Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
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Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde 1992, à FEPAL e à Associação Brasileira de Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 EDITOR Heloisa H. Poester Fetter CONSELHO EDITORIAL Ana Rosa C. Trachtenberg • Elfriede Susana Lustig de Ferrer • João Baptista Novaes Ferreira França • Leonardo Wender • Samuel Zysman • Sara Zac de Filc COMISSÃO EDITORIAL Carmen Lúcia M. Moussalle • Carmen Saile Willrich • Rosa Beatriz S. Squef f • Vera Dolores Mainieri Chem BIBLIOTECÁRIA Geisa Costa Meirelles EDITORAÇÃO Luiz Cezar F. de Lima LAY-OUT Josimo Silva Lopes – Speed Press DIGITAÇÃO Nilza Cidade Cardarelli SECRETÁRIA Antonia Lima Iohann REVISÃO DE PORTUGUÊS Professor Antônio Paim Falcetta Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 • E-mail: [email protected] (55-51) 3333.6857 [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 1 Capa: AMENHOTEP I E AMÓSIS-NOFRETIRI 22 Egito, Novo Império (XVIII Dinastia), provavelmente de Amenhotep III, 1390-1353 a.C. Pedra-sabão, 9 x 8,3 cm 3072 A figura principal desta díade fragmentada é o deificado Amenhotep I, que é mostrado usando uma peruca núbia curta, saiote, braceletes e segurando um mangual em sua mão direita. Está ao lado de sua mãe, a rainha deificada Amósis-Nofretiri, que usa um elaborado ornamento para cabeça com a forma de um abutre, um vestido justo e um colar largo. Buracos de encaixe no topo da cabeça de cada uma das figuras tinham provavelmente a função de fixar adornos. Nas costas da peça estão gravados dois pares opostos de colunas de hieróglifos, uma coluna dupla para cada figura. No tex to atrás do rei lê-se: “O bom deus, filho de Amon, (...)/ Rei do Alto e Baixo Egito, Djeserkare (...).” A coluna atrás da rainha pode ser traduzida deste modo: “A esposa do deus, nascida de um deus, a esposa do rei (...)/ sua mãe, a mãe do rei, Amósis-Nofretiri (...).” Depois de suas mortes, tanto Amenhotep I, segundo rei da XVIII Dinastia (cerca de 1514-1493 a.C.), quanto sua mãe Amósis-Nofretiri, esposa do Rei Amósis I (cerca de 1539-1514 a.C.) foram venerados como protetores divinos da enorme necrópole de Tebas. Desfrutavam de especial popularidade entre os trabalhadores oficiais da necrópole, instalada no vilarejo de Deir el-Medina. A razão para a devoção prestada ao casal não é de todo clara, embora já se tenha especulado que Deir el-Medina teria sido fundada durante o reinado de Amenhotep I. Parece que ambos compartilharam uma sepultura em Dra Abu’l Naga, em uma tumba a princípio preparada para Amósis-Nofretiri e mais tarde ampliada para um segundo sepultamento. Em 1913-14 esta tumba foi aberta em nome do quinto Conde de Carnarvon por Howard Carter, o arqueólogo conhecido pela descoberta da tumba de Tutancâmon em 1922. Sua escultura, que talvez seja proveniente de um pequeno santuário doméstico, está ligada a um grupo de estatuetas em pedra-sabão esmaltadas que representam a própria Amósis-Nofretiri ou a Rainha Tiye, esposa de Amenhotep III, o faraó sob cujo reinado esta peça foi provavelmente esculpida.. —CNR Esta rainha-mãe, retratada afetuosa e intimamente ao lado de seu filho-rei, deve ter atraído Freud, que foi primogênito e filho favorito. “Se um homem foi, sem concorrência, o filho predileto de sua mãe, conserva ao longo da vida o sentimento triunfante, a confiança no sucesso, que não raro traz consigo o sucesso real.” (SE, 17, p.156). Ao longo de sua vida, Freud acompanhou avidamente as notícias de escavações, e certamente deve ter sabido da descoberta da tumba de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, realizada por Howard Carter. O autor do complexo de Édipo pode ter ficado intrigado com esta disposição funerária – mãe e filho, dispostos lado a lado em uma tumba comum, para toda a eternidade. —FM Sobre Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver W. Helck et al., Lexikon der Ägyptologie (Wiesbaden, 1972-), I, cols. 102-109, s.v. “Ahmose Nofretere” (M. Gitton), e ibid., cols. 201-203, s.v. “Amenophis I” (E. Hornung), com referências. Sobre o sepultamento de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver C. N. Reeves, Valley of the Kings: The Decline of a Royal Necropolis (Londers, 1990), pp.3-5. Para outras esculturas relacionadas, ver C. Aldred, “Ahmose-Nofretari Again”, Artibus Aegypti. Studia in honorem Bernardi V. Bothmer a collegis amicis discipulis conscripta (Bruxelas, 1983), pp. 7-14. P975 Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/ Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. v. 6, n. 1, 2004. Porto Alegre: SBPdePA, 2004. 1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. ISSN 1518-398X CDU: 616.891.7 Tiragem: 300 exemplares Bibliotecária Responsável: Geisa Costa Meirelles 2 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 CRB 10/1110 SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à Associação Psicanalítica Internacional DIRETORIA Presidente Dr. New ton M. Aronis Tesoureiro Dr. Lores Pedro Meller Secretária Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg Coordenador da Comissão Científica Dr. Fernando Linei Kunzler Vogais Dr. César Augusto Antunes Dra. Heloísa Helena P. Fetter Dr. Flávio Roithmann INSTITUTO DE PSICANÁLISE Diretor Secretário Dr. Gley Silva de P. Costa Dr. Antônio L. B. Mostardeiro Coordenador de Formação Dr. Luiz Gonzaga Brancher Coordenador de Seminários Dr. Leonardo A. Francischelli Núcleo de Infância e Adolescência Clínica Social Dra. Vera Maria H. P. de Mello Dr. José L. F. Petrucci PSICANÁLISE – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Editor Dra. Heloisa H. Poester Fetter BIBLIOTECA Diretora Dra. Augusta Heller Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 3 MEMBROS FUNDADORES Alberto Abuchaim Ana Rosa Chait Trachtenberg Antonio Luiz Bento Mostardeiro David Zimmermann Gildo Katz Gley Silva de Pacheco Costa Izolina Fanzeres José Facundo Passos de Oliveira José Luiz Freda Petrucci Júlio Roesch de Campos Leonardo Adalberto Francischelli Lores Pedro Meller Luiz Gonzaga Brancher Marco Aurélio Rosa New ton Maltchik Aronis Renato Trachtenberg Sérgio Dornelles Messias MEMBRO HONORÁRIO Dr. David Zimmermann (Falecido) 4 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Revista da SBPdePA SUMÁRIO SAUDAÇÕES Palavras do Presidente New ton Aronis • 11 EDITORIAL Palavras do Editor Heloisa Fet ter • 15 ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES Qual o Valor da Consulta? • 19 Augusta G. Heller, César Augusto Antunes, Eluza M. Nardino Enck Os Efeitos Cognitivos do Trauma: reversão da função alfa e a formação da tela beta • 29 Lawrence J. Brown Caos, Petrificação... ou Quê? A Incerteza na Subjetivação do Analista • 53 Raquel Zak de Goldstein Estudo da Desmentida em um Quadro de Adição: Maradona com Sade • 69 Gabriel Guillermo Jure Investigação Psicanalítica Contemporânea • 93 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz O Psicanalista como Artesão da Técnica • 131 José Luiz F. Petrucci De Esaú e Jacob à Reprodução Assistida – a Gemelaridade à Luz da Psicanálise • 145 Rosana Igor Rehfeld Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 5 John Klauber, um Clínico Independente • 159 Neville Symington Édipo: Configuração e Complexo: um Adolescente no Desfiladeiro • 183 Ana Rosa Chait Trachtenberg CONFERÊNCIA na SBPdePA Amor, Transferência e Loucura • 195 Serapio J. Marcano ENTREVISTA da SBPdePA SBPdePA Entrevista Raquel Zak de Goldstein • 213 6 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Revista da SBPdePA CONTENTS ARTICLES/ESSAYS/MEDITATIONS How much does an Appointment Cost? • 19 Augusta G. Heller, César Augusto Antunes, Eluza M. Nardino Enck The Cognitive Ef fects of Trauma: reversal of alfa function and the creation of beta screen • 29 Lawrence J. Brown Chaos, Petrification... or What? The Uncertainty [inherent] in the Analyst’s Subjectiveness • 53 Raquel Zak de Goldstein Disavower Study in Addition Case: Maradona with Sade • 69 Gabriel Guillermo Jure Contemporaneus Psychoanalytic Investigation • 93 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz The Psychoanalyst as an Artisan in Technics • 131 José Luiz F. Petrucci From Esau and Jacob to in Vitro Fertilization – Multiple Births in the Light of Psychoanalysis • 145 Rosana Igor Rehfeld John Klauber, an Independent Clinician • 159 Neville Symington Oedipus: Configuration and Complex: an Adolescent in the Narrow • 183 Ana Rosa Chait Trachtenberg LECTURE at SBPdePA Love, Transfer and Madness • 195 Serapio J. Marcano INTERVIEW of SBPdePA SBPdePA Interviews Raquel Zak de Goldstein • 213 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 7 8 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Saudações Newton Aronis Estamos iniciando uma nova gestão na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, e muito nos honra o lançamento de mais um número de nossa Revista. Em cinco anos de existência, contamos com a colaboração de inúmeros colegas, coordenados sucessivamente de forma competente e entusiasmada por nossos editores Ana Rosa Chait Trachteberg e Gildo Katz. Durante esse tempo, consolidamos nossa publicação com qualidade e características próprias. Trata-se de uma revista pluralista, com espaço não só para os seus membros, como também para outros autores com produção psicanalítica de interesse. A opção vem sendo de Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 11 Newton Aronis Palavras do Presidente PALAVRAS DO PRESIDENTE uma revista não temática, o que poderá mudar ao longo do tempo. Acreditamos que o estímulo à Escrita Psicanalítica é o complemento fundamental de nossa atividade societária, juntamente à nossa atividade formativa e científica. As inquietações teóricas ou clínicas deverão servir como uma moção suficiente para uma atividade criativa, que implique sempre em um interlocutor curioso e crítico. Escritor e leitor formam, nesse sentido, uma unidade indissociável. É, de certa forma, indispensável para todos nós, que trabalhamos com psicanálise, sermos simultaneamente leitores e escritores. A escuta, no seu sentido mais amplo, e o pensamento criativo, podem muito bem ser representados pela dualidade leitor/escritor. Isso implica que devemos ter em conta o caráter transitório de nossos conhecimentos e estar com o espírito sempre aberto ao que nos questiona. Esperamos que nossa Revista siga inquietando a todos e estimulando uma leitura crítica. Este número conta com uma nova equipe editorial, coordenada pela nova editora Heloisa Fetter. É a presença de um membro formado em nossa Instituição, o que muito nos orgulha. O ciclo de fundação de uma nova Sociedade deverá dar lugar ao desafio de manter aceso o espírito criativo na nossa Instituição. Um bom trabalho para os novos editores e uma boa leitura para todos. Newton Aronis Porto Alegre, julho de 2004 12 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Editorial Heloisa Fetter Ter sido convidada para assumir o cargo de editora da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre gerou, em mim, sentimentos de orgulho pelo reconhecimento profissional e de medo (estaria à altura de tal responsabilidade?). No entanto, deixando as vaidades e inseguranças de lado, assumi a editoria de bom grado, da maneira que me é peculiar, propiciando as condições para que a tarefa fosse levada a cabo com empenho e dedicação e, especialmente, com prazer. Cabe dizer que tive a sorte de contar com um grupo de colegas que também se identificou com essa tarefa, formando o que podemos chamar de grupo de trabalho, no sentido de Bion. A Vera Chem, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 15 Heloisa Fetter Palavras do Editor PALAVRAS DO EDITOR Carmem Moussalle, a Carmem Saile Willrich e a Rosa Squeff estão pegando junto, tornando nosso convívio muito agradável. Entrando no seu sexto ano de idade, podemos dizer que a Revista já é uma criança com identidade própria, com expectativas futuras, tanto no sentido de contribuições científicas, como no processo de indexação, buscando cada vez mais o padrão de qualidade necessário. E para a criança nascer e crescer bem, é fundamental a presença de pais adequados. Nesse sentido, não posso deixar de mencionar a qualificação de meus antecessores, que assumiram, com suas características pessoais, as funções de mãe e de pai da criança. No casal metafórico, a Ana Rosa, na sua gestão (gestação), foi uma mãe dedicada, competente, sensível, enquanto que o Gildo, como pai, preencheu todos os requisitos básicos, com a sua perspicácia intelectual, com seu amor pelo estudo, estimulando o crescimento desta criança. Nesse caldo de cultura, também fui aprendendo as nuances do ofício e espero fazer jus à confiança depositada em mim pela direção da Sociedade. Este número, como tem ocorrido até agora, tem uma orientação pluralista, contando com a participação de autores dos vários continentes: norte-americanos, europeus, sul-americanos, além da prata da casa. Isso mantém o caráter internacional que já vinha apresentando, o que favorece seu crescimento como publicação. Heloisa Fetter – Editor Porto Alegre, julho de 2004 16 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Artigos/Ensaios/Reflexões Augusta G. Heller Psicóloga; Psicanalista; Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. César Augusto Antunes Médico; Psicanalista; Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Eluza M. Nardino Enck Psicóloga; Candidata Egressa do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Freqüentemente surgem em nossos consultórios duas preocupações básicas e que aparecem logo no início do tratamento. A primeira diz respeito à duração do processo analítico. Os pacientes desejam saber quanto tempo ficarão em análise. O que será que os leva a essa préocupação? Poderia ser resultante do próprio processo que os leva à consulta? Uma luta interna entre aspiração à independência e à autonomia e seus aspectos dependentes? Freud, em seu trabalho “Sobre o início do tratamento” (1913), respondia a essa questão através da fábula de Esopo, no diálogo entre o filósofo e o caminhante que queria saber quanto tempo teria sua jornada, ao que o filósofo respondia: “comece a andar”. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 19 Augusta G. Heller, César Augusto Antunes, Eluza M. Nardino Enck Qual o Valor da Consulta? QUAL O VALOR DA CONSULTA? Dessa maneira, procurava esclarecer que a dificuldade em determinar a duração de uma análise estaria relacionada à imprevisibilidade inerente a todo processo que envolve a complexidade de cada ser humano, no sentido de que o caminho só pode ser conhecido conforme for percorrido; o tempo, só depois de percorrê-lo. A segunda questão também requer que pensemos atentamente no seu sentido: “Qual o valor da consulta?” Com relação ao “custo da sessão”, Freud acreditava que: “Um analista não discute que o dinheiro deve ser considerado, em primeira instância, como meio de autopreservação e de obtenção de poder, mas sustenta que, ao lado disto, poderosos fatores sexuais acham-se envolvidos no valor que lhe é atribuído” (1913, p.173). Ele percebeu que as questões relativas ao dinheiro tendiam a ser tratadas pelas pessoas civilizadas da mesma maneira que as questões sexuais, com a mesma incoerência, pudor e hipocrisia, e recomendava que se evitasse lidar com esse assunto sob domínio dessas resistências. Na busca de um entendimento para essa questão, abriram-se, para nós, alguns vértices de investigação, pois, no encontro de dois sujeitos, existe, no discurso de cada participante, um sentido manifesto e um sentido latente. Em seu sentido manifesto, o valor da consulta para o analista pode representar o reconhecimento de sua capacidade como analista. Para o paciente, o quanto ele se dispõe a investir em um tratamento que dê conta de seu sofrimento psíquico. Porém, a questão central deste trabalho reside na busca do sentido latente, implicado no valor da consulta. Mateus liga para o analista e estabelece o seguinte diálogo: “Olá, eu queria marcar uma hora, quem me deu o teu nome foi a Joana, que é terapeuta da minha namorada, só que tem duas coisas, eu tenho dois nomes de terapeutas, porque eu tenho que ver horário, pois trabalho em outra cidade, mas o principal é saber qual o valor da tua consulta”. Somos levados a pensar, porque, na busca de amenizar seu sofrimen20 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 21 Augusta G. Heller, César Augusto Antunes, Eluza M. Nardino Enck to, é este um aspecto com o qual a pessoa tanto se preocupa – o quanto, mais do que com o como (aliviar sua dor). Pensamos que Mateus não poderia estar se referindo somente à quantia a ser gasta – conteúdo manifesto. Na função de analista, teríamos que pensar que outros sentidos estariam imbricados nesta pergunta. A que se refere a indagação? Onde está o desconhecido? Ele irá se construir a partir do encontro. O valor financeiro irá sustentar o valor da análise durante algum tempo, enquanto não se constituir o campo analítico. Um outro paciente, Amanda, manifesta esse conflito da seguinte maneira: procura análise devido a freqüentes brigas que vem tendo com os pais e que se iniciaram quando a mãe descobriu seu relacionamento homossexual. Para Amanda, a mãe sempre foi uma mulher passiva e submissa ao pai, descrito como dominador e autoritário. Ela tem a fantasia que o pai tenta controlar seus pensamentos. Da história infantil chama atenção que ela sempre esteve muito ligada ao pai, enquanto a irmã, mais ligada à mãe. Os dois nunca permitiram a proximidade da mãe e da irmã, a ponto de essas se considerarem excluídas da relação. No primeiro encontro, apesar de dizer que sabe que a análise se realiza com a freqüência de quatro vezes por semana, ela pensa em fazer duas. Ao retornar, na sessão seguinte, diz que saiu triste e deprimida. Considerando-se fechada, acha que pela primeira vez conseguiu se abrir com alguém e assim chega sugerindo a possibilidade de fazer análise quatro vezes por semana. Nesse momento, esbarra na questão do “valor” da análise. Amanda alega que, para que ela pudesse fazer quatro sessões semanais, precisaria da ajuda financeira da mãe. Esta se negou a ajudá-la, dizendo que seria conveniente que desistisse, porque não teria o retorno que ela, mãe, esperava. Dessa maneira, expressa um conflito que, apesar de estar colocado em sua relação com a mãe, nos fala da luta interna entre os aspectos dependentes e o desejo de autonomia psíquica. Que valor se poderia pensar em atribuir a um trabalho de resgate do “si mesmo”, quando o preço pago ao longo de cada uma dessas histórias teria sido tão alto, a ponto de levar ao aprisionamento do sujeito? QUAL O VALOR DA CONSULTA? Qual o valor da consulta, quando a dúvida que se ergue é por quanta dor se precisará passar para vir a “ser” o contador da sua história? A dor de ser colocado em contato com a sua verdade? Betty Joseph (1972, p.97) diz que: “Existem pessoas que são tão intolerantes à dor ou à frustração (ou em quem dor e frustração são tão intoleráveis) que sentem a dor, mas não sofrem e, portanto, não se pode dizer que a descobrem”. Já Bion (1991, p.19) diz que “o paciente que não sofre dor é incapaz de ‘sofrer’ prazer”. Há um tipo de dor que emerge em momentos em que acontece um rearranjo no equilíbrio mantido pela personalidade e que se faz acompanhar por uma alteração do estado mental que, em alguns casos, é o que traz o paciente à análise. “Em outros momentos, esse movimento é parte do processo analítico e, se puder ser resolvido, poderá ser um passo muito positivo em termos de progresso e integração” (JOSEPH, 1972, p.97). Joseph sugere que essa dor está ligada a uma sensação de existir separadamente. Diante disso, nos perguntamos: será que Amanda desiste de existir quando desiste da análise – des-existe? Será que Mateus, que inicia e permanece em tratamento, apesar de seus temores e desconfianças, permanece em busca da existência de seu ser? De alguma maneira, quando alguém procura um tratamento, é porque, embora sua vida, até então, pudesse ser aparentemente satisfatória e importantes áreas de ansiedades psicóticas e defesas viessem funcionando de forma relativamente bem-sucedida, o tipo de modalidade patológica particular sucumbe, e o que ele vivencia é algo novo e desconhecido. Thomas Ogden (1996, p.5), ao se referir ao sujeito da psicanálise, o analisando, diz que este “não vivencia novamente seu passado; o analisando vivencia seu passado como sendo criado pela primeira vez no processo de estar sendo vivido no e por meio do terceiro analítico”. Já o analista “não vivencia o passado do analisando; ele vivencia sua própria criação do passado do analisando, gerada na sua vivência do terceiro analítico”. 22 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 23 Augusta G. Heller, César Augusto Antunes, Eluza M. Nardino Enck Esse passado resgatado só poderia ser criado por esse par, em cada encontro, onde nunca se está absolutamente só consigo mesmo e a experiência de existir está sendo criada com o outro. Isso dá condições a uma recontextualização fundamental de vivências até então clivadas, impossíveis de integrar e utilizar. Então, por tudo isso, qual o valor da consulta? Esse poderá ser um dos enigmas que permeia o nosso trabalho, o qual teremos de suportar, evitando assim uma resposta manifesta que nos colocaria no lugar do Oráculo que responde a Édipo. O valor da consulta estará no espaço do encontro de duas pessoas e deverá ser construído pelo par analítico. Que valor tem o paciente para si mesmo? É muito difícil responder a isso quando as teias narcisistas não permitem o pensar em si, ou só permitem o pensar em si enquanto outro metido em si, e não separadamente, como Amanda. O encontro que se pensa vir a acontecer se dará através da análise e da relação com o analista, gerando a possibilidade de ressignificações de vivências desde o mais remoto passado. Assim, o paciente se coloca diante de um binômio: tenho que dar tanto (todo o próprio ser) e é tudo (do nada) que tenho, tudo do qual fui destituído. Para Amanda, no seu aspecto identificado com o narcisismo materno, qualquer preço, por menor que seja, é muito; para o seu nada, mesmo que hipoteticamente pudesse ser um tratamento gratuito, mesmo assim seria caro. Para o resgate de sua individualidade, percebe que precisará tanto da função do analista, que pensa que jamais poderá pagar ou deverá pagar com seu próprio ser, como o fez com a mãe. Qual o significado de dizermos que uma análise é cara ou barata? Qual os diferentes sentidos para essas palavras? No dicionário “Aurélio” (FERREIRA, 1986) encontramos os seguintes significados para barato: “que custa um preço baixo, módico; [...] que não exige grandes despesas; [...] comum, vulgar, banal” (p.231). Para caro encontramos: “que custa QUAL O VALOR DA CONSULTA? um preço elevado; [...] que exige grandes despesas; [...] obtido com grandes sacrifícios; [...] que é tido em grande valor ou estima; querido, amado” (p.355). Assim, a questão trazida pelo paciente de ser uma análise cara ou barata vai muito além do mero problema monetário, porque, como vimos na definição dos termos, vai dizer respeito também aos atributos desse encontro. Talvez essa descoberta comece a se tornar possível quando o processo analítico conseguir liberar os fragmentos da verdade histórico-vivencial de desfigurações, transfigurações e marcas deixadas no presente real objetivo. Assim, ressituá-la nos lugares do passado aos quais pertencem poderá possibilitar a emergência de um ser mais verdadeiro. O paciente que, naquele momento, indagava o valor da consulta necessitará de um tempo significativo de caminhada para obter a verdadeira resposta a sua pergunta. Serge Leclaire (1990, p.10-13) diz que: La práctica psicoanalítica se funda en la revelación del trabajo constante de una fuerza de muerte: la que consiste en matar al niño maravilloso (o terrorífico) que de generación en generación atestigua los sueños y deseos de los padres; no hay vida sin pagar el precio del asesinato de la imagen primera, extraña, en la que se inscribe el nacimiento de todos. [...] No basta en absoluto matar a los padres; lejos de ellos, se debe matar también la representación tiránica del niño-rey: yo (je) empieza en esse instante, marcado ya por la inexorable segunda muerte, la outra, de la que nada hay que decir. A partir do aporte freudiano, pensamos na ação específica e no auxílio alheio como caminhos para a construção do “si mesmo”. Por um lado, alguém que ainda não está constituído como sujeito emite um grito, forma de expressar sua necessidade, esperando que um outro, que ainda não é reconhecido como outro, vá ao seu encontro, preferencialmente carregado de desejo. Assim se dá o primeiro encontro, mítico, de uma necessidade que busca um desejo no outro para satisfazer essa demanda. 24 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Encontro você; Você sobrevive ao que lhe faço à medida que A reconheço como um não-eu; Uso você; Esqueço-me de você; Você, no entanto, se lembra de mim; Estou sempre me esquecendo de você; Perco você; Estou triste. Essa é a dor: dor do desencontro e de um novo e criativo encontro com o “si mesmo”. Esse é o tributo do crescimento e do reconhecimento do “valor”. A maioria das pessoas que nos procuram vem com uma necessidade de auxílio que é objetiva dentro da sua subjetividade, apesar de não sabêlo. O que se põe nesse primeiro momento poderá ser da ordem do sinistro – tão familiar, íntimo e assustador, porque permaneceu dentro do sujeito como registro e que poderá vir a ser representação. Será que os pacientes de hoje expressam mais intensamente essa necessidade, ou nós é que estamos mais bem “aparelhados” para escutar a demanda do necessário, acompanhando-os ao longo dessa trajetória do registro à representação-palavra, da necessidade ao desejo? Abrindo mais Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 25 Augusta G. Heller, César Augusto Antunes, Eluza M. Nardino Enck Amanda vai atrás de uma necessidade que ainda não foi satisfeita: ser encontrada por uma mãe que a deseje, sem que para isso tenha de perverter aquilo que poderia ser um encontro, mas que na sua vivência se tornou um aprisionamento. Quando nos encontra, estamos nós com o desejo disparado, desejo de analisar, de entender, de dar sentido ao sem-sentido – ou ao não-sentido. O que Amanda procura é poder “ser” desejada como outro, quando o outro possa reconhecer o que é a sua necessidade, enquanto “vir a ser”. Winnicott (1968, p.92) diz, através de uma poesia, o que representa para o bebê o encontro com a mãe: QUAL O VALOR DA CONSULTA? espaços simbólicos nesse encontro, podemos permitir essa trajetória através de elementos que estão presentes na transferência. Existe na pergunta Qual o valor da consulta uma metáfora a ser compreendida e decifrada, que implica um longo caminho em que muitos “valores” precisarão ser contemplados, “contados”, “contabilizados”, num contexto em que o valor da consulta, dito em seu conteúdo manifesto, é a fantasia do personagem que clama por ser descoberto e reconhecido. O pagamento, o custo e o valor do tratamento, vistos de forma concreta e objetiva por muitos de nossos pacientes, contêm imbricada em sua essência uma subjetividade que não pode ser alcançada no momento da busca. Freud diz: “Nada na vida é tão caro quanto a doença – e a estupidez” (FREUD, 1913, p.176). Sinopse Em nossa prática diária, em nossos consultórios, freqüentemente nos deparamos com esta questão: Qual o valor da consulta? A partir de duas situações clínicas, procuraremos uma compreensão de alguns fatores inconscientes presentes nessa interrogação. Quando um paciente nos questiona sobre o valor da consulta, do que estará falando? Parece ser importante pensar que não se trata somente de uma questão financeira. Por mais realísticos que possam ser os motivos concretos que levam a essa preocupação, acreditamos que a neurose ou, de outro modo, a disponibilidade interna para os investimentos psíquicos e a forma de sua aplicação interferem significativamente na condição de gasto e investimento a que o paciente se propõe para o tratamento. Na busca de pensar um pouco mais sobre essas questões foi que decidimos discuti-las, resultando neste breve estudo. Summary How much does an Appointment Cost? In our daily practice, in our offices, a question is frequently presented to us: How much is a psichoanalyst’s visit worth? From two clinical situation we will look for a comprehension of some inconscious factors present in this questioning. When a pacient asks us about the cost of a visit, what is he talking about? It seems rather important to think that it is not merely a financial issue. As much realistic 26 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sinopsis ¿Cuál es el Valor de la Consulta? En nuestra práctica cotidiana, en nuestros consultorios, frecuentemente nos deparamos con esta cuestión: ¿Cuál es el valor de la consulta?A partir de dos situaciones clínicas procuraremos una comprensión de algunos factores inconscientes presentes en esta interrogación. Cuando un paciente nos cuestiona sobre el valor de la consulta, ¿de qué estará hablando?. Parece ser importante pensar que no se trata solamente de una cuestión financeira. Aunque sean reales los motivos concretos que llevam a esta preocupación, acreditamos que la neurosis, o de otro modo, la disponibilidad interna para las investiduras psíquicas y su forma de aplicación, interfieren significativamente en la condición de gasto e investidura a que el paciente se propone para el tratamiento. En la búsqueda de pensar un poco más estas cuestiones fue que decidimos discutirlas y resultó en este breve estudo. Palavras-chave Valor; Descoberta de si mesmo; Encontro. Key-words Worth; Self discovering; Meeting. Palabras-llave Valor; Descubierta de sí mismo; Encuentro. Referências BION, W.R. A medicina como modelo. In:______. A atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1991. FERREIRA, A.B.H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 27 Augusta G. Heller, César Augusto Antunes, Eluza M. Nardino Enck as the real reason leading to this concern can be, we believe that the neurosis or even the internal availability for the psychic investiments and it’s way of aplication interfere greatly in the condition of spending an investing to wich the pacient agrees to undergo for his treatment. This paper aims to reflect upon these questionings. QUAL O VALOR DA CONSULTA? FREUD, S. (1913). Sobre o início do tratamento. In:______. S.E. Rio de Janeiro: Imago. JOSEPH, Betty. (1972). Em direção à experiência da dor psíquica. In: FELDMAN, M.; SPILLIUS, E. B. (Org.). Equilíbrio psíquico e mudança psíquica: artigos selecionados de Betty Joseph. Rio de Janeiro: Imago. LECLAIRE, S. Matan a un niño. Buenos Aires: Amorrortu, 1990. OGDEN, T. O terceiro analítico: trabalhando com fatos clínicos intersubjetivos. In:______. Os sujeitos da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. WINNICOTT, D.W. (1968). A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê: convergências e divergências. In:______. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1994. Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Dra. Augusta G. Heller Rua João Abott, 319/505 90460-150 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (0xx51) 3330-1559 E-mail: [email protected] Dr. César Augusto Antunes Rua Mariante, 288/508 90430-180 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (0xx51) 3346-4083 E-mail: [email protected] Dra. Eluza Maria Nardino Enck Av. Cristóvão Colombo, 2937/807 90560-005 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone: (0xx51) 3342-8365 E-mail: [email protected] 28 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Meu filme [Apocalypse Now] não é sobre o Vietnam. Ele é o Vietnam Francis Ford Coppola, Cannes, 1979 Lawrence J. Brown Analista Supervisor Infantil do Instituto Psicanalítico de Boston. Analista do Corpo Docente e Supervisor do Instituto de Psicanálise de Massachusetts. Instrutor Clínico da Escola de Medicina de Harvard. Psicanálise e trauma são velhos companheiros que mantêm uma relação ambivalente. Nos seus primórdios, a psicanálise adotou o papel central da emocionalidade, potencializando os eventos formadores da histeria. Breuer e Freud (1895) inicialmente consideraram o fenômeno histérico como sendo o resultado de seduções reais que “estrangulavam o afeto” e necessita- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 29 Lawrence J. Brown Os Efeitos Cognitivos do Trauma: reversão da função alfa e a formação da tela beta OS EFEITOS COGNITIVOS DO TRAUMA: REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA vam de um tratamento ab-reativo (BREUER e FREUD, 1893) para libertar as emoções reprimidas e as memórias associadas aos eventos traumáticos. Entretanto, o aumento da experiência clínica conduziu Freud a questionar sua hipótese da sedução, à medida que podia apreciar mais profundamente a importância da fantasia inconsciente (FREUD, 1905, 1911, 1915). Essa retirada de ênfase sobre as experiências traumáticas gerou a crença que Freud teria abandonado totalmente a importância da realidade, mas se trata de uma leitura equivocada do seu trabalho (BLASS e SIMON, 1994). Os horrores da Primeira Guerra Mundial, mais uma vez, chamaram inexoravelmente sua atenção para o impacto sobre a psique de uma realidade debilitadora e avassaladora. Freud (1920) observou que pesadelos repetitivos em soldados traumatizados não tinham exatamente o sentido mais comum dos sonhos, isto é, expressões simbólicas de um conflito inconsciente, mas eram primeiramente uma tentativa de libertação dos eventos traumáticos. Freud chegou à conclusão que esses sonhos repetitivos representavam uma tentativa da mente para administrar as memórias traumáticas e postulou a compulsão à repetição para explicar tal condição. Finalmente, a introdução de Freud (1923) à teoria estrutural estabelece o ego como a “sede da ansiedade”; uma formulação que ofereceu ao analista um instrumento na compreensão da luta de seus pacientes para lidar e adaptarse à avassaladora ansiedade traumática. Recentemente, o tema voltou a merecer atenção da psicanálise, vértice esse que produziu uma rica literatura, surgindo paralelamente ao aumento da consciência na cultura popular sobre os eventos traumáticos. Para o propósito da presente discussão, utilizarei a definição de Grotstein (1997) do trauma como uma súbita e opressora estimulação externa do self que excede a capacidade do indivíduo para contê-la. Do ponto de vista teórico, as perspectivas contemporâneas (YORKE, 1986; BRENNER, 2001; REISNER, 2003; TARANTELLI, 2003) tendem a enfatizar os esforços do ego, tanto do lado adaptativo como do das dificuldades de adaptação, para lidar com uma ansiedade esmagadora e o terror. A literatura clínica tem sido especialmente pródiga para esclarecer as poderosas reações 30 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 31 Lawrence J. Brown contratransferenciais geradas por pacientes traumatizados (DALENBERG, 2000; LEVINE, 1990; GABBARD e WILKINSON, 2000; ALHANATI., 2002) para elucidar a pressão que tais indivíduos exercem sobre o analista para obter um contato físico (CASEMENT, 1982), para evidenciar a possibilidade de que os relatos de abusos passados possam ser comunicados pelo aqui e agora da experiência transferencial do paciente (BRENNEIS, 1997). Essa breve introdução oferece, no máximo, uma visão geral e um olhar rápido sobre um assunto vasto e complexo; todavia, existe uma questão que dá forma ao presente trabalho e que gostaria de introduzir neste ponto. Existe algum fator subjacente da personalidade que pode ajudar a explicar os efeitos aparentemente distintos do trauma – os sonhos repetitivos (evacuativos), a deformação de pelo menos um componente do funcionamento do ego, a freqüente e improdutiva repetição de representações, e as reações contratransferenciais peculiarmente constrangedoras? Em resumo, acredito que o fator central encontrado por detrás dos vários aspectos das dificuldades de um paciente traumatizado é um tipo de limitação cognitiva, e essa limitação pode ser mais bem entendida pela ótica da Teoria do Pensar de Bion (1962a, 1962b, 1963, 1967; MELTZER, 1978, 1981; REISENBERG-MALCOLM, 2001). Além disso, enfatizo ainda que as idéias de Bion podem aprofundar nosso conhecimento dos efeitos do trauma e ajudar nossa abordagem clínica do problema. Minha tese principal afirma que as experiências traumáticas afetam a psique pela produção de uma reversão da função alfa, resultando na formação de uma tela beta rigidamente organizada que condena o paciente traumatizado a padrões aparentemente infindáveis de representações, que o impedem de aprender da experiência. Em síntese, é a qualidade da organização da tela beta, produzida pelo trauma, que se encontra no âmago da situação traumática e se caracteriza por um certo tipo de déficit cognitivo. De fato, Kennedy (1986) e Yorke (1986), ao discutir o papel do trauma na infância, entenderam-no como tendo um tipo de efeito organizador sobre o indivíduo, mas deixaram inexplorada a questão de como o trauma reorganiza a OS EFEITOS COGNITIVOS DO TRAUMA: REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA estrutura da personalidade. De modo similar, Levine (1990) descreveu a forma como o trauma infantil organiza a experiência do self e a transferência. Todavia, sua discussão direciona o assunto para um nível puramente clínico-descritivo. Com relação a possíveis seqüelas cognitivas do trauma, Van der Kolk (1994, 1991 com Van der Hart) postulou uma forma especial de processo mnêmico das experiências traumáticas e, em essência, afirma que tais memórias são armazenadas de uma forma diferenciada das outras memórias. Brown e Kulik (1977) cunharam o termo “memórias de flash fotográfico” para descrever o modo como as memórias traumáticas supostamente preservam o incidente traumático real de uma forma pura. Tais idéias sobre o processo especial de memória pela qual o trauma é codificado têm sido seriamente questionadas por autores psicanalíticos (p.ex., BRENNEIS, 1997); entretanto, parece existir uma singularidade com a qual as experiências traumáticas são registradas internamente. É o que irei examinar agora, à luz das idéias de Bion. Certa vez, uma mulher terrivelmente traumatizada por uma situação de abuso na família me perguntou, no meio de uma sessão analítica: “Dr. Brown, conheces algo sobre napalm?” Indaguei o que ela queria dizer. Ela me explicou que o napalm tinha sido projetado para aderir à pele e, por isso, era impossível livrar-se dele. Enquanto fiquei bastante mobilizado por essa informação, minha paciente prosseguiu: “É como acontece comigo. Tenho essa coisa horrível dentro de mim, que queima debaixo de minha pele e de que não consigo me livrar”. Essa breve vinheta ilustra o uso da identificação projetiva normal dessa paciente (BION, 1959; JOSEPH, 1983), que, na tentativa de comunicar seu conflito, despertou em mim o sentimento inescapável de horror. Entretanto, existe algo mais na experiência da minha paciente que a teoria da identificação projetiva não explica adequadamente: o fato de se sentir sitiada por uma experiência concreta que não tem significado além de um fato sensorial tosco, uma coisa em si (FREUD, 1900, 1915; BION, 1962a) Esse é certamente o território que foi ricamente investigado por Bion. Voltarei a desenvolver essa investigação, após um breve parêntese, em 32 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 33 Lawrence J. Brown que coloco alguns dados da história pessoal de Bion, relevantes para esse ponto do trabalho. Embora Bion não tenha especificamente mencionado a questão do trauma em seus escritos, foram suas próprias experiências pessoais com o trauma da Primeira Guerra Mundial que deixaram uma marca indelével em sua personalidade e moldaram seu pensamento psicanalítico. Na sua autobiografia, The long weekend (BION, 1982), ele descreve os inimagináveis horrores da Primeira Guerra Mundial, durante a qual testemunhou um oficial preferir ser baleado a se render, um outro ter a cabeça explodida enquanto conversava com Bion, e a falta de sentido na morte de muitos amigos e inimigos. Ele foi condecorado com a Victory Cross, em reconhecimento por sua bravura em combate, mas rejeitava essa medalha, pois se considerava um covarde. De acordo com Grotstein (1997b), o sentido subjetivo de covardia provém da percepção de que falhamos em encarar adequadamente os inevitáveis desafios da vida. Agregado a isso, é possível aventar que tal sentimento reflete a inabilidade de Bion para processar, nessa ocasião, as terríveis experiências que permaneceram como coisas em si não digeridas. Os Symingtons (SYMINGTON e SYMINGTON, 1996) concluem que “as experiências coisas-em-si da Primeira Guerra Mundial” foram de tal modo horripilantes que permitem pensar que se tenha gasto o resto da vida tentando assimilá-las (as aspas são minhas). Seguindo a definição de Freud de consciência como um “órgão sensorial para perceber qualidades psíquicas” (BION, 1962a,1962 b), tornou-se consciente de que certas experiências sensoriais, particularmente de natureza emocional, embora de impacto poderoso, podiam não ser pensadas através do processo secundário e do pensamento racional. Em vez disso, a consciência de tais experiências, como a da minha paciente da metáfora do napalm e a de Bion sobre os episódios na Primeira Guerra Mundial, permanecem na psique como elementos-beta, que são descritos da seguinte forma: “não submetidos ao uso como pensamentos oníricos, mas são adequados para uso como identificação projetiva. Eles são geradores de atuações. São objetos que podem ser evacuados ou usados para um tipo de pensamento que depende da manipulação do que é sentido como coisa em OS EFEITOS COGNITIVOS DO TRAUMA: REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA si, como para substituir tal manipulação por palavras e idéias” (BION, 1962 a, p. 6). A necessidade de ser capaz de aprender da experiência origina dentro da psique a função alfa, em si mesma um aspecto do funcionamento do ego, que age sobre os elementos-beta para transformá-los (BION, 1965) “em elementos-alfa que se assemelham, e podem na verdade ser idênticos a imagens visuais com as quais estamos familiarizados nos sonhos, ou seja, os elementos que Freud entendia como dando saída ao conteúdo latente quando o analista os interpretava” (BION, 1962 a, p. 7). Quando a função alfa é bem-sucedida na transformação de elementosbeta em elementos-alfa, esses últimos se associam para formar o que Bion chama de barreira de contato – um tipo de membrana que permite “o estabelecimento do contato entre o consciente e o inconsciente, e a passagem seletiva de elementos de um para o outro” (p.17). Todavia, esse processo é reversível e, como outras funções do ego, pode retornar a estágios mais primitivos, nos quais um paciente pode ter o sentimento de que aquilo que está dizendo tem significado, mesmo que se encontre incapaz de compreender esse significado. Experiências que previamente foram codificadas como elementos-alfa retornam como elementos-beta. De acordo com Bion, um ataque invejoso é o fator primário na reversão da função alfa e, conseqüentemente, na destruição da barreira de contato. Eu sugiro que um fator adicional nessa situação é a formação de uma tela beta, organizada de forma rígida, dando à psique um sentido de organização que não pode ser alterado. O que é a tela beta? Bion (1962a, p.22) afirma que, ao contrário do estado confusional no qual o paciente emite uma corrente de elementosbeta desconexos, a tela beta é “coerente e interativa”. Um dos seus propósitos é “evocar um tipo de resposta desejada pelo paciente”, que pode ser uma forte contratransferência. Do mesmo modo que a psique nunca pode retornar ao que ocorreu anteriormente, também a formação da tela beta não é simplesmente um retorno aos elementos-beta originais. Bion diz que “a reversão da função alfa de fato afetou o ego e, portanto, não produz um 34 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 35 Lawrence J. Brown simples retorno aos elementos-beta, mas a objetos que diferem em aspectos importantes dos elementos-beta originais, e que não têm a tintura da personalidade aderida a eles” (p.25). Desse modo, o antigo elemento-alfa retorna à sua origem concreta, porém, com um novo tipo de fantasma, sem o significado do antigo self: um elemento-beta que mais uma vez não pode se fazer concorrente. Esses novos elementos-beta, ex-elementos-alfa “desnudados de todas as características que os separam dos elementos-beta” (p.25), são então projetados para formar uma tela beta “coerente e interativa”. Meltzer (1981) destacou como a noção de Bion de reversão da função alfa expande as descrições de Klein dos ataques destrutivos sobre o self. Klein descreveu os ataques sádicos sobre os objetos internos e o self, enquanto Bion esclareceu como uma função do ego, nesse caso a função alfa, pode ser atacada e desmantelada. Meltzer afirma que “o processo alfa tem a possibilidade de reverter, canibalizando os elementos-alfa que estavam criados, para produzir seja a tela beta ou os objetos bizarros” (p.530). Bion (1962a) diz que a formação regressiva da tela beta é “bem compatível” com o que descreveu (BION, 1959) como objetos bizarros, formados por elementos-beta amalgamados com fragmentos do ego e do superego, mas é fato que não se refere mais a ela em nenhum outro trabalho. Em Elementos de psicanálise (1963), Bion afirma que os elementos-beta podem atingir um nível de organização, entretanto “esta está mais próxima de um aglomerado do que de uma integração ou coerência” (p.41). Embora ele esteja falando sobre os elementos-beta ainda não transformados pela função alfa, podem ser caracterizados por uma organização que é uma “aglomeração”, enquanto os elementos-beta, que são ex-elementos-alfa, são capazes de um nível mais elevado de organização que é “coerente e interativa”. Sandler (1997) propôs a existência de uma “antifunção alfa”, definida como uma tendência universal para reverter a função alfa e para “substituir a realidade psíquica por realidade material” (p.47). Assim, a função OS EFEITOS COGNITIVOS DO TRAUMA: REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA alfa parece englobar tanto um meio de adaptação transitório como “estruturas rígidas, concretizadas na mente.” (p.47). Clinicamente, uma manifestação da antifunção alfa é uma situação na qual falsas verdades se demonstram com credibilidade, uma espécie de fábula de análise cujo intuito é eliminar a verdadeira análise. Ele afirma que a antifunção alfa pode ser provocada no analista de forma que inadvertidamente faça um conluio com o disfarce da verdade do paciente, criando o que Langs (1982) chamou de “conspiração psicoterápica”. Sandler prossegue nomeando duas categorias de elementos-beta: “os aparentemente inteligíveis e os aparentemente ininteligíveis”. Estes últimos são o tipo descrito por Bion na confusão e nas experiências mentais concretas e sem significado. Por outro lado, os elementos-beta aparentemente inteligíveis obtêm disfarce do conluio social (p.49), compreendendo o que passa por pensamento racional com conteúdo latente não-diluído, e o que pode ser bastante bizarro se passa por normal. Sandler não liga esses subtipos de elementos-beta ao conceito de tela beta, mas parece razoável concluir que uma tela beta pode ser formada pelas várias combinações desses dois subtipos de elementos-beta. Outra das contribuições exclusivas de Bion para nossa compreensão da natureza do pensar foi relacionar a capacidade para o pensamento maduro com as primeiras formas de relações objetais. A capacidade do indivíduo para o funcionamento alfa foi considerada como uma internalização das projeções infantis de elementos-beta na mãe, que por sua vez as contém e as transforma em elementos-alfa através de sua rêverie. Assim, a capacidade para pensar não é vista como uma função autônoma do ego, como é para Freud, mas sobretudo como uma aquisição que depende da qualidade das primeiras relações com a doação de atenção materna. O modelo continente/conteúdo é familiar a muitos leitores, e gostaria de enfatizar um aspecto do mesmo, a saber, a afirmação de Bion que “o pensamento pode ser visto como parte do conteúdo da situação edípica” (p.44). Com relação a isso, ele introduziu o significado do papel do pai no reforço da capacidade materna para lidar com as projeções dolorosas do bebê. Gooch (2002) elaborou essa noção ilustrando como os pais são um 36 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 37 Lawrence J. Brown par continente, com o pai tomando a iniciativa de absorver e modificar com sua própria função alfa o fluxo de elementos-beta que a mãe é incapaz de lidar. Esse continente materno/paterno internalizado, com a função alfa do pai apoiando a da mãe, gera o aparelho para pensar. Herzog (2001) não se refere ao par internalizado, mas aos pais reais, trabalhando colaborativamente para estimular o crescimento e reduzir a agressão da criança, ajudando a construir uma estrutura que fortalece a capacidade para enfrentar traumas futuros com plasticidade. Desse modo, Bion ampliou o conceito de situação edípica (BROWN, 2002), ao ligá-lo à sua Teoria do Pensar. Eu gostaria de retornar à minha hipótese de que um trauma psicológico maciço tem o efeito destrutivo de reverter a função alfa desenvolvida, levando à formação de uma tela beta rigidamente organizada, que fornece à psique um senso de organização que não pode ser modificado. Emoções intoleráveis para uma função alfa plena de sentido são gerenciadas por uma concretização defensiva (BROWN, 1984, 1985, 1987), que oferece ao ego conflitado um tipo de justificativa defensiva: em vez de lidar com a experiência de manejar com os elementos alfa intoleráveis, o ego se desvia defensivamente para um tipo de atividade muscular (BION, 1962a), na tentativa de expelir concretamente os elementos-beta através de violenta identificação projetiva. Os elementos-beta que se formam como resultado do trauma são compostos de percepções do evento traumático que foram rapidamente comprimidas a experiências associadas com o passado do paciente. Em indivíduos com a função alfa intacta na ocasião do trauma, alguns desses recém-formados elementos-beta tenderão a ser “aparentemente inteligíveis”, enquanto outros serão “aparentemente ininteligíveis”, sendo ambos compactados numa tela beta que é “coerente e interativa”. Essa tela beta se transforma na “história” do paciente traumatizado, organizando seu caos interno, e é repetitivamente elaborada nas associações dos pacientes, nas representações transferenciais persistentes e nas respostas contratransferenciais. Uma reação contratransferencial particular é a pergunta do analista: “o que realmente aconteceu com meu paciente?” OS EFEITOS COGNITIVOS DO TRAUMA: REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA (LEVINE, 1990), e a tendência para chegar a um conluio que vê o paciente como vítima (REISNER, 2003) – e que acredito ser o resultado de elementos-beta “aparentemente inteligíveis”, uma parte da tela beta do paciente traumatizado. Caso clínico R., uma cientista pesquisadora, 35 anos de idade, inicialmente consultou-me em virtude de problemas no casamento. Muito inteligente, atraente e desinibida, estava casada há vários anos e não tinha filhos até aquela ocasião. Ela suspeitava que seu marido era alcoólatra, e mascarava isso negando e minimizando o problema. Isso a deixava muito insegura no casamento. Ela descreveu seu marido como exageradamente interessado em sexo, mantinha relações sexuais freqüentes com ele, mas R. nunca chegava ao orgasmo. Quase entre parênteses, ela contou que tinha sido brutalmente estuprada quando tinha vinte e poucos anos de idade, mas no presente sentia que isso ficara para trás, depois de muitos anos de tratamento intensivo que se seguiram à violência. Nós nos encontramos por um ano, duas vezes por semana, numa psicoterapia, e começamos a análise quando se tornou claro que o estupro tinha produzido um impacto profundo em sua vida, muito mais do que ela inicialmente acreditava. R. provinha de uma família de cinco filhos. O primeiro filho morreu na infância. Seus pais adotaram uma filha alguns meses após a perda trágica. Sua mãe ficou grávida de R. quando o processo de adoção estava próximo de se completar. Desse modo, sua mãe teve dois bebês para cuidar. Quando ela tinha dois anos de idade, seus pais adotaram outra criança, dessa vez um garoto asiático com seis anos de idade. Outro filho foi adotado quando R. estava com quatro anos. R. sentia que sua mãe nunca se enlutara com a morte do filho e buscara rapidamente substituir a perda. Ela descreveu sua mãe como uma bonne vivant, que buscava ser sempre o centro das atenções, muito atraente, vestindo-se para realçar suas formas, e aos 70 anos de idade ainda era uma “gata”. Sua mãe também era uma “Pollyana” que não queria ouvir más notícias e, quando escutava uma his38 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 39 Lawrence J. Brown tória desagradável, era conhecida por dizer logo após: “eu morreria se isso acontecesse comigo”. Quando R. contou para sua mãe o estupro, esta foi incapaz de confortar a filha, e depois se referia ao ataque como sendo simplesmente um assalto. R. era muito ligada ao pai, um executivo bem-sucedido e o mais educador do casal. Ele foi capaz de confortá-la após o estupro, mas apenas de uma forma limitada, pois lhe contou uma história sobre como os soldados tinham de voltar da batalha e prosseguir numa nova missão. Ela se lembra dos primeiros anos em casa como próximos ao idílio, exceto por uma mancha. O garoto asiático adotado, P., tornou-se cada vez mais bizarro à medida que ficava mais velho. P. estava obcecado por violência e sexo, e certa vez disse que um marinheiro havia forçado o pênis em sua boca. Ele também freqüentemente fazia comentários rudes a sua mãe. R. lembrou-se de uma ocasião, na hora do jantar, quando P. disse: “eu gostaria de foder com você, mãe”, ao que a mãe respondeu, fazendo uma onda com a mão e com uma voz algo lisonjeada, que ele estava sendo inconveniente. R. também se lembrou que P. era tão provocador, que seu pai, geralmente uma pessoa que não se zangava facilmente, explodiu de raiva e surrou o garoto. Posteriormente, P. foi diagnosticado na adolescência como esquizofrênico e estava internado na época em que R. se tratava comigo. No início da faculdade, R. com mais duas outras mulheres, quando caminhavam à noite do campus para casa, foram abordadas por três homens. Cada um deles agarrou uma delas, arrastando-as para o mato com intuito de estuprá-las. R. disse a si mesma que ela não permitiria que aquilo acontecesse, recusou submeter-se e lutou contra seu atacante com todas as suas forças. Ela se lembrou de que seu estuprador fora ajudado pelos outros dois, provavelmente porque já tinham terminado seus atos brutais, e os três tentaram subjugá-la. Ela se recorda que fechou bem as pernas para resistir ao estupro vaginal e que eles decidiram estuprá-la oralmente. Eles obrigaram-na a abrir a boca, e um dos agressores aí forçou seu pênis. R. afirmou que mordeu o pênis desse homem tão fortemente quanto pôde, até o ponto de ele ter de esmurrá-la para se libertar. Ela também disse que um dos OS EFEITOS COGNITIVOS DO TRAUMA: REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA homens pegou uma garrafa e tentou introduzi-la em seu ânus. Por alguma razão, os estupradores desistiram subitamente, provavelmente porque escutaram alguém chegando. R. disse que uma das mulheres estupradas mais tarde se suicidou, e que a outra estava na cadeia por ter matado o próprio filho. Antes do estupro, ela dizia que não se sentia perturbada pelos fatos de sua infância, e que tinha sido capaz de experimentar relações sexuais prazerosas, atingindo o orgasmo. Entretanto, o terrível incidente parecia ter tido um efeito magnético sobre esses fatos de infância, tal como um imã faz com lascas de ferro, juntando-os todos numa nova estrutura definida pelo estupro. Essa nova organização, rigidamente organizada e impermeável a mudanças, tornou-se o foco de nosso trabalho analítico. Diversos componentes dessa organização traumática foram repetidamente representados na análise de R. que, como poderíamos esperar, era tumultuada e turbulenta (BION, 1976) para ambos os participantes. Por vezes, R. percebeu-me como se eu fosse sua mãe impenetrável e, por isso, me provocava com freqüência para verificar se eu conseguiria “agüentar”, me testando para se certificar se eu repudiaria suas tentativas de me afetar, ou se podia tolerá-las e conter as insuportáveis experiências concretas – que ela era capaz de “pensar” apenas através de identificação projetiva. Em outras ocasiões, ela me identificou com P., seu irmão adotivo, quando minhas interpretações eram sentidas como eu sendo o marujo que supostamente teria tentado estuprar oralmente o irmão. Em outros momentos, ela se tornava o agressor, uma mistura de estupradores e P., dizendo que desejava me jogar no chão e me estuprar “com toda raiva acumulada de cada mulher que havia sido estuprada”. Entendi isso como sendo sua própria raiva, sentida como tão ampla, que necessitava espalhá-la em fragmentos, que uma vez projetados enchiam as outras mulheres. Por algum tempo, R. tentou seduzir-me sexualmente, algumas vezes deitando-se de bruços para me olhar enquanto passava lascivamente a língua nos lábios. Ela dizia que desejava me excitar e se ofereceu para me 40 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 41 Lawrence J. Brown fazer um fellatio, o que eventualmente pudemos entender como uma manipulação para me transformar em estuprador, que ela no aqui e agora da transferência podia controlar e sobre quem exercer poder. À medida que seu casamento foi investigado, ficou claro que a história sobre o apetite sexual de seu marido era encobridora e não retratava a verdade; na realidade, fomos capazes de aprender como ela também provocava o marido sexualmente, transformando-o num predador libidinoso. Ela explicou que preferia o coito por trás, pois se sentia claustrofóbica na posição papai e mamãe. Mais adiante, fomos capazes de compreender mais plenamente sua forte reação à propensão de seu marido para beber muito. As garrafas de vinho vazias tornaram-se um ícone, no qual facetas do estupro estavam atreladas: seu marido era como um estuprador, com seu hálito alcoólico, forçando a garrafa dentro dela ao penetrá-la por trás. Eu gostaria de enfocar um trecho do trabalho analítico em maiores detalhes para ilustrar outra manifestação de sua organização traumática. Aproximadamente dois anos após o início da análise, R. deu à luz a uma menina saudável. Ela adorou a filha e descobriu que amamentar lhe trazia imensa e verdadeira satisfação. Então, após seis meses, sua filha parou de ganhar peso e passou para alimentação sólida junto com o peito. Diversas avaliações médicas não encontraram nenhuma razão para o problema, e ela começou a pensar se poderia existir uma base psicológica envolvida. Eu recomendei para R. uma colega que trabalha com mães e bebês para observá-la enquanto amamentava. Essa colega imediatamente notou que R. ficava rígida e inibida quando amamentava sua filha, e não havia prazer no ato. R. se deu conta de que a observação estava correta e começamos a investigá-la na análise. Na sessão que antecedeu a que apresentarei em detalhes, R. estivera falando sobre o fato de o seu pai ter sido diagnosticado com câncer, sobre sua tristeza a esse respeito, sobre sua raiva por ele a ter deixado com a mãe – parte da raiva dirigida contra mim. R. começou a sessão falando de sua raiva contra mim, dizendo: “eu desejo seu bem-estar físico, mas em seguida quero transformá-lo em algo OS EFEITOS COGNITIVOS DO TRAUMA: REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA violento para você, destruir sua cabeça1”. Seus pensamentos deram continuidade ao desejo de passar mais tempo comigo durante a doença de seu pai e evidenciaram o quão envergonhada estava com sua forma de me tratar. Ela então me falou sobre ter procurado a terapeuta mãe/bebê no dia anterior e sobre como sua filha não queria comer de forma alguma enquanto estava lá. Ela e a filha tomaram banho juntas à noite, a bebê riu enquanto brincava com os seios da mãe, e que naquela noite teve um sonho aterrorizante, no qual sua filha se afogava na banheira enquanto ela pegava no sono. No sonho, ela estava indo para a cadeia, porque o exame médico revelara que a bebê havia se afogado no leite materno. O que lhe veio à mente em seguida foi ter dado à sua irmã adotiva adolescente um livro chamado Nossos corpos, nós mesmos, para ajudá-la no aprendizado sobre sexo. Ela prosseguiu, dizendo que também tivera um sonho comigo na noite anterior que lhe recordava da noite que consentiu ao desejo do marido por sexo. Isso parece ter estimulado o trabalho analítico. Ela estava envergonhada em me contar o sonho, porque parecia uma invasão de privacidade. Ela sonhou que: “Estava deitada no divã, sentei-me e andei em sua direção. Então o empurrei para fora da poltrona – não, você me pediu para fechar as venezianas e o fiz. Você disse ‘não’, mas eu o obriguei a sair para fora da poltrona, e não podia me impedir como meu marido fez naquela noite. Eu o forçei, e você disse que seu próximo paciente me veria, e então você disse que seu pai o estava vendo e por isso ele estava doente e morrendo”. Sua associação foi com uma professora que seduziu um adolescente de quatorze anos e que alguém os pegou no ato. R. conjeturou sobre como foram descobertos e suspeitava que alguém podia estar espionando da janela. Esse material é tão denso e disposto em camadas, que é difícil saber bem onde e como intervir. O tema da invasão ressaltou e o sonho sobre a filha me pareceu muito importante, dado os problemas alimentares na oca1. No original; fuck your brains out. Note-se que a palavra fuck tem também o significado de ato sexual. (N. do T.) 42 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Discussão R. experimentou na infância conflitos na sexualidade associados a temas de agressividade. O estilo histérico de sua mãe parece ter impregnado a família com uma atmosfera erótica, uma carga de eletricidade sexual que sobrecarregou o limitado circuito do irmão adotivo. Sua capacidade de provocar estimulava o pai a tal extremo que ele, em uma ocasião, perdeu o controle e bateu no filho. Nenhum dos pais individualmente, nem o casal, foi capaz de prover um continente adequado para a dificuldade de lidar com fortes emoções. A afirmação da mãe “se isso acontecesse comigo eu me mataria” foi escutada de uma forma infeliz, assinalando a convicção de que ela não podia lidar com notícias ruins. Quando confrontada com a perda do bebê, a mãe parece ter desenvolvido um esforço maníaco para negar a dor tendo mais bebês; portanto, excluindo qualquer luto. Devemos também conjeturar sobre a capacidade do pai para lidar com a dor da perda, assim como para assistir sua esposa a lidar com a tristeza. Em termos das contribuições de Gooch (2002) e Herzog (2001) com relação ao papel central e real dos pais intrapsíquicos de ajudar a criança a lidar com o trauma, a habilidade de R., que era rígida quando confrontada pelo trauma, parece Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 43 Lawrence J. Brown sião. Eu disse a R. que o dar e receber conforto parecia estar ligado a medos de ser invadida e dolorosamente penetrada, e que o sonho sobre o bebê parecia expressar o sentido não-verbal de que alimentar a criança era a mesma coisa que invadi-la com leite. Ela disse que minha colega havia sido muito útil, que apreciou minha indicação, e que estava tentando ser brincalhona enquanto alimentava a filha. Ela me pediu uma sessão extra naquela semana, e quando fui incapaz de fornecer o horário que se ajustasse ao seu, R. pediu-me para coçar suas costas. Eu assinalei que ela estava me pedindo um conforto que invadiria sua privacidade e que a inundaria com emoções muito complicadas. Ela reagiu com tristeza e falou sobre suas preocupações com seu pai. Em conseqüência dessa fase do trabalho analítico, R. e sua filha foram capazes de descobrir o prazer nas trocas alimentares e a bebê começou a ganhar peso. OS EFEITOS COGNITIVOS DO TRAUMA: REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA ter sido decrescida (LISMAN-PIECZANSKI, 1990). Embora seja impossível saber completamente como essas questões da infância afetaram R. antes do estupro, ela descreveu satisfação com sua vida pessoal e relações prazerosas com os homens. É provável que tais experiências de infância estivessem adormecidas, talvez como sementes que poderiam florescer no futuro como sintomas neuróticos. Tragicamente para R., ela foi vítima de um ataque perverso que excedeu sua capacidade de contê-lo. Quando sua mãe foi informada de que a filha havia sido estuprada, reduziu o horror da situação, referindo-se ao fato como “assalto”. O pai, por sua vez, foi disponível para ajudar R. a começar a manejar a experiência avassaladora do brutal estupro; entretanto, ele rapidamente mudou para uma abordagem estóica e advogou prosseguir como se nada tivesse ocorrido. Assim, não tendo a ajuda efetiva dos pais para elaborar a situação, nem tendo um casal interno capaz de transformar a experiência traumática (BION, 1962a, 1965), R. foi catapultada em uma cesura psíquica (BION, 1977) na qual “o impacto da catástrofe explode a psique e desarticula sua organização, precipitando a mente nos mais primitivos estados de atividade mental” (TARANTELLI, 2003, p.923). Incapaz de conter o afeto avassalador, o ego de R. recorreu aos melhores meios de se adaptar, ou seja, pela formação de uma organização traumática que apoiava sua psique despedaçada. O que eu gostaria de enfatizar aqui é que o trauma maciço na vida adulta reviveu experiências infantis latentes que foram então organizadas pelo que ocorreu na vida adulta. Em lugar da situação que ocorre quando há um trauma infantil que se organiza no pico máximo sob experiências mais tardias, o trauma maciço na vida adulta pode, ao contrário, organizar o que ocorreu no passado. Essa proposição é muito intimamente relacionada ao conceito nachtraglichkeit de Freud (1918), delineado no caso do “Homem dos Lobos”. Ele afirma que uma experiência primitiva adormecida da cena primária permaneceu latente até o surgimento de um sonho, quando o Homem dos Lobos tinha quatro anos de idade. Cada vez que a reminiscência primitiva atingia um significado psicológico, era acordada pelo sonho subseqüente. Eu estou me refe44 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 45 Lawrence J. Brown rindo à situação na qual um trauma presente se funde com experiências equivalentes passadas, formando um amálgama que não pode ser pensando e nem sonhado. Fink (2003) recentemente relatou os efeitos das experiências dos campos de concentração nazistas sobre a personalidade, concluindo que as experiências prévias ao campo tinham pouca conexão com a forma da apresentação traumática dos sobreviventes. O estupro de R. não foi como o horror implacável de um campo de morte, mas penso que existe algo comum no sentido de ter que resistir a um ataque ao seu corpo e sua mente, incluindo o conhecimento de que as outras duas mulheres ficaram irremediavelmente lesadas. O feroz ataque de R. detonou uma explosão intrapsíquica que destruiu suas defesas e a deixou cambaleante em busca de um novo equilíbrio. Um efeito dessa explosão em sua psique foi produzir uma reversão da função alfa para lidar rapidamente com os efeitos do estupro, que ficaram condensados com experiências agressivas sexuais da infância sob a forma de elementos-beta. Registrar os vários componentes do estupro como elementos-beta é uma estratégia adaptativa primitiva do ego que permite “pensar” sobre tais experiências através da identificação projetiva. Um efeito secundário do choque desestabilizador na mente de R. foi a formação de uma tela beta que aglomerou os elementos-beta derivados de partes do estupro com aqueles derivados de partes de experiências infantis. Essa tela beta criou na psique dividida um senso de organização, embora rigidamente estruturado, condenando R. a contínuas representações e a uma inabilidade de aprender da experiência. Tal formulação é semelhante à descrição de Steiner (1993) da organização patológica, uma espécie de submundo entre as posições esquizo-paranóide depressiva, para o qual o paciente psiquicamente se retira como se fosse um santuário. Steiner não liga seu conceito às teorias de Bion: minha ênfase aqui é na natureza concreta dessa organização traumática e na natureza adaptativa da tela beta, trazendo ordem a uma psique destruída por eventos reais, uma organização que tragicamente oferece pouco conforto ao paciente. Essa organização traumática foi desconstruída em sua análise, cada OS EFEITOS COGNITIVOS DO TRAUMA: REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA componente atuado na transferência, e também presente em minhas fortes reações contratransferenciais, exatamente na forma como Bion (1962a) descreveu com a tela beta, em parte desenhada para despertar uma resposta no analista. Algumas vezes, o uso violento da identificação projetiva de R., como na ocasião em que ela queria me estuprar “com toda raiva acumulada de todas as mulheres que haviam sido estupradas”, me deixou inicialmente chocado e atônito, produzindo um estado de paralisação do pensar, assaltando-me pelo que Sandler (1997) chamou de elementos-beta ininteligíveis. Em outras ocasiões me senti aprisionado numa crença de que estava deixando algo valioso escapar bem na minha frente, o que é uma óbvia indicação de que os elementos-beta inteligíveis estavam sendo atuados. Essa impressão era particularmente intensa quando ela me contava sobre o alegado apetite sexual voraz do marido. Os relatos repetitivos de suas façanhas sexuais preencheram-me com um desejo de protegê-la desse macho predador. Eu não me senti perseguido por tal reação, mas senti que algum conhecimento sobre o que isso significava permanecia na periferia da minha mente, fora de alcance. Mais tarde, quando R. fez um considerável esforço para tentar me seduzir e transformar-me num estuprador, fui capaz finalmente de entender sua ação, que transformava o marido em uma fera sexual e de quem eu a teria que proteger. Assim, a análise da organização traumática de R. foi feita pedaço por pedaço, com as várias facetas da tela beta ativada em momentos distintos, induzindo uma contratransferência diversificada que requereu a elaboração pela função alfa de meu casal internalizado (BROWN, 2003). A sessão que apresentei em detalhes mostra como um componente da tela beta densamente compactada foi representado na transferência, e que também se expressou através das dificuldades alimentares da filha de R. Desejosa de ser confortada por mim, ela sabia transformar esse anseio em afirmativas violentas de que desejava destruir minha mente2, e que a deixava envergonhada de tratar-me dessa forma. Eu notei para mim mesmo que ela em seguida descreveu o encontro com a terapeuta mãe/bebê, no qual 2. No original, fuck my brains out. (N. do T.) 46 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 3. Mantido no original, tal como aparece em Cogitations (Bion, 1992). O termo dream-work alpha foi substituído pela conhecida expressão função alfa. (N. do T.) Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 47 Lawrence J. Brown sua filha não comeu, pensando que deveria haver alguma conexão entre destruir minha mente e os problemas de alimentação; o significado, entretanto, me escapou. Seus pensamentos rapidamente foram do sonho da filha se afogando em leite para o livro Nossos corpos, nós mesmos, e daí para a memória da relação sexual possivelmente danosa que estimulou o trabalho. Alguma concepção começou a se desenvolver em minha mente que tinha a ver com força, alimentar a força, e o corpo não sendo da própria pessoa. Foi quando ela introduziu o sonho no qual me pegava pela palavra, ao dizer que ela sentia como uma invasão de privacidade; a palavra “invasão” tinha o efeito magnético de juntar todas as associações dispersas em um “fato selecionado” (BION, 1962a). Ao escutar tal sonho, foi possível confirmar o tema da invasão forçada, e minha interpretação dirigiu-se tanto para a transferência como para a fantasia inconsciente de afogar a criança com leite materno. A capacidade de R. para ter esse sonho foi em si um importante marco cognitivo que indicava o sucesso de seu nascente “dream-work alpha” 3 (BION, 1992), capaz de converter o que tinha sido um componente da tela beta traumática em elementos-alfa adequados ao sonhar. O prosseguimento do trabalho, nesse aspecto de sua organização traumática, contribuiu para que R. elaborasse as dificuldades de alimentação e provavelmente preveniu que seu trauma pessoal fosse transmitido para a geração seguinte (BERGMAN e JACOVI, 1982; HERZOG, 2001). Nas Conferências de São Paulo, Bion (1978) disse “nós temos que avaliar como dizer ao paciente a verdade sobre si mesmo sem assustá-lo” (p.173). Na realidade, quando se trabalha com um paciente aprisionado no mecanismo psíquico repetitivo de uma organização traumática, somos desafiados de forma profunda a lhe dizer a verdade sobre si mesmo. Todavia, existem muitas verdades. Uma diz que algo singularmente horrível aconteceu, algo tão horripilante que não pode ser pensado, mas que está requerendo ser pensado. Também temos de dizer ao nosso paciente a verdade, que ele fez o melhor possível na ocasião, e que os esforços podem ter criado OS EFEITOS COGNITIVOS DO TRAUMA: REVERSÃO DA FUNÇÃO ALFA E A FORMAÇÃO DA TELA BETA novas dificuldades, a saber, a resultante organização traumática que se tornou encistada na personalidade. Existe ainda uma última verdade que é mais assustadora de aceitar: que a despeito da experiência hedionda de que foi vítima, seja qual for, no presente terá que se modificar ao reconhecer como continua se aprisionando através de atuações repetidamente destrutivas. Eu acredito que é essa última verdade, produtora do reconhecimento da responsabilidade pessoal no próprio destino, o que levou Freud a expandir a “teoria da sedução” para incluir o conceito de fantasia inconsciente. O trabalho analítico cuidadoso é o que redireciona o significado inconsciente que o trauma carrega para o paciente, destrancando os grilhões da organização traumática, sobre o que o gênio de Wilfred Bion nos forneceu uma chave importante. Sinopse Neste trabalho, o autor retoma a noção de trauma em Freud e em outros pensadores contemporâneos, mostrando como surge na clínica, através da transferência. Utilizando-se das idéias de Bion sobre o Pensar, Brown expõe seu ponto de vista de que um trauma psicológico intenso tem o efeito de reverter a função alfa, levando à formação de uma tela beta rigidamente organizada, condenado o paciente a repetições de funcionamento que o impedem de aprender com a experiência. O artigo é ilustrado com um relato clínico que exemplifica a teoria exposta, acompanhado de uma detalhada discussão, concluindo que o trabalho analítico pode redirecionar o significado inconsciente que o trauma provoca no paciente. Summary The Cognitive Effects of Trauma: reversal of alfa function and the creation of beta screen In this article the author goes over the notion of trauma by Freud and other contemporary thinkers, showing how it appears in the clinic through the transfer. By using Bion’s ideas on Thinking, Brown expresses his viewpoint that an intense psychological trauma has the effect of reverting the alpha function, leading to the formation of a rigidly organized beta screen, subjecting the patient to repetitions of functioning that prevent him from learning by experience. The article is illustrated by a clinical account that exemplifies the theory set forth, accompanied 48 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sinopsis Los Efectos Cognitivos del Trauma: reversion de la función alfa y la formacion de la pantalla beta En este trabajo, el autor recobra la noción de trauma en Freud y en otros pensadores contemporáneos, mostrando como surge en la clínica, através de la transferencia. Utilizándose de las ideas de Bion sobre el Pensar, Brown expone su punto de vista de que un trauma psicológico intenso posee el efecto de revertir la función alfa, llevando a la formación de una pantalla beta rigidamente ordenada, condenado el paciente a repeticiones de funcionamiento que le impiden de aprender con la experiencia. El artículo es ilustrado con un relato clínico que ejemplifica la teoría expuesta, acompañado de una minuciosa discusión, concluyendo que el trabajo analítico puede redireccionar el significado inconsciente que el trauma promueve en el paciente. Palavras-chave Bion; Trauma; Função alfa; Tela beta. Key-words Bion; Trauma; Alfa-function; Beta screen. Palabras-llave Bion; Trauma; Función alfa; Pantalla beta. Referências ALHANATI, S. (2002). Primitive Mental States: Psychobiological and Psychoanalytic Perspectives on Early Trauma and Personality Development. S. Alhanati (Ed.)NY: Karnac. v. 2. BERGMAN, M.; JACOVI, M. (Eds,) (1982). Generations of the Holocaust. 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Tradução: Arnaldo Chuster Dr. Lawrence J. Brown 37 Homer Street Newton Center MA 02459, U.S.A Fone: 16172447587 E-mail: [email protected] 52 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 No outro lado da calçada estão os donos da verdade escriturada os proprietários da segurança do ignorante deste lado estamos nós os donos das dúvidas sentados a uma longa mesa em chamas. Extrato do poema “Os donos das dúvidas”, de Eliahu Toker Raquel Zak de Goldstein Médica; Psicanalista; Membro Titular da Associação Psicanalítica Argentina. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 53 A concepção equivocada da ciência se trai a si mesma por sua ânsia de certeza. Karl Popper, “The logic of scientific discovery” Raquel Zak de Goldstein Caos, Petrificação... ou Quê? A Incerteza na Subjetivação do Analista CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ? A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA Introdução Este pré-congresso didático situa a problemática da formação do analista em seu próprio centro: a transmissão. Os avanços realizados nos recentes congressos internacionais evidenciam que, nem neste momento nem no futuro – pensamos nós –, pode haver “ortodoxia” psicanalítica que se possa apresentar como “o pensamento psicanalítico”. Além disso, deixamos de lado um mito, o de que a psicanálise pode se constituir como um campo de investigação objetiva, com uma técnica derivada dos conhecimentos adquiridos nesse campo e uma validação “rigorosa” dos resultados. Aceitemos a presença – nem sempre resistencial – no campo científico atual e de sempre, de dificuldades perante o discurso psicanalítico. Se os conhecimentos psicanalíticos são verdadeiros – e o são –, irrompem certos esquemas epistemológicos e, embora não seja empiricamente demonstrável o que se diz do sujeito na psicanálise, nesse caso, temos de ampliar a extensão do termo “científico”. Esse estado de coisas não nos leva a nenhuma perturbação interna: não nos sentimos em uma Torre de Babel, pelo contrário, coloca-nos diante de uma nova problemática: que teorias ou que prática podemos aceitar como realmente psicanalíticas? É precisamente no ponto marcado por essa interrogação que se estabelece o problema específico da transmissão da psicanálise. I – A especificidade da transmissão da psicanálise Faz tempo que os analistas se dão conta de que a transmissão da psicanálise não pode se comparar, em absoluto, com o ensino da Botânica ou da Fisiologia. Não há nem duas Botânicas, nem duas Fisiologias; o que varia são as teorias, que podem ser mais adiantadas ou mais atrasadas. Em Psicanálise, a situação se formula de uma forma totalmente diferente. Não temos UM OBJETO PERMANENTE, como o tem a Botânica ou a Fisiologia. Por isso, a relação entre os conhecimentos teóricos e a ação prática 54 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 55 Raquel Zak de Goldstein não pode ser entendida como “aplicação” de conhecimentos teóricos a um doente, mas como um trabalho de esclarecimento que resulta útil para “esse” enfermo e que “ele possa assumir que lhe é útil”. Se isso é verdadeiro, não podemos encarar a transmissão da psicanálise, a não ser levando em conta (e a IPA, em particular desde o trabalho do Dr. R. Wallerstein, em Montreal – 1987, enfatizou essa tendência) essas diversas correntes de pensamento e de ação correlativa (WALLERSTEIN, 1988). Como vemos, tampouco possuímos UM corpo de teoria, mas vários. E todos esses corpos de teoria estão radicados na obra de Freud, da maneira como a podemos entender. Visto que não se trata de UM CORPO DE DOUTRINA UNITÁRIO ou INAMOVÍVEL – como também evidencia que não há manual que possa resumir o conhecimento psicanalítico em determinado momento da história (intentaram-no Jones, Fenichel e outros) –, nem uma técnica aplicando conhecimentos teóricos a UM OBJETO, que seria o analisando, então é obvia essa diferença essencial entre a transmissão da Psicanálise e a transmissão em outras ciências. Da transmissão – tal como é na atualidade, no mundo –, deduz-se, outrossim, a conveniência (e Robert Wallerstein previu-o) de aceitar o espírito de pluralismo científico internacional com suas variáveis locais. A expansão multi-referencial resultante (os muitos esquemas referenciais já vigentes no pensamento psicanalítico atual) deve ser encarada como uma proliferação de teorias, com o perigo resultante de dissolução. Evidencia-se, então, que a formação psicanalítica leva – sine qua non – a enfrentar o problema da certeza. Por sua vez, essas evidências – “não há uma só verdade, nem é completa” – são também poderosos fatores de desidealização e desilusão, e podem arrastar as desidealizações – às vezes patológicas – e a criação – às vezes transgressiva –, como veremos posteriormente. No ensino pluralista (APA, 1974), o tripé clássico se complica, porque CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ? A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA apresenta contradições em suas três partes: análise didática, supervisão e seminários, visto que para o pluralismo não há uma teoria oficial. Em seus efeitos, no entanto, isso protege contra o retorno do temido UM: a autoridade portadora da última palavra da verdade. Esse tripé complicado pelo pluralismo, em última instância, afasta a almejada e temível certeza. Por isso, dizemos que funcionalmente é um protetor. A psicanálise é uma empresa de subjetivação. Leva-nos a decifrar a demanda de alguém que se pergunta e nos pergunta alguma coisa sobre si mesmo sobre seu sofrimento e seu desejo. Pede-nos atender a sua singularidade, ao mais íntimo de si mesmo. Situa-se na singularidade do inconsciente. Essa singularidade da psicanálise também se opõe, desde a base, a um tipo de generalização científica habitual, pois nos afastamos das precisões e das certezas. Faz tempo que temos renunciado, com Freud, ao ideal das ciências objetivas. “Formação” e “subjetivação” aparecem contrapostas; apresenta-se, então, um paradoxo central: formar subjetivando. É um paradoxo insolúvel? Entre uma formação monolítica “compacta”, que pode levar à petrificação, e uma formação frouxa, atenuada, que pode deslizar para o “caos”..., perguntamo-nos: trata-se de um justo meio... ou se trata de “outra coisa”? O que é, então, essa “outra coisa”, o específico da formação de um analista? Como procurá-lo na transmissão? Como consegui-lo? Formar subjetivando. Esse é o desafio. Formar subjetivando continuamente através de um segundo olhar que, mesmo sendo bom e se sabendo fazê-lo, não é o olhar de Deus. Porque ainda esse segundo olhar não está isento... de incerteza e de “o que significa para cada um ser analista”, quer dizer, da incidência pessoal de “seu eixo ideológico”. O esforço de abstinência ideológica do analista à moda da regra fundamental é um pressuposto que deve permanecer como um ideal necessário, embora seja impossível de se atingir (BARANGER, 1957). Quer dizer que nos treinamos para sustentar a incerteza... mas... sus56 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 57 Raquel Zak de Goldstein tentar a incerteza?... Há risco de caos, de desilusão e de pessimismo; rapidamente retornarão as buscas, as modas, as escolas... Onde estará “a resposta, a verdade?” Alguns, perante a incerteza, tendem à rígida adesão a um esquema referencial que preserve a ordem. Ser analista, como o entendemos faz tempo, tampouco é uma qualidade definitivamente adquirida. É saber um pouco mais do que acontece com a gente, é ser capaz de permanecer na incerteza, “com sua correlativa possibilidade de criatividade”. Em síntese: somos “aprendizes da incerteza”. Agora, se considerarmos: 1) nossa ideologia a respeito de “o analista que queremos formar”; 2) o esquema referencial supostamente verdadeiro ou científico que lhe queremos ensinar; 3) a atitude que esperamos do candidato (identificação, lealdade, etc.) perante a Instituição, evidencia-se que o problema da transmissão é, diante de tudo e apesar de tudo, um problema ideológico. Um ensinamento é, naturalmente, uma ideologia. Nessa situação, como evitá-la? A desejada estabilidade e proteção contra a incerteza e a Hilflosigkeit ameaçam reintroduzir as “crenças”, a “ortodoxia” e o temível “leito de Procusto”. Psicanalisar e psicanalisar-se é uma experiência singular e intransferível... não podemos sintetizá-la, dar-lhe “uma forma”, nem abstrair fórmulas de aplicação... ou simplesmente generalizá-la. A formação analítica não pode ser, de outro modo, senão o resultado da evolução de um sujeito – a quem chamamos candidato –, evolução que compreende: o insight (a percepção) que o candidato pode adquirir em sua própria análise, a compreensão de sua situação como psicanalista com seus analisandos (por exemplo, em suas supervisões), e uma evolução científico-ideológica adquirida pela continuidade dos mestres da psicanálise: Freud em primeiro lugar. CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ? A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA A psicanálise, como as ciências do homem, debate-se entre ciência e ideologia (WALLERSTEIN, 1988). II – A idealização e os microgrupos ideológicos nas Instituições pluralistas O movimento psicanalítico adquire, através da idealização, a força e o caráter de uma “mística”, cuja função – agrupar e afirmar a vigência de determinados ideais – conspira, por sua vez, contra alguma coisa do essencial do descobrimento: desideologizar e devolver a singularidade criativa. Vamos considerar o futuro colega como matéria ideologicamente virgem? Estaríamos muito errados. Não podemos nos cegar quanto a seus conhecimentos prévios, quaisquer sejam as falácias e/ou distorções que as encerrem. Além disso – e o mais provável –, já terá se decidido por algum dos microgrupos existentes, e isso terá orientado, outrossim, sua escolha de analista didático. O candidato não é, pois, o mesmo que J.J. Rousseau considerara a respeito do “bom selvagem”, no sentido de virgindade natural (ROUSSEAU, 1762). Pensando concretamente em um candidato, comprovamos que esse tem se aproximado da análise por numerosos motivos, mas essencialmente por ideologia. Isso se evidencia, também, no fato de que o candidato não chega, no início, em condições de poder considerar que há distintas verdades e, sobretudo, de poder aceitar que não temos a posse de nenhuma verdade última. Por isso, afirmamos que chega movido por uma ideologia (BARANGER, 1957). Poderia se pensar que o que convém para a formação de um psicanalista é que se entusiasme por um grupo ou por uma ideologia e, posteriormente, passe a outra coisa, eventualmente. O risco seria que fique “preso” a essa primeira ideologia, ou a esse primeiro mestre, e não possa se abrir mais. Quer dizer que o candidato se aproxima da Instituição geralmente por pertencer a um grupo psicanalítico. Isso implica pertencer a uma ideologia e a uma idealização especial, à idealização de determinadas pessoas. Isso 58 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 59 Raquel Zak de Goldstein não é algo negativo em si. É uma situação que o candidato teria de poder superar. Às vezes, não a supera. No melhor dos casos, sim. Porque, como anteriormente dissemos, se não existe essa idealização inicial, o candidato não “se faz psicanalista” de nenhuma maneira. O ponto absolutamente essencial é, nessa situação, o relacionamento do candidato com a psicanálise. O que quer dizer a relação do candidato com a teoria psicanalítica de seu analista e com a da Instituição psicanalítica a que aspira pertencer – aspectos que, mesmo sendo diferentes, se mantêm, não obstante, em muitas áreas –, e o grau de idealização que supõe sua existência nesses diversos domínios. O curso do processo analítico do candidato levará também, necessariamente, à revisão e à colocação em risco dessa idealização em algum momento de sua formação. Muitas vezes, isso acontece após essa formação. Esse processo da substituição da idealização pela valorização e suas conseqüências é desencadeado quando a idealização tropeça em fatos evidentes, como por exemplo a descoberta de que as associações psicanalíticas não são tão melhores que as outras associações profissionais ou científicas. Deveriam ser melhores, mas não o são. E o que dizer do momento em que isso se evidencia também em relação aos psicanalistas? Esses são fatores fundamentais de desidealização. O que pensamos a respeito e a título de conclusão, a partir de nossa experiência, é que o contato, tal como queira fazê-lo o candidato com os diferentes esquemas referenciais existentes dentro da Instituição, é o que mais O pode auxiliar perante O risco de ficar aferrado a sua primeira ideologia, a esse primeiro mestre que o motivou a “tornar-se psicanalista”. A respeito da questão de quando, consideramos que desde o início o ensino deve ser assim: expressado em diferentes esquemas referenciais. Dizíamos que não está errado que o candidato se entusiasme, inicialmente, por um esquema, mas também que conheça os outros, inclusive que trabalhe nos outros, à medida que a Instituição o permita e possibilite. Isso tem sido formulado assim e posto em prática na APA desde 1974 CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ? A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA (APA, 1974). Neste tipo de Instituto pluralista, os candidatos – não-virgens e, a princípio, entusiastas, como dizíamos, de uma opção teórica ineludivelmente ideologizada – escutam em seminários seus colegas candidatos e são levados a pôr à prova suas respostas prévias, as próprias de seu esquema referencial de origem. Pensamos que esse leque de esquemas referenciais, com suas divergências e questionamentos discriminados e formulados psicanaliticamente, gera flexibilidade conceitual e se contrapõe eficazmente à tendência à ideologização, impulsionada pelo “desejo de certeza, pureza e ordem”. III – Procusto ou Prometeu? Se não formamos – porque não queremos agir como Procusto, esticando e/ou recortando o candidato –, o que é que fazemos? Abrimos caminho a um estado não formado, in-forme, do qual esperamos a criatividade que caracteriza o analista. A esse estado incerto, prometéico... como suportá-lo? Como permanecer assim? Como não desejar fugir dessa condição? Como não ficar tentando com criações-desviações que prometem aliviar esse estado? Mesmo à beira do equívoco, preferimos permanecer “no incerto”, porque o dizer do analista é criação e comporta risco. Pode-se enganar, visto que nem a verdade histórica, nem a verdade material são acessíveis como tais. Somente por mediação da transferência e da palavra. A ortodoxia – inevitavelmente procustiana – não garantiu uma solução a esse dilema de se manter psicanalistas, nem diminuiu a proporção de desvios e perdas dentro do movimento; ao contrário, introduziu outro malestar: uma tendência à rigidez e à ideologização. A experiência mostra que podemos limitar a “fogosidade juvenil” analítica prometéica em uma Instituição firme, precisa e plural (SECHAN, 1960). O que não poderemos é esperar “fogo” de um morto, e quem se deitou no leito de Procusto, sem dúvida, amanhece morto ou disforme. 60 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sabemos que funcionamos sem certezas. Além disso, evitamos aquilo que S. Leclaire (1983) denominou “a tentação de Deus”: a tentação de tomar-se por Deus. O futuro analista percebe que a necessária revisão de seu esquema referencial de origem põe em jogo uma parte medular de suas identificações, a que Willy Baranger (1956) denominou baluarte individual, que talvez foi sustentáculo de sua identidade. Esse é um momento iniludível, inerente ao trajeto do “tornar-se psicanalista...”, precioso momento que demanda do analista didático vencer qualquer tentação de conivência (GOLDSTEIN, 1973). Mas a incerteza que se gera convida a se fugir em direção à “salvadora” adesão a um esquema referencial, que indefectivelmente se sacraliza e se torna uma crença particular. Volta a desejada certeza... às custas de ceder à ideologização. Se não queremos o Caos, nem a Petrificação... se também não queremos ceder à tentação de tomar-nos por Deus ou ideologizar, nem queremos procustizar... o que resta? A aprendizagem da difícil, eterna tarefa de tolerar a incerteza. V – Criar é risco... É obvio que esse estado – manter-se na incerteza e sem certezas para criar – implica, além do mais, o risco de enganar-se. A criatividade é a reação de um sujeito que, perante esse estado de incerteza que se gera pela perda da idealização e de sua ideologia subjacente, vai à procura de novas respostas para tolerar a incerteza e suas perguntas. Esta oscilação criativa, “ir à procura de”, funciona como um verdadeiro by pass e suporte da incerteza, e se afirma quando, na transmissão, considera-se e consolida-se a singularidade do candidato também em sua produtividade, incentivando o trabalho crítico e o compromisso, e quando o analista que transmite faz-se partícipe, marcando sua excentriSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 61 Raquel Zak de Goldstein IV – Tolerar a incerteza CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ? A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA cidade: não é o centro de um saber preexistente constituído. Somente nesse momento, movido pela angústia perante a incerteza que provocou o reconhecimento da queda do objeto idealizado protetor, “a criança brinca, brinca de Fort-Da” (GOLDSTEIN, 1982; GREEN, 1990). Mas essa posição “ingênua”, em abstinência ideológica e sem certeza, capaz de “descobrir o inconsciente”, corre de par com o risco de perder-se no desejo de mudar as coisas e criar alguma coisa nova. Seu defeito, a criação transgressiva, está ilustrado por algumas personalidades que se perderam para o movimento (Adler, Jung, Steckel, Reich, etc.). O ideal da IPA foi manter uma ortodoxia para tentar lutar contra isso, para que as pessoas não se perdessem para o movimento. Mas essa solução não foi tal, visto que, mesmo assim, muita gente se perdeu. Conclusões O dilema da formação, hoje em dia, consistiria em: transitar entre nosso Escila e Caríbdis e escapar de Procusto procurando Prometeu nos analistas. Mas... um Prometeu psicanalista, consciente do desejo de saber e de que a verdade resiste a ser formulada “toda”. Entre a tentação – narcisística – de ocupar o lugar desejado e temido do Pai Ideal, portador “da verdade”, e sua rejeição, só se permanece analista sustentando-se perante a finitude, alteridade e incerteza. Como fazê-lo? Sabemos quanto e como a resistência, apatia ou conivência de analista e analisando para encarar a análise da idealização e da ideologia no pano de fundo, tanto do enquadre psicanalítico quanto na Instituição, pospõem e, às vezes, impedem a indispensável desidealização compartilhada, obstaculizando a necessária subjetivação do analista (APA, 1959). Isso dá lugar, às vezes, a baluartes de idealização mitificante, inclinados, além disso, às transformações autoritárias. Mais ou menos larvadas, às vezes não desejadas, essas estruturas paternalistas se instalam e esclerosam. A organização institucional, alguns ideais científicos ou algu62 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 63 Raquel Zak de Goldstein ma verdade oficial tendem a ser “tomados” pela resistência e, insensivelmente, asfixiam-se em suas malhas o pensamento de tipo crítico-reflexivo e a criatividade. Como se sustentar, então, na escorregadia dimensão paradoxal do inconsciente, entre literalidade e metáfora, na dialética entre o fantasma da dissolução – que nos aproxima à angustia pura, sem objeto (BARANGER, BARANGER e MOM, 1987) –, e a desejada certeza que se oferece sempre confortável, tentadora e protetora... com seu inevitável corolário de cristalização petrificante? Como se proteger dessa “proteção”, dessa mortífera “salvação”? O projeto pluralista é – estamos praticando-o desde 1974 – um bom dispositivo-suporte para enfrentar o risco do Caos ou da Petrificação. Fugindo do tentador ideal coletivo que levaria à certeza ideologizada, colocamos em jogo os diversos esquemas referenciais no trabalho da transmissão. Esse posicionamento, sustentado no tripé clássico, mantém-nos abertos àquele “sentimento de realidade”, Wirklichgefuhl, específico do descobrimento do inconsciente, e do “tornar-se analista” (GREEN, 1990). Que se transmite, então? Através do essencial da psicanálise freudiana, habilita-se uma capacidade para conter o estado de incerteza, que possibilita a busca criativa do que está “Além...” (FREUD, 1920g), a angustiante exploração – teórico-clínica e pessoal – de “o sinistro” (FREUD, 1919h) tão familiar, tão estranho! Essa capacidade se consolida no estudo do leque freudiano e dos vários esquemas referenciais surgidos dele, e no reencontro indispensável – de analista, analisando e candidato –, com a vulnerabilidade e o desamparo essencial, (Hilflosigkeit). Em troca, abre-se o estado de criatividade que acompanha a permeabilidade analítica. Trata-se, dessa forma, da transmissão de um descobrimento e de uma disposição através do texto vivo – legado simbólico de Freud e seus seguidores, tal como pode ser entendido –, que permita “pensar” as diferentes correntes psicanalíticas radicadas em sua obra, com seus efeitos e conseqüências. Outrossim, induz-se a uma atitude crítico-reflexiva, através “des- CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ? A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA se segundo olhar” sobre o campo analítico, que nos leva a ser sujeito e objeto da experiência clínica. Oscilação com precisão seriam características dessa necessária mobilidade conceitual criativa, cujo impulso está dado pela curiosidade infantil e pela angústia perante a perda, exemplificadas no “jogo do carretel”. Comportando-nos com a causa freudiana como com o objeto transicional de Winnicott, o paradoxo se “situa” como a qualidade do inconsciente na presença do não-sentido, “em montagem” com a matéria de fabricação humana: “fraldinha” e conceitos em transição. Entendemos por que Winnicott disse: “a psicanálise é o jogo mais sofisticado do século XX” (GREEN, PONTALIS et al., 1979). A mais importante conseqüência que se deriva, então, do tema de fundo que formula o próprio título – a pergunta proposta pela IPA para o précongresso didático: “Petrificação ou Caos?” – é que se trataria de um falso dilema. O dilema da transmissão, hoje em dia – a transmissão da psicanálise – , é preservar sua força, aceitando o desafio de evitar objetivar, aplicar, diluir, ou ideologizar..., para que surja Prometeu, o que cria e mantém esse estado de permeabilidade e incerteza viva. Tentaremos, outrossim – a qualquer custo –,preservar a indispensável coerência interna teórico-clínica, conscientes sempre da diversidade de níveis e problemas epistemológicos que essa posição comporta. Além disso – se, como Freud disse, a psicanálise é uma das profissões impossíveis, e o ensino também o é –, como pretender que o posicionamento das Instituições seja tranqüilo ou fácil? Na prática, e perante tudo isso, pensamos que o contato pluralista, tal como queira fazê-lo o candidato, contato não obrigado com os diferentes esquemas referenciais existentes dentro de uma Instituição, é o que mais lhe pode e nos pode ajudar na transmissão da psicanálise, contato esse desde o início. Do mesmo modo, seu contato com a vida institucional. Pensamos que isso contribui, além do mais, às condições para resolver a desilusão provocada pela desidealização e pela ausência de certeza. 64 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sinopse A autora aborda a especificidade da transmissão da Psicanálise e salienta o que a diferencia essencialmente em relação à transmissão de outras ciências. Alerta sobre o processo de idealização no transcorrer da formação psicanalítica e sobre a necessária substituição deste pelo processo de valorização. Mostra que na transmissão de psicanálise se habilita uma capacidade para conter o estado de incerteza que possibilita a busca criativa do que está “Mais além...”, a angustiosa exploração teórico-clínica e pessoal, de o “Sinistro” tão familiar! tão estranho! Summary Chaos, Petrification... or What? The Uncertainty [inherent] in the Analyst’s Subjectiveness The author addresses the specificity of the teaching of Psychoanalysis and emphasizes what essentially differentiates it from the teaching of other sciences. She calls our attention to the idealization process throughout the psychoanalytical education and to the necessary replacement of that process with the valuing process. She shows that in teaching psychoanalysis one enables a capacity to contain the state of uncertainty, which makes it possible to creatively search for what is “farther away...”, the anguishing theoretical-clinical and personal exploration of that so familiar and so strange “sinisterness”! Sinopsis Caos, Petrificación... ¿o Qué? La Incertidumbre en la Subjetivación del Analista La autora aborda la especificidad de la transmisión del Psicoanálisis y destaca cuál es la diferencia esencialmente con relación a la transmisión de otras ciencias. Alerta sobre el proceso de idealización en el transcurrir de la formación psicoanalítica y sobre la necesaria sustitución de este por el proceso de evaluación. Muestra que en la transmisión del psicoanálisis se habilita una capacidad para contener el estado de incertidumbre que posibilita la búsqueda creativa de lo que está “Más allá...”, la angustiosa exploración teórico-clínica y personal, del “Siniestro” tan familiar! ¡Tan extraño! Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 65 Raquel Zak de Goldstein Se o candidato pode se identificar com a Instituição e com a psicanálise, poderá substituir a idealização pela valorização. CAOS, PETRIFICAÇÃO... OU QUÊ? A INCERTEZA NA SUBJETIVAÇÃO DO ANALISTA Palavras-chave Subjetividade; Singularidade; Idealização; Desidealização; Ideologização. Key-words Subjectiveness; Singularity, Idealization; De-idealization; Ideologization. Palabras-llave Subjetividad; Singularidad; Idealización; Desidealización; Ideologización. Referências APA (Associação Psiquiátrica Americana),1974. Plán de estudios. ______. Symposium Anual – 1959: Relaciones entre psicoanalistas. Revista de Psicoanálisis, v. 16, n. 4, 1959. BARANGER, W. (1957). Interpretación e ideología (sobre la regla de abstención ideológica). Revista de Psicoanálisis, v. 14, n. 1-2. ______. (1956). Asimilación e encapsulamiento: estudio de los objetos idealizados. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, v. 1, n. 1. BARANGER, M.; BARANGER, R.; MOM, J.M. (1987). El trauma psíquico infantil, de nosotros a Freud. Trauma puro, retroactividad y reconstrucción (sesión plenaria del 35º Congreso Internacional, Montreal, 1987). Revista de Psicoanálisis, v. 44, n. 4. FREUD, S. (1919h). Lo ominoso. A.E., v. 17. ______. (1920g). Mas allá del princípio del placer. A.E., v. 18. GOLDSTEIN, R.Z. de. (1973). La función clave del encuadre en la técnica psicoanalítica: continente natural para el vínculo mágico primario. Revista de Psicoanálisis, v. 30, n. 1. ______. (1981). ¿Una nueva categoria objetal en la teoría y en la clínica? El objeto transicional de Winnicott. Revista de Psicoanálisis, v. 38, n. 1. GREEN, A. (1990). De la rememoración al insight. Apresentado na Sociedade Psicanalítica de Madri, em 11 de maio de 1990. GREEN, A.; PONTALIS, J.B.; et al. (1978). Donald W. Winnicott. Buenos Aires: Trieb. LECLAIRE, S. (1983). La tentación de Diós. In: CONFERENCIAS PRESENTADAS EN LA APA, Un encantamiento que se rompe. Buenos Aires: Gedisa. ROUSSEAU, J.J. (1762). Del contrato social. Madrid: Alianza. 66 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Tradução: Maria Matilde Graña Dra. Raquel Zak de Goldstein Ramón Castilla, 2943 1425 – Buenos Aires – Argentina Fone: (5411) 48028554 Fax: (5411) 48053245 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 67 Raquel Zak de Goldstein SECHAN, L. (1960). El mito de Prometeo. Buenos Aires: Eudeba. WALLERSTEIN, R.S. (1964). The role of prediction in theory building in psychoanalysis. Journal of American Psychiatric Association, n. 12, p. 675691. ______. (1988). One psychoalysis or many? The International Journal of PsychoAnalysis, v. 69, n. 1. Apresentação Gabriel Guillermo Jure Membro Associado da Associação Psicanalítica Argentina. A aplicação da psicanálise é uma das práticas possíveis surgida com o advento dessa nova ciência da natureza, como o próprio Freud quis posicioná-la, em defesa de interesses que queriam situar a psicanálise como uma ciência do espírito. O método, aplicado a âmbitos exteriores ao estudo do funcionamento da mente humana, é, talvez, uma das possibilidades mais controversas, em relação às outras três modalidades: como instrumento terapêutico, como teoria do comportamento humano e, por último, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 69 Gabriel Guillermo Jure Estudo da Desmentida em um Quadro de Adição: Maradona com Sade ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: como metodologia de investigação. Por outro lado, os trabalhos sociais na obra de Freud possuem riqueza tal que têm permitido uma visão profunda de certos fenômenos de massas e de fatos históricos, resultando em compreensões inéditas sobre a cultura. O presente trabalho tem a incumbência de articular desenvolvimentos de ambos, Psicanálise aplicada e Psicologia das massas, através do que foi publicamente informado sobre a vida de um sujeito e seu ambiente, no caso, Diego Maradona, que chegou a ser uma das pessoas mais populares em certo momento da história da humanidade, uma vez que, através de pesquisas realizadas nesses anos, deduziu-se ser mais conhecido mundialmente que Jesus Cristo e o Papa. Protagonismo histórico A Argentina viu-se, periodicamente, comovida pelos avatares da vida desse personagem, tornado um ídolo internacional e nacional, devido às extraordinárias condições futebolísticas, que o levaram a se situar no cume desse esporte mundial. Somente valia a comparação histórica a Pelé, o indiscutível nº 1, até o aparecimento do astro argentino. Pela experiência em psicanálise, é freqüente encontrar, na vida adulta de um sujeito, um fator desencadeante que impulsiona a irrupção de determinada problemática mental de índole diversa. É a partir de 1986, com a possibilidade de ultrapassar o destacado desportista brasileiro, que começam a derrocada desportiva e pessoal na história de Diego Maradona. A situação de rivalidade que evoca a conflitiva edípica de um filho com seu pai (real ou simbólico) é habitual disparadora de transtornos mentais. O primeiro doping positivo levou Maradona a deixar o país europeu em que jogava, recebendo na época pagamentos multimilionários por mostrar suas virtudes no futebol, o esporte mais popular do planeta. Despedese, acusando persecutoriamente a máfia e o racismo existentes naquele país, mas sem se responsabilizar, sequer minimamente, pelo assunto. É importante assinalar que as ansiedades paranóides ou persecutórias são incrementadas pelo cloridrato de cocaína, alcalóide derivado da planta de Erythroxylon coca. O povo argentino, aferrado fortemente à idealização do 70 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 71 Gabriel Guillermo Jure “Maradona gênio”, acredita em sua explicação e reforça a idolatria, transformando-o no defensor das camadas discriminadas e marginalizadas do mundo. Antes de ser transferido a clubes europeus começa a se destacar o chamado “meio de Maradona”, no qual se misturam novos e antigos amigos e empresários encarregados de fazer os contratos comerciais futebolísticos e publicitários, geralmente de milhões de dólares. Encobre-se, a essa altura, um enlace digno de se sublinhar, pois vai além de um serviço de gerenciamento ou de um vínculo afetivo de amizade. Começa a se gestar um pacto entre um corruptor e, nesse momento, seu partenaire, similar à união entre Dolmancé e Eugênia, os protagonistas de “A Filosofa na Alcova”, do Marquês de Sade. Em um trabalho apresentado no XX Simpósio da Associação Psicanalítica Argentina, em 1988, sobre “Perversão”, Willy Baranger e colaboradores, mediante a aplicação da psicanálise ao texto literário, desenvolvem a idéia de que em sujeitos com tendências perversas podem se rastrear, na infância, cenas de iniciação parafílicas. Nessas últimas, é muito freqüente encontrar a figura do corruptor, que é introjetada no psiquismo da criança e reatualizada ativa ou passivamente, na vida adulta. No texto de o “Divino Marquês”, Dolmancé é um instrutor dedicado à educação sexual libertina de jovens. Aí é enfocado o encontro de iniciação da jovem Eugênia, partenaire desejosa de uma vida com grande liberdade sexual, identificada com o pai, a quem se refere possuidor de uma vida promíscua e que aprova esse tipo de educação para a filha. A mãe, muito diferente, trata, no fim do drama, de salvar a filha, mas Eugênia, em união com Dolmancé e o grupo, a submetem a uma terrível profanação. Embora, na história de Maradona, a iniciação e o doutrinamento não estejam diretamente relacionados à sexualidade, como no texto de Sade, mas à provisão de cocaína, a estimulação ao desenfreio e à diversão, contra a disciplina necessária em um esporte de alto rendimento como o futebol profissional, podemos pensar que o mecanismo instrumentado é similar. Dolmancé, no texto literário, é a cabeça pensante, o encarregado das con- ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: versas teóricas sobre sexualidade perversa e, ao mesmo tempo, o organizador das lições práticas no doutrinamento de Eugênia, que demonstra ser uma aluna bem disposta. Nesse círculo de Maradona, deve ter atuado um instrutor na direção de “a vida com cocaína”, o que vai além da droga e encontra predisposição no futebolista, o qual certamente então não era de todo consciente do prejuízo que acompanhava dita vida licenciosa. Tal perda pode servir de símbolo do custo da doença mental do astro argentino, o que podemos economicamente estimar: foi muito mais o que Maradona deixou de ganhar em termos monetários pela adição à cocaína que o montante que ganhou em sua carreira esportiva. O “Dolmancé” do “entorno” não foi ingênuo nem bobo nessa história, sabia que a dependência criada através dessa substância daria muito mais domínio e poder sobre ele, “multimilionário novo”, que não poderia mudar caprichosamente de amigos ou de representantes. Se era vinculado através da provisão de atividades proibidas que deviam se manter no mais rigoroso segredo, o pacto e a dependência criada se transformaria em algo forte e seguro. Além disso, a cocaína, ao ser fonte de intenso gozo narcisista e hedonista, era capaz de competir exitosamente com as ovações de estádios lotados, contratos milionários, fama e transcendência internacional. Ao realizar este trabalho, resultou surpreendente a concordância com algumas concepções que Henri Ey tinha em 1971, seis anos antes de sua morte. Esse psiquiatra francês, que foi companheiro de internato de Lacan no Hospital Saint Anne, durante a década de 1930, defendeu uma concepção humanista e psicanalista da Psiquiatria. Fundou em 1950 a primeira Associação Mundial dessa especialidade, da qual os norte-americanos se apropriaram, criando a WPA (World Psychiatric Association), que seria precursora da Associação Psiquiátrica Americana, difusora e criadora do DSM-IV, o qual, em partes substanciais, promove o organicismo e as terapias cognitivas de encontro à psicanálise que tanto foi defendida por Henri Ey. Também foram famosos os Colóquios de Bonneval ditados por ele, 72 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Nenhum tema da prática psiquiátrica sofreu uma modificação tão profunda desde a primeira redação desse Tratado de 1960, como o das toxicomanias: a evolução na América e depois na Europa das toxicomanias nos jovens como fenômeno massivo transformou os termos do problema. [...] A conduta do toxicômano constitui uma perversão que satisfaz completamente sua necessidade (busca de prazer e evitação do sofrimento mediante a absorção habitual e imperiosamente exigida de um ou vários produtos chamados tóxicos, precisamente a causa de sua escolha por adeptos dessa conduta). Assemelha-se às perversões sexuais à medida que possui a característica fundamental: a regressão a um prazer parcial; seria um abuso de linguagem falar em toxicomania fora de tais critérios. Não se pode definir a toxicomania como o uso habitual de um ou vários produtos (nem todos os alcoólatras, por exemplo, são toxicômanos), senão que deve ser definida pela conduta específica de tipo perverso que constitui uma regressão instintiva afetiva, um verdadeiro desequilíbrio da integração de pulsões. Vivenciar traumático acidental O fator atual como co-participante na etiopatogenia foi pensado por Freud como terceira série complementar. Segundo alguns autores pósfreudianos, como Ricardo Bernardi, psicanalista uruguaio, as circunstâncias atuais têm sido menosprezadas ou pouco tidas em conta na tarefa clínica e em desenvolvimentos psicanalíticos praticamente durante um século. Cito fragmentos do seu trabalho de 1988, intitulado “Vulnerabilidade, deSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 73 Gabriel Guillermo Jure que congregavam grande parte da intelligenza francesa de meados do século passado: psiquiatras, psicanalistas e intelectuais de outros campos reunidos em um clima aberto e adogmático. Todo esse desenvolvimento científico e profissional, junto dos textos publicados, o levou à seguinte comparação paradigmática: Henri Ey foi para a história da psiquiatria francesa o que Lacan foi para a França psicanalítica. Esse preâmbulo só serve para introduzir valiosas citações do Tratado de Psiquiatria de Ey, Bernard e Brisset, de 1978, no qual se encontram coincidências importantes com certas postulações desse escrito: ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: samparo psicossocial e desvalimento psíquico na idade adulta”, para exemplificar: O que Freud denominou “vivenciar traumático acidental do adulto”, considerando-o como fator desencadeante [...] não conseguiu atrair a atenção da produção psicanalítica, que se ateve mais aos estudos sobre o condicionamento ou a aprendizagem que procuraram relacionar as modificações do comportamento com aqueles estímulos que poderiam explicar sua aparição ou sua manutenção [referência ao cognitivismo e ao neocondutismo]. [...] O grosso do interesse psicanalítico se dirigiu, ao contrário, às raízes infantis das vivências atuais [...]. Outra citação de interesse: Sem dúvida [...] o impacto dos microtraumatismos do presente sobre a saúde física ou mental parece hoje em dia inquestionável. Por sua vez, diversos autores (citados por Lazarus e Folkman, 1986) têm assinalado que a idade adulta é também o assento de transformações psíquicas maiores. Isso reabre o interesse a respeito do “vivenciar traumático do adulto”: [...] A investigação psicossocial do mesmo tem apontado a distintas variáveis [...] duas de especial relevância: a) Os acontecimentos vitais interessantes: [...] Para esse fim, leva-se em conta [...] a intensidade e a mudança que um dado acontecimento introduz na vida de uma pessoa [...]. Comprovou-se que, quanto maior é o grau de mudança na vida de uma pessoa durante um ou dois [ou mais] anos, tanto maior é a possibilidade de adoecer nos anos seguintes. A introdução da cocaína na vida do jogador de futebol é um fato impossível de se negar a esta altura dos acontecimentos. Talvez não se possa precisar o momento histórico exato e, portanto, a quantidade de anos de comprometimento, bem como se houve momentos livres de adição, mas, pelas conseqüências últimas, pode se conjeturar que foi muito tempo de adição de tóxicos. Tampouco poderíamos falar literalmente de que tal in- 74 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Queda Pouco tempo depois, essa relação anteriormente citada entre o corruptor e sua vítima muda de um vínculo de loja maçônica fraterna e sociedade secreta para a diversão, passando a ser os dois co-responsáveis pelo aprofundamento na carreira da poliadição: supõe-se que se foram associando à cocaína, anfetaminas, anabólicos, estimulantes do Sistema Nervoso Central e do rendimento físico, assim como álcool e psicofármacos. Certamente, essa outra carreira paralela começou diminuindo a capacidade esportiva de Maradona e depois a suprimindo totalmente. Inclusive o deterioramento mental e físico agiu como mecanismo de anulação das glórias do passado, com atos bizarros de violência e dano a terceiros, transgressões da lei, infinidade de problemas de casal e familiares. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 75 Gabriel Guillermo Jure trodução foi um acontecimento “vital”, pelas conseqüências destrutivas que teve tanto para o físico do outrora jogador magistral, quanto para sua carreira profissional e sua vida afetiva. “Um importante número de investigadores, seguindo Seyle e Cannon, têm mostrado as modificações que se produzem nos diferentes setores do organismo: vasculares, endócrinas, hormonais, e imunológicas, em conseqüência das situações estressantes.” A condição estressante da cocainomania em Maradona, com as repercussões sobre o aparato cardiovascular e o Sistema Nervoso Central, são passíveis de investigação médica, bem como suas seqüelas. b) O suporte social: “tem se podido demonstrar que o suporte social atua não só como colchão ou ‘buffer’ frente aos agentes estressantes, mas também como fator relacionado ao aparecimento das diversas enfermidades físicas e mentais, inclusive associado à taxa de mortalidade”. Pode se relacionar aqui o mencionado meio social e familiar de Maradona como um dado a ser levado em conta. Na realidade, tal meio, que participou como suporte social, poderia ser entendido como antibuffer, já que impulsionou mais para a queda do futebolista nos transtornos drogadependentes do que como defesa ou suporte contra mesmos. ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: Sobre os transtornos de adição a substâncias no capítulo dedicado à cocaína, desenvolvido em 1998 pelos psiquiatras dinâmicos norte-americanos Kaplan, Sadock e Grebb (baseados no DSM-IV), destacam-se os seguintes conceitos: “A cocaína é uma das substâncias de adição das que mais se abusa e uma das mais perigosas”. Como relato histórico, aparecem dados de interesse: foi isolada pela primeira vez em 1860, e foi a partir de 1914 que foi classificada no grupo dos narcóticos, juntamente com a heroína e a morfina, devido à descoberta de seu marcado potencial de adição, descrevendo-se importantes prejuízos à saúde, como acompanhantes de sua utilização crônica. Cito os seguintes dados epidemiológicos obtidos nos Estados Unidos, país de notável desenvolvimento nessa área: Em 1998, havia um milhão e novecentos mil norte-americanos que haviam consumido cocaína no último mês [...] Não obstante, o consumo dessa substância está atualmente em declínio. Esse fato se deve basicamente ao maior conhecimento dos riscos que comporta seu consumo. O conhecimento tem sido potencializado pelas campanhas sanitárias públicas [...] Notou-se pouco a diminuição do uso na sociedade norte-americana, devido ao aumento na última década do consumo de crack, uma forma de cocaína mais potente e econômica [...] Em 1991, 12% da população dos EUA havia consumido pelo menos uma vez, e 1,9% havia consumido crack. Como estudo nos grupos populacionais diferentes em condição socioeconômica e etnia, é de se destacar o seguinte: O consumo de cocaína é mais alto entre os desempregados, embora também a droga seja consumida por pessoas de grupos socioeconômicos altos, e entre os homens duas vezes mais que entre as mulheres. Tem se reduzido seu consumo entre as pessoas brancas e de cor, enquanto que entre os hispânicos têm se incrementado. 76 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 A cocaína é uma substância perigosa associada não somente a transtornos de conduta muito importantes, mas também a problemas médicos graves [...] os efeitos cerebrovasculares mais comuns são os infartos cerebrais não hemorrágicos. O mecanismo fisiopatológico que subjaz a esses transtornos vasculares é, sem dúvida, a vasoconstrição [de artérias e arteríolas que irrigam os hemisférios cerebrais]. [...] os infartos de miocárdio e as arritmias são, seguramente, os transtornos desse tipo mais relacionados à cocaína. Os infartos cerebrais cardioembólicos podem ser a complicação que se seguiria” [aumentariam como conseqüência]. Ao regressar da Europa, Maradona é detido em Buenos Aires, muito perturbado por compartilhar com outros homens, importante quantidade de droga que, pelo montante, os convertia em “portadores”, situação que requereu intervenção da Justiça da Nação. Pela primeira vez assume, publicamente, a adição à cocaína, e o fato tem um seguimento judicial, à maneira argentina: é famoso e líder das massas, pelo que recebe tratamento especial, mais condescendente que qualquer cidadão comum. Nosso país, Argentina, com sua tendência à desmentida, minimiza a doença de seu ídolo nacional, e a opinião pública prescreve-lhe uma ilusória direção de cura: voltar a jogar futebol e fazer gols, recebendo o amor passional das massas, rodeado de amigos e família, sob o manto brando da terra que o viu nascer. Infiro que o fator da participação do Poder Judiciário, nesse caso, agiu como facilitador do consecutivo fenômeno de massas que se deu na Argentina nesse momento: a renegação da doença. A Argentina, desmentindo situações muito mais graves e estranhas, como torturas, desaparições, abolição dos Direitos Humanos, havia tido um excelente treinamento durante as passadas ditaduras militares. A partir desse momento, as intenções do Dolmancé de Maradona coSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 77 Gabriel Guillermo Jure Referindo-se às conseqüências sobre a saúde física, é de se destacar os seguintes parágrafos: ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: meçam a sair fora de controle: ele, até então discípulo mancebo, transforma-se em um apaixonado praticante, desenfreado pela “branca” forma de obtenção de prazer, e se entrega intensamente ao hedonismo por substâncias. Assim, o anterior corruptor se vê superado pelo outrora aluno, aparecendo situações de descontrole e complicações legais cada vez mais reiteradas na vida do craque. Reduz-se, dessa maneira, o negócio Maradona, rescindem-se contratos de megaempresas pelo mau exemplo público que dá sua enfermidade e, após uma curta passagem pelo futebol espanhol, nenhum clube importante fora da Argentina se interessa por ele. Abandonos e retornos à competência profissional nacional, algumas muito bem sucedidas, outras de pobre rendimento, marcam o transcurso do início da década de 1990. Até que, em 1994, outra vez por um controle antidoping positivo, deixam-no fora de uma competição mundial e é punido a dois anos de exclusão do futebol profissional. Tristeza, raiva e dor sacode o povo argentino, que chora junto a seu herói, que anuncia a quatro ventos: “Cortou-me as pernas o presidente da FIFA, por ser líder de corporação”. Repete-se a projeção em um inimigo externo; uma parte da Argentina começa a duvidar da credibilidade dos discursos de Maradona e seu meio, mas a outra, a grande maioria, se aferra ao futebolista e nega a gravidade de sua enfermidade, apelando à repetição quase publicitária dos melhores momentos esportivos desse prodígio no gramado, olhando assim somente seu melhor perfil. Ele passa a ser elenco do “jet set argentino”, rodeando-se de políticos, atores, modelos e alguns empresários, que enchem páginas coloridas de revistas nacionais de atualidade, com algum fato tempestivo, ou escândalo habitual, que alimenta o status de “famoso e ser público”. Final Com o início do século, Maradona sofre uma afecção cardíaca, produto de excessos de substâncias de adição, que causam deterioração em mais de um terço do coração, em um homem de 40 anos. É internado em distintas instituições médicas, onde se porta um “paciente difícil”, pela impossi78 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 79 Gabriel Guillermo Jure bilidade de frear a impulsão às drogas. Chama a atenção que não se fazem ou não se fala de exames neurológicos de última geração para determinar quanto pode estar atingido o SNC, particularmente o córtex cerebral. Em mais de dez anos de adição crônica a múltiplas drogas pesadas, é possível que o dano seja visível. Outra vez, uma parte da Argentina, comovida, o observa, acompanhando impávida o notório deterioramento físico e a pobreza discursiva de quem foi seu ídolo nacional. Outra parte o desmente, imagina uma melhora rápida, deduz que, se pôde ser tão grande esportista, poderá ser capaz de reabilitar-se, pois basta uma mudança de ar, a cor do cabelo, do sistema político e de uns meses de reabilitação especial para curar-se. Mas, dia a dia, os incidentes que ocasionam Maradona e seu meio, junto a seus vaivéns anímicos, a perda de controle de seus impulsos e a pobreza ideativa que se transmite na mídia atentam contra a feroz renegação popular. O prognóstico é reservado, ainda mais quando Maradona e seu meio não adquirem consciência da gravidade da afecção mental, primeiro passo indispensável para depois lutar contra o mau hábito. A pergunta começa a pairar: como alguém que foi tão dotado para dar alegria ao coração dos povos preferiu o gozo auto-erótico e egoísta da estimulação das drogas? Esse tema é de interesse para investigá-lo metapsicologicamente: que relação pode haver entre chegar a ser “ídolo de massas” e o auto-erotismo? Surge, então, a possibilidade de nos introduzirmos na compreensão de dois aspectos relevantes: o da evolução libidinal e o do destino pulsional. O primeiro, o evolutivo, resulta mais original ao formularmos a hipótese da existência de um estágio de “auto-erotismo primário” durante o desenvolvimento psíquico inicial. Seria um estado análogo ao descrito por Freud como narcisismo primário durante o primeiro ano de vida, em seu trabalho “Introdução ao Narcisismo”, de 1914, mas de nenhuma maneira excludente dele. De fato estaria aludindo a tal tempo evolutivo, quando Freud formula a idéia de que, por um “novo ato psíquico”, se gestará o narcisismo como passagem consecutiva de um estágio prévio de pulsões auto-eróticas ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: polimorfas, sem que chame a este último de auto-erotismo primário, mas dando-lhe os adjetivos de “iniciais e primordiais”. Tal estado procura, mediante a idolatria das massas, reeditar-se e, por sua vez, reviver-se. A excitação heterogênea, irregular e com diferentes estados de intensidade do auto-erotismo primário guarda similitude com o que se observa nas massas com seu líder. Pensa-se, dessa maneira, o ídolo popular projetando seu corpo nas pessoas que o aclamam, como se fosse um magma único em estado de excitação prazerosa, embora vivido esse encontro por ambas as partes sem percepção consciente. No estágio inicial de auto-erotismo primário, as pulsões são parciais, anárquicas e desordenadas como também pode se observar em uma visão panorâmica de um evento de massas. Pode se supor, em conseqüência, que o ideal que leva um sujeito a procurar uma atividade como o esporte de massas, as artes, a oratória e a política, é o que funciona como guia inconsciente para mover-se no caminho de retornar, mediante a sublimação pulsional, ao prazer desse estágio infantil antigo, habitualmente superado e esquecido. É a situação daqueles indivíduos que, mediante o desenvolvimento de dotes extraordinários em alguns desses campos, conseguem obter o reconhecimento das massas, a fama e o êxito. A concretização desse ideal na maturidade poderia ser denominado “auto-erotismo secundário”, porque reencontra o estado de autoerotismo primário renunciado. É conveniente aqui realizar alguns esclarecimentos de certos pontos do marco referencial teórico que se utiliza neste trabalho para, dessa maneira, deixar assentado o posicionamento e quem o escreve. Estes conceitos são os seguintes: relação de objeto, teoria das pulsões e a introdução da palavra auto-erotismo na doutrina da psicanálise. Fundamentos teóricos Como foi investigado e desenvolvido por diversos autores, Sigmund Freud tomou o termo auto-erotismo do sexólogo Havelock Ellis, que o utilizava em sentido amplo, descritivo e também popular. Ellis, em seu 80 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 81 Gabriel Guillermo Jure tratado de 1898, referia-se ao auto-erotismo como as condutas sexuais de indivíduos adultos que se satisfazem com alguma parte de seu corpo, na ausência de outra pessoa, praticamente como sinônimo de condutas masturbatórias. De igual maneira como fez com o narcisismo, Freud introduz o conceito de auto-erotismo, desenvolvendo-o de forma profunda e com especificidade científica. Assim aparece em seus “Três ensaios de teoria sexual”, de 1907, nos quais, além disso, lhe outorga um status metapsicológico. Foi a partir dessa última obra citada que podemos encontrar articulações entre os desenvolvimentos do conceito de pulsão e a condição auto-erótica das mesmas durante a primeira infância . O criador da psicanálise formulou, então, que um dos elementos constitutivos da pulsão é o objeto, além de seus outros três componentes: força, fonte e meta. Proceder-se-á à explicação de como se articula, nessa investigação, o auto-erotismo, o narcisismo e o desenvolvimento pulsional na primeira infância. No auto-erotismo, o objeto das pulsões é o próprio corpo, inicialmente fragmentado, anárquico e polimorfo; é onde existem as denominadas “pulsões parciais”, sem referência ainda à imagem unificada do próprio corpo, que é atingida quando se constitui o narcisismo e o primeiro esboço do ego. Esse estágio de vivências corporais anárquicas e parciais é denominado por Lacan “imagem do corpo fragmentado”, que o exemplifica a pintura de Jerônimo Bosch e o observa com marcada freqüência como fenômeno regressivo nas sensações hipocondríacas de desestabilizações psicóticas. A unificação da imagem de si não invalida o acionar das pulsões parciais, que funcionam, às vezes, tomando como objeto partes do próprio corpo e, outras vezes, objetos externos. Nem a primazia genital faz desaparecerem as pulsões parciais, em todo caso, a subordinam e integram, naqueles indivíduos com desenvolvimento psíquico trófico. A noção de auto-erotismo adquire uma especial significação a partir da teoria sexual que foi contribuição da psicanálise. A investigação que realiza Freud em numerosos de seus escritos sobre a atividade infantil pre- ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: coce leva-o a descobrir uma situação de marcada importância para a estruturação do aparato psíquico: o objeto da pulsão é contingente. O cientista vienense observa que existem formas de obtenção de prazer que se separam das necessidades de autoconservação e também dos objetos amorosos externos. Na sexualidade humana, essa condição acima mencionada é criadora do campo simbólico e do mundo fantasmático. O conceito de “relação de objeto”, ambíguo e pouco desenvolvido na obra freudiana, é transformado em uma temática de discussão em psicanálise e dá lugar a importantes desenvolvimentos teóricos. Começam, a partir de 1924, quando Karl Abraham evidenciou tal conceito, ao formular, desde um ponto de vista estrutural, os diferentes estágios das vivências infantis. Mas sem dúvida foi a escola inglesa de Psicanálise, com os trabalhos iniciados por Melanie Klein e continuados por Balint, Bion e Winnicott, que hierarquizou a idéia de relação de objeto. Eles inverteram a posição freudiana, ao postularem que as modalidades fantasmáticas que o sujeito adquire e escolhe no mundo exterior se baseiam na relação objetal. Surge, dessa maneira, o enfoque controvertido de que as atividades do sujeito são modeladas pelos próprios objetos, sejam esses parciais, totais, reais ou fantasiados. A meu ver, com essa inversão, corre-se o risco de desresponsabilizar o indivíduo e sua realidade psíquica, condicionando a construção do aparato mental à influência dos objetos. Como conseqüência, substitui-se a noção de “estádio” pela de “relação de objeto”, e se acentua de maneira privilegiada o papel inicial da mãe, em lugar de “imago parental”, proposto desde as origens da Psicanálise por Freud. A partir da década de 1950, Jacques Lacan critica o crescente lugar do fenômeno relacional da Escola inglesa com a intenção de trazer à tona novamente o lugar do “objeto em si”, no sentido freudiano: a questão de pensar um certo tipo de satisfação, frustração ou trauma na inter-relação do sujeito com os objetos, sejam estes pessoas totais (pai, mãe ou outros seres do meio familiar significativo na infância), sejam estes objetos parciais na concepção de pulsão gestada a partir de “Três ensaios de uma teoria sexual 82 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 não existe nenhuma via pré-formada que encaminhe o sujeito a um determinado objeto [...] Esta teoria não implica a afirmação de um estado primitivo ‘não objetal’. Com efeito, o sugar, que Freud considera como modelo de auto-erotismo, segue uma primeira etapa em que a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 83 Gabriel Guillermo Jure infantil”, de 1905. A mesma teoria pulsional sofre, mais tarde, em Freud, uma complexidade progressiva, com a possibilidade de dar resposta ao dilema que apresenta a verdade histórica e a realidade psíquica como determinantes do comportamento ulterior do ser humano. Posteriormente aos seminários de 1956, Lacan levanta a sua própria teorização, intermediária entre a idéia clássica de Freud, o movimento kleiniano e o enfoque de Winnicott, ao introduzir, com status metapsicológico, o conceito de perda estrutural do objeto e de falta. Denomina-o “objeto a”, objeto causa do desejo que reduz o sujeito ao determinismo inconsciente e à linguagem, outorga a tal elemento o caráter de não-representável, como também de formar parte estrutural na constituição do psiquismo humano. Como se torna evidente, a noção de “relação de objeto” resulta complexa, controversa e gera teorizações diferentes, segundo o esquema referencial que uma investigação psicanalítica adquire. Esse trabalho se vincula a um posicionamento próximo ao freudiano, seguindo desenvolvimentos de Jean Laplanche e Jean Bertrand Pontalis, nos quais se encontram certas articulações entre relações objetais e a noção de auto-erotismo: o fato de prescindir de um objeto externo não quer dizer que o auto-erotismo primário seja uma fase anobjetal na vida precoce. A ação de seres significativos em uma criança, desde seu nascimento até a latência, é registrada pelas distintas formas de percepção do infante em crescimento, já sejam visuais, motrizes, auditivas, cutâneo-mucosas, olfativas, proprioceptivas, do equilíbrio labiríntico ou gustativas. Vão se fixando, dessa forma, as pulsões parciais em relação aos desejos, cuidados e afetos do meio imediato e familiar, também poderia se dizer em função do desejo de outros. Cito, para exemplificar, Laplanche e Pontalis: ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: pulsão sexual se satisfaz apoiada na pulsão de autoconservação (a fome) e mercê de um objeto externo: o peito materno. O segundo aspecto da investigação é o destino pulsional. Surge a idéia da utilização do mecanismo de defesa estruturante denominado “transformação no contrário” e apresentado como um destino possível por Freud, em 1915, no texto “Pulsões e destinos de pulsão”. O enfoque seria, nessa situação, que as pulsões auto-eróticas se inverteriam em forma desfigurada à realização de prazer nas massas para aquele indivíduo virtuoso, em algum sentido, que conseguisse consumá-lo e, dessa maneira, revivê-lo através dos outros: seus inúmeros seguidores. Pode servir de analogia o formulado nos escritos de Freud a respeito do “altruísmo”, em que afirma que uma grande quantidade de libido narcisista se transforma no contrário e se desloca como libido objetal à sociedade, em geral com o beneplácito e a admiração da massa. Essa idéia foi apresentada em 1917, em “Conferências de introdução à psicanálise”. Cito parte do texto da 26ª Conferência, intitulada “A teoria da libido e o narcisismo”: Quando se fala de egoísmo, tem-se em vista a utilidade para o indivíduo; quando se menciona narcisismo, leva-se em conta também sua satisfação libidinal. Com fins práticos, os dois podem se estudar em separado um longo trecho. Pode-se ser absolutamente egoísta e, não obstante, na medida em que a satisfação libidinosa no objeto se encontra entre as necessidades do ego, o egoísmo cuidará depois que as aspirações ao objeto não tragam prejuízos ao ego. [...] [Em troca] [...] Pode-se ser egoísta e ao mesmo tempo extremadamente narcisista, quer dizer, ter uma muito escassa necessidade de objeto. Uma das reflexões que apresento nesta investigação é a de que a reversão de quantidades de auto-erotismo chamado primário, mediante sua transformação no contrário, se verte às vivências de intenso prazer heterônimas nos indivíduos conglomerados em massas, ao deleitar-se com 84 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 85 Gabriel Guillermo Jure ações de seu ídolo. Tal mecanismo permite ao líder projetar seus aspectos auto-eróticos reprimidos. Como se desenvolverá mais adiante e em correspondência ao citado recentemente, os dois – auto-erotismo e narcisismo – podem ser estudados com fins práticos durante um longo período. O destino da libido narcisista do ídolo popular que acompanha o montante libidinoso auto-erótico delineado entre a massa e seu líder poderá seguir dois caminhos diferentes: o primeiro, verter-se a si mesmo, gerando uma hipertrofia do sentimento de grandiosidade do ego separadamente, ou um segundo caminho, mais saudável, em que a libido narcisista do ídolo popular, aumentada pelas paixões da massa, se dirija de maneira objetal sobre ele, de tal forma que a excitação gerada pelo ídolo em seus admiradores seja a fonte e o motor de suas produções, sejam essas artísticas, esportivas ou políticas. Também servirá, este último destino de libido, como barreira protetora frente à primeira possibilidade de megalomania individual e, por sua vez, condicionará a magnitude dessa última à repercussão que consiga em seu público admirador. Desaparecida a união passional entre o ídolo e a massa, pela lógica involução que traz a passagem do tempo o aparecimento de um substituto “de moda” mais convincente em algum sentido, o dotado sujeito em questão poderá realizar o luto da situação de gozo, canalizando sua energia libidinal para meios menores e reservados. Menção especial requerem as pulsões parciais de olhar e ser olhado para qualquer uma das atividades mencionadas: o esporte profissional, as artes (especialmente as visuais), na oratória e na política, tal par antitético intervém de maneira destacada. A construção dinâmica que leva ao intenso prazer infantil de olhar passivamente a exibição estética de seres significativos é revivida em seu inverso na maturidade, ao convocar o olhar de multidões mediante alguma destreza montada ativamente, seja em um estádio lotado, nas exposições de museus ou de salas cinematográficas, ou desde algum cenário para um comício político massivo. É certo, também, que o terreno pulsional recentemente mencionado se mistura com facilidade a importantes ressarcimentos narcisistas, como po- ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: demos esmiuçá-lo na conjunção gramatical de ser olhado e admirado. O primeiro eixo refere-se mais à realização do prazer exibicionista e o segundo à satisfação narcisista. Resulta quase repetitivo confirmar que “ser olhado” e “ser admirado” constituem duas metas significativas nas atividades laborais mencionadas, mas acredito que tal redundância serve ao esclarecimento da proposta e da investigação. Na situação daqueles sujeitos excepcionais que conseguem consumar o ideal de ser ídolo de povos, podem ser observadas duas possibilidades diferentes, que estariam sujeitas ao destino do componente da libido narcisista (entendida esta última de forma estrutural como acompanhante de todo comportamento humano). Por um lado, encontram-se aqueles que, perante o êxito massivo, a fama e a idolatria, não se vêem afetados e persistem no exercício de sua disciplina até que chega o momento da sua retirada natural e bem sucedida. Em geral, são aqueles que passam a formar parte das celebridades na história da humanidade. Por outro lado, estão aqueles que caem na vivência megalômana quando se transformam em ídolos de massa, são os de que popularmente a gente diz: “a fama subiu à cabeça”. Não se sustentam e acabam prematuramente suas epopéias e façanhas com ruidosos fracassos, sucessivas derrotas inconvenientes e, algumas vezes, de forma trágica. Epílogo Possivelmente uma substância que provoca uma intensa excitação hedonista, como a cocaína, comporta-se como o combustível ideal para impelir à megalomania. Parece ser o caso de Maradona e as drogas. Utilizando uma expressão muito freqüente: “se achou Deus” com a cocaína, diferentemente do astro brasileiro Pelé, que dizia que os êxitos esportivos por ele alcançados foram por vontade de Deus, confessando-se muito católico. Esse último posicionamento de referir forças poderosas alheias ao ego o coloca em uma posição terceira com referência ao Grande Outro e o salva de cair na armadilha da megalomania narcisista. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que a invocação a Deus (que para uma leitura psicanalítica é 86 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 87 Gabriel Guillermo Jure a alusão ao inconsciente) sustenta-o como sujeito barrado, mantendo separado seu Ego do Ego Ideal, enquanto a fusão do Ego e o Ideal, como expôs Jorge Kury em um desenvolvimento sobre megalomania e libido homossexual, obtura a castração simbólica e o suporte da estrutura do desejo, caindo em um estado de gozo absoluto. Para concluir, esta investigação utiliza elementos que são de público conhecimento e que permitem pensar psicanaliticamente acontecimentos históricos que têm grandes repercussões afetivas nas pessoas, como “o fenômeno Maradona”. Nossa disciplina se vê enriquecida com a proximidade de e a articulação a vivências que adquirem transcendência na sociedade a que pertencemos, evitando o risco do isolamento intelectual em comunidades acadêmicas que funcionem dissociadamente das pessoas. Desde praticamente a origem da psicanálise, o interesse múltiplo e aberto por outros campos se opôs a que códigos crípticos e fechados a afastem de seu relacionamento com a comunidade. A problemática das adições, o comportamento das massas, a dinâmica das relações intersubjetivas e a alternância do princípio de prazer e do gozo, assim como sua distribuição, são temas que conduzem a desenvolvimentos metapsicológicos, permitindo o maior crescimento teórico da psicanálise, bem como aplicações mais eficientes na prática. As mudanças culturais na evolução da humanidade, os fatos históricos que têm repercussão nos povos, as criações artísticas e o progresso de outras ciências e da tecnologia trariam inconvenientes maiores a nossa ciência, se encontrassem os psicanalistas indiferentes ante isso ou imersos somente em profundas discussões teóricas, que aumentam, inclusive, o grau de rivalidade e hostilidade entre pares, como acontece na dinâmica de todo grupo humano endogâmico. Este trabalho somente tenta explorar algumas idéias; seguramente diferentes concepções psicanalíticas poderão levantar outras perguntas e encontrar outras respostas. ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: Sinopse Neste trabalho, o autor destaca o fenômeno da psicologia das massas, através da análise de um ídolo, Diego Maradona, e sua relação com o meio que o idolatra. Traça um paralelo com a obra do Marquês de Sade, onde os personagens, Dolmancé e Eugênia, protagonizam uma relação perversa, uma relação de corruptor e aluna disposta a aprender todas as armas da sedução. O autor embasa metapsicologicamente o seu trabalho, investigando a relação entre ser o “ídolo das massas” e o auto-erotismo. Disserta sobre a evolução libidinal e o destino pulsional. Finaliza, acrescentando que no “fenômeno Maradona” as drogas se tornaram o combustível que o impeliu a cair na armadilha da megalomania narcísica, utilizando a expressão “se achou Deus”. Pontua que a problemática das adições, o comportamento das massas, a dinâmica das relações intersubjetivas e a alternância do princípio de prazer e do gozo, assim como sua distribuição, são temas que conduzem a desenvolvimentos metapsicológicos, permitindo o maior crescimento da psicanálise, bem como aplicações mais eficientes na prática. Summary Disavower Study in Addition Case: Maradona with Sade In this work, the author highlights the phenomenon of the psychology of masses through the analysis of an idol, Diego Maradona, and his relationship with the environment that idolises him. He makes a parallel with the work of the Marquis de Sade in which the characters Dolmancé and Eugênia are the protagonists of a perverse relationship between a corruptor and a student willing to learn how to use all the weapons of seduction. The author bases his work on metapsychology by investigating the relationship between being a “mass idol” and autoerotism. He lectures on libidinal evolution and pulsional destiny. He finalises by saying that, in the “Maradona phenomenon”, drugs have become the fuel that drove him into the trap of artistic megalomania, by using the expression “he felt he was God.” He punctuates that the problem of addictions, the behaviour of masses, the dynamics of intersubjective relationships and the alternation of the principal of pleasure and joy, as well as its distribution, are topics that lead to metapsychological developments, thus allowing for a greater growth of psychoanalysis, as well as more effective applications in practice. 88 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Estudio de la Desmentida en un Cuadro de Adicción: Maradona con Sade En este trabajo, el autor destaca el fenómeno de la psicología de las masas, a través del análisis de un ídolo, Diego Maradona, y su relación con aquellos que le idolatran. Establece un paralelo con la obra del Marqués de Sade, donde los personages, Dolmancé y Eugenia, protagonizan una relación perversa, una relación de corruptor y alumna dispuesta a aprender todas las armas de la seducción. El autor sustenta metapsicologicamente su trabajo, investigando la relación entre ser el “ídolo de las masas” y el auto-erotismo. Diserta sobre la evolución libidinal y el destino pulsional. Finaliza, añadiendo que en el “fenómeno Maradona” las drogas se volvieron en el combustible que le llevó a caer en la armadilla de la megalomanía narcísica, utilizando la expresión “se creyó Dios”. Resalta que la problemática de las adicciones, la conducta de las masas, la dinámica de las relaciones intersubjetivas y la alternancia del principio del placer y del goce, como su distribución, son temas que conducen a desarrollos metapsicológicos, permitiendo el mayor crecimiento del psicoanálisis, y también aplicaciones más eficientes en la práctica. Palavras-chave Drogas; Psicologia das massas; Relação de objeto; Auto-erotismo. Key-words Drugs; Psychology of masses; Relationship of object; Autoerotism; Narcissism. Palabras-llave Drogas; Psicología de las masas; Relación de objeto; Auto-erotismo; Narcisismo. Referências BARANGER, W.; BIS, N.; GOLDSTEIN, N.; et al.. Dolmancé o el corruptor. Revista do XX Symposium de Asociación Psicoanalítica Argentina, APA, t. 1, p.107-113, 1980. ______. La estructura perversa y el concepto de perversión. Revista do XX Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 89 Gabriel Guillermo Jure Sinopsis ESTUDO DA DESMENTIDA EM UM QUADRO MARADONA COM SADE DE ADIÇÃO: Symposium de Asociación Psicoanalítica Argentina, APA, t.1, p. 99-105, 1980. BERNARDI, R. Vulnerabilidad, desamparo social y el desvalimiento psíquico en la edad adulta. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, APU, n. 67, p.19-31, 1988. EY, H.; BERNARD, P.; BRISSET, Ch. (1978). Toxicomanias. In:______. Tratado de Psiquiatria. 8.ed. 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Costa Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. José Facundo Oliveira Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Gildo Katz Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Durante os últimos cinco anos, estivemos concentrados em desenvolver sistematicamente um método de investigação do material analítico, o qual decidimos denominar Algoritmo David Liberman (ADL), desenhado para a investigação da erogeneidade e das defesas testemunhadas na linguagem. Até agora, vínhamos tentando mostrar sua utilidade para os estudos clínicos. No entanto, neste trabalho, além disso, desejamos pôr em evidência o valor desse método para a investigação de um ponto de vista mais teórico, a partir dos mencionados estudos clínicos. Para tanto, vamos expor o método e depois nos concentrare- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 93 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz Investigação Psicanalítica Contemporânea INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA mos num de seus setores, a linguagem do erotismo oral primário, em cujas vicissitudes procuraremos nos aprofundar teoricamente, a partir das investigações clínicas. Nosso método: Algoritmo David Liberman (ADL) O ADL pretende aportar para um estudo sistemático das erogeneidades e das defesas no processo psicanalítico. À diferença de outros métodos, que têm seu ponto de partida na lingüística ou nos modelos cognitivos e como ponto de chegada a sessão psicanalítica, o ADL tem como ponto de partida a teoria freudiana, referente à erogeneidade e à defesa. Assim, pois, nos interessa investigar a erogeneidade e a defesa expressas na linguagem. Já expusemos, em outras ocasiões (MALDAVSKY, 1998b, 1999; MALDAVSKY et al., 2001), tanto o conjunto quanto os detalhes desse método, assim que, nesta oportunidade, somente vamos sintetizá-lo em seus aspectos mais gerais. Começaremos inventariando as erogeneidades e as defesas. Cada grupo é exaustivo e, no caso das defesas, inclui uma organização com hierarquias internas. As erogeneidades são: libido intra-somática, oral primária, sádico-oral secundária, sádico-anal primária, sádico-anal secundária, fálico-uretral e fálico-genital. As defesas, por sua vez, configuram cinco grupos, quatro deles correspondentes a estruturas clínicas e um a condições normais. Entre as configurações clínicas, em um grupo (neuroses de transferência) predomina a repressão, em outro (estruturas narcisistas não psicóticas) a recusa (desmentida, verleugnung), em outro (psicoses), o repúdio da realidade e da instância paterna (desestimación, verwerfung) e, em outro (neuroses tóxicas e traumáticas), por fim, a desvalorização do afeto. Os níveis da linguagem em que estudamos a erogeneidade e a defesa são três: palavra, frase, relato. Com o intuito de tornar mais claras e sistemáticas as nossas propostas, elaboramos três instrumentos para o estudo da erogeneidade, um para cada nível acima mencionado. Para o estudo das palavras, criamos um dicionário, em um programa de computador, que ana94 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Linguagem do erotismo oral primário O gozo oral primário se dá, inicialmente, no seio de uma cavidade, a boca (SPITZ, 1955), por projeção da tensão da necessidade à periferia erógena. Essa projeção segue o caminho inverso ao do alimento, no trato digestivo. O gozo oral primário culmina na voluptuosidade descrita por Freud (1905d), como a dos lábios beijando-se a si mesmos, e que se combina com certos desempenhos motrizes por onde tramita essa erogeneidade: da atividade da língua na boca, da musculatura da mandíbula inferior (ao esfregar as gengivas, por exemplo), da motilidade implicada na sucção, da percepção (por exemplo, coordenação ou divergência entre os olhos), das mãos e dos dedos, da atividade fonatória, etc. Essa motricidade não só é uma forma de processar a exigência pulsional oral primária, senão também de neutralizar a pulsão de morte, mediante uma forma precária de sadismo, que exporemos mais adiante. Por ora, digamos somente que esse sadismo coordena-se com a passagem do sugar passivo ao sugar ativo, conforme foi mencionado por Freud (1931b). Com respeito à percepção, o erotismo oral primário se caracteriza por Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 95 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz lisa o discurso que lhe for apresentado. Esse programa possui um arquivo com aproximadamente 600.000 palavras. Para o estudo das frases, desenvolvemos uma grade, assim como para o estudo dos relatos (ver grades no final do trabalho). Em nosso método, a defesa também é investigada tanto no âmbito das palavras e das frases quanto no do relato. Partimos da hipótese de que a defesa é um destino e, também, uma linguagem de pulsão. Como conseqüência, afirmamos que a cada erogeneidade se acoplam certas defesas, normais ou patológicas. Porém, além disso, as defesas patológicas se expressam no nível das palavras e das frases como perturbações retóricas e, no nível do relato, como certas posições do narrador nas cenas que expõe ou que se desdobram durante as sessões. Com nosso método, é possível investigar a questão da mudança clínica em termos da substituição de uma defesa por outra. INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA apresentar um canal único, no sentido de que a visão ainda não se combina com o tato, apreensão ou o olfato. Além disso, pode ocorrer que, em princípio, um olho não se coordene com o outro, ou as sensações táteis obtidas com uma mão não se articulem com as da outra. E, mais ainda, a realidade percebida está composta do mesmo modo que o ego, ou seja, por partículas equiparáveis. Na verdade, o mundo sensorial adquire uma formalização derivada da projeção da própria espacialização psíquica (MALDAVSKY, 1990). Freud (1915e), ao descrever um paciente esquizofrênico, referiu que o paciente via na superfície de seu corpo somente poros, todos idênticos, cuja única diferença era posicional. De fato, a perda da garantia posicional gera um estado anímico de caos, correspondente ao pânico. Outro aspecto central, quanto à atividade perceptiva própria de um ego, que dá sustentação psíquica ao erotismo oral primário como a linguagem, pode-se entender a partir de um processo prévio. Com efeito, como destacaram Freud (1950a) e Lacan (1964), o mundo sensorial vale, inicialmente, como período, como freqüência, e então se ordena em semelhanças e diferenças que se expressam numericamente: um estímulo visual e um auditivo valem o mesmo se têm a mesma distribuição temporal (MALDAVSKY, 1992, 1995a). Assim ocorre para o ego real primitivo, que se vê cominado a dar cabimento anímico à libido intra-somática. Contudo, com o desenvolvimento da linguagem do erotismo oral primário, o mundo sensorial adquire um caráter qualitativo, diferencial: no plano visual, vermelho, verde, azul, amarelo; no plano gustativo, doce, amargo, salobro, ácido; no plano auditivo, um som agudo e um mais grave já terão um valor próprio. Freud (1915c) afirmou que, para o ego real primitivo, o mundo exterior (perceptivo) é indiferente. Indiferente pode ser entendido de dois modos: não-diferenciado e não-investido. Consideramos que existe um requisito para que um mundo sensorial receba a investidura pulsional por parte do ego, isto é, que primeiro ele seja diferenciado. O processo que vai da diferenciação à investidura egóica culmina com o fato de que o mundo sensorial se tornou significativo. Essa significância é uma conseqüência da migração da investidura pulsional dos órgãos internos (por projeção 96 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 97 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz intracorporal) na direção da cavidade oral, com a qual a erogeneidade pode abrir caminho no ego para o nexo com um universo perceptivo. Esse caminho, que vai da erogeneidade ao sensorial, implica um processo projetivo, porém já não intracorporal, mas direcionado para o mundo. Bion (1962) considerou, com razão, que a convergência binocular se faz acompanhar de uma investidura de atenção. Quando prevalece a inveja, os olhos podem captar um mundo qualificado e significativo, ou um mundo só qualificado, ou, então, um mundo que é somente freqüência. No último caso, os olhos captam os estados orgânicos próprios e alheios, ou seja, têm um funcionamento radiográfico, introduzem-se sob a pele do outro, e aquilo que captam no outro é sua caveira, sua decomposição corporal. Esse olhar é, pois, mortífero. Também os olhos podem captar um mundo qualificado, porém não-significativo, lembrando as supostas marcas deixadas na Terra por seres extraterrestres, que resultam indecifráveis. Quando não se conseguiu (ou se perdeu) a convergência binocular, a realidade adquiriu um caráter plano. Por último, os olhos podem captar um mundo sensorial diferenciado e significativo (investido), a partir do qual estão dadas as condições para a inscrição psíquica de um universo simbólico, disponível como linguagem para o ego. Com isso, aludimos a um desinvestimento ou não-investimento do mundo, que sofre, em conseqüência, os efeitos de uma alucinação negativa, de uma rejeição ativa que se expressa no plano da motricidade perceptiva, no olho desviado do centro da atenção. Nesse caso, triunfa uma defesa: o repúdio da realidade, que pode ou não ter um caráter funcional. Esse emprego da motricidade sensorial de forma hostil é um modo elementar e precário de ligar a pulsão de morte a Eros. Outra maneira, menos custosa, mas que tem numerosos requisitos, consiste no sugar ativo, cujo complemento é a conquista da investidura de atenção, que é uma condição para a introjeção simbólica. Quando se dá esse passo, a situação psíquica torna-se mais complexa: a partir de então, a projeção adquire outro valor. Com efeito, já não só dirige a investidura em direção ao mundo para torná-lo significativo como, INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA além disso, culmina no desenvolvimento de alucinações, como forma de fazer consciente o inconsciente. Então o mundo da percepção fica composto por elementos de diversas origens: os aportados pelos influxos mundanos atuais, pela captação do próprio corpo e por via alucinatória. Com relação a isso, consideramos interessante estudar o valor dos aportes do segundo tipo ao mundo perceptivo, especialmente as palmas das mãos e o movimento dos dedos. Esse tipo de percepção faz parte de outra forma de conexão com os processos endopsíquicos, que é ora o complemento, ora a alternativa para a alucinação. De fato, às vezes, o movimento dos dedos aporta ao olhar uma percepção diferenciada, como quando alguém comprime as teclas de um piano e obtém uma melodia; em outras ocasiões, a mão e, sobretudo, a palma da mão serve de pantalha de projeção para uma alucinação. Em ambas as possibilidades, as mãos e os dedos constituem recursos para tornar conscientes os processos endopsíquicos. Seja como for, a coexistência entre percepções e alucinações na consciência cria um mundo complexo, no qual as últimas passam a ter crescente hegemonia, derivada do incremento da ligação, do refinamento psíquico, do poder do desejo e da necessidade de tramitar a vida pulsional. Isso conduz a que se desenvolva no ego a questão de como reinstalar a percepção em sua vigência como orientadora no mundo, quando, como afirma Freud (1920g), a percepção conquista o espaço das marcas mnêmicas. Para a lógica anímica, inerente ao erotismo oral primário, a percepção é que gera o objeto, correspondendo ao sentimento oceânico (FREUD, 1930a). Somente depois, quando se relacionam entre si vários canais sensoriais, a percepção passa a captar unicamente um objeto mundano, que causa a impressão sensorial. Quando ao conjunto se acrescenta a atividade alucinatória, o órgão sensorial conserva o valor de gerador de uma realidade, que, no fundo, é produzida pelo espírito. Para esclarecer esse ponto é conveniente levar em conta que a alucinação permite o reencontro com a marca mnêmica, sendo, nesse sentido, uma forma de recordar. O que ocorre é que, com a memória, adquire vigência outra atividade anímica, o pensar, o qual Freud (1923b) 98 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 99 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz definiu como um deslocamento de energia da pulsão para a ação, para a descarga. Por outro lado, o pensar inconsciente também interfere na produção alucinatória, de modo que, no fundo, o sentimento oceânico constitui a matriz de uma cosmovisão idealista, que pressupõe ser a realidade material um efeito da atividade intelectual, espiritual, e os órgãos dos sentidos, os instrumentos empregados para gerar o suposto mundo objetivo. Na prática, pode ocorrer uma coexistência de alucinação e percepção. A primeira, como forma de tornar conscientes os processos endopsíquicos, até que a tensão de necessidade conduza à investidura desiderativa de lembranças e pensamentos inconscientes, com o que a alucinação fica sobreinvestida em detrimento da percepção, embora continue funcionando, sobretudo como um meio de tornar consciente o inconsciente. Se a insatisfação persiste, começam a predominar certas defesas, como o repúdio da realidade, expressado como alucinação negativa. Por sua vez, pode ocorrer uma crescente substituição desta por uma alucinação positiva, a serviço da defesa. A alucinação tem um caráter prazeroso e pode se fazer acompanhar das motricidades anteriormente descritas: a descoordenação perceptiva, a movimentação da língua, a atividade de sugar e deglutir no vazio, a autoestimulação das gengivas, a fonação, etc. À medida que a insatisfação pulsional persiste, a alucinação vai adquirindo um caráter desprazeroso, colérico e invejoso, até que o terror e o pânico se tornam hegemônicos. Então a alucinação muda de sinal, transforma-se no correlato figurativo de uma angústia que fica cada vez mais insuportável. Finalmente, num estado de extenuação sedenta, a alucinação claudica em sua função defensiva, e o mundo perceptivo apresenta-se como um conjunto puntiforme desqualificado (como o “chuvisco” na tela de TV), projeção da sensação de estar com areia na língua, que atormenta a economia pulsional como um abrasamento inextinguível. Assim, só será possível abandonar o mundo alucinatório defensivo de duas maneiras: ou pela satisfação pulsional, quando a mãe aparece ali onde a criança a espera, e a criança supõe que foi ela (criança) que engendrou a mãe (WINNICOTT, 1971), ou pelo arruinamento do mundo simbólico e a claudicação da defesa, que conduz à INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA vivência de estar imerso em um mundo carente de significado. Se os processos acima descritos tiveram uma relevância relativa, desenvolve-se uma fixação. Em conseqüência, tais processos se mantêm na atividade psíquica ulterior, interferindo nos conflitos da situação edípica. Nesse momento pode aportar ao conjunto uma orientação para a recusa ou para o repúdio da realidade, enfatizando o pensamento abstrato, como forma de acentuar que a realidade material é somente um produto do espírito. Também pode ocorrer o desenvolvimento de uma atividade sublimatória que, em certas ocasiões, proporciona notáveis rendimentos à cultura. Seja como for, esse tipo de erogeneidade se expressa de um modo diferenciado no plano da motricidade, da mímica facial, como recurso para a inexpressividade, no plano de certas linhas melódicas e de certas palavras (extraterreste, telescópio, dedo, língua, solução, areia e muitas outras), no plano de frases e relatos, e de certos processos retóricos, em especial os metalogismos (GRUPO μ, 1970), entre eles as contradições lógicas. (As duas grades apresentadas no final do trabalho dão uma visão panorâmica das cenas nos relatos e das estruturas-frase próprias do erotismo oral primário que podem ser contrastadas com as demais.) As defesas prevalentes relacionadas ao erotismo oral primário são a recusa e o repúdio da realidade, que podem ou não ter um caráter patológico. É possível avaliar a eficácia das defesas no terreno do relato. A cena é inerente à linguagem do erotismo, porém a posição do relator nessas cenas testemunha a defesa. A título de esclarecimento, consideremos uma cena característica da linguagem do erotismo oral primário, a do acesso cognitivo a uma fórmula abstrata. Esse recurso tem o caráter de uma revelação realizada por um processo de ascese, de despojamento prévio das limitações decorrentes do pensar, derivadas da tradição ou da falência dos recursos disponíveis para alcançar o núcleo da verdade. Nesse acesso à revelação, um personagem opera como instrumento, ou como objeto de extração de uma essência, outro opera como o protagonista dessa aventura cognitiva abstrata, enquanto um terceiro pretende plagiar aquele que dispõe da chave. Outro, por fim, pode operar como mestre, como referente ou 100 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 101 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz ideal, reconhecendo aquele que teve acesso à revelação. Também importam o valor e a eficácia de um personagem violento, que dispõe do poder material, que se volta contra o sujeito da epopéia cognitiva. Em determinadas ocasiões, pode-se despregar um discurso somente inteligível no marco de uma luta entre dois que pretendem, reciprocamente, detectar a chave da lógica que rege o pensamento do outro. Ambos contendores desenvolvem apresentações fictícias, na tentativa de que o outro exponha a sua lógica e fique preso cognitivamente pelo poder do intelecto do seu contendor. Igualmente, é necessário interrogar-se sobre o lugar dado a outros personagens, cujas ações se regem pela aspiração à realização estética, à dignidade, ao respeito pela ordem. O personagem violento e injusto representa a linguagem do erotismo sádico-anal primário, da qual a que estamos descrevendo é uma transformação regressiva. Os personagens com aspirações de outro tipo são representantes das linguagens do erotismo fálico-genital, fálico-uretral ou sádico-anal secundário, que podem se colocar ao lado do reconhecimento da realidade e da lei, embora também possam ficar subordinados às outras duas linguagens do erotismo (oral primária e sádico-anal primária). A posição nuclear do narrador, entretanto, é desempenhada de algum dos outros lugares. Pode colocar-se como instrumento para que outro aquiesça uma revelação, que logo depois perde o valor, ou como um objeto do qual se pode obter a chave abstrata e, em seguida, é descartado como um despojo inservível. Essa é a posição em que se acha um paciente esquizofrênico, no qual se desenvolve o repúdio da realidade. Também pode ocorrer que o relator se coloque como sujeito dessa epopéia cognitiva, na qual alcança um descobrimento renovador. Nesse caso, encontramo-nos diante dos efeitos de defesas não-patogênicas. Algo similar ocorre se o relator se coloca no lugar do modelo que reconhece o valor do achado alheio. Em troca, se o narrador se posiciona como o plagiador invejoso do saber alheio, prevalece a recusa da realidade como defesa patológica, situação inerente às caracteropatias esquizóides. Em todas essas ocasiões podem aparecer os aparelhos. O paciente pode: (1) empregar o aparelho; (2) ser objeto gerado ou estudado INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA pelo aparelho; (3) ser o aparelho; (4) plagiar aquele que emprega o aparelho; e (5) consagrar aquele que emprega o aparelho, no marco de um êxtase cognitivo. Nessas situações, muda o lugar dado aos personagens que aspiram à realização estética, à dignidade e à ordem. Eles podem ser empregados como instrumentos, de cuja ingenuidade abusam (quando prevalece a recusa), ou como fragmentos atacados sem empatia, para colocar seus despojos a serviço de uma simulação vazia, no caso da psicose. Os personagens também podem ter o valor de ponto de partida, de argumento central para o desenvolvimento da aventura cognitiva, ocorrendo quando predominam as defesas não patológicas. Interessam ao estudo as transações possíveis de serem realizadas, conforme prevaleça uma ou outra defesa, com os personagens que operam como donos do poder político: o narrador pode descrever-se como submetido e emudecido, quando prevalece o repúdio da realidade; como quem simula e maltrata a terceiros, quando predomina a recusa; ou como aquele que lhe faz oposição, mediante um deslocamento do centro da luta para o terreno intelectual, situação em que passa a ter hegemonia uma defesa funcional. Desenvolvimentos teóricos recentes 1. Erogeneidade oral primária e defesas expressas no discurso Comecemos por um dos resultados do emprego do ADL para o discurso na sessão de um paciente adepto à Internet (ALMASIA, 2001). Tratavase de um homem que tinha deixado o consumo de drogas e que possuía, no entanto, um discurso resistencial, que na sessão estudada (e em muitas outras) oscilava entre dois tipos de relato. Um se referia aos movimentos que fazia com seus olhos (estrabismo), com sua boca (deslocava a mandíbula do lugar), com sua língua dentro da boca, com seus dedos (que também tirava do lugar), assim como ao fato de que o cérebro enviava uma ordem ao braço para que este se mexesse, realizando a ação correspondente. O outro tipo de discurso aludia a sua relação com as outras pessoas, que para o paciente parecia inútil, já que todos vivíamos entre sonhos, éramos sonhos e logo estaríamos mortos, se é que já não estávamos. A análise no 102 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 103 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz âmbito das palavras, das frases e do relato reuniu informações que possibilitaram diferenciar ambos os discursos. No primeiro, a linguagem do erotismo oral primário (dominante) complementou-se com a do erotismo oral secundário e com a do fálico-uretral. No segundo, predominou a mesma linguagem do erotismo como no primeiro, a oral primária, porém combinada com a sádico-anal secundária e com a fálico-genital. O comum nos dois discursos foi a prevalência da linguagem do erotismo oral primário; a diferença foi que, no primeiro, predominou a retirada narcisista (êxito da recusa) e, no segundo, o restabelecimento da conexão com o mundo (retorno do recusado). Essa reconexão com o mundo, embora penosa, era o correlato do abandono do consumo de drogas. Temos constatado que essas combinações de linguagens não são mais estáveis do que parecem, como expressão tanto da retirada narcisista quanto da passagem à restituição. Esse achado articula-se com as hipóteses expostas por Freud (1914c): “Posto que a parafrenia amiúde (se não na maioria das vezes) traz consigo um desligamento parcial da libido com relação aos objetos; dentro do seu quadro podem-se distinguir três grupos de manifestações: (1) as da normalidade conservada ou da neurose (manifestações residuais); (2) as do processo patológico (desligamento da libido com relação aos objetos e, a partir daí, o delírio de grandeza, a hipocondria, a perturbação afetiva, todas as regressões); e (3) as da restituição, que deposita de novo a libido nos objetos ao modo de uma histeria (dementia praecox, parafrenia propriamente dita) ou ao modo de uma neurose obsessiva (paranóia). Essa nova investidura libidinal se produz desde um nível diverso e sob outras condições do que a investidura primária. A diferença entre as neuroses de transferência geradas por ela e as formações correspondentes ao ego normal deveria poder nos proporcionar o sentido mais profundo da estrutura do nosso aparelho anímico” (p.83-84). Destaquemos que Freud descreve “o modo” da restituição psicótica, que se assemelha ao da histeria e da neurose obsessiva, nas quais prevalecem, respectivamente, as linguagens do erotismo fálico-genital e sádico-anal secundário. Não descreve, em troca, “o modo” no qual se desenvolve o processo patológico, quer dizer, a INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA retirada narcisista, o desligamento da libido com relação aos objetos. Em nossa pesquisa foi possível advertir que, em tais momentos, prevalecem outras duas linguagens do erotismo que acompanham a do oral primário, isto é, a do sádico oral-secundário e a do fálico-uretral. Está claro que Freud alude às psicoses, nas quais a retirada narcisista é mais radical, ao passo que o caso acima descrito corresponde muito mais a uma caracteropatia esquizóide, na qual predomina a recusa, e não o repúdio da realidade, resultando em um desligamento libidinal do mundo menos catastrófico. Porém, muito além dessas diferenças, os movimentos libidinais de desligamento e reconexão com o mundo são comuns, e talvez o sejam também as linguagens do erotismo implicadas em cada momento. Cabe destacar que nesse caso foi possível investigar os dois momentos: o desligamento e a restituição. Entre ambos, aquele que tem o acesso mais difícil à investigação é o que corresponde ao desligamento da libido, ou seja, o do êxito da defesa patológica (recusa, repúdio). Conjecturamos que o consumo de drogas, em um período prévio, ocorreu no lugar da restituição. Então, a retirada narcisista torna-se tóxica ao fracassar o delírio magalomaníaco próprio da retração libidinal com relação ao ego. Enfatizou Freud (1914c): “Nas parafrenias, o delírio de grandeza permite esse tipo de processamento da libido de volta ao ego: quiçá somente depois de frustrado esse delírio de grandeza, a estase libidinal no interior do ego tornase patológica e provoque o processo de cura que nos aparece como doença” (p 83). No paciente estudado, a estase libidinal, a erogeneidade que se torna tóxica, tinha cedido seu lugar ao processo restitutivo. 2. Retirada narcisista tóxica do erotismo oral primário O material exposto sumariamente pertence a um dos pacientes que foram analisados na Argentina. Procuramos apresentá-lo como introdução a uma investigação mais extensa de um caso analisado no Brasil, que será, a seguir, descrito. Desejávamos verificar se o ADL, que mostrou sua utilidade para analisar processos psicanalíticos em espanhol, podia ser empregado do mesmo modo com pacientes que falassem o português. Tendo em 104 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 105 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz vista esse objetivo, estudamos detidamente o material de três casos, utilizando o método ADL (MALDAVSKY et al., 2001). O caso escolhido para esse trabalho (Ana K.) corresponde a uma paciente cocainômana com prática homossexual. Ana K. ligou do seu celular para o analista, a fim de combinar sua primeira consulta, logo após seu carro ter sido abalroado, na traseira, por um Mercedes-Benz, quando se encontrava parado em uma barreira policial. O motivo explícito da consulta era o fato de estar se separando de J., seu parceiro por seis anos, porque havia chegado à conclusão que não o amava, que só tinha uma relação de amizade com ele. Outro motivo era sua preocupação com o fato de estar consumindo cocaína todos os dias, o que poderia lhe causar danos irreparáveis. Iniciara seu primeiro tratamento psicoterápico aos 15 anos, o qual fora seguido por uma análise (quatro sessões por semana) que durou nove anos. Devido ao fato de continuar consumindo drogas, inicialmente maconha e, mais recentemente, cocaína, a analista havia combinado com ela a interrupção da análise e o encaminhamento a uma psiquiatra que se dedicava ao atendimento de pacientes adictos. Ficou um tempo com ela, mas como não se submeteu ao programa de abandono da droga, esse tratamento também foi interrompido. Nesse momento desejou, pela primeira vez, ter uma experiência de terapia com um homem, procurando-o no momento descrito acima. As referências que tinha do novo terapeuta levaram-na a colocá-lo numa posição profissional muito idealizada. Na entrevista inicial, ela disse que, enquanto estava na sala de espera, se sentira muito assustada pensando em quanto ele lhe cobraria, para poder pagar as maçanetas douradas das portas do consultório, que ela notara ser novo. Ficou tranqüila quando o analista informou que elas já haviam sido pagas. Também a preocupou o fato de que ele não quisesse atendê-la devido à gravidade do seu caso e assegurou-lhe que faria um esforço para frear o uso de cocaína. Ela pretendia realizar, inicialmente, apenas duas sessões por semana, o que era possível pagar com seus próprios recursos. Durante o tratamento analítico anterior, tinha sido ajudada pela mãe. INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA Ana K. tinha 27 anos e era uma mulher alta, bonita e de aparência jovem, apesar de encontrar-se com um sobrepeso de 12 a 14 quilos. Nascera e passara a infância e parte da juventude em uma cidade de fronteira, onde a família possuía extensa propriedade rural. Ao longo do período escolar e durante a universidade, sempre demonstrou grande facilidade para matemática e uma clara dificuldade para o desenho: não conseguia manejar noções básicas de perspectiva, tridimensionalidade e sombra. Havia jogado tênis desde pequena. Custou-lhe aprender porque, embora fosse canhota, ensinaram-lhe a jogar com o braço direito. Na adolescência, chegou a participar, com êxito, em torneios. Sua mãe, que a estimulou na carreira esportiva, acompanhava-a nessas disputas e se exibia com seus triunfos. Naquela época, os irmãos de Ana K. se queixavam de que a mãe só tinha olhos para a paciente. Esta teve alguns acidentes derivados da prática esportiva e necessitou ser operada em um ombro e um tornozelo, o que a obrigou afastar-se das quadras por um longo período. Coincidentemente, nessa época a mãe começou uma relação com um namorado. Ana K. engordou e não voltou a jogar tênis. Atualmente, além do trabalho, participa da diretoria de uma associação de empresários. Não gosta de sair à noite e prefere ficar em casa sozinha, onde dispõe de cocaína, pizzas e cerveja, além do computador e dos aparelhos de TV e de som, todos funcionando ao mesmo tempo. Costuma navegar pela Internet até 3 ou 4 horas da madrugada, em busca de informações na sua área de trabalho e sobre esoterismo. Ela também participa do cibersex e mantém prolongadas conversas em português, espanhol, inglês e alemão, geralmente com mulheres, em busca de possíveis intercâmbios homossexuais. Ana K. nasceu prematuramente, no oitavo mês de gestação. Referindo esse fato, estabeleceu uma relação com um traço de seu caráter: realizar tudo apressadamente. Iniciou sua vida sexual aos 16 anos e teve experiências nessa área com vários homens. Aos 21 anos, um pouco depois de sua mãe ter começado um namoro, passou a ter relações homossexuais. Quan- 106 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 107 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz do a mãe descobriu, deu início ao relacionamento com J., que já conhecia e era muito atencioso com ela. A paciente teve inúmeros acidentes, tanto a pé quanto de carro, alguns graves. É muito ansiosa e não tolera esperar. Minutos antes da sessão, costuma avisar pelo celular que está a caminho. Quando viaja para o exterior, preenche previamente os documentos exigidos pelo país na chegada, assim como a ficha de hóspede do hotel em que vai ficar, obtida por fax, solicitando que lhe informem, com antecedência, o número do quarto para não perder tempo. Quando o analista abre a porta da sala de espera, geralmente encontra Ana K. em plena conversa pelo telefone celular. A paciente entra na sala falando ao telefone celular até sentar-se. Um dia em que o terapeuta se atrasou por cinco minutos, golpeou a porta do consultório com desespero, e quando ele a abriu, ela o olhou com uma expressão de pânico e raiva. Até aqui foi a nossa apresentação, que preferimos não torná-la mais extensa, posto que já contamos com elementos suficientes para avançar na pesquisa. Começaremos considerando algumas cenas ligadas com temas como as barreiras, as portas e os trâmites, em torno dos quais reuniremos algumas situações caracterizadas pela espera e pela acometida de violência impaciente. O acidente (choque) teve um valor determinante na decisão de Ana K. de solicitar tratamento. Com efeito, a seqüência inicial, ligada ao momento da consulta, inclui um acidente automobilístico, no qual uma detenção, diante de uma barreira policial, fez-se acompanhar de um abalroamento de outro carro que não freou. A cena do choque tem uma seqüência: (1) deslocamento espacial com o carro; (2) uma barreira policial obriga a paciente a deter o seu carro; (3) ela é abalroada por trás por um Mercedes-Benz em alta velocidade; e (4) liga por telefone para solicitar uma primeira consulta. O deslocamento espacial (primeira cena) parece expressar sobretudo a linguagem do erotismo sádico-anal primário, embora possua algo do procedimento autocalmante (linguagem do erotismo intra-somático) e algo do avanço ambicioso (linguagem do erotismo fálico-uretral). Todas essas linguagens se combinam (segunda cena) com a sádico-anal secundária, que se INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA expressa como o respeito à lei e à ordem (detenção da marcha do veículo diante de uma barreira). No fato da batida por trás, na cena seguinte, participam as mesmas linguagens do erotismo, porém a prevalência fica por conta da linguagem do erotismo intra-somático (intrusão corporal). Quanto à quarta cena, a da ligação telefônica, parece uma tentativa de se resgatar o impacto da cena prévia, na qual a paciente poderia ter-se sentido multiplamente envolvida: não somente na posição de quem sofre uma batida, mas também na de quem investe desenfreadamente contra o outro. A ligação para o terapeuta parece expressar, novamente, a linguagem do erotismo sádico-anal secundário. A segunda cena põe em evidência a tentativa da paciente de frear-se, de respeitar as normas, enquanto a terceira manifesta a situação inversa, o desenfreio atropelador que leva pela frente as barreiras. Tal cena evidencia uma defesa, o repúdio da realidade e da instância paterna (localizada em quem atropela) e outra defesa (o repúdio do afeto) em quem sofre o atropelamento e padece uma intrusão orgânica. Essa aproximação inicial à referida seqüência admite um maior aprofundamento ulterior. Sugerimos aquilo que é mais evidente do sistema defensivo da terceira cena, porém não o das restantes. Também não fica claro o processo que vai da parada na barreira (segunda cena) até o abalroamento (terceira cena). Várias dessas questões podem se esclarecer depois. Outra seqüência, bastante similar à recém-estudada, corresponde ao momento no qual a paciente, na primeira entrevista, faz alusão ao que pensou enquanto esperava para ser atendida: (1) Ana K. se reconhece necessitada e espera do outro lado da porta; (2) fica impactada pelo brilho e pelo custo (suposto) das maçanetas douradas; e (3) acredita-se dependente de um personagem especulador e endividado, que terá de abusar da necessidade que ela tem de tratamento. A seqüência tem duas partes: (1) a espera do outro lado da porta e o impacto diante do brilho e do custo das maçanetas das portas; e (2) seus pensamentos acerca da inermidade em que fica ante um analista abusivo e especulador. A parte inicial pode, por sua vez , decompor-se: (1) detenção diante de uma porta fechada; e (2) impaciência na 108 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 109 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz espera e deslumbramento diante do brilho das maçanetas douradas. Enquanto que o momento inicial (detenção) expressa a linguagem do erotismo sádico-anal secundário (com respeito aos limites), o segundo põe em evidência o desenvolvimento de uma gama complexa de desejos. Por um lado, aparece uma urgência quase orgânica (reunindo as linguagens do erotismo intra-somático e sádico-oral secundário), junto à fascinação diante daquilo que brilha (linguagem do erotismo fálico-genital). A situação culmina com a vivência de ser objeto de especulação (linguagem do erotismo intra-somático) e abuso (linguagem do erotismo sádico-anal primário). Também participa nessa cena a angústia diante da aproximação e do contato (linguagem do erotismo fálico-uretral). Na seqüência, advertimos uma série de transformações similares àquela que precedeu a consulta ao terapeuta. A diferença é que a consulta já havia sido realizada. Contudo, observamos outras diferenças, entre as quais destacamos a questão da impaciência, própria da linguagem do erotismo sádico-oral secundário. Nesse caso, em lugar de ser abalroada por outro, surge nela uma tendência à irrupção. O analista figura, então, incluído na própria seqüência narrativa. A paciente fica, finalmente, localizada numa posição disfórica no marco de duas linguagens do erotismo: a intrasomática (outro terá que tirar proveito econômico às custas dela) e a sádico-anal primária (outro abusará injustamente do poder que tem). Nessa mesma linha, acha-se a descrição do modo como Ana K. ingressa na sessão ou em um hotel. Essas cenas, unidas com a obrigação de deter-se para realizar os trâmites necessários, põem em evidência uma solução encontrada pela paciente. Vejamos a seqüência: (1) Ana K. antecipa um momento de detenção em seu avanço; e (2) recorre a um aparelho (telefone, fax, etc.) para evitar a espera. Uma situação similar ocorre enquanto aguarda para ser atendida. Nesse caso, a solução consiste no uso do celular, de modo que não haja espera da sua parte. Os afetos em jogo vão da impaciência ao desespero insustentável, que a paciente tem de achar modos de eludir. Tais afetos correspondem à linguagem do erotismo sádico-oral secundário. Os instrumentos (o celular ou o fax) aportam uma solução para INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA atenuar o problema, ao lhe permitirem irromper sem demora em um espaço e transformar seu sentimento insuportável em algo diferente. Nas cenas nas quais tem de esperar antes de ser atendida pelo analista, observa-se a mesma situação: (1) antecipação de um freio; e (2) recurso de um aparelho. Porém, além disso, evidencia-se outro matiz, já que ingressa na sessão conectada com outro/a. Dessa forma, inverte o seu sentimento de exclusão e faz com que o analista sinta isso, como se fosse uma forma de vingança pela afronta que ela supôs que ele lhe infligiu ao fazê-la esperar. Essa última seqüência (sala de espera) evidencia a articulação entre três linguagens do erotismo que potencializam sua eficácia para conduzi-la a uma situação de atropelo, assim como um recurso, apelando para outra linguagem do erotismo. As três linguagens do erotismo articuladas são a fálico-genital (dependência erótica de um homem), a sádico-anal primária (vivência de ser vítima do abuso de poder por parte de um homem) e a sádico-oral secundária (incremento da impaciência). Para frear o processo de recíproca potencialização entre essas três orientações erógenas, a paciente recorria aos aparelhos que lhe permitiam comunicar-se à distância (linguagem do erotismo oral primário), como um meio que lhe possibilitasse tornar-se ativa e vingar-se do seu interlocutor imediato. Assim, pois, contamos com quatro seqüências narrativas, centralizadas na questão da espera: (1) a que antecedeu à consulta (acidente); (2) a que antecedeu ao ingresso na primeira consulta; (3) as ligadas aos trâmites aduaneiros e hoteleiros; e (4) as da sala de espera (enquanto aguardava que o analista a atendesse). A primeira e a segunda deixavam a paciente em uma condição similar: vítima de abusos (linguagem do erotismo sádicoanal primário) e de intrusões orgânico-econômicas (linguagem do erotismo intra-somático). Nesses relatos, também o momento inicial era o mesmo: aceitação de uma lei, de um compromisso social que exige espera, respeito a certos mandamentos. Entre o estado inicial (espera) e o final (disfórico) observamos um segundo momento, no qual desperta um fascínio diante de algo brilhante (maçaneta) e vai se transformando em impaciência para culminar em uma condição orgânico-econômica (choque, taxa110 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 111 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz ção). A seqüência implica uma passagem da linguagem do erotismo fálicogenital ao sádico-anal primário (abuso), e dali ao sádico-oral secundário (impaciência), para terminar com um predomínio da linguagem do erotismo intra-somático. Para evitar o desenlace disfórico correspondente ao momento final, é necessário interferir no desenvolvimento dos processos prévios, começando pela espera inicial, da qual deriva a captação de um brilho fascinante, seguido pela vivência do abuso, da impaciência e da intrusão ou taxação. Conseqüentemente, nas situações nas quais Ana K. não conseguia antecipar a espera, recorria a aparelhos para esgueirar-se ou para não ficar na posição de quem aguarda. O recurso desses aparelhos, quando procurava prevenir os estados disfóricos, expressava a eficácia da linguagem do erotismo oral primário. No conjunto, parecia ter peso o incremento da impaciência, potencializada pela mescla entre as linguagens do erotismo fálico-genital e sádico-anal primário. O problema central, no entanto, consistia nessa passagem da ênfase numa impaciência insuportável e, para resolver o problema, recorria à linguagem do erotismo oral primário. Seus costumes noturnos colocavam em evidência uma volta a si mesma, como se dá na retirada narcisista. Quando a paciente se achava nessa condição, sofria um estado tóxico no qual se auto-estimulava, apelando a diferentes recursos. A concomitância de cerveja, pizza, cocaína, TV, música e computação constituía um conjunto de incitações desmesuradas, nãoprocessáveis, correspondendo às contradições orgânicas, quer dizer, aquelas nas quais o central consiste em que o estímulo para o sistema nervoso atenta contra as limitações que este tem para processar a informação (MALDAVSKY, 1992, 1995a, 1998b, 1999). Uma forma de expressar a legalidade em jogo nas contradições orgânicas poderia ser “quanto mais farto me sinto, mais quero ingerir”, termo esse que abarca várias alternativas: devorar, consumir drogas, beber álcool, perceber simultaneamente informações complexas de fontes diversas (TV, computador, aparelho de som). Essa contradição orgânica é testemunho de uma fixação no erotismo intra-somático e do emprego patológico do repúdio do afeto. INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA Também se releva nesse marco a navegação insone pela Internet, que parece ter três metas: busca de informação, esoterismo e conexão com possíveis parceiros homossexuais, utilizando pseudônimos. O apego à Internet costuma evidenciar uma retirada narcisista de caráter tóxico, com uma aparência de conexão com o mundo, mediante identificações inconsistentes (os pseudônimos). Além disso, a relação com o outro está mediada por um aparelho, como é inerente à linguagem do erotismo oral primário. Cabe perguntar se essa linguagem do erotismo oral primário não é mais um meio para conservar uma incitação duradoura que, como o uso de outros aparelhos (TV, equipamento de som), conduz a (ou mascara) uma alteração somática, como é o caso da insônia. Os aparelhos apareciam como um meio para se conectar com pessoas cujo nome e origem desconhecia, do mesmo modo com que ela ocultava o próprio nome mediante a utilização de pseudônimos. Tudo ficava anônimo. Ao mesmo tempo, via Internet, desempenhava uma conduta desafiante, secreta e rebelde diante do poder materno, no sentido de que buscava as mulheres para estabelecer nexos eróticos. Tal prática homossexual oculta parecia ser a resposta dada às críticas maternas que a conduziram a estabelecer parceria com J., de modo que, no fundo, a paciente, em segredo, estava animada por um afã revanchista e justiceiro. Combinavamse, portanto, a linguagem do erotismo intra-somático (insônia), do oral primário (aparelhos) e do sádico-anal primário (afã justiceiro). A substituição da rotina apaziguadora (com J.) pelo descontrole quanto ao consumo de drogas e pelo estabelecimento de contatos homossexuais constituíam uma cena que se assemelha à de falta de freios, já analisada anteriormente. Talvez fosse um indício da transformação transitória na defesa da recusa ao repúdio. Com relação ao uso de aparelhos, essa história poderia engajar-se com a da sala de espera, quando Ana K. falava ao telefone enquanto aguardava o momento de começar a sessão. Também se pode relacionar à cena da consulta depois de seu carro ter sido abalroado. O aparelho (linguagem do erotismo oral primário) funciona tanto a serviço da consumação do afã 112 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 113 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz vingativo (linguagem do erotismo sádico-anal primário) quanto da tramitação da impaciência (linguagem do erotismo sádico-oral secundário) e do freio à tendência à irrupção orgânica (linguagem do erotismo intrasomático). O comum a todas as cenas nas quais aparecia um aparelho de conexão à distância reside em que isso permitia que Ana K. se resgatasse do desamparo nas situações em que ela se sentia objeto de injustiça, devorada pela impaciência e arrasada por uma intrusão orgânica. Nesse último sentido, recordemos que, logo depois do acidente, ela recorreu ao celular para marcar uma consulta com o analista. Assim, pois, nesse caso o aparelho também servia para sobrepor-se a uma vivência de atropelamento. O aparelho permitia-lhe sair da passividade e recuperar uma posição ativa, até que o contato com o aparelho em si mudava de sinal, tornava-se tóxico, como quando juntava incitações que chegavam pelo equipamento de som, pela TV e pelo computador, de um modo simultâneo. A mudança de sinal do aparelho, que deixa de estar a serviço do freio às irrupções pulsionais insuportáveis para converter-se no caminho para que se consuma a referida irrupção, parece evidenciar a substituição de uma defesa (recusa) por outra (repúdio). Até aqui reunimos relatos da paciente concernentes às barreiras, às portas e aos trâmites. Referir-nos-emos, agora, a outros relatos, centrados em torno de seu mancinismo contrariado e o fracasso dos procedimentos autocalmantes. Com relação aos antecedentes de sua história, vários aspectos merecem um comentário. Um deles é a preferência da paciente pela matemática, como o Homem dos Lobos e muitos outros pacientes para os quais os números, as percentagens e as operações contábeis adquirem realce, como expressão de um discurso especulador (linguagem do erotismo intra-somático). A anedota com respeito às maçanetas douradas da porta do analista resultam esclarecedoras: uma imagem atrativa, brilhante, foi transformada em número, em especulação monetária. Nesse episódio curioso observa-se que a imagem visual (a maçaneta) se entrelaça com o ato de apreender, implicando um desempenho motriz que leva em conta a questão da cisão esquerdo-direita do corpo. Precisamente, no caso de Ana K., ad- INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA quire importância seu mancinismo contrariado, que abrangeu, ao menos, a atividade do tênis. O mancinismo contrariado conduz a uma perturbação dos processos projetivos que tomam como base o corpo em movimento, centrado no critério da imagem especular, própria da linguagem do erotismo sádico-anal primário. A violência exercida sobre o próprio corpo em movimento, a partir da imposição de uma condição especular que não parte das disposições motoras próprias, costuma promover acidentes e problemas que afetam a musculatura esquelética, e que, nesse caso, conduziu às intervenções cirúrgicas. Assim, pois, encontramos uma seqüência: (1) mancinismo; (2) violação de sua disposição corporal; e (3) acidentes, problemas corporais. Nessa seqüência se reúnem a linguagem do erotismo intra-somático e do sádicoanal primário, ambas com desenlaces disfóricos. A atividade motora aloplástica, desenvolvida durante a adolescência, tinha um grande valor como tentativa de ligar a tensão voluptuosa do erotismo fálico-genital através do processamento de um erotismo a ele associado, o sádico-anal primário. Tal desdobramento motor constituía, ademais, um procedimento autocalmante (linguagem do erotismo intra-somático). A impossibilidade de continuar apelando para essa solução motora levou a paciente a um incremento de sua voracidade, da qual derivou seu sobrepeso. Nesse ponto, podemos construir outra seqüência narrativa: (1) equilíbrio de tensões, apelando a procedimentos autocalmantes; (2) operações cirúrgicas invalidantes; e (3) comer excessivo. Na realidade, o primeiro momento pode, por sua vez, ser decomposto: (1) busca de equilíbrio de tensões corporais; (2) apelação a recurso autocalmante; e (3) fracasso do recurso e dano orgânico (doenças que exigiram intervenções cirúrgicas). Trata-se de uma história inerente à linguagem do erotismo intra-somático, com um desenlace disfórico. Como complemento, advertimos a participação da linguagem do erotismo sádico-anal primário também numa versão disfórica. O que fez fracassar o procedimento autocalmante talvez tenha sido a impossibilidade de desenvolver a motricidade aloplástica, a partir da projeção da própria disposição corporal, e, em seu lugar, instalou-se na paciente 114 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 115 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz um condicionamento motor devido a uma projeção alheia. Assim que, entre o momento 1 e 2, anteriormente descritos (tentativa de conseguir um equilíbrio e fracasso), podemos interpolar o fato de que a tentativa em si estava viciada em sua base, já que o procedimento autocalmante (acompanhado do erotismo sádico-anal primário) continha um critério interno quanto ao desempenho motor, alheio à disposição da paciente. Conseqüentemente, a paciente realizou uma troca quanto à motilidade implicada no procedimento autocalmante: da motricidade aloplástica (linguagem do erotismo sádico-anal primário) passou à incorporativa (que expressa o erotismo sádico-oral secundário). O seu comer em excesso corresponde a esse emprego da linguagem do erotismo sádico-oral secundário a serviço dos procedimentos autocalmantes. Também esse recurso fracassou, talvez pelo mesmo motivo: o mecanismo projetivo foi substituído por uma adequação incorporativa à projeção alheia. Nessa paciente ficou evidente uma transformação regressiva do sentimento de injustiça e do emprego da musculatura aloplástica em uma luta revindicante. Em seu lugar aparecia um estado de urgência, de impaciência que culminava em desespero. Porém, ao mesmo tempo, e isso era gritante, adquiria importância o recurso a aparelhos que punham em evidência o privilégio do nexo cognitivo com a realidade. Esse recurso tinha como meta mitigar sua impaciência e tolerar a espera sem lançar-se vorazmente sobre o mundo, através da comilança e do consumo de cocaína. A passagem à incorporação (comida, cocaína) colocava em evidência uma degradação do processamento simbólico do erotismo sádico-oral secundário, pelo qual a introjeção de representações ficava relevada pela alteração somática mediante o consumo de algo. Assim, pois, no processo regressivo, podemos observar que a linguagem do erotismo sádico-anal primário era substituída pela linguagem do erotismo sádico-oral secundário, o qual, por sua vez, se degradava, perdia uma dimensão simbólica. O intrigante, no conjunto, era o lugar que tinha a linguagem do erotismo oral primário. Parecia ter um valor para frear a passagem da impaciência ao desespero, porém talvez indicasse algo mais, como se disséssemos que desse conta do INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA tipo de interlocutor que a paciente possuía cada vez que tinha que processar as exigências derivadas de sua erogeneidade sádico-oral secundária. Pensamos que nessa paciente o interlocutor, ativado cada vez que devia processar essa exigência pulsional, tinha o caráter de um aparelho, como ocorre com os objetos que povoam o mundo próprio da linguagem do erotismo oral primário. E também nele acontecia um desenlace disfórico, como os que anteriormente foram consignados. Ou, para explicá-lo melhor, ocorreu uma passagem, desde os desenlaces eufóricos (quando conseguia refrear sua própria irrupção pulsional) até os desenlaces disfóricos (quando, inclusive, os aparelhos fracassavam em sua função e se tornavam o caminho pelo qual se estabelecia uma intrusão somática). 3. Avanços teóricos contemporâneos Reunimos, até aqui, diferentes investigações, nas quais se combinam condições tóxicas (pela retirada narcisista que persiste, sem passagem à restituição) e a linguagem do erotismo oral primário em um desenlace disfórico quanto aos relatos, quer dizer, com uma claudicação da postura megalomaníaca. Cabe questionar o valor de nossas hipóteses precedentes (teoria standard), que privilegiavam as linguagens do erotismo sádico-anal primário e intra-somático em consonância com as propostas de outros autores como Sami Ali (1990), que relacionaram psicossomática e delírio. Podemos responder que essas hipóteses se referiam bem mais à estrutura subjacente e não tanto às manifestações. Em outras oportunidades procuramos esclarecer (MALDAVSKY, 1992, 1995a) que nas patologias tóxicas o componente paranóico delirante não se desenvolve, já que o mencionado processo corresponde à restituição e não à retirada narcisista, na qual triunfa a defesa. No lugar da restituição, mantém-se a retirada narcisista, que se torna tóxica. Então emergem os processos regressivos que mencionamos: torna-se vigente a linguagem do erotismo sádico-oral secundário, que se degrada para um processamento orgânico pela mediação da linguagem do erotismo oral primário, todas elas no marco do fracasso da tramitação psí116 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 117 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz quica da pulsão. Esses são alguns dos achados derivados do emprego do ADL, que aportam maior precisão a uma investigação dessa natureza. Podemos afirmar que o erotismo sádico-anal primário carece de representação, que não se desenvolveu a linguagem egóica capaz de expressálo, pelo menos naqueles momentos em que sobressai a somatização ou a ingesta. Algo disso é evidenciado no caso de Ana K. Nela, as referências ao sentimento de injustiça eram pouco freqüentes, somente despontavam por momentos, e prevaleciam com estridência as anedotas, como a que foi descrita em detalhes. Recordemos, nesse sentido, que as somatizações são freqüentes na infância, até que se desenvolve uma linguagem aloplástica hostil, como expressão da ligadura egóica da erogeneidade sádico-anal primária, como Freud (1920g) exemplificou ao aludir ao jogo da criança com o carretel. De fato, nos casos de pacientes que padecem de patologias tóxicas, pode não haver um relato daquelas cenas ligadas à expressão da referida linguagem do erotismo, como os relatos nos quais se põe em jogo o sentimento de injustiça, a vivência de ser vítima de abusos de poder. Às vezes, essas cenas são narradas efetivamente, porém possuem o valor de relatos laterais, carentes de importância, como Freud (1922b) afirmou acerca dos delírios pobremente investidos por certos pacientes com estrutura paranóica não evidente. Em outras ocasiões, são os familiares do paciente que colocam em evidência as situações de maus-tratos em que esse se coloca. Tais realidades não são respondidas, no entanto, com a linguagem do erotismo que lhe é inerente, de modo que uma possível tarefa no tratamento consiste em favorecer seu aparecimento. Por outra parte, podemos inferir um dos motivos pelos quais as outras duas linguagens do erotismo em jogo, mais claramente no discurso manifesto (oral primária e sádico-oral secundária), têm desenlaces disfóricos. Com efeito, esses desenlaces ocorrem, em boa medida, pelo fato de o ego pretender tramitar regressivamente com essas linguagens uma exigência pulsional correspondente ao erotismo sádico-anal primário, não processado. Essas observações, por sua vez, nos conduzem a uma interrogação sobre as limitações dos métodos (tanto o ADL quanto qualquer outro, in- INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA clusive o clássico) para investigar as manifestações discursivas de alguns pacientes. Sugerimos que pode haver uma falha ao ligar a pulsão sádicoanal primária à linguagem, e que esse fato cria dificuldade para detectar a eficácia dessa mobilização libidinal para processar a pulsão de morte pelo caminho da agressividade. Em situações desse tipo, nas quais falha a ligadura da pulsão, o método de investigação, centrado no dizer do paciente, tem suas limitações, a menos que contemos com certas hipóteses adicionais, que nos coloquem em alerta. Por exemplo, alguma que diga o seguinte: quando em um paciente os relatos combinam desenlaces disfóricos das seqüências narrativas das linguagens do erotismo oral primário e sádicooral secundário (sobretudo se ao conjunto se acrescentam manifestações da linguagem do erotismo intra-somático, também numa versão disfórica), podemos inferir a vigência de uma condição tóxica, com a qual uma retirada narcisista substitui uma restituição inerente à linguagem do erotismo sádico-anal primário. Possui maior interesse ainda outro problema: o valor da linguagem do erotismo oral primário nas manifestações dos pacientes com processos tóxicos. Considerar esse problema põe em evidência o valor do ADL, já que é um método surgido das próprias entranhas da reflexão freudiana e, portanto, não requer resolver questões de extrapolação nem realizar trabalhosos enlaces entre hipóteses de campos diversos. O método põe em evidência não somente erogeneidades e defesas específicas em cada ocasião, como também certas constelações psíquicas e certos processos internos, tal como foi exposto cada vez que nos referimos aos caminhos pelos quais uma erogeneidade se transforma em linguagem no ego. Comecemos com uma breve revisão bibliográfica sobre os pontos afins com a questão que estamos considerando. Freud (1914a) aludiu, com relação à convicção, a um indivíduo que tinha tido uma alucinação infantil: um dedo de uma mão caía ao ser castigado depois de uma travessura, e ele supôs depois que um dedo estava faltando – convicção que só retificou quando aprendeu a contar. A sua mãe faleceu prematuramente e essa lembrança de ter sido castigado era uma das poucas que conservava dela. Po118 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 119 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz demos situar esse episódio no marco de um luto patológico duradouro, no qual uma alucinação fica relevada, de um modo regressivo, pelo emprego dos números, das contas. Para dizê-lo de outro modo, um processo alucinatório, inerente à linguagem do erotismo oral primário, foi substituído pelos números, que expressam a captação de freqüências, próprias da linguagem do erotismo intra-somático. Quase 60 anos depois, Liberman (1970) referiu-se a um paciente traumatofílico que não empregava as mãos em coordenação com o sentido de equilíbrio para proteger o rosto quando caía, a partir do começo da bipedestação e do caminhar. Sustentou, a partir das narrativas do paciente, que nele o emprego das mãos havia ficado fixado a um processamento psíquico mais primitivo, que consistia na busca, nas palmas da mão, de uma alucinação precocemente perdida, arruinada. A cena parece similar à descrita por Freud, igualmente em um marco de um luto patológico. Cerca de 20 anos depois, Maldavsky (1993) analisou alguns contos de Kafka para pôr em evidência que a anorexia que o autor descrevia tinha como meta ter acesso a uma alucinação que não se fazia presente. Em nosso estudo, destacamos a combinação entre as linguagens do erotismo oral primário e do intra-somático (evidente na tendência à alteração somática ao se negar a comer). Na vigência de um luto patológico, parece pertinente mencionar as hipóteses de Green (1972), referentes ao desinvestimento pela mãe, para quem o filho passa a ser sua alucinação negativa. Por sua vez, esse desinvestimento materno parece corresponder a uma retirada narcisista no marco de um luto patológico. Diante da retirada narcisista materna, a criança responde em simetria, com o que se abre o caminho para um estancamento pulsional. Se reunirmos todas essas hipóteses podemos inferir que Ana K., a paciente cocainômana, achava-se imersa em um mundo de objetos aos quais recorria, infrutiferamente, na tentativa de ligar sua pulsão oral primária, como modo de neutralizar, por sua vez, a pulsão de morte. O fracasso do seu intento se fazia evidente em seu recurso a objetos inanimados que a INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA deixavam encerrada em um mundo carente de significado. Inclusive, podemos estabelecer nexos entre esses desenlaces e a utilização de certas defesas da gama da perda do repúdio da realidade e da função paterna. Na verdade, essa defesa tem um caráter normal no seio da linguagem do erotismo oral primário, e torna-se patológica quando interfere uma maior complexidade psíquica, como ocorre nesse caso. Um fracasso na tramitação em uma linguagem do erotismo antecipa uma maior exigência de processamento pulsional transladada a momentos posteriores, quando promove desenlaces similares e gera efeitos retroativos. Antecipação e retroação são potencializados reciprocamente de um modo patológico, como se observa no caso de Ana K. Pontualizemos, ademais, que, nos casos que consideramos, se dá uma combinação entre os processos alucinatórios e outro tipo de atividade anímica e vincular, centrada na tramitação do erotismo sádico-oral secundário. Parece ter importância nesse marco a passagem da impaciência ao desespero, na qual estão combinadas angústia e dor (esta última derivada da decepção de um anseio, de uma investidura narcisista de objeto). Esse parece ser o caminho para o retorno de uma alteração somática. O devoramento substitui a introjeção simbólica. Claro está que, com essas considerações, somente pretendemos dar conta da complexidade do processo, no qual a alteração somática substitui a tramitação simbólica. Por um e outro caminho (os fracassos no processamento psíquico inerentes às linguagens do erotismo oral primário e sádico-oral secundário), nos vemos conduzidos ao estudo de um momento logicamente mais originário no desenvolvimento psíquico e de um critério para a tramitação pulsional mais elementar, centrado na alteração interna (FREUD, 1950a “Proyecto”), responsável pela tendência à incorporação ou à somatização, ou seja, à modificação na fonte pulsional, prescindindo da ação específica. Já mencionamos em vários livros (MALDAVSKY, 1986, 1992, 1993, 1995a, 1997, 1998b) que o mundo sensorial adquire significado a partir de um momento anterior, no qual predomina o ego real primitivo, para o qual 120 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 121 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz os estímulos mundanos são indiferentes, a menos que surjam a tensão de necessidade e a conseqüente perturbação narcisista. Para esse ego, enfatizamos, o mundo exterior vale como conjunto de freqüências (FREUD, 1950a “Proyecto”, LACAN, 1964), as quais, para a vida anímica ulterior, ficam transcritas como números, como contas. Uma defesa própria desse momento do desenvolvimento egóico é a habituação, consistente no dormir defensivo diante de incitações excessivas, que falta nas crianças prematuras (como em Ana K.), e que também parece evidenciar-se em insônias ulteriores. Esse dormir, como refúgio diante dos estímulos mundanos, é tenso, não tem a ver com a recuperação energética, e conduz a que nos perguntemos pelos meios aos quais recorre Eros inicialmente para neutralizar a pulsão de morte, quando não estão disponíveis ainda os desempenhos motores (inclusive a motricidade implicada na percepção) que comportem algum tipo de sadismo. Aqueles que não apelam cedo para esse recurso podem ter uma patologia da atenção refletiva, aquela que, segundo Freud (FREUD, 1950a “Proyecto”), é comandada desde o objeto que, nesse caso, continua sem receber investidura desde a vida pulsional. Portanto, o mundo perceptivo não tem significação diferencial, não vale como qualidade senão como freqüência. A passagem desde a formalização do mundo sensorial, em termos de freqüências, até a sua organização como um universo de qualidades requer uma investidura desde a vida erógena, o que exige um passo intermediário. Esse passo consiste na abertura das zonas erógenas, processo que corresponde ao tempo no qual se desenvolve a linguagem do erotismo oral primário. Ao se referir ao apego, Widlöcher (2000) afirma que ele acompanha as diferentes fases da libido. De nossa parte, consideramos que o apego é inerente, sobretudo, ao momento em que prevalece a freqüência sobre a qualificação, e que depois, ao desenvolver-se a vida pulsional, sexual, podem acontecer duas alternativas: o apego fica crescentemente disperso no entrelaçamento do erotismo com o mundo objetal, ou ele impõe à sexualidade o seu selo, centrado em uma falha na qualificação do mundo sensorial, na falta de desenvolvimento da consciência ligada à percepção e na INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA tendência à alteração interna. Algo disso, afirmamos com respeito ao erotismo sádico-oral secundário na paciente cocainômana. Em outros pacientes, pode se dar um processamento similar para o erotismo sádico-anal; por exemplo, defecar por açodamento. Voltemos, por fim, aos relatos anteriormente estudados. Neles se adverte o fracasso da aspiração para ter acesso a um conhecimento abstrato, a uma chave ou a uma revelação. Em outras ocasiões, como nos contos de Borges ou nos discursos de pacientes esquizóides, observamos que por momentos aparecem essas manifestações de uma condição de triunfo (como Ana K., quando tinha êxito ao empregar o telefone celular para neutralizar sua impaciência). Por outro lado, na esquizofrenia, outro goza cognitivamente, tomando o paciente como objeto do qual extrai um saber essencial ou como instrumento para ter acesso à referida chave abstrata. Em troca, nos casos aqui descritos, o paciente não é a sede dessa ilusão de êxito, de consumação do desejo cognitivo, nem coloca essa condição de triunfo em outro. Ninguém é o sujeito do gozo cognitivo, e essa característica do relato nos parece uma evidência da retirada narcisista tóxica da linguagem do erotismo oral primário. Fracassou a tramitação megalomaníaca da apreensão do mundo e da sobreinvestidura egóica inerente à defesa patológica (recusa, repúdio), e em seu lugar abre-se o caminho para o acesso à alteração na própria fonte pulsional. Novas perspectivas Realizamos um extenso e fatigante percurso na tentativa de evidenciar os aportes de um método investigativo, o ADL (surgido do âmago dos desenvolvimentos freudianos), para o refinamento e a complexidade da teoria psicanalítica. Com isso, pretendemos destacar que é possível realizar uma investigação sistemática inerente a uma ciência de base empírica. Inclusive, com nosso método temos realizado investigações sobre escritos clínicos de outros autores, como os de Freud (MALDAVSKY, 1976, 1997), Klein (MALDAVSKY, 1991), Lacan (MALDAVSKY, 1986) e Green (MALDAVSKY, 1998b). Em muitas ocasiões concordamos com as afir122 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Grade I: As estruturas-frase e as linguagens do erotismo LI Contas O1 Dedução abstrata Inferência abstrata O2 Lamento A1 Injúrias A2 Sentenças FU Refrões FG Elogio Queixa Denúncias Ditos populares Dramatizações Banalidades Orações cifradas Adulação Pensamento metafísico Resmungo Delações Inconsistência Censura Confissões renhidas com a lei ou a moral Provocações Máximas e provérbios Frases interrompidas Fofocas Promessa Imploração Informações de fatos concretos Imperativos condicionais Juramentos Catarse “Se… então” (inferência abstrata) Perguntas tipo onde Comparação: “tanto… quanto...” Convite “Eu poderia ter sido... porém” “Se eu pudesse ter tido... teria sido... porém...” Referências a estados afetivos Tergiversações Apresentação de alternativas Presságios Pergunta: como Acusações Dedução ou inferência concreta Atenuação do volume da voz Exclamação Calúnias Comparação entre traços Localização espacial Referências a estados de coisas Ordens Enlace causal Cumprimentos (forma de estabelecer o contato) Relação causal: “tão… que” “tal… que” “tanto… que” Exagerações Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 123 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz mações de tais autores, para as quais só aportamos comentários complementares; porém, também pretendemos pôr em evidência que, se aproveitarmos tais investigações, poderemos enriquecer nosso acervo com um tesouro de experiências compartilhadas e formalizadas em um método que, como o nosso, pretende constituir-se no instrumento para o qual possam confluir as práticas clínicas da comunidade psicanalítica, em um marco sistemático. INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA LI O1 O2 Referências de estar realizando uma ação Compaixão A1 Ameaças A2 Objeções “Se… então” (ameaça) Frases adversativas Juízos críticos FU Clichês Rezas Descrição da posição no marco de uma ordem ou hierarquia social Citações “Não… porque…” (imperativos condicionais, relações causais concretas) “Se… então…” (mandatos concretos, relações causais concretas) “Ou seja” “Quer dizer” Frases denegridoras “Ou…ou” “Seja… seja” “Não… tanto” “Não… pouco” “Por um lado…” “Por outro lado…” “Por uma parte…” “Por outra parte...” Negação de uma afirmação Argumentos distributivos: cada Nem… nem… 124 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 FG Devaneio Embelezamento Redundância sintática Erotismo Cena Estado inicial Primeira transformação: despertar do desejo Fálicogenital Harmonia estética Desejo de completude estética Fálicouretral Rotina Segunda transformação: tentativa de consumar o desejo Terceira transformação: conseqüências da tentativa de consumar o desejo Recepção de um dom presente Encontro com uma marca paterna no fundo do objeto Desafio aventureiro Embaraço Desejo ambicioso Sádico-anal secundário Ordem hierárquica Desejo de dominar um objeto no marco de um juramento público Discernimento de que o objeto é fiel a sujeitos corruptos Sádico-anal Sadico-oral primário secundário Equilíbrio Paraíso jurídico natural Desejo Tentação justiceiro Expiação Oral primário Paz cognitiva Desejo cognitivo abstrato Libido intrasomática Equilíbrio de tensões Desejo especulatório Vingança Acesso a uma verdade Ganância de gozo pela intrusão orgânica Reconhecimento por sua virtude Consagração e reconhecimento da liderança Reconhecimento da genialidade Euforia orgânica Desorganização estética Desafio rotineiro Estado final Harmonia compartilhada Aventura Paz moral Rotina Tormento pessimista moral Sentimento duradouro de asco Condenação social e expulsão moral Pecado Reparação Impotência motora, aprisionamento e humilhação Evocação do passado heróico Retorno à paz natural Ressentimento duradouro Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 125 Expulsão do paraíso Perdão e reco- Perda de nhecimento lucidez amoroso para gozo cognitivo alheio Vale de Gozo na lágrimas revelação Recuperação do paraíso Perda da essência Astenia Equilíbrio de tensões sem perda de energia Tensão ou astenia duradoura David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz Grade II: Esquema das cenas inerentes às seqüências narrativas de cada linguagem do erotismo INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA Sinopse Os autores pretendem colocar em evidência o valor do Algoritmo David Liberman (um método de estudo da linguagem como expressão da erogeneidade e da defesa) na investigação psicanalítica teórica e clínica. Começam sintetizando o método, que inclui um programa de computador para o estudo das palavras e duas grades, uma para a análise das frases e outra para o estudo dos relatos, todos como expressão da erogeneidade. Na seqüência, examinam questões epistemológicas, sobretudo para salientar o nexo entre o Algoritmo David Liberman (ADL) e as hipóteses metapsicológicas freudianas. A partir dessas considerações, chamam a atenção para uma das linguagens como expressão da erogeneidade: o erotismo oral primário. Essa descrição permite apresentar alguns desenvolvimentos recentes, derivados de investigações de diferentes tipos. Estes desenvolvimentos dizem respeito, por um lado, às características distintivas da retirada narcisista e do restabelecimento do nexo libidinal com o mundo nas caracteriopatias esquizóides e na esquizofrenia. Por outro lado, esses desenvolvimentos se referem àquelas situações em que a retirada narcisista de tais estruturas se mantém e se torna tóxica, conduzindo ao aparecimento de manifestações tóxicas e/ou traumatofílicas. Por fim, esses desenvolvimentos concernem também ao plano teórico, em particular com referência: (1) à eficácia de uma erogeneidade não figurada na linguagem e que, no entanto, é possível inferir; (2) à claudicação prematura (ou ao não desprendimento) do processo alucinatório, na infância precoce; e (3) ao valor dos erotismos sádico-oral secundário e intra-somático, este último expressado nos vínculos de apego. Os autores finalizam, enfatizando a utilidade do ADL como método de investigação teórica e clínica na psicanálise contemporânea. Summary Contemporaneus Psychoanalytic Investigation The authors pretend to show the value of the David Liberman Algorithm (a method for the study of the language as an expression of the erogeneicity and the defense) in theoretical research, psychopathology and clinic. They begin summarizing the method that includes a computational program for the study of the words, and two grids, one for the analysis of the phrases and the other one for the narrative sequences, all of them as an expression of the erogeneicity. Then they consider epistemological issues, specially to show the links between the David Liberman Algorithm and Freudian’s metapsychologic hypothesis. Backing in this considerations, the authors pay attention to one of the languages as an expression 126 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sinopsis Investigación Psicoanalítica Contemporánea Los autores pretenden poner de relieve el valor del Algoritmo David Liberman (un método de estudio del lenguaje como expresión de la erogeneidad y de la defensa) en la investigación psicoanalítica teórica y clínica. Empiezan sintetizando el método, que incluye un programa de computador para el estudio de las palabras y dos grillas, una para el análisis de las frases y otra para el estudio de los relatos, todos como expresión de la erogeneidad. A continuación, examinan cuestiones epistemológicas, sobre todo para destacar la conexión entre el Algoritmo David Liberman (ADL) y las hipótesis metapsicológicas freudianas. A partir de esas consideraciones, llaman la atención para uno de los lenguajes como expresión de la erogeneidad: el erotismo oral primario. Esta descripción permite presentar algunos desenvolvimientos recientes, derivados de investigaciones de diferentes tipos. Estes desenvolvimientos se refieren, por una parte, a las características distintivas de la retirada narcisista y del restablecimiento del vínculo libidinal con el mundo en las caracteriopatias esquizoides y en la esquizofrenia. De otra parte, eses desenvolvimientos se refieren a aquellas situaciones en que la retirada narcisista de tales estructuras se mantiene y se vuelve tóxica, conduciendo al aparecimiento de manifestaciones tóxicas y/o traumatofílicas. Al fin eses desenvolvimientos conciernen también al plan teórico, particularmente con referencia: 1) a la eficacia de una erogeneidad no figurada en el lenguaje y que, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 127 David Maldavsky, Gley P. Costa, José Facundo Oliveira, Gildo Katz of the erogeneicity: the oral primary eroticism. This description allows them to present some recent developments, as a consequence of different kinds of investigations. This developments concern, in one side, on the distinctive characteristics of the narcissistic retraction and the reestablishment of the libidinal link with the world in the schizoid characteropaties and the schizophrenia. In the other side, this development concern on to those situations in which the narcissistic retraction of such structures is maintained and becomes toxic, and then conduces to the emergence of toxic manifestations and/or traumatofilias. Finally, those developments also concern on the theoretical level, specially (1) about the efficacity of an erogeneicity no figurated in the language, and nevertheless possible to be inferred, (2) about the premature claudication (or the lack of development) of the alucinatory process in the early infancy, and (3) about the value of the secondary oral sadistic language of the eroticism and of the intrasomatic one, this last expressed in the attachment. The authors end the paper putting the emphasis in the relevance of the David Liberman Algorithm as a theoretical and clinic research method in contemporary psychoanalysis. INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA entretanto, es posible inferir; 2) a la falla temprana ( o al no desprendimiento) del proceso alucinatorio, en la infancia precoz; 3) al valor de los erotismos sádico oral secundario e intrasomático, este último expresado en los vínculos de apego. Los autores finalizan enfatizando la utilidad del ADL como método de investigación teórica y clínica en el psicoanálisis contemporáneo. Palavras-chave Erogeneidade; Linguagem verbal; Investigação; Teoria psicanalítica; Epistemologia. Key-words Erogenity; Verbal language; Investigation; Psychoanalytical theory; Epistemology. Palabras-llave Erogeneidad; Lenguaje verbal; Investigación; Teoria psicoanalitica; Epistemología. Referências ALMASIA, A. (2001). Estudio exploratorio del lenguaje en sujetos con apego a Internet. Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales. (Tesis de la Maestría de Problemas y Patologías del Desvalimiento) BION, W.R. (1962). Aprendiendo de la experiencia. Barcelona: Paidós, 1997. FREUD, S. (1905d). Tres ensayos de teoría sexual. In:______. A.E. V.7. ______. (1914a). Acerca del fausse reconnaissance (‘déjà reconté’) en el curso del trabajo psicoanalítico. In:______. A.E., v.13. ______. (1914c). Introducción del narcisismo. In:______. A.E. v . 14. ______. 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Petrucci Médico; Psicanalista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre e do Grupo de Estudos Psicanalíticos Rio3; Professor da Fundação Universitária Mario Martins. Este trabalho foi escrito para a introdução ao curso que dei sobre o tema, a pedido de alguns profissionais das áreas da psicanálise e da psicoterapia, como preparação para o XVIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado na cidade de São Paulo, em setembro de 2001, cujo tema, “O Futuro da Psicanálise: das Construções Teóricas às Evidências Terapêuticas”, tinha por uma de suas metas estudar a técnica psicanalítica como uma criação individual do analista. Assim, devo agradecer a todos os participantes do curso pelo conteúdo do trabalho, e sobretudo ao Grupo Estudos Avançados de Porto Alegre, que patrocinou o evento. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 131 José Luiz F. Petrucci O Psicanalista como Artesão da Técnica O PSICANALISTA COMO ARTESÃO DA TÉCNICA Cada peça individual executada por um artesão, ou cada obra de um artista, será única, jamais poderá ser repetida. As condições pessoais do artesão, variáveis a cada momento, bem como as condições do material que emprega e as pequenas e imperceptíveis mudanças da própria técnica empregada produzirão, a cada execução, o encontro de duas identidades – o artesão e sua técnica de um lado, e a inconstância natural dos materiais de outro, que precisarão de uma negociação para o sucesso de cada encontro. Não há dúvida de que a emoção do artesão será um dos grandes fatores dessa inconstância, como também não temos dúvida de que é o particular de cada obra artesanal aquilo o que nos impacta, diferentemente do que é feito com a monótona constância de uma máquina. Nessa ordem de pensamentos, um encontro psicanalítico estará sempre no campo do artesanato – ou da obra de arte. Tento aqui encontrar alguns princípios científicos desse fato, tirados da experiência clínica de alguns autores e da minha própria. Fica, portanto, difícil viabilizar este curso, dentro das idéias que estou propondo, se ele se der unilateralmente, sem que eu e vocês estabeleçamos um diálogo do qual se possam criar idéias. Dessa forma, vou propor, em cada uma das quatro noites em que nos vamos encontrar, algumas idéias para discussão. Procuro com isso fazer com que exerçamos encontros em forma de seminários, que já conhecemos bem. As teorias a serem apresentadas não são criações minhas, claro, mas idéias de autores bastante conhecidos, o que possibilitará a ampla participação de vocês. Os objetivos da psicanálise Considerando a evolução da psicanálise como método de tratamento, é possível pensar que ela sofreu em seus objetivos uma transformação gradual, a ponto de hoje, num estágio já bem adiantado, podermos dizer que esse objetivo deixou de ser a análise de uma história para se tornar a análise de uma relação. E evoluiu ainda mais, a partir daí: cada vez mais tem ela incluído em suas postulações técnicas a análise concomitante dos acontecimentos na vida mental do analista, diretamente conseqüentes de seu envolvimento no processo terapêutico do seu paciente. Conceitos antes 132 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sobre identificação projetiva Penso que toda a base do que pretendo dizer está na teoria das relações de objeto e em um desenvolvimento dessa teoria, a identificação projetiva. Segundo Ogden, e muitos autores o acompanham nessa idéia, há uma fase do mecanismo de identificação projetiva na qual aquele que projeta força seus objetos internos para dentro daquele que recebe a projeção, e com isso induz o receptor a funcionar como esse objeto interno. Se isso tem sido, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 133 José Luiz F. Petrucci muito bem estabelecidos, como “neutralidade”, “o analista como uma tela em branco” e “relação assimétrica”, precisaram, no mínimo, ser recalculados em sua presença na relação terapêutica. Uma outra evolução dos objetivos da psicanálise foi aquela anotada e descrita por John Steiner: num primeiro momento, o objetivo era detectar pontos de fixação nos quais a libido permanecia represada, sem descarga, portanto; depois, priorizou-se a análise do conflito com o superego; posteriormente, isso evoluiu para a análise das representações deformadas e da perversão da realidade (ou dos objetos). Até esse ponto, Steiner acompanha as teses de Money-Kyrle. Acrescenta então uma nova postulação para os objetivos da psicanálise: com base na evolução do entendimento do conceito de identificação projetiva, propõe como objetivo a restauração das partes perdidas do self (STEINER, 1992). Posso verificar que as duas últimas postulações estão bastante próximas uma da outra, mas uma análise das filigranas nos levará a uma sutil mas poderosa diferença: enquanto a análise das representações deformadas e perversas da realidade demandam a análise da relação entre objetos internos entre si, ou entre esses e os objetos externos, a análise das partes perdidas do self, através da identificação projetiva, tomam em conta o funcionamento desse mecanismo na transferência. A direta conseqüência disso é a possibilidade de analisar a contratransferência, isto é, aquilo que, perdido pelo paciente dentro da mente do analista, acaba por influenciar o funcionamento dela (ver Ogden, em seu estudo do mecanismo da identificação projetiva no processo psicoterapêutico). O PSICANALISTA COMO ARTESÃO DA TÉCNICA classicamente, considerado uma atuação (acting-out) do paciente, a partir dos desenvolvimentos que sigo é exatamente esse acting-out que permite a criatividade da relação e o trabalho artesanal do analista de criar a técnica. É fundamental aqui reconhecer a contrapartida disso: esse ato de o paciente enfiar seu objeto interno para dentro do analista pode ser de tal ordem violento que leve o último a um forte impulso para atuar, para funcionar realisticamente como o objeto interno do paciente nele projetado. Essa violência, é necessário notar, não é relacionada a diagnóstico, mas a necessidades específicas de qualquer paciente que não consiga chegar a simbolizar um conflito objetal interno, a ponto de comunicá-lo na forma mais corrente da transferência, a simbólica. O acting-out do analista, nesses casos, que poucas vezes chega a se manifestar de uma forma abertamente hostil ao paciente ou ao setting, toma no mais das vezes formas muito sutis. Uma delas é a de evadir-se para a teoria, ou para formulações aparentemente interpretativas, mas que são na verdade pré-conceitos. Uma outra forma, menos sutil, é a partida em busca de um “diagnóstico”, a ser enfiado de volta no paciente, livrando-se assim o analista da frustração do não-saber (momentaneamente) ou do estar lidando com os aspectos mais primitivos da experiência emocional, para o que jamais encontrará palavras. E é aí que reside um dos principais pontos de onde nasce a criatividade no analista, pois não será através das palavras em si que responderá às demandas do paciente, mas através do que está implícito, emocionalmente, na formulação ou mesmo na postura do analista. Nesses momentos, muitas regras estabelecidas pela técnica psicanalítica tradicional podem chegar a ser, digamos, “transgredidas”, ou pelo menos reprimidas, restringidas. O trabalho necessário e útil nesses momentos exige continência, exige a possibilidade de relação com a não-coisa, com o objeto ausente. Partindo do mesmo processo de simbolização por que deverá passar o paciente para chegar a nomear seus objetos, precisa o analista desenvolver, antes, processo semelhante dentro de si. Assim fazendo, estará, a partir de uma relação com a não-coisa, com o espaço vazio, a criar nesse mesmo espaço algo 134 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 135 José Luiz F. Petrucci que, resultante da ação do paciente sobre a realidade mental do analista, será um “conhecimento” único daquela relação, algo que muito pouco ou nada terá a ver com o sensível, mas com a emoção. A meu ver, esse é o fator criativo da psicanálise, aquele que faz de sua prática uma arte. Voltarei a falar nisso logo. É, entretanto, necessário enfatizar a visão que tenho do mecanismo de identificação projetiva. Para alguns psicanalistas, esse mecanismo é visto a modo de uma panacéia, que “explica tudo”. Claro, só posso imaginar pensarem assim aqueles que leram Klein e seus seguidores muito superficialmente. A identificação projetiva foi uma dedução de Klein a partir de um primeiro movimento nas relações de objeto, e toda uma gama de mecanismos a compõe, de forma a dar seguimento ao interjogo de projeções e introjeções que perpetuam aquelas relações. Assim, como base de toda a teoria das relações de objeto, esse mecanismo, mesmo que não seja reconhecido, estará presente sempre que se falar em dinamismos entre sujeito e objeto, ou entre self e objeto. No meu entendimento, a identificação projetiva funciona como um anteparo, uma lâmina semitransparente pela qual tem passagem, e é modificado, tudo aquilo que é projetado e introjetado. Assim, é a identificação projetiva que dá vida própria às relações, é a responsável pela afirmação de que toda a relação é única e incapaz de ser reproduzida ou repetida. Não tenho dúvida que, vista dessa forma, é a identificação projetiva o fator criativo de qualquer relação. Como já reconheceu o filósofo da ciência Karl Popper, não existe observação sem teoria prévia. Assim, qualquer comunicação será recebida “a meio do caminho”, isto é, o receptor a receberá já “contaminada” por sua teoria prévia a respeito do que é comunicado. Para o analista, é fundamental perceber não só a teoria prévia que seu paciente desenvolve, mas também dar-se conta de suas próprias teorias prévias, para que saiba em que podem elas causar modificações no que seu paciente comunica. Esse é o complexo funcionamento da identificação projetiva na comunicação. O PSICANALISTA COMO ARTESÃO DA TÉCNICA Sobre a teoria das transformações O que é capaz de fazer a distinção entre criatividade e invenção fantasiosa é a relação entre as transformações e as invariantes. É importante que se repise essa idéia, porque, em meio a todas as idéias, teorias, sensações, intuições que possamos ter, há algo que identifica, que permite o reconhecimento da individualidade do paciente. Chamamos a isso de invariantes. Ao falar sobre invariantes, Bion nos alerta para o fato de que, se o artista reproduz em sua tela uma estrada como duas linhas que se encontram, porque essa é a sua perspectiva, as bordas da estrada serão, de fato, paralelas; quer dizer, há uma invariante, independentemente da perspectiva do artista (observador), que não é captada pelos órgãos do sentido, mas que precisa ser reconhecida como pano de fundo de tudo, portando, captada por algum tipo de “percepção”. Como “perceber” algo que não está disponível para aqueles sentidos que estamos acostumados a usar para perceber coisas? Invariante representa a experiência original, transformada por sua representação através de um desenho ou em psicanálise através de uma interpretação. Penso que uma revisão do conceito de fantasia inconsciente pode nos dar algum caminho para pensar melhor sobre isso. Certa vez, um psicanalista, em conferência aqui em Porto Alegre, disse que, aprofundando a análise de um paciente até seus extremos, vamos acabar por encontrar a nós mesmos, psicanalistas. A intenção do conferencista não era a de chegar ao que aqui vou dizer, mas encontrei uma razão paralela para a sua afirmação: de fato, nenhuma análise poderá chegar a seus termos se não encontrarmos a nós mesmo dentro do paciente, ou seja, se não compartilharmos nossa emoção com a do paciente. Chegamos à invariante, àquilo que o paciente é capaz de induzir no analista como a sua (do analista) parte na experiência. Atingido isso, estamos realmente acompanhando o paciente em seu caminho. Discutindo se deve ou não o analista revelar seus sentimentos contratransferenciais ao paciente, Bollas disse que o importante não é revelar ou não sentimentos, mas que o fundamental é dar ao paciente a convicção de que somos capazes de compartilhar com ele suas emoções, isto é, 136 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sobre fantasia inconsciente De novo nos vemos diante de um conceito que parece cansado, saturado, como uma coisa antiga. Na minha perspectiva, no entanto, é um conceito muito próximo de uma invariante no pensamento psicanalítico – pelo menos em certas correntes desse pensamento. Quer esteja ou não representada graficamente em descrições psicanalíticas, ela está presente como pano de fundo de tudo o que somos. Vamos ver por que eu penso assim. Aliás, devo dizer que, em meu entendimento, a psicanálise não foi modificada pelos autores que se seguiram a Freud. Em todos os pensamentos psicanalíticos, creio que de Klein, Lacan, Bion, Hartmann, Kohut, foram estabelecidos desenvolvimentos da teoria freudiana, seguindo cada um seu vértice próprio na leitura de Freud. Dessa forma, o conceito kleiniano de fantasia inconsciente, como o de identificação projetiva, não “envelheceram”, evoluíram, e hoje estão na base de conceitos mais atuais, como intersubjetividade, por exemplo. A fantasia inconsciente é o início mesmo de tudo aquilo que dizemos ser a nossa experiência, aquilo que, num início de nossa vida mental, foi tido por Freud como o Ego corporal, e que a evolução psíquica levará a ser traduzido por representações (primeiro de coisas, depois de palavras), e mais tarde transformado em idéias, pensamentos, memória. Em sua definição mais correta, é a primeira manifestação psíquica da experiência corporal. Em muitos momentos da obra de Bion, quando ele nos fala de uma “postura em busca de O”, penso que ele está nos falando desse “O”, ou coisa em si, desse momento primevo da vida mental, quando corpo e mente ocupam um espaço único na ordem das coisas. Também a mim parece que essa é uma invariante da nossa vida psíquica. Temos palavras, ou tentamos estabelecê-las, para designar coisas como prazer, dor. No entanto, não as temos para descrevê-las. E são as experiências de prazer e dor que “detonam” o big bang da formação do psíquico. Aliás, mesmo que isso possa Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 137 José Luiz F. Petrucci que ele é capaz de produzir emoções em nós. Quando falar sobre formulação da interpretação, voltarei a isso. O PSICANALISTA COMO ARTESÃO DA TÉCNICA não ser reconhecido, a fantasia inconsciente, creio, é uma invariante para todas as correntes teóricas da psicanálise, porque é o nascedouro do emocional. Sobre ecletismo e técnica psicanalítica É considerável o número de psicanalistas que valorizam o conhecimento de variadas correntes psicanalíticas ou como forma de entendimento de uma diversificada tipologia de pacientes, ou para o entendimento de diferentes situações de uma mesma análise. Para os propósitos que tenho em relação à criatividade na técnica, esse é um ponto de vista que apresenta consideráveis desvantagens. A seguinte questão se me coloca: qual é o conhecimento teórico disponível para a criatividade? Para abordar as citadas desvantagens e encontrar respostas para a pergunta, preciso abordar o tema da intuição. Sobre intuição Há várias condições capazes de produzir intuição, que é uma qualidade sempre inconsciente e que tem forma e intensidade pessoais. Posso reconhecer, nesse momento, pelo menos três dessas condições. A primeira delas é aquela que reconhecemos como uma espécie de “sexto sentido”, formada possivelmente de experiências aleatórias e repetidas. Uma segunda é a que acompanha os funcionamentos psicóticos, nos quais estará sempre presente uma intensa necessidade de perscrutar o mundo com finalidades paranóides. E uma terceira, a que nos interessa, é a que posso chamar de intuição instrumentada. Ela é também o resultado de um encadeamento de experiências, porém não aleatórias. Ela é conseqüência de alguns fatores, como o conhecimento que temos de nossos funcionamentos psíquicos através da análise pessoal, que no caso dos psicanalistas se encontra articulada com nosso conhecimento teórico e com nossas vivências transferenciais e contratransferências do dia-a-dia de nossa clínica. Ela depende de vértice, não admite o ecletismo, já que o vértice, aqui, se refere àquele que temos para observar nossa vida psíquica, adquirido na análise 138 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sobre o formular a interpretação Vou me referir aqui ao que entendo como interpretação psicanalítica, que difere de interpretação psicoterápica, embora esta última exista durante a análise sob a denominação genérica de “intervenções preparatórias”. Do meu ponto de vista, a interpretação não se resume a um conjunto de idéias que expressamos verbalmente ao paciente. Este será, sim, um coroamento necessário da interpretação, mas ela começa bem antes de chegarmos a isso e contém muitos elementos não passíveis de verbalização. Começo a falar de algo que vou chamar de “postura mental”. A postura já é bem conhecida e costumamos denominá-la “atenção flutuante”, ou, numa linguagem já com elementos mais evoluídos, “postura sem memória e sem desejo”. Será que a condição de atenção flutuante, introduzida pelo gênio de Freud, foi de imediato entendida? Será que ainda hoje todos entendem com clareza o que isso significa? Vejam que Freud aconselhou essa postura como uma forma de pôr o inconsciente do analista em contato com o do paciente. Mas, a que elementos do inconsciente Freud se referia? Não posso aceitar que ele se referisse ao que, numa postura assim, pudesse ser revelado a nós, como, por exemplo, o conflito edípico ou outros conteúdos mentais dessa ordem. O que é captado nessa postura, penso eu, é a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 139 José Luiz F. Petrucci pessoal. Isto é, como parte da análise pessoal, ela é conseqüência de experiência emocional, e a experiência emocional é condição fundamental para validar nosso conhecimento e torná-lo disponível para a prática da psicanálise. Posso imaginar a intuição instrumentada, essa que serve para o entendimento do material do paciente, como a resultante de duas vertentes que se articulam: a vertente de nossa experiência psicanalítica (e quero aqui distingui-la de um puro conhecimento teórico) e a vertente de tudo aquilo que o paciente identifica projetivamente no analista. Logo se verifica que tornar essa intuição disponível para o pensamento requer algo que Freud chamou de “atenção flutuante”, e Bion, de uma postura mental “sem memória e sem desejo”. O PSICANALISTA COMO ARTESÃO DA TÉCNICA invariante, a experiência emocional. Os conteúdos nos serão revelados, mesmo que de forma simbólica, pelos nossos órgãos do sentido, e a atenção flutuante busca a ação da intuição. Banir memória e desejo de nossa postura é a forma de seguir a postulação de Bollas, acima referida. Excluir memória e desejo do presente da sessão analítica nos afastará de uma atitude defensiva de fugir para elementos que não são presentes, afastando aí a dor da emoção (memória) ou a busca de um futuro (imposto) ao paciente (desejo). Não foram poucas as experiências, minhas e que ouvi descritas por colegas e li em alguns autores (H. Rosenfeld, por exemplo), em que o fugir para o passado ou o expressar desejos de um futuro desencadearam materiais ou atuações expressando o sentimento de rejeição por parte do paciente, quer dizer, de sentir que não estamos dispostos a ser emocionalmente “perturbados” por ele, a compartilhar a emoção. Um outro elemento prévio à interpretação é o silêncio. Não o silêncio por si só, nem o silêncio curioso, mas o silêncio continente. É bem conhecido da técnica psicanalítica o fato de que responder à identificação projetiva maciça com interpretações é devolver ao paciente aquilo que ele precisa evacuar para dentro de nós, porque não o suporta no seu interior. O silêncio continente gera confiabilidade e segurança, porque, em primeiro lugar, “diz” ao paciente que estamos dispostos a experimentar dentro de nós suas emoções, por pior que ele as sinta, e, em segundo, porque produz uma gradativa sensação no paciente de que aquilo que evacuou em nós é suportável. O estabelecimento dessa confiabilidade e dessa nova tradução da emoção, mais benigna, é absolutamente fundamental para desencadear no paciente sua capacidade introjetiva, e então poder ouvir interpretações. Sobre isso aliás, deve-se dizer que, ao procurar entrar em contato com a experiência emocional do paciente, estamos expostos, nós mesmos, necessariamente, às nossas próprias emoções, induzidas em nós pela identificação projetiva. Isso, em outros tempos visto como falha na neutralidade, é hoje, seguindo o nosso ponto de vista, inevitável. No entanto, acometido pelos efeitos da identificação projetiva, perturbado pela 140 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sobre linguagem de êxito Segundo o nosso raciocínio, que segue os caminhos do pensamento de Bion, a linguagem de êxito é decorrência da tolerância à frustração. É frustrante abdicarmos de uma verdade racional, aquela decorrente da memória. Faz-se referência aqui à postura chamada de “ato de fé”, quer dizer, acreditar em algo que não é disponível no momento, mas que será descoberto pela intuição. É uma experiência frustrante que inclui abdicarmos da idéia de que tal ou qual caminho é o melhor para o paciente, para que ele nos Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 141 José Luiz F. Petrucci contratransferência, está o analista num momento em que sua única atitude possível será a de pensar. Pensar sobre si, “procurar” em si a tradução de sua experiência emocional, e não uma interpretação ou um comentário qualquer para o paciente. Esse é o momento de procurar a auto-análise da contratransferência, já que esta, em princípio, tem motivações inconscientes. Paula Heimann chamou esse espaço de silêncio e contenção que precisamos nos dar de time lag. Ele coincidirá, certamente, com o espaço de silêncio continente de que falamos antes, e a experiência é que seja assim sentido pelo paciente, mesmo porque este não deseja uma simples devolução do que identificativamente projetou. Qualquer tentativa de manifestação que não a do silêncio continente por parte do analista será sem dúvida uma atuação da contratransferência, porque não existe, nesses momentos, o estado mental necessário para formular. O paciente, diria, diante da atitude “sem atuação” e pensativa do analista, que muito provavelmente terá a sensação de estar sendo contido num espaço de compreensão. A experiência subjetiva do paciente, por seu turno, lhe dará uma convicção de que estimulou o analista a pensar nele. Esse espaço que estou neste trabalho chamando de silêncio continente é o espaço de criação na relação terapêutica, e é nele que se exercerá a formulação da única forma de interpretação que, segundo meu ponto de vista, promove evolução, porque orienta o paciente em direção à sua realidade psíquica. É nesse espaço que encontraremos a formulação que corresponderá ao que se chama “linguagem de êxito”. O PSICANALISTA COMO ARTESÃO DA TÉCNICA aponte, através de sua indução sobre nós, o real caminho do que precisamos conhecer, sua realidade psíquica. A linguagem de êxito está muito próxima da atuação, já que se constitui de um acontecimento “compulsivo”, independente de nossa vontade. Ela é o resultado da convergência de fatores que, até ali, estiveram dispersos, e que se juntam num ato de pensar único, sem qualquer participação de memória (lembrar teoria, esforçar-se para lembrar de momentos anteriores da análise daquele paciente) ou desejo (aquilo que pensamos ser melhor para o paciente, ou pensar em psicopatologia – o que é sadio ou o que é patológico). Como distinguir, então, a ocorrência da linguagem de êxito de uma atuação contratransferencial, ou, como chamou Grimberg, de uma contraidentificação projetiva? Ocorre que a linguagem de êxito tem o fundo da experiência emocional do analista, e não sua experiência sensorial (racional). Sobre “pacientes difíceis” Costumamos classificar alguns pacientes como “casos difíceis”. Do ponto de vista aqui exposto, “dificuldade” é uma experiência do analista, não um rótulo apresentado por nossos pacientes. Assim, “dificuldade”, numa análise ou sessão analítica, apenas será transposta se considerada como pertencente ao analista, não ao paciente. Estabelecer “dificuldade” como pertencente ao paciente é forma de projetar identificativamente no paciente nossa intolerância à frustração de um não-entendimento imediato. Alguns princípios básicos da linguagem de êxito Em um trabalho meu sobre pacientes de difícil acesso, de 1987, cheguei a formular uns poucos tópicos que poderiam ajudar na formulação da linguagem de êxito. São eles: a. a possibilidade de o paciente dar-se conta de que está o analista presente ao interpretar, o que corresponde a ter podido analisar seus sentimentos contratranferenciais e, assim, situar-se no presente da relação (silêncio continente); b. uma forma que dê ao paciente a sensação de estar sendo compreen142 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sinopse Neste trabalho, o autor pretende atingir as mais profundas e subjetivas relações entre analista e analisando, procurando examinar o que está subjacente às palavras, para chegar a algumas idéias sobre o “diálogo das emoções” na relação analista-analisando. Esse diálogo resulta naquilo que conhecemos como “uma relação única e não-reproduzível”, e que, ao mesmo tempo, é responsável pelo ato criativo que é o psicanalizar e pelo emprego, enfim, correto, da técnica psicanalítica. Summary The Psychoanalyst as an Artisan in Technics In this work, the author intends to attain deep and subjective relations between patient and therapist. He intends to examine what underlines words to reach some ideas about “emotional dialogue” in the relationship between patiente and therapist. Such dialogue results in what we know as “a unique and non-reproducible relationship”, and is responsible for the psychoanalysis as a creative act and for the correct employment of the psychoanalytical technique. Sinopsis El Psicoanalista como Artesano de la Técnica En este trabajo el autor pretende alcanzar las más profundas y subjetivas relaciones entre analista y analisando, procurando examinar lo que está subyacente a las palabras para llegar a algunas ideas sobre el “diálogo de las emociones” en la relación analista-analisando, diálogo este que resulta en aquello que conocemos como “una relación única y no reproducible”, y que al mismo tiempo es responsable por el acto creativo que es el psicoanalizar y por emplear por fin, correctamente, la técnica psicoanalítica. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 143 José Luiz F. Petrucci dido, o que quer dizer que, na interpretação, não existem vestígios de juízo de valor, traços de memória, desejos ou projetos a respeito de sua evolução na vida externa, ou alterações em sua concepção de vida; c. uma linguagem que revele, de forma definitiva, que não estamos estabelecendo nele a causa da dificuldade (inevitável em qualquer relação terapêutica). Esse último tópico está presente, por exemplo, no modelo preconcebido e insistente de interpretar a inveja à sabedoria do analista. O PSICANALISTA COMO ARTESÃO DA TÉCNICA Palavras-chave Técnica psicanalítica; Criatividade; Diálogo intersubjetivo. Key-words Psychoanalitical technique; Creativity; Intersubjective dialogue. Palabras-llave Técnica psicoanalítica; Creatividad; Diálogo intersubjetivo. Referências BION, W.R. (1965). Transformations. London: Karnac Books. ______. (1967). Second thoughts. London: Heinenmann. ______. (1973). Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1973. ______. Notas sobre memória e desejo. In:______. Melanie Klein hoje. Rio de Janeiro: Imago, 1990. v. 2. GIOVACCHINI, P. Contemporary perspectives on technique. In:______. Master clinicians on treating the regressed patients. Northvale: Jason Aronson, 1990. GOLDBERG, P. (1990). The holding environment: conscious and unconscious elements in the building of therapeuitc framework. In:______. Master clinicians on treating the regressed patients. Northvale: Jason Aronson. OGDEN, T. Projective identification and psychotherapeutic technique. Northvale: Jason Aronson, 1982. PETRUCCI, J.L.F. Manejo técnico do paciente de difícil acesso. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE. 11, 1987. Relatório Oficial da SBPRJ... Rio de Janeiro: SBPRJ, 1987. STEINER, J. Os objetivos da psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 26, n. 4, 1992. Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Dr. José Luiz F. Petrucci Rua 24 de Outubro, 838 sala 409 90510-002 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone: (0xx51) 3328-6412 (0xx51) 3328-0800 E-mail: [email protected] 144 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 I – Gemelaridade e Cultura Rosana Igor Rehfeld Membro Associado da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro; Membro Pleno do Centro de Estudos, Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência; Membro Correspondente do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre. Nos últimos anos, temos nos defrontado com um maior número de gestações múltiplas, fruto da evolução científica e da reprodução assistida. Observamos o nascimento de gêmeos, trigêmeos e quadrigêmeos com até certa naturalidade, visto que são cada vez mais freqüentes. Nesse sentido, psicanalistas vêem-se com questões novas. Pais grávidos de gestações múltiplas procuram orientação, e crianças gêmeas ou trigêmeas são trazidas para análise. Lawrence Wright (1997), jornalista americano interessado nesse Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 145 Rosana Igor Rehfeld De Esaú e Jacob à Reprodução Assistida – a Gemelaridade à Luz da Psicanálise DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA – A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE tema, diz que “os gêmeos têm confundido a humanidade desde o princípio dos tempos, quase como se fora uma brincadeira divina para pôr em dúvida nosso sentido de individualidade e de ser únicos no mundo”. Todas as culturas têm de fazer frente ao fenômeno dos Gêmeos e chegar às suas próprias conclusões. Sabe-se, por exemplo, que em algumas sociedades indígenas o nascimento de gêmeos era vivido de forma trágica. Achavam, os índios, que um gêmeo era dotado de uma “alma boa”, enquanto o outro tinha uma “alma do diabo” . Como não sabiam quem era o representante do bem e quem era o do mal, sacrificavam os dois bebês para que nada de ruim ocorresse na tribo. Na antigüidade, em algumas culturas os homens cortavam um de seus testículos, com a crença de que, assim, evitariam ter filhos gêmeos. Por outro lado, os participantes de Vodu da África Ocidental e do Haiti exaltam os gêmeos como seres sobrenaturais com uma só alma, que devem ser venerados e temidos. Na bíblia, encontramos a conhecida história de Esaú e Jacob, narrada no livro de Gênesis, capítulo XXV. O mito gira em torno dos filhos gêmeos de Isaac e Rebeca. Trata-se da história do roubo da primogenitura de Esaú por Jacob, ajudado por sua mãe Rebeca. Psicanalistas valeram-se desse relato para colocar em evidência as fantasias inerentes ao complexo fraterno em gêmeos, as conseqüências patogênicas das colusões conscientes e inconscientes entre mãe-filho, bem como a luta de poder entre os sexos no casal e suas conseqüências atuadas nos filhos. Na literatura mundial e no cinema, vários escritores valeram-se de gêmeos como personagens de histórias e biografias. Na mitologia, temos Rômulo e Remo; no cinema, temos Beverly e Elliot Mantle (“Gêmeos, mórbida semelhança”); apenas para citar alguns. A partir do estudo teórico e da prática clínica, observei que a questão da gemelaridade pode ser entendida desde pelo menos três pontos de vista: – da mãe em relação a cada um dos bebês; – de cada bebê em relação a sua mãe; 146 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 II – Narcisismo Primário, Duplo e Complexo Fraterno: Intersecções e Questionamentos Para iniciar o estudo teórico acerca de gêmeos, precisamos nos remeter ao narcisismo primário e à criação do duplo. Freud (1920) traz o conceito de narcisismo primário e demonstra a passagem do auto-erotismo ao estágio constitutivo da unidade do sujeito, ou seja, à investidura das pulsões parciais auto-eróticas. Emergindo da fragmentação, esse ego incipiente realiza um duplo movimento. Mediante a projeção, funda uma primeira exterioridade como modo de fazer consciente os processos inconscientes antes do advento da palavra. Configura-se uma primeira realidade sensorial, criando um duplo sobre o qual recai o narcisismo inicialmente colocado no corpo. Num movimento seguinte, o ego apodera-se identificatoriamente daquilo que foi projetado no objeto. É o momento da identificação primária e da constituição do sentimento de ser. Formam-se, assim, os duplos da época do narcisismo primário. Em 1919, Freud, no trabalho intitulado “O Estranho”, descreveu três tipos de duplos: imagem especular, sombra e espírito . Esses se igualam devido à forma de produção (projeção e identificação) e se diferenciam através do tipo de representação-corpo que será projetado no mundo sensorial como duplo. Cabe salientar ainda um outro tipo de duplo, descrito por Freud em 1911, numa carta a Jung: a placenta (McGUIRE, 1993). Nesse caso, configura-se o tipo primordial de duplo, que remete ao feto e sua placenta na criação do indivíduo. Freud ilustra esse tipo de duplo com o mito de Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 147 Rosana Igor Rehfeld – do complexo fraterno, ou seja, o olhar de cada bebê em relação ao seu irmão. Pretendo, assim, neste trabalho, trazer alguns aportes teóricos de Freud e Winnicott com relação ao duplo, ao narcisismo e à formação da identidade, bem como trabalhar o complexo fraterno em gêmeos a partir de autores contemporâneos com Kancyper e Braier. DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA – A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE Rômulo e Remo, em que o mais frágil dos dois haverá de morrer, igual à placenta. Ainda nessa carta a Jung, Freud lembra Frazer e menciona que em povos primitivos se dava à placenta o nome de irmão ou de gêmeo, e, como tal, tratava-se de alimentá-la e cuidá-la por muito tempo. Consistirá, então, em um duplo mais primitivo e elementar, como uma placenta mesmo, destinada a perder-se. Vimos, então, que a unidade do ego só poderá se fazer mediante a projeção do interior de um corpo sobre o outro, objeto externo, corpo materno que recebe a projeção e, como um espelho, permite a identificação. Sempre a unidade egóica implica um par ego-objeto, dentro-fora, consciente-inconsciente: uma mãe, um bebê. Entretanto, no caso de gêmeos, trigêmeos ou mais, não existe EU, e sim NÓS. Dois ou mais bebês necessitam de uma mesma mãe para nascerem psiquicamente como sujeitos. Joyce McDougall (1988) trabalha com o conceito de um só corpo para dois, quando se refere às estruturas narcísicas. Ana Maria Baceiro (1991, p. 175), quando fala em gêmeos e sua mãe, propõe pensar um “aparelho psíquico para dois”. Diz essa psicanalista argentina: No caso de gêmeos, o ego não se coloca em uma posição sujeito ativo. Não consegue uma identificação plena com o duplo ou modelo. Fica interferida a capacidade de ligar a pulsão que ameaça o aparelho psíquico com o surgimento de um afeto insuportável, como conseqüência de uma falha na identificação primária. Não é que o sujeito não se constitua, mas fica descentrado do ego e realiza uma identificação substitutiva com o outro sujeito identificado com o modelo ou ideal: o outro gêmeo. O sentimento de ser, que deveria surgir como ganho da identificação primária, fica substituído por um sentimento de inalteridade que protege, entretanto, de um colapso afetivo . A potencialidade psíquica de cada bebê de gerar seu próprio duplo sempre está presente. Mas, como lembra Baceiro (1991), essa produção deverá dar-se em um contexto vincular em que a possibilidade de a mãe cumprir uma dupla função está em jogo. Aqui, a mãe, objeto refletor, de148 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 149 Rosana Igor Rehfeld volve uma só imagem para dois. Quando penso nessa idéia, pergunto-me: Será isso possível? Uma mesma mãe reflete a mesma imagem para dois? Poderá ser a mesma mãe para dois bebês diferentes? Winnicott (1957, p. 154), em seu artigo “Gêmeos”, diz que a maioria das mães, se tivessem sido consultadas, não teriam optado por terem mais de um filho numa mesma gestação. Também diz que, apesar de muitos gêmeos parecerem bastante satisfeitos com sua situação, usualmente “confessam que teriam preferido chegar cada um por sua vez”. Segue dizendo que, logo ao nascer, o bebê inicia a formar a base de sua personalidade, individualidade, e a descobrir a própria importância. Isso só se dará se esse bebê puder experimentar um “egoísmo primário” (WINNICOTT, p. 155): a vivência de uma mãe suficientemente boa, capaz de adaptar-se totalmente às exigências pulsionais de seu bebê e que esteja apta a propiciar a seu filho o sentido de posse e a sensação de que a mãe foi criada para a ocasião. O fato de um gêmeo ter sempre um ou mais bebês com quem se defrontar reveste seu desenvolvimento psíquico de algumas peculiaridades. Winnicott (p.156) diz que é possível e determinante para o desenvolvimento normal que os gêmeos sintam, de fato, que cada um exerce, a seu modo, a posse da mãe no princípio de suas vidas. Para tanto, “a mãe de gêmeos tem uma tarefa extra, acima de todas as outras, que é dar-se toda a dois bebês ao mesmo tempo”. Ilustrarei o exposto acima com material clínico. Recebi A. em análise quando esta tentava engravidar já há alguns meses, sem sucesso. Precisou submeter-se a um tratamento e engravidou de gêmeos. Num primeiro momento assustou-se muito, apesar de saber que a gravidez gemelar poderia ocorrer, como havia sido esclarecida pelo médico. Fez uma fantasia de que não conseguiria levar a gravidez a termo e que perderia os bebês. Entrou em angústia e também desenvolveu sintomas fóbicos. Só saia de casa para ir à análise. As sessões giravam em torno de seus sentimentos ambivalentes e de DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA – A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE suas dúvidas com relação ao que chamava de seu “talento materno”. Perguntava-se: Como poderei ser justa? Como saberei a quem eu amamentei primeiro da última vez? E se eu confundir os nomes? A angústia de A. foi cedendo à medida que a gravidez ia evoluindo bem e seus sentimentos podiam ser compartilhados e entendidos. Vimos em análise que seus receios em relação aos bebês eram legítimos e justificáveis, visto que uma só mãe não pode atender às necessidades de dois bebês ao mesmo tempo. Entretanto, foi a partir de um sonho que a angústia e o medo da paciente puderam ser melhor compreendidos. A. sonhou que sua irmã mais velha havia recebido da mãe, que era doceira, a responsabilidade de entregar duas encomendas a duas clientes. A irmã levou apenas uma das caixas e deixou a outra sobre o sofá da casa. Quando voltou, à noite, a casa estava cheirando mal. Os doces esquecidos haviam estragado, e a mãe perdeu uma das clientes. A partir das associações, A. contou-me que possuía uma irmã do mesmo sexo dez meses mais velha, muito parecida fisicamente com ela e que “bem poderia ser tomada por sua gêmea”. Falou pela primeira vez dessa irmã quase gêmea, da competição pela atenção da mãe, do amor e do ódio que sentiam uma pela outra, e da enorme amizade que possuíam hoje em dia. Nesse momento, A. estava identificada com seus bebês. Contou que a mãe colocou-a em um turno diferente do da irmã na escola para que pudesse cuidar de uma de cada vez. Em função do trabalho e também da quantidade de filhos, A. fora esquecida muitas vezes na escola. Voltava para casa acompanhada por uma servente que morava perto, e às vezes a mãe nem havia dado por sua falta. Entendemos que se sentia, naquelas ocasiões, como a caixa de doces esquecida no sofá, e que o mau cheiro representava para ela suas dificuldades emocionais, que a faziam duvidar de sua capacidade para cuidar de seus bebês, assim como a mãe. Também a questão da perda de uma das clientes talvez estivesse ligada ao seu projeto original de ter apenas um bebê. A partir do estudo teórico da experiência clínica, penso que a psicaná150 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 O duplo, que desde sempre fascina, representa o companheiro ideal, aquele que entende tudo no primeiro olhar. Na verdade, essa fantasia permite que nos projetemos em outra existência. O gêmeo imaginário, a maneira de um anjo da guarda, conta a outra vida que cada um de nós sonhou. Kancyper (2002, p. 7) enuncia algumas fantasias que são típicas do complexo fraterno. São exemplos as fantasias fratricidas, furtivas, de complementaridade, de bissexualidade, de confraternidade, dentre outras. Com relação ao complexo fraterno em gêmeos, diz esse autor que encontramos uma particular fantasia, a da existência de um só espaço, de um só tempo e de uma só possibilidade para dois. Por exemplo, existe só uma carreira profissional, uma beleza excludente, uma posição econômica e Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 151 Rosana Igor Rehfeld lise precisa desenvolver um olhar atento para esse momento da sociedade em que um grande número de gêmeos está nascendo. Um aporte técnico interessante e indispensável ao atendimento psicanalítico de gêmeos diz respeito ao estudo desenvolvido por Luis Kancyper (1995) sobre o complexo fraterno. Coloca esse autor que, na estrutura fraterna, intervém a dinâmica do duplo, mas com uma singularidade: é um duplo consangüíneo. Assim, a filiação consangüínea e o duplo como objeto de projeção narcisista operam de forma conjunta e são estruturantes da personalidade, possuindo uma fantasmática particular em cada sujeito. Kancyper (p. 50) diz que “o irmão é um semelhante demasiado semelhante”. Essa colocação refere-se a toda classe de irmãos, mesmo aqueles que não são gêmeos. Uma colega psicanalista conta que seu filho menor, ao olhar-se no espelho, quando tinha em torno de 2 anos, disse: “Lipe?” Felipe é seu irmão maior, na época com três anos e meio. O irmão é simultaneamente um duplo e um estranho, e sua proximidade consangüínea favorece ser ele o depositário de certos aspectos inaceitáveis de si mesmo. Por outro lado, Marcel Rufo (2002, p. 40) comenta: DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA – A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE social. Se uma irmã é mãe, a outra é tia, se uma é inteligente, a outra é burra, e assim por diante. “Esta dimensão de sacrifício entre os gêmeos é uma conseqüência de fantasias superpostas de roubo e de simbiose (de fusão e de confusão, de apropriações mútuas de papéis e de funções) e opera como as raízes que nutrem os remorsos e os ressentimentos mais virulentos”. Para encerrar, gostaria de voltar a Freud e ao duplo. Na fratria gemelar, o duplo especular se impõe. Ele tem um caráter familiar e ao mesmo tempo estranho, e corresponde a uma época primitiva do desenvolvimento infantil, em que ego e mundo externo ainda não estavam bem delimitados. Ainda no artigo de 1919, Freud diz que existe um efeito estranho, repulsivo, quando se anulam os limites entre fantasia e realidade. No momento em que aparece à nossa frente como real algo que havíamos tido como fantasmático, um símbolo assume a plena operação do simbolizado. O duplo opera com os limites da mesmice e da alteridade, e pode ser fonte de angústias confusionais e de relações de objeto narcisistas: “se instala na espacialidade psíquica do sujeito como um inquilino violentador que impede o ego de ser o dono de sua própria casa e o transforma em seu próprio escravo”. O duplo especular manifesta-se de uma forma eloqüente na gemelaridade, como já foi mencionado acima. É o suporte da tensão surgida entre a impossibilidade de uma exata coincidência espelhada em um outro e pela inquietante ameaça da perda ou roubo parcial ou total da identidade. Caracteriza-se pela bipolaridade. Como diz Lacan (1936, p. 14), “evocam a predestinação e a antecipação de uma permanência e imortalidade [...] e, por outro lado, suscitam o terror a um enfrentamento com o similar, portanto, com o redundante que ameaça a unicidade”. Marcel Rufo (2002, p.147), psiquiatra francês, refere-se aos gêmeos como “fratria extrema”, sintetizando o que busquei expor acima. 152 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Gostaria de dividir com os colegas uma experiência que julgo singular: Celso tinha 6 anos quando o conheci. Era tão pequeno que cabia num carrinho de bebê, que efetivamente era seu meio de transporte. Ele só tinha uma perna e ainda não podia usar prótese. Usava fraldas, e várias partes de seu corpo, especialmente os órgãos internos, como aparelho digestivo e urinário, eram frutos de várias cirurgias reconstrutivas funcionais e estéticas. Ou seja, como costuma dizer Luis Kancyper, poderia ser considerado um “sobremorrente”. Ele era o gêmeo vivo de uma dupla de xifópagos que havia sido separada com algumas semanas de vida. Para que ele vivesse, seu irmão teve de morrer. Levei muitos anos para escrever sobre esse caso, tanto devido ao sigilo quanto em função de meus sentimentos contratransferenciais. O que lembro de Celso é que ele não era um “sobremorrente”, e sim um “sobrevivente”. Se em seu corpo faltavam pedaços, em seu mundo interno sobravam fantasias, desejos, questões. Muito inteligente, aprendeu a ler e escrever naquele ano. Um pedagogo ia a sua casa e trabalhava com ele no computador. Também freqüentava uma clínica de fisioterapia, três vezes por semana, e aí era seu único contato com crianças de sua idade. Em sua caixa de jogo, havia um cachorrinho peludo e pequeno, alguns carrinhos, cordão, pedaços de pano, papel, lápis, tesoura e cola. Celso já fazia psicoterapia desde muito pequeno. Sua terapeuta mudou-se de cidade e eu fui convidada por ela a seguir com o caso. Fizemos muitas reuniões, eu, minha colega e sua supervisora. Optamos por uma passagem gradual e o mais cuidadosa possível, pois imaginávamos o que significaria para Celso essa separação. Fizemos sessões conjuntas eu, ela e Celso. Também eu, minha colega e os pais de Celso. Celso brincava com cordões. Fazia e desfazia nós. Cortava cordões com tesoura. Naquela situação de passagem, trabalhávamos a separação da antiga terapeuta e o início da relação comigo. Celso tinha dificuldades em Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 153 Rosana Igor Rehfeld III – Gemelaridade e Prática Clinica DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA – A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE expressar raiva e mesmo tristeza. Minha colega assinalou a separação de Celso de seu irmão gêmeo, e o medo que este estava de que ela morresse como o irmão. Combinou com o menino de mandar-lhe cartões de sua nova cidade e que, se ele quisesse, poderiam manter uma correspondência para que ele ficasse tranqüilo de que ela se mantinha bem de saúde. Durante os três anos em que trabalhei com ele, Celso não permitia que falássemos diretamente do irmão gêmeo que morreu para que ele continuasse vivo. Esse luto da antiga terapeuta suscitou o antigo luto que aparecia em desenhos de “dragões de duas cabeças”, “caixas pretas e pequenas que eram enterradas num jardim e se transformavam em raízes perigosas que poderiam pegar o pé do menino que dormia naquela casa”. Eu tentava interpretar os desenhos de Celso com outros desenhos. Por exemplo, juntos cortamos muitas vezes as cabeças dos dragões, fazíamos caixas e enterrávamos no fundo de sua caixa de jogo. Fazíamos um “teatro” do enterro no qual chorávamos, e ele dizia: “só de brincadeira... só de brincadeira”. Depois de um tempo de análise comigo, Celso passou a desenhar personagens e suas sombras. No início, as sombras eram muito grandes, maiores do que seus donos. Com o tempo, as sombras foram diminuindo até sumirem. Também o jogo infantil de esconde-esconde era muito utilizado por Celso para expressar suas emoções mais primitivas, ainda que o deslocamento do menino pelo chão do consultório se fazia difícil. Certa vez, perguntei-lhe: O que será que tu procuras Celso? Ele respondeu: “o outro Celso!” Depois dessa fala, tratou logo de mudar de jogo, não permitindo que eu lhe falasse nada e não voltando a brincar de esconde-esconde. A mãe de Celso era muito resistente a ter sessões comigo, dizia que trazia o Celso mas não gostava muito de conversar. Penso que a separação da antiga terapeuta foi vivida por ela como um novo trauma, que atualizava a perda do outro gêmeo. A mãe acabou encerrando a análise de Celso prematuramente. Não tolerou o fato de eu e a equipe que trabalhava com ele termos conseguido uma escola pública que aceitou Celso com toda a sua 154 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 IV – Conclusão Para Winnicott, a gemelaridade é uma desvantagem inata. Kancyper também concorda que a condição de gêmeos tem uma potencialidade traumática, à medida que esta é uma condição existente desde a “entrada” na vida. No entanto, ambos os autores concordam que a condição especial de gêmeos só se constituirá traumática à medida que as crianças e seus pais não puderem transitar pela mesma com espontaneidade. O principal é que os pais enalteçam as diferenças, em vez das semelhanças, entre os filhos. Com relação à abordagem terapêutica de gêmeos, esta não supõe modificações na técnica. Resulta evidente, entretanto, que a situação de gêmeos deve ser considerada um fator relevante, relacionada com um singular complexo fraterno, mas não como o único fator, e sim como outro entre os diversos fatores determinantes. Kancyper (2002, p. 24) alerta que o importante é que o paciente e seu analista não convertam a situação inicial de gêmeos em uma categoria particular, com o risco de criar-se um tipo de “subidentidade de excepcionalidade”. A valorização excessiva dessa “subidentidade gemelar” poderá assumir um teor defensivo, através do qual o sujeito se arma e se esconde, como uma “condenada vítima” credora de um pré-fixado e imutável destino. Isso determinaria um caso de fracasso do tratamento analítico. Sinopse Devido ao aumento do número de gestações múltiplas na atualidade, fruto da reprodução assistida e da evolução da ciência, a autora faz uma breve revisão da literatura psicanalítica a respeito da gemelaridade e ilustra com material clínico. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 155 Rosana Igor Rehfeld deficiência. Só aceitaria se pudesse acompanhá-lo todo o tempo. Não estava preparada para deixá-lo ir e enfrentar a vida. Ela era o “outro Gêmeo”, tinha com o filho uma ligação siamesa. Tirou, assim, Celso da análise. DE ESAÚ E JACOB À REPRODUÇÃO ASSISTIDA – A GEMELARIDADE À LUZ DA PSICANÁLISE Summary From Esau and Jacob to in Vitro Fertilization – Multiple Births in the Light of Psychoanalysis The increasing number of multiple pregnancy in our days is a result of techniques of fertilization and science evolution. The author gives us a short revision of psychoanalysis literature about twins. Sinopsis De Esaú e Jacob a la Reproducción Asistida – La Gemelaridad a la Luz de la Psicoanálisis Debido al aumento del número de gestaciones múltiples en la actualidad, fruto de la reproducción asistida y de la evolución de la ciencia, la autora hace una breve revisión de la literatura psicoanalítica al respecto de la gemelaridad e ilustra con un caso clínico. Palavras-chave Gêmeos; Duplo; Complexo fraterno. Key-words Twins; Double; Fraternal complex. Palabras-llave Gemelos; Duplo; Complejo fraterno. Referências BACEIRO, AMV . (1991) Narcisismo y gemelaridad, una história de amor. In______.: Gemelos, narcisismo y dobles, Buenos Aires: Paidos, 2000. BRAIER, E. (Comp.) Gemelos, Narcisismo y Dobles. Buenos Aires: Paidos, 2000. FREUD, S. (1895). Projeto para uma psicologia cientifica. In:______. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro, v. 6, 1969. ______. (1919) O estranho. In:______. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro, v.17, 1969. ______. (1920) Além do princípio do prazer. In:______. Obras psicológicas com156 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Dra. Rosana Igor Rehfeld Rua Santa Clara, 50/817 22020-000 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Fone: (0xx21) 3683-0046 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 157 Rosana Igor Rehfeld pletas. Rio de Janeiro, v.18, 1969. KANCYPER, L (1992). Ressentimento e remorso, estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994. ______. (1995) Complexo Fraterno y complexo de Édipo. In:______. Gemelos, narcisismo e dobles. Buenos Aires: Paidos, 2000, p. 43-59. ______. (2002) Jacob y el Talon de Esaú, El complejo fraterno em la mitologia. Jornada do Centro de Estudos Atendimento e Pesquisa da infância e Adolescência (CEAPIA). Artigo não publicado. KAUFMAN, M. Crepúsculo dos Deuses. Fórum do Círculo Psicanalítico, Rio de Janeiro, 2003. Artigo não publicado. 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Neville Symington Membro Titular da Sociedade Psicanalítica Britânica; Membro Titular da Sociedade Psicanalítica Australiana. Faz pouco mais de quatro anos que John Klauber faleceu. Acredito que ele deu uma contribuição muito importante para a psicanálise, mas mesmo assim tenho um sentimento de que essa contribuição é subestimada e que, de fato, está ameaçada de desaparecer sem ser conhecida. Ele pode ser parcialmente responsável por isso, pois era um homem modesto e não pretendia inovar em outras bases, da mesma maneira como fizeram Balint e Winnicott. Sua contribuição, entretanto, foi naquela área da psicanálise que para todos os clínicos é a mais importante: a prática clínica da psicanálise. Por ser um homem profundamente ponderado, suas inovações técnicas foram embasadas em uma estrutura Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 159 Neville Symington John Klauber, um Clínico Independente JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE teórica. Quero começar olhando para sua prática e, então, passar para sua fundamentação teórica e terminar mostrando como as duas estão estreitamente interligadas. Fui analisado por John Klauber. Cheguei a ele muito doente, num estado de desordem interna e externa, e emergi da análise cerca de sete anos e meio mais tarde como uma pessoa diferente. Embora tenha contribuído para esse resultado, sei que sua mediação no processo analítico foi bastante vital. Durante anos tive momentos ociosos e tentei descobrir aqueles elementos que pareciam decisivos para um resultado terapêutico bem-sucedido. Classifiquei esses elementos em três títulos: ortodoxo, heterodoxo e neutro. Pode parecer supérfluo falar sobre o ortodoxo, e recentemente passei a acreditar que em algumas vezes as questões sobre as quais mais falamos são aquelas que na realidade praticamos. Assim, desde o início da análise até seu final, Klauber interpretou a transferência. Muito raramente falou sobre o que eu estava fazendo para ele, mas procurou pelas suposições subjacentes o que eu tinha sobre ele. Bem no início da análise, colocou em palavras como me sentia em relação a ele. Penso que tecnicamente foi extremamente importante que ele não repudiasse minhas suposições sobre ele, seja pelo seu tom quanto por palavras. De forma bastante simples ele interpretou as fantasias da transferência. Não dizia que essa era uma forma incorreta de vê-lo. Durante longo tempo pensei que isso era o que todos os analistas faziam; que isso era o que significava interpretar a transferência, embora eu tivesse percebido que não era o que muitos analistas queriam dizer. Ouvi muitas apresentações nas quais o analista aponta o que o paciente está fazendo para o analista, a maneira como o paciente está tratando o analista, ou se, para abreviar, for feita uma interpretação de Klauber, o analista logo aponta para o paciente o erro de seus caminhos e como ele está percebendo erroneamente a situação. Vou dar um exemplo muito simples do que quero dizer. Em uma apresentação clínica, ouvi um colega que relatou como seu paciente dizia que ele (o analista) era um freudiano rígido. Ele repudiava essa acusação e apontava o quanto se adaptava e era 160 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 161 Neville Symington flexível. A versão de Klauber daquilo que poderia ser era observar o que o paciente sentia sobre ele e fazer uma interpretação que deixasse o paciente livre para dizer que era um freudiano rígido. Ele não sugeriria ao paciente que estava percebendo erroneamente a situação. Klauber acreditava que eu pensava que, se o analista suportasse essas percepções errôneas durante um período razoável, os impulsos dos quais elas eram derivadas se modificavam. Desse modo, penso que alguém poderia conceituar o método de Klauber dizendo que ele desempenhava o papel do container para as projeções do paciente na fase inicial da análise, especialmente do modo como Bion disse que a boa mãe faria para seu bebê. Após um período razoável, ele favoreceria a desilusão do paciente do mesmo modo como Winnicott disse que a mãe deve desiludir o seu bebê. No caso de ser mal compreendido quando utilizo a expressão “período razoável”, talvez devesse dizer que no meu caso, especialmente com as fantasias mais profundas, eu as interpretaria regularmente, mas somente iniciaria a desilusão após cinco ou seis anos. Acredito que essa sua capacidade de conter uma transferência durante vários anos foi profundamente terapêutica. Creio que esse foi o meu caso; eu não queria discutir o que seria para todos. Durante meu período como analista, supervisionando, sendo supervisionado, ouvindo estudos, escutando apresentações clínicas, eu não ouvi de um analista que ele contivesse a transferência como Klauber fez comigo, nem ouvi uma apresentação na qual um analista interpretou a transferência de modo tão consistente como o fez Klauber. Na interpretação da transferência, ele deu atenção especial à transferência negativa. Novamente, não apontou minhas atitudes negativas em relação a ele, mas interpretou de forma consistente as imagens negativas como direcionadas a ele. Aquilo que freqüentemente é descrito como a interpretação da transferência negativa é uma condenação velada dos impulsos hostis ou agressivos para com o analista. Existe uma grande diferença entre o analista que diz, depois que uma paciente falou depreciativamente de alguém chamado John Smith, “Você está zombando de mim de modo velado”, e o analista que diz “Penso que os sentimentos que você JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE está expressando para com John Smith se referem, na realidade, a mim”. A primeira afirmação pode facilmente ser sentida pelo paciente como significando: “você não deveria estar zombando de mim”, ou “é injusto de sua parte estar zombando de mim”, ao passo que no segundo caso o paciente pode sentir que esses impulsos hostis podem ser recebidos pelo analista. Meu sentimento completo sobre Klauber foi de que eu havia sido recebido totalmente por ele. Penso que é provavelmente significativo nessa conexão que faço de não me lembrar de ele ter alguma vez feito uma interpretação do tipo “Há uma parte de você”. Havia um sentido definido do todo de ser recebido totalmente por ele. Nunca tive a sensação de estar sendo mandado embora. Somente me lembro de uma vez em que ele foi momentaneamente defensivo. Interpretar a transferência negativa significa, segundo Klauber, que o analista aceite a concepção equivocada do paciente. Isso é diferente de ser apontado de tal maneira que fique claro que o analista não a está recebendo. Esse é o ponto principal que gostaria de enfatizar sobre a ortodoxia de Klauber. Ele sempre se manteve dentro do tempo de cinqüenta minutos para a sessão, e penso que nunca passou do tempo. Ocasionalmente mudava o horário de uma sessão e raramente cancelava uma. Sempre houve um sentido de confiabilidade nele. Porém, enfatizava os elementos da nãotransferência na organização analítica. Acreditava que o paciente era capaz de escrutinar, com considerável precisão, os fatores da personalidade verdadeira do analista. No estudo “O Psicanalista como Pessoa”, ele diz: Quando o paciente visita o psicanalista para uma consulta, não é somente o psicanalista que faz uma avaliação do paciente – o paciente também tenta fazer uma avaliação do analista. Embora a transferência, que começa a se formar antes da consulta, exerça um papel importante na reação posterior do paciente, a capacidade de seu ego para avaliar não é paralisada, como a análise posterior tende a revelar. Assim como o psicanalista inicia o relatório sobre um paciente descrevendo sua aparência, como ele se movimenta, se veste, o paciente também reúne informações sobre o psicanalista – sua capacidade para res162 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Nessa ligação, ele pensou que, às vezes, seria próprio que um analista reconhecesse a precisão da percepção de um paciente. Uma ocasião disse a ele que imaginava que ele tinha ido para uma escola pública, mas que de alguma maneira não podia colocá-lo como alguém que tivesse estudado em um internato, e ele respondeu bem-humorado que eu não pensasse que ele parecia ser asceta o bastante, devido aos rigores de um internato. Então, ele disse que havia ido a St. Paul, uma das poucas escolas públicas que não é internato. Como acreditava que havia um elemento de não-transferência na relação psicanalítica, ele não pensava que toda a comunicação tinha de ter uma interpretação e, no seu estudo “Elementos da Relação Psicanalítica e suas Implicações Terapêuticas”, diz: “Algumas vezes pagamos um preço muito alto pela sofisticação de nossas técnicas, como por exemplo quando respondermos somente com uma interpretação?” Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 163 Neville Symington ponder, seus gostos e atitudes pessoais como, por exemplo, pelos quadros nas paredes. Alguns psicanalistas parecem considerar isso impróprio e tentam limitar essa efetividade, estabelecendo um ambiente “neutro”. Acredito que a segunda atitude não dá suficiente crédito à inteligência humana e ao inconsciente. Uma mulher, indubitavelmente sofrendo de tendências paranóicas, deu como fundamento para sua recusa em tratar-se com um psicanalista particular o fato de que ela jamais poderia ser analisada por alguém que tivesse decorado seu consultório com tanto mau gosto. A própria paciente possuía uma sensibilidade considerável em relação às artes visuais que tinham sido demonstradas em seu discernimento para as compras. Um psicanalista relatou essa decisão como a evidência mais importante de irracionalidade do paciente. Um segundo pensou que o discernimento que marcava o seu caráter, em alguns aspectos aguçado por suas tendências paranóicas, a fizeram entender imediatamente que um psicanalista com tal gosto para quadros somente a duras penas adquiriria afinidade suficiente com sua própria personalidade para entender isso. JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE Muito freqüentemente ele respondia a uma comunicação minha com uma resposta que não era uma interpretação, e essas ocupavam três diferentes classes. Na primeira classe, no momento, não parecia uma interpretação, mas na realidade o era. A segunda era uma resposta afirmando emocionalmente o momento em que eu tinha dado um passo no desenvolvimento, e a última era uma discussão direta sobre algo. Darei um exemplo da primeira aula, e então vou me referir a um exemplo meu, para então passar aos próximos dois. Durante essa fase da análise, eu estava trabalhando meio turno na Prisão de Grendon, além de Aylesbury, e passava uma ou duas noites por semana no albergue. Assim, por exemplo, eu teria análise em uma manhã de quarta-feira, depois de ver os meus pacientes de formação, e então me dirigiria para Grendon, ficava lá durante a noite e retornava na quinta-feira para ver meus dois casos e ir à análise. Numa ocasião, ele estava apresentando um estudo na Sociedade, a respeito do qual eu não havia feito nenhuma menção, e ele chamou minha atenção para o meu silêncio. Eu me justifiquei dizendo que havia passado a noite fora e que, de qualquer maneira, era uma longa distância a percorrer somente para ouvir uma palestra. Ele simplesmente disse: “Alguns analisandos dirigiriam de mais longe do que isso para ouvir seus analistas apresentarem um estudo”, e riu-se bem humorado. Estava claro que era uma interpretação, embora pensasse que ela somente penetrara algum tempo mais tarde. Penso que o estilo ritualístico de interpretação era algo que ele evitava tanto quanto podia. Para com isso sinto uma total compreensão. Novamente tenho um sentimento tão óbvio e, ainda assim, ouvindo apresentações, sou atingido pelo estilo ritualístico das interpretações, e penso que a dificuldade se dá pelo fato de, por causa dessa forma ritual, muitas interpretações não estabelecerem contato emocional. Gostaria somente de mencionar um exemplo que ocorreu durante o verão com um paciente que estava terminando sua análise no final de julho. Ele optou por antecipar o final do tratamento não continuar comigo até uma data posterior, quando estava encerrando com todos meus pacientes 164 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 165 Neville Symington em preparação para emigração. Um fator para terminar antes de minha partida era que ele sentia que seria um tempo difícil para mim, de dizer adeus a todos os meus pacientes, e ele teve momentos de pânico, quando pensava que ele teria de me apoiar, ou seja, animar o analista triste e deprimido. Quase no final da sessão, eu disse: “Mas, na realidade, eu não preciso de seu apoio”. A partir de experiências anteriores, pensei que isso teria o efeito que realmente teve. Quando ele voltou no dia seguinte, disse que havia percebido isso desde o início, e ele deve ter pensado profundamente que eu precisaria que ele me animasse em minha depressão. Ele continuou dizendo que tudo isso havia sido estabelecido em uma sucessão, e que eu dissera, no dia anterior, que não precisaria dele. Minha afirmação era uma interpretação. Eu também tenho certeza de que, se eu tivesse dito a ele “Você sente que eu preciso de seu apoio”, isso não teria penetrado. Com aquele paciente havia duas razões para isso. Primeiro, se eu tivesse posto isso de forma estilizada, ele sentiria que eu estava favorecendo a “conversa analítica”. E pensaria que eu estava mais preocupado em ser obediente para com uma autoridade do que em preocupar-me com ele. Em segundo lugar, penso que a fantasia de que preciso de seu apoio para minha depressão estava tão arraigada, que se eu dissesse: “Você sente que preciso de seu apoio”, imagino que ele teria ouvido somente as palavras “eu preciso de seu apoio”; se opor à fantasia com um “Não” definitivo fez com que ficasse disponível para alcançar a consciência. Em meu próprio caso, a risada de Klauber comunicava claramente o sentido de que ele dava os ombros para a velha e rabugenta natureza humana, mas se sentia razoavelmente em casa com isso e compartilhava da mesma humanidade maculada. Klauber era muito íntegro, mas apreciava encontrar a corrupção em classes altas, e isso era agradável para mim, que fui educado como um católico. O segundo tipo de comunicação era de afirmação emocional. Como se eu tivesse saído de uma passagem para um novo sentido emocional de coisas que ele invariavelmente afirmava, e acredito que isso era muito terapêutico. Era o equivalente da mãe que sorri de forma encorajadora para o seu bebê quando ele é bem-sucedido num novo esforço. Infelizmente, JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE não posso pensar num exemplo preciso. Sempre teria a sua forma, acrescentando seus próprios comentários, e muito freqüentemente relacionando-os a atitudes sociais. Agora, quero me voltar para o terceiro tipo de resposta, que era quando ele falava diretamente comigo. Desejo gastar algum tempo nisso, porque penso que era o aspecto mais controverso da sua técnica. Klauber freqüentemente falava sobre aspectos da vida, seja a discussão sobre um livro, uma pintura, uma notícia ou uma atitude religiosa ou social. Ele sabia que fazia isso. Quando o desafiei a respeito do que dizia, ele disse que sabia que havia falado muito mais sobre assuntos gerais do que a maioria dos bons analistas. Penso que vale a pena discutir e pensar sobre isso. A conversa sobre muitos tópicos de interesse psicológico e social era claramente consoante com a sua natureza, mas ele também acreditava desempenhar um papel importante no processo psicanalítico. Um aspecto está bastante claro a respeito disso: ele acreditava que a transferência era um processo tão forte que não se romperia pelos tipos de trocas que estou descrevendo. Lembro-me de uma ocasião em que senti que um comentário discursivo foi insensível. Com exceção de um paciente de psicoterapia, nunca tive esse tipo de “conversa” com meus pacientes no mesmo grau que Klauber teve comigo, mas se me pergunto o porquê, tenho um sentimento furtivo de que se devia à falta de coragem de minha parte, pois, quando reflito sobre minha análise com Klauber, meu sentimento é de que essas conversas eram terapêuticas. Não quero dizer que eram terapêuticas em si próprias, mas pertencentes a um padrão, e eram a parte essencial desse padrão. Primeiramente, desejo dar o meu significado à experiência e, então, discutir o embasamento teórico que cercava esse elemento discursivo da análise de Klauber. Até agora tenho falado como se essas incursões discursivas fossem totalmente desligadas do trabalho interpretativo que estava em andamento, e se eu dei essa impressão, foi equivocada. Normalmente eram, embora não sempre, ligadas ao intercâmbio interpretativo. Eu sempre derivei mui166 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 167 Neville Symington ta autocompreensão dos processos de leitura, e meu próprio desenvolvimento emocional foi consideravelmente auxiliado por ela. Quando fazia análise, muito material meu entrou em forma de diálogo com o autor de qualquer livro que eu estivesse lendo. Em uma ocasião, estava lendo “Servidão Humana”, de Somerset Maugham, e não conseguia lembrar-me do ponto específico que cristalizou dentro de mim. Pode ter sido uma satisfação narcisista, ao descobrir a declaração de Maugham de que todos os homens fracos enfatizam de forma exagerada a não mudança da mente das pessoas. Seja lá o que for, lembro-me de Klauber dizer que considerava “Servidão Humana” o maior livro de Maugham. Penso que continuei falando muito sobre “A Lua e Seis Vinténs” e, se me lembro disso corretamente, penso que ele considerava “Servidão Humana” acima do restante de seus livros; embora eu também pensasse se tratar de um grande livro, considerava ainda que “A Lua e Seis Vinténs”, “Cakes and Ale”, “The Summing-Up” e alguns de seus contos tinham o mesmo valor. Acredito que essas conversas tiveram o efeito de unir a psicanálise e as interpretações que ele fazia no entrelaçamento da vida, de forma que a vida e a psicanálise se interpenetrassem. Depois da análise de Klauber, eu, com a maior dificuldade, pude colocar a psicanálise em um compartimento mental e o resto da vida em outro. Essas conversas eram um tipo de dupla livre-associação-interação, com o insight psicanalítico encaixado nas minhas próprias relações e sistema de valores. Penso que Klauber também confiava profundamente no processo psicanalítico e que essas conversas foram geradas devido a isso. Nos últimos anos de sua vida, Klauber dizia com bastante freqüência em Reuniões Científicas que, ao fazer interpretações, o analista precisava lembrar-se do dia em que o paciente deixou o consultório pela última vez. Eu lamento nunca ter-lhe perguntado como esse fator influenciava especificamente a estrutura de seu trabalho interpretativo. Mas minhas conjeturas são as seguintes: ele acreditava que o objetivo da psicanálise era o de promover o desenvolvimento da própria individualidade, da criatividade e da atitude de vida do paciente. Ele também era consciente de que o proce- JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE dimento psicanalítico era o que influenciava sobremaneira o paciente, e que era impossível para este não incorporar algumas das atitudes próprias do analista. Em especial, ele pensava que esse era o caso para o qual o paciente era um candidato à análise, porque o analisado estaria seguindo a carreira de seu mentor e assumindo o mesmo papel em relação a seus pacientes, da mesma maneira que o analista em formação tem em relação a ele ou ela. Por isso ele via como um perigo a identificação de um paciente de psicanálise com a forma particular pela qual ele ou ela haviam experimentado isso. Acreditava que, embora não pudesse existir sem o analista, o processo de psicanálise deveria ser diferenciado das qualidades particulares que inevitavelmente recebe de cada analista individual. Portanto, até o máximo possível, as necessidades dos pacientes devem ser auxiliadas, para que possam diferenciar entre o processo de análise que está sendo fornecido através da ação de muitos analistas com atitudes discrepantes, e o tom particular que está recebendo deste analista em particular. Acredito que era por isso que Klauber favorecia alguma compreensão pelo paciente do analista como uma pessoa com seus próprios preconceitos e atitudes. Minha própria experiência foi a de que essa sua revelação surtiu alguns efeitos benéficos sobre mim. Penso que me ajudou, até certo ponto, a separar a análise de meu próprio analista. O que eu disse até aqui pode não parecer assim, mas na realidade eu discordava e ainda discordo consideravelmente dele a respeito de certas atitudes em termos de técnica psicanalítica (por exemplo: a sua não utilização da interpretação “parte de você”) e de atitudes mais gerais (penso que ele estava mais sujeito a pressões do que lhe parecia necessário). Outro fruto muito importante dessas conversas foi o fato de eu pensar que podia ver algumas áreas, as quais eram improváveis de ele analisar bem. Posso pensar em uma área que não foi de modo algum analisada e eu sentia, daquilo que conhecia de seu caráter, que não era provável que ele tivesse muito êxito nessa tentativa. Considero tal questão verdadeira para todos os analistas, mas penso que suas conversas significavam que isso não estava escondido e, portanto, era mais verdadeiro. Para 168 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Para reduzir a divisão entre o analista da fantasia e o analista preso aos detalhes pelo ego, deve-se buscar constantemente facilitar a integração das duas imagens pela interpretação das percepções repelidas da realidade do paciente e, às vezes, na minha opinião, pelo reconhecimento de sua exatidão pelo analista. Klauber acreditava ser necessário permitir que aspectos reais do caráter do analista emergissem no tratamento, especialmente no seu final. Diz isso de forma muito óbvia em seu estudo “Uma Forma Especial de TransSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 169 Neville Symington Klauber foi a verdade que curou. Na introdução de seu livro “Dificuldades no Encontro Analítico”, ele diz: “Acredito que a verdade é o grande corretivo, através do qual, com a ajuda do analista, os pacientes se curam”. Suponho que todo o analista tem áreas que considera que devam ser analisadas em especial. Klauber foi especialmente resoluto ao analisar a paranóia e a concepção paranóica. Penso que ele achava que grupos paranóicos eram especialmente prejudiciais à vida social, que ele acreditava que a paranóia sempre se mascarou debaixo de uma fachada de idealização, e ele lidou com tendências de idealização em todas as frentes. É lógico que reconheceu que alguma idealização é necessária à vida, e que as ilusões e os sonhos de um homem são fator motivador poderoso, mas, se ele detectasse alguma crença na imagem idealizada, ele a atacava. Em especial, ele atacou qualquer idealização de sua pessoa ou da psicanálise. Aqui novamente está o paradoxo: ele acreditava profundamente na psicanálise. Mas acredito que essas “conversas” e admissões sobre si contribuíram consideravelmente para a redução da paranóia. Se o analista conspira para a imagem de parte-objeto de seu paciente, ele conspira para as fantasias paranóicas do paciente. Fantasias paranóicas são a cunhagem de uma estrutura de relação parte-objeto. Se o analista é uma parte para o paciente, as fantasias paranóicas permanecem, e somos coniventes com elas. Por isso Klauber acreditava que as percepções reais, mas negadas do analista, deveriam ser interpretadas. No estudo “Elementos da Relação Psicanalítica e suas Implicações Terapêuticas”, ele diz: JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE ferência na Depressão Neurótica”, e eu penso que vale a pena citá-lo por inteiro: A liberação da agressão no contexto amoroso resulta em uma diminuição da distância entre as auto-imagens e as objeto-imagens. As objetoimagens já não parecem tão inacessíveis. Isso permite que o paciente se sinta mais livre para avaliar o caráter do analista. Ele procura as suas fraquezas e, desse modo, procura testar a realidade de suas autoimagens contra a realidade ou, de outra forma, das objeto-imagens onipotentes. Portanto, é necessário para o teste da realidade e para a cura do paciente deprimido que esse processo não seja reprimido. Ele precisa confiar no seu teste da realidade e ter permissão para ratificar tais fraquezas reais quanto à competência e personalidade do analista, conforme pôde observar. Somente se ele puder ver que o analista está sinceramente preparado para as reconhecer, e, caso tenha de confrontar com elas, admiti-las, poderá ganhar a confiança necessária para tolerar as partes degradadas da sua própria personalidade. No caso característico, o paciente trará diretamente essa agressão e confrontará o analista com muitas de suas dificuldades mais dolorosas. Em minha opinião, é um erro interpretar tais confrontações, em termos de transferência, sem primeiro reconhecer a possibilidade da realidade. Isso pode ser sumamente doloroso, e acredito que a maioria dos analistas terá se deparado com tais experiências. Ao mesmo tempo em que o paciente traz abertamente algumas das fraquezas do analista, ele também traz outras de forma dissimulada. É essencial que o analista observe as implicações escondidas, dolorosas para ele na transferência do paciente, e não deve hesitar em interpretá-las. Novamente, isso não será meramente doloroso, mas até certo ponto impossível, e o analista também deve evitar o perigo de uma confissão masoquista. Mas à medida que ele as reconhecer, uma interpretação corajosa dos pensamentos secretos do paciente se faz necessária, se o paciente tiver que deixar o analista com uma confiança que o faça buscar suas ambições, apesar de suas deficiências. 170 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 171 Neville Symington Nesse contexto fica claro que Klauber não acreditava que qualquer analista era capaz de analisar tudo e complementa que uma segunda análise sempre revela coisas que o paciente não sentia, ou que não podia dizer ao analista anterior. Antes de deixar essa área por mim denominada heterodoxa, darei apenas alguns exemplos. Eu nasci e me criei na cidade do Porto, em Portugal, e meu pai, tios e a maioria dos amigos da família trabalhavam no comércio de vinho do Porto. No início de minha análise, falei bastante sobre o Porto. Um dia, disse a ele que me parecia que ele era bastante parcial quanto ao Porto, o que ele reconheceu entusiasticamente. Em outra ocasião, conteilhe que meu pai sempre gostou de piqueniques no estilo português: isto é, com mesas, cadeiras etc., e ele disse imediatamente que era assim que um piquenique deveria ser. Ele também era bastante claro a respeito de certos aspectos de convicções religiosas, e assim por diante. Também falou muito sobre uma pintura de Lhote que estava em sua parede. Minha impressão era a de que tudo isso não diminuía as fantasias de transferência de forma alguma, e na realidade penso que o autorizei a interpretar diferenciações mais sutis da transferência, o que não ocorreria de outra forma. Ele tinha, porém, uma falha que eu penso séria: às vezes ele não continha uma ansiedade e reagia. Penso que isso era melhor do que adornar a reação com o traje interpretativo, mas conter a ansiedade teria sido melhor. Não acredito que essa falha sua estivesse necessariamente ligada às suas “conversações”, mas penso que se originavam de alguma outra dificuldade sua. Uma pergunta válida sobre esse aspecto de sua técnica seria: Como o analista decide, face à comunicação de um paciente, se deve interpretar ou responder de algum outro modo? A única resposta é de que isso depende inteiramente da percepção-apreciação do próprio analista. A percepçãoapreciação é a única coisa que o analista tem para confiar. Na falta disso, são invocados regras e princípios. Como você pode educar alguém na percepção-apreciação? Um superego forte enfraquece a percepção-apreciação. Penso que um sentimento de reciprocidade auxilia a dar origem à percepção-apreciação. Apegar-se a regras ou teorias são manifestações daquilo JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE que penso que Bion denominou de elementos beta. A capacidade de utilizar a percepção-apreciação é uma manifestação da função alfa. Entendo que, freqüentemente, analistas e supervisores intensificam o superego interior e ajudam a enfraquecer a percepção-apreciação. Quero mencionar aqueles aspectos do estilo de Klauber, os quais penso serem terapeuticamente benéficos. Só vou me referir a três coisas. A primeira era sua absoluta imparcialidade, e isso surgia em todos os seus relacionamentos. A segunda era que ele não fazia uma “grande” interpretação até que aquilo que ele desejava dizer estivesse claramente cristalizado. Não era possível persuadi-lo de alguma coisa. Se ele não tivesse cristalizado internamente, seria desperdício de tempo. A terceira coisa era sua convicção de que a verdade era suprema e que a psicanálise deveria servir à verdade, ou seria nada; não que ele detivesse a verdade, mas servia a ela. Em tudo o que tenho dito, tenho transmitido alguma coisa de minha experiência com ele e conjeturas sobre por que ele analisava daquela maneira. Desejo agora discorrer sobre aquilo que tenho dito e, em especial, sobre suas “conversações” no contexto de sua teoria de análise como um processo de pranto e des-traumatização. Na realidade, Klauber diz que um trauma ocorre quando um paciente entra em análise: quando ele deita no sofá e deixa a presença do analista longe de seus olhos, perdendo o contato com a resposta gestual e facial do analista, e se volta para as suas imagens internas arcaicas e é subjugado pelo analista da fantasia. Klauber insiste que a primeira exigência de técnica analítica é facilitar a capacidade do paciente de comunicar seus sentimentos e pensamentos de maneira tão completa quanto possível. Klauber pensava que pensamentos secretos freqüentemente são abrigados pelo paciente, e que isso explica a freqüente e violenta revolta das pessoas para com a análise algum tempo depois que terminou. Se o paciente também estiver dominado pelo analista da fantasia, bloqueará a capacidade do paciente de comunicar sentimentos e pensamentos. Klauber pensava que a qualidade traumática da situação analítica não podia ser mitigada somente através da interpretação. Penso que aqui Klauber estava tentando encorajar os analistas a não se comportarem de 172 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 173 Neville Symington maneira inusitada, mas a serem tão naturais quanto possível. Se você caminhar por um corredor em Tavistock e olhar para os consultórios, você imediatamente detectará aqueles analistas ou terapeutas que estão esperando por um paciente. Há uma rigidez na postura e na atitude. Isso só pode ter o efeito de endurecer também a atitude do paciente. Klauber acreditava que o trauma do paciente poderia ser aliviado pela receptividade e pela interpretação. O paciente somente pode prantear efetivamente seu analista se puder avaliar seus reais atributos e lentamente separar essas fantasias que projetou no analista de suas reais percepções a respeito do mesmo. Quando o paciente vivenciou a experiência do analista que contém essas projeções, ele poderá reintegrá-la de forma modificada. Ele pode deixar o analista como um homem mais ou menos comum e administrar suas próprias fantasias no futuro. Quando penso sobre minha experiência de ter sido analisado por Klauber, e a diferença entre o antes e o depois, penso essencialmente que parece que tenho dentro de mim um tipo de amortecedor que pode lidar com uma maior quantidade de ansiedade do que antes. Penso que o método de Klauber permite que o paciente chore pelas ilusões e fantasias em face de um analista realmente bom. Dessa maneira, o processo de destraumatização e de luto são partes do mesmo processo. Na realidade, o paciente normalmente resiste de forma muito violenta ao processo através do qual o analista procura desmamar o paciente de longas e estimadas ilusões e fantasias. No início da análise, o paciente mergulha profundamente em um mundo narcisista, e o analista retira-o através de sua receptividade e interpretações. Nesse aspecto há uma semelhança entre a visão de Klauber e a de Fairbairn, expressa em seu estudo de 1958, no qual afirma que faz parte da tarefa do analista colidir com o mundo interior narcisista. Em seus últimos anos, Klauber começou a questionar a necessidade do sofá. Novamente, penso que isso fazia parte da des-traumatização e de forçar mais ativamente o paciente a chorar por suas ilusões. Ele não era a favor de análises muito longas. Quero enfatizar três coisas. Posso ter dado a impressão de que Klauber suavizou a vanguarda da análise. Não foi isso. Seu objetivo era falar a ver- JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE dade, e esse era seu guia central. Nunca deixou o sentimentalismo perpassar as coisas, muitas vezes terríveis, que tinha que dizer. Acredito que, como ele sabia que teria coisas muito dolorosas a dizer, procurava assegurar um ambiente analítico apropriado para que isso fosse emocionalmente recebido. Em segundo lugar, o foco na transferência, juntamente com sua receptividade (da qual as “conversações” faziam parte), trouxe uma experiência muito rica, e entendo que, no final das contas, esse foi o fator transformador. Por último, percebo que mudei mais após terminar a análise do que durante, e penso que esse é um testemunho de eficácia de seu método, orientado para o dia quando o paciente deixasse o consultório pela última vez. Estabelecer contato emocional era mais importante do que fazer interpretações. Você não pode dizer a um aprendiz como estabelecer contato emocional. Pode-se imaginar a cena na qual um aprendiz pergunta para o analista experiente como estabelecer contato com Joseph, paciente desse analista. O analista explica ao aprendiz o que dizer e fazer, e os olhos deste se iluminam com um flash de entendimento. Ele vai embora satisfeito, pois parece que a coisa funciona com Joseph. Mas ao tentar o mesmo com Mary, as coisas ficam piores. Assim, ele corre até outro supervisor, e este diz: “Diga isso a Mary”, e, que maravilha, isso funciona tão bem, que ele tenta com Tom, e Tom cai em uma depressão catastrófica e abandona a análise e começa a beber. Penso que vocês entenderam minha idéia. Travar um contato emocional só e possível quando vindo de um só lugar: do centro criativo de cada indivíduo. Por isso, Klauber enfatizava a espontaneidade. A espontaneidade, para diferençar de impulsividade, emerge do ego livre dos ditames do superego. Claro que dizer que a espontaneidade é essencial para a análise é o mesmo que um terrível obstáculo para qualquer comissão envolvida na formação de um estudante, porque, por definição, é algo que está totalmente fora de seu controle; é algo para o qual não se pode legislar. Que escândalo para uma comissão cujo amor-próprio está tão ligado ao estabelecimento de ordens para os outros! A espontaneidade é uma qualidade essencial em um analista, e 174 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 175 Neville Symington Klauber menciona que, às vezes, quando ele estava começando a interpretar, uma outra se interpunha. Ele recomendaria seguir aquela que surgia no último momento. O próprio ato de falar pode, muitas vezes, evocar um insight na mente do analista. É por isso que Klauber acreditava numa fala mais livre com o paciente do que aquela que seria habitual em uma análise clássica. Ele pensou, seguindo Ferenczi, que, se o analista permanecer muito separado, ele freqüentemente repetirá o trauma original – o de uma criança com um pai muito distante. Se o analista fizer isso, ele estará “atuando dentro” e assumindo o papel do pai no trauma original. Ele pensava que o início de uma análise era um trauma para o paciente, e que o analista des-traumatizava o paciente através da interpretação, permitindo que o paciente fizesse identificações parciais com o analista. Ele acreditava na espontaneidade do analista e na auto-expressão máxima do paciente. Por exemplo, às vezes, ocorre que um paciente que alcançou um certo desenvolvimento se sinta brabo e hostil para com aqueles pelos quais foi escravizado, e também que esse paciente exiba uma extravagância onipotente, surgida de uma liberdade recentemente encontrada. Klauber acreditava ser melhor deixar essa auto-expressão correr seu curso normal do que saltar sobre ela. Assim, acreditava que a onipotência se tornaria mais bem integrada na personalidade. Era absolutamente contra forçar seu ponto de vista para com o paciente. Ele não pensava que necessariamente sabia qual era a melhor maneira de viver a vida. Certa ocasião, um jovem analista começou a ver um paciente que, anteriormente, fizera terapia em várias ocasiões. A história do paciente mostrou que era provável que ele não ficaria muito tempo em tratamento. O analista disse: “Ele não está levando o seu tratamento a sério”; Klauber respondeu: “Ele provavelmente abandonará novamente o tratamento, voltará a ele, e abandonará novamente”. O analista jovem disse: “Mas você não pensa que essa atitude é errada?”; Klauber respondeu: “Essa é a vida dele, não é a sua”. É nesse contexto de espontaneidade e liberdade que o contato emocional mais profundo acontece, porque abre as áreas de devaneio no analista e o paciente estimula isso através de sua própria expressão livre. A rigidez é JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE sempre uma defesa contra uma área psicótica dentro da personalidade, e significa que essa área não está disponível para estabelecer contato com o paciente. Freud recomendou “atenção flutuante livre”; Bion recomendou o “estado de devaneio”; e Klauber recomendou a espontaneidade, que é quase um sinônimo. Eu digo “quase”, porque penso que a troca na conversação está incluída na palavra “espontaneidade”, e que está ausente nas outras duas. Espontaneidade era tão importante a Klauber, que ele pensava ser melhor para o analista dar expressão às coisas do que se retrair. Isso o levou a falar com seus pacientes mais do que era necessário. Falava sobre vários tópicos que não eram estritamente necessários. Em si mesmo, isso não era prejudicial, mas, às vezes, interferia na continuidade do momento analítico. Desse modo, ele também reagia muito à ativação não-verbal do paciente sobre o analista, em vez de suportá-la e então analisá-la. Acredito que ele ampliou demais a estrutura necessária para a espontaneidade, mas estou seguro de que foi um erro no lado direito da linha que divide a rigidez e a liberdade de ação. Para estabelecer contato emocional com o paciente, é necessário ser tão aberto quanto possível. Se um paciente intuísse corretamente alguma coisa sobre o analista, ele acreditava que, reconhecendo-a, ajudaria a reparar a divisão na mente do paciente entre o analista da fantasia e o analista real. Caso recusasse isso pelo seu tom de voz, pareceria estar traindo um pré-conceito. Dessa maneira, um paciente poderia sentir que seus ataques podiam ser realmente sustentados pelo analista. Fica tão claro em suas apresentações que os analistas não são capazes de administrar ataques destrutivos de seus pacientes, especialmente quando eles vêm na forma de identificação projetiva considerável. Essa falta de defensiva, que é tão essencial para que o contato emocional seja estabelecido, pode permitir que o analista “esteja” com o paciente. Os pacientes sentem que há uma reciprocidade no trabalho, e isso fortalece o próprio ego do paciente e aumenta sua auto-estima. Klauber acreditava que as interpretações eram cruciais. Elas consolidavam o processo e colocavam dentro da personalidade uma boa 176 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 177 Neville Symington estruatura. Uma vez acontecido o insight, a personalidade estrutura-se de maneira diferente, não se podendo retornar ao estado anterior das coisas. Klauber pensava que somente teriam um verdadeiro significado e seriam efetivas se fossem a expressão de um acontecimento emocional alcançado. Agora a pergunta é “Por que Klauber não criou uma teoria para estruturar seus conceitos?” Na sua quinta e inacabada conferência, ele diz: “Eu esboçarei superficial e tendenciosamente algumas das tendências no desenvolvimento de nossa teoria, indicando o impasse ao qual elas conduziram”. Ele estava insatisfeito com a teoria clássica recebida, e permanece um ponto de interrogação sobre se ele teria tentado criar uma teoria nas suas conferências posteriores. De alguma maneira, duvido disso. Ele era crítico da teoria e da técnica recebidas. Pensava que era demasiado reducionista. Pensava não ter dado importância suficiente aos elementos pessoais na ligação entre analista e paciente, e que o centralismo do contato emocional não tinha, teoricamente, seu próprio lugar. Então, por que ele não forjou uma nova teoria? A resposta para essa pergunta deve estar em algum elemento de sua personalidade. Em cada indivíduo existe uma luta entre o indivíduo e o coletivo, como enfatizou Jung. John Klauber sentia que podia ser espontâneo com segurança, contanto que respeitasse a sociedade da qual ele era parte e sua voz interior. Era muito consciente desses seus dois lados e expressou isso numa série de ocasiões. Acreditava profundamente na importância de escutar a luz interior e, certa feita, disse que pensava que aqueles que tiveram uma educação Quaker tinham potencial para serem bons psicoterapeutas; por outro lado, respeitava o grupo, o coletivo. Isso se manifestou na exagerada admiração pelo gênio de Freud. Uma vez, disse que nós, analistas, estamos todos trabalhando sob a sombra de um gênio. Parece que se opunha a adulterar as teorias do fundador da psicanálise. Ele reconhecia os enormes avanços ocorridos desde Freud, mas pensava que ninguém havia proposto uma substituição plausível para a sua metapsicologia, e não gostava das tentativas de alterá-la. Em uma ocasião, o Dr. Denis Duncan apre- JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE sentou um estudo em uma reunião científica na Sociedade Britânica, no qual tentava moldar novamente a teoria dentro da forma do conhecimento intersubjetivo, sabendo que Klauber o criticara por estar “remendando a teoria”. Ele não gostava do livro de Ellenburger sobre o Inconsciente, porque pensava que degradava injustamente Freud. Suspeito que ele achava que nenhum de nós, comuns mortais, poderia alcançar as profundezas da mente de Freud e, por isso, era um engano “remendar” sua teoria. Era como se sentisse que era melhor para todos nós aceitarmos a herança que Freud nos deixou, até que alguém de sua estatura surgisse. Klauber se conhecia bem, o que significa que conhecia suas limitações. Estava insatisfeito com a teoria e a técnica às quais estava ligado. Criticava vigorosamente isso, mas parece que temia mudar a teoria. Estava preparado para conduzir o seu approach pessoal junto aos pacientes e justificar sua posição. Talvez é por isso que não estava disposto a fundar uma nova escola teórica dentro da psicanálise. Nisso ele se assemelhava a Ferenczi, a quem admirava, e também a Balint e Winnicott. Nisso ele era o epítome do Grupo Independente de analistas dentro da Sociedade britânica. Os sócios desse grupo são contra fundar escolas. Freud se sentiu traído quando Jung discordou de uma das doutrinas centrais de sua teoria. De um modo semelhante, Melanie Klein se sentiu traída por Paula Heimann. Isso só pode significar que a teoria é sentida como a sua criação, e criticá-la é um ataque pessoal. Eles sentem-se tão suscetíveis quanto Miguel Ângelo, quando um dos cardeais criticou suas figuras nuas na cena do julgamento na Capela Cistina. Mas há um elemento adicional naquele Freud que quis moldar a atitude mental de seus seguidores de acordo com seus próprios conceitos, e sob esse ângulo Melanie Klein fez o mesmo. Agora talvez possamos entender algo do dilema de Klauber. Se ele forjasse uma nova teoria, ele iria contra um de seus próprios princípios mais profundos: é um bem para os indivíduos acharem a sua própria expressão pessoal livre. Com tal visão, como você pode querer forjar os outros segundo sua própria imagem e semelhança? Esse é o dilema da pessoa que abraça a liberdade de forma profunda. Esse foi o dilema 178 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Comentário Penso que dois dos princípios de mais valor de Klauber que eu guardei foi seu respeito instintivo pela liberdade do indivíduo e seu dictum não declarado que o primeiro trabalho do analista é o de estabelecer contato emocional com o paciente. Eu parafrasearia a última para: “estabelecer uma relação com o paciente”. Digo isso porque penso que “estabelecer uma relação” ou “formar uma amizade” não é uma capacidade que todos têm. Essa habilidade para a comunicação é formada muito cedo na infância, mas freqüentemente não cria raízes. Alguns psicanalistas e psicoterapeutas sofrem esse dano, e “fazer uma interpretação” se torna um mecanismo compensatório para substituir a inabilidade para estabelecer uma relação. Assim, olhando para trás, vinte anos após a morte de Klauber e dezesseis anos após este estudo, minha conclusão é que ele conseguia estabelecer uma relação de um modo profundo, mas não entendeu suficientemente como a idealização e a paranóia ocorriam. Interpretou o fato que Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 179 Neville Symington de Klauber, como também foi o dilema daqueles que acreditam na liberdade pessoal. Isaiah Berlim, em seu livro “Against the Current”, exemplifica alguns pensadores dentro da tradição européia de idéias que se fixaram contra os grandes sistemas de pensamento monocausal: Vico, Herder, Montesquieu e outros, mas seus nomes nunca serão tão famosos quanto os de Descartes, Karl Marx ou Freud. Parece então que estar individualmente casado com a liberdade pode significar “vivendo dentro da sombra de um gênio”; que é necessário ser um seguidor para ter uma vida interna e interpessoal, porque ser o escultor das vidas de outros é intolerável para quem acredita na liberdade. Mas isso deixa uma ferida no centro de seu ser. Rousseau sentia esse dilema, quando dizia exasperado que: “Os homens devem ser forçados a serem livres”. Mas penso que pode ser que aqueles que sentem essa ferida no centro de seu ser são os que têm capacidade para curar. Klauber era um curandeiro muito bom. Ele ficaria satisfeito com este epitáfio. JOHN KLAUBER, UM CLÍNICO INDEPENDENTE minha percepção dele ou de outros foi idealizada, mas não foi capaz de iluminar as correntes emocionais que deram origem à idealização e à paranóia. Teve a habilidade para estabelecer uma relação, mas não teve as ferramentas necessárias para analisar essas emoções, que deram origem aos mesmos fenômenos que ele estava ansioso para analisar: a idealização e a paranóia. Assim ele podia estabelecer a relação, mas não podia analisar as atividades emocionais que eram responsáveis pela geração da idealização e da paranóia. Foi capaz de observar a presença desses fenômenos, mas não pôde analisar suas estruturas. No princípio, pensei que essa deficiência era peculiar a ele, mas mais tarde percebi que era algo que ele compartilhava com todos os membros do Grupo Independente no qual ele e eu fomos educados: a área da personalidade denominada psicótica, pré-edípica, arcaica ou primitiva. Eu acreditava que os kleinianos entendiam dessa área da personalidade e, depois de me qualificar como analista, participei de seminários clínicos quinzenais com Herbert Rosenfeld e aprendi muito sobre essa área com ele. Os kleinianos reivindicam para si o conhecimento dessa área da personalidade. Porém, com o passar do tempo, cheguei à conclusão que eles também não a entendiam. Havia exceções, é claro, mas depois de ouvir muitas apresentações de casos, tive certeza de que os kleinianos eram tão cegos como os independentes em relação às correntes emocionais essenciais dessa área primitiva da personalidade. Havia algumas exceções notáveis. Quando percebi tudo isso, me senti novamente mais caloroso para com John Klauber. Digamos que, para analisar um paciente, existem dois procedimentos essenciais: primeiro, ser capaz de estabelecer uma relação; segundo, ser capaz de analisar os padrões emocionais que geram as distorções que nós associamos à psicose. John Klauber era capaz do primeiro, mas não foi eficiente no segundo. Estou bastante seguro de que os analistas que não conseguem realizar o primeiro também não podem fazer o segundo. O primeiro é a pedra fundamental sobre a qual o processo analítico é estruturado. A personalidade estabiliza se essa base for colocada corretamente e sobre ela o trabalho da 180 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Ensaio Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Este estudo foi apresentado em 1985, em um encontro do Instituto de Psicanálise em Londres. Dr. Neville Symington 88 B, Warragal Road, Turramurra, Sydnei NSW 2074 – Australia E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 181 Neville Symington análise pode prosseguir. Penso que existem poucos psicanalistas que podem estabelecer tanto uma relação como também analisar as correntes emocionais que geram os fenômenos psicóticos. Sua outra falha, muito relacionada a isso, foi que ele não viu os estados internos de mente, dos quais as figuras externas freqüentemente são os símbolos. Minha mãe era minha mãe, meu pai era meu pai, e assim por diante. Ele não viu os estados internos que eles representaram em mim. Penso que essa foi uma falha muito grande que percebi quando assistia aos seminários de Rosenfeld. A outra grande virtude de Klauber era sua habilidade para reconhecer verdades dolorosas sobre si próprio, quando desafiado. Nunca era defensivo e reconheceria um preconceito, ou algum defeito em seu caráter. Penso que ficaria furioso se eu tivesse sido um desses analistas que imediatamente desconhecem uma crítica e a colocam sobre o paciente. Klauber acreditava que a verdade era a grande curandeira, e era fiel a esse ideal. Deu-me o bastante para poder construir nos anos posteriores. Faz agora vinte e cinco anos que terminei minha análise com ele, e meu desenvolvimento emocional e compreensão analítica cresceram espetacularmente desde então. Acredito que tenho que agradecer a ele por ter-me iniciado nessa viagem. Este estudo foi publicado em 1987, no livro “John Klauber and Others”, pela Editora Free Association Books, London, England. “Em si, a dor não tem nenhum valor nem significado. Ela está ali, feita de carne ou de pedra [...]. A dor só existe sobre uma base de amor.” J. D. Nasio Ana Rosa Chait Trachtenberg Médica; Psicanalista; Membro Titular em função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre; Membro Associado da APdeBA (Associação Psicanalítica de Buenos Aires). Pretendo, nesta comunicação, contar uma história: a de Édipo e Laio. Um filho e um pai como tantos outros. Seu início é o Édipo freudiano, neurótico, que rapidamente se encontra com a sua faceta narcísica, para logo, então, cruzarse com Laio – paradigma do pai narcisista – no desfiladeiro. Desses encontros, ou desencontros, nasce o futuro de uma relação. Penso, em sintonia com Nasio (1997), que experimentar a dor psí- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 183 Ana Rosa Chait Trachtenberg Édipo: Configuração e Complexo: um Adolescente no Desfiladeiro ÉDIPO: CONFIGURAÇÃO E COMPLEXO: UM ADOLESCENTE NO DESFILADEIRO quica é um privilégio daqueles que possuem uma viva muralha/barreira de dor feita de carne, que protege o sujeito de outra muralha, a de pedra, a do narcisismo, que tenta, sem êxito, espantar a loucura e a morte. Entendo que o Complexo de Édipo, enquanto complexo nuclear das neuroses, é um paradigma de sexualidade, dor, renúncias e vida. Em oposição, ao nos aproximarmos das fronteiras do narcisismo, encontramos a dor não tocada, a vida e a sexualidade evitadas, destituídas, esvaziadas em seus eternos esconderijos nas muralhas feitas de pedra. Existem vários momentos dolorosos no ciclo vital do ser humano, e eu gostaria de destacar dois deles: o da hospitalidade, que requer a penetração da presença do outro, o que impõe dores e renúncias, tal como ocorre, por exemplo, com o nascimento de um filho. Noutro momento do ciclo vital, está, justamente, a dor de deixar partir. Partição, partida do filho que fora acolhido prevê, porém, vida compartida, diferenciada, definida, mas, curiosamente, continuada. Outra vez, renúncias e dores. O Complexo de Édipo tem um lugar no tempo tanto sincrônico quanto diacrônico, pois a sua relação com a temporalidade está dada não só pela sexualidade infantil, com a diferença entre os sexos, mas também pela diferença entre gerações. É na dupla diferença do Complexo de Édipo (GREEN, 1993, 1996), a diferença de sexos e de gerações, que reside o seu alcance estrutural e histórico para a organização do desejo humano. Conforme Green, as hipóteses de C. Lévi-Strauss sobre a proibição do incesto, como norma e fundamento para a diferença entre natureza e cultura, tiveram enorme influência nos desenvolvimentos psicanalíticos pósfreudianos, especialmente quando Lacan propõe uma interpretação do Complexo de Édipo que relaciona o desejo, a satisfação natural da sexualidade incestuosa, com a lei, através da proibição paterna. A importância da proibição do incesto reside em estabelecer um sistema de relações de parentesco como relações de relações; a reprodução biológica se encontra, portanto, regulada pela proibição do incesto. O grande desafio do ser humano, também colocado no enigma da Esfinge e especialmente ativo ao longo do processo adolescente, é o de des184 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 185 Ana Rosa Chait Trachtenberg cobrir como o filho do rei pode também tornar-se rei como o pai, ocupar seu lugar sem se chocar com ele ou afastá-lo. Com o fluxo das gerações, a sucessão dos estágios que marcam a humanidade, e que estão ligados à temporalidade e à imperfeição, reis e filhos de reis podem conviver lado a lado com uma ordem social harmoniosa. Como é do conhecimento de todos nós, o mito de Édipo, universalizado por Sófocles (1970) e utilizado magistralmente por Freud (1892-1899), enfatiza o aspecto do desejo erótico do filho por sua mãe, bem como o desejo parricida do mesmo para com o rival, seu pai. Essa clássica descrição corresponde ao Complexo de Édipo positivo, cujos desdobramentos, observados desde a perspectiva intrapsíquica, nos são já bastante familiares. Para esse filho, que é incestuoso e parricida, há um pai castrador, que ameaça simbolicamente com a castração, e também um pai proibidor, que instala a lei, impedindo a consecução do incesto. Esse filho, ao utilizar a repressão como eficaz defesa de autopreservação, está se deixando atravessar pela dolorosa experiência da renúncia de seu objeto erótico. Assim procedendo, o sujeito tolera postergar até a idade adulta as satisfações buscadas, quando então entram em ação os objetos substitutos, que o são graças aos vários deslocamentos que sofrem ao longo da vida. Essa artimanha, bem como o reconhecimento da diferença de gerações, que torna a exogamia possível, está perpassada por um pai que se faz edípico ao proibir uma mulher específica. Assim, edípico, permite ao filho a concepção de um projeto exogâmico próprio para seu futuro. Essa novela neurótica possibilita um desfecho favorável, no qual existem pelo menos dois espaços psíquicos discriminados, havendo lugar para dois homens e duas mulheres. Jean-Pierre Vernant (2000) desenhou algo diferente para o mito de Édipo, dizendo que seu destino excepcional, bem como a façanha que lhe concedeu a vitória sobre a Esfinge, o colocaram acima dos outros cidadãos, além da condição humana – semelhante ou igual a um deus – e o parricídio e o incesto que consagraram seu acesso ao poder também provocaram a sua rejeição para aquém da vida civilizada e o excluíram da comunidade ÉDIPO: CONFIGURAÇÃO E COMPLEXO: UM ADOLESCENTE NO DESFILADEIRO dos homens. Os dois crimes que ele cometeu, sem saber nem querer, o tornaram: (a) ele mesmo – o adulto firme sobre seus dois pés; (b) semelhante a seu pai – ajudado por uma bengala, velho de três pés cujo lugar ele assumiu ao lado de Jocasta; e também (c) semelhante a seus filhos pequenos – ainda andando de quatro, e dos quais ele era tanto irmão quanto pai. Seu erro inexpiável foi misturar em si mesmo três gerações, que deviam seguir-se sem jamais se confundir nem se superpor no seio de uma linhagem familiar. Vernant acrescenta que o monstro de quem falava a Esfinge era também Édipo, que tem dois, três e quatro pés, ao misturar num único sujeito o curso regular das estações da existência humana. Essa vertente, que evidencia a importância da diferença de gerações no seio do Complexo de Édipo e que é desrespeitada por seu clássico protagonista, se inscreve, com clareza, na linha dos transtornos do narcisismo. Tal faceta está marcada não somente pela impossibilidade de reconhecimento do outro, como também pela grandiosidade de suas posições. Vernant nos mostra um Édipo diferente da visão que dele temos como vítima do destino, que a profecia denuncia como vítima de seus desejos parricidas. Este outro Édipo é o protagonista do que denomino Parricídio Mudo, que representa a face narcisista do Complexo de Édipo e nos aproxima da idéia na qual quero penetrar no momento, que é a da configuração edípica. Robert Graves (1998), outro importante estudioso da Mitologia, oferece um aspecto novo, complementar, do mito de Édipo, chamando a nossa atenção para a cena do encontro de Édipo e Laio num estreito desfiladeiro. O primeiro tentava escapar da predição do oráculo, que fazia dele um futuro parricida, fugindo de Corinto, onde moravam seus pais adotivos. Édipo desconhecia a verdade da adoção, bem como a história da tentativa de filicídio praticada por Laio quando do seu nascimento. A ótica de Graves, que salienta o encontro de ambos, pai e filho, desconhecedores dessa relação, num desfiladeiro, onde só há passagem para um, nos permite seguir Haydée Faimberg (1996, 2000) no que ela chamou Configuração Edípica. 186 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 187 Ana Rosa Chait Trachtenberg O centro da reflexão sobre a configuração edípica parte da mentira, do nãodito, e vai na direção do problema que desejo salientar, o do filicídio/ parricídio. Vale destacar que Laio tinha uma decisão filicida antes do nascimento de Édipo; para ele, o sentido de ter um filho era um sentido filicida. Esse seria um severo e extremado transtorno da hospitalidade, ao qual nos referimos inicialmente, já que esse filho, Édipo, é recebido por seu pai com e para a morte. Para entendermos essa idéia, é necessário, antes de mais nada, incluir a intersubjetividade, já que a perspectiva intrapsíquica, suficiente para a compreensão dos fenômenos ligados ao Complexo de Édipo, neste caso os desejos parricidas de Édipo, deixa de sê-lo se quisermos estender o conceito para além das relações e desejos dos filhos para com seus pais. Na ótica intersubjetiva interessa estudar não só essa relação fantasiosa, mas também a relação de pais para filhos, lembrando sempre que a mesma é assimétrica desde o começo da vida da criança, graças ao seu desamparo. Além disso, importa de que forma um sujeito mostra-se capaz de se deixar penetrar pela presença do outro (hospitalidade), e penetrá-lo também com a sua subjetividade, permitindo e propiciando diferenças, bordas, transformações e contato com a dor. Na abordagem da configuração edípica é essencial entender os mecanismos de regulação narcisista na relação do pai narcisista com seu filho: não existem dois espaços psíquicos separados; a dor da diferença se vê eliminada pelo funcionamento de apropriação e intrusão, bem como pela eliminação dos bordos de subjetividade entre os indivíduos. Assim, ao tentarmos visualizar o encontro de Édipo e Laio num estreito desfiladeiro onde só havia passagem para um, duas situações se apresentam: nenhum deles se reconheceu como diferente ao outro, jovem um deles e ancião o outro. Édipo não considerou a diferença geracional existente entre ambos, pois a sua história estava regida pela mentira da adoção e pela tentativa de filicídio, bem como pela grandiosidade de seu parricídio mudo, a face narcísica de seu Complexo de Édipo. Laio, em ação complementar, narcisicamente, repete a tentativa de filicídio do passado. Ambos lutam ÉDIPO: CONFIGURAÇÃO E COMPLEXO: UM ADOLESCENTE NO DESFILADEIRO para obter a passagem pelo desfiladeiro, metáfora do poder e do domínio de um espaço psíquico único, que domina a lógica do narcisismo, a lógica do ou/ou. Laio, paradigma do pai narcisista, considera que existe um único objeto de amor e de ódio, e esse modo de funcionamento conduz a uma solução narcisista da rivalidade edípica: um deve viver e o outro, morrer; é a lógica do filicídio/parricídio. Esse é um desfecho que não contempla uma proibição, mas sim a morte. Aqui, não há lugar para dois homens e duas mulheres, ao contrário da saída exogâmica, postergada, que a dolorosa passagem pelo canal, desfiladeiro do Complexo de Édipo, impõe. O que ocorre na configuração edípica, narcísica, é que, tal como no desfiladeiro, só há lugar para um homem e uma mulher. Um deles morre, física ou psiquicamente, enquanto a mulher do desejo erótico é invariavelmente a mesma. Não há deslocamentos para outras escolhas objetais, não há futuro, aqui vale somente o presente. Essa seqüência, que é compatível com a dor de pedra, a da muralha de pedra, uma vez que o progenitor realiza uma apropriação indevida da carne e da alma de seu filho, tornando-o portador de uma angústia impensável, a de não ter sido querido como filho vivo. A. Green (1996) sustenta que a vida psíquica do sujeito se organizará ao redor de pelo menos dois paradigmas. Ele os chama de angústia vermelha e angústia branca. A primeira se relaciona ao Complexo de Édipo, enquanto a segunda está vinculada às idéias de configuração edípica. Angústia vermelha seria o conjunto de angústias ligadas à “pequena coisa que se desprende do corpo” (pênis, fezes), todas ligadas à castração, por se relacionarem com uma ferida corporal associada a um ato sanguinário, uma mutilação. A angústia branca, ao contrário, relacionada às perdas de objetos, do peito, bem como às ameaças de abandono, não está revestida de um caráter sanguinário, apesar de poder ser um produto da destrutividade. A angústia branca compõe a série branca, descrita por Green, e está constituída pela 188 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 189 Ana Rosa Chait Trachtenberg alucinação negativa, pela psicose branca e pelo luto branco. Trata-se de fenômenos ligados à clínica do vazio ou do negativo e são resultantes de um desinvestimento massivo, radical, que deixa marcas no inconsciente sob forma de “buracos psíquicos”. Como uma forma de exemplificar, entre muitas possíveis, vamos nos valer das belas observações que fazem os cronistas do cotidiano, quando nos dão a impressão de uma cena de filme que fica congelada, lenta, em que parece que tudo parou, onde nada se transforma. Vemos filhos que vivem ad eternum na casa paterna, muitas vezes sem trabalhar, outras vezes com o sustento de uma pensão de um pai falecido, sem aparentes preocupações ou inquietações; dão a impressão de que o tempo lá não passou, nem passará, e temos a nítida visão de que, naquela família, a transmissão e a continuidade ali se interrompem. O elo criativo entre as gerações, a continuidade através das mesmas, que produz o “alívio da mortalidade”, não podemos aqui encontrar. Nesses casos, a mortalidade, a sexualidade, a dor e a diferença são violentamente desmentidas: não há movimento, não há dor, não há novas gerações. A pretendida imortalidade está ali, na cena congelada daquelas duas gerações, com suas histórias colapsadas, coladas umas às outras. Tudo está preenchido e se esgota em apenas duas gerações; por antecipação, mata-se a terceira, a dos filhos dos filhos. Observa-se, assim, uma forma bastante particular de filicídio. Não se trata do filicídio praticado por Laio, atuado, mas sim de um filicídio mudo, com inibição da exogamia, dos projetos, da construção de um espaço psíquico diferenciado e vivo. Rompe-se a cadeia ou o elo criativo entre as gerações, e esse filicídio mudo, que traz o mito e a configuração edípica para o nosso cotidiano, mostra uma resolução narcisista e pretensamente não-dolorosa das diferenças entre sujeitos, sexos e gerações. Quem sabe, no seio dessa muralha feita de pedra, ainda vigora a esperança de que algum dia se rasgue nela uma janela, e se o Chico Buarque nos ajudar, possamos ver Carolina e depois a Banda, passando, em seus versos, convocando para a vida: ÉDIPO: CONFIGURAÇÃO E COMPLEXO: UM ADOLESCENTE NO DESFILADEIRO “Eu bem que mostrei a ela O tempo passou na janela Só Carolina não viu” mas, depois, “Estava à toa na vida O meu amor me chamou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor A minha gente sofrida esqueceu-se da dor Pra ver banda passar cantando coisas de amor”. COMPLEXO DE ÉDIPO CONFIGURAÇÃO EDÍPICA 1. 2. 3. 4. 5. 1. 2. 3. 4. 5. Neurose Angústia de castração Defesa: repressão Pai castrador, proibidor, edípico Filho tolera dor da renúncia do objeto incestuoso 6. Lei – respeito à proibição do incesto 7. Fantasias parricidas (série vermelha) 8. Diferença gerações, espaço psíquico próprio no filho 9. Desfecho da rivalidade edípica: identificação, saída exogâmica (2 homens e 2 mulheres) 10. Desfiladeiro: há lugar para um e depois o outro (e/e); 2 mulheres diferentes Narcisismo – patologias do vazio Angústia de morte Defesa: desmentida Pai filicida, narcisista Filho angústia impensável de não ter sido querido como filho vivo 6. Transgressão à proibição do incesto 7. Parricídio mudo – filicídio mudo (série branca) 8. Gerações indiferenciadas, relações narcísicas, telescopagem 9. Desfecho da rivalidade edípica: morte, saída endogâmica 10. Desfiladeiro: só há lugar para um, o outro deve morrer (ou/ou); 1 mesma mulher 190 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 O trabalho busca traçar uma diferença entre o conceito clássico, freudiano, de Complexo de Édipo e o conceito de configuração edípica. Este último se relaciona com os transtornos narcísicos (série branca de A. Green), com as patologias do vazio, e deve ser entendido sob a ótica da intersubjetividade. A autora apresenta um quadro sinóptico das principais idéias do texto. Summary Oedipus: Configuration and Complex: an Adolescent in the Narrow This paper brings a differentiation between the freudianian concept of Oedipus Complex and the Oedipus configuration. The latest one is related to narcissistic disorders (white serial described by André Green), to emptiness, and has to be seen under intersubjectivity studies. The author presents a table with the main ideas of this paper Sinopsis Edipo: Configuración y Complejo: un Adolescente nel Desfiladero El trabajo busca establecer una diferenciación en el clásico concepto freudiano de Complejo de Edipo y el concepto de configuración edipica. El último está relacionado a los trastornos narcísicos (serie blanca de A. Green), a las patologías del vazio, y debe ser entendido bajo la optica de la intersubjetividad. La autora presenta un cuadro sinóptico con las ideas principales del texto. Palavras-chave Narcisismo; complexo Édipo; Configuração Edípica; Adolescência; Parricídio; Filicídio; Incesto. Key-words Narcissism; Oedipus complex; Edipie Configuration; Adolescence; Parricide; Filicide; Incest. Palabras-llave Narcisismo; Complejo Edipico; Configuración edípica; Adolescencia; Parricidio; Filicidio; Incesto. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 191 Ana Rosa Chait Trachtenberg Sinopse ÉDIPO: CONFIGURAÇÃO E COMPLEXO: UM ADOLESCENTE NO DESFILADEIRO Referências FAIMBERG, H. (1996). El mito de Édipo revisitado. In: KAËS, R.; FAIMBERG, H.; HENRIQUEZ, M.; BARANES, J.-J. Transmisión de la vida psíquica entre generaciones. Buenos Aires: Amorrortu. FAIMBERG, H. Entrevista. Psicanálise, Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 225-248, 2000. FREUD, S. (1892-1899). Fragmentos de la correspondencia con Fliess. In:______. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1982. ______. (1913). Totem y tabu. In:______. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1982. GRAVES, R. (1998). Los mitos griegos 2. Buenos Aires: Alianza Editorial. GREEN, A. 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Ana Rosa Chait Trachtenberg Rua Florencio Ygarthua, 391/404 90430-010 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (55 51) 3330-6453 E-mail: [email protected] 192 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Conferência na SBPdePA Amor. Estruturação Mental. Fantasia Inconsciente Serapio J. Marcano Médico; Psicanalista; Membro Efetivo da Sociedade Psicanalítica de Caracas – Venezuela. O amor é um afeto ou uma emoção básica dos seres humanos que, para fins práticos e expositivos, estuda-se separado dos outros afetos básicos, mas que na realidade psíquica está indissoluvelmente ligado aos mesmos em uma constante interação, e particularmente ao outro afeto antitético que é o ódio. Esses afetos marcham sobre as vicissitudes de gratificação ou frustração das necessidades dos seres humanos desde o momento em que se inicia a vida de relação com outros seres humanos, sendo o primeiro objeto de relação a mãe e, mais especificamente, alguns aspectos da mãe, que nós, psicanalistas, concei- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 195 Serapio J. Marcano Amor, Transferência e Loucura AMOR, TRANSFERÊNCIA E LOUCURA tuamos como qualidades da função materna com as quais se estabelece fundamentalmente o vínculo. Essas qualidades são a capacidade de alimentar e cuidar, de fazer presença, de dar calor, de proteger, e que, além de servirem de instrumentos para satisfazer as necessidades pulsionais, irão proporcionar um plus de prazer sensual ou de desprazer, sensações que adquirirão uma conotação de afeto amoroso ou de ódio, de acordo com a gratificação ou frustração de tais necessidades e da maneira como as mesmas sejam satisfeitas ou não pelos objetos da realidade exterior que sustentam a vida desses seres humanos em formação. É muito difícil definir com exatidão os modos como a criança experimentou seus vínculos com os objetos da realidade exterior e a maneira pela qual tais vínculos foram internalizados, e passarão a formar parte de suas marcas mnêmicas. Na psicanálise, somente o podemos inferir através de suas revivências durante a experiência analítica e ao fazer inferências com a ajuda de uma disciplina auxiliar, como a observação de bebês orientada psicanaliticamente. Sobre as vivências primárias serão sobrepostas as novas experiências, as quais, por sua vez, ou abrirão espaço à possibilidade de modificação das experiências primitivas, ou serão uma reprodução das anteriores. Quando as experiências vividas são integradas a um contexto significativo, tais experiências vão-se estruturando em um processo de significações cada vez mais complexas e harmônicas, que configuram organizações e diferenciações mentais dentro do mundo interno, que inclui os objetos internos e sua interação com os objetos externos. Mas também têm lugar outras experiências que não são integradas plenamente em um contexto significativo no momento de serem vividas, e cujo protótipo constituem as experiências traumáticas, as quais serão objeto de uma elaboração retroativa, segundo o que diz Freud (Nachträglichkeit em alemão, Après-coup em francês), e essa reorganização ou reinscrição que é experimentada, de vez em quando, em função de novas condições, confere-lhe um sentido e uma eficácia ou um poder patógeno (FREUD, 1896). Tanto as experiências plenamente integradas em um contexto significativo como aquelas que não o são serão constituídas nas fantasias in196 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 197 Serapio J. Marcano conscientes, as quais determinarão, em boa medida, as modalidades vinculares nas relações com os objetos da realidade externa, ainda que seja nas formas mais maduras de relação, como nas que configuram as chamadas estruturas clínicas, se aceitamos um critério nosológico psicanalítico para organizar tais estruturas. Mas também essas fantasias irão organizar-se de diferente maneira nos diversos momentos integradores da mente humana que, desde já devo esclarecer, não seguem uma direção unívoca linear, paralela ao padrão de desenvolvimento biológico ou neurofisiológico, ainda que se sobreponham a ele, mas que alternam momentos de progressão ou regressão, ou de maior ou menor integração, e que, para fins teóricos, as diversas correntes psicanalíticas sistematizam a partir de diferentes vértices, dependendo de seus interesses particulares. Assim, as fantasias correspondentes a cada um dos diferentes blocos constitutivos da estruturação psíquica conterão uma particular organização das pulsões, desejos, pensamentos, afetos, concepção do tempo e do espaço, e mecanismos mentais das formações do inconsciente. Pode-se hipotetizar que, nos níveis mais primitivos de funcionamento da mente, não havia diferenciação entre o sujeito e o objeto, assim como as experiências afetivas e de prazer ou de desprazer estariam indiferenciadas. A partir daí, integrar-se-iam até um estado de prazer e de desprazer mais específicos, juntamente com a diferenciação mais elaborada das imagens “boas” e “más” de si mesmo e do objeto, até chegar a uma integração das qualidades e dos afetos “bons” e “maus”, prazerosos e desprazerosos, dentro de um mesmo sujeito e um mesmo objeto. À medida que se avança na integração, há também uma evolução na dimensionalidade da visão do mundo que passa de um nível de relação linear – no qual não se distinguiria entre a distância e o tempo que, como diz Meltzer (1979), “não é um mundo que conduz à emocionalidade fora da forma mais simples e polarizada” e na qual “a gratificação não poderia diferenciar-se da fusão com o objeto” – até um nível em que o tempo adquire a dimensionalidade do processo secundário, tal como o propôs Freud nos “Dois Princípios do Funcionamento Mental” (1911). Neste nível, o tempo, como um poderoso fa- AMOR, TRANSFERÊNCIA E LOUCURA tor que nos chega a partir do mundo exterior, adquiriu uma tendência direcional própria, acompanhado de uma discriminação importante do sujeito e do objeto que ocorre paralela à transformação do predomínio dos mecanismos de identificação projetiva e identificação adesiva, constituintes principais das identificações narcisistas que encontramos na base de múltiplos transtornos psicopatológicos regressivos. Fica preeminente então a identificação introjetiva como mecanismo mental que dará lugar não apenas a essa maior discriminação de si mesmo e do objeto, mas também dos afetos, e onde tem lugar a capacidade de espera vinculada à oportunidade para a gratificação, predominando os sentimentos amorosos sobre os hostis, que agora são conteúdos dentro do sujeito. Todas essas experiências dadas nos diferentes níveis de integração do funcionamento mental vão deixando uma sucessão de inscrições de signos no inconsciente que constituem as representações inconscientes da pulsão, as quais estão dispostas na forma de fantasias que, por sua vez, são os cenários imaginários aos quais se fixa a pulsão e que podem conceber-se como verdadeiras encenações do desejo (LAPLANCHE e PONTALIS, 1974). A pulsão diferencia-se do instinto, uma vez que seu objeto não está predeterminado biologicamente, e busca uma satisfação prazerosa mais além da necessidade biológica, e que o prazer que procura observa-se como componente parcial e incorporado ao prazer do amor sexual genital adulto, e por isso na Psicanálise falamos de psicossexualidade no lugar de simplesmente sexualidade. Quando a necessidade é satisfeita, e fica a marca mnêmica do objeto que produziu prazer, surge o desejo, buscando satisfação na identidade de percepção, reproduzindo alucinatoriamente as percepções que se converteram em signos dessa satisfação. Dirige-se uma demanda a um objeto, buscando que o mesmo seja provedor de tal satisfação, mas a mesma é impossível de satisfazer, já que é uma demanda de amor que busca ser preenchida de uma vez por todas e cresce em uma relação espiralada sem fim. Assemelha-se ao jogo infantil do “Conto do Galo Pelón”, o qual nunca termina. A demanda é de natureza absolutamente incondicional; em troca, o desejo introduz uma condição absoluta, ao ligar a possibilidade de prazer a uma 198 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 O que são as Transferências? Trata-se de um fenômeno geral do funcionamento da mente, universal e espontâneo, que consiste em unir o passado com o presente, mediante um falso enlace que cruza os desejos pretéritos implícitos nas fantasias inconscientes e vinculados aos objetos do passado com os objetos atuais, dando à conduta um cunho racional. Como processo psíquico presente no tratamento psicanalítico, começa a ser desenvolvido por Freud desde muito cedo em sua produção teórica, e ele continua o elaborando em diversos trabalhos até o final de sua obra, no “Esboço de Psicanálise” (1938). Para Freud, a transferência é produzida quando o desejo prende-se a um elemento muito particular que é a pessoa do analista, a qual é esvaziada de significado, como os restos diurnos do sonho, e lhe é conferida uma significação distinta da original, com a qual o desejo se disfarça para permanecer inconsciente. A transferência é a mesma na análise e fora dela. De um lado, é o maior aliado da análise e, de outro, é o maior obstáculo. A análise é feita graças à transferência e apesar dela, como diz J. A. Miller (1979), parafraseando Freud. Isso corresponde aos dois aspectos da transferência. Um é o da repetição inconsciente, descrita por Freud como um estereótipo ou clichê que se repete de forma constante no decurso da vida de uma pessoa, dirigindo-se à realidade, buscando satisfazer-se em uma pessoa de tal realidade externa, e na análise dão-se todas as circunstâncias para que o analista ocupe o lugar para onde serão dirigidas essas demandas libidinais, que não são mais que demandas de amor. Em níveis conscientes, a busca desse objeto da realidade é aplicada em forma racional, mas, inconscientemente, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 199 Serapio J. Marcano determinação estrita, como a de que o objeto apresente uma característica particular, como no fetichismo. O desejo consiste em um mecanismo lingüístico, mediante o qual são distorcidos e modificados certos elementos dentro de outros. Aparecem distorções e opacidades nos pontos de ruptura do discurso associativo. AMOR, TRANSFERÊNCIA E LOUCURA é uma relação ilusória, irracional, ou imaginária, como diria Lacan. O outro aspecto da Transferência é o da resistência, que é um dos três tipos de resistências do Eu. A transferência pode ser positiva e negativa, desde o ponto de vista dos afetos, e a positiva pode ser de afetos carinhosos, dessexualizados ou amorosos sexualizados. Esses últimos, junto aos negativos, são os que se constituem em resistência ao buscar satisfação em lugar de recordar. Assim, por exemplo, quando uma pessoa sente rechaço e hostilidade a tudo o que provenha do analista, pode ser porque no inconsciente o analista representa uma figura parental intrusiva, que não permite a necessária narcisização do infante, o que não exclui que o analista realmente se contra-identifique com esses objetos intrusivos. O analisante repete e o analista também, em vez de recordar esses afetos, como um modelo vincular do passado. A transferência amorosa ou positiva sublimada é a que permite operar sobre o paciente por sugestão. Segundo Freud (1912), por sugestão devemos entender a forma de influenciar uma pessoa mediante os fenômenos de transferência possíveis em seu caso. A sugestão é, nesse caso, e não sempre, para Freud, a mesma que para Ferenczi (1909): “a criação artificial de condições em que a tendência universal à obediência cega e à confiança incondicional, resíduos do amor e do ódio infantilerótico para com os pais, transfere-se à pessoa do hipnotizador” (nesse caso, à pessoa do analista). Estão dadas, assim, as condições, como dissemos antes, para que o analista, ao ser objeto de transferência para o analisante, adquira e concentre em si uma nova significação, o valor do sintoma, e surja a neurose de transferência. Segundo a teoria lacaniana, o analista passa então a ocupar o lugar do grande Outro, que escuta a demanda do paciente de buscar a verdade sobre si mesmo, sobre sua identidade, sobre seu desejo. O analista será colocado no lugar do Sujeito Suposto Saber. Manter essa relação ilusória e imaginária é o que permite que o inconsciente faça pressão para manifestar-se. O analista consegue-o ao não identificar-se com esse Sujeito Suposto Saber, pois, do contrário, se o encarna, a experiência analítica desencadeia uma psicose alucinatória crônica e que, na prática, observamos quando o pa200 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 O Amor de Transferência Nas páginas anteriores, mostramos como, desde o vértice psicanalítico, o amor pode ser conceituado como um componente dos afetos que se fazem presentes nos vínculos humanos, em suas relações não somente com os objetos da realidade externa mas também com os da realidade psíquica, e que aparece nas diversas expressões das fantasias inconscientes, as quais revelam os diversos níveis de complexidade de integração da mente humana. O amor, inextrincavelmente ligado ao ódio, aparece nas estruturas primitivas narcisistas, predominando nas relações duais, especulares, nas relações parciais sujeito-objeto, em que se ama predominantemente o outro que representa a imagem do sujeito, dando-lhe uma esperança ilusória de completude, e aparecendo o ódio como efeito da diferença desse outro com o que dele se espera que seja. Esse outro representa o objeto parcial da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 201 Serapio J. Marcano ciente diz que sabemos tudo sobre ele e que, portanto, não tem que dizernos mais nada. Além disso, se desde o lugar do analista recorremos a qualquer saber para tapar essa abertura, o que conseguiremos é fechar o caminho através do qual o inconsciente buscava expressar-se. Mas isso também pode ser visto de outra perspectiva, que é a seguinte: o sujeito, na análise, dirigirá ao analista suas demandas, mediante as quais repetirá toda uma série de sucessos de sua vida psíquica anterior e as viverá não como experiências do passado, mas como relação atual com a pessoa do analista. As diversas estruturas são reeditadas nessa relação. As modalidades estruturais narcisísticas, nas quais predomina uma relação dual, especular, imaginária, buscam sua própria imagem na imagem do analista, que é a sua, e é a do outro, como nos começos de seu desenvolvimento humano, identificando-se com ela e pondo em evidência os elementos constitutivos do eu primitivo, com suas identificações imaginárias. A estrutura edípica, na qual predomina a relação triangular pela presença de um terceiro, com o predomínio da linguagem, é simbólica, e a identificação que se estabelece é simbólica; contém em si a lei do pai, os ideais e as aspirações dentro do Ideal do Eu e do Superego, herdeiro do Complexo de Édipo. AMOR, TRANSFERÊNCIA E LOUCURA pulsão confundido com o sujeito mesmo, que viria a preencher a falha da separação. Esse objeto parcial é sucessivamente o mamilo, as fezes e, logo, o falo, onde os significantes prévios se transmutam nos novos, o que corresponde a um processo de luto sucessivo, segundo uma das leituras possíveis da teoria das etapas freudianas. Todas essas demandas de amor aos objetos parciais e o desejo que busca satisfação na identidade de percepção serão penetradas pela aparição de um terceiro, que desde o começo está presente através das normas da cultura, passando o objeto da pulsão a constituir-se em objeto total, ao aparecer a situação edípica. Esse terceiro se materializa na imagem paterna que marca a Lei que proíbe ter acesso ao objeto do desejo. Introduz, assim, o sujeito na ordem simbólica, na linguagem e no simbolismo sociocultural, em oposição ao imaginário não simbolizado. O amor aparece então dirigido a uma outra pessoa que não é o objeto original da pulsão, mas outro objeto que, por deslocamento, simbolizará o objeto original. O amor que acompanha essas relações de objeto, nos diversos componentes estruturais, pode cobrar uma inusitada força na relação com o analista, inundando todo o campo da análise, no qual o analista deixa de ser tomado, pelo analisante, pelo que realmente é: um analista que supostamente sabe sobre o desejo do sujeito e passa a ser esse objeto do desejo. Pode-se dizer que a irrupção violenta ou precipitada, intensa, tenaz e irredutível que alcança esse tipo de demanda amorosa e que não cede diante de explicação racional alguma deve-se a que muitos impulsos estão dirigidos do inconsciente para objetos arcaicos, o que evidencia as condições imaginárias, próprias do predomínio das organizações narcisistas presentes nos diferentes níveis de integração mental e das fantasias inconscientes concomitantes. As erotizações do vínculo denotarão as relações de objeto parcial correspondentes a esses diferentes níveis e colocarão em evidência a maior ou menor integração dos afetos, das qualidades dos objetos e dos mecanismos mentais postos em jogo. Esses diferentes níveis correspondem às várias formas de amor de transferência que aparecem nas neuroses, na loucura e nas psicoses. 202 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 203 Serapio J. Marcano É bom aclarar que minha posição é a de que em todo indivíduo organizam-se, dentro de seu aparato psíquico, as diversas estruturas nas mais variadas proporções, e que em um nível de integração ótimo constituiriam as modalidades de vinculação com predomínio do eixo edípico sobre o eixo narcísico, do simbólico sobre o imaginário, e no qual, como diz Liberman (1976), a ação e a expressão das idéias e a regulação dos afetos combinamse com o maior grau de adequação. Mas também penso que cada ser humano apresenta uma organização estrutural predominante. Isso eventualmente pode dar lugar à aparição de outro tipo de estrutura de maior ou menor integração, apoiando-nos, para propor isso, em que “toda estrutura tem um lugar vazio que possibilita as permutações” (RABINOVICH, 1977). Nos analisantes com predomínio neurótico e nos quais o conflito edípico genital, com suas angústias de castração, é o que rege a cena transferencial, aparecem enamoramentos com diversos graus de intensidade passional, nos quais a idealização do objeto amoroso está dirigida à pessoa do analista, dissociada das inclinações e expectativas sexuais em relação ao mesmo, as quais serão dirigidas a outros objetos da realidade externa que, devido a alguma característica particular, atraem até eles os desejos eróticos correspondentes ao progenitor desejado. Os afetos negativos, por sua vez, são dirigidos a outros objetos que também têm características que os ligam, de um modo simbólico, aos objetos edípicos, em que a rivalidade com o progenitor do mesmo sexo pode adquirir características passionais, dentre as quais aparece o ódio, ao atribuir-lhe a proibição da sexualidade – mas por quem também subjaz uma mescla de admiração e ciúmes pelo lugar que esse objeto ocupa ao lado do objeto de amor, lugar que deseja inconscientemente tomar posse e que, por sua vez, teme, pois por ser apanhado ali não pode fazer a exogamia, acrescentando-se a tais temores o correspondente ao da castração. Amar é, para o sujeito que se encontra predominantemente em uma posição narcisista, que o objeto se preste a prover uma ilusão de igualdade, de completude, de constância, de não-separação. Desde a posição do obje- AMOR, TRANSFERÊNCIA E LOUCURA to marcado pela Lei que impõe o reconhecimento do impossível da completude, que impõe assumir a renúncia, amar é não confirmar ao sujeito essa expectativa de união, é não sustentar essas identificações, e assim procurar a identificação simbólica através da qual o sujeito incorpora a Lei que lhe impõe aceitar-se em falta. Mas quando o amor adquire um caráter passional, em nome do que a intensidade do afeto e o apego ao objeto cegam completamente o sujeito, aparecem as mais intensas sensações de êxtase ou de sofrimento doloroso, que pode eventualmente conduzir ao suicídio e/ou homicídio, se tal amor for proibido. Nos atos passionais estamos frente à loucura de transferência, chamada também por alguns de Psicose transferencial, ou diante da transferência psicótica do indivíduo psicótico. A linguagem coloquial, assim como o conteúdo manifesto do discurso de alguns analisantes, mostra-nos como com freqüência chamamos de loucura a certos pensamentos que se impõem dominando a razão, subvertendo-a, da mesma forma que a todo seu funcionamento psíquico. Ali o sujeito é atuado por essa paixão que o aliena. A origem dessa loucura passional remonta às primeiras relações mãebebê, que os kleinianos qualificam como uma psicose infantil originária e que André Green (1981) prefere chamar de loucura original. Nelas podemos observar a superposição inseparável dos cuidados maternos e a atividade erótica de sedução. Nelas a criança, já desde a gravidez, é para a mãe o que a mãe será para a criança: um objeto único e insubstituível, como será o objeto de desejo para o sujeito da paixão. Green recorre às palavras de Freud no “Esboço de Psicanálise” (1938), citando-o: “Nestas duas relações (cuidado e erotização) arraiga a significação única da mãe, que é incomparável e fixa-se imutável para toda a vida como o primeiro e mais intenso objeto de amor, como protótipo de todos os vínculos amorosos posteriores em ambos os sexos”. A que Green agrega: “se essas relações amorosas mostram-nos em seu pleno florescimento essa breve loucura, devemos supor que se acha presente desde a origem e em princípio na mãe e que acompanha, portanto, todas as vicissitudes desse Eros primordial. Na perversão, na neurose e até nas formas mais elaboradas de sublimação”. 204 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 205 Serapio J. Marcano De acordo com o que Green propõe, pensamos que o amor materno tem por objetivo favorecer na criança a eclosão da vida pulsional e fazê-la tolerável, servindo-lhe de continente e espelho. Quando a mãe é excessivamente frustrante ou excessivamente gratificante, converte-se em um objeto de excitação pulsional que transborda as possibilidades do eu nascente de elaborar, ligar e integrar tais pulsões. Dessa forma, a angústia de intrusão e de separação transborda o eu, como podemos observar nos casos limites. O efeito é similar ao que observamos nas pessoas que foram vítimas de incesto. Isso corresponde à loucura privada que se manifesta quando o sujeito põe em ato suas transferências em relação ao analista ou a qualquer objeto significativo da realidade externa. Esses podem dar lugar, com suas atitudes, à facilitação dessas transferências, mas não é um requisito indispensável para que as mesmas emerjam. Na análise, uma atividade interpretativa intrusiva ou excessivamente distante por parte do analista pode corresponder a elementos pulsionais que correspondem à loucura do objeto que, assim como o objeto original excitante, faz com que não se consiga a ligação pulsional e que apareça a loucura amorosa. Denomino tal atividade do analista como “loucura de contratransferência”, na qual o analista é o sujeito simétrico, não continente, não especular, ao analisante. Ao contrário, se o analista é mobilizado pela demanda pulsional do sujeito e em alguns momentos sente-se transbordar, e cai em atos intrusivos ou de distância e separação excessiva, mas se recupera deles, pode utilizá-los para entender tais fenômenos, tanto em si mesmo como no sujeito, e devolvê-los em uma atitude que convide o analisante a unir-se a ele na interrogação de tais transferências e assumi-las como eventos a serem explicados dentro de uma cadeia de significações – o que eventualmente permitiria apossar-se dos mesmos, com a correspondente diminuição do sofrimento e do gozo que busca o prazer absoluto. A ajuda que oferece o objeto, como auxiliar do eu e como continente, na luta do sujeito contra as excitações pulsionais internas e externas, mantém a loucura como algo privado. Nessas loucuras, conserva-se a relação do eu com a realidade, o pensamento racional segue intacto, mas a sensa- AMOR, TRANSFERÊNCIA E LOUCURA ção dos analisantes, dos objetos da realidade que o rodeiam e do analista, em sua contratransferência manifesta, é que se trata de um funcionamento louco, “fora de si”. Essa loucura é uma desordem afetiva, passional, que elege um objeto parcial ou total e se apega a ele mais ou menos exclusivamente, reorganizando a percepção do mundo ao redor dele, convertendo-o em único e insubstituível. Nos consultórios podemos observar, se não nos assustamos, como assustou Anna O. a Breuer, ou Dora a Freud, a emergência da loucura amorosa em forma de transferência e permitir-lhes que se expressem e contê-las para buscar sua ressignificação, em vez de iludi-las ao privilegiar as representações inconscientes ou alguns componentes isolados da fantasia inconsciente, como o estatuto do desejo, do objeto, da cena ou da defesa, em lugar de reconhecer a totalidade do fenômeno com a primazia do afeto sobre as representações, e assim manter a transferência dentro da análise. Nos historiais clínicos de Freud vemos como, por exemplo, no caso do pequeno Hans, este é dominado pelo amor por sua mãe, a qual o torna “louco”, no mesmo sentido em que um namorado diz estar louco por seu objeto de amor. Quantos objetos amorosos não se encontram atrás dos sintomas fóbicos? Como o fazer-se acompanhar para sair à rua no agorafóbico para proteger-se de uma compulsão sexual de sedução. No caso do “Homem dos Ratos”, que se torna louco no intelecto ao erotizar seu pensamento, o amor não aparece como o expoente da loucura, mas como as defesas: repressão, deslocamento e isolamento, que transferem a perversão que conota o desejo de sodomizar o objeto ao sintoma revelador de uma perversão do pensamento. Toda a transformação do pensamento é de tal magnitude aqui que se parece com o delírio, o que levou Freud a dizer que tais fenômenos merecem o nome de delírios. Quando, em um analisante de traços obsessivos, observamos o uso do pensamento, das palavras, da comunicação para transmitir e ou explorar o estado afetivo em sua relação com o analista, podemos dizer que, salvando a distância com o delírio do “Homem dos Ratos”, estaremos diante do amor na transferência, que pode 206 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 207 Serapio J. Marcano assumir movimentos passionais ao transformar-se em compulsão a compreender ou na coerção interpretativa. No caso do “Homem dos Lobos”, Freud nos mostra os mecanismos fundamentais que se encontram nas atualmente chamadas desordens fronteiriças ou casos limites, que estão na clivagem entre a loucura e a psicose. Ali descreve como mecanismo fundamental o que em alemão escreve-se como Verwerfung, que em espanhol traduziu-se como Repúdio, e que Lacan traduziu como Forclusão, reconhecendo em tal mecanismo uma modalidade da repressão na estrutura psicótica e que consiste, segundo Freud (1894), “que o eu desestima a representação intolerável junto com seu afeto, e se comporta como se a representação nunca tivesse comparecido. Somente no momento em que se conseguiu isso, a pessoa se encontra em uma psicose que não admite outra classificação que confusão alucinatória’”. O repúdio consiste, segundo Lacan, em não simbolizar o que deveria sê-lo (a castração): trata-se de uma “abolição simbólica”. Para Lacan, o repudiado reaparece no Real (no não-simbolizado). Esse repúdio da castração é diferente da repressão (Verdrangung) do neurótico, no qual ficam reprimidos os aspectos perversos da sexualidade, e também é diferente do mecanismo da Desmentida (Verleunung), que utiliza o perverso e mediante o qual o sujeito recusa reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante, principalmente a ausência de pênis na mulher (a mãe). No “Homem dos Lobos”, a loucura reside em sua bissexualidade, ligada à fixação à cena primária e sua raiva por ser excluído do gozo dos pais. Seu desejo é gozar pelo ânus como a mãe, ou pelo pênis como o pai, mas em nenhum caso se evita a castração. Sua raiva destrutiva oscila para um ou outro progenitor. Sua oscilação afetiva está entre os planos erótico e agressivo. Sua psicose expressa-se através do repúdio desejando não querer saber nada disso e em seu duplo funcionamento afetivo e intelectual. Na lógica afetiva admite a coexistência dos contrários e a outra funciona sobre o princípio do terceiro excluído, coexistindo com uma psicose latente da qual a castração está forcluída, repudiada. Sua loucura, à medida que fun- AMOR, TRANSFERÊNCIA E LOUCURA cione nela a angústia de castração, serve de barreira contra a eclosão da psicose e para que não fique no delírio. Nos casos limítrofes, podem surgir na transferência reações amorosas e de ódio muito intensas, de caráter primitivo e esmagador, que adquirem qualidade delirante no nível do pensamento. Essas reações amorosas ou loucuras transferenciais, que, como dissemos, alguns chamam de psicoses transferenciais, para diferenciá-las das transferências psicóticas dos psicóticos, estão baseadas em uma idealização do objeto como defesa diante da ansiedade persecutória de que tal objeto se transforme em intrusivo e excessivamente excitante. A inveja que gera tal objeto idealizado desencadeia ataques desvalorizantes ao mesmo. A erotização do vínculo é tão opressora que a palavra erotizada é equiparada a um contato sexual intrusivo de tipo pré-genital, de objeto parcial, o que produz impossibilidade de estabelecer a escuta. Não obstante, não está totalmente perdido o teste de realidade, como está no psicótico que faz transferências psicóticas dentro e fora do enquadre terapêutico. Nessas é notória a falta de discriminação entre o objeto original e a réplica, os quais sempre têm uma conotação narcisista e de objeto parcial, ainda que as maneiras como se expressem as pulsões sejam através do pênis, objeto parcial, e, se houvesse contato sexual, o que o mesmo contém é a busca de fusão simbiótica com o objeto. Recordo de um paciente esquizofrênico que passava as horas de sessões sentado frente a mim com o olhar fixo, quase sem pestanejar, e com uma torrente de saliva que lhe saía pela boca como um bebê babado diante do objeto de desejo que, para o esquizofrênico, está no real não simbolizado. Caberia perguntar-se finalmente se é possível falar de amor nas transferências psicóticas a menos que, tomando emprestado um critério da antropologia, digamos que o psicótico, que com sua boca quer devorar o objeto, ama igual ao canibal que come seu objeto conquistado como expres- 208 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Conferência Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Conferência realizada no Ciclo de Conferências “Clínica Psicanalítica sobre o Amor”, na Sociedade Psicanalítica de Caracas, Venezuela, 1998. Tradução: Viviane Freitas Dr. Serapio J. Marcano Calle San Rafael, Quinta “Shuruata”, Urb. Santa Fé Norte, Caracas, 1080 – Venezuela Fone: 582212.9763813 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 209 Serapio J. Marcano são máxima do amor. Os planos erótico amoroso e destrutivo coexistem, fusionando-se como o sujeito se fusiona e se confunde com o objeto, passando a ser ele. Entrevista da SBPdePA SBPdePA – Gostaríamos de saber um pouco da sua vida, da sua trajetória profissional, do que a senhora acha do seu percurso pela psicanálise. Raquel Zak de Goldstein Médica; Psicanalista; Membro Titular da Associação Psicanalítica Argentina. Raquel – Entendo que muito cedo me entusiasmou o ser humano na sua íntegra. Sou médica por formação, gosto muito da medicina, mas me dei conta muito cedo de que não ia poder pensar no corpo sem tratar da pessoa no seu todo. Isso, acompanhado de algumas leituras de Freud, através de amigos que estavam fazendo formação, mais o encontro com alguns professores especialmente interessantes me levou, naturalmente, a começar a carreira psicanalítica com o intuito de Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 213 Raquel Zak de Goldstein SBPdePA Entrevista Raquel Zak de Goldstein SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK DE GOLDSTEIN conhecer a psicanálise em sua maior profundidade possível. Um autor que me influenciou bastante foi Florêncio Escardo, que naquele momento era um inovador muito audaz da pediatria, o que acabou fazendo com que me interessasse por essa especialidade, para a qual me voltei quando terminei minha carreira médica. Fui ao hospital de crianças e me deparei com esse homem, que era um precursor aos moldes de Winnicott. Isso me pareceu tão forte que, quando comecei a tratar de bebês, me interessei logo pelo grupo de mães. Havia no hospital um pessoal da sociedade psicanalítica que ia nesse lugar fazer grupos psicoterápicos com os pais. Também faziam grupos de reflexão com os médicos. Isso foi por volta de 1957. Logo depois comecei minha formação psicanalítica. Escolhi Garma, de uma lista em que havia doze didatas, para ser meu analista. Supervisionei com Arnaldo Rascovski, que também era uma pessoa muito inovadora. Estive ainda em contato com Arminda Aberastury, quando fui conhecer a formação. Ela tinha um grupo de estudos sobre psiquismo fetal para o qual me convidou. Passei a observar grupos terapêuticos e também me desenvolvi como terapeuta de grupos. Então, primeiro iniciei com o consultório médico para crianças e logo comecei a formação. Acho que tive sorte de pertencer a uma época com capacidade de fazer as pessoas se apaixonarem pela psicanálise. Éramos capazes de viajar muito para estudar, enamorados pelos conhecimentos. Falo no plural, porque logo conheci meu noivo, que se tornou meu marido, e que também estava interessado em psicanálise. Criamos os filhos em contemporaneidade a amizades como a de Susana Ferrer, o que foi muito lindo e estimulante. Depois, passei a me interessar por determinados itens clínicos. Meu trabalho para membro associado foi com um paciente tuberculoso, e Garma me proporcionou bibliografias sobre tuberculosos célebres. Quando jovens, somos atrevidos. Lembro que postulei a existência de uma introjeção respiratória. Não retomei ainda o tema, mas é bastante interessante, porque eu relacionava a respiração com a alma, com a ânima, com toda a força dos mitos. Supervisionei também com Beth Garma, Marie Langer, Rodrigués. Em determina214 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 215 Raquel Zak de Goldstein do momento, apareceu na Argentina, para ajudar nos seminários, Willi Baranger. Desse momento em diante, nos escolhemos mutuamente para seguir dali para frente como professor e aluna, e trabalhei com ele até sua morte. Também participei de um grupo de estudos com Garma, depois que terminei a minha análise, com Baranger, que era formado em filosofia antes da formação, co-fundador da sociedade uruguaia APU, e com sua esposa, Madeleine Baranger. Ficamos muito amigos do casal e éramos vizinhos de bairro. Tínhamos um grupo que se reunia uma ou duas vezes por semana, formado por meu marido, Néstor Goldstein, por Jorge Garcia Badaracco e Jaime Spilka, que começou a estudar uma variedade de temas, percorrendo enorme bibliografia internacional. Em determinado momento, nos focalizamos no estudo crítico da obra de Lacan, e nunca vou terminar de agradecer a Baranger pela sua capacidade de ler Lacan, inclusive em francês, com Freud ao lado, às vezes em alemão, porque Baranger, como bom europeu, se saía bem no alemão. Foi um período muito bom, possivelmente por ser uma época muito tranqüila do ponto de vista político e econômico. Assim foi crescendo nossa vida pessoal. Tivemos dois filhos, que se casaram: o filho é arquiteto, era tenista profissional antes de se dedicar à arquitetura, e tem uma filha linda; e nossa filha, que tem duas lindas filhas, é arquiteta e também pintora desde muito pequena. No mês de junho, vai expor novamente no exterior. Está nesse momento expondo em Nova York, o que é muito estimulante. Cursou psicologia e fez formação psicanalítica, que terminou há dois anos, sendo atualmente membro associado. Um de seus amores é a investigação precoce da experiência estética. Creio que meus filhos são pessoas muito capazes criados em uma época talvez menos traumática que a de hoje. Baranger havia sido o tradutor de dois livros de Melanie Klein. Minha formação é muito enraizada nas escolas clássicas: Freud, Melanie Klein, Bion, Meltzer e Lacan, e em determinado momento surgiu o interesse por ler Winnicott. Um dos primeiros trabalhos que fiz com muito carinho foi um estudo da novela de Hermann Hesse, “Demian”, para ilustrar o tema da SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK DE GOLDSTEIN adolescência. Voluntariamente tentei não me envolver em atividades políticas, o que não pude evitar totalmente, porque nos últimos tempos, em parte como um compromisso interno, me postulei ao cargo para o Board da comissão diretiva da IPA, do qual faço parte desde o ano passado. O fiz por achar que não estava certo ser tão comodista nesse sentido. Tenho aprendido muito e é muito bom estar com gente inteligente, além de ser outro campo psicológico que vale a pena conhecer bem. Compartilho o Board com um grupo de vinte e uma pessoas de todo o mundo, sete por região: América Latina, América do Norte e Europa. Viajo muito a convite, dos quais um foi relevante, o de Otto Kernberg. Convidou-me para levar uma introdução Freud-lacaniana ao instituto de Nova York, onde recebi com honra o convite para dar uma conferência na cadeira de medicina da Universidade de Nova York. Todas situações que gratificam. SBPdePA – Que preocupações deveriam ter os psicanalistas em relação ao futuro exercício da psicanálise, considerando as novas demandas de hoje? Raquel – Gostaria de pensar com vocês o que chamam de novas demandas, para podermos ficar em acordo e para poder buscar minhas idéias sobre o tema. De qualquer maneira, podem-se dizer algumas palavras. Novas demandas, ou patologias que anteriormente não buscavam tratamento? Novas demandas ou mais demandas, pois, apesar de a psicanálise se preocupar por não estar solidamente arraigada na prática, como há muitos anos esteve, ou seja, em relação à recepção de pacientes, de candidatos para se formar, muito mais gente a tem em conta como terapia eletiva na América Latina, e talvez isso seja parte dos fatores que geram a impressão de nova demanda. Poderíamos pensar que há menos pacientes, mas talvez haja mais pacientes do que em tempos passados; somente não tantos para que cada profissional tenha um consultório suficientemente solicitado, uma vez que o número de profissionais aumentou. Também poderíamos pensar se não seria o progresso do pensamento 216 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 217 Raquel Zak de Goldstein analítico, nos últimos anos, o que poderia estar fazendo com que nossa escuta ouvisse novas complexidades das patologias que antes talvez escutávamos com um ouvido “clássico”. Há muitos escritos sobre isso. Perguntas: as neuroses da atualidade são como as neuroses clássicas? As patologias graves são isso mesmo, ou são neuroses atuais? As neuroses e psicoses estão tão distantes das histerias? As histerias têm sido pensadas em termos de elementos de ansiedades psicóticas? Pessoas como Maleval, que desenvolveram uma avaliação seletiva entre loucuras histéricas e psicoses dissociativas, nos dão uma oportunidade de outras reflexões e outra escuta sobre quadros que há tempos trataríamos com medicação – ainda que eu não tenha nada contra as medicações, pois em algumas circunstâncias também indico, com outro colega, um aporte medicamentoso como parte de um tratamento. Antes, certas histerias eram tratadas somente com o psiquiatra, e agora as temos no consultório. Certas psicoses que iam parar no depósito de psicóticos agora são tratadas em grupos terapêuticos com pessoas como Badaracco. Os filhos desses psicóticos são atendidos por nós, porque entendemos mais e melhor os efeitos que tem a loucura transgeracional. Então, quanto à demanda, estou convencida de que há uma zona da patologia que tem a ver com as épocas. Leio bastante certos filósofos como Adorno, Benjamin etc., e me dou conta de que o progresso e a modernidade e pósmodernidade trazem tanto as correntes benéficas quanto as das complicações, que vão por caminhos distintos. Suponho que com o tempo haverá cada vez mais precisão na resposta a esse tipo de pergunta: haverá quem sabe estatísticas, ou estudos mais detalhados sobre o que está acontecendo com as psicopatologias, com as regiões, as épocas, os espaços sociais, os problemas étnicos, e mais compreensão sobre as demandas e variedades a respeito dos quadros clínicos. Acredito que existem patologias características da nossa época, mas não são tudo. Segue havendo neuroses atuais, neuroses de angústia, patologias borderline, dinâmicas familiares patogênicas em importantes setores, e segue havendo investigações sobre paradoxos e contraparadoxos na família. SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK DE GOLDSTEIN Podemos nomear enormes quantidades e qualidades de campos analíticos em desenvolvimento e em fertilização cruzada, como a define um amigo de quem gosto muito, Robert Wallerstein. Os campos analíticos pósfreudianos e pós-lacanianos vão se reproduzindo em função do progresso e, em algum momento, entram em intercâmbio, surgindo novas perspectivas que ajudam a escuta do psicanalista. Se me perguntassem o que seguiria fazendo frente ao que se chama a crise da psicanálise, eu diria que seguiria fazendo possivelmente isso que estou dizendo. Aos que gostam de ler, pensar, refletir, correlacionar avanços, progressos, perguntas, enfoques, aconselho ler autores complicadamente ricos, como Piera Aulagnier ou Green, de difícil leitura, mas que fazem parte da psicanálise do futuro. SBPdePA – A respeito de Piera, que a senhora citou, o que salientaria de mais positivo no pensamento dessa autora? Raquel – É uma pós-lacaniana muito honesta e uma freudiana extraordinariamente sutil e honesta também. Entendeu a psicossomática, entendeu a psicose e entendeu novidades que apresenta como aportes pessoais. Aferra-se a alguns dos melhores pontos de Lacan, como o discurso, a linguagem, a violência da interpretação, que implica a necessária marca do desejo dos pais, e tem, sem pretensão acadêmica, uma paciência e delicadeza ao explicar cada um dos elementos que compõem o que para nós é o grande mapa dos conhecimentos analíticos a partir de Freud, e que permitem entender o funcionamento psíquico, que vem a ser uma de nossas paixões. Ela é capaz de explicar o processo primário e o processo secundário de uma forma tão assombrosamente interarticulada com seu próprio pensamento, ou com os de Freud e Lacan, que ou a gente a lê linha por linha e volta atrás, ou não entende nada, sobretudo do corpus que ela apresenta na primeira parte de seu livro sobre a violência. Uma vez que se possa incorporar o essencial das articulações que faz, podemos acompanhá-la falando como fala de psicoses, psicossomática e da clínica. Sei que não posso explicar como deveria. Só posso dizer que tratem de lê-la, porque faz parte da 218 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 SBPdePA – E a senhora, quando vai produzir o próximo artigo? Raquel – Estou preparando um tomo com artigos sobre Winnicott, reSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 219 Raquel Zak de Goldstein psicanálise do futuro. Todos falamos de psicossexualidade; não dizemos psiquismo e sexualidade. Muitas vezes Freud assinala especificamente esse termo – psicossexualidade – e o articula, mas somente com ela se consegue alcançar toda a significação que tem o desenvolvimento psíquico, no sentido da constituição de um sujeito subjetivo em paralelo com as zonas erógenas, com o prazer, com o desejo, com a pulsão de vida, pulsão de morte, e poderíamos seguir desenvolvendo por horas, de forma tal que seria outro modo de se apresentarem as articulações. Green é outra figura enorme que se entrega com absoluta generosidade a produzir, como Piera, o máximo possível do que entendeu, por amor à psicanálise. Também Laplanche, Pontalis, Bollas e Joyce McDougall. Na obra desta última há reflexos da obra de Piera, e vice-versa. A psicossomática passou a ser pensada de outra forma depois dessas duas autoras. As perversões também, e Freud foi novamente lido depois delas. O Projeto, por exemplo, é re-significado por nossas mentes depois de novas leituras, re-processado, e dizemos: caramba! Lacan tinha um grande respeito pelo Projeto, e muitos lacanianos o retomam, não para buscar a neurofisiologia, mas para não sair de uma zona que não é psíquica nem somática, a zona da psicanálise. Talvez fosse de se dizer: ah, essa é a zona de Winnicott! Porque é ele quem coloca o objeto virtual, o objeto criado como objeto transicional na zona intermediária, como ponte. Nesses dias estará na APA um homem que aprecio muito, um psicanalista muito conhecido e de valor nos Estados Unidos, Gilbert Rose, que se dedica à psicanálise e à arte, não como psicanálise aplicada, senão exatamente como metapsicologia, e agora vai apresentar um artigo sobre música. Falei com o presidente de vocês sobre a possibilidade de pedir autorização a Gilbert para que possamos publicar esse artigo. Temos muita gente produzindo e, é claro, temos que saber escolher. SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK DE GOLDSTEIN lidos e pensados atualmente, muitos artigos em andamento, e o mais atual, que mais vem me interessando, está relacionado à cura psicanalítica e à desidentificação, um dos artigos de “Artesanias” que se intitula “Próximo da desidentificação”, e o comento porque, quanto mais passa o tempo desde que escrevemos isso, mais o encaro com a idéia de uma das crises mais atuais, que é a desilusão nos tempos modernos e o efeito que tem sobre o funcionamento psíquico latente. Nesse ponto me junto à idéia de trabalhar para lograr trazer à clínica de cada dia, à cura, as estratégias de campo que dispõem as coisas para que seja possível um processo de desidealização, obviamente do objeto mau patógeno. Pensamento em termos de identificação precoce e de desidentificação como desalienação, buscando o contexto e as condições para que haja desalienação, sim, mas não com lapso da identidade. Esse é um dos temas que mais me interessa, a clínica e a cura enfocando essas questões dificílimas. Outro dos temas se refere à relação entre a etapa da cura (final da análise) e a destituição do analista dessa posição de pai-falo a que é destinado sempre (Lacan a chama “sujeito suposto saber”) e a relação que isso tem com os três tempos precoces do Édipo, pois sigo em parte a posição de Lacan sobre isso. Brevemente sairá o primeiro livro publicado pela APA, cujo título é “Alteridade, intersubjetividade e o outro”. A respeito disso tenho um artigo que continua a elaboração desse assunto e em que particularmente avanço um dos temas que me interessa mais, que é quanto e como implica o processo da destituição do pai no terceiro tempo, para que o processo edípico se realize adequadamente e se ingresse na ordem simbólica. Dito em outras palavras, que duro que é para os pais renunciar a ser o rei, o falo da família! O quanto temos nós, mulheres, que nos ajudar, ajudar os filhos e ajudar esse homem que durante muito tempo teve de ser o pai interditor e que depois tem de se transformar num cidadão simples, transmissor da lei; quanta delicadeza tem de se colocar para que esse procedimento se realize sem danos. Isso, eu busco em confrontação com o processo da análise do analista, da posição do analista no campo, que também tem de ser capaz de 220 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 SBPdePA – Em dezembro de 1999, a senhora proferiu uma conferência sobre angústia na nossa sociedade e falou das riquezas sublimatórias. Poderia nos falar um pouco sobre isso? Raquel – O princípio é simples, porque para Freud um dos destinos da pulsão é a sublimação. Para todos, exceto para Lacan. Não sei se vocês sabem que Lacan não aceita a idéia de sublimação, como também não aceita a idéia de contratransferência. Riqueza sublimatória significaria, longe de ser uma desgraça passar pelo Édipo e ser capaz de reconhecer a incompletude, a castração simbólica, a alteridade, a finitude, ser uma bênção e uma liberação. Isso seria a síntese do que quis dizer. (Nesse momento a fita do gravador termina, e, na tentativa de virá-la, ocorreram algumas atrapalhações com o aparelho, motivando o seguinte comentário da Dra. Raquel:) Raquel – Por que as mulheres se atrapalham tanto com aparelhos eletrônicos, em geral? Se estudamos e não temos dificuldade para entender, se nos orientamos no mundo e não temos dificuldades para entender e para existir, se a maioria de nós pode parir e criar filhos, não deveríamos ter dificuldades para fazer coisas difíceis. Por que temos dificuldades supostamente com a tecnologia? Primeiro, com a maior modéstia possível, recomendaria reler o meu artigo sobre o continente negro e seus enigmas, que está no livro “La erótica”. Também recomendaria que tenham um pouco de paciência, pois ainda não terminei de escrever sobre o corpo carnal feminino, que é um capítulo que me devo há muito tempo, e sobre as diferenças do trato com o carnal e o simbólico no homem e na mulher. Não me parece que o homem tenha menos trato com o carnal e que a mulher tenha menos trato com o simbólico. Parece-me, sim, que é de outra maneira. Para um Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 221 Raquel Zak de Goldstein transitar desde a investidura daquele que sabe para uma posição na qual “libera a pomba para que viva”, isto é, libera o sujeito para o que seria uma atitude permissiva do pai ou do analista. Faço correlato com “Totem e tabu”, além de outros, mas não vou contar o final do artigo. SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK DE GOLDSTEIN homem, por exemplo, os aparelhos são um grande alívio, são concretos, bem limitados. Ao contrário, quando o homem trata com o carnal é muito temeroso, quase como nós mulheres com os aparelhos, porque não é sua natureza psicossexual. Tudo isso considerando sempre a natureza bi-sexual, no sentido de que há algo de feminino conservado em todos os níveis no homem, e há algo de masculino conservado em diversos níveis na mulher. O feminino do homem é à maneira masculina, e o masculino da mulher é à maneira feminina. Por isso é que o trato com os aparelhos é complicado para as mulheres. Digo isso, porque na troca da fita cassete brincamos com o comportamento um pouco mais que cuidadoso, o que é comum em geral no primeiro momento em que uma mulher vai lidar com um aparelho. Poderíamos apagar o aparelho e dizer algo pornográfico. Quando a mulher tem de tratar do aparelho masculino sexual, sabe que é algo muito sutil, sabe que responde de maneira insólita, imprevista, ou não tão fácil de prever. É uma espécie de magia, e o mesmo acontece com o homem em relação ao corpo feminino; além dos temores inconscientes que ambos podem ter desde sua sexualidade infantil ou de suas neuroses da infância. Voltando à riqueza sublimatória, como disse, é uma bênção ficar liberado do lugar narcísico imaginário de completude “ideal” de uma funcionalidade mortífera. Tudo o que vem depois é riqueza, tudo o que se pode ir fazendo irá depender das habilidades pessoais, da história própria de cada um, do que cada um pode fazer com suas habilidades naturais, com o conhecimento adquirido, com os professores, mas é infinito! O infinito de riquezas simbólicas do universo simbólico do tesouro significante, como o chama Lacan, fica à nossa disposição quando atravessamos a barreira do aprisionamento narcísico, que é o primeiro aprisionamento em que nos escondemos. Não estou falando de patologia, e sim da bolha narcísica, que é outro artigo que estou agora preparando, como o primeiro habitat que tem o infante à medida que se preserva e faz essa segunda pele psíquica e narcísica, a chamo eu. Psíquica no conceito de Anzieu, do eu-pele, que tomo em relação a uma bolha narcísica que inicialmente é protetora, como uma segunda pele perimetral, a partir da qual se pratica a permeabilidade, 222 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 223 Raquel Zak de Goldstein não a ruptura nem a esclerose, mas uma troca metabólica dinâmica. Tomo como metáfora a ameba de Freud, com as funções metabólicas dos seus vacúolos alimentícios, seus processos de estudo que verificam o conteúdo do que entrou mas não se incorporou. Nesse processo, escolhe o que é ego sintônico ou construtivo e expulsa o que é distônico ou tanático. Para fazer isso é preciso estar confiante de que todo o perímetro está a salvo, de que ninguém vai entrar de surpresa. Meu marido escreveu um trabalho muito bonito sobre a surpresa na clínica. Ultimamente tenho também uma paixão analítica. Interessa-me estudar o destino dos resíduos. No caso da ameba, por exemplo, o que faz com o que não pode metabolizar? O expulsa onde? São metáforas, naturalmente, mas têm muito a ver, e nessa linha torna-se apaixonante a relação com o outro, porque estamos sempre em relação com outros, e sempre estamos envolvendo o outro para que ele ou nos ajude a limpar o que lhe demos, para que nos limpe, ou para que faça o que possa, ou para matá-lo, se o odiamos ou nos fez mal. É uma fórmula mais evoluída do conceito de identificação projetiva. Em relação às intersubjetividades, o que ocorre entre as pessoas? Gostaria de nomear novamente meu grande amigo Jorge Garcia Badaracco, que no trabalho com grupos multifamiliares para psicóticos e borderline presta especial atenção às interdependências. Põe manifesto o que é tão visível: que todos dependemos de todos em algum grau, de alguma forma. Dentro das interdependências, agora no meu ponto de vista, há relações parecidas com o que Lacan chama de “nós de escravidão imaginários”, na busca do olhar que nos reconhece, que nos qualifica: pode-se avaliar isso quando uma pessoa emigra e se encontra em um lugar no qual não a tratam mal, mas não a conhecem: agüenta pouco. Outro grande exemplo é o prisioneiro isolado; agüenta pouco sem os parâmetros de tempo, espaço, realidade interior e exterior, e o olhar dos outros. Com tantos campos, penso que não há crise da psicanálise. Há crises econômicas, sociais, culturais, religiosas, políticas, tirânicas. Pode ser que haja crises do psicanalista, que tem de voltar a levantar seus ideais com a psicanálise, porque a psicanálise não se cuida sozinha. Temos resistências, medos. É normal que atuem à nossa sombra, SBPDEPA ENTREVISTA RAQUEL ZAK DE GOLDSTEIN temos repressão. Queremos viver sem os monstros do inconsciente. Quem quer estar todo o tempo perto dos monstros do inconsciente? Lembram quando Freud dizia: se convocarmos os monstros, não os expulsemos sem antes interrogá-los. Quando iniciamos uma experiência analítica ou uma leitura analítica, vão aparecer os monstros, que são as pulsões e o arcaico. Bem, espero não tê-las cansado. SBPdePA – Absolutamente. Por nós iríamos até tarde da noite, mas sabemos que a senhora tem um compromisso. Raquel – Já está na hora? Vou tomar mais uns minutos para encerrar. Agradeço muito a vocês. SBPdePA – Nós é que agradecemos. O prazer foi todo nosso, aprendemos muito hoje, aqui nesse encontro. A forma como a senhora expõe é muito clara e agradável. Raquel – Agradeço essa reação. Bom, é por isso que viajo muito. Obviamente é só por isso, porque me apaixona. SBPdePA – Na sua resposta à primeira pergunta, já deu para perceber que essa paixão começou há muito, e ela é contagiante, porque nos deixou encantadas tanto pela senhora como pela psicanálise. Raquel – Talvez seja essa uma de minhas motivações. Voltar a acender a paixão nas pessoas. Ampliando a resposta à primeira pergunta, quero destacar, especialmente porque é notável e conhecido, o meu amor pelo Brasil e minha relação divertida, amistosa e estimulante com as pessoas deste país, em todos os lugares em que estive, de norte a sul. Destaco particularmente minha relação de amor amplo com Porto Alegre, e com as pessoas que neste momento estão me entrevistando, que fazem parte de um grupo humano com o qual me sinto muito ligada e que me provocou tanto 224 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 SBPdePA – Bem, Dra. Raquel, mais uma vez muito obrigada por este momento tão proveitoso. Entrevista Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Participaram da entrevista, representando a comissão editorial: Carmen Moussalle, Carmen Saile Willrich, Rosa Beatriz Squeff. Tradução: Heloisa Fetter Dra. Raquel Zak de Goldstein Ramon Castilla 2943 1425 Buenos Aires – Argentina Fone: (54 11) 4802-8554 Fax: (5411) 4805-3245 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 225 Raquel Zak de Goldstein entusiasmo que conseguiu que eu estivesse viajando para cá desde aproximadamente dez anos. Se tivesse de escolher outro lugar para morar, certamente seria o Brasil. Aliás, minha lua-de-mel foi no Rio, e minha filha foi concebida lá. PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES NORMAS GERAIS PARA PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS* 1. Os manuscritos que se publicam na Revista devem ajustar-se a alguns requisitos formais: a. O trabalho deve ser inédito (excetuam-se trabalhos publicados em anais de Congressos, Simpósios, Mesas Redondas, ou Boletins de circulação interna b. c. de Sociedades Psicanalíticas; exceções serão consideradas); O trabalho não pode infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem ser feitos de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em relatos clínicos; d. O trabalho deve respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor; e. ofensivo ou difamatório; f. O trabalho não deve conter nenhum material que possa ser considerado O autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegr e ele está transferindo automaticamente o “copyright” para essa, salvo as exceções previstas pela lei; O trabalho não deve estar sendo encaminhado simultaneamente para outra publicação sem o conhecimento explícito e confirmado por escrito do Conselho Editorial. A Revista normalmente não colocará obstáculos a divulgação do artigo em outra publicação, desde que informada previamente. Quaisquer violações destas regras que impliquem em ações legais serão de responsabilidade exclusiva do autor. * Baseado na Revista Brasileira de Psicanálise da Associação Brasileira de Psicanálise. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 227 2. Os trabalhos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada a sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização da Revista. 3. As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão, adequação e procedência das referências e citações bibliográficas, são de exclusiva responsabilidade dos autores. 4. Os originais deverão obedecer as seguintes exigências mínimas: a. b. Os originais enviados para a publicação deverão ser endereçados ao Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, cujo endereço é Quintino Bocaiúva, 1362. Em três vias e cópia em disquete (gerado em Word for Windows); c. enviadas em duplicatas de tamanho adequado. O conteúdo total de ilustrações não deverá exceder ¼ do espaço ocupado pelo artigo; exceções serão consideradas; d. espanhol) e endereço do autor; 5. Referências: Ex tensão máxima de vinte (20) páginas digitadas só na frente, em espaço duplo em papel formato A4. Cada linha deve conter 70 toques e cada página 30 linhas sendo numerado no ângulo superior direito. Tabelas gráficos, desenhos e outras ilustrações sob forma de cópias fotográficas devem ser Os ensaios e reflexões deverão obedecer a seguinte estrutura: título, nome do autor, titulação do autor, tex to, palavras-chave (em português, Inglês e A sinopse deverá conter em torno de 150 palavras e ser capaz de transmitir ao leitor os pontos principais que o autor deseja expressar. As seguintes normas estão baseadas nas publicadas pelo International Journal of Phychoanalysis e na Revista Brasileira de Psicanálise. As referências deverão incluir somente trabalhos estritamente relevantes e necessários, não se deve acumular uma vasta bibliografia. As referências no decorrer do tex to serão dadas citando-se o nome do autor seguido do ano de publicação entre parênteses, por exemplo, Freud (1918) ou (Freud, 1918). 228 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004 Se dois co-autores são citados, os dois nomes deverão ser mencionados, por exemplo Marty , de M’Uzan (1963) ou (Marty, de M’Uzan, 1963). Se houver mais de dois autores, a referência no tex to indicará o primeiro, por exemplo: Rodrigues et al.(1983) ou (Rodrigues et al.,1983). A referência completa das obras citadas figurará na lista das referências bibliográficas, colocada no final do artigo, lista essa que deverá corresponder exatamente às obras citadas, sem referências suplementares. Os autores são mencionados em ordem alfabética e suas obras pela ordem cronológica de publicação. (para as obras de Freud, as datas correspondentes são indicadas entre parênteses na Standard Edition). Se várias obras foram publicadas no mesmo ano, deve-se acrescentar à data de publicação, as letras a, b, c etc. Quando um autor é citado individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde ele é o único autor, seguidas das publicações em que ele é o co-autor. Os nomes dos autores não serão repetidos, mas indicados por um traço. Os títulos dos livros grifados, sendo que as palavras mais importantes serão escritas em letras maiúsculas, o lugar da publicação e o nome do editor serão igualmente indicados. Se uma referência é dada a partir de outra edição que a original, a data da edição utilizada deverá figurar no final da referência. Nos títulos dos artigos (e igualmente nas obras de Freud) somente a primeira palavra figurará em letra maiúscula. O título do ar tigo será seguido da abreviação grifada da revista, do número do volume, e dos números da primeira e da última página. Para as abreviações dos títulos das revistas, poder-se-ão consultar os números que já foram mencionados ou no caso de dúvida, citar o nome por ex tenso. Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação. 6. Procedimentos de Avaliação: a. Todo ar tigo entregue para publicação será avaliado através de critérios padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre; Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 229 b. O avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o c. mesmo seja mantido pelo próprio avaliador. d. editorial estabelecido; Sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado, em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa Artigos que não forem publicados em 6 (seis) meses, a partir da data de sua aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha liberdade de enviá-lo a uma outra publicação. PS. Para mais detalhes consultar revistas. 230 Psicanálise v. 6, n. 1, 2004