Leitura das Escrituras no Contexto Bíblico

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Leitura das Escrituras no Contexto Bíblico
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RESUMO
Esse trabalho teve como objetivo localizar as diversas maneiras de como a Bíblia foi
lida e em como ela foi compreendida através dos tempos. Não se presta a ser um
tratado de teologia, mas simplesmente apontar os fatos que a levaram a atravessar
os tempos e chegar até os dias atuais. A preocupação de origem do trabalho é com
o papel que ela vem desempenhando nas comunidades evangélicas. Essa pesquisa
mostrou que a Bíblia foi amplamente estudada e manejada através dos tempos,
muita vezes de forma obscura e outras de modo mais apropriado. A metodologia
consistiu em realizar uma busca por livros e textos e expor os resultados
sistematicamente. O fato é que as Escrituras chegaram até os dias atuais e se tem
livre acesso a ela. É possível estudá-la, interpretá-la, e retirar de sua preciosa fonte
ensinamentos para abastecer e alimentar a fé. Por ser Palavra de Deus, ela foi
consumida e abusada, mas nunca perdeu esse caráter de ser Palavra de Deus.
Nesse quisto, ela é mestre em dar respostas para humanidade independente de
seus múltiplos contextos. Mesmo sendo lida em situações de dores, angústia,
dúvidas, desejos e pecados ela terá sempre a autoridade de Palavra de Deus.
Mesmo dissecando-a, arrancando dela o que ela não quer falar ela falará acerca de
Deus e sua vontade para sua criação. A Bíblia é o caminho que o Senhor deixou
para que sua criação se aproxime Dele.
Palavras-chave: Bíblia, Interpretação
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Introdução
Com o advento da Reforma, a Bíblia tomou seu lugar no meio do povo. Esse
fato trouxe consigo uma forma livre de interpretação dos textos sagrados. Nunca a
Bíblia foi tão difundida e lida em toda a sua história. Há hoje inúmeras publicações
como, Bíblia da mulher, Bíblia de estudo, Bíblia do jovem, versões corrigidas e
atualizadas, revista e corrigia etc. Mas nunca a Bíblia foi lida por tantas pessoas e
interpretada de forma tão equivocada como nos dias atuais. Mas será que a Bíblia,
ao ser lida a partir das inquietações humanas, não produz sentido para esse alguém,
mesmo que sua interpretação não seja a mais correta? Seria correto engessar essa
capacidade bíblica de falar sobre Deus? Em que circunstância o ensino da Reforma
protestante de que o Espírito Santo ilumina a todos indistintamente é real? Qual o
papel da Bíblia na vida cristã e na vida das Igrejas? – São muitas as interrogações
acerca da Bíblia que demandam estudo e pesquisa para que se possa esclarecê-las.
Nos dias atuais as igrejas, principalmente as pentecostais, não têm muita
preocupação com a interpretação correta dos textos bíblicos, mas com aquele
sentido que parte mais do sentimento do que da razão. Mesmo nas Igrejas históricas
que possuem ênfase na doutrina correta, muitas vezes essas doutrinas são
estranhas à Bíblia e correspondem muito bem às tradições humanas. Não que as
tradições humanas sejam ruins, somente não são universalizantes, fazem parte do
específico de cada grupo ou povo. Mas muitas vezes essas tradições são passadas
como se fossem algo genérico, valendo igualmente para todos.
As interpretações que predominam no meio eclesial são aquelas alegóricas,
que desprezam o fundo histórico dos textos bíblicos, portanto, as aproximações com
a vida no mundo. Elas não produzem efetivamente um conhecimento de Deus que
transforma a vida. Resultam assim, cristãos incapazes de entender e dialogar com
sua própria fé. Pessoas incapazes de resolverem seus próprios problemas com base
nessa fé, pois são ensinadas geralmente a levarem tudo para a esfera divina e
espiritualizar tudo.
A Bíblia não se apresenta como uma revelação direta de verdades
atemporais, ou seja, que não está relacionada à época nenhuma, mas como a
afirmação escrita de uma série de intervenções pelas quais Deus se revela na
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história humana. Sua mensagem está solidamente enraizada na história. Daí o
dinamismo da Bíblia. Embora sua escrita remota em tempos idos, seus
ensinamentos são perfeitamente válidos para os dias de hoje ou vindouros, mas
sem que com isso seja necessário viver os costumes estranhos aos tempos e cultura
atuais.
Essa pesquisa se ocupa das varias formas de interpretação ao longo dos
tempos. Percebe-se que nesta preocupação alguns alegorizavam em demasia e
outros literalizavam demais os textos bíblicos,o que revela que sempre houve erros
no modo de se ler e interpretar a Bíblia, o que não difere do tempo presente.
O erro humano sempre transparece ao se interpretar um texto bíblico gerando
tendências, interesses diversos, etc. Conscientes disso deve-se aproximar do texto
bíblico com cautela, para não se impor idéias à Escritura, mas humildemente e em
oração receber o que ela diz. Aprender a interpretação apropriada da Escritura
requer graça, submissão e oração. Para isso, entende-se como necessário fazer o
uso de discernimento, aprender a julgar e reter o que de melhor se tem das várias
formas de interpretações existentes.
Não se pode esquecer a importância do testemunho do Espírito Santo para a
leitura bíblica. Pois é o Espírito quem produz a fé nas Escrituras e a percepção dos
fatos espirituais dos quais as escrituras atestam. É o Espírito Santo quem dirige a
Jesus Cristo. Almejar realmente levar a sério as Escrituras como divinas e
inspiradas, torna-se imperativo depender humildemente do Espírito Santo. É a
iluminação do espírito de Deus o caminho para uma correta interpretação bíblica.
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1LEITURA DAS ESCRITURAS NO CONTEXTO BÍBLICO
Nesse capítulo tratar-se-á da formação e origem das escrituras. O modo
como ela foi lida e atualizada no período antes de Jesus Cristo. A pesquisa abordará
as fontes, dos escribas, das tradições, da atualização das escrituras por parte de
Jesus Cristo. Trata-se de uma análise não exaustiva, mas panorâmica dos fatos que
trouxeram a Bíblia à atualidade de forma segura e guiada pelo Espírito Santo.
1.1 A LEITURA DAS ESCRITURAS NO ANTIGO TESTAMENTO
Antes de entrar na leitura da Bíblia no contexto do Antigo Testamento é
necessário um breve relato da origem das Escrituras, embora esse assunto já tenha
sido amplamente difundido tanto nos meios acadêmicos como eclesiais.
1.1.1 Origem e formação das Escrituras
As origens mais remotas da Bíblia estão nas "tradições orais", transmitidas de
pais para filhos. Essas, na falta de registros escritos, possuíam antigamente mais
validade e autoridade do que na atualidade. As primeiras dessas tradições
remontam ao tempo de Moisés, treze séculos antes de Cristo.
Para os judeus - que só possuem o que chamamos de Antigo Testamento, ela
ficou pronta dois séculos antes de Cristo. Para os cristãos, a datação segue
geralmente até o final do século I de nossa era, com o último livro do Novo
Testamento, o Apocalipse. No entanto, tais datas de autoria não são de consenso
entre os pesquisadores, mas isso não é objeto de discussão dessa pesquisa.
A composição da Escrituras abrange, portanto, nada menos que um milênio,
e nenhum de seus autores sabiam que estavam escrevendo a Bíblia. O povo
israelita foi o primeiro a reconhecer que esses escritos foram inspirados por Deus
para revelar aos homens a sua vontade, isso fez com que atribuíssem a esses
escritos o caráter de texto sagrado.
O procedimento de formação da Bíblia e da religião de Israel foi viabilizado
institucionalmente nos textos do Antigo Testamento. Esses textos são os pontos
geradores dos novos textos do Novo Testamento. O cerne da Bíblia se deve ao
cânon, pois foi através dele, sob inspiração divina, que o homem deu unidade ao
Livro Sagrado. No judaísmo o processo de afirmação do cânon, o ajuizamento das
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coleções de escritos sagrados, anteriores e posteriores às tradições rabínicas estão
situados entre os séculos II a.C. e II d.C. e marca uma divisão no concilio de Jabne
em 90 d.C., entre judeus e cristãos. A partir da metade do século II d.C. inicia o
cânon neotestamentário, completado no século IV d.C. neste caso, separando o que
é sagrado do que passou a ser considerado herético, originando a Bíblia cristã. O
texto canônico torna-se com isso texto sagrado.
Antes mesmo da adoção de um cânon, os cristãos tinham métodos e
critérios de leitura que os diferenciavam da sinagoga, isto era realizado na
comunidade por uma pessoa – aqui mantém-se o critério da sinagoga! –
autorizada. Os elementos balizadores do cânon do Antigo testamento foram
autoridade e antiguidade (origem mosaica e profética); quanto ao cânon do
Novo Testamento, os critérios são mais teológicos: (1) a mensagem e a
figura de Jesus, (2) a mensagem da Igreja primitiva, (3) os tratados
teológicos doutrinários acerca daquela mensagem (as epístolas); o núcleo
são os escritos apostólicos, cuja lista de Atanásio (296-373) é apresentada
no concilio de Calcedônia (451). É caro afirmar que “cânone” é uma
unidade, modelo exemplar e canônico, sagrado; seguindo parâmetro das
1
comunidades de fé, a Bíblia é Escritura .
1.1.2 A leitura das Escrituras na época do Antigo Testamento
Nos tempos antes do Senhor Jesus Cristo, a arte de escrever era restrita a
poucos. Utilizavam, para isso, peles secas de animais ou papiros, o que tornava o
processo muito dispendioso. Poucos sabiam ler e escrever. A difusão dos
acontecimentos e tradições eram atualizados de geração em geração por via oral. A
compilação dos textos sagrados se deu somente dezenas, até mesmo centenas, de
anos depois. Ao ler e atualizar suas histórias, os leitores da era anterior a Cristo
procuravam descobrir a presença do Deus único nos fatos históricos e na vida do
povo.
Para os biblistas libertacionistas a história do êxodo adquiriu suma
importância teológica e simbólica e nunca mais se perdeu, sendo transmitida ao
longo de gerações.2 Essa memória deu vida e alicerçou as tribos da época. A
história do êxodo orientou o labor e decisões dessas tribos. O tempo tribal do povo
israelita é marcado pela lembrança do êxodo e foi ele o fator desencadeador do
processo de libertação vivenciado pelo povo de Israel.
Neste caso, os profetas foram a memória andante do êxodo, atualizavam-no,
interrogando o presente baseado no Deus do êxodo. Para compreender os profetas
é preciso entender seus entusiasmos pela historia do êxodo, a criatividade com que
1
SANTOS, João Batista Ribeiro. Diciontmdnário Bíblico: Conhecendo e entendendo a palavra de
Deus. São Paulo: Didática Paulista, 2006. p.84-85.
2
MOSCONI, Luiz. Para uma leitura fiel da Bíblia. 3.ed. São Paulo: Loyola, 1996. p.37.
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eles atualizavam e valiam-se desse fato, para proteger a vida, os oprimidos e
marginalizados.
Conforme Mosconi, no período do Antigo Testamento há várias atividades
populares religiosas de luta e resistência. Essas atividades eram vivenciadas pelo
simbolismo do êxodo. O livro de Deuteronômio é visto como obra desses
movimentos, num período de duzentos anos e é o resultado e depoimento escrito de
um movimento popular religioso liderado pelos levitas3. Esses levitas eram
missionários itinerantes que freqüentavam os clãs e pequenos grupos a fim de
manter viva a memória de Deus. Nas festas principais eram esses levitas que
carregavam a arca, símbolo máximo da memória do êxodo. Mantinha-se assim viva
a passagem do êxodo, sendo essa uma forma de leitura da aliança de Deus para
com seu povo. (Js 3:3).
Nessa ótica, o livro de Deuteronômio é um livro a favor dos necessitados e
camponeses sem propriedades, é a memória de um povo reprimido e essa
lembrança era passada de pais para filhos (Dt, 6:20-25). Essa memória, segundo
Mosconi4, foi escrita ainda no tempo do Antigo Testamento. Os movimentos surgiam
em torno do pensamento e vida de profetas importantes como o caso do movimento
religioso isaiânico (740-500 a.C). Da mesma maneira as primeiras comunidades
cristãs se inspiraram muito na mística e pratica desse movimento que girava em
torno das memórias do profeta Isaias. Houve vários movimentos populares criados
com base nas reminiscências de outros profetas. Tais movimentos faziam uma
constante atualização de textos escritos anteriormente. Segundo Mosconi5, Amós
9:11-15
é uma atualização da mensagem do profeta feita por seus seguidores
duzentos anos depois de sua morte. Conforme essa compreensão a Bíblia é um livro
coletivo, feita por muitas mãos, sob a iluminação divina, e concepção progressiva de
sua sacralidade que é o que confere o caráter inspirativo do texto.
Em síntese, pode-se afirmar que o Antigo Testamento é um livro que foi
crescendo aos poucos. Trata-se de um livro que conta a história de fé do povo de
Israel. A cada geração surgiam novos questionamentos resultado da fé de um povo
a um só Deus e de como Ele agia na história desse povo. Cada geração respondia a
esses questionamentos e os documentou de diversas formas nos textos que estão
3
MOSCONI, Luiz. Para uma leitura fiel da Bíblia. 3.ed. São Paulo: Loyola, 1996. p.37.
Ibidem. p.38.
5
Ibidem. p.38.
4
14
reunidos no Antigo Testamento. Nos primórdios desse processo de crescimento está
a palavra falada, ou seja, a transmissão era transmitida oralmente. As historias
foram contadas e recontadas através dos tempos antes de serem fixadas por
escrito. Nesse percurso, logicamente, houve alteração na descrição desses escritos,
novas formas e características foram sendo acrescentadas. Alguns traços perderam
a importância para cada geração nova. Essas histórias foram pronunciadas em uma
determinada ocasião histórica de forma oralmente antes de alcançarem sua forma
literária conhecida hoje.
Por serem mais fáceis de decorar, as formas literárias contidos dos cânticos
se mantiveram muito tempo gravado na memória do povo e são as mais antigas
narrativas que se conhece, conforme exemplos:
Canção de vitória de Miriam”, em Êx 15:21, que canta a destruição dos
egípcios no mar. Outro é a canção de Lameque, em Gn 4.23-24, uma
“fanfarronada” que fala de cruel vingança de morte; ou, então, a “canção do
poceiro” em Nm 21.17-18, que se deve imaginar cantada durante
escavação de um poço. Mas também canções mais extensas, como p. ex. a
6
magnífica canção de Débora em Jz 5, provêm de tempos remotos .
Nos textos sapienciais, mais especificamente nos provérbios populares, estão
conservadas as tradições mais antigas de Israel. Este é um fenômeno que ainda
hoje acontece. No antigo Israel esses provérbios eram citados diversas vezes
principalmente depois do trabalho diário, quando as pessoas se reuniam para as
passagens das tradições. Posteriormente, esses provérbios adquiriram formas
artísticas na corte, conforme relatos do tempo de Salomão (1 Rs 5:11-12)7.
Os estudos da critica Bíblica apontam ainda as “sagas” como meios de
transmissão das tradições de geração em geração. Conforme os estudiosos dessas
correntes exegéticas, tais sagas narravam os acontecimentos mais marcantes do
povo de Israel. Essas narrações não tinham um interesse histórico, querendo tão
somente fixar as seqüências desses acontecimentos. Apresentavam os fatos da
época, dos personagens, da cultura conforme estavam gravados na mente do povo.
As sagas não eram simplesmente contos de coisas passadas. Eram um
“manual” de onde o povo atualizava suas histórias e tradições. Esse passado estava
presente na história do povo que as contavam e as ouviam. Era o perfil do
conhecimento do passado e do presente da sociedade de Israel.
6
7
RENDTORFF, Rolf. A formação do Antigo Testamento. 5. Ed. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p.9.
Ibidem p.9.
15
As leis também foram uma forma de transmissão e orientação da vida em
Israel. Foram transmitidas leis de diferentes tipos, e que abrangiam quase toda a
vida social e religiosa de Israel. Essas regras regulavam desde a forma de cultuar o
Deus único até as pequenas coisas do dia-a-dia da população, até mesmo da forma
exata da vestimenta dos sacerdotes. As leis casuísticas regiam os litígios do
cotidiano das pessoas e eram destinadas a comunidade que aplicavam essas
normas. Essa comunidade se reunia em praça publica para julgar um processo. As
sentenças casuísticas eram transmitidas de geração a geração. A comunidade
judicial pode ser muito bem compreendida como descrito no capitulo 4 de Rute8.
E por fim, o Antigo Testamento coleta e comunica a fé do povo israelita. Os
relatos ali descritos são os depoimentos vivos da fé do povo de Israel. Nele está
contida a aliança do Criador para com esse povo e conta o revelar de Deus na
historia de seu povo, dirigindo-o com suas leis, instruindo-o no seu dia-a-dia, e,
acima de tudo, criando a identidade de um povo escolhido.
Esta breve análise formal do processo de transmissão e construção das
Escrituras em Israel, ainda que conforme descrita pelas pesquisas da critica bíblica,
revelam o caráter dinâmico e vivencial do surgimento da Bíblia.
1.1.3 Uma breve história das tradições bíblicas
O passado distante da Bíblia se situa no tempo quando a escrita estava em
sua fase inicial, e a comunicação era basicamente oral. Nessa época, as tradições
que existiam eram transmitidas aos mais novos pelos mais velhos de forma oral, em
reuniões diárias ao redor de uma fogueira ou em reuniões nos templos. Pelo que se
tem conhecimento, nesse tempo, só eram transmitidos os conhecimentos dos
acontecimentos no deserto (Sinai) e da Aliança de Deus com o povo de Israel.
Devido à curiosidade dos jovens, houve necessidade de compor as histórias antes
disso.
As antigas e recentes histórias eram passadas oralmente de pai para filho
tanto nos lares como, principalmente, nos santuários. Essa forma de comunicação
predominou na transmissão até os tempos do rei Davi. Mas, como já havia sido
desenvolvida a escrita não é adequado inferir que até essa época já havia varias
produções escritas dessas histórias orais.
8
RENDTORFF, Rolf. A Formação do Antigo Testamento. 5.ed. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p.12.
16
A tradição oral predominou até 550 a.C., quando foram escritas do modo
como eram contadas. Como os fatos narrados eram baseados na tradição popular,
isso fez com que muitas coisas se perdessem através do tempo. As narrativas
históricas desses livros não possuem a mesma importância de outras narrativas
posteriores a 550 a.C. que foram baseadas em documentos que contavam os fatos
do reino.
Sabe-se também que por muito tempo, os profetas foram os conselheiros do
povo de Deus. Os conteúdos dos Livros proféticos resumem os seus ensinamentos
e foram escritos pelos seus seguidores, por volta do ano 200 a.C.
Através da tradição oral, a revelação de Deus aos Profetas e Patriarcas, foi
guardada por muito tempo antes de ser compilada em um manuscrito. Essa
revelação se manteve sem o auxilio da escrita, já que tal tarefa era difícil de ser
executada e cara. Por isso, os antigos raramente escreviam.
Na tradição verbal acontece a transmissão através de cantos, poesias
pregação de tudo o que Israel experimentava de Deus. De geração a geração, de
pais para filhos, Israel foi construindo suas narrativas e dando significados as
experiências no seu dia a dia. A repetição contínua dos acontecimentos na memória
do povo manteve a fonte para futuras gerações conforme palavras de Johan
Konings:9
Não apenas em relação ao Pentateuco, mas à Bíblia inteira, devemos dizer
que os livros bíblicos não caíram do céu. São condensações de uma
vivência e de uma consciência que foi se formando e se expressando muito
antes de ser cristalizada em forma de livros. Já antes de Moisés, os “filhos
de Israel”, nas estepes da Síria e da Palestina, e os “hebreus”, no Egito,
tinham seus textos não-escritos: fórmulas rituais para expressar sua relação
com a divindade, mitos ou narrações para estruturar o universo cultual e
cultural, sagas, lendas, poesias, etc. podemos imaginar que todo esse
“saber” se transmitia, ao anoitecer, em volta da fogueira do acampamento,
ou por ocasião das festas ou da iniciação dos jovens.
1.1.4 A Pesquisa das Fontes Documentais
A teoria do teólogo alemão Julius Welhausen (1844-1918)10, que assinala
para o fato em que o Pentateuco teria recebido quatro fontes distintas na sua
elaboração, foi formulada na segunda metade do século XIX. Em 1876, Welhausen
a publica em Die Composition Dês Hexateuchs. Embora não sendo seu descobridor,
Welhausen foi quem deu visibilidade a essa teoria. Para Julius há a fonte Javista (J),
9
KONINGS, Johan. A Bíblia Nas Suas Origens e Hoje. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p.78-79
TOKASHIKI,
Ewerton
Barcelos.
Pentateuco.
Disponível
http://www.monergismo.com/textos/at/pentateuco.htm . Acesso em 27/06/2009.
10
em
17
escrita no século IX a.C. no reino do sul, que atribuía conceitos antropomórficos11 a
Deus, a fonte Eloísta (E), que é a narrativa da tradição do reino do norte, escrita
praticamente na mesma época da fonte Javista e inserida a esta por volta do ano
722 a.C. (JE). Na época, por volta de 721 a.C., momento em que Samaria foi
destruída pelos assírios, a maioria dos sacerdotes se refugiaram no sul levando
consigo as suas tradições. Há também fonte Deuteronomista(D), encontrada em 622
a.C por trabalhadores de um templo de forma casual e que corresponde ao livro de
Deuteronômio da atual Bíblia. Essa fonte é inserida às fontes Javista e Eloísta, por
volta do ano 586 a.C (JED). E por fim há narração Sacerdotal, escrita por volta do
ano 550 a.C. A fonte Sacerdotal reunia as tradições do antigo Israel e possuía o
conceito de que Deus é poderoso, que está acima de todas as coisas. É inserida às
fontes Javista, Eloísta e Deuteronomista, por volta do ano 400 a.C. (JEDP),
formando, o que se conhece hoje como Pentateuco. A redação do Pentateuco se
deu por volta de 398 a.C. e é a primeira parte da Bíblia judaica.
1.2 A LEITURA DA BÍBLIA NO NOVO TESTAMENTO
Os escribas do tempo do Senhor Jesus Cristo, liam com freqüência a Lei.
Estudavam constantemente os livros sagrados, analisando sobre cada palavra e
letra. Faziam anotações de assuntos de pouca importância tais como: qual o
versículo que ficava exatamente no meio do Antigo Testamento, que versículo
estava na metade do meio, e quantas vezes aparecia determinada expressão, e até
mesmo quantas vezes aparecia determinada letra, qual o tamanho da letra. Eles nos
legaram para a posteridade um grande acúmulo de anotações sobre as palavras da
Sagrada Escritura12.
Eram, no entanto, assíduos leitores da Lei. Argüiam o Senhor Jesus Cristo
sobre qualquer questão concernente a lei, porque a levavam na ponta da língua e
estavam dispostos a usá-la contra o Senhor Jesus Cristo.
1.1.2 A Leitura da Bíblia feita porJesus
O Senhor Jesus Cristo desde pequeno foi ensinado sobre como ler e
entender as Escrituras. Sendo pobre Ele não seguia a maneira dos escribas e
11
Do grego, antropomorfos, de forma humana. Atribuição de qualidades humanas ao ser divino.
Como ler a Bíblia. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/7015336/Evangelico-Charles-HaddonSpurgeon-Como-Ler-a-biblia. acesso em 22/08/2009.
12
18
doutores da Lei para interpretar as Escrituras. Certamente, Maria e Jose pertenciam
à comunidade dos pobres e foram eles que transmitiram os primeiros ensinos ao
Senhor Jesus Cristo. Como todas as crianças do sexo masculino de Nazaré, aos
seis anos começou a frequentar a escola da sinagoga. As meninas eram proibidas
de participar. Como havia poucos livros era necessário que tudo fosse decorado. Os
escribas liam os versículos, e os alunos os decoravam. Somente depois da
memorização de um versículo é que se passava para outro.
Com tudo isso, percebe-se claramente nos evangelhos que o Senhor Jesus
Cristo conhecia muito as Escrituras. (Cf.: Mt 5:17,27,46; Mt 12:8; Lc 7:22,23; Lc
24:27; Jo 7:15). De acordo com Mosconi o Senhor Jesus Cristo adotou o esquema
do Midrash13, mas com um olhar diferente dos doutores da lei. Jesus defendia
primeiro a vida e não as leis.
Na há duvida que quando o Senhor Jesus cristo ia às Escrituras ele a
interpretava em grande maioria das vezes, com resultados opostos aos dos doutores
da Lei. O senhor Jesus Cristo por ser um profundo conhecedor das Escrituras
condenou duramente a interpretação legalista e racista das Escrituras (Marcos 7:113). Ele demonstrava que as Escrituras deveriam ser lidas e atualizadas a partir dos
pobres e marginalizados14. Essa novidade foi grande e revolucionaria.
De qualquer forma o conhecimento das escrituras apresentado por Jesus
Cristo permitiu desmascarar as falsas imagens de Deus produzidas pelos escribas
(João 8:39-47).
O Senhor Jesus cristo interpretou as Escrituras a partir da realidade de vida
dos mais simples que era a dele própria. Fez uma leitura dirigida pela completa
fidelidade a Deus, com ternura e amor e um total vigor em defesa da vida. Sua
interpretação colocou as realidades da época em seu devido lugar. Ele denominou
os doutores da lei de guias cegos, fanáticos que travavam a vida do povo (Mateus
23:1-23).
O Senhor Jesus, ao ir às escrituras não só as atualizavam, mas apelava
sempre para a conversão do ouvinte. Censurou os doutores da lei e os fariseus que
as conheciam e não as colocavam em pratica (Mateus 23:1-2). Outra vez elogiou
aqueles que ouviam: “felizes os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em pratica”
13
Midrash (do hebraico ‫ )מדרש‬é uma forma narrativa criada por volta do século I a.C. na Palestina
pelo povo judeu. Esta forma narrativa desenvolveu-se através da tradição oral (ver Talmud) até ter a
sua primeira compilação apenas por volta do ano 500 d.C. no livro Midrash Rabbah.
14
Essa é a compreensão de Mosconi a partir da Teologia da Libertação.
19
(Lucas 11:28). “Aquele que põe em prática a palavra de meu Pai entrará no reino do
Céu” (Mateus 7:21).
A partir da situação real de cada um, a palavra de Deus
interpretada fielmente exigia a conversão a Deus e ao seu Reino e era isso que o
Senhor Jesus ensinava com amor e bondade.
Não há duvida que o Antigo Testamento fosse a Bíblia usada por nosso
Senhor Jesus Cristo. De um modo geral a palavra Escritura empregada no Novo
Testamento referia-se ao Antigo Testamento com exceção de 2Pe 3.16 onde o autor
coloca no mesmo plano as cartas de Paulo. Nas primeiras décadas após Jesus
Cristo existiam somente relatos fragmentados de sua existência e de seus ensinos.
A base para as pregações e ensinos feitos pelo Senhor Jesus foi o Antigo
Testamento, logicamente com um reinterpretarão tanto por Ele e seus primeiros
seguidores.
O senhor Jesus Cristo sempre reconheceu a autoridade do Antigo
Testamento, mas reservava para si o direito de ser seu verdadeiro interprete. Mesmo
que o Senhor Jesus Cristo debatesse com os lideres judeus em muitos assuntos, o
Novo Testamento não registra nenhuma dissensão sobre a inspiração ou a
autoridade do Antigo Testamento. O Senhor Jesus Cristo muitas vezes recorria ao
Antigo Testamento para argumentar seus ensinos. Uma boa ilustração que prova
que o Senhor Jesus Cristo não era contra a autoridade do Antigo Testamento pode
ser lida em Mateus 4.1-11. Ele usa três vezes a expressão está escrito.
O senhor Jesus Cristo seguia os seus compatriotas judeus na confiança no
Antigo Testamento como palavra de Deus. Tanto que esse povo seduzido pela
revelação que continham tais palavras, entesouraram em forma de relatos escritos
as palavras e os atos divinos. Nasce dessa forma uma literatura autorizada entre os
israelitas. Essa literatura narra às leis, historia do passado desse povo, oráculos e
profetas, ensinos de seus sábios e hinos e oração de seu culto.
Embora o Senhor Jesus Cristo tivesse a mesma atitude de muitos judeus de
seus dias em relação à autoridade desses escritos, a interpretação dada pelo
Senhor Jesus cristo era de modo muito diferente. Assim como os profetas o Senhor
Jesus Cristo sentia o vazio de grande parte do legalismo judaico. Como verdadeiro
profeta o nosso Senhor Jesus Cristo reinterpretou a lei no Sermão do Monte. O
Senhor Jesus Cristo rejeitou as interpretações erradas muito comuns da lei. O
Senhor Jesus Cristo, sendo a Palavra, deu o verdadeiro significado aos temas
proféticos que os mestres judeus haviam negligenciado. O senhor Jesus Cristo deu
20
destaque ao amor, o perdão e a todas aquelas características do Reino de Deus por
ele anunciado.
O senhor Jesus Cristo insistia que ele era o cumprimento pessoal do Antigo
Testamento. Ele é seu tema principal. Em Lucas 4.21 quando na sua cidade natal e
na sinagoga ele declara “Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” pode se
ponderar ser a reivindicação de que Nele se cumpria o que estava escrito. Neste
fato surgiu o conflito com o comando judaico e modelou a maneira de seus
seguidores em relação ao Antigo Testamento (Lucas 24.44).
O Senhor Jesus Cristo inovou a explanação do Antigo Testamento juntando
em si mesmo varias linhas de ensinos e as transformando-as em uma única forma
de interpretação. Como profeta e sacerdote ele tornou absoleto todas as normas do
templo (Mateus 12.6; João 2.13-15). No Senhor Jesus encontrava-se:
O rei sábio, “maior que Salomão” (Mt 12.42); o filho e o Senhor de Davi, o
herdeiro legitimo do trono de Israel (Mc 12.35-37; 15.2); o triunfante Filho do
homem (Dn 7.13ss.; Mc 13.26); e o servo sofredor (Is 53; Mc 10.45). Os
15
principais temas da esperança foram nele consumados .
O estilo do Senhor Jesus Cristo em relação ao Antigo Testamento era de
dinamismo e não estático. Ele tratava a Lei não como um catálogo de princípios
fixos e regulamentadores da conduta religiosa, mas um registro inspirado e
autorizado da atividade divina na história. Essa atividade atinge seu auge no reino
que se avizinhava com a vinda do Senhor Jesus Cristo. Como as palavras do
Senhor Jesus Cristo são espírito e vida (Jo 6.63), o Antigo Testamento visto a partir
de sua percepção, torna-se um manual para a vida (Jo 5.39) e para a fé.
O Senhor Jesus Cristo legitimou os profetas como intérpretes legítimos da
Torá, e ao focar a revelação do Antigo Testamento em si mesmo, alterou os padrões
de interpretações bíblicas adotados pelos escritores apostólicos. Pode-se se citar o
exemplo de Mateus na correspondência entre os fatos da vida do Senhor Jesus
Cristo e a profecia do Antigo Testamento. Diz ele: “para que se cumprisse o que fora
dito...” (1:22; 2:15, 17, 23; 4:14; 12:17; 13:35; 21:4; 27:9). João oferece muitas
comparações explicitas e implícitas entre Moisés e O Senhor Jesus Cristo: (1:17;
3:14; 5:45-47; 6:32; 17:19).
O Senhor Jesus Cristo ao ir as Escrituras com suas palavras e gestos inicia
uma nova tradição. Radicaliza a interpretação da Escritura. O senhor Jesus Cristo
15
LASOR, William S.; HUBBARD, David A.: BUSH, Frederic W. Introdução ao ANTIGO
TESTAMENTO. São Paulo: Vida Nova, 1999. p.638
21
abre Lei e tradições antes fechadas e absolutizadas, cuja única finalidade era a
realização de uma vida religiosa. Agora o Senhor Jesus Cristo as direciona para a
vontade de Deus e aos corações dos homens. O seu agir e o seu pregar constituem
o inicio de um novo conhecimento. Sendo portador da Revelação e da salvação o
Senhor Jesus Cristo fala e age como tal. O eu vos digo, do Senhor Jesus Cristo
como idéia oposta a interpretação da lei (Mt 5:21ss) e unido a sua autoridade,
prepara e reivindica o Senhor Jesus Cristo como salvador dos homens e mulheres
segundo a postura destes assumida em relação a Ele.
Segundo Caio Fabio16 sendo o Verbo, como Jesus não conheceria um
derivado da Palavra, que é a Escritura? A questão, porém, é outra: Como Jesus lia
as Escrituras? Ou como ouvia as palavras dela? Caio Fabio fala do modo como
Jesus interpretou as Escrituras, e do espírito de entendimento que Ele nos dá a fim a
discernirmos a Palavra na Escritura. Isto porque Jesus diz que Suas palavras são a
Palavra, e nos recomenda que as percebamos como espírito e vida, e não como
letra estática, morta, mumificada, e que se oferece para exumação aos “Caçadores
de Múmias”, nos quais se tornaram muitos exegetas e hermeutas da Escritura.17
16
Caio Fábio d'Araújo Filho (Manaus, 15 de março de 1955) é um pastor evangélico e escritor
brasileiro
17
FILHO,
Caio
Fábio
d'Araújo.
Jesus
Lia
as
Escrituras.
Disponivel
em:
htt://sitecristão.com/textos/reflexões/jesusliaasescrituras.htm. acesso em 29/06/2009.
22
2 LEITURA DA BÍBLIA NOS PERÍODOS ANTIGO E MEDIEVAL
Nesse capitulo serão tratados a importância do período Patrístico, o método
de leitura alegórico da Bíblia feito pela a Escola de Alexandria e o método literal
utilizado pela a Escola de Antioquia. Tratar-se-á também do importante legado
desse período.
2.1 A LEITURA DA BÍBLIA NO PERÍODO PATRÍSTICO
Segundo Kenneth Scott Latourette,18 um dos fatos mais marcantes e
expressivos da história é que, no período de cinco séculos de sua origem, o
cristianismo conquistou a fidelidade indiscutível da maioria da população do Império
Romano e alcançou a base do Estado romano. Principiando aparentemente como
uma obscura facção do judaísmo, e honrando como vulto central aquele que foi
morto pelo aparato de Roma. Apesar de ter sido longamente proscrito por esse
governo e eventualmente tendo o completo peso do Estado lançado contra si, o
cristianismo comprovou de longe ser vitorioso a ponto de o império procurar aliança
com ele e ser um cidadão romano se tornava quase parecido a ser um cristão.
Além das influências originárias da racionalidade greco-romana, não se pode
negar o lugar de origem da cultura Oriental na qual nasceu o Cristianismo, tanto
como movimento religioso como atividade racional, já que, essa “Ferveção cultural”
muito contribuiu para o firmamento do pensamento cristão. Por isso, a necessidade
de se transcorrer também pelo “mundo judeu” como forma de entender as principais
linhas entre esses dois movimentos: Cristianismo e Judaísmo e mundo helênico que
será bastante citado nesse tópico.
O ano 70 d.C. foi, talvez, um dos períodos mais difíceis para a cultura judaica
do século I, já que, é neste que acontece a destruição de Jerusalém pelos romanos,
levando os judeus a se dispersarem por diversas regiões. Tal evento ficou conhecido
como a Segunda Diáspora Judaica19.
18
LATOURETTE, Kenneth Scott. Uma história do Cristianismo.Tradução de Heber Carlos de
Campos. São Paulo: Hagnos, 2006. p.85 v.1.
19
A palavra grega Diáspora aparece várias vezes na Bíblia Grega como tradução de várias palavras
hebraicas que significam “dispersão” e se referem às comunidades judaicas espalhadas pela
Babilônia, Egito e o litoral mediterrâneo depois da destruição de Jerusalém em 586 a.C. (MARCUS e
COHEN, 1965. p. 43.)
23
Com a dispersão dos judeus, muitos elementos da cultura helênica puderam
ser conhecidos e até assimilados pelo Judaísmo. As influências do novo ambiente
tiveram como repercussão o abandono da língua materna o Koiné20 e a adaptação
da língua universal: língua grega ou clássica, incluindo-a também, no culto
sinagogal.
A Diáspora também contribuiu para a interculturação entre o mundo oriental
judaico e o Ocidental grecoromano. Desde o ano 63 a.C. , quando Roma interveio
na Palestina sob o julgo de Pompeio21, as lutas pelo trono já indicavam as
influências exteriores no mundo judaico. Estas tiveram prosseguimento, durante todo
o reinado de Herodes, o Idumeu22, e os cinqüenta anos que durou o governo dos
procuradores de Roma. Até que em 66 d.C. uma revolta judia contra os romanos
levou estes a tomar medidas drásticas contra os revoltosos: a invasão e destruição
de Jerusalém23.
Contudo, segundo Marcus e Cohen esta miscigenação cultural, vista de forma
ampla, não se efetivou, apenas, como uma prevalência dos elementos helenísticos
sobre o Oriente, isto é, em nenhum momento a religião Oriental foi totalmente
subsumida pela cultura helenística, como se o elemento mais fraco se submetesse
ao mais forte. Prova disto é o nascimento de diversas formas de religiões desta
época: o judaísmo rabínico, o Cristianismo, o Mandeísmo, o Maniqueísmo, o
Gnosticismo,
os
Cultos
Mistéricos,
os
Orfismos,
os
Hermetismos
e
os
Neopitagorismos. Sendo Objeto desse estudo somente o cristianismo.
Nesta perspectiva, Jedin24 percebe que a Diáspora Judaica possui uma
ligação muito forte com a formação do próprio Cristianismo nascente. Primeiro, pelo
reconhecimento da “versão dos setenta”, como tradução oficial utilizada nos
primórdios do Cristianismo; segundo pela incorporação do conceito monoteísta
20
O Coiné (330 a.C – 330 d.C) é caracterizado como uma língua popular do período helenístico e
tem como atribuições específicas a qualidade “temporal” de ser pós clássica, a qualidade “comum” de
não ser dialética e a qualidade de ser “comum ou vulgar”.
21
Pompeu Magno nasceu em 29 de setembro, 106 a.C. Foi um general e político romano, conhecido
também
como
“Pompeio,
o
Grande”.
Disponível
em:
http://web.mac.com/heraklia/Caesar/contemporaries/pompey/index.html. acesso em 22/08/2009
22
Herodes, o Grande, filho de Antípater. Nasceu em 72 a.C. e faleceu em 4 a.C. Foi rei da Judéia
entre 37 e 4 a.C. CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 7.ed. São
Paulo: Hagnos, 2006. P.100 v.3.
23
MARCUS, Ralph e COHEN, Gerson D. Grandes Épocas e Ideas del Pueblo Judio. La epoca
helenistica e la epoca talmudica. Buenos Aires: Paidos, 1965.p.32
24
JEDIN, Hubert. Manual de Historia de la Iglesia. Barcelona: Herder, 1966,p.31 v.1.
24
judaico na constituição do conceito da divindade cristã; e terceiro a fundamentação
da moral cristã com os preceitos normativos do Decálogo (lei mosaica).
Nosso senhor Jesus cristo, nasceu e morreu antes da diáspora. Como judeu
viveu num mundo sócio-político e espiritual do judaísmo impregnado pela cultura
helênica. Nesse contexto e principalmente após sua morte foi atribuída a Ele a
imagem do Messias ou a de Cristo25. Sua pregação teve por característica o
incondicional amor a Deus e um amor ao próximo que abraça aos homens de toda
raça26.
Seus seguidores judeus conhecidos como “Seita dos Nazarenos” pelos seus
adversários, devido ao rompimento da legalidade farisaica, os judeu-cristãos, se
reuniam em Jerusalém em comunidade que mais tarde passaram a se chamar o
“povo de Deus reunido no deserto”, que Segundo Jedin27 pode ser traduzido como
comunidade ou congregação. Eram homens simples que se reuniam em
catacumbas para discutir e estudar as Escrituras e até mesmo a ordem política,
econômica e social do mundo romano.
O cristianismo primitivo se constituía por essas pessoas simples provindas do
judaísmo e que possuíam pouco nível cultural, o que não os impediam de abraçar a
nova fé, sem se preocupar com as coerências filosóficas ou não destes. A religião
greco-romana já não respondia aos novos anseios que almejavam o homem
helênico, o que abria uma lacuna do qual o pensamento cristão encontrou seu
sustentáculo: dar uma nova resposta moral e escatológica a um mundo movido pela
desilusão e falta de esperança.
Inspirado no Judaísmo, do qual era inicialmente “uma seita” o Cristianismo
acabou por se converter em uma nova maneira de se conceber a realidade, graças,
primeiramente, a Paulo de Tarso28. Com ele, este novo fenômeno foi implantado em
ambiente helênico, o que muito contribuiu para a percepção cristã da estrutura
racional de tal ambiente. Os desafios da “missão paulina”, como expressa Jedin se
25
GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. Antiguidade clássica II. 8 ed. Petrópolis p.313
JEDIN, Hubert. Manual de Historia de la Iglesia. Barcelona: Herder, 1966. P.28. v.1.
27
Ibidem p.136
28
Paulo, de procedência da diáspora judia, nasceu em Tarso de Cilicia, onde seu pai era fabricante
de selas, ofício este que aprendeu também. Contudo, uma antiga tradição conta que seus
antepassados procediam da Galiléia. seu porém, possuía o direito hereditário de cidadão romano,
cujos privilégios pôde apelar diante do tribunal romano. Em sua cidade, Tarso, Paulo conheceu uma
rica manifestação cultural e comercial da vida helenística, principalmente a Koiné, língua que havia se
imposto como universal, bem como o aramaico de sua tradição familiar. Apesar se sua convivência
com a cultura helênica, foi fiel às suas tradições judaicas, tanto que, pertencia ao grupo legalista dos
fariseus. (JEDIN, 1966, p.167.).
26
25
configuraram principalmente do ponto de vista da linguagem, já que, o “neopensamento” era dirigido a um povo que estava unido por uma mesma cultura e
língua: o koiné e é com este intuito que, acontecem, portanto, as primeiras
mudanças significativas do Cristianismo judeu primitivo. O ponto estratégico para
esta abertura foi a cidade de Alexandria, centro cultural helênico, onde convertiam
várias culturas num grande intercâmbio inter-racial. Para que os chamados
“pagãos”, pudessem abraçar esta nova forma de pensamento, Paulo teve que
sacrificar alguns conceitos judaicos, principalmente no tocante da moralidade, como
a lei mosaica e circuncisão.
Este ato gerou grandes embates entre os judeu-cristãos palestinenses,
também chamados de “judaizantes” 29, considerando Cristo como “O Filho de Deus”.
Paulo dá as condições para aquilo que Vaz30 chama de “Querela do Particularismo e
Universalismo”. Este embate ideológico no seio do Cristianismo tem de um lado os
judaizantes (os judeu-cristãos do Particularismo) que tentam conservar a tradição
judaica na íntegra; do outro estão os heleno-cristãos Universalistas, subjazendo nas
idéias de Paulo configuram mudanças nas antigas tradições.
Outro representante da abertura do Cristianismo ao mundo greco-romano foi
o apóstolo João. Por meio de seus dois escritos: o Evangelho e o livro de
Apocalipse, no final do século I, em grego, demonstrava esta abertura lingüística do
Cristianismo ao mundo helênico. No Evangelho, a figura de Cristo é descrito como o
Verbo Divino, conforme a hermenêutica de Jedin, que existe desde toda a
eternidade e se fez carne habitando entre os homens.
O desenvolvimento do pensamento de Paulo, juntamente com os escritos
joaninos, sobre a visão judaizante de Pedro causou diversos outros confrontos
internos. Assim, o Cristianismo se depara com o problema da ortodoxia judaica
sobre a heterodoxia helênica31, problema este que perpassará todo século II e III32.
Dentro desta seqüência de ideologias que buscam cruzar o pensamento cristão com
29 De acordo com Jedin (1966, p. 170), os judeu-cristãos possuíam divisões internas baseadas em
algumas convicções que se acreditava serem essenciais para o Cristianismo. Os judaizantes, partido
extremo dos judeu-cristãos palestinenses, defendiam como base ideológica a circuncisão.
30
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV. Introdução à ética filosófica I. São Paulo:
Loyola, 2002.
31
Este problema iniciado no século I vai se configurar num verdadeiro embate dentro movimento
cristão com duas correntes: aqueles que defendem o uso da filosofia na justificação cristã como
Justino e Atenágoras, no século II e Clemente e Orígenes no século III; e aqueles que defendem a fé
pela fé, sem o uso filosófico, como Teófilo e Hermes no segundo século e Tertuliano no terceiro
século (Cf. FRAILE, 1986, p. 75 e 76).
32
JEDIN, Hubert. Manual de Historia de la Iglesia. Barcelona: Herder, 1966, p.202. v.1.
26
o helênico têm-se nos limiares dos séculos I e II, os movimentos chamados,
gnóstico33, marcionita34, e montanista35, sendo o primeiro o que causou mais dano
na forma e se entender a os ensinos de Jesus.
As argumentações dos gnosticos, marcionistas e montanistas, segundo
Kenneth Scott Latourette, induziram os primeiros cristãos a procurar determinar e
tornar inconfundivelmente claro o que o Evangelho é, para tanto, procuraram voltar
ao próprio Cristo. Buscaram resgatar o que Nosso Senhor Jesus Cristo fora, seus
ensinamentos, o que Ele fez, tentaram também, de modo inteligível descobrir o que
havia sido dito pelos amigos mais chegados de Cristo, os apóstolos, aqueles que
eram tidos como comissionados por Ele para eternizar e difundir os Seus ensinos. A
forma de fazer isso foi a averiguação da linhagem de bispos que estava direta e
sempre em sucessão desde os apóstolos e poderiam ser tidos como transmissores
dos ensinos apostólicos. Procurou também determinar quais eram os registros dos
apóstolos ou que claramente continham os ensinos deles e os juntaram em uma
coleção fixa e normativa. Os cristãos daqueles tempos estabeleceram de modo mais
claro e breve quando possível os ensinos dos apóstolos de modo que os cristãos,
mesmo os iletrados comuns dentre eles, pudessem conhecer o que era a fé cristã,
especialmente nos pontos em que a Igreja católica diferia dos gnosticos e
marcionistas.
Abordar as origens do Cristianismo é um problema que tem como categoria
de abordagem inevitável a historiografia, já que esta deveria ser considerada como
prova verdadeira e testificada como tal. De acordo com Giordani36, o que se tem são
três grupos: os Livros do Novo Testamento (as epístolas de Paulo e os quatros
evangelhos), com a vida de Cristo e sua doutrina; os Manuscritos do Mar Morto
33
De Gnose (conhecimento) – filosofia como instrução reveladora das coisas de Deus, que leva ao
entendimento do mistério da salvação. Na Escritura pode ser identificado o gnosticismo baseado na
filosofia helenística e nos sábios judeus, em quem originaram os “cultos de mistérios” dos místicos.
Os gnósticos não priorizavam apenas o conhecimento, a mortificação da carne, o que dificultava a
crer que Deus veio em carne por Jesus cristo, mesmo fazendo parte da igreja (1ª Jo 4,1-3; 2º Jo 7).
34
Liderado por Marcião, o movimento marcionita sustentava que os Evangelhos foram
lamentavelmente distorcidos pela Igreja da forma que ele conhecia. Esse movimento tem alguns
pontos em comum com o movimento dos gnóticos, porém acreditavam que a salvação fosse por meio
da simples fé naquilo que Marcião acreditava ser o Evangelho. (LATOURETTE, volume 1 p. 167).
35
Movimento que nada possuía de semelhança com os gnóticos e marcionitas, nome emprestado de
Montano, da Frígida, na Ásia Menor. Representavam um reavivamento dos profetas proeminentes
nas primeiras décadas da Igreja, uma chamada aos cristãos para uma vida mais estrita, e uma crença
vívida num final próximo do mundo, na segunda vinda de Cristo, e no estabelecimento da sociedade
ideal na Nova Jerusalém. (LATOURETTE, volume 1 p. 170).
36
GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. Antiguidade clássica II. 8 ed. Petrópolis: Vozes,
1972.398p.
27
encontrados em 1947, que relatam em seus fragmentos a mentalidade religiosa na
Palestina Contemporânea de Cristo; e os escritos de autores pagãos como o
governador da província romana Bitínia (atual Turquia) Plínio o jovem, segue anexo
transcrição de sua carta a Trajano governador de Roma, Tácito37, Suetônico38 e
Flávio Josefo39 (37 ou 38 d.C.).
Senhor:
É regra para mim submeter-te todos os assuntos sobre os quais tenho
dúvidas, pois quem mais poderia orientar-me melhor em minhas hesitações
ou me instruir na minha ignorância? Nunca participei de inquéritos contra os
cristãos. Assim, não sei a quais fatos e em que medidas devem ser
aplicadas penas ou investigações judiciárias. Também me pergunto, não
sem perplexidade: deve-se considerar algo com relação à idade, ou a
criança deve ser tratada da mesma forma que o adulto? Deve-se perdoar o
arrependido ou o cristão não lucra nada tendo voltado atrás? É punido o
nome de "cristãos", mesmo sem crimes, ou são punidos os crimes que o
nome deles implica? Esta foi a regra que eu segui diante dos que me foram
deferidos como cristãos: perguntei a eles mesmos se eram cristãos; aos
que respondiam afirmativamente, repeti uma segunda e uma terceira vez a
pergunta, ameaçando-os com o suplício. Os que persistiram mandei
executá-los pois eu não duvidava que, seja qual for a culpa, a teimosia e a
obstinação inflexível deveriam ser punidas. Outros, cidadãos romanos
portadores da mesma loucura, pus no rol dos que devem ser enviados a
Roma. Bem cedo, como acontece em casos semelhantes, com o avançar
do inquérito se estendia também o crime, apresentando-se diversos casos
de tipo diferente: Recebi uma denúncia anônima, contendo grande número
de nomes. Os que negavam ser cristãos ou tê-lo sido, se invocassem os
deuses segundo a fórmula que havia estabelecido, se fizessem sacrifícios
com incenso e vinho para a tua imagem (que eu havia mandado trazer junto
com as estátuas dos deuses) e, se além disso, amaldiçoavam a Cristo coisas estas que são impossíveis de se obter dos verdadeiros cristãos achei melhor libertá-los.Outros, cujos nomes haviam sido fornecidos por um
denunciante, disseram ser cristãos e depois o negaram: haviam sido e
depois deixaram de ser, alguns há três anos, outros há mais tempo, alguns
até há vinte anos. Todos estes adoraram a tua imagem e as estátuas dos
deuses e amaldiçoaram a Cristo, porém, afirmaram que a culpa deles, ou o
erro, não passava do costume de se reunirem num dia fixo, antes do nascer
do sol, para cantar um hino a Cristo como a um deus; de obrigarem-se, por
juramento, a não cometer crimes, roubos, latrocínios e adultérios, a não
faltar com a palavra dada e não negar um depósito exigido na justiça.
Findos estes ritos, tinham o costume de se separarem e de se reunirem
novamente para uma refeição comum e inocente, sendo que tinham
renunciado à esta prática após a publicação de um edito teu onde, segundo
as tuas ordens, se proibiam as associações secretas.Então achei
necessário arrancar a verdade, por meio da tortura, de duas escravas que
eram chamadas ministrae, mas nada descobri além de uma superstição
irracional e sem medida. Por isso, suspendi o inquérito para recorrer ao teu
conselho. O assunto parece-me merecer a tua opinião, principalmente por
37
Político, de família senatorial, Tácito (56-120 d. C.) não foi um observador frio da vida pública
romana, segundo Comby e Lemonon (1987, p. 21) ele representa a aversão dos senadores aos
imperadores romanos. É também umas das testemunhas mais antigas sobre Cristo e os Cristão.
38
Suetônio (69 – 155 d. C.?) foi encarregado pelo imperador Adriano dos serviços do secretariado e
escreveu A vida dos doze Cézares.Apos o ano de 122 onde se envolveu em uma série de intrigas
não se tem conhecimento mais de sua vida. (COMBY e LEMONON, 1987, p. 34)
39
Flávio Josefo nasceu em Jerusalém (37 ou 38 d. C – 100 ou 103 d.C.), de uma rica família
sacerdotal de asmonéia.
28
causa do grande número de acusados. Há uma multidão de todas as
idades, de todas as condições e dos dois sexos, que estão ou estarão em
perigo, não apenas nas cidades mas também nas aldeias e campos onde
se espalha o contágio dessa superstição; contudo, creio ser possível contêla e exterminá-la. Com certeza, sei que os templos desertos até há pouco,
começam a ser novamente frequentados; que as solenidades sagradas até
há pouco interrompidas, são retomadas; e que, por toda a parte, voltam a
vender-se a carne das vítimas, até há pouco sem compradores. Disto podese concluir que uma multidão de pessoas poderia ser curada se fosse aceito
40
o arrependimento delas .
Como tais fontes não são objetos dessa pesquisa, seguir-se-á com o assunto
da Bíblia nos primeiros séculos.
Quando a Bíblia foi escrita, cada rolo foi produzido em separado. Podemos
observar Jesus, na sinagoga, pedindo “o rolo do profeta Isaías” (Lc 4.17). É evidente
que os primeiros seguidores de Jesus não tinham acesso a esses rolos e também é
evidente que os primeiros cristãos dependiam dos apóstolos e de outros para
entenderem o Antigo Testamento. O que fazer quando esses não mais existiriam? A
resposta como sempre está em Deus, através de seu Espírito. Os agrupamentos dos
rolos, para a formação da Bíblia e a definição de quais possuíam, de fato, autoridade
divina, foi um processo guiado por Deus através de concílios.
Por volta de 100 a 500 d.C surgiram várias seitas no “seio” do cristianismo
provocando vários problemas e confusões, sem contar o surgimento de várias
heresias. Para se chegar a uma “regra” ou “norma” foi necessário que religiosos e
estudiosos se juntassem nesses concílios para definirem a lista dos livros sagrados
e canônicos.
A palavra cânon, deriva do grego kanõn (”cana, régua”) como já foi citado no
início dessa pesquisa, que por sua vez, se origina do hebraico kaneh, palavra do
Antigo Testamento que significa “vara ou cana de medir” (Ez 40.3). Para tamanha
empreitada foi necessário amplo debate para definição de quais livros estariam
nessa lista. Após acordo e orientação do Espírito Santo a lista ficou pronta, e os
livros que não entraram na lista foram chamados apócrifos41. Assim surgiu a Bíblia.
Há, porém algumas diferenças entre a Bíblia usada pelos protestantes e a usada
40
BITÍNIA, Plínio o Moço governador da. Apostolado Veritatis Splendor: PERSEGUIÇÕES 1: CARTA
DE
PLÍNIO
O
MOÇO
AO
IMPERADOR
TRAJANO.
Disponível
em
http://www.veritatis.com.br/article/1225. em 17/07/2009.
41
O termo "apócrifo" foi cunhado por Jerônimo, no quinto século, para designar basicamente antigos
documentos judaicos escritos no período entre o último livro das escrituras judaicas, Malaquias e a
vinda de Jesus Cristo. São livros que não foram inspirados e que não fazem parte de nenhum cânon.
São também considerados apócrifos os livros que não fazem parte do cânon da religião que se
professa.
29
tradicionalmente pelos católicos romanos. Sendo essa ultima contendo alguns livros
a mais. Para aqueles que crêem na Bíblia como palavra de Deus, isso nada afeta a
canonicidade do Livro Sagrado. A partir do Cânon iniciam-se uma escrita maciça de
comentários bíblicos, segundo Mosconi iniciados pelos Padres da Igreja (Pais da
Igreja), Justine42 e o bispo Irineu43.
No século I, o Novo Testamento teve uma recepção progressiva como
ocorreu em relação ao Antigo testamento. Porém a fixação e aceitação foram mais
rápidas. Os primeiros sinais de recepção pela comunidade encontram-se na fase da
tradição oral, que segundo Konings está na constituição de coleções de sentenças,
milagres, etc., de Jesus – o “evangelho antes dos evangelhos”.
Ainda segundo Konings, a origem dos evangelhos sinóticos mostra a
aceitação que gozavam, por volta do ano 70, o evangelho de Marcos e a coleção de
sentenças de Jesus:
Todavia, existiam dúvidas em relação a muita coisa que estava circulando a
respeito de Jesus, como mostram as observações críticas de Lucas no
44
início de seu evangelho (LC 1.1) .
Nos primeiros séculos da história da igreja houve momentos na qual a luz da
Bíblia tornou-se pálida ou ofuscada, por causa dos brutais ataques do inimigo. Mas
Deus trouxe as Escrituras em segurança através daqueles tempos, e orientou
homens e mulheres para preservá-la, expurgá-la e mantê-la pura das alterações que
o inimigo tinha introduzido. Um desses períodos abrangeu o segundo e o terceiro
séculos, quando heréticos introduziram corrupções doutrinárias em muitos
manuscritos. No entanto, o Espírito de Deus guiou Seu povo a rejeitar aquelas
corrupções, e a pura Palavra de Deus prevaleceu. Uma dessas corrupções, por que
não dizer heresia, já citado anteriormente, o gnosticismo, foi combatido pelo
apóstolo Paulo.
Os primeiros séculos foram extremamente difíceis para a nova religião que
surgia. O mundo até então dominado por Roma, refreava qualquer tentativa de culto
a um deus único. O mundo helênico era um celeiro fértil para as questões filosóficas,
porém ainda mais fértil para a adoração a deuses pagãos.
O primeiro sinal de acessibilidade do Cristianismo ao mundo helênico se deu
com as missões paulinas. Tais missões se caracterizavam pelo desafio de Paulo em
42
Justino, também conhecido como Justino Mártir (100 - 165 d.C.) foi um teólogo do século II.
Padre da Igreja, teólogo e escritor cristão que nasceu, segundo se crê, na província romana da
Ásia Proconsular - a parte mais ocidental da actual Turquia - provavelmente Esmirna.
44
KONINGS, Johan. A Bíblia Nas Suas Origens e Hoje. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. P177.
43
30
entender a lógica grega, se bem que o desafio maior era entender a ruptura do
judaísmo-cristão na questão da não observância da circuncisão. Estes fatores
encerram no debate do particularismo judeu-cristão contra o universalismo helenocristão.45 Mas a cultura helênica é bem mais forte que o movimento simplista que
estava começando. Os escritos joaninos dão uma idéia da incorporação e da
mudança de mentalidade Cristológica no cristianismo, a começar pela língua, escrito
em grego, e a idéia de Jesus Messiânico é substituída para o Verbo Divino, isto é a
cristianização da razão46. David Bosch47 também comenta sobre esse assunto em
seu livro Missão Transformadora nas paginas 238 a 260.
O processo helenizante do Cristianismo traria sérias consequências no
domínio interno da nova religião. O embate entre cristãos ortodoxos48 e as doutrinas
heterodoxas49 refletem a força da expurgação grega. Trava-se neste cenário o
combate ao Gnosticismo e a formação intelectual do Cristianismo. Além de lutar
contra o judaísmo e o Gnosticismo, os primeiros cristãos sofreram ferrenha
perseguição encetada pelos romanos. Esses ataques aos cristãos tornaram-se
imperativo a necessidade de uma estruturação e organização do pensamento cristão
como discurso apologético50.
A partir do século II há preocupação de se arquitetar as primeiras escolas
filosóficas cristãs. Com esse fim, se dá o processo de possibilidades da
racionalização dos elementos característicos da fé cristã. Justino e Atenágoras são
os preconizadores desse processo51.
A fim de encerrar o assunto “a Bíblia nos seus primeiros quinhentos anos” e
tornar menos maçante essa leitura encerra-se esse tópico com a seguinte citação:
A historia da difusão do cristianismo em seus primeiros cinco séculos não
pode ser contada, porque não possuímos dados suficientes para escrevê-la.
Especialmente nossa informação com respeito à parte primitiva do período
é provocantemente fragmentaria. Isto não deveria nos surpreender. O que
nos espanta é que tanta informação chegou até nós. O cristianismo
começou como numericamente uma das religiões menores de todas as
religiões que, tendo origem no Oriente, foram levadas para o império... As
lacunas em nosso conhecimento são mais intrigantes pelas sugestões que
45
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV. Introdução à ética filosófica I.São Paulo: Loyola,
2002. p.167.
46
JEDIN, Hubert. Manual de Historia de la Iglesia. Barcelona: Herder, 1966, v.1. p.196.
47
BOSCH, David J. Missão Transformadora: Mudanças de paradigma na teologia da Missão.
Tradução de Geraldo Korndorfer. 2.ed. São Leopoldo: Sinodal, 2002. 690p.
48
O termo "ortodoxa” em grego, significa doutrina reta.
49
Heterodoxo: opinião diferente, diferente do senso-comum.
50
Às vezes denominada erística, apologética é a defesa formal da fé cristã.
51
GABRIEL, Moisés Nascimento. Métodos de Leitura Bíblica: FATE-BH, 18 jun. 2007. 1f. Notas de
Aula.
31
nos são dadas sobre o que um registro completo revelaria. Nas narrativas
da vida de Jesus nos Evangelhos nos são dados vislumbres de centenas,
talvez milhares de seguidores na Galiléia, todavia temos somente uma
menção superficial da presença dos cristãos primitivos que nos daria base
para inferir que desde os primitivos discípulos de Jesus ali surgiram comum
52
idades cristãs continuadas naquela região.
2.2 AS ESCOLAS DE ALEXANDRIA E ANTIOQUIA – LITERAL X ALEGÓRICA
Método é uma palavra de origem grega que significa caminho certo para
chegar a um determinado objetivo.53 Na tarefa de se interpretar corretamente a
Palavra de Deus, vários caminhos podem ser utilizados. Alguns mais adequados
que outros, porém não existe um método que seja perfeito, ou que contenha todos
os caminhos adequados para uma boa interpretação. O exegeta da Bíblia deve
procurar identificar o que há de melhor em cada método utilizado ao longo dos anos
para a interpretação dos Textos Sagrados. A seguir daremos um breve panorama de
dois importantes métodos utilizados na idade Média. O método da Escola de
Alexandria (alegórico) e o método da Escola de Antioquia (literal).
2.2.1 A escola de Alexandria
Alegorizar é procurar um sentido oculto ou obscuro nas entrelinhas do texto.
Mas, para alegoriar é necessário partir do sentido literal desse texto. Na Idade
Média, a alegoria se prestou aos serviços de muitos teólogos para defenderem suas
posições e ir além das duvidas, duvidas essas que sem esse recurso os levariam a
muitas heresias. O que, aliás, não deixou de acontecer. Alegorizar ou literalizar
demais tem suas conseqüências.
Um dos ícones que defendia a alegoria foi Santo Agostinho, autor de Cidade
de Deus, defendia que Bíblia deveria ser lida não de forma literal, mas de forma
alegórica. Para ele a alegoria não está nas palavras, mas o alegórico deve ser
encontrado nos acontecimentos históricos. Ao homem não é permitido o
conhecimento literal e imediato das escrituras. Seria complicado explicar de forma
literal textos muitos complicados das Escrituras, principalmente, do Antigo
Testamento.
Discorrer sobre a interpretação bíblica desse longo período situado na Idade
Média em poucas linhas é incorrer ao risco de se tornar muito simplista um assunto
52
LATOURETTE, Kenneth Scott. Uma história do Cristianismo.Tradução de Heber Carlos de
Campos. São Paulo: Hagnos, 2006.923 p. v.1. P.85 e86.
53
MOSCONI, Luiz. Para uma leitura fiel da Bíblia.3.ed. São Paulo: Loyola, 1996. P.104.
32
tão importante. Será necessário deixar de lado muitos fatos importantes e de rico
teor teológico o que pode esvaziar um assunto tão respeitável para a teologia.
A escola de Alexandria utilizava o que se pode chamar de método “alegórico”
defendido por Orígenes, que segundo Augustus Nicodemus Lopes, é a figura mais
importante desse período:
Orígenes Adamâncio provavelmente nasceu em Alexandria, no
Egito, em cerca de 185 d.C. Seu primeiro mestre na fé cristã foi seu próprio
pai. Na escola, seus mestre foram Clemente de Alexandria, e,
provavelmente, Amônio Saccas, o qual também foi mestre do famoso
filósofo-teólogo neoplatônico, Plotino. Essa proximidade com as raízes do
neoplatonismo tem feito alguns suporem que Orígenes, o teólogo cristão e
54
Orígenes, o filósofo neoplatônico, na verdade foram a mesma pessoa .
Foi o primeiro que defendeu uma teoria de interpretação da Bíblia. Recebeu
influências de Filo de Alexandria55 e do platonismo. Defendia que havia um sentido
mais profundo, que era o real por trás do sentido literal.
Assim, ao interpretar a entrada triunfal em Jerusalém, Orígenes afirma que
Jesus teria tido uma atitude indigna de um Filho de Deus se tivesse tido
necessidade de uma jumenta e de um jumentinho; que Ele teria sido
estúpido se tivesse se agradado do fato de terem colocado túnicas sobre os
animais, e que o colocar ramos no seu caminho só podia atrasá-lo (“
comentário sobre João” x.17s). o relato, conseqüentemente, deve ser
alegorizado: Jesus, como a Palavra de Deus, faz entrada na alma,. O
jumento é o sentido literal do AT, o jumentinho é o sentido literal do NT.
Estes se tornam, então, um veiculo para a Palavra de Deus ao serem soltos
pelos dois discípulos, os quais são para Orígenes representativos das duas
56
fases do sentido mais profundo, a saber, o sentido moral e o espiritual .
Para Orígenes o conhecimento acontecia de forma lenta e com segurança
para todos os homens, mesmo para aqueles que não tinham contato com o
cristianismo. O logos, nesse caso Jesus Cristo, não estaria reservado a uma
organização ou cultura.
As questões difíceis das Escrituras foram interpretadas simbólica ou
alegoricamente por Orígenes, principalmente questões do Antigo Testamento.
54
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 7.ed. São Paulo:
Hagnos, 2004. P.626. v.4.
55
Filo de Alexandria, cerca de 20 a.C. – 50 d.C. lê a Escritura alegoricamente. Sua interpretação
associa à Escritura significados previamente não conectados com ela: Filo, primeiro, reduz a
sabedoria clássica a uma forma conceitual anônima; segundo,ao ler a Escritura alegoricamente,
apresenta aquela sabedoria como a verdade subjacente ao sentido da Escritura. Moisés tem
prioridade sobre os autores clássicos, tornando-se o filósofo original. A Escritura torna-se, assim, uma
“re-escritura” de significados clássicos, uma “re-escritura” que é, paradoxalmente, vista como escrito
original. A leitura alegórica de Filo é usada para reinterpretar o cosmos, a história, a sabedoria
filosófica clássica e a realidade social de Alexandria; ela não procurava dissolver a identidade judaica
na cultura helenística, mas era central para a identidade e sobrevivência da comunidade judaica em
meio a um contexto hostil. A interpretação alegórica do Antigo Testamento de Filo de Alexandria.
Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st5/Adriano%20Filho,%20Jose.pdf. Acesso em
25/07/2009.
56
FEE, Gordon D.; STUART, Douglas. Entendes o que Lês. São Paulo: Vida Nova, 1984.p.239.
33
Embora rejeitasse a narrativa em sentido literal, principalmente em questões relativo
ao sacrifício humano, Orígenes tirava dessas narrativas lições para explicar a
suprema dedicação de Deus.
Para Russell Norman Champlin, Orígenes postulava três níveis de
interpretação: literal, simbólico ou alegórico e místico. Conforme ele as mais intensas
necessidades da alma só poderiam ser contentadas com a interpretação mística.
Orígenes foi sem duvida uma das figuras centrais desse movimento, se é que
podemos chamar esse método de interpretação alegórico de movimento, mas enfim
foi também Orígenes com o seu conceito de “eterna Geração” do filho que ajudou a
formulação da doutrina da Trindade.
Para Augustus Nicodemus, pais da Igreja como Dionísio o Grande, Eusébio
de Cesaréia, Ciro de Alexandria, e Didimo receberam as influencia alegóricas de
Orígenes. Este tinha grande estima pelas as Escrituras , mas protegeu, sistematizou
e promoveu uma norma de interpretação que ao fim diminuía o costume histórico de
algumas passagens e que não dispunha de controle adequado contra o
subjetivismo57.
Como veremos a seguir Orígenes não estava sozinho. Outros seguidores da
escola de Alexandria preocupavam com o crescimento espiritual das comunidades,
liam a Bíblia como pastores e não como estudiosos. Essa escola teve como um dos
seus primeiros representantes João Cassiano (? 435 a.D). É atribuída a ele a
distinção entre os quatros sentidos da Bíblia. O histórico ou literal, ou seja, o sentido
claro do texto. Alegórico ou cristológico, o mais profundo, quase sempre apontando
para Cristo. O sentido tropológico ou moral, que rege a condulta do cristão e suas
obrigações. E por fim o sentido anagógico ou escatológico , que apontava para as
coisas do futuro. Esses quatros sentidos também receberam o nome de “quadriga”
que também foi atribuída a Agostinho, conforme relata Augustus Nicodemus. Dela
surgiu a rima “moralis quid agas; quo tendas analogia; littera gesta docet; quid
credas allegoria” ( Moral, o que fazes; o que esperas, anagogia. Literal gera
docência; o que crês, alegoria) 58.
Clemente de Alexandria também instruía que as Escrituras possuíam uma
linguagem alegórica para despertar a curiosidade das pessoas e isto acontecia
57
História
da
Interpretação
Cristão
da
Bíblia.
Disponível
http://www.monergismo.com/textos/hermeneuticas/he_augu1.pdf. Acesso em 22/08/2009.
58
História
da
Interpretação
da
Bíblia.
Disponível
http://www.monergismo.com/textos/hermeneuticas/he_augu2.pdf. Acesso em 22/07/2009.
em:
em:
34
porque nem todos deveriam entendê-la. Para ele o método literal desenvolvia uma fé
muito elementar. Foi o primeiro a aplicar o método alegórico na interpretação do AT
e a sugerir o princípio de que toda Escritura deve ser entendida alegoricamente.
Tal método de interpretação parece prevalecer em muitas das nossas igrejas
atuais. Nota-se sem muita dificuldade que muitas seguem pelos mesmos caminhos,
porém de forma rudimentar. Para manter acessa a chama e porque não dizer uma
quenturinha em muitos corações de crentes, pastores espiritualizam sobremodo as
Escrituras muitas das vezes com total conhecimento. Criam dessa forma crentes
fracos e dependentes. Esses pastores passam a ser tratados quase como gurus
pelo seu rebanho, só ele tem o conhecimento e autoridade sobre a Palavra. Através
deles esse rebanho acredita possuir o meio mais rápido para se chegar a Deus.
Esses pastores, em sua grande maioria, adotam essa forma de interpretar por
acharem que é mais segura do que ensinar a igreja a pensar, e a maioria dos
crentes acham que é mais conveniente terem alguém que pense por eles. Assim,
vários elementos estranhos, por causa do exagero das alegorias estão sendo
levados para os cultos e contaminando o meio evangélico. É muito mais fácil,
trabalhar com o misticismo que não se explica do que com a razão que exige mais
estudos. Além do que, nos dias atuais, a tão falada modernidade, as pessoas não
possuem mais tempos para se ocuparem com estudos de algo tão subjetivo como o
espiritual ou Deus. Sidney Sanches resume muito bem essa questão:
Nada mais interessa (ao indivíduo), sua experiência humana de estar no
mundo é apenas a dele e de mais ninguém. Isso é bom na medida em que
cada pessoa decide o que vai ser o que vai fazer e onde vai estar por si
mesmo, porém pode fazer com que ela possua responsabilidade apenas
para consigo mesma e para com mais ninguém mais. Por outro lado, esse
indivíduo nem sempre está preparado para viver dessa maneira por isso irá
procurar alguém que lhe diga como ser, fazer e estar.... Escolhe-se para tal
59
aquele indivíduo identificado pela palavra metáfora PASTOR.
O mesmo que acontece hoje na Igreja aconteceu no passado. Os cristãos, no
afã de entender o que é somente para ser sentido, procuram alegorias onde o
assunto se mostra totalmente literal, e literal quando o assunto é alegórico. Ou seja,
na hora de ler na Bíblia que o cortar a mão ou cegar um olho o assunto é alegórico,
e o é, ninguém demonstra dificuldade em entender isso, mas vêem dificuldade em
entender de forma alegórica que Deus lhe dará nações por possessão, nesse caso
um grande número prefere ler o texto de forma literal. Outro texto que se pode citar
59
SANCHES, Sidney de Moraes. Perplexos mas não desanimados! Belo Horizonte: Lectio, 2006.
P.28-29.
35
como exemplo é de Josué “eu e minha casa serviremos a Deus”. (Jos 24:15)
Quantos crentes não estão aí se sentindo culpados porque muitos dos seus estão
morrendo e a sua casa não está servindo a Deus como deveria.
2.2.2 A escola de Antioquia
A escola de Antioquia foi fundada por Luciano de Samosata (240-312 AD),
teólogo cristão que deu origem a uma tradição de estudos bíblicos que ficou
conhecida pela erudição e conhecimento das línguas originais. Atribui-se a Luciano,
embora sem evidência concreta, uma recensão e padronização dos textos gregos da
sua época, dando origem ao texto bizantino ou Sírio, que foi o texto grego do Novo
Testamento adotado pela igreja até meados do século 20. Essa escola era mais
voltada para o sentido literal do texto Bíblico. De acordo com o Prof. Moisés Gabriel
“Defendiam a verdade dos fatos assim como contados na Bíblia” 60. Seus analistas
mais famosos foram: Teodoro de Mopusuéstia (360-428 d.C), São João Crisóstomo
(344-407 d.C) e São Jerônimo(347-420 d.C) este é considerado o pai da exegese,
também traduziu toda a Bíblia para o latim entre outros textos61. Aliás, foi essa
abordagem literal das Escrituras fundada nos primórdios do século IV que a tornou
famosa.
Segundo Augusto Nicodemus,62 seus princípios de interpretação são
desenvolvidos e utilizados pelos seus representantes da seguinte forma:
sensibilidade e atenção ao sentido literal do texto; desenvolvimento do conceito de
teoria (estado mental dos profetas em que recebiam as visões em oposição à
alegoria); não negavam o caráter metafórico de algumas passagens (reconheciam
que havia um sentido mais profundo nas profecias do Antigo Testamento);
buscavam determinar a intenção do autor (pela atenção cuidadosa ao sentido
histórico das palavras em seu contexto original) e eram contra descobertas
arbitrarias de Cristo no Antigo Testamento, como as feitas pela alegorese
Alexandrina.
60
GABRIEL, Moisés Nascimento. Métodos de Leitura Bíblica: FATE-BH, jun. 2007. 1f. Notas de Aula.
Ibidem
62
Augustus Nicodemus Lopes é paraibano e pastor presbiteriano. É bacharel em teologia pelo
Seminário Presbiteriano do Norte (Recife), mestre em Novo Testamento pela Universidade
Reformada de Potchefstroom (África do Sul) e doutor em Interpretação Bíblica pelo Westminster
Theological Seminary (EUA), com estudos no Seminário Reformado de Kampen (Holanda). É
chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana de Santo
Amaro. É autor de vários livros, entre eles O Que Você Precisa Saber Sobre Batalha Espiritual (CEP).
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augustus_Nicodemus_Lopes. Acesso em 27/06/2009.
61
36
A Escola de Antioquia opunha-se fortemente ao método alegórico de
interpretação da Escola de Alexandria. Os adeptos dessa escola empregavam o
método gramático-histórico. Porém, esse método era aplicado de diversas maneiras,
expressando dessa forma muitos pontos de vista. Sua cristologia, todavia
aproximava-se quase sempre da dos nestorianos63.
Conforme Champlin, seus principais líderes foram Deodoro de Tarso, Teodoro
de Mopsuéstia, Teodoreto de Cirro e Nestor. Seus ensinos nos séculos IV e V d.C.
foram a base para a Escola de Antioquia.
Com Deodoro começa o que historicamente se conhece como Escola de
Antioquia. Ele tinha o conceito de dupla personalidade da pessoa de Cristo, mas não
desenvolveu a doutrina da unidade da natureza divina e humana em Jesus Cristo.
Um de seus Alunos foi João Crisóstomo, homem de grande eloqüência no discurso
e na palavra escrita, tendo sido um dos maiores pregadores do cristianismo.
Segundo Champlin, a contribuição de Teodoro de Mopsuéstia foi de colocar a
exegese sobre as bases textuais e históricas. Teodoreto deu prosseguimento ao seu
trabalho, cuja cristologia foi influenciada por Nestor. Este enfatizava a humanidade
de Cristo e ensinava que a união do divino e do humano em Jesus era um arranjo
voluntário, embora reconhecesse que houvesse apenas uma pessoa em Jesus,
ninguém jamais encontrou solução para esse dilema, muito menos Nestor. Nestor se
recusava a chamar Maria como mãe de Deus, cujo titulo já era popular em seu
tempo. Sua evidência recaia sobre a separação de pessoas em Cristo, sua
veemência causou entraves entre ele e outro teólogos. O concílio de Constantinopla,
em 553, chamado Quinto Concílio Ecumênico, condenou os escritos da Escola de
Antioquia, tiveram como base citações distorcidas. A separação entre a igreja
imperial dos bispos e os seguidores de Nestor produziu o cisma nestoriano e a
captura de Antioquia, em 637, por forças islâmicas, pôs fim ao desenvolvimento
dessa escola teológica.
2.3 PATRÍSTICA
Com o nome de patrística entende-se o período do pensamento cristão que
se seguiu à época neotestamentária, e chega até ao começo da Escolástica: isto é,
63
Seita, cujo santo e herói foi Nestor, prosseguiu ainda durante dois séculos após sua morte.
Levaram o Evangelho à Arábia, à Índia, ao Turquistão e à China. Eles adotaram o titulo de cristãos
cadeus. Foram perseguidos pela a Igreja ortodoxa na Pérsia, na Arábia e na
Mesopotâmia.(Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia, volume 4. p.489).
37
os séculos II-VIII da era moderna. Este período da cultura cristã é designado com o
nome de Patrística, porquanto representa o pensamento dos Padres da Igreja, que
são os construtores da teologia católica, guias, mestres da doutrina cristã. Portanto,
se a Patrística interessa sumamente à história do dogma, interessa assaz menos à
história, em que terá importância fundamental a Escolástica64. Os escritos
provenientes desse período ajudaram a sistematizar e a colocar de forma racional a
doutrina do Cristianismo.
O período patrístico vai até os séculos VII-VIII. Não ha um concordância
absoluta de uma data especifica sobre o seu fim, mas pode-se dividi-lo,
essencialmente, em duas vertentes: Oriental e Ocidental. No que se refere à igreja
Oriental (Grega), data, o seu fim, por volta de 754 com a morte de João Damasceno.
E, no que se refere à igreja Ocidental (Latina), em 753 com a morte de Isidoro de
Sevilha65.
Nesse período o terreno era fértil para os perigos contra a fé e às indagações
coerentes do tempo, para combatê-los nasce um conjunto de textos ordenados
sobre a doutrina, sobre o cristianismo e suas diretrizes de fé. Por tanto, a patrística
não se refere somente a um momento histórico, mas a esse conjunto de textos
doutrinais que guiavam a fé dos cristãos. Estes textos não são de qualquer autoria,
mas autoria de pensadores chamados “padres” da Igreja cristã e suas elaborações
doutrinárias. Graças a eles, concretizou os ensinos da Igreja em seus aspectos
principais, e foram vencidas as heresias e as controvérsias doutrinárias que
ameaçavam a integridade da fé
Esses pais da igreja se ocuparam principalmente, com a relação entre fé e a
razão, a natureza de Deus, da alma, da moral e da vida.
Seus fundamentos se encontram na filosofia platônica, que colabora com a
base para a necessidade de mais rigor para a ética, para a renúncia, se bem que se
torna cada vez mais raro alguém abrir mão de algo por vontade própria, e a
necessidade do controle das paixões e de todas as mazelas que sempre fizeram
parte da humanidade.
A Patrística também é a designação para o ramo da teologia que estuda os
escritos e as doutrinas dos primeiros e mais importantes líderes pensadores da
64
A Patrística Pré-Agostiniana. Disponível em http://www.mundodosfilosofos.com.br/patristica1.htm.
Acesso em: 31/07/2009.
65
Vídeo: Patrística- A origem da tradição cristã vol.1 Paulus 47 min. vhs.ntsc
38
Igreja cristã.
Esses pais da igreja são divididos em patrísticos ante-micenos e
patrísticos pós-micenos, ou seja, sãos os pensadores teólogos cuja vida e obra se
localizam antes e depois do Concilio de Nicéia em 325.
Os patrísticos ante-nicenos também são chamados de “Pais Apostólicos”,
pois tiveram contato direto ou então foram mencionados pelos apóstolos. Destacamse entre eles Clemente de Roma, Clemente de Alexandria, Policarpo e Inácio. Seus
escritos são denominados escritos dos pais apostólicos. Sendo Clemente, Pataeno e
Orígenes considerados os primeiros pais da igreja em Alexandria.
Outros cujos escritos são também considerados patrísticos e também pais
Apostólicos foram Tertuliano, Cipriano, Novaciano, Irineu e Hipólito. Os pais pósnicenos foram grandes para a teologia. Esses teólogos fizeram copias à mão dos
escritos dos “Pais Apostólicos” que foram lidos, estudados, alguns com mais
influencias teológicas, outros com menos. Mas, sem duvida nomes como Ário,
Atanásio de Alexandria, Teodorio de Mopsuéstia, Jerônimo, Agostinho e João
Damasceno contribuíram muito pelo fazer teológico de sua época e suas
contribuições se estendem até os dias atuais. Orígenes foi o que teve maior
influencia teológica sobre a Igreja Oriental. Agostinho foi a maior influencia sobre o
pensamento teológico da Igreja Ocidental. Ambos tiveram algumas divergências no
modo de interpretar algumas doutrinas cristãs.
Orígenes enxergava nas Escrituras três níveis de leitura. O literal, que está na
superficialidade do texto, percebido mesmo para os mais simples de mente. O moral,
que edifica aqueles que percebem a “alma” das Escrituras, e o nível espiritual, o
mais importante e mais difícil, que contém um significado “escondido” sob o que é
superficialmente desprezível para a consciência ou para o intelecto, se discernido,
pode ser explicado através de alegoria.
Agostinho foi um teólogo cujas bases estavam fincadas no platonismo.
Segundo estudioso de sua obra, boa parte de sua teologia foi expressa através das
idéias platônicas. Baseado na Bíblia, a filosofia platônica não seria anti-bíblica. Sua
teologia fundava-se principalmente em Deus e alma. É sua frase “desejo conhecer
Deus e alma. Nada mais? Nada mais.” Em confissões escreve “Ó Deus, Tu és
sempre o mesmo. Oxalá eu conhecesse a mim mesmo e conhecesse a Ti.”
Agostinho escreveu contrapondo o maniqueísmo defendeu a autoridade das
Escrituras. Abordou assuntos como a origem do mal, sobre a criação, o livre-arbítrio
e foi grande defensor da predestinação, já citado anteriormente. Resumindo a
39
doutrina agostiniana a respeito do mal, seria: o mal é, basicamente, privação de bem
(de ser); este bem pode ser não devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e
moral) a uma determinada natureza; se o bem é devido nasce o verdadeiro
problema do mal; a solução deste problema é estética para o mal físico, moral
(pecado original e Redenção) para o mal moral (e físico)66. Lutou contra o
pelagianismo, que principalmente negava o pecado original e aceitavam o livrearbítrio afirmando que o homem podia vencer o pecado por si só.
Agostinho moldou praticamente todas as formas de pensar a fé do mundo
Ocidental. Estudou e aprendeu com Ambrósio o método alegórico de interpretar as
passagens bíblicas, principalmente as do Antigo Testamento que eram de difícil
compreensão. Isso trouxe mais conforto para sua alma.
A partir da afirmação de que se vê o amor vê a Trindade, Agostinho afirma
que o amor intratrinitário produz a união entre Deus e os crentes e dos crentes com
o seu próximo. Destacou não as pessoas em separado, mas a unidade do ser
divino. Deus deveria ser considerado suma essência. Tudo o que dissesse a
respeito à divindade deveria ser anunciado no singular. Foi a partir desse ponto que
se passou a falar da pessoa de Deus.
2.4 LEITURA BÍBLICA DURANTE A IDADE MÉDIA - ESCOLÁSTICA
Este período do pensamento cristão se designa com o nome de escolástica,
porquanto era a filosofia ensinada nas escolas da época , pelos mestres, chamados,
por isso, escolásticos.
O
esboço
da
leitura
na
época
escolástica
proporcionou
intensas
transformações. A “leitura” vai tornar-se um exercício de aprendizagem, regida por
leis que lhe são próprias. O principal lugar onde se exercerá essa atividade será,
portanto a escola, seguida pela universidade. Enquanto na Alta Idade Média, a
leitura se situava nos mosteiros, durante o período escolástico constatamos uma
renovação radical da própria compreensão de se ler. Verifica-se que essa época
obedece a uma tomada de consciência do ato de ler. Daí em diante, a leitura não
será mais idealizada sem certa organização. A partir daí não se aborda mais um
livro de qualquer modo. Existe a necessidade de se compreender o método seguido
para realizar a leitura de um texto. Esse preparo da leitura vai criar necessidades
66
Santo Agostinho. Disponível em: http://www.mundodosfilosofos.com.br/agostinho.htm. Acesso em
01/08/2009.
40
novas. É preciso que o leitor possa encontrar facilmente o que procura em um livro,
sem ter de folhear as páginas. Por isto, começa-se a formação do aluno leitor e a se
estabelecer as divisões, as marcas, os parágrafos, a dar títulos aos diferentes
capítulos a criar tabelas e índices alfabéticos que promove a consulta rápida de uma
obra. Essa leitura escolástica vai de encontro ao método monástico orientado para
uma abrangência lenta e rigorosa do conjunto da Escritura.
Durante a Alta Idade Média, a leitura da Sagrada Escritura formava a base da
espiritualidade monástica e era genuinamente o alimento espiritual dos monges.
Alguns autores chegaram a chamar de ruminatio67 a este tipo de leitura que
objetivava a assimilação e meditação dos ensinamentos bíblicos. O ruminatio era um
tipo de leitura pausada e regular, feita em profundidade. Havia, ainda, em certos
momentos, a prática da leitura em voz alta.
Nessa época, distinguiam-se três tipos de leitura: a leitura silenciosa, a leitura
em voz baixa, chamada murmúrio ou ruminação e a leitura em voz alta que se
aproximava muito do canto.
Durante a Idade Média, a prática da leitura concentrou-se no interior das
igrejas, das celas, dos refeitórios, dos claustros e das escolas religiosas,
geralmente restritas às Sagradas Escrituras. Com o códex, na Alta Idade
Média surge a maneira silenciosa de ler, sobretudo textos religiosos que
exigiam uma leitura meditativa. A leitura silenciosa se estabelece através da
relação íntima, secreta e mais livre do leitor com o livro, tornando mais ágil a
68
leitura. Surge aqui, o "leitor extensivo".
A grande modificação que ocorre no quadro da leitura escolástica reside na
importância que essa prática terá no ensino. Toda a pedagogia medieval baseia-se
na leitura de textos, e a escolástica universitária institucionaliza e amplia este
trabalho.
Pode-se falar de leitura escolástica como sendo diferente de todas aquelas
vistas até então. Como a produção literária não cessa de crescer, é preciso
encontrar outros métodos de leitura mais rápidos que permitam aos intelectuais
tomar conhecimento de um grande número de obras. Para isto, os medievais
sempre recorreram às auctoritates69 em suas próprias composições literárias. Tratase de frases, de citações ou de passagens extraídas da Bíblia, dos padres da Igreja
ou dos autores clássicos, destinadas a dar mais peso à sua própria argumentação.
67
Ruminatio significa, literalmente, repetição.
CHARTIER, Roger; CAVALLO, Guglielmo. A História Da Leitura No Mundo Ocidental. Disponível
em http://resumos.netsaber.com.br/ver_resumo_c_47166.html. Acesso em 17/06/2009.
69
As “autoritates” são os argumentos, os ditos tirados da Escritura e dos teólogos recentes para
provar uma tese.
68
41
Essa efervescência intelectual da Escolástica, que abrangeu o período do
começo do século IX até o fim do século XVI, contribuiu de forma profunda para o
crescimento teologico. A teologia se tornou uma importante fonte de estudo, sendo
até mesmo chamda de “a rainha das ciencias”. Era o assunto do momento. O inicio
da Escolástica se deu no “revivamento” intelectual e religioso sob os carolíngios70 e
sua primeira figura de destaque foi João Scoto Erígena. O mestre carolíngio introduz
o conceito de participação partindo do entendimento que as criaturas existem porque
participam da natureza divina e dela recebem seu ser, pois fora dela nada existe
propriamente, assegurando a condição criadora e de autocriação de Deus. Com
esse conceito o irlandês esclarece a controversa questão panteística71. No seculo
XI, ele renovou alguns monastérios, principalmente o de Bec, na Normandia, e as
escolas mantidas sob apoio financeiro das catedrais. Paris era o centro principal,
mas não o unico da teologia escolástica. As universidades se multiplicaram nos
seculos XIII e XVI e disputavam os grandes mestres da teologia. Eram
principalmente fundações esclesiasticas, obtendo a linceça do papa72. Conhecidas
mais pelas suas escolas de Direito e outras pela a escola de medicina, a teologia era
uma matéria de destaque nessas universidades.
Um dos principais objetivos dos escolasticos foi determinar a relação entre a
fé e a razão. Esse problema acompanhava os pensadores cristãos muito antes. A
busca do Escolasticismo era a organização racional das verdades aceitas, para que,
vindo ela da revelação através da fé ou da razão pela filosofia pudessem ser um
corpo harmônico. Segundo Kenneth Scott:
O escolasticismo empregou o aparato intelectual que herdara do mundo
pré-cristão grego romano. Era a filosofia grega, e, especialmente, o que fora
escrito por Platão e Aristóteles. No começo, poucos dos escolásticos
tentaram o latim. Somente porções das obras de Aristóteles e dos escritos
da tradição platônica estavam disponíveis a eles no latim. Entretanto, o
suficiente de Aristóteles era acessível para capacitá-los a empregar a lógica
aristotélica. Foi por meio dessa lógica ou dialética com seus silogismos que
eles se envolveram na atividade intelectual. Eles também tinham
73
familiaridade com uma obra escrita pelo neoplatônico Porfírio.
70
Carolíngios ou Carlovíngios é o nome da dinastia franca que sucedeu aos merovíngios (751), com
Pepino, o Breve, e restabeleceu o Império Romano do Ocidente de 800 a 887 (principalmente sob
Carlos Magno). Seus últimos representantes reinaram na Alemanha até 911 e na França até 987.
71
Doutrina segundo a qual só Deus é real e o mundo é um conjunto de manifestações ou
emanações.
72
LATOURETTE, Kenneth Scott. Uma história do Cristianismo.Tradução de Heber Carlos de
Campos. São Paulo: Hagnos, 2006. p 666. v.1.
73
Ibidem p. 667.
42
A atividade teológica desse período tornou-se marcantemente diferente
daquela dos primeiros 500 anos do cristianismo. O gnosticismo não mais existia. O
rígido dualismo de Marcião estava presente nos cátaros74·, mas não fazia mais
diferença para os cristãos do Ocidente. O vinculo de Cristo com o Pai e o equilíbrio
entre o divino e o humano em Jesus já estava definido nos credos históricos da
Igreja Católica Romana.
Porém os grandes nomes da Escolástica como Anselmo e Tomas de Aquino
estavam longe de serem repetidores de assuntos teológicos estabelecidos. De
intelectos apurados, na investigação sobre fé e razão eles persistiam pelejando com
assuntos básicos como as que foram apresentadas pelos gnóticos, marcionistas,
arianos75 e monofisistas76. Usando as conclusões de gerações anteriores eles
perguntavam se estas poderiam ser validadas de novo ou deveriam se colocadas de
modo novo, como o significado na morte de Cristo. Mas, eles estavam mais
preocupados com o caráter e os atributos de Deus do que seus predecessores.
74
O catarismo (do grego καϑαρός [katharós], "puro") foi uma seita cristã politeísta, principal motivo
pelo qual foi considerada como heresia, surgida no Languedoc e no norte da península Itálica ao final
do século XI.
75
O arianismo foi uma visão Cristológica sustentada pelos seguidores de Arius nos primeiros tempos
da Igreja primitiva, que negava a existência da consubstancialidade entre Jesus e Deus, que os
igualasse, fazendo do Cristo pré-existente uma criatura, embora a primeira e mais excelsa de todas,
que encarnara em Jesus de Nazaré. Jesus então, seria subordinado a Deus, e não o próprio Deus.
Segundo Ário só existe um Deus e Jesus é seu filho e não o próprio.
76
O Monofisismo (do grego µονο = único) é uma doutrina cristológica do século V e admitia em Jesus
Cristo uma só natureza, a divina. Foi elaborada por Eutiques em reação ao Nestorianismo e foi
considerada também uma heresia para os segmentos majoritários do cristianismo (os católicos e os
ortodoxos). Esta doutrina era originária do Egito e estendeu-se progressivamente à Palestina e à
Síria.
43
3 LEITURA DA BÍBLIA NA REFORMA PROTESTANTE ATÉ OS DIAS
ATUAIS
Neste capitulo Três a Bíblia retoma seu lugar de destaque entre o povo,
conduzida pela a Reforma Protestante na Europa. Nessa divisão serão tratados
alguns fatos da vida de alguns dos mais importantes reformadores e de algumas
propostas de leitura bíblica feitas por alguns movimentos surgidos com a Reforma.
Para Augustus Nicodemus, a Reforma Protestante foi em muitos sentidos um
movimento hermenêutico. Representa um momento crucial na história da
interpretação cristã das Escrituras. Sob os auspícios de reformadores como Lutero e
Zuínglio, os séculos de interpretação baseada no método alegórico chega ao fim no
século XVI77.
Para Alderi Souza de Matos78 a Reforma Protestante foi importante para o
cristianismo porque atraiu a atenção para fatos doutrinários e práticas bíblicas que
haviam sido perdidas ou distorcidas pela Igreja Medieval. Não foi um movimento
inovador, mas restaurador das afirmações e ênfases do cristianismo original. Seus
principais tributos foram: retorno às Escrituras; a centralidade de Cristo; a salvação
vista como dádiva da graça de Deus, a ser recebida por meio da fé; a Igreja não é a
instituição ou a hierarquia, mas o povo de Deus – cada cristão é um sacerdote.
Um dos principais pontos que levou a Reforma foi à rejeição por partes dos
reformadores quanto à hierarquia da Igreja, já que não aceitavam que ela fosse a
única com autoridade em questões religiosas, principalmente concernente a
interpretação da Bíblia. Eles romperam com a Igreja de Roma e rejeitaram a
autoridade do papa, embora nem todos, muitos preservaram a hierarquia sem o
papa. Mas todos consideravam a Escritura como normativa, mas nenhum deles
concedeu ao papa o direito de dar interpretações as Escrituras que mantivessem os
cristãos amarrados a uma questão. Para os reformadores a Bíblia era o juiz supremo
77
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: Uma breve história da interpretação.
São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004. p.159.
78
Alderi Souza de Matos é professor de História da Igreja e coordenador da área de Teologia
Histórica do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, em São Paulo. É mestre em
Novo Testamento pela Andover Newton Theological School, Massachusetts, EUA, e doutor em
História da Igreja pela Boston University School of Theology. Alderi é ministro da Igreja Presbiteriana
do
Brasil
e
historiador
oficial
dessa
denominação.
http://www.mundocristao.com.br/autordet.asp?cod_autor=177. Acesso em 23/09/2009.
44
de todas as polêmicas religiosas, ela era intérprete de si mesma e, portanto, estava
apta a responder sobre essas questões.
Para os lideres desse movimento a Bíblia era o ponto principal na prática
cristã, e não secundária como ocupava até então no catolicismo romano. Ela foi
resgatada e trazida de volta ao seu lugar de honra e a partir desse evento, a
Reforma, os cristãos passaram a recorrer a ela para resolver questões teológicas e
principalmente para responder questões relativas à fé e a prática da Igreja. Antes
somente o clero estava habilitado a manuseá-la.
Para alguns dos reformadores a interpretação da Bíblia só poderia ser feita
dando ênfase no sentido literal, gramático e histórico do texto. Para eles cada texto
possuía um só sentido, ou seja, o literal, a não ser que o contexto ou o texto
requeresse uma interpretação no sentido figurado. Alguns romperam definitivamente
com as alegorias que prevalecia até aquele momento. A Reforma se caracterizou
por utilizar principalmente o sentido literal, que inclui vários elementos, como noção
de gramática, conhecimento de fundo histórico do texto, análise do conteúdo do
texto bíblico, além da necessidade da iluminação espiritual do intérprete.
3.1 LUTERO
Lutero foi a pessoa mais conhecida da Reforma, porém não a mais
importante. Iguala-se nesse quesito a figura de Zuínglio, teólogo suíço e principal
líder da Reforma Protestante na Suíça. Para muitos, o fato mais significativo de sua
vida foi ter traduzido para o alemão o Novo Testamento em 1522 a partir da Vulgata.
Esse fato permitiu que pessoas pobres, ricas, de maior ou menor intelecto
pudessem tomar conhecimento direto da Palavra de Deus, sem a necessidade de
intermediação. Há que se levar em conta que atribuir demasiado valor somente a
esse fato na trajetória de Lutero seria diminuir a importância de uma das figuras
mais eminentes da história do cristianismo.
Lutero se debruçou sobre a Bíblia a maior parte de sua vida. Ela transformou
sua vida. Graças a sua dedicação e empenho contribuiu para uma enorme mudança
na cristandade. No seu tempo, o povo em geral não tinha acesso ao livro sagrado.
Foi por meio de sua leitura e estudos e estudo sobre o livro de Romanos que ele
descobriu a verdade evangélica que estava esquecida – a verdade de que as
pessoas são justificadas por graça e fé. Que Deus acolhe as pessoas de forma
gratuita independente de obras.
45
Esta descoberta tornou-se o coração da Reforma Protestante no século XVI.
A partir dela é que os reformadores fixaram quatro expressões que se tornaram a
marca da Reforma: somente Cristo, somente fé, somente a graça, somente a
Escritura. Um fato importante: ele traduziu a Bíblia do hebraico e grego para a língua
do povo, o alemão. Isso desencadeou um movimento impressionante porque todas
as pessoas podiam ler e interpretar a Bíblia livremente. Para incentivar essa prática
Lutero defendeu a criação de escolas que ajudassem na formação das pessoas.
Para Lutero a Bíblia é a única autoridade na igreja e a chave de leitura é Jesus
Cristo. A Bíblia precisa ser lida tendo sempre como fio vermelho aquilo que promove
Cristo.
Nas palavras de Lutero: “Aquilo que não ensina Cristo não é apostólico,
mesmo que Pedro ou Paulo o ensinem; inversamente, aquilo que prega Cristo é
apostólico, mesmo que Judas, Anás, Pilatos ou Herodes o façam”79.
A tradução da Bíblia para o alemão se tornou referência para a formação da
língua alemã até os dias de hoje. Lutero escreveu dezenas de comentários sobre os
mais diversos livros da Bíblia. Foi um pregador notável. Suas pregações podem ser
lidas hoje em inúmeras línguas, inclusive em português.
A tradução da Bíblia feita por Lutero foi concluída e impressa em 153480 e
coincidiu com a invenção da imprensa, fato esse, que permitiu a edição em série em
línguas vernáculas. Tal evento deu viabilidade para por a Bíblia em contato com as
pessoas menos favorecidas e menos cultas.
Para aprimorar a sua tradução, Lutero revisou nos anos seguintes a “sua”
Bíblia com o objetivo de não perder nenhuma de suas nuances e em pouco tempo
levou sua tradução a superar o numero de edições da Bíblia anteriores.
Ao traduzir a Bíblia a partir da Vulgata Latina, Lutero observou os principais
princípios de que o tradutor deve se cercar: estar atento ao caráter da língua para
qual se traduz; dar a devida atenção ao linguajar do homem/mulher comum a fim de
facilitar seu entendimento. Lutero teve o cuidado de observar o contexto original em
que foi escrito o texto original da Bíblia.
O líder da Reforma Protestante na Alemanha foi de suma importância para o
protestantismo, pois foi ele quem teve maior sucesso na investida contra Roma,
79
SHUNEMANN,
Rolf.
Lutero
[mensagem
pessoal].
Mensagem
recebida
por
[email protected] em 27 ago.2009.
80
SANT ANNA, Floriano.História do Cristianismo Antigo e Medieval: FATE-BH, jun. 2007. 1f. Notas
de Aula.
46
embora Lutero quisesse a Reforma e não o rompimento com Roma. Foi ele o
desbravador da volta das Escrituras ao seu lugar de merecimento. Lutero se
envolveu profundamente e durante toda a sua existência com as Sagradas
Escrituras. Dela extraiu respostas para seus questionamentos e também nela
encontrou paz para por fim a flagelação que impunha a sua vida.
Lutero, como poucos, foi interprete da Bíblia e pode-se dizer que foi o
introdutor do estudo da Bíblia, não para poucos momentos, mas estudo para toda
uma vida. Mas, se por um lado ele popularizou o estudo da Bíblia, por outro também
facilitou que muitos a interpretassem de forma equivocada. Naqueles tempos e hoje
as pessoas não mais procuram o especialista para ajudá-lo a interpretá-la, como
acontece com alguém que procura um médico para a cura de uma doença qualquer.
Toda a sociedade seja ela rica ou pobre, de vasta gama cultural ou não, se acha
apta a interpretar fatos que ocorreram há milhares de anos e dão resposta segundo
as suas necessidades. Mas, não se pode negar que Lutero resgatou a Bíblia como
norma de fé e prática. Ele definitivamente alterou a forma de pensar e “mexeu” na
trajetória da historia do mundo.
Seguindo seu exemplo, pessoas de diversos países também promoveram
reformas e, em pouco tempo, quase toda a Europa estava rendida à Reforma. Esse
é o legado de Lutero e também o de trazer de volta a supremacia das Escrituras
sobre as tradições, a superioridade da fé sobre as obras, a supremacia da missão
de cada cristão sobre o sacerdócio exclusivo de um líder. Deve-se a Lutero um
retorno à leitura bíblica, não só pela elite e sim por todo o povo que ansiava e até
hoje anseia por conhecimento para responder questionamentos do porque foram
criados, porque da sua existência e principalmente para onde irão quando seus
olhos carnais se fecharem para ultima vez.
3.2 ZUÍNGLIO
Ulrico Zuínglio foi o líder da reforma na Suíça, muitas vezes denominado,
junto com Lutero e Calvino, um dos mais influentes reformadores protestantes.
Estritamente compromissado com o texto bíblico, Zuínglio recusou a posição de
Lutero da consubstanciação em relação à presença de Cristo na Eucaristia,
argumentando e defendendo uma visão memorialista. Zuínglio também destacou as
Escrituras. Ele abordou a importância de pregar diretamente da Bíblia, de aprender
apenas das Escrituras e a necessidade dos pastores usarem uma cópia do Novo
47
Testamento grego. “Sola Scriptura” - bandeira de todos os reformadores. Zuínglio
também inspirou o inicio do movimento anabatista, mas posteriormente se afastou
dele81. Porém Sidney de Moraes Sanches82 em seu artigo A Liberdade do Individuo
no protestantismo discorda dessa afirmação. Segundo ele os Anabatistas já existiam
antes de Zuínglio:
Originalmente, o Anabatismo se relacionou com duas correntes da vida
medieval. Uma foi a corrente social, pois desde a segunda metade do
século XV eram comuns os levantes sociais, entre camponeses e artesãos,
marcados por motivos religiosos. A reforma os avivou e os anabatistas são
parte desse processo. A outra corrente foi religiosa, pois antes da eclosão
da Reforma, muitos grupos anti-clericais se organizavam como
comunidades pacifistas para o culto público, onde faziam oração e leitura da
Bíblia e estimulavam a prática da vida piedosa, à semelhança dos
Luteranos pietistas do século XVII e dos Anglicanos wesleyanos do século
XVIII. Com a eclosão da Reforma, em 1517, a partir de 1524 essas
comunidades se organizaram de forma eclesiástica definida. Entre os
anabatistas, denominaram-se irmãos e separaram-se das igrejas papal e
reformadas, prepararam um guia para a vida cristã e uma declaração de
83
princípios que pensavam refletir as orientações neotestamentárias .
A Reforma na Suíça começou em Zurique. Em janeiro de 1519, Zuínglio
passou a pregar sobre o Evangelho de Mateus, um capítulo a cada domingo. Nos
anos subseqüentes, os Conselhos da cidade decidiram não aceitar quaisquer
determinações eclesiásticas que não tivessem clara base bíblica. Seguiram-se
ações iconoclastas84 e, na Quinta Feira Santa de 1525 a missa foi substituída por
uma Ceia do Senhor com liturgia simplificada. Esta passou a ser celebrada apenas
quatro vezes por ano: Natal, Páscoa, Pentecostes e no dia 11 de setembro, dia do
padroeiro de Zurique85. Para Timothy George a reforma de Zuínglio foi mais radical
do que a iniciada por Lutero na Alemanha. As autoridades católicas ficaram
chocadas com o estado com que ficaram as igrejas, muitos altares foram postos
abaixo além de outras depredações engendrada pela turma de Zuínglio. E como
citado acima ele acabou com o formato tradicional da missa. Escrevendo sobre o
papel das escrituras para Zuínglio e sobre o novo padrão radical de pregação radical
81
GRENZ, J. Stanley; GURETZKI, David; NORDLING. Dicionário de Teologia. Tradução de Josué
Ribeiro. São Paulo: Editora Vida, 1999. P142.
82
Doutor em Teologia do Novo Testamento (ISI/FAJE), Mestre em MIssiologia (CEM/Viçosa) e
professor de Exegese do NT e Cristologia do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrx.
83
SANCHES, Sidney de Moraes. A LIBERDADE DO INDIVÍDUO NO PROTESTANTISMO.
Disponível em: http://www.teologiaemissao.com.br/artigoteologico_3.html#_ftn1. Ace sso em
23/09/2009.
84
Destruição de imagens sagradas e obras de arte, monumentos etc.(Dicionário Houaiss)
85
KLEIN, Carlos Jeremias. A substância católica e o princípio protestante no presbiterianismo.
Apontamentos. Disponível em: http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio10/a-substanciacatolica-e-o- rincipio-protestante-no-presbiterianismo-apontamentos/. Acesso em 28/08/2009.
48
iniciado por esse reformador no púlpito da Grande Catedral de Zurique em 1519,
Timothy comenta:
Zuínglio abandonou o lecionário tradicional a favor da exposição das
Escrituras capítulo por capitulo. Zuínglio recusava-se a “cortar em pequenos
pedaços o Evangelho do Senhor”. Zuínglio pregou sem nenhum acréscimo
humano e sem nenhuma hesitação ou vacilação por causa dos contraargumentos. Ele estava não apenas pregando da Bíblia, mas também
86
permitindo que a Bíblia falasse diretamente a ele e à sua congregação .
Zuínglio manteve apenas dois sacramentos, o Batismo e a Ceia do Senhor,
tal como Lutero. Mas, ao contrário de Lutero, o reformador de Zurique não
considerou os sacramentos como meios de graça, mas apenas atos de obediência
ao mandato de Cristo. A Ceia do Senhor era um ato de lembrança do sacrifício de
Cristo na cruz.
Zuínglio igualmente, não quanto Lutero, foi influente por meio da doutrina do
batismo. Para Zuínglio, o batismo não retirava a culpa do pecado original, logo as
crianças que morriam sem o batismo não iam para o “limbo”, mas eram salvas, caso
tivessem os pais salvos. Contudo, não via problemas nos batismos de crianças, já
que a Bíblia não condenava tal prática.
3.3 CALVINO
Para Calvino, a Bíblia está no cerne da vida da igreja, para ser
ininterruptamente lida e estudada por toda pessoa que faz parte do povo de Deus.
Ela deve ser ensinada na igreja, que é por ele apresentada como a “mãe” e “escola”
para nossa fé. “Nossa fraqueza não permite sermos despedidos de sua escola até
que tenhamos sido alunos por toda a vida” (Institutas)87. O imperativo de lutar pela
definição do texto, com a ajuda da noção histórico e científica de sua era, e a força
da Palavra de Deus para discorrer novamente a cada geração permanece de forma
exemplar.
João Calvino foi um dos mais importantes exegetas da Bíblia e aplicava como
ninguém o método histórico-gramatical, criando com seus estudos das Escrituras um
novo modelo para a interpretação bíblica protestante após o seu tempo.
Como complemento às institutas, Calvino reportava os leitores a seus
comentários bíblicos. Com base nesse comentário, Josepph Scalinger, o
86
GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. Tradução Gérson Dudus; Valéria Fontana. São
Paulo: Vida Nova, 1993. P127.
87
João
Calvino
Institutas
4
tradução
do
latim.
Disponível
em:
http://www.scribd.com/doc/6915096/Joao-Calvino-Institutas-4-traducao-do-latim.
Acesso
em
24/06/2009.
49
grande erudito clássico, proclamou Calvino como “a maior inteligência que o
mundo já conheceu desde os apóstolos”. Da mesma forma, Jacobus
Arminius, que modificou diversos princípios da teologia de Calvino,
recomendava os comentários junto à Bíblia, pois Calvino “é incomparável na
88
interpretação das Escrituras .
Esse líder eclesiástico estudou filosofia, direito, mas era acima de tudo um
teólogo de mente brilhante. Nutria pelas Escrituras um profundo respeito, o que dava
credibilidade às suas criticas as interpretações bíblicas medievais, que abusavam
nas alegorizações. Além do que foi um excelente comentarista da Bíblia.
Porém esse mestre possuía suas posições nada cristãs e segundo seus
estudiosos ele era ranzinza e muito severo.
Calvino defendia a pena de morte para os hereges. Ele era conhecido por
suas explosões de ira, que ele mesmo denominava de “a fera”. Portanto,
novamente temos o duo: Grandes homens, grandes vícios. Reputação de
Calvino muito sofreu, e com justiça, por seu envolvimento nas execuções
89
capitais e banimentos .
Contudo não se pode negar a importância de Calvino para o estudo bíblico.
Esse mestre sempre persistiu na unidade e harmonia do ensino bíblico, e evitava o
erro tão comum hoje em dia de interpretar versículos ou capítulos das Escrituras não
levando em consideração o contexto em que estava inserido.
3.4 OS ANABATISTAS
Os anabatistas eram compostos em sua maioria por camponeses e artesões
de pouca representação política. Ganharam fama ao longo dos séculos XVI e XVII e
possuuíam a característica principal de que ao ir as Escrituras faziam uma
interpretação de forma livre geralmente para tornar válida a luta por uma sociedade
mais eqüitativa.
Foram participantes da Reforma, mas procurou respostas para uma igreja
avessas a mudanças como a Igreja oficial de Roma de uma forma mais radical.
Muitas vezes essas respostas iam de encontro às idéias da Igreja da Reforma
Luterana, pois achavam que as mudanças desse movimento aconteciam muito
lentamente.
O movimento anabatista logo atraiu grande oposição, tanto por parte dos
católicos como dos reformadores. Ainda que essa oposição se expressasse
comumente em termos teológicos, o fato é que os anabatista foram
perseguidos porque eram considerados subversivos. Apesar de todas as
88
GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. Tradução Gérson Dudus; Valéria Fontana. São
Paulo: Vida Nova, 1993. P186-187.
89
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 8.ed. São Paulo:
Hagnos, 2006 p606. v.1.
50
reformas, Lutero e Zuínglio continuaram aceitando os termos fundamentais
da relação entre cristianismo e a sociedade que se havia desenvolvido a
partir de Constantino. Nem um nem outro interpretava o Evangelho de
90
maneira a ser uma provocação radical a ordem social .
Foram diversos os movimentos anabatistas e não há consenso preciso de
quando se deu o seu surgimento. O anabatismo não se originou de um único tronco
teológico, mas de diversos. Não se pode falar de uma origem única dos anabatistas.
O ponto que unia esses movimentos era a censura à prática usual do batismo
de crianças e a adoção de um batismo de pessoa adulta, precedido por confissão de
fé. Por essa razão, foram apelidados de "anabatistas" ou "batistas". Comum a eles
era, também, o fato de que, onde apareciam, havia agitação da ordem pública, de
modo que sempre quem os estudar irar se deparar com as forças diversas
perseguindo-os. Muitos anabatistas reuniam-se às ocultas, e liam a Bíblia sem
acompanhamento “oficial”.
As perseguições que sofreram foram terríveis. Eram homens, viúvas, jovens,
mulheres grávidas, que, lançados em prisões, apodreciam, na maioria das vezes,
sem renunciar às suas convicções. Eram marginais, sofrendo o martírio. É verdade,
que, as bases doutrinais para sua prática batismal, para o martírio e o acossamento
que sofriam eram tão delicadas, que não forneciam base para uma concordância
mínima. Restou para eles a marca de reformadores anárquicos. Mas não se pode
negar que neles se encontravam a concepção da luta atual por liberdade de opinião
e de consciência.
3.5 EXEGESE BÍBLICA PROTESTANTE – BREVE RELATO
Durante a Reforma Protestante, com sua mentalidade de retorno à Bíblia,
onde a Bíblia seria interprete de si mesma, ou seja, a interpretação de um texto
mediante a outro texto bíblico - A Escritura interpreta a Escritura – a exegese
decorrente desse movimento ganhou força. Essa exegese postulava que um
determinado texto deve ser interpretado à luz do ensinamento do resto da Escritura.
Essa exegese surgiu do justo protesto de alguns cristãos contra o domínio
proclamado pela Igreja de Roma, a qual se aquilatava ser a única capaz de
integramente interpretar as Escritura.
90
GONZALES, Justo L. Uma História Ilustrada do Cristianismo. A Era dos Reformadores. Tradução
de Itamir Neves de Sousa. São Paulo: Vida Nova, 1995. P.99 vol.6.
51
Embora a Reforma tenha propiciado um estudo mais acentuado da Bíblia, em
alguns pontos os reformadores não eram muito diferentes dos estudiosos católicos
romanos.
Os reformadores também tinham seus preconceitos, não se tendo livrado
das tradições e idéias doutrinárias dogmáticas e fixas. Nisso eles não se
distanciavam muito dos interpretes católicos romanos, apesar dos protestos
91
em contrário .
A exegese protestante caracteriza-se pelo balanceamento resultante do peso
do caráter divino-humano das Escrituras. Por causa disso, os intérpretes desta
corrente reconhecem a necessidade da orientação do Espírito falando através da
própria Bíblia, ao mesmo tempo em que aceitam a necessidade de explicação
gramatical e histórica das Escrituras. A explanação protestante rejeita, por um lado,
a alegorização indevida das Escrituras e, por outro, recusa uma postura
primariamente crítica com relação a elas.
Deixar a Bíblia interpretar a própria vida, esse parece ser o principal lema da
exegese dos reformadores. Este princípio teve sua origem na Reforma Protestante.
O significado mais claro e mais simples de uma passagem explica outra passagem
com sentido mais complexo e mais confuso, ou seja, as resposta para uma
interpretação correta da Bíblia está na própria Bíblia.
Por isso a exegese protestante possibilitou a retirada da Bíblia das mãos da
elite e colocou nas mãos do pobre e do humilde. Ao traduzir a Bíblia para o alemão,
Lutero permitiu que ela viesse ao encontro da pessoa comum, e essa pessoa
comum passou a ter autoridade para interpretar as Escrituras. O estudo bíblico
passou a ser feito pela comunidade e não para a comunidade. A partir da reforma
Protestante, a Bíblia ocupou seu lugar, que é estar no meio do povo, dando resposta
de fé para esse povo. A bíblia passa ser o que ela realmente é, um livro inspirado do
qual não são necessários muitos esforços para seu entendimento. Ela fala com cada
pessoa a sua maneira trazendo esperança, consolo e consolidando fé. Isso é o
legado da exegese protestante.
3.6 LEITURA PIETISTA DA BÍBLIA
91
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 8.ed. São Paulo:
Hagnos, 2006.p.618. v.2.
52
Historicamente, o pietismo como um movimento organizado, teve inicio entre
os luteranos da Alemanha, no final do século XVII92, principalmente com Philip Jakob
Spener. Esse movimento dava ênfase na conversão pessoal e a santificação, ou
seja, perfeccionismo e experiência religiosa.
August Hermann Franke93, notável discípulo de Philip Jakob Spener, afirmava
que em todo discurso que os homens proferem, está presente o afeto, pela própria
destinação do espírito do qual ele procede. Para os pietistas, para entender a
Escritura, é necessário entregar-se ao estado da alma que nela se proclama.
Interpretar é enxergar na letra seu completo sentido espiritual, isto é, reconstruir o
que a palavra traz consigo, sendo assim é compreensível que o pietismo
estabeleceu em primeiro plano o movimento afetivo da palavra.
O afeto não é apenas uma manifestação complementar. Ele é a alma do
discurso, é aquilo que se quer passar ao leitor durante a leitura e nele devese traduzir o sentido da Escritura para a alma dos membros da
94
comunidade .
A vida das pessoas ligadas a esse movimento era voltada principalmente para
atitudes realmente piedosas e eram contra, de forma benéfica, as interpretações
dogmáticas à qual estavam inseridos, mas, conforme Berkhof:
Insistiam no estudo da Bíblia em suas línguas originais e sob a influência
esclarecedora do Espírito Santo. Mas o fato de, na sua exposição,
almejarem primariamente a edificação, conduziu-os gradualmente a um
desprezo pela ciência. Na sua visão, o estudo gramatical, histórico e
analítico da Palavra de Deus simplesmente favorecia o conhecimento do
invólucro externo dos pensamentos divinos, enquanto que o estudo
porismático (aquele que tira conclusões para repreensão) e prático (que
95
consiste em orar e lamentar) penetra no cerne da verdade .
Johann J. Rambach, um dos principais mensageiros dessa escola, foi um dos
primeiros a insistir na necessidade da interpretação psicológica, no sentido de que a
emoção do intérprete deveria estar em acordo com a emoção do escritor que
desejava entender96. Os pietistas realizavam uma leitura sistemática das Escrituras
92
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 8.ed. São Paulo:
Hagnos, 2006. P.272. v.5.
93
Líder religioso protestante, educador e reformador social que foi um dos principais promotores do
Alemão Pietismo, um movimento de renovação espiritual que reagiram à preocupação doutrinária do
luteranismo contemporânea. http://www.britannica.com/EBchecked/topic/216914/August-HermannFrancke. Acessado em 31/08/2009.
94
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999.p114115.
95
BERKHOF, Louis. Princípios de Interpretação Bíblica. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000.
p.29.
96
Ibidem p.29
53
e seus modelos doutrinários emanavam da Bíblia, ainda que o Catecismo97 de
Lutero devesse ser ensinado às crianças e aos adultos
3.7 LEITURA RACIONALISTA E CRÍTICA DO PERÍODO ILUMINISTA
O iluminismo surgiu no inicio do século XVIII e segundo Augustus Nicodemus,
foi em muitos aspectos uma rebelião contra o domínio da religião institucionalizada e
contra a religião em geral. As suposições desse movimento foram baseadas no
racionalismo98 de Descartes e no empirismo99 de Locke100. Segundo esse ultimo o
exame da verdade era a razão, no sentido de conformidade com o senso comum
Essas duas filosofias concordavam que Deus tem que ficar de fora do conhecimento
humano. A conseqüência é que as duas causaram um intenso choque na
hermenêutica bíblica.
Podemos destacar diversos importantes resultados da influencia do
Iluminismo sobre a interpretação bíblica. O principal, sem duvida, foi a
negação da intervenção divina, quer na história, quer nos registros bíblicos.
A história passou a ser vista como simplesmente uma relação natural de
causas e efeitos. O conceito de que Deus se revela ao homem e de que
intervém e atua sobrenaturalmente na história humana foram excluídos a
priori. As conseqüências deste conceito para a hermenêutica foram de
101
tremenda importância .
O iluminismo produziu uma sensível mudança no procedimento da sociedade
cristã em face do alcance de suas idéias. Essa influência foi mais presente na
Europa continental, comprometendo muito pouco, pelo menos inicialmente, as
novatas colônias inglesas na América, que na conjuntura do século 17 estava
profundamente impregnada de religiosidade.
Ainda que tenha havido algumas contribuições favoráveis à sociedade, o
iluminismo provocou graves e revolucionárias implicações na vida da igreja, dentre
97
Escrito por Lutero em 1529 com a intenção de dar introdução às crenças cristãs. Lutero o escreveu
no inicio da Reforma em resposta a ignorância do povo alemão nessas questões. Foi elaborado em
forma de perguntas. As respostas são curtas e diretas. Catecismo Menor. Disponível em:
http://www.scribd.com/doc/19037171/Catecismo-Menor-de-Martinho-Lutero. Acesso em 02/09/2009.
98
O racionalismo é a crença de que é possível o homem obter a verdade contando unicamente com a
razão, ou, pelo menos, principalmente por meio da razão, ainda que com a ajuda de outros métodos.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 8.ed. São Paulo: Hagnos,
2006. P544. v.5.
99
O empirismo é a tese que diz que todo conhecimento, excetuando as proposições puramente
lógicas, como a matemática, está alicerçado sobre a experiência. CHAMPLIN, Russell Norman.
Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 8.ed. São Paulo: Hagnos, 2006.p357. v.2.
100
John Locke foi um importante filósofo inglês. É considerado um dos líderes da doutrina filosófica
conhecida como empirismo e um dos ideólogos do liberalismo e do iluminismo. Nasceu em 29 de
agosto de 1632 na cidade inglesa de Wrington.
101
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: Uma breve história da interpretação.
São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004. P184.
54
as quais a descrença, a decadência da fé e o amortecimento da vida religiosa. No
campo teológico-eclesiástico, tendeu a transformar, e até mesmo extinguir, as
ortodoxias confessionais protestantes. Os teólogos do iluminismo chamados de
racionalistas defendiam a questão de que a benevolência em Deus não poderia
diferir em essência da benevolência no homem e, por conseguinte, Deus não poderia fazer o que para o homem seria imoral. Embora, em sua grande maioria, pelo
menos até o final do século 18 os racionalistas aceitassem os milagres do
Evangelho, eles suspeitavam de tudo que não se conformava com sua visão
mecanicista do universo.
Para David J. Bosch, com a realidade do iluminismo a razão foi além da fé
como ponto de partida. A teologia passou a ser uma disciplina qualquer, diferindo
somente quanto ao seu objeto de estudo. Através desse movimento se tornou difícil
achar um lugar para Deus em seu sistema, em vez do homem dever sua existência
a Ele, no iluminismo alguns afirmavam o contrário: Ele somente existia por causa do
ser humano.
Em um mundo totalmente antropocêntrico, não existia mais lugar para
Deus. Era óbvio que a política, a ciência, a ordem social, a economia, a
arte, a filosofia, a educação, etc. teriam que evoluir unicamente de acordo
com seus próprios critérios imanentes. Os seres humanos ainda tinham fé...
em si próprios e na razão. Não era mais mister um deus forte para salvá-los
de sua fraqueza. A conseqüência inevitável era a religião fenecer
102
gradualmente .
O Racionalismo causou um choque no seio da Igreja, principalmente na área
da interpretação das Escrituras. Estudiosos da Bíblia, entusiasmados pelo
racionalismo, seguiram diversos estilos em sua maneira de interpretar. Eles
renunciaram o conceito de que Deus se faz conhecer e participa da história e
intervém nos acontecimentos humanos. Manifestação e ação milagrosas na história
foram abandonadas à priori. Como efeito, as narrativas dos Evangelhos acerca da
atividade milagrosa de Jesus passaram a ser desabonadas, deviam ser
simplesmente mitos e idéias de cristãos incultos.
Herberto de Cherbury103, religioso filosofo, apresentou a ideia que há uma
religião natural, comum a todos os homens e independente de revelação, pela qual o
homem pode tornar-se bem-aventurado mesmo sem conhecimento da revelação.
102
BOSCH, David J. Missão Transformadora: Mudanças de paradigma na teologia da Missão.
Tradução de Geraldo Korndorfer. 2.ed. São Leopoldo: Sinodal, 2002. P328.
103
1583-1648. Foi um filosofo inglês. Tornou-se conhecido como o fundador do deísmo. CHAMPLIN,
Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 7.ed. São Paulo: Hagnos, 2006. p.87
v.3.
55
Segundo ele Deus existe e pode ser cultuado pelo arrependimento e por uma vida
digna, que a alma imortal recebe a recompensa eterna e não o castigo.
Assim como Cherbury, John Tolandt104 foi importantes deísta105.
Ambos
afirmavam que o cristianismo não era mistério e poderia ter sua autenticidade
verificada pela razão. E tudo que não pudesse ser provado pela razão deveria ser
recusado. Para Tolandt:
Somente a razão convence os homens da inspiração das Escrituras; e
dessa maneira, condenou, absolutamente, o antiintelectualismo. Não via
problema algum em crer em milagres e prodígios, somente através da
razão. Também foi ele quem cunhou o vocábulo panteísmo, que ele
106
reputava uma religião natural, e na qual via algum valor .
Os racionalistas críticos davam aval à sua abordagem imparcial, sem
pressupostos das Escrituras afirmando que a Igreja Cristã, pelos seus conjuntos de
princípios e leis, obscurecia o correto sentido das Escrituras. O principal critério
aplicado para a interpretação bíblica seria a razão, que os racionalistas
compreendem como medida soberana da verdade. As ferramentas a serem
empregadas seriam aquelas produzidas pela crítica bíblica, como crítica da forma,
crítica literária, entre outras. Os estudiosos responsáveis pelo aparecimento e
desenvolvimento inicial deste método racionalista de ler a Bíblia tentaram sustentar
ao mesmo tempo sua fé em Deus e nas Escrituras e um compromisso com o
racionalismo. Tais racionalistas articulavam que, na ocorrência dos Evangelhos, os
dogmas a respeito da divindade de Jesus haviam ofuscado a sua figura humana, e
tornou impraticável, durante muito tempo, uma historiografia da sua vida.
3.8 LEITURA DA BÍBLIA NOS DIAS ATUAIS NO CONTEXTO BRASILEIRO
Nesse ultimo capítulo teve-se a pretensão de tratar da leitura feita pelo povo
brasileiro através do método de leitura popular da Bíblia e mostrar em poucas linhas
a forma que a Bíblia responde aos anseios desse povo, sofrido, vilipendiado,
religioso e, ao mesmo tempo, tão esperançoso com um novo amanhã, e, aqueles
que tem fé, esperançosos com a volta de Nosso Senhor Jesus Cristo.
104
1670-1722. CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 7.ed. São
Paulo: Hagnos, 2004. P449. v.6.
105
Enfatizavam que o conhecimento sobre questões religiosas e espirituais vem através da razão, e
não através da revelação, a isso se chama religião natural, em contraste com a religião sobrenatural.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 8.ed. São Paulo: Hagnos,
2006.p38. v.2.
106
Ibidem P.449. v.6.
56
O chamado protestantismo de missão trouxe ao Brasil, juntamente com a fé
evangélica, a leitura tradicional da Bíblia, orientada por uma fé bastante
confessionalista e doutrinária, a partir das quais as Escrituras deveriam ser lidas.
Juntamente com a Teologia Latino-americana, no século XX surgiu a Leitura Popular
da Bíblia e é sobre essa que se pretende tratar em relação à realidade brasileira.
Pode-se dizer que na leitura popular da Bíblia o que vale não é tanto entender
a Bíblia exegeticamente, mas entender a vida, localizando na Bíblia a luz
indispensável. Esferas reacionárias criticam esse método, nomeando-o de marxista,
por partir da realidade que deve ser julgada pela Palavra de Deus, no caso da
teologia evangélica, também compreendida por ela. Como se as pessoas pudessem
ler as Escrituras volitando com um par de asas, acima de suas realidades. Assim, a
narrativa do povo com seu Deus seria totalmente despropositada, se ao ler o texto
bíblico esse mesmo povo não levasse a Ele suas vidas, suas histórias e anseios.
A leitura popular da Bíblia completa e corrige a leitura histórico-crítica. É
importante salientar aqui que essa leitura se beneficia das contribuições das ciências
sociais tanto para a compreensão da realidade sócio-histórica, como do próprio texto
bíblico. No estudo do contexto, por exemplo, costuma se levar em conta o aspecto
econômico, social, político e ideológico.
Ao ler a Bíblia, o povo das Comunidades traz consigo a sua própria história
e tem nos olhos os problemas que vêm da realidade dura da sua vida. A
Bíblia aparece como um espelho, "sím-bolo" (Hb 9,9; 11,19), daquilo que ele
mesmo vive. Estabelece-se uma ligação profunda entre Bíblia e vida que, às
vezes, pode dar a impressão de um concordismo superficial. Na realidade, é
uma leitura de fé muito semelhante à que faziam as primeiras comunidades
107
(cf. At 1,16-20; 2,29-35; 4,24-31) e os Santos Padres .
Segundo Carlos Mesters108, principal hermenêuta da leitura popular da Bíblia
no Brasil, a Bíblia é adotada e acolhida pelo povo como Palavra de Deus. Esta
certeza já existia antes do advento do que se convencionou chamar de leitura
popular. É nesta origem antiga que se introduz todo o trabalho com a Bíblia junto do
povo. Sem esta certeza, todo o método teria de ser diferente.
No método da leitura popular da Bíblia, o povo estabelece um relacionamento
intenso com as Escrituras. A leitura é baseada mais na fé e não tanto para entender
de forma exegética o que esse ou aquele texto tem a dizer, se bem que o povo faz
107
MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco.Sobre Leitura Popular da Bíblia no Brasil. Disponível em:
http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=12&noticiaId=132. Acesso em 05/09/2009.
108
Carlos Mesters é frade Carmelita, formado em Teologia Bíblica e doutor em especialidade de
Apocalipse. É natural da Holanda, Países Baixos e atualmente mora em Angra dos Reis -RJ.
57
sua própria exegese, essa fundamentada em sua realidade.
Há um esforço de
correspondência das suas realidades de vida e o texto bíblico. Existe, portanto uma
ligação entre a Bíblia e suas vidas e essa ligação faz com que esse povo constituído
pelo operário, o camponês, o índio, o negro, a mulher, os jovens, todos os
marginalizados e oprimidos percebam o relacionamento de Deus com eles. Esse
relacionamento se dá a partir da percepção de que se Deus se relacionou com o
pobre no passado, também se relaciona com o pobre no presente.
Assim sendo, o povo usa o texto bíblico para entender e comunicar a Palavra
de Deus que está presente e se relacionando com ele. Ao fazer uma releitura do
texto através de seu contexto esse povo transcende ao próprio texto bíblico trazendo
libertação para discernir sua realidade e compreendê-la. Nesse processo se alcança
o que se costuma chamar de sentido espiritual da Bíblia, que é o sentido que o texto
assume quando usado para descobrir a Palavra de Deus na história atual e para
comunicar essa Palavra a outras pessoas109. Esse processo hermenêutico está bem
defino por Sidney Sanches:
A melhor imagem para identificar o tratamento que o texto bíblico recebe
nestas hermenêuticas é a do depósito. Ora o texto bíblico é um depósito
espiritual onde o leitor busca as verdades, orientações e recursos de que
necessita; ora ele é um depósito moral e doutrinário, um guia para a
conduta e a confissão dogmática do leitor; ora ele é um depósito de
conhecimento histórico-literário, uma enciclopédia do mundo e da literatura
antiga. Nenhuma destas hermenêuticas, portanto, valoriza a cultura dos
leitores latino-americanos do texto bíblico. A Hermenêutica popular latinoamericana, surgida na década de 80, procurou abordar esse leitor desde um
viés sócio-econômico da categoria de povo. De acordo com Milton
110
Schwantes, nesta hermenêutica se buscava o protagonismo de um novo
sujeito leitor: o povo, em uma nova realidade vivida: popular, em uma
111
situação eclesialmente ecumênica: a igreja popular .
No Brasil, constituído em sua grande maioria por pobres de pouco estudo, há
um grande preconceito contra um estudo mais profundo das Escrituras. Não que o
método popular de leitura da Bíblia não possui seus méritos. Mas um estudo mais
denso das Escrituras exige uma busca de diálogo com outras ciências já que só a
teologia não responderia a todos os questionamentos. O método de Leitura Popular
da Bíblia não se preocupa com essa problemática, pois sua preocupação é, além de
ser acessível, corresponder à vida em seu acontecimento no mundo e na história.
109
MESTER, Carlos; SCHWANTES, Milton; RICHARD, Pablo; TAMEZ, Elsa. Leitura Popular da Bíblia.
Por uma Hermenêutica da Libertação na America Latina. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988. P12.
110
SCHWANTES Milton. “Caminhos da Teologia Bíblica”. In: Estudos Bíblicos 24 (1989) 9-19.
111
Teologia da Missão Integral. Disponível em: http://www.teologiaemissao.com.br/pesquisa_8.html.
Acesso em 23/09/2009.
58
CONCLUSÃO
A Bíblia foi escrita no contexto de mundo do povo hebreu. Houve uma
tentativa por parte desse povo de privatizar a revelação para eles, o que é chamado
de “exclusivismo religioso de Israel”. Mas, com o passar dos tempos, o próprio Deus
assegurou na história que a sua Palavra não se restringisse a esse povo, e tornou-a
universal. Ela é para todos que observam a Deus como Senhor e criador de todas as
coisas.
Muito embora, na historia da humanidade tenha havido tratamentos diversos
e de interpretação das Escrituras, Deus a conduziu em segurança até os dias atuais.
E ela continua sendo e sempre será a palavra de Deus, que fala com o pobre com o
iletrado, com o negro, com a prostituta com o homossexual. E ensina a cada um
desses grupos o verdadeiro caminho para se chegar a Deus.
A Bíblia é simples, o ser humano é que a complica. Todo seu conteúdo vem
de Deus e Ele quer falar às suas criaturas através dela, não somente a teólogos e
exegetas. Tudo quanto a Bíblia ensina vem de Deus, o problema está nas
interpretações humanas que são sempre falhas. No entanto, uma leitura que acesse
o conhecimento de Deus que a Bíblia anuncia, somente é possível com a ajuda
iluminadora do Espírito Santo, conforme está escrito em Hebreus 4;12- porque a
Palavra de Deus é viva e eficaz. É o Espírito Santo que dá vida à letra, dando à
Bíblia essa maravilhosa característica de transformar vida.
A Bíblia por si só não tem a finalidade de provar a existência de Deus, pois
seu conteúdo não é exatamente apologético, mas querigmático visa anunciar a Deus
que se revelou plenamente em Jesus Cristo. Mas a palavra que a Bíblia expressa se
situa também no tempo e no espaço, é palavra divina e palavra humana. Quem de
fato aceita Jesus, também aceita a Bíblia como a Palavra de Deus, pois mesmo
Espírito que o convence acerca de Cristo é aquele que convence acerca da Palavra
de Deus.
Jesus é o tema central da Bíblia, ao se acolher a Palavra se conhece a Cristo
e vice e versa. Ele é o ápice das Escrituras. No Antigo Testamento tudo apontava
para a sua manifestação. E no Novo Testamento, tudo conta da sua maravilhosa
obra, doutrina e volta. Passando livro a livro, sempre o encontraremos. Em Gênesis,
Ele é o descendente da mulher. Em Apocalipse é o Alfa e o Ômega. Para que se
conheça a Cristo é preciso conhecer a palavra de Deus, pois é principalmente
através dela que Deus fala ao seu povo.
59
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