema, o que mais familiaridade tinha com a prática e a linguagem deste sistema. Era, contudo, formado na matriz do direito português.79 Além dos timorenses, cada uma destas instâncias comportava assessores internacionais, a serviço da missão da ONU no país (UNMISET), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/UNDP) ou mesmo de ONGs internacionais que desenvolviam projetos de apoio ao fortalecimento institucional do Estado na área da justiça. Assim, por exemplo, juízes internacionais compunham cada um dos dois coletivos do painel de crimes graves (Serious Crimes Unit) do tribunal de Dili, entre os quais uma juíza brasileira; advogados internacionais assessoravam os profissionais da defensoria pública; outros ainda trabalhavam junto aos magistrados do 79 A matriz de direito a operar em Timor-Leste era civilista, como o eram os sistemas de Portugal e da Indonésia. Ainda assim, os códigos portugueses e indonésios são bastante diferentes, e é a isso que me refiro quando indico a origem e a familiaridade de Ximenes com o sistema judiciário. 157 ministério público, fosse assessorando o procurador geral ou os promotores dos Distritos.80 O funcionamento do sistema de justiça criminal estava montado sobre um processo, em tese, bastante eficaz. Ao efetuar uma prisão, após ter procedido às investigações necessárias, a polícia dispunha de até 72 horas (tempo máximo da prisão preventiva) para encaminhar o caso ao ministério público. Com base na análise dos relatórios policiais e na tomada de depoimentos das partes, o procurador decidia se apresentava ou não queixa contra o acusado. Caso considerasse haver indícios suficientes, solicitava ao juiz de instrução (em inglês, investigating judge) uma audiência para instauração de um processo. O tempo entre a prisão do acusado e a realização da audiência de instrução não poderia exceder às 72 horas. Na audiência, o juiz ouvia os argumentos do procurador e do advogado de defesa (normalmente providenciado pela defensoria pública), inquiria o acusado e decidia se o mantinha em prisão provisória por até 30 dias, fazia-o apresentar-se semanalmente à polícia ou se encerrava o caso ali mesmo. Se o processo prosseguisse, o julgamento final deveria se dar dentro dos 30 dias, ou não muito além disso. A concretização deste modelo de funcionamento, contudo, esbarrava em uma série de contratempos. Um dos maiores, segundo a análise do Judicial System Monitoring Programme, vinha dos problemas com o idioma. Por um lado, juízes e advogados timorenses eram majoritariamente da geração formada no período indonésio. Dominavam, portanto, a língua e o sistema de justiça indonésio, mas quase nenhum falava o português e muitos tinham pouca familiaridade com o inglês. Por outro lado, os assessores internacionais que davam suporte ao sistema quase nada falavam de indonésio. Segundo o JSMP: “O idioma tornou-se um problema considerável no Sistema Formal de Justiça, no qual treinamento intensivo para o staff do tribunal é urgentemente necessário. Muitos funcionários do tribunal não estão habilitados a falar as línguas nacionais de Timor-Leste, o que tem um impacto negativo nos processos em tramitação no tribunal. A situação é exacerbada pela falta de experiência jurídica dos tradutores do tribunal. Estes deveriam possuir experiência jurídica e/ou um background na área antes de serem empregados. Ademais, o fato de muitos juízes não falarem tetum ou português tem encorajado alguns demandantes a considerar o sistema local de justiça como muito mais eficiente e confiável, em vez de trazer seus casos para o sistema formal de justiça.”81 (JSMP, 2002:11) 80 Embora em menor número, havia também advogados particulares atuando no Tribunal de Dili. “Language has become a considerable problem in the Formal Justice System, where intensive language training for the court staff is urgently needed. Many court staff are not able to speak the national languages of East Timor, which has a negative impact on the ongoing process of trials in the court. This 81 158 Por trás das pequenas dificuldades de comunicação diária, a questão da língua encobria – ou revelava – diferenças bem mais significativas. A escolha da língua portuguesa como idioma oficial do país nunca fora uma questão pacífica e não deixava de ser motivo para algum ressentimento entre os timorenses da geração tim-tim (aquela crescida no Timor Timur, o nome indonésio do território), à qual pertencia grande parte dos jovens advogados timorenses. Além disso, uma disputa política entre diferentes concepções de sistemas de justiça marcava a postura de assessores anglófonos e lusófonos.82 No caso do judiciário, as normas baixadas pela UNTAET foram elaboradas por assessores de matriz anglo-americana, e seguiam um paradigma baseado na common law. Já a Constituição da república e a legislação subsidiária (os códigos indonésios) seguiam o modelo civilista. Assim, a depender de quem operasse os códigos, diferentes ênfases podiam ser dadas. Diferentes setores deste sistema falavam não penas diferentes línguas, mas diferentes idiomas de justiça. Esta questão pegou fogo em 2003 com a polêmica acerca da lei subsidiária em Timor-Leste. Pelas regras de interpretação da lei Em julho de 2003, chegou ao Tribunal de Recurso uma apelação da procuradoria em um caso julgado pelo painel de crimes graves. O acusado, um ex-miliciano envolvido em mortes no período do referendo, fora sentenciado a 20 anos de prisão por “homicídio”. A procuradoria julgava que, à luz do código indonésio e de normas internacionais, a acusação correta seria a de “crime contra a humanidade”, e para tal recorria ao Tribunal de Recurso. O recurso foi julgado por um painel de três juízes (Cláudio Ximenes, o presidente do tribunal; José Maria Antunes, um juiz português em função de assessor internacional; e Jacinta Correia, juíza timorense) e o resultado não poderia ter sido mais surpreendente. Por dois votos a um, o Tribunal entendeu que, contrariamente ao que até então vinha sendo a norma, o caso deveria ser julgado à luz da legislação portuguesa, o que levava o tribunal a sentenciar o réu não por homicídio e tampouco por crime contra a humanidade, mas por “genocídio”. situation is exacerbated by the lack of legal experience of the court translators. Court translators should have legal experience and/or a legal background prior to their employment. In addition, the fact that many international judges are not able to speak Tetum or Portuguese has encouraged some justice seekers to choose the local justice system as a more efficient and reliable system, rather than bringing cases to the formal justice system”. 82 Para uma análise dos reflexos destas posturas no projeto de Estado em construção em Timor-Leste, ver Silva, 2004, cap. 4 e 6. 159 A interpretação segundo a qual a lei subsidiária em Timor-Leste devia ser a lei portuguesa e não a indonésia era inédita e contrariava o que vinha sendo a prática em todos os julgamentos em curso e já realizados desde 1999. Em seu acórdão, o tribunal baseava-se na interpretação da expressão “lei vigente até 25 de outubro de 1999”.83 O regulamento da UNTAET que instituíra o judiciário local de fato não dizia ser esta a lei indonésia, mas era o que todos pressupunham. Ximenes, contudo, argumentava que, sendo a ocupação indonésia um ato de força não reconhecido internacionalmente, não se poderia admitir como juridicamente válido que a lei vigente no território fosse a indonésia. Segundo este raciocínio, se a comunidade internacional continuara a ver Portugal como “potência administrante” de Timor-Leste, a lei vigente até outubro de 1999 no território só poderia ser a lei portuguesa. Segundo o acórdão do Tribunal: “saber qual era a legislação vigente em Timor-Leste antes de 25 de outubro de 1999’ é uma questão de interpretação da lei. Trata-se aqui de saber a que lei o legislador abstracto se refere quando utiliza a expressão (...). Como tal, esta questão tem que ser resolvida através das regras de interpretação da lei.” (Tribunal de Recurso, 2003:2, grifo meu) Aplicando o rigor das “regras de interpretação”, Ximenes deixava de lado qualquer consideração de ordem pragmática, como as conseqüências que sua decisão poderia trazer para as centenas de casos já julgados e em tramitação no sistema de justiça. Contra a interpretação comum de que a lei vigente era a indonésia, o acórdão dizia ainda: “na verdade, que se saiba, ninguém apresentou até a data argumento jurídico válido que legitime essa interpretação. Pelo contrário, são abundantes os argumentos jurídicos que afastam a interpretação de que a ‘legislação vigente em Timor-Leste antes de 25 de outubro de 1999’ seria a indonésia. Timor-Leste era uma colônia portuguesa quando em dezembro de 1975 foi invadida e ocupada militarmente pela Indonésia. Por essa invasão e ocupação constituir violação do direito internacional, as Nações Unidas nunca reconheceram essa ocupação militar e (...) continuaram a classificar Timor-Leste como território-nãoautónomo de Portugal. (...) Portanto, juridicamente a administração indonésia, bem como a legislação indonésia, nunca vigoraram validamente no território de Timor-Leste (...) A ‘legislação vigente (...)’ só podia ser aquela que, de acordo com os princípios do direito internacional, estava legitimamente em vigor nesse território. E, de acordo com os princípios do direito internacional, Portugal continuou a ser reconhecido pela comunidade internacional, pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e pelo povo timorense como a potência administrante de Timor-Leste.” (Ibid. Grifos meus) 83 O regulamento 1999/1 da UNTAET diz, em sua seção 3.1: “Until replaced by UNTAET regulations or subsequent legislation of [the] democratically established institutions of East Timor, the laws applied in East Timor prior to 25 October 1999 shall apply (…)”. 160 A decisão, porém, não fora consensual. A juíza Jacinta fora voz dissonante no tribunal. Para ela, o regulamento da UNTAET que se referia à “lei vigente” deveria ser interpretado no todo, sendo que os itens 3.2 e 3.3 do artigo terceiro daquele regulamento faziam referência explícita à lei indonésia ao especificarem os artigos dos códigos indonésios que estavam em desacordo com tratados internacionais e que, portanto, não poderiam vigorar em Timor-Leste. Além disso, a UNTAET tinha total legitimidade para escolher a legislação de qualquer país como base para o sistema de justiça timorense, não cabendo, portanto, questionar a validade de se aplicar a lei indonésia. A decisão do Tribunal de Recurso tornou a situação no judiciário timorense ainda mais complicada. A resolução polêmica motivou ataques da parte da Procuradoria da República e do Parlamento. Estes contestavam a legalidade da decisão de Ximenes não apenas com o argumento jurídico da juíza Jacinta, mas com base na idéia de que a decisão de adotar a lei portuguesa poderia representar o colapso do sistema de justiça, uma vez que praticamente nenhum juiz local sequer falava o português. Poucos dias depois da decisão, um dos coletivos do painel de crimes graves de Dili julgou um caso com base na legislação indonésia e emitiu nota em que se negava a utilizar a lei portuguesa, argumentando que a decisão do Tribunal de Recurso não vinculava o tribunal de Dili. Isto criou na prática uma situação de pluralismo jurídico, em que diferentes instâncias do sistema judiciário adotavam diferentes códigos legais. A questão das línguas tornara-se literalmente um embate entre diferentes idiomas jurídicos. A situação, contudo, persistiu por pouco tempo. Um grupo de parlamentares ligados ao governo apresentou um projeto de lei em que se definia explicitamente que a legislação subsidiária no país deveria ser a lei indonésia. Aprovada em regime de urgência, a lei se sobrepôs às interpretações do Tribunal de Recurso e restabeleceu a ordem anterior. Independentemente das razões políticas que levavam Ximenes (e outras autoridades e assessores de matriz lusófona) a preferir a legislação portuguesa84 o caso evidenciava uma oposição entre normas e práticas, em que um lado se agarrava a razões de ordem prática – o tipo de legislação e idioma em que os juízes timorenses eram versados – enquanto a outra se ancorava em princípios normativos do direito 84 Para uma análise deste embate ver Silva, 2004. Capítulo 6. 161 internacional. A constante ênfase na observância de regras de procedimento para a interpretação jurídica – evidente na repetição dos termos “argumento jurídico” ou “princípios de direito” – caracterizava o texto do Tribunal de Recurso como um apelo pela sobreposição da norma à conveniência. Isto gerou tamanha irritação por parte do parlamento que o projeto de lei estipulando a vigência da legislação indonésia começava com o seguinte preâmbulo: “As interpretações legais feitas à letra, fora do contexto e do sistema, desgarradas da realidade, com violação das regras mais elementares da hermenêutica jurídica conduzem a situações absurdas, que podem pôr em causa a estabilidade do país ao provocarem tendencialmente situações de crise institucional, que de outra forma não existiriam” (RDTL, 2003:1) A posição de Ximenes, contudo, não foi inteiramente inesperada. Foi, antes, a exacerbação – possivelmente com a intenção de criar uma situação extrema – de críticas que ele já vinha fazendo havia algum tempo ao que considerava falta de rigor jurídico (para não dizer competência) dos operadores dos tribunais. Na verdade, parecia que o que Cláudio Ximenes buscava era fazer uma espécie de arrumação da casa a partir do que considerava ser princípios fora dos quais as decisões dos juízes timorenses deveriam ser consideradas “ilegais”. Em um seminário sobre o sistema de justiça timorense, promovido pelo PNUD (UNDP/ Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), em setembro de 2003,85 Ximenes apresentou a instituição do Conselho Superior de Magistratura e do Tribunal de Recurso como um passo importante para dar um basta em vários problemas relativos às práticas dos tribunais. Em sua apresentação, Ximenes destacou que o Tribunal tomara 25 decisões em seus primeiros três meses de existência, alcançando: “- redução de 30% no acúmulo de casos; - correção de decisões ilegais; - correção de detenções anteriores ao julgamento” (grifos meus). Muitas destas “disfunções” estão retratadas em um relatório produzido pelo JSMP sobre o funcionamento do tribunal distrital de Dili. O seguinte trecho do sumário executivo dá uma boa idéia do tipo de questão que era vista como problemática: “O relatório conclui que existe um nível de informalidade desconcertante no sistema judicial. As regras processuais e os regulamentos são, freqüentemente, ignorados. Tanto a identificação, como a aplicação da lei é imprecisa e superficial. As provas são apresentadas sem qualquer avaliação do seu valor prejudicial ou probatório. Poucos esforços são feitos para que as provas sejam limitadas ou focalizadas. O direito de não ser forçado a depor contra si e o 85 Consultation Meeting On Stability Requirements In The Justice Sector Of Timor-Leste. UNDP, Dili, 30 de setembro de 2003. 162 direito a não ser forçado a confessar-se culpado não são entendidos ou aplicados adequadamente.86 Em suma, apesar dos procedimentos no Tribunal Distrital de Dili serem imbuídos da autoridade dos procedimentos judiciais formais regulados pela lei, na prática estes são, frequentemente, ad hoc e arbitrários. Especificamente, o papel do Juiz de Instrução é mal compreendido, no sistema judicial sendo sua função disvirtualmente utilizada. O título “Juiz de Instrução” é enganador, uma vez que o Juiz de Instrução não é responsável pela condução e prossecução de investigações criminais (A tradução em inglês de Juiz de Instrução é Investigating Judge, o que reporta à ideia de investigação). O mandado limitado do Juiz de Instrução é essencial para salvaguardar os direitos dos suspeitos durante as investigações criminais e para determinar, de acordo com a lei, se o suspeito deverá ser detido ou sujeito a medidas de coacção, enquanto estiver sob investigação. Contudo, ao contrário das disposições legais, os procedimentos perante o Juiz de Instrução são encarados como um minijulgamento, no qual o suspeito, que não foi acusado de qualquer delito e que teve muito pouco contacto com o seu advogado, é interrogado pelo Juiz e pelo Ministério Público. Quer o suspeito seja detido, quer submetido a medidas de coacção, tal depende primeiramente da avaliação preliminar da sua culpa, antes de factores tais como a existência de um risco de fuga, um risco de interferência na investigação ou um risco para a segurança pública.87 Os delitos menores não avançam, frequentemente, para além do Juiz de Instrução; pelo contrário, depois de um mini-julgamento, os suspeitos são obrigados a apresentarem-se à polícia semanalmente ou cada duas semanas. Por falha do sistema isso se transforma na “sentença” de um crime, em relação ao qual não existem acusados ou condenados. Neste cenário, um período de um ou mais meses de prisão preventiva transforma-se em na “sentença” prévia, num processo no qual o suspeito nunca é acusado ou condenado. Entretanto, os procedimentos para as audiências sumárias e simplificadas para julgamento de delitos menores não são utilizados. Este problema é exacerbado pela falta de pessoal no Ministério Público, o que compromete a capacidade dos Procuradores de prepararem e processarem casos de acordo com a lei. Os prazos para revisão das prisões, tanto após a detenção, como depois das ordens iniciais terem expirado, não são cumpridos rigorosamente, tendo como resultado o facto de alguns suspeitos permanencerem presos, ilegalmente, por um período de tempo mais longo do que o determinado em pré-julgamento ou sentença. Não existe qualquer repercussão quando isso acontece. Aparentemente, não há nenhum reconhecimento por parte do Serviço do Ministério Público, do Tribunal, ou do Gabinete dos Defensores Públicos sobre seriedade de desrespeitar os prazos estabelecidos pela lei. As dificuldades administrativas e logísticas são tidas como uma justificação aceitável para a violação de direitos protegidos pela lei. 86 O mesmo acontece na coleta de depoimentos feita pela polícia. Em um dos casos que pude acompanhar, a policial chegou a agredir o suspeito, na minha frente, para que ele confessasse que agredira “brutalmente” a esposa, em vez de apenas lhe “bater para educar”. 87 Nos casos que acompanhei (ver próximo capítulo) o Juiz de instrução chega a dizer ao acusado que lhe está aplicando um “kastigo”. A prisão preventiva é assim vista como condenação, uma vez que a culpa do acusado já está presumida por todos. 163 Os perigos de manter os suspeitos em prisão preventiva, por longos períodos de tempo, são encobertos pelos Juizes, ao deliberarem sentenças finais que correspondem exactamente ao tempo já passado na prisão. Em tais circunstâncias, parece que os Juizes não consideram se qualquer outra sentença, mesmo uma menor, de prisão seria mais apropriada. Dado que o tempo de prisão já foi cumprido, uma sentença menor é vista como não fazendo qualquer diferença material. Uma das manifestações óbvias e perigosas desta abordagem informal, adoptada em relação ao processo judicial pelos vários actores do tribunal, foi a prevalência de atrasos e adiamentos. Mais processos judiciais foram adiados do que prosseguidos como previsto, sendo a maior parte dos adiamentos causados pela falta de comparência de um dos actores do tribunal. De forma geral, nenhuma audiência foi realizada para explicar ou anunciar o adiamento ou sequer imputada responsabilidade, mesmo quando o adiamento significava estender o atraso do julgamento de um arguido em prisão preventiva. As leis que estabelecem procedimentos especiais em casos envolvendo menores, como suspeitos ou arguidos, não são cumpridas. Não foram dadas aos menores as protecções previstas na lei. Como resultado da inexperiência e do nível actual de competência, foi observado que os Advogados da Defensoria Pública não eram suficientemente cautelosos a defender os direitos dos seus clientes e em exigirem o cumprimento dos procedimentos previstos para os proteger. De modo geral, a representação fornecida pela Defesa era passiva, pouco preparada e ineficaz.” (JSMP; 2003:45) A conduta de juízes e advogados, embora parecesse escandalosamente inadequada aos olhos de atores como Ximenes e o JSMP, acabava fazendo, por vezes, muito mais sentido para os usuários do judiciário, acostumados ao sentido de justiça e aos procedimentos adotados em formas locais de resolução de disputas. O próprio relatório do JSMP reconhece que: “Timor Leste irá produzir o seu próprio direito substantivo e processual, que regulará o trabalho dos Juizes, Procuradores, Defensores Públicos e advogados privados. Pode ser que essas leis dêem pouca ênfase à formalidade processual e garantam aos actores do tribunal mais amplo poder discricionário e autoridade para resolver casos usando meios mais flexíveis. Isto poderá adaptar-se melhor às noções de justiça dos timorenses. Contudo, de momento, existem outras leis que regulam os processos e poderes do Tribunal. Possuir essas leis, mas não as cumprir, por uma qualquer razão, favorece o exercício arbitrário e discricionário do poder, em detrimento do estado de direito.” (Ibid.:6) Tal receio era compartilhado pelo GPI e pelo FNUAP, que viam certas atitudes de juízes e promotores em casos de violência doméstica como de desconsideração às normas internacionais de direitos humanos. Isto representava ainda um risco, na opinião destes atores, à credibilidade da justiça de Estado, o que poderia levar a população a 164 recorrer ainda mais às formas locais de justiça – exatamente na contramão do que pretendia o discurso do gender. E de fato, tanto pelo receio herdado do período da ocupação indonésia em recorrer aos agentes de Estado, quanto pelo fato de tais agentes serem ainda relativamente pouco acessíveis, a maioria da população valia-se usualmente das formas locais de justiça para resolver suas disputas. Os cortadores da palavra As formas locais de justiça são definidas por vários termos em Timor-Leste, descrevendo um processo semelhante, com focos diferenciados. Biti Boot (palavra em tétum que significa “grande esteira”), por exemplo, refere-se ao processo de sentar-se em um grande tapete para discutir os problemas. A mesma ênfase é dada pelas expressões Nahe Biti/ Lulun Biti (estender/ enrolar a esteira). Adat (palavra indonésia que significa, entre muitas coisas, costume) é usada para enfatizar o caráter tradicional (supostamente ancestral) do processo. Mas talvez, a mais importante das palavras para qualificar as formas alternativas de resolução de conflitos seja mesmo “Tesi Lia”. Literalmente “cortar palavra”, tesi lia significa tomar uma decisão, relativamente a uma disputa. Este é o papel dos anciões chamados a um processo. Enquanto investidos deste papel decisório, estes anciões (katuas, em tétum) são chamados de “Lia Na’in”, literalmente “dono da palavra”. São eles que, convocados por uma autoridade local (chefe de aldeia ou de suco) sentam-se a ouvir as partes, pesam seus argumentos e tomam a decisão, ou seja, fazem o “Tesi Lia”. A ênfase na idéia de uma “palavra” (a ser cortada por quem de direito) salta à vista face ao fato de não haver uma lei (também uma “palavra”) escrita anteriormente definida. A lei, como norma de conduta aceitável, é instituída ritualmente por cada processo de tesi lia. Embora o tribunal do direito positivo também possa ser visto assim, como ritual de reposição da conduta sancionada pela coletividade, nas práticas timorenses de justiça local isto é a parte central do processo de adjudicação. O que se faz nas audiências com os lia na’in é buscar motivações: o que motivou a ação que resultou na queixa? O julgamento é um processo de expor razões, e a pergunta central disso tudo é: por quê (tamba sa)? Depois de terem toda a cadeia de ações e reações apresentada por ambas as partes, a verdade (los) virá por si mesma: é muito fácil a um lia na’in ver se a ação que motivou a queixa corresponde a uma ação anterior em proporções justas. Se ela é uma justa reação, então o acusado está com a razão (los), e o 165 acusador é quem é culpado (sala) de ter provocado aquela ação. Justiça, aqui, tem a ver com a proporcionalidade das ações. Reações despropositadas e/ou desproporcionais não são justas, e seu autor será considerado culpado. Esta busca das motivações aparece tanto em relatos de casos de disputa de terras, quando de morte de animais, roubo de porcos ou violência doméstica. Em todos estes casos, a adjudicação tradicional parece não fazer uma separação entre as dimensões subjetiva (a história de alguém) e objetiva (prova material). As razões são subjetividade com efeito prático e são, portanto, objetivas. São as razões (motivações subjetivas) dos atos que constituem os fatos jurídicos de um biti boot. São as intenções subjetivas e suas motivações traduzidas em ação que são pesadas no julgamento – não é por acaso que também se usa a expressão “tetu lia” (pesar palavras) para descrever o processo. Se houver equivalência entre elas (ação e motivação) a balança se equilibra, e a pessoa está correta, agiu corretamente, está “los”.88 Isto parece, de algum modo, se refletir naquelas atitudes de juízes e advogados do tribunal de Dili que o relatório do JSMP qualificara como ‘excesso de informalidade’. Para a ONG, muitos dos procedimentos adotados não tinham razão de ser e comprometiam a eficiência dos processos: “Durante o período de monitorização, nunca foram levantadas objecções às perguntas colocadas e nem houve qualquer discussão sobre que tipos de perguntas deviam ser colocadas. Perguntas direccionadas, colocadas tanto pelos Juizes, como pela Acusação e pela Defesa, foram a norma e não a excepção. As respostas das testemunha ultrapassavam, frequentemente, o âmbito do que havia sido perguntado. Se a prova de uma testemunha diferia da declaração que tinham dado anteriormente ao Procurador, a testemunha era, frequentemente, interrogada sobre as diferenças pelo Juiz, Procurador e Defesa. Muitas vezes, as testemunhas eram interrogadas pelo Juiz, Procurador e Defesa e depois novamente pelo Juiz, Procurador e Defesa e, ainda, numa ocasião, uma vez mais. Parecia, na prática, que o processo não era específico, no sentido de se optar por focalizar os assuntos em disputa e limitar a admissibilidade, de modo a centrar o processo e a excluir matéria não estritamente relacionada com a prova das queixas apresentadas. Pelo contrário, o cerne era amplo, mais direccionado a permitir que “história” inteira fosse abordada.” (JSMP, 2003: . Grifos meus) Mais adiante, o relatório apresenta casos em que, mesmo tendo o argüido confessado culpa, novos depoimentos continuavam a ser solicitados pelo tribunal, como 88 Quanto a isso, Catharina Williams-van Klinken (2003) faz uma comparação bastante instrutiva das metáforas jurídicas usadas nos julgamentos locais e na justiça formal, que será comentada algumas páginas à frente, indicando que a preocupação maior de um Lia Na’in está em pesar os lados para ser justo. As metáforas aqui dizem respeito a igualar níveis e estabelecer pontes mútuas. 166 a querer confirmar a veracidade de sua confissão. Para a organização isso reapresentava redundância no processo, comprometendo sua eficácia com a repetição de um procedimento desnecessário e que podia, inclusive, criar constrangimentos para as vítimas: “O JSMP levantou esta questão com Advogados de Defesa e Procuradores Públicos diferentes e perguntou-lhes, em geral, qual a necessidade de chamar testemunhas e prosseguir com o processo usual quando o arguido tinha admitido culpa. Um dos Advogados da Defensoria Pública explicou que era necessário para o Tribunal verificar se as testemunhas estavam a dizer a verdade, sobretudo em casos envolvendo menores, por estes poderem ter sido influenciados e pressionados [a declarar-se culpado] por alguém. Um Procurador Público explicou que, frequentemente, sobretudo em casos dentro da família, o argüido apenas admitia que tinha cometido o delito. (...) Ela explicou que se algum mal foi perpetrado, sobretudo no âmbito da família, a pessoa dita como responsável é inclinada a admitir que fez alguma coisa errada, em vez de causar mais problemas. Ela explicou que isto, porém, não revela a verdade dos factos, nem garante a justiça. Ela explicou que, frequentemente, a pessoa que é subsequentemente castigada continua ressentida, apesar de ter confessado, pois a sua história não foi propriamente ouvida. Por estas razões, apesar de ser mais fácil e eficiente contar com os procedimentos de confissão de culpa do artigo 29ºA, ela sentia-se muitas vezes levada, por questões de consciência, a tratar da matéria através de uma audiência mais completa”. (JSMP; 2003:26 . Grifos meus) Era a idéia de que a justiça deve ser alcançada por meio da enunciação das histórias que estava em jogo. Comum entre as formas locais de justiça, tal idéia contribuía para formar um senso de justiça que impregnava vítimas, argüidos e os próprios operadores do judiciário timorense. Não bastava a punição de um culpado, era preciso haver a audição apropriada das histórias para que ninguém saísse dali “ressentido”. A enunciação detalhada das histórias nas formas locais de justiça é também importante para que o lia na’in tenha condições de avaliar se as reações em causa foram proporcionais aos motivos envolvidos no caso. A ênfase na proporcionalidade das ações mais do que em uma norma prescritiva de comportamento (uma lei previamente escrita) indica muito acerca do senso de justiça que motiva queixas e disputas entre os timorenses.89 Assim, se lembrarmos a experiência dos grupos focais de Covalima, 89 A preocupação em que o resultado de um processo judicial seja percebido como justo por todas as partes é o que caracteriza, para Geertz (1983) um determinado senso de justiça. L.R.Cardoso de Oliveira (1989, 2002, 2004) leva esta questão adiante, entendo tal preocupação como a importância que todo sistema dá à busca de soluções equânimes (a busca pela equidade, ou fairness). Embora esta seja uma preocupação fundante de qualquer sistema de justiça, as formas pelas quais as demandas de cada um 167 relatada no capítulo 2, veremos que, no caso específico da violência doméstica, muitas mulheres não questionavam a agressão de seus maridos quando entendiam que ela se dera como parte de um processo de educação/punição. Nestes casos o uso da força é visto e aceito como reação justa a um (mau)comportamento anterior. Contudo, se a força passa dos limites tidos como razoáveis, torna-se desproporcional e faz com que uma mulher possa se sentir vítima de uma injustiça – uma agressão. É este o caso de muitas das queixas que chegam à delegacia de Dili. Reconciliação A identificação de quem agiu corretamente possui variações locais e o procedimento para tal não é o mesmo para todo tipo de caso. Em geral, a busca de uma verdade (alguém correto e alguém culpado) envolve casos em que se disputa a veracidade de uma história. Um chefe de suco de Dili definiu estes casos como aqueles em que há desconfiança mútua ("kasu nebe’e iha deskonfiansa ba malu"). Neste tipo de caso não é raro recorrer-se a oráculos para descobrir quem está dizendo a verdade. Este tipo de disputa pode ocorrer também em alguns casos modernamente definidos como violência doméstica, como os de recusa de paternidade e de violação sexual. Os casos, contudo, de agressão entre cônjuges (baku malu) não costumam envolver disputas sobre veracidade.90 As duas partes reconhecem logo o que fizeram e a questão principal não é descobrir quem está certo (com a razão), mas como reconciliar as duas partes que “bateram-se/chocaram-se/confrontaram-se”. O processo aqui é menos de tesi lia que de nahe biti, no sentido de que mais do que uma decisão final, o que importa é o processo em si de sentar-se à esteira. Vários autores já escreveram sobre os princípios destas formas locais de justiça em Timor, concordando que, mais do que apontar um culpado ou ressarcir uma vítima, o nahe biti é um ritual de reposição da ordem social, de uma harmonia quebrada que precisa ser restaurada O caráter das formas locais de justiça marcado pela busca da reconciliação foi tema bastante enfatizado em uma grande conferência realizada em Dili, em junho de 2003, promovida pela Asia Foundation com recursos da USAID. A podem ser equacionadas de modo a que as partes sintam-se contempladas pode variar radicalmente de uma sociedade a outra. 90 Os casos em que há compensação (multa que o acusado paga à família da vítima, coisa comum em Tesi Lia para roubo de animais), pouco se referem à "baku malu". São mais casos de estupro (violação de um acesso interdito socialmente, nos quais a vítima não é a mulher em si, mas a família que detinha o monopólio deste acesso roubado) ou abandono. 168 conferência, intitulada “International Conference on Traditional Conflict Resolution and Traditional Justice in East Timor” reuniu pesquisadores e formuladores de políticas públicas de diversos países para apresentar leituras sobre a história e as perspectivas das formas locais de justiça no país. Um dos presentes era James Fox, que apresentou sua experiência de pesquisa na ilha de Roti, vizinha de Timor. Segundo Fox, as crianças em Roti brincam de “court cases”. A disputa ali é forma de estabelecer um relacionamento – todos querem ter uma disputa, “atu hametin ho sira” (para aproximarem-se).91 O processo acaba sendo, assim, mais importante que o resultado. Estender o tapete é o que importa, e por quanto mais tempo se puder sustentar o processo, melhor. A diferença com o paradigma da justiça de Estado aqui é bastante evidente. Enquanto esta é eficaz na medida em que resolva uma disputa o mais brevemente e do modo mais impessoal, as formas locais de resolução de disputas estão menos preocupadas com a resolução da disputa em si do que com a reparação e a manutenção do elo entre os sujeitos em disputa. São antes formas de reconciliação e mediação do que de resolução. Neste sentido estão muito mais marcadas por uma ideologia holista que individualista. O processo de mediação é, ainda, ocasião para as pessoas falarem, e esta fala é associada à constituição masculina – segundo Fox, “if you are not able to resolve by speaking, you are not a man”. As mulheres estão, portanto, fora desta esfera de uso (e apropriação) da palavra. A ênfase das formas locais de disputa no (re)estabelecimento de vínculos – a idéia mesmo de reconciliação – foi muito bem descrita, na ocasião, pela apresentação da lingüista holandesa Catharina van Klinken (WILLIAMS-VAN KLINKEN, 2003). Esta fazia uma comparação das diferentes metáforas utilizadas no sistema formal de justiça e nas formas locais de justiça para se referir ao processo de julgamento. Em lugar das metáforas de guerra que marcam o vocabulário do sistema formal (“defensores”, “ganhar” ou “perder um caso”, “executar um processo”, “enfrentar-se no tribunal”, “estar bem municiado”, etc.) e passam uma idéia de separação, as imagens usadas nas formas locais de justiça enfatizam a ligação entre as partes. Não há ganhadores ou perdedores. O caso é constantemente referido como “palavra” (lia), e deve ser resolvido por meio delas. Julgar é “pesar palavras” (tetu lia). Decidir é cortar a palavra (hakotuk lia ou tesi lia, ou ainda koalia, mesmo termo usado para designar “conversar”). Por fim, 91 Hametin, em tétum, significa comprimir, consolidar, apertar. Tem aqui o sentido de consolidar relações com alguém ou com um grupo. 169 a restauração do relacionamento conturbado pela disputa é demonstrada por ações recíprocas. Diz-se que as partes agora “comem junto” (Ham hamutuk) ou “oferecem-se betel” (Lo’ok malu), ou “dão-se um ao outro” (Fo ba malu). Dionísio Babo Soares, antropólogo timorense, elaborou em diversos momentos reflexões sobre as formas locais de resolução de disputas. Em um dos textos, Soares diz que o nahe biti é “apenas parte de um grande processo que busca ligar passado e futuro, trazendo a sociedade para um estado último de estabilidade social no qual a paz, tranqüilidade e honestidade prevaleçam”. Esta dimensão do processo de resolução de conflito está longe de ser alcançada pelo sistema formal de justiça – ou, ao menos, de ser assim percebido pelas pessoas frente a ele. O nahe biti tem, com isso, a propriedade de fornecer uma restauração moral, não só para a parte que consideraríamos “vítima”, mas, na medida em que promove reconciliação, para toda a comunidade, coisa que um processo formal (especialmente quando envolve a prisão do acusado) não faz. Isto é sensivelmente mais problemático nos casos de violação sexual. Voltando aqui ao caso com o qual começamos o capítulo, aquele da mulher que fora “estragada” pelo vizinho, se tal se desse em um espaço no qual as formas locais de justiça operassem com vigor, o que provavelmente aconteceria seria a definição, pela autoridade local, de uma multa a ser paga à família da vítima para restaurar a sua honra. No sistema formal de justiça isto não acontece. A pena do acusado é “paga” ao Estado. Vários casos me foram narrados em que as vítimas não se conformavam em não ter recebido compensação alguma. A pena de prisão do acusado não restaurara a dignidade das vítimas à luz da comunidade local. Ao contrário, o estigma de “criadora de caso” passava a ser apensado àquela mulher, já “estragada”. À luz de uma discussão sobre a dimensão moral do direito, isto traz um dilema e tanto para a formação do quadro legal e do sistema de justiça timorense. Se o foco é posto sobre o indivíduo (os traumas da violência), o não acesso à reparação da justiça formal é grave e deve-se lutar para que ele exista. Mas se focamos o bem-estar da mulher sob a perspectiva de sua rede de relações sociais com a "opinião pública" que a circunda, ou seja, se contextualizarmos o seu direito (deixarmos de tomá-lo como valor absoluto, mas o entendermos como valor em relação a um dado contexto), podemos ver na justiça tradicional uma forma bem mais adequada de garantia do bem-estar dessas mulheres. A justiça tradicional daria conta assim de uma dimensão freqüentemente alijada do direito positivo: a dimensão imaterial de uma ofensa. A análise de L. Cardoso 170 de Oliveira (2002:35;38-44) sobre o insulto como ato de desconsideração indica os limites do direito para o reconhecimento formal de atos de desonra ou indignação como atos de agressão, o que torna difícil uma eventual reparação para aquele que se sente agredido. Em grande parte estas dificuldades vêm do fato de tais insultos não produzirem provas materiais tangíveis, mas também do fato de o direito, especificamente o penal, não estar focado na reparação para a vítima, mas na punição e/ou reabilitação do agressor.92 A reparação moral do agredido (ou agredida) seria, assim, muito mais facilmente alcançada pelos padrões da justiça tradicional. Não deixa, porém, de haver uma irônica impropriedade nesta comparação. Enquanto no direito positivo se faz a discussão sobre o insulto para que se respeite a dimensão mais subjetiva de um indivíduo, isto está longe de se aplicar aos princípios de um nahe biti. Nestas formas locais de justiça o foco não é o indivíduo, muito menos o seu bem-estar subjetivo. O que o nahe biti tenta restaurar é o equilíbrio da relação entre grupos sociais (alianças) e destes com seus ancestrais (linhagens). Não está em jogo o respeito a direitos individuais, mas a manutenção harmônica da integridade de uma estrutura social e da cosmologia que lhe dá sentido. Entre estas duas abstrações – direito positivo e justiça tradicional – haveria um confronto primordial entre direito e moral, entre valores individualistas e holistas, haveria o que Hohe e Nixon (2003) chamam de um choque de paradigmas, mas que, neste caso, resulta em uma curiosa complementação. O caráter mais eficaz das formas locais de justiça para determinados assuntos era reconhecido por vários atores em Dili. Na abertura da conferência promovida pela Asia Foundation, o presidente da República, Xanana Gusmão, chegou a fazer uma fervorosa defesa dos modos tradicionais de resolução de disputas e a colocar como grande desafio a questão de como estabelecer vínculos institucionais entre as formas locais de justiça e o sistema judiciário. O problema maior era que alguns princípios destes dois “paradigmas” de justiça eram incompatíveis. Isto não impedia, porém, algumas iniciativas institucionais para aproximar os dois modelos. A mais bem-sucedida destas 92 Com relação a isto é interessante notar o papel que vem desempenhando, em paralelo ao sistema judicial timorense, a Comissão para Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR) no trabalho com vítimas e agressores envolvidos nos vários e violentos conflitos ocorridos em Timor Leste entre 1975 e 1999. Enquanto os crimes considerados “graves” estão sendo julgados por uma Unidade para Crimes Graves instituída pelas Nações Unidas e vinculada ao Tribunal Distrital de Dili, os de menor grandeza são encaminhados para um complexo processo de reconciliação focado no bem-estar da vítima e na eliminação do rancor por ela sentido. As práticas da CAVR, embora vinculadas ao judiciário, aproximamse muito mais das formas e dos princípios de um biti boot. 171 era, sem dúivida, a Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR). Criada pela Missão da ONU em 2001 com mandato de 2 anos, prorrogado posteriormente por mais um, a Comissão tinha por função resolver casos de crimes cometidos entre 1975 e 1999 que não tivessem caído na alçada do Painel de Crimes Graves do Tribunal de Dili. Assim, casos que não envolvessem assassinato mas que haviam criado grandes ressentimentos dentro daquele período estavam sujeitos a ser tratados pela Comissão, por meio de audiências de reconciliação. Em tais eventos, abertos à comunidade, as duas partes contavam suas histórias, passavam por uma espécie de catarse e perdoavam-se mutuamente. Embora criada durante a vigência da administração da ONU no território, a Comissão tinha estatuto próprio e autonomia em relação ao Estado timorense. Seu quadro era composto por conselheiros timorenses de várias origens, e, não por acaso, a CAVR tinha forte apoio de Xanana Gusmão, sempre preocupado em valorizar as formas locais de justiça. Uma das iniciativas da presidência da república em 2003, por exemplo, embora não diretamente relacionada à resolução de conflitos, lembrava muito um biti boot. Denominado “Diálogo Nacional”, tratava-se de um evento composto por visitas de equipes da presidência a todos os distritos do país para discutir um tema anual com lideranças locais. Numa espécie de “grande esteira” que se estendia por sobre todo o território timorense, Xanana dava reconhecimento oficial às palavras locais. A despeito, porém, do sucesso da CAVR e de iniciativas como a de Gusmão, o governo não vinha se mostrando muito sensível para promover o reconhecimento oficial de uma situação de pluralismo jurídico. Direitos das mulheres: conciliando o inconciliável Um dos pontos mais críticos a uma possível integração entre estas diferentes formas de justiça era o que dizia respeito aos assim chamados “direitos das mulheres”. Segundo a leitura do discurso do gender, as formas locais de resolução de disputas não respeitavam direitos básicos das mulheres. Como pôde ser observado no capítulo anterior, o próprio documento base para a elaboração da lei de combate à violência doméstica enfatizava o que considerava ser a parcialidade das decisões locais e a falta de espaço dado às mulheres. Um dos documentos que mais explora o desencontro entre os sentidos de justiça local e o da justiça de Estado é o relatório de uma pesquisa do International Rescue 172 Committe (IRC) intitulada “Traditional Justice and Gender Based Violence”. Financiada pela USAID, a pesquisa foi conduzida por uma pesquisadora irlandesa com o apoio da equipe local do IRC, ouvindo em profundidade relatos de 25 mulheres que passaram por experiências variadas de violência doméstica e viram seus casos administrados pelas formas locais de justiça. O relatório retrata bem as incompatibilidades entre formas locais de justiça e os princípios da justiça formal. Segundo o texto, “um administrador de justiça resolve os casos focando nos eventos que ocorreram antes do ato de violência. Seja quem for que seja visto como culpado durante aquele período será então culpado pela violência (…) poderá ser o acusado, a vítima ou ambos” (IRC, 2003b:3). A preocupação de um lia na’in ao ouvir os relatos das partes é a de recuperar as atitudes anteriores à agressão e colocá-las em seu contexto original, buscando entender quem provocou o quê até chegar ao ato de agressão em si.93 Assim, o agressor não é, de antemão, culpado pelo gesto de violência. Tal atitude das formas tradicionais de justiça é criticada no relatório do IRC por nelas não se utilizar o princípio, orientador da justiça de Estado, de que a violência doméstica é crime independentemente da intenção do agressor. Assim, enquanto para o direito positivo um determinado ato de agressão é normalmente condenável, para a sensibilidade jurídica de grande parte das aldeias timorenses um gesto de agressão, por mais intencional que seja, não é em si motivo para condenar alguém.94 Se para a justiça de Estado “vítima” e “agressor” são duas categorias fixas e opostas, isso não acontece necessariamente nos processos alternativos de resolução de disputas. Em lugar de um sistema classificatório dual (vítima vs agressor), os operadores destas formas locais de justiça utilizam um sistema de ao menos quatro categorias (agredido vs agressor – vítima vs culpado) em que, a depender do histórico do relacionamento entre as partes, o culpado pode ser o agredido. Na justiça de Estado, isolar o ato do contexto de origem é fundamental para a construção de um processo. Como nota Corrêa, “a primeira iniciativa tomada pelo 93 Um lia na’in de Dili relatou-me um exemplo deste tipo de atitude em relação a um caso de conflito entre vizinhos. Um morador levara o caso à sua presença acusando o vizinho de ter matado um porco seu. O vizinho explicou que o porco estava destruindo sua roça e que advertira anteriormente o acusador para que este prendesse seu porco. Como o porco não fora preso e continuou a destruir sua roça, o vizinho matou o porco. No julgamento feito pelo lia na’in, a reação do vizinho fora justa e, portanto, não lhe cabia culpa pela morte do porco. O porco fora morto pela negligência de seu dono, e não cabia neste caso multa ou reparação. 94 É importante observar que a sensibilização da justiça de Estado para considerar crime qualquer ato de violência contra a mulher é relativamente recente mesmo em países ocidentais. Mariza Corrêa (1983) explora de modo pioneiro este processo na análise que faz de crimes passionais e do tratamento que recebiam no judiciário brasileiro nos anos 1970. 173 sistema repressivo legal (a polícia e depois o judiciário), cometida uma violação das leis que aplica, é isolar o fato do seu contexto original; a segunda é traduzi-lo para um código onde todas as possibilidades de violação – e suas possíveis legitimações – estão previstas” (CORRÊA; 1983:78). Contudo, como bem lembra a autora, este processo possui brechas nas quais, durante a transformação do ato em auto, é possível a manipulação da norma por parte dos operadores do direito de modo a dar novo significado ao ato: “Se, sob certas circunstâncias, o crime pode ser redefinido como não-crime, ser legitimado, caberá aos julgadores desse ato, basicamente, decidir se a pessoa a quem julgam agiu corretamente. Essa correção será estabelecida nos termos de quem julga e a partir dos termos de quem processa. Por isso a discussão aqui não será dos atos (...) mas dos autos. Todos os protagonistas dos casos aqui estudados cometeram a quebra da norma ‘não matar’, mas é a quebra de outras normas que vai determinar a sua absolvição ou a gradação de sua pena”. (Ibid.: 25) Neste sentido, pode-se ter situações em que o que defino aqui como direito positivo se aproxime muito das chamadas formas locais de justiça. A alegação, por exemplo, da legítima defesa é uma destas situações. Contudo, se na justiça de Estado são poucos os espaços previstos para este tipo de atenuante, nas formas locais de justiça isto é a norma. No caso da justiça de Estado, se a análise de fatores como a identidade social do acusado, seus antecedentes, valores culturais e regras de agir contam na decisão do júri (especialmente nos casos, até há alguns anos, da legítima defesa da honra), isso se dá no plano da manipulação das normas – no jogo que advogados e promotores buscam estabelecer com o que pensam ser o universo de valores do júri. Nas formas locais de justiça, a análise do contexto está por excelência no plano normativo. E talvez isso seja o que irritava ou ofendia de tal modo a sensibilidade jurídica do discurso do gender. O direito positivo, ao transformar os atos em autos, promove uma redução a termos que exclui ou silencia parte significativa dos acontecimentos. As formas locais de justiça, ao contrário, ao resgatar narrativas e contexto, promovem uma expansão dos acontecimentos. O padrão de se levar em conta um contexto ou uma intenção permite-nos desenvolver, igualmente, uma idéia já apresentada no segundo capítulo, na discussão elaborada por L. Cardoso de Oliveira acerca da distinção entre ato e atitude com base em uma intenção percebida. No caso das formas locais de justiça, não haveria dificuldades em lidar objetivamente com um sentimento ou intenção subjetiva, pois ao ser enunciada em uma narrativa, tal intenção ganharia materialidade – trata-se, como 174 bem notam Van Klingen e Fox, da centralidade da palavra. Para a sensibilidade jurídica do Estado, porém, não é possível reconhecer a legitimidade da intenção, pois, por mais que uma atitude se revista de atenuantes, será considerada crime caso se enquadre no quadro prescritivo legal como tal. Isto ficou claro nos embates retratados durante a consulta da legislação de combate à violência doméstica (cf. cap.3), especialmente quando se tinha a presença categórica de um advogado (Silvério), a reafirmar os princípios da sensibilidade jurídica de Estado, em Oecussi. Outra diferença entre os sistemas que costuma ser evocada em documentos sobre o tema como um exemplo da inadequação da justiça tradicional para lidar com demandas de gênero diz respeito à idéia de compensação. Em um relatório de uma oficina promovida pelo JSMP para discutir o futuro das formas locais de justiça, um item destinado aos direitos das mulheres afirma: “Três grupos notaram que a dignidade das mulheres pode ser tratada como mercadoria neste sistema, por exemplo, em um caso de estupro, no qual a família da vítima recebe compensação financeira ou de outro tipo pela perda de sua dignidade” (JSMP, 2002: 7)95 É curioso que justamente aquilo que torna possível a reparação da honra da vítima nas formas locais de justiça pareça ofender de tal modo a sensibilidade jurídica do Estado. Fora do contexto em que se origina, o princípio da compensação reduz-se a uma espécie de mercantilização da mulher. Algumas versões do discurso do gender fazem questão de tomar as mulheres como indivíduos em oposição ao grupo. Um trecho do relatório do IRC é bastante expressivo deste tipo de discurso: “As abordagens e atitudes inerentes àqueles que controlam o acesso aos sistemas de justiça existentes em Timor-Leste pouco reconhecem as conseqüências de suas ações sobre as mulheres.” Criticando a atitude tanto de policiais quanto de operadores da justiça local e de familiares, o relatório continua: “Mulheres estão sendo mandadas de volta para casa para situações de risco potencial, sem nenhuma garantia de que o problema tenha sido tratado adequadamente ou de que a violência irá cessar. A separação de um parceiro violento não é uma opção na justiça tradicional e as mulheres são freqüentemente condenadas pelas pessoas da comunidade por recorrerem aos policiais, vistos como ‘facilitadores do divórcio’. A pressão, tanto dos operadores da justiça local quando dos membros da família, coloca as mulheres 95 “Three groups noted that women’s dignity can be treated as commodity in this system, for example in a rape case where the victim’s family is given financial or other compensation for her loss of dignity”. 175 em situação de grande tensão e com freqüência determina que caminho para a justiça elas decidem trilhar, isto quando elas chegam a buscar justiça.” (IRC, 2003b:3).96 Discursos como este tomam a mulher como indivíduo, absolutamente descolada da comunidade em que sua vida tem sentido – um verdadeiro unencumbered self. O trecho citado evidencia a construção de uma oposição “mulheres” versus “comunidade, operadores do direito tradicional ou polícia”. Há, neste discurso, uma tendência a tornar as mulheres exóticas ao seu próprio grupo. É como se elas não fizessem parte daquele sistema e não compartilhassem com os demais atores uma mesma percepção acerca do ato de força e de quando ele se torna violência. Por argumentos como esse, os katuas fazem parte de um mundo – falocêntrico e patriarcal – e as mulheres fazem parte de outro. Este discurso ignora, por exemplo, que muitas vezes não é a mulher quem leva o caso à polícia. Como veremos no próximo capítulo, muitos casos são reportados à polícia por um irmão ou parente da mulher, que age assim em nome da família. A mulher à qual o texto do IRC se refere parece não ser parte da família. Ela aparece como um indivíduo com vontade própria que, oprimido pela pressão social do grupo, resignase a aceitar a violência e a não “buscar justiça”. Segundo a lógica deste discurso, se as mulheres não “buscam justiça” é porque estão sendo reprimidas pela “cultura”, a tal ponto em que muitas não se perceberem como vítimas de violência. A idéia de que as mulheres não percebem serem vítimas de uma relação violenta não é uma novidade nos discursos que se formam em torno da violência doméstica. Em seu estudo sobre o SOS Mulher de São Paulo, nos anos 1980, Bibia Gregori mostra como isso era parte da idéia que movia os grupos de ajuda mútua entre as mulheres. Isto exigia, nos termos do discurso feminista, “práticas de conscientização”, uma consciência alcançada por meio “de uma experiência coletiva de desvendamento de vivências particulares” (GREGORI, 1993: 49). Esta abordagem pressupõe que a violência independe da forma como ela é percebida pelas mulheres e, com isso, deixa de observar (por não achar importante) a 96 “The approaches and attitudes inherent in those controlling access to the existing justice systems in Timor Leste are doing little to recognize the consequences of their actions on women. (…) Women are being sent home to potentially hazardous situations, with no guarantees that the problem has been adequately dealt with or that the violence will stop. Separation from a violent partner is not an option in local justice, and women are often condemned by community peers for going to the police who are seen as facilitators of ‘divorce’. Pressure from both holders of local justice and family members put severe stress on women and often determine what routes of justice they choose to follow, if they look for justice at all”. 176 forma como essas mulheres dão sentido a suas experiências. Qualquer elaboração que façam será sempre a mistificação de uma ideologia opressora. Certamente isto põe graves limites à pesquisa feita pelo IRC. Tais limites não me parecem, contudo, fruto de uma incapacidade analítica de seus atores, mas da decisão política acerca do que deva ser uma resolução equânime de um caso. A pretensão de resolução equânime aqui está marcada pelo compromisso com valores universais que pressupõem uma disputa entre indivíduos. Neste sentido, o texto do IRC é um discurso plenamente válido no campo político que se forma em torno da instituição da violensia domestika. Em função de suas escolhas, contudo, não se pode deixar de observar que este discurso cria um viés na análise que torna difícil uma percepção adequada acerca de quais situações podem ser melhor resolvidas por vias locais/tradicionais e quais não. Certos casos, como veremos no próximo capítulo, podem bem ter uma resolução adequada por via local. Mas para entender razoavelmente porque é adequado ou não resolvê-lo desta ou daquela maneira, é preciso pressupor que a pretensão de resolução equânime é resgatável – ou seja, faz sentido para as duas partes. É preciso saber ouvir dos atores em causa como e se são capazes de construir uma argumentação convincente acerca da adequação daquele procedimento. É isso que a escolha política da pesquisa do IRC impede. Assim, pesquisas como a do IRC estão naturalmente limitadas pelos compromissos que assumem com o quadro referencial político em que se inscrevem – e não poderia ser diferente, como bem lembra Donna Haraway (1995) em sua crítica ao olho de Deus. Neste campo político, tais pesquisas, originalmente produzidas como base para o planejamento de projetos de intervenção social, ganham vida própria, reforçando, com o argumento da tecnicidade (afinal, são “pesquisas”) tal ou qual decisão política. Curiosamente, embora construam uma “mulher” individualizada e com vontade própria, tais discursos têm como efeito colateral a retirada da capacidade de agência das mulheres. É este o efeito criado pelas armadilhas de um discurso vitimizador que retrata a mulher como aquele indivíduo aprisionado pelas garras da comunidade e que nada pode contra esta situação. A única saída possível acaba por ser a intervenção redentora de agentes externos, capazes de promover as mudanças necessárias no desigual jogo de poder da cultura local. Não por acaso, em um item intitulado “The Need for Change”, o texto conclui que: 177 “Enquanto tais mudanças demoram a acontecer, as mulheres continuam sofrendo da violência que está sendo perpetrada diariamente contra elas e em todos os níveis da sociedade. Serviços para mulheres são necessários para apoiar as mulheres na busca pela justiça e protege-las dos perigos que já existem e que podem ser criados pelo uso de ambos os sistemas de justiça”(Ibid.:4 – grifos meus).97 O eventual relacionamento entre formas locais e justiça de Estado não era complicado apenas por conta dos direitos das mulheres. A discussão sobre a articulação desses sistemas trazia à tona a corda sensível das relações entre governo e comunidades locais, tal como vimos na descrição da consulta à legislação de combate à violência doméstica, especialmente em Baucau (cf. Cap.3). O seminário do JSMP sobre justiça tradicional registrou este problema. Em um item intitulado “A influência do governo no sistema formal”, o relatório da oficina afirma que “dois grupos disseram que o sistema formal [de justiça] é importante somente para o governo e que este sistema não dá nenhuma atenção ao povo.”98 Penso que podemos tomar governo aqui como metonímia de todo o conjunto de atores que, no capítulo 2, foram caracterizados como os que dão voz a um discurso oficial do gender. O jogo entre governo e povo não deixa de ser uma discussão sobre o reconhecimento social da autoridade. Quem tem legitimidade para julgar um caso? De quem se pode esperar uma decisão “justa”? Nos termos do relatório do JSMP: “Um conjunto de perguntas foram colocadas no seminário sobre quem pode ser elegível para praticar o sistema local de justiça, que mecanismos serão usados para identificar estes operadores e o tipo de conhecimento e habilidades que os operadores deveriam ter para operar de modo competente o sistema local de justiça. Atualmente, a operação deste sistema é feita por chefes de suco e de aldeia, administradores de sub-distrito e membros da Falintil. Os participantes [do seminário] consideraram que seria muito importante revisar o atual sistema de justiça local em Timor-Leste e revisar os mecanismos locais de justiça, uma vez que muitos destes parecem contrariar princípios de direitos humanos. O sistema local de justiça também precisa ser confiável e facilmente acessível para aqueles que buscam soluções por meio deste sistema.”99 (JSMP, 2002:10) 97 While, these changes may take a long time, women are still suffering from violence which is being perpetrated against them daily and in all levels of society. Women’s services are needed to support women in the search for justice and protect them from the dangers which already exist and may be created through their use of either of the existing justice systems. 98 The influence of government in the formal system • Two groups said that the formal system is only important to the government, and that the system does not pay any atention to the people 99 “A number of questions were posed at the seminar about who is eligible to practice in the local justice system, what mechanisms will be used to identify those practitioners, and the kind of knowledge and ability practitioners should have in order to be able to competently practice in the local justice system. Presently, individuals practicing within the system include the chiefs of villages and sub villages, chiefs of Sub districts, and members of Falintil. Participants believed it was very important to review the current 178 Ao colocar as questões nestes termos, o tipo de discurso retratado acima cristaliza a idéia de que, a despeito das múltiplas formas que a resolução de disputas toma em diferentes localidades, pode-se falar em um “sistema local de justiça”. David Mearns, antropólogo australiano, em uma pesquisa encomendada pela Australian Legal Resources (MEARNS, 2002) critica esta idéia na medida em que os procedimentos e as autoridades envolvidas em formas locais de resolução de conflitos variam muito entre os diferentes grupos étnicos de Timor-Leste. O discurso político construído em torno do tema, contudo, não deixa espaço para estas nuances. Por meio da abstração em torno de “um sistema” tradicional, pode-se construir mais facilmente tanto as críticas que condenam “a justiça tradicional” por se opor aos direitos humanos, quanto as propostas de integração entre os sistema formal de justiça e “o sistema” tradicional. Tentando articular estes dois elementos, o seminário do JSMP conclui com uma proposta curiosa por paradoxal: “É particularmente importante recomendar ao governo de Timor-Leste que este apóie o sistema local de justiça com base em princípios internacionais de direitos humanos”100 (Ibid:12) Enquanto alguns setores preocupavam-se em uma possível interligação entre o sistema formal de justiça e o “sistema local” com base em princípios de direitos humanos, esta não era uma idéia que o projeto FNUAP/ GPI visse com simpatia. Para os envolvidos nesse projeto, a questão era garantir que os direitos humanos (particularmente os direitos das mulheres) fossem respeitados dentro do próprio sistema formal de justiça. Várias críticas vinham sendo levantadas contra a atuação de juízes e procuradores que, nos casos de violência doméstica, agiam mais como mediadores do que como operadores da lei. A própria Unidade de Pessoas Vulneráveis da polícia vinha resolvendo casos leves de violência doméstica com pequenas sessões de mediação na delegacia, em uma espécie de reprodução de um biti boot. Para o GPI, isso devia ser combatido o quanto antes, e os dois alvos primordiais do projeto passaram a ser os promotores do Ministério Público e os policiais da UPV. local justice system in East Timor and to review local justice mechanisms, as many of these appear to contravene human rights principles. The local justice system also needs to be reliable and easily accessed by those who seek remedies from the system”. 100 “It is particularly important to recommend to East Timor’s government that it supports the local justice system based on international human rights principles”. 179 “Como deveria ser a vida” Um Manual para os Procuradores O escritório do Procurador Geral da República, com o apoio de assessores internacionais, já vinha se preocupando com a questão da aplicação da lei nos casos de violência doméstica. Havia esboçado, por conta disso, um pequeno manual intitulado “Policy for Prosecuting Cases of Domestic Violence”. Quando o GPI soube da iniciativa imediatamente procurou trazê-la para o âmbito do projeto com o FNUAP. Estabeleceu-se assim uma parceria entre a Procuradoria Geral, o GPI e o FNUAP da qual resultou o “Guia para o exercício da acção penal em casos de violência doméstica”, um pequeno manual bilíngüe (português/ indonésio) lançado no final de outubro de 2003. Curiosamente a cerimônia de lançamento se deu toda em português. Até mesmo o diretor local do FNUAP, o norte-americano Dan Baker, leu seu discurso em português, seguido por falas de Micató e do procurador geral, Longuinhos Monteiro. Entre o público presente, porém, constituído basicamente por ativistas de direitos humanos e das mulheres ligados a ONGs locais e os próprios promotores, poucos eram os que entendiam este idioma. Logo no prefácio, assinado por Baker, o documento reforça a intenção de inibir a mediação dos casos fora dos tribunais: “Este guia tem o grande mérito de reforçar a idéia de que a violência doméstica é um crime e que deve ser tratada como tal. Os processos-crime não podem ser solucionados através de mediação”. (GUIA, 2003:5). O texto seguinte, assinado por Micató, lembra ainda que o guia se enquadra em um processo mais amplo de combate à violência doméstica, encampado pelo GPI desde 2001, e dá continuidade ao trabalho de elaboração da legislação de combate à violência doméstica: “O Gabinete para a Promoção da Igualdade tem vindo lutar por uma cultura de igualdade, entre outras coisas, lutando contra a violência baseada no género (...) através da aprovação de legislação sobre violência doméstica e da prestação de respostas multi-sectoriais coordenadas para as vítimas. (...) No entanto, uma vez que o processo de discussão e aprovação de legislação provavelmente apenas poderá ficar concluído a médio ou longo prazo, o Gabinete para Promoção da Igualdade deu o seu apoio à publicação dessas linhas de orientação para o exercício da acção penal pela procuradoria em casos de violência doméstica”. (Ibid.:8) 180 Por fim, ainda nos textos introdutórios, o Procurador Geral reafirma seu compromisso com o combate à violência doméstica, considerada como uma atitude nociva ao que ele define como a “ordem moral” do país: “Estamos fortemente convictos de que toda a sociedade Timorense tem de apelar para a coragem moral de dizer ‘não’ a qualquer tipo de violência, ‘não’ a qualquer tipo de conflito ou destruição violenta; ‘não’ ao terror permanente e à destruição moral que a Violência Doméstica representa para a nossa comunidade. Os valores da liberdade, da responsabilidade e da ética, como fundamentos de todo o tipo de relacionamento interpessoal são aqueles que temos de promover em Timor-Leste de forma a fazer com que a nossa verdadeira paz social seja uma realidade. Apenas a promoção deste tipo de valores no nosso relacionamento (a começar pelas relações familiares) poderá conduzir o nosso país para um real avanço e sucesso em todas as áreas.” (Ibid.:10) Com isso, Longuinhos Monteiro leva a argumentação para além da questão dos “direitos da mulher”. Sua ênfase em uma ordem moral ameaçada pela violência coloca a questão em bases que não assentam no indivíduo, mas na manutenção da ordem pública, atribuição constitucional de sua Procuradoria. É, certamente, uma estratégia diferente daquela que vinha até então sendo esboçada, embora lembre a oscilação entre indivíduo e família presente no texto-base para a legislação de combate à violência doméstica (cf. Cap.3). Argumentando que a violência doméstica compromete a promoção de uma “paz social”, o procurador passa, de um discurso fundado em uma ideologia individualista, para um assentado em valores da coletividade, dos quais o Ministério Público seria guardião. Ainda em sua introdução, Monteiro diz que: “a própria ordem moral exige pois a criação desse tipo de autoridade pública. A Constituição da República de Timor-Leste indica claramente que ‘o Ministério Público representa o Estado, exerce acção penal, assegura a defesa dos menores, ausentes e incapazes, defende a legalidade democrática e promove o cumprimento da lei”. O compromisso com esta “ordem moral” é novamente enunciado no final do “Guia”, quando o Procurador Geral faz suas “Observações Finais”: “Temos de começar a trabalhar no sentido de uma mudança geral de atitude. Temos de educar o povo sobre qual é a forma de comportamento mais correcta e sobre a forma como devem controlar os seus impulsos. Esta é a única forma pela qual o actual modelo de relação inter-pessoal pode ser alterado. Temos de começar a dar às crianças – o mais jovens possível – uma visão de como deveria ser a vida.” (GUIA, 2003:26). 181 No interesse do Estado O documento é dividido em 10 breves seções centrais, nas quais se apresentam a definição do conceito de violência doméstica, os princípios do código de conduta do Ministério Público, dicas para o promotor decidir se deve ou não dar prosseguimento a uma acusação, dicas para verificação de provas, medidas cautelares a serem tomadas durante um processo e os artigos do código penal indonésio que amparam a prossecução de casos de violência doméstica. Disto tudo, é particularmente interessante o arrazoado que o texto faz em favor da existência de linhas de orientação para a condução deste tipo de caso e o tipo de ponderação proposto para julgar se e como prosseguir com um processo. A seção sobre a “Necessidade da existência de Linhas de Orientação no Exercício da Acção Penal em Casos de Violência Doméstica” enfatiza o mandato constitucional dos integrantes do Ministério Público para defender grupos tidos como fragilizados. Este caráter ventríloquo da promotoria fica explícito em trechos como o que segue: “1.3 Sabemos que existem barreiras nos casos de Violência Doméstica, o que significa que determinados grupos de pessoas têm menor probabilidade de denunciarem os crimes de que são vítimas. Este facto é verdadeiro para os grupos étnicos minoritários, para as pessoas incapazes, podendo ainda alargar-se às lésbicas e aos homossexuais (situação que ainda não ocorreu em Timor). As barreiras podem ter origem em racismo institucional ou noutros tipos de discriminação. Pode também ter ainda origem em questões culturais, religiosas ou étnicas” (Ibid:12). Para além da curiosa suposição de que não há homossexualismo em Timor-Leste (postura que evidencia, ao mesmo tempo, o caráter normativo do texto e o poder da Igreja Católica na construção dessa norma), trechos como este evidenciam a idéia de que um crime independe da percepção que a suposta vítima possa ter do mesmo. Mais do que isso, enfatiza que nem todos estão em condição de perceber algo como agressão a seus direitos, e cabe ao Ministério Público agir como guardião de tais direitos. A “incapacidade” de agir (ou mesmo de perceber) é, neste trecho, explicitamente relacionada a formas culturais. Em outra passagem, o texto chega a afirmar: “Por vezes sugere-se que determinados comportamentos são mais aceitáveis em determinadas comunidades que noutras. Pela nossa parte, pensamos que as diferenças culturais não são motivo para deixar de proteger as vítimas de Violência Doméstica pertencentes a uma determinada minoria étnica”. (Ibid: 12) 182 Ao tratar formas locais de percepção da violência como manifestações de “uma determinada minoria étnica”, o argumento do texto só pode nos levar a crer que o padrão nacional “timorense” passa a ser a não-tolerância para com o uso da força nas relações interpessoais. É assim que o Estado define como “deveria ser a vida” e, como defensores do Estado, os promotores devem empenhar-se em fazer valer esta percepção. A seção conclui em um tom que lembra muito o “credo” litúrgico, enunciando em que os magistrados do Ministério Público acreditam e em função do que devem agir: “Sabemos que a Violência Doméstica tende a ser mais freqüente (...). A Erradicação da Violência Doméstica e levar os autores de crimes até a barra dos tribunais deverão pois constituir prioridades para os nossos Magistrados (...) Teremos de trabalhar e cooperar com nossos colegas (...) Finalmente, acolhemos de bom grado todas as iniciativas de terceiros, nacionais e estrangeiras que apóiem as pessoas frágeis ou vulneráveis (...)” (Ibid.:12-13). Outras seções às quais vale fazer referência são as que dizem respeito ao “Código de Conduta do Magistrado” e à maneira pela qual deve ser decidida a continuidade ou não de um procedimento. Nelas, apresentam-se dois princípios que o promotor deve ter em conta para decidir se um caso deve ou não ser encaminhado a julgamento: o “Teste Probatório” e o “Teste do Interesse Público”. Assim, “se existirem provas suficientes que possam sustentar uma perspectiva realista de obtenção de uma condenação contra cada um dos acusados”, o caso passa pelo teste probatório. Restará ainda “decidir se a acusação é ou não de interesse público”. Isto é posto no sentido de que, “em princípio, deverá avançar-se para a acusação excepto se existirem factores de interesse público cuja importância ultrapasse claramente as vantagens de exercer a acção penal”. Tais mecanismos, em tese postos como filtros destinados a frear a consecução penal, são elaborados no guia como fatores que justificam o encaminhamento de um processo de violência doméstica. O argumento, desenvolvido na quarta seção do guia, transforma a idéia de “interesse público” em uma ferramenta capaz de sustentar a continuidade de um processo mesmo à revelia da vítima. Segundo o guia, o interesse público não deve ser confundido com “o interesse de qualquer pessoa em particular”. Assim, se houver provas da violência e o promotor julgar – de acordo com a lógica já enunciada pela introdução de Longuinhos Monteiro – que tal vai contra a “paz social” e a “ordem moral”, pode ancorar-se no “interesse público” para dar prosseguimento ao caso. Segundo o guia: “muitas vezes a ponderação deste equilíbrio revela-se difícil. As opiniões e interesses da vítima são importantes mas não podem constituir a última 183 palavra no que respeita à decisão de deduzir ou não acusação.” (Ibid.:14). O texto conclui a seção reafirmando que: “Em termos gerais, se o Magistrado do Ministério Público dispuser de provas suficientes, quanto mais grave for a conduta ilícita ou maior o risco da prática de condutas ilícitas posteriores, maior probabilidade terá o Magistrado do Ministério Público de deduzir acusação no interesse do Estado (público) (...) mesmo que as vítimas declarem que não desejam que o Magistrado do Ministério Público o faça”. (Ibid:15). Treinando a polícia Se a atitude dos promotores preocupava o GPI, a dos agentes de polícia não ficava atrás. Desde sua formulação, em 2001, o projeto com o FNUAP já previa o treinamento dos cadetes da Polícia Nacional de Timor-Leste para sensibilização relativa aos casos de violência doméstica. Assim, quando a PNTL foi formalmente instituída, em maio de 2002, seus quadros já tinham recebido algum treinamento sobre o tema. Na verdade, violência doméstica inscrevia-se em um conjunto mais amplo de conceitos e valores relativos aos direitos humanos que povoavam o treinamento e a estrutura da PNTL. A preocupação com o respeito aos direitos humanos fazia parte de todo um aparato montado para construir a imagem de uma polícia que, ao nascer, se diferenciava daquela que exercera seus arbítrios durante os 24 anos de ocupação indonésia. A vontade de mostrar-se diferente de tudo o que lembrasse o período indonésio era efetiva não somente entre os oficiais como entre os cadetes e ajudava a criar uma atmosfera bastante receptiva às idéias de direitos humanos. Isto podia ser observado já na estrutura da PNTL. Além de uma Unidade de Pessoas Vulneráveis (UPV), a polícia tinha em todos Distritos uma Unidade de Polícia Comunitária (Community Oriented Policing - COP). No currículo dos cadetes, uma seção inteira era dedicada a “Investigação e Direitos Humanos”, em que se discutiam tópicos como: “1. O conceito de Direitos Humanos e sua importância para o trabalho da polícia 2. Por que Direitos Humanos são Fundamentais em uma Sociedade Democrática 3. Direitos Humanos do acusado e das vítimas, responsabilidades dos policiais 4. Organizações de Direitos Humanos em nível internacional, nacional e local e suas atividades 5. Provisões constitucionais e de Direitos Humanos” (POLICE ACADEMY, 2003:20) 184 No dia-a-dia, esta imagem era reforçada por meio de programas de visitação com as escolas, pelos quais alunos de séries primárias eram levados a conhecer as unidades especiais da polícia e estimulados a levar tais valores para casa. No final de 2002, porém, um incidente marcante veio a turvar essa imagem. No dia 3 de dezembro, um grupo de policiais entrou em uma escola secundária de Dili para prender um grupo de estudantes acusados de envolvimento com um caso de agressão a policiais. Os estudantes estavam em meio a um exame, e a forma súbita como foram presos e levados para fora da sala revoltou seus colegas e professores. A situação logo se encaminhou para um clima de conflito entre policiais e estudantes, terminando com um veículo queimado. No dia seguinte, os estudantes organizaram um protesto na praça em frente ao palácio do governo, que já estava tomada por manifestantes de um grupo político rival à Fretilin. A superposição dos protestos desorientou a polícia que fazia a segurança do local e logo um clima de grande tensão eclodiu em um violento quebraquebra que terminou com vários prédios queimados muitos feridos e dois estudantes mortos por tiros da polícia. O episódio de 4 de dezembro desencadeou inúmeras interpretações acerca de que grupos e que motivos estavam envolvidos no que parecia ser uma tentativa de desestabilização do governo. Em meio às várias opiniões contrastantes, porém, era comum a crítica à forma apressada e pouco cautelosa que marcara a ação da polícia. Dizia-se que o curto período de treinamento dos cadetes (três meses), motivado pela pressa em formar o quanto antes um corpo policial a tempo da restauração da independência, a 20 de maio de 2002, resultara em um quadro despreparado e ineficaz. As críticas à ação pouco habilidosa dos policiais apressaram a discussão sobre um novo formato para a formação dos cadetes da PNTL, levando a Academia de Polícia a apresentar ao governo uma proposta de treinamento básico de 6 meses, reforçando inclusive o treinamento acerca de direitos humanos. A proposta – Six Month Curriculum for basic training – foi o resultado de discussões entre a Academia de Polícia, o Ministério Público, a Unidade de Direitos Humanos da UNTAET e o GPI. A pressão do GPI por participar da elaboração do currículo vinha da avaliação de que as então 4 horas dedicadas ao tema da violência doméstica no treinamento de 3 meses aos cadetes vinha sendo insuficiente. Em uma manhã de treinamento, pouco se podia desenvolver. É certo que o treinamento à polícia não se resumia aos cadetes. Um projeto específico era realizado com as unidades de pessoas vulneráveis de todos os distritos. O treinamento dos cadetes, contudo, era a garantia de que todo policial viria a ter um nível mínimo 185 comum de compreensão acerca de como casos de violência doméstica deviam ser tratados. Assistindo a uma dessas sessões de treinamento aos cadetes, pude ver mais claramente o que o discurso do gender esperava da polícia na consolidação de uma arena de Estado para construção e resolução dos casos de violência doméstica. O treinamento era feito pela funcionária local do FNUAP, Ita, uma indonésia casada com um timorense. Recentemente o projeto FNUAP-GPI havia contratado mais uma pessoa local, Idelta, especialmente para acompanhar a consulta para elaboração da legislação e participar dos treinamentos à polícia. Às 8h já estavam todos os cadetes – 48 homens e 3 mulheres – na sala de aula, prontos para começar o treinamento. Era a turma de número 49. Os cadetes vinham de vários distritos do País e estavam na terceira semana de treinamento. Poucos eram muito jovens. A maior parte aparentava estar entre 30 e 40 anos. Um grupo de uns 10 visivelmente tinha mais de 40 anos. Ita começou apresentando a agenda. Reproduzindo um hábito comum a outros treinamentos que pude acompanhar em campo, os cartazes com a agenda do dia e os conceitos-chave estavam todos escritos em indonésio. Na verbalização dos mesmos, utilizava-se um misto de tétum e indonésio. A agenda começava pela definição dos tipos de violência doméstica (Bentukbentuk Kekarasan dala rumah tangga, em indonésio) – física, psicológica, sexual e econômica. Na seqüência apresentavam-se dados sobre o perfil do agressor e da vítima, os direitos da vítima e os fatores que levavam à violência doméstica. Quanto a este último, o desataque ficava por conta dos fatores culturais (faktor budaya). Depois de indicar como o barlaque (a riqueza da noiva) e a cultura patriarcal tornavam a mulher vulnerável à violência doméstica, Ita perguntou: “Vocês pensam que isso deve se manter ou mudar um pouco?”, ao que todos responderam: “mudar”. Polonês, para mim, é grego A agenda era baseada em um modelo de treinamento desenvolvido em meados de 2002 para uma oficina de 4 dias voltada aos oficiais da Unidade de Pessoas Vulneráveis (UVP) da PNTL, intitulada “Training of Trainers – Police Basic Training on Domestic Violence”. A capa do documento era já um claro atestado da alargada geografia de produção e circulação dos conceitos que o recheavam. Embora o documento fosse escrito em inglês, sua capa era ilustrada por uma peça de propaganda 186 contra a violência doméstica de uma campanha polonesa (cf. figura 6). Nela, um homem caucasiano de meia idade, trajando camisa social, suspensórios e gravata, aparecia atrás das grades de uma cela, com olhar cabisbaixo e amargurado. Sobre a imagem, lia-se: “Przemoc wobec kobiet jest PRZESTĘPSTWEM” e, logo abaixo: “STOP – Nic nie usprawiedliwia przemocy”. Dificilmente se poderia encontrar imagem e língua mais distantes do contexto local para ilustrar o tema de um treinamento. O curioso era que o cartaz reproduzia quase na mesma seqüência e nas mesmas referências, o cartaz da campanha do GPI – este também fazia referência à prisão, apresentando mãos algemadas, e trazia no texto as mesmas idéias (cf. Cap.2).101 O documento tinha seis módulos. O primeiro apresentava uma definição “internacional” de violência doméstica e experiências de outros países. Era aqui que se definiam os quatro tipos de violência de que Ita e Idelta falavam, bem como os perfis de agressor e vítima e os direitos das vítimas. O segundo módulo apresentava os fatores que levavam à violência doméstica em Timor-Leste. Aqui, por um lado, reforçava-se a idéia, já apresentada em outros discursos sobre a violência (cf. Cap.2) de que o contexto de recente violência política no país tornava a população menos sensível aos atos de violência do dia-a-dia: “Alguns dizem que pelo fato de Timor-Leste ter sofrido por tanto tempo com o conflito, as pessoas se tornaram brutais. Esta experiência de viver em um ambiente violento pode causar efeitos psicológicos que, mais tare, manifestamse na violência pública e doméstica.” (TRAINING, 2002:5) Por outro lado, caracterizavam-se os “fatores culturais” – “barlaque”, “tradições patriarcais” e “Justiça tradicional” – como co-responsáveis pela violência contra as mulheres. Quanto às formas locais de justiça, é interessante notar o que o texto aponta como: “Fraquezas deste sistema tradicional: a) b) ele não provê sanções suficientemente severas para realmente agir como inibidoras ele não se dirige às raízes do problema, sejam elas fatores culturais ou psicológicos/individuais.” (Ibid: 7) 101 O cartaz em polonês dizia: “Przemoc wobec kobiet jest PRZESTĘPSTWEM” (Violência contra as mulheres é CRIME) e “STOP – Nic nie usprawiedliwia przemocy” (Pare – nada justifica a violência). A versão timorense trazia os dizeres “Violensia Domestika: ne’e krime no kontra direitus humanus. Laiha tan perdua. Stop!!” (Violência doméstica é crime e contraria os direitos humanos. Chega de perdão. Pare!!) 187 Figura 6: capa do manual de treinamento para policiais A partir do terceiro módulo o treinamento se volta especificamente para a polícia. Apresenta-se o quadro legal que ampara o combate à violência doméstica em Timor-Leste – tratados internacionais e a legislação indonésia, sendo esta criticada como extremamente limitada quanto à definição da violência e pelo tratamento desigual dado às mulheres. Comentam-se os efeitos da violência doméstica para a vida de vítimas, agressores e crianças. Por fim, descrevem-se as respostas que devem ser dadas à violência doméstica, enfocando-se o papel da comunidade, responsável por dar proteção à vítima, acolhe-la e denunciar os casos à polícia, e da polícia, responsável por: “ ● Receber relatos do incidente de violência doméstica e investiga-lo. • Mostrar e explicar à vítima, de modo claro, as responsabilidades da polícia, explicar que violência doméstica é um crime, sem culpar a vítima, e esclarecer a vítima sobre seus direitos e sobre os procedimentos da polícia para o caso. • Garantir proteção e segurança para a vítima. • Providenciar transporte e acompanhar a vítima para tratamento médico. • Garantir o anonimato e a segurança das testemunhas.” (ibid.:19) 188 Estes pontos não chegavam a configurar procedimentos operacionais padrão. Estes ainda não estavam definidos para os casos de violência doméstica e eram uma das preocupações da assessora portuguesa de Micató. Tais procedimentos (SOP – Standart Operational Procedures) viriam a sair no final de 2003, sob a forma de uma pequena caderneta, publicada com recursos do FNUAP e da agência Neozelandesa de Cooperação Internacional (NZAid). No manual de treinamento, contudo, havia propostas com caráter ainda mais normativo do que listas de procedimentos-padrão. Eram verdadeiras listas de procedimentos mentais e sociais a serem reproduzidos pelos policais. Uma destas listas está em uma tabela comparativa entre “mitos e fatos” sobre violência doméstica. Ao apresenta-lo, o documento afirma que: “mitos são crenças comuns que servem para encobrir a existência da violência doméstica. Tais crenças são aceitas como ‘senso comum’ ou ‘conhecimento tradicional’ desviando a atenção da natureza verdadeira da violência. Normalmente estes mitos servem para proteger o agressor e culpar a vítima” O caráter profundamente normativo do texto, definidor de uma razão ou natureza verdadeira (e, portanto, universal) por trás da violência doméstica, em relação à qual toda e qualquer elaboração cultural é mera cortina de fumaça destinada a proteger “o agressor” lembra aqui a indicação dada aos promotores para não deixarem de processar crimes em razão das “diferenças culturais”. Em ambos os casos vê-se o pressuposto de que o fenômeno “violência doméstica” pode ser reduzido a termos universais a partir dos quais se pode medir a resposta de qualquer indivíduo. A idéia de uma verdade universal sobre a violência doméstica desembocava, no manual de treinamento policial, no que se chamava “o ciclo da violência”. Segundo o manual, o “processo de comportamento violento” possui “fases”, que podem ser esquematizdas da seguinte forma: “Fase 1 – Construção da tensão: vários pequenos incidentes de abuso que com o tempo tornam-se mais severos. Muita discussão, culpa e raiva, que acelera em direção ao segundo estágio da violência. Fase 2 – Pancadaria: explosão, raiva incontrolável que pode durar horas ou dias, com ocorrência de ferimento físico. O agressor irá minimizar, racionalizar ou negar o comportamento quando o ataque tiver acabado. Fase 3 – Remorso: às vezes chamado de período da lua-de-mel, quando o agressor se comporta gentilmente, quer perdão e promete que ‘isto nunca acontecerá de novo’.” 189 O texto faz, contudo, uma ressalva: “Observe, porém, que o ciclo da violência não se aplica a todos os relacionamentos violentos. A duração de cada fase é um fator individual, alguns casais podem experimentar o ciclo completo várias vezes por dia, outros podem levar semanas até completar um ciclo” (ibid.:12). A abordagem claramente psicológica que o texto faz da violência pressupõe um sujeito tão universal quanto se supõe o fenômeno da violência doméstica; um indivíduo capaz de dar a mesma resposta subjetiva sob tais ou quais condições objetivas. Quando há ressalvas, estas não se referem a diferenças culturais, mas às idiossincrasias de cada casal – o tal “fator individual”. O uso de referenciais da psicologia revela igualmente outro recurso comum nestes discursos: o uso do conhecimento supostamente técnico ou científico como fonte de autoridade. O caminho, por exemplo, para argumentar contra os “mitos” é utilizar estatísticas. Assim, desmente-se a idéia de que “violência doméstica não é algo comum” mostrando-se que “cerca de 16% a 52% das mulheres de países desenvolvidos e em desenvolvimento relatam terem sido fisicamente assediadas por seus parceiros” (UNFPA; 2002:8). Não importa definir a fonte dos dados ou qualificar ‘assédio físico’. A aura de cientificidade em torno dos números, tal como dos efeitos psicológicos evocados no círculo da violência, cumpre a função de tornar o discurso válido. Na proposta de inclusão do tema “Violência Doméstica” no currículo de seis meses, o GPI encaminhou a seguinte sugestão à academia de polícia: “Seção C – Investigação & Direitos Humanos Seção 1: Criminologia » integrar na seção 1.1.2 – Fatores criminogênicos: (assegurar-se, antes de iniciar, que as pessoas compreenderam claramente a definição de violência doméstica e relações domésticas) • Psicológicos: Poder, questões de controle e o Ciclo da Violência • Sociológicos: ‘Percepção da VD’, ‘Mitos e Fatos sobre Violência Doméstica’, ‘Razões comuns e Desculpas Culturais para a Violência Doméstica’ & ‘Fatores que contribuem para a VD em Timor-Leste’ (raízes da VD no contexto cultural de TL, sociedade patriarcal (valores e comportamentos decorrentes); a questão público/privado; atitudes da polícia e sensibilização). • Econômicos: Razões econômicas que levam à VD”102 102 NOTES Proposal for the integration on training on DV and gender based violence into the six months curriculum for basic training. Documento de trabalho do Gabinete para Promoção da Igualdade. Dili: mimeo, 2003. p.5. 190 Amparado na autoridade do saber técnico, o discurso do gender constrói um novo modelo de dever-ser para as relações interpessoais. Não se trata apenas do “comodeveria-ser-a-vida” citado pelo Procurador Geral da República. A norma, desta vez, não vem de uma moralidade social vagamente evocada como tradutora do “interesse do Estado”. Vem, antes, da observação científica da realidade, de seus mitos e do ser humano universalizado. Outro item do texto, intitulado “Relações de poder versus igualdade”, traz uma tabela que compara o que seriam atitudes próprias de um relacionamento marcado por “relações de poder” e outras próprias de um relacionamento pautado pela “igualdade”. Assim, surgem pares de oposição do tipo: COMPORTAMENTO DE PODER COMPORTAMENTO DE IGUALDADE Intimidação E.g.: Ações ou gestos para amedrontar, quebrar coisas, portar armas Abuso emocional E.g.: Insultar, humilhar, fazer sentir culpa Isolamento E.g.: Controlar todos os movimentos dela, ser ciumento, possessivo Minimizar, negar e culpar E.g.: Não levar as preocupações dela a sério, dizer que não houve abuso e que ela é quem o causou Usar as crianças E.g.: faze-la se sentir culpada pelas crianças, manipula-las, ameaçar leva-las embora Utilizar privilégios masculinos E.g.: trata-la como uma empregada, tomar todas as decisões, ser o chefe Abuso econômico E.g.: impedi-la de trabalhar, faze-la pedir dinheiro ou tomar o dinheiro dela Coerção e ameaças E.g.: ameaçar machuca-la, deixa-la ou cometer suicídio, faze-la assumir culpas Comportamento não-ameaçador E.g.: Agir de modo a expressar segurança na família Respeito E.g.: Valorizar as opiniões Confiança e apoio E.g.: Apoiar os objetivos dela, respeitar seus sentimentos, direitos e amigos Honestidade e responsabilidade (accountablity) E.g.: aceitar responsabilidade, admitir o erro, ter comunicação aberta Pais responsáveis E.g.: compartilhar as decisões sobre as crianças, ser exemplo positivo Compartilhar responsabilidades E.g.: distribuição justa do trabalho, tomar decisões conjuntamente Parceria econômica E.g.: tomar decisões sobre o dinheiro em conjunto, partilhar informação Negociação e lealdade (fairness) E.g.: resolver os conflitos lealmente, aceitar as mudanças, compromisso. Penso que dificilmente encontraríamos maneira mais sintética de apresentar o dever-ser do discurso do gender. A tabela é praticamente uma cartilha do bom-casal; um manual para a conduta de indivíduos civilizados. O fato de se apresentar este manual do bem-agir em um treinamento para policiais diz muito acerca do lugar que se quer dar à polícia no processo de instituição desta nova moralidade. Como agentes do Judiciário em contato mais direto com a população, os policiais deveriam agir como guardiões da 191 moralidade do gender, cuidando de promover a implementação de uma normatização específica das condutas. A polícia deveria ser o principal agente civilizador a serviço do Estado na domesticação das condutas violentas e na transformação de relações desiguais de poder em relações igualitárias, próprias de um modelo de vida cidadã. Evidentemente isso não podia ser feito em apenas uma manhã de treinamento. Idelta e Ita, contudo, se esforçavam para conseguir o possível. Com a benção do vigário Até aquele momento, nada de estranho acontecera na sessão que Idelta e Ita conduziam. A manhã seguia como em um treinamento padrão contra violência doméstica – certamente o mesmo que algum polonês a serviço do FNUAP poderia estar dando, naquele mesmo instante, em alguma academia de polícia de Varsóvia. No meio da manhã, contudo, um oficial entra na sala e, chamando Ita a um canto, cochicha algo. Ita e Idelta interrompem a aula e o oficial informa a todos que o padre já chegou e eles terão um intervalo de 30 minutos para suas confissões. De início não compreendi o que aquilo significava. Interromper uma atividade de treinamento para que os cadetes possam se confessar não me parecia exatamente algo próprio à rotina da Academia de Polícia. Fui então informado que aquilo se devia à Páscoa, que se aproximava. Estávamos em meados de abril e véspera da semana santa. Esperava-se que todos os católicos de Timor-Leste confessassem, e os cadetes não seriam exceção. A situação me lembrou o evento de 25 de novembro (cf. Capítulo 2). Como evento cívico que era, quando todos solenemente se levantaram, esperei ouvir o hino nacional e fui surpreendido por um pai-nosso. Antes de recomeçar as atividades, um senhor de cerca de 50 anos veio me procurar e me abordou em bom português. Dizia que falava em seu nome e de outros nove colegas da classe. Eram todos ex-guerrilheiros das Falintil e estavam preocupados com o fato de o material de treinamento estar todo em indonésio. Como passaram os anos de ocupação na guerrilha, escondidos nas montanhas, pouco falavam daquele idioma e não estavam entendendo muita coisa. Pedia para que, na medida do possível, misturassem português na explicação. Comprometi-me a levar a demanda a Idelta e Ita. Eu sabia que o uso do português seria inviável, pois nem Ita nem Idelta falavam o idioma, mas expus a questão às duas que se comprometeram a usar mais o tétum. Ainda assim, havia uma grande dificuldade em lidar com os termos técnicos, pois o tétum não possuía vocabulário próprio para muitos dos conceitos do jargão policial, e a 192 língua de suporte para tanto vinha sendo o indonésio – tão naturalmente utilizado que até mesmo a “violensia domestika” vinha sendo tratada por sua versão indonésia, “kekarasan di dala rumah tangga”. Além deste, outros termos do manual do FNUAP vinham expressos em sua forma malaia – o círculo da violência era “lingkaran kekarasan”, a oposição normativa entre poder e igualdade aparecia na forma “Kuasa X Kesetaraan” e a cultura era “Budaya”. Depois de apresentados estes conceitos, abriu-se espaço para perguntas e concluiu-se o treino com a apresentação do vídeo “Harahun O nia nonok” (Quebre o teu silêncio), já comentado no capítulo segundo. *** A instituição da justiça de Estado como arena legítima para lidar com a violensia domestika não é um processo simples. Como vimos, os operadores deste sistema, mesmo não sendo refratários aos princípios dos direito humanos e direitos das mulheres, mantém vários laços de solidariedade com valores próprios das formas locais de justiça. Mesmo quando não é este o caso, ainda assim a definição clara das normas e processos para o funcionamento da arena de justiça estatal é marcada por tendências muitas vezes opostas e criam situações que deixam a ação dos operadores de direito bastante aberta a interprestações pessoais. Neste território o discurso do gender trava uma batalha dupla. Por um lado busca estimular na população a confiança no sistema judiciário e o seu uso como recurso para casos de violência doméstica. Por outro, busca construir condições dentro do próprio sistema para que violência doméstica seja caracterizada como caso a ser construído juridicamente. Mais do que uma atitude individual de mulheres encrenqueiras ou “criadoras de caso” na comunidade, o “caso” aqui tem um sentido coletivo. É o conjunto de atores organizados em torno do discurso do gender que busca construir as condições sociais para que a agressão doméstica vire um “caso” no tribunal. As ferramentas para esta construção são, certamente, bastante internacionalizadas e profundamente normativas. O resultado disso, contudo, está sujeito a particularidades bastante timorenses. Embora algumas delas, como os desafios do idioma e a força da Igreja Católica, tenham sido vislumbradas aqui, uma análise 193 deste processo não estaria completa sem a observação das práticas sociais resultantes do recurso que as pessoas efetivamente fazem do sistema de justiça de Estado. O último capítulo desta tese deve apresentar justamente isto. De que forma as práticas de recurso ao sistema de justiça e às formas locais de resolução de disputas refletem o modo como os sujeitos envolvidos negociam suas pretensões de um resultado equânime? 194 Capítulo 5 O FEITICEIRO EM DESENCANTO, O PARTEIRO E O GENITOR: RECURSOS AO SISTEMA DE JUSTIÇA E PLURALISMO JURÍDICO EM DILI Depois de situar, na capítulo anterior, o complexo campo institucional para resolução de conflitos em Timor-Leste, analiso aqui os usos que são feitos de diferentes esferas deste campo. Por meio da descrição e análise de casos que chegam à polícia, ao Tribunal e à mediação em ONGs e escritórios de advocacia, proponho uma interpretação para os sentidos de justiça em jogo e para a forma como os habitantes de Dili negociam seus interesses em diferentes arenas jurídicas, criando uma situação de pluralismo jurídico de fato, mesmo que não oficialmente reconhecida. Em meio aos arquivos de casos da Unidade de Pessoas Vulneráveis na delegacia de polícia de Dili, um documento destoava dos demais. Entre formulários de ocorrência policial, depoimentos e mandados de detenção, a pasta de um caso continha uma carta do chefe de aldeia de uma das várias aldeias em área urbana na capital timorense. A carta, escrita em indonésio, dizia o seguinte: “COMUNICAÇÃO ACERCA DOS ACONTECIMENTOS DO DIA 31 DE DEZEMBRO DE 2002 Houve ocasião para reconciliação das duas partes de acordo com o que segue aqui. No dia 3 de janeiro de 2003, nós, as duas partes, sentamos juntas mas a parte da mulher não aceitou a negociação sob o argumento de que somente resolveria o caso na delegacia de polícia. No dia 4 de janeiro de 2003 a parte da mulher escolheu uma pessoa para ir à casa do homem e dizendo aceitar resolver o caso de acordo com os costumes (secara adat). No dia 5 de janeiro de 2003 fomos à casa da mulher para resolver de acordo com os costumes, estabelecendo multa de US$ 2.000,00, um búfalo, 10 caixas de cerveja e uma peça de tais [tecido tradicional timorense]. No dia 7 de janeiro de 2003, saiu o resultado da parte do homem, respondendo que, na negociação, a família do homem concordava em pagar US$ 500,00, um cabrito, duas caixas de cerveja e uma peça de tais, mas a parte da mulher não aceitou, insistindo no resultado do dia 5 de janeiro. No dia 10 de janeiro as duas partes sentaram juntas para discutir entre si a proposta da parte da mulher para reduzir a multa de US$ 2.000,00 para US$ 1.000,00, um cabrito, cinco caixas de cerveja, e uma peça de Tais. Contudo, a parte do homem insistiu na manutenção da proposta feita no dia 7 de janeiro. No dia 5 de fevereiro, a parte do homem avisa a parte da mulher que está disposta a um último encontro entre as partes, sendo que nesta ocasião a parte do homem se dispôs a pagar multa de US$ 500,00, um cabrito, cinco caixas de cerveja e um Tais. A família do homem preparou-se para ir à casa da mulher, mas, em nome da parte da mulher, o chefe da Aldeia Aitarak Laran, senhor Jacinto de Oliveira Tavares, foi à casa do homem para avisar que a parte da mulher não aceitara a proposta feita. Somos responsáveis por este relato nós, as duas partes, e as seguintes testemunhas. Como responsáveis pelo relato: • Aaaaa • Bbbbb • Ccccc • Dddd [todos homens] ESTANDO CIENTE CHEFE DE ALDEIA AITARAK LARAN JACINTO DE OLIVEIRA TAVARES” O que significava esta carta, descrição detalhada de um processo de mediação tradicional, apensada a um caso policial com o estatuto de documento oficial? Teria mesmo aquilo algum valor jurídico? Se não, como aconteceu de a polícia aceitar incluir na documentação do caso um relato formal de um processo extra-judicial sem reconhecimento legal, emprestando a ele ares de oficialidade? Mas, se faz sentido perguntar o que fazia aquele papel na polícia, é também razoável perguntar o que fazia a polícia naquele caso. O que, afinal de contas, teria levado os atores envolvidos na mediação a ir bater às portas da polícia? 196 Responder a estas perguntas é um bom caminho para entender o sentido dado por muitos usuários do sistema de justiça timorense para sua experiência nesta arena institucional de resolução de conflitos. Se, ao longo dos capítulos anteriores, temos mapeado um campo de discursos e atores institucionais que marcam diferentes leituras acerca do uso da força nas relações domésticas, proponho, agora, observar os usos que vêm sendo feitos destas leituras por parte dos moradores de Dili. Analisando-se os casos que chegam à polícia e ao tribunal, conhecendo-se as expectativas das partes que recorrem a este sistema e entendendo-se o tipo de relação que passam a estabelecer com os operadores do direito, resultam bem mais evidentes os conflitos e as soluções característicos da dialética da modernização timorense. A Polícia Os arquivos da UPV Durante os meses de maio e junho de 2003 realizei pesquisa nos arquivos da Unidade de Pessoas de Vulneráveis da delegacia de Dili. De um total de 456 casos atendidos até junho daquele ano, analisei os processos de 22, além de alguns casos referentes ao ano anterior. Evidentemente, não se trata de uma amostra representativa do total de atendimentos, tampouco era este meu intuito. Buscava, em primeiro lugar, familiarizar-me com o funcionamento da UPV, porta de entrada para o sistema de justiça envolvendo casos de violência doméstica. Ao mesmo tempo, procurava observar que tipo de caso chegava à delegacia e que tipo de questão era colocado à polícia diante das queixas apresentadas. Alguns casos eram trazidos à polícia por algum parente da vítima. Outros ainda eram motivados por policiais que, chamados à cena por vizinhos ou vendo a situação em alguma ronda de rotina, encaminhavam as partes à delegacia. O mais comum, porém, era que o caso fosse levado pela própria vítima. A queixa era apresentada na recepção da delegacia, onde um formulário em indonésio era preenchido por um policial timorense (PNTL). Em seguida, o documento era traduzido para o inglês e digitado em um computador por um policial internacional (UNPOL).103 Neste momento fazia-se a primeira classificação do tipo de crime em causa. De acordo com o tipo de crime, o caso 103 O procedimento de tradução para o inglês durou até o fim de 2002. A partir de 2003 os processos passaram a correr apenas em tétum ou indonésio. 197 era ou não encaminhado à Unidade de Pessoas Vulneráveis (UPV). A tabela abaixo indica o total de ocorrências por tipo de crime notificado pelas delegacias dos distritos de Timor-Leste ao escritório nacional da PNTL nos anos de 2002 e 2003: Tipo de crime104 2001 total 2002 % total % Desordens/ Agressão 1749 35,6% 1936 34,7% Furto 1021 20,8% 821 14,7% Dano a propriedades 431 8,8% 399 7,2% Intimidação/ Ameaça 425 8,6% 481 8,6% Violência Doméstica 382 7,8% 853 15,3% Arrombamento 284 5,8% 255 4,6% Incendio 93 1,9% 63 1,1% Estupro e tentativa de estupro 89 1,8% 113 2,0% Assalto a residência 76 1,5% 57 1,0% Assalto 74 1,5% 84 1,5% Posse de armas 43 0,9% 34 0,6% Atentado ao pudor 43 0,9% 50 0,9% Homicídio 42 0,9% 50 0,9% Tentativa de Homicídio 23 0,5% 25 0,4% Rapto 20 0,4% 7 0,1% Embriaguez 8 0,2% 19 0,3% Falsificação 7 0,1% 22 0,4% 107 2,2% 306 5,5% 4917 100% 5575 100% Outros TOTAL fonte: relatório UNPOL/PNTL 2001/2002 Destas notificações, eram encaminhadas à Unidade de Pessoas Vulneráveis casos envolvendo mulheres, crianças, idosos e pessoas desaparecidas. Em 2002, por exemplo, passaram pela UPV de Dili os seguintes casos: 104 A classificação original, em inglês, é a seguinte: Violence/ Assault, Theft, Property Damage, Intimidation / Threat, Domestic violence, Burglary, Arson, Rape / Attempt. Rape, House Break, Robbery, Posse. Weapon, Sexual Assault, Murder, Attempted Murder, Kidnap/ Abduction, Liquor Offences e Forgery. 198 Tipo de crime (original em inglês) Total Violência Doméstica (domestic violence) % 365 Estupro (rape) 27 Tentativa de estupro (attempted rape) 17 Agressão (por pessoa estranha) (assault) 11 Intimidação/ Ameaça (threat) 11 Assédio sexual (sexual harassment) 9 Atentado ao pudor (sexual assault) 8 Atentado ao pudor envolvendo criança (child abuse) 5 Paternidade (paternity) 3 Total 456 80,0% 5,9% 3,7% 2,4% 2,4% 2,0% 1,8% 1,1% 0,7% 100,0% fonte: Statistics of crime against Vulnerable Persons – VPU Dili, 2003 É interessante observar alguns aspectos relacionados à classificação dos crimes neste processo. A categoria “domestic violence” ou, eventualmente, “violensia domestika” – de longe a predominante para designar os casos encaminhados à UPV –, é utilizada aqui para classificar casos de agressão física entre cônjuges ou membros da família. Nos relatos prestados à polícia durante a tomada de depoimentos, contudo, não encontrei nunca esta categoria na boca dos envolvidos. Vítimas e suspeitos usam vários termos para se referir ao acontecido, mas nunca violensia domestika. Entre as expressão usadas estão “nia baku ha'u” (ele me bateu), ou “nia tuku ha'u” (ele me espancou), ou ainda termos como buti (apertar, agarrar) ou basa (esbofetear). O termo “violência doméstica”, como abstração para um tipo específico de crime – ou seja, como conceito – não parece existir no universo vocabular (e simbólico?) dos envolvidos. No tribunal os casos recebem outras denominações, uma vez que o código penal indonésio não prevê o crime de “violência doméstica” (cf. Cap.3). Ali passa a haver casos de “maustratos”. Na defensoria pública, porém, usa-se uma outra denominação para tais casos. Em uma lista interna, intitulada “Relação de casos registrados na defensoria pública de Timor-Leste”, os casos de violência doméstica estão descritos como “baku malu”. Literalmente, a expressão significa bater-se, confrontar-se, indicando uma briga em que as duas partes se agridem. O termo é comumente usado nas ruas de Dili para se referir a agressões entre cônjuges. O uso do sufixo reflexivo malu enfatiza a 199 corresponsabilização pela situação e, neste sentido, é bastante conveniente para os defensores públicos, cuja função é exatamente eximir o acusado da máxima parcela de culpa possível. Voltando à polícia, assim que recebiam a documentação com a queixa, policiais timorenses e internacionais da UPV iniciavam a investigação. A depender do tipo de caso iam ao local do crime para averiguar circunstâncias, interrogar vizinhos, tirar fotografias, etc. Em casos mais simples apenas intimavam os envolvidos para prestar depoimento na UPV. Com essas informações, o caso poderia ser, eventualmente, reclassificado. Recolhidos os depoimentos da vítima, do acusado e de terceiros, e, se fosse o caso, anexados exames médicos e fotografias do local, o processo estava pronto para seguir ao Ministério Público. Este seria o ponto no qual a polícia passaria o bastão. Contudo, em muitos casos não era isso o que acontecia. Grande parte dos casos de violência doméstica acabavam sendo resolvidos na própria delegacia, por uma espécie de mediação. A quase totalidade dos casos leves seguia este caminho. Foi esse o desfecho de casos em que o marido batera na mulher por desconfiar que ela tinha um amante, ou por que ela não atendera seu chamado, ou porque ela não havia feito o almoço ou, ainda, porque não o havia servido água quente. Em todos estes casos as mulheres haviam feito a queixa na delegacia pois sentiram que a “punição” por sua falta havia passado dos limites Pareciam, contudo, reconhecer que uma falta houvera. Assim, não queriam levar o caso adiante. Muitas, porém, sequer precisavam pedir para retirar a queixa. Era praxe, na tomada de depoimento da vítima, que a polícia perguntasse se ela queria levar o caso ao tribunal ou resolvê-lo ali mesmo. Todos os processos de violência doméstica que analisei até maio de 2003 tinham esta pergunta na transcrição dos depoimentos. As respostas para a pergunta não diferiam muito: “Quero apenas fazer um acordo de paz”, “Quero apenas fazer as pazes, na delegacia. Se por acaso ele repetir a agressão, aí pode ir para o promotor”.105 A expressão “halo dame”, “fazer as pazes”, era o sinal para que o caso terminasse por ali mesmo, com a reconciliação das partes. 105 “Hau hakarak halo surat atu dame de’it”. “Hau hakarak dame de’it, iha kantor polisia. Se karik se nia halo tan maka bele ba too iha pengadilan.” 200 Halo Dame: em busca da reconciliação Fazer as pazes não era apenas um caso de perdão – uma vítima perdoando um agressor. As “pazes” aqui representavam um estado de reequilíbrio a ser alcançado com algum custo mútuo. Um caso em especial revelava o caráter simétrico deste esforço em favor da reconciliação – curiosamente, um caso no qual o marido era a “vítima”. Formalmente, o caso era uma denúncia da mulher, queixando-se de que o marido a havia expulsado de casa (VPU 011/2003). Nas investigações, chegou-se à seguinte história: o marido estava bêbado e agredira o filho pequeno do casal por um motivo qualquer. A esposa não achou correta a atitude do marido e começou então uma discussão. No calor da discussão, a esposa acertou a cabeça do marido com um cabo de vassoura, deixando-lhe um ferimento na testa. O marido, então, a expulsou de casa, junto com o filho pequeno. Tendo confirmado a versão com a esposa, a polícia faz a seguinte pergunta ao marido: “P - O senhor quer resolver o problema aqui ou levá-lo adiante? Marido: Não, apenas mande-a vir aqui e chame a sua atenção, pois essa não é a primeira vez [que ela me bate], mas ela costumava me bater com freqüência.”106 O caso foi então resolvido na delegacia mesmo, cada parte reconhecendo seus excessos – o marido, embebedar-se, e a mulher, agredi-lo – e se comprometendo a reduzi-los. O caso é interessante ainda por envolver uma inversão nas posições de vítima e agressor. Ao chegar à delegacia, o caso, lido pelo sistema classificatório da polícia, tinha a mulher como vítima. Durante as investigações, o marido passa a esta posição. Ao final, ambos são tanto vítimas quanto agressores. Há, para a sensibilidade jurídica que estrutura os casos de violência doméstica, um princípio ordenador da construção do caso que pressupõe um autor – comumente referido como suspeito, ou acusado, ou ainda, agressor, como se decida traduzir “pelaku”, do indonésio, ou “perpetrator”, do inglês – e uma vítima (“korban”, ou “victim”). Assim, as histórias narradas por reclamantes na recepção da delegacia precisam ser traduzidas para este formato de modo a se tornar um caso da UPV, da mesma forma que um ato, para virar um auto precisa se adequar a linguagem jurídica e suas normas (CORRÊA 1983). Por certo que nesta “redução a termos” muita coisa se perde. Enquanto dura o caso, há de se ter uma vítima e um autor. O caso descrito acima 106 “Ita boot hakarak problema rejove iha ne’e ou lori ba oin? H - Lae, bolu de’it nia mai, fo atensaun ba nia, tamba ne’e la’os pertama kali maibe bebeik tiha ona nia baku hau.” 201 indica, contudo, que nem sempre se pode dizer, de antemão, quem irá ocupar que posição ao final da construção do caso. De certa forma, a percepção de que a paz depende de um acordo de compromissos mútuos e que desemboca na expectativa de “halo dame” subverte o princípio que constrói as categorias de vítima e agressor. Exige que os atores saiam destes casulos e passem a compartilhar responsabilidades pelo problema – a corresponsabilização embutida, por exemplo, na categoria de baku malu. Isto torna, como veremos abaixo, a mediação na delegacia um tanto contraditória. Ao mesmo tempo encontra uma solução adequada às expectativas dos reclamantes, mas ofende a sensibilidade jurídica de um sistema binariamente marcado por uma segregação das responsabilidades. Evidentemente nem todo processo de halo dame era tão breve quanto o do caso narrado acima. Nem sempre as partes concordavam em partilhar responsabilidades tão rapidamente. Afinal, empenhar sua palavra em um acordo de paz na delegacia não era pouca coisa. Concordar com os termos da dame não podia ser algo da boca para fora. Para formalizar as “pazes”, os policiais da UPV desenvolveram um “termo de retirada de queixa” que funcionava como formalizador de um acordo entre as partes. Em uma folha de papel timbrado com o logotipo de PNTL lia-se: “RDTL MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA DIREÇÃO NACIONAL DA POLICIA RDTL COMANDO DISTRITAL DE DILI WITHDRAWAL NOTE SURAT PENARIKAN TUNTUTAN Hau, _________ nudar victima iha kasu violensia domestika # VPU ___/03 loron ___, ____ 2003 iha kantor VPU Dili mos iha UNPOL VPU no ETPS sira nain prejensia hodi dada fila fali kazu ne’e hosi polisia atu ba rejolve nudar familiar.107 BOND (Surat Jaminan) Hau suspeitu ________ asina iha loron ______ iha kantor VPU Dili mos iha UNPOL VPU no ETPS sira nia prejensia hodi promete katak hau sei la halo tan violensia ruma hasoru hau nia fe’en naran ________ iha loron seluk. Se karik 107 TERMO DE RETIRADA DE QUEIXA. Eu, _______ na qualidade de vítima no caso de violência doméstica número VPU ____/03, no dia ___, ___ 2003, na delegacia da UPV de Dili e na presença da UNPOL e da Polícia de Timor-Leste retiro o presente caso da polícia para resolvê-lo na âmbito familiar.” 202 hau la kumpri hau nian promete ne’e hau pronto para simu kastigu nebe’e fo mai hau.108 ASS. SUSPEITO _____________ ASS. VITIMA _____________ ASS. SASIN _____________” O documento era de fato intimidador. A começar pelo uso dos quatro idiomas correntes no Estado. O timbre, em português, aferia ao texto status de oficialidade. Em seguida, o “Termo de retirada de queixa” e o “Termo de Compromisso” vinham nomeados em inglês (Withdrawal Note e Bond) e indonésio (Surat Penarikan Tuntutan e Surat Jaminan), o que conferia ainda mais tecnicidade e oficialidade ao seu conteúdo. Mas, para não haver dúvidas, o texto (parte que comunicava os compromissos assumidos) era escrito em tétum. Formalmente eficaz, o termo de compromisso era também perfeitamente gramatical para quem buscava a reconciliação. Não era muito diferente do que um chefe de aldeia faria ao sancionar a negociação feita entre famílias para reequilibrar a ordem da aldeia por meio de um biti boot, a grande esteira (cf. Cap.4). Tratava-se de selar, por meio de uma declaração ritual, um acordo acerca dos novos termos nos quais a a relação seria retomada. A retirada de queixas em casos de violência doméstica não é, certamente, exclusividade de Timor-Leste. O mesmo vale para a arbitragem de casos nas delegacias de polícia, prática encontrada com facilidade no Brasil. Roberto Kant de Lima (1995) aponta, inclusive, razões históricas para este tipo de procedimento no Rio de Janeiro. O que chamava a atenção no caso timorense era tanto a formalidade do processo por meio do qual, ao mesmo tempo, a queixa era retirada e um compromisso acordado, quanto a aparente gramaticalidade deste gesto para os usuários do sistema. A retirada da queixa com assinatura do termo de compromisso era o destino da maior parte dos casos de violência doméstica. De janeiro a agosto de 2003, de um total de 148 casos de 108 TERMO DE COMPROMISSO. Eu, suspeito _____ no dia ____ na delegacia da UPV de Dili e na presença da UNPOL e da Polícia de Timor-Leste, prometo que não cometerei nenhuma violência contra minha esposa, de nome ___________ daqui para a frente. Se por acaso eu não cumprir minha promessa, estarei pronto a receber o castigo que me couber.” Seguem abaixo as assinaturas do suspeito, da vítima e de uma testemunha. 203 “violência doméstica”, 104 (70%) terminaram assim (JSMP; 2004: 45). Em geral eram casos de pequena agressão, envolvendo situações nas quais os sujeitos reconheciam que um deles não se comportara de acordo com o que seria adequado, e, por isso, o outro aplicara a força com finalidade educativa. Acabavam parando na delegacia porque a mulher sentira que não merecia tamanho corretivo ou porque a polícia, fazendo ronda, presenciara a cena. Um destes casos “leves” chegou à delegacia já tendo passado pela Fokupers. O marido havia agredido a mulher por que a criança do casal estava chorando, e a esposa não fazia nada para evitar o choro do bebê (VPU 041/2003). Em seu depoimento, a mulher reconhecia que era, sim, sua obrigação manter a criança calada, “mas, naquele momento, eu estava lavando roupa”, dizia. Segundo o marido: “mandei minha mulher dar leite à criança, mas como possivelmente a criança não foi amamentada, ficou chorando”. A polícia perguntou, então, no depoimento: “Os senhores já recorreram à Fokupers?”. “Sim”, responderam os depoentes. Em seguida, acertou-se a retirada de queixa por meio do “surat jaminan”.109 O caso dá boas pistas para entender como as posições da polícia e da ONG se relacionam com os sensos de justiça em jogo nos casos classificados como de violência doméstica. Por um lado, a esposa parecia não querer levar o caso aos tribunais pois, de certa forma, reconhecia que negligenciara uma obrigação sua. A questão que a levou à Fokupers fora antes despertada pelo fato de ela ter uma razão para não ter podido atender ao choro do bebê. O caso lembra muito os argumentos apresentados em Covalima para descrever situações nas quais um homem não deve bater em sua esposa (cf. Cap.2). Lá, dizia-se que era correto usar a força para corrigir um comportamento inadequado do cônjuge (fosse homem ou mulher), mas que se deveria observar as razões que podiam justificar, por exemplo, a negligência de uma obrigação. A esposa em questão tinha uma boa razão, e sentira-se ofendida em seu senso de justiça pelo fato de o marido não ter levado isso em conta. Levar o caso à Fokupers era uma forma de deixar claro seu sentimento. A instituição, contudo, coerente com os princípios do discurso do gender, reconheceu imediatamente o caso como de “violensia domestika” e o encaminhou à polícia. Não era ali lugar para fazer uma mediação do tipo adat. Na delegacia, porém, a senhora acabou por encontrar o espaço que procurava para dar vida 109 “Tamba labarik tanis. Maibé iha momento ne'e ha'u fase hela roupa”. “Ha'u bolu ha'u nia kaben hodi fo susu ba labarik, maibé mungkin labarik seidauk hosu, ne'e duni labarik ne'e tanis hela de'it.” “Karik ita boot sira pernah rejolve iha Fokupers?”. 204 social ao seu sentimento de ofensa e, ao mesmo tempo, uma autoridade capaz de recompor os compromissos da relação entre ela e seu marido. A prática da mediação na delegacia despertava, contudo, fortes críticas da parte do discurso do gender que via nisso a extrapolação das funções legais da polícia, bem como uma prática que impedia as mulheres de acederem aos tribunais. Um relato feito por uma das policiais internacionais que atuava na UPV dá bem a dimensão da imagem que se fazia da UPV por conta das práticas de mediação. O caso envolvia um funcionário internacional a serviço da ONU – um guatemalteca – que havia se casado com uma timorense, staff local de uma ONG internacional. Em certa ocasião os dois se envolveram em uma discussão sobre a titularidade de uma conta bancária e o marido agrediu sua esposa. No dia seguinte ao registro do caso, uma australiana, colega de trabalho da timorense, entrou no escritório da UPV e, em tom agressivo, cobrou das policiais internacionais ali presentes: “quero saber se consta no processo que minha amiga está com marcas no peito!”. Segundo a policial, com a investigação, deram-se conta de que a timorense sequer queria prestar queixa contra o marido, mas fora “estimulada, e mesmo cobrada” por suas colegas de trabalho estrangeiras para tanto. Na delegacia, a esposa quis resolver o caso por mediação, ali mesmo, mas as amigas acharam a proposta “um absurdo”, acusando a UPV de incompetência. A atitude da australiana que veio cobrar satisfações das policiais era lida neste contexto. A policial que cuidava do caso teve de pedir à vítima que declarasse, em frente às suas amigas, que era ela, vítima, quem queria arquivar o caso, e não a polícia que estava deixando de levar o caso adiante por “incompetência”. O caso me foi narrado por uma UNPOL portuguesa, a título de criticar o que ela considerava a arrogância dos internacionais em Timor-Leste – especialmente, dizia, daqueles de matriz anglófona. Marcada pelo ressentimento, a narrativa do caso revela o tom e o tipo de crítica que chega aos policiais da UPV. Evidentemente, neste caso o tom era bem mais intenso, pois a história envolvia diretamente atores internacionais socializados desde cedo no discurso do gender. Afinal, a “vítima” neste caso atuava em uma ONG internacional, falava inglês, cultivava amizades com ativistas internacionais e era casada com um assessor das Nações Unidas. 205 “Madam, it's not so easy...” – Reconciliar dá trabalho. As críticas feitas à polícia timorense não existiam apenas por conta das práticas de mediação. Havia outros eventos que podiam ser lidos como sinais de desrespeito a padrões de direitos humanos. Em um dos casos que encontrei nos arquivos da Unidade (VPU 037/2003), um caso de estupro, a vítima afirma, no depoimento, que já havia tentado registrar queixa meses antes, mas esta fora recusada na recepção da delegacia, sob a alegação de que o crime teria ocorrido havia mais de 24 horas – o que era, certamente, uma suposição equivocada por parte do policial que a atendera. Um outro caso (VPU 125/2003) era visivelmente grave e, ainda assim acabou sendo resolvido por mediação – o marido havia se incomodado com a insistência da esposa para que se banhasse, e reagira dando uma facada nas costas de sua mulher. Mesmo aos olhos das formas locais de justiça, a desproporção era evidente e o caso passava dos limites. As tias da vítima a socorreram, levando-a ao hospital e testemunhando contra o marido. Ainda assim a esposa quis retirar a queixa, e a UPV os fez assinar o termo de compromisso.110 Casos como estes davam munição aos que criticavam a ação da polícia dizendo que esta feria princípios de direitos humanos. A crítica, contudo, à mediação ignorava o sucesso desta prática entre aqueles usuários do sistema de justiça que recorriam à polícia buscando “fazer as pazes”. O potencial reconciliador da mediação feita na delegacia era grande, mas demandava tempo e habilidade dos policiais envolvidos no processo. Tive ocasião de presenciar um caso em especial em que isto ficou bastante evidente. Enquanto eu pesquisava os arquivos locais, uma das agentes timorenses veio me chamar para ver de perto o tipo de situação pela qual tinham que passar. Sentados à sua mesa estavam um jovem rapaz, uma moça e sua mãe. Fulana, uma jovem com um filho ainda no colo e outro um pouco maior, apresentara uma queixa contra seu marido. Segundo ela, este havia deixado a casa e não voltara mais. A polícia registrou o caso como “abandono” (“child neglect”, em inglês, ou “terlantarkan anak istri”, em indonésio) e começou as investigações. Descobriu-se então, segundo a agente, a seguinte situação: 110 O depoimento da vítima, especialmente sua argumentação em favor da retirada da queixa, lembra muito o “círculo da violência”, de que se falava no treinamento aos cadetes (cf. Cap.4): embora fosse a primeira vez que o marido usava uma faca, “ele me batia com freqüência, quando terminava tudo, a gente voltava às boas”. Por isso, “quero resolver na delegacia de polícia” e não levar o caso ao tribunal. (Originais: “Nia baku bebeik ona hau, hotu tiha, ami di'ak malu fali. Hau hakarak rejolve iha kantor polisia”.) 206 Fulana e Fulano se gostavam e queriam casar-se. Os pais de Fulana, contudo, achavam que sua filha merecia esposo melhor, pois Fulano estava desempregado e não vinha de uma família à altura da moça. Como neste meio-tempo os dois se precipitaram e um bebê surgiu na história, o casal passou a ser considerado casado, mas com um estatuto especial. Como não haviam sido observadas (ainda) as obrigações de trocas matrimoniais entre as famílias, Fulano estava “casado” em condição precária com Fulana, morando na casa dos pais destas, em Dili. A esta condição chamava-se “kaben tama” – literalmente, cônjuge entra, em referência ao fato de que a moça não saíra de sua unidade familiar de origem, mas o jovem é quem entrara no grupo. A mudança de estatuto do jovem perante os pais da moça – de pretendente indesejado a kaben tama – não o tornou mais prestigiado na casa. Ao contrário. Residindo com a família, ele passou a ser vítima de constantes admoestações verbais. Um dia, cansado de ouvir ofensas, Fulano propôs à Fulana que deixassem a casa e fossem morar, com os filhos, em Baucau, junto à sua família de origem. Fulana não aceitou a proposta, e o jovem acabou voltando sozinho para Baucau. Quando souberam do ocorrido, os pais da jovem vieram com ela à delegacia para registrar queixa contra Fulano. De volta à mesa da agente policial, a negociação estava difícil. O jovem não queira voltar à casa dos sogros em função do que considerava uma rotina de humilhação. A mãe de Fulana não aceitava, em hipótese alguma, que o casal deixasse a casa, pois não havia sido feito o pagamento da riqueza da noiva e a condição de kaben tama não permitia que o casal fosse fixar residência fora da casa dos pais da esposa. A agente estava ali no papel de mediadora, buscando uma solução consensual. Legalmente, não havia muito o que a polícia pudesse fazer. Como a situação não progredia, a chefe das policiais internacionais na Unidade, uma oficial da polícia nepalesa, se envolveu na discussão. Como Kirian, a nepalesa, não falava tétum, e o inglês da agente local era limitado, servi de intérprete no caso. Para Kirian o caso era simples e não devia envolver a polícia: “Os avós não podem interferir. Vocês se amam? Sim? Então não há o que discutir. Vão viver juntos!”. A agente lançou-me um olhar entre a impaciência e o enfado e respondeu a Kirian, em inglês mesmo: “Madam, it's not so easy...”.111 111 “Senhora, não é assim tão fácil...” 207 A agente explicou, então, que o jovem não pagara ainda o barlaque, e que, portanto, não podia retirar a moça da casa de sua família. Kirian concordou que não podia mudar os costumes locais mas sugeriu então que o caso fosse encaminhado para a polícia comunitária, para que se fizesse uma audiência com o chefe de suco e se encontrasse uma solução baseada nos costumes locais. “Talvez saírem agora e pagarem o barlaque mais tarde, quando puder” – uma espécie de “fiado”. A agente disse, então, que levaria o caso ao procurador na segunda-feira seguinte. “Se eles não resolverem por lá, faço isso” (levar ao chefe de suco). Antes de fazer isso, porém, a policial tentou mais uma conversa com os envolvidos. A mãe da jovem insistia em ficar com as duas crianças, pois dizia que elas tinham que ir a escola e ser bem-cuidadas, insinuando que isso não aconteceria se o casal se mudasse para Baucau. O jovem estava o tempo todo cabisbaixo, em postura de profunda humilhação. A policial procurava, nas suas intervenções, ponderar o respeito à tradição com os direitos individuais do casal. Mesmo reconhecendo que a situação era “not so easy”, lançava alguns incentivos aos dois jovens: “Se vocês dois se amam, podem lutar contra tudo e contra as tradições”. A negociação prosseguiu, com a mãe da jovem perguntando ao rapaz se ele queria continuar como kaben tama ou se realmente se dispunha a acertar o barlaque. O rapaz permaneceu mudo por algum tempo, até murmurar algo. Pediu, então, uma semana para ir buscar a mãe em Baucau. O assunto pedia uma negociação entre famílias. O clima se desanuviou. Finalmente uma perspectiva de resolução: as duas partes concordaram em negociar entre famílias. O rosto da agente visivelmente aliviou-se. Marcaram, então, para dali a 10 dias uma nova entrevista na delegacia, desta vez com a presença da mãe de Fulano, na qual certamente se resolveria o assunto – selando-se um acordo na presença legitimadora da autoridade policial. O recurso à polícia como autoridade legítima para mediar negociações entre famílias parecia se relacionar, de algum modo, às características demográficas próprias de Dili. Por concentrar pessoas oriundas de diferentes regiões do país, Dili diluía a autoridade das lideranças tradicionais. Era comum que uma aldeia de Dili misturasse moradores de diferentes grupos étnicos, fazendo com que o chefe de aldeia não fosse exatamente o chefe de confiança de todos. A polícia, por seu caráter nacional, parecia ocupar com mais propriedade a posição até então reservada aos chefes de aldeia. E as policiais da UPV de Dili assumiam com gosto esta posição. Em um contexto como este, 208 não é de se estranhar a presença daquela carta do chefe da aldeia Aitarak Laran em um processo na delegacia de polícia. Se a polícia assume uma posição homóloga à da autoridade tradicional, faz sentido que aceite anexar aos processos os relatos desta autoridade. O lugar da polícia e as formas locais de justiça Os registros da Polícia Nacional de Timor-Leste, apresentados no início do capítulo, indicam que em Dili, de 2001 a 2003, quase dobrou o número de queixas de violência doméstica registradas na polícia. Em muitos destes casos, especialmente nos casos mais leves, as pessoas queriam apenas alguém para ouvir sua queixa, repreender o agressor e “halo dame” (reconciliar-se). A existência do termo de compromisso (Surat Jaminan) era bastante adequada a este propósito. Era, de certa forma, o que vinham fazendo iniciativas como a da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR) em relação aos casos ocorridos nos conflitos de 1999. Por meio de audiências de reconciliação, explorava-se a dimensão da continuidade do relacionamento entre as partes. Em lugar de confrontar as partes com um código restrito, proporcionava-se um espaço para que ambas contassem suas histórias e renegociassem os termos de suas relações. O Surat Jaminan era, assim, bastante gramatical para grande parte da população timorense, e a polícia apenas continuava algo que já era feito antes por outros atores. Isto, contudo, implicava assumir uma posição que extrapolava suas funções constitucionais. Mais do que isso, implicava aceitar um jogo no qual se via, muitas vezes, sendo chamada a operar na defesa de interesses que não teriam nada a ver com ofensas criminais à luz da sensibilidade jurídica do Estado. Um tipo de caso bastante comentado então, era aquele com o qual se inicia o primeiro capítulo desta tese, o caso descrito pelo policial de Manufahi. Lá, famílias denunciavam supostos casos de violação sexual entre namorados de modo a pressionar a família do jovem a aceitar as condições de pagamento da riqueza da noiva. Em situações desse tipo, a polícia passava a ser um recurso para a reparação de uma ofensa não-prevista como tal no código que dava sentido à existência policial – o código para a defesa do qual a polícia fora criada. Isto pode ser visto em alguns dos casos de violência doméstica que chegavam à delegacia de Dili. Em alguns deles, o motivo da queixa estava longe de ser a violensia domestika. Mais do que a integridade física da mulher, o que estava sendo “ofendido”, e por isso reclamava-se a ação policial, 209 era o respeito a um acordo feito na presença do chefe de aldeia. O arquétipo deste tipo de caso foi narrado no capítulo 3, pela boca de um chefe de suco de Oecussi – o caso de um chefe de aldeia que aplicara uma multa a uma família por um caso de estupro e que, vencido o prazo, não tendo sido paga a multa, levara o caso à polícia para que o débito fosse quitado. Nos arquivos da UPV de Dili, um caso em especial encarna este tipo de recurso à ação policial – um caso de violação sexual, ocorrido em 1º de janeiro de 2003, mas cuja queixa só foi registrada um mês depois (VPU 037/2003). Fulana, 26 anos, casada e mãe de 4 filhos, foi dormir depois de festejar a virada de ano. Seu marido saiu com amigos. De noite, ela acordou com o vizinho em sua cama, bêbado, tirando sua roupa. Para não acordar as crianças, com medo de que elas também acabassem sendo violadas, ficou calada enquanto o vizinho servia-se dela. No dia seguinte, Fulana contou o ocorrido à sua mãe, que comunicou o marido. A primeira coisa que o marido fez foi procurar o chefe de aldeia e seu vice. “Eu dei a conhecer aos dois e perguntei como fazer para resolver o caso, se levava adiante ou resolvia apenas pela adat. Eles pensaram e o resultado foi resolver segundo a adat.”112 Pediram, então, ao marido para aguardar dois dias, tempo em que contactariam a família do vizinho. Passado esse prazo, nada havia sido começado, e o marido, perdendo a paciência, foi à polícia registrar queixa. Lá, porém, teve outra surpresa. Segundo ele: “viemos relatar o caso à polícia, na delegacia de Caicoli, mas a polícia nos disse que como o caso aconetecera no dia 1º [havia já dois dias], a polícia não o receberia. Aí voltamos para a adat.”113 O processo seguiu então um padrão de negociação entre famílias. De um lado o marido e seu pai, de outro o pai do vizinho. Intermediando-os, o chefe de aldeia. A negociação da multa está descrita no documento que abre este capítulo. A família da mulher começa pedindo mil dólares, um búfalo, dez caixas de cerveja e um tais. Depois de quase um mês de idas e vindas, acerta-se mil dólares, um cabrito, cinco caixas de cerveja e um tais. Segundo o marido: “A família do agressor aceitou este acerto, mas depois voltou atrás. Por isso viemos fazer a queixa na delegacia”.114 112 “Hau fo hatene tia hotu sira nain rua ba husu iha hau nia hanoin feto ho mane sekari: halo nusá problema ne'e atu ikus ba oin atau ba adat de'it. Sira konsulta tiha hasil dehan atu ba urus iha adat.” 113 “Ami mai hatoo laporan iha kantor polisia Kaikoli, maibé polisia dehan tamba kaso ne'e akontese iha dia 1-01-03 no mak polisia la simu. Ami fila ba urus adat.” 114 “Depois, hodi fali familia pelaku aceita ida ne'e, maibe (ilegível) lia tiha ona. Ne'e mak ami hodi lapor iha polisia”. 210 Era a segunda vez que iam à delegacia. Desta vez, porém, o marido não viera simplesmente dar queixa do evento ocorrido havia mais de um mês, pois já tinha sido (mal) informado de que a políca não receberia este caso. Veio, sim, reclamar o cumprimento do acordo feito na presença do chefe de aldeia e de testemunhas, e para isso trazia um documento: a descrição das negociações, assinada pelo chefe de aldeia. O documento acabou, assim, anexado formalmente ao processo nos arquivos da UPV de Dili. Tal como em Manufahi, o recurso à polícia era uma cartada destinada a pressionar a outra parte a aceitar os termos postos em um processo de negociação local. Diante do fracasso da autoridade tradicional em impor uma decisão, recorria-se à polícia. O interessante é que, por conta disso, o recurso à polícia não significa necessariamente que se esperasse ver a outra parte presa. Não se tratava simplesmente de ver o “agressor” na cadeia. No caso em questão, o recurso à polícia somente seria eficaz, do ponto de vista do querelante, se resultasse no cumprimento da multa acordada anteriormente. Com quem romper? Nem sempre, porém, a cadeia está fora dos planos de quem recorre à polícia. Em alguns casos os querelantes sabem que levar o caso à polícia pode significar abrir mão da possibilidade de reconciliação. Nestes casos, a polícia representava a perspectiva de um rompimento desejado. Levar um caso da Adat para a polícia é uma operação que envolve diferentes intenções quanto a continuidade de um relacionamento posterior. Especialmente em casos mais graves. Em alguns casos de violação sexual cujo resultado da negociação via Adat, segundo os reclamantes, não foi satisfatório, os querelantes chegam à delegacia solicitando que o agressor vá à prisão, e querem ver uma punição para o mesmo. Um caso de 2002 parece ser bastante expressivo disso. Em março de 2002 chegou à UPV um caso de estupro (VPU 111/2002) ocorrido vários meses antes. Fulano, marido da vítima, havia prestado a queixa contra Sicrano, vizinho dos dois e seu tio classificatório. Chamado a depor, Sicrano disse que havia, sim, mantido relações sexuais com Fulana, a vítima, por repetidas vezes, com o seu consentimento. Disse ainda que Fulana costumava pedir dinheiro a ele em troca do sexo. “Fulana sempre pedia dinheiro para mim e eu o dava. No total foram quatro vezes (sessenta mil rupias, depois trinta mil, trinta mil e vinte mil). Na quinta vez eu dei quarenta mil rupias. Também foi nesta quinta vez que o marido dela nos pegou tendo 211 relações no sofá”.115 O marido confirmou o flagrante em seu depoimento: “Eu vi Sicrano e minha esposa deitados sobre o sofá. Então eu disse para ele: 'Como é que você faz isso comigo?!'”116 Após o flagrante, o marido levou o caso para o irmão de Fulana que sugeriu que se resolvesse o assunto segundo a adat (“Urus secara adat”, em indonésio, ou “Negociar ao modo tradicional”, em uma tradução literal). A tentativa de resolver o caso pela via tradicional, contudo, não foi bem-sucedida. Segundo Fulano, “tentamos cinco vezes, mas como Sicrano mentia, nós resolvemos trazer o caso para a polícia”. O marido leva o caso à polícia pois não se conforma com a versão de seu tio classificatório de que a cena presenciada era de traição, e não de violação sexual. Para ele, o vizinho mentia reiteradamente. Levando o caso à polícia, ele fazia uma opção por manter o casamento e romper com o vizinho. Era um caso simétrico àquele narrado pelos missionários brasileiros (cf. Capítulo 4). A comparação do caso acima com o caso anterior é interessante por ressaltar que os sujeitos que recorrem à polícia – mesmo em casos semelhantes – o fazem com diferentes expectativas. Enquanto alguns buscam reforçar mecanismos locais de reconciliação, outros buscam aquilo que tais mecanismos não permitiriam. Alguns usam a polícia para fazer valer a reconciliação frustrada na esfera da aldeia. Outros buscam justamente uma arena em que as regras sejam outras e em que o rompimento da relação não signifique o fracasso do processo, mas seja um horizonte válido e desejável. Homens e mulheres timorenses fazem, em Dili, um uso estratégico dos diferentes modelos de resolução de disputas – adat e justiça formal – conforme lhes calhe melhor. Um último caso, antes de entrarmos em alguns exemplos dos tribunais, que evidencia a gama de subversões possíveis para as categorias e os sentidos de justiça em jogo neste processo diz respeito à briga entre uma primeira esposa e seu marido quando este decidiu largá-la para viver com outra (VPU 225/2002). Segundo o relato do caso nos arquivos da UPV, Fulana, depois de ter sido trocada por Sicrana, teria atirado pedras em frente à casa desta, partindo alguns vidros e ameaçando Fulano e Sicrana caso não recebesse o pagamento da compensação que lhe seria devida. Para se proteger, 115 “Fulana husu osan bebeik ba hau, e hau mos pernah fo osan ba Fulana, hamutuk dala 4 ona (Rp 60.000, Rp 30.000, Rp 30.000, Rp. 20.000). Dala lima hau fo tan Rp 40.000. Pasgan kelima ne'e maka nia katuas oan kaer toman ami nain rua iha momento ne'e hau ho korban sei halo hubungang iha sofa leten.” 116 “Hau haré Sicrano ho hau nia ferik oan toba hela iha sofa leten, depois hau dehan ba suspeito: nusa mak o halo hanesan ne'e mai hau?” 212 Fulano decidiu denunciar o caso à polícia que o registrou sob a rubrica “domestic assault”. Tal como no caso da mulher expulsa de casa pelo marido bêbado, os papéis de vítima e agressor aqui se invertem. A primeira esposa (feto bo'ot), vista, à luz de uma interpretação local como ofendida, passa a ser, à luz do modelo policial, a agressora. Fulano, sem razões que lhe amparem aos olhos da autoridade local, busca respaldo na instituição policial, e ali passa a ser classificado como vítima. O Tribunal Em julho de 2003 deixei a UPV em Dili e passei dois meses dedicado à pesquisa sobre desigualdade de gênero em Covalima (cf. Cap. 2). Ao voltar para Dili, em setembro, larguei os arquivos e comecei a acompanhar alguns casos ao vivo. Logo em minha primeira incursão ao Tribunal de Dili, acompanhando uma equipe da UPV que levava um suspeito para uma audiência de instrução, um fenômeno chamou minha atenção. Todos pareciam ir ao tribunal à contra-gosto. A esposa do agressor estava visivelmente constrangida. A mãe do rapaz dizia, a todo momento, que ele só a agredira porque estava bêbado, mas que era um bom rapaz. Tanto a mãe quanto a esposa pareciam não querer levar o caso adiante, e estranhei o fato de não se ter resolvido aquilo por meio de um “termo de compromisso”. Um policial foi buscar o rapaz e um outro acusado que estavam na carceragem. A esposa do outro acusado também preferia não ter que ir ao tribunal, mas estava mais conformada com o processo. Todos reunidos, a equipe subiu na Toyota da UPV e partiu rumo ao tribunal. Íamos os homens na carroceria (os dois acusados, eu e um policial) e as mulheres na cabine (uma policial, as duas vítimas e a mãe de um dos acusados). Aproveitei o trajeto para perguntar ao agente por que, afinal, os casos não tinham sido resolvidos na própria delegacia. O policial, com um ar de triste resignação, disse: “Agora todos os casos têm de ir a tribunal. Não podemos mais fazer mediação na polícia”. Seu tom deixava passar algum ressentimento. E completou, resignado: “É a pressão das ONGs...”. Chegando ao tribunal, pude entender melhor a frustração daquele policial. Ao conduzir os suspeitos, os policiais procuravam criar um ambiente amigável. Davam suporte aos acusados e raramente se via um suspeito algemado. Eles eram convidados pelos policiais a seguir em direção à sala dos promotores. Na saída, era comum ver policiais dando os ombros para os suspeitos se ampararem. Alguns abraçavam os suspeitos e os consolavam. O lado duro da lei, ali, era desempenhado pelos 213 procuradores. Os policiais cultivavam a preocupação em manter as duas partes em harmonia. Isso já tinha chamado minha atenção quando, sem nenhuma intenção de observação participante, estive no tribunal na condição de vítima, alguns meses antes, por ocasião do roubo da nossa motocicleta. Os policiais se mostraram muito gentis com os suspeitos e conversavam em tom informal com os mesmos. Na época imaginei que isso se relacionasse ao fato de eu ser um estrangeiro (um malai – categoria que não goza de muita simpatia entre os timorenses) o que poderia fazer com que os policiais, de certa forma, tomassem as dores dos acusados (dois timorenses). Mas agora, como observador, via a mesma cena se repetir entre timorenses. A procuradora fazia as perguntas para as duas partes, esticando a corda da tensão entre elas, enquanto à polícia cabia a função pacificadora de manter os ânimos serenos. A decisão de coibir a mediação na delegacia distanciava os policiais desta função. Eles tinham agora menos chance de desempenhar sua função pacificadora. Evitar que se chegasse ao confronto na procuradoria já não seria mais possível para nenhum caso de violência doméstica. Da parte dos demais envolvidos, ir ao tribunal não mudava muito as expectativas que já tinham trazido à delegacia. Perguntada pelo que esperava do tribunal, uma das vítimas respondeu com a mesma fórmula que povoava os depoimentos nos arquivos da UPV: “Espero que eles repreendam meu marido para que ele não faça mais violência”. O marido concordava que isso podia muito bem ser feito pela polícia: “A polícia repreende, mas eles disseram que a polícia não pode julgar. Todos os casos, tem que levar ao Tribunal”.117 A preocupação em efetivamente fazer com que os casos chegassem à justiça formal era evidente, como vimos no capítulo anterior, no discurso e na prática do GPI e de organizações que monitoravam o judiciário timorense. Mesmo casos que chegavam à procuradoria, muitas vezes não eram levados ao juiz. No seu relatório sobre o funcionamento do Tribunal de Dili (cf. Cap.4), o JSMP classificava tais práticas como um “excesso de informalidade”. Ainda naquele relatório, a organização afirmou: “Outra consequência preocupante da separação pouco clara entre o sistema judicial formal e a resolução de disputas informal foi o envolvimento do Ministério Público, como mediador ou árbitro, na resolução de casos. Após ter 117 “Sira fo moral ba ha'u nia laen. Atu labele halo tan violensia”. “Polisia fo moral, maibé sira dehan polisia labele tetu. Kaso hotu-hotu mak tenki lori ba tribunal.” 214 sido tomada a decisão de não prosseguir com a acusação de um suspeito, o Procurador mantinha-se envolvido, por vezes, num processo, usando a autoridade do Ministério Público para conduzir as partes a um acordo. Parece evidente que alternativas estruturadas para a resolução de disputas civis ou de infracções triviais da lei, devam ser disponibilizadas fora do sistema judicial formal, para que actores dos tribunais não tenham de assumir papéis fora da sua esfera de autoridade.” (JSMP, 2003:6) A preocupação em montar espaços de mediação fora do sistema jurídico também era apoiada, como vimos, na proposta de lei para o combate à violência doméstica (cf. Cap.3). De quaquer modo, tanto o GPI quanto o JSMP criticavam a atuação de policiais ou de promotores como mediadores, pois viam nisso uma indesejada mistura de funções. Processos-crime (como se propunha tratar a violência doméstica) deveriam ser tratados exculsivamente pelas regras do processo penal, e os atores do sistema de justiça deviam centrar-se no cumprimento deste seu dever. Em uma pesquisa posterior, especificamente sobre os casos envolvendo mulheres no tribunal de Dili, o JSMP menciona o baixo número de casos de violência doméstica que chegam ao tribunal, atribuindo isto à mediação que era feita por promotores e policiais: “Apesar da forte ocorrência de queixas de violência doméstica recebidas pela Unidade de Pessoas Vulneráveis em 2003, nem um único processo de violência doméstica foi agendado para audiência diante do Tribunal Distrital de Dili [durante o período da pesquisa]. À luz da análise feita pelos investigadores do JSMP, dos estudos sobre a violência doméstica Timorense, conduzidos pela Oxfam e Comité de Ajuda Internacional, os investigadores do JSMP ficaram imediatamente preocupados com a ausência de processos de violência doméstica, junto do Tribunal Distrital de Dili. (...) Na VPU [UPV] do Distrito de Dili, o JSMP tomou conhecimento de que muitos processos de violência doméstica que têm uma resolução extra-judicial são resolvidos na Procuradoria. Como resultado, e de forma a acompanhar os processos agendados no Tribunal, o JSMP entrevistou Procuradores na Procuradoria. (...) Aquando das entrevistas foi dito ao JSMP, por alguns funcionários da VPU, que estes tinham desencorajado as mulheres de denunciarem incidentes de violência doméstica "menores" ou violações que não fossem "sérias". (...) A escassez das acusações de violência doméstica pode ser parcialmente, mas não de forma satisfatória, explicada pelo facto de que entre o período de Janeiro a Agosto de 2003 dos 148 processos de violência doméstica denunciados à VPU do Distrito de Dili, 104 queixas foram retiradas pelas vítimas depois de terem recebido a aprovação do Procurador Público para as retirar.” (JSMP, 2004:1418) 215 A decisão de coibir a mediação na polícia e na procuradoria era uma resposta a observações deste tipo. A partir de agosto de 2003, todos os casos de violência doméstica que chegassem à polícia, iriam ao tribunal. Isto não significava, contudo, que seriam conduzidos exclusivamente à luz da sensibilidade jurídica de Estado. Se é certo que a mediação na delegacia aproximava a operação do caso da sensibilidade em jogo nas formas locais de resolução de disputas, não se pode dizer que, inversamente, a condução do caso pelos juízes timorenses afastasse o processo definitivamente de valores e procedimentos comuns em um nahe biti. Um destes elementos, claramente visível nos casos que acompanhei, dizia respeito ao lugar das palavras e da prova material no processo. Provas, Atrasos e Interpretações Como visto no capítulo anterior, o uso da palavra – por meio da construção de narrativas que enunciam motivações – tem um papel central nos processos de adjudicação tradicional em Timor-Leste. Narrativas são mais importantes que provas, ou, melhor dito, narrativas são provas. A exposição das motivações de um ato é o elemento a ser pesado em um processo de tesi lia. O recurso a elementos externamente objetivados só é feito em caso de disputas pela veracidade de uma narrativa, quando então se utilizam oráculos para definir qual a narrativa válida – que palavra é verdadeira. Nos casos de violência doméstica, contudo, são raros os casos em que haja narrativas em disputa. Em geral, como apontam os casos citados na seção anterior, as duas partes narram a mesma história, cada um apresentando as suas razões para seus gestos. Não é, portanto, de se espantar o pouco recurso a provas materiais no julgamento dos casos que vão ao tribunal. Isto já havia sido apontado no relatório do JSMP sobre o tribunal de Dili (cf. Cap. 4) quando se criticava a forma pouco rigorosa com que se lidava com as provas materiais, afirmando-se que “tanto a identificação, como a aplicação da lei é imprecisa e superficial. As provas são apresentadas sem qualquer avaliação do seu valor prejudicial ou probatório. Poucos esforços são feitos para que as provas sejam limitadas ou focalizadas.” De fato, não há palavra em tétum para designar “prova”. Tanto na polícia quanto no tribunal, usa-se o termo indonésio “barang bukti” para se referir às evidências 216 materiais. Literalmente, o termo significa “coisa que indica”, o que poderíamos traduzir, em termos gerais, como “indícios”, mais do que “provas”.118 No relatório sobre os processos envolvendo mulheres, o JSMP menciona, novamente em tom de crítica, o pouco recurso a provas materiais. Relacionando isso a uma suposta falta de objetividade nos processos, a organização critica a lentidão com que alguns casos acabam sendo tratados: “O JSMP observou que, durante o período de monitoramento, houve poucos progressos substantivos nos processos relacionados com as mulheres perante o Tribunal Distrital de Dili. Poucas audiências incluíram a consideração de provas; a maioria envolveu a mera leitura da acusação. A audiência com a maior duração durou 70 minutos; a audiência com a menor duração durou vinte minutos. Com tão poucos progressos feitos na maior parte dos processos, não admira que durante o período de dois meses de monitoramento, e no decurso de tempo em que este relatório foi redigido, não tenha sido proferida uma única decisão final em nenhum dos processos relacionados com mulheres. Nenhuma das vítimas ou suspeitos, em nenhum dos dezoito processos, teve a segurança de saber o desfeche final do seu processo. Isto após um total de 49 audiências agendadas e apesar do período de tempo médio para o decurso de um processo ser de 274 dias.” (JSMP, 2004:33) A idéia do tempo do tribunal como um tempo em atraso contrasta com uma representação comum acerca das formas locais de justiça segundo a qual a resolução via adat seria imediata – uma representação equivocada, como mostra o caso descrito pelo chefe de aldeia de Aitarak Laran, na carta arquivada na UPV. De qualquer forma, o fato de um processo levar um tempo considerado lento no tribunal é apresentado, em discursos como o do JSMP, como um ponto fraco do sistema da justiça de Estado que desencoraja o seu uso pela população: “Num caso, o Tribunal Distrital de Dili disse que estava a preparar a decisão. Infelizmente para a mulher aguardar um veredicto nesse processo, decorreu um ano, sete meses e dez dias, desde que ocorreu o incidente. Até hoje nenhuma decisão foi proferida nesse processo. É evidente que a vítima traz o seu processo ao sector da justiça formal de forma a que este seja objecto de uma audiência e de um veredicto. Até que tenha sido proferido um veredicto e o suspeito sido condenado ou absolvido, a justiça não foi feita nem para a vítima, nem para o 118 Roberto Kant de Lima, em uma comparação do sistema legal no Brasil e nos Estados Unidos, observa que o peso dado às provas materiais é elemento de grande diferenciação entre os dois sistemas. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, a inexistência de regras de exclusão e hierarquia de provas na justiça brasileira torna possível e emergência de uma “parafernália de meros indícios, tanto mais ampla, quanto mais abundantes forem os recursos do acusado e dos acusadores” (KANT de LIMA, 2004:51). Enquanto isso pode ter conseqüências prejudiciais a uma solução equânime no caso brasileiro, penso que o mesmo não se dê no caso timorense, uma vez que acima dos indícios estão as narrativas construídas pelos sujeitos. 217 suspeito. De facto, um objectivo central no procedimento criminal é a orientação organizada, eficiente e célere para uma resolução de um processo criminal. Até que surja essa resolução, o sistema não funcionou para o benefício das partes, tal como é suposto acontecer.” (Ibid.:33) Mais adiante, o relatório afirma: “Para as mulheres que recorram aos Tribunais para obterem justiça, essa justiça está a ser constantemente protelada. De facto, nem uma única decisão final foi proferida nos dezoito processos diante o Tribunal Distrital de Dili durante o período de monitoramento. É essencial, para que se façam progressos nos processos relacionados com mulheres no Tribunal Distrital de Dili, a formação e educação dos protagonistas da justiça para compreenderem, e responderem, às questões de violência doméstica e sexual.”(Ibid.:35) Além dos atrasos, outra crítica comum ao judiciário, já antecipada no capítulo anterior, refere-se ao recurso, pelos juízes, a interpretações pouco versadas nos códigos internacionais. No relatório sobre o Tribunal de Dili, o JSMP comenta o que considera um uso muito frouxo do direito com o exemplo de casos de violação sexual: “O direito era abordado com um grau de generalidade preocupante. O Tribunal não se debruçava sobre a tarefa de identificar com precisão a lei a aplicar (...) não se observa a tarefa aplicar a lei aos factos. Os exemplos seguintes, de casos observados pelo JSMP, ilustram este ponto. O JSMP observou que, durante o curso de vários crimes sexuais apresentados perante o Tribunal em Novembro, um elemento do crime de violação sexual foi sempre declarar que a vítima não era casada com o arguido. Isto está em acordo com o artigo 285º do Código Penal indonésio. É fortemente passível de se argumentar que esta definição de violação sexual é inconsistente com as normas internacionais sobre direitos humanos e, por isso, não aplicável em Timor Leste. De facto, numa sentença divergente dada pelo Juiz Benfeito Mosso Ramos nas Câmaras Especiais, sua Ex.ª citou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de discriminação Contra as Mulheres e a Declaração da ONU sobre a Eliminação da Violência antes de concluir que, na medida em [que] o artigo 285º do Código Penal indonésio permite a violação sexual no casamento, tal não é aplicável em Timor Leste. Claro que esta foi uma sentença divergente e mesmo que não fosse, os Juizes do Tribunal Distrital de Dili não estariam vinculados a seguir uma decisão das Câmaras Especiais. No entanto, o facto da questão da inconsistência não ter sido levantada uma única vez ou sequer discutida pelos Procuradores, Defensores ou Juizes, mesmo à luz da sentença divergente do Juiz Ramos, ilustra que os actores centrais do tribunal não estão necessariamente sintonizados com a sua tarefa difícil de sistematicamente examinar a lei aplicável em Timor Leste.” (JSMP, 2003:19) Vê-se aqui que a interpretação dos fatos era feita, pelos juízes, com forte referência ao código indonésio e, possivelmente, a uma maneira usual de interpretá-lo na jurisprudência indonésia. Por outro lado, a idéia, expressa no código penal indonésio, 218 de que um estupro, para ser caracterizado como tal, pressupunha uma relação sexual forçada fora do casamento, não era de todo estranha a valores locais. Lembremos a surpresa dos participantes de um dos grupos focais de Oecussi, descrita no capítulo 3, quando Marito perguntou pela possibilidade de haver violação sexual dentro do casamento. Assim, mesmo que nominalmente estejam mais distantes das formas utilizadas localmente para resolução de disputas, os casos no tribunal estão sujeitos à interpretação e condução feita por pessoas cuja sensibilidade jurídica vêm marcada – seja pela tradição do judiciário indonésio, seja pelos valores próprios de formas locais de resolução de disputas – por princípios e procedimentos muitas vezes estranhos ao discurso do gender e dos direitos humanos. Este descompasso gera situações muitas vezes lidas como de “incompetência”. Em muitos momentos, pode ser isso mesmo. Em outros, porém, representa a escolha consciente de pessoas que sabem que disso depende, em grande parte, a eficácia das medidas tomadas. Basta lembrar o caso, já narrado no capítulo anterior, das “histórias propriamente ouvidas” – mesmo os acusados tendo confessado o crime, promotores e advogados pediam a oitiva de todos os envolvidos, para que todos pudessem, tendo enunciado suas narrativas, sentirem-se plenamente acolhidos (ou corretamente reconhecidos) no processo de resolução da disputa. Nos casos em que pude acompanhar uma audiência de instrução, no tribunal, algumas destas escolhas eram evidentes. Em todos os depoimentos que acompanhei, a preocupação central do juiz de instrução era em ouvir os motivos do acusado. A busca dos porquês (tamba sa ida), pergunta padrão dos lia na'in em um processo de tesi lia, era repetida pela boca de juízes e promotores. Era pela semelhança formal com um processo de adat que a experiência tornava-se familiar às partes envolvidas. Dois casos, dois depoimentos No tribunal, começa a audiência de instrução de um caso de violência doméstica – formalmente, uma acusação de maus-tratos. Em uma grande sala, de um lado da mesa estão juiz, promotor e defensor, que não usam símbolos aparentes de distinção (os juízes vestem toga apenas para o julgamento final). Ao lado do juiz, uma secretária do tribunal toma as notas. Do outro lado da mesa, sentados lado a lado, a vítima e seu esposo. Nas cadeiras da audiência, alguns policiais, membros da família, e eu. O defensor, um jovem na casa dos vinte anos, veste uma camisa xadrez, aberta até o terceiro botão, deixando a 219 mostra um colar de missangas em volta do pescoço e passa quase toda a audiência calado, enquanto a promotora argüi o acusado em busca dos motivos que o teriam levado a bater em sua esposa: “Então o senhor não tinha razão para bater”, conclui. Pergunta ainda se ele costuma bater na esposa. Sim. Já estão em paz? Sim. Promete não voltar a bater? Sim. Conclui então pedindo ao juiz 3 meses de prisão ou pena alternativa. O juiz decide que o acusado poderá aguardar em liberdade, mas terá de se apresentar duas vezes por semana à polícia. O julgamento fica marcado para dali a dois meses. Depois da sessão, a promotora me diz que ficou sensibilizada pelo fato de a mulher ter 8 filhos. “Não pode prender o homem neste caso. A família, como ficaria?” A análise do contexto – não apenas das motivações que levaram ao gesto, mas das condições de subsistência da família – estão longe de ser o padrão do processo penal no direito positivo, ainda mais frente à necessidade de se respeitar princípios de direitos humanos tidos como universais. Certamente isso caracteriza o tipo de conduta enquadrado pelo olhar jurídico do JSMP, ou mesmo de Cláudio Ximenes (cf. Cap.4), na categoria de “pouco rigor jurídico” ou “excesso de informalidade”. 119 No entanto, era isso que aquela promotora tinha acabado de fazer. E sua conduta fazia todo o sentido, não apenas para o homem e a mulher envolvidos, mas para as famílias que acompanhavam o caso. Era comum que os casos, mesmo no tribunal, mobilizassem famílias, da mesma forma que ocorreria em um biti boot. Em um caso de tentativa de estupro, junto com a vítima e o acusado comparecem ao tribunal 11 familiares – a maior parte do acusado – e três amigos da vítima. É improvável que todos estivessem arrolados como testemunhas, mas dá bem a medida de que a justiça era vista, ali, como um negócio entre famílias, mais do que entre indivíduos. Aproveito a espera dos familiares para conversar com um tio da vítima. Pergunto o que ele espera do tribunal. Ele acha que o tribunal deve aplicar um castigo ao agressor: “É como na escola. O aluno faz algo errado, castiga ele para ele não repetir”. Em outro caso, o processo de tomada dos depoimentos é feito de modo ligeiramente diferente. Depois de iniciada a audiência de instrução, o juiz pede à polícia 119 Vale lembrar que a exclusão do contexto de um caso não é absoluta no direito positivo, como já discutido no quarto capítulo. O direito pressupõe o enquadramento do caso em um contexto específico. O problema é que o contexto normalmente está condicionado, ou reduzido, pela filtragem ocorrida quando da “redução a termos” de um caso. 220 que retire o acusado e faz uma série de questões à vítima. No retorno do acusado, o juiz comunica a acusação que lhe está sendo imputada. Então, procurador e defensor inquirem o acusado. O juiz pede novamente que o acusado seja retirado da sala e faz novas perguntas à vítima. A mulher confirma que o marido batera nela pois ela se negou a lavar roupas. Em maio o marido já havia lhe agredido, e ela registrara queixa na polícia, sendo que o caso terminara com a assinatura do “Termo de Compromisso”. O juiz lhe pergunta então quem garante o sustento da família: “Quem põem dinheiro em casa?” O meu marido, responde a vítima. O defensor lhe pergunta, então, como ela se sentiria se o marido voltasse para casa. “Você o aceitaria?” Sim, responde a vítima. O suspeito retorna e o juiz lhe faz uma série de perguntas sobre os motivos para a agressão. Em seguida lhe mostra o “Termo de Compromisso” assinado em maio, e pergunta: “Por que isso voltou a acontecer?”. Na seqüência, o acusado leva uma grande chamada de atenção por parte do juiz, do promotor e mesmo do advogado – supostamente seu defensor. Este lhe pergunta: “Você pensa que sua mulher é o quê?” (Ita hanoin ita nia fe'en oin sa?). Neste caso, a promotoria pediu dois anos e 8 meses de pena, com prisão preventiva até a data do julgamento final. O advogado, muito respeitosamente, contesta, lembrando que a família se sustenta com o trabalho do acusado e que a vítima concordara em recebê-lo de volta. Propõe liberdade condicional até o julgamento. O juiz pede uma pausa de dez minutos antes de proferir a decisão final e todos nos retiramos da sala. Parecia desejável aos operadores de direito do tribunal de Dili, embora não enunciassem isso, estabelecer um paralelo entre o seu papel e aquele dos lia na'ins, a quem cabia não só ouvir adequadamente as histórias e pesa-las (tetu lia), mas proferir as decisões, “cortar a palavra” (tesi lia). Penso que fosse, em boa medida, do reconhecimento deste paralelo que vinha boa parte da eficácia do tribunal. Isto ficou evidente para mim quando acompanhei um processo de mediação na Fokupers, no qual a ausência de uma autoridade decisora comprometia a eficácia do processo. A Mediação Muitas vezes casos que chegavam à polícia acabavam encaminhados para resolução extra-judicial por meio de sessões de mediação em organizações como a 221 Fokupers ou a Associação HAK (Yayasan HAK, uma das primeiras ONGs de direitos humanos timorense). Era o que tinha acontecido com o caso de Rosa. Filha de família pobre da periferia de Dili, perdera o pai cedo. Quem assumiu suas despesas de criação (roupas, educação, saúde) passou a ser um vizinho, João (nomes fictícios). A situação manteve-se assim por vários anos, até Rosa chegar à maioridade. Certa ocasião, João procurou a mãe de Rosa para acertarem o casamento. A mãe não compreendeu aquilo. Segundo ela, nunca fizera trato algum com João, e tudo o que ele deu fora sempre entendido como gesto de generosidade. Para João, porém, o fato de ter assumido despesas com Rosa durante tanto tempo o qualificava para tomá-la como sua segunda esposa. Diante da recusa da mãe e da filha em efetuar o casamento, João cobrou que se lhe devolvessem tudo o que investira na menina. Como não foi ressarcido, fez ameaças. Tentou-se resolver o caso por meio do chefe de aldeia, sem sucesso. Esgotada esta instância, a viúva deu queixa à polícia, dizendo sofrer ameaças de João. A polícia chamou João para averiguações e, entendendo que não havia crime em curso, decidiu não encaminhar o caso para a promotoria mas sim para a paróquia, colocando nas mãos do padre a tarefa de mediar a confusão. O padre chamou João duas vezes para uma reunião. Sem conseguir sua presença, decidiu encaminhar Rosa e sua mãe para a Fokupers. Um rápido olhar sobre a trajetória do caso até chegar à mediação na Fokupers já indica o emaranhado de atores, expectativas e sensibilidades jurídicas em jogo. A começar pelo motivo da desavença, há sempre mais do que indivíduos envolvidos na história. A disputa se origina em torno da percepção da quebra de compromissos familiares. A primeira instância de resolução é a negociação entre famílias, intermediada pelo chefe de aldeia. Só depois disto é que se busca o Estado. Os agentes do Estado, contudo, julgam mais adequado enviar o caso novamente para uma instância comunitária – a paróquia, e é por meio dela que se chega à ONG. A idéia de que um caso envolva indivíduos que, por deliberação própria, procuram o Estado para resolver contendas com outros indivíduos parece ser antes um desejo (um wishful thinking) do discurso dos direitos humanos do que propriamente uma característica dos casos em que pessoas buscam justiça em Timor-Leste. Acertando os ponteiros Um processo de mediação conduzido na ONG pode envolver várias sessões. No caso de João e Rosa, foram três longuíssimas sessões, uma delas com quase seis horas 222 de duração. A demora não era propriamente uma surpresa. Era preciso, antes de mais nada, encontrar uma linguagem comum em termos da qual se negociaria. Logo na primeira sessão, um impasse. Estavam presentes vários membros das duas famílias, todos solenemente sentados em torno de uma grande mesa retangular. Como mediadores, dois funcionários da Fokupers, um homem e uma mulher. O mediador começou por distribuir uma folha em indonésio onde se liam os princípios da mediação. O princípio central, destacado pelo mediador, dizia que ali eram as partes que deveriam chegar a um consenso. Não caberia a ele, mediador, decidir nada. Se as partes não chegassem a um acordo, então o caso seria levado a tribunal para decisão de um juiz. O mediador terminava agradecendo a confiança de todos. Nisso, João pede a palavra para exigir a presença do chefe de suco, ou ao menos do chefe de aldeia. O mediador diz que nem o chefe de suco nem o padre da paróquia devem tomar parte no processo, apenas os interessados. João, então, concorda que eles não participem do processo, mas para selar um acordo, ele exige a presença de uma autoridade local. “Para decidir (atu tesi lia), eu exijo a presença do chefe de aldeia”. Um katuas da família de João (provavelmente o irmão mais velho de sua linhagem) pede a palavra e argumenta em favor da necessidade de se respeitar a hierarquia local, dizendo que um acordo precisa do aval do chefe de aldeia para ter validade. O mediador responde ao katuas, dizendo que se não houver acordo naquela instância de mediação, o caso não pode voltar para a aldeia, mas deve seguir ao Estado. A mediação feita na Fokupers não estava, portanto, subordinada à esfera de autoridade do chefe local. A funcionária da Fokupers, encarregada de redigir a ata da sessão, reforçou a idéia dizendo: “Se não se resolver o caso aqui, temos que ir para um lugar com mais importância. O chefe de aldeia pode vir, mas só para escutar. Quando um caso chega até a Fokupers, nós é que somos os mediadores, não o chefe de suco nem o chefe de aldeia.” O caso já saíra da esfera familiar, e mesmo da jurisdição da justiça local. João pediu alguns instantes para conversar com os katuas da família. Alguns minutos depois, o grupo voltou à mesa. João tinha aceitado os termos do processo. Só então a sessão foi aberta, passando-se a palavra a Rosa, para que desse sua versão dos fatos. Rosa vinha acompanhada apenas de sua mãe e um tio e explicou que havia sido ameaçada por João caso namorasse outros homens no bairro. A mãe confirmou, dizendo que João cobrava uma compensação equivalente a 35 mil dólares para liberar Rosa de se casar com ele, na condição de segunda esposa – João já era casado, e sua esposa, inclusive, o acompanhou à mediação. Nos termos da mãe de Rosa: “Eu sou viúva, estou 223 doente, eu aceito. Eu não podia recusar o favor do senhor João. Agora o senhor João quer que eu pague?! Ameaça-me com um facão?!”.120 Em função da queixa de ameaça, João começou o processo sendo referido como “agressor” (pelaku, em indonésio). Na primeira oportunidade contestou o rótulo. Apresentava-se ali como convidado e não aceitava ser chamado de agressor, pois, em seus termos, “nunca morara com a vítima” – como podia, portanto, estar arrolado como agressor em uma instituição que cuidava de casos de violência doméstica?121 Disse ainda que considerava um exagero o caso ter sido levado à polícia e ao padre, e, agora à Fokupers. A postura altiva e, por vezes, agressiva de João marcava sua rejeição à posição subalterna que a “culpa” lhe imporia. Não estava ali como culpado, não devia nada a ninguém e dizia isso com todo o seu corpo. Ao contrário, cobrava uma dívida. Perguntado se aceitava que se tirassem fotos do evento, João negou. “Não sou criminoso para ser fotografado”. Os ânimos se acirraram, e a sessão teve que ser suspensa para um lanche. Durante meia hora, a Fokupers serviu bolinhos e café para o grupo, enquanto as famílias cochichavam pelos cantos. Na volta, diante do impasse, o mediador decide conversar com as partes separadamente – atitude padrão nos manuais de mediação. Primeiro pergunta à esposa de João se ela aceitaria que o marido tomasse uma segunda esposa. A mulher pede para responder em Makassae, seu idioma natural – era comum, em casos de pronunciamentos rituais, que algumas pessoas (especialmente as mulheres e os lia na'in) utilizassem apenas seu idioma nativo, embora entendessem perfeitamente o tétum (cf. Cap. 3). Respondendo ao mediador, diz que se for da vontade do marido, ela obedece. À família de João, o mediador diz que se o caso for a tribunal será julgado como um caso civil e eles terão que provar que havia um acordo acerca do apoio que João dera à Rosa em troca do casamento, o que seria muito difícil pois não havia nada formalizado. Ademais, Rosa era menor de idade na época do suposto acordo, o que reduziria ainda mais suas chances em tribunal. Era melhor que aceitasse um acordo ali mesmo. João diz que aceitaria chegar a um acordo sobre a redução do valor cobrado, desde que, representando a família de Rosa viessem dois outros tios, os katuas mais velhos do grupo. Conversando com a família de Rosa, o mediador explica a disposição de João. A 120 “Hau ferik, hau moras, hau simu. Hau labele halele senhor João nia favor. Oras ne'e senhor João hakarak hau selu?!. Ameasa hodi katana?!” 121 Este argumento pressupunha que, por ser a Fokupers uma instituição que atendia mulheres vítimas de violência doméstica, ao ser chamado de agressor João via-se arrolado em um caso de violência doméstica, que, para ele, não fazia sentido como tal. 224 família nega-se a negociar o valor. O mediador os encoraja, então, a se prepararem para entrar com um processo na justiça, contra as ameaças recebidas. Este seria um processo criminal contra João e poderia desencorajá-lo de fazer as cobranças. A Fokupers se dispunha a apoiá-los e a dar proteção à Rosa. De volta à mesa retangular, o mediador faz uma recapitulação do processo, como a construir uma narrativa. Apresenta as soluções possíveis: um processo de João contra Rosa na justiça civil, e/ou um processo criminal de Rosa contra João. Todos, porém, se negam a entrar na justiça, e decidem tentar novamente um acordo entre as famílias. A condição de João, desta vez, é a presença de dois katuas da família de Rosa que ele reconhece como interlocutores legítimos para negociar com seus katuas. Quase um mês se passa até a nova sessão de mediação. Curiosamente, desta vez João leva o seu próprio lanche. Nega-se a partilhar a comida com o grupo de Rosa. Da parte da família de Rosa apresentam-se mais dois tios. João, porém, diz que não são os “grandes tios” (tio boot) que ele havia pedido e se nega a continuar o processo. É claramente um caso de negociação entre famílias, e há pessoas reconhecidas como porta-vozes credenciados para tanto. Depois de muita argumentação, a família de João decide propor uma alternativa: desiste de cobrar qualquer coisa, mas corta todos os laços que os unem – rompem todas as relações de mútua obrigação que porventura tenham. Descubro, então, que há alguma relação de parentesco entre o grupo de João e de Rosa. Diante da nova proposta, o mediador dá um tempo para a família de Rosa conversar entre si e chegar a uma posição. No retorno à mesa de negociações, a mãe de Rosa diz não aceitar a proposta. “Família é sempre família. Não se pode cortar uma relação familiar”. (Tamba familia nafatin. Labele hakotuk hubungan familia). Rosa confirma, dizendo que não pode aceitar a proposta pois teme não mais poder ir a festas. Para sair de casa tem que passar pela casa de João. Encontram-se todos os dias, não há como cortar relações. Novo impasse, novamente o mediador pede conversas em separado. João pede uma nova audiência, desta vez com os dois “grandes tios” de Rosa. Infelizmente não pude ficar em campo até a realização da terceira sessão. Antes de sair de Timor-Leste, soube que os “grandes tios” negavam-se a tomar parte da discussão, e que o caso provavelmente acabaria chegando ao tribunal. Estava muito difícil construir um consenso pela mediação. 225 O parteiro e o genitor A grande discussão do caso acima envolve a compreensão a respeito do sentido da dádiva. Na base da disputa está uma discussão sobre a “ajuda” dada por João à mãe de Rosa. Dado o contexto das relações entre os dois grupos, a mãe da menina alega que aquilo foi percebido como apoio gratuito. “Eu sou viúva, estou doente, eu aceito. Eu não podia recusar o favor do senhor João. Agora o senhor João quer que eu pague?!” A viúva punha-se, em sua narrativa, em situação de não-escolha. Aceitar a dádiva era sua única alternativa. Cumprindo a etiqueta do dom, recebia o favor e esperava poder pagálo um dia, quando e como pudesse. Neste sentido, a cobrança de João, em termos explícitos e violentos passa a ser uma afronta à ética da dádiva. Para João, porém, a história não se passa desta forma. Para ele, a viúva tinha, sim, família. Daí a insistência em chamar os “grandes tios” para a arena. Se a viúva tinha tios a quem recorrer em caso de necessidade, aceitar os favores de João não era uma situação de não-escolha, mas uma aceitação consciente de um compromisso implícito. Afinal, também é parte da etiqueta da dádiva que não se explicitem totalmente os termos da troca. Negar-se a retribuir a dádiva é que seria uma afronta. O mediador percebia o jogo que estava em causa, e a forma como cada um queria construir o campo de negociações: João buscando sempre a interlocução com a família de suporte da viúva – com quem a cobrança da retribuição podia ser acertada; e a viúva buscando restringir o universo de partes envolvidas. Se este fosse um biti boot, e o mediador um chefe de aldeia, provavelmente este teria autoridade para definir a abrangência do campo de negociação, assegurar a participação dos envolvidos e, ao final, sancionar o acordo acertado entre os katuas dos dois grupos. Esta autoridade, contudo, não pertencia ao mediador. Além de não poder assegurar a presença dos “grandes tios”, também não podia proferir sentença. Não cabia a ele “cortar a palavra”. Ao contrário, os princípios da mediação, distribuído no primeiro momento, diziam que não cabia ao mediador decidir nada nem interferir nas decisões. Nas palavras de uma ativista suíça que acompanhava o trabalho da Fokupers, o mediador deve ser “um parteiro de idéias”, “ajudar a fazê-las nascer”, mas nunca concebê-las. Isto deve ser feito pelas partes em negociação. Em um dos casos que acompanhei, um processo de separação bastante complexo, o mediador era um advogado especialista em separações. Melhor diria, em 226 evitar separações, tamanho o seu esforço em achar uma solução que evitasse a mesma. Dizia ele que teriam de achar uma solução consensual, pois não poderia impor nada. Assim, é de supor que não se aceitaria, de partida, a demanda nem de uma parte nem da outra. A mediação seria, assim, em seus termos, “um processo de abrir alternativas”, até se obter a aquiescência das partes. Na falha do processo, põem-se a separação como cenário – sinônimo do fracasso social. Em todos os casos que pude acompanhar, o mediador inicia com palavras rituais de agradecimento, faz constantes recapitulações do processo e das propostas apresentadas e vai narrando, ao longo do processo, cada passo da negociação, como a pavimentar, em uma narrativa, a estrada para o acordo. As sessões são longas, podendo durar até quatro horas, e um caso nunca envolve menos de duas sessões. Embora feito em parceria com o sistema formal de justiça, a mediação parece-se, formalmente, mais com um biti boot. O desenrolar de narrativas de ambas as partes, expondo suas motivações, a presença de vários membros das famílias envolvidas e o constante consultar aos mais velhos (os katuas) da família aproximam o processo daquilo que é gramatical para as formas locais de justiça. Apesar dessas semelhanças, o papel meramente facilitador do mediador parece colocar uma diferença radical em relação ao de um lia na'in. O lia na'in não é apenas parteiro, cabe a ele também o papel de genitor. Por outro lado, pode-se comparar o mediador com o chefe de aldeia. Este, em um biti boot, também cumpre um papel de mediação, no sentido de que a decisão é feita pelos katuas ou lia na'ins. Ainda assim, os chefes de aldeia têm o poder de repreender os que não comparecem ou fogem da negociação. Que poder de pressão tinha o mediador neste sentido? A acentuar as diferenças, a mediação adotava um modelo de negociação entre indivíduos, em que se desencorajava a presença de autoridades locais. Com isso, o processo se distanciava ainda mais daquilo que era gramatical para as partes. Aparentemente, o mediador ocupava uma posição homóloga à de um chefe de aldeia, mas sem os recursos de persuasão e pressão de que este dispunha – e, por certo, sem o respeito ritual atribuído à posição de chefe de aldeia. Era, por assim dizer, um parteiro sem mãos. Além disso, embora a mediação lembrasse um biti boot, certamente não era um processo de tesi lia. Na mediação não cabe a ninguém em especial “cortar a palavra”. Não há um dono da palavra para tomar uma decisão. Esta característica não deixava de despertar algum desconforto nas partes, que muitas vezes viam-se em situações de 227 impasse. Muitos casos acabavam não chegando a bom termo por conta disso. Em uma sociedade altamente hierárquica, a falta de uma autoridade decisória parece colocar o processo de mediação em um não-lugar, coisa que pode ajudar a explicar o alto índice de casos não resolvidos por meio destes acordos. Aqui é interessante tomar como contraponto os casos de mediação que pude acompanhar na delegacia de polícia, na época em que esta ainda era uma prática tolerada. Naqueles casos, a policial possuía uma autoridade primordial. Ela estava em posição de autoridade, mesmo que quisesse apenas mediar, e como o caso estava na polícia, havia um acusado e uma vítima, o que criava uma situação de desigualdade clara entre os três atores envolvidos. Aqueles casos chegavam facilmente a um acordo. Quando todos estão, porém, no mesmo nível – lembremos os protestos de João por ser chamado de agressor e a questão que fazia de dizer que estava ali como convidado – o acordo parece tornar-se bastante mais difícil. O fracasso da mediação vinha, assim, da impossibilidade de se ter uma figura acima das demais – a quem recorrer para cortar a palavra ou mesmo para simplesmente repreender a parte que se excedera. A expectativa daquela senhora que queria que o tribunal “repreendesse” seu marido evidenciava a importância desta figura. Neste sentido, polícia e tribunal estavam muito mais próximos da imagem do tesi lia do que a mediação feita extra-judicialmente. Em comparação às normas da mediação e à conduta dos mediadortes, ficava mais claro o papel dos operadores de direito como lia na'ins no imaginário de quem buscava, na delegacia ou no tribunal, uma alternativa compatível com o tesi lia. Mas, se era com a expectativa de encontrar um lia na'in que muitos usuários do sistema de justiça chegavam à delegacia de Dili, por que então não se resolviam os casos pela adat mesmo? Por que a busca de alternativas similares? Dili: quando o feiticeiro perde sua magia Dili impõe uma realidade diferente para os sistemas locais de justiça. Nesta cidade não há um sistema, mas um bricolage de vários modelos locais. A maior parte das pessoas que moram em Dili vem de diferentes áreas do país. Isso significa que suas famílias, os grupos de suporte e os líderes de sua confiança estão todos longe, em seu 228 lugar de origem. Um chefe de aldeia em Dili não possui, portanto, o mesmo tipo de relação com sua comunidade que possui um chefe de aldeia nos distritos. O distrito de Dili está dividido em 6 subdistritos e em 48 sucos. Cada suco possui uma média de 4 aldeias. A parte propriamente urbana do distrito concentra cerca de 30 destes sucos. Embora haja alguns sucos de Dili com comunidades relativamente homogêneas, é comum pessoas de diferentes origens étnicas estarem agrupadas em uma mesma vizinhança. Assim, quando há conflitos a resolver, as pessoas alegam não ter a confiança necessária nos chefes locais para evitar o uso da polícia. A polícia ganha, em Dili, um estatuto de confiança maior e é muito mais acionada do que nos demais distritos. Conversando com um acusado em um processo de violência doméstica, no Tribunal Distrital, perguntei-lhe qual o melhor caminho para resolver este tipo de problema, se o sistema local ou a justiça formal. Sua resposta foi a de que era melhor que se fosse à polícia para evitar a reincidência, pois assim “nós teremos medo” de repetir a agressão. A polícia e o tribunal amedrontam, possuem um temor/ respeito que já não é mais visto ou sentido por parte dos habitantes de Dili em relação às estruturas locais – família, líderes tradicionais e de comunidade. A fala daquele acusado coincide com as queixas de alguns lia na’in de Dili, segundo os quais hoje em dia, na cidade, todo mundo vai direto à polícia, ao contrário do que acontece nas montanhas. A característica aglutinadora de múltiplas origens parece tornar o ambiente urbano de Dili um lugar propício à perda de eficácia simbólica das estruturas tradicionais. O biti boot em Dili perdeu sua eficácia simbólica por conta da desagregação da base social que o sustentava. As pessoas não confiam nos líderes locais para resolver seus problemas e não temem descumprir os compromissos assumidos. Ao lado disso, os chefes de suco perderam muitas das atribuições que possuíam no tempo indonésio na intermediação entre os cidadãos e o Estado. Até 1999, se alguém quisesse retirar um bilhete de identidade ou solicitar um passe de viagem para algum distrito (o trânsito interno no país era controlado), teria que apresentar uma declaração de bons antecedentes emitida pelo chefe de suco. Descumprir as determinações de um chefe de suco em um biti boot podia, portanto, ter conseqüências sérias não apenas para uma família, mas para um cidadão – na medida em que atingia precisamente a relação do indivíduo com o Estado. 229 Dili apresenta, assim, um contexto em que o feiticeiro perdeu parte de sua magia. Isto facilita o uso, por parte de seus cidadãos, de diferentes recursos para resolução de suas contendas; uma espécie de sincretismo jurídico, em que de manhã se vai ao chefe de suco, de tarde à mediação e à noite, à polícia. De certo que isso não é bem visto pelos líderes tradicionais, mas também traz dores de cabeça para quem pensa o futuro do sistema judicial timorense, especialmente pela recusa do governo em validar oficialmente uma situação de pluralismo jurídico. Os lia na'in talvez estejam em melhor condição de acomodar este sincretismo em seu sistema classificatório. Mesmo queixando-se do recurso que as pessoas fazem à polícia até para pequenos casos, um lia na’in de Dili disse-me que não via problema em valerse do sistema formal de justiça. Ele não tinha dúvidas de que a decisão da Lei está acima de qualquer lia na’in, e que a polícia e o tribunal mandam mais. Mas é preciso que as pessoas respeitem a ordem das coisas. O sistema de resolução de conflitos segue, para ele, um modelo ordenado de estruturas hierárquicas que deve ser respeitado. É preciso primeiro esgotar as instâncias inferiores para só então seguir para as superiores. Não há mal nenhum em, não se chegando a bom termo no biti boot, acionar a polícia. “Mas ir direto à polícia, isso não é bom...”. A busca de uma autoridade que substitua este feiticeiro desencantado parece levar muita gente a procurar a mediação nas delegacias de polícia. E o processo parecia ser mais eficaz neste tipo de mediação do que naquele conduzido em outras instâncias, especialmente por ali não se perder o sentido de autoridade, caro às formas alternativas de resolução de disputas organizadas em torno do tesi lia. Em nome do discurso do gender – um modelo formal orientado por valores nem sempre gramaticais para as pessoas – impôs-se que esta mediação acabasse. Isto, porém, não apaga as estruturas mentais que essas pessoas levam consigo e que orientam a sua relação com uma certa noção de justiça e mesmo com uma sensibilidade jurídica muito própria. A negação formal da incorporação de princípios locais na justiça de Estado não impediu que os habitantes de Dili fizessem (e venham continuar a fazer) um uso particular da justiça formal, em que as fronteiras entre tradição e modernidade são constantemente embaralhadas. O processo de elaboração de uma Lei de combate à violência doméstica foi apenas um primeiro movimento concreto na complexa discussão sobre se e como integrar formas locais de justiça em um modelo judicial moderno/ internacional. Essa 230 discussão e seus dilemas tendem a ocupar, nos próximos anos, mais e mais espaço na agenda política timorense, especialmente face à decisão do governo de apressar a elaboração de um código penal e civil próprios para o país. 231 Conclusão: “A VIOLENSIA DOMESTIKA NÃO FAZ PARTE DA CULTURA DE TIMOR-LESTE” Violenisa baseia ba gender la’os parte kultura Timor-Lese nian (slogan da campanha de 25 de novembro – 2002) Em busca de uma sociedade civil O sociólogo sueco Gudmund Jannisa, em um artigo intitulado “Rumo a uma sociedade civil: a longa e árdua luta de Timor-Leste”, destinado a discutir as perspectivas que se abriam para a construção do país logo após a restauração da independência timorense, em 2002, afirma: “Por meio do que Benedict Anderson (1991) chama viagem ao centro, um pequeno número de jovens de uma elite nativa domesticada e mestiça fez suas 'peregrinagens' a centros de aprendizagem em centros administrativos, tais como a escola secundária de Soibada e o seminário jesuíta em Dare, próximo a Dili. A partir de meados do século XX, alguns chegaram mesmo a ir a Portugal, estudar em universidades por lá. Em todos estes lugares, encontraram seus colegas 'intelectuais bilíngues', como Anderson chama estes jovens (quase sempre eram homens) que vinham de perto e de longe para aprender a se tornar bons cidadãos coloniais. A ironia é que, ao menos alguns, tornaram-se cidadãos de um credo totalmente diferente. Aprenderam, primeiramente, que o mundo exterior os via como 'timorenses', não como macassai, ou galoli, ou mambai, nem mesmo como kaladi ou firaku, e eles aprenderam a aplicar este mesmo olhar para si mesmos. A diferença, frente ao sistema colonial, é que eles estavam insatisfeitos com sua posição de cidadãos de segunda-classe dentro de um império alheio, e decidiram fazer algo a respeito. Nascia uma 'comunidade imaginada'; os conceitos, de algum modo abstratos, de kaladi e firaku fundiram-se como duas partes de uma entidade maior, e decididamente abstrata, 'nós, timorenses'. Deve-se lembrar, contudo, que, esta idéia estava longe de ser encampada por todos à época. Até o início dos anos 1970, esta nova idéia estava confinada a uma elite. Antes de 1974 a maior parte das pessoas simplesmente não se identificava como timorense. Em lugar disso, classificavam-se de acordo com seus grupos etnolingüísticos; as pessoas se viam como chinês, português, lusotimorense, ou como mambai, tetum, makassae etc. De qualquer forma, em 1974 existiu em Dili o embrião do 'homem moderno' e da moderna sociedade timorense, uma ruptura, diríamos, com a Gemeinschaft da sociedade tradicional. Um pequeno grupo de jovens embarcara em uma nova forma de pensar, caracterizada pela racionalidade e pelo individualismo, pelo não-tradicionalismo e por vínculos com outros indivíduos que eram diferentes dos velhos vínculos particularistas com grupos etnolingüísticos ou com alianças familiares. Como já mencionado, a sociedade civil pressupõe indivíduos autônomos, i.e., homens (e mulheres) modernos, e agora, quando temos homens modernos em Dili, podemos também esperar encontrar uma sociedade civil? A resposta é sim, ou ao menos o embrião de uma sociedade civil.”122 (JANNISA, 2002:.25-6). Este grupo de “homens e mulheres modernos” hoje está no poder, e é a partir dele, em diálogo com atores transnacionais como a ONU e grandes ONGs e com parcelas de uma juventude urbana engajada em um projeto modernizante, que se vem construindo um discurso específico sobre as categorias de gênero, igualdade e justiça. Pessoas como Micató, à frente do Gabinete para Promoção da Igualdade, ou Olandina Caeiro, à frente da ETWAVE, pertencem àquela geração de timorenses que se envolveram com um projeto nacional desde o fim do período português e agregaram, a partir daí, discursos fundados nos valores da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres. 122 “Through what Benedict Anderson (1991) calls journeys to the centre, a small number of domesticated native elite and Mestizo youth made their ´pilgrimages` to centres of learning in the administrative centres, such as the secondary school at Soibada and the Jesuit-run Seminary at Dare, near Dili. From the mid-twentieth century a few even went to Portugal to study at universities there. At all these places they met their fellow ´bilingual intellectuals,´ as Anderson calls these young men (almost invariably they were men) who gathered from near and afar to learn to become good colonial citizens. The irony was that at least some of them became citizens of quite a different creed. They learned, for one thing, that the outside world saw them as ´East Timorese`, not as Macassai, not as Galoli, not as Mambai, and not even as Kaladi or Firaku, and they learned to apply the same view towards themselves. The difference, vis-à-vis the view of the colonial system, was that they were unhappy about their position as second-class citizens within somebody else´s empire, and that they decided to do something about it. An ´imagined community` was born; the somewhat abstract concepts Kaladi and Firaku melted together as two parts of one greater, and decidely abstract, entity ´we East Timorese.` It must be reminded, however, that far from everyone subscribed to this idea at the time. As late as in the early 1970s, this new thinking was confined to an élite. Before 1974 most people simply did not identify themselves as East Timorese. Instead, they classified themselves according to their ethno-linguistic group; people saw themselves as Chinese, Portuguese, Portuguese Timorese or as Mambai, Tetum, Makassae etc. Anyway, in 1974 there existed in Dili the embryo of ´modern man,` and modern East Timorese society, a break-away from the Gemeinschaft of traditional society one might say. A small group of young people had entered into a new way of thinking, characterised by rationality and individualism, non-traditionalism and bindings with other individuals that were different from the old particularistic bindings with ethnolinguistic groups, or with family alliances. As already mentioned, civil society presupposes autnomous individuals, i.e. modern men (and women), and now when we have modern men in Dili can we also expect to find civil society? The answer is yes, or at least the embryo of civil society.” 233 Com a instalação das missões das Nações Unidas, esta parcela da elite local foi chamada a mobilizar e coordenar outros atores de um campo em formação. Jovens educadas em universidades em Bali ou Java aglutinaram-se, na última década, em torno de organizações locais voltadas à defesa e promoção dos direitos humanos, como a Fokupers e a Yayasan HAK. Outras, apoiadas por projetos específicos de institutos e ONGs internacionais, organizaram-se em torno de temas pontuais, como a Caucus (em torno da participação das mulheres na política) e a Feto Foin Sa'e (em torno da participação juvenil). Mulheres que desempenhavam nas aldeias papéis de liderança local, em função de seu pertencimento a casas de chefia, organizaram-se, durante o período de resistência à ocupação indonésia, em torno de organizações altamente capilarizadas, mas sem nenhuma profissionalização, como a OPMT (Organização Popular da Mulher Timorense) e a OMT (Organização da Mulher Timorense). Ao lado destas organizações, ONGs internacionais como a OXFAM-GB, OCAA e IRC desenvolviam, com equipes mistas de funcionários locais e estrangeiros, projetos pontuais na área de gênero e desenvolvimento. Alguns destes projetos eram voltados exatamente a transformar aquele conjunto pulverizado e altamente fragmentado de atores em uma força da sociedade civil. Podese entender assim esforços como o de constituição da REDE Feto, sob os auspícios da ONG britânica CIIR. O próprio GPI desempenhava uma função mobilizadora e aglutinadora, celebrando eventos, campanhas, consultas e pesquisas que envolviam aqueles diferentes atores em objetivos comuns, sempre com recursos do projeto de cooperação com o FNUAP/ Nações Unidas. Entender o processo de formação de uma sociedade civil em Timor-Leste está para além dos limites de uma só disciplina e, evidentemente, de uma tese como esta. Pode-se, contudo, buscar compreender as dinâmicas próprias da constituição de um campo social específico, organizado em torno de algumas idéias-valor e que mobiliza diferentes atores institucionais do Estado e de fora dele na construção de uma agenda política que equacione diferentes sentidos para gênero e justiça. O conjunto de atividades encampadas pelo GPI não só aglutinava atores diversos, mas contribuía para instituir na agenda política timorense um determinado tipo de discurso fundado na idéia de que homens e mulheres são indivíduos, iguais perante a lei (o Estado) e seus pares (a comunidade) – um discurso do gender, como o termo costuma ser usado por lá. Uma das dimensões mais contundentes deste discurso diz respeito à agressão interpessoal no universo familiar. Orientado pelos valores desta 234 ideologia do indivíduo e da igualdade, o discurso do gender promove um tipo de sensibilização que institui uma nova moralidade para o ato da agressão, mudando significativamente o sentido deste ato. A dimensão moral da violência O uso da força nas relações familiares é prática muito comum em praticamente todos os grupos étnicos timorenses. Ele tem, contudo, um sentido bastante localizado – de resposta legítima a um motivo “justo”. O que é visto como justo motivo para a agressão costuma estar associado, em geral, a um comportamento indevido, para a correção do qual a agressão física com o sentido de castigo é o caminho mais adequado. O uso da força funciona, assim, como ferramenta de educação e é, nestes casos, socialmente legitimado – valendo, de modo simétrico, para ambos os sexos. O posicionamento de homens e mulheres nos grupos focais de Covalima indica bem o grau de naturalização do uso da força neste tipo de situação. Lá predominava a idéia de que um homem tinha o direito de bater em sua mulher se ela tivesse alguma culpa, ou seja, se ela tivesse negligenciado qualquer de seus deveres,123 bem como a mulher podia agredir seu marido se este não se comportasse devidamente. A mesma idéia esteve presente em muitos dos debates em torno da criminalização da violência doméstica, durante a consulta para a elaboração da legislação de combate a este tipo de violência. Em quase todos os distritos consultados, predominou a idéia de que a violência doméstica somente deveria ser considerada crime se passasse dos limites dados pelo uso legítimo da força na relação familiar. A um comportamento ruim (hahalok aat), devia corresponder um castigo.124 Esta forma de explicar a agressão intrafamiliar é percebida pelos atores que operam com o discurso do gender, e costuma ser criticada com base na idéia de que haveria, em Timor-Leste, uma excessiva “tolerância para com a violência”. Penso, contudo, que entenderemos pouco do que efetivamente se passa se pusermos a questão nestes termos. Os relatos de Covalima indicavam claramente que quando uma mulher sentia que o marido tinha passado dos limites, ou que ela não “merecera” o castigo, ou 123 “Se a mulher ficar preguiçosa, o homem pode bater; O homem vai para a roça, se quando volta as crianças estão largadas ou não há comida, pode bater; Bate quando a mulher não tem responsabilidade, só quer passear; Quando a mulher não cumpre o seu papel” 124 Devo a Kelly Silva a observação de que, curiosamente, a ênfase punitiva das campanhas de combate à violência doméstica fazia sentido para a população justamente na medida em que tocava nesta mesma corda, aquela que justificava para muitos o uso da força na relação familiar. 235 seja, que o ato de agressão não significava a medida educativa socialmente sancionada, esta mulher não tolerava o ocorrido, e era caso para uma retaliação à altura.125 Não se trata de haver maior ou menor “tolerância” para com a violência. Antes disso, penso que não haja propriamente violência em causa em muitos destes atos. Quando a agressão física é lida na chave socialmente sancionada do castigo, não se pode dizer que haja violência a ser tolerada. A agressão, sem a dimensão moral que lhe confere o sentido de insulto, não é percebida como violência. Esta mesma questão é posta em termos mais elaborados por L. Cardoso de Oliveira quando analisa o sentido do insulto moral e do ressentimento. Neste sentido, um ato de uso da força, mesmo podendo ser sentido como agressão física por parte de quem o sofre, pode não ter maiores implicações no plano moral – pode não ser percebido como insulto e, portanto, não gerar ressentimento. O que definiria a percepção de uma agressão como uma ofensa moral – transformando um ato de agressão em atitude de violência, seria a leitura feita por uma das partes acerca da intencionalidade da outra. Podemos lembrar o exemplo de Strawson, de como o ressentimento se relaciona menos aos fatos em si do que à percepção das intenções por trás de uma atitude: “Se alguém pisa na minha mão acidentalmente, enquanto tenta me ajudar, a dor pode não ser menos aguda do que se ele pisá-la em um ato de desconsideração ostensiva a minha existência (…) Mas, geralmente, devo sentir no segundo caso um tipo e grau de ressentimento que não devo sentir no primeiro” (Strawson, apud Cardoso de Oliveira, 2002:82). Em sentido complementar, o material de Covalima indicava que atos que não necessariamente passavam pela agressão física podiam ser lidos, à luz da moralidade local, como formas muito graves de insulo – essas sim, casos de violência. Assim, um homem não poderia nunca obrigar sua mulher a obedecê-lo, contra sua vontade. Isso seria uma ofensa ao direito que a mulher tem de ter sua opinião e sua vontade respeitadas dentro de casa – desde que, evidentemente, sua vontade não implique o abandono de seus deveres. O mesmo diziam os participantes da consulta para a legislação de combate à violência doméstica em Baucau e Ainaro, considerando muito mais grave que um tapa o fato de um homem não consultar a primeira esposa antes de 125 Quando se dizia, por exemplo, que o direito de um homem bater em sua esposa dependia das razões que ela apresentasse para ter negligenciado seus deveres – no caso de haver boas razões, como doença ou motivos de força maior, estaria justificada, e a agressão do marido não seria justa. 236 tomar uma segunda, ou qualificando como violência o desrespeito ao direito da mulher não querer levar o caso à polícia. Neste sentido, parece-me mais adequado falar em violência apenas quando houver a percepção de que um determinado ato configura uma atitude indevida, ou uma atitude lesiva ao sujeito, intencionalmente deferida. O discurso do gender elaborado em torno da idéia de violensia domestika trata justamente de construir o plano moral no qual o ato de agressão ganha a conotação de atitude indevida e, portanto, de violência, abrindo com isso a porta para uma nova gama de sentimentos, de outra forma não necessariamente associados à agressão física. Era isso que havia acontecido, por exemplo, com a mulher daquele técnico de impressão em Dili (cf. capítulo 2), que, depois de mais de uma década convivendo com atos de agressão, viu-se coberta de vergonha por ser vítima de violensia domestika. Ao inventar a violensia domestika, o discurso do gender torna viável uma dor de novo tipo, própria de quem se sente insultado; uma dor que não tem existência ontológica, mas que só existe na medida em que a instituição de um novo conjunto de valores altere a dimensão moral do ato de agressão. Assim, sob um certo ponto de vista, não poderia ser mais acertada a frase de Micató, em epígrafe. Até aquele 25 de novembro de 2002, a violensia domestika certamente não fazia parte da cultura de Timor-Leste. Em busca da legitimidade A invenção da violensia domestika depende, em grande parte, de quão bemsucedidos são os atores que operam o discurso do gender em sua empreitada por tornar esta narrativa hegemônica dentro de uma esfera pública em construção. Neste sentido, travam uma primeira batalha interna ao próprio Estado, procurando estabelecer um nível mínimo de compromisso dos agentes da justiça (policiais, procuradores e juízes), saúde e educação com os princípios do discurso do gender. É neste sentido que podemos entender os treinamentos aos policiais (na academia de polícia e nas Unidades de Pessoas Vulneráveis, nos distritos), a elaboração do manual para os procuradores, a produção de vídeos para treinamento de agentes da justiça e da saúde, entre outros. A segunda batalha se dá em um campo de interlocução ampliado, no qual é preciso costurar apoios da Igreja, das lideranças tradicionais e organizações sociais para a difusão e consolidação dos princípios que tornam possível a violensia domestika. É aqui que se inscrevem iniciativas como a consulta sobre a legislação de combate à 237 violência doméstica, treinamento de multiplicadores (TOT) e oficinas de sensibilização nos distritos, além das grandes campanhas – cartazes, folhetos e spots de rádio e televisão. Busca-se, com isso, a construção de um nível comum de compromisso com os valores do gender entre atores institucionais. É assim que podemos entender as ambigüidades do documento-base da legislação de combate à violência doméstica, que apela tanto à unidade familiar, valor da Igreja Católica, quanto ao respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos. A eficácia deste processo – sua capacidade de surtir efeito no cotidiano de grande parte da população local – depende, em grande medida, de como ele se relaciona com a legitimidade das formas locais de autoridade. Não se pode imaginar que este novo discurso seja incorporado pela população – ou mesmo visto como legítimo – sem algum algum tipo de sanção das lideranças tradicionais. O discurso do gender não pode prescindir tão facilmente de apoios locais. Referindo-se ao momento histórico de um tipo semelhante de compromisso – aquele do projeto nacional (modernizante) com as autoridades tradicionais – Jannisa afirma: Eu diria mesmo que os níveis 'moderno' e 'tradicional' – ou a elite e o maubere – da sociedade timorense realmente não se uniram até o começo dos anos 1980, quando as FALINTIL, sob o comando de Xanana, perguntou pela primeira vez à população se deveriam continuar combatendo, e, então, mudou a direção da luta pela resistência, afastando-se de uma lógica militar, em direção a um combate que efetivamente envolvesse todas as camadas da sociedade. Quando os katuas, os anciãos, junto com a maioria absoluta da população, em 1981, decidiram apoiar Xanana e as FALINTIL, ao mesmo tempo encamparam aquela idéia abstrata de Timor-Leste, uma comunidade imaginada, nos termos de Benedict Anderson. (Ibid.: 26-7)126 Assim também o discurso do gender busca se afirmar evitando o confronto com símbolos que são tomados como fazendo parte da tradição local. Este tipo de preocupação leva Micató a formular a estratégia sintetizada no slogan: “violência de gênero não faz parte da cultura de Timor-Leste”. É impossível, porém, deixar de notar 126 A íntegra do original: “I will put forth the idea here that the ´modern`and ´traditional´ - or the élite and the maubere - levels of East Timorese society did not really conjoin until the early 1980s, when FALINTIL under Xanana first asked the population if they should go on fighting and then changed the direction of the resistance struggle, away from a military logic (since there was no possibility that the war could be won by military means anyway) towards a struggle which actively involved all strata of society. When the katuas, the elders, along with the great majority of the population, in 1981 decided to support Xanana and Falintil, they at the same time subscribed to the above abstract idea of East Timor, an imagined community in Benedict Anderson´s words. By then, traditional social relations hade been disrupted by the war and the occupation, and local culture was disintegrating (Boavida 1992:4). Fighting back was one way of reaffirming the East Timorese identity against the invaders - joining the Catholic Church was another way.” 238 que há diferenças consideráveis entre o discurso do gender e o senso de justiça que orienta grande parte da população local timorense. Comunicação imperfeita As diferenças começam pela própria idéia de indivíduo. O suposto caso de abandono, apresentado no capítulo quinto – em que o jovem marido deixa a casa dos sogros por não suportar as ofensas – era típico deste tipo de desencontro. A policial internacional não conseguia entender porque aquele jovem casal não podia simplesmente deixar a casa dos pais da moça e ir morar em casa própria. Antes dos laços com a lei, havia laços que obrigavam as pessoas diante de instituições bem mais presentes em seu dia-a-dia. O Estado podia ser mais um deste grupos ou instituições, especialmente em Dili, cidade na qual os grupos de origem das pessoas nem sempre estão por perto. Era o que parecia ter acontecido no caso descrito no início do quarto capítulo, em que o marido, ao pedir separação, falava em devolver sua mulher ao governo. Nos casos que envolviam agressão física, os diferentes sentidos atribuídos ao ato de agressão criavam situações que tornam bastante complicada a compreensão adequada dos acontecimentos. A análise dos depoimentos que chegavam à polícia dá pistas para se compreender a dificuldade em se estabelecer uma comunicação clara entre os operadores do discurso do gender e a população. Em muitos casos, a violência parecia justificar-se por si mesma, o que tornava muito difícil para o pesquisador – o que não dizer para aqueles que operam dentro do registro do gender – inferir interpretações sobre o sentido da agressão e as sanções sociais a ela relacionadas. Em alguns dos casos era particularmente difícil compreender a justificativa dada pelo agressor para ter espancado sua esposa, especialmente face à dimensão da agressão. Em um deles, por exemplo (VPU 120/03) o marido espancou a vítima com um bastão de madeira, esbofeteou-a, deu-lhe 4 pontapés no rosto e ameaçou-a com uma faca porque encontrou-a em uma festa à qual ele estava mas a tinha proibido de ir. Em seu depoimento, o marido afirma apenas: “Eu disse a minha esposa: 'vocês ficam, eu vou à festa'”. A polícia então pergunta: “Por que o senhor não foi com sua esposa para a festa?” “Porque ela está grávida”, é a resposta do marido. Não há mais elementos no texto para detalhar porque a gravidez a impediria de ir com o marido. 239 Problemas de interpretação como este lembravam a queixa de uma defensora pública estrangeira atuando na unidade de crimes sérios, a respeito da dificuldade de entender a lógica dos acusados para poder fazer a sua defesa. Ela relatou o caso de um ex-miliciano que disse ter tido que entrar na milícia “pois era chefe de suco”. Depois de muito conversar, passando por um ainda mais incompreensível “entrei na milícia para defender o meu povo”, ela construiu uma interpretação lógica adequada ao pensamento jurídico: ele entrara na milícia pois, sendo chefe de suco e tendo, como tal, a obrigação de defender seu povo, achou que a melhor forma de fazê-lo seria infiltrar-se na milícia para poder controlá-la. Casos como este mostram a dificuldade do discurso do gender em estabelecer uma comunicação efetiva em que as justificativas dadas pelos suspeitos nos casos de violência doméstica sejam levadas a sério e entendidas em seus próprios termos. A saída mais fácil acabava sendo a barbarização dos timorenses – discurso comum em grande parte dos funcionários internacionais (cf. SILVA, 2004). Posições antagônicas Além desta diferença acerca da moralidade que dá sentido à agressão interpessoal, outros planos de diferenciação separavam o discurso do gender de valores orientadores de práticas tidas como tradicionais. Refiro-me aos diferentes sensos de justiça que orientam as formas locais e de Estado para resolução de conflitos, e às diferentes sensibilidades jurídicas que correspondem a cada uma delas. Quando um caso passa dos próprios limites dados pelo princípio legitimador do uso da força (a intenção educativa ou corretiva), é comum que se tenha um conflito a ser resolvido. O modo de resolvê-lo, contudo, é, entre as formas locais de justiça, bastante diverso daquele que se espera do padrão da justiça de Estado. Embora variem muito em forma de região para região, os modos locais de mediação (o biti boot, ou nahe biti/ lulun biti) ou adjudicação (o tesi lia) conservam uma preocupação comum: a reconciliação entre os grupos em conflito. Mais do que uma disputa entre pessoas, está em questão resolver um atrito entre famílias. Os mecanismos locais para resolução deste tipo de conflito não tratam apenas de reparar um dano a alguém – em muitos casos sequer há esta intenção. O foco, menos do que na atitude individual que originou uma briga ou disputa, está sobre a quebra de um equilíbrio previamente existente – aquilo que Geertz (1983) define como a “quebra de um decoro”. O dano, se há, não o é para uma pessoa ou para um grupo, mas para a 240 relação entre eles e é o equilíbrio desta relação que deve ser reparado (GEERTZ, 1983; BABO SOARES, 1999; VAN KLINKEN, 2003) Isto é particularmente visível nos casos em que se enfatiza a partilha da agência do ato ou atos que geraram o conflito – o que é o caso de grande parte dos atos hoje classificados como de violensia domestika, normalmente designados por baku malu (bater-se, confrontar-se). Nestes casos não há vítima e agressor claramente definidos. Há, para a sensibilidade jurídica local, um desentendimento recíproco, cuja vítima maior é o equilíbrio da relação entre os grupos unidos por aquela aliança. Mesmo em casos mais graves, como os de violação sexual, o dano à relação se sobrepõe ao dano à pessoa. Em quase todos os casos de estupro cujos arquivos observei na polícia, por exemplo, havia-se tentado anteriormente uma solução local. E o que ficava claro era que, para as formas locais de justiça, o crime não havia sido o ato de agressão. A lógica da compensação para o reestabelecimento da ordem partia do princípio de que o que havia quebrado a ordem original era o desrespeito a um acesso interdito. O homem não tinha o direito de acesso ao corpo daquela mulher. A quebra desta interdição era geradora de desordem, e era ela o crime a ser reparado de modo a reestabelecer a ordem de interesses e alianças entre os grupos que permitiria (por meio das trocas matrimoniais adequadas) o acesso ao corpo daquela mulher. A forma para mediação ou adjudicação pelas lideranças tradicionais pressupõe o resgate das narrativas de cada parte, feitas em reuniões solenes em uma grande esteira (biti boot). Nos casos de adjudicação, em que se faz necessária uma sentença, a enunciação de narrativas é feita perante as autoridades tradicionais – os lia na'in, ou donos da palavra – a quem caberá, pesando as palavras ditas nas narrativas, cortá-las (tesi) na justa medida. Como a unidade central deste processo não são os indivíduos, mas seus grupos de pertencimento, as narrativas são, normalmente, enunciadas por representantes dos grupos, sempre homens. Não é difícil encontrar os contrastes – aparentemente incompatíveis – entre estas formas de justiça e o discurso do gender. Textos como o da pesquisa do IRC (2003b) sobre justiça tradicional não se cansam de denunciar como incompatíveis com padrões de direitos humanos, determinados mecanismos das formas locais de justiça. Analisar o contexto relacional dentro do qual se dera a agressão, por exemplo, é apontado, naquele texto, como um claro desrespeito aos direitos das mulheres, uma vez que elas podem ser tomadas como co-responsáveis pela agressão que sofrem. 241 Novamente aqui o discurso do gender tem dificuldades em alcançar uma compreensão adequada do que se passa. É comum nos documentos deste campo (relatórios de oficinas, projetos e pesquisas) afirmações pouco contextualizadas, que tomam, por exemplo, a prática da compensação como mercantilização da dignidade da mulher, quando isto pode ser melhor entendido como restauração da honra de grupos sociais. Outros textos reduzem o sentido da riqueza da noiva (barlaque) a uma transação por meio da qual o homem compra sua mulher e a partir daí sente-se no direito de tratála como bem entender. Tais discursos descolam as mulheres de seu contexto de vida, tomando-as como indivíduos segregados do grupo social em que suas relações fazem sentido. O retrato desta mulher sem especificidades culturais – um verdadeiro unencumbered self – povoa boa parte das críticas do discurso do gender às formas locais de justiça, opondo “a mulher” e seus interesses à comunidade, como se estivéssemos falando de dois mundos distintos. A justiça de Estado, assentada na ideologia individualista de onde o discurso do gender tira sua matriz, trabalha com uma sensibilidade jurídica consideravelmente diversa daquela da adjudicação tradicional. É neste sentido que Tanja Hohe e Rod Nixon (2003) chegam a falar de um conflito de paradigmas entre a justiça formal e as formas tradicionais de resolução de disputas. Criar uma nova arena A invenção da violensia domestika amplia consideravelmente o conjunto de situações que potencialmente podem ser chamadas de conflito. A nova moralidade que acompanha o discurso do gender dá condições para que situações antes percebidas como normais passem a ser tidas como ilegítimas, e, portanto, transformem-se em um caso de justiça. O discurso que inventa ou institui a violensia domestika traz, com esta nova moralidade, um conflito de novo tipo para a vida timorense. Mesmo situações que até então geravam algum conflito (violação sexual, desacordos em relação à riqueza da noiva, agressões que passavam dos limites justificados pelo princípio do castigo, etc.) ganham agora um novo significado. O foco destas disputas muda, da restauração da relação entre grupos, para a garantia de direitos individuais; da reconciliação, para a punição de um culpado. Para criar este novo tipo de caso, investe-se na idéia de que violensia domestika é crime. Mais do que um crime contra uma pessoa, no dizer de um folheto do GPI, 242 “violência doméstica é também contra os padrões internacionais de direitos humanos”. Por meio de campanhas, consultas, oficinas e elaboração de uma legislação própria, esta idéia ganha vida social. Uma vez criado o caso, contudo, resta a questão de onde resolver este conflito. A arena da justiça tradicional é vista como incompatível com os paradigmas do gender. Mais do que isso, ela está fechada às mulheres-indivíduos. Nela, a palavra é propriedade dos homens. O operador do direito é o dono da palavra, literalmente, lia na'in, e este é invariavelmente um homem. O esforço por retirar a resolução deste conflito de novo tipo da esfera de competência reguladora das autoridades tradicionais é também um esforço para se colocar a resolução de disputas nas mãos de mulheres – é, de certa forma, um esforço para que as mulheres se apoderem, elas também, da palavra. Afinal, o tetum não possui distinção gramatical de gênero, e lia na'in poderia bem ser traduzido por dona da palavra. Criar esta nova arena, em um campo apropriado para aquele unincumbered self, não é tarefa simples. Não basta instituir os tribunais. É preciso assegurar-se que eles serão operados adequadamente, e isto significa dizer: de acordo com os princípios igualitários de uma ideologia individualista e segundo as regras próprias do direito positivo. Isto tem implicado um constante investimento em treinamento dos agentes da lei e da justiça, bem como iniciativas que inibam aquilo que é considerado como excesso de informalidade e comumente lido como incompetência – daí o costume de tratar oficinas de treinamento por “capacitação” ou, nos termos do conceito comumente usado nos projetos da Missão da ONU, “construção de capacidades”. A observação dos usos que são feitos do sistema de justiça de Estado, contudo, mostra que, por mais que se invista no projeto de uma justiça nos moldes ocidentais, uma outra realidade emerge, marcada pela sobreposição de sistemas e de sensibilidades jurídicas. Pretensão equânime: legitimidade e os usos da justiça Arena pronta, operadores treinados. No momento, porém, em que se abrem as portas deste sistema para o seu usuário – este ser que de unencumbered self nada tem, mas, ao contrário, carrega as marcas de seu pertencimento a um tempo e a um espaço muito bem definidos – a ordem da casa começa a ser imediatamente reconstruída. A realidade que entra porta adentro traz consigo elementos estranhos à ideologia individualista desta arena e que subvertem algumas de suas categorias e desafiam seus 243 agentes. É assim que vemos chegar à delegacia de polícia acusações de violação sexual que não se referem efetivamente a um estupro, casos de abandono que não são propriamente de abandono, esposas que, depois de severamente agredidas, esperam da polícia que esta promova sua reconciliação com o marido, arrancando deste o compromisso de rever seus excessos. Cada um destes casos-ideais revela um ou outro aspecto da forma como o sistema formal de justiça é rapidamente incorporado pela população de Dili, mas em seus próprios termos. Assim, em casos como aquele relatado pelo policial de Manufahi, o conceito amplamente divulgado de “violação sexual” ganha o sentido específico de um acesso sexual não autorizado pela família da jovem, mesmo que consentido pela moça – visão diversa daquela prevista pelas normas do direito positivo e do discurso do gender. Ainda assim recorre-se à polícia e a esta categoria, entendida, digamos assim, à timorense – com o perdão da indevida generalização. Em casos como o das mulheres que retiravam sua queixa após a assinatura de um “termo de compromisso”, vemos os usuários da justiça de Estado voltando-se a ela com as mesmas expectativas com que recorrem muitas vezes a um chefe de aldeia ou a um lia na'in: à espera de uma ocasião para enunciar sua história, ver seu caso reconhecido em um espaço público e executar um ritual que assegure a restauração do relacionamento em termos tidos como ideais. A estrutura montada para resolver os casos de novo tipo, criados pelo discurso do gender, via-se, de súbito, ocupada por conflitos marcados por outras moralidades, próprias dos casos de tipo antigo. De sua parte, os operadores do sistema formal de justiça correspondiam, em grande medida, a tais expectativas. A mediação feita na delegacia de polícia ou na procuradoria buscava dar respostas a este desejo de reconciliação, sem envolver o tribunal. Mesmo no tribunal, algumas atitudes de juízes, advogados e promotores guardavam certa proximidade com processos e valores próprios das formas locais de mediação e adjudicação. A pouca ênfase dada às provas materiais, preteridas às extensas tomadas de depoimentos (mesmo em casos de réus confessos), reconhecia a importância de assegurar que todas as narrativas fossem propriamente ouvidas (e reconhecidas). Quando alguns usuários iam à polícia buscando efetivamente a punição de quem consideravam ter-lhes causado algum dolo, em casos como este as expectativas dos usuários mais se aproximavam do modelo idealizado pelo direito positivo. Nestes casos, ia-se à polícia com a consciência de que este era um recurso para efetivamente romper um relacionamento. É este o caso daquele marido que prefere denunciar o 244 vizinho por ter violado sexualmente sua esposa a levar à justiça tradicional um caso que ali seria de traição, e não de estupro. Casos como este (cap.5) mostram que um mesmo evento pode ter sentidos bem diferentes na esfera da justiça de Estado e nas formas locais de adjudicação, e alguns usuários, como aquele marido, sabem disso. Ainda assim, não se trata de opor justiça de Estado às formas locais de resolução de disputas. Muitos usuários vêem a justiça formal como uma opção a mais, ao lado das formas tradicionais de justiça, para resolver seus conflitos, a depender de que resultado se busca alcançar. Na prática, não se trata de haver, como diz Hohe, um choque de paradigmas. Nos usos feitos pela população de Dili, no modo como a justiça de Estado é incorporada pelos seus habitantes, os sistemas locais e o sistema formal de justiça não se antagonizam, mas se sobrepõem. São duas formas diferentes de buscar uma solução para casos de diferentes tipos, ou que demandam diferentes tratamentos, e os habitantes de Dili aprenderam rapidamente a circular entre uma e outra forma – e estão ainda aprendendo a ver o que podem negociar dentro desta arena estatal de resolução de disputas. Uma tal leitura do lugar de cada sistema na vida cotidiana não é de todo novidade para o olhar nativo. Ela condiz perfeitamente com o discurso daqueles líderes locais que, em Covalima, explicavam-me como é possível acreditar que homens e mulheres são iguais perante o Estado – elegendo mulheres deputadas, aceitando-as como ministras e juízas – sem deixar de acreditar que as mulheres não podem, em hipótese alguma, participar nas formas locais de mediação e adjudicação. Família, comunidade e Estado configuravam três esferas distintas, cada qual com suas normas e sua função – e, se na democracia do Estado homens e mulheres eram iguais, na tradição da comunidade não. Não havia, portanto, antagonismo (ou choque) entre a proibição da presença de mulheres em certas instâncias comunitárias e a existência de juízas, ministras ou deputadas. Ao reduzir os termos deste sistema a uma relação de oposição, Hohe sofre da mesma limitação que os operadores do discurso do gender: não consegue entender as muitas possibilidades de sobreposição destas formas de lidar com os conflitos. Ocorre que na idealização da justiça de Estado, o discurso do gender não vê com bons olhos a coexistência de sistemas de resolução de conflito diferentes daquele condizente com os princípios da moralidade que institui a violensia domestika. Menos ainda, admite hibridismos dentro da esfera da justiça formal. Quando os policiais de Dili criaram a mediação na delegacia, esta foi logo proibida em nome dos direitos humanos. 245 Da mesma forma, a conduta de juízes que preteriam a prova material em favor das narrativas ou sobrepunham os elementos de contexto à norma legal, acabava caracterizada como incompetente ou de excessiva informalidade.127 Esta arena idealizada, contudo, nem sempre dá conta de equacionar dimensões do conflito que poderiam ser melhor resolvidas pelas formas locais de justiça. “Melhor resolvidas” tem aqui um sentido bastante preciso: resolvidas de modo a que as partes percebam um resultado equânime e sintam-se contempladas em seu senso de justiça. Penso particularmente nas três dimensões temáticas identificadas por L. Cardoso de Oliveira (2004), usualmente presentes em causas judiciais: a dimensão dos direitos, dos interesses e do reconhecimento.128 Os processos locais de mediação (o biti boot, a grande esteira, por exemplo) muitas vezes têm um potencial muito maior para atender a dimensão do reconhecimento – a dimensão pela qual as partes desejam sentir-se adequadamente ouvidas e ter suas demandas tratadas com a devida consideração. Era o que acontecia, por exemplo, em certos casos de violação sexual envolvendo jovens que, quando levados aos tribunais, tinham resultado muito menos satisfatório para as partes envolvidas. Nestes casos, a adjudicação tradicional permitia que as famílias negociassem os interesses em causa nos termos da conveniência de uma aliança entre os grupos e, sendo este o caso, procedessem ao acerto das trocas matrimoniais. Não o sendo, porém, acertava-se uma compensação capaz de restaurar a honra da jovem e de seu grupo. A solução judicial, normalmente restrita à prisão do acusado, não atendia aos interesses das partes e não proporcionava, aos olhos da comunidade local, a reparação da honra ferida – pelo contrário, a jovem e sua família passavam a carregar a marca de quem, não confiando nas autoridades locais, trazia distúrbios para a comunidade. As partes não viam, assim, reconhecidas suas demandas na solução final – embora a dimensão legal do direito tivesse sido plenamente cumprida. 127 No início de 2005, um exame probatório conduzido pela instância superior do judiciário timorense reprovou todos os juízes dos quatro tribunais de Timor-Leste. Como resultado, todos os juízes timorenses foram destituídos de suas funções. 128 Segundo Cardoso de Oliveira, o modo judicial de avaliar disputas equaciona, com maior ou menor sucesso, as três dimensões seguintes: “1) a dimensão dos direitos vigentes na sociedade ou comunidade em questão, por meio da qual é feita uma avaliação da correção normativa do comportamento das partes no processo em tela; (2) a dimensão dos interesses, por meio da qual o judiciário faz uma avaliação dos danos materiais provocados pelo desrespeito a direitos e atribui um valor monetário como indenização à parte prejudicada, ou estabelece uma pena como forma de reparação; e, (3) a dimensão do reconhecimento, por meio da qual os litigantes querem ver seus direitos de serem tratados com respeito e consideração sancionados pelo Estado, garantindo assim o resgate da integração moral de suas identidades.” 246 Ao desenrolar a grande esteira, institui-se um processo no qual não se negociam apenas direitos (atribuições ou prerrogativas previamente definidos em um código), mas principalmente, negociam-se significados. Tal como nas kutas, no clássico estudo de Gluckman (1955) sobre as cortes barotse, enunciando suas narrativas as partes expressam o significado que os atos em causa têm para cada uma e negociam – buscam construir – um entendimento comum acerca dos mesmos. Ao fazer isto, põem em marcha um processo que não deixa de ter, nos termos de L. Cardoso de Oliveira, uma dimensão de elucidação simbólica e terapêutica. Não é novidade a idéia de que nem sempre um princípio igualitário (fundado em uma ideologia individualista) basta para que se construam soluções de conflitos percebidas como equânimes. A jurista e feminista norte-americana Martha Fineman (1991), por exemplo, aponta os problemas que uma reforma legal destinada a retirar referências marcadas por gênero no sistema legal americano veio a trazer, no início dos anos 1990, para as próprias mulheres. Sob o argumento da igualdade, reformou-se a lei de divórcio, eliminando-se a idéia de que a custódia dos filhos seria preferencialmente dada à mulher. Transformou-se assim o que antes era um debate sobre os interesses de pai e mãe, em um julgamento sobre o interesse da criança. Com a individualização da criança, que passa a ser um terceiro sujeito de direito, e cujo interesse (tal como entendido ou pressuposto pelo tribunal) deve estar acima dos demais, muitos resultados acabam não contemplando plenamente nenhum dos pais. Se a ideologia individualista e o valor da igualdade, tal como vivido no ocidente, não significam em si garantia de tratamento justo e equânime entre as partes, o inverso também é verdadeiro: em sociedades nas quais as relações são mais hierarquizadas, isto nem sempre implica relações menos justas e menos equânimes na resolução de conflitos. Ainda no final dos anos 1990, Susan Hirsch (1998) demonstra, em seu estudo sobre a corte islâmica (kadhi) no Quenia que, em uma sociedade na qual a palavra da mulher tem menor peso que a do homem, ainda assim as decisões da corte sistematicamente favorecem as demandas das mulheres quando estas conseguem construir uma imagem de mulheres perseverantes, condizente com um modelo específico de gênero. Questões deste tipo lembram ainda a situação apresentada por Ong (1995), em sua análise do processo de modernização malaia (cf cap. 1) no qual, em função do 247 ressurgimento islâmico, muitas mulheres passaram a apoiar-se na lei islâmica para exigir que lhes fosse dado acesso aos salários dos maridos. Segundo Ong: “invocando o contrato de casamento islâmico, (...) propuseram que o respeito mútuo e a intimidade dentro do casamento seriam fortalecidos se o Estado pudesse garantir que as ‘donas de casa’ recebessem o pagamento de ‘diárias’ sobre o salário de seus maridos. (...) Embora suas demandas por pagamento para o serviço doméstico possam parecer um eco de demandas feministas ocidentais, elas estavam de fato cobrando do governo que reforçasse o papel costumeiro dos homens como únicos provedores de suas famílias.” (ONG; 1995:178) Algumas dimensões desta questão não podem ser compreendidas pelo discurso do gender, não porque seus atores se mostrem irrazoáveis contumazes, mas porque, de certa forma, sua posição política na construção de um campo social específico os impede de ver legitimidade em formas que não sigam um modelo próprio de respeito aos direitos humanos. Reduzindo a idéia de direitos humanos a formas fixas de equacionar disputas, mais do que a determinados princípios de justiça (que podem, perfeitamente, estar presentes em soluções equânimes provenientes de formas alternativas de mediação e adjudicação), o discurso do gender escolhe manter-se impermeável a soluções hibridizantes, muitas delas evidenciadas em experiências como as da Comissão de Acolhimento Verdade e Reconciliação (CAVR). A experiência da CAVR, inclusive, é um bom exemplo de situação na qual a elucidação simbólica opera também uma forte dimensão terapêutica. Instados a contar em público, e diante dos conselheiros da Comissão, seus relatos sobre os acontecimentos traumáticos de 1999 (os ataques milicianos que sucederam o referendo de agosto), vítimas e agressores terminam o processo muito mais aliviados e, quase sempre, reconciliados. Ao negociar o significado de seus atos, ao falar sobre eles em um espaço ritual, aquelas narrativas transformam o próprio sentido das experiências vividas. São palavras com poder de ato, palavras e falas que, ali enunciadas, transformam as relações, produzem algo que não pode ser produzido em outros lugares. As narrativas produzidas pelo discurso do gender não percebem isso por estar amarradas a um único modelo para resolução equânime dos conflitos – um modelo de relacionamento expresso iconicamente pela tabela que, no manual de treinamento aos policiais (cap.4), opõe um “comportamento de poder” a um “comportamento de igualdade”. 248 As donas da palavra O discurso construído em torno da categoria gender afirma-se, assim, como altamente normativo, transnacionalizado, sociocêntrico e fechado a soluções alternativas. Neste sentido, eventos como a consulta para a legislação de combate à violência doméstica não estão efetivamente interessados em discutir, com a população em geral, a validade dos princípios do gender e das formas pelas quais eles se expressam na justiça timorense. São, antes, eventos voltados à legitimação formal deste discurso. Mais do que a construção de um consenso entre os sujeitos consultados, eventos de participação popular, como aquele, cumprem antes a função de revestir de um caráter participativo – valor importante no campo da cooperação internacional – princípios previamente definidos. A consulta legal é um exemplo bastante expressivo de que o discurso do gender não está preocupado apenas em se fazer comunicar, mas em se legitimar, particularmente aos olhos de uma comunidade de atores internacionais para os quais é importante demonstar que os valores universais dos direitos humanos ganharam ali cores locais. A consulta, mais do que voltada para as comunidades locais, foi um evento voltado ao próprio campo dos atores que compartilham o discurso do gender. Nela, a principal mensagem era para seus próprios atores. Criando a imagem de que os outros foram adequadamente ouvidos, afirmava-se que o discurso enunciado pelo campo do gender poderia continuar a sê-lo, sem que isso parecesse uma imposição externa. A eficácia do evento estava na reafirmação dos valores do gender revestidos do aval local. Nos termos esboçados por Kelly Silva em seu trabalho de 2004 e desenvolvido mais recentemente em diálogo com o material desta tese, eventos como este não deixam de ser rituais por meio dos quais os valores que circulam na comunidade internacional são repostos na agenda política nacional, à revelia da forma como efetivamente as idéias que estão em jogo são incorporadas pelo atores locais. No campo que articula gênero e justiça na sociedade civil emergente em TimorLeste, há uma negociação em curso para a construção do interesse público. Os atores que poderiam compor este campo, contudo, não falam de igual para igual. De um lado, as autoridades tradicionais seguem dando vida às formas locais de resolução de conflitos, mas sem reconhecimento oficial. De outro, com poder político mas sem tanta 249 capilaridade, o discurso do gender busca se afirmar como uma narrativa hegemônica para a construção e resolução de casos na área da violensia domestika. Ao prescindir, contudo, de uma conversa a sério com os operadores das formas locais de justiça, este discurso se distancia da possibilidade de construção de um modelo verdadeiramente consensual. Talvez possamos tomar emprestada uma diferença recuperada por Sally Falk Moore (1995) entre abordagens possíveis para a negociação de conflitos, e usá-la como metáfora para o que ocorre no espaço público timorense neste momento. Comparando o universo de questões traçado por Gulliver e Habermas, Moore afirma que enquanto este está preocupado com a construção do consenso, aquele estuda a construção de acordos (deal). Enquanto que para a construção do consenso é necessário que as partes acreditem efetivamente nas razões umas das outras, na negociação de um acordo as partes fazem um jogo estratégico de concessões e conquistas.129 Assim também podemos entender a disputa na qual se envolveu o discurso do gender no campo da justiça em Timor-Leste. No processo em que procura tornar-se hegemônico, este discurso não constrói consenso, mas antes, impõe um acordo. Os atores que dão corpo ao projeto político dos direitos das mulheres não podem ver como sinceras ou legítimas as motivações dos que operam com outras sensibilidades jurídicas. Não conseguem ver nestes outros modelos de justiça mais do que o viés de uma sociedade patriarcal para subjugar suas mulheres. Neste sentido, o que resta fazer é um acordo com as autoridades locais (uma espécie de acordo de não-agressão, como o slogan da campanha de 25 de novembro, em epígrafe) de modo a assegurar algum grau de adesão aos novos valores propostos. O outro lado deste acordo pode ser visto no recurso que a população de Dili faz da justiça de Estado. O fato daquelas pessoas recorrerem à polícia não significa que comunguem sinceramente de todos os princípios enunciados pelo discurso do gender, nem tenham o mesmo senso de justiça pressuposto pela idéia da violensia domestika. Recorrem à polícia como mais um recurso que pode ser disponibilizado para resolução do que consideram ser um conflito, e o fazem incorporando, ao seu modo, categorias da justiça de Estado e valores próprios das sensibilidades jurídicas locais. 129 Na realidade, a preocupação de Habermas com o consenso está marcada pelo que lhe parece necessáro para se compreender qualquer acordo. Mesmo um acrodo, por assim dizer, “barganhado”, só pode ser adequadamente compreendido pelas partes em litígio se estas tiverem no horizonte a idéia do consenso. Segundo L. Cardoso de Oliveira, Moore não teria percebido claramente esta nuança ao criar a oposição entre acordo e consenso. 250 O uso que a população de Dili vinha fazendo do sistema de justiça lembrou-me muito uma cena que presenciei durante o trabalho de campo, próximo à casa em que morávamos. Por aquela época, da varanda de casa observei um grupo de garotos que jogava futebol na rua. Um detalhe me chamou a atenção: a bola era, na verdade, uma bola de vôlei. Tal como as categorias operadoras da moralidade da violensia domestika, aquela bola fora dada de presente aos timorenses por algum estrangeiro que certamente esperava, com aquilo, estimular os jovens a jogar vôlei – ou, ao menos, a brincar de um certo jeito. Nas mãos (ou nos pés) daqueles garotos, a bola ganhava outros usos; aqueles garotos reinventavam a bola e negociavam seu sentido à revelia de quem lhes dera o presente. Isto também me fez pensar na cena final daquele vídeo de treinamento e sensibilização contra a violensia domestika patrocinado pela ONU (“Harahun O nia Nonok”), comentado, aqui, no segundo capítulo. Ali, um grupo de crianças repetia as palavras sussuradas pela diretora do filme, uma cineasta australiana: “Labele halo violensia domestika” (não se deve cometer violência doméstica). As palavras, tal como a bola de vôlei, eram dadas pelo estrangeiro de presente àquelas crianças. Mas, como podemos ter certeza do sentido que elas ganhariam dali para diante? Quem garante que aquelas bolas de vôlei não acabariam dando vida a uma bela partida de futebol? Por mais que as palavras lhes fossem sussurradas, as crianças se apropriavam delas ao seu modo; acabavam se tornando, assim, as verdadeiras donas da palavra. 251 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATKINSON, Jane M.. How Gender Makes a Difference in Wanna Society. In: ATKINSON, Jane; ERRINGTON, S. (orgs.) Power and Difference: gender in Island Southeast Asia. Stanford: Stanford University Press, 1990. BABO SOARES, Dionísio. A Brief Overview of the Role of Customary Law in East Timor. Simpósio sobre Timor-Leste, Indonésia e Região. mimeo. Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 1999. BENDA-BECKMANN, Franz. Property in social continuity: continuity and change in the maintenance of property relationships through time in Minangkabau, West Sumatra. Haia: M.Nijhoff, 1979. BENDA-BECKMANN, Franz; BENDA-BECKMANN, Keebet. State, Religion and Legal Pluralism: changing constellatons in West Sumatra and comparative issues. Max Palnck Institute for Social Anthropology Working Papers. n.19. Halle, 2001. 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