Identidade e cultura: reflexões sobre auto
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Identidade e cultura: reflexões sobre auto
Identidade e cultura: reflexões sobre auto identificação racial no Brasil 1 Evandro Finardi Sabóia I. Resumo Propomos a discussão da questão da identidade racial dos sujeitos, como estes se percebem na sociedade brasileira, para tanto debateremos e questionaremos o sistema classificatório do IBGE, buscando compreender como o sujeito se autoidentifica quanto à cor/raça de acordo com os parâmetros do instituto. Para entender como a autoatribuição se dá, faz se necessário compreender a forma como a identidade desses sujeitos é construída, levando em consideração que esta é resultado das interações entre sujeitos e sociedade a qual pertencem. Justamente o sentimento de pertencimento coletivo que faz com que o processo de construção da identidade passe por questões culturais. Sendo a cultura uma ponte entre os indivíduos, que possuem suas individualidades e angústias, a identidade coletiva aparece como um modo com o qual estes tentarão se encaixar e se perceber, mesmo sabendo que muitas vezes tal identidade coletiva não os representará completamente, buscando o pertencimento a determinado grupo. A intenção é tentar compreender e analisar a construção da identidade racial e o papel que a cultura tem nessa construção. Partindo dos critérios do IBGE para classificações de cor/raça, caberá discutir dois critérios, os de preto e pardo, entendendo que, em termos de identidade coletiva, estes são parte do grupo negro, isto é, existe uma construção cultural de acordo com a qual pretos e pardos pertencem ao mesmo grupo, o negro. Propomos analisar a construção dessa identidade coletiva a partir da ideia de cultura, que entendemos funcionar como elo entre os indivíduos autoidentificados como preto/pardo e o grupo negro. Palavras-chave: Racismo, identidade, raça e cor. II. Introdução “Sem identidade, somos um objeto da história, um instrumento utilizado pelos outros, um utensílio. E a identidade é o papel assumido: é como numa peça de teatro em que cada um recebe um papel para desempenhar" (Joseph Ki-Zerbo). A epígrafe acima chama atenção para a construção da identidade como um papel a ser assumido e desempenhado na sociedade, porém esse trabalho discutirá o inverso, isto é, propomos que há de se compreender a identidade como um processo, uma construção que está vinculada ao tempo e sociedade aos quais o indivíduo pertence. A ideia de papel na construção do eu foi discutida e debatida na antropologia clássica por Mauss (2003), em “Uma categoria do espírito humano: A noção de pessoa, a de ‘eu’”. O autor parte da análise da ideia de persona encontrada 1 Este texto é parte das reflexões desenvolvidas no âmbito da realização da pesquisa A PERSISTÊNCIA DAS IDEIAS DE “RAÇA” E “DEMOCRACIA RACIAL”: UMA ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES E PERCEPÇÕES SOBRE RACISMO E PRÁTICAS RACISTAS NA CIDADE DE SÃO PAULO, realizada com bolsa do Programa FESPSP - PIBIC/CNPq e vigência entre 2012-2013. 1 na cultura latina, que se utiliza das máscaras que representam papéis, no cotidiano, na sociedade. Podemos destacar o exemplo de Mauss (2003) referente aos grupos zuni e pueblo, os quais possuem um estoque limitado de nomes próprios associados à determinadas funções sociais, portanto, quem exerce uma dessas funções tende a levar esse nome e não um outro. Logo, podemos perceber que nessas sociedades há uma ideia de papéis fixos e imutáveis, como a ideia a que a epígrafe nos remete, mas, se definimos a identidade como um papel assumido, estamos limitando a identidade a uma característica fixa, imutável e estática que é o contrário do que afirma a linha de pensamento a que nos afiliamos. Uma melhor definição e interpretação para a ideia de identidade que utilizamos neste trabalho é a de Castells: “A elaboração de uma identidade empresta seus materiais da história, da geografia, da biologia, das estruturas de produção e reprodução, da memória coletiva e dos fantasmas pessoais, dos aparelhos do poder, das revelações religiosas e das categorias culturais. Mas os indivíduos, os grupos sociais, as sociedades transformam todos esses materiais e redefinem seu sentido em função de determinações sociais e de projetos culturais que se enraízam na sua estrutura social e no seu quadro do espaço-tempo” (1999, p.18). Desta forma, a identidade se produz na interação de um indivíduo com outro e com a sociedade a qual pertence, portanto a alteridade será percebida e analisada num contexto histórico e cultural de uma determinada época e compreendida na forma como o indivíduo se identifica perante a mesma. Também podemos identificar essa transformação na análise da noção de pessoa, proposta por Mauss (2003), na qual a partir do momento que surge em Roma a ideia da pessoa jurídica, a pessoa passa a ter direito a uma máscara própria e, consequentemente, será esta que será apresentada à sociedade e não outra. Além disso, a partir do momento que se reconhece esse direito, a pessoa passa a fazer parte de uma sociedade mais global, a Roma nesse caso, e assim as suas relações sociais naquele meio irão determinar e ajudar a construir uma identidade absolutamente individualizada, com o direito de portar a máscara própria e falar em seu próprio nome, como romano. Visando compreender e entender o processo de construção da identidade do grupo negro na sociedade brasileira, analisaremos essa construção mencionando desde a época das ideias eugênicas até chegar aos dias atuais quando o IBGE discute a identificação cor ou raça em seus questionários censitários. Ao partir desse levantamento histórico tentaremos traçar uma rápida percepção de como os negros eram identificados e tratados, após a abolição da escravatura e consequentemente a primeira República. Partindo dessa compreensão, verificaremos como essa identidade em diversas épocas foi elaborada e qual o papel de nossa sociedade 2 nessa construção. Após esse breve levantamento histórico, analisaremos o papel que a cultura possui na construção atual da identidade negra visando à reflexão sobre as categorias de cor ou raça propostas pelo IBGE e o modo como os sujeitos se percebem e se autoclassificam, para, a partir daí, compreendermos a construção da identidade no grupo negro nos dias atuais. III. Construção Histórica Iniciamos com um breve levantamento histórico para pontuar e caracterizar a questão da construção da identidade negra. Esta questão está diretamente ligada às ideias de eugenia2, que quer dizer boa geração. A ideia de eugenia se fez presente no final do século XIX e começo do século XX no Brasil e teve grande repercussão na negação e, até mesmo, na legitimação da exclusão social de uma parcela da população brasileira, gerando consequências que repercutem até os dias de hoje. A história da eugenia se inicia na Europa com o médico inglês Francis Galton, conhecido como pai da eugenia, que, segundo Diwan (2011), parte da seguinte premissa em seus estudos: “A teoria evolucionista foi o pontapé que inspirou Galton a dedicar-se ao desenvolvimento de uma teoria social que tivesse como objetivo principal a evolução da raça” (2011, p.39). E é o princípio de necessidade de evolução da raça que irá nortear os pensadores brasileiros, muitos desses influenciados pelas ideias europeias e de pensadores que vinham ao Brasil para compreender a miscigenação, como um dos mencionados por Schwarcz (1996); um viajante suíço, que concluía em seu livro Viagem ao Brasil de 1865 afirmando que: “‘Quem quiser ter um exemplo do que é a degeneração e a mistura racial extremada, venha ao Brasil e terá a prova da degeneração local’.” (1996, p.171). Além disso, as questões eugênicas sempre foram um problema para os intelectuais brasileiros, pois a nossa população já era composta de uma maioria mestiça nessa época. Segundo o recenseamento de 18723, tínhamos setenta por cento de nossa população considerada mestiça, isto é, composta por negros, pardos e caboclos, logo, pensar a 2 “Eugenia é o estudo dos meios de melhorar o patrimônio genético das populações, ou de impedir que ele se deteriore. As medidas eugênicas tendem a elevar as frequências de genes ou conjuntos gênicos benéficos, ou impedir que elas caiam (eugenia positiva), e tendem a reduzir as frequências dos genes ou conjuntos gênicos nocivos, ou a evitar que elas aumentem (eugenia negativa)” (FROTAPESSOA, 1996, p.37). 3 Consultado no site do IBGE. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/visualiza_colecao_digital.php?ti tulo=Recenseamento%20Geral%20do%20Brasil%201872%20%20Imp%E9rio%20do%20Brazil&link=Imperio%20do%20Brazil# Acessado em 14/11/12. 3 questão da eugenia nos moldes da perspectiva europeia não seria possível devido ao alto número de mestiços. Uma vez que “segundo os modelos da época, pior do que as ‘raças puras inferiores’, eram as raças mestiças, já que da mistura de espécies muito diferentes só poderiam surgir produtos absolutamente degenerados” (Schwarcz, 1996, p.172). Os intelectuais brasileiros utilizaram das faculdades de direito e de medicina para exporem e desenvolverem suas teorias eugênicas. Começamos por Recife, que tinha Silvio Romero, um evolucionista social, cuja obra foi marcada por contradições, muitas vezes defendendo o determinismo racial, mas ao mesmo tempo assumindo que nosso futuro era mestiço, mas com a ressalva de que “apenas” em termos culturais. Já em São Paulo tivemos alguns pensadores da escola de direito que estavam ligados diretamente à antropometria, isto é, com a ciência que analisa a potencialidade de uma raça a partir de estudos como o do diâmetro de crânios. Estes intelectuais buscavam inspirações nos estudos e modelos do médico italiano Cesare Lombroso, que utilizava a antropometria para fazer estudos de uma disciplina que ficou conhecida como antropologia criminal. É por meio da antropologia criminal que os intelectuais paulistas tentavam descobrir o “perfil craniano do crime”, o qual, segundo Lombroso, estaria ligado às raças inferiores. Mas os locais mais radicais quanto às teorias raciais e eugênicas, eram a Bahia e o Rio de Janeiro. Na Bahia tínhamos o médico Nina Rodrigues, adepto das teorias de Lombroso e da degenerescência, segundo as quais a mestiçagem era considerada um mal. Já no Rio de Janeiro, tínhamos o médico Renato Kehl, que pode se considerar pela história, um dos maiores entusiastas da eugenia. Kehl pregou a implantação no Brasil da mesma política que se empregava na África do Sul, o apartheid, além disso, foi presidente e responsável pela maioria dos congressos nacionais em que se discutiram e pensaram as questões eugênicas sobre e para nosso país. Kehl também é o autor de uma frase célebre, que irá nortear toda a discussão sobre branqueamento: “a nacionalidade brasileira só embranquecerá à custa de muito sabão de coco ariano”. (Kehl apud Diwan, 2011 e Schwarcz, 1996). O debate sobre o embranquecimento da população brasileira surgiu no início do século XX, ganhou força em meados da década de 1930, e fez nascer em nossa sociedade uma enormidade de gradientes de cor, que pretendemos debater a partir da análise do quesito cor ou raça do IBGE. É preciso lembrar, porém, que foi também o debate sobre a necessidade de embranquecimento de nossa população que desencadeou, segundo Schwarcz (1996), o surgimento de uma nova vertente no 4 debate, a de valorização da mestiçagem. Como propõe a autora, “o importante não é ficar só delatando o preconceito, o que em si já é relevante, mas tentar entender qual foi a química que aconteceu nos anos 30 que transformou esse cenário, de profundo pavor da mestiçagem, na mística da democracia racial” (1996, p.176). IV. Quesito cor ou raça IBGE A questão da classificação de cor ou raça empregada pelo IBGE tem mais de um século de história e não foi criada nem inventada do nada, ela parte da ideia de que: “era necessário caracterizar bem o fugitivo para que pudesse ser identificado a partir do texto leva à elaboração de cores compostas, com outros termos de cor definindo nuanças, ou como outras categorias de termos étnico-raciais: pardo quase branco, preto retinto, cobre azeviche, preta de angola, crioulo bem preto. (...) nessa grande variedade de termos, três se destacavam de forma inequívoca como os mais usados: preto, pardo e branco. Assim, no primeiro Censo oficial brasileiro, realizado em 1872 esses vocábulos raciais de grande fluência social foram os designadores das categorias da classificação racial” (Osório, 2003, p.18). Após esclarecer a classificação que é utilizada até os dias de hoje pelo Censo do IBGE, propomos analisar a questão do gradiente de cor que surge no senso comum, e até mesmo dentro de algumas ideias de intelectuais que acreditavam que a população brasileira dentro de alguns anos se embranqueceria. Segundo Guimarães (2000), a democracia racial estaria pautada em alguns pontos e um deles é justamente a questão do gradiente de cor e até mesmo o embranquecimento que era desejado por parte da sociedade brasileira do começo do século XX. Deste debate, destacamos os seguintes pontos que interessam a esse trabalho: “[No Brasil] (a) a “cor” e a “aparência” são mais importantes do que a “raça”; (b) a noção de cor é ambígua, existindo um contínuo de cor; (c) a polaridade branco/negro organiza o gradiente de cor e de prestígio social; (d) o embranquecimento, que antes significava tão somente substituição da população negra pela branca ou, quando muito, miscigenação biológica, passa a significar ascensão social e aculturação dos negros e mulatos; (e) de que não existem, propriamente falando, grupos raciais ou comunidade negra (...)” (Guimarães, 2000, p.22). Nota-se na passagem de Guimarães que quanto mais um negro, ou um mestiço, ascende socialmente, automaticamente sua cor é negada e o mesmo passa a ser considerado branco. Podemos identificar bem este processo na seguinte afirmação de Darcy Ribeiro (1996): 5 “Um dia Santa Rosa foi procurado por um negro do Itamarati, cujo nome não vou dizer, e que lhe disse: ‘Como é difícil ser negro! Para nós tudo é muito mais duro, temos de fazer muito mais força, é uma coisa terrível’. Santa Rosa então disse: ‘Eu sei, eu também já fui negro!’. Quer dizer, é evidente que um pintor exitoso não era mais negro coisa nenhuma” (Ribeiro, 1996, p.211). Essa frase de Darcy Ribeiro evidencia algo comum em nossa sociedade, que rechaçava o negro e tinha como ideal o embranquecimento da população. Além disso, podemos notar a presença desta perspectiva no “inconsciente” da população, a qual corroborou, em muito, para manter viva a ideia e as práticas de democracia racial. Assim, é com base nas ideias de branqueamento da população e de democracia racial que se construiu culturalmente a identidade negra, identidade esta que propomos entender como uma construção negativa, isto é: “A afirmação ‘sou brasileiro’, na verdade, é parte de uma extensa cadeia de ‘negações’, de expressões negativas de identidade, de diferenças. Por trás da afirmação ‘sou brasileiro’ deve-se ler: ‘não sou argentino’, ‘não sou chinês’, ‘não sou japonês’ e assim por diante, numa cadeia, neste caso, quase interminável. (...) Assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis.” (Silva, 2000, p.75). O trecho citado acima nos ajuda a compreender porque surge uma enorme variedade no gradiente de cores em nossa sociedade, pois se o moreno não se identifica com os negros ele nega sua negritude e acredita não fazer parte daquele grupo, por se sentir mais próximo dos brancos, prefere se autoidentificar como moreno, ao invés de pardo, ou preto, segundo as classificações do IBGE. Um estudo do IPEA, realizado por Rafael Guerreiro Osório (2003), nos mostra que “a compilação das respostas ao quesito de declaração livre revelou nada menos que 136 termos distintos de identificação racial” (p.25), portanto a autoidentificação nos mostra que o sujeito nega alguns atributos físicos e até mesmo de cor, e se identifica com outros, diferentes daqueles propostos pelo Censo do IBGE. Além disso, pode-se notar como afirma Maria Lúcia Montes, que: “... a ideia do negro de alma branca constitui uma forma terrível de expressão do preconceito. Mas ele explica também porque as pessoas se desidentificam com a sua própria cor. A cor está aí, mas em suma: será que basta ter a cor, basta uma característica biológica da raça, para que as pessoas se identifiquem e sejam identificadas como pertencentes a um determinado grupo étnico? O que estou tentando mostrar é que há uma complexidade infinita de processos sociais que, em contextos e situações determinadas, vão construir diferencialmente sistemas de identificação, os quais vão permitir, em momentos distintos, afirmação de identidade ou não-identificação.” (Montes, 1996, p.59). Ao refletir sobre esse grande número de termos que surgiu na pesquisa livre, e sobre essa “desidentificação” proposta por Montes (1996), podemos dizer que os 6 sujeitos que se negam a se identificar seja como pretos ou como brancos, portanto, poderiam ser identificados como mestiços. Mas qual é a identidade do mestiço? Segundo Ribeiro (2010): “Posto entre dois mundos conflitantes – o do negro, que ele rechaça, e o do branco, que o rejeita – o mulato se humaniza no drama de ser dois, que é o de ser ninguém” (2010, p.223). O mulato desta citação representa o mestiço como um todo, alguém que está entre os dois mundos que o originaram, ou seja, ele é filho do cruzamento entre branco e preto do qual surge o mestiço, mas não se identifica com nenhum destes mundos, não tem uma cultura a qual se sinta incluído. Isto é, o branco tem a sua cultura, a “europeia”, e o grupo negro tem a sua cultura, a “africana”, porém o mestiço é um híbrido e por isso pertenceria às duas formas de cultura. Porém é Darcy Ribeiro (2010) que nos mostra que as culturas também foram miscigenadas e também sofreram alterações. Assim o mestiço deveria se enquadrar nessa cultura miscigenada proposta por Ribeiro, ou o seu lugar seria próprio e diferente daquele do grupo negro? Acreditamos que a resposta a essa pergunta é não, pois segundo Silva: “Normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é ‘natural’, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. Paradoxalmente são as outras identidades que são marcadas como tais.” (2000, p.83 – grifos no original) Portanto, fica claro que há uma divisão da sociedade brasileira, a qual elegeu como uma identidade natural, a identidade branca, e as outras sofrem uma hierarquização “natural” que pode ser notada através do gradiente de cor, gradiente esse que também pode surgir pelo simples fato de mestiços negarem ser negros, como afirma Ribeiro (2010), e ao mesmo tempo serem negados pelos brancos. Assim podemos entender que a identidade coletiva desse grupo, mestiço, está muito ligada ao grupo dos negros, e essa ligação se deve pelo fato da discriminação, isto é, o mestiço traz em seu fenótipo as marcas das origens afro-brasileiras e brancas, e é justamente através das características físicas ligadas à sua ascendência afro-brasileira que prevalecem que acabará por sofrer as mesmas discriminações e preconceitos que o negro sofre. De acordo com Telles (2003): “Em outras palavras, a discriminação contra os pardos é menor do que contra os pretos, mas a renda dos pardos se aproxima da dos pretos e não da dos brancos. Sendo assim, a principal segmentação racial se dá entre os brancos e não-brancos, mesmo que, geralmente, os pretos sofram mais discriminação que os pardos.” (2003, p.231). 7 É exatamente essa segmentação entre brancos e não-brancos que faz com que os pretos e pardos acabem por incorporar um mesmo grupo, o grupo dos negros, e através desse grupo reivindicar o seu espaço e os seus direitos. Apesar de sabermos que ainda hoje a conquista desses espaços é difícil, tornando a própria construção da identidade negra complicada, uma vez que a ideia de democracia racial ainda se faz presente no Brasil. Segundo Telles (2003): “Um estudo baseado na observação participativa em uma pré-escola particular de São Paulo revelou que os professores são mais afetivos com as crianças brancas e que eles ignoram atos discriminatórios entre os alunos, apesar de negarem que exista racismo em sua escola. Cavalleiro (2000,2001) observou que os alunos negros da pré-escola experimentaram e reconheciam discriminação racial pelo fato de serem excluídos de jogos e amizades e até mesmo recebendo insultos explicitamente racistas de outras crianças, na presença de professores que se mostram indiferentes. (2003, p.239). (...) Os negros não são retratados na televisão, filmes e na mídia. Nesses veículos há uma super-abundância de pessoas brancas, particularmente louras, apresentadas como símbolos de beleza e usadas para retratar a realização dos sonhos da classe média. Modelos negros estão virtualmente ausentes nos livros textos brasileiros e a história africana raramente é ensinada nas escolas. As referências negras, quando existem, tendem a ser nos esportes e na música popular.” (2003, p.240-241) Através dos exemplos citados acima podemos constatar que construir uma identidade negra no Brasil ainda é extremamente complicado se entendemos que a construção da identidade se realiza por meio de trocas com a coletividade. Como aponta Adam Kuper (2002): “... identidade não é apenas um assunto pessoal. Ela precisa ser vivida no mundo, num diálogo com outros. Segundo os construcionistas, é nesse diálogo que a identidade é formada. Mas não é dessa maneira que ela é vivenciada. De um ponto de vista subjetivo, a identidade é descoberta dentro da própria pessoa, e implica identidade com outros. O eu interior descobre seu lugar no mundo ao participar da identidade de uma coletividade.” (2002, p.298). Ao participar do mundo o negro se “descobre”, se percebe e, consequentemente, acaba por construir sua identidade, mas quando esse mundo no qual ele está inserido, o renega ou o ignora como nos exemplos citados acima, a construção de sua própria identidade se torna mais complexa e difícil, e é justamente por isso que o ato de diálogo com os outros, como demonstrou Kuper (2002), acaba por não existir. Logo, há de se construir essa identidade dentro de seu próprio grupo, o grupo negro, o que acontecerá provavelmente dentro de sua própria casa e/ou em eventos culturais realizados pelo próprio grupo. E, assim, segundo Cunha (2009), estamos sempre construindo a identidade num jogo de contrastes, jogo esse no qual a etnicidade é uma forma de protesto eminentemente político, que visa o 8 reconhecimento e a resistência dos sujeitos para que sejam reconhecidos e notados. Além disso, podemos ainda salientar que a construção de identidade também é cultural, posto que a cultura e a identidade são constantemente reinventadas, recompostas, investidas de novos significados numa dinâmica que não tem fim. (Cunha, 2009) Esse processo de reinvenção cultural, que consequentemente gera uma reconstrução de identidade pode ser notado quando acontece uma organização desses movimentos em grupos como, por exemplo, a onda Black is Beautiful dos anos 70, que fez com que salões de beleza da periferia de Belo Horizonte fossem reinventados para atender a demanda do grupo negro (Gomes, 2003). Segundo Gomes, esses espaços seriam locais de reinvenção da própria identidade do grupo negro. De acordo com a autora: “Nesses espaços, a identidade negra, enquanto processo, é problematizada, discutida, afirmada, negada, encoberta, rejeitada, aceita, re-significada e recriada. Tudo isso acontece ao mesmo tempo e, nesse sentido, os salões étnicos nos colocam no cerne das tensões e também das possibilidades de recriação vividas por homens, mulheres, crianças, adolescentes, jovens e adultos negros.” (Gomes, 2003, p.179) A passagem acima evoca a valorização pelo grupo negro de expressões associadas imaginariamente à África que consequentemente correspondem a um conjunto amplo de modificações e conquistas culturais que esse grupo vem galgando e conquistando desde as primeiras lutas travadas pelos Movimentos Negros 4 dentro da sociedade brasileira, para conquistar seu espaço e mostrar a todos que eles existem e querem ser reconhecidos enquanto negros por e em nossa sociedade. Retomando a questão do quesito cor ou raça do IBGE, conforme refletimos acima e segundo Osório: “a agregação de pretos e pardos e sua designação como negros justificam-se duplamente. Estatisticamente, pela uniformidade de características socioeconômicas dos dois grupos. Teoricamente, pelo fato de as discriminações, potenciais ou efetivas, sofridas por ambos os grupos, serem da mesma natureza. Ou seja, é pela sua parcela preta que os pardos são discriminados” (2003, p.24). 4 Este trabalho não pretende descrever e nem levantar a história dos Movimentos Negros, apenas constatar que eles foram e são de extrema importância para a construção da identidade negra no Brasil. Uma discussão detalhada sobre o movimento negro no Brasil pode ser encontrada em: COSTA, Sérgio. O movimento negro e as conquistas anti-racistas In: Dois Atlânticos: Teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006 p.142-149; SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. O Movimento Negro e o Estado (1983-1987): O caso do conselho de participação e desenvolvimento da Comunidade Negra no Governo de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. 9 Esta justificativa só vem a corroborar qualquer ação que visa reverter esse quadro histórico que está posto em nossa sociedade, lembrando sempre que “é também por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade.” (Silva, 2000, p.91) E é justamente através dessa unificação de pretos e pardos por meio do grupo negro, que a luta por efetivação de direitos e uma maior representatividade será possível em nossa sociedade, pois, como afirmamos anteriormente, a identidade que é imposta é a branca e as outras compreendem o grupo dos não-brancos. Logo a “busca de identidade representa uma luta existencial desesperada para criar um estilo de vida que pode ser sustentado pelo menos por um breve momento” (Kuper, 2002, p.302), isto é, como constatamos anteriormente, a identidade juntamente com a cultura está em constantes transformações e se o grupo negro reivindica seu espaço na sociedade brasileira hoje, num futuro próximo esse espaço pode já estar posto. Sem querer fazer um exercício de futurologia, é importante destacar que os recentes avanços nos governos Lula (2002-2006 e 20062010) e no atual governo Dilma Roussef de um lado permitem vislumbrar o adensamento da identidade negra, e de outro o risco de desarticulação política do movimento negro, uma vez que ao o respeito aos direitos serem conquistados e a representatividade dos negros em diferentes âmbitos da sociedade brasileira garantida, temos o risco de renovação dos mecanismos que “embranquecem” os negros que são socialmente e economicamente “bem sucedidos”. Isto porque, conforme Silva: “A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcedental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação.” (2000, p.97). Assim a inclusão de pardos e pretos, categorias do IBGE, no grupo negro, é apenas uma forma de se conquistar direitos perante uma sociedade na qual a identidade normal, a branca, os renega e os rejeita. Portanto, como Silva (2000) afirma, por a identidade e a sociedade brasileira estarem em constante mudança, podemos constatar que nos últimos anos o grupo negro tem conquistado algumas políticas afirmativas que visam incluir e diminuir sua falta de representatividade nos mais variados espaços da sociedade brasileira. Acreditamos que a identidade negra deverá sofrer alterações num futuro próximo, graças às conquistas dos movimentos negros e das ações afirmativas que o governo implantou em nossa sociedade, só o 10 tempo dirá como será essa identidade negra no futuro, afinal a representatividade e os discursos estão sempre se modificando. V. Referências Bibliográficas COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. DIWAN, Pietra. Raça Pura: Uma história de eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2011. FROTA-PESSOA, Oswaldo. Raça e eugenia In: SCHWARCZ, Lilia Mortiz, QUEIROZ, Renato da Silva (orgs) Raça e Diversidade. São Paulo: EDUSP, 1996. GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/Corpo-e-cabelocomo-s%C3%ADmbolos-da-identidade-negra.pdf acessado em 06 de outubro de 2012. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo; HUNTLEY, Lynn, (orgs.).Tirando a máscara: ensaios sobre racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000 KI-ZERBO, Joseph. Para quando África? Rio de Janeiro: Pallas, 2006, p.12. KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. São Paulo: Atlas, 2002. MONTES, Maria Lúcia. Raça e identidade: entre o espelho, a invenção e a ideologia In: SCHWARCZ, Lilia Mortiz, QUEIROZ, Renato da Silva (orgs) Raça e Diversidade. São Paulo: EDUSP, 1996. OSÓRIO, Rafael Guerreiro. O sistema classificatório de “cor ou raça” do IBGE. Brasília: IPEA, 2003. Disponível em http://ipea.gov.br/pub/td/2003/td_0996.pdf acessado em 05 de outubro de 2012. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. 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Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/visualiza_colecao_digital.php?titu lo=Recenseamento%20Geral%20do%20Brasil%201872%20%20Imp%E9rio%20do%20Brazil&link=Imperio%20do%20Brazil# Acessado em 14/11/12. 11
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