20.06.2012 às 11:10 O caso das bolinhas de gude
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20.06.2012 às 11:10 O caso das bolinhas de gude
20.06.2012 às 11:10 O caso das bolinhas de gude Homero Fonseca Foto: Iracema Rodrigues Quinta-feira passada (14/6), participei da III Mostra Sesc Santa Rita de Literatura, mediando palestra de Ignácio de Loyola Brandão, 42 livros na sua conta de haver e fazer literário, 75 anos de vivências plenas. E houve um momento único, quando Loyola fez uma confissão de um fato que tinha há 65 anos atravessado na memória. E disse que só o fazia ali porque já tinha escrito duas versões do acontecido, sentindo que podia, agora, extravasá-lo. É dessas histórias da vida que já vem pronta como fato literário: é só ter o momento para vir à luz. Loyola Brandão: confissão no Recife Eis o caso como ele contou: quando tinha seus 10 anos, o Loyola de calças curtas bisbilhotava na oficina de marcenaria do avô Zé Maria, quando encontra, no alto de uma bancada, uma caixa de madeira vermelha, envernizada, coberta de poeira. Abre-a e se depara com umas duas dezenas de boles de gude. Surrupia algumas e perde-as no jogo com os outros guris. E assim, em algumas semanas, acabou o estoque das bolinhas. Tempos depois, ao passar pela casa dos avós, encontra o velho Zé Maria numa tristeza sem tamanho. O que houvera? Sua avó Branca contou: Aí por 1912, caiu nas mãos do seu avô, na pequena Matão, interior de São Paulo, um catálogo com a foto de um carrossel de cavalinhos. Era coisa desconhecida por ali. E o carrossel ficou girando na cabeça do marceneiro, girando, girando, até que um dia virou brinquedo e geringonça, rodando feérico na infância da molecada da região. Não havia luz elétrica, por suposto. E o brinquedo era movido por força humana e iluminado por candeeiros de gás. ‘Té que um dia, numa dessas malvadezas típicas da infância, um menino acerta um dos lampiões com sua atiradeira e o circo de cavalinhos vira cinzas. Só restaram 20 bolinhas de gude, que faziam as vezes dos olhos dos dez cavalinhos de madeira. Aquelas bolinhas foram guardadas por seu avô numa caixinha de madeira como uma relíquia que lembrava um tempo feliz. Pois não é que algum moleque das vizinhanças havia pulado o muro, encontrado a caixinha com o tesouro do velho Zé Maria e roubado as bolinhas de gude, as pedras mais preciosas de suas lembranças! O autor do desfalque calado estava, calado ficou. Chega enfim o Natal, quando a familharada se reunia na casa dos avós e Zé Maria presenteava cada neto com algum brinquedo de madeira que ele mesmo esculpia: carrinhos, bonecas, trenzinhos. Na vez de Ignácio, o velho lhe estende a caixinha vermelha, que os olhos culpados do guri logo reconheceram como a mesma de onde tinham sido roubadas as boles de gude, e apenas lhe diz: -- Esta caixinha, Ignácio, é para você guardar as melhores lembranças da sua vida. Somente agora, naquela conversa no Recife, passados tantos anos, Loyola confessava o “crime”, cuja autoria o avô decerto descobrira, aproveitando o presente de Natal para dar uma bela e comovente lição de vida. ... O papo girou sobre a obra do escritor araraquarense/paulistano e suas interfaces com o cinema e o jornalismo e foi antecedido por um recital poético de Viviane Mosé, que além de acadêmica de currículo estufado se revelou para mim uma notável intérprete. Compartilho aqui um dos seus poemas viscerais: “Muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos abscessos tumores nódulos pedras são palavras calcificadas poemas sem vazão mesmo cravos pretos espinhas cabelo encravado prisão de ventre poderiam um dia ter sido poema pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa palavra boa é palavra líquida escorrendo em estado de lágrima lágrima é dor derretida dor endurecida é tumor lágrima é alegria derretida alegria endurecida é tumor lágrima é raiva derretida raiva endurecida é tumor lágrima é pessoa derretida pessoa endurecida é tumor tempo endurecido é tumor tempo derretido é poema”. As íntegras da conversa com Loyola e do recital de Viviane Mosé podem ser vistas/ouvidas no blogue Lugar do Leitor, de João Gomes: http://lugardoleitor.blogspot.com.br/search/label/Homero%20Fonseca