Water - Público

Transcrição

Water - Público
PÚBLICO, DOMINGO 22 ABRIL 2012
DIA DA
TERRA
UM PAÍS
À BULHA
COM A
ÁGUA
realidade conhecida, mas que muitas
vezes é estranhamente vista como se
fosse uma circunstância imprevista?
Na procura de respostas, a 2 também
bateu à porta de cientistas, buscou
exemplos de adaptação na área da
biodiversidade e testou, através de
uma experiência pessoal, os dramas e
oportunidades de poupança de água no
dia-a-dia.
Gerir os recursos hídricos de forma
sustentável, com um olho no presente
e outro no futuro, é a única receita para
garantir que haverá água para todos, nas
torneiras, nos campos, nas indústrias,
na natureza. Sem isso, como também
se mostra neste trabalho especial de
24 páginas, mais cedo ou mais tarde
podemos esperar o pior: as “guerras da
água”. Ricardo Garcia
FOTOGRAFIAS: ENRIC VIVES-RUBIO
Uma seca como a que o país está a
atravessar este ano não é novidade
nenhuma. Ciclicamente os portugueses
testemunham situações semelhantes
— nas notícias, na pele, no bolso. Se
a frequência destes episódios não
bastasse como alerta, o espectro de
mais eventos meteorológicos extremos,
fruto das alterações climáticas, está aí
para catalisar uma evidência simples:
é preciso aprender a conviver com as
secas.
Este é o tema central desta edição da 2,
dedicada ao Dia da Terra. Uma dupla de
repórteres percorreu o país, do Algarve
ao Nordeste transmontano, levando
uma pergunta para ser colocada a
agricultores, autarcas, empresários, ao
cidadão comum: o que fazem, não fazem
ou já fizeram para lidar melhor com uma
ÍNDICE
Dia da Terra
04 IMAGEM/PALAVRA
Bárbara Reis
Pulitzer — Ver isto torna-nos pessoas
melhores?
Rita Pimenta
Indemnização — O valor do trabalho e
da antiguidade
08 ESCOLHAS
A exposição E ainda Vejo os Seus
Rostos, no Centro Português de
Fotografia. Os livros da japonesa
Harumi Kurihara. Kill For Love, o
segundo álbum dos americanos The
Chromatics. O filme Em Segunda
Mão, de Catarina Ruivo, na 9.ª
edição do IndieLisboa.
12 REPORTAGEM
A chuva chegou, mas não
esquecemos a seca
22 INFOGRAFIA
O milagre da torneira
24 REDUZIR A PEGADA
Alexandra Prado Coelho
experimentou diminuir o seu
consumo de água para metade.
Resultou. Mas compensa?
26 CHARCOS
Um refúgio de vida quando
pára de chover
30 INVESTIGAÇÃO
CIENTÍFICA
Receitas para um mundo mais
quente
32 GUERRAS DA ÁGUA
Quando a água é motivo de guerra
36 DAR A CARA
Osama Abu Ayyash dá a conhecer
o “rosto dos árabes” nas escolas
primárias israelitas
37 CLASSES MÉDIAS:
O TABULEIRO GLOBAL
A análise de Jorge Almeida
Fernandes
40 UNIDO JAMAIS SERÁ
Jorge Silva
O homem de Pavia 11
Alexandra Lucas Coelho
A dor de Criolo 38
Daniel Sampaio
O que mantém os casais 39
Nuno Pacheco
Abril com caixa baixa 39
Sétimo capítulo do folhetim
de Rui Cardoso Martins
42 CRÓNICA URBANA
Nas caves do Palácio Foz,
em Lisboa
CRÓNICAS
José Diogo Quintela
Esquema de pirâmide demográfica
invertida 6
Paulo Varela Gomes
Baby Darshan 8
Jorge Marmelo
Derradeira poesia 9
Vítor Belanciano
Cultura visual e cultura da palavra 10
FICHA TÉCNICA
Directora Bárbara Reis Editoras Francisca
Gorjão Henriques [email protected], Paula
Barreiros [email protected]
Copydesk Rita Pimenta Design Mark Porter
e Simon Esterson Directora de Arte Sónia
Matos Designers Helena Fernandes, Sandra
Silva Email [email protected]
Este suplemento faz parte integrante
do Público e não pode ser vendido
separadamente
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 3
INDEMNIZAÇÃO
O VALOR DO TRABALHO
E DA ANTIGUIDADE
Substantivo feminino que
significa “recompensa”,
“ressarcimento de dano
sofrido” ou “aquilo que se
concede ou se consegue
para compensação de um
prejuízo”. Os dicionários
nunca dão o exemplo
concreto de “indemnização
por despedimento”. Mas foi
um assunto que por estes
dias ocupou o Governo,
que divulgou a decisão de a
baixar “para seis a dez dias
por cada ano de antiguidade”,
contra os actuais 20 a 30
dias. Portugal aproxima-se
assim do “valor médio das
compensações na União
Europeia”. Compensações
de despedimento (não de
trabalho).
O Ministério da Economia
considera a “medida
fundamental para tornar o
mercado de trabalho mais
competitivo”, permitindo
“criar mais e melhores
postos de trabalho”.
Em termos jurídicos,
“indemnização” corresponde
a “ressarcimento da perda
de um direito adquirido por
contrato ou ajuste”, mas
também “modo de liquidar a
responsabilidade derivada de
um facto criminoso”. Não se
indica as contas a fazer, nem
em dias nem em euros.
Para a forma verbal
“indemnizar”, a explicação
é “pagar a alguém o valor
do dano material ou moral
que sofreu”. Sinónimos:
“compensar”, “reparar”,
“remunerar”.
O dicionário revela-nos ainda
o adjectivo e substantivo
“indemnizista”, “relativo
ao sistema político da
indemnização” ou “partidário
desse sistema”.
Em português do Brasil,
escreve-se “indenização” —
cai o “m”. Se caem dias, não
sabemos. Rita Pimenta
IMAGEMPALAVRA
MASSOUD HOSSAINI/AFP
O grito de Tarana Akbari, 12
anos, segundos depois de
um atentado em Kabul em
Dezembro de 2011, no qual
morreram 70 pessoas
PULITZER
VER ISTO TORNA-NOS
PESSOAS MELHORES?
4 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
N
ão vale a pena pensar nas perguntas que
poderíamos fazer ao olhar para esta fotografia, que acaba de ganhar o Pulitzer na
categoria de Fotografia de Última Hora.
Susan Sontag já as fez — pelo menos as
mais importantes —, no ensaio Looking
at War, publicado na New Yorker há dez anos.
Escrevendo sobre imagens de guerra, questiona:
“Qual é o objectivo em mostrar estas fotografias?
Despertar indignação? Fazer-nos sentir ‘mal’, ou
seja, horrorizar-nos e entristecer-nos? É mesmo
necessário olhar para estas fotografias? Ver estas
fotografias torna-nos pessoas melhores? Elas ensinam-nos alguma coisa? Ou apenas confirmam o
que já sabemos?”
Sem nos dar muitas respostas, Sontag obriga-nos
a olhar para esta fotografia de Massoud Hossaini, o
repórter da France Presse que ganhou o Pulitzer,
com outra pausa. Hirtos nos nossos computadores ou nos nossos sofás, vemos um instante da
guerra no Afeganistão, que começou há 11 anos
e já matou mais de 15 mil civis, e que é distante
para o nosso olhar europeu, mas próxima para
milhões de pessoas.
A fotografia foi tirada segundos depois de um
ataque suicida em Kabul. Tarana Akbari, 12 anos,
grita rodeada de crianças mortas. O fotógrafo, um
afegão de 30 anos, estava ali perto quando ouviu
a explosão. Correu no sentido contrário ao das
pessoas e quando chegou ainda todos gritavam.
Gritos sem palavras e gritos de “Morte à Al-Qaeda!”
e “Morte aos taliban!”.
Em 12 anos de prémios Pulitzer (os anos disponíveis no site oficial), é difícil encontrar uma fotografia mais perturbadora. Quis o júri dizer-nos
alguma coisa sobre o modo como hoje olhamos
para a guerra? Com demasiado pudor ou, pelo
contrário, com demasiada frieza e indiferença?
Quer o júri dizer-nos que, com os nossos olhares
poluídos e viciados em imagens, perdemos a capacidade de sentir alguma coisa perante a guerra?
Não sabemos.
Sig Gissler, ex-membro do júri dos Pulitzer e hoje
administrador do board, disse apenas que “é uma
fotografia simples, fascinante, que fica na nossa
memória”. De facto, não é plasticamente que a
fotografia impressiona e tem a qualidade de não
esteticizar a dor (a dor dos outros, dizia Sontag).
Talvez a intenção do prémio seja apenas essa: reiniciarmos este debate. Bárbara Reis
ESQUEMA DE PIRÂMIDE
DEMOGRÁFICA
INVERTIDA
H
Decreto-Lei 57/2008 de 26/3,
sobre boas práticas comerciais. É prática comercial
enganosa: “Criar, explorar
ou promover um sistema de
promoção em pirâmide em
que o consumidor dá a sua
própria contribuição em troca da possibilidade de receber uma contrapartida que
decorra essencialmente da
entrada de outros consumidores no sistema”.)
O importante é que ainda
temos mais alguns anos de
Segurança Social. E quem se
vai tramar é gente que neste
momento ainda não sabe ler.
Estamos safos.
Vivemos um momento
único na história do Estado
social. O momento em que o
contribuinte desconta em exclusivo para um pensionista específico. Antes eram vários contribuintes
para um só pensionista, em breve serão vários pensionistas só com um contribuinte. Há que aproveitar
a oportunidade para humanizar o sistema.
É por isso que desejo conhecer pessoalmente o
meu reformado. Uma coisa é dividir um com mais
três pessoas, outra é tê-lo só para mim. A relação
fica mais pessoal. Teremos coisas em comum? Se
calhar gostamos os dois do Ídolos. E temos uma
predilecção por casacos de malha (eu por causa
do estilo, ele por causa das correntes de ar). Quero
saber quem é este idoso a quem, ao fim de uma vida de trabalho, proporciono o merecido descanso.
Quero-me certificar de que não precisa de nada,
tem saúde e está para durar. E depois vou pedir
para trocar por outro.
Desejo
conhecer
pessoalmente
o meu
reformado.
Uma coisa
é dividir um
com mais
três pessoas,
outra é tê-lo
só para mim
GPS iPHONE
VERÃO
Pedro
Cunha
38.7007N 9.3902W
Praia Azaruginha
6 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
38.7110N 9.1460W
Bairro Alto
IMAGEMPALAVRA
JOSÉ DIOGO
QUINTELA
É MUITO ISTO
á 30 anos um casal português partilhava o
carro, a televisão e o telefone. Hoje em dia
cada um tem um carro, uma televisão e
um telefone só para si. E o individualismo
chegou também ao Estado social: cada um
tem agora um pensionista só para si.
Em 1982, por cada reformado descontavam quatro contribuintes. Hoje é só um. Os meus pais não
tinham um aposentado só deles, dividiam com outro casal. A minha geração é tão egoísta que nem
um velhinho sabe partilhar.
E a tendência é a ganância piorar, com cada contribuinte a aforrar o maior número de reformados
possível. Há miúdos recém-entrados no mercado
de trabalho que já têm mais de dois pensionistas.
Garganeiros.
Em breve vai haver um contribuinte que acabará
por ter o monopólio de reformados. Os descontos de um só português vão sustentar 10 milhões.
Há-de estar a nascer esse Messias que, em vez de
uma cruz, carregará às costas o sistema nacional
de pensões inteiro.
Parece que a culpa é da demografia. Diz-se que
“nada é certo, tirando a morte e os impostos”. O
problema é que em Portugal a morte chega cada vez mais tarde, o que agrava os impostos dos
poucos que nascem. A proporção entre trabalhadores e reformados está a diminuir. Em 1982, um
reformado aos 65 anos podia esperar viver mais
12. Agora vive mais 19. Vive mais tempo, mas em
piores condições.
O Estado social está-se a transformar num esquema de pirâmide, em que quem chega agora
investe, mas quando se reformar não vai receber.
É que nessa altura já não haverá ninguém para
descontar. Neste caso, uma pirâmide demográfica
invertida.
(É curioso que aquilo que é a base do Estado
social seja proibido pela alínea r) do art.º 8.º do
BABY DARSHAN
U
m dos poucos canais de televisão que
considero interessantes é o Baby First.
Trata-se de um canal norte-americano
dirigido às crianças. Obedece a algumas
regras em matéria de conteúdos, entre
as quais a mais significativa para mim é
a de que, como diz o respectivo site, não mostra
qualquer “material excessivamente estimulante
dos sentidos”.
O canal tem vários programas, a maior parte
dos quais são uma chatice, mas, para galhofa de
toda a gente que me observa, fico fascinado com
programas como Color Symphonies (movimentos
abstractos de aguarelas), Black and White (desenhos ultraminimalistas em preto e branco, executando movimentos simples e repetitivos), Carousel
Dreams (formas coloridas que giram como num
carrossel) e Kaleidoscope (que se percebe o que é).
As imagens são complementadas por música muito monótona. Os programas passam à noite dentro
de uma temática designada como Rainbow Dreams
que se caracteriza por conter “imagens calmantes
para as crianças na hora
de irem dormir”.
Não sei se as imagens
tornam as crianças sonolentas ou não. A mim,
fixam-me ao ecrã e mergulham-me numa atenção
branda mas não menos
aguda em relação às formas. Só me dá vontade de
dizer coisas como: “olha
a mancha vermelha...”;
“olha o azul e o amarelo a desaparecerem...”;
“olha, o cavalinho preto
baixou o pescoço...”. As
imagens fazem olhar e não
produzem outro efeito senão o encanto do olhar. (É
pena que o feiíssimo logótipo do canal ocupe uma
parte importante do ecrã,
impedindo as imagens de brilharem em toda a
sua glória.)
Ao habituar-me a ver Babby First, foi-me ocorrendo que estas imagens e sons me lembram alguns programas religiosos da televisão indiana
de que também gostava muito: durante tempos
infindos vemos o plano imóvel da imagem de uma
divindade que nos olha fixamente e ouvimos a melopeia repetitiva de uma oração cantada. O efeito
produzido pela imagem diz-se “Darshan”. Pode ser
exercido por imagens divinas, mas também pela
imagem de um rei... ou até pelo olhar intenso de
alguns heróis do cinema indiano. “Darshan” é o
poder exercido pelo olhar directo e fixo de quem
tem para isso a força: o nosso espírito é transportado pela relação com esse olhar.
Não se trata de uma relação hipnótica, longe
disso. Ficamos despertos de uma forma muito
singular porque o olhar nos liberta de tudo o resto.
Era o que sucedia no passado quando se contemplavam os ícones da primeira pintura cristã e da
pintura bizantina.
Seja com a litania de cores e sons de Baby First,
seja com o olhar fixo da divindade, ali estamos,
adoradores daquilo que, nas imagens, é apenas
para ver.
‘Darshan’ é o
poder exercido
pelo olhar
directo e fixo de
quem tem para
isso a força:
o nosso espírito
é transportado
pela relação
com esse
olhar
8 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
FOTOGRAFIA
A POLÓNIA
PERDIDA
VEJAISTO
PAULO VARELA GOMES
CARTAS DE VER
Quando chegou à
caixa do correio da
Fundação Shalom,
em Varsóvia, o retrato
desta família de judeus
polacos surpreendidos
a ler o Berliner Tageblatt
(possivelmente um souvenir
da passagem por Brzesc
de um soldado alemão da
Primeira Guerra Mundial)
vinha acompanhado de
um curto bilhete: “Ao
folhearmos o álbum de
família da minha mulher,
vimos uma fotografia de
uma família judia. Quando a
descolámos, encontrámos
no verso uma nota com o
ano 1914. Não conseguimos
explicar quem terá tirado
a fotografia ou por que
razão estará no álbum.
Ewa e Romuald Jaskiewicz,
Koscian.”
Desde 1994, o ano em que
mobilizou a diáspora judaica
espalhada pelo mundo
para enviar ao cuidado
da Fundação Shalom, em
Varsóvia, imagens de um
mundo desaparecido — a
Polónia 10% judaica que não
sobreviveu ao Holocausto
—, Golda Tencer recebeu
milhares de bilhetes
parecidos com o do casal
Jaskiewicz. Ao todo, mais
de nove mil fotografias
fizeram o seu caminho até
à Fundação Shalom nestes
últimos 18 anos, salvando
do esquecimento a pequena
história de milhares de
judeus anónimos cujo modo
de vida (memoravelmente
fixado nos contos
de Isaac Bashevis
Singer) se extinguiu
irremediavelmente com
a Shoah. E ainda Vejo os
Seus Rostos. Fotografias
de Judeus Polacos, a
exposição que o Centro
Português de Fotografia,
no Porto, hoje se inaugura
às 16h30, é o álbum dessa
gigantesca família perdida
(dos seis milhões de judeus
assassinados nos campos
de morte nazis, cerca de 3,5
milhões seriam polacos).
Guardadas como
preciosidades ou
abandonadas em sótãos, as
imagens vieram sobretudo
da Polónia, mas também
de Israel e da Venezuela,
de Itália e dos EUA, onde
familiares afastados ou
perfeitos desconhecidos
separados por várias
gerações reencontraram
uma colega de escola (“ela
era a melhor a Matemática”),
o alfaiate judeu que um dia
fez vestidos de primeira
comunhão, uma família
de Brzesc com o Berliner
Tageblatt. Através delas,
descobrimos as incríveis
histórias da senhora
Chablima, que se fez
fotografar com os filhos
antes de ser mandada para o
gueto para ser reconhecida
depois da guerra, e de
Zahava Bromberg, que em
Auschwitz passou por duas
selecções do Dr. Mengele
com o retrato da mãe
escondido debaixo da língua
e sobreviveu para contar.
Inês Nadais
E ainda Vejo os
Seus Rostos.
Fotografias de
Judeus Polacos
fica no Centro
Português de
Fotografia até 3
de Junho
FUNDAÇÃO SHALOM
JOÃO DIAS
JORGE SILVA
ALMANAQUE
O HOMEM DE PAVIA
M
lenta sobre um tema clássico
do filme negro. Mas é difícil
não sentir que essa sedução
se deve em grande parte
à presença de Hestnes,
que se poderia definir,
paradoxalmente, como de
tranquila inquietação, e que
parece dar a Em Segunda
Mão uma gravidade e uma
consistência perfeitamente
sintonizadas com a
abordagem de Catarina
Ruivo. Raramente teremos
visto no cinema português
um filme e um actor que
estão tão interligados como
este. E se Em Segunda Mão
não é nem uma obra ao
nível do assombroso Tabu
de Miguel Gomes, nem um
objecto tão acessível ao
público como a Florbela
de Vicente Alves do Ó — e
ainda bem que assim é,
porque é sinal de que o
cinema que se faz entre nós
não se resume a gavetas
standardizadas — é um
filme que merece de corpo
inteiro ser reconhecido, em
todas as suas fragilidades e
inspirações, também pela
interpretação extraordinária
de um actor que nos
deixou cedo de mais. Jorge
Mourinha
Em Segunda
Mão, de Catarina
Ruivo, é exibido
no IndieLisboa
a 29 de Abril
(21h30, Grande
Auditório da
Culturgest) e a 1
de Maio (14h30,
cinema Londres)
Em toda a
sua obra
gráfica colou
Pavia o olhar
ingénuo e
sonhador do
deserdado
da fortuna
que ele era
VEJAISTO
INDIELISBOA
EM SEGUNDA
MÃO: ESTREIA
MUNDIAL
É muito fácil perdermo-nos
no labirinto de secções,
sessões e apostas do
IndieLisboa, que chega
este ano à sua nona edição
(26 de Abril a 6 de Maio)
com uma programação
que pode ser mais
discreta do que habitual
mas é particularmente
representativa da
inventividade do cinema
de autor internacional. Pelo
meio das propostas vindas
de todo o mundo, há um
filme português apresentado
em estreia mundial que
merece um olhar muito
especial. Em Segunda Mão,
terceira longa-metragem
de Catarina Ruivo após
André Valente e Daqui p’rà
Frente, foi também o último
papel no cinema de Pedro
Hestnes, actor que marcou
indelevelmente uma geração
do cinema português e que
morreu em Junho de 2011,
quando o filme estava já
em montagem. O interesse
de Em Segunda Mão, há
que dizê-lo, não se limita
à presença do actor — há
algo de genuinamente
sedutor, mesmo que não
inteiramente conseguido,
nesta variação em câmara
orreu no dia do seu aniversário, aos 50
anos. A broncopneumonia e o corpo debilitado pela fome crónica e pelo orgulho
soberbo cortaram a meio a obra do mais
estimado ilustrador neo-realista português. No quarto da pensão onde vivia, na
Rua Bernardim Ribeiro, em Lisboa, acompanharam
o seu último alento alguns dos escritores para quem
generosamente desenhava as capas dos livros que
vieram a constituir o coração do neo-realismo português nos anos 40 e 50 do século passado.
O feitio esquivo e a obsessão pelo Alentejo natal
fizeram dele, sobretudo a partir da sua trágica morte, um modelo para os comunistas portugueses da
época. A devoção a este “príncipe sem vintém”,
nas palavras de José Gomes Ferreira, ficou expressa
ainda em 1957, ano da sua morte, em número da revista Vértice por onde passa a
sentida homenagem da comunidade intelectual. Ilustrou o
escol do neo-realismo, Alves
Redol, Antunes da Silva, Fernando Namora, Manuel Mendes, Domingos Monteiro, mas
também Dostoievski e Tolstoi,
para algumas das emblemáticas editoras da época, como
a Portugália, a Guimarães, a
Inquérito e a SEC.
Os camponeses e pescadores das suas ilustrações,
as suas magníficas ceifeiras,
são gigantes de corpo robusto e olhar manso, mãos e patorras enormes cumprindo
a gramática visual dos muralistas mexicanos Rivera e Siqueiros. Homens e
mulheres à espera da redenção e de amanhãs que
cantam, ao sol inclemente da planície ou à sombra
de nodosas azinheiras, em cenário minimalista de
vigoroso preto e branco a tinta-da-china ou em exuberante cromatismo, revelando o afinado grafista
de algumas das mais belas capas daqueles anos.
A militância de Manuel Ribeiro de Pavia (Pavia,
1907-Lisboa, 1957) era essencialmente sentimental, um neo-realista lírico sem sombra de pecado
ou proselitismo.
Fidelidades pessoais valiam mais que a doutrina
e Pavia ilustrou a Política do Espírito de António
Ferro, literatura e propaganda colonial e até mesmo, em 36 e 41, violentos cartoons anti-soviéticos
no jornal fascista Acção. Em toda a sua obra gráfica
colou Pavia o olhar ingénuo e sonhador do deserdado da fortuna que ele era, pouco à vontade no
papel de proletário da ilustração, calcorreando as
editoras e jornais da grande cidade.
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 9
DR
VÍTOR BELANCIANO
APARTES
CULTURA VISUAL
E CULTURA DA PALAVRA
A
Ainda não está
no Pinterest?
O Facebook
ou o Twitter
já eram
10 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
CD
O EROTISMO
PODE MATAR
CD The Chromatics
Kill For Love
Editora Italians
Do It Better
9,99€
O segundo álbum dos
americanos The Chromatics
chama-se Kill For Love e
no título já está encerrado
o imaginário do grupo
do multi-instrumentista
Johnny Jewel e da cantora
Ruth Radelet: romantismo
exacerbado e emoções à
flor da pele, marcados por
envolvente e erótica música
pop electrónica.
Johnny Jewel foi o autor da
banda sonora do filme do
ano passado Drive, que viria
a afirmar definitivamente o
actor Ryan Gosling como o
modelo do tipo com pinta,
que vive melancolicamente
nas margens, mas com o
qual é difícil não engraçar.
Em poucos filmes recentes
a música desempenhava
um papel tão fundamental
na definição dos ambientes,
tornando as coisas opacas
ou transparentes, de acordo
com a acção. O que está
de acordo com a música
do grupo. Não só dos
Chromatics, mas da restante
família da editora Italians Do
It Better.
Numa altura em que a
maior parte das editoras
revelam sinais de perda de
identidade, a Italians Do It
Better constitui uma das
excepções, com um tipo de
sonoridade e um conceito
visual característicos.
O responsável é Johnny
Jewel que, para além dos
Chromatics, é também
o mentor dos projectos
Glass Candy e Desire, todos
eles operando no campo
da pop electrónica de
tensão sensual, com vozes
voluptuosas e um imaginário
devedor de um certo
psicadelismo exótico dos
anos 70.
Kill For Love, o álbum
agora editado, constituiu
a apoteose destas
especificidades, composto
por canções que reiteram
uma pop electrónica de
guitarras e teclados do
antigamente lá dentro,
marcando indelevelmente
climas sensuais, libidinosos,
tentadores. São canções
minimalistas, quase oníricas
na maneira como integram
diferentes temperaturas,
do glaciar ao mais cálido,
canalizando-as para criar um
enorme espaço de volúpia.
Como se de repente as luzes
da pista de dança baixassem,
criando um ambiente um
pouco obscuro, deixando
entrever uma dimensão
interior que julgávamos não
estar lá, fazendo-nos sentir
que existem personalidades
complexas por trás da
aparência de simplicidade
que os Chromatics podem
personificar.
Há qualquer coisa de
teatralizado nos quadros
que o grupo propõe,
mas ao mesmo tempo de
muito autêntico e algo
sombrio. Johnny Jewel diz
que todas as canções que
compõe acabam por expor
momentos traumáticos,
períodos rituais de mudança
que declaram um antes e
um depois. “Everybody’s
got a secret to hide” [todos
temos um segredo], canta
Ruth Radelet, de forma
sussurrada, no tema-título
Kill For Love. É bem capaz de
ser verdade. Vítor Belanciano
OUÇAISTO
inda não está no Pinterest? Então, não está
actualizado, não é ninguém, não tem pinta.
O Facebook ou o Twitter já eram. Tornaramse vulgares, demasiado grandes, transversais, plurais e plebeus para quem acha que
o seu universo é exclusivo e deve ser apenas
partilhado com outros que pensam da mesma forma. Ironizo, claro. Ou, se calhar, não.
2012 parece ser o ano das redes sociais visuais.
Depois do Instagram — comprado na semana passada pelo Facebook, por milhões —, a rede social
de que se fala é o Pinterest, misto de Twitter e
Tumblr com Flickr, um mural de fotos online, que
permite criar murais temáticos (moda, comida,
design, arquitectura, casamentos), servindo para
partilhar interesses, ou organizar ideias temáticas,
de uma forma bastante visual.
Num curto período de
tempo, o Pinterest multiplicou os frequentadores e já é
a terceira rede social mais
popular nos EUA. Como outras permite a hiperpersonalização, mas neste caso essa
circunstância é ainda mais
acentuada: este sou eu. Isto
é o que eu gosto. Isto é quem
eu quero ser. E contribui para disseminar um fenómeno
dos últimos tempos em contextos de sociabilização. Antes, ao jantar, ou em reuniões, exprimíamo-nos por palavras o melhor que
conseguíamos. Agora iniciamos uma argumentação
e, às tantas, viramo-nos para os nossos interlocutores e sacamos de um iPhone ou de um aparelho
similar, e começamos a mostrar fotos ou vídeos,
como se validassem a nossa teoria.
As imagens falam por nós, parecemos acreditar.
A comunicação é cada vez mais visual. Ou melhor, é
cada vez mais mista. Vale tudo, palavras e imagens,
em rodopelo, não se substituindo, mas entrelaçando-se num corrupio constante. Umberto Eco dizia
que este era o século da palavra, por oposição ao
anterior, marcado pela ascensão do cinema e TV. Ou
seja, as redes sociais, o email, os blogues e outras
ferramentas digitais teriam estabelecido novas dinâmicas no uso da palavra. E é verdade. O computador
passou a ser uma espécie de interface que facilita a
criação colectiva, a autoria partilhada, a colaboração
paralela. É um espaço de interlocução, confronto
e exposição. Por mais fotos e vídeos, os modos de
leitura e escrita acabam por estar presentes.
Os mais conservadores dirão que os textos literários clássicos não são os mais lidos pelos jovens.
Sim. Mas talvez seja mais adequado dizer-se que os
jovens já não lêem como o fazíamos há algumas décadas. O processo de leitura mudou. Mais do que a
quantidade, a preocupação deveria deter-se sobre
a qualidade daquilo que se lê. E isso só se consegue
aceitando a pluralidade de leituras e de escritas de
que dispomos e as respectivas adequações. Compete aos educadores olhar sem complexos para o
caos da Internet — com os seus atalhos, perigos e
preciosidades — e traçar o melhor caminho, sem
se esquecerem que a palavra não é superior à imagem. São diferentes, mas podem complementar-se
ou mesclar-se.
LIVRO
LEIAISTO
COZINHA
JAPONESA
EM CASA
Cozinha japonesa? Huumm.
Receitas simples para a
família e os amigos? Huumm.
Harumi Kurihara, que era
uma simples dona de casa
até se transformar na Delia
Smith japonesa, fez os seus
primeiros livros de receitas
a pensar no público japonês.
Mas Cozinha Japonesa com
Harumi foi feito a pensar nos
ocidentais, que como eu
sempre se interessaram pela
cozinha japonesa que fosse
além do sushi. E resulta.
Tudo parece tão fácil com
as explicações de Harumi
(www.yutori.co.jp/en) e as
dicas para se substituírem os
ingredientes que forem mais
difíceis de encontrar.
Pertenço aos primeiros
alunos do chef Paulo Morais
(que entretanto abriu a
primeira Sushi School
do país) e isso serviu-me
de base para saber as
diferenças entre molho de
soja, mirin, miso, vinagre de
arroz, sementes de sésamo,
saké e também os truques
para cozer arroz japonês sem
desatar a chorar, a seguir,
a olhar para a tigela. Mas
foi com as receitas simples
e de pratos tradicionais de
Harumi que passei a fazer
regularmente caldo dashi
(“à séria”, com alga kombu
e katsuogusbi, os flocos de
peixe seco, que compro nas
lojas chinesas no Intendente
ou na loja japonesa
Goyo-Ya na Rua Filipe Folque
n.º 30 D, em Lisboa) para
conseguir chegar a casa e,
rapidamente, fazer sopas
e massas (udon, yaki soba,
etc.).
Harumi Kurihara tem um
DR
programa de televisão, Your
Japanese Kitchen, com
George Williams e Daniel
Kahl. As receitas estão
disponíveis com fotos e em
inglês no site do canal NHK
(www3.nhk.or.jp/nhkworld/
english/tv/kitchen). Se
quiserem saber como fazer o
típico Shabu-shabu (legumes
e carne cozidos em caldo
com molho ponzu) vejam
o programa no YouTube
(youtu.be/JlaSK6Cfkvo).
Essencial é também o
canal Cooking with Dog no
YouTube. A chef japonesa
que cozinha acompanhada
pelo cão Francis foi
atropelada, em Janeiro, em
Tóquio, e está a recuperar.
Por isso não têm divulgado
vídeos novos mas estão a
remasterizar os antigos. São
viciantes. Isabel Coutinho
DR
JORGE MARMELO
PIOLHO DOS LIVROS
DERRADEIRA POESIA
S
onhei, uma noite destas, que viajava num
avião muito decrépito e desconjuntado, pilotado por um freak norte-americano que
fumava charros e conversava com os passageiros enquanto evitava colisões com gestos
displicentes (voávamos muito baixinho).
A dado passo, o avião entrou numa grande nave
que era uma espécie de museu da aeronáutica,
com cujas relíquias só não esbarrávamos porque
o americano conseguia sempre manobrar para
evitar o desastre no último momento. Saímos lá
de dentro estilhaçando uma grande janela e, então, despertei.
Ao acordar, lembrei-me de uma história que me
contou, há mais de dez anos, o Ivo Machado, um
poeta que é controlador aéreo, ou vice-versa. O
Ivo escreve versos desenhando letras miudinhas,
belíssimas, em cadernos de capa dura, e lê os poemas que escreve numa voz grave e forte, como
de oráculo — a mesma voz que acompanhou as
últimas horas de um aviador em rota de colisão
com o fim.
O episódio tem quase 30 anos e duas personagens: o Ivo Machado, então a trabalhar no centro de
controlo aéreo da ilha de Santa Maria, nos Açores,
e um velho piloto a bordo de um pequeno avião
estafado que tinha sido comprado para ser usado como
pulverizador nas plantações
da Califórnia. No trajecto entre os Açores e o continente
americano, os ventos fortes
do Atlântico Norte obrigaram o aviador a andar aos
ziguezagues e, por isso, as
reservas de combustível do
avião foram chegando ao
fim. Quando percebeu que
não conseguiria já atingir
nenhum ponto em terra firme, o homem solitário aos
comandos da aeronave contactou o controlo e ficou
a conversar com o Ivo, pondo-o a par dos factos:
era provável que morresse dali a pouco.
Diligente, o Ivo fez o que profissionalmente lhe
competia. Recolheu dados, fez cálculos, deu instruções. Quando, porém, se tornou evidente que
as leis da física e da aeronáutica nada podiam valer
ao viajante, ocorreu-lhe preencher o denso silêncio que há sobre o mar recitando poesia. Traduziu todos os poemas que sabia de cor e, depois,
lembrou-se de que tinha no cacifo um livro de Walt
Whitman que alguém tinha abandonado no café do aeroporto: Leaves of Grass. Imagino-o com
uma clareza enorme: o avião perdendo altitude,
aproximando-se mais e mais do cume prateado
das ondas, e a voz do Ivo recitando, talvez, aquele
verso que diz “To fly in the clouds and winds with
me, and play with the measureless light”, e o aviador cerrando os olhos e sentindo ao seu redor a
desmedida luz da madrugada.
Na manhã seguinte, o Ivo soube que, a partir do
ar, as autoridades canadianas tinham localizado o
avião, o qual tinha, afinal, amarado perfeitamente.
Respirou de alívio. Disseram-lhe, mais tarde, que
um painel do cockpit se tinha soltado com o impacte no mar, caindo sobre o piloto e matando-o.
Como sucede com todas as pessoas que já ouviram esta história, tenho a certeza de que o aviador
morreu em paz, embalado pela poesia.
A voz do Ivo
acompanhou
um aviador
em rota
de colisão
com o fim
Cozinha Japonesa
com Harumi
Autora: Harumi Kurihara
Fotografias de Jason Lowe
DK Civilização Editores
21,99€
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 11
Francisco, em Beja, sorri. Tal como João, em Vila Nova de Foz Côa. No jogo do “como e
em Beja, impressiona-se — ver as vacas à luta por comida é inusitado. Retratos de um paí
ANDREIA SANCHES TEXTO ENRIC VIVES-RUBIO FOTOGRAFIA
A CHUVA CHEGOU, MAS NÃO ESQUECEMOS A SECA
o enganar a seca”, parecem sair-se bem. Ambrósio, na Serra da Estrela, chora. E José,
país que tem a seca no seu ADN. E onde às vezes se lida de forma estranha com a água
E
sta é uma viagem de Bragança a
Olhão, no início de uma Primavera
que trouxe aos campos as cores das
papoilas, das giestas, das margaças e do rosmaninho mas que não
consegue remediar o mal feito por
um Inverno seco. Vamos parar várias vezes e constatá-lo. Na Serra
da Estrela, onde um pastor de voz
ríspida perde a compostura e chora
— prefere vender as ovelhas a vê-las tombar
à fome. Na aridez desmesurada das terras de
Mértola. No Campo Branco, no Alentejo — “um
campo de golfe tem mais relva do que isto”,
diz um vaqueiro, com um sentido de humor
à prova de seca, enquanto olha para 40 hectares de aveia.
Paragem também nos pomares do Sul da
Serra da Gardunha, onde os produtores de
fruta “andam à bulha com a água”. Em Vila
Nova de Foz Côa, onde uma conhecida casa
de vinho do Porto faz o que ainda não é consensual fazer: regar a vinha. E ainda em Silves.
E em Olhão... Uma viagem para ver como um
país em seca e com secas frequentes se relaciona com a água.
No final de Março, 57% do território continental estava em seca meteorológica extrema,
segundo a comissão de acompanhamento e
avaliação dos impactos da seca de 2012. Entre 1
de Outubro e 31 de Março, choveu menos 48%
do que é normal. Mas nada disto é assim tão
novo. Temos aprendido com as secas — as de
1981, 1992, 1995, 1999, 2004, 2005? Ou com a
chuva esquecemos tudo?
14 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
A 2 encontrou vários autarcas, empresários e
agricultores que nos últimos anos procuraram
preparar-se. E outros que reclamam um maior
empenho do Estado e mais apoios. Mas ainda
há muita sobreexploração de recursos hídricos, diz a geógrafa Maria José Roxo, especialista
em desertificação da Universidade Nova de
Lisboa. E desperdício. Este é o relato de uma
incursão que começou nos últimos dias de
Março, quando as nuvens começaram a chegar
e, com elas, uma chuva miudinha.
DE BOCA VAZIA NAS TERRAS ALTAS
O sol já vai baixo, está um vento frio na serra e
Júlio Ambrósio, 62 anos, não traz boa cara. É
um homem grande, de ombros largos, boina
verde na cabeça, um tom de voz ríspido. Olha
para a nuvem densa de poeira provocada pelas patas das ovelhas que regressam à quinta
apressadas, depois de um dia inteiro a pastar,
e comenta irritado: “Nem no Verão levantam
tanto pó, nem no Verão isto está tão seco!” O
que se vai passar de seguida só serve para o
deixar ainda mais maldisposto.
Os animais estiveram desde manhã nos campos, à cata de mato e pequenas ervas. Mas
nem a mais persistente das ovelhas tem grande
sorte por estes dias em pleno parque natural
da Serra da Estrela, na freguesia de Prados,
concelho de Celorico da Beira. “Nesta altura
do ano, era para andarem aí aos saltos, nas
serras altas, a encher a boca. Agora, nem nas
serras altas nem nas baixas.” Com a falta de
água, nada cresceu.
Quando elas e a sua nuvem de pó chegam à
loja, conduzidas pelo filho de Ambrósio, atropelam-se umas às outras para apanhar o feno
e a ração que já foram espalhados pelo chão.
Trazem fome. E comem, comem, comem até
que alguém as conduza, aos grupos de 24,
para a sala de ordenha mecânica.
Estamos na Quinta da Póvoa, um negócio
de três famílias que produzem queijo Serra
da Estrela e exploram 300 hectares de pastagens temporárias e permanentes, centeio,
aveia com grão, feno bravo — de onde saem
10 mil a 12 mil fardos por ano que é suposto
garantirem que nunca falta alimento a 600
ovelhas de cornos rugosos e lã espessa. “Este
ano não estou a ver como vá cortar sequer
mil.” E o que guardou do ano passado está
a esgotar-se.
De cada grupo de 24, Ambrósio costumava
extrair cinco litros de leite, o equivalente a um
quilo de queijo. Mas isso é o que é costume.
Por estes dias é diferente. “Já vai ver o que fica
no depósito quando acabarmos.” E no final
da ordenha mostra o depósito transparente,
para onde corre o leite. Marca menos de dois
litros. “Como é que se pode andar de cabeça
erguida?”
Dez minutos depois de receber a 2, com a
sua voz ríspida, não contém as lágrimas. “Viu
a viatura que passou aí, não viu? Vêm para
comprar algumas ovelhas. É melhor vender
barato do que vê-las a morrer à fome.”
Afinal, não estava maldisposto este homem
grande, de ombros largos, quando nos apareceu com má cara. Estava desesperado.
Segundo a comissão de acompanhamento
e avaliação dos impactos da seca de 2012, a
região Centro foi uma das mais afectadas pela
seca extrema. Num ano normal regista-se em
Março uma precipitação de 55 mm na região;
este ano foram 14.
O impacto no abastecimento urbano já se
fez sentir nas cidades. A Águas da Covilhã accionou um plano de contingência. “Consiste
no aproveitamento de águas de particulares
e de águas com baixa qualidade que, em situação de ano normal, não são aproveitadas.
A rega de espaços verdes foi interrompida”,
informa a empresa municipal.
Mas é na pecuária que as consequências
são mais visíveis. O relatório publicado pelo
Governo na primeira semana de Abril falava de quebras que vão dos 40% aos 80% na
produção de culturas forrageiras (destinadas
a alimentar os animais), de uma redução de
valor idêntico nos cereais de Outono/Inverno,
como o centeio, e de uma ainda maior nas
chamadas “pastagens permanentes”. A “escassez de alimentos grosseiros para o gado”
e o “esgotamento das reservas” fez disparar
o preço de fenos e palhas — nalgumas zonas
registaram-se aumentos de 75%.
O pior pode estar para vir. Não haverá reservas para o próximo ano. E o desalento toma
conta de muitos criadores. O Governo já prometeu ajudas e também há autarquias a acenar
com apoios. Em Março, a Câmara Municipal
de Oliveira do Hospital anunciou 30 mil euros
para distribuir pelos pastores e produtores de
queijo. Vítor Rodrigues, na freguesia de No-
gueira do Cravo, é um dos contemplados.
Ao longe podem parecer verdes os diferentes talhões da propriedade arrendada, onde
semeia. Contudo, ao perto, é fácil constatar o
desastre. Pára o jipe num rectângulo de terra:
“Aqui semeei aveia, azevém, serradelas, trevos...”, uma mistura pensada para que as suas
100 ovelhas dessem mais leite. Mas os trevos
mal despontaram e as espigas surgiram antes
do tempo — e se o cereal espiga com um palmo
de altura, não cresce mais.
Rodrigues é um dos que dizem que também não vão conseguir fazer feno. E já está
a ter de comprar. “Quatro euros o fardo de
12 quilos, quando costuma ser a 2,5 euros.”
Há pastores a recorrer à banca e a pedir emprestado. Ele ainda não chegou aí, mas não
falta muito.
Encolhe os ombros, constrangido. “Para já,
não posso dizer que os animais estão a passar
mal.” Há ovelhas magras, uma ou outra. Como
aquela que mastiga erva rente ao chão, junto a
um dos filhos do pastor — Daniel, o mais novo
da família, está a estudar Teologia em Coimbra
e nas férias ajuda a tomar conta do rebanho.
Mas não é porque estejam esfaimadas, continua, quase constrangido. É das parasitoses,
que são mais comuns em tempo de seca. “Mas,
de facto, não posso dizer que estão como nos
outros anos, fortes, valentes. Uma ovelha, que
podia produzir 800ml a um litro de leite, está
a produzir 200, 300ml e não passa dali... No
mês passado, não consegui tirar sequer para
pagar à Segurança Social.”
Perguntar a estes pastores o que fazer pa-
Francisco Palma
(nas páginas
anteriores),
agricultor de
Beja, tem uma
seara de triticale
que mete inveja a
quem passa. Em
Abril, a ribeira do
Arade, em Silves
(à esquerda) leva
muito menos água
do que é normal.
José da Luz (à
direita), criador de
vacas em Castro
Verde, olha para o
armazém de feno
que este ano não
conseguirá encher
ra, da próxima vez, na próxima seca, estarem
mais prevenidos suscita invariavelmente um
esgar de angústia. Reduzir o tamanho dos rebanhos é a resposta. A única. Nenhum deles
se vê a fazer outra coisa que não alimentar
um negócio que já veio de avós, de pais e que,
nalguns casos, já passou para filhos e em que,
apesar de tudo, acreditam: o da produção do
famoso queijo Serra da Estrela.
Qualquer um defende, de resto, que era impossível estar preparado para o que se passou
este ano — por exemplo, com reservas maiores de alimento nos armazéns. “Esta seca foi
muito pior do que a de 2005. Foi a pior de que
me lembro.” Virão mais destas?
O SUECO QUE QUEIMOU O LARANJAL
Detlev von Rosen, um sueco muito alto, de
corpo delgado, precisou de apanhar um susto
para tomar medidas drásticas. No final dos
anos 60, tinha escolhido Moncarapacho, concelho de Olhão, para montar um negócio de
viveiros de plantas ornamentais. Até que um
dia o vizinho, que produzia laranjas, quis vender a propriedade que fazia fronteira com a
sua e foi ter com ele. “Disse-me: ‘O melhor é
comprar-me isto porque a água que você usa
vem da minha terra’.”
O argumento da água convenceu-o e viu-se
a braços com um laranjal enorme. O país vivia a revolução de Abril e Detlev preparava-se
para uma reviravolta na sua vida. “Pergunteilhe: ‘Mas como é que vou fazer isto se não sei
nada de laranjas?’ E ele disse: ‘Ah, isto é fácil!
Muita água, rega de rojo, ou seja, abrir a água
e deixá-la correr.”
Durante 20 anos, foi o que fez (na chamada “técnica de alagamento”, apenas 50% da
água usada na rega é, efectivamente, consumida pela planta; o resto vai para o subsolo
ou evapora-se). Até que no final da década de
1990 o Algarve atravessou uma seca que ficou
para a história. A água faltou nas torneiras e o
sueco começou a fazer contas quando viu os
seus furos falharem um após o outro.
Não sabia — como hoje ninguém sabe — se viriam mais secas daquelas. Mas decidiu que não
voltaria a viver um momento de pânico como
aquele. “Fizemos um estudo e as conclusões a
que chegámos eram catastróficas: estávamos
a usar quase toda a nossa água nas laranjas.
Não sei se está certo, mas calculámos que para
produzir um copo de sumo precisávamos de
mil copos de água. Por isso, arrancámos tudo
e queimámos.”
Começou a procurar árvores que tivessem
menos sede. Optou pela oliveira quase por
acaso, conta a sorrir. De facto, também não
sabia nada sobre olivais — não era sequer consumidor de azeite.
Foi aprender. Contactou os melhores especialistas portugueses e começou a seguir
a par e passo um projecto de olival que estava a nascer na Califórnia, desenvolvido pela
Universidade de Davis (UD). O azeite estava a
entrar na moda fora do Sul da Europa, muito
graças aos estudos que ressaltavam os efeitos
benéficos do seu consumo na saúde humana.
E sentiu que tinha apostado bem.
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 15
Investiu — 100 mil euros na plantação das
oliveiras, 100 mil na recuperação de um lagar romano que existia naquele local e onde
montou o seu, outros 100 mil no equipamento. Depois, foi preciso sustentar as oliveiras
durante sete anos, sem que elas lhe dessem
nada em troca. E pôr em prática as técnicas
que estavam a ser seguidas pela UD e que,
supostamente, lhe iriam permitir chegar ao
topo — 90% do azeite que se produz vai para
a refinaria, diz, e o seu preço é regulado internacionalmente “por uma espécie de bolsa
do azeite, sediada em Madrid”, que dita que
neste momento cada quilo (no azeite fala-se
de quilos e não de litros) custa 1,5 euros. Detlev não queria entrar nesse mercado. Queria
ter um azeite extra virgem. E é isso que tem
hoje. Vende-o a 19 euros o quilo, quase só a
particulares.
Aos 75 anos, olha com doçura para o seu
olival belíssimo que, até ver, está a passar incólume à crise da chuva e ao problema da geada
que tantas dores de cabeça deram este Inverno aos produtores de citrinos do Algarve.
Tudo o que os olhos avistam parece ter sido estudado ao pormenor. Por que é que há
porcos pretos a passear entre as oliveiras, por
exemplo? “Caem azeitonas no chão, se caem
é porque estão doentes e não queremos ter
azeitonas doentes no solo... os porcos fazem
a limpeza do olival.”
Com clientes em todo o mundo (há tempos
foi noticiado que entre eles estão a rainha da
Suécia e Carla Bruni, mas Detlev não gosta
nada de falar disso, acha deselegante), diz que
16 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
está quase a ganhar a sua aposta: provar que
um negócio destes é rentável. E menos arriscado do que o das laranjas. “Se não chove, se
não há rega, os citrinos morrem. A oliveira
não.”
AS ÁRVORES ENVERGONHADAS
Para a generalidade dos agricultores que a 2
encontrou pelo país, parece evidente que o
clima “está a mudar”. Quando definem políticas, o Governo e a União Europeia também
partem desse pressuposto: o Sul da Europa,
nomeadamente Portugal, vai viver períodos
de seca meteorológica mais frequentes.
Na comunidade científica, contudo, está longe de haver consenso em relação a estas previsões. Os governos sabem-no, explica Francisco
Gomes da Silva, assessor para a Agricultura
da ministra Assunção Cristas. Mas nos seus
planos optam pela “prevenção”.
É precisamente por estar tão entranhado
este discurso da seca — nos campos, como nos
gabinetes — que alguns projectos parecem, à
primeira vista, quase um contra-senso. Por
exemplo: no Sul da Serra da Gardunha, onde
não há nenhuma grande barragem, e onde,
no Verão, as temperaturas ultrapassam os 40
graus, por que razão cada vez mais agricultores arriscam investir em projectos agrícolas
que... precisam de rega?
Foi o que fez Joaquim Baptista, 50 anos, há
vários anos. Tem um pomar, em Castelo Novo,
de 100 hectares, com a serra à vista, que depende basicamente das charcas (reservatórios
escavados na terra, a céu aberto) que abriu
pela propriedade.
Mostra uma delas, com uns cem metros de
comprimento por 40 de largura, que era suposto estar quase cheia nesta altura. Mas está
longe disso. “Só devíamos começar a usar esta
água para regar em finais de Abril. Ora este
ano estamos há mais de um mês a usar a água
das charcas, porque não choveu.” E sem chuva
as cotas não são repostas.
Noutra exploração, a poucos quilómetros,
repete-se a história. Francisco Chasqueira,
50 anos, está a lançar, com a filha, um novo
pomar no Louriçal do Campo — dezenas de
milhares de euros, com apoios comunitários.
Acabou de plantar as árvores a 15 de Fevereiro,
contava ter o sistema de rega instalado em
Junho. E tudo correria bem, diz, se São Pedro
não lhe tivesse trocado as voltas.
Como não choveu, e para garantir que as
árvores não morrem à nascença, teve de regálas manualmente, já que o sistema de rega
automática não está pronto — são precisas
três pessoas, um tractor e mil euros de cada
vez que dá de beber às arvores. A gigantesca
charca que construiu, essa, “pode não chegar
até Setembro”. A terra barrenta, acinzentada
à volta, abriu-se. As fendas fazem lembrar as
fotografias que ilustram os manuais escolares
de Geografia quando explicam o que é a seca.
Mas aqui a seca vive-se ao vivo.
Para já, qual é o impacto disto? As cerejeiras
de Joaquim Baptista estão bonitas, completamente vestidas de flores brancas. Mas ele
não arrisca prognósticos. Sabe que tem cor-
tado no número de regas (“A cereja agradece
água todos os dias, para estar mesmo bem.
Mas agora a gente não lhe dá o que ela quer
porque andamos aqui todos encolhidos.”) Sabe também que esta dieta pode ter impacto
quando chegar a hora de colher o fruto e que
a produção pode cair. O mesmo com os pêssegos. “As árvores estão envergonhadas. Estão
a rebentar, mas não estão bem.”
Sente, contudo, que, dadas as circunstâncias, tem feito tudo certo. Foi a Espanha, comprou as variedades que lhe pareciam mais
adequadas ao clima. Escolheu sistemas de
rega eficientes — “Dantes fazia-se a rega por
alagamento. Agora não. É toda conduzida por
uma tubagem que faz uma microaspersão...”
Cada pequena árvore tem direito a um gotejador que deixa cair 2,2 litros por hora em
pequenas gotas.
É certo que dá razão a quem diz, como a
geógrafa Maria José Roxo, que persistem casos
gritantes de culturas agrícolas desadequadas
aos recursos hídricos existentes — “o milho,
o girassol e os milhares de hectares de olival
superintensivo e intensivo e de vinha irrigados, plantados no Alentejo, com particular
incidência no Baixo Alentejo, são bons exemplos da sobreexploração dos recursos, numa
região onde os totais anuais de precipitação se
encontram entre os 600 e os 500 mm”.
Mas Joaquim Baptista não acha que tenha
ignorado demasiado as condições que a região oferece — não costuma haver Invernos
assim, mesmo a seca de 2005 foi menos grave, diz. “Temos aqui enormes potencialida-
des para a fruta. Temos solos planos, calor no
Verão, frio no Inverno — a cerejeira precisa
de 700 horas de frio por ano, abaixo dos sete graus —, pouca geada.” O que falta? “Um
bom sistema de regadio que o Estado devia
trazer para cá.”
É precisamente o que defende José Mesquita
Milheiro, presidente da Associação Distrital
dos Agricultores de Castelo Branco, no Fundão, ele próprio em risco de perder o que
semeou em terreno de sequeiro. “A Cova da
Beira tem fama de grande produtor de fruta”,
diz o engenheiro. “Mas há muita fruta a surgir
no Sul da Gardunha, com agricultores que têm
80, 100 hectares de pomar e que andam ali à
bulha com a água — puxam-na daqui para ali e
dali para aqui, andam à voltas com a charca e
a charquinha”, numa espécie de jogo que este
ano subiu de grau de dificuldade.
“Abrir aquelas charcas é um grande investimento que fazem, mais a energia que gastam
para retirar a água com bombas.” E, com as secas, tudo se complica. Por tudo isto, a associação quer “pôr em cima da mesa” um estudo,
que seja feito em parceria com universidades,
que convença o Governo que um forte investimento em regadio, a sul da Gardunha, com
fundos comunitários, é a melhor solução. Bastava aproveitar a água das ribeiras que correm
na serra — em vez de “deixá-la correr até ao
mar”, diz. “Sem regadio, como está o clima,
o país transforma-se num deserto.”
Mas é eficiente levar pomares e hortas para
zonas onde naturalmente nada disso pegaria?
“Se produzíssemos só o que a natureza nos
Os críticos dizem
que a Barragem
do Alqueva (à
esquerda) não
fomentou o
desenvolvimento
agrícola, como
era esperado;
falta tecnologia
e formação. Em
Castro Verde (à
direita), as vacas
disputam ração
lançada por
criadores; o pasto
está “agarrado ao
chão” e não chega
para alimentá-las
permite, já tínhamos desaparecido”, responde
Francisco Gomes da Silva.
“O regadio é cada vez mais importante como
forma de nos adaptarmos às alterações climáticas”, continua o assessor de Assunção Cristas.
“Temos de criar condições de armazenamento de água. No âmbito da revisão da Política
Agrícola Comum há, da parte portuguesa, uma
afirmação clara de que queremos desenvolver
o regadio. Um regadio eficiente.”
E como se garante a eficiência? Desde logo,
com uma correcta política de tarifários. Não
há melhor “bússola” para “dar a indicação
certa aos empresários para que façam as melhores escolhas” do que o preço da água.
O CONTADOR QUE FEZ “NASCER” ÁGUA
O preço da água é, de facto, encarado por muitos como uma arma de regulação do consumo
não só na agricultura (onde se concentram as
maiores ineficiências no uso de água, segundo
o Programa Nacional para o Uso Eficiente da
Água, que está a ser revisto) mas também na
indústria e no abastecimento urbano. O presidente da Câmara Municipal de Mértola, Jorge
Rosa, e Rui Caseiro, o vice-presidente do município de Bragança, estão em regiões muito
diferentes do país, mas partilham a experiência de terem visto os consumos baixar depois
de assumirem os custos políticos de actualizar
as tarifas. Caseiro arrisca mesmo dizer que
“o contador é a melhor nascente”. Já se vai
perceber o que quer dizer com isto.
Até há poucos anos, ninguém pagava água
nas aldeias de Bragança. E os mais de 160 furos
que abasteciam várias delas esgotavam-se com
alguma frequência. O espectáculo repetia-se
ciclicamente: camiões-cisterna a levar água
aos depósitos das povoações. “Lembro-me
de chegar a estar 15 dias sem água”, diz Helena Branco, 40 anos, dona do minimercado e
presidente da junta de Grijó de Parada, uma
típica aldeia de casas de xisto onde não haverá
mais de 50 habitantes.
Nesse tempo, o abastecimento era frequentemente interrompido algumas horas por dia.
“E quando o sr. Seca, tesoureiro da junta, ia
abrir o depósito, toda a gente sabia, porque
atravessava a aldeia com uma motoreta que
fazia barulho. ‘Olha lá vai o Seca abrir a água.’
E pronto, a aldeia toda ia a correr abrir as
torneiras, para encher garrafões, não fosse a
água faltar mais tarde”, conta Helena.
Não resultava muito bem. Como todos
abriam as torneiras, os da parte de cima da
aldeia não chegavam a ter água “e era sempre
uma guerra entre os de cima e os de baixo”.
Quanto aos garrafões, acabavam muitas vezes
por ser despejados sem serem usados. Eram
tempos de muito desperdício: “Torneiras abertas, água da rede para regar as hortas, tudo.”
A partir do momento em que os contadores
foram colocados nas aldeias e a água passou
a ser paga, a missão do sr. Seca tornou-se obsoleta. “A pessoas começaram a controlar o
contador e a reduzir os consumos”, diz Rui
Caseiro, e os furos começaram a aguentar-se
mais — enfim, este ano voltaram a falhar, mas
este ano não é exemplo.
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 17
Perto da aldeia de Moreanes, na encosta
de um monte florido, as filas de carros são
comuns, dizem-nos. Na tarde em que a 2 percorre a estrada, José, 69 anos, e a sua mulher,
de 72, fazem o que sempre fizeram: estacionam o carro com o porta-bagagens apinhado
de garrafões de plástico vazios e esperam mais
de uma hora pela sua vez. Quando os encontramos, enchem garrafão atrás de garrafão,
algo embaraçados, porque a fonte está em
terras privadas. Usam esta água para beber
e cozinhar porque a da rede, dizem, “cheira
a mofo”.
“As pessoas acham que a água que vem na
torneira é má. Mas o que lhes cheira mal é a
desinfecção. E o sabor que sentem é a cloro”,
garante Jorge Rosa, sublinhado que todos os
parâmetros de qualidade são cumpridos. “Já
a água das fontes antigas e dos poços está,
muitas vezes, contaminadíssima com pesticidas, animais mortos, tudo. E não é de todo
controlada.”
Mas na fila para a fonte ninguém tem dúvidas. “Sempre ouvi que esta água faz bem ao
estômago.”
SEM ÁGUA AO LADO DA BARRAGEM
No Norte do país, só no mês de Março, caíram 12 mm de chuva, contra os 70 habituais.
Até o abastecimento da cidade de Bragança
sofreu — com a câmara a ter de recorrer à
captação de água em locais que só costumam
ser usados em Junho, Julho.
Grijó como Moredo, outra aldeia de Bragança quase deserta, rodeada de castanheiros e
onde uma bucólica fonte de pedra debita água
ininterruptamente — irónico, dada a situação
—, foram duas das que já precisaram da água
das cisternas dos bombeiros, porque as torneiras ameaçavam secar. Álvaro Ramos, que
há 82 anos é habitante de Moredo, já não se
lembra de quando tinha sido a última vez que
tal tinha acontecido.
Os apelos à população de Bragança para
que poupe água sucedem-se. E Caseiro garante que não é só quando há seca — o município
tem “problemas estruturais de armazenamento de água”, que só deverão ser resolvidos
quando for construída a nova Barragem das
Veiguinhas. A câmara dá o exemplo. “Colocámos redutores de caudal nos equipamentos
públicos, substituímos as plantas dos espaços
verdes por arbustos que precisam ser menos
regados...”
Numa breve visita ao mercado municipal
da cidade, pergunte-se a alguns vendedores o
que fazem, nas suas casas, para poupar água.
A florista deixou de lavar o carro com a mangueira. A vendedora de mel deixou secar a
relva do jardim e garante que lá em casa ninguém toma banho de imersão... a mensagem
parece passar.
Perante a perspectiva de continuar a chover
pouco, o município está a preparar um plano
de emergência, que poderá até envolver o
Exército, para garantir água às populações.
Mas não só. Caseiro admite que uma das propostas desse plano poderá passar por mexer
nos tarifários de novo.
A questão do preço da água também tem
sido várias vezes debatida em Mértola. Desde
que tomou posse, o presidente da câmara,
Jorge Rosa, já mexeu no tarifário duas vezes, o
18 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
que acabou por ser aceite por uma população
“que sente na pele” os efeitos de cada ano em
que chove pouco. “Tínhamos perdas na rede
da ordem dos 60% — havia rupturas e muita água que simplesmente não era contada.
Cada monte tinha cinco ou seis fontanários
aos quais as pessoas ligavam as mangueiras
e regavam as hortas, davam de beber aos animais. Ninguém pagava nada.”
As sucessivas secas fizeram toda a gente
pensar. Nos últimos anos, houve obras nas
condutas e as rupturas foram reduzidas. A
taxa de desperdício ronda os 5% nas redes
novas. Apostou-se em “campanhas de sensibilização itinerantes, casa a casa, monte a
monte”. Instalaram-se contadores em todos
os edifícios públicos, de balneários a casas
mortuárias. “Vou-lhe dar um exemplo do que
aconteceu: há uma freguesia que gastava mil
m3 por mês, em regas de jardins. Agora gasta
250 m3.”
O POSTAL TÍPICO: A FILA PARA A FONTE
Os problemas de abastecimento de água à
população de Mértola são antigos. Metade
do concelho bebe água vinda da albufeira do
Enxoé. A outra metade é abastecida por mais
de cem furos artesianos, que têm pouca capacidade e precisam mesmo de chuva para
se irem repondo.
Este sistema tem, evidentemente, impactos
ambientais negativos: “Estamos a usar lençóis
que devíamos manter”, diz Jorge Rosa. E sai
caro: “A água é de má qualidade e é preciso ter
um sistema de desinfecção em cada localidade,
o que é muito oneroso.” Há soluções à vista: a
ligação do Enxoé ao Alqueva está pronta para ser activada, por exemplo. Mas a verdade é
que, historicamente, a população das aldeias
de Mértola parece ter mais confiança nos seus
próprios furos, ou nas fontes, do que na água
da rede, que se deteriora em tempos de seca.
Mais a norte, não muito longe de Alqueva, na
aldeia que deu o nome à barragem, o cenário
dos garrafões repete-se, como explicam Joaquim Caeiro, José Mendes e mais dois amigos,
todos na casa dos 70, 80 anos, sentados à mesa
de um café no largo da igreja. “Vamos todos à
Amieira, a 14 km, a uma fonte muito boa que lá
há. Antigamente ia-se de burro, agora, quem
pode vai de carro.”
Que quem vive à beira do maior reservatório
de água de Portugal não beba a água que lhe
corre na torneira parece anedota, mas não
é — “A nossa água vem do Alvito e vem cheia
daquele cheiro a desinfectante. As pessoas
nunca se habituaram.”
O facto é apenas mais um que ajudará a explicar por que razão a barragem que há décadas enche as páginas dos jornais é tão pouco
acarinhada na aldeia de Alqueva. A empolgada
voz off do vídeo promocional que passa no
centro de atendimento ao visitante de Alqueva, num edifício junto ao paredão da barragem, bem enaltece esta “água que chegou” e
fez surgir “culturas que outrora o chão negava”, “prados imensos, sustento para o gado,
fruta dourada”. Mas, na povoação, Joaquim,
José e os amigos encolhem os ombros.
Os que cultivam preferem usar a água de
furos, que não pagam, à da barragem. Quanto aos turistas, que supostamente iam ajudar
a desenvolver a economia local, pouco passam por aqui. O esvaziamento da aldeia não
foi travado — “As três escolas que aqui havia
está tudo fechado.” Não surgiram postos de
trabalho. As casas encareceram. Enfim, nem
a água da torneira lhes sabe bem...
No Algarve, em Odelouca (concelho de Silves), voltamos a encontrar mais uma povoação que dá o nome a outro grande projecto
hídrico, mas que não bebe água da rede. Neste
caso, porque a ligação nunca foi feita.
Carlos Alves, um agricultor de 79 anos que
não se conforma com o laranjal queimado pela geada negra (“tudo queimado, tudo queimado”, repete enquanto corta laranjas, uma
atrás da outra, para mostrar aos jornalistas),
tem um poço nas traseiras da casa onde vive
e um furo à frente do portão. E é dessa água
que bebe. “Aqui ninguém tem água da rede,
há uns dez anos que nos prometem, mas nada.
Quem não tem furos pede emprestado. Ou
vêm os bombeiros...”
A barragem de Odelouca, que Carlos Alves,
apesar de viver ali tão perto, ainda não viu, foi
construída com a promessa de que o Algarve
ganharia capacidade para ser sustentável no
abastecimento de água pública mesmo em
períodos de seca. As obras chegaram a ser
suspensas, depois de uma queixa da Liga Para
a Protecção da Natureza (LPN), que alertava
para os impactos ambientais negativos. Esta
ONG sustentava ainda que o que se pretendia,
no fundo, era libertar água para os campos
de golfe — o tipo de projecto turístico de que
se fala sempre que se discute desperdício de
água no país.
João Paulo Monteiro, professor da Universidade do Algarve, faz questão de contestar
o que defendem muitos ambientalistas: “Os
campos de golfe não têm um impacto muito
significativo. E usam técnicas de rega que se a
agricultura incorporasse andava para a frente
20 anos.”
Mas voltando a Odelouca: o projecto acabou
mesmo por ser concluído. E, em Fevereiro
deste ano, Artur Ribeiro, administrador da
Águas do Algarve, garantia que, mesmo que
não chovesse nos próximos três anos, a água
nas torneiras não faltaria porque, depois da seca de 2005, a empresa tinha feito o “trabalho
de casa”. O projecto Odelouca, precisamente,
fez parte do “trabalho de casa”.
As melhorias no abastecimento público da
região não passaram, contudo, pela terra que
dá o nome ao projecto. Pelo menos para já.
E tudo porque a tubagem que levará água da
rede até à povoação — àquela e a outras — tem
de atravessar oito pontes, que pertencem à
Estradas de Portugal, que ainda não autorizou a obra.
“Neste momento (depois de inúmeros acertos e contrariedades, que incluíram a falência da empresa que primeiramente teve a seu
cargo o desenho do projecto), o processo está
prestes a ser concluído”, garante a assessora
de imprensa do município, Sandra Moreira.
Odelouca continuará à espera. As caixas
onde os contadores deverão ser instalados já
lá estão, à porta das casas.
A SEARA QUE ESCAPOU À SECA
As ovelhas de
Oliveira do
Hospital deram
menos 70% de
leite, enquanto
no Alentejo há
reservas de palha
a esgotar-se
(página anterior).
Em Olhão, Detlev
van Rosen conta
como mudou o
que fazia depois da
seca de 2005. E um
agricultor de Silves
mostra as laranjas
queimadas
Regresso à agricultura. Quem chega ao campo
de triticale (um cereal híbrido que resulta do
cruzamento do trigo com centeio) de Francisco Palma, 42 anos, não consegue disfarçar a
surpresa. A planta dá-lhe pela cintura.
Estamos a 5 de Abril, no concelho de Beja. E
ninguém diria que, tal como em tantos outros
locais, onde as searas mal descolaram do chão,
também aqui choveu pouco. “Tu tens é uma
boca da EDIA [Empresa de Desenvolvimento
e Infra-Estruturas do Alqueva] escondida aí,
a regar isso, e não dizes nada!!!” — grita um
vizinho de Francisco, da janela do jipe, depois de abrandar e de se surpreender com o
tamanho do cereal.
O agricultor sorri. Não há rega nesta seara.
E a água do Alqueva ainda não chegou aqui.
O que aconteceu então?
Francisco faz sementeira directa, o que significa que não mobiliza o solo — “Se metesse
aqui uma alfaia secava-o todo, assim mantenho a humidade de um ano para o outro.”
Para além disso, semeou um pouco mais cedo
do que habitual, em Outubro. “E como em
Novembro choveu bastante a semente germinou bem” e a falta de chuva que se seguiu fez
menos mossa. Nestas coisas, diz, não basta
saber. “A sorte conta.”
Importante é também escolher as variedades de plantas que mais se adequam (há diferentes tipos de triticale, uns mais resistentes à
seca, outros menos, por exemplo). E apostar
numa rotação de culturas equilibrada, que
ajude a manter o solo com boa qualidade —
esta mesma terra tinha no ano passado ervi-
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 19
lhas, “que ajudam a fixar azoto” São técnicas
que se usam em diferentes partes do mundo,
garante. “E se resultam nuns locais, por que
não noutros? Temos de nos modernizar. E o
sequeiro acaba por ser mais sustentável.”
Francisco Palma está longe de corresponder
ao perfil típico do agricultor português. As
estatísticas dizem que cerca de metade dos
que estão activos têm mais de 65 anos e que
só 10% têm mais do que o 2.º ciclo do ensino
básico. Já Francisco tem um curso superior
e iniciou um doutoramento. Há uns anos, o
pai, também agricultor, deu-lhe carta branca
para fazer o que entendesse. E ele, que tinha
acabado de fazer um curso de gestão agrícola
em Inglaterra, aceitou o desafio.
Hoje cultiva triticale, girassol, tremocilha,
trigo mole, tremoço doce (“Sabia que os tremoços que comemos quando bebemos imperiais vêm quase todos da Austrália?”). E tem
ideias muito claras sobre gestão racional da
água, questão central na agricultura. “A seca
é um fenómeno tão recorrente que Portugal
já devia ter mecanismos diferentes para reagir... ela está no ADN do nosso clima e temos
de saber viver e conviver com ela.”
O que é que falta? Por exemplo, um plano
para a agricultura “que nos diga no que é que
devemos apostar”. À falta dele, o que se tem
visto no Alentejo é “olivais a nascer como cogumelos” e gente a querer imitar o que faz o
vizinho: “Há subsídios? Vamos lá todos fazer
o mesmo!”
Até nas zonas onde o regadio de Alqueva já
chegou pouco mais se tem visto do que “um
aumento brutal de olival e vinha”, diz Maria
José Roxo. Partiu-se do pressuposto de que
a água resolve tudo, quando, para haver desenvolvimento, é preciso “agricultores com
formação, bons solos, culturas adequadas,
acompanhamento tecnológico, conhecimento
dos mercados”.
Rita Alcazar, bióloga da LPN, aponta ainda
o dedo ao que lhe faz lembrar as explorações
mineiras que sugam o que há para sugar até
não restar nada: “Cada oliveira num olival superintensivo consome 80 litros de água por
dia — o dobro do que gasta uma pessoa que
seja muito gastadora. É insustentável. Mas são
estes olivais que têm vindo a substituir muitas
searas de sequeiro, e que estão a esgotar os
solos, com as doses maciças de químicos que
lhes colocam.”
Consensos, nesta matéria, há poucos. Uma
coisa é certa: “A água é a molécula mais estável
que existe. Ela evapora-se, mas há-de voltar a
cair em forma de chuva” algures noutro sítio,
lembra Gomes da Silva. Por isso, quando se fala de “uso eficiente da água”, isso significa que
“queremos mantê-la, dentro do possível, na
região onde ela é escassa”. Medidas para que
isso aconteça há muitas. E deviam ser debatidas por toda a população, defende Maria José
Roxo. “Devia ser feita uma campanha nacional
de sensibilização para o uso eficiente da água.
No passado, o seu uso era muito mais racional
e há todo um conhecimento (imaterial) que
se está a perder. Instalou-se uma atitude de
consumismo, o que é grave.”
A VINHA QUE BEBE DO CÔA
10 de Abril, 11 da manhã, mudança radical de
paisagem. E uma estratégia diferente para lidar com a seca. Sónia Teixeira trabalha para
a conhecida casa Ramos Pinto e tem a função
de conduzir os turistas à Quinta da Ervamoira, em Vila Nova de Foz Côa. Acha que o cenário — 450 mil pés de videira plantados ao
alto numa das zonas mais áridas do Douro
Superior — merece uma banda sonora especial. Por isso, no seu jipe, ouve-se As Quatro
Estações, de Vivaldi.
20 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
Chuva este ano? Pouca, garante. E, apesar
das nuvens cinzentas que cobrem a vinha, os
dados fornecidos pela estação meteorológica de Ervamoira são claros: entre Novembro
e Março, registou-se uma precipitação acumulada de 110 mm, contra 259 mm no ano
passado.
Em Ervamoira contudo, pelo menos por
agora, não há sinal de que a seca tenha afectado as vinhas. Por uma razão: são regadas.
A rega de vinha no Douro, a primeira região vinícola demarcada e regulamentada do
mundo, só é permitida em condições excepcionais, em situações extremas de défice hídrico, reconhecidas pelo Instituto dos Vinhos
do Douro e Porto.
João Nicolau de Almeida, administrador e
enólogo da Ramos Pinto, defende que, com
um clima cada vez “menos regular”, ela é
essencial. “Ainda há a ideia de que a rega é
para fazer aumentar a quantidade. Mas não.
Fizemos vários estudos e concluímos que o
vinho é melhor se há rega.”
Um sistema gota a gota, que se alimenta
a partir do Rio Côa, assegura que as vinhas
recebem a quantidade de água exacta que
necessitam em cada momento. Para além
disso, outros cuidados são tidos. “A escolha
dos porta-enxertos, a poda, o tratamento das
terras, tudo isso interfere na quantidade de
água que a planta retém.”
Máximo de Almeida, 78 anos, um pequeno
vitivinicultor (3 hectares) da zona do Côa não
tem uma opinião definitiva sobre um assunto
definitivamente polémico, sobretudo numa
região onde a água não abunda. Certo é que
as suas vinhas, não regadas, estão atrasadas
um mês. “E toda a gente está a dizer que
vai haver menos vinho por causa da falta de
água.”
Ou seja, será mesmo a rega a solução?
Depósito de água,
em Bragança
(à esquerda);
Vinha na Quinta
da Ervamoira, no
Douro Superior,
onde choveu
menos de metade
do registado no
ano passado.
Aqui a regra é a
excepção que pode
fazer a diferença
A DANÇA DAS AVES E DAS VACAS
No Alentejo, na Zona de Protecção Especial
para as Aves (ZPE) do Campo Branco, a guerra
contra a seca também se trava com os olhos
postos nas aves.
Rita Alcazar faz parte da equipa da LPN,
em Castro Verde, que está a tentar que não se
repita o que aconteceu em 2005. Na altura,
houve menos água disponível — “a abetarda,
por exemplo, bebe água, ao contrário de outras aves”, diz —, menos alimento e “os pastos
estavam tão debilitados que não havia condições para elas fazerem os ninhos”. Resultado:
em 2006, nasceram menos crias e a taxa de
mortalidade jovem subiu. O que é dramático
quando se sabe, por exemplo, que em Castro
Verde vivem 1300 abetardas (uma das maiores
aves voadoras do mundo) que representam
80% da população do país.
Desde então, bebedouros foram espalhados
em vários locais nesta paisagem despida de
árvores, casa de algumas espécies ameaçadas.
E “faz-se o espalhamento de sementes à mão”,
porque há menos alimento naturalmente disponível. Estando numa ZPE, os agricultores
recebem compensações pelas medidas que
põem em prática — por exemplo, o cultivo de
determinadas áreas de leguminosas, especificamente para as aves se alimentarem.
Todos parecem trabalhar com gosto nisto.
José da Luz, 67 anos, criador de vacas, é um
deles. À medida que vai mostrando a propriedade onde tem 180 animais, mostra também
os refúgios das aves. “Vêm muitos turistas”,
conta com orgulho. “Ficam horas a olhar.”
O entusiasmo esvai-se quando chega o momento de repetir um ritual que a seca impôs —
já não para cuidar das abetardas, mas das suas
vacas. Um funcionário enche uma carrinha
de caixa aberta com “tacos de farinha”, que
José da Luz compra aos sacos de 500 quilos. E
dirigem-se para uma zona de pastoreio.
Mal avistam a carrinha, as vacas, algumas
com 600 kg, começam a correr em direcção
a ela com uma agilidade tal que parecem não
ter mais de 60. Vêm aos ziguezagues, como se
dançassem. José da Luz conduz devagarinho a
viatura pelo campo, o funcionário vai atirando ração. E as vacas disputam com violência
cada pedaço. “Esta operação é uma coisa que
costumamos fazer até meados de Janeiro. Em
Abril é impensável. O pasto devia chegar.”
As vacas do Campo Branco, como as ovelhas
da Serra da Estrela, também andam com fome.
Já as abetardas parecem bem. Março e Abril
são meses de paradas nupciais e elas estão
bastante concentradas nisso.
O MILAGRE DA TORNEIRA
A
brir a torneira é um acto banal, que qualquer um faz de
forma irreflectida. Basta girar
o manípulo e a água sai. E potável: cerca de 98% das análises à
água no país cumprem os padrões
exigíveis de qualidade. Por detrás
deste pequeno milagre quotidia-
no está um complexo sistema de
barragens, furos, rios, estações de
tratamento, laboratórios, adutores, reservatórios. Os sistemas de
abastecimento de Lisboa e Bragança exemplificam como a água pode percorrer diferentes caminhos
até chegar às nossas torneiras. São
sistemas distintos. O primeiro tem
uma rede integrada, alimentada
por poucas captações, sobretudo
uma grande barragem, a de Castelo de Bode. O segundo também
capta a água de uma barragem,
mas depende de mais de uma centena e meia de furos para servir
todas as freguesias do concelho,
numa rede fragmentada em inúmeras zonas de abastecimento.
Dois retratos de um país onde
cada cidadão gasta em média 168
litros de água por dia. Infografia de
Cátia Mendonça, Joaquim Guerreiro
e Ricardo Garcia
Lisboa
Sistema da EPAL
Há 14 reservatórios
e diferentes zonas
de distribuição,
conforme
a altitude
A EPAL serve 26 concelhos com
água sobretudo de Castelo de Bode.
Lisboa recebe 27% do total
Castelo de Bode
LEIRIA
67%
OURÉM
BATALHA
NAZARÉ
ALCOBAÇA
PORTO
DE MÓS
CALDAS DA RAINHA
Cota/m
90 a 120
Superior
Principais
30 a 60
condutas
Reservatórios 0 a 30
SANTARÉM
RIO MAIOR
PENICHE
BOMBARRAL
Alta
Média
Adutor
Alvilela
CADAVAL
LOURINHÃ
Baixa
Estação de tratamento
de Vale da Pedra
Em 1835
Nessa altura, Lisboa era abastecida pelo Aqueduto das Águas Livres,
construído entre 1731 e 1799, e distribuída através de chafarizes
ALENQUER
Galerias de distribuição
aos chafarizes
ODIVELAS
MAFRA
LOURES
Belas
SINTRA
AMADORA
SINTRA
Reboleira
Aqueduto sobre
o vale de Alcântara
Damaia
Alfragide
VILA FRANCA
DE XIRA
CASCAIS
9%
2,5 m
1,8 m
1,5 m
LOURES
Adutor
Tejo
Lisboa
Mãe d´Água
60 cm
30 cm 10 cm
Diâmetros
Máximo
da conduta
do Tejo
À saída
do Castelo
de Bode
Conduta
Saída do
de Vila Franca reservatório
de Xira
de Telheiras
Baixa
Ajuda
58
nascentes
Alcântara
71€
€
8,4
litros/hab
90.000
habitantes servidos
Angra do Heroísmo
Évora
5
galerias na cidade
24
chafarizes
1
reservatório
Fontes: EPAL; Câmara Municipal de Bragança; ERSAR; INSAAR; Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água; INE
Ori
Como Portugal
usa a água
Lajes das Flores
9€
€
61€
€
51€
€
58
km
de aquedutos
Canalização
de rua
Monção
Monsanto
OEIRAS
5,5 milhões
de litros
Fac
Captações superficiais
Captações subterrâneas
Adutor
VF Xira
-Telheiras
Adutor
Circunvalação
LISBOA
A água leva dois dias de
Castelo de Bode até às
torneiras de Lisboa, a uma
velocidade de 0,5 a 1,0 m
por segundo
Furos
Aquedutos secundários
Vale de
Carenque
Rio Tejo
Cons
CONSTÂNCIA
Adutor
Castelo
de Bode
24%
TORRES VEDRAS
Aqueduto principal
Adutor
Médio Tejo
Captação
desactivada
ÓBIDOS
Zonas
60 a 90
ALCANENA
Olhos de Água
Dens
Estação de
tratamento
da Asseiceira
TORRES NOVAS
Factura da água
é desigual pelo país
A curva dos preços da água em todos
os concelhos do país. A factura mais
cara é 25 vezes superior à mais barata
Agricultura
87%
Barragem
Serra Serrada
Futura barragem
de Veiguinhas
Uma nova barragem será agora
construída para complementar a
de Serra Serrada, insuficiente para
o consumo crescente de Bragança
Sistema municipal
de Bragança
Bragança
Com 105 zonas de abastecimento
diferentes, a cidade recebe água
sobretudo de uma barragem
Espinhosela
Rio de Onor
Parâmio
França
Carragosa
Aveleda
Lisboa
Rabal
Deilão
Gondesende
Lisboa
Baçal
Meixelo
Bragança
Babe
Castrelos
Sta. Maria
Gimonde
C. Avelãs
Sé
População
Bragança
Gostei
Carrazedo
Samil
Alfaião
Densidade populacional
35.341
Zóio
6447
167
30
Consumo doméstico total (m3/ano)
27.042.848
furos servem
as freguesias
do concelho
1.452.094
Grijó de
Parada
Faílde
Sortes
223€
€
S. P. de
Parada
Rebordãos
(hab/km2)
São João
da Madeira
Quintanilha
Milhão
Nogueira
547.631
S. Julião de
Palácios
Rio Frio
Mós
Pinela
Rebordaínhos
Outeiro
Parada
Rossas
Salsas
Pombares
Coelhoso
Calvelhe
Litros per capita por dia
135
Sendas
Q. Lampaças
99
Serapicos
Paradinha
Nova
Macedo
do Mato
Guarda
149€
€
Factura anual para 120 m3 (euros)
93
Adutora existente
105
Reservatório existente
Izeda
Captação existente
Perdas na rede
10%
Porto
20%
130€
€
Coimbra
113€
€
Faro
0 cm
104€
€
Lisboa
ção
Dados nacionais
93€
€
Ribeira Grande
Factura média anual
por nível de consumo
83€
€
142€
87€
34%
Furos
Origem
Barragens e rios
Água captada
(1000m3/ano)
25% de perdas
66%
60 m3
Distribuída
Urbano
8%
48€
Água tratada
120 m3
180 m3
Outros usos
Consumo doméstico
População
servida
Consumo
diário per
capita
97%
168
Indústria
5%
926.923 823.291 693.074 594.393
litros
ALEXANDRA PRADO COELHO
TEXTO E FOTOGRAFIA
QUER REDUZIR A SUA
PEGADA DE ÁGUA?
FECHE
A TORNEIRA
E TORNE-SE
VEGETARIANO
F
oi uma corrida, mas fez-se. Tinha-me
proposto reduzir para metade o tempo de duche com a torneira aberta.
No primeiro dia tinha cronometrado
o tempo do duche (com lavagem da
cabeça) e concluí que estivera com a
torneira aberta durante cinco minutos. Por isso, o objectivo no segundo
dia era reduzir para dois minutos e
meio. Rápido, mas possível. Tapei o
ralo e calculei que no final tivessem ficado na
banheira cerca de 20 litros de água.
24 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
Fizemos a experiência
de tentar reduzir para
metade a quantidade de
água que consumimos
num dia. Conclusão:
é possível reduzir-se
substancialmente. Mas se
continuarmos a comer
bifes, cada passo nosso
abre um charco
Este esforço todo para quê? O jornal pediume um trabalho que me permitisse calcular
os meus gastos diários de água — a minha
“pegada de água”. A ideia inicial era tentar
viver uma semana com a mesma quantidade
de água com que vive uma pessoa num dos
países com menor consumo: Moçambique,
Ruanda, Haiti, Etiópia e Uganda consomem
15 litros ou menos de água por pessoa por dia.
Quinze litros não me pareceu exequível, mas
confesso que achei que com 30 litros conseguiria organizar-me. Ingenuidade.
A ideia evoluiu depois para uma experiência mais simples — calcular os meus gastos
diários e tentar reduzi-los para metade. Havia, logo à partida, problemas práticos. Como
contar a água gasta? Fechei os ralos e contei
a água que ficava, o que deu algo como um
litro de cada vez que lavava as mãos e quase
dois quando lavava os dentes (mesmo mantendo a torneira fechada enquanto escovava).
Por este andar, aproximava-me rapidamente
dos 15 litros.
O site www.aguasdoalgarve.pt/ permite-nos
calcular quanto gastamos em casa. Consulto-o
e fico a saber que, se fechar a torneira e diminuir o tempo do duche para cinco minutos,
consigo reduzir o consumo de água para cerca
de 80 litros, o que não bate muito certo com
as minhas contas. Se eu tinha, no segundo
dia, tomado um banho de 2,5 minutos e tinha 20 litros na banheira, em cinco minutos
teria 40 litros, ou seja metade do que dizia o
site, mas imagino que dependa da abertura
da torneira.
O duche oferece duas dificuldades adicio-
Entre o primeiro
e o segundo dia
desta experiência,
houve poupanças
significativas
no duche, nas
descargas de
autoclismo, na
lavagem manual
da loiça e na
substituição de um
bife com batata
ao almoço por
legumes e arroz
nais: a primeira são os segundos preciosos
que se perdem enquanto se espera que a água
aqueça; a segunda é o uso da espuma de banho hidratante, que, ao contrário do sabonete, custa muito mais a tirar do corpo (e não
imagino quanta água custe a produzir). De
qualquer forma, lavando os dentes e tomando banho (ainda o dia estava a começar) já
tinha gasto no primeiro dia da experiência
pelo menos 43 litros.
A isto soma-se o autoclismo. Cada utilização,
diz o site, corresponde a um gasto de dez li-
tros — e lembro-me imediatamente das vezes
que descarrego o autoclismo apenas porque
deitei na sanita um papel que usei para limpar alguma coisa. Eles dão um conselho: se
colocarmos uma garrafa de 1,5 litros dentro
da caixa autoclismo, cada descarga passa a
corresponder apenas a 8,5 litros.
Sair de casa traz algum alívio a esta contagem. Não bebo muita água durante o dia
(sei que devia beber mais, mas julgo que não
ultrapassa 1 litro), tento lavar as mãos rapidamente (num dos sítios onde vou, há, por
cima do lavatório um autocolante que diz
“ensaboe as mãos com a torneira fechada”
e mostra que com a torneira aberta gastamos
15 litros enquanto que se a fecharmos gastamos apenas 2), e uso a descarga menor nos
autoclismos.
As coisas pioram à noite, com o regresso a
casa. Já sem contar com a água utilizada para
fazer o jantar, há um gigantesco problema que
é o da lavagem da louça. Ponho um alguidar
para contar a água gasta — e, na verdade, parte dela é apenas para poder colocar a louça
mais limpa dentro da máquina. Segue-se uma
contagem assustadora: 7 litros (passar alguns
pratos e talheres por água); 6 litros (primeira
passagem por água de uma panela grande);
6 litros (a lavagem mais profunda da mesma
panela e dois copos que não vão à máquina);
8 litros (lavagem de duas frigideiras). Um total de 27 litros, sem contar com a máquina
de lavar a louça (embora esta não funcione
todos os dias).
Mas a verdadeira tragédia foi quando, depois de mais umas leituras de sites sobre pegadas de água, resolvi incluir na contagem a
alimentação. Não a água usada para cozinhar
os alimentos, mas sim o gasto de água associado a cada alimento — a nossa pegada de
água indirecta. O trabalho está facilitado pelo
The Virtual Water Project, que existe em site
e poster e também em aplicação para smartphone. Descarreguei-a para o iPhone para
poder contabilizar a pegada de água de cada
alimento.
Os produtos aparecem em sombra e, ao
lado, em azul, gotas de água correspondentes
à quantidade necessária para produzir cada
um deles. Até aí tudo bem: percebemos que
um bife custa mais água do que uma batata.
O problema é quando lemos os números mais
pequenos ao lado. Comecemos pelo bife. A
aplicação coloca-nos como valor médio um
bife de 300 gramas, que custou 4650 litros
de água. Puxamos o cursor um pouco mais
para trás, até situar o bife nuns mais aceitáveis 150 gramas, mas, apesar de melhorar, o
panorama continua dramático: 2325 litros
de água.
De repente, os dois litros da lavagem dos
dentes parecem irrelevantes, quando, no
primeiro dia desta experiência comi precisamente um bife ao almoço, o que tornou a
minha pegada de água um autêntico lago. E
se as batatas até são relativamente inofensivas
(150 gramas só implicam 37 litros), o problema
é que, numa tentativa de ser mais saudável,
troquei as batatas fritas por arroz, e 70 gramas
passaram a implicar 238 litros de água.
A solução? Comer vegetais. É o que decido
fazer no almoço do segundo dia da experiência. O tomate corre muito bem (18 litros de
água por 100 gramas, é um dos alimentos que
menos água consome), mas a tarte de legumes
é mais difícil de calcular. Leio num texto sobre
o consumo de água que a Itália é um dos países no topo do grupo dos maiores gastadores
— não tanto pelo consumo per capita diário
(380 litros) mas sobretudo pela forma como
comem e como se vestem. Preparados? Uma
pizza Marguerita corresponde a 1200 litros de
água, enquanto um quilo de massa (esparguete ou outra) corresponde a 1900 litros.
Não há forma de fazer isto bem, é a conclusão possível. Mesmo assim, há um indicador
que bate todos os outros, que é o relativo à
carne (é necessária muita água para as rações
que alimentam os animais), e que explica, por
exemplo, a enorme pegada dos americanos:
um americano come cerca do dobro da carne que um britânico consome, por exemplo,
e quatro vezes e meia mais do que a média
global.
Há, claro, o risco de enlouquecermos se
tentarmos calcular a pegada de água de tudo
o que comemos, desde o leite com cereais da
manhã (2,5 dl de leite são 200 litros de água,
não consegui calcular a “pegada” dos cereais) e ainda o sumo de laranja, passando pelo
lanche (mais leite, ou seja, mais 200 litros de
água, e ainda uma torrada, 100 gramas são
perto de 130 litros), até ao jantar. E, a menos que nos queiramos tornar vegetarianos
(e mesmo assim, atenção, nada de chocolate:
100 gramas são 2400 litros de água), temos
pouco controlo sobre este consumo indirecto de água, embora possamos, claro, reduzir
substancialmente a quantidade de carne que
ingerimos.
Concentremo-nos então novamente nos gastos directos. No segundo dia da experiência,
sigo o conselho do site e lavo os dentes usando um copo (era assim que fazia quando era
pequena, em que altura mudei?), o que passa
de dois litros para cerca de dois copos, ou seja
300 ml. Tomo o tal banho no tempo recorde
de 2,5 minutos e guardo a água para ir aproveitando para usar na sanita (pouco prático,
convenhamos, mas lembro-me de, quando
era pequena, a água faltar em Lisboa, e haver
um aviso prévio que nos levava a encher todos
os recipientes que tínhamos à mão e a dosear
muito bem a água que gastávamos).
A noite continua a ser um problema. Pôr a
louça suja na máquina custa-me, sobretudo
porque só a vou pôr a trabalhar no dia seguinte, quando estiver cheia. Mas o que mais trabalho dá é lavar o que não pode ir à máquina
usando dois alguidares, um com detergente
e outro com água limpa. Demora mais tempo e a sensação é a de que não fica tão bem
lavada, embora sempre se tenha feito assim,
e muita gente continue a fazer assim. Gasto
ao todo uns 16 litros. Poupei 11 em relação ao
dia anterior.
Com um jantar de frango com massa, depois do almoço sem carne, o duche reduzido,
os alguidares cheios, o balanço é certamente
menos mau do que no primeiro dia. Bastaria,
aliás, não ter comido um bife para melhorar
consideravelmente. Por curiosidade, olho para
a conta da água. Numa casa de três, o consumo
de água custa 15 euros por 60 dias (o resto da
conta são taxas várias). Se reduzirmos para
metade, com todo o esforço que isso implica,
poupamos 3,25 euros por mês.
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 25
Portugal tem pequenas bolsas de água
espalhadas por todo o lado mas quase
ninguém dá por elas. Os charcos temporários são uma das melhores estratégias contra a falta de água. Mas as secas
fora de época estão a ameaçar estes refúgios para crustáceos do tempo dos dinossauros, rãs, salamandras, tritões, libélulas e plantas flutuantes. Há quem queira
levar charcos para os pátios das escolas
CHARCOS
UM REFÚGIO
DE VIDA QUANDO
PÁRA DE CHOVER
HELENA GERALDES TEXTO JOANA BOURGARD FOTOGRAFIA
26 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
J
á houve uma rã, que se chamava Fénix, mas agora está no laboratório,
dentro de um frasco com álcool, diz
Ricardo, dez anos, já conformado
com a triste realidade, mesmo no
meio do charco da Escola EB 2,3 D.
Pedro IV, em Massamá, no concelho de Sintra.
O charco foi inaugurado no 3.º
período do ano passado, no âmbito da campanha nacional Charcos com Vida,
promovida pelo Cibio (Centro de Investigação
em Biodiversidade e Recursos Genéticos da
Universidade do Porto). A escola de Massamá é uma das 57 inscritas nesta campanha,
cujo propósito é divulgar, conservar e criar
charcos temporários, corpos de água que variam entre o tamanho de uma poça e quase
um hectare.
Estes pequenos habitats, espalhados por
campos agrícolas ou bosques, enchem-se no
período das chuvas e secam no Verão, criando
condições de vida extremas. São considerados
pela União Europeia como um dos habitats
prioritários para a conservação da natureza,
no âmbito da Rede Natura 2000, ainda que
nos últimos anos tenham vindo a desaparecer por causa da agricultura intensiva, por
exemplo. A campanha Charcos com Vida quer
ajudar os ecossistemas do Mediterrâneo a
adaptarem-se melhor às variações climáticas,
num país com 63% do território continental
em desertificação.
Dos charcos temporários dependem insectos, plantas, aves e anfíbios, especialmente
a rela-comum, o sapo-corredor, o sapo-deunha-negra e o sapinho-de-verrugas-verdes.
E existem dezenas de espécies de pequenos
crustáceos, como o camarão-fada, que só vivem nestes locais e que apuraram, ao longo de
milhões de anos, estratégias para sobreviver
à falta de água: enterram os seus ovos nos sedimentos, à espera das primeiras chuvas para
eclodir e começar tudo de novo.
Na escola de Massamá, é esta vida que está
a começar a colonizar o pequeno charco, rodeado de árvores. De cócoras e mangas arregaçadas, cinco crianças estão a tirar pedras,
lixo e a procurar vida animal com camaroeiros. São o Clube escolar Charcos com Vida,
vigilantes daquele pequeno espaço, criado a
um canto da escola por alunos e funcionários.
É um buraco escavado no solo, impermeabilizado com tela e, no centro, com uma pequena
massa de água onde foram colocadas pedras,
alguma terra e plantas. À volta, flores amarelas
e lilases, por onde se passeiam dois pombos
a debicar pedaços de papo-seco esquecidos
no recreio.
Beatriz, 11 anos, espeta uma cana graduada no charco para medir a sua profundidade.
“Hoje tem 11 centímetros de água, professora.
Não é muito...”, diz, com orgulho de quem
sabe, à docente Maria Gonçalves que observa
a actividade científica com olhar atento.
Iara, dez anos, mergulha o camaroeiro amarelo na água castanha. “As pessoas olham para
aqui e dizem que não há vida. Mas há, está
cheio de vida”, garante, ao mesmo tempo que
procura provas do que diz.
Mariana, 11 anos, e David, dez, medem o
pH da água e removem pedras que colegas
menos entusiastas atiraram para o charco. “É
difícil, há alunos da escola que não percebem.
Atiram pedras, chutam bolas com força para
o charco e no outro dia fizeram aviões de papel que acabaram dentro de água”, queixa-se
Mariana.
Mas, para a professora Maria Gonçalves,
a importância da iniciativa é bem clara. “Este foi um projecto que melhorou a condição
de um espaço na escola, um baldio, onde os
alunos brincavam mas sem qualidade. Nem
tinham zonas para se sentarem, nem bonito
era”, diz a docente.
Além disso, segundo a professora, aquele
charco é um laboratório vivo permanente,
onde se pode sempre recolher informação
que depois é levada para a sala para observação. “É um caldo cheio de vida microscópica.
Ultimamente, têm-nos aparecido seres vivos
um bocadinho maiores, as daphnias, que encantaram os miúdos. Mesmo aqueles que não
estavam inscritos no clube vieram ver e disseram ‘já somos cientistas’, felizes com esta
descoberta.”
As daphnias, o género mais conhecido de
pulgas de água em Portugal, são antigas conhecidas de Maria José Caramujo, bióloga do
Centro de Biologia Ambiental (CBA) da Facul-
dade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Há anos que sai para o campo à procura de
microcrustáceos (que não excedem os cinco
milímetros de comprimento) e os macrocrustáceos, que podem chegar aos oito centímetros e que só vivem nos charcos temporários,
porque aí não existem peixes para os comerem. Alguns destes animais são raros e do
tempo dos dinossauros, como os da ordem
Notostraca, considerados fósseis vivos, pois
mantiveram a mesma forma desde o Triássico,
ou seja, desde há 220 milhões de anos.
Maria José Caramujo coordenou, de Janeiro
de 2010 a Fevereiro de 2012, a parte relativa
aos crustáceos do projecto “Investigação, Conservação e Divulgação da Biodiversidade dos
Charcos Temporários”, financiado pelo Fundo
EDP para a Biodiversidade. “Continuamos a
inventariar os charcos e os organismos que
nele vivem”, conta à 2. Entre todos eles, os
menos conhecidos serão mesmo os crustáceos. “Esta é uma fauna única, que serve de
alimento a aves como cegonhas e garças e a
muitas aves nas suas migrações. Se os charcos
desaparecerem, aqueles crustáceos desaparecem também”, alerta.
Uma das ameaças a estas pequenas espécies
é a imprevisibilidade da chuva e os períodos
de seca fora de tempo. “As espécies estão
adaptadas à seca. Mas os animais precisam
de tempo para se reproduzir, normalmente
dois a quatro meses, dependendo das espécies. Se num ano o charco só tiver água um
mês, ou mesmo durante uma semana, não
terão tempo para deixar ovos de resistência
nos sedimentos para o ano seguinte. Foi isso que muito provavelmente aconteceu em
2011/2012. Os charcos começaram a secar em
Janeiro”, diz Maria José Caramujo. “Este ano,
houve espécies que não apareceram, perceberam que não ia ser um ano bom.”
E com a chuva que tem caído em Abril?
“Mesmo que chova agora, os macrovertebrados já não vão eclodir porque a temperatura
da água no charco será de 20ºC e eles só se
reproduzem com menos de 15ºC. Estas espécies coordenam o ciclo de vida para aparecerem em períodos de chuva e temperaturas
baixas. Está tudo cronometrado. O problema
é que o clima está a variar muito”, acrescenta
a bióloga.
NA VALORPNEU NADA SE PERDE,
TUDO SE TRANSFORMA.
Um pneu pode levar 600 anos a decompor-se. Para nós é um instante.
Hoje, a Valorpneu é já responsável pela recolha e valorização de quase
100% dos pneus usados em Portugal, reciclando, recauchutando
e valorizando-os como fonte de energia. Vamos continuar a deixar
uma marca positiva no Ambiente.
Uma iniciativa:
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 27
os charcos são importantes, sensibilizá-las e
motivar a sua conservação”, explica José Teixeira.
A campanha, que envolve 5000 pessoas,
arrancou em 2010 e criou desde então 16
charcos, para além dos 958 que inventariou.
“Quem mais tem aderido são as escolas, que
fazem actividades pontuais ou algo mais a longo prazo, como a construção de um charco”,
acrescenta.
Também há câmaras municipais a participar, como a do Porto — que já tem dois charcos
nos jardins da cidade e, em conjunto com o
Cibio, identificou as zonas mais importantes
para a sua conservação — e a da Maia, que já
eliminou peixes invasores. “Tivemos também
18 particulares que nos contactaram para saber como podiam melhorar os seus charcos”,
adianta.
J
A falta de chuva fez baixar o nível de água
no charco da Escola D. Pedro IV. “Já chegou a
ter 40 centímetros, mas agora está quase sem
água”, diz a professora Maria Gonçalves.
Ricardo, que continua a trabalhar com afinco, ficou “desmoralizado” por ver a água quase a desaparecer. “Mas temos um plano para
puxar água de uma fonte natural que existe
na escola”, conta. Além de trocar a tela que
impermeabiliza o charco — rota por causa
das pedras atiradas lá para dentro —, esta é
uma das melhorias a fazer no futuro. Mas,
mesmo com pouca água pelo menos uma vez
por semana, são feitas medições da temperatura, da profundidade e do pH, garante a
professora.
Rui Rebelo também é investigador do Centro de Biologia Ambiental da Universidade de
Lisboa e responsável pela criação de uma rede
de dez charcos temporários na Herdade da Ribeira Abaixo, em Grândola, estação de campo
daquela faculdade. Os dois primeiros foram
escavados por si em 2004 e hoje são aqueles
que têm mais biodiversidade. “Pelo menos
nove espécies de anfíbios já se reproduziram
lá e já foram colonizados por vegetação aquática, que, normalmente, demora mais tempo.
Estão óptimos”, salienta. Os restantes foram
criados em 2010 e no final do ano estavam a
ser usados pelo sapo-corredor e pela rã-defocinho-pontiagudo. “A biodiversidade está
preparada para aguentar a seca; desde que
chova durante dois ou três meses, mantémse”, diz Rui Rebelo.
Mas no país há muitos charcos que este ano
não chegaram a encher e outros que só tiveram água uma semana. Algo já está a mudar
em Portugal. “Vamos continuar a ter charcos,
mas serão cada vez mais iguais. Com menos
chuva, os ‘quase permanentes’ estão a tornarse ‘muito efémeros’ e estes estão a desaparecer”, diz o biólogo. Rui Rebelo salienta que os
charcos temporários são muito importantes
para manter a humidade no solo: “São reser-
A Escola D. Pedro
IV, em Massamá,
foi uma das 57
inscritas na
campanha Charcos
com Vida. No
plano anterior, o
charco criado no
espaço do recreio
que antes era um
baldio. Em cima,
Iara observa uma
amostra de água
vatórios de água, mesmo depois de já ter acabado de chover.”
Maria José Caramujo também nota, com alguma preocupação, o caminho que os charcos
temporários têm pela frente, num país onde
os regimes de precipitação se tornam mais
instáveis. “Estes charcos não são importantes
apenas para a biodiversidade, mas também
para travar a erosão dos solos. São sistemas
que, mesmo no Verão, têm ervas frescas e um
solo mais húmido e muito estável. Nas regiões
áridas e com ventos, os charcos não contribuem para o pó em circulação”, afirma. Antes
da agricultura intensiva, e de serem terraplanados para cultivo, os charcos eram utilizados
para dar de beber ao gado e como reservas de
erva fresca para o Verão.
“Agora, a situação é preocupante”, admite Rui Rebelo. Mas não é de hoje. Em 1991,
Pedro Beja, biólogo do Cibio, fez o primeiro
inventário de charcos temporários, no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa
Vicentina. Foram encontrados, com a ajuda
de fotografia aérea, 295 charcos. Em 2009
fez-se novo inventário e tinham desaparecido
45%. “É a perda, quase sem se dar por isso,
de uma biodiversidade que estava em todo
o lado”, disse na altura este investigador ao
PÚBLICO.
José Teixeira, do Cibio, coordena a campanha Charcos com Vida e está de visita à escola
de Massamá, rodeado por Iara, Ricardo, Mariana, Beatriz e David, que disparam perguntas.
Ricardo apanhou duas rãs perto da casa do tio
e quer saber se as pode pôr no charco e Mariana fica surpreendida por não se dever pôr
peixes nem cágados nestas pequenas massas
de água. Iara, Beatriz e David querem fotocópias de uma folha com desenhos de répteis e
anfíbios. E a professora e José Teixeira sorriem
perante o entusiasmo.
“O número de charcos temporários tem
vindo a diminuir na Bacia do Mediterrâneo.
Por isso, queremos mostrar às pessoas como
osé Teixeira é, ele mesmo, um entusiasta pela vida destes habitats.
“Têm uma biodiversidade muito
particular, própria de ambientes
extremos, muito mais interessante
do que um lago com peixinhos vermelhos e pouco mais.” Como as lutas entre rãs macho, as paradas que
fazem às fêmeas e as aventuras de
animais com capacidades de adaptação impressionantes. Por exemplo, o sapocorredor consegue acelerar o seu ciclo larvar
se o charco começar a secar antes do tempo,
para se reproduzir e sair do sítio antes que
seque. E depois há os insectos aquáticos, os
escaravelhos de água e as larvas de libélulas,
predadoras vorazes com uma armadura bocal
projectada a alta velocidade para capturar as
suas presas, como as larvas de anfíbios.
“Há exemplos fantásticos de adaptação. Há
insectos que têm formas muito interessantes
de respirar debaixo de água, como aqueles
que guardam o ar em bolhas debaixo das asas
para irem gerindo ou ainda aqueles que usam
tubinhos que fazem lembrar tubos de mergulho.” Mesmo a nível microscópico, há uma biodiversidade imensa, com largas centenas de
pequenas algas e crustáceos. “Normalmente
as pessoas não se apercebem de que aquelas
massas de água são importantes, ainda têm
uma carga pejorativa, as tais águas estagnadas”, afirma José Teixeira.
Mas na sala do laboratório da escola D. Pedro IV, entusiasmo é coisa que não falta. Os
três microscópicos estão todos ocupados com
cabeças de gente miúda a espreitar para as
daphnias trazidas do charco. “Olha, aqui vêse o coração a bater, os intestinos e os olhos”,
explica Beatriz. E, vistas assim ao microscópico, as pulgas de água parecem seres dos abismos nas maiores profundidades dos oceanos,
transparentes e de formas estranhas, a agitar
as patas felpudas. “Parecem monstros. Mas
monstros giros”, diz David.
Então e do que é que gostam mais no charco? “Gostamos de tudo”, respondem, mais
ou menos ao mesmo tempo e a olhar para os
sapatos. “Até parece que ali não há vida. Mas
está cheio de vida, a sério”, insiste Iara. “Sim,
já sabemos. Já disseste isso duas vezes...”, repreende David.
Ricardo não esquece a Fénix, a primeira rã
do charco, e vai buscá-la ao armário ao fundo da sala, dentro do frasco com álcool. Com
cuidado, abre a tampa e põe o pequeno animal na palma da mão. Quer mostrá-la, para
provar que aquilo que tinha dito no início era
verdade. O charco da sua escola já teve rãs e
ele e os amigos querem garantir que isso voltará a acontecer.
Ver vídeo e fotogaleria em
www.publico.pt
NICOLAU FERREIRA TEXTO
AS RECEITAS DA CIÊNCIA
PARA UM MUNDO MAIS QUENTE
30 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
PEDRO CUNHA
E
m Portugal o céu não brinca. Rezouse por chuva em 1980, 1991, 1994 e
1998. Em 2005 foi a pior seca dos
últimos 60 anos. Ultrapassada só
quando as nuvens se desviaram
do território entre 1943 e 1946. O
cenário repete-se agora. Depois de
dois anos de boa chuva, veio um
Inverno que deixou o país em seca
extrema e uma Primavera que ainda não foi capaz de inverter a situação. “Se nós
tivéssemos a certeza de que em Outubro de
2012 começaria a chover, estávamos seguros”,
evidencia Rodrigo Proença de Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico e especialista
na gestão de recursos hídricos. É isso que falta.
Uma previsão do fim desta seca e do início da
próxima para ajudar a gerir estas temporadas
e saber quanta água é que se pode gastar.
“Estamos preparados para um calendário
onde deixa de chover de Abril a Outubro”,
desmistifica o cientista. “Fomos capazes de
construir uma capacidade de armazenamento
de água.” À excepção de Trás-os-Montes, que
está à espera da barragem de Veiguinhas, há
albufeiras e aquíferos suficientes para o ano
típico mediterrânico. “Estamos mais preparados para a seca do que Inglaterra”, assegura.
São só as situações extremas de falta de água
que trazem o pânico.
No início de Abril, uma investigação publicada na revista Geophysical Research Letters,
de uma equipa da Universidade do Estado de
Michigan, mostrou que um modelo conseguiu
prever com meses de antecedência a forte onda de calor que sufocou o centro dos Estados
Unidos no Verão de 2011. “À medida que o Verão se aproximava, o modelo tornou-se mais
certo sobre quão intensa a onda de calor seria”, explica um artigo da revista Nature.
Pedro Miranda, geofísico do Instituto Dom
Luiz da Faculdade de Ciências da Universidade
de Lisboa (FCUL), explica que estes modelos
também são aplicados cá. “Para este ano, os
modelos deram pouca chuva”, exemplifica.
Mas “os modelos ainda estão em desenvolvimento, é uma área em que se está a investigar bastante”. No caso da Península Ibérica,
explica Pedro Miranda, um período seco está
relacionado com a Oscilação do Atlântico Norte
(NAO, na sigla em inglês), um sistema de pressões com dois pólos, um em cima da Islândia,
outro em cima dos Açores. Quando o índice da
NAO é preponderantemente positivo, vive-se
um Inverno frio e seco, quando é negativo, há
chuva. No futuro, com as alterações climáticas,
o que se espera é que os sistemas atmosféricos que trazem chuva “passem mais a norte”,
explica o investigador.
O último relatório especial do Painel Internacional para as Alterações Climáticas (IPPC),
de 2012, sobre a gestão dos riscos de fenómenos extremos, dá com uma confiança alta o
aumento de dias quentes e de ondas de calor
no Verão, e a diminuição de dias frios para Portugal. Os cenários indicam ainda uma subida
do número de dias sem chuva.
Em relação ao nível de precipitação, é tudo
mais incerto. A médio prazo, a quantidade de
chuva terá tendência a diminuir no Inverno e a
acentuar um pouco no Verão. O problema é o
aumento da sua variabilidade de ano para ano,
o que torna mais urgente a adaptação à seca.
“Do lado da adaptação, há muita gente que
defende que não é preciso mais dados, é preciso um novo quadro de decisão”, diz Tiago
Capela Lourenço à 2. O investigador trabalha
no Center for Climate Change Impacts Adaptation and Models, CC-IAM, um grupo de investigação da FCUL que já foi responsável por dois
relatórios sobre os impactos das alterações
climáticas em Sintra e Cascais.
Estes trabalhos obrigaram à elaboração de
cenários microscópicos, que agarram nos modelos de projecção de clima mundial e aplicamnos numa região tendo em conta a situação geográfica e o relevo. A partir daqui conseguem
traçar tendências para as temperaturas e precipitação. Os estudos apresentam projecções do
clima e avaliam os impactos destas mudanças
na saúde das pessoas, disponibilidade da água,
biodiversidade, agricultura ou no turismo.
Uma empresa também pode estar interessada em saber como
é que as alterações
climáticas vão baterlhe à porta. O CC-IAM
está agora a avaliar a
robustez das estruturas da EPAL, que
abastece de água a
região de Lisboa — o
que passa por uma
avaliação sistémica
do impacto das mudanças climáticas na
qualidade e quantidade da água. “Estamos
Portugal
está mais
preparado para
a seca do que a
Inglaterra:
construiu uma
capacidade
para armazenar
água ao longo
do tempo
a tentar perceber o que é que significa para a
EPAL adaptar-se às alterações climáticas antes sequer de pensar nos cenários”, explica
Lourenço.
Em relação ao clima, antes de tudo, a equipa
olhou para a vulnerabilidade actual das três
fontes principais de água da EPAL: a captação
que faz em Valada do Ribatejo, num ponto do
rio Tejo que fica cerca de 20 quilómetros acima
de Vila Franca de Xira, a barragem de Castelo
de Bode e a captação de água do aquífero TejoSado, nas Lezírias do Ribatejo.
No caso da barragem de Castelo de Bode,
alimentada pelo rio Zêzere, os impactos das alterações climáticas são complexos. O aumento
de temperatura pode promover o crescimento
de algas e alterar os ciclos de carbono e azoto,
e a variabilidade na precipitação pode ter um
efeito na qualidade de água. A equipa de Tiago
Capela Lourenço avaliou ainda as consequências dos incêndios de 2003 na região. As cinzas
que ficaram no solo tinham um potencial de
poluir o reservatório de água com as primeiras
chuvas. Aparentemente, isso não aconteceu.
“A EPAL parece ter um sistema robusto principalmente por causa da barragem de Castelo
de Bode, que não sofreu com as secas”, avalia
o cientista. O trabalho está a correr em estreita
comunicação com a empresa e só termina em
2013. A equipa já produziu cenários climáticos
para a região abarcada pela empresa, da mesma forma que tinha feito com o trabalho sobre
os concelhos de Sintra e Cascais. Agora interessa chegar a soluções: novos reservatórios,
novas tecnologias, diversificação de fontes ou
alteração de fontes actuais, modificações nos
sistemas de transporte e distribuição. Sobretudo, interessam “as medidas que respondam
bem a todos os cenários climáticos”, aponta.
“Temos de ser cada vez mais eficientes no
uso da água. Reduzir as necessidades e melhorar o sistema de gestão”, diz por seu lado
Rodrigo Proença de Oliveira, defendendo o
fim das fugas na canalização. Para o investigador, a água irá ter obrigatoriamente um valor
maior no futuro. Na agricultura, que gasta a
maior parte da água do país, Proença de Oliveira espera que se desenvolvam estimativas
mais rigorosas das necessidades de água das
espécies agrícolas e valoriza a taxa de recursos
hídricos — aplicada ao uso privado da água.
Um pé-de-meia que pode depois ser utilizado,
através do Fundo Português de Recursos Hídricos, para a construção de novas albufeiras
importantes para o sector.
A utilização de água reciclada para lavar ruas
e regar jardins poderá ser uma alternativa nas
cidades, que também vão ter de gerir períodos
de chuva intensa. “Há previsões do aumento
de momentos mais fortes de pluviosidade. A
ocorrer isso, vamos ter mais cheias urbanas.
É necessário aumentar a capacidade de drenagem, promovendo jardins, transformando
o chão de parques de estacionamento em solo permeável”, exemplifica. São medidas que
podem começar a ser executadas já, não dependem da vontade do céu.
Em cima, chuva
intensa no Porto
em 2009, que
contrasta com a
seca de 2005 no
Alentejo (à esq.)
Enquanto muitos cientistas estudam o fenómeno das alterações climáticas para
um dia conseguirmos prever a próxima seca, outros já deram o passo à frente e
pensam na adaptação a um mundo em que a água vai seguir outros caminhos
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 31
Com a perspectiva de mais habitantes na Terra, mais consumo
e um clima mais quente, tornou-se comum falar-se nas “guerras
da água”. O passado mostra, porém, que não são inéditas. Médio Oriente, Sudão, Bolívia foram já palcos de conflitos violentos
pela água. Mas há muitas outras formas de confronto
QUANDO
A ÁGUA
É MOTIVO
DE GUERRA
H
RICARDO GARCIA
á cinco anos, os horrores dos
conflitos no Darfur ganharam o
triste epíteto de primeira guerra
alimentada pelas alterações climáticas. A rotulagem trazia um
toque oficial. A ONU divulgara,
nessa altura, um estudo sobre a
influência de factores ambientais
na origem do confronto. A quantidade de chuva naquela região
do Sudão caíra quase um terço em 30 anos
e nalguns pontos o deserto avançara até 200
quilómetros para sul desde 1930. Em boa medida, foi isto o que empurrou nómadas árabes e agricultores africanos para anos de luta
sangrenta, competindo por recursos contra a
aridez. Foi uma guerra complexa, onde muitos
factores se uniram para um trágico resultado.
Mas foi, sem dúvida, uma guerra da água.
Bélicas ou diplomáticas, locais ou internacionais, subtis ou evidentes, há muitas “guerras da água”. Numa cronologia elaborada pelo
projecto World’s Water, do Instituto Pacífico
— uma organização de investigação com sede
na Califórnia —, estão contabilizados pelo menos 225 conflitos. O mais antigo associado a
uma disputa militar terá ocorrido em torno de
2500 a.C., quando a cidade suméria de Lagash
desviou canais da região do Tigre-Eufrates
para isolar a rival Umma.
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A entrada mais recente da cronologia referese a um protesto contra a falta de água, em Julho de 2010, num bairro da área metropolitana
de Nova Deli, em que cerca de 500 pessoas
ocuparam uma ponte, destruíram veículos e
entraram em confrontos com a polícia, segundo o relato do jornal The Times of India.
Uma lista com cinco milénios de conflitos
apenas reforça o que, afinal, é uma ideia simples: privar alguém do acesso à água é meio
caminho andado para desavenças. Com uma
agravante: os diferentes usos dos recursos hídricos são muitas vezes antagónicos — desde
dar de beber, a irrigar campos agrícolas, produzir electricidade, alimentar a indústria, encher piscinas ou regar campos de golfe. “Gerir
a água é dirimir conflitos de uso”, afirma o exministro do Ambiente Francisco Nunes Correia, professor do Instituto Superior Técnico e
presidente da Parceria Portuguesa para Água,
destinada a promover a internacionalização
das empresas nacionais do sector.
O grande temor é o de que nas próximas
décadas, com o aumento da população, a
elevação dos níveis de consumo e os efeitos
das alterações climáticas, os focos de tensão
se multipliquem. Os cenários não são animadores. Hoje, segundo estatísticas da ONU, 1,4
mil milhões de pessoas vivem em zonas onde a procura de água excede a capacidade
FINBARR O’REILLY/REUTERS
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 33
de recarga. Cerca de 900 milhões não têm
acesso à quantidade de água mínima para as
necessidades básicas e 27% da população urbana não está ligada a redes de abastecimento. Até 2025, o consumo de água pode subir
50% nos países em desenvolvimento e 18% nos
desenvolvidos. Nessa altura, 1,8 mil milhões
de pessoas viverão em regiões com escassez
absoluta de água.
Tornou-se um lugar-comum, por isso, falar-se do século XXI como a possível era das
“guerras da água”. Se vierem a ocorrer, no
sentido militar, não serão inéditas. A Guerra
dos Seis Dias, em 1967, esteve intimamente
ligada ao controlo da água do rio Jordão, que
passa pelo Líbano, Síria, Israel, Cisjordânia
e Jordânia. Os conflitos pela água na região
começaram ainda na década de 1950, quando
empreendimentos hídricos unilaterais levaram a escaramuças militares. A Jordânia anunciara planos para o uso intensivo do Yarmouk,
o principal afluente do Jordão, para agricultura. Israel iniciara a drenagem de pântanos
e a construção de uma rede de transporte de
água para áreas costeiras e o deserto do Negev, com captação no Norte do Mar da Galileia, na zona desmilitarizada acordada com
a Síria em 1949.
Quando em 1965 a Liga Árabe iniciou, na
Síria, as obras de um projecto hídrico para
desviar a água dos rios Hasbani e Banias — que
formam o Jordão —, a tensão subiu a um nível
sem precedentes. O projecto reduziria o fluxo
do rio, comprometendo a estratégica rede de
transporte que Israel acabara de inaugurar.
Muitos anos mais tarde, o ex-primeiro-ministro Ariel Sharon reconheceu que foi naquele
momento que a Guerra dos Seis Dias teve início, e não a 5 de Junho de 1967. “Esta foi a data
oficial. Mas na verdade, começou dois anos e
meio antes, quando Israel decidiu agir contra
o desvio do Jordão”, disse Sharon, citado pelo
jornalista britânico Adel Darwish, co-autor do
livro Water Wars: Coming Conflicts in the Middle
East, num artigo na BBC, em 2003.
C
onflitos militares não esgotam o
termo “guerras da água”. “É uma
expressão sonante, mas não creio
que tenha grande peso analítico
na maior parte dos casos”, afirma Casey Walsh, professor do
Departamento de Antropologia
da Universidade da Califórnia e
autor de trabalhos sobre o tema.
“Os conflitos sobre a água são universais e estão a aumentar com a escassez,
mas manifestam-se de muitas formas que não
a guerra”, completa.
Se não chegaram a vias de facto, México e
Estados Unidos também estiveram em rota de
colisão quanto à partilha dos seus principais
rios comuns. Embora sem consequências tão
dramáticas, a história aqui parte dos mesmos
ingredientes originais da querela israelo-árabe. Os Estados Unidos construíram, em 1930,
uma longa conduta de 130 quilómetros — o All
American Canal —, para captar a água do rio
Colorado antes da fronteira e desviá-la para
zonas agrícolas e urbanas no Sul da Califórnia. Na mesma altura, o México desenvolvia
redes de rega para aproveitar a água do Rio
Bravo (Rio Grande, nos Estados Unidos), em
detrimento do Texas.
Da fricção de interesses acabou por surgir,
em 1944, um tratado para os rios transfronteiriços. Mas mesmo o acordo não evitou novos desentendimentos. Entre 1992 e 1997, o
México não conseguiu cumprir os caudais
mínimos de água do Rio Grande estipulados
no acordo. O país justificou com a seca, mas
foi acusado de estar a utilizar a água para rega noutros pontos da bacia hidrográfica. A
contenda subiu de tom, chegando a envolver
os presidentes George W. Bush e Vicente Fox
em 2001-2002.
O capítulo mais recente é o da pavimentação de parte do All American Canal, com que
os norte-americanos quiseram evitar a perda
de água por penetração no solo arenoso. Mas
esta água subterrânea era essencial para os
mexicanos, que tentaram impedir judicialmente a intervenção, sem sucesso.
Casey Walsh chama a atenção para os cenários das alterações climáticas, com a região a
tornar-se cada vez mais seca e quente. “Suspeito que os conflitos sobre a água vão continuar a crescer”, diz Walsh. Mas uma “guerra
da água” de facto, ali, está longe de acontecer.
“A relação de forças é simplesmente muito desigual para que o México ganhe alguma coisa
com um conflito aberto”, completa.
Não faltam oportunidades para disputas
como as da bacia do Jordão, do Colorado e
do Bravo. Pelo menos 145 países possuem
parte do seu território abrangido por bacias
hidrográficas transfronteiriças, segundo dados
da UNESCO. São mais de 300 os rios e lagos
partilhados por dois ou mais países. Aí vive
40% da população mundial. Além disso, há
pelo menos 200 aquíferos subterrâneos que
ignoram fronteiras políticas.
Os desacordos sobre a repartição destes
bens comuns podem agudizar-se num mundo
mais quente no futuro. Veja-se o caso da bacia
No plano anterior:
os conflitos no
Darfur ganharam
o epíteto de
primeira guerra
alimentada
pelas alterações
climáticas. Em
cima, crianças
palestinianas
recolhem água
em Gaza; a guerra
israelo-árabe de
1967 teve como
epicentro o rio
Jordão
do rio Indo, palco de tensões históricas entre
a Índia e o Paquistão. Investigadores da Universidade de Utrecht concluíram, num estudo
publicado em 2010, que aquela bacia será uma
das mais afectadas pela provável redução dos
glaciares dos Himalaias até 2050, com uma
quebra de 8,4% no seu fluxo de água.
É um dado que poderá pôr à prova o tratado
de 1960 assinado por ambos os países para a
partilha das águas. Apesar do tratado, o Paquistão — que enfrentou uma forte seca na segunda metade dos anos 1990 — tem protestado
perante novos projectos de barragens do lado
indiano. Por outro lado, o próprio Paquistão
é acusado de uso insustentável dos recursos
hídricos que tem à sua disposição.
O conflito subiu recentemente de tom pela
mão do alegado líder terrorista paquistanês
Hafiz Saeed. Num protesto em Março de 2010,
em Lahore, Saeed acusou a Índia de construir
barragens ilegais e de praticar o “terrorismo
da água”, dizendo que o Paquistão deveria
manter aberta “a opção do uso da força”.
Sem a mesma dose de hostilidade, a construção de barragens para produção eléctrica
no rio Mekong, no Sudoeste asiático, também
se tem revelado um foco de fricção. O rio percorre cinco países — China, Birmânia, Laos,
Tailândia, Camboja e Vietname. A China, unilateralmente, já avançou com um plano próprio para vários projectos de aproveitamento
hídrico, dos quais três já estão prontos. Laos,
MAHMUD HAMS/AFP
que participou no encontro, como assessor
de Teresa Gouveia.
No final, o caso subiu ao nível dos chefes
de Governo e acabou por resultar num acordo bilateral, a Convenção de Albufeira para
gestão dos rios comuns, de 1998, que ainda
assim teve de ser reforçada por protocolos
adicionais uma década depois. Embora saliente que a cooperação afinal se tenha sobreposto ao conflito, Nunes Correia não tem
dúvidas: “Existem condições objectivas para
que haja momentos de tensão entre Portugal
e Espanha.”
A
Tailândia, Camboja e Vietname uniram-se numa estratégia comum para mais 11 barragens
ao longo do rio. Embora sejam do tipo “fio-deágua”, sem formar grandes albufeiras — como
as do Douro —, tais projectos têm preocupado
sobretudo ambientalistas e as comunidades
piscatórias, naquele que é considerado o curso de água doce mais rico para as pescas.
Em todos estes casos, quem está na parte
baixa de uma bacia é sempre o elo mais fraco. “É claríssimo que os países de montante
têm mais peso negocial do que os países de
jusante”, afirma Rodrigo Proença de Oliveira,
investigador do Instituto Superior Técnico.
Foi o que Portugal sentiu nas negociações
com Espanha sobre os rios transfronteiriços.
A primeira versão do Plano Hidrológico Espanhol, de 1993, era um documento unilateral,
que incluía transvases entre bacias e novas
formas de reter água do outro lado da fronteira. “O que tinha de chocante é que ignorava
completamente Portugal”, recorda Francisco
Nunes Correia.
Portugal teve de se defender. Quando a
ministra do Ambiente, Teresa Gouveia, foi
a Madrid discutir o assunto, levou consigo,
logo na primeira reunião, um representante
do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os
espanhóis não contavam com isso. “Quando
se aperceberam, suspenderam a reunião e
deixaram-nos uma hora à espera, enquanto
decidiam o que fazer”, recorda Nunes Correia,
s “guerras da água” não precisam
ser apenas entre dois países. Lutas políticas e protestos têm marcado décadas de disputa entre os
estados indianos de Karnataka e
Tamil Nadu pelas águas do rio
Kaveri. Nos Estados Unidos, há
conflitos dentro do mesmo estado, como na Califórnia, por
exemplo.
Mas, no que toca a disputas internas, não há
local onde melhor se aplique o termo “guerra
da água” como a cidade boliviana de Cochabamba. Ali, a luta foi contra a privatização do
abastecimento de água, entregue em 1999 a
uma empresa internacional, num concurso
com um só concorrente. O secretismo do contrato, a duplicação nos preços e a proibição de
acesso a fontes alternativas de água levaram a
greves, bloqueios e protestos durante meses.
No auge do conflito, em Abril de 2000, milhares de pessoas ocuparam as ruas e paralisaram
Cochabamba. O símbolo da luta era uma faixa
colocada na fachada de um edifício na praça
central tomada pela população: “El agua es
nuestra, carajo!”
O Governo declarou o estado de emergência
e reprimiu violentamente as manifestações.
Mas o escalar da violência, com cinco mortos e pelo menos 40 feridos, virou-se contra
o poder e o Governo acabou por rescindir o
contrato com a empresa Aguas del Turani,
alegando falta de condições de segurança.
Para o sociólogo Esteban Castro, professor
da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, e investigador na área da água e governabilidade, Cochabamba foi um caso único
em vários aspectos — por exemplo, pela sua
projecção internacional e por ter resultado
na demissão em bloco do Governo, com excepção do Presidente Hugo Banzer. Mas não
noutros. “Não nos devemos admirar que ocorram mais situações como essa, de repressão
policial e armada em relação a casos de privatização”, afirma.
Menos turbulentas, tensões também estão presentes na história do abastecimento
de água em Portugal. Num capítulo recentemente publicado num livro da UNESCO sobre
os conflitos urbanos da água, os sociólogos
Luísa Schmidt, Tiago Saraiva e João Pato, do
Instituto de Ciências Sociais, apontam um rol
de episódios ao longo do último século e meio,
desde lacunas no abastecimento e problemas
de poluição, até às polémicas mais recentes
sobre a privatização e às dívidas das autarquias à holding estatal Águas de Portugal.
Serão também “guerras da água”, embora
diferentes das que mais se temem, entre países ou populações. Por ora, a diplomacia e a
gestão comum têm sido a melhor arma para
evitar o pior. A própria UNESCO lançou um
programa neste sentido, o PCCP — do Potencial Conflito à Cooperação Potencial —, uma
plataforma de diálogo e de disseminação de
informação. “A água é uma fonte de conflito
e de cooperação”, afirma Francisco Nunes
Correia. “Mas o que tem prevalecido é a cooperação.”
DR
DAR A CARA
OSAMA
ABU AYYASH
A ocupação israelita matou-lhe
o avô, o pai e dois cunhados,
mas o palestiniano nascido um
ano antes da guerra de 1967 recusou o caminho da vingança.
Por Margarida Santos Lopes
H
á um “momento especial” na vida
do palestiniano Osama Taleb Abed
El Magid Abu Ayyash que o fez escolher a reconciliação e não a vingança,
depois das mortes do seu avô, pai e
dois cunhados, “mártires da ocupação”. Há uns dez anos, estava ele em casa de
uma irmã quando conheceu o judeu israelita
Rami Elchanan. Ficou espantado ao ouvi-lo
falar de paz depois de a sua filha de 14 anos
ter sido vítima de um atentado bombista.
“Abraçámo-nos um ao outro e chorámos.”
“Impressionou-me a força das suas ideias e
do seu carácter”, disse Abu Ayysah à 2, numa
entrevista por telefone, ajudado pelo amigo
Ibrahim Salaoui, que serviu de intérprete, já
que o motorista de camião com um mestrado
em Psicologia é fluente em árabe e em hebraico mas não se exprime bem em inglês. “Achei
que devia juntar-me a Rami na procura da coexistência. Tinha de me comprometer.”
Hoje, Abu Ayyash, 46 anos, é um dos membros mais activos do Parent Circle-Families
Forum (PCFF), organização que junta palestinianos e israelitas que perderam familiares
próximos num dos principais conflitos do Médio Oriente. A sua mais recente missão era ir
a escolas dar a conhecer “o rosto dos árabes”,
mas o Ministério da Educação, pressionado
por grupos direitistas, proibiu-o há quatro
meses de falar nos liceus e universidades,
alegando que o seu discurso é “demasiado
político” e que é “inadmissível a comparação
entre o sofrimento de ‘terroristas’ e o dos civis
israelitas”.
Não sendo homem para baixar os braços —
quando perdeu o emprego decidiu cultivar a
pequena horta junto à sua casa, em Beit Ummar, perto de Hebron, na Cisjordânia, sobrevivendo dos produtos agrícolas que vende —,
Abu Ayyash não se importa de enfrentar diariamente longas filas de espera nos checkpoints,
para dar a conhecer a sua história, agora só
nas escolas primárias de Israel.
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Orgulha-se de ter conseguido ir mais longe,
ao entrar em quartéis, com a ajuda de dois
amigos judeus israelitas do Parent Circle, tentando sensibilizar os jovens soldados que servem nos territórios palestinianos.
Ser um pacifista não tem sido missão fácil
para Osama Abu Ayyash, nascido em 11 de Fevereiro de 1966, um ano antes da humilhante
derrota imposta por Israel aos exércitos árabes ao conquistar aos jordanos a Cisjordânia e
Jerusalém Leste, aos egípcios a Faixa de Gaza
e a península do Sinai, e aos sírios os Montes
Golã. “Eu tinha apenas um ano quando fomos
forçados a procurar refúgio numa gruta que
havia na terra que os nossos antepassados habitavam desde há um século. Foi traumático,
para mim, como tinha sido para o meu pai,
quando o meu avô morreu, a 12 de Maio de
1948”, na guerra que se seguiu à criação do
Estado de Israel.
De coração fraco, o pai de Abu Ayyash nunca
recuperou do choque. Em 1975, tinha o filho
sete anos, sofreu um segundo ataque cardíaco,
forçando a mulher a sustentar sozinha uma
família de cinco filhos e três filhas. Em 1983,
morreu a caminho do hospital, depois de o
exército o ter retido num posto de controlo
“durante horas num severo e inexplicável interrogatório”. Órfão aos 17 anos, Ayyash teve
de abandonar a escola para trabalhar e poder
comprar uma máquina de costura eléctrica
que permitisse à mãe um complemento financeiro. Voltou a estudar assim que lhe foi possível, combinando as aulas com um emprego em
part-time. Concluiu com êxito um mestrado
em Psicologia, mas nunca arranjou emprego
na área da sua formação.
“A minha situação complicou-se quando fui
preso sem julgamento, pelo menos três vezes,
a última em 1990”, contou Ayyash. “Suspeitavam de que eu tinha disparado sobre colonos
judeus mas eu era inocente, e até descobrirem isso os agentes do Shin Beth [segurança
interna] usaram vários métodos de tortura,
desde choques eléctricos a imersão em água
quente e gelada, além da privação de ir à casa
de banho, o que foi humilhante. Pediram-me
desculpa mas não esqueço o sofrimento por
que passei nesse período.”
Em 2002 e 2003, respectivamente, mais
dois golpes foram desferidos: os cunhados
Kamal, de 20 anos, e Tayseer, de 21, foram
abatidos a tiro por soldados que os perseguiam
por serem “militantes da resistência”. Eles haviam recorrido à violência depois de terem
sido brutalmente espancados por militares
quando eram crianças — um deles tinha apenas dez anos, “quando foi largado numa rua,
sem sentidos”.
Embora revoltado, Ayyash empenhou-se para que a sua mulher, Sara, com quem se casou
em 1992, não albergasse o mesmo sentimento
de vingança que levou os cunhados a andarem
armados. Isso não impediu, porém, que um
dia, ao visitar uma irmã, tivesse reagido mal ao
ver à porta um carro com matrícula israelita
[amarela, para se distinguir das que circulam
nos territórios palestinianos].
Como é que ela “ousara acolher judeus que
derramaram sangue da nossa família?”, indagou Abu Ayyash, pai de um rapaz e quatro
raparigas. A irmã convidou-o a entrar e explicou-lhe que o visitante, Rami Elchanan, tinha
perdido a sua filha num ataque terrorista. “Ele
apresentou-me ao Parent Circle. Foi muito gentil. Percebi que a minha dor não era maior do
que a dele. Convenci a minha mulher de que
também havia judeus israelitas bons.”
O Parent Circle, do qual fazem parte actualmente mais de 600 famílias, foi criado em 1988
por Yitzhak Frankental. As primeiras reuniões,
lê-se no site da organização, começaram em
1988 depois de um grupo de palestinianos de
Gaza ter aceitado o desafio de procurar alívio
junto de famílias israelitas enlutadas, “através
do diálogo e da tolerância”.
A ligação a Gaza foi interrompida depois da
segunda intifada em 2000, ano em que este
processo lenitivo passou a incluir palestinianos
da Cisjordânia e Jerusalém Leste. A associação,
registada oficialmente, tem dois escritóriossede: em El’ram, na Cisjordânia e em Ramat
Efal (Telavive).
“A princípio, quando comecei a ir às escolas, havia alunos que ficavam espantados”,
revela Abu Ayyash. “Um rapaz disse-me que
pensava que os árabes tinham caudas como
os burros — nunca tinha visto um árabe! Aos
poucos, estes miúdos entendem o sofrimento
dos palestinianos, e vêem que não há alternativa à paz e à coexistência; o mesmo se passa
nas escolas palestinianas visitadas pelos judeus
israelitas do PCFF.”
Inquirido sobre se esta pertença ao Parent
Circle não faz com que em Hebron e em Nablus (onde estudam as suas quatro filhas, a 120
quilómetros de distância de casa), cidades de
grande fervor revolucionário, seja olhado como “colaboracionista”, Abu Ayyash assegura
que não. E Ibrahim, o amigo que assiste na tradução, enfatiza: “Todos o respeitam, e muita
gente aqui tem amigos israelitas; também sou
a favor de uma solução de dois Estados.”
Das “aulas” nas escolas israelitas, Ayyash
evita falar das más experiências. Prefere concentrar-se nas que lhe deixam boas recordações. Lembra-se, por exemplo, de estar num
liceu em Sderot, na “fronteira” com a Faixa de
Gaza, em 2007, quando milicianos do Hamas
começaram a lançar rockets sobre a cidade.
“De repente, apercebi-me de que os alunos
gritavam uns para os outros uma password,
que eu não entendia, e começaram a correr,
deixando-me sozinho no pátio. Estava eu ali
perdido, quando um grupo veio ter comigo,
agarrou-me e conduziu-me para o abrigo. Perguntei o que estavam eles a fazer, e responderam-me: ‘Temos de te proteger. Não vês que
podes morrer?’ Fiquei muito emocionado.”
“A minha tarefa não é fácil mas também
não é impossível”, conclui. “Acredito na paz e
agarro a oportunidade de a construir.”
JORGE ALMEIDA FERNANDES
PONTO DE VISTA
CLASSES MÉDIAS: O TABULEIRO GLOBAL
O declínio e a ansiedade das classes médias dos países ricos não são inteligíveis sem olhar
a economia mundial e o confronto de interesses com as economias emergentes
AFP
A
s classes médias são o instável centro de
gravidade das nossas sociedades, por onde passa a coesão do edifício social e que
melhor o podem desestabilizar. São uma
zona de virtual turbulência política, determinante para as próprias instituições
democráticas. O sentimento de declínio das classes médias nos países desenvolvidos foi dramatizado pelos efeitos da crise económica de 2008.
Há uma distinção a fazer: esta crise é um acelerador e multiplicador dos efeitos mas não a raiz
do problema.
A percepção actual do declínio das classes médias — na esteira das cíclicas crises ao longo do
século XX — remonta a meados dos anos 1990.
Combina muitos factores: do fim da era de ouro do pleno emprego e dos “trinta magníficos” à
globalização e às mutações tecnológicas. Nela se
confundem situações de despromoção, troca de
lugares na escala social, alargamento da distância entre a base e o topo, tudo isto dobrado pela
“questão geracional”: na Europa ou nos Estados
Unidos, quem nasceu nas décadas de 1940-50 teve
o dobro das hipóteses de alcançar a “classe média
superior” do que quem nasceu a partir de 1970.
Falando da América, o ensaísta Michael Lind
aconselha a ter sempre presente uma perspectiva
histórica: todas as classes médias foram inventadas
e, portanto, a sua reinvenção é o grande desafio da
política de hoje — “antes que seja tarde”.
É impossível discutir as classes médias sem ter
em conta o novo tabuleiro mundial: elas estão ensanduichadas entre a estagnação dos “países ricos”
e o exuberante crescimento nos “países pobres”.
Este fenómeno traduz-se nos media ocidentais através de dois registos: pessimismo sobre a situação
doméstica e um deslumbrado optimismo sobre
o potencial das novas classes médias dos países
pobres — concorrentes mas aspirantes ao modelo
ocidental de democracia.
A
“classe média mundial” triplicou em dez
anos, titularam os jornais ao resumir
um estudo do grupo segurador alemão
Allianz. Este estudo, que englobou 50 países, 68% da população mundial e 87% do
PIB mundial, analisava apenas a riqueza
privada das pessoas — e não os rendimentos. Os
novos membros da “classe média mundial”, dispondo de activos financeiros entre 5300 e 31.600
euros, passaram de 200 milhões, em 2000, para
565 milhões no fim de 2009. Metade vivia nos
países emergentes: 130 milhões na China, 40 no
Brasil.
Na mesma década, a riqueza das pessoas progrediu 16% nos países pobres, ou seja, sete vezes
mais do que nos países ricos. Anotou uma analista
do Allianz: “A grande surpresa reside no enorme
impacto da crise nas economias desenvolvidas.
Percebe-se como as grandes praças financeiras
foram atingidas e como os países emergentes se
saíram relativamente bem.”
é frágil e vê o seu futuro dependente da estabilidade social e política: “A democracia traz liberdade
mas também o risco de caos.” A prosperidade da
classe média chinesa assenta na sua aliança com
o regime autoritário, frisa o sinólogo americano
Andrew J. Nathan.
A combinação entre liberalização económica e
autoritarismo político — o “modelo de Singapura” — seduz grande parte da Ásia. Inversamente, a
maioria dos indianos considera que “a democracia
é boa para a economia”.
O
O economista Johannes Jitting observava num estudo da OCDE: “Em 2050, 50% do consumo global
do planeta caberá a chineses e indianos, contra os
actuais 10%.” O centro de gravidade da economia
mundial migra a grande velocidade.
Um estudo do banco Goldman Sachs sublinhava
a explosão do consumo nos mercados emergentes.
Os chineses compraram em 2009 mais automóveis
do que os americanos e havia na Índia mais utilizadores da Internet do que nos EUA. Em 2030,
nove em cada dez telemóveis estarão em países
emergentes, a começar pela China e pela Índia.
Os analistas ocidentais interrogam-se sobre os
efeitos culturais e políticos desta “ascensão do resto”, para usar uma expressão de Fareed Zakaria.
Um inquérito de 2009 do Pew Global Attitudes
Project, cobrindo 13 países emergentes, sublinhava que as classes médias são as mais sensíveis aos
temas da democracia e dos direitos cívicos.
“O desenvolvimento facilita e sustenta a democracia, mas não a garante”, ressalvava Robert Wike, director adjunto do Pew. A tendência é clara
em países como o Chile, o Brasil ou a Índia, com
tradição democrática. Na China, a atitude das classes médias é ambígua: o arbítrio do poder é cada
vez menos tolerado, há exigências de liberdade
de expressão e de independência da justiça. Mas
impõe-se a distinção entre democracia e liberalização. A democracia não decorre mecanicamente
do crescimento económico. A classe média chinesa
Em 2050, 50%
do consumo
global do
planeta caberá
a chineses
e indianos,
contra os
actuais 10%.
O centro de
gravidade
da economia
mundial muda
a grande
velocidade.
E, com ele,
mudam as
classes médias
nde se cruzam ou chocam os interesses
das classes médias dos “pobres” e dos
“ricos”? A globalização é o terreno de
eleição.
O economista americano Michael Spence explicou na Foreign Affairs que os efeitos negativos da globalização no Ocidente foram
compensados, até à viragem do século, pela oferta
de produtos mais baratos, que beneficiaram os
consumidores ocidentais de todas as classes. Mas,
depois de a concorrência dos países emergentes
ter dilacerado o tecido industrial, a combinação
entre globalização e novas tecnologias fere também uma parte importante das classes médias, no
salário e no emprego.
Moisés Naím, director do magazine Foreign Policy, chama atenção para o potencial de um novo conflito: “Na minha opinião, uma fonte muito
mais importante de conflito do que o ‘choque de
civilizações’ serão as mudanças nos rendimentos
das classes médias nos países ricos — onde estão
a declinar — e nos países pobres, onde estão a aumentar. (...) Isto gera expectativas frustradas que
alimentam a instabilidade social e política.”
Naím garante que “as mais rigorosas investigações” revelam que a erosão dos salários nos países
desenvolvidos não é efeito directo do rápido crescimento dos emergentes mas decorrem “da mudança tecnológica, de uma produtividade anémica, da
política fiscal e de outros factores domésticos”.
Na Espanha e na França, na Itália ou nos Estados
Unidos, as classes médias sentem que a sua situação e o seu estatuto estão a piorar. Nos emergentes, “não há governo que possa satisfazer as novas
exigências de uma classe média em ascensão à
mesma velocidade com que se produzem”; no Ocidente, os governos “estão submetidos a enormes
pressões para conter a queda do nível de vida da
classe média existente”. Alguns políticos desviarão o descontentamento, atirando as culpas para
o rápido crescimento dos países pobres.
As eleições francesas são um espelho. Na extrema-esquerda e na extrema-direita, Jean-Luc Mélenchon e Marine le Pen recorrem a simétricas
retóricas nacionalistas para captar votos no medo
das classes médias e populares.
A globalização desloca o “centro do mundo”,
a tecnologia muda o trabalho e ambas mudam o
emprego. Não é possível inventar uma saída do declínio sem perceber que nada será como dantes.
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 37
ALEXANDRA LUCAS COELHO
ATLÂNTICO-SUL
A DOR DE CRIOLO
1
Ele chega de branco com uma asa amarela ao
pescoço. À sua frente tem milhares de pessoas e é quase uma da manhã. Canta a primeira canção, desata a asa — uma T-shirt com São
Jorge, Salve Jorge —, estende-a entre a percussão e a bateria, um talismã. Eu, que nunca o
vi antes, abro a boca porque ele caminha com
passadas tribais, arregala os olhos, curva-se num
transe, esfrega a cabeça, esfrega a cara. Mas à minha volta todos parecem tê-lo visto e ouvido antes
porque se atiram para a frente a cada verso, braços, tronco, garganta, uma negrinha atrás de mim
grita o mais alto que pode e entre cada canção
chama: “Criolo! Criolo! Criolo!” Ele diz que canta porque está desesperado e sabe que é por isso
que estamos ali. Todos estamos desesperados.
2
A primeira vez que ouvi falar em Criolo
foi há um ano, na canção Não Existe Amor
em SP. O link do Youtube dizia que o autor era um rapper. Aquilo não era um rap
mas era uma grande canção. Nunca mais
consegui voltar a São Paulo sem me lembrar dela. Está no céu de cimento, no ângulo dos
espelhos, nos graffiti.
Já este ano, quando Criolo ficou famoso, a entrevistadora Marília Gabriela perguntou-lhe qual
era a diferença entre a São Paulo dessa canção e
a Sampa, de Caetano. Faz sentido: a cidade absorveu as duas.
3
Kleber Cavalcante Gomes lhe chamaram
os pais, seu Cleon e dona Vilani, ele metalúrgico, ela benzedeira do bairro, nordestinos migrados para a periferia de São
Paulo. Dona Vilani tinha tal paixão pelas letras que em criança, lá no Ceará, quando a
mandavam comprar um pedaço de carne, vinha a
correr para que a folha de jornal que a embrulhava não embebesse o sangue e desse para ler ainda.
Criolo conta esta história e outra que ele próprio
viveu: quando se foi matricular para os últimos
anos do secundário, Dona Vilani perguntou se
também se podia matricular. Então estudou três
anos ao lado do filho, depois fez filosofia e ainda
uma pós-graduação em línguas e semiótica. Mas
não só continuou a morar na periferia como abriu
lá um “café filosófico”.
O lugar chama-se Grajaú, fica no sul de São Paulo
e Criolo também não o deixou por ter ficado famoso. Dedicou-lhe uma canção, “Grajauex”: “É o
ouro branco, o pó mágico e o poder de um Rolex/
Na favela, com fome, atrás dos Nike Air Max/ Os
canela cinzenta que não tem nem cotonets/ Os MC
das antiga é dinossauro T-Rex.”
4
Criolo passou anos a trabalhar em educação pela arte com garotos de rua mas é
rapper desde a adolescência. No fim dos
anos 90 conheceu Cassiano Sena, o DJ Van
Van e com ele criou as Rinhas de MC’s, para improvisos à desgarrada. Um primeiro
disco consolidou-o no meio do rap em São Paulo.
Assinava então Criolo Doido.
Quando fez 20 anos de palco pensou retirar-se.
Mas DJ Van Van disse-lhe que talvez só estivesse
a começar. Juntou o que entretanto compusera e
com a ajuda de dois produtores entusiasmados viu
o esboço de um disco: soul, funk, bolero, reggae,
samba, além de rap. Um dia que estava à espera
para gravar veio-lhe uma canção extra. Chamava-se
Não Existe Amor em São Paulo. Decidiram incluí-la
em terceiro lugar no disco. E dar o disco, porque
Criolo acredita que tudo o que lá está lhe foi dado.
Então pô-lo na Net.
5
Isto aconteceu em 2011. O que se seguiu foi
a explosão de Criolo. Disco do ano, canção do ano, artista do ano. Caetano Veloso
apareceu ao lado dele na sessão de prémios para cantar Não Existe Amor em SP.
Alguém mostrou a Chico Buarque um vídeo no Youtube em que um rapper de São Paulo
reinventava a letra de Cálice à capela num boteco.
O rapper era Criolo e quando Chico voltou aos
palcos, ao fim de cinco anos, para os shows do seu
último disco, deixou toda a gente boquiaberta ao
cantar a versão Criolo de Cálice: “Pai / Afasta de
THEO DUBEUX
Criolo diz que
canta para
expressar
uma dor que
não passa,
que bom
mesmo seria
não sentir
essa dor.
E em tudo o
que diz, na
hesitação
como na
contorção,
não há uma
nota falsa
mim a biqueira, pai / Afasta
de mim as biate, pai / Afasta
de mim a coqueine, pai /
Pois na quebrada escorre
sangue.” Biqueira é ponto
de venda de droga, biate é
quem se aproxima por dinheiro, coqueine é cocaína.
Para Criolo eram já 23 anos
de palco, com alguns concursos perdidos, falhanços,
olhares de lado. Mas ao Brasil
pareceu um piscar de olhos:
o rapper que de repente até
Chico e Caetano cantavam.
6
A revista Trip fez
uma capa, levou-o
para Nova Iorque,
falou com a mãe. Na
entrevista que lhes
deu, Criolo diz que
canta para expressar uma
dor que não passa, que bom
mesmo seria não sentir essa
dor. E em tudo o que diz, na
hesitação como na contorsão, não há uma nota falsa.
7
Chega a noite de 14 de Abril na Fundição
Progresso, centro do Rio de Janeiro, lotação
esgotada. O rapper B Negão aqueceu bem a
massa antes do intervalo. A banda de Criolo
ocupa finalmente o palco. Como diz o DJ
Van Van, tudo é novo para eles, que estão
na estrada há tantos anos: banda é novo, cachet é
novo, hotel é novo, avião é novo. Aí vem o Dj Van
Van, tranças eléctricas e microfone na boca, grande mestre de cerimónias.
Todo de branco, com a asa de São Jorge já pousada, Criolo traz por dentro da camisa as suas missangas de Candomblé. Vê-se que são brancas e azuis
quando ele pula. Porque ele pula, roda, estaca como
um animal, domina o lugar como um índio ou um
profeta. As mulheres apertam-se contra as grades,
mas não só elas. Garotos de boné que sabem todas
as letras, um matulão que despe a T-shirt e a atira
para o palco. Criolo pega nela: tem a cara dele em
versão Andy Warhol.
Quando a banda ataca o bolero, a Fundição Progresso balança num êxtase. E daí para samba, reggae, funk, rap. Tudo o que no disco aparece separado, como um cardápio, ao vivo é fluido e coeso.
É preciso ver Criolo para perceber porque é que ao
fim de 23 anos de estrada toda a gente que o vê fica
apaixonada. Ele canta porque tem uma dor que não
passa e nada é tão verdade para quem está ali.
8
O som nem estava bom, Criolo interrompeu, entreteve. Já tinham vindo convidados especiais, rappers famosos e rappers
amigos, até um irmão. Agora vem mais um,
pequenino, grisalho. “É um menino, é um
menino”, repete Criolo. É Caetano Veloso.
Começam a cantar juntos Não Existe Amor em SP.
O microfone de Caetano não funciona. Ele desiste,
deambula pelo palco, Criolo vai atrás, fazem uma
dança, cantam na cara um do outro, abraçam-se,
Criolo, 36 anos, Caetano, 70. Criolo levanta-o do
chão como um menino. Foi ele quem escreveu,
reescrevendo Caetano: “Cartola virá que eu vi /
tão lindo e forte e belo como Muhammed Ali”. O
Brasil crioulo, que já era samba e será o futuro.
38 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
DANIEL SAMPAIO
PORQUE SIM
O QUE MANTÉM
OS CASAIS
investigação sobre os motivos que levam à
ruptura conjugal é mais consistente do que a
que sistematiza os factores de manutenção,
a longo prazo, de uma união conjugal. Em
muitos casos, os casais dizem apenas que
se mantêm juntos porque “alimentaram”
o amor, ou porque ganharam em conhecimento
recíproco e tolerância mútua.
Tentemos ir um pouco mais além e analisemos
outras razões para a estabilidade, visíveis no discurso dos casais que entrevistei ao longo de cerca
de 30 anos.
A mais referida é o compromisso. Para a maior
parte dos homens e mulheres, o compromisso
relaciona-se com o investimento permanente na
relação, sem o qual ela não sobreviverá. Investimento significa interesse, tido como primordial para a
felicidade de cada membro do casal, mas também
implica a noção de “trabalho” ligado ao relacionamento interpessoal. Quase todos, com realce para
as mulheres, consideram que o “deixar andar” era
sinónimo, a curto prazo, do triunfo da rotina e do
tédio, geradores de afastamento relacional ou ponto
de partida para vários tipos de conflitos.
Em segundo lugar, os casais referem o interesse
pelo outro. Este aspecto diz respeito à dimensão da
reciprocidade, da atenção e do cuidado em relação
A
ao parceiro/a, manifestada nos bons e maus momentos. O significado deste interesse é complexo,
porque se relaciona com situações muito diversas,
desde o apoio em situações de doença de um dos
cônjuges até ao simples elogio em momentos de
sucesso do companheiro. O interesse pelo outro
aparece agora, aos olhos de bastantes casais, bastante dificultado por uma sociedade muito competitiva, que privilegia o bem-estar individual e faz
esquecer as necessidades de quem está perto. Na
minha visão, a defesa intransigente do ponto de
vista dele e dela — necessário, sobretudo para as
mulheres, para lutar pelos seus direitos — levou a
que muitos casais actuais se refugiassem, de início,
em posições estereotipadas do que estaria certo
para o “feminino” e para o “masculino” para, mais
tarde, por conveniência face ao exterior, apagarem
as diferenças e igualizarem as atitudes e comportamentos.
Em terceiro lugar, referiram a capacidade de entreajuda e partilha como um factor sempre a considerar, sobretudo no caso dos casais com crianças
pequenas. As exigências do quotidiano — em que
ambos trabalham e educam os filhos — constituem
fonte de muitos conflitos, sobretudo nos casais mais
novos com filhos em idade pré-escolar. Por vezes,
nestas situações, fico perplexo com certos pedi-
dos de terapia conjugal,
porque não se descortinam motivos evidentes
que possam explicar a
intensidade dos conflitos
encontrados: tudo parece
girar à volta de pequenas
questões do quotidiano,
como a arrumação da casa, os banhos dos filhos,
as noites em que os bebés
não dormem… situações
do dia-a-dia que desencadeiam divergências e em
que o papel dos padrões
destrutivos da comunicação ganham progressiva
importância. Muitas vezes, nestes casos, oferecer
ao casal a possibilidade de uma conversa estruturada contribui para a melhoria da comunicação.
Compromisso, interesse pelo outro e capacidade de partilha são três dimensões essenciais para
permanecer em conjugalidade. Por certo poderia
citar outras, mas o que interessa é ficar a pensar.
E o amor, claro, mas quem sabe definir o amor?
Nem os poetas…
N
proposta, e presente na sessão, o Governo resolveu
pedir uns pareceres. Recebeu vários. O Instituto
de Política Teórica e Comportamental opunha-se
ferozmente. A Associação Portuguesa de Políticos
opunha-se radicalmente. O Departamento da Política Caseira da Universidade Nacional opunha-se
terminantemente. E a Direcção-Geral das Altas e
Médias Políticas opunha-se categoricamente. Ah,
havia ainda o parecer da Academia de Políticas
Lisbonenses, totalmente favorável. Num parecer
assinado, claro está, por um nome rigorosamente
independente: o autor da proposta de mudança de
regime. Tudo resumido, pesados os prós (um só,
mas veemente) e os contras (muitos mas facciosos,
logo dispensáveis), foi-se
a votos. A unificação política, ou seja, a ditadura,
foi aprovada com os votos
dos três maiores partidos e
a abstenção de um quarto.
Houve votos contra, claro,
mas apenas 16. E a ditadura passou a lei, aprovada
pela democracia.
Um cenário impossível?
Com a ditadura sim, pelo
menos por enquanto. Mas
tudo o que aqui se descreve já se passou em Portugal, no início dos anos 90
do século passado, com o abominável acordo ortográfico (AO). Está nos livros e nos jornais, não
é preciso inventar nada. Houve vários pareceres,
todos desfavoráveis. E houve um favorável. Assinado, claro, pelo autor do acordo. E o Parlamento
miseravelmente votou-o sem o discutir, como se
pode ler na acta da Reunião Plenária da Assembleia de República de 4 de Junho de 1991, publicada
no Diário da Assembleia da República n.º 87, de 5
de Junho de 1991. Das 32 páginas dessa edição, só
duas e meia são dedicadas ao AO e para descrever
algumas trocas de palavras entre deputados sobre
questões processuais. De resto, discutiram-se ou
aprovaram-se temas relacionados com os militares,
a actividade cinematográfica, a defesa do consumidor, os regimes de indemnizações nas empresas
nacionalizadas ou para vítimas de crimes, as taxas
sobre produtos petrolíferos, a cooperação técnica
e militar com a Guiné-Bissau e Cabo Verde e até a
criação das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto. Isto em quatro horas e meia, entre as 15h25 e as
19h55No meio disto, o AO foi despachado em menos
de um fósforo. Honra ao deputado independente
Jorge Lemos, que ainda tentou travar o “monstro”
com um requerimento, rejeitado pelos votos do PSD
mas que teve votos favoráveis do PS, PCP, PRD e dos
independentes Helena Roseta e Jorge Magalhães.
No final, o “monstro” passou. PSD, CDS, PRD e 12
deputados do PS votaram a favor. O PCP abstevese. E houve apenas 16 votos contra. Abril escreve-se
hoje abril, com caixa baixa, já repararam?
Compromisso,
interesse
pelo outro e
capacidade
de partilha são
três dimensões
essenciais para
permanecer em
conjugalidade
NUNO PACHECO
EM PÚBLICO
ABRIL COM
CAIXA BAIXA
a quarta-feira, porque a cada ano tudo se
repete, lá se celebrará mais um aniversário
do 25 de Abril. Tão perto e já tão longínquo, 38 anos. Revolução ou golpe de Estado, conforme a lembrança de cada um. A
euforia da libertação, claro, inesquecível.
Os belos versos de Sophia, que já tantos estragaram citando-os mal e a despropósito. Os cravos e
o Arsenal. Chaimites nas ruas. A vila morena na
cidade branca. Otelo e Salgueiro Maia. Símbolos e
ilusões. Utopias e desenganos. Avanços perigosos
e, no reverso, a quietude.
Tudo isso que ficou, lá longe, mas ainda ao alcance da memória. Certo é que a ditadura não caiu, foi
derrubada. Mesmo que nesse acto ela tenha involuntariamente colaborado, de tão gasta. E a verdade
é que a democracia, certamente imperfeita, depois
se implantou e por aí anda, com as suas virtudes
e vícios, as suas recompensas e fingimentos. E, a
par dela, a liberdade: de dizer, afirmar, escolher,
recusar, contrapor, contestar, protestar.
Imaginemos agora, por momentos, esta curiosa ficção: um escasso grupo de cidadãos chega ao
Parlamento e propõe ao Governo e aos deputados
uma ditadura. Tal e qual, uma ditadura. Não teria
bem esse nome, claro, por causa da carga negativa
que arrasta, mas seria uma coisa a bem do prestígio
da expressão pátria, da sua unidade essencial, de
uma política comum, que esta coisa de ter tantos
partidos a dizer-se e desdizer-se a todo o momento
(garantiam) é realmente uma canseira. Perante tal
Imaginemos
esta ficção:
um grupo
de cidadãos
chega ao
Parlamento e
propõe uma
ditadura
2 | Domingo 22 Abril 2012 | 39
FOLHETIM VII
UNIDO JAMAIS SERÁ
RUI CARDOSO MARTINS
PAULO PIMENTA
ABRIL
MADURO
ABRIL
No último
capítulo,
Catarina
e Marcos
discutiam,
na casa que
partilham em
comunidade,
como fazer
o 25 de Abril
do 25 de Abril
40 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
D
ias depois, tendo Marcos saído, Catarina subiu ao sótão com Pedro. Marcos dizia não
depender da mãe, que o criara sozinha (o
pai era um doloroso mistério antigo). Aos
domingos, no entanto, ia comer a sopa a casa dela e levantar taparuéres com etiquetas
marcadas com os dias da semana, lulas recheadas2ª feira, jardineira-3ª, etc., uma operação de amor
filial que só terminava quando a mãe lhe sorria
— Querido, precisas de dinheiro?
ao que Marcos dizia que não, que não, até aceitar
100 euros, aborrecido.
Catarina subiu ao sótão do prédio e nas escadas
sentiu o cheiro de Pedro, parecia sair-lhe de trás da
orelha, ou da cera de dentro, um calor perfumado
que se desenrolava nos caracóis dos cabelos. Ao rodar a chave do sótão, Catarina começou a pensar
— menina, estás literalmente a brincar com o
fogo,
mas não pensou até ao fim porque não era a sua
maneira de falar, fugia dos lugares-comuns como
da missa, o problema com Pedro é que o rapaz lhe
puxava, nos últimos tempos, as mais exaltantes banalidades. Se ele a fixava, por segundos, Catarina,
a quem batia no peito um coração revolucionário,
tinha aflições de telenovela ou folhetim, mas, se não
a fixava nunca, apetecia-lhe atirar-se da janela. Uma
situação explosiva para quem trata dos cocktails
Molotov, bolas, eu disse situação explosiva?... Pedro reparou.
— É assim tão perigoso?
— Ahhh... Não, não é, se tivermos cuidado. Ali
ao fundo.
As garrafas esperavam no escuro, em caixas de
madeira de seis, como se fossem embalagens de
vinho. Levantaram a ripa de uma caixa. Pedro pensava que os Molotov eram abertos no gargalo, com a
mecha a embeber a gasolina, antes de se incendiar a
mecha e atirar. Catarina explicou-lhe que há outros
tipos, alguns até usam óleo de motor misturado com
benzina, ou mesmo, imagina, napalm, com que os
americanos arrasaram as florestas e as aldeias no
Vietname.
— E as tropas portuguesas em África também,
conheço um tipo que tem fotos, só que não as mostra...
então sabes do que falo, continuou Catarina, uma
invenção dos finlandeses contra os soviéticos na II
Guerra Mundial, rebentavam os motores, as lagartas e o interior dos tanques de guerra, um homem
aproximava-se e, sozinho, com uma simples garrafa na cintura, destruía um blindado e matava os
invasores, o nome aliás não é homenagem, é um
sarcasmo ao general Molotov, lacaio do Estaline, o
“pai dos povos”, não sei se pensas o mesmo...
— Não foi socialista, foi um assassino que primeiro
se aliou ao Hitler.
Nesta conversa distante, aproximaram sem querer os dedos, uma mão de cada lado da garrafa,
e tocaram-se, de forma eléctrica, a garrafa quase
caiu.
— Cuidado, estas rebentam sem lume! Tem um
composto que...
Catarina disse que chegara a altura de aumentar o programa das comemorações do 25 de Abril.
Pedro disse:
— A sessão solene na Assembleia da República,
com o Presidente, vai estar vigiada, os manifestantes mais próximos das grades serão empurrados,
revistados, filmados...
— Polícias de bastão, escudos, outros infiltrados.
Ouvi falar em barricadas de rua, mas não sei se haverá condições. E a ideia de incendiarmos pessoas
em público era má para a nossa imagem...
— Claro, riu-se Pedro. Mas não te percebo, Catarina.
Ela pensava alto: Dia da Liberdade, festa da Democracia, em todo o país o hastear da bandeira, guardas de honra, bandas filarmónicas, saraus teatrais,
torneios de snooker, concertos solidários, finais de
paintball, tributos a Zeca Afonso, contra-relógios de
bicicletas BTT. Misturas num 25 de Abril que con-
sagrará o descalabro das famílias, dos jovens, dos
pobres, dos doentes, dos emigrantes, das mulheres,
e a salvação dos de sempre, ricos e corruptos.
— Em 1974, antes de se tomarem os quartéis, sede
do Governo, foi a emissora a rádio, a RTP. A informação. Hoje, com a Internet, seria quase simbólico.
Mas, se é para ser simbólico, vamos a isso.
— Como?
— Onde está o poder e o dinheiro, hoje? Uma bomba num banco, outra numa central eléctrica, outra
numa refinaria. Três explosões na madrugada que
eu esperava, o dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, e juntos habitamos a
substância do tempo.
— Ok. Banca, electricidade, combustíveis. Os que
nos dizem que temos de ter sempre mais aumentos
brutais, para no fim distribuírem milhões de lucros
aos accionistas, disse Pedro.
— Anda, vamos lá a baixo para te mostrar como
isto se faz. Aqui não há luz. Eu levo a garrafa.
— Disseste um poema da Sophia, disse Pedro, e
ela ficou orgulhosa.
Na cozinha estava um homem de costas, em pé,
de sobretudo. Catarina tentou voltar atrás.
— Sente-se, menina.
O homem virou-se. A cara cheia, bigode velho,
óculos de massa, pistola na mão, virada para baixo.
Agente da Secreta. Catarina sofria com a sua estupidez: tenho um cocktail Molotov na mão!
— Pode servir-me um copo? É jeropiga?
— Como é que entrou?
— Pela porta. Minha linda, não viu o Marcos?
— Não sei quem é.
— Sabes, sabes Catarina.
O homem tirou o bigode, os óculos e uma massa
de algodão da boca.
— O meu sobrinho, o teu namorado, ou enganeime?
Era Fernando, ex-operacional das forças revolucionárias, o mestre do disfarce.
a Não perca o próximo fascículo: Novos planos
Na comemoração do 38º aniversário do 25 de Abril, o Público apresenta o documentário 48. Uma obra fundamental,
que dá voz a 16 presos políticos do Estado Novo. Um filme indispensável que, ao desvendar a história que envolve estas
fotos, cria um autêntico retrato de 48 anos de fascismo em Portugal.
Terça-feira 24 de Abril, por + 10€ com o Público.
CRÓNICA URBANA
PALÁCIO FOZ, LISBOA
O Palácio Foz,
desde 1858 nos
Restauradores,
foi encomenda
dos marqueses
de Castelo
Melhor ao
arquitecto
italiano
Francisco
Xavier Fabri
SEGREDOS QUE A E
ABADIA ESCONDE
Na cave do Palácio
Foz há um antigo
restaurante
misterioso, que até
aos anos 40 serviu
de local de reunião
para os maçons de
Lisboa. Texto de
Alexandra Prado
Coelho e Ilustração
de João Catarino
42 | Domingo 22 Abril 2012 | 2
stou sozinha na Abadia, na cave do Palácio
Foz, em Lisboa. Há uma ou outra luz num
canto, mas de resto o espaço está mergulhado numa meia penumbra, e o som dos
meus passos ecoa no chão de pedra. Há um
poço que, dizem, conduz aos subterrâneos
de Lisboa, há pombas brancas nas paredes, e,
vendo melhor, também gaivotas, e elefantes com
as trombas enlaçadas, e videiras que sobem junto
ao tecto. Há uma estátua de um homem dobrado
sustentando uma coluna, e outra de um dragão
com corpo de mulher.
“Clavstrvm”, lê-se por cima de uma arcada. A
profusão de elementos decorativos é tal e tão variada que demoramos algum tempo a habituar os
olhos à luminosidade e a conseguir perceber tudo
o que nos rodeia. No início do século XX, a Abadia era um restaurante que servia para reuniões
secretas da Maçonaria, e também da sociedade
dos Makavenkos, o grupo criado por Francisco de
Almeida Grandella com o objectivo fundamental de
se dedicar a jantaradas e à boa vida — ou, como eles
diziam (e como se pode ler em Memórias e Receitas
Culinárias dos Makavenkos, da Colares Editora),
“dar largas à alegria e elasticidade à tripa”.
Foi na Lisboa do século XVIII que os marqueses
de Castelo Melhor encomendaram ao arquitecto italiano Francisco Xavier Fabri o projecto do Palácio
que ainda hoje existe nos Restauradores. Quando,
depois de interrupções várias, as obras terminaram
finalmente em 1858, o palácio era sumptuoso e tinha (no local onde está hoje a Cinemateca Júnior)
a primeira capela privada da cidade.
Mas tornou-se ainda mais faustoso pela mão do
Marquês da Foz, que o comprou em 1889 e o decorou com o que de mais luxuoso existia naquele
tempo. No início do século XX, o fim da monarquia
aproximava-se e o recheio do palácio foi leiloado,
tendo, em 1902, sido alugado a Manuel José da Silva, dono do Anuário Comercial. Este subalugou
parte do edifício ao Circo Price, que ali criou um
teatro. Em 1910, o Palácio Foz passou para as mãos
do Conde de Sucena, que alugou o espaço para
vários tipos de comércio — ali funcionou a certa
altura a delegação dos EUA, o Club Maxim’s, o
Central Cinema, e a elegante Pastelaria Foz, com
cinco portas para a rua e em cuja cave se escondia
o restaurante Abadia.
Aqui em baixo é um pequeno labirinto. Do Clavstrvm passamos para o Refectorium — um espaço
inspirado nos mosteiros da Ordem de Cister — onde, do seu lugar junto ao tecto, nos olham 24 bustos
em miniatura de homens e mulheres, alguns com
as insígnias maçónicas brilhando no peito. O guia
Lisboa insólita e secreta, de Vítor Manuel Adrião, explica que a estátua do homem dobrado sustentando
uma coluna, mesmo ao lado do poço, representa
o Grande Arquitecto do Templo da Virtude e da
Sabedoria, possuidor dos segredos da Arte Real
(a Geometria e a Matemática).
Já me esqueci que lá fora fica a Avenida da Liberdade e que, subindo a escadinha atrás de mim vou
dar à sala onde estão as funcionárias do Gabinete
para os Meios de Comunicação Social, que hoje
funciona no Palácio Foz (e que pode ser contactado
para visitas guiadas à Abadia).
Na cave é outro mundo. E se ficarmos um bocado
não é difícil começar a ouvir, lá ao longe, os vozeirões animados dos maçons ou dos makavenkos, fumando charutos, dizendo graças, e descendo para
mais um grandioso jantar — ou, quem sabe, para
uma decisiva reunião secreta — entre as paredes
misteriosas da Abadia, observados apenas pelas
gárgulas, os elefantes e o Grande Arquitecto.