Water - Público
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Water - Público
PÚBLICO, DOMINGO 22 ABRIL 2012 DIA DA TERRA UM PAÍS À BULHA COM A ÁGUA realidade conhecida, mas que muitas vezes é estranhamente vista como se fosse uma circunstância imprevista? Na procura de respostas, a 2 também bateu à porta de cientistas, buscou exemplos de adaptação na área da biodiversidade e testou, através de uma experiência pessoal, os dramas e oportunidades de poupança de água no dia-a-dia. Gerir os recursos hídricos de forma sustentável, com um olho no presente e outro no futuro, é a única receita para garantir que haverá água para todos, nas torneiras, nos campos, nas indústrias, na natureza. Sem isso, como também se mostra neste trabalho especial de 24 páginas, mais cedo ou mais tarde podemos esperar o pior: as “guerras da água”. Ricardo Garcia FOTOGRAFIAS: ENRIC VIVES-RUBIO Uma seca como a que o país está a atravessar este ano não é novidade nenhuma. Ciclicamente os portugueses testemunham situações semelhantes — nas notícias, na pele, no bolso. Se a frequência destes episódios não bastasse como alerta, o espectro de mais eventos meteorológicos extremos, fruto das alterações climáticas, está aí para catalisar uma evidência simples: é preciso aprender a conviver com as secas. Este é o tema central desta edição da 2, dedicada ao Dia da Terra. Uma dupla de repórteres percorreu o país, do Algarve ao Nordeste transmontano, levando uma pergunta para ser colocada a agricultores, autarcas, empresários, ao cidadão comum: o que fazem, não fazem ou já fizeram para lidar melhor com uma ÍNDICE Dia da Terra 04 IMAGEM/PALAVRA Bárbara Reis Pulitzer — Ver isto torna-nos pessoas melhores? Rita Pimenta Indemnização — O valor do trabalho e da antiguidade 08 ESCOLHAS A exposição E ainda Vejo os Seus Rostos, no Centro Português de Fotografia. Os livros da japonesa Harumi Kurihara. Kill For Love, o segundo álbum dos americanos The Chromatics. O filme Em Segunda Mão, de Catarina Ruivo, na 9.ª edição do IndieLisboa. 12 REPORTAGEM A chuva chegou, mas não esquecemos a seca 22 INFOGRAFIA O milagre da torneira 24 REDUZIR A PEGADA Alexandra Prado Coelho experimentou diminuir o seu consumo de água para metade. Resultou. Mas compensa? 26 CHARCOS Um refúgio de vida quando pára de chover 30 INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA Receitas para um mundo mais quente 32 GUERRAS DA ÁGUA Quando a água é motivo de guerra 36 DAR A CARA Osama Abu Ayyash dá a conhecer o “rosto dos árabes” nas escolas primárias israelitas 37 CLASSES MÉDIAS: O TABULEIRO GLOBAL A análise de Jorge Almeida Fernandes 40 UNIDO JAMAIS SERÁ Jorge Silva O homem de Pavia 11 Alexandra Lucas Coelho A dor de Criolo 38 Daniel Sampaio O que mantém os casais 39 Nuno Pacheco Abril com caixa baixa 39 Sétimo capítulo do folhetim de Rui Cardoso Martins 42 CRÓNICA URBANA Nas caves do Palácio Foz, em Lisboa CRÓNICAS José Diogo Quintela Esquema de pirâmide demográfica invertida 6 Paulo Varela Gomes Baby Darshan 8 Jorge Marmelo Derradeira poesia 9 Vítor Belanciano Cultura visual e cultura da palavra 10 FICHA TÉCNICA Directora Bárbara Reis Editoras Francisca Gorjão Henriques [email protected], Paula Barreiros [email protected] Copydesk Rita Pimenta Design Mark Porter e Simon Esterson Directora de Arte Sónia Matos Designers Helena Fernandes, Sandra Silva Email [email protected] Este suplemento faz parte integrante do Público e não pode ser vendido separadamente 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 3 INDEMNIZAÇÃO O VALOR DO TRABALHO E DA ANTIGUIDADE Substantivo feminino que significa “recompensa”, “ressarcimento de dano sofrido” ou “aquilo que se concede ou se consegue para compensação de um prejuízo”. Os dicionários nunca dão o exemplo concreto de “indemnização por despedimento”. Mas foi um assunto que por estes dias ocupou o Governo, que divulgou a decisão de a baixar “para seis a dez dias por cada ano de antiguidade”, contra os actuais 20 a 30 dias. Portugal aproxima-se assim do “valor médio das compensações na União Europeia”. Compensações de despedimento (não de trabalho). O Ministério da Economia considera a “medida fundamental para tornar o mercado de trabalho mais competitivo”, permitindo “criar mais e melhores postos de trabalho”. Em termos jurídicos, “indemnização” corresponde a “ressarcimento da perda de um direito adquirido por contrato ou ajuste”, mas também “modo de liquidar a responsabilidade derivada de um facto criminoso”. Não se indica as contas a fazer, nem em dias nem em euros. Para a forma verbal “indemnizar”, a explicação é “pagar a alguém o valor do dano material ou moral que sofreu”. Sinónimos: “compensar”, “reparar”, “remunerar”. O dicionário revela-nos ainda o adjectivo e substantivo “indemnizista”, “relativo ao sistema político da indemnização” ou “partidário desse sistema”. Em português do Brasil, escreve-se “indenização” — cai o “m”. Se caem dias, não sabemos. Rita Pimenta IMAGEMPALAVRA MASSOUD HOSSAINI/AFP O grito de Tarana Akbari, 12 anos, segundos depois de um atentado em Kabul em Dezembro de 2011, no qual morreram 70 pessoas PULITZER VER ISTO TORNA-NOS PESSOAS MELHORES? 4 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 N ão vale a pena pensar nas perguntas que poderíamos fazer ao olhar para esta fotografia, que acaba de ganhar o Pulitzer na categoria de Fotografia de Última Hora. Susan Sontag já as fez — pelo menos as mais importantes —, no ensaio Looking at War, publicado na New Yorker há dez anos. Escrevendo sobre imagens de guerra, questiona: “Qual é o objectivo em mostrar estas fotografias? Despertar indignação? Fazer-nos sentir ‘mal’, ou seja, horrorizar-nos e entristecer-nos? É mesmo necessário olhar para estas fotografias? Ver estas fotografias torna-nos pessoas melhores? Elas ensinam-nos alguma coisa? Ou apenas confirmam o que já sabemos?” Sem nos dar muitas respostas, Sontag obriga-nos a olhar para esta fotografia de Massoud Hossaini, o repórter da France Presse que ganhou o Pulitzer, com outra pausa. Hirtos nos nossos computadores ou nos nossos sofás, vemos um instante da guerra no Afeganistão, que começou há 11 anos e já matou mais de 15 mil civis, e que é distante para o nosso olhar europeu, mas próxima para milhões de pessoas. A fotografia foi tirada segundos depois de um ataque suicida em Kabul. Tarana Akbari, 12 anos, grita rodeada de crianças mortas. O fotógrafo, um afegão de 30 anos, estava ali perto quando ouviu a explosão. Correu no sentido contrário ao das pessoas e quando chegou ainda todos gritavam. Gritos sem palavras e gritos de “Morte à Al-Qaeda!” e “Morte aos taliban!”. Em 12 anos de prémios Pulitzer (os anos disponíveis no site oficial), é difícil encontrar uma fotografia mais perturbadora. Quis o júri dizer-nos alguma coisa sobre o modo como hoje olhamos para a guerra? Com demasiado pudor ou, pelo contrário, com demasiada frieza e indiferença? Quer o júri dizer-nos que, com os nossos olhares poluídos e viciados em imagens, perdemos a capacidade de sentir alguma coisa perante a guerra? Não sabemos. Sig Gissler, ex-membro do júri dos Pulitzer e hoje administrador do board, disse apenas que “é uma fotografia simples, fascinante, que fica na nossa memória”. De facto, não é plasticamente que a fotografia impressiona e tem a qualidade de não esteticizar a dor (a dor dos outros, dizia Sontag). Talvez a intenção do prémio seja apenas essa: reiniciarmos este debate. Bárbara Reis ESQUEMA DE PIRÂMIDE DEMOGRÁFICA INVERTIDA H Decreto-Lei 57/2008 de 26/3, sobre boas práticas comerciais. É prática comercial enganosa: “Criar, explorar ou promover um sistema de promoção em pirâmide em que o consumidor dá a sua própria contribuição em troca da possibilidade de receber uma contrapartida que decorra essencialmente da entrada de outros consumidores no sistema”.) O importante é que ainda temos mais alguns anos de Segurança Social. E quem se vai tramar é gente que neste momento ainda não sabe ler. Estamos safos. Vivemos um momento único na história do Estado social. O momento em que o contribuinte desconta em exclusivo para um pensionista específico. Antes eram vários contribuintes para um só pensionista, em breve serão vários pensionistas só com um contribuinte. Há que aproveitar a oportunidade para humanizar o sistema. É por isso que desejo conhecer pessoalmente o meu reformado. Uma coisa é dividir um com mais três pessoas, outra é tê-lo só para mim. A relação fica mais pessoal. Teremos coisas em comum? Se calhar gostamos os dois do Ídolos. E temos uma predilecção por casacos de malha (eu por causa do estilo, ele por causa das correntes de ar). Quero saber quem é este idoso a quem, ao fim de uma vida de trabalho, proporciono o merecido descanso. Quero-me certificar de que não precisa de nada, tem saúde e está para durar. E depois vou pedir para trocar por outro. Desejo conhecer pessoalmente o meu reformado. Uma coisa é dividir um com mais três pessoas, outra é tê-lo só para mim GPS iPHONE VERÃO Pedro Cunha 38.7007N 9.3902W Praia Azaruginha 6 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 38.7110N 9.1460W Bairro Alto IMAGEMPALAVRA JOSÉ DIOGO QUINTELA É MUITO ISTO á 30 anos um casal português partilhava o carro, a televisão e o telefone. Hoje em dia cada um tem um carro, uma televisão e um telefone só para si. E o individualismo chegou também ao Estado social: cada um tem agora um pensionista só para si. Em 1982, por cada reformado descontavam quatro contribuintes. Hoje é só um. Os meus pais não tinham um aposentado só deles, dividiam com outro casal. A minha geração é tão egoísta que nem um velhinho sabe partilhar. E a tendência é a ganância piorar, com cada contribuinte a aforrar o maior número de reformados possível. Há miúdos recém-entrados no mercado de trabalho que já têm mais de dois pensionistas. Garganeiros. Em breve vai haver um contribuinte que acabará por ter o monopólio de reformados. Os descontos de um só português vão sustentar 10 milhões. Há-de estar a nascer esse Messias que, em vez de uma cruz, carregará às costas o sistema nacional de pensões inteiro. Parece que a culpa é da demografia. Diz-se que “nada é certo, tirando a morte e os impostos”. O problema é que em Portugal a morte chega cada vez mais tarde, o que agrava os impostos dos poucos que nascem. A proporção entre trabalhadores e reformados está a diminuir. Em 1982, um reformado aos 65 anos podia esperar viver mais 12. Agora vive mais 19. Vive mais tempo, mas em piores condições. O Estado social está-se a transformar num esquema de pirâmide, em que quem chega agora investe, mas quando se reformar não vai receber. É que nessa altura já não haverá ninguém para descontar. Neste caso, uma pirâmide demográfica invertida. (É curioso que aquilo que é a base do Estado social seja proibido pela alínea r) do art.º 8.º do BABY DARSHAN U m dos poucos canais de televisão que considero interessantes é o Baby First. Trata-se de um canal norte-americano dirigido às crianças. Obedece a algumas regras em matéria de conteúdos, entre as quais a mais significativa para mim é a de que, como diz o respectivo site, não mostra qualquer “material excessivamente estimulante dos sentidos”. O canal tem vários programas, a maior parte dos quais são uma chatice, mas, para galhofa de toda a gente que me observa, fico fascinado com programas como Color Symphonies (movimentos abstractos de aguarelas), Black and White (desenhos ultraminimalistas em preto e branco, executando movimentos simples e repetitivos), Carousel Dreams (formas coloridas que giram como num carrossel) e Kaleidoscope (que se percebe o que é). As imagens são complementadas por música muito monótona. Os programas passam à noite dentro de uma temática designada como Rainbow Dreams que se caracteriza por conter “imagens calmantes para as crianças na hora de irem dormir”. Não sei se as imagens tornam as crianças sonolentas ou não. A mim, fixam-me ao ecrã e mergulham-me numa atenção branda mas não menos aguda em relação às formas. Só me dá vontade de dizer coisas como: “olha a mancha vermelha...”; “olha o azul e o amarelo a desaparecerem...”; “olha, o cavalinho preto baixou o pescoço...”. As imagens fazem olhar e não produzem outro efeito senão o encanto do olhar. (É pena que o feiíssimo logótipo do canal ocupe uma parte importante do ecrã, impedindo as imagens de brilharem em toda a sua glória.) Ao habituar-me a ver Babby First, foi-me ocorrendo que estas imagens e sons me lembram alguns programas religiosos da televisão indiana de que também gostava muito: durante tempos infindos vemos o plano imóvel da imagem de uma divindade que nos olha fixamente e ouvimos a melopeia repetitiva de uma oração cantada. O efeito produzido pela imagem diz-se “Darshan”. Pode ser exercido por imagens divinas, mas também pela imagem de um rei... ou até pelo olhar intenso de alguns heróis do cinema indiano. “Darshan” é o poder exercido pelo olhar directo e fixo de quem tem para isso a força: o nosso espírito é transportado pela relação com esse olhar. Não se trata de uma relação hipnótica, longe disso. Ficamos despertos de uma forma muito singular porque o olhar nos liberta de tudo o resto. Era o que sucedia no passado quando se contemplavam os ícones da primeira pintura cristã e da pintura bizantina. Seja com a litania de cores e sons de Baby First, seja com o olhar fixo da divindade, ali estamos, adoradores daquilo que, nas imagens, é apenas para ver. ‘Darshan’ é o poder exercido pelo olhar directo e fixo de quem tem para isso a força: o nosso espírito é transportado pela relação com esse olhar 8 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 FOTOGRAFIA A POLÓNIA PERDIDA VEJAISTO PAULO VARELA GOMES CARTAS DE VER Quando chegou à caixa do correio da Fundação Shalom, em Varsóvia, o retrato desta família de judeus polacos surpreendidos a ler o Berliner Tageblatt (possivelmente um souvenir da passagem por Brzesc de um soldado alemão da Primeira Guerra Mundial) vinha acompanhado de um curto bilhete: “Ao folhearmos o álbum de família da minha mulher, vimos uma fotografia de uma família judia. Quando a descolámos, encontrámos no verso uma nota com o ano 1914. Não conseguimos explicar quem terá tirado a fotografia ou por que razão estará no álbum. Ewa e Romuald Jaskiewicz, Koscian.” Desde 1994, o ano em que mobilizou a diáspora judaica espalhada pelo mundo para enviar ao cuidado da Fundação Shalom, em Varsóvia, imagens de um mundo desaparecido — a Polónia 10% judaica que não sobreviveu ao Holocausto —, Golda Tencer recebeu milhares de bilhetes parecidos com o do casal Jaskiewicz. Ao todo, mais de nove mil fotografias fizeram o seu caminho até à Fundação Shalom nestes últimos 18 anos, salvando do esquecimento a pequena história de milhares de judeus anónimos cujo modo de vida (memoravelmente fixado nos contos de Isaac Bashevis Singer) se extinguiu irremediavelmente com a Shoah. E ainda Vejo os Seus Rostos. Fotografias de Judeus Polacos, a exposição que o Centro Português de Fotografia, no Porto, hoje se inaugura às 16h30, é o álbum dessa gigantesca família perdida (dos seis milhões de judeus assassinados nos campos de morte nazis, cerca de 3,5 milhões seriam polacos). Guardadas como preciosidades ou abandonadas em sótãos, as imagens vieram sobretudo da Polónia, mas também de Israel e da Venezuela, de Itália e dos EUA, onde familiares afastados ou perfeitos desconhecidos separados por várias gerações reencontraram uma colega de escola (“ela era a melhor a Matemática”), o alfaiate judeu que um dia fez vestidos de primeira comunhão, uma família de Brzesc com o Berliner Tageblatt. Através delas, descobrimos as incríveis histórias da senhora Chablima, que se fez fotografar com os filhos antes de ser mandada para o gueto para ser reconhecida depois da guerra, e de Zahava Bromberg, que em Auschwitz passou por duas selecções do Dr. Mengele com o retrato da mãe escondido debaixo da língua e sobreviveu para contar. Inês Nadais E ainda Vejo os Seus Rostos. Fotografias de Judeus Polacos fica no Centro Português de Fotografia até 3 de Junho FUNDAÇÃO SHALOM JOÃO DIAS JORGE SILVA ALMANAQUE O HOMEM DE PAVIA M lenta sobre um tema clássico do filme negro. Mas é difícil não sentir que essa sedução se deve em grande parte à presença de Hestnes, que se poderia definir, paradoxalmente, como de tranquila inquietação, e que parece dar a Em Segunda Mão uma gravidade e uma consistência perfeitamente sintonizadas com a abordagem de Catarina Ruivo. Raramente teremos visto no cinema português um filme e um actor que estão tão interligados como este. E se Em Segunda Mão não é nem uma obra ao nível do assombroso Tabu de Miguel Gomes, nem um objecto tão acessível ao público como a Florbela de Vicente Alves do Ó — e ainda bem que assim é, porque é sinal de que o cinema que se faz entre nós não se resume a gavetas standardizadas — é um filme que merece de corpo inteiro ser reconhecido, em todas as suas fragilidades e inspirações, também pela interpretação extraordinária de um actor que nos deixou cedo de mais. Jorge Mourinha Em Segunda Mão, de Catarina Ruivo, é exibido no IndieLisboa a 29 de Abril (21h30, Grande Auditório da Culturgest) e a 1 de Maio (14h30, cinema Londres) Em toda a sua obra gráfica colou Pavia o olhar ingénuo e sonhador do deserdado da fortuna que ele era VEJAISTO INDIELISBOA EM SEGUNDA MÃO: ESTREIA MUNDIAL É muito fácil perdermo-nos no labirinto de secções, sessões e apostas do IndieLisboa, que chega este ano à sua nona edição (26 de Abril a 6 de Maio) com uma programação que pode ser mais discreta do que habitual mas é particularmente representativa da inventividade do cinema de autor internacional. Pelo meio das propostas vindas de todo o mundo, há um filme português apresentado em estreia mundial que merece um olhar muito especial. Em Segunda Mão, terceira longa-metragem de Catarina Ruivo após André Valente e Daqui p’rà Frente, foi também o último papel no cinema de Pedro Hestnes, actor que marcou indelevelmente uma geração do cinema português e que morreu em Junho de 2011, quando o filme estava já em montagem. O interesse de Em Segunda Mão, há que dizê-lo, não se limita à presença do actor — há algo de genuinamente sedutor, mesmo que não inteiramente conseguido, nesta variação em câmara orreu no dia do seu aniversário, aos 50 anos. A broncopneumonia e o corpo debilitado pela fome crónica e pelo orgulho soberbo cortaram a meio a obra do mais estimado ilustrador neo-realista português. No quarto da pensão onde vivia, na Rua Bernardim Ribeiro, em Lisboa, acompanharam o seu último alento alguns dos escritores para quem generosamente desenhava as capas dos livros que vieram a constituir o coração do neo-realismo português nos anos 40 e 50 do século passado. O feitio esquivo e a obsessão pelo Alentejo natal fizeram dele, sobretudo a partir da sua trágica morte, um modelo para os comunistas portugueses da época. A devoção a este “príncipe sem vintém”, nas palavras de José Gomes Ferreira, ficou expressa ainda em 1957, ano da sua morte, em número da revista Vértice por onde passa a sentida homenagem da comunidade intelectual. Ilustrou o escol do neo-realismo, Alves Redol, Antunes da Silva, Fernando Namora, Manuel Mendes, Domingos Monteiro, mas também Dostoievski e Tolstoi, para algumas das emblemáticas editoras da época, como a Portugália, a Guimarães, a Inquérito e a SEC. Os camponeses e pescadores das suas ilustrações, as suas magníficas ceifeiras, são gigantes de corpo robusto e olhar manso, mãos e patorras enormes cumprindo a gramática visual dos muralistas mexicanos Rivera e Siqueiros. Homens e mulheres à espera da redenção e de amanhãs que cantam, ao sol inclemente da planície ou à sombra de nodosas azinheiras, em cenário minimalista de vigoroso preto e branco a tinta-da-china ou em exuberante cromatismo, revelando o afinado grafista de algumas das mais belas capas daqueles anos. A militância de Manuel Ribeiro de Pavia (Pavia, 1907-Lisboa, 1957) era essencialmente sentimental, um neo-realista lírico sem sombra de pecado ou proselitismo. Fidelidades pessoais valiam mais que a doutrina e Pavia ilustrou a Política do Espírito de António Ferro, literatura e propaganda colonial e até mesmo, em 36 e 41, violentos cartoons anti-soviéticos no jornal fascista Acção. Em toda a sua obra gráfica colou Pavia o olhar ingénuo e sonhador do deserdado da fortuna que ele era, pouco à vontade no papel de proletário da ilustração, calcorreando as editoras e jornais da grande cidade. 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 9 DR VÍTOR BELANCIANO APARTES CULTURA VISUAL E CULTURA DA PALAVRA A Ainda não está no Pinterest? O Facebook ou o Twitter já eram 10 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 CD O EROTISMO PODE MATAR CD The Chromatics Kill For Love Editora Italians Do It Better 9,99€ O segundo álbum dos americanos The Chromatics chama-se Kill For Love e no título já está encerrado o imaginário do grupo do multi-instrumentista Johnny Jewel e da cantora Ruth Radelet: romantismo exacerbado e emoções à flor da pele, marcados por envolvente e erótica música pop electrónica. Johnny Jewel foi o autor da banda sonora do filme do ano passado Drive, que viria a afirmar definitivamente o actor Ryan Gosling como o modelo do tipo com pinta, que vive melancolicamente nas margens, mas com o qual é difícil não engraçar. Em poucos filmes recentes a música desempenhava um papel tão fundamental na definição dos ambientes, tornando as coisas opacas ou transparentes, de acordo com a acção. O que está de acordo com a música do grupo. Não só dos Chromatics, mas da restante família da editora Italians Do It Better. Numa altura em que a maior parte das editoras revelam sinais de perda de identidade, a Italians Do It Better constitui uma das excepções, com um tipo de sonoridade e um conceito visual característicos. O responsável é Johnny Jewel que, para além dos Chromatics, é também o mentor dos projectos Glass Candy e Desire, todos eles operando no campo da pop electrónica de tensão sensual, com vozes voluptuosas e um imaginário devedor de um certo psicadelismo exótico dos anos 70. Kill For Love, o álbum agora editado, constituiu a apoteose destas especificidades, composto por canções que reiteram uma pop electrónica de guitarras e teclados do antigamente lá dentro, marcando indelevelmente climas sensuais, libidinosos, tentadores. São canções minimalistas, quase oníricas na maneira como integram diferentes temperaturas, do glaciar ao mais cálido, canalizando-as para criar um enorme espaço de volúpia. Como se de repente as luzes da pista de dança baixassem, criando um ambiente um pouco obscuro, deixando entrever uma dimensão interior que julgávamos não estar lá, fazendo-nos sentir que existem personalidades complexas por trás da aparência de simplicidade que os Chromatics podem personificar. Há qualquer coisa de teatralizado nos quadros que o grupo propõe, mas ao mesmo tempo de muito autêntico e algo sombrio. Johnny Jewel diz que todas as canções que compõe acabam por expor momentos traumáticos, períodos rituais de mudança que declaram um antes e um depois. “Everybody’s got a secret to hide” [todos temos um segredo], canta Ruth Radelet, de forma sussurrada, no tema-título Kill For Love. É bem capaz de ser verdade. Vítor Belanciano OUÇAISTO inda não está no Pinterest? Então, não está actualizado, não é ninguém, não tem pinta. O Facebook ou o Twitter já eram. Tornaramse vulgares, demasiado grandes, transversais, plurais e plebeus para quem acha que o seu universo é exclusivo e deve ser apenas partilhado com outros que pensam da mesma forma. Ironizo, claro. Ou, se calhar, não. 2012 parece ser o ano das redes sociais visuais. Depois do Instagram — comprado na semana passada pelo Facebook, por milhões —, a rede social de que se fala é o Pinterest, misto de Twitter e Tumblr com Flickr, um mural de fotos online, que permite criar murais temáticos (moda, comida, design, arquitectura, casamentos), servindo para partilhar interesses, ou organizar ideias temáticas, de uma forma bastante visual. Num curto período de tempo, o Pinterest multiplicou os frequentadores e já é a terceira rede social mais popular nos EUA. Como outras permite a hiperpersonalização, mas neste caso essa circunstância é ainda mais acentuada: este sou eu. Isto é o que eu gosto. Isto é quem eu quero ser. E contribui para disseminar um fenómeno dos últimos tempos em contextos de sociabilização. Antes, ao jantar, ou em reuniões, exprimíamo-nos por palavras o melhor que conseguíamos. Agora iniciamos uma argumentação e, às tantas, viramo-nos para os nossos interlocutores e sacamos de um iPhone ou de um aparelho similar, e começamos a mostrar fotos ou vídeos, como se validassem a nossa teoria. As imagens falam por nós, parecemos acreditar. A comunicação é cada vez mais visual. Ou melhor, é cada vez mais mista. Vale tudo, palavras e imagens, em rodopelo, não se substituindo, mas entrelaçando-se num corrupio constante. Umberto Eco dizia que este era o século da palavra, por oposição ao anterior, marcado pela ascensão do cinema e TV. Ou seja, as redes sociais, o email, os blogues e outras ferramentas digitais teriam estabelecido novas dinâmicas no uso da palavra. E é verdade. O computador passou a ser uma espécie de interface que facilita a criação colectiva, a autoria partilhada, a colaboração paralela. É um espaço de interlocução, confronto e exposição. Por mais fotos e vídeos, os modos de leitura e escrita acabam por estar presentes. Os mais conservadores dirão que os textos literários clássicos não são os mais lidos pelos jovens. Sim. Mas talvez seja mais adequado dizer-se que os jovens já não lêem como o fazíamos há algumas décadas. O processo de leitura mudou. Mais do que a quantidade, a preocupação deveria deter-se sobre a qualidade daquilo que se lê. E isso só se consegue aceitando a pluralidade de leituras e de escritas de que dispomos e as respectivas adequações. Compete aos educadores olhar sem complexos para o caos da Internet — com os seus atalhos, perigos e preciosidades — e traçar o melhor caminho, sem se esquecerem que a palavra não é superior à imagem. São diferentes, mas podem complementar-se ou mesclar-se. LIVRO LEIAISTO COZINHA JAPONESA EM CASA Cozinha japonesa? Huumm. Receitas simples para a família e os amigos? Huumm. Harumi Kurihara, que era uma simples dona de casa até se transformar na Delia Smith japonesa, fez os seus primeiros livros de receitas a pensar no público japonês. Mas Cozinha Japonesa com Harumi foi feito a pensar nos ocidentais, que como eu sempre se interessaram pela cozinha japonesa que fosse além do sushi. E resulta. Tudo parece tão fácil com as explicações de Harumi (www.yutori.co.jp/en) e as dicas para se substituírem os ingredientes que forem mais difíceis de encontrar. Pertenço aos primeiros alunos do chef Paulo Morais (que entretanto abriu a primeira Sushi School do país) e isso serviu-me de base para saber as diferenças entre molho de soja, mirin, miso, vinagre de arroz, sementes de sésamo, saké e também os truques para cozer arroz japonês sem desatar a chorar, a seguir, a olhar para a tigela. Mas foi com as receitas simples e de pratos tradicionais de Harumi que passei a fazer regularmente caldo dashi (“à séria”, com alga kombu e katsuogusbi, os flocos de peixe seco, que compro nas lojas chinesas no Intendente ou na loja japonesa Goyo-Ya na Rua Filipe Folque n.º 30 D, em Lisboa) para conseguir chegar a casa e, rapidamente, fazer sopas e massas (udon, yaki soba, etc.). Harumi Kurihara tem um DR programa de televisão, Your Japanese Kitchen, com George Williams e Daniel Kahl. As receitas estão disponíveis com fotos e em inglês no site do canal NHK (www3.nhk.or.jp/nhkworld/ english/tv/kitchen). Se quiserem saber como fazer o típico Shabu-shabu (legumes e carne cozidos em caldo com molho ponzu) vejam o programa no YouTube (youtu.be/JlaSK6Cfkvo). Essencial é também o canal Cooking with Dog no YouTube. A chef japonesa que cozinha acompanhada pelo cão Francis foi atropelada, em Janeiro, em Tóquio, e está a recuperar. Por isso não têm divulgado vídeos novos mas estão a remasterizar os antigos. São viciantes. Isabel Coutinho DR JORGE MARMELO PIOLHO DOS LIVROS DERRADEIRA POESIA S onhei, uma noite destas, que viajava num avião muito decrépito e desconjuntado, pilotado por um freak norte-americano que fumava charros e conversava com os passageiros enquanto evitava colisões com gestos displicentes (voávamos muito baixinho). A dado passo, o avião entrou numa grande nave que era uma espécie de museu da aeronáutica, com cujas relíquias só não esbarrávamos porque o americano conseguia sempre manobrar para evitar o desastre no último momento. Saímos lá de dentro estilhaçando uma grande janela e, então, despertei. Ao acordar, lembrei-me de uma história que me contou, há mais de dez anos, o Ivo Machado, um poeta que é controlador aéreo, ou vice-versa. O Ivo escreve versos desenhando letras miudinhas, belíssimas, em cadernos de capa dura, e lê os poemas que escreve numa voz grave e forte, como de oráculo — a mesma voz que acompanhou as últimas horas de um aviador em rota de colisão com o fim. O episódio tem quase 30 anos e duas personagens: o Ivo Machado, então a trabalhar no centro de controlo aéreo da ilha de Santa Maria, nos Açores, e um velho piloto a bordo de um pequeno avião estafado que tinha sido comprado para ser usado como pulverizador nas plantações da Califórnia. No trajecto entre os Açores e o continente americano, os ventos fortes do Atlântico Norte obrigaram o aviador a andar aos ziguezagues e, por isso, as reservas de combustível do avião foram chegando ao fim. Quando percebeu que não conseguiria já atingir nenhum ponto em terra firme, o homem solitário aos comandos da aeronave contactou o controlo e ficou a conversar com o Ivo, pondo-o a par dos factos: era provável que morresse dali a pouco. Diligente, o Ivo fez o que profissionalmente lhe competia. Recolheu dados, fez cálculos, deu instruções. Quando, porém, se tornou evidente que as leis da física e da aeronáutica nada podiam valer ao viajante, ocorreu-lhe preencher o denso silêncio que há sobre o mar recitando poesia. Traduziu todos os poemas que sabia de cor e, depois, lembrou-se de que tinha no cacifo um livro de Walt Whitman que alguém tinha abandonado no café do aeroporto: Leaves of Grass. Imagino-o com uma clareza enorme: o avião perdendo altitude, aproximando-se mais e mais do cume prateado das ondas, e a voz do Ivo recitando, talvez, aquele verso que diz “To fly in the clouds and winds with me, and play with the measureless light”, e o aviador cerrando os olhos e sentindo ao seu redor a desmedida luz da madrugada. Na manhã seguinte, o Ivo soube que, a partir do ar, as autoridades canadianas tinham localizado o avião, o qual tinha, afinal, amarado perfeitamente. Respirou de alívio. Disseram-lhe, mais tarde, que um painel do cockpit se tinha soltado com o impacte no mar, caindo sobre o piloto e matando-o. Como sucede com todas as pessoas que já ouviram esta história, tenho a certeza de que o aviador morreu em paz, embalado pela poesia. A voz do Ivo acompanhou um aviador em rota de colisão com o fim Cozinha Japonesa com Harumi Autora: Harumi Kurihara Fotografias de Jason Lowe DK Civilização Editores 21,99€ 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 11 Francisco, em Beja, sorri. Tal como João, em Vila Nova de Foz Côa. No jogo do “como e em Beja, impressiona-se — ver as vacas à luta por comida é inusitado. Retratos de um paí ANDREIA SANCHES TEXTO ENRIC VIVES-RUBIO FOTOGRAFIA A CHUVA CHEGOU, MAS NÃO ESQUECEMOS A SECA o enganar a seca”, parecem sair-se bem. Ambrósio, na Serra da Estrela, chora. E José, país que tem a seca no seu ADN. E onde às vezes se lida de forma estranha com a água E sta é uma viagem de Bragança a Olhão, no início de uma Primavera que trouxe aos campos as cores das papoilas, das giestas, das margaças e do rosmaninho mas que não consegue remediar o mal feito por um Inverno seco. Vamos parar várias vezes e constatá-lo. Na Serra da Estrela, onde um pastor de voz ríspida perde a compostura e chora — prefere vender as ovelhas a vê-las tombar à fome. Na aridez desmesurada das terras de Mértola. No Campo Branco, no Alentejo — “um campo de golfe tem mais relva do que isto”, diz um vaqueiro, com um sentido de humor à prova de seca, enquanto olha para 40 hectares de aveia. Paragem também nos pomares do Sul da Serra da Gardunha, onde os produtores de fruta “andam à bulha com a água”. Em Vila Nova de Foz Côa, onde uma conhecida casa de vinho do Porto faz o que ainda não é consensual fazer: regar a vinha. E ainda em Silves. E em Olhão... Uma viagem para ver como um país em seca e com secas frequentes se relaciona com a água. No final de Março, 57% do território continental estava em seca meteorológica extrema, segundo a comissão de acompanhamento e avaliação dos impactos da seca de 2012. Entre 1 de Outubro e 31 de Março, choveu menos 48% do que é normal. Mas nada disto é assim tão novo. Temos aprendido com as secas — as de 1981, 1992, 1995, 1999, 2004, 2005? Ou com a chuva esquecemos tudo? 14 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 A 2 encontrou vários autarcas, empresários e agricultores que nos últimos anos procuraram preparar-se. E outros que reclamam um maior empenho do Estado e mais apoios. Mas ainda há muita sobreexploração de recursos hídricos, diz a geógrafa Maria José Roxo, especialista em desertificação da Universidade Nova de Lisboa. E desperdício. Este é o relato de uma incursão que começou nos últimos dias de Março, quando as nuvens começaram a chegar e, com elas, uma chuva miudinha. DE BOCA VAZIA NAS TERRAS ALTAS O sol já vai baixo, está um vento frio na serra e Júlio Ambrósio, 62 anos, não traz boa cara. É um homem grande, de ombros largos, boina verde na cabeça, um tom de voz ríspido. Olha para a nuvem densa de poeira provocada pelas patas das ovelhas que regressam à quinta apressadas, depois de um dia inteiro a pastar, e comenta irritado: “Nem no Verão levantam tanto pó, nem no Verão isto está tão seco!” O que se vai passar de seguida só serve para o deixar ainda mais maldisposto. Os animais estiveram desde manhã nos campos, à cata de mato e pequenas ervas. Mas nem a mais persistente das ovelhas tem grande sorte por estes dias em pleno parque natural da Serra da Estrela, na freguesia de Prados, concelho de Celorico da Beira. “Nesta altura do ano, era para andarem aí aos saltos, nas serras altas, a encher a boca. Agora, nem nas serras altas nem nas baixas.” Com a falta de água, nada cresceu. Quando elas e a sua nuvem de pó chegam à loja, conduzidas pelo filho de Ambrósio, atropelam-se umas às outras para apanhar o feno e a ração que já foram espalhados pelo chão. Trazem fome. E comem, comem, comem até que alguém as conduza, aos grupos de 24, para a sala de ordenha mecânica. Estamos na Quinta da Póvoa, um negócio de três famílias que produzem queijo Serra da Estrela e exploram 300 hectares de pastagens temporárias e permanentes, centeio, aveia com grão, feno bravo — de onde saem 10 mil a 12 mil fardos por ano que é suposto garantirem que nunca falta alimento a 600 ovelhas de cornos rugosos e lã espessa. “Este ano não estou a ver como vá cortar sequer mil.” E o que guardou do ano passado está a esgotar-se. De cada grupo de 24, Ambrósio costumava extrair cinco litros de leite, o equivalente a um quilo de queijo. Mas isso é o que é costume. Por estes dias é diferente. “Já vai ver o que fica no depósito quando acabarmos.” E no final da ordenha mostra o depósito transparente, para onde corre o leite. Marca menos de dois litros. “Como é que se pode andar de cabeça erguida?” Dez minutos depois de receber a 2, com a sua voz ríspida, não contém as lágrimas. “Viu a viatura que passou aí, não viu? Vêm para comprar algumas ovelhas. É melhor vender barato do que vê-las a morrer à fome.” Afinal, não estava maldisposto este homem grande, de ombros largos, quando nos apareceu com má cara. Estava desesperado. Segundo a comissão de acompanhamento e avaliação dos impactos da seca de 2012, a região Centro foi uma das mais afectadas pela seca extrema. Num ano normal regista-se em Março uma precipitação de 55 mm na região; este ano foram 14. O impacto no abastecimento urbano já se fez sentir nas cidades. A Águas da Covilhã accionou um plano de contingência. “Consiste no aproveitamento de águas de particulares e de águas com baixa qualidade que, em situação de ano normal, não são aproveitadas. A rega de espaços verdes foi interrompida”, informa a empresa municipal. Mas é na pecuária que as consequências são mais visíveis. O relatório publicado pelo Governo na primeira semana de Abril falava de quebras que vão dos 40% aos 80% na produção de culturas forrageiras (destinadas a alimentar os animais), de uma redução de valor idêntico nos cereais de Outono/Inverno, como o centeio, e de uma ainda maior nas chamadas “pastagens permanentes”. A “escassez de alimentos grosseiros para o gado” e o “esgotamento das reservas” fez disparar o preço de fenos e palhas — nalgumas zonas registaram-se aumentos de 75%. O pior pode estar para vir. Não haverá reservas para o próximo ano. E o desalento toma conta de muitos criadores. O Governo já prometeu ajudas e também há autarquias a acenar com apoios. Em Março, a Câmara Municipal de Oliveira do Hospital anunciou 30 mil euros para distribuir pelos pastores e produtores de queijo. Vítor Rodrigues, na freguesia de No- gueira do Cravo, é um dos contemplados. Ao longe podem parecer verdes os diferentes talhões da propriedade arrendada, onde semeia. Contudo, ao perto, é fácil constatar o desastre. Pára o jipe num rectângulo de terra: “Aqui semeei aveia, azevém, serradelas, trevos...”, uma mistura pensada para que as suas 100 ovelhas dessem mais leite. Mas os trevos mal despontaram e as espigas surgiram antes do tempo — e se o cereal espiga com um palmo de altura, não cresce mais. Rodrigues é um dos que dizem que também não vão conseguir fazer feno. E já está a ter de comprar. “Quatro euros o fardo de 12 quilos, quando costuma ser a 2,5 euros.” Há pastores a recorrer à banca e a pedir emprestado. Ele ainda não chegou aí, mas não falta muito. Encolhe os ombros, constrangido. “Para já, não posso dizer que os animais estão a passar mal.” Há ovelhas magras, uma ou outra. Como aquela que mastiga erva rente ao chão, junto a um dos filhos do pastor — Daniel, o mais novo da família, está a estudar Teologia em Coimbra e nas férias ajuda a tomar conta do rebanho. Mas não é porque estejam esfaimadas, continua, quase constrangido. É das parasitoses, que são mais comuns em tempo de seca. “Mas, de facto, não posso dizer que estão como nos outros anos, fortes, valentes. Uma ovelha, que podia produzir 800ml a um litro de leite, está a produzir 200, 300ml e não passa dali... No mês passado, não consegui tirar sequer para pagar à Segurança Social.” Perguntar a estes pastores o que fazer pa- Francisco Palma (nas páginas anteriores), agricultor de Beja, tem uma seara de triticale que mete inveja a quem passa. Em Abril, a ribeira do Arade, em Silves (à esquerda) leva muito menos água do que é normal. José da Luz (à direita), criador de vacas em Castro Verde, olha para o armazém de feno que este ano não conseguirá encher ra, da próxima vez, na próxima seca, estarem mais prevenidos suscita invariavelmente um esgar de angústia. Reduzir o tamanho dos rebanhos é a resposta. A única. Nenhum deles se vê a fazer outra coisa que não alimentar um negócio que já veio de avós, de pais e que, nalguns casos, já passou para filhos e em que, apesar de tudo, acreditam: o da produção do famoso queijo Serra da Estrela. Qualquer um defende, de resto, que era impossível estar preparado para o que se passou este ano — por exemplo, com reservas maiores de alimento nos armazéns. “Esta seca foi muito pior do que a de 2005. Foi a pior de que me lembro.” Virão mais destas? O SUECO QUE QUEIMOU O LARANJAL Detlev von Rosen, um sueco muito alto, de corpo delgado, precisou de apanhar um susto para tomar medidas drásticas. No final dos anos 60, tinha escolhido Moncarapacho, concelho de Olhão, para montar um negócio de viveiros de plantas ornamentais. Até que um dia o vizinho, que produzia laranjas, quis vender a propriedade que fazia fronteira com a sua e foi ter com ele. “Disse-me: ‘O melhor é comprar-me isto porque a água que você usa vem da minha terra’.” O argumento da água convenceu-o e viu-se a braços com um laranjal enorme. O país vivia a revolução de Abril e Detlev preparava-se para uma reviravolta na sua vida. “Pergunteilhe: ‘Mas como é que vou fazer isto se não sei nada de laranjas?’ E ele disse: ‘Ah, isto é fácil! Muita água, rega de rojo, ou seja, abrir a água e deixá-la correr.” Durante 20 anos, foi o que fez (na chamada “técnica de alagamento”, apenas 50% da água usada na rega é, efectivamente, consumida pela planta; o resto vai para o subsolo ou evapora-se). Até que no final da década de 1990 o Algarve atravessou uma seca que ficou para a história. A água faltou nas torneiras e o sueco começou a fazer contas quando viu os seus furos falharem um após o outro. Não sabia — como hoje ninguém sabe — se viriam mais secas daquelas. Mas decidiu que não voltaria a viver um momento de pânico como aquele. “Fizemos um estudo e as conclusões a que chegámos eram catastróficas: estávamos a usar quase toda a nossa água nas laranjas. Não sei se está certo, mas calculámos que para produzir um copo de sumo precisávamos de mil copos de água. Por isso, arrancámos tudo e queimámos.” Começou a procurar árvores que tivessem menos sede. Optou pela oliveira quase por acaso, conta a sorrir. De facto, também não sabia nada sobre olivais — não era sequer consumidor de azeite. Foi aprender. Contactou os melhores especialistas portugueses e começou a seguir a par e passo um projecto de olival que estava a nascer na Califórnia, desenvolvido pela Universidade de Davis (UD). O azeite estava a entrar na moda fora do Sul da Europa, muito graças aos estudos que ressaltavam os efeitos benéficos do seu consumo na saúde humana. E sentiu que tinha apostado bem. 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 15 Investiu — 100 mil euros na plantação das oliveiras, 100 mil na recuperação de um lagar romano que existia naquele local e onde montou o seu, outros 100 mil no equipamento. Depois, foi preciso sustentar as oliveiras durante sete anos, sem que elas lhe dessem nada em troca. E pôr em prática as técnicas que estavam a ser seguidas pela UD e que, supostamente, lhe iriam permitir chegar ao topo — 90% do azeite que se produz vai para a refinaria, diz, e o seu preço é regulado internacionalmente “por uma espécie de bolsa do azeite, sediada em Madrid”, que dita que neste momento cada quilo (no azeite fala-se de quilos e não de litros) custa 1,5 euros. Detlev não queria entrar nesse mercado. Queria ter um azeite extra virgem. E é isso que tem hoje. Vende-o a 19 euros o quilo, quase só a particulares. Aos 75 anos, olha com doçura para o seu olival belíssimo que, até ver, está a passar incólume à crise da chuva e ao problema da geada que tantas dores de cabeça deram este Inverno aos produtores de citrinos do Algarve. Tudo o que os olhos avistam parece ter sido estudado ao pormenor. Por que é que há porcos pretos a passear entre as oliveiras, por exemplo? “Caem azeitonas no chão, se caem é porque estão doentes e não queremos ter azeitonas doentes no solo... os porcos fazem a limpeza do olival.” Com clientes em todo o mundo (há tempos foi noticiado que entre eles estão a rainha da Suécia e Carla Bruni, mas Detlev não gosta nada de falar disso, acha deselegante), diz que 16 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 está quase a ganhar a sua aposta: provar que um negócio destes é rentável. E menos arriscado do que o das laranjas. “Se não chove, se não há rega, os citrinos morrem. A oliveira não.” AS ÁRVORES ENVERGONHADAS Para a generalidade dos agricultores que a 2 encontrou pelo país, parece evidente que o clima “está a mudar”. Quando definem políticas, o Governo e a União Europeia também partem desse pressuposto: o Sul da Europa, nomeadamente Portugal, vai viver períodos de seca meteorológica mais frequentes. Na comunidade científica, contudo, está longe de haver consenso em relação a estas previsões. Os governos sabem-no, explica Francisco Gomes da Silva, assessor para a Agricultura da ministra Assunção Cristas. Mas nos seus planos optam pela “prevenção”. É precisamente por estar tão entranhado este discurso da seca — nos campos, como nos gabinetes — que alguns projectos parecem, à primeira vista, quase um contra-senso. Por exemplo: no Sul da Serra da Gardunha, onde não há nenhuma grande barragem, e onde, no Verão, as temperaturas ultrapassam os 40 graus, por que razão cada vez mais agricultores arriscam investir em projectos agrícolas que... precisam de rega? Foi o que fez Joaquim Baptista, 50 anos, há vários anos. Tem um pomar, em Castelo Novo, de 100 hectares, com a serra à vista, que depende basicamente das charcas (reservatórios escavados na terra, a céu aberto) que abriu pela propriedade. Mostra uma delas, com uns cem metros de comprimento por 40 de largura, que era suposto estar quase cheia nesta altura. Mas está longe disso. “Só devíamos começar a usar esta água para regar em finais de Abril. Ora este ano estamos há mais de um mês a usar a água das charcas, porque não choveu.” E sem chuva as cotas não são repostas. Noutra exploração, a poucos quilómetros, repete-se a história. Francisco Chasqueira, 50 anos, está a lançar, com a filha, um novo pomar no Louriçal do Campo — dezenas de milhares de euros, com apoios comunitários. Acabou de plantar as árvores a 15 de Fevereiro, contava ter o sistema de rega instalado em Junho. E tudo correria bem, diz, se São Pedro não lhe tivesse trocado as voltas. Como não choveu, e para garantir que as árvores não morrem à nascença, teve de regálas manualmente, já que o sistema de rega automática não está pronto — são precisas três pessoas, um tractor e mil euros de cada vez que dá de beber às arvores. A gigantesca charca que construiu, essa, “pode não chegar até Setembro”. A terra barrenta, acinzentada à volta, abriu-se. As fendas fazem lembrar as fotografias que ilustram os manuais escolares de Geografia quando explicam o que é a seca. Mas aqui a seca vive-se ao vivo. Para já, qual é o impacto disto? As cerejeiras de Joaquim Baptista estão bonitas, completamente vestidas de flores brancas. Mas ele não arrisca prognósticos. Sabe que tem cor- tado no número de regas (“A cereja agradece água todos os dias, para estar mesmo bem. Mas agora a gente não lhe dá o que ela quer porque andamos aqui todos encolhidos.”) Sabe também que esta dieta pode ter impacto quando chegar a hora de colher o fruto e que a produção pode cair. O mesmo com os pêssegos. “As árvores estão envergonhadas. Estão a rebentar, mas não estão bem.” Sente, contudo, que, dadas as circunstâncias, tem feito tudo certo. Foi a Espanha, comprou as variedades que lhe pareciam mais adequadas ao clima. Escolheu sistemas de rega eficientes — “Dantes fazia-se a rega por alagamento. Agora não. É toda conduzida por uma tubagem que faz uma microaspersão...” Cada pequena árvore tem direito a um gotejador que deixa cair 2,2 litros por hora em pequenas gotas. É certo que dá razão a quem diz, como a geógrafa Maria José Roxo, que persistem casos gritantes de culturas agrícolas desadequadas aos recursos hídricos existentes — “o milho, o girassol e os milhares de hectares de olival superintensivo e intensivo e de vinha irrigados, plantados no Alentejo, com particular incidência no Baixo Alentejo, são bons exemplos da sobreexploração dos recursos, numa região onde os totais anuais de precipitação se encontram entre os 600 e os 500 mm”. Mas Joaquim Baptista não acha que tenha ignorado demasiado as condições que a região oferece — não costuma haver Invernos assim, mesmo a seca de 2005 foi menos grave, diz. “Temos aqui enormes potencialida- des para a fruta. Temos solos planos, calor no Verão, frio no Inverno — a cerejeira precisa de 700 horas de frio por ano, abaixo dos sete graus —, pouca geada.” O que falta? “Um bom sistema de regadio que o Estado devia trazer para cá.” É precisamente o que defende José Mesquita Milheiro, presidente da Associação Distrital dos Agricultores de Castelo Branco, no Fundão, ele próprio em risco de perder o que semeou em terreno de sequeiro. “A Cova da Beira tem fama de grande produtor de fruta”, diz o engenheiro. “Mas há muita fruta a surgir no Sul da Gardunha, com agricultores que têm 80, 100 hectares de pomar e que andam ali à bulha com a água — puxam-na daqui para ali e dali para aqui, andam à voltas com a charca e a charquinha”, numa espécie de jogo que este ano subiu de grau de dificuldade. “Abrir aquelas charcas é um grande investimento que fazem, mais a energia que gastam para retirar a água com bombas.” E, com as secas, tudo se complica. Por tudo isto, a associação quer “pôr em cima da mesa” um estudo, que seja feito em parceria com universidades, que convença o Governo que um forte investimento em regadio, a sul da Gardunha, com fundos comunitários, é a melhor solução. Bastava aproveitar a água das ribeiras que correm na serra — em vez de “deixá-la correr até ao mar”, diz. “Sem regadio, como está o clima, o país transforma-se num deserto.” Mas é eficiente levar pomares e hortas para zonas onde naturalmente nada disso pegaria? “Se produzíssemos só o que a natureza nos Os críticos dizem que a Barragem do Alqueva (à esquerda) não fomentou o desenvolvimento agrícola, como era esperado; falta tecnologia e formação. Em Castro Verde (à direita), as vacas disputam ração lançada por criadores; o pasto está “agarrado ao chão” e não chega para alimentá-las permite, já tínhamos desaparecido”, responde Francisco Gomes da Silva. “O regadio é cada vez mais importante como forma de nos adaptarmos às alterações climáticas”, continua o assessor de Assunção Cristas. “Temos de criar condições de armazenamento de água. No âmbito da revisão da Política Agrícola Comum há, da parte portuguesa, uma afirmação clara de que queremos desenvolver o regadio. Um regadio eficiente.” E como se garante a eficiência? Desde logo, com uma correcta política de tarifários. Não há melhor “bússola” para “dar a indicação certa aos empresários para que façam as melhores escolhas” do que o preço da água. O CONTADOR QUE FEZ “NASCER” ÁGUA O preço da água é, de facto, encarado por muitos como uma arma de regulação do consumo não só na agricultura (onde se concentram as maiores ineficiências no uso de água, segundo o Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água, que está a ser revisto) mas também na indústria e no abastecimento urbano. O presidente da Câmara Municipal de Mértola, Jorge Rosa, e Rui Caseiro, o vice-presidente do município de Bragança, estão em regiões muito diferentes do país, mas partilham a experiência de terem visto os consumos baixar depois de assumirem os custos políticos de actualizar as tarifas. Caseiro arrisca mesmo dizer que “o contador é a melhor nascente”. Já se vai perceber o que quer dizer com isto. Até há poucos anos, ninguém pagava água nas aldeias de Bragança. E os mais de 160 furos que abasteciam várias delas esgotavam-se com alguma frequência. O espectáculo repetia-se ciclicamente: camiões-cisterna a levar água aos depósitos das povoações. “Lembro-me de chegar a estar 15 dias sem água”, diz Helena Branco, 40 anos, dona do minimercado e presidente da junta de Grijó de Parada, uma típica aldeia de casas de xisto onde não haverá mais de 50 habitantes. Nesse tempo, o abastecimento era frequentemente interrompido algumas horas por dia. “E quando o sr. Seca, tesoureiro da junta, ia abrir o depósito, toda a gente sabia, porque atravessava a aldeia com uma motoreta que fazia barulho. ‘Olha lá vai o Seca abrir a água.’ E pronto, a aldeia toda ia a correr abrir as torneiras, para encher garrafões, não fosse a água faltar mais tarde”, conta Helena. Não resultava muito bem. Como todos abriam as torneiras, os da parte de cima da aldeia não chegavam a ter água “e era sempre uma guerra entre os de cima e os de baixo”. Quanto aos garrafões, acabavam muitas vezes por ser despejados sem serem usados. Eram tempos de muito desperdício: “Torneiras abertas, água da rede para regar as hortas, tudo.” A partir do momento em que os contadores foram colocados nas aldeias e a água passou a ser paga, a missão do sr. Seca tornou-se obsoleta. “A pessoas começaram a controlar o contador e a reduzir os consumos”, diz Rui Caseiro, e os furos começaram a aguentar-se mais — enfim, este ano voltaram a falhar, mas este ano não é exemplo. 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 17 Perto da aldeia de Moreanes, na encosta de um monte florido, as filas de carros são comuns, dizem-nos. Na tarde em que a 2 percorre a estrada, José, 69 anos, e a sua mulher, de 72, fazem o que sempre fizeram: estacionam o carro com o porta-bagagens apinhado de garrafões de plástico vazios e esperam mais de uma hora pela sua vez. Quando os encontramos, enchem garrafão atrás de garrafão, algo embaraçados, porque a fonte está em terras privadas. Usam esta água para beber e cozinhar porque a da rede, dizem, “cheira a mofo”. “As pessoas acham que a água que vem na torneira é má. Mas o que lhes cheira mal é a desinfecção. E o sabor que sentem é a cloro”, garante Jorge Rosa, sublinhado que todos os parâmetros de qualidade são cumpridos. “Já a água das fontes antigas e dos poços está, muitas vezes, contaminadíssima com pesticidas, animais mortos, tudo. E não é de todo controlada.” Mas na fila para a fonte ninguém tem dúvidas. “Sempre ouvi que esta água faz bem ao estômago.” SEM ÁGUA AO LADO DA BARRAGEM No Norte do país, só no mês de Março, caíram 12 mm de chuva, contra os 70 habituais. Até o abastecimento da cidade de Bragança sofreu — com a câmara a ter de recorrer à captação de água em locais que só costumam ser usados em Junho, Julho. Grijó como Moredo, outra aldeia de Bragança quase deserta, rodeada de castanheiros e onde uma bucólica fonte de pedra debita água ininterruptamente — irónico, dada a situação —, foram duas das que já precisaram da água das cisternas dos bombeiros, porque as torneiras ameaçavam secar. Álvaro Ramos, que há 82 anos é habitante de Moredo, já não se lembra de quando tinha sido a última vez que tal tinha acontecido. Os apelos à população de Bragança para que poupe água sucedem-se. E Caseiro garante que não é só quando há seca — o município tem “problemas estruturais de armazenamento de água”, que só deverão ser resolvidos quando for construída a nova Barragem das Veiguinhas. A câmara dá o exemplo. “Colocámos redutores de caudal nos equipamentos públicos, substituímos as plantas dos espaços verdes por arbustos que precisam ser menos regados...” Numa breve visita ao mercado municipal da cidade, pergunte-se a alguns vendedores o que fazem, nas suas casas, para poupar água. A florista deixou de lavar o carro com a mangueira. A vendedora de mel deixou secar a relva do jardim e garante que lá em casa ninguém toma banho de imersão... a mensagem parece passar. Perante a perspectiva de continuar a chover pouco, o município está a preparar um plano de emergência, que poderá até envolver o Exército, para garantir água às populações. Mas não só. Caseiro admite que uma das propostas desse plano poderá passar por mexer nos tarifários de novo. A questão do preço da água também tem sido várias vezes debatida em Mértola. Desde que tomou posse, o presidente da câmara, Jorge Rosa, já mexeu no tarifário duas vezes, o 18 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 que acabou por ser aceite por uma população “que sente na pele” os efeitos de cada ano em que chove pouco. “Tínhamos perdas na rede da ordem dos 60% — havia rupturas e muita água que simplesmente não era contada. Cada monte tinha cinco ou seis fontanários aos quais as pessoas ligavam as mangueiras e regavam as hortas, davam de beber aos animais. Ninguém pagava nada.” As sucessivas secas fizeram toda a gente pensar. Nos últimos anos, houve obras nas condutas e as rupturas foram reduzidas. A taxa de desperdício ronda os 5% nas redes novas. Apostou-se em “campanhas de sensibilização itinerantes, casa a casa, monte a monte”. Instalaram-se contadores em todos os edifícios públicos, de balneários a casas mortuárias. “Vou-lhe dar um exemplo do que aconteceu: há uma freguesia que gastava mil m3 por mês, em regas de jardins. Agora gasta 250 m3.” O POSTAL TÍPICO: A FILA PARA A FONTE Os problemas de abastecimento de água à população de Mértola são antigos. Metade do concelho bebe água vinda da albufeira do Enxoé. A outra metade é abastecida por mais de cem furos artesianos, que têm pouca capacidade e precisam mesmo de chuva para se irem repondo. Este sistema tem, evidentemente, impactos ambientais negativos: “Estamos a usar lençóis que devíamos manter”, diz Jorge Rosa. E sai caro: “A água é de má qualidade e é preciso ter um sistema de desinfecção em cada localidade, o que é muito oneroso.” Há soluções à vista: a ligação do Enxoé ao Alqueva está pronta para ser activada, por exemplo. Mas a verdade é que, historicamente, a população das aldeias de Mértola parece ter mais confiança nos seus próprios furos, ou nas fontes, do que na água da rede, que se deteriora em tempos de seca. Mais a norte, não muito longe de Alqueva, na aldeia que deu o nome à barragem, o cenário dos garrafões repete-se, como explicam Joaquim Caeiro, José Mendes e mais dois amigos, todos na casa dos 70, 80 anos, sentados à mesa de um café no largo da igreja. “Vamos todos à Amieira, a 14 km, a uma fonte muito boa que lá há. Antigamente ia-se de burro, agora, quem pode vai de carro.” Que quem vive à beira do maior reservatório de água de Portugal não beba a água que lhe corre na torneira parece anedota, mas não é — “A nossa água vem do Alvito e vem cheia daquele cheiro a desinfectante. As pessoas nunca se habituaram.” O facto é apenas mais um que ajudará a explicar por que razão a barragem que há décadas enche as páginas dos jornais é tão pouco acarinhada na aldeia de Alqueva. A empolgada voz off do vídeo promocional que passa no centro de atendimento ao visitante de Alqueva, num edifício junto ao paredão da barragem, bem enaltece esta “água que chegou” e fez surgir “culturas que outrora o chão negava”, “prados imensos, sustento para o gado, fruta dourada”. Mas, na povoação, Joaquim, José e os amigos encolhem os ombros. Os que cultivam preferem usar a água de furos, que não pagam, à da barragem. Quanto aos turistas, que supostamente iam ajudar a desenvolver a economia local, pouco passam por aqui. O esvaziamento da aldeia não foi travado — “As três escolas que aqui havia está tudo fechado.” Não surgiram postos de trabalho. As casas encareceram. Enfim, nem a água da torneira lhes sabe bem... No Algarve, em Odelouca (concelho de Silves), voltamos a encontrar mais uma povoação que dá o nome a outro grande projecto hídrico, mas que não bebe água da rede. Neste caso, porque a ligação nunca foi feita. Carlos Alves, um agricultor de 79 anos que não se conforma com o laranjal queimado pela geada negra (“tudo queimado, tudo queimado”, repete enquanto corta laranjas, uma atrás da outra, para mostrar aos jornalistas), tem um poço nas traseiras da casa onde vive e um furo à frente do portão. E é dessa água que bebe. “Aqui ninguém tem água da rede, há uns dez anos que nos prometem, mas nada. Quem não tem furos pede emprestado. Ou vêm os bombeiros...” A barragem de Odelouca, que Carlos Alves, apesar de viver ali tão perto, ainda não viu, foi construída com a promessa de que o Algarve ganharia capacidade para ser sustentável no abastecimento de água pública mesmo em períodos de seca. As obras chegaram a ser suspensas, depois de uma queixa da Liga Para a Protecção da Natureza (LPN), que alertava para os impactos ambientais negativos. Esta ONG sustentava ainda que o que se pretendia, no fundo, era libertar água para os campos de golfe — o tipo de projecto turístico de que se fala sempre que se discute desperdício de água no país. João Paulo Monteiro, professor da Universidade do Algarve, faz questão de contestar o que defendem muitos ambientalistas: “Os campos de golfe não têm um impacto muito significativo. E usam técnicas de rega que se a agricultura incorporasse andava para a frente 20 anos.” Mas voltando a Odelouca: o projecto acabou mesmo por ser concluído. E, em Fevereiro deste ano, Artur Ribeiro, administrador da Águas do Algarve, garantia que, mesmo que não chovesse nos próximos três anos, a água nas torneiras não faltaria porque, depois da seca de 2005, a empresa tinha feito o “trabalho de casa”. O projecto Odelouca, precisamente, fez parte do “trabalho de casa”. As melhorias no abastecimento público da região não passaram, contudo, pela terra que dá o nome ao projecto. Pelo menos para já. E tudo porque a tubagem que levará água da rede até à povoação — àquela e a outras — tem de atravessar oito pontes, que pertencem à Estradas de Portugal, que ainda não autorizou a obra. “Neste momento (depois de inúmeros acertos e contrariedades, que incluíram a falência da empresa que primeiramente teve a seu cargo o desenho do projecto), o processo está prestes a ser concluído”, garante a assessora de imprensa do município, Sandra Moreira. Odelouca continuará à espera. As caixas onde os contadores deverão ser instalados já lá estão, à porta das casas. A SEARA QUE ESCAPOU À SECA As ovelhas de Oliveira do Hospital deram menos 70% de leite, enquanto no Alentejo há reservas de palha a esgotar-se (página anterior). Em Olhão, Detlev van Rosen conta como mudou o que fazia depois da seca de 2005. E um agricultor de Silves mostra as laranjas queimadas Regresso à agricultura. Quem chega ao campo de triticale (um cereal híbrido que resulta do cruzamento do trigo com centeio) de Francisco Palma, 42 anos, não consegue disfarçar a surpresa. A planta dá-lhe pela cintura. Estamos a 5 de Abril, no concelho de Beja. E ninguém diria que, tal como em tantos outros locais, onde as searas mal descolaram do chão, também aqui choveu pouco. “Tu tens é uma boca da EDIA [Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva] escondida aí, a regar isso, e não dizes nada!!!” — grita um vizinho de Francisco, da janela do jipe, depois de abrandar e de se surpreender com o tamanho do cereal. O agricultor sorri. Não há rega nesta seara. E a água do Alqueva ainda não chegou aqui. O que aconteceu então? Francisco faz sementeira directa, o que significa que não mobiliza o solo — “Se metesse aqui uma alfaia secava-o todo, assim mantenho a humidade de um ano para o outro.” Para além disso, semeou um pouco mais cedo do que habitual, em Outubro. “E como em Novembro choveu bastante a semente germinou bem” e a falta de chuva que se seguiu fez menos mossa. Nestas coisas, diz, não basta saber. “A sorte conta.” Importante é também escolher as variedades de plantas que mais se adequam (há diferentes tipos de triticale, uns mais resistentes à seca, outros menos, por exemplo). E apostar numa rotação de culturas equilibrada, que ajude a manter o solo com boa qualidade — esta mesma terra tinha no ano passado ervi- 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 19 lhas, “que ajudam a fixar azoto” São técnicas que se usam em diferentes partes do mundo, garante. “E se resultam nuns locais, por que não noutros? Temos de nos modernizar. E o sequeiro acaba por ser mais sustentável.” Francisco Palma está longe de corresponder ao perfil típico do agricultor português. As estatísticas dizem que cerca de metade dos que estão activos têm mais de 65 anos e que só 10% têm mais do que o 2.º ciclo do ensino básico. Já Francisco tem um curso superior e iniciou um doutoramento. Há uns anos, o pai, também agricultor, deu-lhe carta branca para fazer o que entendesse. E ele, que tinha acabado de fazer um curso de gestão agrícola em Inglaterra, aceitou o desafio. Hoje cultiva triticale, girassol, tremocilha, trigo mole, tremoço doce (“Sabia que os tremoços que comemos quando bebemos imperiais vêm quase todos da Austrália?”). E tem ideias muito claras sobre gestão racional da água, questão central na agricultura. “A seca é um fenómeno tão recorrente que Portugal já devia ter mecanismos diferentes para reagir... ela está no ADN do nosso clima e temos de saber viver e conviver com ela.” O que é que falta? Por exemplo, um plano para a agricultura “que nos diga no que é que devemos apostar”. À falta dele, o que se tem visto no Alentejo é “olivais a nascer como cogumelos” e gente a querer imitar o que faz o vizinho: “Há subsídios? Vamos lá todos fazer o mesmo!” Até nas zonas onde o regadio de Alqueva já chegou pouco mais se tem visto do que “um aumento brutal de olival e vinha”, diz Maria José Roxo. Partiu-se do pressuposto de que a água resolve tudo, quando, para haver desenvolvimento, é preciso “agricultores com formação, bons solos, culturas adequadas, acompanhamento tecnológico, conhecimento dos mercados”. Rita Alcazar, bióloga da LPN, aponta ainda o dedo ao que lhe faz lembrar as explorações mineiras que sugam o que há para sugar até não restar nada: “Cada oliveira num olival superintensivo consome 80 litros de água por dia — o dobro do que gasta uma pessoa que seja muito gastadora. É insustentável. Mas são estes olivais que têm vindo a substituir muitas searas de sequeiro, e que estão a esgotar os solos, com as doses maciças de químicos que lhes colocam.” Consensos, nesta matéria, há poucos. Uma coisa é certa: “A água é a molécula mais estável que existe. Ela evapora-se, mas há-de voltar a cair em forma de chuva” algures noutro sítio, lembra Gomes da Silva. Por isso, quando se fala de “uso eficiente da água”, isso significa que “queremos mantê-la, dentro do possível, na região onde ela é escassa”. Medidas para que isso aconteça há muitas. E deviam ser debatidas por toda a população, defende Maria José Roxo. “Devia ser feita uma campanha nacional de sensibilização para o uso eficiente da água. No passado, o seu uso era muito mais racional e há todo um conhecimento (imaterial) que se está a perder. Instalou-se uma atitude de consumismo, o que é grave.” A VINHA QUE BEBE DO CÔA 10 de Abril, 11 da manhã, mudança radical de paisagem. E uma estratégia diferente para lidar com a seca. Sónia Teixeira trabalha para a conhecida casa Ramos Pinto e tem a função de conduzir os turistas à Quinta da Ervamoira, em Vila Nova de Foz Côa. Acha que o cenário — 450 mil pés de videira plantados ao alto numa das zonas mais áridas do Douro Superior — merece uma banda sonora especial. Por isso, no seu jipe, ouve-se As Quatro Estações, de Vivaldi. 20 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 Chuva este ano? Pouca, garante. E, apesar das nuvens cinzentas que cobrem a vinha, os dados fornecidos pela estação meteorológica de Ervamoira são claros: entre Novembro e Março, registou-se uma precipitação acumulada de 110 mm, contra 259 mm no ano passado. Em Ervamoira contudo, pelo menos por agora, não há sinal de que a seca tenha afectado as vinhas. Por uma razão: são regadas. A rega de vinha no Douro, a primeira região vinícola demarcada e regulamentada do mundo, só é permitida em condições excepcionais, em situações extremas de défice hídrico, reconhecidas pelo Instituto dos Vinhos do Douro e Porto. João Nicolau de Almeida, administrador e enólogo da Ramos Pinto, defende que, com um clima cada vez “menos regular”, ela é essencial. “Ainda há a ideia de que a rega é para fazer aumentar a quantidade. Mas não. Fizemos vários estudos e concluímos que o vinho é melhor se há rega.” Um sistema gota a gota, que se alimenta a partir do Rio Côa, assegura que as vinhas recebem a quantidade de água exacta que necessitam em cada momento. Para além disso, outros cuidados são tidos. “A escolha dos porta-enxertos, a poda, o tratamento das terras, tudo isso interfere na quantidade de água que a planta retém.” Máximo de Almeida, 78 anos, um pequeno vitivinicultor (3 hectares) da zona do Côa não tem uma opinião definitiva sobre um assunto definitivamente polémico, sobretudo numa região onde a água não abunda. Certo é que as suas vinhas, não regadas, estão atrasadas um mês. “E toda a gente está a dizer que vai haver menos vinho por causa da falta de água.” Ou seja, será mesmo a rega a solução? Depósito de água, em Bragança (à esquerda); Vinha na Quinta da Ervamoira, no Douro Superior, onde choveu menos de metade do registado no ano passado. Aqui a regra é a excepção que pode fazer a diferença A DANÇA DAS AVES E DAS VACAS No Alentejo, na Zona de Protecção Especial para as Aves (ZPE) do Campo Branco, a guerra contra a seca também se trava com os olhos postos nas aves. Rita Alcazar faz parte da equipa da LPN, em Castro Verde, que está a tentar que não se repita o que aconteceu em 2005. Na altura, houve menos água disponível — “a abetarda, por exemplo, bebe água, ao contrário de outras aves”, diz —, menos alimento e “os pastos estavam tão debilitados que não havia condições para elas fazerem os ninhos”. Resultado: em 2006, nasceram menos crias e a taxa de mortalidade jovem subiu. O que é dramático quando se sabe, por exemplo, que em Castro Verde vivem 1300 abetardas (uma das maiores aves voadoras do mundo) que representam 80% da população do país. Desde então, bebedouros foram espalhados em vários locais nesta paisagem despida de árvores, casa de algumas espécies ameaçadas. E “faz-se o espalhamento de sementes à mão”, porque há menos alimento naturalmente disponível. Estando numa ZPE, os agricultores recebem compensações pelas medidas que põem em prática — por exemplo, o cultivo de determinadas áreas de leguminosas, especificamente para as aves se alimentarem. Todos parecem trabalhar com gosto nisto. José da Luz, 67 anos, criador de vacas, é um deles. À medida que vai mostrando a propriedade onde tem 180 animais, mostra também os refúgios das aves. “Vêm muitos turistas”, conta com orgulho. “Ficam horas a olhar.” O entusiasmo esvai-se quando chega o momento de repetir um ritual que a seca impôs — já não para cuidar das abetardas, mas das suas vacas. Um funcionário enche uma carrinha de caixa aberta com “tacos de farinha”, que José da Luz compra aos sacos de 500 quilos. E dirigem-se para uma zona de pastoreio. Mal avistam a carrinha, as vacas, algumas com 600 kg, começam a correr em direcção a ela com uma agilidade tal que parecem não ter mais de 60. Vêm aos ziguezagues, como se dançassem. José da Luz conduz devagarinho a viatura pelo campo, o funcionário vai atirando ração. E as vacas disputam com violência cada pedaço. “Esta operação é uma coisa que costumamos fazer até meados de Janeiro. Em Abril é impensável. O pasto devia chegar.” As vacas do Campo Branco, como as ovelhas da Serra da Estrela, também andam com fome. Já as abetardas parecem bem. Março e Abril são meses de paradas nupciais e elas estão bastante concentradas nisso. O MILAGRE DA TORNEIRA A brir a torneira é um acto banal, que qualquer um faz de forma irreflectida. Basta girar o manípulo e a água sai. E potável: cerca de 98% das análises à água no país cumprem os padrões exigíveis de qualidade. Por detrás deste pequeno milagre quotidia- no está um complexo sistema de barragens, furos, rios, estações de tratamento, laboratórios, adutores, reservatórios. Os sistemas de abastecimento de Lisboa e Bragança exemplificam como a água pode percorrer diferentes caminhos até chegar às nossas torneiras. São sistemas distintos. O primeiro tem uma rede integrada, alimentada por poucas captações, sobretudo uma grande barragem, a de Castelo de Bode. O segundo também capta a água de uma barragem, mas depende de mais de uma centena e meia de furos para servir todas as freguesias do concelho, numa rede fragmentada em inúmeras zonas de abastecimento. Dois retratos de um país onde cada cidadão gasta em média 168 litros de água por dia. Infografia de Cátia Mendonça, Joaquim Guerreiro e Ricardo Garcia Lisboa Sistema da EPAL Há 14 reservatórios e diferentes zonas de distribuição, conforme a altitude A EPAL serve 26 concelhos com água sobretudo de Castelo de Bode. Lisboa recebe 27% do total Castelo de Bode LEIRIA 67% OURÉM BATALHA NAZARÉ ALCOBAÇA PORTO DE MÓS CALDAS DA RAINHA Cota/m 90 a 120 Superior Principais 30 a 60 condutas Reservatórios 0 a 30 SANTARÉM RIO MAIOR PENICHE BOMBARRAL Alta Média Adutor Alvilela CADAVAL LOURINHÃ Baixa Estação de tratamento de Vale da Pedra Em 1835 Nessa altura, Lisboa era abastecida pelo Aqueduto das Águas Livres, construído entre 1731 e 1799, e distribuída através de chafarizes ALENQUER Galerias de distribuição aos chafarizes ODIVELAS MAFRA LOURES Belas SINTRA AMADORA SINTRA Reboleira Aqueduto sobre o vale de Alcântara Damaia Alfragide VILA FRANCA DE XIRA CASCAIS 9% 2,5 m 1,8 m 1,5 m LOURES Adutor Tejo Lisboa Mãe d´Água 60 cm 30 cm 10 cm Diâmetros Máximo da conduta do Tejo À saída do Castelo de Bode Conduta Saída do de Vila Franca reservatório de Xira de Telheiras Baixa Ajuda 58 nascentes Alcântara 71€ € 8,4 litros/hab 90.000 habitantes servidos Angra do Heroísmo Évora 5 galerias na cidade 24 chafarizes 1 reservatório Fontes: EPAL; Câmara Municipal de Bragança; ERSAR; INSAAR; Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água; INE Ori Como Portugal usa a água Lajes das Flores 9€ € 61€ € 51€ € 58 km de aquedutos Canalização de rua Monção Monsanto OEIRAS 5,5 milhões de litros Fac Captações superficiais Captações subterrâneas Adutor VF Xira -Telheiras Adutor Circunvalação LISBOA A água leva dois dias de Castelo de Bode até às torneiras de Lisboa, a uma velocidade de 0,5 a 1,0 m por segundo Furos Aquedutos secundários Vale de Carenque Rio Tejo Cons CONSTÂNCIA Adutor Castelo de Bode 24% TORRES VEDRAS Aqueduto principal Adutor Médio Tejo Captação desactivada ÓBIDOS Zonas 60 a 90 ALCANENA Olhos de Água Dens Estação de tratamento da Asseiceira TORRES NOVAS Factura da água é desigual pelo país A curva dos preços da água em todos os concelhos do país. A factura mais cara é 25 vezes superior à mais barata Agricultura 87% Barragem Serra Serrada Futura barragem de Veiguinhas Uma nova barragem será agora construída para complementar a de Serra Serrada, insuficiente para o consumo crescente de Bragança Sistema municipal de Bragança Bragança Com 105 zonas de abastecimento diferentes, a cidade recebe água sobretudo de uma barragem Espinhosela Rio de Onor Parâmio França Carragosa Aveleda Lisboa Rabal Deilão Gondesende Lisboa Baçal Meixelo Bragança Babe Castrelos Sta. Maria Gimonde C. Avelãs Sé População Bragança Gostei Carrazedo Samil Alfaião Densidade populacional 35.341 Zóio 6447 167 30 Consumo doméstico total (m3/ano) 27.042.848 furos servem as freguesias do concelho 1.452.094 Grijó de Parada Faílde Sortes 223€ € S. P. de Parada Rebordãos (hab/km2) São João da Madeira Quintanilha Milhão Nogueira 547.631 S. Julião de Palácios Rio Frio Mós Pinela Rebordaínhos Outeiro Parada Rossas Salsas Pombares Coelhoso Calvelhe Litros per capita por dia 135 Sendas Q. Lampaças 99 Serapicos Paradinha Nova Macedo do Mato Guarda 149€ € Factura anual para 120 m3 (euros) 93 Adutora existente 105 Reservatório existente Izeda Captação existente Perdas na rede 10% Porto 20% 130€ € Coimbra 113€ € Faro 0 cm 104€ € Lisboa ção Dados nacionais 93€ € Ribeira Grande Factura média anual por nível de consumo 83€ € 142€ 87€ 34% Furos Origem Barragens e rios Água captada (1000m3/ano) 25% de perdas 66% 60 m3 Distribuída Urbano 8% 48€ Água tratada 120 m3 180 m3 Outros usos Consumo doméstico População servida Consumo diário per capita 97% 168 Indústria 5% 926.923 823.291 693.074 594.393 litros ALEXANDRA PRADO COELHO TEXTO E FOTOGRAFIA QUER REDUZIR A SUA PEGADA DE ÁGUA? FECHE A TORNEIRA E TORNE-SE VEGETARIANO F oi uma corrida, mas fez-se. Tinha-me proposto reduzir para metade o tempo de duche com a torneira aberta. No primeiro dia tinha cronometrado o tempo do duche (com lavagem da cabeça) e concluí que estivera com a torneira aberta durante cinco minutos. Por isso, o objectivo no segundo dia era reduzir para dois minutos e meio. Rápido, mas possível. Tapei o ralo e calculei que no final tivessem ficado na banheira cerca de 20 litros de água. 24 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 Fizemos a experiência de tentar reduzir para metade a quantidade de água que consumimos num dia. Conclusão: é possível reduzir-se substancialmente. Mas se continuarmos a comer bifes, cada passo nosso abre um charco Este esforço todo para quê? O jornal pediume um trabalho que me permitisse calcular os meus gastos diários de água — a minha “pegada de água”. A ideia inicial era tentar viver uma semana com a mesma quantidade de água com que vive uma pessoa num dos países com menor consumo: Moçambique, Ruanda, Haiti, Etiópia e Uganda consomem 15 litros ou menos de água por pessoa por dia. Quinze litros não me pareceu exequível, mas confesso que achei que com 30 litros conseguiria organizar-me. Ingenuidade. A ideia evoluiu depois para uma experiência mais simples — calcular os meus gastos diários e tentar reduzi-los para metade. Havia, logo à partida, problemas práticos. Como contar a água gasta? Fechei os ralos e contei a água que ficava, o que deu algo como um litro de cada vez que lavava as mãos e quase dois quando lavava os dentes (mesmo mantendo a torneira fechada enquanto escovava). Por este andar, aproximava-me rapidamente dos 15 litros. O site www.aguasdoalgarve.pt/ permite-nos calcular quanto gastamos em casa. Consulto-o e fico a saber que, se fechar a torneira e diminuir o tempo do duche para cinco minutos, consigo reduzir o consumo de água para cerca de 80 litros, o que não bate muito certo com as minhas contas. Se eu tinha, no segundo dia, tomado um banho de 2,5 minutos e tinha 20 litros na banheira, em cinco minutos teria 40 litros, ou seja metade do que dizia o site, mas imagino que dependa da abertura da torneira. O duche oferece duas dificuldades adicio- Entre o primeiro e o segundo dia desta experiência, houve poupanças significativas no duche, nas descargas de autoclismo, na lavagem manual da loiça e na substituição de um bife com batata ao almoço por legumes e arroz nais: a primeira são os segundos preciosos que se perdem enquanto se espera que a água aqueça; a segunda é o uso da espuma de banho hidratante, que, ao contrário do sabonete, custa muito mais a tirar do corpo (e não imagino quanta água custe a produzir). De qualquer forma, lavando os dentes e tomando banho (ainda o dia estava a começar) já tinha gasto no primeiro dia da experiência pelo menos 43 litros. A isto soma-se o autoclismo. Cada utilização, diz o site, corresponde a um gasto de dez li- tros — e lembro-me imediatamente das vezes que descarrego o autoclismo apenas porque deitei na sanita um papel que usei para limpar alguma coisa. Eles dão um conselho: se colocarmos uma garrafa de 1,5 litros dentro da caixa autoclismo, cada descarga passa a corresponder apenas a 8,5 litros. Sair de casa traz algum alívio a esta contagem. Não bebo muita água durante o dia (sei que devia beber mais, mas julgo que não ultrapassa 1 litro), tento lavar as mãos rapidamente (num dos sítios onde vou, há, por cima do lavatório um autocolante que diz “ensaboe as mãos com a torneira fechada” e mostra que com a torneira aberta gastamos 15 litros enquanto que se a fecharmos gastamos apenas 2), e uso a descarga menor nos autoclismos. As coisas pioram à noite, com o regresso a casa. Já sem contar com a água utilizada para fazer o jantar, há um gigantesco problema que é o da lavagem da louça. Ponho um alguidar para contar a água gasta — e, na verdade, parte dela é apenas para poder colocar a louça mais limpa dentro da máquina. Segue-se uma contagem assustadora: 7 litros (passar alguns pratos e talheres por água); 6 litros (primeira passagem por água de uma panela grande); 6 litros (a lavagem mais profunda da mesma panela e dois copos que não vão à máquina); 8 litros (lavagem de duas frigideiras). Um total de 27 litros, sem contar com a máquina de lavar a louça (embora esta não funcione todos os dias). Mas a verdadeira tragédia foi quando, depois de mais umas leituras de sites sobre pegadas de água, resolvi incluir na contagem a alimentação. Não a água usada para cozinhar os alimentos, mas sim o gasto de água associado a cada alimento — a nossa pegada de água indirecta. O trabalho está facilitado pelo The Virtual Water Project, que existe em site e poster e também em aplicação para smartphone. Descarreguei-a para o iPhone para poder contabilizar a pegada de água de cada alimento. Os produtos aparecem em sombra e, ao lado, em azul, gotas de água correspondentes à quantidade necessária para produzir cada um deles. Até aí tudo bem: percebemos que um bife custa mais água do que uma batata. O problema é quando lemos os números mais pequenos ao lado. Comecemos pelo bife. A aplicação coloca-nos como valor médio um bife de 300 gramas, que custou 4650 litros de água. Puxamos o cursor um pouco mais para trás, até situar o bife nuns mais aceitáveis 150 gramas, mas, apesar de melhorar, o panorama continua dramático: 2325 litros de água. De repente, os dois litros da lavagem dos dentes parecem irrelevantes, quando, no primeiro dia desta experiência comi precisamente um bife ao almoço, o que tornou a minha pegada de água um autêntico lago. E se as batatas até são relativamente inofensivas (150 gramas só implicam 37 litros), o problema é que, numa tentativa de ser mais saudável, troquei as batatas fritas por arroz, e 70 gramas passaram a implicar 238 litros de água. A solução? Comer vegetais. É o que decido fazer no almoço do segundo dia da experiência. O tomate corre muito bem (18 litros de água por 100 gramas, é um dos alimentos que menos água consome), mas a tarte de legumes é mais difícil de calcular. Leio num texto sobre o consumo de água que a Itália é um dos países no topo do grupo dos maiores gastadores — não tanto pelo consumo per capita diário (380 litros) mas sobretudo pela forma como comem e como se vestem. Preparados? Uma pizza Marguerita corresponde a 1200 litros de água, enquanto um quilo de massa (esparguete ou outra) corresponde a 1900 litros. Não há forma de fazer isto bem, é a conclusão possível. Mesmo assim, há um indicador que bate todos os outros, que é o relativo à carne (é necessária muita água para as rações que alimentam os animais), e que explica, por exemplo, a enorme pegada dos americanos: um americano come cerca do dobro da carne que um britânico consome, por exemplo, e quatro vezes e meia mais do que a média global. Há, claro, o risco de enlouquecermos se tentarmos calcular a pegada de água de tudo o que comemos, desde o leite com cereais da manhã (2,5 dl de leite são 200 litros de água, não consegui calcular a “pegada” dos cereais) e ainda o sumo de laranja, passando pelo lanche (mais leite, ou seja, mais 200 litros de água, e ainda uma torrada, 100 gramas são perto de 130 litros), até ao jantar. E, a menos que nos queiramos tornar vegetarianos (e mesmo assim, atenção, nada de chocolate: 100 gramas são 2400 litros de água), temos pouco controlo sobre este consumo indirecto de água, embora possamos, claro, reduzir substancialmente a quantidade de carne que ingerimos. Concentremo-nos então novamente nos gastos directos. No segundo dia da experiência, sigo o conselho do site e lavo os dentes usando um copo (era assim que fazia quando era pequena, em que altura mudei?), o que passa de dois litros para cerca de dois copos, ou seja 300 ml. Tomo o tal banho no tempo recorde de 2,5 minutos e guardo a água para ir aproveitando para usar na sanita (pouco prático, convenhamos, mas lembro-me de, quando era pequena, a água faltar em Lisboa, e haver um aviso prévio que nos levava a encher todos os recipientes que tínhamos à mão e a dosear muito bem a água que gastávamos). A noite continua a ser um problema. Pôr a louça suja na máquina custa-me, sobretudo porque só a vou pôr a trabalhar no dia seguinte, quando estiver cheia. Mas o que mais trabalho dá é lavar o que não pode ir à máquina usando dois alguidares, um com detergente e outro com água limpa. Demora mais tempo e a sensação é a de que não fica tão bem lavada, embora sempre se tenha feito assim, e muita gente continue a fazer assim. Gasto ao todo uns 16 litros. Poupei 11 em relação ao dia anterior. Com um jantar de frango com massa, depois do almoço sem carne, o duche reduzido, os alguidares cheios, o balanço é certamente menos mau do que no primeiro dia. Bastaria, aliás, não ter comido um bife para melhorar consideravelmente. Por curiosidade, olho para a conta da água. Numa casa de três, o consumo de água custa 15 euros por 60 dias (o resto da conta são taxas várias). Se reduzirmos para metade, com todo o esforço que isso implica, poupamos 3,25 euros por mês. 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 25 Portugal tem pequenas bolsas de água espalhadas por todo o lado mas quase ninguém dá por elas. Os charcos temporários são uma das melhores estratégias contra a falta de água. Mas as secas fora de época estão a ameaçar estes refúgios para crustáceos do tempo dos dinossauros, rãs, salamandras, tritões, libélulas e plantas flutuantes. Há quem queira levar charcos para os pátios das escolas CHARCOS UM REFÚGIO DE VIDA QUANDO PÁRA DE CHOVER HELENA GERALDES TEXTO JOANA BOURGARD FOTOGRAFIA 26 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 J á houve uma rã, que se chamava Fénix, mas agora está no laboratório, dentro de um frasco com álcool, diz Ricardo, dez anos, já conformado com a triste realidade, mesmo no meio do charco da Escola EB 2,3 D. Pedro IV, em Massamá, no concelho de Sintra. O charco foi inaugurado no 3.º período do ano passado, no âmbito da campanha nacional Charcos com Vida, promovida pelo Cibio (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto). A escola de Massamá é uma das 57 inscritas nesta campanha, cujo propósito é divulgar, conservar e criar charcos temporários, corpos de água que variam entre o tamanho de uma poça e quase um hectare. Estes pequenos habitats, espalhados por campos agrícolas ou bosques, enchem-se no período das chuvas e secam no Verão, criando condições de vida extremas. São considerados pela União Europeia como um dos habitats prioritários para a conservação da natureza, no âmbito da Rede Natura 2000, ainda que nos últimos anos tenham vindo a desaparecer por causa da agricultura intensiva, por exemplo. A campanha Charcos com Vida quer ajudar os ecossistemas do Mediterrâneo a adaptarem-se melhor às variações climáticas, num país com 63% do território continental em desertificação. Dos charcos temporários dependem insectos, plantas, aves e anfíbios, especialmente a rela-comum, o sapo-corredor, o sapo-deunha-negra e o sapinho-de-verrugas-verdes. E existem dezenas de espécies de pequenos crustáceos, como o camarão-fada, que só vivem nestes locais e que apuraram, ao longo de milhões de anos, estratégias para sobreviver à falta de água: enterram os seus ovos nos sedimentos, à espera das primeiras chuvas para eclodir e começar tudo de novo. Na escola de Massamá, é esta vida que está a começar a colonizar o pequeno charco, rodeado de árvores. De cócoras e mangas arregaçadas, cinco crianças estão a tirar pedras, lixo e a procurar vida animal com camaroeiros. São o Clube escolar Charcos com Vida, vigilantes daquele pequeno espaço, criado a um canto da escola por alunos e funcionários. É um buraco escavado no solo, impermeabilizado com tela e, no centro, com uma pequena massa de água onde foram colocadas pedras, alguma terra e plantas. À volta, flores amarelas e lilases, por onde se passeiam dois pombos a debicar pedaços de papo-seco esquecidos no recreio. Beatriz, 11 anos, espeta uma cana graduada no charco para medir a sua profundidade. “Hoje tem 11 centímetros de água, professora. Não é muito...”, diz, com orgulho de quem sabe, à docente Maria Gonçalves que observa a actividade científica com olhar atento. Iara, dez anos, mergulha o camaroeiro amarelo na água castanha. “As pessoas olham para aqui e dizem que não há vida. Mas há, está cheio de vida”, garante, ao mesmo tempo que procura provas do que diz. Mariana, 11 anos, e David, dez, medem o pH da água e removem pedras que colegas menos entusiastas atiraram para o charco. “É difícil, há alunos da escola que não percebem. Atiram pedras, chutam bolas com força para o charco e no outro dia fizeram aviões de papel que acabaram dentro de água”, queixa-se Mariana. Mas, para a professora Maria Gonçalves, a importância da iniciativa é bem clara. “Este foi um projecto que melhorou a condição de um espaço na escola, um baldio, onde os alunos brincavam mas sem qualidade. Nem tinham zonas para se sentarem, nem bonito era”, diz a docente. Além disso, segundo a professora, aquele charco é um laboratório vivo permanente, onde se pode sempre recolher informação que depois é levada para a sala para observação. “É um caldo cheio de vida microscópica. Ultimamente, têm-nos aparecido seres vivos um bocadinho maiores, as daphnias, que encantaram os miúdos. Mesmo aqueles que não estavam inscritos no clube vieram ver e disseram ‘já somos cientistas’, felizes com esta descoberta.” As daphnias, o género mais conhecido de pulgas de água em Portugal, são antigas conhecidas de Maria José Caramujo, bióloga do Centro de Biologia Ambiental (CBA) da Facul- dade de Ciências da Universidade de Lisboa. Há anos que sai para o campo à procura de microcrustáceos (que não excedem os cinco milímetros de comprimento) e os macrocrustáceos, que podem chegar aos oito centímetros e que só vivem nos charcos temporários, porque aí não existem peixes para os comerem. Alguns destes animais são raros e do tempo dos dinossauros, como os da ordem Notostraca, considerados fósseis vivos, pois mantiveram a mesma forma desde o Triássico, ou seja, desde há 220 milhões de anos. Maria José Caramujo coordenou, de Janeiro de 2010 a Fevereiro de 2012, a parte relativa aos crustáceos do projecto “Investigação, Conservação e Divulgação da Biodiversidade dos Charcos Temporários”, financiado pelo Fundo EDP para a Biodiversidade. “Continuamos a inventariar os charcos e os organismos que nele vivem”, conta à 2. Entre todos eles, os menos conhecidos serão mesmo os crustáceos. “Esta é uma fauna única, que serve de alimento a aves como cegonhas e garças e a muitas aves nas suas migrações. Se os charcos desaparecerem, aqueles crustáceos desaparecem também”, alerta. Uma das ameaças a estas pequenas espécies é a imprevisibilidade da chuva e os períodos de seca fora de tempo. “As espécies estão adaptadas à seca. Mas os animais precisam de tempo para se reproduzir, normalmente dois a quatro meses, dependendo das espécies. Se num ano o charco só tiver água um mês, ou mesmo durante uma semana, não terão tempo para deixar ovos de resistência nos sedimentos para o ano seguinte. Foi isso que muito provavelmente aconteceu em 2011/2012. Os charcos começaram a secar em Janeiro”, diz Maria José Caramujo. “Este ano, houve espécies que não apareceram, perceberam que não ia ser um ano bom.” E com a chuva que tem caído em Abril? “Mesmo que chova agora, os macrovertebrados já não vão eclodir porque a temperatura da água no charco será de 20ºC e eles só se reproduzem com menos de 15ºC. Estas espécies coordenam o ciclo de vida para aparecerem em períodos de chuva e temperaturas baixas. Está tudo cronometrado. O problema é que o clima está a variar muito”, acrescenta a bióloga. NA VALORPNEU NADA SE PERDE, TUDO SE TRANSFORMA. Um pneu pode levar 600 anos a decompor-se. Para nós é um instante. Hoje, a Valorpneu é já responsável pela recolha e valorização de quase 100% dos pneus usados em Portugal, reciclando, recauchutando e valorizando-os como fonte de energia. Vamos continuar a deixar uma marca positiva no Ambiente. Uma iniciativa: 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 27 os charcos são importantes, sensibilizá-las e motivar a sua conservação”, explica José Teixeira. A campanha, que envolve 5000 pessoas, arrancou em 2010 e criou desde então 16 charcos, para além dos 958 que inventariou. “Quem mais tem aderido são as escolas, que fazem actividades pontuais ou algo mais a longo prazo, como a construção de um charco”, acrescenta. Também há câmaras municipais a participar, como a do Porto — que já tem dois charcos nos jardins da cidade e, em conjunto com o Cibio, identificou as zonas mais importantes para a sua conservação — e a da Maia, que já eliminou peixes invasores. “Tivemos também 18 particulares que nos contactaram para saber como podiam melhorar os seus charcos”, adianta. J A falta de chuva fez baixar o nível de água no charco da Escola D. Pedro IV. “Já chegou a ter 40 centímetros, mas agora está quase sem água”, diz a professora Maria Gonçalves. Ricardo, que continua a trabalhar com afinco, ficou “desmoralizado” por ver a água quase a desaparecer. “Mas temos um plano para puxar água de uma fonte natural que existe na escola”, conta. Além de trocar a tela que impermeabiliza o charco — rota por causa das pedras atiradas lá para dentro —, esta é uma das melhorias a fazer no futuro. Mas, mesmo com pouca água pelo menos uma vez por semana, são feitas medições da temperatura, da profundidade e do pH, garante a professora. Rui Rebelo também é investigador do Centro de Biologia Ambiental da Universidade de Lisboa e responsável pela criação de uma rede de dez charcos temporários na Herdade da Ribeira Abaixo, em Grândola, estação de campo daquela faculdade. Os dois primeiros foram escavados por si em 2004 e hoje são aqueles que têm mais biodiversidade. “Pelo menos nove espécies de anfíbios já se reproduziram lá e já foram colonizados por vegetação aquática, que, normalmente, demora mais tempo. Estão óptimos”, salienta. Os restantes foram criados em 2010 e no final do ano estavam a ser usados pelo sapo-corredor e pela rã-defocinho-pontiagudo. “A biodiversidade está preparada para aguentar a seca; desde que chova durante dois ou três meses, mantémse”, diz Rui Rebelo. Mas no país há muitos charcos que este ano não chegaram a encher e outros que só tiveram água uma semana. Algo já está a mudar em Portugal. “Vamos continuar a ter charcos, mas serão cada vez mais iguais. Com menos chuva, os ‘quase permanentes’ estão a tornarse ‘muito efémeros’ e estes estão a desaparecer”, diz o biólogo. Rui Rebelo salienta que os charcos temporários são muito importantes para manter a humidade no solo: “São reser- A Escola D. Pedro IV, em Massamá, foi uma das 57 inscritas na campanha Charcos com Vida. No plano anterior, o charco criado no espaço do recreio que antes era um baldio. Em cima, Iara observa uma amostra de água vatórios de água, mesmo depois de já ter acabado de chover.” Maria José Caramujo também nota, com alguma preocupação, o caminho que os charcos temporários têm pela frente, num país onde os regimes de precipitação se tornam mais instáveis. “Estes charcos não são importantes apenas para a biodiversidade, mas também para travar a erosão dos solos. São sistemas que, mesmo no Verão, têm ervas frescas e um solo mais húmido e muito estável. Nas regiões áridas e com ventos, os charcos não contribuem para o pó em circulação”, afirma. Antes da agricultura intensiva, e de serem terraplanados para cultivo, os charcos eram utilizados para dar de beber ao gado e como reservas de erva fresca para o Verão. “Agora, a situação é preocupante”, admite Rui Rebelo. Mas não é de hoje. Em 1991, Pedro Beja, biólogo do Cibio, fez o primeiro inventário de charcos temporários, no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Foram encontrados, com a ajuda de fotografia aérea, 295 charcos. Em 2009 fez-se novo inventário e tinham desaparecido 45%. “É a perda, quase sem se dar por isso, de uma biodiversidade que estava em todo o lado”, disse na altura este investigador ao PÚBLICO. José Teixeira, do Cibio, coordena a campanha Charcos com Vida e está de visita à escola de Massamá, rodeado por Iara, Ricardo, Mariana, Beatriz e David, que disparam perguntas. Ricardo apanhou duas rãs perto da casa do tio e quer saber se as pode pôr no charco e Mariana fica surpreendida por não se dever pôr peixes nem cágados nestas pequenas massas de água. Iara, Beatriz e David querem fotocópias de uma folha com desenhos de répteis e anfíbios. E a professora e José Teixeira sorriem perante o entusiasmo. “O número de charcos temporários tem vindo a diminuir na Bacia do Mediterrâneo. Por isso, queremos mostrar às pessoas como osé Teixeira é, ele mesmo, um entusiasta pela vida destes habitats. “Têm uma biodiversidade muito particular, própria de ambientes extremos, muito mais interessante do que um lago com peixinhos vermelhos e pouco mais.” Como as lutas entre rãs macho, as paradas que fazem às fêmeas e as aventuras de animais com capacidades de adaptação impressionantes. Por exemplo, o sapocorredor consegue acelerar o seu ciclo larvar se o charco começar a secar antes do tempo, para se reproduzir e sair do sítio antes que seque. E depois há os insectos aquáticos, os escaravelhos de água e as larvas de libélulas, predadoras vorazes com uma armadura bocal projectada a alta velocidade para capturar as suas presas, como as larvas de anfíbios. “Há exemplos fantásticos de adaptação. Há insectos que têm formas muito interessantes de respirar debaixo de água, como aqueles que guardam o ar em bolhas debaixo das asas para irem gerindo ou ainda aqueles que usam tubinhos que fazem lembrar tubos de mergulho.” Mesmo a nível microscópico, há uma biodiversidade imensa, com largas centenas de pequenas algas e crustáceos. “Normalmente as pessoas não se apercebem de que aquelas massas de água são importantes, ainda têm uma carga pejorativa, as tais águas estagnadas”, afirma José Teixeira. Mas na sala do laboratório da escola D. Pedro IV, entusiasmo é coisa que não falta. Os três microscópicos estão todos ocupados com cabeças de gente miúda a espreitar para as daphnias trazidas do charco. “Olha, aqui vêse o coração a bater, os intestinos e os olhos”, explica Beatriz. E, vistas assim ao microscópico, as pulgas de água parecem seres dos abismos nas maiores profundidades dos oceanos, transparentes e de formas estranhas, a agitar as patas felpudas. “Parecem monstros. Mas monstros giros”, diz David. Então e do que é que gostam mais no charco? “Gostamos de tudo”, respondem, mais ou menos ao mesmo tempo e a olhar para os sapatos. “Até parece que ali não há vida. Mas está cheio de vida, a sério”, insiste Iara. “Sim, já sabemos. Já disseste isso duas vezes...”, repreende David. Ricardo não esquece a Fénix, a primeira rã do charco, e vai buscá-la ao armário ao fundo da sala, dentro do frasco com álcool. Com cuidado, abre a tampa e põe o pequeno animal na palma da mão. Quer mostrá-la, para provar que aquilo que tinha dito no início era verdade. O charco da sua escola já teve rãs e ele e os amigos querem garantir que isso voltará a acontecer. Ver vídeo e fotogaleria em www.publico.pt NICOLAU FERREIRA TEXTO AS RECEITAS DA CIÊNCIA PARA UM MUNDO MAIS QUENTE 30 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 PEDRO CUNHA E m Portugal o céu não brinca. Rezouse por chuva em 1980, 1991, 1994 e 1998. Em 2005 foi a pior seca dos últimos 60 anos. Ultrapassada só quando as nuvens se desviaram do território entre 1943 e 1946. O cenário repete-se agora. Depois de dois anos de boa chuva, veio um Inverno que deixou o país em seca extrema e uma Primavera que ainda não foi capaz de inverter a situação. “Se nós tivéssemos a certeza de que em Outubro de 2012 começaria a chover, estávamos seguros”, evidencia Rodrigo Proença de Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico e especialista na gestão de recursos hídricos. É isso que falta. Uma previsão do fim desta seca e do início da próxima para ajudar a gerir estas temporadas e saber quanta água é que se pode gastar. “Estamos preparados para um calendário onde deixa de chover de Abril a Outubro”, desmistifica o cientista. “Fomos capazes de construir uma capacidade de armazenamento de água.” À excepção de Trás-os-Montes, que está à espera da barragem de Veiguinhas, há albufeiras e aquíferos suficientes para o ano típico mediterrânico. “Estamos mais preparados para a seca do que Inglaterra”, assegura. São só as situações extremas de falta de água que trazem o pânico. No início de Abril, uma investigação publicada na revista Geophysical Research Letters, de uma equipa da Universidade do Estado de Michigan, mostrou que um modelo conseguiu prever com meses de antecedência a forte onda de calor que sufocou o centro dos Estados Unidos no Verão de 2011. “À medida que o Verão se aproximava, o modelo tornou-se mais certo sobre quão intensa a onda de calor seria”, explica um artigo da revista Nature. Pedro Miranda, geofísico do Instituto Dom Luiz da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), explica que estes modelos também são aplicados cá. “Para este ano, os modelos deram pouca chuva”, exemplifica. Mas “os modelos ainda estão em desenvolvimento, é uma área em que se está a investigar bastante”. No caso da Península Ibérica, explica Pedro Miranda, um período seco está relacionado com a Oscilação do Atlântico Norte (NAO, na sigla em inglês), um sistema de pressões com dois pólos, um em cima da Islândia, outro em cima dos Açores. Quando o índice da NAO é preponderantemente positivo, vive-se um Inverno frio e seco, quando é negativo, há chuva. No futuro, com as alterações climáticas, o que se espera é que os sistemas atmosféricos que trazem chuva “passem mais a norte”, explica o investigador. O último relatório especial do Painel Internacional para as Alterações Climáticas (IPPC), de 2012, sobre a gestão dos riscos de fenómenos extremos, dá com uma confiança alta o aumento de dias quentes e de ondas de calor no Verão, e a diminuição de dias frios para Portugal. Os cenários indicam ainda uma subida do número de dias sem chuva. Em relação ao nível de precipitação, é tudo mais incerto. A médio prazo, a quantidade de chuva terá tendência a diminuir no Inverno e a acentuar um pouco no Verão. O problema é o aumento da sua variabilidade de ano para ano, o que torna mais urgente a adaptação à seca. “Do lado da adaptação, há muita gente que defende que não é preciso mais dados, é preciso um novo quadro de decisão”, diz Tiago Capela Lourenço à 2. O investigador trabalha no Center for Climate Change Impacts Adaptation and Models, CC-IAM, um grupo de investigação da FCUL que já foi responsável por dois relatórios sobre os impactos das alterações climáticas em Sintra e Cascais. Estes trabalhos obrigaram à elaboração de cenários microscópicos, que agarram nos modelos de projecção de clima mundial e aplicamnos numa região tendo em conta a situação geográfica e o relevo. A partir daqui conseguem traçar tendências para as temperaturas e precipitação. Os estudos apresentam projecções do clima e avaliam os impactos destas mudanças na saúde das pessoas, disponibilidade da água, biodiversidade, agricultura ou no turismo. Uma empresa também pode estar interessada em saber como é que as alterações climáticas vão baterlhe à porta. O CC-IAM está agora a avaliar a robustez das estruturas da EPAL, que abastece de água a região de Lisboa — o que passa por uma avaliação sistémica do impacto das mudanças climáticas na qualidade e quantidade da água. “Estamos Portugal está mais preparado para a seca do que a Inglaterra: construiu uma capacidade para armazenar água ao longo do tempo a tentar perceber o que é que significa para a EPAL adaptar-se às alterações climáticas antes sequer de pensar nos cenários”, explica Lourenço. Em relação ao clima, antes de tudo, a equipa olhou para a vulnerabilidade actual das três fontes principais de água da EPAL: a captação que faz em Valada do Ribatejo, num ponto do rio Tejo que fica cerca de 20 quilómetros acima de Vila Franca de Xira, a barragem de Castelo de Bode e a captação de água do aquífero TejoSado, nas Lezírias do Ribatejo. No caso da barragem de Castelo de Bode, alimentada pelo rio Zêzere, os impactos das alterações climáticas são complexos. O aumento de temperatura pode promover o crescimento de algas e alterar os ciclos de carbono e azoto, e a variabilidade na precipitação pode ter um efeito na qualidade de água. A equipa de Tiago Capela Lourenço avaliou ainda as consequências dos incêndios de 2003 na região. As cinzas que ficaram no solo tinham um potencial de poluir o reservatório de água com as primeiras chuvas. Aparentemente, isso não aconteceu. “A EPAL parece ter um sistema robusto principalmente por causa da barragem de Castelo de Bode, que não sofreu com as secas”, avalia o cientista. O trabalho está a correr em estreita comunicação com a empresa e só termina em 2013. A equipa já produziu cenários climáticos para a região abarcada pela empresa, da mesma forma que tinha feito com o trabalho sobre os concelhos de Sintra e Cascais. Agora interessa chegar a soluções: novos reservatórios, novas tecnologias, diversificação de fontes ou alteração de fontes actuais, modificações nos sistemas de transporte e distribuição. Sobretudo, interessam “as medidas que respondam bem a todos os cenários climáticos”, aponta. “Temos de ser cada vez mais eficientes no uso da água. Reduzir as necessidades e melhorar o sistema de gestão”, diz por seu lado Rodrigo Proença de Oliveira, defendendo o fim das fugas na canalização. Para o investigador, a água irá ter obrigatoriamente um valor maior no futuro. Na agricultura, que gasta a maior parte da água do país, Proença de Oliveira espera que se desenvolvam estimativas mais rigorosas das necessidades de água das espécies agrícolas e valoriza a taxa de recursos hídricos — aplicada ao uso privado da água. Um pé-de-meia que pode depois ser utilizado, através do Fundo Português de Recursos Hídricos, para a construção de novas albufeiras importantes para o sector. A utilização de água reciclada para lavar ruas e regar jardins poderá ser uma alternativa nas cidades, que também vão ter de gerir períodos de chuva intensa. “Há previsões do aumento de momentos mais fortes de pluviosidade. A ocorrer isso, vamos ter mais cheias urbanas. É necessário aumentar a capacidade de drenagem, promovendo jardins, transformando o chão de parques de estacionamento em solo permeável”, exemplifica. São medidas que podem começar a ser executadas já, não dependem da vontade do céu. Em cima, chuva intensa no Porto em 2009, que contrasta com a seca de 2005 no Alentejo (à esq.) Enquanto muitos cientistas estudam o fenómeno das alterações climáticas para um dia conseguirmos prever a próxima seca, outros já deram o passo à frente e pensam na adaptação a um mundo em que a água vai seguir outros caminhos 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 31 Com a perspectiva de mais habitantes na Terra, mais consumo e um clima mais quente, tornou-se comum falar-se nas “guerras da água”. O passado mostra, porém, que não são inéditas. Médio Oriente, Sudão, Bolívia foram já palcos de conflitos violentos pela água. Mas há muitas outras formas de confronto QUANDO A ÁGUA É MOTIVO DE GUERRA H RICARDO GARCIA á cinco anos, os horrores dos conflitos no Darfur ganharam o triste epíteto de primeira guerra alimentada pelas alterações climáticas. A rotulagem trazia um toque oficial. A ONU divulgara, nessa altura, um estudo sobre a influência de factores ambientais na origem do confronto. A quantidade de chuva naquela região do Sudão caíra quase um terço em 30 anos e nalguns pontos o deserto avançara até 200 quilómetros para sul desde 1930. Em boa medida, foi isto o que empurrou nómadas árabes e agricultores africanos para anos de luta sangrenta, competindo por recursos contra a aridez. Foi uma guerra complexa, onde muitos factores se uniram para um trágico resultado. Mas foi, sem dúvida, uma guerra da água. Bélicas ou diplomáticas, locais ou internacionais, subtis ou evidentes, há muitas “guerras da água”. Numa cronologia elaborada pelo projecto World’s Water, do Instituto Pacífico — uma organização de investigação com sede na Califórnia —, estão contabilizados pelo menos 225 conflitos. O mais antigo associado a uma disputa militar terá ocorrido em torno de 2500 a.C., quando a cidade suméria de Lagash desviou canais da região do Tigre-Eufrates para isolar a rival Umma. 32 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 A entrada mais recente da cronologia referese a um protesto contra a falta de água, em Julho de 2010, num bairro da área metropolitana de Nova Deli, em que cerca de 500 pessoas ocuparam uma ponte, destruíram veículos e entraram em confrontos com a polícia, segundo o relato do jornal The Times of India. Uma lista com cinco milénios de conflitos apenas reforça o que, afinal, é uma ideia simples: privar alguém do acesso à água é meio caminho andado para desavenças. Com uma agravante: os diferentes usos dos recursos hídricos são muitas vezes antagónicos — desde dar de beber, a irrigar campos agrícolas, produzir electricidade, alimentar a indústria, encher piscinas ou regar campos de golfe. “Gerir a água é dirimir conflitos de uso”, afirma o exministro do Ambiente Francisco Nunes Correia, professor do Instituto Superior Técnico e presidente da Parceria Portuguesa para Água, destinada a promover a internacionalização das empresas nacionais do sector. O grande temor é o de que nas próximas décadas, com o aumento da população, a elevação dos níveis de consumo e os efeitos das alterações climáticas, os focos de tensão se multipliquem. Os cenários não são animadores. Hoje, segundo estatísticas da ONU, 1,4 mil milhões de pessoas vivem em zonas onde a procura de água excede a capacidade FINBARR O’REILLY/REUTERS 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 33 de recarga. Cerca de 900 milhões não têm acesso à quantidade de água mínima para as necessidades básicas e 27% da população urbana não está ligada a redes de abastecimento. Até 2025, o consumo de água pode subir 50% nos países em desenvolvimento e 18% nos desenvolvidos. Nessa altura, 1,8 mil milhões de pessoas viverão em regiões com escassez absoluta de água. Tornou-se um lugar-comum, por isso, falar-se do século XXI como a possível era das “guerras da água”. Se vierem a ocorrer, no sentido militar, não serão inéditas. A Guerra dos Seis Dias, em 1967, esteve intimamente ligada ao controlo da água do rio Jordão, que passa pelo Líbano, Síria, Israel, Cisjordânia e Jordânia. Os conflitos pela água na região começaram ainda na década de 1950, quando empreendimentos hídricos unilaterais levaram a escaramuças militares. A Jordânia anunciara planos para o uso intensivo do Yarmouk, o principal afluente do Jordão, para agricultura. Israel iniciara a drenagem de pântanos e a construção de uma rede de transporte de água para áreas costeiras e o deserto do Negev, com captação no Norte do Mar da Galileia, na zona desmilitarizada acordada com a Síria em 1949. Quando em 1965 a Liga Árabe iniciou, na Síria, as obras de um projecto hídrico para desviar a água dos rios Hasbani e Banias — que formam o Jordão —, a tensão subiu a um nível sem precedentes. O projecto reduziria o fluxo do rio, comprometendo a estratégica rede de transporte que Israel acabara de inaugurar. Muitos anos mais tarde, o ex-primeiro-ministro Ariel Sharon reconheceu que foi naquele momento que a Guerra dos Seis Dias teve início, e não a 5 de Junho de 1967. “Esta foi a data oficial. Mas na verdade, começou dois anos e meio antes, quando Israel decidiu agir contra o desvio do Jordão”, disse Sharon, citado pelo jornalista britânico Adel Darwish, co-autor do livro Water Wars: Coming Conflicts in the Middle East, num artigo na BBC, em 2003. C onflitos militares não esgotam o termo “guerras da água”. “É uma expressão sonante, mas não creio que tenha grande peso analítico na maior parte dos casos”, afirma Casey Walsh, professor do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia e autor de trabalhos sobre o tema. “Os conflitos sobre a água são universais e estão a aumentar com a escassez, mas manifestam-se de muitas formas que não a guerra”, completa. Se não chegaram a vias de facto, México e Estados Unidos também estiveram em rota de colisão quanto à partilha dos seus principais rios comuns. Embora sem consequências tão dramáticas, a história aqui parte dos mesmos ingredientes originais da querela israelo-árabe. Os Estados Unidos construíram, em 1930, uma longa conduta de 130 quilómetros — o All American Canal —, para captar a água do rio Colorado antes da fronteira e desviá-la para zonas agrícolas e urbanas no Sul da Califórnia. Na mesma altura, o México desenvolvia redes de rega para aproveitar a água do Rio Bravo (Rio Grande, nos Estados Unidos), em detrimento do Texas. Da fricção de interesses acabou por surgir, em 1944, um tratado para os rios transfronteiriços. Mas mesmo o acordo não evitou novos desentendimentos. Entre 1992 e 1997, o México não conseguiu cumprir os caudais mínimos de água do Rio Grande estipulados no acordo. O país justificou com a seca, mas foi acusado de estar a utilizar a água para rega noutros pontos da bacia hidrográfica. A contenda subiu de tom, chegando a envolver os presidentes George W. Bush e Vicente Fox em 2001-2002. O capítulo mais recente é o da pavimentação de parte do All American Canal, com que os norte-americanos quiseram evitar a perda de água por penetração no solo arenoso. Mas esta água subterrânea era essencial para os mexicanos, que tentaram impedir judicialmente a intervenção, sem sucesso. Casey Walsh chama a atenção para os cenários das alterações climáticas, com a região a tornar-se cada vez mais seca e quente. “Suspeito que os conflitos sobre a água vão continuar a crescer”, diz Walsh. Mas uma “guerra da água” de facto, ali, está longe de acontecer. “A relação de forças é simplesmente muito desigual para que o México ganhe alguma coisa com um conflito aberto”, completa. Não faltam oportunidades para disputas como as da bacia do Jordão, do Colorado e do Bravo. Pelo menos 145 países possuem parte do seu território abrangido por bacias hidrográficas transfronteiriças, segundo dados da UNESCO. São mais de 300 os rios e lagos partilhados por dois ou mais países. Aí vive 40% da população mundial. Além disso, há pelo menos 200 aquíferos subterrâneos que ignoram fronteiras políticas. Os desacordos sobre a repartição destes bens comuns podem agudizar-se num mundo mais quente no futuro. Veja-se o caso da bacia No plano anterior: os conflitos no Darfur ganharam o epíteto de primeira guerra alimentada pelas alterações climáticas. Em cima, crianças palestinianas recolhem água em Gaza; a guerra israelo-árabe de 1967 teve como epicentro o rio Jordão do rio Indo, palco de tensões históricas entre a Índia e o Paquistão. Investigadores da Universidade de Utrecht concluíram, num estudo publicado em 2010, que aquela bacia será uma das mais afectadas pela provável redução dos glaciares dos Himalaias até 2050, com uma quebra de 8,4% no seu fluxo de água. É um dado que poderá pôr à prova o tratado de 1960 assinado por ambos os países para a partilha das águas. Apesar do tratado, o Paquistão — que enfrentou uma forte seca na segunda metade dos anos 1990 — tem protestado perante novos projectos de barragens do lado indiano. Por outro lado, o próprio Paquistão é acusado de uso insustentável dos recursos hídricos que tem à sua disposição. O conflito subiu recentemente de tom pela mão do alegado líder terrorista paquistanês Hafiz Saeed. Num protesto em Março de 2010, em Lahore, Saeed acusou a Índia de construir barragens ilegais e de praticar o “terrorismo da água”, dizendo que o Paquistão deveria manter aberta “a opção do uso da força”. Sem a mesma dose de hostilidade, a construção de barragens para produção eléctrica no rio Mekong, no Sudoeste asiático, também se tem revelado um foco de fricção. O rio percorre cinco países — China, Birmânia, Laos, Tailândia, Camboja e Vietname. A China, unilateralmente, já avançou com um plano próprio para vários projectos de aproveitamento hídrico, dos quais três já estão prontos. Laos, MAHMUD HAMS/AFP que participou no encontro, como assessor de Teresa Gouveia. No final, o caso subiu ao nível dos chefes de Governo e acabou por resultar num acordo bilateral, a Convenção de Albufeira para gestão dos rios comuns, de 1998, que ainda assim teve de ser reforçada por protocolos adicionais uma década depois. Embora saliente que a cooperação afinal se tenha sobreposto ao conflito, Nunes Correia não tem dúvidas: “Existem condições objectivas para que haja momentos de tensão entre Portugal e Espanha.” A Tailândia, Camboja e Vietname uniram-se numa estratégia comum para mais 11 barragens ao longo do rio. Embora sejam do tipo “fio-deágua”, sem formar grandes albufeiras — como as do Douro —, tais projectos têm preocupado sobretudo ambientalistas e as comunidades piscatórias, naquele que é considerado o curso de água doce mais rico para as pescas. Em todos estes casos, quem está na parte baixa de uma bacia é sempre o elo mais fraco. “É claríssimo que os países de montante têm mais peso negocial do que os países de jusante”, afirma Rodrigo Proença de Oliveira, investigador do Instituto Superior Técnico. Foi o que Portugal sentiu nas negociações com Espanha sobre os rios transfronteiriços. A primeira versão do Plano Hidrológico Espanhol, de 1993, era um documento unilateral, que incluía transvases entre bacias e novas formas de reter água do outro lado da fronteira. “O que tinha de chocante é que ignorava completamente Portugal”, recorda Francisco Nunes Correia. Portugal teve de se defender. Quando a ministra do Ambiente, Teresa Gouveia, foi a Madrid discutir o assunto, levou consigo, logo na primeira reunião, um representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os espanhóis não contavam com isso. “Quando se aperceberam, suspenderam a reunião e deixaram-nos uma hora à espera, enquanto decidiam o que fazer”, recorda Nunes Correia, s “guerras da água” não precisam ser apenas entre dois países. Lutas políticas e protestos têm marcado décadas de disputa entre os estados indianos de Karnataka e Tamil Nadu pelas águas do rio Kaveri. Nos Estados Unidos, há conflitos dentro do mesmo estado, como na Califórnia, por exemplo. Mas, no que toca a disputas internas, não há local onde melhor se aplique o termo “guerra da água” como a cidade boliviana de Cochabamba. Ali, a luta foi contra a privatização do abastecimento de água, entregue em 1999 a uma empresa internacional, num concurso com um só concorrente. O secretismo do contrato, a duplicação nos preços e a proibição de acesso a fontes alternativas de água levaram a greves, bloqueios e protestos durante meses. No auge do conflito, em Abril de 2000, milhares de pessoas ocuparam as ruas e paralisaram Cochabamba. O símbolo da luta era uma faixa colocada na fachada de um edifício na praça central tomada pela população: “El agua es nuestra, carajo!” O Governo declarou o estado de emergência e reprimiu violentamente as manifestações. Mas o escalar da violência, com cinco mortos e pelo menos 40 feridos, virou-se contra o poder e o Governo acabou por rescindir o contrato com a empresa Aguas del Turani, alegando falta de condições de segurança. Para o sociólogo Esteban Castro, professor da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, e investigador na área da água e governabilidade, Cochabamba foi um caso único em vários aspectos — por exemplo, pela sua projecção internacional e por ter resultado na demissão em bloco do Governo, com excepção do Presidente Hugo Banzer. Mas não noutros. “Não nos devemos admirar que ocorram mais situações como essa, de repressão policial e armada em relação a casos de privatização”, afirma. Menos turbulentas, tensões também estão presentes na história do abastecimento de água em Portugal. Num capítulo recentemente publicado num livro da UNESCO sobre os conflitos urbanos da água, os sociólogos Luísa Schmidt, Tiago Saraiva e João Pato, do Instituto de Ciências Sociais, apontam um rol de episódios ao longo do último século e meio, desde lacunas no abastecimento e problemas de poluição, até às polémicas mais recentes sobre a privatização e às dívidas das autarquias à holding estatal Águas de Portugal. Serão também “guerras da água”, embora diferentes das que mais se temem, entre países ou populações. Por ora, a diplomacia e a gestão comum têm sido a melhor arma para evitar o pior. A própria UNESCO lançou um programa neste sentido, o PCCP — do Potencial Conflito à Cooperação Potencial —, uma plataforma de diálogo e de disseminação de informação. “A água é uma fonte de conflito e de cooperação”, afirma Francisco Nunes Correia. “Mas o que tem prevalecido é a cooperação.” DR DAR A CARA OSAMA ABU AYYASH A ocupação israelita matou-lhe o avô, o pai e dois cunhados, mas o palestiniano nascido um ano antes da guerra de 1967 recusou o caminho da vingança. Por Margarida Santos Lopes H á um “momento especial” na vida do palestiniano Osama Taleb Abed El Magid Abu Ayyash que o fez escolher a reconciliação e não a vingança, depois das mortes do seu avô, pai e dois cunhados, “mártires da ocupação”. Há uns dez anos, estava ele em casa de uma irmã quando conheceu o judeu israelita Rami Elchanan. Ficou espantado ao ouvi-lo falar de paz depois de a sua filha de 14 anos ter sido vítima de um atentado bombista. “Abraçámo-nos um ao outro e chorámos.” “Impressionou-me a força das suas ideias e do seu carácter”, disse Abu Ayysah à 2, numa entrevista por telefone, ajudado pelo amigo Ibrahim Salaoui, que serviu de intérprete, já que o motorista de camião com um mestrado em Psicologia é fluente em árabe e em hebraico mas não se exprime bem em inglês. “Achei que devia juntar-me a Rami na procura da coexistência. Tinha de me comprometer.” Hoje, Abu Ayyash, 46 anos, é um dos membros mais activos do Parent Circle-Families Forum (PCFF), organização que junta palestinianos e israelitas que perderam familiares próximos num dos principais conflitos do Médio Oriente. A sua mais recente missão era ir a escolas dar a conhecer “o rosto dos árabes”, mas o Ministério da Educação, pressionado por grupos direitistas, proibiu-o há quatro meses de falar nos liceus e universidades, alegando que o seu discurso é “demasiado político” e que é “inadmissível a comparação entre o sofrimento de ‘terroristas’ e o dos civis israelitas”. Não sendo homem para baixar os braços — quando perdeu o emprego decidiu cultivar a pequena horta junto à sua casa, em Beit Ummar, perto de Hebron, na Cisjordânia, sobrevivendo dos produtos agrícolas que vende —, Abu Ayyash não se importa de enfrentar diariamente longas filas de espera nos checkpoints, para dar a conhecer a sua história, agora só nas escolas primárias de Israel. 36 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 Orgulha-se de ter conseguido ir mais longe, ao entrar em quartéis, com a ajuda de dois amigos judeus israelitas do Parent Circle, tentando sensibilizar os jovens soldados que servem nos territórios palestinianos. Ser um pacifista não tem sido missão fácil para Osama Abu Ayyash, nascido em 11 de Fevereiro de 1966, um ano antes da humilhante derrota imposta por Israel aos exércitos árabes ao conquistar aos jordanos a Cisjordânia e Jerusalém Leste, aos egípcios a Faixa de Gaza e a península do Sinai, e aos sírios os Montes Golã. “Eu tinha apenas um ano quando fomos forçados a procurar refúgio numa gruta que havia na terra que os nossos antepassados habitavam desde há um século. Foi traumático, para mim, como tinha sido para o meu pai, quando o meu avô morreu, a 12 de Maio de 1948”, na guerra que se seguiu à criação do Estado de Israel. De coração fraco, o pai de Abu Ayyash nunca recuperou do choque. Em 1975, tinha o filho sete anos, sofreu um segundo ataque cardíaco, forçando a mulher a sustentar sozinha uma família de cinco filhos e três filhas. Em 1983, morreu a caminho do hospital, depois de o exército o ter retido num posto de controlo “durante horas num severo e inexplicável interrogatório”. Órfão aos 17 anos, Ayyash teve de abandonar a escola para trabalhar e poder comprar uma máquina de costura eléctrica que permitisse à mãe um complemento financeiro. Voltou a estudar assim que lhe foi possível, combinando as aulas com um emprego em part-time. Concluiu com êxito um mestrado em Psicologia, mas nunca arranjou emprego na área da sua formação. “A minha situação complicou-se quando fui preso sem julgamento, pelo menos três vezes, a última em 1990”, contou Ayyash. “Suspeitavam de que eu tinha disparado sobre colonos judeus mas eu era inocente, e até descobrirem isso os agentes do Shin Beth [segurança interna] usaram vários métodos de tortura, desde choques eléctricos a imersão em água quente e gelada, além da privação de ir à casa de banho, o que foi humilhante. Pediram-me desculpa mas não esqueço o sofrimento por que passei nesse período.” Em 2002 e 2003, respectivamente, mais dois golpes foram desferidos: os cunhados Kamal, de 20 anos, e Tayseer, de 21, foram abatidos a tiro por soldados que os perseguiam por serem “militantes da resistência”. Eles haviam recorrido à violência depois de terem sido brutalmente espancados por militares quando eram crianças — um deles tinha apenas dez anos, “quando foi largado numa rua, sem sentidos”. Embora revoltado, Ayyash empenhou-se para que a sua mulher, Sara, com quem se casou em 1992, não albergasse o mesmo sentimento de vingança que levou os cunhados a andarem armados. Isso não impediu, porém, que um dia, ao visitar uma irmã, tivesse reagido mal ao ver à porta um carro com matrícula israelita [amarela, para se distinguir das que circulam nos territórios palestinianos]. Como é que ela “ousara acolher judeus que derramaram sangue da nossa família?”, indagou Abu Ayyash, pai de um rapaz e quatro raparigas. A irmã convidou-o a entrar e explicou-lhe que o visitante, Rami Elchanan, tinha perdido a sua filha num ataque terrorista. “Ele apresentou-me ao Parent Circle. Foi muito gentil. Percebi que a minha dor não era maior do que a dele. Convenci a minha mulher de que também havia judeus israelitas bons.” O Parent Circle, do qual fazem parte actualmente mais de 600 famílias, foi criado em 1988 por Yitzhak Frankental. As primeiras reuniões, lê-se no site da organização, começaram em 1988 depois de um grupo de palestinianos de Gaza ter aceitado o desafio de procurar alívio junto de famílias israelitas enlutadas, “através do diálogo e da tolerância”. A ligação a Gaza foi interrompida depois da segunda intifada em 2000, ano em que este processo lenitivo passou a incluir palestinianos da Cisjordânia e Jerusalém Leste. A associação, registada oficialmente, tem dois escritóriossede: em El’ram, na Cisjordânia e em Ramat Efal (Telavive). “A princípio, quando comecei a ir às escolas, havia alunos que ficavam espantados”, revela Abu Ayyash. “Um rapaz disse-me que pensava que os árabes tinham caudas como os burros — nunca tinha visto um árabe! Aos poucos, estes miúdos entendem o sofrimento dos palestinianos, e vêem que não há alternativa à paz e à coexistência; o mesmo se passa nas escolas palestinianas visitadas pelos judeus israelitas do PCFF.” Inquirido sobre se esta pertença ao Parent Circle não faz com que em Hebron e em Nablus (onde estudam as suas quatro filhas, a 120 quilómetros de distância de casa), cidades de grande fervor revolucionário, seja olhado como “colaboracionista”, Abu Ayyash assegura que não. E Ibrahim, o amigo que assiste na tradução, enfatiza: “Todos o respeitam, e muita gente aqui tem amigos israelitas; também sou a favor de uma solução de dois Estados.” Das “aulas” nas escolas israelitas, Ayyash evita falar das más experiências. Prefere concentrar-se nas que lhe deixam boas recordações. Lembra-se, por exemplo, de estar num liceu em Sderot, na “fronteira” com a Faixa de Gaza, em 2007, quando milicianos do Hamas começaram a lançar rockets sobre a cidade. “De repente, apercebi-me de que os alunos gritavam uns para os outros uma password, que eu não entendia, e começaram a correr, deixando-me sozinho no pátio. Estava eu ali perdido, quando um grupo veio ter comigo, agarrou-me e conduziu-me para o abrigo. Perguntei o que estavam eles a fazer, e responderam-me: ‘Temos de te proteger. Não vês que podes morrer?’ Fiquei muito emocionado.” “A minha tarefa não é fácil mas também não é impossível”, conclui. “Acredito na paz e agarro a oportunidade de a construir.” JORGE ALMEIDA FERNANDES PONTO DE VISTA CLASSES MÉDIAS: O TABULEIRO GLOBAL O declínio e a ansiedade das classes médias dos países ricos não são inteligíveis sem olhar a economia mundial e o confronto de interesses com as economias emergentes AFP A s classes médias são o instável centro de gravidade das nossas sociedades, por onde passa a coesão do edifício social e que melhor o podem desestabilizar. São uma zona de virtual turbulência política, determinante para as próprias instituições democráticas. O sentimento de declínio das classes médias nos países desenvolvidos foi dramatizado pelos efeitos da crise económica de 2008. Há uma distinção a fazer: esta crise é um acelerador e multiplicador dos efeitos mas não a raiz do problema. A percepção actual do declínio das classes médias — na esteira das cíclicas crises ao longo do século XX — remonta a meados dos anos 1990. Combina muitos factores: do fim da era de ouro do pleno emprego e dos “trinta magníficos” à globalização e às mutações tecnológicas. Nela se confundem situações de despromoção, troca de lugares na escala social, alargamento da distância entre a base e o topo, tudo isto dobrado pela “questão geracional”: na Europa ou nos Estados Unidos, quem nasceu nas décadas de 1940-50 teve o dobro das hipóteses de alcançar a “classe média superior” do que quem nasceu a partir de 1970. Falando da América, o ensaísta Michael Lind aconselha a ter sempre presente uma perspectiva histórica: todas as classes médias foram inventadas e, portanto, a sua reinvenção é o grande desafio da política de hoje — “antes que seja tarde”. É impossível discutir as classes médias sem ter em conta o novo tabuleiro mundial: elas estão ensanduichadas entre a estagnação dos “países ricos” e o exuberante crescimento nos “países pobres”. Este fenómeno traduz-se nos media ocidentais através de dois registos: pessimismo sobre a situação doméstica e um deslumbrado optimismo sobre o potencial das novas classes médias dos países pobres — concorrentes mas aspirantes ao modelo ocidental de democracia. A “classe média mundial” triplicou em dez anos, titularam os jornais ao resumir um estudo do grupo segurador alemão Allianz. Este estudo, que englobou 50 países, 68% da população mundial e 87% do PIB mundial, analisava apenas a riqueza privada das pessoas — e não os rendimentos. Os novos membros da “classe média mundial”, dispondo de activos financeiros entre 5300 e 31.600 euros, passaram de 200 milhões, em 2000, para 565 milhões no fim de 2009. Metade vivia nos países emergentes: 130 milhões na China, 40 no Brasil. Na mesma década, a riqueza das pessoas progrediu 16% nos países pobres, ou seja, sete vezes mais do que nos países ricos. Anotou uma analista do Allianz: “A grande surpresa reside no enorme impacto da crise nas economias desenvolvidas. Percebe-se como as grandes praças financeiras foram atingidas e como os países emergentes se saíram relativamente bem.” é frágil e vê o seu futuro dependente da estabilidade social e política: “A democracia traz liberdade mas também o risco de caos.” A prosperidade da classe média chinesa assenta na sua aliança com o regime autoritário, frisa o sinólogo americano Andrew J. Nathan. A combinação entre liberalização económica e autoritarismo político — o “modelo de Singapura” — seduz grande parte da Ásia. Inversamente, a maioria dos indianos considera que “a democracia é boa para a economia”. O O economista Johannes Jitting observava num estudo da OCDE: “Em 2050, 50% do consumo global do planeta caberá a chineses e indianos, contra os actuais 10%.” O centro de gravidade da economia mundial migra a grande velocidade. Um estudo do banco Goldman Sachs sublinhava a explosão do consumo nos mercados emergentes. Os chineses compraram em 2009 mais automóveis do que os americanos e havia na Índia mais utilizadores da Internet do que nos EUA. Em 2030, nove em cada dez telemóveis estarão em países emergentes, a começar pela China e pela Índia. Os analistas ocidentais interrogam-se sobre os efeitos culturais e políticos desta “ascensão do resto”, para usar uma expressão de Fareed Zakaria. Um inquérito de 2009 do Pew Global Attitudes Project, cobrindo 13 países emergentes, sublinhava que as classes médias são as mais sensíveis aos temas da democracia e dos direitos cívicos. “O desenvolvimento facilita e sustenta a democracia, mas não a garante”, ressalvava Robert Wike, director adjunto do Pew. A tendência é clara em países como o Chile, o Brasil ou a Índia, com tradição democrática. Na China, a atitude das classes médias é ambígua: o arbítrio do poder é cada vez menos tolerado, há exigências de liberdade de expressão e de independência da justiça. Mas impõe-se a distinção entre democracia e liberalização. A democracia não decorre mecanicamente do crescimento económico. A classe média chinesa Em 2050, 50% do consumo global do planeta caberá a chineses e indianos, contra os actuais 10%. O centro de gravidade da economia mundial muda a grande velocidade. E, com ele, mudam as classes médias nde se cruzam ou chocam os interesses das classes médias dos “pobres” e dos “ricos”? A globalização é o terreno de eleição. O economista americano Michael Spence explicou na Foreign Affairs que os efeitos negativos da globalização no Ocidente foram compensados, até à viragem do século, pela oferta de produtos mais baratos, que beneficiaram os consumidores ocidentais de todas as classes. Mas, depois de a concorrência dos países emergentes ter dilacerado o tecido industrial, a combinação entre globalização e novas tecnologias fere também uma parte importante das classes médias, no salário e no emprego. Moisés Naím, director do magazine Foreign Policy, chama atenção para o potencial de um novo conflito: “Na minha opinião, uma fonte muito mais importante de conflito do que o ‘choque de civilizações’ serão as mudanças nos rendimentos das classes médias nos países ricos — onde estão a declinar — e nos países pobres, onde estão a aumentar. (...) Isto gera expectativas frustradas que alimentam a instabilidade social e política.” Naím garante que “as mais rigorosas investigações” revelam que a erosão dos salários nos países desenvolvidos não é efeito directo do rápido crescimento dos emergentes mas decorrem “da mudança tecnológica, de uma produtividade anémica, da política fiscal e de outros factores domésticos”. Na Espanha e na França, na Itália ou nos Estados Unidos, as classes médias sentem que a sua situação e o seu estatuto estão a piorar. Nos emergentes, “não há governo que possa satisfazer as novas exigências de uma classe média em ascensão à mesma velocidade com que se produzem”; no Ocidente, os governos “estão submetidos a enormes pressões para conter a queda do nível de vida da classe média existente”. Alguns políticos desviarão o descontentamento, atirando as culpas para o rápido crescimento dos países pobres. As eleições francesas são um espelho. Na extrema-esquerda e na extrema-direita, Jean-Luc Mélenchon e Marine le Pen recorrem a simétricas retóricas nacionalistas para captar votos no medo das classes médias e populares. A globalização desloca o “centro do mundo”, a tecnologia muda o trabalho e ambas mudam o emprego. Não é possível inventar uma saída do declínio sem perceber que nada será como dantes. 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 37 ALEXANDRA LUCAS COELHO ATLÂNTICO-SUL A DOR DE CRIOLO 1 Ele chega de branco com uma asa amarela ao pescoço. À sua frente tem milhares de pessoas e é quase uma da manhã. Canta a primeira canção, desata a asa — uma T-shirt com São Jorge, Salve Jorge —, estende-a entre a percussão e a bateria, um talismã. Eu, que nunca o vi antes, abro a boca porque ele caminha com passadas tribais, arregala os olhos, curva-se num transe, esfrega a cabeça, esfrega a cara. Mas à minha volta todos parecem tê-lo visto e ouvido antes porque se atiram para a frente a cada verso, braços, tronco, garganta, uma negrinha atrás de mim grita o mais alto que pode e entre cada canção chama: “Criolo! Criolo! Criolo!” Ele diz que canta porque está desesperado e sabe que é por isso que estamos ali. Todos estamos desesperados. 2 A primeira vez que ouvi falar em Criolo foi há um ano, na canção Não Existe Amor em SP. O link do Youtube dizia que o autor era um rapper. Aquilo não era um rap mas era uma grande canção. Nunca mais consegui voltar a São Paulo sem me lembrar dela. Está no céu de cimento, no ângulo dos espelhos, nos graffiti. Já este ano, quando Criolo ficou famoso, a entrevistadora Marília Gabriela perguntou-lhe qual era a diferença entre a São Paulo dessa canção e a Sampa, de Caetano. Faz sentido: a cidade absorveu as duas. 3 Kleber Cavalcante Gomes lhe chamaram os pais, seu Cleon e dona Vilani, ele metalúrgico, ela benzedeira do bairro, nordestinos migrados para a periferia de São Paulo. Dona Vilani tinha tal paixão pelas letras que em criança, lá no Ceará, quando a mandavam comprar um pedaço de carne, vinha a correr para que a folha de jornal que a embrulhava não embebesse o sangue e desse para ler ainda. Criolo conta esta história e outra que ele próprio viveu: quando se foi matricular para os últimos anos do secundário, Dona Vilani perguntou se também se podia matricular. Então estudou três anos ao lado do filho, depois fez filosofia e ainda uma pós-graduação em línguas e semiótica. Mas não só continuou a morar na periferia como abriu lá um “café filosófico”. O lugar chama-se Grajaú, fica no sul de São Paulo e Criolo também não o deixou por ter ficado famoso. Dedicou-lhe uma canção, “Grajauex”: “É o ouro branco, o pó mágico e o poder de um Rolex/ Na favela, com fome, atrás dos Nike Air Max/ Os canela cinzenta que não tem nem cotonets/ Os MC das antiga é dinossauro T-Rex.” 4 Criolo passou anos a trabalhar em educação pela arte com garotos de rua mas é rapper desde a adolescência. No fim dos anos 90 conheceu Cassiano Sena, o DJ Van Van e com ele criou as Rinhas de MC’s, para improvisos à desgarrada. Um primeiro disco consolidou-o no meio do rap em São Paulo. Assinava então Criolo Doido. Quando fez 20 anos de palco pensou retirar-se. Mas DJ Van Van disse-lhe que talvez só estivesse a começar. Juntou o que entretanto compusera e com a ajuda de dois produtores entusiasmados viu o esboço de um disco: soul, funk, bolero, reggae, samba, além de rap. Um dia que estava à espera para gravar veio-lhe uma canção extra. Chamava-se Não Existe Amor em São Paulo. Decidiram incluí-la em terceiro lugar no disco. E dar o disco, porque Criolo acredita que tudo o que lá está lhe foi dado. Então pô-lo na Net. 5 Isto aconteceu em 2011. O que se seguiu foi a explosão de Criolo. Disco do ano, canção do ano, artista do ano. Caetano Veloso apareceu ao lado dele na sessão de prémios para cantar Não Existe Amor em SP. Alguém mostrou a Chico Buarque um vídeo no Youtube em que um rapper de São Paulo reinventava a letra de Cálice à capela num boteco. O rapper era Criolo e quando Chico voltou aos palcos, ao fim de cinco anos, para os shows do seu último disco, deixou toda a gente boquiaberta ao cantar a versão Criolo de Cálice: “Pai / Afasta de THEO DUBEUX Criolo diz que canta para expressar uma dor que não passa, que bom mesmo seria não sentir essa dor. E em tudo o que diz, na hesitação como na contorção, não há uma nota falsa mim a biqueira, pai / Afasta de mim as biate, pai / Afasta de mim a coqueine, pai / Pois na quebrada escorre sangue.” Biqueira é ponto de venda de droga, biate é quem se aproxima por dinheiro, coqueine é cocaína. Para Criolo eram já 23 anos de palco, com alguns concursos perdidos, falhanços, olhares de lado. Mas ao Brasil pareceu um piscar de olhos: o rapper que de repente até Chico e Caetano cantavam. 6 A revista Trip fez uma capa, levou-o para Nova Iorque, falou com a mãe. Na entrevista que lhes deu, Criolo diz que canta para expressar uma dor que não passa, que bom mesmo seria não sentir essa dor. E em tudo o que diz, na hesitação como na contorsão, não há uma nota falsa. 7 Chega a noite de 14 de Abril na Fundição Progresso, centro do Rio de Janeiro, lotação esgotada. O rapper B Negão aqueceu bem a massa antes do intervalo. A banda de Criolo ocupa finalmente o palco. Como diz o DJ Van Van, tudo é novo para eles, que estão na estrada há tantos anos: banda é novo, cachet é novo, hotel é novo, avião é novo. Aí vem o Dj Van Van, tranças eléctricas e microfone na boca, grande mestre de cerimónias. Todo de branco, com a asa de São Jorge já pousada, Criolo traz por dentro da camisa as suas missangas de Candomblé. Vê-se que são brancas e azuis quando ele pula. Porque ele pula, roda, estaca como um animal, domina o lugar como um índio ou um profeta. As mulheres apertam-se contra as grades, mas não só elas. Garotos de boné que sabem todas as letras, um matulão que despe a T-shirt e a atira para o palco. Criolo pega nela: tem a cara dele em versão Andy Warhol. Quando a banda ataca o bolero, a Fundição Progresso balança num êxtase. E daí para samba, reggae, funk, rap. Tudo o que no disco aparece separado, como um cardápio, ao vivo é fluido e coeso. É preciso ver Criolo para perceber porque é que ao fim de 23 anos de estrada toda a gente que o vê fica apaixonada. Ele canta porque tem uma dor que não passa e nada é tão verdade para quem está ali. 8 O som nem estava bom, Criolo interrompeu, entreteve. Já tinham vindo convidados especiais, rappers famosos e rappers amigos, até um irmão. Agora vem mais um, pequenino, grisalho. “É um menino, é um menino”, repete Criolo. É Caetano Veloso. Começam a cantar juntos Não Existe Amor em SP. O microfone de Caetano não funciona. Ele desiste, deambula pelo palco, Criolo vai atrás, fazem uma dança, cantam na cara um do outro, abraçam-se, Criolo, 36 anos, Caetano, 70. Criolo levanta-o do chão como um menino. Foi ele quem escreveu, reescrevendo Caetano: “Cartola virá que eu vi / tão lindo e forte e belo como Muhammed Ali”. O Brasil crioulo, que já era samba e será o futuro. 38 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 DANIEL SAMPAIO PORQUE SIM O QUE MANTÉM OS CASAIS investigação sobre os motivos que levam à ruptura conjugal é mais consistente do que a que sistematiza os factores de manutenção, a longo prazo, de uma união conjugal. Em muitos casos, os casais dizem apenas que se mantêm juntos porque “alimentaram” o amor, ou porque ganharam em conhecimento recíproco e tolerância mútua. Tentemos ir um pouco mais além e analisemos outras razões para a estabilidade, visíveis no discurso dos casais que entrevistei ao longo de cerca de 30 anos. A mais referida é o compromisso. Para a maior parte dos homens e mulheres, o compromisso relaciona-se com o investimento permanente na relação, sem o qual ela não sobreviverá. Investimento significa interesse, tido como primordial para a felicidade de cada membro do casal, mas também implica a noção de “trabalho” ligado ao relacionamento interpessoal. Quase todos, com realce para as mulheres, consideram que o “deixar andar” era sinónimo, a curto prazo, do triunfo da rotina e do tédio, geradores de afastamento relacional ou ponto de partida para vários tipos de conflitos. Em segundo lugar, os casais referem o interesse pelo outro. Este aspecto diz respeito à dimensão da reciprocidade, da atenção e do cuidado em relação A ao parceiro/a, manifestada nos bons e maus momentos. O significado deste interesse é complexo, porque se relaciona com situações muito diversas, desde o apoio em situações de doença de um dos cônjuges até ao simples elogio em momentos de sucesso do companheiro. O interesse pelo outro aparece agora, aos olhos de bastantes casais, bastante dificultado por uma sociedade muito competitiva, que privilegia o bem-estar individual e faz esquecer as necessidades de quem está perto. Na minha visão, a defesa intransigente do ponto de vista dele e dela — necessário, sobretudo para as mulheres, para lutar pelos seus direitos — levou a que muitos casais actuais se refugiassem, de início, em posições estereotipadas do que estaria certo para o “feminino” e para o “masculino” para, mais tarde, por conveniência face ao exterior, apagarem as diferenças e igualizarem as atitudes e comportamentos. Em terceiro lugar, referiram a capacidade de entreajuda e partilha como um factor sempre a considerar, sobretudo no caso dos casais com crianças pequenas. As exigências do quotidiano — em que ambos trabalham e educam os filhos — constituem fonte de muitos conflitos, sobretudo nos casais mais novos com filhos em idade pré-escolar. Por vezes, nestas situações, fico perplexo com certos pedi- dos de terapia conjugal, porque não se descortinam motivos evidentes que possam explicar a intensidade dos conflitos encontrados: tudo parece girar à volta de pequenas questões do quotidiano, como a arrumação da casa, os banhos dos filhos, as noites em que os bebés não dormem… situações do dia-a-dia que desencadeiam divergências e em que o papel dos padrões destrutivos da comunicação ganham progressiva importância. Muitas vezes, nestes casos, oferecer ao casal a possibilidade de uma conversa estruturada contribui para a melhoria da comunicação. Compromisso, interesse pelo outro e capacidade de partilha são três dimensões essenciais para permanecer em conjugalidade. Por certo poderia citar outras, mas o que interessa é ficar a pensar. E o amor, claro, mas quem sabe definir o amor? Nem os poetas… N proposta, e presente na sessão, o Governo resolveu pedir uns pareceres. Recebeu vários. O Instituto de Política Teórica e Comportamental opunha-se ferozmente. A Associação Portuguesa de Políticos opunha-se radicalmente. O Departamento da Política Caseira da Universidade Nacional opunha-se terminantemente. E a Direcção-Geral das Altas e Médias Políticas opunha-se categoricamente. Ah, havia ainda o parecer da Academia de Políticas Lisbonenses, totalmente favorável. Num parecer assinado, claro está, por um nome rigorosamente independente: o autor da proposta de mudança de regime. Tudo resumido, pesados os prós (um só, mas veemente) e os contras (muitos mas facciosos, logo dispensáveis), foi-se a votos. A unificação política, ou seja, a ditadura, foi aprovada com os votos dos três maiores partidos e a abstenção de um quarto. Houve votos contra, claro, mas apenas 16. E a ditadura passou a lei, aprovada pela democracia. Um cenário impossível? Com a ditadura sim, pelo menos por enquanto. Mas tudo o que aqui se descreve já se passou em Portugal, no início dos anos 90 do século passado, com o abominável acordo ortográfico (AO). Está nos livros e nos jornais, não é preciso inventar nada. Houve vários pareceres, todos desfavoráveis. E houve um favorável. Assinado, claro, pelo autor do acordo. E o Parlamento miseravelmente votou-o sem o discutir, como se pode ler na acta da Reunião Plenária da Assembleia de República de 4 de Junho de 1991, publicada no Diário da Assembleia da República n.º 87, de 5 de Junho de 1991. Das 32 páginas dessa edição, só duas e meia são dedicadas ao AO e para descrever algumas trocas de palavras entre deputados sobre questões processuais. De resto, discutiram-se ou aprovaram-se temas relacionados com os militares, a actividade cinematográfica, a defesa do consumidor, os regimes de indemnizações nas empresas nacionalizadas ou para vítimas de crimes, as taxas sobre produtos petrolíferos, a cooperação técnica e militar com a Guiné-Bissau e Cabo Verde e até a criação das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto. Isto em quatro horas e meia, entre as 15h25 e as 19h55No meio disto, o AO foi despachado em menos de um fósforo. Honra ao deputado independente Jorge Lemos, que ainda tentou travar o “monstro” com um requerimento, rejeitado pelos votos do PSD mas que teve votos favoráveis do PS, PCP, PRD e dos independentes Helena Roseta e Jorge Magalhães. No final, o “monstro” passou. PSD, CDS, PRD e 12 deputados do PS votaram a favor. O PCP abstevese. E houve apenas 16 votos contra. Abril escreve-se hoje abril, com caixa baixa, já repararam? Compromisso, interesse pelo outro e capacidade de partilha são três dimensões essenciais para permanecer em conjugalidade NUNO PACHECO EM PÚBLICO ABRIL COM CAIXA BAIXA a quarta-feira, porque a cada ano tudo se repete, lá se celebrará mais um aniversário do 25 de Abril. Tão perto e já tão longínquo, 38 anos. Revolução ou golpe de Estado, conforme a lembrança de cada um. A euforia da libertação, claro, inesquecível. Os belos versos de Sophia, que já tantos estragaram citando-os mal e a despropósito. Os cravos e o Arsenal. Chaimites nas ruas. A vila morena na cidade branca. Otelo e Salgueiro Maia. Símbolos e ilusões. Utopias e desenganos. Avanços perigosos e, no reverso, a quietude. Tudo isso que ficou, lá longe, mas ainda ao alcance da memória. Certo é que a ditadura não caiu, foi derrubada. Mesmo que nesse acto ela tenha involuntariamente colaborado, de tão gasta. E a verdade é que a democracia, certamente imperfeita, depois se implantou e por aí anda, com as suas virtudes e vícios, as suas recompensas e fingimentos. E, a par dela, a liberdade: de dizer, afirmar, escolher, recusar, contrapor, contestar, protestar. Imaginemos agora, por momentos, esta curiosa ficção: um escasso grupo de cidadãos chega ao Parlamento e propõe ao Governo e aos deputados uma ditadura. Tal e qual, uma ditadura. Não teria bem esse nome, claro, por causa da carga negativa que arrasta, mas seria uma coisa a bem do prestígio da expressão pátria, da sua unidade essencial, de uma política comum, que esta coisa de ter tantos partidos a dizer-se e desdizer-se a todo o momento (garantiam) é realmente uma canseira. Perante tal Imaginemos esta ficção: um grupo de cidadãos chega ao Parlamento e propõe uma ditadura 2 | Domingo 22 Abril 2012 | 39 FOLHETIM VII UNIDO JAMAIS SERÁ RUI CARDOSO MARTINS PAULO PIMENTA ABRIL MADURO ABRIL No último capítulo, Catarina e Marcos discutiam, na casa que partilham em comunidade, como fazer o 25 de Abril do 25 de Abril 40 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 D ias depois, tendo Marcos saído, Catarina subiu ao sótão com Pedro. Marcos dizia não depender da mãe, que o criara sozinha (o pai era um doloroso mistério antigo). Aos domingos, no entanto, ia comer a sopa a casa dela e levantar taparuéres com etiquetas marcadas com os dias da semana, lulas recheadas2ª feira, jardineira-3ª, etc., uma operação de amor filial que só terminava quando a mãe lhe sorria — Querido, precisas de dinheiro? ao que Marcos dizia que não, que não, até aceitar 100 euros, aborrecido. Catarina subiu ao sótão do prédio e nas escadas sentiu o cheiro de Pedro, parecia sair-lhe de trás da orelha, ou da cera de dentro, um calor perfumado que se desenrolava nos caracóis dos cabelos. Ao rodar a chave do sótão, Catarina começou a pensar — menina, estás literalmente a brincar com o fogo, mas não pensou até ao fim porque não era a sua maneira de falar, fugia dos lugares-comuns como da missa, o problema com Pedro é que o rapaz lhe puxava, nos últimos tempos, as mais exaltantes banalidades. Se ele a fixava, por segundos, Catarina, a quem batia no peito um coração revolucionário, tinha aflições de telenovela ou folhetim, mas, se não a fixava nunca, apetecia-lhe atirar-se da janela. Uma situação explosiva para quem trata dos cocktails Molotov, bolas, eu disse situação explosiva?... Pedro reparou. — É assim tão perigoso? — Ahhh... Não, não é, se tivermos cuidado. Ali ao fundo. As garrafas esperavam no escuro, em caixas de madeira de seis, como se fossem embalagens de vinho. Levantaram a ripa de uma caixa. Pedro pensava que os Molotov eram abertos no gargalo, com a mecha a embeber a gasolina, antes de se incendiar a mecha e atirar. Catarina explicou-lhe que há outros tipos, alguns até usam óleo de motor misturado com benzina, ou mesmo, imagina, napalm, com que os americanos arrasaram as florestas e as aldeias no Vietname. — E as tropas portuguesas em África também, conheço um tipo que tem fotos, só que não as mostra... então sabes do que falo, continuou Catarina, uma invenção dos finlandeses contra os soviéticos na II Guerra Mundial, rebentavam os motores, as lagartas e o interior dos tanques de guerra, um homem aproximava-se e, sozinho, com uma simples garrafa na cintura, destruía um blindado e matava os invasores, o nome aliás não é homenagem, é um sarcasmo ao general Molotov, lacaio do Estaline, o “pai dos povos”, não sei se pensas o mesmo... — Não foi socialista, foi um assassino que primeiro se aliou ao Hitler. Nesta conversa distante, aproximaram sem querer os dedos, uma mão de cada lado da garrafa, e tocaram-se, de forma eléctrica, a garrafa quase caiu. — Cuidado, estas rebentam sem lume! Tem um composto que... Catarina disse que chegara a altura de aumentar o programa das comemorações do 25 de Abril. Pedro disse: — A sessão solene na Assembleia da República, com o Presidente, vai estar vigiada, os manifestantes mais próximos das grades serão empurrados, revistados, filmados... — Polícias de bastão, escudos, outros infiltrados. Ouvi falar em barricadas de rua, mas não sei se haverá condições. E a ideia de incendiarmos pessoas em público era má para a nossa imagem... — Claro, riu-se Pedro. Mas não te percebo, Catarina. Ela pensava alto: Dia da Liberdade, festa da Democracia, em todo o país o hastear da bandeira, guardas de honra, bandas filarmónicas, saraus teatrais, torneios de snooker, concertos solidários, finais de paintball, tributos a Zeca Afonso, contra-relógios de bicicletas BTT. Misturas num 25 de Abril que con- sagrará o descalabro das famílias, dos jovens, dos pobres, dos doentes, dos emigrantes, das mulheres, e a salvação dos de sempre, ricos e corruptos. — Em 1974, antes de se tomarem os quartéis, sede do Governo, foi a emissora a rádio, a RTP. A informação. Hoje, com a Internet, seria quase simbólico. Mas, se é para ser simbólico, vamos a isso. — Como? — Onde está o poder e o dinheiro, hoje? Uma bomba num banco, outra numa central eléctrica, outra numa refinaria. Três explosões na madrugada que eu esperava, o dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, e juntos habitamos a substância do tempo. — Ok. Banca, electricidade, combustíveis. Os que nos dizem que temos de ter sempre mais aumentos brutais, para no fim distribuírem milhões de lucros aos accionistas, disse Pedro. — Anda, vamos lá a baixo para te mostrar como isto se faz. Aqui não há luz. Eu levo a garrafa. — Disseste um poema da Sophia, disse Pedro, e ela ficou orgulhosa. Na cozinha estava um homem de costas, em pé, de sobretudo. Catarina tentou voltar atrás. — Sente-se, menina. O homem virou-se. A cara cheia, bigode velho, óculos de massa, pistola na mão, virada para baixo. Agente da Secreta. Catarina sofria com a sua estupidez: tenho um cocktail Molotov na mão! — Pode servir-me um copo? É jeropiga? — Como é que entrou? — Pela porta. Minha linda, não viu o Marcos? — Não sei quem é. — Sabes, sabes Catarina. O homem tirou o bigode, os óculos e uma massa de algodão da boca. — O meu sobrinho, o teu namorado, ou enganeime? Era Fernando, ex-operacional das forças revolucionárias, o mestre do disfarce. a Não perca o próximo fascículo: Novos planos Na comemoração do 38º aniversário do 25 de Abril, o Público apresenta o documentário 48. Uma obra fundamental, que dá voz a 16 presos políticos do Estado Novo. Um filme indispensável que, ao desvendar a história que envolve estas fotos, cria um autêntico retrato de 48 anos de fascismo em Portugal. Terça-feira 24 de Abril, por + 10€ com o Público. CRÓNICA URBANA PALÁCIO FOZ, LISBOA O Palácio Foz, desde 1858 nos Restauradores, foi encomenda dos marqueses de Castelo Melhor ao arquitecto italiano Francisco Xavier Fabri SEGREDOS QUE A E ABADIA ESCONDE Na cave do Palácio Foz há um antigo restaurante misterioso, que até aos anos 40 serviu de local de reunião para os maçons de Lisboa. Texto de Alexandra Prado Coelho e Ilustração de João Catarino 42 | Domingo 22 Abril 2012 | 2 stou sozinha na Abadia, na cave do Palácio Foz, em Lisboa. Há uma ou outra luz num canto, mas de resto o espaço está mergulhado numa meia penumbra, e o som dos meus passos ecoa no chão de pedra. Há um poço que, dizem, conduz aos subterrâneos de Lisboa, há pombas brancas nas paredes, e, vendo melhor, também gaivotas, e elefantes com as trombas enlaçadas, e videiras que sobem junto ao tecto. Há uma estátua de um homem dobrado sustentando uma coluna, e outra de um dragão com corpo de mulher. “Clavstrvm”, lê-se por cima de uma arcada. A profusão de elementos decorativos é tal e tão variada que demoramos algum tempo a habituar os olhos à luminosidade e a conseguir perceber tudo o que nos rodeia. No início do século XX, a Abadia era um restaurante que servia para reuniões secretas da Maçonaria, e também da sociedade dos Makavenkos, o grupo criado por Francisco de Almeida Grandella com o objectivo fundamental de se dedicar a jantaradas e à boa vida — ou, como eles diziam (e como se pode ler em Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos, da Colares Editora), “dar largas à alegria e elasticidade à tripa”. Foi na Lisboa do século XVIII que os marqueses de Castelo Melhor encomendaram ao arquitecto italiano Francisco Xavier Fabri o projecto do Palácio que ainda hoje existe nos Restauradores. Quando, depois de interrupções várias, as obras terminaram finalmente em 1858, o palácio era sumptuoso e tinha (no local onde está hoje a Cinemateca Júnior) a primeira capela privada da cidade. Mas tornou-se ainda mais faustoso pela mão do Marquês da Foz, que o comprou em 1889 e o decorou com o que de mais luxuoso existia naquele tempo. No início do século XX, o fim da monarquia aproximava-se e o recheio do palácio foi leiloado, tendo, em 1902, sido alugado a Manuel José da Silva, dono do Anuário Comercial. Este subalugou parte do edifício ao Circo Price, que ali criou um teatro. Em 1910, o Palácio Foz passou para as mãos do Conde de Sucena, que alugou o espaço para vários tipos de comércio — ali funcionou a certa altura a delegação dos EUA, o Club Maxim’s, o Central Cinema, e a elegante Pastelaria Foz, com cinco portas para a rua e em cuja cave se escondia o restaurante Abadia. Aqui em baixo é um pequeno labirinto. Do Clavstrvm passamos para o Refectorium — um espaço inspirado nos mosteiros da Ordem de Cister — onde, do seu lugar junto ao tecto, nos olham 24 bustos em miniatura de homens e mulheres, alguns com as insígnias maçónicas brilhando no peito. O guia Lisboa insólita e secreta, de Vítor Manuel Adrião, explica que a estátua do homem dobrado sustentando uma coluna, mesmo ao lado do poço, representa o Grande Arquitecto do Templo da Virtude e da Sabedoria, possuidor dos segredos da Arte Real (a Geometria e a Matemática). Já me esqueci que lá fora fica a Avenida da Liberdade e que, subindo a escadinha atrás de mim vou dar à sala onde estão as funcionárias do Gabinete para os Meios de Comunicação Social, que hoje funciona no Palácio Foz (e que pode ser contactado para visitas guiadas à Abadia). Na cave é outro mundo. E se ficarmos um bocado não é difícil começar a ouvir, lá ao longe, os vozeirões animados dos maçons ou dos makavenkos, fumando charutos, dizendo graças, e descendo para mais um grandioso jantar — ou, quem sabe, para uma decisiva reunião secreta — entre as paredes misteriosas da Abadia, observados apenas pelas gárgulas, os elefantes e o Grande Arquitecto.