Catalina González Zambrano Universidade de São Paulo 55
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Catalina González Zambrano Universidade de São Paulo 55
Catalina González Zambrano Universidade de São Paulo 55 11 992446105 [email protected] A mobilização das mulheres afrodescendentes na América Latina: A Rede de Mulheres Afro-latinoamericanas, Afro-caribenhas e da Diáspora RMAAD Palavras chave: Movimentos sociais, ativismo transnacional, Feminismo Negro, questão racial, gênero Entre o 19 e 25 de julho de 1992 reuniram-se em Santo Domingo, Republica Dominicana, mulheres negras da região latino-americana durante o I Encontro de mulheres negras latino-americanas e caribenhas. A participação de 300 representantes de 32 países da região tinha como objetivo geral dar uma resposta alternativa às "comemorações do Quinto Centenário", ressaltando o momento do descobrimento como o início do maior tráfico de pessoas escravizadas no mundo. Mas, o objetivo mais específico era o de colocar em pauta, na voz das mulheres negras, a história de racismo e do sexismo que se manifestava nas sociedades contemporâneas, nas relações de desigualdade entre raças/etnias e gêneros na região, o que permitia a reflexão sobre a história da discriminação específica das mulheres negras latinoamericanas e a forma de combatê-la. As participantes do evento tinham uma ampla trajetória ora no movimento negro, ora no movimento feminista, nos seus respectivos países. Por tanto, desde o ponto de vista de seus próprios ativismos se reivindicava o espaço delas em cada um desses movimentos; isto é, desde o ponto de vista da mulher negra, se chamava a atenção a sua posição dentro dos movimentos negros, assim como se desafiava ao movimento feminista para incluir a questão étnica e racial nas suas análises e propostas políticas. Desta maneira, se chamava a atenção à discriminação racial e de gênero, assim como a uma identidade construída sobre a base de um legado de 1 opressão. Por tanto, era necessário colocar sobre a mesa a irrupção de um "novo ator" político no cenário latino-americano, de forma a enfrentar as estruturas dominantes que perpassavam as fronteiras nacionais. Durante o evento, a postura das participantes deixava claro que essas estruturas dominantes, hierárquicas, nas quais a mulher negra se colocava na base da pirâmide das relações sociais, políticas e econômicas, era um elemento comum na América Latina contra o qual tinha que se lutar ou enfrentar de alguma maneira. Assim, durante o encontro se denunciaram as limitações que as mulheres negras enfrentam no acesso à educação, os papeis estereotipados e marginais no processo produtivo e se demonstrou que as mulheres negras eram, no mercado de trabalho, as que recebiam os piores salários. Nesse sentido, Dorotea Wilson1, coordenadora da Rede durante a década de 2000, afirma que "para o movimento de mulheres afrodescendentes, a luta é maior que das mulheres em geral, pois além da discriminação por sexo e gênero, enfrenta-se a discriminação racial, muito comum no continente. Neste sentido, a Rede de Mulheres Afro-latinoamericanas, Afro-caribenhas e da Diáspora denunciamos e reclamamos o pouco avance nos direitos das mulheres afrodescendentes" (www.mujeresafro.org). As motivações que permitiram que essas mulheres negras se congregassem nesse I Encontro foram suas articulações, outrora desencadeadas em cenários internacionais como nas Conferências Mundiais sobre a mulher, promovidas pela ONU, e nos Encontros Feministas Latinoamericanos e Caribenhos que desde 1981 vinham acontecendo a cada dois ou três anos em distintos lugares de América Latina. Deve-se destacar que na década de 1990, a ONU promove também uma série de Conferências mundiais em que os assuntos de raça e gênero e a interseção entre eles teriam acolhida e recursos materiais para visibilizá-los, motivo pelo qual as mulheres negras do continente deviam atuar conjuntamente. 1 Dorotea Wilson, religiosa entre 1965 e 1975, ativista da FSLN de Nicarágua na década de 1970, deputada de seu país em 1984; entre 1998 e 2000 atua na Secretaria Nacional da Mulher da FSLN, ativista do Movimento de Mulheres da Nicarágua, da Rede de Mulheres Contra a Violência da Nicaragua, da organização Voces Caribeñas. 2 O objetivo deste trabalho é o de reconstruir a gênese da Rede de Mulheres Afro-latino-americanas, Afro-caribenhas e da diáspora (RMAAD), os fundamentos teórico ideológicos que permitiram a fundação da rede, assim como apresentar as ativistas-membros da RMAAD que têm possibilitado um ativismo transnacional na América Latina. Parte-se da hipótese de que a RMAAD se configurou inicialmente como um ativismo internacional no qual as ativistas representavam seus próprios países. Contudo, os assuntos que elas tratavam (e ainda tratam) rompem com as fronteiras nacionais, de modo que seus interesses, reivindicações e demandas vão além dos Estados nacionais. Gênese e contexto de formação da RMAAD A RMAAD se define como “um espaço de articulação e empoderamento das mulheres afro-latinoamericanas, afro-caribenhas e da diáspora, para a construção e reconhecimento de sociedades democráticas, equitativas, justas, multiculturais, livres de racismo, de discriminação racial, sexismo e de exclusão e promoção da interculturalidade” (Wilson, 2002). Desmembrar-se-á a definição dada, começando pelo espaço de articulação. Nessa sentença se faz referência a uma articulação internacional cujos grupos focais seriam mulheres negras dos diferentes países da região latino-americana. Os objetivos colocados (construção e reconhecimento de sociedades democráticas, etc.) surgem da necessidade de impulsionar uma política antirracista e antissexista regional, para além das fronteiras nacionais. Dois eventos internacionais sustentaram essa ideia original: O terceiro encontro continental de mulheres realizado em Cuba em 1988 e o V Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe realizado em San Bernardo (Argentina) em 1990. Neste último define-se uma primeira reunião da coordenação preparatória para o I Encontro de Mulheres Negras de América Latina e o Caribe. Essa reunião levar-se-ia a cabo em Montevidéu em 1991. Um ano depois, entre os dias 19 e 25 de julho reuniram-se 300 ativistas negras latino-americanas em Santo Domingo, RD, durante o I Encontro. O comitê 3 organizador do evento estava integrado por ativistas do Brasil, República Dominicana, Haiti e Uruguai2. A realização do primeiro encontro se insere num contexto internacional em que os Estados Unidos visam aplicar políticas econômicas neoliberais na América Latina, aprofundando e ampliando a iniquidade e a exclusão social na região. Para uma das fundadoras da RMAAD, Beatriz Ramírez3, o chamado Consenso de Washington4 foi um elemento essencial para a organização de movimentos sociais buscando uma maneira de sair da crise. Soma-se a isto que no final da década de 1980, diversos países latino-americanos saíam de regimes militares o que, por um lado, fragilizou a economia desses países entrando num período de fragilidade institucional. Mas, por outro lado, abria-se um campo de organização coletiva dos distintos setores da sociedade civil, entre eles as mulheres, os negros, e as mulheres negras. Por sua vez, o movimento feminista latino-americano vinha, apesar dos conflitos internos, se afirmando no cenário regional e organizava encontros regionais frequentes desde 1981. É nesse contexto que se produz a expansão de ONG's da região, isto é da especialização e profissionalização do ativismo (Alvarez, 1998), sobre tudo das mulheres latino-americanas, orientando novas tensões e novos enfoques a fim de alcançar maior representatividade, assim como recursos financeiros e lideranças políticas. Nesse sentido, as atuações das ativistas negras nos cenários nacionais e internacionais basearam-se nas interpretações sobre gênero e raça, apontando para a especificidade das mulheres negras frente às brancas e para os problemas e injustiças gerados a partir desta especificidade. Por tanto, a ação 2 Entre elas: Neusa Pereira (Brasil); Sergia Galván e Ochy Curiel (República Dominicana); Anne Marie Corralian (Haiti); Beatriz Ramírez e Vicenta Camusso (Uruguai) 3 Beatriz Ramírez, uruguaia, fundadora da RMAAD em 1992, ativista do movimento negro uruguaio desde os anos 70 e fundadora da organização GAMA-Grupo de mujeres negras, em 1997. 4 O Consenso de Washington estabeleceu em 1990 novas pautas econômicas pelo governo de EUA que implicaram no aprofundamento das desigualdades das populações latino-americanas e caribenhas como um todo. Segundo John Williamson, mentor de tais políticas, o Consenso significa o “minimo denominador comum de recomendações de políticas econômicas que estavam sendo cogitadas pelas instituições financeiras baseadas em Washington D.C e que deveriam ser aplicadas nos países da América Latina, tais como eram suas economias em 1989” (Washington Consensus. Center for international development at Harvard university. www.cid.harvard.edu) 4 das mulheres negras se promovia por meio de um discurso interseccional entre ao menos duas categorias, raça e gênero, a partir das quais se desmembravam outras como classe, sexualidade, etc. Como afirma Maria Luiza Reis, em sua tese de doutorado sobre a RMAAD, o período que se desenvolveu ao longo da década de 1990 demarcou o espaço onde ecoam as vozes e estéticas diaspóricas desenvolvidas por lideranças femininas e feministas de uma diversidade de organizações civis de varias partes de América Latina e Caribe, as quais têm redimensionado o ativismo e o discurso do movimento na região (Reis, 2012:110) Na década de 1990 se fortalece o protagonismo das mulheres afrodescendentes que, a partir de sua presença em todos os processos de luta contra o racismo e a discriminação, deram início a um processo reflexivo importante sobre o movimento negro e feminista, como veremos depois. Assim, tanto a perspectiva tanto de gênero quanto de raça estabeleceram situações específicas e inovadoras em ambos os movimentos. O contexto de formação da RMAAD vem precedido e antecedido por uma série de Conferências Mundiais organizadas pela ONU e pelos Encontros Feministas Latino-americanos organizados pelos movimentos feministas da região. Além das três Conferências Mundiais sobre a Mulher desenvolvidas durante a década da Mulher (1975-1985)5, a ONU convocou um total de seis conferências na década de 1990 nas quais se estimulava a participação das redes e organizações de mulheres negras, permitindo ampliar o debate sobre a questão racial e o fortalecimento da abordagem da interseção entre gênero e raça/etnia, principalmente. QUADRO 1 ASSUNTOS NAS CONFERENCIAS MUNDIAIS DA ONU - ANOS 90 Conferências Mundiais da ONU Assuntos Rio, 1992 Meio Ambiente - Saúde Viena, 1993 Diretos Humanos 5 As primeira três Conferências foram levadas a cabo no México (1975), Copenhague (1980) e Nairóbi (1985). 5 Cairo, 1994 População - mulheres, racismo Copenhague, 1995 Desenvolvimento Beijing, 1995 Mulheres -Organizações negras de mulheres Políticas Públicas Turquia, 1996 Habitat No caso da Conferencia Mundial em Viena sobre Direitos Humanos, por exemplo, foi o momento para que a recém-formada RMAAD enfrentasse o discurso tradicional dos Direitos Humanos. Para Dorotea Wilson, o fato de que os direitos das mulheres também são direitos humanos e o assunto da violência contra as mulheres é um assunto de violação de direitos humanos “é, sem sombra de dúvida, produto de demandas feitas a partir das distintas organizações de mulheres e feministas, assim como sua presença e ativismo antes, durante e depois destes eventos internacionais” (www.mujeresafro.org). A Conferência de Beijing, em 1995, se constituiu, por sua vez, no espaço de referência explícita à opressão sofrida por um contingente significativo de mulheres em função da sua origem étnica ou racial. Um conjunto de ações foi então promovido para medir o crescimento da temática racial entre as mulheres, em especial em América Latina. Apesar de não estar contemplada no quadro anterior, a Conferência de Durban em 2001, incorporou a interseção das questões de raça e gênero na sua declaração final, reconhecendo a importância de outros instrumentos internacionais que precisam estar relacionados para o combate concreto do racismo e da discriminação racial. Em concreto, reconheceu que o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e as formas conexas de intolerância são produzidas por motivos de raça, cor, origem nacional ou étnica e que “por tal motivo, as vítimas podem sofrer múltiplas ou agravadas formas de discriminação por outros motivos conexos como o sexo, a língua, a religião, as opiniões políticas ou de outra índole, a origem social, a situação econômica, o 6 nascimento ou outra condição, mas também são agravadas pela questão do gênero” (www.un.org). A participação das ativistas da RMAAD nesta Conferência ficou selada na conferência prévia em Santiago de Chile, em 2000, chamada Conferência das Américas onde conseguiram expor as questões da discriminação racial, da violência contra a mulher negra e da necessidade de ações afirmativas como compromisso a ser assumido pelos Estados na região. Além desses eventos, oito encontros feministas latino-americanos foram organizados entre as décadas 80 e 90 pelas feministas em diferentes países da região. QUADRO2 E ASSUNTOS NO CONTEXTO LATINOAMERICANO Encontros feministas latinoamericanos Assuntos Bogotá, 1981 Autonomia Desigualdade Lima, 1983 Racismo Bertioga, 1985 Discriminação Taxco, 1987 Sexualidade San Bernardo, 1990 Sexismo e racismo San Salvador, 1993 Redes Cartagena, 1996 Conflito Los Dolios, 1999 Integração Por vez primeira o debate racial é colocado no âmbito do feminismo latino-americano no segundo encontro, em Lima, 1983, criando uma primeira insatisfação por parte das lideranças do movimento feminista (Lemos, 1997). No terceiro encontro realizado em Bertioga, Brasil, em 1985, as ativistas brasileiras responsáveis pelo seminário sobre racismo em Lima, não estariam na organização do evento. Pelo contrário, essas ativistas liderariam um contramovimento. O Encontro ficou marcado por um fato que colocou em pauta o 7 debate sobre a inclusão ao interior do movimento feminista6, e que servia como uma alavanca principal para impulsionar a ação coletiva das mulheres negras da região. Aconteceu então que um ônibus cheio de mulheres negras das favelas de Rio de Janeiro chegou ao encontro. Todas reclamavam a entrada no lugar, sem pagar a cota de inscrição. A organização rechaçou sua admissão, com a consequente polêmica. O fato teve um impacto considerável, na medida em que nessa ocasião 116 mulheres das 850 participantes se declaravam negras e/ou mestiças. Portanto, por trás da polêmica do ônibus e do número de mulheres negras inscritas no evento, foi declarada abertamente a relação conflituosa das mulheres negras com o movimento feminista (Moreira, 2007). Ficou evidente, então, a retórica persistente do feminismo com relação à ‘unidade’ das mulheres, à ‘igualdade’ de direitos como se as mulheres não fossem também diferentes, com necessidade de direitos diferenciados. Do ponto de vista das feministas ‘insiders’, muitas suspeitaram que o incidente de ônibus fosse orquestrado por partidos políticos numa tentativa de desacreditar o feminismo (Alvarez, 1998). Contudo, tenta-se destacar aqui que o incidente do ônibus foi uma forma de ação que as mulheres negras brasileiras usaram para manifestar sua discrepância com o feminismo tradicional, criando no seio desse impasse um contra-movimento, que levou a fortalecer o feminismo negro como um quadro discursivo que deveria ser interpretado a partir da intersecção dos elementos gênero, raça e classe conjuntamente. Nesse terceiro encontro feminista, as ativistas do então emergente Movimento de Mulheres Negras brasileiro 7 manifestavam que as questões de raça e classe não ocupavam um lugar central na agenda do Encontro, e que as mulheres negras e pobres não tinham uma participação significativa na elaboração dessa agenda. Embora, depois de dez anos do início da Década da Mulher, era nesse encontro onde e quando era necessário demandar mudanças estruturais do feminismo. Depois desse evento, constituem-se vários 6 Nesse evento, a temática da diversidade racial ficou a flor de pele. As dificuldades em construir pontes entre diferentes expressões do movimento de mulheres e feministas vieram claramente à tona. O lema era "Nossos feminismos, nossos corpos, o racismo". 7 Entre elas, Jurema Batista, Vânia Santana e Glória de Oliveira. 8 coletivos de mulheres negras no Brasil, ao mesmo tempo em que são organizados os primeiros Encontros Nacionais e Estaduais de mulheres negras brasileiras. O Encontro de Bertioga foi celebrado pouco depois da Conferencia final da Década da Mulher em Nairóbi no mesmo ano8. No quinto encontro feminista em San Bernardo, Argentina, em 1990, se promoveram todo tipo de redes, entre as quais a Rede de Programas de Estudos sobre a Mulher, Rede de Comunicação Progressista Plural e Aberta entre feministas políticas de Latino-américa e o Caribe; Rede de Saúde Mental de América Latina; Rede de Meio Ambiente Feminista. Foram também colocados em pauta esforços de militantes para promover políticas de gênero em instituições não governamentais. Destaca-se nesse Encontro a grande confluência de mulheres negras favorecendo o inicio de uma rede continental de mulheres negras. De fato, foi nesse momento quando a haitiana Anne Marie Corolian propõe para o conjunto de mulheres negras latino-americanas participantes realizarem um encontro dedicado à mulher negra latinoamericana e do Caribe (Jurema Werneck em entrevista a autora, 2014). As ONGs feministas que ganharam peso na década de 1990 tiveram de formalizar suas práticas organizacionais para conseguir interagir com agências governamentais e instituições internacionais (Craske, 2000). Destaca-se, então, o envolvimento das feministas em organizações cada vez mais profissionalizadas e especializadas e em consequência com uma capacidade maior de consolidar coalizões de advocacy (promoção e defesa de direitos) de políticas públicas que permitiam às ativistas promover e vigiar a promoção de políticas de gênero em instituições governamentais e não governamentais (Alvarez, 1998). É importante destacar que fatores internacionais, mais notadamente as conferências da ONU nos anos 1990, reforçaram o crescente direcionamento de muitos grupos nacionais para a elaboração de políticas públicas. A participação no sistema da ONU exigia habilidades cada vez mais especializadas, mais recursos materiais e alianças com organizações 8 A representação das mulheres negras brasileiras em Nairóbi esteve a cargo de Lélia Gonzalez, Benedita da Silva e Diva Moreira (Depoimento de Diva Moreira em entrevista a Verena Alberti e Amílcar Pereira para o projeto “História do Movimento Negro Brasileiro”, CPDOC, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro. 2007). 9 governamentais e instituições internacionais. Como ressalta Sonia Alvarez (1998), “já predispostas a financiar organizações com uma estrutura e orientação mais profissionais, as agências privilegiaram aqueles grupos mais dispostos a dedicar sua energia à arena internacional nos anos 1990”. A partir dessa profissionalização do ativismo, ou ongização, esperava-se que a pressão internacional, estimulada pelas ONGs, conseguisse que os governos nacionais implementassem legislações diferenciadas, tendo em vista a democratização das questões de gênero. Isto é o que Keck e Sikkink (1998) chamaram de efeito boomerang. Esses eventos podem ser considerados como oportunidades criadas pela possibilidade de participação e de posicionamento frente a determinados assuntos, por parte dos movimentos de mulheres negras da região. Depois de exposto o contexto internacional em que a RMAAD é criada, deve-se prestar atenção ao próprio contexto de formação que foi o I Encontro de mulheres negras latino-americanas e do Caribe. As mulheres que ali participaram vinham de diferentes experiências em torno ao racismo, o sexismo, diversos níveis socioeconômicos e culturais, diferentes níveis de educação e diferentes opções sexuais. As trajetórias de ativismo destas mulheres eram, por tanto, as mais diversas: organizações de base de mulheres, de lésbica, feministas, movimento negro, grupos de igrejas e ideologias políticas diversas. Contudo, os temas de interesse que se conjugavam entre todas eram ações de denúncia do racismo e sexismo, violação de direitos humanos, economia e projetos produtivos, entre outros. Os objetivos propostos pela Rede em 1992 foram então: 1. Trabalhar conjuntamente para melhorar as condições de vida das mulheres negras 2. Combater as ideias negativas (preconceitos e estereótipos) que recaem sobre a mulher negra 3. Denunciar todo tipo de discriminação contra as mulheres negras 4. Promover a participação das mulheres negras nos diferentes espaços políticos e de decisão 5. Trabalhar a problemática do racismo desde uma perspectiva de gênero 10 6. Lutar contra todo tipo de discriminação 7. Promover a comunicação, intercambio de experiências, solidariedade e destreza com outras organizações 8. Apoiar a luta das mulheres haitianas por melhores condições sociais e pela solução da crise política 9. Apoiar a luta da mulher dominicana de ascendência haitiana por melhorar as condições sociais e econômicas (RMAAD, 2011) Deve-se destacar que o momento de surgimento da RMAAD, e mais precisamente do I Encontro, se dá no auge das comemorações do quinto centenário do descobrimento, sendo a República Dominicana o grande cenário. Por isto, durante o encontro discutiu-se acerca dos aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos que levaram a assimilar o racismo e o sexismo na região durante cinco séculos. Por outro lado, foi colocado o desafio por parte das mulheres negras ao movimento feminista e de mulheres para reconhecer e incluir a questão étnica e racial na sua agenda política. Se denunciou também a situação que as mulheres negras enfrentavam no acesso à educação, justiça, moradia, assim como a alta participação no mercado de trabalho mas com a menor remuneração e nas piores condições sem reconhecimento de seus direitos. Esses apontamentos estavam baseados na situação histórica, centrada na imagem estereotipada da mulher negra, em papéis marginais, sociais, econômicos, culturais e na reprodução permanente do racismo e do sexismo. Destaca-se que no âmbito regional latino-americano, é notória a ênfase dada pelas ativistas negras à questão da discriminação racial quase como o motor de luta, pois é com a estrutura que mantêm as relações de sociabilidade nas diferentes sociedades latino-americanas. Diferentemente do posicionamento que as feministas negras norte-americanas tinham sobre a desigualdade racial, como um aspecto fenotípico que recaia na diferença entre negras e brancas. Contudo, acredita-se numa complementaridade da teoria do Feminismo Negro desenvolvida no EUA com os postulados das feministas negras em América Latina e que aponta para um Feminismo Negro Latinoamericano. 11 Deste modo, temos que os contextos nos quais se desenvolve a rede e o ativismo das mulheres negras latino-americanas são contextos ou eventos internacionais porque neles a participação dos indivíduos deve-se a um pertencimento nacional. Mas os assuntos que ali são tratados são de ordem transnacional, pois permitem a vinculação de diversos ativistas que de uma ou outra maneira se sentem identificados com esses temas. Do Feminismo Negro ao Feminismo Negro Latino-americano: construção de um quadro interpretativo Os significados construídos dentro dos movimentos sociais surgem da interação entre ativistas e sistemas políticos e culturais, os primeiros desafiando a cultura dominante e os segundos tendendo a manter uma ordem social. Contudo, tanto as ações coletivas quanto as estruturas onde elas se desenvolvem são susceptíveis de mudanças em qualquer momento, pois estão influenciadas por fatores que mudam os significados e interpretações do mundo exterior. Desta maneira, os enquadramentos interpretativos referem-se aos aspectos culturais do ativismo político, sintetizando e condensando visões do mundo, orientando diagnósticos e prognósticos. Estes enquadramentos orientam também a organização de experiências e guiam ações coletivas, vinculando-as a contextos políticos culturais externos (Benford, 1997; Snow e Benford, 1992; Snow et al, 1986). Certos autores acrescentaram a essa interação a construção da identidade coletiva (Melucci, 1989; Whittier, 1997) e do discurso no qual se apoiam os movimentos (Katzenstein, 1990). Desse ponto de vista, os trabalhos teóricos sobre discurso e identidade coletiva oferecem uma base para a análise da transformação de significados inerentes à cultura dominante, o estado e as instituições. The connections between the meanings that movements construct and those offered by the dominant culture are far from straightforward. Movements draw on hegemonic discourses and categories to construct discourses that are both transformative yet constrained by the hegemonic meanings they wish to challenge. If we overlook collective identity and discourse, we miss many of the ways that political opportunities and cultural shifts affect movements and the ways that 12 movements’ construction of oppositional identities can reshape institutions” (Whittier, 2002 p. 306) Assim, pretende-se mostrar que as dinâmicas internas dos movimentos sociais não estão determinadas só por contextos externos, mas que as estruturas estão também desenhadas e influenciadas pelas identidades, as organizações e as estratégias dos movimentos sociais. Cabe dizer que as transformações individuais, culturais e estruturais são aqui consideradas como inseparáveis. Dessa maneira, o Feminismo Negro como enquadramento interpretativo concebido num contexto particular (o norteamericano) toma uma forma própria quando deslocado ao contexto latinoamericano. O termo Feminismo Negro começou vigorar na década de 1970 pelas mulheres negras que participaram ou testemunharam o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, cujos protagonistas foram Martim Luther King e Rosa Park, entre outros. Nasce como uma interpretação das desigualdades que recaem sobre a mulher negra, entendida a partir da construção de uma identidade estigmatizada na sociedade. O Feminismo Negro é, por um lado, uma crítica que as mulheres negras do movimento feminista fazem ao feminismo por não contemplar a questão racial dentro de suas preocupações e, por outro lado, uma crítica que as mulheres negras fazem ao movimento negro por representar o patriarcado e a dominação masculina, relegando a um segundo plano as reivindicações particulares das mulheres e mantendo a participação das mulheres em posições secundárias ao interior do movimento. Por sua vez, as teorias sobre o feminismo e a ação própria do feminismo chamado ‘tradicional’- assumem novas demandas e reivindicações durante os anos 70 e 80. Não é mais o direito ao sufrágio, nem o direito a participar nas instituições masculinizadas, as motivações de mobilização das mulheres, mas outras lógicas e propostas políticas são também enunciadas: raça, sexualidade, estigma, exclusão e desigualdade. Os primeiros estudos neste sentido foram elaborados principalmente por intelectuais e ativistas norte-americanas. A experiência das feministas negras intelectuais em Estados Unidos manifestava que a teoria feminista era uma 13 teoria incompleta ao não considerar o tema racial como um diferencial das mulheres negras. Segundo Patrícia Collins, A supressão histórica das ideias das mulheres negras teve uma marcada influência na teoria feminista. Analisadas com mais detalhe, as teorias que são apresentadas como universalmente aplicáveis a todas as mulheres, como um grupo homogêneo, são limitadas por causa de suas próprias origens branca e de classe média de suas mentoras (Collins, 1998). Isto queria dizer, então, que no chamado feminismo havia um discurso dominante no qual os assuntos das mulheres negras e pobres não tinham espaço. Seguindo essa lógica, Patrícia Collins afirma que as afrodescendentes, desde a época da escravidão estiveram sempre ausentes da história das mulheres, como também estiveram as indígenas, lésbicas, migrantes, etc. Outra autora que critica a visão racista e classista do feminismo da década de 60 e 70 é bell hooks. A autora chama a atenção a aspectos racistas e sexistas nos trabalhos acadêmicos que tratam da liberação das amas de casa (hooks, 1982). Isto é, enquanto as mulheres brancas tentavam se liberar para ter os mesmos direitos à educação e ao trabalho que os homens, não se considerava que as mulheres afrodescendentes trabalhavam fora do lar desde muito tempo atrás, sendo exploradas em vários ofícios, especialmente no serviço doméstico. Tanto hooks com Collins, mostram que a visão classista e racista do feminismo estava gerando um sistema de dominação que se reproduzia entre as feministas. Audre Lorde, ativista afro-americana, referia-se aos impasses que atravessava o feminismo, da seguinte maneira: Se a teoria feminista estadunidense não necessita explicar as diferenças que existem entre as mulheres, nem as diferenças que são o resultado de nossa opressão, então como explicar o fato de que as mulheres que limpam sua casa e cuidam de seus filhos, enquanto você assiste a congressos sobre teoria feminista, sejam na maioria pobres e mulheres de cor? Que teoria respalda o feminismo racista?" (Lorde, 1984: 112). Outro ponto que as feministas negras norte-americanas ressaltam é o fato de que o feminismo não trate o tema da violência racial, nem desde o ponto de vista doméstico nem público (Collins, 1998; hooks, 2004). As críticas também 14 apontam que as análises feministas abordam o tema da família como uma instituição que reproduz a exploração da mulher, sem relativizar as experiências particulares das mulheres negras (Brah, 2006). Nessa mesma direção, as reivindicações sobre o direito ao aborto levantado pelas feministas não consideram que as mulheres negras reivindicam também o direito à reprodução em condições favoráveis, na medida em que as mulheres pobres, indígenas e negras são as mais atingidas por serviços públicos de saúde limitados. O Feminismo Negro norte-americano surge, então, com dois propósitos fundamentalmente: primeiro, reconstruir o discurso feminista, dominado por uma visão etnocêntrica e racista; segundo, denunciar o sexismo nos movimentos negros (Collins, 1999). "Mulheres de cor" adquiriu então uma conotação política que questionava a naturalização da supremacia branca e as práticas patriarcais na sociedade norte-americana (hooks, 1982). Apesar de que esta categoria não vingou exatamente da mesma maneira em América Latina, esses discursos permitiram construir uma identidade coletiva (mulheres negras), sobre a qual foi possível propor transformações sociais (Curiel, 2007). E a pesar que o próprio "feminismo negro" não está explícito no discurso das mulheres negras latino-americanas, está implícito nas ações das organizações locais9. Matilde Ribeiro (2008) aponta que as ativistas negras na região colocaram o tema do racismo nos espaços internacionais, especialmente a partir do III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe. A partir daí, as mulheres negras nos principais países com população negra do continente, especialmente Brasil e Colômbia, tem se organizado em coletivos e associações, tendo como objetivo denunciar o racismo e o sexismo no movimento negro e feminista. Neste sentido, Sueli Carneiro (2005) coloca o "enegrecimento" do feminismo e a promoção da feminização no movimento negro. Para entender o Feminismo Negro Latino-americano, como uma recolocação da teoria americana anterior e retomada pelas ativistas da região, 9 Acadêmicas e ativistas latino-americanas coincidem em afirmar que devem identificar-se a raça e a sexualidade como eixos da teoria e prática destes movimentos (Curiel, 2007). 15 deve-se entender que ele faz parte dos ‘feminismos latino-americanos’ aos quais Sonia Alvarez (1998) fazia referência. Nos anos 80, o termo fazia especial ênfase nas diferenças entre as mulheres latino-americanas e a diversidade de identidades e problemas relacionados às mulheres e à cultura. Nesta diversidade circulavam as afrodescendentes latinoamericanas. Em Brasil, por exemplo, as organizações de mulheres negras se organizavam ao redor de assuntos como a violência racial, o racismo, o abuso da mulher negra, a saúde das mulheres negras, aborto, atenção médica e chamavam a atenção para a condição socioeconômica da mulher negra no país. As ativistas denunciavam o papel secundário relegado à mulher negra ao interior do movimento negro e a falta de discussão sobre o racismo nos debates do movimento feminista. Estudos em sociologia no Brasil têm analisado a relação da ação coletiva das mulheres negras e o feminismo negro, como discurso e como identidade (Lemos, 1997). A autora analisa de que maneira os assuntos de raça e gênero são colocados como marcos de interpretação dos movimentos de mulheres negras brasileiras. Como exemplo desta colocação, reproduzimos a fala de Lélia González, ativista e intelectual negra, sobre o Encontro Nacional da Mulher em 1979, "nossa participação causou reações contraditórias. Até o momento tínhamos observado uma sucessão de falas acentuadamente de esquerda, que colocavam uma série de exigências quanto à luta contra a exploração da mulher, do operariado etc. etc. A unanimidade das participantes quanto a essas denúncias era absoluta. Ma no momento em que começamos a falar do racismo e suas práticas em termos de mulher negra, já não houve mais unanimidade. Nossas falas foram acusadas de emocional por umas e até mesmo de revanchistas por outras; todavia, as representantes das regiões mais pobres nos entenderam perfeitamente (eram mestiças em sua maioria). Toda a celeuma causada por nosso posicionamento significou, para nós a caracterização de um duplo sintoma: de um lado, o atraso político (principalmente dos grupos que se consideravam mais progressistas) e do outro, a grande necessidade de negar o racismo para ocultar uma grande questão: a exploração da mulher negra pela mulher branca" (Gonzalez, citada em Lemos, 1997:57). 16 É assim, então, que os marcos interpretativos são construídos na ação coletiva, preservando os elementos presentes na teoria do feminismo negro (Collins, 1990). Cabe explicar que os enquadramentos interpretativos não só tendem a 'enquadrar' a ação para lhe outorgar sentido, mas também configuram uma identidade coletiva entre as ativistas. Isto é, o feminismo negro seria um guarda-chuva sob o qual estão contemplados vários sentidos, culturais e políticos, para a ação coletiva. Essa ação tende a transcender fronteiras nacionais, de forma que várias ativistas de diferentes lugares conseguem articular interesses culturais comuns entre as ativistas. O Feminismo Negro Latino-americano, no sentido desse grande quadro de interpretação - Master Frame -, forja-se a partir do III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe (EFLAC), 1985, Bertioga, como foi discutido anteriormente. Essa categoria que aqui é colocada, se mostra útil para o reconhecimento do modo como diferentes eixos de opressão se configuram produzindo desigualdades e situações adversas de múltiplas discriminações a grupos específicos de mulheres, como às mulheres negras (Cardoso, 2012). O feminismo negro na América Latina e no Caribe conseguiu colocar às mulheres negras como agentes de transformação social e como parte de uma comunidade diaspórica (Reis, 2012), com uma origem comum, um presente em que se compartilham as opressões e as lutas e uma agencia que enfrenta o racismo, a discriminação e as desigualdades às quais estão expostas as mulheres negras da região. Desta maneira, Jurema Werneck se aproxima ao feminismo desde suas práticas ao analisar as relações conflitivas entre mulheres afrodescendentes e mulheres brancas em torno à questão da apropriação e construção do feminismo (2005). Segundo a autora, a pesar da resistência de uma parte das mulheres brancas, as feministas negras conseguiram que o ‘feminismo branco’, como ela mesma o denomina, deixe de separar a luta contra o racismo e a exploração, da luta contra o patriarcado. Nesse sentido, coloca as ações de combate ao racismo e ao patriarcado como indissociáveis a partir de uma perspectiva interseccional (Crenshaw, 2001). Em palavras da ativista brasileira: "No feminismo original não tinha diferenças palpáveis, de classe social, de raça. Só existia a questão de gênero. Não encarou esses conflitos que existiam por essas 17 diferenças, então o discurso racial, o Feminismo Negro encarna o discurso racial. É um feminismo que fala dessa coisa de ser mulher negra, acho que isto é principal diferença, quer dizer, que define todo o resto. E a inserção da negra no mundo, na sociedade brasileira, vai provocar todas as outras diferenças subsequentes". (entrevista a Jurema Werneck, em Lemos, 1997: 120). Essas diferenças que aponta Werneck, não são apenas diferenças de raça, mas do racismo impresso no discurso das "feministas originais", assim que o Feminismo Negro nasce, por um lado, de um sentimento de injustiça, da identificação do racimo na sociedade, no movimento feminista e nos outros movimentos. Por outro lado, o sentimento de injustiça que está por trás deste enquadramento discursivo é a discriminação das mulheres negras dentro do próprio Movimento Negro. Aponta-se que o feminismo tradicional foi, contudo, importante para a ação das mulheres negras para perceber uma posição diferenciada e para confrontar um novo espaço de poder onde atuar com autonomia. Nesse sentido, considera-se o feminismo negro como um mecanismo que consegue dar conta do diagnóstico que oprime às mulheres negras latino-americanas desde a perspectiva de gênero, classe e raça. Ao mesmo tempo, se propõe que o prognóstico deve considerar a intersecção entre os três elementos. Lélia Gonzalez (1988) chamou a atenção para a importância de entender os efeitos resultantes da articulação dessas estruturas de poder na definição do lugar social dos sujeitos na sociedade, principalmente das mulheres, pois tal articulação faz com que as não brancas sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente. Assim, o racismo articulado com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular. A RMAAD e o Feminismo Negro Latino-americano Na década de 1990 se fortalece o protagonismo das mulheres afrodescendentes que, a partir de sua presença em todos os processos de luta contra o racismo e a discriminação, deram início a um processo reflexivo importante sobre o movimento negro e feminista, como veremos depois. Assim, 18 tanto a perspectiva tanto de gênero como a raça estabeleceram situações específicas e inovadoras em ambos os movimentos. Os movimentos de mulheres negras na América Latina como vimos estiveram fortemente influenciados pelas feministas negras latino-americanas que visibilizavam este contingente dentro do movimento feminista tradicional. Na região, as mulheres negras encontraram dificuldades (como também foi para as americanas) para discutir integradamente as questões de gênero e raça. As barreiras foram em um duplo sentido, pelo movimento feminista e pelo movimento negro. O auge do movimento feminista internacional que ecoava na região colocavam problemáticas definidas por mulheres em geral brancas, heterossexuais, de origem burguês e ocidental. Esse feminismo encontrava-se no que Caldwell (2000) chamo de "lugar de partida" para as contestações sociais da mulher. Nesse sentido, as mulheres negras acabavam num "nãolugar", onde suas reivindicações e demandas ocupavam lugares sociais e culturais distintos das brancas e até superficiais para estas últimas. (De acordo com King (1993, apud Reis, 2012:103), muitas ativistas brancas supuseram que a atitude antissexista que elas adotavam aboliria, em consequência, o preconceito racial e a discriminação. Mas, a tendência de centrar a questão das mulheres nas suas experiências comuns desconsiderou diferenças fundamentais entre elas, principalmente no que se refere à raça). Ante esse cenário, Carneiro (2001) propus uma dupla militância das mulheres negras; isto é que as ativistas negras deveriam participar do movimento feminista com miras a que as conquistas não privilegiassem somente as mulheres brancas. Desta maneira, o combate ao racismo, à discriminação e ao preconceito deveria ser apontado desde dentro do movimento onde o conflito estava sendo gerado. A pesar disso, o Feminismo negro na América Latina e o Caribe conseguiu colocar às mulheres negras como agentes de transformação social e como parte de uma comunidade diaspórica, com uma origem comum e um presente em que se compartilhavam as opressões e lutas e uma agencia comum contra o racismo, a discriminação e as desigualdades. 19 Dessa maneira, forjava-se então no decorrer da década de 1980 um "feminismo da diferença" (Reis, 2012) pautado por "um conjunto de experiências e idéias compartilhadas por mulheres afro-americanas, que oferece um ângulo particular de visão de si, da comunidade e da sociedade... que envolve interpretações teóricas da realidade das mulheres negras por aquelas que a vivem.. Entre eles se destacam: o legado de uma história de luta, a natureza interconectada de raça, gênero e classe e o combate aos estereótipos ou "imagens de autoridade". (Carneiro, 2001:24) Assim, a articulação e interseccionalidade entre raça, gênero e classe como categorias que demarcam a diferença nas experiências das mulheres, as feministas negras na América Latina trouxeram uma teoria feminista superadora do determinismo imposto pelo gênero (Bairros, 1995, 2000). O projeto político da Rede sobre o qual trabalham, até hoje, articuladamente as ativistas da região desenvolvem os assuntos supracitados. Pode-se destacar entre eles: - construção e consolidação de um movimento amplo de mulheres afrocaribenhas, afro-latinoamericanas e da diáspora que incorpore as perspectivas étnicas, raciais e de gênero no continente. - visibilizar a realidade da discriminação e violação dos direitos humanos que vivem as mulheres afrodescendentes, nos âmbitos socio-conômicos, políticos e culturais da região. - incidência em instâncias governamentais e intergovernamentais para a formulação e implementação de políticas públicas que afirmem modelos de desenvolvimento sustentado no reconhecimento e respeito das identidades étnicas, raciais e de gênero e as problemáticas comuns a toda a região entre as quais destaca-se a pobreza, migração, violência contra as mulheres e o VIH-Sida. - luta pelo cumprimento de convênios e acordos internacionais que afirmam os direitos das mulheres afro-caribenhas, afro-latinoamericanas e da diáspora. (boletin 2, RMAAD, 2009). Retomam-se então os apontamentos de Lélia Gonzalez (1988) ao propor nos anos 80 a "amefricanidade" como uma experiência comum de mulheres e homens negros na diáspora e à experiência de mulheres e homens indígenas 20 contra a dominação colonial. Mas a ênfase de Gonzalez está na exclusão e discriminação à qual estão submetidas as mulheres negras tanto no contexto brasileiro quanto no cenário latino-americano, defendendo a "articulação entre as categorias de raça, classe, sexo e poder para desmascarar as estruturas de dominação de uma sociedade" (González, 1988: 138). Se esse tipo de manifesto que foi "por um feminismo afro- latinoamericano", no qual se inseria a ideia de "amefricanidade" nos anos 80, motivou a ação coletiva das mulheres negras na região, ele foi reelaborado e reinterpretado como um feminismo negro latino-americano (Lemos, 1997, Moreira, 2007, Cardoso, 2012) para sustentar a organização transnacional dessas mulheres, a construção de novas articulações e de estéticas políticas em que se impõem diferentes territorialidades e se politizam temas que, até então estavam subalternizados e invisibilizados. Sobressaem a articulação dos temas ou dos enquadramentos interpretativos que sustentam essa atividade política, assim como a articulação das próprias ativistas da região. Sergia Galvan assim o confirma quando diz: aunque parezca una cosa muy extraña, si no es a través de la Red, no me vinculo con las mujeres de Brasil, con las centroamericanas, colombianas, venezolanas. Me ha permitido un vínculo y esto es un empuje importante a un proceso de reflexión y análisis. En ese sentido [la Red] ha jugado un papel sumamente importante (boletin 2, RMAAD, 2009). Ativismos na RMAAD Ao se tratar de uma rede transnacional de ativismo, tenta-se mostrar que a influência das trajetórias das principais membros da RMAAD resultam indispensáveis para entender o processo de formação da rede que, a pesar de ser fundada em 1992, suas origens se remontam às décadas de auge dos movimentos sociais e a transformação política na região. Cabe destacar, em consequência, que as ativistas que durante a primeira década ocuparam cargos administrativos da rede e/ou demonstravam uma ampla trajetória de 21 ativismo, tinham militado seja nos movimentos feministas ou negros , ou em ambos, nos seus países de origem. A partir do segundo Encontro de mulheres afro-latinoamericanas e caribenhas levado a cabo na Costa Rica em 1997, a RMAAD definiu que sua estrutura organizacional estaria composta por - Uma assembleia geral, definido como o máximo organismo para a tomada de decisões da Rede e seria conformada por todas as integrantes e participantes nos encontros regionais a se realizar. - Coordenação geral, entre as que se encontram: Uma representante de cada subregião Equipo operativo de trabalho, que será assalariada e presidido pela coordenação da Rede. - Equipos de coordenação subregional: Centroamérica (Honduras, Nicaragua, El Salvador, Costa Rica, Belize), Cone Sul (Argentina, Uruguai, Paraguai), Brasil, Países andinos (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru), Caribe anglosaxâ, Caribe francofono, Caribe Castelhano, Caribe holandês, e mulheres da Diáspora. -Comitês nacionais: Membros da rede, individuais ou grupos. A organização da RMAAD é claramente uma organização internacional, onde os diferentes países da região estão representados. Entre 1996 e 2000, ficou estabelecido que a sede da RMAAD seria em Costa Rica e a estrutura a seguinte: Coordenadora geral: Epsy Campbell Barr, Costa Rica. Centroamérica : Berta Arzú, Honduras Cone Sul: Beatriz Ramírez, Uruguai Região Andina: Doris Garcia, Colômbia Brasil: Joana Angelica de Souza, Edenice Santana de Jesus, Lucimar Alves. Caribe Hispano: Ada Verdejo, Porto Rico 22 Caribe Anglófono: Verna St Rose Graves, Trinidade e Tobago Caribe Holandés: Magda Martina, Curaçao Caribe francês: Maryse Jean Jacques, Haiti Na década de 2000, a sede passa ser na Nicarágua e a coordenadora regional, a nicaraguense Dorotea Regional. Cone Sul: Elizabeth Suarez, Uruguai Yvette Modestin: Diáspora, Estados Unidos Centro America: Cecilia Moreno, Paraguai Países Andinos: Nirav Camacho, Venezuela Países Andinos: Sonia Viveros, Equador Caribe: Ana Irma Rivera, Porto Rico Centroamérica: Ann McKenly, Costa Rica Brasil: Maria Maura de Jesus, Vera Fermiano. As trajetórias dessas ativistas passaram dos movimentos negros, ao feminista e, muitas delas chegaram a ocupar cargos públicos nos seus países. Durante a década de 80 e 90, sendo ativistas e/ou funcionárias públicas, estas ativistas participaram em distintos eventos internacionais, expostos anteriormente, o que permitiu uma maior visibilidade dos assuntos que atingiam às mulheres negras da região. É por isto que era imprescindível para a rede forjar o objetivo de serem concebidas como iguais a partir das suas diferenças e desta maneira combater os obstáculos interpostos pelas sociedades nas quais elas vivem. É interessante ressaltar que a atuação de ativistas negras na cena nacional e internacional está baseada nas suas interpretações sobre a questão racial e de gênero, sem omitir também a de classe, apontando a especificidade das mulheres negras perante as brancas e os problemas e injustiças que são 23 geradas a partir desta especificidade. Interpretações que vão se espalhando entre os movimentos de mulheres negras do continente, por tanto essa presença mais organizada da qual se falava anteriormente não é mais do que o fruto de uma geração de laços relacionais entre as ativistas da região. Nesse sentido, os enquadramentos interpretativos enfatizam uma perspectiva relacional em que a ação e as opções e motivações de cada indivíduo dependem das opções e motivações dos outros, além de considerar que o discurso base deste estudo, a partir do qual se transita entre as esferas políticas e sociais. Assim, é o Feminismo Negro que permite a formação de relações de sociabilidade, mas sendo específico na região latino-americana. Observações finais A metodologia baseada na perspectiva relacional na qual se apoia este trabalho, se vale da análise de relações em rede para entender as mudanças culturais e históricas da ação coletiva. No caso aqui condensado, houve a tentativa de entender a relação entre redes e cultura ou em que medida elementos culturais como raça ou gênero incidem e aprofundam conexões entre indivíduos e indivíduos com coletivos ou instituições. Os elementos culturais, por sua vez, podem ser produto tanto de fatores internos quanto externos, mas que de qualquer maneira devem ser entendidos em sua intersecção (Robnett, 2002). Nas redes de interação, destaca-se o papel de certos indivíduos que atuam em e desde suas posições que lhes permitem operar como mediadores ou brokers. Essas posições são o resultado de um capital cultural adquirido a partir do seu conhecimento tanto interno quanto externo aos movimentos sociais; ao mesmo tempo, o acesso ao capital cultural depende da posição de cada indivíduo na sociedade. O propósito de usar essa metodologia neste trabalho é de reconstruir as interações e transações que se desenvolvem nas redes de ativismo, prestando atenção às interações estratégicas, ou possíveis . Além disso, entende-se que as identidades coletivas são construídas em espaços de contestação, que podem estar mais ou menos abertos para o 24 desenvolvimento da mobilização. Segundo Robnett (2002), os espaços abertos ou externos são os eventos nacionais e internacionais e institucionais nas quais as ativistas participam, afetando diretamente sua posição no espaço social-coletivo, abrindo possibilidades de mudança social. Os cenários fechados, ou internos, limitam a confrontação política e a construção de identidades coletivas. A partir dessas contextualizações argumentou-se que a construção de um enquadramento interpretativo em torno da mulher negra nos ativismos feminista e negro da América Latina fora plasmado num Feminismo Negro Latino-americano o qual se difundia ao longo das décadas 80 e 90 em eventos internacionais, dando lugar à formação de uma rede de ativismo transnacional. A RMAAD se constitui como um ativismo transnacional, na medida em que os assuntos que são articulados perpassam as fronteiras nacionais. Contudo, as ativistas mantêm um forte arraigo como as ações coletivas em seus próprios países. Bibliografia Alvarez, Sonia (2001), "Los feminismos latinoamericanos "se globalizan": tendencias de los 90 para el nuevo milenio", en: Escobar et al. Política cultural y cultura política. Una nueva mirada sobre los movimientos sociales latinoamericanos. Taurus. Icanh. Bogotá. Brah, Avtar (2006), "Diferença, Diversidade, Diferenciação", en: Cadernos Pagu, No. 26. Janeiro-julho. 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