Educação em prisões
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Educação em prisões
de Jovens e Adultos da AlfaSol, é mais uma ação direcionada à ampliação da reflexão em torno dos desafios impostos ao exercício pleno da cidadania das pessoas analfabetas ou pouco escolarizadas, no Brasil e no mundo. A aposta na pesquisa, na construção compartilhada de saberes e na diversidade de estratégias de defesa da democracia como alicerce do desenvolvimento humano e social é a expressão fiel dos objetivos desta série. CEREJA discute: Educação em prisões A série CEREJA discute, do Centro de Referência em Educação Educação em prisões Organização Aline Yamamoto Ednéia Gonçalves Mariângela Graciano Natália Bouças do Lago Raiane Assumpção Cereja Centro de Referência em Educação de Jovens e Adultos Copyright: Alfabetização Solidária, 2010 Realização: AlfaSol (Alfabetização Solidária) Centro de Referência em Educação de Jovens e Adultos (Cereja) Superintendente executiva: Regina Célia Esteves de Siqueira Assessoria Técnica: Ednéia Gonçalves Assessoria de Comunicação: Claudia Cavalcanti Coordenação do Cereja: Margarete Rose Rodrigues Coordenação editorial: Ednéia Gonçalves Edição e revisão: Claudia Cavalcanti Projeto gráfico e capa: Kiki Millan / Creatrix Design Associação Alfabetização Solidária. Cereja discute : educação em prisões / Associação Alfabetização Solidária; [organização de] Aline Yamamoto, Ednéia Gonçalves, Mariângela Graciano, Natália Lago, Raiane Assumpção. – São Paulo : AlfaSol : Cereja, 2010. (Cereja Discute ; 1) 128p. Referências Vários autores 1. Educação — Brasil 2. Educação nas prisões I. Associação Alfabetização Solidária II. Título III. Série CDD 365.66 Catalogação na fonte Centro de Referência em Educação de Jovens e Adultos – CEREJA Educação em prisões Organização Aline Yamamoto Ednéia Gonçalves Mariângela Graciano Natália Bouças do Lago Raiane Assumpção “Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise falar a ele.” (Paulo Freire em: Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa, 1996) A série CEREJA discute, do Centro de Referência em Educação de Jovens e Adultos da AlfaSol, é mais uma ação direcionada à ampliação da reflexão em torno dos desafios impostos ao exercício pleno da cidadania das pessoas analfabetas ou pouco escolarizadas, no Brasil e no mundo. A aposta na pesquisa, na construção compartilhada de saberes e na diversidade de estratégias de defesa da democracia como alicerce do desenvolvimento humano e social é a expressão fiel dos objetivos desta série. Buscamos em diferentes olhares e experiências o fortalecimento do diálogo e a ampliação das possibilidades de análise das temáticas indicadas, pois ao propor “discutir” pretendemos expandir a abordagem sem as facilitações da síntese ou do pensamento único. Para inaugurar esta proposta, trazemos para o centro da discussão a Educação em prisões. A escolha do tema na inauguração da série está diretamente ligada ao amadurecimento da visão da educação como direito humano, e como implicação desta identificação nos juntamos a três Organizações, parceiras na tessitura de um painel abrangente de posições, experiências e vias de aprofundamento da análise da situação educacional dos presos e presas brasileiros. Desta forma, AlfaSol, Ação Educativa, Instituto Paulo Freire e Ilanud apresentam uma proposta bastante ousada de construção coletiva, na qual o processo é parte intrínseca da aposta na equidade: a indicação 5 dos subtemas é produto de oficina organizada no Fórum Social Mundial 2009; a indicação dos autores abrange pesquisadores, militantes dos direitos humanos, educadores, profissionais, presos e egressos do sistema prisional brasileiro; a organização dos relatos e costura das participações envolveu as quatro instituições. Ao somar vozes, pretendemos consolidar a defesa dos direitos humanos desta população e expandir as ações direcionadas ao estabelecimento de um fórum permanente de debate baseado na democracia e defesa da cidadania de todos e todas. Esta obra é fruto da dedicação de muitos atores: agradeço especialmente à Ação Educativa, Instituto Paulo Freire e Ilanud, que compartilharam de forma igualmente intensa o compromisso assumido, aos autores que se dispuseram a fortalecer a democracia com a veracidade de seus relatos, a Flávia Landgraf e à equipe de Avaliação da AlfaSol, que realizaram a transcrição do áudio da oficina realizada no Fórum Social Mundial 2009, e a todos que se envolveram direta ou indiretamente nas diferentes etapas de elaboração deste mosaico. Considerem aberto o debate! Regina Célia Esteves de Siqueira Superintendente executiva da AlfaSol 6 SUMÁRIO 9. INTRODUÇÃO 19. RESPONSABILIDADE SOBRE A EDUCAÇÃO EM PRISÕES 21. Para início de conversa: A sociedade civil e a educação na prisão Mariângela Graciano 24. O papel (ou responsabilidade) da sociedade civil na garantia dos direitos educativos das pessoas encarceradas – Francisco Scarfó 28. Responsabilidade sobre a educação nas prisões: Estado e sociedade civil Delzair Amâncio da Silva 31. A educação liberta da subserviência – Vagner Paulo da Silva 33. Comentário: A sociedade civil caminha no fio da navalha em relação à educação de pessoas encarceradas – Marcos José Pereira da Silva 37. EDUCAÇÃO COMO DIREITO HUMANO 39. Para início de conversa: Educação como direito humano Ednéia Gonçalves 41. A educação como direito – Moacir Gadotti 45. Há perspectiva de humanização das prisões? – Roberto da Silva 48. Educação como direito humano: um olhar de dentro – C. R. 52. Comentário: Educação nas prisões: entre o nada e a oferta de “qualquer coisa” – Denise Carreira 57. ESPECIFICIDADE DE GÊNERO: EDUCAÇÃO DE MULHERES PRESAS 59. Para início de conversa: As mulheres e a educação nas prisões Mariângela Graciano 62. Educação nas prisões – Maria da Penha Risola Dias 65. Dignidade humana, educação e mulheres encarceradas Sonia Regina Arrojo Drigo 68. Mulher, educação, prisão – Rosana da Conceição Souza Pontes Leite 71. Educação de mulheres presas: o olhar de uma egressa – B. B. 74. Comentário: Mulheres encarceradas e o direito à educação: entre iniquidades e resistências – Alessandra Teixeira 79. EDUCAÇÃO E SEGURANÇA 81. Para início de conversa: Prisão e educação – lógicas incompatíveis? Aline Yamamoto 83. Segurança versus educação – Maurílio de Souza Firmino 84. Educação ou punição – Rowayne Soares Ramos 86. Educação nas prisões – Manoel Rodrigues Português 91. A educação no contexto do cárcere – Marizangela Pereira de Lima 94. Comentário: Educação e segurança nas prisões Fabio Costa Morais Sá e Silva 99. EDUCAÇÃO FORMAL E NÃO FORMAL 101. Para início de conversa: O que há de educação em prisões? A educação formal e não formal – Raiane Assumpção 103. Educação formal e não formal no cárcere: questões anteriores e possíveis caminhos – Mário Miranda Neto 109. Reflexões em torno da educação escolar em espaços de privação de liberdade – Elenice Maria Cammarosano Onofre 112. Educação nas prisões: mais do que reconhecer, é necessário efetivar esse direito com qualidade – Juraci Antonio de Oliveira e Felipe Athayde Lins de Melo 117. A experiência do projeto “Quem somos nós?”: educação não formal em unidades prisionais femininas da cidade de São Paulo Fernanda Cazelli Buckeridge 119. Comentário: Os desafios da educação escolar e não escolar nas prisões Sérgio Haddad 123. SOBRE OS AUTORES INTRODUÇÃO CEREJA discute Educação das pessoas encarceradas: um direito humano pouco garantido A educação é um direito humano reconhecido pela Constituição e ratificado por documentos internacionais assinados pelo governo brasileiro. No entanto, a garantia de acesso à educação ainda não é assegurada a todas e todos, sobretudo se olharmos para uma das parcelas mais excluídas da sociedade: as pessoas encarceradas. Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) de junho de 2009 apontam que a população carcerária brasileira está perto de 470 mil pessoas, dentre homens e mulheres. Ao observar as informações sobre essa população, percebe-se que o encarceramento faz parte de um processo de exclusão anterior, que passa pela falta do acesso à educação formal: 66% das pessoas presas não chegaram a completar o ensino fundamental, sendo que, destas, 11,8% são analfabetas. Ainda que a Lei de Execuções Penais reconheça o direito das pessoas encarceradas à educação, esta não é uma realidade nos presídios do país. As informações do Depen apontam que apenas 8,4% da população prisional têm acesso a alguma atividade voltada à educação, em que se incluem atividades diversas, que vão da alfabetização e ensino formal, a cursos técnicos e não-formais. O inexpressivo número de pessoas presas que têm acesso à educação esconde outra realidade ainda mais preocupante: não há, hoje, no país, uma normativa que regulamente a educação formal no sistema prisional, o que dá margem para a existência de experiências diversas e não padronizadas que dificultam a certificação, a continuidade dos estudos em casos de transferência e a própria impressão de que o direito à educação para as pessoas presas se restringe apenas à participação em atividades de educação não-formal, como oficinas. 11 CEREJA discute O direito à educação da pessoa privada de liberdade é tratado como um benefício e um privilégio, em total contrariedade ao que dispõe a lei. Partindo desse contexto de precariedade para a garantia de um direito humano, quatro instituições formaram um grupo de trabalho e estudos sobre educação nas prisões, a princípio como parte de um processo maior relacionado a uma conferência internacional sobre o tema, que a Unesco realizaria. Interrompido o processo relacionado à conferência, a Ação Educativa, a AlfaSol, o Instituto Paulo Freire e o Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud) deram continuidade a essa articulação. Em janeiro de 2009 essas instituições, em parceria com outras organizações da sociedade civil, organizaram uma atividade no Fórum Social Mundial para discutir temas relacionados à educação nas prisões. O conteúdo dos debates e o interesse das pessoas motivaram o grupo a dar continuidade às discussões ali realizadas por meio de uma sistematização sobre os temas mais recorrentes nas falas dos debatedores e participantes: educação como direito; educação formal e não-formal; Estado e sociedade civil e sua responsabilidade sobre a educação; educação e especificidades de gênero; e educação e segurança na prisão. Em que se constitui o direito à educação das pessoas presas? Como aliar experiências de educação não-formal dentro das prisões à garantia do acesso à educação formal, com certificação? De que maneira a atuação da sociedade civil pode ser colaborativa com a implementação de práticas educacionais, por parte do Estado, para a população encarcerada? Por que o acesso à educação dentro do ambiente prisional é ainda mais dificultado se pensarmos nas mulheres encarceradas? A educação, de caráter emancipatório, é incompatível com a lógica da segurança e do cerceamento que o espaço prisional estabelece? As questões levantadas na atividade do Fórum Social Mundial e o propósito de disseminar os acúmulos construídos sobre a temática da educação nas prisões fomentaram a organização desta publicação. A proposta é, 12 CEREJA discute sobretudo, divulgar a necessidade de formular políticas para o tema e, num âmbito maior, colaborar para que a população encarcerada tenha garantido o seu direito à educação – um direito de todas e todos. Aline Yamamoto - Ilanud Ednéia Gonçalves - AlfaSol Mariângela Graciano – Ação Educativa Natália Bouças do Lago - Ilanud Raiane Assumpção – Instituto Paulo Freire Instituições organizadoras AlfaSol (Alfabetização Solidária) A AlfaSol é uma organização não-governamental, fundada em 1996 com a missão de contribuir para a redução do analfabetismo e para a ampliação da oferta pública de Educação de Jovens e Adultos no Brasil e no mundo, por meio da articulação de uma rede de parceiros, envolvendo Instituições de Ensino Superior (IES), redes sociais, organizações não-governamentais, empresas, governos (municipais, estaduais e federal) e pessoas físicas. Cinco dimensões da atuação da AlfaSol são determinantes para a efetivação do direito de todos à educação, defendido pela instituição: • Atuação local: Imersão no contexto sociocultural do aluno. • Capacitação de educadores locais: Possibilidade de formação de agentes efetivos de transformação social de longo prazo, advindos da própria comunidade atendida, construindo condições de autossustentabilidade para ações educativas futuras. • Parceria com Instituições de Ensino Superior (IES): União de esforços que possibilita um intenso intercâmbio entre o saber constituído em bases acadêmicas e o conhecimento construído pelos alunos em seu contexto sociocultural. 13 CEREJA discute • Mobilização em torno do direito de jovens e adultos à escolarização contínua e de qualidade: Indicação a gestores da possibilidade concreta de desenvolvimento de ações de ampliação da escolaridade global do município e estado, incluindo a Educação de Jovens e Adultos dentre as prioridades do ensino fundamental e médio. • Avaliação: Desenvolvimento de sistema de avaliação contínua, visando aprimorar o processo de atuação e informar à sociedade, de maneira próxima e sistemática, os resultados do trabalho desenvolvido pela Organização nas comunidades atendidas. Esse processo abarca todas as etapas e aspectos do atendimento. Ação Educativa Fundada em 1994, a Ação Educativa tem por missão atuar pela garantia universal do direito à educação pública de qualidade, a afirmação dos direitos da juventude e a promoção dos direitos de acesso e produção à cultura. Sua atuação é orientada para a busca e fortalecimento da justiça social, democracia participativa e o desenvolvimento sustentável no Brasil. Para realizar essa missão, a Ação Educativa combina diferentes estratégias: ação local e experimentação pedagógica; formação e capacitação de jovens, educadores e outros agentes sociais; fomento a manifestações artísticas e culturais de grupos, articulação e participação em redes e fóruns em âmbito local, nacional e internacional; promoção de campanhas de sensibilização e mobilização; pesquisa e difusão de informações e conhecimentos; promoção de debates e intercâmbio, produção de materiais educativos, assessoria a órgãos públicos, exigibilidade social e jurídica de direitos educativos e da juventude, lobby e advocacy junto aos poderes executivo, legislativo e judiciário. 14 CEREJA discute A opção por combinar essas diversas estratégias constitui a própria identidade da Ação Educativa. Reunir os diferentes, promover o diálogo e a colaboração é a principal marca do estilo de atuação da entidade. A Ação Educativa procura também, de forma sistemática, integrar a intervenção nas áreas da educação, juventude e cultura a um campo mais amplo de organizações da sociedade civil e movimentos sociais que atuam em defesa dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Instituto Paulo Freire O Instituto Paulo Freire (IPF) é uma organização social sem fins lucrativos, criada em 1991 e fundada oficialmente em 1º de setembro de 1992. Está sediado no Brasil, mas articulado com uma rede internacional de pessoas e instituições distribuídas em mais de 90 países e em todos os continentes. A finalidade do IPF é dar continuidade e reinventar o legado de Paulo Freire. Esse propósito tem sido realizado por meio de pesquisas, promoção de espaços de reflexão e socialização (fóruns, seminários, encontros, dentre outros), formação, acompanhamento, sistematização e gestão compartilhada de planos, programas e projetos nos campos da educação, da cultura e da comunicação. O objetivo do IPF é contribuir para a efetiva transformação social, na perspectiva da autonomia dos sujeitos e da radicalidade da democracia política, econômica, social e cultural. Para construir essa mudança é necessário fazer uma “leitura” do mundo, analisar e interpretar os limites e as potencialidades, a correlação de forças históricas e políticas, para dar o passo necessário e possível. Para o desenvolvimento das ações, as equipes do IPF partem do referencial teórico-metodológico freiriano e do contexto social e histórico em que atuam. A concepção de ser humano de Freire permeia toda a práxis – 15 CEREJA discute interpretado como ser inacabado, incompleto e inconcluso, mas com uma vocação ontológica de desenvolver-se na plenitude de suas potencialidades. A compreensão desta constante reformulação dos sujeitos como seres históricos potencializa o seu poder de transformar a realidade, à medida que interpreta as ações empreendidas nas relações sociais dos diferentes grupos que a constituem. Na dialética de suas relações com o outro, a partir do reconhecimento de similaridades e diferenças, o indivíduo completa-se mediante o processo de socialização. Estes são os motivos pelos quais a metodologia adotada é necessariamente dialógica. Por meio da organização de fóruns de diálogo, concebidos por Freire como Círculos de Cultura, são criados espaços em que se dá o encontro entre os sujeitos do conhecimento. A sustentação da interpretação da realidade como algo mutável, sujeito à reformulação e intervenções, se dá na própria construção do conhecimento — um ensinar e aprender concomitante e coletivo. É nessa realização processual que ocorre a avaliação, o acompanhamento e a intervenção político-pedagógica. Os registros e a sistematização das práticas, das reflexões e proposições têm sido instrumentos operacionalizadores. Fundamentado nesse referencial teórico-metodológico, o IPF realiza ações e desenvolve projetos junto a determinados governos, aos movimentos sociais e ONGs, em que desempenha diversos papéis, tais como: articulação, gestão, formação de formadores, definição de metodologia educativa, análise e redefinição curricular, atuação em campanhas, em fóruns e agendas de mobilização. Ao considerar a educação como um ato político, como afirma Paulo Freire, o IPF busca, por meio de suas ações e dinâmica institucional, atuar junto à formação dos indivíduos, para sua conscientização como agente histórico, fundamentado na práxis, em que ação e reflexão constituem momentos correlacionados para o aprofundamento da consciência crítica e da transformação social. 16 CEREJA discute Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud) O Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud) foi fundado em 1975 e tem sua sede na Costa Rica. Trata-se de um órgão regional que compõe a Rede do Programa de Prevenção do Crime e Justiça Criminal das Nações Unidas, ligada ao Conselho Econômico e Social da ONU. O escritório brasileiro do Ilanud foi criado em 1997 e atua em três grandes áreas: justiça juvenil e sistema socioeducativo, justiça criminal e sistema penitenciário e prevenção da violência e segurança pública. Suas atividades se traduzem em duas formas de atuação: produção de conhecimento (pesquisas, diagnósticos, avaliações) e difusão do conhecimento (atividades de formação, capacitação, publicações etc.). A missão do Ilanud é colaborar para o fortalecimento do Estado de Direito no Brasil, com respeito aos direitos humanos, buscando a preservação da paz e do desenvolvimento social. Nesse sentido, o Ilanud busca promover e apoiar os Estados e a sociedade civil nos seus esforços de prevenção ao crime, efetivação de reformas nos mecanismos de controle social, modernização da legislação e democratização do sistema de administração da justiça. O Instituto orienta suas ações adotando os princípios preconizados pelas Nações Unidas relativos à prevenção ao crime e à violência, ao tratamento do recluso, ao funcionamento da justiça penal e à utilização de armas de fogo — sempre de acordo com os padrões estipulados pelos instrumentos internacionais de proteção à pessoa humana. 17 RESPONSABILIDADE SOBRE A EDUCAÇÃO EM PRISÕES CEREJA discute Para início de conversa A sociedade civil e a educação na prisão Mariângela Graciano O tema da participação da sociedade civil nas práticas educativas desenvolvidas em espaços de privação de liberdade suscitou um interessante debate. De um lado, profissionais da educação apontavam para o risco de o Estado transferir para as organizações sua responsabilidade de ofertar a educação. Mais do que uma questão de princípio, esta ação fragiliza a construção de políticas educacionais do interior das prisões, por serem pontuais e dispersas e destituídas de orientações públicas. Além disso, foi apontado o risco de os gestores substituírem as ações de educação escolar pelas práticas não-escolares que, do ponto de vista econômico, são muito mais “baratas”. De outro lado, representantes de organizações e pessoas da sociedade em geral ponderaram a necessidade de se entender que a educação, quando destinada à formação integral dos indivíduos, extrapola a educação escolar, responsabilidade do Estado. As práticas de profissionalização, arte-educação, formação para e em direitos humanos e tantos outros temas podem e devem ser compartilhadas entre Estado e sociedade civil. Em relação à possível transferência de recursos públicos para organizações privadas por meio dessas ações, foi apontada a necessidade de criação de critérios públicos e transparentes para a celebração de convênios e parcerias, bem como de mecanismos de acompanhamento de sua realização. Aliás, esta observação é válida para toda transferência de recursos públicos para a iniciativa privada relacionada ao sistema prisional. No entanto, há que se considerar outros dois aspectos da participação da sociedade no campo da educação nas prisões. A primeira delas é a sua 21 CEREJA discute reduzida atuação na mobilização pelo reconhecimento do direito à educação das pessoas privadas de liberdade, e pela implementação de políticas que concretizem tal direito. Apenas muito recentemente há registros de ações desta natureza. O alheamento da sociedade também pode ser verificado na sua invisibilidade na produção científica do País. Apenas a partir de 2000 começam a ser produzidas dissertações e teses com foco na educação de pessoas jovens e adultas encarceradas. Por fim, é preciso destacar que a presença da sociedade civil no ambiente prisional é de fundamental importância para exercer o controle social sobre a ação repressora do Estado. Promovendo atividades educativas ou não, as organizações têm a responsabilidade de tornar pública a realidade construída no interior dos muros e celas, buscando contribuir para o respeito aos direitos humanos. Neste contexto de exercício da cidadania por meio da aproximação do ambiente prisional, alguns desafios se impõem. O primeiro deles é a necessária construção de um sistema público de informações sobre o sistema prisional em geral, e da educação nas prisões, em particular. Sem dados abrangentes e confiáveis, é impossível tanto a formulação de políticas públicas quanto o monitoramento das ações do Estado. Há também que se estabelecer mecanismos institucionais para a denúncia de violações de direitos identificadas por educadoras e educadores, sejam vinculados ou não a organizações da sociedade civil. O maior e mais estimulante desafio colocado à sociedade civil, no entanto, talvez seja o de sensibilizar a própria sociedade sobre os direitos educativos das pessoas encarceradas, e a necessária ação do Estado para garanti-los. Alguns autores explicam a insensibilidade social para com as horríveis condições das prisões brasileiras em razão da classe social da população carcerária – são pessoas pobres, em sua maioria negras e homens. 22 CEREJA discute De acordo com estes autores, durante a ditadura militar, quando os filhos e filhas da classe média experimentaram o tratamento do cárcere sob a denominação de “presos políticos”, houve mobilização social. Os maus tratos a essas pessoas indignaram e continuam indignando a sociedade brasileira. A mesma solidariedade, no entanto, não se estende aos presos e presas chamados “comuns”. E as pessoas que ousam contestar o tratamento indigno que lhes é dispensado são, depreciativamente, chamadas de “defensoras de bandidos”. Neste contexto, a mobilização pela educação nas prisões é, sem dúvida, também uma necessária atuação em defesa dos direitos humanos – tarefa de todas as pessoas. 23 CEREJA discute O papel (ou responsabilidade) da sociedade civil na garantia dos direitos educativos das pessoas encarceradas Francisco Scarfó A educação nas prisões, como um direito humano, exige um conjunto de ações, tanto no âmbito do Estado como da sociedade civil, para que se concretize plenamente e esteja ao alcance de todas as pessoas presas. Sabemos que a prisão é, por definição, um ambiente hostil para garantir devidamente os direitos, e o acesso à educação não está livre dessa situação restritiva. Neste cenário, há responsabilidades e funções de protagonismo a serem desenvolvidas pelo Estado e pela sociedade civil para garantir o direito à educação. Cabe lembrar que o Estado, em relação a qualquer direito humano, tem a obrigação de realizar ações para promover, garantir, respeitar e proteger tais direitos. Isto ocorre por meio de políticas integradas e intersetoriais que favoreçam o gozo dos direitos e, quando isso não acontecer, deve promover políticas que revertam a realidade. Ocorre, no entanto, que muitas vezes o Estado não possui no interior de sua estrutura os mecanismos e, às vezes, a normativa que regula e reforça o gozo do direito, ainda mais quando se trata de privação de liberdade. A prisão não costuma estar presente na agenda pública do Estado, tampouco a garantia de direitos nesse contexto, dentre os quais o da educação. Por sua vez, apesar de a maioria dos órgãos públicos de controle das prisões considerar o tema da educação, às vezes há problemas mais urgentes ou violações de direitos humanos, como tortura ou superlotação, que adiam, em alguma medida, o tratamento específico ou a análise da situação educacional. Assim, poderíamos dizer que uma das primeiras ideias que surgem a respeito do papel que a sociedade civil pode desempenhar é o de procurar colocar em foco, na agenda pública, a questão da educação nas prisões. 24 CEREJA discute Isto leva a uma série de estratégias integrais e intersetoriais, de curto, médio e longo prazos, que vão desde pesquisa, produção de relatórios, visitas, projetos educativos, publicações, participação nos meios de comunicação, bem como na academia, dentre outras coisas, que chamem a atenção tanto do Estado como da sociedade em geral sobre o valor da educação nas prisões. Com o objetivo de evidenciar a situação da educação, o papel da sociedade civil em relação ao direito à educação, tem, a meu ver, duas linhas de ação concretas: promoção e monitoramento. A promoção inclui ações de intervenção que levam ao fortalecimento da educação pública nas prisões e não a uma competição entre ONGs e escolas públicas. Lembremos que o direito à educação é uma obrigação do Estado, que deve garanti-lo pelo sistema de educação formal. Neste ponto, a sociedade civil pode dar muitas ideias e realizar ações de educação não-formal, que façam com que as pessoas presas tenham acesso a conhecimentos e experiências de formação enriquecedoras, que muitas vezes a educação formal, por sua estrutura e lógica escolarizante, não faz. Acontece que muitas vezes o Estado substitui sua responsabilidade de oferecer educação formal pelo trabalho de uma ONG (geralmente programas de alfabetização ou similar) para reduzir seus custos na hora de garantir o direito. Neste sentido, é essencial que exista uma lei que estabeleça as responsabilidades do Estado e da sociedade civil organizada. Isto para que se possa exigir, tanto de uma como de outra parte, o cumprimento dessa responsabilidade assumida referente ao direito à educação nas prisões. Isto deve ser alcançado através de acordos, protocolos etc. que coloquem em evidência os compromissos assumidos, os modos de atuação, e que, definitivamente, torne seu cumprimento exigível judicialmente. Em relação ao monitoramento, no âmbito do Protocolo Facultativo contra a Tortura das Nações Unidas (aprovada em 2002), há um espaço bem concreto de participação e missão da sociedade civil em termos de 25 CEREJA discute monitoramento (controle) das prisões e garantia de direitos. Nesse sentido, é fundamental que as organizações da sociedade civil envolvidas com a educação na prisão possam desenhar ações que destacam a situação da educação nas prisões e até se possa pensar numa judicialização do pedido de acesso e fruição do direito. Neste aspecto, é fundamental ter em vista os avanços legislativos que tornem o direito judicializável. Certamente, não existem protocolos, decisões ou mecanismos judiciais claros que permitam a queixa ante a restrição ou violação do direito à educação nas prisões. Não se pode esquecer que o Estado também deve facilitar o acesso à justiça e, neste ponto, é essencial reconhecer a existência de mecanismos de reivindicação ágeis e que estejam à disposição para que as pessoas presas possam exigir seus direitos — e é aí que a sociedade civil pode ser protagonista de uma ação de acompanhamento e assessoramento perante a queixa. Além disso, pode-se pensar em obter compromissos públicos não só do executivo, mas também do poder legislativo e judiciário para o desenvolvimento e fortalecimento do direito à educação nas prisões. Será tarefa da sociedade civil organizar, conjuntamente com agências de fiscalização, ações legais e judiciais mais pertinentes para cobrir esta lacuna, ou, na sua falta, fortalecê-la. Outro aspecto que se soma aos dois anteriores é o trabalho em rede, isto é, um trabalho com outras organizações para uma ação mais robusta e de impacto contra as paredes que caracterizam a prisão. Assim, o Estado deve estar convencido do valor da sociedade civil para participar de um trabalho conjunto ou complementar que permita trocar informações ou avaliar o progresso da educação nas prisões. Isso impulsiona um amplo e democrático acesso à informação, bem como um marco normativo específico que regulamente a participação. Acredita-se, com isso, que a situação educativa, escolar e não-escolar, melhoraria se contasse com um sistema de informação pública que permitisse orientar 26 CEREJA discute não só as decisões que concretizam a política pública e penitenciária para o direito à educação nas prisões, mas que também permitisse à sociedade civil atuar de maneira complementar e reforçar as medidas tomadas pelos Estados, seja na perspectiva de monitoramento e de promoção do direito. Portanto, dadas as dificuldades em garantir o direito à educação nas prisões, a sociedade civil pode contribuir muito em termos de vigilância, promoção; de alguma forma, sua ação terá um impacto positivo sobre a educação que o Estado promove (pouco ou muito), mas também levará a abrir a prisão, tornando-a mais democrática, mais humana. 27 CEREJA discute Responsabilidade sobre a educação nas prisões: Estado e sociedade civil Delzair Amâncio da Silva “Art.205 – CF de 1988: A educação, direito de todos e dever do Estado (...), será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” A sociedade, decerto, é potencialmente a sociedade civil organizada: sindicatos, igrejas, associações, comissão de direitos humanos, ONGs etc. A educação como processo de reconstituição da experiência é atributo da pessoa humana e, por isso, tem que ser comum a todos, incluindo pessoas encarceradas. Nesse processo, a sociedade civil torna-se corresponsável. Nada mais coerente. O Estado é um dos grandes responsáveis, senão o maior deles, por toda deformação da pessoa que deságua no crime. O direito à educação de pessoas presas está assegurado em normas nacionais e internacionais. A realidade, porém, demonstra que ainda há um longo caminho a ser percorrido. No Brasil, apenas 18% dessas pessoas estudam. “Não diria que o sistema está falido, o qualifico como caótico... 80% não trabalham e 82% não estudam...” (deputado Domingos Dutra, em: http:// notícias.uol.com.br, de 19/12/2008). Desigualdades econômicas e sociais, ausência de oferta de uma educação de qualidade e ineficiência de políticas públicas colaboram para uma desenfreada produção em série dessa população. A desigualdade tem sido marca da diversidade brasileira. O país chega ao século XXI com grandes déficits na alfabetização e na Educaçao de Jovens e Adultos (EJA). Conforme dados do Pnad (2006): a) o IBGE registrou 14,4 milhões de analfabetos com 15 anos ou mais: no Nordeste (20,7%), Norte (11,3%), Centro-Oeste (8,3%), Sudeste (6,0%) e Sul (5,7%); b) desses analfa- 28 CEREJA discute betos, 69,4% eram negros; e c) 22,2% de analfabetismo funcional de 15 anos ou mais. Em termos absolutos, 30,5 milhões: no Sul e Sudeste a taxa era de 16,5%, Nordeste (34,4%), Norte (25,6%) e Centro-Oeste (20%) (DocumentoBase Nacional Preparatório à VI Confintea, 20, 2008, Brasília). São indicadores de uma população com baixa escolaridade. Para ela, os piores postos de trabalho, as piores condições de moradia e saúde, quando existem. São as principais vítimas de violências múltiplas. Este é o mesmo perfil de pessoas que superlotam as prisões brasileiras. Tal cenário exige esforços dos gestores públicos, educadores e sociedade civil para garantia da oferta educacional adequada às especificidades de cada público. Produção e efetivação de políticas para a educação nas prisões é responsabilidade de governos. Os fóruns de EJA, os movimentos ligados aos direitos humanos, de mulheres, de afro-descendentes, dentre outros, exercem papel inquestionável na proposição de diálogo e na construção de alternativas que resultem em políticas públicas destinadas aos excluídos. Todavia, o diagnóstico da realidade das prisões demonstra desarticulação entre as ações governamentais (MEC, MJ, SEE, dentre outras esferas de governo) e ausência da sociedade civil, o que dificulta o desenvolvimento de políticas públicas eficientes para a educação desses sujeitos. Diante dos desafios enunciados, é imprescindível que a educação nas prisões se integre a um sistema nacional de educação, capaz de garantir o acesso, a permanência, a conclusão e a qualidade de ensino compatível com a demanda. Quanto aos recursos humanos, ainda há um grande desafio. Destacase a importância de reconhecer a necessidade de profissionais habilitados e concursados em quantidade suficiente com garantia de formação inicial e continuada. Não só para educadores, mas para todos que direta ou indiretamente atuam no atendimento a esses sujeitos. Discutir educação nas prisões exige ainda, rever recursos orçamentários e financeiros, destinados ao sistema público com controle social e passível de prestação de contas à União e a tribunais de contas. 29 CEREJA discute O compartilhamento de ações contribui, decisivamente, para o cumprimento do direito à educação de qualidade e a sua oferta efetiva aos sujeitos que a demandam. Ao Estado compete: a) assegurar a ampliação do direito à educação básica pública, gratuita e de qualidade na modalidade EJA, integrada à formação profissional, preferencialmente; b) ampliar mecanismos de divulgação e conscientização do direito à Educação de Jovens e Adultos nas prisões; c) programar ações afirmativas de geração de trabalho e renda que contribuam para a superação da desigualdade socioeconômica dos educandos; d) garantir a certificação dos educandos, estimulando que o Conselho Nacional de Educação aprove parecer que trate a temática. À sociedade civil compete: a) propor políticas de acesso e permanência nos três segmentos da EJA com perspectivas de qualificação para o trabalho e ingresso à universidade pública e gratuita, incluindo, também, possibilidades de práticas alternativas de ensino e aprendizagem; b) fiscalizar com rigidez a oferta de cursos de curta duração e a distribuição de certificados sem efetividade e qualidade; c) participar na construção, monitoramento e controle social das políticas públicas para a educação nas prisões em todos os níveis de governo, além de propor soluções para irregularidades verificadas; d) fortalecer a participação das famílias e estimular a criação de grupos de apoio. Portanto, Estado e sociedade civil têm o dever de proporcionar oportunidades para o exercício digno da liberdade. O Estado existe para garantir o acesso de todos aos serviços essenciais. Sendo a educação elemento fundamental do processo de construção da cidadania, sua tarefa e o seu projeto político não podem ser contrários a isso, tampouco deixá-la à revelia. 30 CEREJA discute A educação liberta da subserviência Vagner Paulo da Silva De acordo com Foucault (1987), a prisão também se fundamenta pelo papel de “aparelho para transformar os indivíduos”. Quando lemos esta citação de Foucault, percebemos o grande abismo entre ela e a realidade. Minha experiência de trabalho em penitenciárias femininas e masculina só ratifica este abismo. Quando iniciei com o projeto de incentivo à leitura como ferramenta de inclusão social, deparei com uma situação inusitada: todas as atividades de cunho educacional eram praticadas como obrigações ou como forma de obter algum benefício jurídico, sem que houvesse prazer na sua execução. Com o andamento do projeto, observei que todas as atividades desenvolvidas em caráter não-oficial (yoga, teatro, dança, oficinas de escritas e palestras), tinham uma grande adesão por parte das reeducandas, sendo que era visível a apropriação da proposta. Percebi neste caminho que ações educacionais formais ou não formais têm um grande resultado quando utilizadas de uma forma em que se faça ouvir a voz dos agentes participantes. O exercício de reflexão e questionamento só colabora com este crescimento. Acredito que o desenvolvimento de atividades que privilegiem a educação e a cultura tenham grandes resultados quando vistas como instrumento de reflexão, mudança e provocação. Todas estas atividades, em uma sociedade que prima pelo imediatismo, infelizmente parecem não mostrar resultados, mas quando olhadas sem imediatismo, encontramos um manancial de desenvolvimento e mudanças, que pode e deve diminuir este abismo da realidade carcerária brasileira. Ao olharmos hoje para nossas prisões, provavelmente vemos o resultado de vários anos de desmando, autoritarismo, desigualdades sociais, 31 CEREJA discute corrupção, impunidade, descaso com a educação e com problemas e políticas de saúde tratados através de políticas de segurança pública. Para revertermos ou minimizarmos essa situação é preciso mostrar às pessoas envolvidas a importância da educação como ferramenta de mudanças profundas, a partir das quais possamos olhar para esta ferida e tocá-la, até expurgar seu pus. Será esta a maneira para cicatrizar e começar um tratamento onde uma parte não comprometa o todo? É olhar para a educação como a chave que abre as portas da liberdade. 32 CEREJA discute Comentário A sociedade civil caminha no fio da navalha em relação à educação de pessoas encarceradas Marcos José Pereira da Silva Os papéis de grupos e pessoas que desenvolvem práticas educativas em espaços de privação de liberdade não são definidos previamente. Diferentes perspectivas adotadas por estes sujeitos orientam sua atuação nesse espaço e dão forma e conteúdo ao papel por eles desempenhado, e precisam ser bastante debatidas. Vejamos. Primeiro, o papel da sociedade civil deve ser compreendido a partir da relação que estabelece com o que compete ao Estado em relação à política pública de educação. O Estado desempenha um papel insubstituível e fundamental para efetivação da educação, pois somente ele pode assegurar o cumprimento ou exercício do direito à educação de modo universal para todas as pessoas e garantir dotação orçamentária própria oriunda dos impostos arrecadados de contribuintes. É preciso considerar também que as práticas educativas da sociedade civil em relação à educação e, em especial, nos espaços de privação de liberdade, precisam ser tratadas na lógica da construção de políticas públicas de qualidade, as quais abordem a questão das desigualdades social, econômica e política e das discriminações etnicorraciais e de gênero, flagrantemente observadas junto à população encarcerada. A presença necessária da sociedade civil no ambiente prisional pode facilitar o controle social sobre a ação do Estado na promoção da educação de qualidade para as pessoas encarceradas. Frente ao dilema da ação educativa direta ou ação em defesa de direitos, a sociedade civil consegue superá-lo quando articula as duas ações. Deste modo, o papel da sociedade civil adquire 33 CEREJA discute uma dimensão maior, mesmo circunscrito ao pequeno espaço de intervenção de uma prática educativa específica, como observado em algumas experiências que consideram as estratégias de emancipação e liberdade das pessoas encarceradas, por exemplo, na Pastoral Carcerária e Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Esta presença nos espaços do cárcere é fundamental para o desenvolvimento de uma educação, seja ela no ensino escolar ou não. O fundamental é que a educação vivenciada tenha como referência as pessoas detidas e as suas estratégias de superação daquela condição. A compreensão deste tipo de educação ajuda-nos a sair do falso dilema entre papel da sociedade civil versus papel do Estado. O mais adequado é falarmos de processos de educação política, seja como práticas de grupos que intervêm no ambiente prisional e disputam a orientação sobre o Estado, seja como ações educativas a partir do próprio Estado. Estes processos de educação política influenciam o Estado e as redes de sujeitos sociais excluídos e encarcerados e organizações que apoiam suas estratégias de sobrevivência e superação das violações aos direitos humanos. Esta educação é compreendida como ação de reflexão educacional, cultural, exercitada política e historicamente em contextos econômicos, políticos, culturais e sociais específicos. Por isso estamos falando de uma educação que associa processos educativos a estratégias políticas e sociais das classes subalternas. É necessariamente educação política como prática de educação popular. A mesma exclusão e carência de educação de qualidade são vivenciadas fora dos espaços da prisão. Há uma relação entre a exclusão vivida por pessoas com a mesma origem dentro ou fora da prisão. É no mínimo temerário falar que a sociedade civil desenvolve práticas educativas mais enriquecedoras ou de formação integral porque trabalha com conteúdos reflexivos, vivências e aspectos culturais que levam as pessoas encarceradas a problematizar sobre seu papel, construir autoestima etc. Se a sociedade civil estiver articulada na construção de uma educação política, 34 CEREJA discute provavelmente desempenhará um papel fundamental na transformação da vida das pessoas privadas de liberdade, do sistema carcerário e da política de segurança pública. Outra afirmação comum é que o Estado desenvolve nestes espaços educação bancária, que reproduz a dominação porque é mais rígida e tem um currículo predeterminado. As políticas de educação na prisão não precisam ser descontextualizadas nem alijadas das estratégias dos encarcerados, das pessoas e organizações que apostam em sua transformação. A escola de qualidade para as classes populares é a que permite integração com o conhecimento produzido pela humanidade e ajuda-os a exercerem a crítica autônoma frente ao que veem e vivem. O conhecimento científico não é por si só um reforço à desigualdade nem uma solução mágica para superação das desigualdades e discriminações. O problema do financiamento também fica menor se olharmos menos para a falta ou destinação de recursos para práticas educativas escolarizadas ou não escolares. O mesmo direito à educação escolar de qualidade deve orientar a conquista do estudo das artes, do desenvolvimento do corpo e da expressão corporal, enfim, do que é chamado de arte-educação. O Estado que mantém as pessoas não encarceradas apartadas de atividades culturais, esportivas, artísticas também as mantém longe da educação de qualidade. As periferias são a continuidade dos presídios, e os presídios são a continuidade das periferias. Uma das diferenças fundamentais é apenas que uma tem grades e trancas e a outra está lutando para romper as trancas e prisões que negam políticas públicas para o desenvolvimento do ser humano e da sociedade sustentável. A exclusão é a mesma. O Estado também desenvolve políticas públicas na tentativa de superar esta situação. Quero dizer que há várias estratégias políticas recortando e dando forma ao Estado, não monolítico e passível de ser disputado sempre. A atuação da sociedade civil nas prisões algumas vezes ocorre por meio de parcerias com o poder público, envolvendo transferência de recursos. 35 CEREJA discute A sociedade civil não pode deixar de debater sobre as formas de acesso aos recursos públicos necessários para a construção das políticas públicas de qualidade, inclusive para seu monitoramento e avaliação. As ONGs e movimentos sociais em várias redes, como a Associação Brasileira de ONGs (Abong), têm assumido uma postura de diálogo para que o Estado adote critérios transparentes na contratação de seus serviços; a criação de fundos públicos geridos de modo paritário pela sociedade e Estado tem aparecido como uma possibilidade. Há muitos editais abertos para repasse de recursos públicos. As ONGs e movimentos assumem o desafio de realizar uma boa gestão dos contratos, convênios e termos de parceria a eles confiados. A sociedade civil caminha no fio da navalha, basicamente, por dois motivos. Se age apenas no pontual, sem incorporar as estratégias dos sujeitos sociais e políticos com os quais se relaciona no fazer educativo, pode legitimar violações de direitos. Se impõe a si o papel de realizadora da educação escolar, não consegue implementar um sistema de educação com a qualidade e escala necessárias de um sistema público de educação. Mas, também, se recusa atuar nos espaços de privação de liberdade, temendo, com sua ação, legitimar práticas institucionais de violação de direitos, abdica da possibilidade transformar o conhecimento da realidade em subsídio para a intervenção social. Dada a especificidade do ambiente, ao pensar a educação no cárcere, parece mais apropriado falar de educação política, no sentido de uma educação que vise a emancipação das pessoas, implementada pelo Estado e pela sociedade civil. 36 EDUCAÇÃO COMO DIREITO HUMANO CEREJA discute Para início de conversa Educação como direito humano Ednéia Gonçalves “Toda pessoa tem direito à instrução (...). A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais.” Declaração Universal dos Direitos Humanos – Artigo 26 O reconhecimento da educação como um direito humano implica diretamente na análise das condições de garantia de seu exercício ao longo da vida de todos e todas, independentemente do contexto ou ambiente em que se inserem. A consolidar esta ideia, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) reconhece e se apropria positivamente da diversidade de percursos no processo de ensino e aprendizagem das pessoas jovens e adultas, impondo aos educadores da modalidade o desafio do atendimento às necessidades básicas de aprendizagem de um público caracterizado pela riqueza da diferença. A transposição da premissa da equidade para o âmbito da oferta pública de EJA encontra desafios imensos, que vão da superação da educação compensatória que identifica a EJA como o ambiente de “correção do descompasso” da história escolar dos sujeitos, à exigência de educação de qualidade para todos por toda vida (inclusive nas prisões), segundo a qual o reconhecimento da cidadania de presos e presas é o ponto de partida para a defesa de seus direitos educativos: “As pessoas presas devem gozar dos direitos assim como os cidadãos e cidadãs que não são privados de liberdade – exceto pela liberdade de ir e vir” (Francisco Scarfó). A consolidação de uma proposta consistente de educação em prisões exige aprofundamento na compreensão das bases em que se sustenta 39 CEREJA discute e se relaciona a lógica da educação e da segurança dentro e fora das instituições penais. Os sistemas penitenciários organizam-se, tradicionalmente, em torno dos imperativos da punição/proteção da sociedade e trabalho/reabilitação, construindo para tanto uma estrutura de funcionamento fundada basicamente na privação da liberdade. Neste ambiente, a oferta de EJA em todos os níveis de ensino é uma realidade distante e normalmente descolada das demandas gerais da sociedade por educação de qualidade e na contramão do reconhecimento de todos os jovens e adultos como sujeitos de aprendizagem. Incluir presos e presas no grupo de “todos” é também reconhecer que a educação em prisões não é educação de prisioneiro (Marc De Maeyer, 2006), “mas a educação permanente de todos aqueles que têm alguma ligação com a prisão (...)”, o que nos leva a incluir no rol das demandas educativas a formação permanente de profissionais, as condições de infraestrutura nos ambientes destinados à educação (dentre eles a oferta de materiais, inclusive de incentivo à leitura) e a organização dos “tempos” com o estabelecimento de rotina adequada ao projeto que se apresenta. Sobretudo a interlocução entre o sistema educacional e de justiça deve prever e favorecer a oferta contínua de educação em todos os níveis, com todas suas implicações organizacionais e formativas. A diversidade de experiências desenvolvidas nos Estados brasileiros demonstra que é longo o caminho a ser percorrido – da visão da educação em prisões como “programa de reabilitação” até a apropriação da educação como exercício de direito, não privilégio, e no Brasil passa pela defesa da remição da pena pelo estudo e pela retomada das discussões iniciadas por MEC, Ministério da Justiça e sociedade civil, no âmbito das “Diretrizes Nacionais para a Educação em Prisões”. Este pode ser um caminho concreto em direção ao fortalecimento do ideal de todos que, dentro ou fora das prisões, lutam por sua humanização. 40 CEREJA discute A educação como direito Moacir Gadotti Parece-me fundamental que, na perspectiva da conquista do direito à educação “para todos”, sejam incluídas as pessoas privadas de liberdade. Negar-lhes esse direito é negar-lhes a possibilidade de se reintegrarem à vida social. Quando falamos de educação, já não discutimos se ela é ou não necessária. Parece óbvio, para todos, que ela é necessária para a conquista da liberdade de cada um e o seu exercício da cidadania, para o trabalho, para tornar as pessoas mais autônomas e mais felizes. A educação é necessária para a sobrevivência do ser humano. Para que ele não precise inventar tudo de novo, necessita apropriar-se da cultura, do que a humanidade já produziu. Se isso era importante no passado, hoje é ainda mais decisivo, numa sociedade baseada no conhecimento. O direito à educação é reconhecido no artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos como direito de todos ao “desenvolvimento pleno da personalidade humana” e para fortalecer o “respeito aos direitos e liberdades fundamentais”. A conquista deste direito depende do acesso generalizado à educação básica, mas o direito à educação não se esgota com o acesso, a permanência e a conclusão desse nível de ensino: ele pressupõe as condições para continuar o estudo em outros níveis. O direito à educação não se limita às crianças e jovens. A partir desse conceito devemos falar também de um direito associado, o direito à educação permanente, em condições de equidade e igualdade para todos e todas. Como tal, deve ser intercultural, para garantia da integralidade e a intersetorialidade. Esse direito deve ser assegurado pelo Estado, que estabelece prioridade à atenção dos grupos sociais mais vulneráveis. Para o exercício desse direito o Estado precisa aproveitar o potencial da sociedade civil na formulação de políticas públicas de educação e promover o desenvolvimento 41 CEREJA discute de sistemas solidários de educação, centrados na cooperação e na inclusão. Como afirma István Mészáros (2005:65), “o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente”. Para ele, é preciso desenvolver novas formas de educação que recuperem o sentido mesmo da educação, que é conhecer-se a si mesmo e ser melhor como ser humano, aprendendo por diferentes meios, formais e não-formais. O neoliberalismo concebe a educação como uma mercadoria, reduzindo nossas identidades às de meros consumidores, desprezando o espaço público e a dimensão humanista da educação. O núcleo central dessa concepção é a negação do sonho e da utopia, não só a negação ao direito à educação integral. Por isso, devemos entender esse direito como direito à educação emancipadora. Este tem sido, por exemplo, o esforço desenvolvido pelo Fórum Mundial de Educação (FME). Opondo-se ao paradigma neoliberal, o FME propõe uma educação para um outro mundo possível (Gadotti, 2007), que é uma educação para o sonho e para a esperança. Para defender suas proposições, o FME pretende congregar cada vez mais pessoas e organizações em torno de uma plataforma mundial de lutas em defesa do direito à educação emancipadora, contra a mercantilização da educação. O direito à educação não pode ser desvinculado dos direitos sociais. Os direitos humanos são todos interdependentes. Não podemos defender o direito à educação sem associá-lo aos outros direitos. A educação que o FME defende não está separada de um projeto social, da ética e dos valores da diversidade e da pluralidade (Moncada, 2008). Em Nairobi (Quênia), em janeiro de 2007, foi aprovada a “Plataforma Mundial de Educação”, com um calendário mundial de ações coletivas globais por uma alternativa ao projeto neoliberal, que inclui “lutar pela universalização do direito à educação pública com todas e todos os habitantes do planeta, como direito social e humano de 42 CEREJA discute aprender, indissociável de outros direitos, e como dever do estado, vinculando a luta pela educação à agenda de lutas de todos os movimentos e organismos envolvidos na construção do processo do Fórum Social de Educação (FSE) e do Fórum Municipal de Educação (FMS)”. Na ocasião, o FME adotou como método de trabalho cruzar essa plataforma com a agenda de lutas de outros movimentos e organizações da sociedade civil. Faço questão de me reportar aqui a um dos maiores estudiosos atuais da questão do direito à educação: Agostinho dos Reis Monteiro (1999). Para ele, o direito à educação “é um direito prioritário porque é o direito mais fundamental para a vida humana com dignidade, liberdade, igualdade, criatividade” (In: FME, 2007:129). Ele distingue educação e direito à educação. Para ele a educação é fundamentalmente uma forma de poder: “A educação é mesmo o maior dos poderes do homem sobre o homem (…). O direito à educação é um direito novo a uma educação nova, com educadores novos e em escolas novas... direito a toda a educação, isto é, a todos os níveis e formas de educação, segundo as capacidades e interesses individuais e tendo em conta as possibilidades e necessidades sociais (…), e a uma educação que proporciona todas as aprendizagens necessárias ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, com suas dimensões afetiva, ética, estética, intelectual, profissional, cívica, por meio de métodos que respeitam a dignidade e todos os direitos dos educandos” (In: FME, 2007:126-127). Ao estabelecermos como prioridade de atendimento do direito à educação os grupos sociais mais vulneráveis, devemos incluir aí as pessoas analfabetas e também as privadas de liberdade. O analfabetismo representa a negação de um direito fundamental. Não atender ao adulto analfabeto é negar duas vezes o direito à educação: primeiro na chamada idade própria e, depois, na idade adulta. Não há justificativa ética nem jurídica para excluir os analfabetos do direito de ter acesso à educação básica. No Brasil temos quase meio milhão de presos e apenas 18% deles têm acesso a alguma atividade educacional. Nos países mais pobres tem sido assim: a educação nas prisões 43 CEREJA discute raramente é reconhecida como um direito. Depende, muitas vezes, da boa vontade da direção de cada estabelecimento e dos meios humanos e financeiros para garantir esse direito. Uma sensibilização em relação a essa problemática é essencial, e esta publicação certamente irá contribuir para isso. A educação das pessoas privadas de liberdade deve ser integrada à campanha mundial pelo direito à educação. Referências bibliográficas FME, 2007. Memória do Fórum Mundial de Educação: alternativas para construir um outro mundo possível. Coordenação, organização e texto de Stela Rosa. Brasília: MEC/ INEP. GADOTTI, Moacir, 2007. Educar para um outro mundo possível. São Paulo: Publisher Brasil. MÉSZÁROS, István, 2005. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo. MONCADA, Ramón, 2008. El foro mundial de educación: espacio y proceso de diálogo y movibización internacional por el derecho a la educación. Medellin (mimeo). MONTEIRO, Agostinho dos Reis, 1999. O direito à educação. Lisboa: Livros Horizonte. 44 CEREJA discute Há perspectiva de humanização das prisões? Roberto da Silva Desde o Projeto Humanização das Prisões, em 1984, venho participando, discutindo, ensaiando experiências e testando hipóteses de trabalho no sistema penitenciário paulista. Acompanhei várias gestões, vi gerações nascerem e morrerem dentro e em torno da prisão, colecionei conquistas e experimentei retrocessos. Na pesquisa “Reconstituição da trajetória de Institucionalização de uma geração de ex-menores”, defendida em novembro de 1997, na USP, apresentei evidências de que a criminalização de crianças órfãs e abandonadas na Febem, instituição criada pelo regime militar, fora uma obra deliberada, e que as estruturas de custódia de crianças e adolescentes e de adultos constituíam, na verdade, subsistemas de um amplo e gigantesco aparato jurídico, policial e administrativo de controle social, retroalimentando-se um ao outro e assegurando padrões de reprodução das condições de marginalidade social, de criminalidade e de violência. O Estatuto da Criança e do Adolescente interrompeu esta lógica, separando a custódia de crianças e adolescentes, e destes em relação ao adulto, ainda que tenham surgido diversas iniciativas que visavam a reconstituir os vasos comunicantes que faziam da Febem um mecanismo de alimentação direta das prisões. Em dezembro de 1998, quando concluí minha tese de doutorado na USP, intitulada “A eficácia sociopedagógica da pena de privação da liberdade”, o Brasil contava com 512 unidades prisionais, taxa de encarceramento da ordem de 108 presos por 100 mil habitantes e uma população de aproximadamente 170 mil presos. Em março de 2009, quando concluí minha livre-docência na mesma USP, a taxa de encarceramento subira para cerca de 180 presos por 100 mil habitantes, o número de unidades prisionais chegara a mais de mil e a população prisional ultrapassara meio milhão de pessoas. Mudou o perfil do preso brasileiro, mas não mudaram os discursos sobre o crime, a pena e a finalidade da prisão. Permanece estável a taxa de reincidência criminal, que as previsões apontam 45 CEREJA discute entre 60 e 85% diante da absoluta falta de registro e a ausência de estudos que investiguem a progressão criminológica. As taxas de ocupação da mão de obra do preso, seja pelo trabalho (26%) ou pelo estudo (17%), são desprezíveis. De certa forma, foram inibidas as tentativas de privatização da prisão no Brasil, ainda que os discursos favoráveis ainda persistam; são tímidas as iniciativas no âmbito das parcerias público-privadas, e o mesmo ocorre com a terceirização, sobretudo em função dos altos riscos inerentes ao negócio; o preso continua sem exercer o direito de voto; a aprovação do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, em 2002, ainda não saiu do papel; tentase aplicar, por analogia com o trabalho, a remição da pena pela educação, repetindo todos os erros, vícios e distorções do modelo vigente, e a educação no sistema penitenciário ainda não integra a política educacional brasileira. Finda a gestão Nagashi à frente da Secretaria da Administração Penitenciária em São Paulo, caíram por terra os avanços mais significativos do sistema penitenciário brasileiro, permanecendo a figura nefasta do Regime Disciplinar Diferenciado e as restrições de direitos aos autores de crimes ditos hediondos. Excetuadas as experiências de gestão comunitária da prisão, a criação de um único presídio industrial e a inovação arquitetônica trazida pelos Centros de Ressocialização em São Paulo em nada contribuíram para a evolução na diversificação da oferta de postos de trabalho nas prisões, na oferta de educação obrigatória, pública e gratuita e no atendimento de saúde no sistema penitenciário. A emergência da discussão sobre educação em presídios e a remição da pena por meio dos estudos, não obstante a perspectiva de ampliação e de efetiva aplicação do direito à educação, não inovam necessariamente as concepções dominantes sobre o significado do crime, da pena e da prisão. A sociedade brasileira e suas instituições não dão demonstração pública de que estejam dispostos a substituir o conceito de crime contra o patrimônio pelos conceitos mais consentâneos com a contemporaneidade, como crime de lesa pátria e crime contra a humanidade, mesmo sabendo que menos de 10% das pessoas atualmente presas precisariam efetivamente estar 46 CEREJA discute atrás das grades e que a impunidade nos crimes de corrupção, de apropriação do patrimônio público, de malversação de verbas e uso do poder em benefício próprio é mais danosa ao conjunto da sociedade do que todo o volume de roubos e furtos cometidos ao longo dos nossos 500 anos de história. O atual perfil da população prisional no Brasil aponta evidências que sugerem dever ser a prisão uma instância que ajude no processo de socialização incompleta a que foram submetidos seus atuais habitantes, pois falharam a religião, a família, a escola, a comunidade, a sociedade, o Estado e o mercado de trabalho em proporcionar condições de desenvolvimento digno e integral para crianças e adolescentes que precocemente encontram nas práticas delituosas formas mais rápidas de satisfazer necessidades insatisfeitas. Isso significa que a prisão deve ser, sobretudo, um lugar seguro para quem precisa viver ali, e que a cultura prisional vigente precisa ser imediatamente substituída por uma cultura pedagógica que ofereça condições para o amadurecimento pessoal, o despertar das potencialidades humanas e o desenvolvimento de habilidades e capacidades valorizadas socialmente. 47 CEREJA discute Educação como direito humano: um olhar de dentro C. R. Diante de uma situação constrangedora e humilhante, não só para mim, mas para a minha família, me vi sozinha num vale sombrio, gelado e cheio de maldade por todos os lados e fui sentenciada a 20 anos de reclusão por um crime que não cometi. Nessa total angústia e sofrimento eu só tinha duas opções: jogar para o alto todos os meus sonhos e me entregar à depressão que me levaria à morte ou lutar com toda a minha força, com todo o meu amor pela minha mãe, pelo meu filho e por Deus, sobretudo. Claro que a atitude mais fácil seria a primeira, mas mesmo com minha pouca força decidi pela segunda e fui adiante. Embora onde me encontrava não tivesse nenhuma ajuda em nenhum sentido, continuei com minha decisão e não sabia como começar. Até que fui removida para a penitenciária feminina da capital em 2004. Ao chegar lá, soube que havia escola, trabalho, cursos e remição. Assim que tive uma oportunidade, logo nos primeiros dias, me inscrevi na escola, afinal eu havia estudado até 2º ano do 2º grau e faltava pouco para eu concluir o colegial. Mas para mim o mais importante era ocupar o meu tempo com coisas úteis, manter a minha mente, o meu cérebro funcionando de forma correta. Comecei a trabalhar e a estudar. Porém, para minha surpresa, a escola era “usada” como um local de encontro entre presos dos quatro pavilhões apenas para conversar, quase ninguém se interessava em aprender alguma coisa de verdade, e as que queriam aprender tinham que se esforçar muito, e a maioria desistia no meio do caminho, infelizmente. Sempre que eu tinha alguma dúvida eu questionava e nem sempre obtinha uma resposta satisfatória, então procurava na precária biblioteca livros e mais livros. Só assim conseguia, sozinha, entender certas matérias. Muitas vezes minha mãe mandava livros para mim. 48 CEREJA discute Me sentia desencorajada e por várias vezes pensei em desistir de estudar, mas isso seria fracassar. Durante quase quatro anos na PFC, vi muitas alunas concluírem seus estudos e nem sequer sabiam escrever corretamente seus nomes. Muitas presas me pediam para escrever cartas para elas, eu escrevia e sempre perguntava o porquê de elas não irem à escola para aprender ler e escrever, já que teriam que permanecer no cárcere por alguns anos, e as respostas eram sempre as mesmas, me diziam que os professoras não ensinavam direito, que escreviam algumas palavras na lousa para que elas copiassem sem nem sequer saber o que estavam copiando. Que realidade triste, ainda mais por saber que era uma presa que lecionava. Eu morei numa cela com uma senhora com mais de 60 anos que era analfabeta, ela já estava presa há uns seis anos e sempre foi à escola, copiava tudo direitinho, perguntava o que estava copiando e a professora, que também estava reclusa nesta unidade, dizia que era apenas para ela copiar. Muitas vezes ela voltava para a cela com os olhos cheios de lágrimas e se sentindo triste e humilhada por ser analfabeta. Nesse momento eu decidi ensiná-la, e todos os dias, quando voltávamos para a cela à noite, em torno das 19 ou 20 horas, nós nos uníamos, e eu a ensinava com muita paciência o que ela deveria aprender na escola: ler e escrever. Para dizer a verdade, eu nem acreditei que aquela senhora aprendeu muito mais comigo, em 6 meses, o que não havia aprendido em 6 anos. Hoje ela sabe escrever o próprio nome e consegue até mesmo escrever uma cartinha para suas filhas. Muitas pessoas criticam o fato de a maioria dos presos não estudarem, sendo que nas unidades (não em todas) há escola. Mas deveriam ver com seus olhos como é precária a educação no presídio. E consegui concluir meus estudos em uma prova do ENCEJA, porém até hoje não consegui o meu certificado, ou seja, de que adiantou? Como irei prestar vestibular sem um certificado do 2º grau? Impossível. E isso já vai completar um ano. 49 CEREJA discute Muitos políticos dizem que uma sala de aula cheia é uma cela no presídio vazia. E muitos dizem que existe reeducação no presídio, mas só existe mesmo para aqueles que batalham muito, pois incentivo à educação de verdade neste lugar não existe. Algo que me intriga muito é o fato de as aulas durarem uma hora ou duas apenas, sem livros, sem apostilas, sem organização, sem respeito. Sendo que existem muitas presas que desejam, sim, estudar, aprender e crescer, mas em várias situações são criticadas e humilhadas. Digo isso porque eu mesma já fui motivo de risada de agentes da unidade que diziam não acreditar que eu iria para a escola estudar, num tom bem irônico. Percebe-se bem que ninguém tem levado a sério a educação no presídio. Como reintegrar essas pessoas, como ajudá-las verdadeiramente? Tenho certeza de que ficar durante 2 horas no máximo numa sala de aula, conversando sobre assuntos pessoais e jogando conversa fora, não é a forma certa. Quantas vezes fui à aula e nem abri o caderno, nem ouvi nada de útil, somente “conversa fiada”. Esta está sendo a realidade atual. Aqui onde me encontro hoje, no semi-aberto, pensava que seria diferente, mas é a mesma coisa. Gostaria muito que tudo isso mudasse, mas teria que mudar tudo, tenho certeza que iria valer a pena e que muitas pessoas aproveitariam o incentivo real e não ilusório e precário. Um curso que eu fiz foi o do CDI, onde não aprendi quase nada. Não faltava às aulas, ficava perguntando tudo, mas não tinha respostas. Tinha que fazer desenhos e pintá-los. Apenas digitei um texto. Só isso. Aprendi computação sozinha trabalhando na unidade diante de um computador e sendo “curiosa”, pois se eu dependesse das aulas para aprender, seria em vão. Apesar de todos esses relatos, eu posso dizer que se eu consegui aprender algo e manter a minha cabeça ocupada com aprendizado, foi porque eu lutei muito, sozinha. Mas não quero ser ingrata, pois ao menos existem salas de aulas e eu sou muita grata a isso, só o que falta são pessoas competentes e 50 CEREJA discute com vontade de verdadeiramente mudar essa situação vergonhosa que acontece no sistema prisional. Existem pessoas dispostas a estudar, a aprender e a crescer. Só faltam pessoas dispostas a ensinar com mais dedicação. Claro que nem todos os professores são iguais, não posso ser injusta, afinal, por mais que tenha faltado mais ensino, algumas pessoas, inclusive eu, conseguimos aprender um pouco. Mas precisa melhorar, e muito. Torno a repetir que conheci professores que ensinaram e que gostariam de fazer mais pelos presos, mas não tinham como, por falta de recursos, e não por falta de vontade e de amor à profissão e ao ser humano. E eu ainda sonho em cursar uma faculdade!! 51 CEREJA discute Comentário Educação nas prisões: entre o nada e a oferta de “qualquer coisa” Denise Carreira Dor, angústia, desespero, negligência e ignorância. A experiência de Cristina Rodrigues, encarcerada do sistema prisional paulista, na luta cotidiana por ver garantido o direito à educação, lateja de forma intensa e expõe o frágil lugar da educação nas prisões brasileiras. Um direito, como lembrado pelos professores Moacir Gadotti e Roberto da Silva, previsto na legislação nacional e na normativa internacional, e desrespeitado na maior parte das unidades prisionais do país, com raríssimas exceções. O quadro fica mais dramático quando consideramos que Cristina ainda vive em uma unidade prisional na qual existe algum atendimento educacional, o que não é a realidade para mais de 80% dos presos e das presas do país. Diante de tantas dificuldades, obstáculos e fragilidades, estudar e querer aprender exigem esforço e determinação titânicos por parte dos alunos e alunas na prisão: “Me sentia desencorajada, e por várias vezes pensei em desistir de estudar, mas isso seria fracassar. Durante quase quatro anos na PFC, vi muitas alunas concluírem seus estudos e nem sequer sabiam escrever corretamente seus nomes. Muitas presas me pediam para escrever cartas para elas, eu escrevia e sempre perguntava o porquê de elas não irem à escola para aprender, ler e escrever, já que teriam que permanecer no cárcere por alguns anos, e as respostas eram sempre as mesmas, me diziam que as professoras não ensinavam direito, que escreviam algumas palavras na lousa para que elas copiassem sem nem sequer saber o que estavam copiando. Que realidade triste, ainda mais por saber que era uma presa que lecionava.” A solidariedade, o compromisso e a valorização dos conhecimentos dos alunos e alunas, base de qualquer proposta educativa que se pretenda 52 CEREJA discute transformadora, acabam sendo apropriados pela lógica de negação e da precarização do atendimento educacional que imputa aos presos e às presas a responsabilidade pela aprendizagem em meio a condições tão adversas: “Eu morei numa cela com uma senhora com mais de 60 anos que era analfabeta. Ela já estava presa há uns seis anos e sempre foi à escola, copiava tudo direitinho, perguntava o que estava copiando e a professora, que também estava reclusa nessa unidade, dizia que era apenas para ela copiar. Muitas vezes ela voltava para a cela com os olhos cheios de lágrimas e se sentindo triste e humilhada por ser analfabeta. Nesse momento eu decidi ensiná-la, e todos os dias, quando voltávamos para a cela à noite, em torno das 19h-20h, nós nos uníamos e eu a ensinava com muita paciência o que ela deveria aprender na escola: ler e escrever. Para dizer a verdade, eu nem acreditei que aquela senhora aprendeu muito mais comigo, em seis meses, o que não havia aprendido em seis anos. Hoje ela sabe escrever o próprio nome e consegue até mesmo escrever uma cartinha para suas filhas.” Mesmo assim, em meio a tanta aridez, a esperança e o sonho de alguns e algumas resistem. Cristina lembra alguns professores e professoras que fizeram a diferença em sua trajetória educacional dentro da prisão e do fato de até hoje não ter recebido o certificado decorrente da sua aprovação, há mais de um ano, pelo Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), referente ao ensino médio. Sem ele, Cristina não pode lutar por mais um sonho: o de chegar ao ensino superior, “cursar uma faculdade”. A voz de Cristina revela a perversidade da educação vista como um privilégio nas unidades educacionais e parte da lógica de punição, situação apontada por vários estudos e pelo recente documento1 da Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação, da Plataforma DHESCA Brasil, elaborado por mim e pela assessora Suelaine Carneiro. Segundo o relatório, a educação: 1 A íntegra do Relatório Educação nas Prisões Brasileiras está disponível nos sites www.dhescbrasil.org.br e www.acaoeducativa.org.br 53 CEREJA discute • é algo estranho ao sistema prisional. Muitos professores e professoras afirmam sentir a unidade prisional como um ambiente hostil ao trabalho educacional; • constitui-se, muitas vezes, em “moeda de troca” entre, de um lado, gestores e agentes prisionais e, do outro, encarcerados, visando a manutenção da ordem disciplinar; • enfrenta o conflito cotidiano entre a garantia do direito à educação e o modelo vigente de prisão, marcado pela superlotação, por violações múltiplas e cotidianas de direitos e pelo superdimensionamento da segurança e de medidas disciplinares; • é descontínuo e atropelado pelas dinâmicas e lógicas da segurança; • é muito inferior à demanda pelo acesso à educação, geralmente atingindo de 10% a 20% da população encarcerada nas unidades pesquisadas; • quando existente, em sua maior parte sofre de graves problemas de qualidade, com jornadas reduzidas, falta de projeto pedagógico, materiais e infraestrutura inadequados e falta de profissionais de educação capazes de responder às necessidades educacionais dos encarcerados. Assim como destacado pelo professor Roberto da Silva, o Relatório lembra que a educação e outras políticas comprometidas com a garantia dos direitos dos encarcerados enfrentam um sistema prisional que ciclicamente sabota experiências e gestores que buscam inovar e implementar propostas sintonizadas com as conquistas legais. Essa “sabotagem” muitas vezes é alimentada pela fragilidade do debate público, predominantemente sensacionalista e preconceituoso, que torna a prisão uma “jaula de feras”; legitima as políticas de expansão acelerada do encarceramento; isola o sistema prisional do controle da sociedade e condena os presos e as presas à quase morte social. É fundamental explicitar que a violação cotidiana dos direitos dos encarcerados é também uma violência contra o conjunto da sociedade brasileira, que financia um sistema que destrói seres humanos e restringe de forma 54 CEREJA discute perversa as possibilidades de inserção social de pessoas presas. Por isso, campanhas nos meios de comunicação e ações junto a profissionais de mídia são urgentes para a qualificação do debate público sobre assunto tão estratégico. Elaborado tendo como bases visitas às unidades prisionais, entrevistas com encarcerados, agentes, gestores e educadores do sistema prisional e levantamento diversos, o documento da Relatoria Nacional pelo Direito Humano à Educação apresenta um conjunto de recomendações bastante concretas ao Estado brasileiro visando a garantia efetiva do direito humano à educação dos presos e presas do país, dentre elas a urgência da aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação nas Prisões e de lei que garanta a remição da pena por estudo. Uma educação que possibilite o “amadurecimento pessoal, o despertar das potencialidades humanos e o desenvolvimento de habilidades e capacidades valorizadas socialmente”, como observado por Roberto da Silva, considerando suas múltiplas dimensões: afetiva, ética, estética, intelectual, profissional, cívica – destacadas pelo professor Moacir Gadotti. 55 ESPECIFICIDADE DE GÊNERO: EDUCAÇÃO DE MULHERES PRESAS CEREJA discute Para início de conversa As mulheres e a educação nas prisões Mariângela Graciano As mulheres jovens e adultas (acima de 18 anos) em situação de privação de liberdade correspondem a 5% da população no sistema prisional brasileiro. As condições de vida desse grupo são marcadas por violações de direitos, sejam individuais ou coletivos. A superlotação, a falta de assistência médica e jurídica e a extrema pobreza que caracteriza a maioria dessa população fazem com que este seja um grupo totalmente excluído. A condição da privação de liberdade feminina é agravada pelas desigualdades de gênero que caracterizam a sociedade brasileira. O perfil dessas mulheres (Ministério da Justiça – http://www.mj.gov.br/data) aponta que elas são, em sua maioria, jovens, negras e pobres. Sua inserção no mundo do crime é subalterna – a maioria é condenada por envolvimento no tráfico de drogas em função de relações afetivas ou familiares – e, quando presas, enfrentam a situação do abandono dos companheiros e terminam por assumir a responsabilidade pelo seu próprio sustento e também de seus familiares, sobretudo os filhos. O Estado brasileiro é omisso em relação às especificidades da condição das mulheres, de forma que nem mesmo as insuficientes e precárias ações públicas destinadas às unidades masculinas chegam até as femininas1. Não existem informações oficiais precisas sobre a existência e abrangência das ações públicas destinadas a tais garantias, mas as pesquisas acadêmicas e os relatórios produzidos por organizações da sociedade civil 1 Reorganização e reformulação do sistema prisional feminino – relatório final. Ministério da Justiça e Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. 2007. mimeo; “Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil”, apresentado à Corte Interamericana de Direitos Humanos em fevereiro de 2007; e Soares, Bárbara e Ilgenfritz, Iara. Prisioneiras – vida e violência atrás das grades. Garamond Universitária. Rio de Janeiro. 2002, 150p 59 CEREJA discute apontam que não há trabalho ou formação profissional para todas as pessoas e que as atividades de educação formal, quando realizadas, o são de forma bastante precária, sem condições mínimas aceitáveis de qualidade. Entrevistas realizadas com alunas na Penitenciária Feminina da Capital revelam, de um lado, mecanismos criados pelo sistema prisional para 2 impedir o funcionamento da escola. De outro lado, indicam que as alunas atribuem à escola um valor que não está vinculado à ideia de ressocialização ou reintegração, mas sim ao exercício de sua condição humana, e à possibilidade de alterar sua vida presente, ainda na prisão. Dentre as dificuldades elencadas por mulheres para frequentar a escola na prisão estão a incompatibilidade das atividades de trabalho com as da escola, obrigando à opção entre jantar, tomar banho ou ir para a aula. A falta de condição emocional, provocada pela preocupação com o destino dos filhos, a tensão do ambiente prisional e a falta de projeto pessoal também foram lembrados como fatores atrapalham os estudos. Em sentido contrário, as mulheres que estudam encontram diversas razões para seu interesse. Dentre elas destacam-se a autonomia frente às colegas e aos funcionários, adquirida com a habilidades de leitura e escrita – escrever cartas é fundamental às pessoas presas! – e a possibilidade de conquistar o respeito dos filhos. Outra fonte pessoal de estímulo é o desejo do conhecimento... conhecimento sobre os mais diversos temas: da mitologia grega às reações químicas; da história de Pedro Álvares Cabral à legislação educacional; do próprio corpo à organização dos governos. Foram inúmeros os depoimentos que apontaram para a descoberta da relação entre escola e acesso a outros direitos, mas houve um aspecto muito particular relacionado à situação de privação da liberdade: a relação entre estudar e manter as características humanas da produção de conhecimento, de tomada de decisões autônomas e de sonhar, retomando o sentido 2 As entrevistas foram realizadas no segundo semestre de 2004, no âmbito do desenvolvimento da dissertação de mestrado “A educação como direito humano: a escola na prisão”, de Mariângela Graciano, apresentada à Faculdade de Educação da USP em outubro de 2005. 60 CEREJA discute da educação como “manifestação exclusivamente humana”, que reconhece as pessoas como “seres inconclusos, conscientes de sua inconclusão, e seu permanente movimento de busca do ser mais”, como nos ensinou Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido. 61 CEREJA discute Educação nas prisões Maria da Penha Risola Dias Entendemos a educação como um processo amplo, dinâmico e político, o qual envolve toda a vivência humana e considera basicamente os aspectos genéticos, sociais, psicológicos e culturais que incluem, das mais variadas formas, a própria existência e formação do indivíduo. A assistência educacional na prisão deve ser uma das prestações básicas mais importantes na vida das internas, constituindo elemento fundamental ao tratamento penitenciário como meio de reinserção social. A educação é uma das áreas de maior realce na atual conjuntura da Secretaria da Administração Penitenciária, a qual promove, através da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap), um processo educacional que compreende o 1º e 2º graus até a profissionalização, buscando a formação educacional como parte do processo que visa ajudar as reclusas nas mudanças comportamentais. Entretanto, a educação, na prisão feminina, constitui uma prática desinteressada e neutra, reproduzindo a ideologia da sociedade capitalista que escolhe o trabalho como eixo fundamental na vida das mulheres presas, porquanto é através dele que elas conseguem o sustento para seus familiares, bem como a remição dos dias trabalhados. Um dos fatores determinantes que impedem as mulheres presas de visualizarem a educação como um meio de transformação é o seu próprio perfil psicológico comprometido, a autoestima baixa, haja vista que se julgam incapazes e não conseguem se fixar em nada, além do que são instáveis nas suas propostas de vida, não conseguem ser agentes dos seus próprios rumos, bem como há uma parcela delas que apresentam transtornos de personalidade – borderlines –, que tumultuam a prisão e comprometem aquelas que buscam atividades educacionais. Por outro lado, grande parte das mulheres traz consigo uma cultura 62 CEREJA discute machista, obrigando-se à realização de tarefas do lar, sendo que a escolarização para elas não é tão importante quanto para os homens. Quando questionadas sobre o porquê das ausências nos cursos realizados nas unidades prisionais, elas respondem: “Eu já sei o suficiente“; “meu companheiro me orienta”; “meus filhos precisam mais que eu”... Respostas que demonstram a desvalorização da mulher na sociedade, que sempre abdicam dos seus direitos em função dos companheiros e dos filhos. Quando analisamos as propostas de vida das reclusas dentro da prisão, verificamos que demonstram valores ditados pela elite capitalista, todavia não conseguem segui-los, pois suas trajetórias foram permeadas com crises socioeconômicas, que não lhes permitiram adquirir os mesmos padrões, restando somente as fantasias e os sonhos, os quais são demonstrados por meio das suas manifestações e delitos. A situação de exclusão da mulher presa é agravada não só por seu perfil biográfico social como também pelo tratamento que o aparelho governamental e jurídico penal lhe confere, acentuando sua discriminação no que tange aos direitos apontados na Lei de Execuções Penais, dentre eles o da educação. A educação, na prisão feminina, não atende aos anseios e à diversidade cultural existente e se agrava com o número de reclusas ora inseridas no crime organizado, as quais assimilaram valores e anseios estereotipados, reforçando o descrédito por parte das internas e do corpo funcional, o qual tem dificuldade de lidar com essa situação e em geral desvaloriza o potencial das mulheres presas. A relação entre a educação e a comunidade prisional não é, de modo algum, uma relação mecânica e automática; ao contrário, está associada à dinâmica prisional, a qual anula a educação como processo de transformação. Logo, faz-se necessária uma proposta de trabalho técnico-pedagógico voltado à especificidade da população carcerária feminina. Nota-se que as atividades esportivas e socioculturais, as quais fazem parte da formação da pessoa, são significativas para as reclusas, porquanto 63 CEREJA discute elas não só se ocupam e se envolvem com os aspectos tradicionais quanto adquirem a formação profissional de índole cultural. Assim, a educação, no meio carcerário, não é valorizada; nota-se uma contradição na visão das internas a respeito do aprendizado; se questionadas, sempre costumam dizer que “é bom”, que “todas precisam estudar”, que “a Unidade Prisional não propicia condições necessárias” e, por outro lado, não participam das aulas nem incentivam as demais no aprendizado como um todo, desistindo do ensino e optando, em primeiro lugar, pelo trabalho remunerado, não tendo a visão de que poderiam fazer cursos à distância ou mesmo se propor aos estudos através do processo autodidata. A educação, no meio carcerário, não reproduz a ideologia traçada na Constituição Federal; por sua vez, relevante parcela da elite econômica e intelectual também não contribui para o desenvolvimento da criatividade e do espírito crítico, conduzindo a sociedade a viver crises ideológicas na seara da educação. Portanto, na visão das internas sobre a área educacional, os recursos existentes são restritos, os horários de trabalho e os de estudo são incompatíveis, e os projetos não atendem às expectativas das reclusas. Salientamos, contudo, a necessidade de um trabalho de conscientização, tão logo seja possível, com o objetivo de esclarecer as mulheres presas de que precisam ter persistência nos seus propósitos, conciliando a jornada de trabalho com estudos, esclarecendo a elas que circunstâncias difíceis são vivenciadas por todas as pessoas, inclusive por aquelas que não estão presas. 64 CEREJA discute Dignidade humana, educação e mulheres encarceradas Sonia Regina Arrojo e Drigo Só nega educação quem não tem respeito pelo ser humano. Pouco ou quase nada se fez em favor das mulheres presas durante a última década neste país. O espantoso aumento da criminalidade representa bem a política criminal que vem sendo praticada e que vê na construção de novas unidades prisionais a saída para uma das piores crises do sistema carcerário. Das quase 470 mil pessoas presas, 28 mil são mulheres que sofrem toda sorte de desrespeito às suas especificidades (sexualidade, diversidade sexual e maternidade) e aos direitos fundamentais, desde o encarceramento em unidades prisionais superlotadas e inadequadas para o cumprimento de pena, até a imposição de castigos não previstos na legislação, tais como a negação da feminilidade, o distanciamento da família e a submissão à falta de assistência à saúde, de acesso à justiça, oferta de trabalho e prática de educação. O papel de chefe de família assumido pelas mulheres e a importância da sua presença para a manutenção do núcleo familiar, principalmente dentre as que se encontram encarceradas, associados à baixa escolaridade e à falta de capacitação profissional, são responsáveis pelo alto índice de crimes cometidos contra o patrimônio e de tráfico ou uso de entorpecentes. Essa associação de carências fica mais evidente quando se observa que a maioria das presas não completou o ensino fundamental e busca garantir a sua sobrevivência através da prática criminosa, por falta de oportunidade de fazer diferente. Pobres, incultas, com filhos, sem profissão definida, vítimas de violência doméstica, do aborto clandestino e dos maus tratos da sociedade, essas mulheres esperam pela justiça morosa, pela transferência para local mais próximo da família e pelo passar do tempo, se possível, trabalhando. 65 CEREJA discute A educação fica como opção ao ócio. Só vai para a sala de aula quem não tem material de artesanato ou aguarda vaga numa oficina, quase sempre de costura ou de montagem de algum equipamento, que não terá qualquer influência na vida delas a partir do resgate da liberdade. Além disso, se lhes fosse dado optar, o trabalho estaria sempre em primeiro lugar por ser mais vantajoso, não só pelo pagamento do serviço em pecúnia, o que possibilita ajudar no sustento da família, como pelo desconto previsto em lei dos dias remidos1, pois os critérios para a aplicação da Súmula 341 do STJ2 são menos estimulantes, tanto do ponto de vista da carga horária para a obtenção do benefício3, quanto pela precariedade do serviço de educação oferecido, lembrando que há um grande número de mulheres que cumprem pena em cadeias públicas, onde não há oferta de trabalho, nem de qualquer forma de estudo. Não à toa, a discussão sobre a garantia do direito à educação das pessoas presas foi incluída no Fórum Social Mundial de 2009. As experiências apresentadas demonstraram que as mulheres encarceradas são discriminadas duplamente: primeiro, por serem mulheres; depois, por estarem presas, mas mantêm em comum com os presos a expectativa de receber educação de qualidade, com docentes comprometidos com a profissão, material didático e reconhecimento. Ficou claro que o modelo atual de educação nos presídios está longe de ser o minimamente aceitável e que é preciso mudar e humanizar as relações entre o Estado e as pessoas presas, inclusive através do estímulo à prática da educação não formal em favor do exercício da cidadania. 1 Desconto do tempo de pena privativa de liberdade, cumprido nos regimes fechado e semiaberto, pelo trabalho, na proporção de três dias trabalhados por um dia de pena (art. 126, §1º, LEP). 2 Súmula 341/STJ: A frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semiaberto (v. Câmara dos Deputados, PLs 6254/2005 e 4230/2004). 3 Vite e quatro horas de frequência em curso de educação formal por um dia de pena. 66 CEREJA discute De nada adiantará a aprovação das Diretrizes Nacionais para Educação nas Prisões, pelo Conselho Nacional de Educação, ou do projeto do Senado4 que obriga a educação básica ou profissionalizante para as pessoas presas, se a tolerância ao desrespeito à Constituição não deixar de ser rotina nos presídios e na decretação de prisões desnecessárias.5 É preciso abrir concursos para professores para o sistema penitenciário, através das Secretarias de Educação estaduais, e criar mecanismos de seleção para contratação daqueles que se mostrarem comprometidos e vocacionados para o trabalho educacional nos presídios.6 É preciso agir com bom senso e rapidez. A população prisional, em especial a feminina, precisa ser incluída em políticas públicas que estimulem a frequência às aulas e às oficinas de cidadania7, com a garantia de que os horários de trabalho e estudo não sejam conflitantes, para que um não exclua o outro. 4 Projeto de autoria do deputado Paulo Rocha e relatoria de Romeu Tuma, aprovado em 15/07/2009. 5 De agosto de 2008 até a metade de julho de 2009, 3.663 detentos foram libertados durante o mutirão realizado pelo CNJ, depois de comprovada a irregularidade da prisão. No total, 5.531 presos ganharam algum tipo de benefício (Consultor Jurídico, 27/07/2009). 6 Conclusões do 3º Encontro “A mulher no sistema carcerário”, promovido pelo GET Mulheres Encarceradas, em junho/2008. 7 A exemplo do projeto “Quem somos nós”, realizado pelo ITTC em presídios femininos de São Paulo, 2007/2009. 67 CEREJA discute Mulher, educação, prisão Rosana da Conceição Souza Pontes Leite Tive o privilégio de trabalhar como diretora do núcleo de educação na Penitenciária Feminina da Capital/SP, de 2005 a 2008, que estava com uma população de aproximadamente 770 mulheres, quase 50% estrangeiras. Minha experiência era o respeito, o acolhimento, o comprometimento com esta população e com meu trabalho. Há atribuições, como todos os cargos e funções, mas é necessário muito mais, há de haver o engajamento real. A mulher tem vivido uma grande transformação no decorrer dos anos, algumas conquistas notórias (direitos trabalhistas, igualdade na política, responsabilidade econômica, valorização de direitos sociais e uma contínua busca para que sejam ouvidas e vistas dignamente). A Lei Maria da Penha veio garantir o direito à vida e contra qualquer ato violento, seja físico, sexual, psicológico, moral ou patrimonial.1 Nas camadas mais pobres a submissão à violência chega a ser maior. Deparamos com a marginalização da mulher: a falta de maturidade emocional, a desagregação familiar, as desigualdades sociais e, em alguns casos, o conflito da transição da adolescência à vida adulta. A Instituição. A despersonalização2: no processo de inclusão, o sistema gera um número de matrícula, passará a conviver com pessoas que não escolheu, dividirá uma cela; ela tem nome, mas muitos preferem referir-se a ela pela sua infração penal, ou como “a bandida”. Goffman3 coloca que o estigma é um sinal utilizado pela sociedade para discriminar os indivíduos portadores de determinadas características. As roupas serão trocadas, será entregue uma camiseta branca, um uniforme amarelo e produtos de higiene 1 http://leimariadapenha.blogspot.com/2006/12/resumo-de-pontos-importantes-da-lei.html. 2 Angerami, V.A; Trucharte, F.A.R; Knijnik, R.B;Sebastiani, R.W. Psicologia Hospitalar — Teoria e Prática. São Paulo: Pioneira, 1995. 3 Goffman, E. Estigma. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. 68 CEREJA discute pessoal. Os hábitos alimentares mudam. A detenta terá de se adequar às refeições oferecidas. Quando iniciar as atividades com o trabalho remunerado, ela poderá ter acesso à lista de compras (relação de itens permitidos) ou recebê-los dos familiares. As visitas, na maioria, são de mães, filhos e irmãos. Os esposos? Pai dos filhos? Muitos deles também estão no cárcere. Há visitas íntimas4 com acompanhamento de uma equipe de profissionais, no entanto são raros os homens que realmente continuam presentes durante o período de reclusão. Segurança: indispensável. Educação: dispensável. Trabalho: aproximadamente 80% das mulheres trabalham, e destas, muitas mantêm a família com o salário recebido pelos empregadores que oferecem o serviço na Instituição. A escola é a última opção. Poderíamos conciliar em vez de optar? Sim, se os protocolos (leis, resoluções, portarias) fossem respeitados e mantidos, e não engavetados. Não, se a instituição for resistente a mudanças e evitar os investimentos no processo de crescimento global do indivíduo recluso. A iniciativa, a criatividade e o amor à profissão não são suficientes. “Vê-se bem que um trabalho eficaz necessita uma espécie de coesão entre os diferentes atores... Certamente, falar de ‘neutralidade’ é um discurso não polêmico, mas sempre ‘engajado’, não de fato, como se disse, ‘em situação’, mas verdadeiramente engajado”.5 “A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.”6 Os trabalhos em parceria com a sociedade civil, instituições não-governamentais e grupos religiosos são necessários. Muitos projetos são solidificados através destas parcerias. 4 Resolução SAP - 096, de 27/12/2001. 5 Oury, J; Revue Pratique - 1991, pág. 42-50, trad. de Jairp Idel Goldberg. 6 Lei 7.210, de 11/07/1984. 69 CEREJA discute Prisão. A falta de confiança, o medo mascarado, a luta em outro contexto. Preconceitos, saudade, sonhos e muita emoção. Doença, insegurança, revolta. Pessoas. Solidão, jovens, “gente”. Quem somos? O que pensamos? Tentativas, erros, acertos, obstáculos. Educação e conquistas. 70 CEREJA discute Educação de mulheres presas: o olhar de uma egressa B. B. Um terço da minha vida em “Harvard”. Ingressei no mundo “de lá” aos 20 anos e saí nas vésperas dos 30. Posso até parafrasear Raul: “Eu nasci após 10 mil anos...” De fato, os quase 3.500 dias incluíram: 11 rebeliões, três copas do mundo, a inserção de mais um dígito nos telefones, bilhete único, motor flex, Enem, a massificação da internet, a destruição das Torres Gêmeas, facções... (Gente!!! Sou do tempo dos costureiros de guarda-chuva em feiras de domingo!) E enquanto o mundo se transformava, muitas vezes me senti como um móvel com placa de patrimônio, naquela instituição onde pagava penitências (assim já explica seu nome). Nos primeiros sete anos atuei na Escola/Posto Cultural. Ali respirava e suava EDUCAÇÃO. Sorvia informações, numa busca descabida por atualização. Tecla F5 full time! Era a única maneira de minimizar a sensação de estar à margem da sociedade. Assisti às mulheres de classes D e E sendo acolhidas pelo ensino precário que o Estado garante. Vencemos os muitos recursos que o sistema cria para evidenciar o valor do trabalho, como remição de pena e/ou forma de resgatar a família. Reivindicamos então remição também para as aulas. Por fim, algumas das que sobreviveram, assisti escreverem cartas, trocarem promessas, concluírem ensino fundamental, médio e até escolherem carreira para universidade... Vi algumas lerem suas sentenças com mais clareza, montarem pedidos de benefícios. Acompanhei, in loco, mutações nas concepções acerca do certo, do ético e do justo. Vi sensações tornarem-se produto de comunicação. Isso me fez crer que aquele era o “bote salva-vidas” do mundo e a “pílula do encolhimento” do índice de reincidências. Ledo engano. Ensino laico não forma índole, caráter, nem escrúpulos! Afinal, ali estava eu! Sua ausência pode significar gesso, mobilidade reduzida de comunicação e, por sua vez, diminuição nas oportunidades de subsistência e 71 CEREJA discute consumo; pode desencadear a segregação e até a fertilização do campo da marginalidade. Também pode significar um indivíduo limitado em sua ignorância, mas politicamente correto. Logo, tirar o tal gesso não é o bastante. Necessário é aplicar FISIOTERAPIA! Mexer com seus dois gumes: o tangível e o intangível. Este segundo, muito mais afiado, é o instrumento que vai desentorpecer; tocar aquelas mulheres tão plurais em suas experiências e tão complexas em suas dores; fazê-las atravessar a madrugada, amanhecendo ensolaradas. O gerenciamento das informações é a opinião formada, e esta abre precedentes para o intangível que tanto agrega. Isso me tornou uma mulher melhor! Um ser mais polivalente; não só ADESTRADO, mas CONSCIENTE de suas capacidades e de seu poder destruidor; portanto, mais maduro e capaz. Aqui ou lá, no fundo, buscamos o mesmo: sair do terreno da invisibilidade. Desejamos INCLUSÃO. Segundo Aristóteles, a felicidade resulta do exercício das virtudes em sintonia com a vida em sociedade. A alfabetização propicia o coletivo, a inserção, a sociedade. Bens tangíveis! A CONSCIENTIZAÇÃO propicia o bem maior: a liberdade das virtudes! E quando essa fisioterapia é iniciada lá dentro, a mulher chega no mundo “de cá” pronta para a maratona da globalização — ora benéfica, ora um porre! —, onde lema é “fazer a diferença” com selos de certificação até no currículo; onde uma pessoa não precisa ser PhD para ter consciência e economizar água e energia elétrica. Precisa estar CONSCIENTE. O que falta nas prisões femininas então? O mesmo que falta fora delas: FORMADORES DE OPINIÃO versus ESPÍRITOS PRÉ-DISPOSTOS. E o que sobra no mundo “de lá”? O mesmo que aqui, o mesmo que na Faixa de Gaza, o mesmo que ao coelho de Alice: PRESSA, COMPETIÇÃO onde cabem PARCERIAS. E assim o homem vai degustando paradoxos. A tecnologia de ponta e o alimento orgânico; a demanda semanal que não cabe na agenda nem no trânsito; os desejos que não cabem no bolso, as frustrações que não cabem em seu foco de atenção. Então corre para o campo, para o 72 CEREJA discute customizado, para a ioga. Corre. Vai desenfreado atrás do relax. Acelerado. Confundindo o comum com o normal. Quando, raramente, escrevo para alguém que ainda está em “Harvard”, saliento que a sensação de estar conectado não é tudo aquilo de mágico como conversávamos com a bola de vôlei nas mãos. Ó, não!! Não tem preço estar, agora, “aqui”, onde cheguei, tangível e intangivelmente, neste ponto de CONSCIÊNCIA e maturidade. Após muita fisio, muito silêncio e um constante reinventar-se, de EDUCAÇÃO e OPINIÃO! 73 CEREJA discute Comentário Mulheres encarceradas e o direito à educação: entre iniquidades e resistências Alessandra Teixeira Refletir sobre a situação da mulher encarcerada no que toca ao exercício do seu direito à educação pode ser um ponto de vista privilegiado para se colocar em foco as iniquidades que marcam tão singularmente as relações de gênero em nossa dinâmica social e seu agravamento no universo da prisão. Iniquidades advindas, em primeiro lugar, das trajetórias dessas mulheres recrutadas pelo sistema penal. Uma rápida análise sobre as estatísticas penais e penitenciárias fornece os elementos de seu perfil, revelado por indicadores sociobiográficos que as colocam na base da pirâmide social, sujeitando-as às múltiplas violações que sua condição impõe. Em São Paulo1, estudos, pesquisas e levantamentos oficiais apontam que a maioria das presas (53%) é negra ou parda, 51% relatam violência doméstica, 82% são mães, mas apenas 26% são casadas ou viviam com os parceiros. Com a prisão, apenas em 20% dos casos seus filhos ficarão aos cuidados do pai, número que é radicalmente diverso quando a situação de prisão recai sobre o homem (87% ficam com as mães). Um dado que é de importância crucial para se entender o perfil do encarceramento feminino mais contemporâneo é o da chefia de família, que em 57% era assumido por essas mulheres antes da prisão, garantido, contudo, por um relatado trabalho precário (80%), que confere a esses lares por elas chefiados uma baixa renda mensal. Quanto à educação formal, 56,5% não haviam completado sequer o ensino fundamental. 1 Os dados apresentados se referem ao Censo Penitenciário Funap/SAP/SP, 2002, com exceção dos relativos à violência doméstica, chefia de família e ao trabalho, que se referem ao levantamento realizado pelo Coletivo de Feministas Lésbicas em parceria com o Ministério da Saúde na Penitenciária Feminina do Tatuapé/SP. O dado referente à educação é mais atual, extraído do InFopen (Depen/MJ) em 2008. 74 CEREJA discute No Rio de Janeiro, pesquisa realizada pelo Cesec2, entre 1999 e 2000, junto às presas do presídio de Talavera Bruce, concluiu que há predominância de mulheres negras, 56,4% (em contraste com 35,4% na população feminina adulta do estado), e com baixos níveis de escolaridade (69% não haviam completado o ensino fundamental em face de 41% da população feminina adulta), e apenas 16,6% apresentavam instrução igual ou superior ao ensino médio completo (em contraposição a 31,5% das mulheres com 18 anos ou mais de idade residentes no Rio de Janeiro). No que toca à educação, não são apenas as duas capitais a ostentarem dados que atestam a baixa escolaridade dessas mulheres; no plano nacional essa realidade também é constatada. Segundo dados reunidos pelo Depen/ MJ relativos a 76% das unidades prisionais no país, 64,77% das mulheres encarceradas são analfabetas, apenas alfabetizadas ou possuem o ensino fundamental incompleto.3 Iniquidades, portanto, advindas de seu perfil socioeconômico, e que serão reproduzidas nos contextos que marcam sua detenção, ou, antes ainda, seu envolvimento no mundo do crime. Como já amplamente divulgado, a maior causa de condenação das mulheres encarceradas é o tráfico de drogas, em proporções cada vez mais ascendentes, seguido pelo furto. A “opção” pelo tráfico tem se revelado cada vez mais recorrente no universo de oportunidades de renda dessas mulheres, mães solteiras e chefes de família, representando assim uma alternativa econômica ao restritíssimo mercado formal de trabalho. É certo, contudo, que sua atuação junto ao negócio do tráfico se dará de modo marginal e extremamente periférico, sendo escassos os meios de negociação que essa mulher dispõe diante de um oneroso mercado de proteção, o que faz com que sobre ela recaiam maiores riscos de uma prisão. 2 SOARES. Bárbara Musumeci. “Retrato das Mulheres Presas no Estado do Rio de Janeiro”, in Boletim Segurança e Cidadania, nº 1, julho de 2002. 3 Cf. www.mj.gov.br/depen. 75 CEREJA discute Uma vez presa, é novamente o grau de acesso aos recursos – econômicos e sobretudo simbólicos – que definirá sua trajetória pelo sistema, e que explicará em muito a atuação discriminatória do aparato da justiça e das instituições penais em relação às mulheres; acesso dificultado aos mecanismos (formais e informais) de defesa, de postulação de direitos, enfim, menor grau de acesso à justiça em seu sentido mais amplo. Uma violência do Estado contra as mulheres que vai se manifestar assim no interior do funcionamento das instituições penais (sistema de justiça e prisional), na desigualdade de acesso aos recursos simbólicos, e que tem, em diferentes dimensões do que se pode atribuir como direito à educação, uma importante e significativa representação. Isso porque o universo da prisão se constituirá, para essas mulheres, como repleto de interditos, a partir dos quais estará dificultado e mesmo vedado o acesso à informação e ao conhecimento, ferramentas básicas de um processo essencialmente emancipatório, como foi bem descrito por Mariângela Graciano.4 Chegamos aqui a um ponto central que tem marcado, historicamente, as práticas segregadoras no interior das prisões femininas, distinguindo-as nitidamente da realidade observada nos cárceres masculinos. Pois, para além do fato de que as prisões femininas convivem desde há muito com o abandono do Poder Público, ostentando piores condições estruturais, o que leva à desatenção sistemática de seus direitos mais essenciais, não é somente tal dimensão material, que se demonstra decisiva para compreender a lógica discriminatória que se instaura no seio do sistema. É evidente que as deficiências materiais e estruturais podem explicar em muito o cerceamento de direitos, sobretudo quando se tem em conta que um grande contingente de mulheres está preso em cadeias públicas ou carceragens (e em percentuais relativamente superiores aos dos homens). Mas isso 4 Em referência ao texto “As mulheres e a educação nas prisões”, que se encontra excerto nesta obra, no que toca às representações atribuídas pelas presas ao ensino, nas situações em que conseguem acessá-lo. 76 CEREJA discute não explica por quê, embora 70,5% dos estabelecimentos prisionais femininos afirmem possuir espaços para sala de aula, apenas 25% das mulheres estudem5. Do mesmo modo, não explica por quê, tal como afirmado no relatório encaminhado pelo Grupo de Estudos e Mulheres Encarceradas e no CEJIL para audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), em 2007, “apesar de os números indicarem um enorme contingente de potenciais alunas para a educação básica, apenas 1% das mulheres que estavam encarceradas, em 2002, tinha concluído o ensino fundamental na prisão”.6 A realidade desses interditos que povoam os regulamentos formais e informais nas prisões femininas – a proibição de livros jurídicos em muitas delas, o esvaziamento de funções destinadas às presas no setor da “judiciária” em marcante diferença do que ocorre com os presos, a coincidência de horários das aulas com o trabalho, ou o jantar, dentre outras razões – operam no registro próprio das disciplinas, do contradireito na melhor acepção foucaultiana7, como também dizem respeito ao universo de representações e estereótipos que destituem e desqualificam a mulher presa. O lugar por ela ocupado nesse diagrama de papéis é tanto o da “louca”, “que não sabe se comportar”, “que arruma confusão” – insubmissa assim ao código disciplinador da prisão que admite e incita a violência, mas não tolera os protestos – como também o da “ignorante”, “que não conhece os direitos”, “desqualificada”. A prisão feminina é construída simbolicamente como um espaço onde não há organização, solidariedade, e embora menos violento (as rebeliões femininas são raras), é frequentemente associado a um tipo de desordem, atribuída à “incapacidade nata” das mulheres de conviverem pacificamente e segundo o regulamento vigente das cadeias (masculinas, diga-se de passagem). É a partir desse imaginário sistematica5 “Mulheres Encarceradas. Diagnóstico Nacional”. DEPEN/MJ 2008. 6 “Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil”. Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional, CEJIL, e as entidades que constituem o Grupo de Estudo e Trabalho Mulheres Encarceradas, fevereiro de 2007. 7 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. O nascimento da prisão. 16ª ed. Petrópolis. Editora Vozes, 1997. 77 CEREJA discute mente construído e reiterado que se opera e se banaliza o perverso jogo no qual direitos à informação, à educação e, enfim, o exercício da cidadania é permanentemente subtraído, e a discriminação de gênero, naturalizada. É assim, a partir desse contexto de representações que efetivamente molda práticas, que o sistema prisional feminino abre margem para o campo do maior arbítrio, o terreno disciplinar mais exaustivo, a serviço, nos dizeres de Foucault, de um projeto mais acabado que vise a “docilização dos corpos e a extração de sua utilidade”.8 É seguramente aí que o trabalho, como categoria moral fortemente operante no mundo prisional, certamente em sua forma a mais subordinada, alienada e explorada, tenderá a ocupar uma peculiar centralidade, em especial no tocante às mulheres. É o trabalho, portanto, que será objeto de insistente retórica pelas políticas ditas ressocializadoras, e, pese sua obrigatoriedade, será travestido ao mesmo tempo em direito e “terapia prisional” a balizar as intervenções políticas e jurisdicionais da execução penal, negando-se ainda a quaisquer outras experiências/direitos, sobretudo à educação.9 Se a educação ocupa a dimensão única de proporcionar uma experiência humana da autonomia, reafirmando ao mesmo tempo a capacidade de sonhar e transcender a uma realidade dada, de que nos fala Mariângela em seu texto, é precisamente por isso que a prisão e toda sua maquinaria disciplinar, despersonalizante, desumanizadora a coíbam em cada pequeno espaço em que venha a surgir. Embora a incompatibilidade entre elas seja intrínseca, é também certo que o poder não se exerce sem que ao seu lado e a partir dele se constituam, a todo momento, formas de resistência. Viver a experiência do conhecimento no universo do cárcere talvez venha a ser, nesse sentido, uma das mais completas formas de resistência constituíveis nesses mortificados espaços. 8 Idem. 9 Um exemplo marcante é a enorme resistência até hoje vivenciada ao reconhecimento da remição pela educação, ou seja, a extensão do direito previsto em lei no que toca ao trabalho (o resgate de um dia na pena a cada três trabalhados) para a educação. 78 EDUCAÇÃO E SEGURANÇA CEREJA discute Para início de conversa Prisão e educação: lógicas incompatíveis? Aline Yamamoto A Lei de Execução Penal declara, em sua exposição de motivos, que o principal objetivo da pena privativa de liberdade no Brasil é a ressocialização da pessoa presa. Dentre as possíveis leituras que existem a respeito do conteúdo de tal objetivo, entendendo-o como princípio que visa humanizar a execução da pena de prisão, pode-se dizer que o sistema penitenciário deve operar para reduzir ao máximo os efeitos deletérios da privação de liberdade, não restringindo o exercício de qualquer direito que não sejam aqueles diretamente afetados pela condenação. No entanto, a lógica que domina e norteia as atividades, as relações interpessoais e condutas dentro da prisão é a da ordem, disciplina, segurança e neutralização do ser humano que faz parte desse sistema, afetando não só as pessoas presas, como também todos os funcionários que nela atuam. Neste cenário, em que a obediência passiva de todos é o interesse prioritário a ser alcançado, a educação é encarada apenas como um dos instrumentos para sustentar o discurso da reabilitação. Tratada de forma acessória à prisão e não como um direito, são inúmeros os entraves para sua realização: os horários são incompatíveis com a rotina da prisão, as atividades educativas concorrem com as oficinas de trabalho, os espaços físicos são inadequados, as regras disciplinares são arbitrárias etc. Como exemplo claro de instituição total, a prisão limita-se, essencialmente, à contenção da massa carcerária por meio de uma rotina rigorosa de controle permanente sobre o tempo e o corpo das pessoas. Para estas, resta adaptar-se aos padrões e comportamento esperados para conseguir alguns privilégios e ser, então, considerado preparado para voltar ao convívio social. 81 CEREJA discute Nesse ambiente, em que há pouco espaço para o exercício de individualidades e a liberdade é tolhida de forma ampla, como garantir o direito à educação? Seguindo uma lógica completamente oposta, a educação contribui para a emancipação do ser humano e para o desenvolvimento das potencialidades humanas, como a reflexão, a autonomia, a iniciativa, o diálogo, a crítica etc., permeada por uma relação afetiva e de respeito mútuo entre os sujeitos. De que forma, então, concretizar um processo educativo dentro da prisão? Será necessário haver uma reforma estrutural nos modelos atuais de encarceramento para que os preceitos da educação sejam efetivados? Ou trata-se, então, de ver a educação como um espaço de resistência? 82 CEREJA discute Segurança versus educação Maurílio de Souza Firmino Ao falar em educação ressaltamos que ela foi pensada para as classes dominantes, excluindo índios, negros e pobres. É importante acrescentar que esse modelo tem origem no regime militar. A segurança no sistema penitenciário atual é entendida como um conjunto de procedimentos que visam manter a ordem e disciplina de uma unidade – isto na teoria, pois na prática tenta conseguir seus objetivos através de um controle totalitário e violento. Além de não ser eficiente, diminui as possibilidades de ações educativas. Alguns procedimentos submetem os encarcerados, visando subjugá-los, desprezando suas consequências e até a eficiência deste controle, e em nome disso pode tudo, inclusive desrespeitar direitos e a segurança do próprio preso. O trabalhador penitenciário é inserido numa cultura em que acreditar em ações positivas significa premiar o comportamento criminoso. Um benefício como a escola é visto como potencializador do crime. O apenado, quando não inserido em atividades escolares, pode ter dificuldade em interagir com outras pessoas que estão fora do universo carcerário, como sua família ou amigos. Esta dificuldade é resultante da carência de informações, pois o único assunto a que tem acesso é o relativo ao seu ambiente. Do outro lado, o recluso, ao submeter-se a programas ressocializadores, é considerado um criminoso fraco e confuso para os seus pares. Neste contexto a disciplina é melhor quando realizada por pessoas de cara feia, truculentas e autoritárias, enquanto uma escola deve ser edificada na gentileza e paciência. Diante disto os Estados carecem de projetos que visem à valorização e ao resgate do ser humano, gerando assim uma segurança eficiente através da educação, efetivando-se somente quando realizada em ambiente seguro, respeitando-se o crescimento individual. 83 CEREJA discute Educação ou punição Rowayne Soares Ramos Observando ao longo dos cerca de sete anos em que estamos atuando com profissionais da educação em contextos penitenciários, servidores da segurança pública, voluntários (religiosos) e sujeitos privados de liberdade, podemos perceber que a palavra educação se completa para todos em seu significado amplo, mas que esta mesma palavra, em outros momentos, causa medo e insegurança em alguns sujeitos que utilizam o conhecimento adquirido ao longo da vida para impor as ideias autoritárias e punitivas que não fazem parte do direito à vida e nem mesmo do direito à educação. Não seria a educação nos espaços prisionais a causadora de tantas insatisfações, medos e insegurança pelo fato da ação educacional ser libertadora – libertadora das amarras sociais, libertadora das mentes adestradas a somente responder ao fácil, ao imposto e ao pronto e acabado? Não seria o medo da ação educacional nos contextos prisionais causado pela ideia de segurança que impera nesse ambiente? Segurança que trata de fazer amarrações, punições, detenções, castrações, no sentido de somente castigar o sujeito privado de liberdade e seu direito inviolável de poder pensar, se expressar e de ser um sujeito digno? De ser cidadão por meio do acesso ao conhecimento que lhe deve ser proporcionado de forma igual às demais pessoas que não estão privadas de liberdade? Medo causa insegurança. As más condições de trabalho aos profissionais que atuam no contexto prisional são um fator forte de medo e apreensão. E isso explica, em alguns casos, por que muitas ações educativas não prosperam em determinados contextos prisionais. Mas somos conhecedores de lugares e espaços que possuem as melhores instalações de segurança máxima e demais recursos tecnológicos que proporcionam “segurança” ao homem e, no entanto, as ações educacionais não acontecem na prática. 84 CEREJA discute A educação em prisões para sujeitos privados de liberdade implica perceber que o conjunto de juízos e normas sobre criminosos ganhou forma de verdades e se legitimou pelo direito penal, onde não há interesse pelo “homem conhecível, enquanto alma, individualidade e consciência, ao se pretender a universalidade do normativo” (Foucault, 1989: 267). O transgressor, quase sempre, é visto sob o ângulo do seu delito. A sociedade o enquadra num único e definitivo tempo, em que as lembranças da infração não deixam apagar a culpa. O seu tempo é o do crime, o seu espaço o da prisão e o seu destino, a marginalidade. Reconhecer a história do outro, dialogar/discutir a política do encarceramento e proporcionar ações educacionais que possam dar significado ao desenvolvimento humano e intelectual do sujeito em privação de liberdade são atitudes éticas e de respeito que valorizam os direitos humanos. E, com isso, se estabelece a verdadeira relação saudável entre educação e segurança, construída por meio de uma linguagem: a linguagem do amor ao próximo, da justiça social. No entanto, as lutas ideológicas não se encontram apenas nas diferentes visões de mundo. São também afirmações de uma determinada subjetividade percebida nos discursos. A organização social do discurso, por exemplo, numa formulação mais geral, apresenta enfoques de restrição ao uso deste discurso, numa ordem de quem pode falar, quando se pode falar, o que falar e quando falar. Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 11ª Ed. – São Paulo: Ed. Hucitec, 2004. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ. Vozes. 1986. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ORLANDI, Eni Pulccineli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas, SP: Hucitec, 1997. 85 CEREJA discute Educação nas prisões Manoel Rodrigues Português A educação, desde que a prisão se tornou a forma por excelência de combate ao crime, combinando elementos punitivos, dissuasórios, intimidativos e correcionais, é parte constituinte da operação carcerária de reabilitação dos sujeitos punidos. Este é o fundamento para a edificação de todo aparato jurídico legal para garantir o direito à educação destinada aos prisioneiros. O objeto de que trata este artigo é a educação formal, a escolarização. Destaca-se, contudo, que os processos de educação formal, informal e não formal irrompem-se e interferem-se reciprocamente no ambiente prisional. A prisão caracteriza-se por ser um sistema social, com regras, valores e procedimentos que lhes são próprios; com papéis que implicam em posições, privilégios, poderes e status. Os segmentos que compõem a prisão, a saber: prisioneiros (e seus familiares), funcionários, técnicos e diretores, forjam em seu próprio interior a gestão penitenciária, sua organização e funcionamento, determinando padrões de comportamento, relacionamento e distribuição de poder (Fischer, 1996). A finalidade dessa organização é a manutenção de um equilíbrio tênue do cotidiano prisional e controle da massa encarcerada. “É um terreno pantanoso, de relações pactuadas entre corpo dirigente, funcional e lideranças da população carcerária que permite um equilíbrio tênue e sensível da ordem interna.” (Português, 2001a: 30). Assim, os meios pelos quais a prisão se propõe a reabilitar criminosos — o isolamento, a disciplina, a ordem, a vigilância e a segurança — transformam-se no fim precípuo da organização penal. Isso não significa que as propostas de reabilitação do sistema penitenciário são ausentes ou inexistentes, mas que estão inseridas nesta lógica de controle da massa encarcerada, afiançando-a. 86 CEREJA discute A constatação de que a prisão não reduz a criminalidade e não reabilita é tão antiga quanto a própria prisão. À prisão não caberia suprimir as infrações; antes, seria sua função distingui-las, distribuí-las e até utilizá-las. “Organizar as transgressões numa tática geral de sujeições (...) É uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles” (Foucault, 1986: 226). O sistema penitenciário, portanto, gerencia a delinquência, inserido numa estratégia global de dominação e disciplinarização. O controle da massa encarcerada, transfigurado no fim precípuo da organização penitenciária, o necessário e irrefreável processo de socialização e aprendizagem ao sistema social da prisão, ao mundo do crime (Ramalho, 1979), prescreve e orienta todos os programas e atividades cujo escopo é a reabilitação dos sujeitos punidos: a psicoterapia, o trabalho, a cultura, os esportes e a educação. A alternativa das ações identificadas com a reabilitação e, em especial, a educação, recai na contradição inerente aos processos de ajustamento, de adaptação dos indivíduos ao sistema social da prisão. A intenção de subjugar e de negar a vocação ontológica do homem de ser sujeito, de ser criativo e de ser mais, visto ser inacabado, inconcluso (Freire, 1979), jamais pode ser plena e integral. Inapelavelmente, estes processos encerram em si uma série de contradições. “As contradições existem dentro de todos os processos do princípio ao fim; movimento, coisa processo, pensamento – tudo é contradição” (Tsé-Tung, 1979: 40). No interior das prisões as contradições do processo de ajustamento materializam-se nas possibilidades concretas dos indivíduos punidos preservarem-se como sujeitos; na resistência a subjugarem-se plenamente aos valores da instituição e do sistema social que lhe é inerente. “A resistência prisioneira ao controle carcerário (...) é muito mais forte e presente que seu raro registro na literatura faz supor (...). As pessoas presas conseguem man- 87 CEREJA discute ter a identidade, os valores de origem e grupais, a perspectiva de vida e de liberdade, a despeito das longas condenações e de todos os fortes e rigorosos meios de controle e sujeição utilizados pela instituição penitenciária” (Rocha, 1994: 3). A educação formal não permanece neutra, em absoluto, nesse processo pleno de contradições de subjugação – resistência. “A característica fundamental da pedagogia do educador em presídios é a contradição, é saber lidar com conflitos, saber trabalhar as contradições à exaustão” (Gadotti, 1993: 143). Por um lado, as rígidas normas e procedimentos oriundos da necessidade de segurança, ordem interna e disciplina das unidades que prescrevem as atividades escolares, a vigilância constante ou até mesmo a ingenuidade dos educadores, podem contribuir para que a escola seja mais um dos instrumentos de dominação, subjugando os indivíduos punidos ao “sistema social da prisão” (Sykes, 1999) ao “mundo do crime” (Ramalho, 1979). Por outro lado, a escola pode apresentar-se como um espaço que se pauta por afirmar a vocação ontológica do homem, a de ser sujeito, que pressupõe o desenvolvimento de uma série de potencialidades humanas, tais como: a autonomia, crítica, criatividade, reflexão, sensibilidade, participação, diálogo, estabelecimento de vínculos afetivos, troca de experiências, pesquisa, respeito e tolerância, absolutamente compatíveis com a educação escolar, especificamente a destinada aos jovens e adultos (Português, 2001a). As possibilidades concretas da educação nas prisões recaem em desenvolver suas ações nos interstícios dos processos de dominação e subjugação. O embate franco, o conflito aberto, fatalmente traz, em seu bojo, o acometimento do processo educativo e a afirmação dos procedimentos de vigilância, de segurança e da ordem interna. No cotejo, avultam-se os preceitos relativos aos esquemas disciplinares e punitivos. No claro intuito de materializar as possibilidades da educação, é fundamental inscrever a educação em prisões no cenário educacional brasi- 88 CEREJA discute leiro e na constituição de um sistema a ele integrado, desarticulando-a da gestão penitenciária, a fim de concretizar uma Educação nas prisões e não para as prisões; estender ao universo da prisão os pressupostos, objetivos, currículo, orientações, metodologias, avaliação e certificação da Educação de Jovens e Adultos. A fim de acometer a entropia da gestão penitenciária, é absolutamente necessária a coordenação da educação e a composição de seus atores com segmentos externos a ela, atribuindo-se ao poder público municipal tal incumbência, em consonância com as diretrizes nacionais da educação de jovens e adultos. Referências bibliográficas COELHO, Edmundo Campos (1987). A Oficina do Diabo (Crise e conflitos no sistema penitenciário no Rio de Janeiro). Rio de Janeiro. Espaço e Tempo, IUPERJ. FISCHER, Rosa Maria (1996). O Círculo do poder – as práticas invisíveis de sujeição nas organizações complexas. In: FLEURY, Maria Tereza Leme e FISCHER, Rosa Maria (organização). Cultura e Poder nas Organizações. 2ª ed. São Paulo, Atlas. FOUCAULT, Michel (1986). Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Trad. Lígia M. Pondé Vassallo, 4ª ed. Petrópolis - RJ, Vozes. FREIRE, Paulo (1995). Política e Educação. São Paulo, Cortez, 2ª ed. _________ (1979). Educação e Mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 18ª ed. GADOTTI, Moacir (1993). Educação como Processo de Reabilitação. In MAIDA J.D. Presídios e Educação (org.). São Paulo, FUNAP. PORTUGUÊS, Manoel Rodrigues (2001). Educação de Adultos Presos: Possibilidades e Contradições da Inserção da Educação Escolar nos Programas de Reabilitação do Sistema Penal no Estado de São Paulo. São Paulo, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. __________ (2001). Educação de Adultos Presos. In: Educação e Pesquisa – Revista da Faculdade de Educação da USP. Vl. 27 jul/dez 2001. RAMALHO, José Ricardo (1979). Mundo do Crime: a ordem pelo avesso. Rio de Janeiro, Graal. ROCHA, Luiz Carlos da (1994). A Prisão dos Pobres. São Paulo, Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 89 CEREJA discute SÃO PAULO: AÇÃO EDUCATIVA; BRASÍLIA: MEC (1997). Educação de Jovens e Adultos: Proposta curricular para o 1º Segmento do Ensino Fundamental, Ação Educativa: São Paulo; MEC: Brasília. SYKES, Gresham M., (1999). The Society of Captives: a Study of a Maximum Prison. New Jersey, Princeton University Press. TSÉ-TUNG, Mao (1979). O Pensamento de Mao Tsé-Tung: Sobre a Prática, Sobre a Contradição, Sobre a Arte e Literatura. Seleção e tradução: José Ricardo Carneiro Moderno. RJ, Paz e Terra. 90 CEREJA discute A educação no contexto do cárcere Marizangela Pereira de Lima O sistema penitenciário ao longo de sua história tem sido pensado sob a ótica de aparelho reformador dos indivíduos. Foram estruturadas práticas de dominação, através de relações de força, poder e violência legitimadas pelo Estado. No entanto, o que se verifica é o aumento do contingente de pessoas que são privadas de liberdade por não se adequarem ao sistema vigente na nossa sociedade. Atualmente, o sistema carcerário no Brasil possui inúmeros problemas: superlotação, estrutura física em estado precário, constantes rebeliões, fragilidade na proteção da integridade física, falta de treinamento dos funcionários, violações de direitos humano, e — o mais preocupante — poucas oportunidades de recuperação dos detentos. É nesse contexto que o Estado tem reservado aos apenados, ainda que de forma bastante precária, serviços, como apoio psicossocial, assistência médica, atividades laborais e educacionais. São atividades previstas na Lei de Execução Penal (LEP), com vistas à ressocialização desses indivíduos. A educação formal se insere no cárcere como meio de garantir aos cidadãos presos a oportunidade de acesso à escolarização, da qual, por diversos motivos, os mesmos não usufruíram quando em liberdade. Entende-se que ela é um recurso importante no processo de desenvolvimento humano, e que apesar da maioria das pessoas que trabalham no cárcere não aceitarem, a educação constitui um direito público e subjetivo assegurado por lei a todas as pessoas, inclusive aos que cumprem penas. Pois a condição de preso não deve tirar-lhe a possibilidade de ampliação do conhecimento, uma vez que esta é a condição indispensável ao seu processo de emancipação como ser humano. Apesar de a educação ser usada como possibilidade de instrumentalização para a ressocialização, atesta-se, nesse sentido, a impressão de que 91 CEREJA discute as prisões são apenas depósitos de pessoas cumprindo punição por crimes cometidos. O que se verifica é uma incompatibilidade muito grande entre os objetivos da educação e os objetivos da segurança, pois a primeira vista à emancipação dos indivíduos enquanto a segunda à anulação dos mesmos. “A contradição entre a educação e a reabilitação penitenciária incide preponderantemente neste aspecto. A primeira almeja a formação dos sujeitos, a ampliação de sua leitura de mundo, o despertar da criatividade e da participação para a construção de conhecimento, a transformação e a superação de sua condição. Já a segunda atribui a absoluta primazia na anulação da pessoa, na sua mortificação enquanto sujeito, aceitando sua situação e condição como imutáveis ou, ao menos, cujas possibilidades para modificá-las estão fora de seu alcance.” (Português, 2001, p. 200) Tal afirmativa se confirma no dia a dia das instituições prisionais, pois as pessoas que trabalham com os apenados não estão preparadas para promover a sua reabilitação, mas unicamente a punição. Como, por exemplo, na retirada das alunas para a sala de aula, no tratamento de reprovação constante por acharem que elas só querem ir passear, trocar informações. Ressocialização, reeducação, reabilitação são termos muito utilizados como sinônimos para designar a pretensão de alcançar o que seria a promoção do desenvolvimento do preso para devolvê-lo à sociedade como um cidadão “de bem” e produtivo. No entanto, o que se verifica é uma distância muito grande entre este discurso, que não é de todos, e o trabalho que é desenvolvido na prática dentro das casas penais. “Ainda que de forma crítica, tais análises tomam a educação como elemento a serviço da transformação dos indivíduos que se encontram em situação de privação de liberdade, que parte da premissa de que a educação é um direito humano, portanto, assegurada a todas as pessoas, inclusive àquelas socialmente 92 CEREJA discute identificadas como criminosas. Se na primeira perspectiva a população carcerária é objeto da ação da educação, na segunda, é sujeito deste direito, ao menos formalmente.” (Graciano, 2005, p.13) A educação no cárcere deve ser vista como alternativa para a construção/resgate da autoestima, da capacidade produtiva e reflexiva dos apenados, bem como a devolução de direitos básicos do ser humano como o sentimento de pertencimento à raça humana. Faz-se necessária uma reforma estrutural; não pequenos ajustes, mas profundas transformações nos modelos atuais de encarceramento para que os preceitos da educação sejam efetivados. É necessário que todos – Estado e sociedade civil – estejam engajados nessa mudança. Finalizo com esta frase tão chocante, mas real: “Os apenados hoje estão contidos, amanhã poderão estar ‘contigo’” – escrita em um presídio do Nordeste, segundo o deputado Domingos Dutra1. A sociedade precisa fazer algo; se não for pensando nos direitos dos que estão presos, que seja pelo menos para sua própria proteção. Referências bibliográficas GRACIANO, Mariângela. A educação como direito humano: a escola na prisão. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação. São Paulo: USP, 2005. PORTUGUÊS, Manoel Rodrigues. Educação de adultos presos: possibilidade e contradições da inserção da educação escolar nos programas de reabilitação do sistema penal do estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação. São Paulo: USP, 2001. 1 Relator da comissão na CPI do Sistema Carcerário. 93 CEREJA discute Comentário Educação e segurança nas prisões Fabio Costa Morais de Sá e Silva Anos atrás, o Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro desenvolveu uma atividade com vários grupos de presos daquele Estado, tendo como objetivo até então inédito viabilizar a escuta da própria população prisional na elaboração de uma política pública para a oferta de educação nas prisões (Sá e Silva, 2006; 2008). A atividade consistia em capacitar os presos na metodologia de teatro-fórum e convidá-los a produzir cenas que revelassem aspectos problemáticos de suas experiências com educação nas prisões. A encenação de um dos grupos abordava um episódio de “revista de cela”, no qual os presos não apenas tinham os seus livros e cadernos destruídos pela ação da polícia, como também tinham de enfrentar posteriores cobranças dos professores pela suposta falta de cuidado com o material. Apesar da linguagem lúdica que é própria da expressão teatral, a apresentação desse grupo de presos trouxe à tona um dos problemas mais centrais e dramáticos da gestão prisional: o embate frequente entre segurança e educação. Quem busca promover a educação nas prisões alega que as medidas de segurança adotadas nas unidades representam um fator de desmotivação, quando não de completo impedimento ao engajamento com o ato de aprender. Quem administra as prisões e por vezes estabelece restrições à prática educativa nessas unidades em geral alega fazê-lo em nome da preservação da segurança – seja ela dos educadores, dos agentes penitenciários, da sociedade ou dos próprios presos. Os textos que Maurílio Souza Firmino, Rowayne Soares Ramos, Marizangela Pereira e Manuel Rodrigues Português produziram para este número do CEREJA discute podem não oferecer uma saída pronta e acabada para este 94 CEREJA discute estranhamento, mas certamente oferecem bons insumos para que compreendamos as suas origens e formas de reprodução. E, para proveito ainda maior do leitor, fazem-no a partir de uma linguagem que não apenas é bastante reflexiva, mesmo quando não escorada diretamente em referenciais teóricos ou acadêmicos, como também é profundamente autobiográfica – já que todos eles reúnem experiência de trabalho e pesquisa no sistema penitenciário. No que diz respeito às origens do problema, os textos parecem remeter ao processo histórico pelo qual o alcance e o sentido do funcionamento das prisões foi se construindo. Como apontou Foucault, que aliás é citado em várias ocasiões pelos autores dos textos aqui reunidos, a explicação para o sucesso da prisão no quadro das reformas penais do século XVIII reside na sua capacidade de atender a uma outra aspiração do projeto burguês que não a da simples racionalização do aparato punitivo. Essa aspiração é a da transformação do condenado mediante a intervenção técnica e científica em seu corpo. A trajetória da instituição prisional, culminando no modelo do panóptico, é uma expressão sintomática dessa nova maneira de não apenas lidar com as ilegalidades, mas também promover o ajustamento dos indivíduos a esquemas mais gerais de dominação. Pouco a pouco, as prisões foram assumindo a vocação de “tratar e reabilitar” a figura do “delinquente” a fim de que ele pudesse retornar harmonicamente ao convívio social. O “sujeito de direitos”, antes celebrado pelas revoluções iluministas, acabou por tornar-se um objeto da ciência, de seus programas e esquadrinhamentos. As práticas jurídico-penais foram colonizadas pelos discursos de um Lombroso, um Ferri, um Garofalo. “E os juízes, eles mesmos, sem saber e sem se dar conta, passaram, pouco a pouco, de um veredicto que tinha ainda conotações punitivas, a um veredicto que não podem justificar em seu próprio vocabulário, a não ser na condição de que seja transformador do indivíduo” (Foucault, 2006:138). Em muitos sentidos, os autores indicam que as noções de “segurança” e até mesmo de “educação” até hoje são largamente definidas em função daquele projeto. No caso da segurança, esta restrição de sentido parecerá 95 CEREJA discute mais saliente e imediata ao leitor. Maurílio Souza Firmino relata que, no dia a dia das prisões, a segurança acaba sendo entendida como um atributo de “pessoas de cara feia, truculentas e autoritárias”. E Marizangela Pereira dá o exemplo da “retirada de alunas [da cela] para a sala de aula” como uma ocasião constantemente acompanhada por um “tratamento de reprovação, por acharem que elas só querem ir passear, trocar informações”. “Passear” e “trocar informações” são comportamentos inerentes à condição humana que em nada ameaçam a “segurança” dos estabelecimentos penais ou da sociedade. Censurá-los e, com isso, restringir a possibilidade de processos de ensinoaprendizagem nas prisões só pode representar uma tentativa de reafirmar a perversa lógica disciplinadora de que falavam os estudos de Foucault. A educação não está necessariamente fora disso. Como adverte Manuel Rodrigues Português, a escola pode ser “mais um dos instrumentos de dominação, subjugando os indivíduos ao sistema social da prisão ou ao mundo do crime”. Um dos argumentos mais utilizados para se reivindicar a oferta de educação nas prisões está baseado na crença, ingênua ou mal intencionada, de que a educação poderá “transformar” os indivíduos presos, fazer com que se “arrependam de suas trajetórias criminosas” e aceitem um “conjunto de valores sociais” supostamente compartilhados por uma maioria não-delinquente. Nessa leitura, a educação corresponde a uma simples ferramenta para a readequação ética dos presos, tendo como base, obviamente, a ética de quem se pretende “de bem” (Sá, 2005). Por isso é que é importante o alerta de Rowayne Soares Ramos no sentido de que, nas prisões, “alguns sujeitos utilizam o conhecimento adquirido ao longo da vida para impor ideias autoritárias e punitivas” e de que um olhar atento para as dinâmicas educativas nas prisões pode revelar padrões inusitados de opressão baseados na definição de “quem pode falar, quando pode falar, o que pode falar e como pode falar”. No que diz respeito às formas pelas quais o embate entre segurança e educação se reproduz nas prisões, os textos revelam um notável processo de 96 CEREJA discute subjetivação muito semelhante ao que Goffman identificou em seus estudos sobre “instituições totais” (1974). Nesse processo, agentes, dirigentes e até mesmo presos não apenas introjetam a perversa lógica disciplinar pela qual as prisões têm operado como se tornam eles próprios agentes de reprodução dessa lógica. O texto de Maurílio Souza Firmino descreve esse fenômeno sem usar meias palavras. Segundo sua narrativa, “o trabalhador penitenciário é inserido numa cultura em que acreditar em ações positivas significa premiar o comportamento criminoso. Um benefício como a escola é visto como potencializador do crime. De outro lado o recluso, ao submeter-se a programas ressocializadores, é considerado fraco e confuso para os seus pares”. Felizmente, os textos aqui reunidos também trazem uma palavra de esperança. Como todos os autores mencionam, ainda que com diferença de ênfase, o acúmulo teórico e prático da Educação de Jovens e Adultos nos legou uma noção de educação que não se deixa represar pelas pretensões disciplinadoras sobre as quais a prisão se erigiu como instituição. Nessa outra visão, a educação aparece como “um espaço que se paute por afirmar a vocação ontológica do homem, a de ser sujeito, que pressupõe o desenvolvimento de uma série de potencialidades humanas, tais como: a autonomia, a crítica, a criatividade, a reflexão, a sensibilidade, a participação, o diálogo, o estabelecimento de vínculos afetivos, a troca de experiências, a pesquisa, o respeito e a tolerância”, para citar a contribuição específica de Manuel Rodrigues Português. Essa noção distinta de educação pode servir não apenas como um meio de resistência à lógica de funcionamento das prisões — como Aline Yamamoto parece haver sugerido no texto que motivou todo este debate —, como também pode ajudar a dar novos sentidos para a “segurança” na política penitenciária. Uma gestão prisional que se comprometa a promover a educação como “prática de liberdade”, como dizia o saudoso Paulo Freire (2000), pode buscar os fundamentos da “segurança” no respeito aos Direitos Humanos e não nos esquemas de sujeição que tradicionalmente organizam a convivência nas prisões. Seremos capazes de construí-la? 97 CEREJA discute Referências bibliográficas FOUCAULT, Michel. Sobre a Prisão. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2006. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – História das violências nas prisões. Tradução de Raquel Ramalhete, 13 ed. Petrópolis: Vozes, 1996. FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade: a sociedade brasileira em transição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. GOFFMAN, Erving. Manicônios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. SÁ, Alvino Augusto de. Sugestão de um esboço de bases conceituais para um sistema penitenciário. In: Sá, Alvino Augusto de (Org.). Manual de projetos de reintegração social. São Paulo: Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, 2005, p. 13-21. SÁ E SILVA, Fabio Costa Morais de. Cooperação internacional, parcerias governamentais e inclusão social pela educação: lições aprendidas com o projeto Educando para a Liberdade. In: UNESCO; Ministério da Educação; Ministério da Justiça. (Org.). Educando para a liberdade: trajetória, debates e proposições de um projeto para a educação nas prisões brasileiras. Brasília, DF: UNESCO, 2006 SÁ E SILVA, Fábio Costa Morais de. Educación para Todos y el Sueño de una Nueva Política Penitenciária para Brasil. In: UNESCO; OEI; Gobierno de España. (Org.). Educación en prisiones en latinoamérica: derechos, libertad y ciudadanía. Brasília, DF: UNESCO, 2008, p. 143-170. 98 EDUCAÇÃO FORMAL E NÃO FORMAL CEREJA discute Para início de conversa O que há de educação em prisões? A educação formal e a não formal. Raiane Assumpção Quando a palavra “educação” é utilizada, atribui-se a ela algum significado. Ainda que estes significados possam se diferenciar quanto a aspectos ideológicos, conteúdos, metodologias, participantes etc., algo permanece das diferentes visões. Esse algo que permanece, das mais diversas formas de significar a educação, diz respeito ao fato primeiro de que toda Educação se refere ao ensino e à aprendizagem. Educar é aprender, é ensinar. Dada essa ideia como fato, coloquemos logo de início algumas questões abordadas e discutidas enfaticamente na atividade do FSM/2009: quando falamos da educação em prisões, a que estamos nos referindo? O que deve ser garantido no âmbito da prisão, por ser a educação um direito humano universal? O que deve ser específico, em função da intencionalidade que ela deve possuir frente à situação da privação de liberdade? De fato, o que tem sido a educação em prisões no cenário brasileiro e internacional? Embora o direito à educação seja universal, no caso brasileiro garantido pela constituição de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de fato, evidencia-se a ausência de uma política pública que garanta esse direito aos adultos em situação de privação de liberdade. São raras as unidades prisionais que tenham escolas que façam parte do sistema educacional. À Educação e aos seus profissionais tem sido atribuída uma função secundária, em relação às instâncias jurídicas e burocráticas, na avaliação para a tomada de decisões referente à pena. Com isso, há ênfase na disciplina e na segurança em detrimento das abordagens voltadas para o desenvolvimento pessoal e na inserção social. 101 CEREJA discute No que diz respeito à educação formal no âmbito das prisões, compreendida como a educação escolar, há a omissão do Estado, tanto no âmbito das diretrizes como da execução. O que existe são ações de educação formalizadas e institucionalizadas, porém que não se inserem no sistema educacional e não possuem uma proposta e um plano pedagógico definido. São resultado de algumas iniciativas institucionais, de profissionais comprometidos com a educação e de projetos sociais desenvolvidos por organizações da sociedade civil. O fato dessas ações não estarem inseridas no marco escolar faz com que sua prática se vincule mais ao contexto em que está inserida e reúna um conjunto muito diversificado de atividades, em sua maioria, articulando formação cidadã com uma formação teórica e vivência prática, além do desenvolvimento de ações que estimulam a conexão dos saberes sensíveis e reflexivos. Nessas iniciativas está presente a intencionalidade da ação pedagógica, diferenciando-se da informalidade. Com isso, tem sido necessário articular saberes formais e saberes vinculados aos direitos à saúde, trabalho, alimentação, justiça, direitos humanos. Como exemplo, o fortalecimento da autoestima e identidade concomitantemente ao trabalho para a melhoria do nível de alfabetização. Frente ao cenário descrito, uma das questões cruciais em relação à Educação de presos tem sido a incompatibilidade entre os objetivos da Educação e os objetivos da pena e da prisão. Ainda que se possa afirmar que a condição de confinamento prolongado, a necessidade de rápida adaptação a um ambiente hostil marcado pela cultura da violência e a perda de referenciais de valor sejam capazes de suscitar outras formas de saberes e de produção de conhecimentos, a questão fundamental é a garantia do direito à educação, atendendo as suas especificidades, para que os presos não sejam duplamente estigmatizados. Isso exige políticas públicas definidas, profissionais com formação e infraestrutura adequada para quem faz a mediação nesse processo educacional no cumprimento da pena. 102 CEREJA discute Educação formal e não formal no cárcere: questões anteriores e possíveis caminhos Mário Miranda Neto Mão para trás, cabeça baixa. “Sim, senhor”, “Não, senhor”, “Doutor”, “Professor”. O processo de institucionalização no cárcere assume, formaliza e naturaliza desigualdades da sociedade brasileira que na rua, mesmo que apenas retoricamente, são combatidas. Objetivamente, o disciplinar da palavra falada e dos corpos que dizem joga o ideal de respeito para um marcador de desigualdade muito evidente. Se “sai de rua”, o estigma de preso não sai da mente, das relações sociais diversas, de burocracias estatais e mesmo do corpo. Como me dizem: “É física a parada.” Parece ser contraditório, mas, mesmo para uma pretensa vanguarda, até seria suportável a igualdade para os Kaigang, mulheres quebradoras de coco e quilombolas... Mas, e para pessoas que cometeram crimes? É que tem gente que acha que quem cometeu crime veio para cá de nave espacial. Efetivamente não trabalhamos com a ideia de igualdade como valor, seja do ponto de vista biológico, antropológico, marxista, liberal ou mesmo religioso na lógica do “todos são filhos de Deus”. A ideia de prisão especial talvez seja o mais tosco exemplo de que, na luta pela sua derrubada, se via a manutenção do privilégio alargando-se o leque de beneficiários. O coração da resistência contra a educação no cárcere parece estar aí. Para aqueles que já lidam com a ideia de igualdade, segue a questão do tipo de educação. Volta e meia confunde-se educação com adestramento a partir de uma determinada visão sobre ressocialização e rein- 103 CEREJA discute tegração. Chega-se a reduzir educação a mero mecanismo para diminuição de reincidência. O fato é que educação no cárcere, para muitos, não tem a ver com processos emancipatórios, de aumento de criticidade pelo educando e de construção de igualdade. Deixa-se de levar em conta que uma decantada diminuição de reincidência, não avaliada quantitativa e qualitativamente, talvez só ocorresse na plenitude com um processo educacional que levasse em conta os valores acima citados. Ora, sem enfrentar estas questões a discussão entre educação formal e não formal – ou, como prefiro, escolarizada ou não escolarizada – fica absolutamente prejudicada. É que, pensando a educação como mecanismo inclusivo e potencializador de igualdade, o não reconhecimento da educação não escolarizada para acesso a determinados postos de trabalho ou ascendência para outros níveis educacionais cria o paradoxo para o educando de um processo rico, mas não reconhecido, que mais uma vez lhe coloca como cidadão de terceira categoria. Note-se que aqui estou trabalhando com projetos de educação não escolarizada sérios e bem organizados dentro dos princípios inclusivos já elencados. A questão que emerge é que, sem nenhum esforço por neutralidade, estou trabalhando a educação como referência do aumento de capital cultural, competências e possibilidades de escolhas para o educando. Todavia, muitos gestores de sistema prisional se preocupam apenas com o critério “ter ou não educação” na lógica da formalidade da Lei de Execuções Penais (LEP). A fiscalização também não se atém na questão de forma qualificada, seja ela realizada por conselhos, poder legislativo ou judiciário, igrejas, familiares e mesmo grupos dos aclamados Direitos Humanos. Assim sendo, projetos educacionais são, na maioria das vezes, vistos como concorrentes. Com a simples existência de um projeto educacional na 104 CEREJA discute prisão, considera-se já cumprida a LEP, não importando muito a maneira como ela se realiza. Esta situação traz problemas evidentes para os esforços de complementaridade entre educação escolar e não escolar – caminho óbvio para, no sentido formal, não tirar do educando o direito de certificação e, no sentido político e pedagógico, para aumentar seu leque de escolhas e competências. O Rio de Janeiro vem sendo visto como exemplo por implantar escolas formais vinculadas à SEEDUC em presídios da SEAP; apesar de apresentar problemas, parece desenvolver uma experiência positiva na consolidação da ideia de gestão pública integrada e intersetorial. Para além de modelos, professores e inspetores penitenciários são funcionários públicos que devem respeitar-se mutuamente. Os excessos podem ser contidos, e os atores educacionais não ficam de forma absoluta reféns da prisão na sua lógica repressiva. Há relatos de que mesmo inspetores outrora resistentes a profissionais que, pela natureza do ofício, têm autonomia intelectual e funcional, hoje veem este modelo como um dos mecanismos de garantia do funcionamento do cárcere de forma menos tensa. Muitas vezes professores mediam diversas situações e compartilham riscos, numa perspectiva mais estável e consequente para a efetivação de uma política de direitos humanos no cárcere que não os desvalorize como mercadoria ou mero mecanismo acusatório. Há ainda o aspecto da remição de pena, que pode ser facilitada pela burocracia estatal através de atestado emitido por funcionário público em exercício de função, detentor portanto, de “fé pública”. Professores concursados tem prerrogativas que podem ser usadas num sentido mais inclusivo. Outra questão: a experiência tem mostrado que vários projetos de educação não escolarizada possuem prazo determinado e detêm pouca margem de negociação com uma perspectiva repressiva. Deixam muito pouco frente à energia despendida. O frescor e oxigênio que trazem geram asfixia posterior em vários sentidos. Isso sem contar a desproporção nos custos de alguns. 105 CEREJA discute Por outro lado, a educação escolar sempre está no limiar de ser o cárcere dentro do cárcere, reproduzindo a escola com grades físicas, curriculares e outras grades da escola da rua. Sempre há o risco de professores que não lidam com a ideia de negociação constante própria do espaço que estão e se fecham em copas. Há também o risco daqueles que no processo de atuação em presídios naturalizam o engolir sapos para construir jardins e perdem a consciência de que estão a engolir sapos apenas em função de valores maiores e que os problemas estão para além de um inspetor penitenciário. Aliás, tratar todos os inspetores como sendo somente a repressão me parece um equívoco para que o professor seja somente o bonzinho. Diretrizes específicas para educação no cárcere e, no caso de uma grade curricular, bastante campo aberto para que educadores adequem esta grade à realidade de cada escola pode ser um caminho. Talvez aí a relação entre educação escolarizada e não escolarizada possa se dar de forma que os projetos possam ser complementares. O fato é que alguns projetos maravilhosos, com perspectivas inovadoras da educação, construídos no marco da educação não escolar, merecem todo o respeito. Principalmente por quebrarem a ideia do currículo como instrumento de poder e controle que despreza vários saberes relevantes e reconhecidos pela sociedade, em que pesem não reconhecidos pelo Estado. Mas a luta pelo reconhecimento destes saberes fundados na educação no cárcere me parece um problema, já que pode impingir mais um estigma sobre o educando preso. Vale lembrar as críticas quanto aos significados de projetos de educação não escolarizada que operam da seguinte forma: Homens presos: cursos de pedreiro, marceneiro, soldador, ladrilheiro, padeiro... Mulheres presas: cursos de manicure, cozinheira, costureira... 106 CEREJA discute É que nossa desigualdade opera na lógica escravocrata de trabalho intelectual para alguns e braçal para outros. Não me assusta então que os poucos presos que trabalham ganhem menos e que em muitos estados o trabalho intelectual (incluído aí o estudo formal) sequer seja levado em conta para efeitos de remição. Para além do “senhor” por vezes dito no ranger dos dentes, a ideia de “doutor” ganha cores muito vivas na prisão. Poucos conhecem o peso da hierarquia como o conhece um preso. Uma hierarquia que produziu o “doutor” sem doutorado: “O doutor me colocou aqui”; “O doutor defensor não me chama”; “Fulano (preso que faz petições) é quase um doutor”; “Aquele professor (que dá boas aulas) é um doutor”; “Fulano é doutor na cozinha”; e por aí vai. “Doutor”, na prisão, é distinção para quem sabe e resolve; é permanência colonial, robustecida pelo contato com os doutores da lei que possuem saber capital aos presos. Então enquanto não quebrarmos a lógica dos doutores, ainda mais viva no cárcere, seria problemático sonegar a possibilidade de termos expresos doutores que começam a construir sua caminhada nos cárceres. Através de prêmios e aprovações em vestibulares, vejo que o rompimento destas barreiras por alguns tem significado empenho maior de outros internos no processo de conhecimento. Mas para isso a delimitação do território escolar no cárcere parece fundamental. Até se reduzida a noção de território para o aspecto físico, torna-se notório que projetos de educação não escolar são ainda mais prejudicados. A educação fica sem lugar. Todavia, permanece o desafio da escola se reinventar. Tendo o cárcere como espelho, pode afinal a escola ser significada como local de liberdade pelos alunos se educadores tiverem a habilidade necessária para esta construção. Talvez nisso a educação não escolar pudesse ajudar. Mas sigo cético. Continuarei vendo desqualificações mútuas, justificadas ou não, porque não se enfrenta a questão da igualdade e do sistema 107 CEREJA discute de justiça criminal e penitenciário que, quando muito, incentiva processos educacionais quaisquer. É preciso evitar que a luta por um lugar ao sol coloque a rica discussão entre educação escolar e não escolar num Fla x Flu que, no contexto do cárcere, gere como resultado um 0 x 0 com os dois times eliminados. 108 CEREJA discute Reflexões em torno da educação escolar em espaços de privação de liberdade Elenice Maria Cammarosano Onofre Pensar a educação escolar em espaços de privação de liberdade nos leva a questões centrais: como lidar com a contradição da cultura prisional, caracterizada pela repressão, ordem e disciplina, com o fim de adaptar o indivíduo ao cárcere e o princípio fundamental da educação, que é por essência transformador e libertador? Ou então, estariam as práticas escolares a serviço das prerrogativas carcerárias? A quem a escola serve? Isto posto, as questões que nos parecem relevantes são: que escola está presente nas unidades prisionais? Qual é o seu papel e o que a escola pode fazer? Em quaisquer espaços, a escola possui características organizacionais e sociais que influenciam o trabalho dos agentes escolares. Como lugar de trabalho, ela não é apenas um espaço físico, mas também um espaço social que define como o trabalho dos professores é planejado, supervisionado, remunerado e visto pelos outros (Tardif; Lessard, 2005). Novos desdobramentos às questões anteriores: que espaço físico é reservado na arquitetura prisional às escolas? Quem são os professores? Em que momento eles planejam suas atividades? Orientados por quem? Como são remunerados? Embora não se possa generalizar, tem ficado evidente o descaso em relação às salas de aula adaptadas e em número insuficiente à demanda existente; aos professores que assumem as salas, sem o devido preparo e acompanhamento; à atribuição das aulas a monitores ou monitores-presos; ao salário simbólico que recebem por seu trabalho. Da mesma forma, é preciso evidenciar: que relações são estabelecidas entre a escola e seus atores, com os demais espaços prisionais, na busca de caminhos para a (re)inserção do indivíduo na sociedade? Concordando com Scarfó (2003), nossa aposta para sair da cilada entre o real punitivo da prisão e o ideal educativo da escola, bem como garantir 109 CEREJA discute uma educação de qualidade, tem sido a de oferecer processos educativos, quer de maneira formal ou não formal, que mantenham o aprisionado envolvido em atividades que possam melhorar sua qualidade de vida e criar condições para que a experiência educativa lhe traga resultados úteis (trabalho, conhecimento, compreensão, atitudes sociais e comportamentos desejáveis) que perdurem e lhe permitam acesso ao mercado de trabalho e continuidade nos estudos, quando em liberdade, o que poderá contribuir para a redução na reincidência, (re)integrando-o eficazmente à sociedade. Há que se enfatizar que o aprisionado necessita não somente ter suas necessidades básicas atendidas, pois o empobrecimento material a que é submetido é uma ameaça à sua autoestima e imagem como membro da sociedade. Mesmo sendo restrita a sua oportunidade de fazer escolhas, a escola pode contribuir no sentido de resgatar sua autonomia, num espaço em que está submetido a regras e comandos destinados a controlar o seu comportamento, nos mínimos detalhes. A escola é apontada por alunos e professores como um espaço onde as tensões se mostram aliviadas (Onofre, 2002). A autora defende que, inserida numa ordem que funciona “pelo avesso”, a escola oferece ao homem a possibilidade de resgatar ou aprender uma outra forma de se relacionar, diferente das relações habituais do cárcere, pois sendo o processo de educação contínuo, nesse espaço, ele se modifica em sua natureza, em sua forma, mas continua, sempre, sendo processo educativo. Com base nas reflexões apresentadas, optou-se por não se referir ao espaço escolar da prisão como um espaço formal de educação, visto que não seria possível, em nosso entender, explicitar o que é formal e o que é não formal em um espaço de privação de liberdade. Na penumbra de que tudo é formal, a escola se vislumbra como uma possibilidade, como um ponto de encontro, representando um campo de interação de diferentes concepções de mundo. No espaço prisional, nenhuma proposta que envolva compartilhar, interagir, intersubjetivar é simples, porém, pode resgatar a função da escola 110 CEREJA discute como mediadora de saberes, culturas e realidade, visto ser a educação um direito do cidadão, independente do espaço em que está inserido. Referências bibliográficas: ONOFRE, E. M. C. Educação escolar na prisão. Para além das grades: a essência da escola e a possibilidade de resgate da identidade do homem aprisionado. 2002. Tese (Doutorado em Educação Escolar), UNESP, Araraquara/SP. SCARFÓ, F. J. El derecho a la educación en las cárceles como garantia de la educación en derechos humanos (EDH). Revista IIDH, San José, Costa Rica, v. 36, p. 1-35, jul./ dez., 2003. TARDIF, M.; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2005. 111 CEREJA discute Educação nas prisões: mais do que reconhecer, é necessário efetivar esse direito com qualidade Felipe Athayde Lins de Melo e Juraci Antonio de Oliveira A questão prisional vem crescentemente chamando a atenção de pessoas e instituições para além daqueles que, por força de sua atuação, já estão presentes neste contexto especialíssimo de nossa sociedade. Ora, um dos temas mais controversos quando se fala nas prisões é justamente o debate sobre sua função. Não iremos aqui entrar nesta senda, que exigiria um texto de enorme fôlego. Mas pode-se, em relação a este aspecto, refletir sobre um elemento fundamental quando se pensa no papel de reabilitação ou de inclusão social dos presos, o qual a prisão deveria cumprir. Esse elemento é, sem dúvida, a educação. Aliás, ela é componente indissociável da cidadania. E é disso que falamos, em última instância, quando se pensa no retorno à vida em liberdade das pessoas que vivem ou viveram uma situação de aprisionamento. Outro tema que conquistou prestígio e certo consenso social nas últimas décadas é o direito de todos à educação. E esse direito foi reafirmado e consolidado nas diversas leis do país, desde a Constituição Federal à Lei de Diretrizes e Bases. O mesmo se aplica às prisões, pois, ainda que de forma genérica, a Lei de Execução Penal também trata do assunto. Portanto, o debate hoje necessita de um deslocamento para outro eixo. Não cabe mais, em razão dos avanços históricos, questionar se a educação, dentro das muralhas das prisões, deve ou não existir como um direito das pessoas que ali cumprem pena. O que se deve discutir agora é como efetivar tal direito. E, ainda mais, a discussão deve ir além, pois a questão que deve ser colocada, de igual importância, é que tipo de educação se oferecerá nas prisões. Ou seja, já estamos no momento de pensar na qualidade desta educação. Embora ainda persistam resistências à compreensão da importância de ações voltadas para a formação cidadã das pessoas que cumprem pena 112 CEREJA discute privativa de liberdade, os pressupostos legais, históricos e sociais contidos nos argumentos até aqui expostos são por si mesmo eloquentes o suficiente defender o direito à educação nas prisões. Cabe então contextualizar esse debate no cenário prisional do estado de São Paulo. Sendo o mais populoso da Federação, com mais de 41 milhões de habitantes, não é surpresa que o estado apresente números superlativos também em relação à população carcerária. São Paulo possui 147 estabelecimentos penitenciários, nos quais concentra mais de 145 mil presos, o que corresponde a 38% dos presos do país. Com números assim, é de se supor que os desafios para a manutenção desse sistema sejam proporcionais à sua magnitude. Outros aspectos sobre a população carcerária do estado podem indicar a direção e necessidade de políticas públicas apropriadas. O censo penitenciário organizado pela Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel (Funap) em 2002 apontou que 96% desta população é masculina, e que, dentre os homens, 76% estão na faixa etária dos 18 aos 34 anos, o que demonstra que ela é também predominantemente jovem. Igualmente revelador, o INAF Carcerário, realizado em 2006 pelo Inep, em parceria com a Funap, demonstra: Nível de escolaridade % Anos de escolaridade % Até 4ª série do ensino fundamental 33 Até 3 20 5ª a 8ª do ensino fundamental 47 4a7 48 Ensino médio 18 8 a 10 21 2 11 ou mais 11 Ensino superior Fonte: INAF Carcerário – 2006 113 CEREJA discute Diante do panorama apresentado, cumpre dizer o que é feito no estado no âmbito da educação prisional. A educação no sistema penitenciário paulista está sob a responsabilidade da Funap, fundação pública criada em 1976 e hoje vinculada à Secretaria da Administração Penitenciária. Pode-se dizer que a história da educação no sistema prisional paulista se cruza com a própria história da Funap. Até 1978 a Secretaria Estadual de Educação executava as ações de educação no sistema prisional por meio de professores comissionados. O ensino então obedecia ao calendário das escolas oficiais, com seriação anual e utilizando o mesmo material didático destinado às crianças. É de se supor que este tipo de ensino não correspondia às necessidades de uma população adulta. Além disso, a demanda por escolas nas prisões aumentava significativamente. Um ato político administrativo da Secretaria de Educação no final de 1978 suspendeu todos os comissionamentos de professores nos presídios, o que provocou a paralisação das aulas. Essa situação exigiu uma resposta por parte da Funap, que a partir de 1979 assumiu a educação nas prisões no estado. Para tanto, buscou a parceria de várias instituições, uma vez que não possuía estrutura para uma ação dessa envergadura. O ano de 1987 também foi um marco nessa história, pois, em decorrência de resolução da Secretaria da Justiça, a Funap passou a ser a responsável pela unificação da metodologia e pelo controle geral dos alunos presos de todo o estado. Em 2004 a Funap implantou o projeto “Tecendo a Liberdade”, que estabeleceu um material didático próprio e sistematizou as experiências realizadas nas escolas que a fundação mantém nas unidades prisionais. O documento do projeto declara inicialmente suas bases: 114 CEREJA discute “Em sua essência, este projeto implica a atenção ao analfabeto e prevê uma proposta de educação no sistema prisional que, ao final de um percurso formativo, além do desenvolvimento da sociabilidade, do domínio do funcionamento da escrita e dos conhecimentos por ela veiculados e de habilidades cognitivas, ofereça ao educando a certificação de Ensino Fundamental, sem a necessidade de realização de exames supletivos.” (Souza, Britto e Fortunato, 2005) A preocupação com a realidade prisional também é manifestada mais adiante: “A organização de conteúdos e as atividades sempre levarão em consideração as especificidades do educando que está no Sistema Prisional Paulista e do modelo de formação que aqui se propõe. Neste sentido, o eixo trabalho e formação humana perpassa todo o programa.” (Ibd., 2005) É necessário que se esclareça que alguns aspectos declarados não se efetivaram ainda. Este é o caso da alfabetização, que não se incluiu efetivamente neste projeto, mas que se realizou até 2007, em parte com recursos oriundos do Programa Brasil Alfabetizado do governo federal. Hoje a alfabetização ocorre com recursos exclusivamente advindos da própria Funap. Quanto à certificação, esta ainda ocorre por meio dos exames públicos, atualmente o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Em que pesem as dificuldades estruturais ainda encontradas, a implantação do “Tecendo a Liberdade” e sua execução desde 2004 trouxeram à educação no sistema prisional paulista avanços significativos, dentre os 115 CEREJA discute quais podemos destacar: a) consolidação de um grupo de educadores da Funap com formação e prática em EJA e com habilidades e conhecimentos para “interpretar” a EJA no contexto prisional; b) reconhecimento, por parte da maioria dos alunos das escolas Funap, quanto à viabilidade e adequabilidade do modelo de educação proposto; c) superação do paradigma da escola regular como modelo único para a educação no sistema prisional. Neste sentido, conquanto o debate em torno da educação formal, informal ou não formal seja deveras importante para o estabelecimento das políticas educacionais em geral, e no sistema prisional em particular, a questão primordial que se coloca para a educação prisional diz respeito ao reconhecimento de um programa de educação que considere os tempos e espaços de aprendizagem dos sujeitos em privação de liberdade, permitindo reconhecer as aprendizagens adquiridas não somente no espaço escolar “formal”, mas, sobretudo, incorporando as demais ações que, no contexto da prisão, contribuam para desenvolver nos alunos os instrumentos e conhecimentos necessários para interpretar e agir no mundo. 116 CEREJA discute A experiência do projeto “Quem Somos Nós?”: educação não formal em unidades prisionais femininas da cidade de São Paulo Fernanda Cazelli Buckeridge Este texto nasceu de observações e vivências ao longo do exercício da função de oficineira no projeto “Quem Somos Nós?”, uma iniciativa do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, realizada dentro de unidades prisionais femininas da cidade de São Paulo. De natureza educativa e informativa, o projeto consistiu principalmente em realizar oficinas temáticas com atividades lúdicas e debates sobre violência, gênero e cidadania, e teve como objetivo atuar na busca pela garantia de direitos e do exercício da cidadania. Quando pensamos em cidadania, sua compreensão mais comum é aquela relacionada com aos direitos e deveres. Ao trabalharmos com as mulheres que estão presas, pensar cidadania apenas desta forma se torna complicado por diversos motivos. A população carcerária é composta majoritariamente por pessoas com histórias de vida marcadas pela miséria e pela negligência estatal, tendo encontrado grandes dificuldades em gozar de seus direitos ao longo de suas vidas. São também inúmeras as vivências de humilhação social – efeito da desigualdade política –, em que seu sentimento de dignidade é desfeito no contínuo contato com situações de rebaixamento e descaso. Além disso, debater e vivenciar a prática cidadã em oficinas dentro do cárcere é propor uma prática educativa com objetivos emancipatórios paradoxais dentro da lógica prisional, com seus códigos disciplinares que aprisionam o corpo, a alma e destituem tudo aquilo que referencia o sentimento de humanidade. Em nossa cultura, por vezes pensamos “cidadania” de modo individualizado, quando esta somente pode ser real na presença de outros seres humanos; isto tem a ver com sentir-se parte de algo maior que a existência individual e privada, sentir-se responsável pela coletividade, pela vida pública e pelas outras pessoas. Percebemos o contínuo esvaziamento dos espaços da vida pública; estar com os outros hoje 117 CEREJA discute pode parecer perda de tempo, chateação, ou mesmo arriscado. Observamos isto também nos grupos de mulheres em situação de cárcere. As mulheres ali presas chegam com idades, histórias, opiniões e graus de envolvimento com o crime bastante diversos, e veem-se obrigadas a conviver proximamente por longos períodos de tempo. Apesar dessa proximidade física, elas relatam um grande distanciamento nos relacionamentos interpessoais, nos falam sobre fortes sentimentos de medo, solidão, isolamento e desconfiança, e descrevem o perigo existente em expressar opiniões no contexto prisional. Este regime de desconfiança impede o reconhecimento recíproco dos indivíduos como parte de uma mesma força de trabalho social, afastamnos, dificultam que pensem coletivamente os problemas que vivenciam juntos. Isto muitas vezes leva a um entendimento da experiência da prisão como resultado apenas de falhas individuais. Nas oficinas, buscamos que todas as mulheres tivessem espaço para falar, reforçando a importância do sigilo e de cada opinião exposta. Isto possibilitou abordar como temas seu cotidiano, e não conteúdos predeterminados. Aos poucos, o que era um agrupamento de pessoas que não se conheciam e não conversavam entre si começou a se configurar como um grupo, no qual as opiniões circulavam, eram respeitadas mesmo sem consenso, e as falas eram dirigidas para todo o grupo. Outras posturas afetivas e corporais foram se tornando possíveis, e o diálogo de igual para igual foi tomando lugar. Compartilhar trajetórias de vida possibilitou não só a atribuição de novos sentidos às experiências como também a percepção de vivências e questões em comum e a solidariedade com histórias diferentes. Considerando que o sistema penitenciário não oferece muitas possibilidades de racionalização para a situação em que se encontram, neste espaço – em que a prisão é compreendida em um contexto mais amplo do que apenas o âmbito individual – os sofrimentos político-sociais puderam ser legitimados e muitas vezes transformados, não em impedimento da participação coletiva, mas em direcionamentos e ações positivas. 118 CEREJA discute Comentário Os desafios da educação escolar e não escolar nas prisões Sérgio Haddad A imagem do iceberg tem sido utilizada com frequência para fazer a distinção entre educação escolar e não escolar. A parte visível do iceberg seria a educação escolar, aquela que se confunde com o próprio termo educação e que é valorizada socialmente como um direito humano e fator de conquista de cidadania. A parte submersa, com um volume maior e de sustentação da parte visível, normalmente não vista pelo senso comum, aqui denominamos de educação não escolar. Um trata de todo processo educativo institucionalizado, graduado em séries, hierarquizado. Outro, que ocorre fora deste marco oficial, pode ter como características desde práticas formalmente organizadas e sistemáticas até processos informais de ensino e aprendizagem. A somatória destas práticas constituiria o universo da educação. Vários têm sido os campos de referência conceitual que fundamentam a educação não escolar. Dentre eles, podemos destacar o campo da Educação Continuada, dos Direitos Humanos, da Formação para o Trabalho, do Desenvolvimento Humano, da Educação Popular. Podemos pensar também que à medida que nos afastamos dos processos formalizados da educação não formal, vamos chegando às experiências educativas que ocorrem no cotidiano das pessoas, pelo seu relacionamento com outras pessoas e com o seu ambiente. Poderíamos dizer, em um primeiro momento, que o que distinguiria uma prática educativa escolar e outra não escolar, porém formal, para uma prática educativa informal, seria a maior ou menor intencionalidade e institucionalidade. Quer dizer, uma prática educativa informal seria aquela com baixa intencionalidade de quem educa e teria uma forma mais assistemática. 119 CEREJA discute No entanto, isto não é muito real. Se definirmos uma prática informal como aquela que ocorre no cotidiano da nossa vida, a ação de uma mãe e de um pai educando seus filhos poderia ser classificada nesta categoria. Mas, apesar de ser uma ação pouco formal e assistemática, não podemos negar que ela é intencional – como por exemplo, educar uma criança a não bater em outra criança. Não se faz um curso para isto, é uma ação permanente e assistemática, mas não destituída de intencionalidade. Se a ideia foi classificar e mostrar as fronteiras até agora entre os diversos campos, isto não significa que não haja interações entre eles. Jaume Trilla identifica estas interações de diferentes sentidos1. As relações de complementaridade que ocorrem em função da insuficiência de cada uma delas atender igualmente a todos os aspectos e dimensões da educação. Uma tem sua ênfase maior na formação para o conhecimento, outras com maior ênfase na formação moral, ou ética, ou afetiva. Enfim, são ênfases que dão a necessária complementaridade à formação do ser humano. As relações de suplência ocorrem quando uma é insuficiente para completar os objetivos do educando, como por exemplo é o caso de um aluno que aprende a se exercitar na escola, mas não o suficiente para sua demanda de ser um atleta, o que demandaria uma formação específica não escolar. Há ainda as interações de substituição, como é o caso dos frequentes trabalhos realizados por organizações não-governamentais e movimentos sociais que acabam substituindo o papel do sistema público na escolarização da população. Ou o inverso, quando se espera da escola uma educação que dê conta de todos os aspectos da vida, como formar para o consumo consciente, educar sexualmente, ou fazer catequese, ou código de trânsito. Há ainda as relações de colaboração, nas quais as interações ocorrem como uma forma de reforço mútuo no cumprimento da missão de cada um – caso, por exemplo, dos trabalhos das escolas em museus, ou bibliotecas públicas. 1 Veja “La educación no formal” de Jaume Trilla Bernet, in: Aportes a las Prácticas de Educación no Formal, desde la Investigación Educativa, Ministerio de la Educación y Cultura, Universidad de La República, Montevideo, enero 2009. 120 CEREJA discute Se é verdade que muitas das interações possíveis são baseadas em um sentido positivo, como a complementaridade, a suplência, a colaboração, o universo da educação não é de todo homogêneo, e nem seria possível que isto ocorresse. Em particular, quando pensamos sobre o universo do informal da educação que ocorre no cotidiano das pessoas, ela certamente desenvolverá valores e comportamentos que podem ser contraditórios com os valores desenvolvidos no universo da família, ou mesmo da educação escolar. Ao analisar estas linhas de interação, finalmente, uma última questão poderia ser apontada. Trata-se do encontro colaborativo destes programas de forma coordenada. A intencionalidade das diversas dimensões da educação – escolar e não escolar – deveria ser coordenada para que houvesse um reconhecimento e uma aproximação entre elas, de forma a poder aumentar o potencial coletivo de aprendizagem. Tendo trabalhado estes conceitos, podemos refletir nestas linhas finais sobre como isto pode ser apreendido no contexto da educação que ocorre no sistema prisional. Um primeiro passo é reconhecer que há um universo de aprendizagem que não se restringe – quando ocorre – apenas à educação escolar. Não podemos nos ater apenas à parte visível do iceberg. Temos que considerar as práticas não escolares e dentro dela, as informais, aquelas relativas ao cotidiano da mulher e do homem encarcerado. Vários são os aspectos deste universo descrito pelos autores nesta publicação: o universo da escola, o universo dos cursos não escolares para o homem (marceneiro pedreiro, soldador, ladrilheiro, padeiro) e das mulheres (manicure, cozinheira, costureira), e, finalmente, o universo do cotidiano do sistema carcerário. Talvez muitas das contradições acima referidas estejam fortemente realçadas quando falamos de um universo como o sistema prisional. Esta contradição se expressa no texto de Elenice Onofre: “Como lidar com a contradição cultura prisional, caracterizada pela repressão, ordem e disciplina, com o fim de adaptar o indivíduo ao cárcere e o princípio fundamental da educação, que é por essência transformador e libertador.” 121 CEREJA discute Temos que pensar, ao identificar este universo das várias “educações”, que o seu não reconhecimento pode levar a não identificar as interações dos seus diversos sentidos, como a complementaridade, interação e colaboração. Temos que pensar o quanto esta educação não escolar, produzida no mesmo contexto em que ocorre a educação escolar, dialoga com ela, se alimentam mutuamente, na perspectiva de uma mesma formação para o educando preso. Como ambas dialogam ou confrontam com a educação informal do cotidiano de violência e repressão do sistema prisional. É possível superar seus limites? Ao mesmo tempo, ao reconhecer a existência destas diversas dimensões do educativo, é preciso considerá-las de forma coordenada, como uma política voltada ao desenvolvimento da cidadania e da reabilitação da pessoa encarcerada. Como diz Mário Miranda Neto no seu texto, ao reconhecer que normalmente os projetos educacionais dentro da prisão são vistos como concorrentes: “Esta situação traz problemas evidentes para os esforços de complementaridade entre educação escolar e não escolar que seria o caminho óbvio para, no sentido formal, não tirar do educando o direito de certificação e, no sentido político e pedagógico, para aumentar seu leque de escolhas e competências.” Pensar o sentido educativo e a articulação que existe nas diversas práticas que se organizam ou simplesmente ocorrem no sistema prisional é um desafio dos mais importantes para todos aqueles que pensam a educação nas prisões. Este desafio tem por fundamento a ideia de que este esforço de concepção e articulação atua sobre um mesmo educando que sofre as diversas influências e constrói a sua vida de sucesso e fracasso de acordo com o caminho e as alternativas que lhe são propostos. Não é um trabalho fácil, pois a fragmentação destes processos educativos é grande, e o educador do sistema prisional tem capacidade de influir apenas em alguns aspectos destas modalidades, tanto no escolar, quanto no não escolar. Trabalhar sobre as influências da educação informal que ocorrem no cotidiano do sistema prisional, com seus agentes repressivos e o universo dos encarcerados é, sem dúvida alguma, o maior desafio colocado para estes educadores. 122 Sobre os autores Alessandra Teixeira: Advogada, mestre e doutoranda em sociologia pela USP. Coordenadora da comissão sobre o sistema Prisional do IBCCRIM. Militante pelos direitos das mulheres encarceradas. Aline Yamamoto: Graduada em Direito, máster em Criminologia e Execução Penal, pela Universidade Autônoma de Barcelona, e pós-graduada em Direitos Humanos e Mulheres pelo Centro de Direitos Humanos da Universidade do Chile. Coordenadora de Projetos do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud Brasil). B. B.1: Egressa do sistema prisional paulista. C. R2: Detenta em regime semiaberto no sistema prisional paulista. Delzair Amâncio da Silva: Educadora da Secretaria de Educação do Distrito Federal, graduada em Pedagogia e pós-graduada em Educaçao Especial no Sistema Prisional. Atua na Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Sistema Prisional do Distrito Federal. Denise Carreira: Coordenadora do Programa de pesquisa e monitoramento de políticas educacionais da Ação Educativa e Relatora Nacional para o Direito Humano à Educação/Plataforma Dhesca. Feminista, ex-coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. 1 O uso de iniciais visa preservar a identidade da autora, conforme solicitação da mesma. 2 Idem. 123 Ednéia Gonçalves: Cientista social com especialização em educação. Pesquisadora da área de EJA com atuação nas áreas de formação de docentes e gestores educacionais e elaboração e avaliação de projetos socioeducativos. Assessora técnica da AlfaSol. Elenice Maria Cammarosano Onofre: Docente do Departamento de Metodologia de Ensino e Programa de Pós-Graduação em Educação (UFSCar). Linha de pesquisa: Práticas Sociais e Processos Educativos. Fabio Costa Morais de Sá e Silva: Bacharel e mestre em Direito. Foi dirigente no Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen/ MJ) e consultor da Unesco e do Pnud em projetos de melhoria do sistema penitenciário brasileiro. Atualmente é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea (Diretoria de Estudos sobre o Estado, as Instituições e a Democracia ) e doutorando em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (Boston, EUA). Felipe Athayde Lins de Melo: Graduado em Filosofia, com pós-graduação em gestão social; desde 2004 ocupa a gerência regional da Funap. Fernanda Cazelli Buckeridge: Psicóloga, mestranda em Psicologia Social, pesquisa o cotidiano de uma penitenciária feminina de São Paulo; é psicoterapeuta do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. Francisco Scarfó: Presidente do Grupo de Estudos sobre Educação em Prisões (GESEC), em La Plata, coordena curso de especialização para educadores de jovens e adultos privados de liberdade na Bolívia, organizado pela Associação Alemã de Educação de Adultos, pela Universidade de la Cordillera. Juraci Antonio de Oliveira: Cientista Social com pós-graduação em educação e marketing, é supervisor regional da Funap-SP desde 1994. 124 Manoel Rodrigues Português: Pesquisador do tema educação em prisões, autor de Educação de adultos presos: possibilidade de contradições da inserção da educação escolar nos programas de reabilitação do sistema penal de Estado de São Paulo, obra de referência na área. Atuou por 16 anos na coordenação de formação da Funap-SP. Maria da Penha Risola Dias: Advogada e assistente social, diretora da Penitenciária Feminina da Capital (SP). Atua há 30 anos no sistema prisional paulista. Mariângela Graciano: Graduada em Ciências Sociais e Jornalismo, mestre e doutoranda em Sociologia da Educação, desenvolve pesquisas sobre a educação em prisões. É assessora da ONG Ação Educativa, onde coordena o programa Observatório da Educação. Marcos José Pereira da Silva: Mestre em Educação pela PUC/SP, com foco em educação popular, é ativista dos direitos humanos, atual presidente do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP) de Campo Limpo e coordenador administrativo e financeiro da Ação Educativa. Mário Miranda Neto: Professor (Sociologia e Filosofia) e coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas na Prisão (NIEP) do C. E. Anacleto de Medeiros – Presídio Evaristo de Moraes. Representante da OAB-RJ no Conselho Penitenciário RJ; pesquisador NUFEP-UFF; discente PPGHCTE-UFRJ. Marizangela Pereira de Lima: Graduada em Pedagogia, coordenadora das atividades educativas do Centro de Reeducação Feminino (CRF) de Belém, Pará. Maurílio de Souza Firmino: Agente penitenciário no sistema prisional paulista, militante da área de educação em prisões. 125 Moacir Gadotti: Professor titular da Universidade de São Paulo (USP), diretor do Instituto Paulo Freire e autor de várias obras, dentre elas A educação contra a educação; Convite à leitura de Paulo Freire; História das ideias pedagógicas; Pedagogia das práxis; e Perspectivas atuais da educação. Natália Bouças do Lago: Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora na área de justiça juvenil e justiça criminal do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud Brasil). Raiane Assumpção: Cientista social, mestre e doutora em Sociologia, docente do ensino superior e responsável pela Coordenadoria de Educação Popular do Instituto Paulo Freire. Roberto da Silva: Professor titular da Universidade de São Paulo (USP), consultor da Unesco e pesquisador do tema da educação em prisões. Rosana da Conceição Souza Pontes Leite: Diretora de Educação do Instituto Psiquiátrico Franco da Rocha, ex-diretora do Núcleo de Educação na Penitenciária Feminina da Capital/SP. Rowayne Soares Ramos: Pesquisador do GPMSE/IE da UFMT, agente prisional do Centro de Ressocialização de Cuiabá/MT e ex-coordenador de ensino penitenciário da SEJUSP/MT. Sérgio Haddad: Economista, mestre em História e Sociologia da Educação e doutor em História e Sociologia da Educação. Coordenador geral da Ação Educativa e Diretor Presidente do Fundo Brasil de Direitos Humanos. Participa da diretoria do Conselho Internacional de Educação de Adultos. É membro da comissão nacional de educação de jovens e adultos do Ministério da Educação, do 126 Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República e membro do conselho técnico e cientifico de educação básica da Capes. Sonia Regina Arrojo e Drigo: Advogada criminalista. Sócia fundadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Integrante do Conselho da Comunidade da Vara das Execuções Penais da Capital e do Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas”. Vagner Paulo da Silva: Bibliotecário, idealizador e mediador de leitura do projeto “Leitura Ativa”. 127 Este livro foi impresso sobre papel Alta Alvura 90g pela Eskenazi Indústria Gráfica, em janeiro de 2009, São Paulo. de Jovens e Adultos da AlfaSol, é mais uma ação direcionada à ampliação da reflexão em torno dos desafios impostos ao exercício pleno da cidadania das pessoas analfabetas ou pouco escolarizadas, no Brasil e no mundo. A aposta na pesquisa, na construção compartilhada de saberes e na diversidade de estratégias de defesa da democracia como alicerce do desenvolvimento humano e social é a expressão fiel dos objetivos desta série. CEREJA discute: Educação em prisões A série CEREJA discute, do Centro de Referência em Educação Educação em prisões Organização Aline Yamamoto Ednéia Gonçalves Mariângela Graciano Natália Bouças do Lago Raiane Assumpção Cereja Centro de Referência em Educação de Jovens e Adultos