antropologia e a indústria rural na china
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antropologia e a indústria rural na china
Raízes Jurídicas ISSN 1981–3872 ANTROPOLOGIA E A INDÚSTRIA RURAL NA CHINA Roberto Melville* 1 Provavelmente muitos professores e estudantes de antropologia, nos países onde se fala espanhol, cedo se deparam com o livro de Fei Xiaotong, Peasant Life in China (1939) como uma referência bibliográfica em numerosos trabalhos do curso. No entanto, não tiveram a oportunidade de ter o livro em suas próprias mãos, e menos ainda traduzido para o espanhol, para sua leitura. Esse foi meu caso. Conheci as referências de Julian Steward1 nos estudos da comunidade na China2, na obra A teoria e a prática de estudos de áreas. Também no livro Os camponeses Eric Wolf3 se refere amplamente aos trabalhos de Fei sobre os camponeses chineses. Elman Service publicou um resumo do trabalho de Fei na aldeia chinesa de Kaihsienkung (nome da aldeia segundo a alfabetização Wades Giles), em uma antologia que incluía as principais monografias escritas e publicadas até a metade do século XX4. E em artigos de William Skinner sobre os sistemas de mercados na China encontrei novamente referências a essa monografia clássica. No entanto, somente até que estivesse trabalhando na minha tese de doutorado sobre os métodos que deviam ser utilizados para os estudos das sociedades complexas é que me deparei com o seguinte texto de Radcliffe-Brown5: Geralmente os estudos etnográficos se ocupam dos povos sem escrita. Nos últimos dez anos [originalmente escrito em 1944] o trabalho de campo realizado pelos antropólogos sociais * Professor Doutor do Centro de Pesquisa e Estudos Superiores em Antropologia Social/DF (CIESAS/DF), México. Pesquisador em ambiente e sociedade, sociedades rurais, migração, antropologia. Conduz projeto de pesquisa intitulado “Clássicos e contemporâneos em antropologia”, do qual este artigo é resultado direto. Autor de diversos livros e artigos. Professor convidado da Universidade da Califórnia/Santa Bárbara em 2002. E-mail: [email protected] Artigo traduzido por Clarissa Bueno Wandscheer (Doutora em Direito Econômico e Socioambiental pela PUCPR. Mestra em Direito Econômico e Social pela PUCPR. Bacharela em Direito. Advogada. Membro do Grupo de Pesquisa “Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemônica” [PUCPR/CNPq]. Professora do Curso de Direito da Universidade Positivo e de cursos de pós-graduação). Curitiba, PR, Brasil. 1 STEWARD, Julian H. Teoría y práctica del estudio de áreas. Washington, DC: Unión Panamericana, 1955, p. 11. FEI, Hsiao-tung (Fei, Xiaotong). Peasant Life in China. Londres, 1939. FEI, Hsiao-tung; ZHANGG, Ziyi (Chang Chih-i). Earthbound China: A Study of Rural Economy in Yunnam. Chicago: University of Chicago Press, 1945. HSU, Francis L. K. Under the Ancestor’s Shadow. Chinese Culture and personality. Nova York: Columbia University Press, 1948. 3 WOLF, Eric R. Los campesinos. Barcelona: Editorial Labor S.A., 1971, p. 64, 92. 4 SERVICE, Elman R. Profiles in Ethnology. Nova York, Evanston e Londres: Harper & Row Publishers, 1963, p. 436465. 5 RADCLIFFE-BROWN, Alfred. El método en Antropología Social. Barcelona: Anagrama, 1975, p. 11. 2 Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 243 ANTROPOLOGIA E A INDÚSTRIA RURAL NA CHINA foi feito em um povo do Massachusetts, um povo do Mississippi, numa comunidade francocanadense, na Região de Clare na Irlanda, em aldeias do Japão e da China. Esses estudos de comunidades em países civilizados, feitos por pesquisadores treinados, desempenharão um papel importante na antropologia social do futuro 6. Esse parágrafo me instigou de maneira vigorosa. E como meta me propus a tarefa de localizar tais trabalhos antropológicos, em bibliotecas, para fazer fotocópias, ou em sebos, para comprá-los e lê-los segundo minha disponibilidade de tempo. Poderia dizer que esses seis títulos constituíram minha primeira lista de “clássicos em Antropologia”, ao fim da década de 1980, para minha leitura pessoal, e na década seguinte para incluí-los nos seminários que ministrava na Universidade Iberoamericana. A leitura de Peasant Life in China, de Fei Xiaotong, surpreendeu-me de duas maneiras. Em primeiro lugar, tratava-se de um trabalho de pesquisa de campo de um antropólogo chinês, um dos pioneiros, que obteve uma bolsa de estudos na Inglaterra, e cuja tese foi orientada por ninguém mais, ninguém menos que Bronislaw Malinowski, na London School of Economics. Surpreendeume o prefácio de Malinowski, pois contrariamente à imagem que até o momento tinha dele, a partir de seu trabalho nas Ilhas Trobiands, nesse prefácio ele destacava o estudo do antropólogo chinês que não se preocupava com uma pequena e insignificante tribo, mas com uma das maiores nações do mundo. Dizia que o trabalho não era o resultado de uma pesquisa feita por um estrangeiro interessado em assuntos exóticos em uma terra estranha, mas que o trabalho era de um nativo, interessado em discutir as dificuldades que os camponeses chineses tiveram que superar ante o impacto que sofreu sua economia doméstica com a vinculação e dependência do mercado mundial e competitivo da seda. O leitor poderá constatar, por si mesmo, o entusiasmo com o qual escreve Malinowski o prefácio desse livro. Não devemos tampouco perder de vista que Malinowski estava a ponto de iniciar, em 1940, um projeto de pesquisa sobre o sistema de mercados em Oaxaca, México, com a colaboração do antropólogo mexicano Julio de La Fuente; em outras palavras, ele mesmo se propunha a estudar os mercados regionais de uma das grandes civilizações americanas. Outro aspecto que me chamou muito a atenção foi a forma como Fei havia construído esse estudo da comunidade. Prestou muita atenção ao papel da família na organização do trabalho, tanto no cultivo do arroz como na indústria da seda. Contudo, o estudo está circunscrito naquelas atividades que se desenvolvem em uma pequena aldeia (ao redor de 1.400 habitantes) situada no delta do rio Yangtsé, às margens do lago Tai, a uns 100 quilômetros a oeste de Shanghai. Em 6 Esse parágrafo de Radcliffe-Brown se refere aos seguintes trabalhos: Loyd Warner, Yankee City, 1941; Davis, Gardner B. & Gardner M., Deep South, 1941; Miner, St Dennis, a French Canadian Parish, 1936; Arensberg & Kimball, Family and Community in Ireland, 1940; Embree, Suye Mura: A Japanese Village, 1939; e Fei, Peasant Life in China, 1939. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 244 ROBERTO MELVILLE nenhum momento Fei negligencia as relações com o mercado local, onde os camponeses adquiriam as mercadorias básicas que eles não produziam – uma pequena cidade perto da aldeia onde viviam muitas das pessoas que lhes concediam crédito e que paulatinamente foram adquirindo os títulos de propriedade das terras na aldeia. Igualmente, tem presente as reformas que o governo chinês havia posto em ação, e outras medidas que deveria implementar para fomentar a industrialização do país, pois o Japão estava tomando o controle dos mercados que antes eram completamente dominados pela China. Era inevitável a industrialização da China. Mas, Fei sustenta a ideia de que a China deveria seguir uma rota alternativa à industrialização que teve lugar no Ocidente, onde a industrialização se concentrou nas cidades, descuidando dos impactos sociais de tal processo na economia rural, que era a base milenar da economia da China. Essas duas percepções positivas do trabalho de Fei Xiaotong me motivaram para incluí-lo nas leituras dos seminários que ministrei nos anos noventa. A entrada do México no mercado da América do Norte, e o desmoronamento das instituições estatais que se tinham criado no século XX mexicano para acompanhar e complementar a reforma agrária, fizeram-nos pensar que o México estava seguindo a rota que Fei advertia que não deveria ser seguida pela China. Por isso, acreditava que esse livro deveria estar traduzido para o espanhol, para facilitar sua leitura e difusão nos países latino-americanos. Escrevi para o professor Fei em 1994, para solicitar sua autorização para a tradução para o espanhol e publicação de seu livro La vida campesina en China. A organização interinstitucional de um programa de traduções e publicações de livros importantes para o ensino da antropologia demoraria ainda outra década. Mas, uma vez desenhado este projeto editorial “Clássicos e Contemporâneos em Antropologia”, propus-me a tradução e publicação em espanhol do livro de Fei Xiaotong. Aos meus colegas da comissão acadêmica desse projeto editorial chamou atenção a trajetória do autor; o diálogo que Fei Xiaotong manteve com Burton Pasternak7, publicada em Current Anthropology, finalmente os persuadiu da pertinência de publicar este livro. Como vou explicar com certo detalhe mais adiante, a trajetória acadêmica de nosso autor é um reflexo das transformações e ciclos que experimentou o país asiático. Fei é um dos protagonistas da emergência das ciências sociais na China na década de 1920 e de seu desenvolvimento até 1949. Depois os comunistas desestruturaram as instituições e programas de ciências sociais, conservando somente o Instituto, para o estudo das minorias nacionais. Fei e muitos cientistas sociais, com experiência acadêmica e vínculos no exterior, foram desacreditados como intelectuais “de direita” na campanha das Cem Flores (1957) e, posteriormente, submetidos a cruéis humilhações pelos guardas vermelhos durante a Revolução Cultural. O ostracismo social se 7 PASTERNAK, Burton. A Conversation with Fei Xiaotong. Current Anthropology 29: 637-662, 1986. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 245 ANTROPOLOGIA E A INDÚSTRIA RURAL NA CHINA prolongou por vinte anos. A reabilitação de Fei e de seus colegas, e sua integração ao processo de reconstrução das ciências em geral, e da sociologia e da antropologia em particular, somente ocorreu depois da derrota política e ajuizamento de ações contra a Banda dos Quatro. A partir daí Fei voltou a viajar e recebeu merecidos reconhecimentos nos Estados Unidos, Inglaterra e Filipinas. Também lhe concederam os doutorados honoris causa das universidades de Hong Kong e de Macau. Na China foi distinguido com cargos basicamente honoríficos, mas sem dúvida influentes, como o foram o desenho e a implementação das novas políticas de desenvolvimento científico, que renderam à China crescimento para colocá-la na vanguarda da economia mundial. Em resumo, estas são três importantes razões para incluir o livro de Fei na coleção de Clássicos e Contemporâneos em Antropologia: a) contribuirá para o enriquecimento de nossos conhecimentos em Bronislaw Malinowki, cujo prólogo demonstra seu interesse pelo estudo das grandes civilizações do mundo; b) a monografia de uma comunidade camponeses na China servirá, como exemplo, para os jovens pesquisadores, de como é possível estudar em profundidade uma unidade social ou geográfica delimitada, sem separar dos vínculos de mercado, políticos e sociais com o entorno maior no qual a comunidade está inserida e c) como um testemunho do papel que os cientistas sociais podem representar ou não na construção de uma nação incrustada em um mundo de mudanças vertiginosas. Nesta introdução vou concentrar minha atenção neste terceiro ponto, a trajetória acadêmica e política de Fei Xiaotong, utilizando para isso alguns trabalhos que me permitiram reconstruir essa trajetória. Hoje em dia, contamos com bases de dados digitais, como JSTOR, que nos permitem ampliar enormemente nossos conhecimentos sobre quase qualquer assunto. O leitor tem à sua disposição tanto o prólogo de Malinowski como a monografia de Kaishiangong – nome da aldeia estudada por Fei, segundo o método atual de alfabetização pinyin –, e poderá formar seu próprio juízo sobre os dois primeiros aspectos. Não obstante farei alguns breves comentários sobre ambos os pontos. 2 Antes de continuar é conveniente fazer referências às duas principais maneiras de escrever os nomes de lugares e de pessoas utilizando o alfabeto romano. Existem duas convenções principais para a alfabetização do idioma chinês, conhecidas como Wade-Giles e pinyin. O primeiro sistema foi idealizado pelo britânico Thomas Francis Wade, e modificado por Herbert Allen Giles, autor de um influente dicionário chinês-inglês publicado em 1892. Em 1939, quando foi publicada a La vida Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 246 ROBERTO MELVILLE campesina en China, o nome do autor foi escrito Fei Hsiao-t’ung, seguindo o método vigente WadeGiles. No entanto a China adotou em 1958 um novo método, denominado Hanyn pinyin, ou somente pinyin, para a alfabetização dos caracteres chineses. Em 1982 foi adotado pela Organização Internacional para Padronização (ISO), e em 1986 pelas Nações Unidas, e é, hoje, uma ferramenta comum para escrever textos chineses em um computador. O nome de Fei hoje se escreve Fei Xiaotong. Os maiores de 30 anos foram testemunhas dessa mudança em notas de revistas e livros; assim, Pequim, a capital da China, hoje se escreve Beijing, e Cantão se escreve Guagzhou. Todos os nomes de lugares e de pessoas que se encontram no livro conservam a forma original de alfabetizar Wade-Giles, que está na edição original em inglês de 1939. Não pretendemos nenhuma modificação ao sistema pinyin por temor a introduzir involuntariamente mais erros que acertos, e por respeito à obra em si mesma. Mas, nesta introdução utilizarei no possível a forma atual de referir-se a lugares e pessoas. O rio Yangtsé aparece no texto de Fei como Yangtze, já mencionamos as mudanças no nome da aldeia. Nesta introdução aparecerá, ao lado dos nomes de lugares e de pessoas, em pinyin (com a alfabetização correspondente em Wade-Giles entre parêntesis). Com as referências bibliográficas que se citam no texto se respeitou a alfabetização Wade-Giles, que aparece no texto em inglês para nomes de autores, títulos de obras e lugares. Esse assunto se converterá em um tema de diálogo entre os leitores e os especialistas nos estudos orientais, e enriquecerá nossa experiência nos exercícios de tradução, como o que estamos levando a cabo. 3 Fei Xiaotong (Fei Hsiao-t’ung) nasceu em dois de novembro de 1910 em Wuchiang, na província ou condado de Kiangsu, em uma família de grupo social com instrução (gentry). Sua educação foi feita tanto na China como no estrangeiro. Estudou os primeiros dois anos de medicina na universidade provincial de Suzhou (Soochow), mas logo mudou de ideia ao considerar que lhe interessava discutir sobre os males sociais e políticos da China; assim, mudou para o curso de sociologia. Mudou-se para Beijing para prosseguir seus estudos universitários na Universidade de Yanjing (Yenching). Aí se encontrava o professor Wu Wenzao, que havia estudado sociologia nos Estados Unidos, em Dartmouth e na Columbia, com os professores Giddens, Ogburn e outros. Uma vez concluída sua tese de doutorado, a partir de fontes bibliográficas sobre a questão do ópio na China (1928), Wu voltou para Yanjing para ministrar cursos básicos de sociologia. Wu era também originário da província de Jingsu e estabeleceu uma amizade duradoura com o jovem estudante Fei. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 247 ANTROPOLOGIA E A INDÚSTRIA RURAL NA CHINA Outro professor que teve grande influência sobre Fei foi o sociólogo de Chicago, Robert E. Park, que depois de aposentar-se viajou para a China para ministrar aulas em Yanjing durante um semestre, de setembro a dezembro de 1932. Fei tinha sido treinado para o estudo de textos em bibliotecas. Sua tese de licenciatura sobre o costume quinying (quando o noivo vai buscar a noiva na casa de seus pais) foi escrita a partir de jornais e fontes documentais, mas, aí mesmo, se lamentava por tê-la elaborado a partir de livros velhos. Esse sentimento decorre do impacto causado por Park em Fei e em seus companheiros, motivando-os a fazer viagens e trabalho etnográfico em campo. Lembram que Park conduzia grupos de estudantes para fazerem visitas em prisões e prostíbulos da capital da China8. O professor Wu também convidou e trouxe a Yanjing o antropólogo britânico Radcliffe-Brown, em outubro de 1935; mas nessa época Fei já tinha ido para a Universidade de Qinghua9. Essa era a única universidade da China onde existiam estudos de antropologia, orientados para o estudo das minorias tribais. Pan Guandan, que logo seria seu amigo e companheiro nas penúrias que sofreram durante a Revolução Cultural, era ali um professor de sociologia. No entanto, Fei se formaria basicamente sob a influência de Sergei M. Shirokogoroff, um etnólogo russo especialista nos tunga, um povo tribal da Sibéria, relacionado com os manchus, ao sul da Sibéria e norte da China. Fei aprendeu com ele as técnicas de trabalho de campo. Shirokogoroff pensava que as ideias, a organização social e o sistema econômico constituíam um complexo sistema que guardava certo equilíbrio, de tal sorte que a mudança de alguma de suas partes poderia produzir um efeito danoso para o todo. Aprendeu com Sergei as técnicas antropométricas que mais tarde, logo depois do triunfo comunista, lhe seriam muito úteis nos estudos de minorias tribais10. Ao concluir exitosamente seus estudos de mestrado em Quinghua em 1935, Fei se inscreveu em um concurso para ganhar uma bolsa de estudos no estrangeiro. A bolsa de estudos provinha dos Fundos de Indenização pagos pelos britânicos depois da guerra contra os boxers. Os bolsistas eram advertidos de que antes de partir para o estrangeiro deveriam fazer uma pesquisa de campo, cujos dados e resultados serviriam para a elaboração da tese de doutorado. Fei se organizou para fazer uma pesquisa entre os aborígenes yao. Antes de partir, casou-se com sua noiva, Wang Tongwei, no verão de 1935, pois era impensável que uma jovem solteira pudesse acompanhá-lo e viver nas montanhas distantes da província de Guangxi. Naquele trabalho de campo ocorreu uma terrível tragédia. Os yao estavam distribuídos em pequenas vilas espalhadas pelas montanhas, onde 8 ARKUSH, R. David. Fei Xiaotong and Sociology in Revolutionary China. Cambridge (Mass.) e Londres: Harvard University Press, 1981, p. 25-36. 9 CHIEN, Chao. Radcliffe-Brown in China. Anthropology Today 3: 5.6.1987. 10 ARKUSH, op. cit., p. 36-40. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 248 ROBERTO MELVILLE se chegava por caminhos tortuosos e íngremes montanha acima. Quanto estava a ponto de concluir seu trabalho de campo, Wang e Fei se perderam do caminho correto. Inadvertidamente, Fei se apoiou em um bambu que na realidade era uma armadilha para tigres e ficou prensado pelas rochas sem poder se libertar. Sua jovem esposa foi em busca de ajuda, mas deve ter se acidentado e caído pelo caminho, pois uma semana depois seu corpo apareceu flutuando na corrente, rio abaixo. Fei permaneceu uns seis meses em recuperação durante o inverno e a primavera. Estava deprimido. No verão sua irmã o convidou para que a acompanhasse à aldeia de Kaixiangong (Kaishienkung), em Wujia, sua terra natal, onde ela estava desenvolvendo um trabalho inovador de reforma das atividades de criação de bichos-da-seda. Essa segunda prática de campo proporcionaria os materiais e dados de campo para completar sua tese de doutorado na London School of Economics, para onde partiu no verão de 1936. Provavelmente a visita de Radcliffe-Brown a Yanjing em 1935 teve uma influência indireta na seleção de Fei para a London School of Economics (LSE) e Malinowski como seu orientador, pois Wu Wensao havia se convertido em um promotor da escola funcionalista britânica. Fei foi inscrito na LSE de outubro de 1936 a junho de 1938, quando obteve o doutorado. Teve aulas com Malinowski, Raymond Firth e Audrey Richards. Fei conheceu, também, R. T. Tawney, H. Lasky e Karl Manheim11. Fei embarcou em um barco a vapor rumo à Inglaterra. Em sua bagagem levava os materiais de sua pesquisa sobre os montanheses yao e, também, os dados sobre o programa cooperativo em Kaixiangong. Durante a viagem, que durou um mês, aproveitou para escrever uma primeira versão sobre os camponeses do delta do rio Yangtsé. Ao chegar à LSE foi recebido por Raymond Firth, pois Malinowski ainda estava nos Estados Unidos, onde certamente se reuniu com Wu Wenzao, que lhe recomendou que assumisse a orientação de Fei. Entretanto, Fei se entendeu bem com Firth, a quem perguntou quais materiais deveria selecionar como tema da tese, e Firth lhe respondeu que uma tese sobre a vida rural na China seria muito mais importante que uma tese sobre as tribos yao. Quando Malinowski voltou à Londres, telefonou para Firth e lhe disse: “Fei Xiaotong vai trabalhar sob minha orientação”. Em uma forma bastante rude: “Eu vou me encarregar da orientação de Fei”. Firth era discípulo de Malinowski, e como estava apenas iniciando sua carreira de professor na LSE, não iria contrariá-lo. Além de Firth e Malinowski, Fei conheceu também Lucy Mair, Audrey Richards e o professor Tawney. O aprendizado com Malinowski, como outros o haviam advertido, consistia basicamente 11 ARKUSH, R. David. Fei Xiaotong and Sociology in Revolutionary China. Cambridge (Mass.) e Londres: Harvard University Press, 1981, p. 40-42. RAMON MAGSAYSAY AWARD FOUNDATION. Biography of Fei Xiaotong. 1994, p. 3-11. Disponível em: <http://goo.gl/ROzPIR>. Acesso em: 20 out. 2010. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 249 ANTROPOLOGIA E A INDÚSTRIA RURAL NA CHINA em assistir ao seu seminário, intitulado “A Antropologia, Hoje”. Os antropólogos e seus amigos semiantropólogos se dirigiam todas as sextas-feiras à tarde para as aulas de Malinowski no segundo andar da LSE. Em uma sala, cheia de fumaça, reuniam-se para escutar os papers que os estudantes mais adiantados liam, quando voltavam de seus estudos de campo ou enquanto estavam preparando suas teses. Mesmo os que já haviam terminado o curso deviam, de vez em quando, contatar seu professor orientador. Os mais jovens a princípio somente escutavam, mas, eventualmente, começavam a participar. Malinowski escutava e no momento adequado intervinha e apresentava com toda acurácia suas observações. Depois do seminário tinham o costume de ir para a casa de Malinowski, que morava sozinho (pois já havia enviuvado), e os estudantes preparavam alguma coisa para comer. Na orientação da tese de Fei, Malinowski solicitava para que fosse lendo cada capítulo que ia terminando. Fechava os olhos, pondo atenção à leitura, e ia ditando correções. E assim os capítulos foram sendo elaborados um atrás do outro até que a tese estivesse pronta. Ao que parece essa era também a maneira como Malinowski corrigia seus próprios manuscritos para publicação. Pedia para algum dos estudantes que lesse e ia marcando as correções. Naqueles tempos estava corrigindo Coral Gardens. O exame da tese foi da seguinte maneira. Estavam presentes somente duas pessoas além de Fei: Malinowski e Dennison Ross, um orientalista, convidado para fazer uma avaliação do trabalho. Dennison disse que se tratava de um trabalho único e que continha tudo o que uma pessoa precisava saber sobre a China. Malinowski repetiu isso no prefácio para dar conhecimento de que o trabalho de Fei tinha sido avaliado por um especialista no oriente. Nessa mesma tarde, Malinowski telefonou para a editora Routledge para dizer: “Aqui tenho um manuscrito, gostariam de publicá-lo?” O editor lhe respondeu: “Se você escrever o prefácio”. E foi assim que o livro Peasant Life in China, com o prefácio de Malinowski, foi publicado rapidamente12. Ao terminar seus estudos de doutorado em Londres, Fei voltou à China, mas os japoneses tinham invadido toda a região costeira e o sul da país. Fei pegou um trem desde Hanói e se mudou para Kunmig, a capital da província ocidental de Yunnan, onde muitos acadêmicos de Beijing haviam se refugiado. Fei encontrou trabalho como professor do departamento de sociologia da Universidade de Yunnan. Kunming está situada em um planalto a seis pés [quase dois metros] de altitude, rodeado de montanhas. Era então uma das regiões mais pobres da China, e tinha recebido muitos refugiados provenientes da ocupação japonesa das zonas costeiras. Em Kunming, Fei voltou a se casar em 1939, agora com Meng Yin, uma mulher da região, e no ano seguinte nasceu sua 12 PASTERNAK, Burton. A Conversation with Fei Xiaotong. Current Anthropology 29: 637-662, 1986, p. 641-642. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 250 ROBERTO MELVILLE única filha, Fei Zhonghui13. A casa onde Fei vivia com Meng Yin em Kunming foi bombardeada em um ataque aéreo japonês em 1940, o que inviabilizou sua utilização. Fugiram e encontraram refúgio em uma comunidade próxima. O nascimento e a criação da menina Zhonghui foram muito difíceis, pois moravam em um quarto, alugado de uma família de camponeses. Em 1941, Fei foi nomeado professor e diretor de pesquisas sociológicas na estação de campo Yanjin-Yunnan. As condições adversas na estação de campo de Yunnan criaram um espírito de equipe na meia dúzia de pesquisadores que ali trabalhavam. E, em tais condições de austeridade, organizaram-se para fazer estudos rápidos sobre os problemas que iam surgindo. Importaram a tradição de elaborar um seminário para a discussão, como costumavam fazer em Londres sob a supervisão de Malinowski. Com um dos estudantes de graduação, Zhang Ziyi (Chang Chih-i), Fei completou os estudos em Lu-cun e em outros povoados onde, à diferença de Lu-cun, a indústria é que era importante. Essas pesquisas foram mais tarde publicadas sob o título Earthbound China. Outro estudante, Shi Guoheng, escreveu um ensaio sobre problemas trabalhistas em uma fábrica de Kunmig, que Fei traduziu para o inglês e mais tarde publicou com o título China Enters the Machine Age (1944). Francis K. Hsu, que também havia estudado com Malinowski em 1940, não era discípulo de Fei, mas esteve com ele na estação de campo fazendo pesquisas e publicou Magic and Science in Western Yunnan (trabalho mimeografado) em 1943, e mais tarde, em 1948, Under the Ancestor Shadow. Depois do ataque japonês a Pearl Harbor, o Departamento de Estado enviou seis professores chineses, selecionados cada um por sua respectiva universidade, para que viajassem aos Estados Unidos e realizassem conferências sobre a China. Fei foi selecionado pela Universidade de Yunnan, com a condição de que traduzisse para o inglês algumas das pesquisas que haviam feito na estação de campo. Nos Estados Unidos, Fei se relacionou com os Park, Robert e sua filha Margaret, e com Robert Redfield, esposo de Margaret. No Departamento de Estado recebeu forte apoio de Wilma Fairbanks, esposa de John Fairbanks e encarregada do programa de intercâmbio. No Instituto para Assuntos do Pacífico conheceu e tratou com Karl Wittfogel e com outros de seus colegas sinólogos. Conheceu também Elton Mayo e a T. North Whitehead, da Harvard School of Business, que demonstraram grande interesse pelo seu trabalho sobre a industrialização na China, pois compartilhavam com Fei a preocupação de que a China não cometesse os mesmos erros que o Ocidente, ou seja, prosseguisse a industrialização sem se preocupar seriamente com as dimensões 13 ARKUSH, R. David. Fei Xiaotong and Sociology in Revolutionary China. Cambridge (Mass.) e Londres: Harvard University Press, 1981, p. 81; NY Times, Obituário. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 251 ANTROPOLOGIA E A INDÚSTRIA RURAL NA CHINA sociais. Ralph Linton lhe conseguiu um estudante, Paul Cooper, cujo salário foi pago pelo Instituto para Assuntos do Pacífico para que preparasse a publicação de Earthbound China. Dorothea Mayo, esposa de Elton, ajudou-o a publicar o trabalho de Shi Guoheng, China Enters the Machine Age. Encontrou-se com William Ogburn, que havia traduzido o livro Social Change para o chinês na década anterior. Persuadiu Robert Redfield para que fosse à China, mas este, por razões de saúde, postergou sua viagem e, quando a propôs, a guerra civil já era um grande obstáculo para sair a campo. Também conseguiu, com Linton e Wittfogel, que admitissem Francis L. K. Hsu e a Qu Tongzu na Universidade de Columbia, em 1945. Obteve uma doação para continuar trabalhando na estação de campo de Yunnan. Fei demonstrou que era um homem muito motivado, capaz de estabelecer boas relações com acadêmicos estrangeiros; mas tudo isso teria mais tarde um efeito prejudicial. Quando voltou a Kunming, os jornais locais divulgaram amplamente as boas relações que Fei Xiaotong tinha estabelecido na América. Em 1946, ele e vários colegas, que se sentiram ameaçados e temerosos de serem assassinados durante o movimento democrático ante as matanças dirigidas por parte do partido de Chang Kai-shek, pediram auxílio e se refugiaram no consulado americano por vários dias. Fei não considerou a expatriação como o fizeram outros colegas chineses naqueles tempos difíceis, pois ele era um patriota convencido de que sua missão era procurar a tolerância e o bom entendimento entre as culturas e países, agora ligados mais estreitamente pela aviação14. Os abusos e massacres cometidos pelo governo de Chang Kai-shek distanciaram os membros da Liga Democrática, à qual Fei Xiaotong tinha se filiado em tais circunstâncias. Ainda que os membros da Liga não fossem comunistas, aceitavam a possibilidade de uma reforma pacífica das condições de opressão na qual viviam os camponeses e, em consequência, começaram a guardar esperanças de que o movimento comunista pudesse fazer essa almejada transformação da sociedade chinesa. Imediatamente depois do triunfo dos comunistas, em 1949, Fei ainda permaneceu ativo, escrevendo artigos sobre os assuntos dos quais o novo governo teria que se ocupar a partir daquele momento. No entanto, os comunistas não tinham uma boa impressão dos intelectuais em geral, e mesmo com suas expressões de lealdade ao novo regime e de sua expectativa de mudança, pesava o fato de ter estudado e mantido relações com estrangeiros. 14 ARKUSH, R. David. Fei Xiaotong and Sociology in Revolutionary China. Cambridge (Mass.) e Londres: Harvard University Press, 1981, p. 106-112. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 252 ROBERTO MELVILLE Não obstante, o novo governo encontrou trabalho para Fei no Instituto de Minorias Étnicas. A partir de 1950 e ao longo de vários anos Fei esteve dedicado a fazer entrevistas com as minorias étnicas, nas províncias de Guizhou e de Guangxi. “É desnecessário dizer que estudamos a história social destas minorias étnicas com a perspectiva de promover seu progresso”, afirmou Fei. “Fazer esse tipo de trabalho de campo me fazia verdadeiramente feliz”15. Mas o decreto de meados de 1952, suprimindo todos os estudos de sociologia nas universidades chinesas, foi um sinal muito forte da influência soviética (onde tampouco se reconhecia a sociologia) sobre a nova Revolução Chinesa. Mas tanto Fei como outros intelectuais, inconformados com a respectiva resolução contrária às ciências sociais, adaptaram-se às novas regras do jogo. Um ano depois, em 1956, sopraram ares de liberdade. Mao Zedong convocou os intelectuais para que livremente expressassem o que pensavam durante a Campanha das Cem Flores. Fei levou a sério a oferta de Mao e encabeçou um movimento de abertura às contribuições dos acadêmicos na vida nacional e para solicitar que se permitisse o ensino da sociologia. E, com o objetivo de fazer uma “crítica construtiva”, elaborou críticas às políticas do Partido para o desenvolvimento rural. Tais indiscrições lhe causaram muitos problemas. No centro da tormenta ideológica esteve o povoado de Kaixiangong. Em maio de 1957, Fei voltou ao povoado com sua irmã Dasheng, que então era uma representante popular da Província de Jiangsu. Depois de 20 anos de ausência, muitas coisas haviam mudado. “Os camponeses se rebelaram, as terras foram distribuídas, os canais de irrigação foram consertados, adotou-se uma organização coletiva e as colheitas melhoraram ano após ano”. Fei ainda escreveu: “Uma sociedade baseada na exploração do homem pelo homem tem sido transformada por uma sociedade onde já não existe exploração”. Nessa visita de 20 dias ao povoado, Fei notou que as condições de vida em geral haviam melhorado em Kaixiangong como consequência da revolução; no entanto, havia alguns aspectos do desenvolvimento do povoado que mereciam uma atenção especial, particularmente, com respeito às indústrias rurais, aspecto-chave da sua concepção de desenvolvimento rural e fruto de suas pesquisas. “Tomei forças para apontar essas coisas novamente, com esperanças sinceras de que os líderes prestem atenção a esses problemas”16. Fei havia descoberto, na sua pesquisa de doutorado, que muitos camponeses chineses dependiam de atividades complementares e da indústria rural para atender suas necessidades básicas. Em Kaixiangong, a seda era o principal produto deste tipo, a qual se obtinha alimentando 15 Citado na biografia de Fei preparada pelo Prémio Ramón Magsaysay. RAMON MAGSAYSAY AWARD FOUNDATION. Biography of Fei Xiaotong. 1994, p. 7-11. Disponível em: <http://goo.gl/ROzPIR>. Acesso em: 20 out. 2010. 16 Ibid., loc. cit. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 253 ANTROPOLOGIA E A INDÚSTRIA RURAL NA CHINA os bichos-da-seda com folhas de amoreiras, enrolando a seda dos casulos, e elaborando tecidos de seda no povoado. Na economia planificada, somente as atividades iniciais se realizavam no povoado; o resto da atividade produtiva havia sido transferido para as cidades industriais. A fábrica rural que sua irmã promovera nos anos trinta havia sido destruída por invasores japoneses e não fora reconstruída. Isso era uma lástima, pois Fei acreditava firmemente que a prosperidade rural não poderia ser alcançada somente a partir da agricultura, senão mediante a indústria rural como atividade complementar. Igualmente notou também que outras atividades artesanais e o florescente comércio fluvial, que no passado haviam contribuído para o bem-estar da economia camponesa, haviam desaparecido. Agora, com efeito, os camponeses têm alimentos suficientes, afirmou, mas não tem dinheiro para adquirir outros bens que não produzem. Essas observações críticas foram apresentadas com muito respeito: “Em nossa China, já não se trata de escolher o caminho, senão de saber como avançar melhor para a rota selecionada”17. Desafortunadamente para Fei, durante a Campanha das Cem Flores surgiram críticas além do que o partido estava disposto a tolerar. Depois de tomar conhecimento do informativo secreto de Khrushchov de 1956, acredita-se que Mao pode ter preparado uma armadilha para expor os dissidentes. Iniciou-se uma reação feroz contra os “intelectuais de direita”. O artigo de Fei sobre Kaixiangong foi objeto de uma campanha virulenta, na qual participaram inclusive seus assistentes de pesquisa. Na mesma revista Xin Guancha, onde tinha publicado o artigo, os editores se apressaram em desculpar-se por terem difundido aquela “erva daninha”. Os críticos se voltaram contra Fei por não ter destacado os triunfos revolucionários e, ao contrário, ter-se concentrado nos aspectos críticos. Seu interesse na fábrica do povoado e no comércio fluvial refletiam ainda seus julgamentos pró-capitalistas e pró-proprietários. “Está propondo teorias reacionárias”, disseram, e que tais recomendações de Fei haviam sido concebidas para fomentar a insatisfação dos camponeses com o Partido. E assim por diante. Outros artigos estigmatizaram a trajetória acadêmica de Fei, a qual estaria direcionada para promover a causa do capitalismo e a democracia burguesa, ao “querer retornar a história até o passado, semicolonialista e semifeudal”. Em tal clima ideológico, a sociologia continuaria sendo um objeto de piada oficial durante outros 20 anos. Lin Yueh-hua, um antigo amigo e ex-aluno da Universidade de Yanjing, em 1930 escreveu um artigo intitulado “O sinistro e detestável senhor Fei Hsiao-tung”. No discurso de 13 de julho de 1957 perante o Congresso Nacional do Povo, onde Fei era 17 ARKUSH, R. David. Fei Xiaotong and Sociology in Revolutionary China. Cambridge (Mass.) e Londres: Harvard University Press, 1981, p. 360. FEI, Hsiao-tung (Fei, Xiaotong). (Yangzi village [Kaixiangong] revisited). Xin Guancha 11: 3-7 (Junio 1), 12: 11-14 (Junio 16), 1957. GEDDES, W. R. Peasant Life in Communist China. Society for Applied Anthropology, Monograph No. 6, Lexington, 1963. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 254 ROBERTO MELVILLE representante popular, declarou-se derrotado. Disse aos delegados: Faço esta confissão perante o povo para pôr em aberto minha conduta criminosa. De fato, tenho expressado absurdos argumentos contra o Partido. Repetidamente fui contra a abolição das ciências sociais burguesas e solicitei sua restauração. Ao meu relatório sobre Kaixiangong faltou uma análise de classe e destaquei as deficiências com o propósito deliberado de distrair a atenção sobre os êxitos do Partido em seu trabalho no campo. Admitia que não tinha ainda reformulado seus pensamentos predominantemente burgueses. Em resumo, a manifestação total de Fei foi: “Resolvi aceitar a educação do Partido Comunista e seguirei a rota do socialismo sob a liderança do Partido”18. Como escreveu mais tarde, “Minhas tarefas chegaram ao seu fim no outono de 1957”19. Fei viveu os 20 anos seguintes na obscuridade. Retiraram dele todos os cargos de autoridade, foi rebaixado como professor de categoria mais inferior, sem possibilidades de dar aulas. Mas lhe permitiram conservar sua residência no Instituto Nacional das Minorias. Foi tratado melhor que muitos outros “de direita”. Aproveitou o tempo para traduzir livros como “An Outline of History”, de H. G. Wells. Mas não escreveu, pois nenhuma revista aceitaria seus artigos. Sua vida transcorreu no ostracismo social. As condições pioraram quando se iniciou a Revolução Cultural Proletária, em 1966. Milhões de jovens furiosos, convertidos, pelos líderes radicais do Partido, na Polícia Vermelha, iniciaram uma campanha contra todas as pessoas reacionárias da China. Entre os reacionários estavam marcados os mestres e professores universitários, e também outras autoridades, inclusive quadros do Partido. As vítimas foram humilhadas e torturadas, sujeitas a inúmeros atos de sadismo. Muitos milhares foram torturados e conduzidos ao suicídio; outros tantos foram presos. Milhões foram conduzidos para campos para serem reeducados, trabalhando com os camponeses. Fei não escapou desse suplício. A Polícia Vermelha invadiu sua casa, tirou tudo, inclusive preciosos manuscritos avançados de suas traduções. Foi forçado a permanecer em pé em público para ser criticado e golpeado violentamente até que confessasse seus delitos. Pôs a salvo sua esposa, enviando-a para a casa do seu pai em Suzhou. Foi levado a um dormitório onde convivia somente com homens e era obrigado a fazer trabalhos de criados. Foi enviado, junto com os outros, ao campo de Fuha (na área de Hankou), para que convivessem com outros camponeses e aprendessem a construir casas e a cultivar a terra. Durante dois anos e meio, Fei foi conduzido à Escola de Quadros Sete de Maio, para sua reeducação socialista. Combinavam trabalho agrícola e a constante avaliação dos estudos na doutrina maoista. Fei parece ter levado a sério o assunto de sua reeducação20. 18 CH’EN, C. J. Chinese Social Scientists. The Twentieth Century CLXIII, 1958, p. 521. PASTERNAK, Burton. A Conversation with Fei Xiaotong. Current Anthropology 29: 637-662, 1986. 20 Ibid. 19 Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 255 ANTROPOLOGIA E A INDÚSTRIA RURAL NA CHINA No início de 1972, subitamente foi transferido, novamente ao Instituto Nacional de Minorias Étnicas, com a finalidade de receber em abril, junto com Wu Wenzao e Lin Yueh-hwa (o mesmo que em 1957 o havia denunciado), os visitantes estrangeiros da Universidade de Hong Kong. A visita de Nixon à China em fevereiro tinha aberto as portas daquele país para o mundo, mas os anfitriões acadêmicos pareciam não estar a par do que estava acontecendo. A Revolução Cultural ainda estava vigente. Naquela ocasião, perante os atônitos acadêmicos que os visitavam, Fei repudiou seus antigos escritos: “O presidente Mao merece todo nosso respeito, assim como os livros que antes escrevi estão cheios de erros e não merecem nenhum respeito”21. Fei se manteve circunspecto até que os hostis e amargos ventos da Revolução Cultural se apaziguaram. A morte de Mao em 1976 pôs em marcha um processo de decomposição que conduziria à destituição dos líderes radicais, incluindo a famosa Banda dos Quatro. Finalmente em 1980 ocorreu uma tremenda transformação e a ordem abriu caminho onde antes havia caos. A reabilitação do nome de Fei foi paulatina. Em 1978 foi convidado a reiniciar os estudos de sociologia na Academia de Ciências Sociais. Com receio inicial, logo se comprometeu plenamente nessa tarefa. Em 1979 escreveu artigos na revista China Reconstructs, e se converteu no primeiro presidente da Sociedade Chinesa de Sociologia. No ano seguinte começou a viajar para o interior da China e até para o exterior. O governo eliminou o vergonhoso título de “direitista” que tinha sido associado ao seu nome e inclusive o designou como membro do júri no julgamento da Banda dos Quatro. Nesse mesmo ano, a Sociedade de Antropologia Aplicada outorgou a Fei Xiaotong o Premio Malinowski. Viajou para Denver, Colorado, para receber o reconhecimento e proferir uma conferência intitulada “Toward a People’s Antropology”. Essa foi a primeira ocasião na qual Fei se reuniu novamente com seus “velhos amigos”, seus colegas antropólogos: Durante este longo tempo estivemos muito tristes e tivemos dolorosas experiências das que podemos tirar muitas lições. Uma delas é que durante esses anos, a finalidade das pesquisas sociais era contrária ao interesse das massas. […] E a autêntica antropologia aplicada deve ser uma ciência a serviço das massas. A isso me refiro no título de meu discurso como a antropologia do povo22. No ano seguinte recebeu a medalha Adolf Huxley, como reconhecimento por parte dos antropólogos britânicos. Para preparar sua conferência fez uma nova visita a Kaixiangong, seguindo a recomendação que lhe fizera Raymond Firth. Seus colegas britânicos tinham interesse em saber o que havia acontecido em Kaixiangong. Esta é agora um próspero povoado camponês. A renda dos 21 COOPER, Gene. An interview with Chinese anthropologists. Current Anthropology, XIV, 1973, p. 480-482; KÖBBEN, A. J. F. Discussion and Criticism: “On former Chinese Anthropologists”. Current Anthropology 15: 315316, 1974. 22 FEI, Hsiao-tung (Fei, Xiaotong). Toward a People’s Anthropology. Human Organization 39 (2): 115-120, 1980. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 256 ROBERTO MELVILLE camponeses melhorou. E as comunas e outras aventuras de ultraesquerda fracassaram. Em 1978, introduziu-se uma modificação muito importante na política rural. Abandonou-se a política que enfatizava a atenção às culturas de alimentos para permitir atividades complementares, como os moinhos de soja e a produção de seda. Mas isso foi insuficiente, sem o incentivo da instalação de indústrias rurais. “Os camponeses da China deverão abandonar os campos, mas não seus povoados”, concluiu Fei23. Em 1984, o governo chinês promulgou o informe conhecido como “o documento número quatro” para impulsionar, em toda a nação, o desenvolvimento de indústrias rurais. O que Fei disse sobre Kaixiangong em 1981 poderia ser dito acerca de toda a China: “Meu sonho de muitos anos está agora se convertendo em realidade”. Em 1994, Fei recebeu o prêmio de líder comunitário, outorgado pela fundação Filipina Ramon Magsaysay. Os organizadores desse reconhecimento prepararam uma biografia muito completa de Fei Xiaotong, que eu utilizei com muita liberdade na preparação desta introdução. Também lhe foram concedidas outras honras, como os doutorados honoris causa da Universidade de Hong Kong e da Universidade da Ásia do Leste, em Macau. Morreu aos 94 anos na cidade de Beijing. Foi homenageado por sua destacada trajetória humanista e acadêmica na Universidade de Pequim, onde desde 1980 ocupava o posto de professor de sociologia. A trajetória do autor de La vida campesina en China foi construída e elaborada graças às facilidades que hoje nos oferece a internet. As bases de dados digitais de revistas me permitiram confirmar a informação, localizar artigos escritos sobre a campanha das Cem Flores e a Revolução Cultural, sobre as diversas visitas à comunidade de Kaixiangong. Convido os leitores a se aproximarem diretamente das fontes que aqui citei, pois descobrirão muito mais elementos para apreciar e valorizar a complexa e rica trajetória humana e acadêmica do autor desta monografia sobre o campesinato chinês. O povoado de Kaixiangong foi estudado em 1936 por Fei Xiaotong. Foi selecionado por Elman Service como uma das 20 etnografias mais importantes, em seu livro Profiles in Etnography (1963 [com sua primeira edição em 1953]). Fei voltou ao povoado em visitas curtas, primeiro durante a campanha das Cem Flores em 1957, e logo para preparar a conferência realizada em 1981, por ocasião do reconhecimento britânico (recebimento da medalha Huxley). Nancie González fez uma visita rápida ao mesmo povoado em 1981 e, em 1983, publicou um estudo sobre a organização doméstica das famílias camponesas. Recentemente, na polêmica entre Kenneth Pomeranz e Philip Huang, sobre o livro do primeiro, The Great Divergence (2000), Huang defende a etnografia de Fei 23 FEI, Hsiao-tung (Fei, Xiaotong). The new Outlook of Rural China: Kaishienkung Revisited After Half a Century. RAIN n. 48 (Feb.): 4-8, 1982. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 257 ANTROPOLOGIA E A INDÚSTRIA RURAL NA CHINA como uma das principais fontes de informação (our second detailed source) sobre os insumos de produção e produtividade agrícola no delta do Yangtsé24. Assim, pois, não me parece estranho que alguns dos leitores desta monografia, agora traduzida para o espanhol, professores ou estudantes nos países de língua espanhola, tomem a decisão de realizar uma visita de estudo sobre o povoado chinês, com o objetivo de considerar as recomendações do autor sobre as vantagens de promover a industrialização rural. Ao ver publicado um informativo desta natureza – direi seguindo uma expressão já citada de Fei – “Está se convertendo em realidade, um sonho de muitos anos”, pois essa coleção tem como uma de suas metas mais importantes pôr em contato os antropólogos do mundo, dando lugar a uma nova mestiçagem intelectual com consequências práticas para os países do sul. REFERÊNCIAS ARENSBERG, Conrad M.; KIMBALL, Solon T. Family and Community in Ireland. Cambridge: Harvard University Press, 1940. ARKUSH, R. David. Fei Xiaotong and Sociology in Revolutionary China. Cambridge (Mass.) e Londres: Harvard University Press, 1981. CH’EN, C. J. 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Further Thoughts on Eighteenth-Century Britain and China: Rejoinder to Pomeranz’s Response to My Critique. The Journal of Asian Studies 62: 153-181, 2003. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1, jan./jun. 2016, p. 243 – 260 258 ROBERTO MELVILLE ______. China’s Gentry. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 1953. ______. Fei Xiaotong wenji <费孝通文集> (Recopilación de los trabajos de Fei Xiaotong), 15 vol., 1999. ______. From the Soil. The Foundation of Chinese Society. Berkeley, Los Angeles e Londres: University of California Press, 1992. ______. Peasant Life in China. Londres, 1939. ______. Rural Development in China. Prospect and retrospect. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 1986. ______. Small Towns in China. Functions, Problems & Prospects. Beijing: New World Press, 1986. ______. Toward a People’s Anthropology. Human Organization 39 (2): 115-120, 1980. ______. Problems of Rural Industrialization. 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