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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.490
CULTURA E RELIGIÃO CENTRO AFRICANA NO PLANO DE INSURREIÇÃO
ESCRAVA DE 1832 EM CAMPINAS
Ricardo Figueiredo Pirola
Doutorando Unicamp
O plano de 1832
No ano de 1832 a cidade de Campinas se alarmou com a possibilidade de um plano de
insurreição escrava. Depois de castigarem seus escravos, os senhores de engenho Antonio
Francisco de Andrade e Theodoro Francisco de Andrade descobriram um grande plano de
insurreição. Envolvendo quinze grandes engenhos de açúcar e centenas de cativos, a trama
estava marcada para eclodir no domingo de páscoa daquele ano. Os encontros dos
conspiradores ocorriam, principalmente, durante a noite nas terras do engenho Ponte Alta,
pertencente à Dona Ana de Campos Paes. Nesses encontros, apareciam escravos de diversas
fazendas, alguns, inclusive, que não sabiam do plano de revolta. Os conspiradores, segundo as
investigações senhoriais, “comiam e bebiam” com todos os cativos que apareciam nos
ajuntamentos e só se apartavam dos demais no momento de discutir o projeto de rebelião.
O plano de revolta possuía uma liderança principal para toda a vila de Campinas, era o
“pai” Diogo, escravo pertencente ao senhor de engenho Joaquim José dos Santos. O pai
Diogo, como era chamado pelos seus parceiros de escravidão, era o responsável por presidir
todas as reuniões dos revoltosos e também exercia a função de caixa principal do dinheiro
arrecadado pelos capitães. Tudo o que os demais escravos conseguiam juntar era entregue a
Diogo. Além de caixa e liderança principal do plano de rebelião, pai Diogo tinha ainda outras
funções na organização da trama escrava. Era o responsável por elaborar as chamadas
mezinhas, um chá feito a partir de um combinado de raízes. As mezinhas eram vendidas pelos
capitães do movimento em troca de dinheiro, armas e outros objetos.
As mezinhas, segundo os depoentes, tinham a função de fechar o corpo dos escravos
durante a revolta e tornar mais lenta a reação senhorial. Benedito ferreiro, ao ser indagado
sobre a função das mezinhas, disse que “era para animar, livrar de chumbo e facas dos
brancos”. Bento Cassuada repete as mesmas coisas, acrescentando que elas serviam também
para curar feitiços. Já Felizardo crioulo relata que, após amansarem os brancos com as
mezinhas, eles, pretos, se levantariam afoitamente, matariam os brancos e ficariam todos
forros. Assim, as mezinhas tinham um papel fundamental na revolta. O seu poder de deixar os
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brancos mansos, ou seja, lentos para responderem aos ataques dos escravos e também de
tornar os cativos imunes às armas dos seus senhores, dava uma imensa vantagem aos
revoltosos. As habilidades sobrenaturais do Diogo Rebolo, contudo, não paravam nas
mezinhas. Conta um dos escravos envolvidos na elaboração da trama de 1832, que Diogo
Rebolo tinha também a capacidade de fazer adivinhações, a partir de um livro com a pintura
de um nariz de cachorro na capa.
O dinheiro conseguido com a venda das mezinhas, segundo revelaram as
investigações, era enviado ao liberto João Barbeiro em São Paulo. O liberto foi acusado,
juntamente com o Diogo Rebolo, ser outra importante liderança do plano de insurreição. Os
contatos entre as duas localidades eram feitos por um cativo tropeiro de nome Marcelino.
Segundo as investigações senhoriais, Marcelino levava o dinheiro arrecadado em Campinas e
trazia informações do João Barbeiro aos escravos da região. O dinheiro arrecadado em
Campinas era utilizado pelo liberto na compra de armas e munições para a revolta. As
investigações das autoridades mostraram também que João Barbeiro estava convidando outros
escravos moradores da cidade de São Paulo para se juntarem ao levante. Segundo as
investigações, João Barbeiro viria de São Paulo para Campinas trazendo novos cativos para a
insurreição.
Para lamento dos revoltosos, porém, nem tudo saiu como o esperado, a proximidade
da eclosão da revolta mudou o comportamento de alguns dos envolvidos, despertando a
atenção senhorial. Mas como explicar a liderança de pai Diogo Rebolo e do liberto João
Barbeiro? Qual a importância das mezinhas, do livro de adivinhação e dos encontros noturnos
dos cativos?
A África no Brasil
As investigações senhorias do plano de insurreição revelaram que a trama era
organizada por uma maioria de escravos provenientes da África central, mais especificamente
do Congo norte. Cerca de 80% dos africanos condenados pelo processo de 1832 eram
provenientes dessa região da África, sendo que oito eram identificados como Congo, sete,
Monjolo e cinco, Cabinda. Existiam ainda entre os escravos condenados aqueles que vieram
da região africana conhecida como Angola, sendo um cativo proveniente de Rebolo (norte de
Angola) e outro vindo do porto de Benguela (sul de Angola). Foram identificados também
três escravos provenientes da distante costa oriental africana, da região conhecida como
Moçambique. Havia, ainda, três crioulos envolvidos na trama. A predominância dos escravos
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provenientes do Congo norte na elaboração do plano de revolta não passou desapercebida
pelas autoridades campineiras da época. O próprio Antônio Francisco de Andrade na carta
datada de três de fevereiro de 1832, enviada ao juiz de paz da cidade, relatou que nem todos
os escravos eram sabedores da trama e que os de “nação Monjolo e Congo eram os mais
influentes” (Pirola, 2005, p105). Para entender a liderança de Diogo Rebolo e do liberto João
Barbeiro e o significado das mezinhas e de outros elementos do plano de insurreição, temos
que dirigir nossas atenções para o centro-oeste africano. É especialmente importante conhecer
o mundo religioso dos africanos, suas características e cosmologia.
Os diversos grupos étnicos que habitavam o centro-oeste africano possuíam uma série
de características em comum, em particular, os fundamentos das formas religiosas. Segundo
Craemer, Fox e Vansina, a religião possuía um papel fundamental na organização da vida dos
centro-africanos; ela moldava a cosmologia, a maneira de entender o mundo e era a forma
primordial de sociabilidade (Craemer, Fox e Vansina, 1976, p462). A religião favorecia a
identificação coletiva e era uma fonte fundamental de solidariedade. A base de todas as
religiões da África central é o complexo ventura/desventura. A ordem natural das coisas é a
prevalência do “bem”. Todas as experiências e os objetivos que os seres humanos consideram
desejáveis e bons fazem parte da ordem natural das coisas (ventura). Da maior importância,
está o predomínio da saúde, fecundidade, riqueza, segurança psíquica, harmonia, poder, status
e riqueza. Sob circunstâncias ideais, o “bem” prevalece, absoluto e exclusivo. O Ser Supremo,
o Criador, que dota todos de vida, reina distante, mas beneficamente sobre o universo e o
homem. Paralelamente, a esfera entre os vivos e os mortos está cheia de espíritos dos
ancestrais e de numerosos outros tipos de espíritos, como os espíritos ligados a elementos da
natureza, cujas intenções e atividades buscam propiciar o “bem”.
O universo, contudo, não tem apenas forças benéficas, ele, também, está cheio de
“forças malévolas” que desarrumam a ordem natural, causando a desventura. Tudo o que é
“mal”, é resultado dessas forças malévolas, mediante “pensamentos e sentimentos malignos”.
Os pensamentos e sentimentos que causam “mal” podem ser involuntários ou podem ser
conscientes, mediante a utilização, por um malfeitor, do poder dos espíritos presentes no
cosmo. O mal pode vir de qualquer lugar e a qualquer hora. Ele pode resultar da ação de uma
pessoa ou de um grupo. Os mesmos espíritos dos ancestrais que são importantes fontes de
segurança e bem-estar podem também causar o “mal”. Nesse sentido, a doença, esterilidade,
fracasso, empobrecimento, desavenças, corrupção, destruição e morte são decorrentes de
feitiçaria, ou seja, pensamentos e sentimentos ruins causados por outrem.
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Nesse sentido, as forças presentes no universo podem causar o bem ou o mal . Ao
mesmo tempo, em que uma situação harmônica e de predomínio do “bem” pode ser
transformada pela feitiçaria, o contrário também é verdade. É aqui que entra o papel do líder
religioso. Ocupando uma posição central nas comunidades centro-africanas, o líder religioso
deve trabalhar, por meio de diversos rituais, para a manutenção da “ordem natural” do mundo.
Sua tarefa é afastar as forças malévolas, os pensamentos ruins (feitiçaria) e evitar, dessa
forma, que a comunidade fique doente, fracasse, entre em desavenças, seja acometida por
mortes, etc. Um líder religioso é tanto melhor, quanto mais controle ele tem das forças
sobrenaturais. Quanto mais seus seguidores se sentem dotados de força especial e proteção em
face às adversidades, maior é o seu reconhecimento e veneração.
Atravessando o Atlântico, novamente, e retornando da África para Campinas, nas
primeiras décadas do século XIX, podemos flagrar várias características dessa religiosidade
centro-africana nos encontros noturnos dos escravos – a figura de um líder carismático, a
reunião de vários seguidores, a cura de feitiços, o trabalho do líder para o sucesso em uma
revolta e a manipulação do sobrenatural para proporcionar o “mal” para o inimigo. Algumas
observações, contudo, devem ser feitas antes da aproximação dos dois continentes. As
descrições de Craemer, Fox e Vansina sobre as características religiosas na África não são
exatamente as mesmas que encontramos no Brasil. Por mais que as aproximações sejam
muitas, trata-se de coisas diferentes, surgidas em contextos diversos. O mais importante, dessa
forma, não é buscar qualquer pureza ou permanência dos rituais feitos no Brasil em sua
comparação com a África, mas compreender os significados que a religião ganhou no mundo
da escravidão oitocentista.
O pai Diogo Rebolo
Aos dezessete anos de idade, quando desembarcou no Brasil, Diogo Rebolo deveria
conhecer pouco da religião africana. É possível que tenha começado sua iniciação religiosa
ainda na África, mas, certamente, adquiriu grande parte dos seus conhecimentos aqui no
Brasil. Segundo Karasch, muitos jovens africanos que chegavam ao novo mundo, aprendiam
com os mais velhos grande parte de suas práticas religiosas (Karasch, 2000, p350). A fazenda
onde Diogo Rebolo foi morar tinha uma maioria de escravos provenientes da África central.
Possivelmente foi com eles que Diogo Rebolo aprendeu sobre suas práticas religiosas. É
possível, também, que parte de seus conhecimentos sobre religião tenham sido passados por
cativos de outras fazendas, já que o contato entre diversas senzalas era freqüente. De qualquer
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forma, o que marcou seus fundamentos religiosos foram as tradições centro-africanas que
predominavam nas senzalas campineiras. Não deve ter sido difícil para Diogo Rebolo fazer
conexões entre o que aprendeu do outro lado do Atlântico e no Brasil.
O reconhecimento e aceitação do pai Diogo Rebolo como um líder religioso pelos
demais escravos, dotado de poderes especiais, possivelmente, seguiu um caminho parecido
com o aparecimento de líderes religiosos na África central. Segundo Craemer, Fox e Vansina,
o aparecimento de um novo líder carismático estava ligado a certas visões em sonhos e transes
espirituais. Essas visões se repetiam durante anos até que a comunidade se convencesse de
que elas eram verdadeiras e dotavam o novo líder de poderes especiais. Uma vez que os
poderes de um líder religioso eram aceitos em uma certa comunidade, a sua fama ia se
espalhando para as localidades vizinhas. O processo era tanto mais rápido, quanto mais o líder
conseguisse convencer os demais de que era poderoso no combate à feitiçaria. Junto com o
reconhecimento dos dons espirituais de um novo líder, novos rituais religiosos começavam a
serem organizados. Nesses rituais, o líder religioso conduzia seus participantes em orações,
danças, cantos e transes espirituais a fim de afastar a feitiçaria e garantir o bem. A
periodicidade dos encontros religiosos respeitava uma certa regularidade (exemplo, durante
toda lua cheia ou lua nova), mas podia também ocorrer em intervalos menores, durante as
épocas de crise.
É possível pensar que no caso de Diogo Rebolo, apesar de ter seguido um padrão
parecido, o tempo entre as primeiras visões e o seu reconhecimento pelos demais escravos
tenha sido menor do que na África. As condições adversas da vida em cativeiro pode ter
tornado mais curto o caminho de seu reconhecimento pela comunidade que o cercava. A
necessidade de líderes religiosos para afastar as forças malévolas em um local estranho e
hostil, deve ter acelerado o processo. Podemos pensar, ainda, que na escravidão campineira do
século XIX, os escravos nem sempre conseguiam manter uma certa regularidade nos
encontros rituais. A ocorrência desses encontros deve ter variado de acordo com os momentos
de maior ou menor vigilância senhorial. De qualquer maneira, deve ter sido mantida a noção
de que em momentos críticos os encontros deveriam ser mais freqüentes. Pelo menos, durante
o período de preparação do plano de revolta de 1832, os cativos abandonaram, repetidas
vezes, as fazendas de seus senhores para se encontrarem, à noite, nos rituais comandados por
Diogo Rebolo. É claro que estou partindo da idéia de que a revolta era encarada como um
momento de crise; ela colocaria a comunidade escrava em um conflito aberto contra seus
senhores e traria resultados imprevisíveis. Era necessário, portanto, preparar os revoltosos
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para a batalha, amansar os senhores e proteger a comunidade de eventuais mortes ou
punições.
As descrições que temos dos encontros noturnos dos escravos na fazenda de Dona Ana
de Campos Paes não permitem entender muito sobre a sua dinâmica. Sabemos que eles eram
conduzidos pelo pai Diogo Rebolo, que os escravos participantes tomavam as mezinhas de
curar/livrar feitiço e que todos comiam e bebiam juntos. Nada é descrito sobre o seu
funcionamento, nem sobre a utilização de objetos rituais. Aqui, nos encontramos diante de
uma dupla barreira. Nem os senhores conseguiam se desvencilhar de certos preconceitos e
entender os significados das possíveis descrições de seus cativos, nem os escravos tinham
interesse em revelar seus rituais religiosos. Contudo, os movimentos religiosos da África
central, mais uma vez, dão uma pista para imaginar o que acontecia nos encontros noturnos
dos escravos. Nos movimentos religiosos africanos existia, normalmente, um amuleto coletivo
de culto e adoração. O amuleto era um objeto feito sob inspiração, que incorporava os
símbolos mais poderosos de uma certa comunidade. Ele ficava em um santuário e tinha o
papel central de proteger a comunidade contra doenças, mortes e outros males.
O povo Bakongo, em especial, antigos moradores do Reino do Congo, região de onde
veio a grande maioria dos revoltosos de 1832, cultuava pequenas estátuas de madeira
chamadas de minkisi (sing. nkisi). O termo minkisi (nkisi) era utilizado também para
caracterizar um composto feito a partir de terra, cinza, folhas, raízes, dente de cachorro, osso
de pássaros, cabeça de cobras e outros objetos com poderes simbólicos. Acreditava-se que os
minkisi podiam trazer o bem (saúde, fertilidade, prosperidade) e também provocar o mal
(doença, pobreza, morte). Era justamente esse composto que dava vida à estatua, que a
tornava especialmente poderosa. Uma estátua sem nkisi não passava de uma simples estátua,
estava morta, na concepção dos Bakongos (Macgaffey e Harris, 1992, p42). O nkisi era
guardado freqüentemente em pequenos sacos de pano, potes de barro, concha de um caracol,
chifre de antílope, e colado junto a estatua – normalmente, eram colados, com resina, no
umbigo das estátuas (quando tinham forma humana), na cabeça, nas costas ou mesmo no
dorso (quando tinha forma de animal).
Os rituais religiosos, comandados pelo líder espiritual, deveriam envolver o amuleto
coletivo em cerimônias de oração, oferenda e sacrifício. A oração, a invocação e a comunhão
eram os meios de estabelecer comunicação com o mundo invisível. Dança, música e transe
ocupavam especial lugar nos rituais. A música seria para curar e, ainda, estabelecia a
comunicação com aqueles acima e além do mundo visível; era importante fonte de inspiração.
Do outro mundo, a comunicação se dava por meio dos sonhos ou em transes de homens e
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mulheres que dançavam e cantavam, durante os rituais, em passos que eram ensinados pelos
espíritos.
Mary Karasch destaca que é difícil encontrar referências a amuletos coletivos no
Brasil oitocentista. O que aparecia com bastante força, relata a pesquisadora, eram os rituais
que cultuavam imagens de santos católicos. Os santos, segundo Karasch, faziam, justamente,
o papel de amuletos coletivos em diversos ritos de africanos e crioulos (Karasch, 2000, p361).
Muitos africanos, antes mesmo de desembarcarem no novo mundo, já tinham tomado contato
com o cristianismo. O trabalho de missionários católicos e protestantes na África fazia com
que certos elementos do cristianismo aparecessem, inclusive, nos movimentos religiosos
daquele continente. A adoração ao um santo católico, contudo, não significava um abandono
das formas tradicionais de culto, nem a conversão ao catolicismo. Uma das características
principais da religiosidade centro-africana era, justamente, a flexibilidade, a incorporação de
novos rituais, símbolos, crenças e mitos. Portanto, nem os africanos, lá no outro lado do
Atlântico, nem os escravos, aqui na América, abandonavam sua religião ao venerar uma
imagem de santo, simplesmente adotavam a estátua como um símbolo novo.
O mais provável, portanto, no caso dos rituais conduzidos pelo Diogo Rebolo era que
contasse com o culto a certas imagens de santos. A existência de uma estatua de madeira,
como os mikinsi dos Bakongos, (enfeitadas com conchas, espelhos, pregos e outros objetos,
como era costume) chamava muita atenção. As investigações policiais não encontraram
nenhuma estatua que pudesse se assemelhar ao mikinsi. É claro que os cativos podem ter
escondido seus objetos de culto. Já vimos que foram eficientes em esconder as armas e
dinheiro. Contudo, a inexistência de referências desse tipo de objeto ritual em toda a
bibliografia do período torna mais plausível a hipótese de que foram substituídas pelas
imagens de santos. É possível, inclusive, que os nomes de certos santos católicos tenham sido
citados pelos revoltosos no processo-crime de 1832, porém, foram deixados de fora, no
momento de transcrição dos depoimentos, por não causarem estranheza aos senhores e
autoridades campineiras.
É preciso ressaltar que a substituição de um amuleto coletivo pelas imagens de santos
pode ter encontrado sua correspondência, também, nos amuletos individuais. O uso de
amuletos individuais por parte de escravos e libertos, com uma função semelhante ao amuleto
coletivo, era muito freqüente no século XIX. Os escravos utilizavam amuletos abertamente
sobre seus corpos ou nas suas roupas. Esses amuletos individuais eram também chamados de
breves. Os breves eram fabricados pelos líderes religiosos e vendidos para aqueles que
queriam afastar todos os tipos de males e fechar o corpo contra doenças e castigos senhoriais.
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No caso do plano de revolta de 1832, em Campinas, nenhuma referencia é feita ao uso de
amuletos individuais no formato de breves. Ao que tudo indica, os amuletos individuais eram
as próprias mezinhas. Pelo menos, as funções atribuídas às mezinhas são as mesmas dos
amuletos. Como já mencionamos, as mezinhas serviriam para curar feitiço, fechar o corpo dos
escravos e amansar senhores. Eram fontes, ao mesmo tempo, de proteção e de feitiçaria;
evitariam as balas e facas e causariam o mal nos senhores. Davam poder sobrenatural aos
escravos e atacavam os seus senhores.
Quanto ao fato dos preparados do pai Diogo Rebolo deixarem os senhores
lentos/mansos, durante a revolta, é preciso, ainda, levantar mais alguns aspectos. Sugeri,
anteriormente, que os escravos, além de tomarem as mezinhas, também estariam colocando-a
na comida de seus senhores – papel desempenhado, principalmente, por escravos domésticos.
Os relatos sobre a prática de amansar ou envenenar senhor pela adição de certas substâncias
em suas comidas e bebidas são recorrentes para todo o período escravista. João José Reis
conta que desde a época colonial é possível encontrar descrições de líderes religiosos
preparando mezinhas, pós e outros artefatos para amansar senhor. Diz Reis que em todo o
“mundo luso-atlântico os escravos lançaram mão de diferentes meios com o mesmo objetivo.
Uns usavam raiz de trigo, outros raspavam a sola do sapato do senhor para prepararem poções
adequadas de amansamento, outros ainda usavam pó de caveira de defunto” (Reis, 2008,
p147).
No século XIX, os feitiços coloniais de amansar senhor continuavam a imperar e
faziam parte do repertório de diversos líderes espirituais, como era o caso do pai Diogo
Rebolo. O viajante Thomas Ewbank descreve que os líderes espirituais forneciam aos
escravos “vidro moído e outras substâncias nocivas para pôr na comida do senhor”(Ewbank,
1973, p189). Também comenta Karasch, com base no relato de Sigaud, que as substancias
que os escravos davam para acalmar os senhores eram decorrentes da manipulação de
narcóticos naturais que quando adicionados na comida provocava o efeito de relaxamento e
letargia (Karasch, 2000, p351). João Reis cita, ainda, um texto de João Batista Lacerda,
publicado em 1909, onde é apontada a “raiz do pipi, da esponjeira, o estramônio, a hervamoira, a taioba ou tajá selvagem” como exemplos de plantas narcotizantes e paralisantes
(Reis, 2008, p153).
Outra espécie vegetal muito utilizada para amansar senhor era o mulungo, que se
referia a conjunto variado de plantas do gênero Erythrina. Sua composição apresenta
propriedades soníferas, o que ajuda a explicar a lentidão naqueles que a ingerem. A origem
banto do termo mulungo faz pensar que um dos principais grupos manipuladores desse
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espécie vegetal fosse justamente os escravos provenientes da África central. Diversas palavras
do vocabulário falado, no Brasil, no século XIX, eram provenientes da união de uma ou mais
línguas banto. Talvez, tenha sido uma das plantas do gênero Erytrina que o pai Diogo Rebolo
estava manipulando, em 1832, para amansar os senhores campineiros. O mais curioso é que
palavra mulungo se refere também, segundo Yeda Castro, a um “tambor comprido e estreito,
de som retumbante” (Castro, 2005, p292). Ora, a coincidência não podia ser mais reveladora.
O tambor tem para os centro-africanos a importante função de fazer a comunicação com o
outro mundo. É ele que dita o ritmo da música e da dança. Em diversos cultos, é visto como
uma entidade que merece o respeito e as oferendas da comunidade. Como qualquer outra
entidade que povoa o universo, pode ser manipulada, dentro de rituais específicos, tanto para
promover o bem, quanto para proporcionar o mal. É possível pensar, portanto, que o pai
Diogo Rebolo estivesse fazendo o casamento entre a planta e o tambor. O que chamamos de
efeito sonífero das propriedades do mulungu, certamente, não eram encarados da mesma
forma pelo pai Diogo Rebolo e seus fiéis seguidores. O que amansava era a entidade,
representada no tambor e na planta, que atuava diretamente nos senhores, e lhes tirava as
forças.
Além de saber manipular as mezinhas, pai Diogo Rebolo tinha também o dom de fazer
adivinhações. Por meio de um livro, que tinha o nariz de um cachorro na capa, o pai Diogo
Rebolo conseguia prever o futuro daqueles que o consultavam. A associação do cachorro ao
livro de adivinhação encontra grande ressonância na cultura centro-africana, especialmente,
nos Bakongo, antigos moradores do Reino do Congo. O cachorro tinha um lugar de destaque
no mundo religioso dos Bakongo. Para eles, o cosmo era dividido entre o mundo dos vivos
(nza yahi) e mundo dos mortos (nsi a bafwa). O mundo dos mortos estava debaixo da terra, na
floresta, no cemitério ou através de superfície de água (rio ou oceano), que era, ao mesmo
tempo, a passagem e a barreira entre a terra dos vivos e dos mortos (MacGaffey, 1983, p123).
O mundo dos vivos, em oposição, era representado pela vila e pela luz do dia. O poder
dos líderes religiosos vinha da comunicação com o mundo dos mortos. Eles eram portadores
de “quatro olhos”, dois para ver os eventos ocorridos à luz do dia e dois para ver durante a
noite. Os cachorros, segundo a crença dos Bakongo, também eram portadores de quatro olhos.
Viam as coisas desse mundo e do outro, tinham poderes especiais. Como animais que
ajudavam nas caçadas, eles transitam entre a vila e a floresta, caminhando (em termos
metafóricos) entre os vivos e os mortos. A secreção do que sai dos olhos dos cachorros era
considerada muito poderosa. Segundo a crença Bakongo, ao ser aplicada nos olhos de uma
pessoa, permitia a comunicação com os mortos. Portanto, a imagem de um nariz de cachorro
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no livro de adivinhações de Diogo Rebolo representa o poder atribuído aos cachorros pelos
Bakongo. Se para ter poderes especiais e fazer adivinhações era necessário a comunicação
com o mundo dos mortos, nada melhor do que invocar um animal que possui quatro olhos e
que conseguia ver além das coisas reveladas à luz do dia (Thompson, 1994, p121).
Por último, vimos que o Diogo Rebolo era chamado de pai por alguns cativos
envolvidos no movimento de rebeldia. Segundo Robert Slenes, no centro-oeste da África, o
termo pai não tinha, apenas, o significado de progenitor, carregava, também, o significado de
liderança. O respeito aos anciões e a identificação de idade com liderança é praticamente
universal nas culturas africanas, portanto, não haveria nada mais natural do que chamar de pai
(tate) pessoas com autoridade, mesmo que não fossem literalmente pais ou idosos (Slenes,
1991-92, p61). Enfim, Diogo Rebolo inspirava muito respeito e admiração por parte de seus
parceiros de escravidão, ocupando um papel fundamental na em suas vidas. Era o responsável
por manter o “bem” sempre presente e o “mal” afastado da comunidade que o cercava. No
ano de 1832, trabalhou em benefício da liberdade de toda a comunidade ao liderar um grande
plano de insurreição.
O liberto João Barbeiro
No Brasil do século XIX, os barbeiros não eram, apenas, especialistas no manejo da
navalha e da tesoura, como podemos nos deixar levar pelo significado atual da palavra. Eles
reuniam, na verdade, diversas habilidades como a de um barbeiro hábil, um cabeleireiro
exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas.
Também eram responsáveis por arrancar os dentes daqueles que apresentavam dores agudas e
horripilantes. Sabiam fazer, ainda, as tão procuradas sangrias e aplicar ventosas. Não bastasse
isso, eram mestres em consertar uma malha escapada de meia de seda e tocar violão e
clarineta com muita habilidade. No centro das vilas e grandes cidades do Brasil, era comum
alguns barbeiros terem suas próprias lojas onde recebiam seus clientes. A maioria, contudo,
fazia seus atendimentos nas escadarias das igrejas ou na residência daqueles que os
chamavam.
Diz o viajante Thomas Ewbank que visitou uma barbearia na cidade do Rio de Janeiro
(Ewbank, 1973, p191). Ele relata que o local tinha diversas caixas de madeira onde eram
guardados os sanguessugas. Esses parasitas, segundo o viajante, eram aplicados no corpo
daqueles que se sentiam enfermos e procuravam os barbeiros para o alívio de seus males. Os
sanguessugas, segundo o viajante, custavam cerca de vinte centavos de dólares e eram
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colocados principalmente nas costas dos pacientes. Já o reverendo Walsh, relata que
presenciou a prática da sangria e aplicação de ventosas por um barbeiro (Walsh, 1985, p177).
A prática consistia em fazer pequenos cortes na pele dos clientes, por meio de um bisturi,
pedras ou pequenas conchas, colocar a extremidade mais larga de um chifre de ovelha sobre
os cortes, chupar o ar e tampar a outra extremidade com argila, deixando-o firmemente preso
à pele. Acreditava-se que a sangria e aplicação de ventosas era um ótimo remédio para dores
reumáticas, trazendo alívio logo após a aplicação. Ainda segundo o reverendo, a prática da
sangria e utilização de ventosas era um dos remédios favoritos dos africanos, aplicado, de
preferência, ao sol.
O trabalho dos barbeiros no século XIX, portanto, estava intimamente ligado à arte de
curar. Era ao barbeiro que muitos recorriam quando atacados por doenças e moléstias. O
viajante francês Jean B. Debret, que esteve no país no começo do oitocentos, chamava os
barbeiros de “cirurgiões negros”, por conta de suas habilidades de fazer a sangria e de curar
doenças (Debret, 1978, p124). Muitos barbeiros eram reconhecidos também por suas receitas
de ervas curativas. De acordo com Tânia Salgado Pimenta, a atividade de barbeiro-sangrador
era exercida na Europa desde pelo menos o século XV e também conhecida por alguns índios
no Brasil. No começo do século XIX, contudo, eram os negros que praticamente
‘monopolizavam’ esse ofício (Pimenta, 1998, p360). Na documentação da Fisicatura-mor
(1808-1828), a autora identificou que 84% dos pedidos de licença para o ofício de barbeirossangradores eram de escravos ou forros e que 64% deles eram africanos. As descrições dos
viajantes europeus na época também não deixam dúvidas de que a atividade era
majoritariamente exercida pela população escrava e liberta. A clientela atendida pelos
barbeiros-sangradores, contudo, não era exclusiva de um único grupo social. Os barbeiros
atendiam desde escravos, forros e seus descendentes até senhores e autoridades locais. A
medicina acadêmica dava ainda seus primeiros passos e lutava muito sofregamente para
alcançar aceitação. Além disso, o número de médicos formados pelas academias era muito
pequeno, restando para a população, em diferentes partes do país, recorrer às práticas de cura
disponíveis.
Mas se os clientes dos barbeiros pertenciam a diversas classes socais, os significados
atribuídos à cura eram bem particulares, especialmente para a população escrava e forra.
Vimos que para os escravos da África central a concepção de saúde e doença estava ligada ao
complexo de ventura/desventura. As causas das doenças seriam resultado, principalmente, de
forças malignas, de feitiçaria, que desorganizam a ordem natural do universo, e afastavam a
saúde. A figura do barbeiro-sangrador (capaz de aliviar as dores e curar as enfermidades) era
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vista como a de alguém suficientemente poderoso para manipular o sobrenatural e afastar as
forças malignas que causavam o mal. A cura, nesse sentido, estava intimamente ligada aos
fundamentos religiosos. Era muito comum, no século XIX, os enfermos escravos, primeiro,
rezarem para um santo dentro de uma igreja e, logo em seguida, serem atendidos pelos
barbeiros na escadaria da mesma igreja.
Diz o viajante Debret que os “cirurgiões negros” eram muito respeitados pelos seus
compatriotas, “que o veneram como um sábio inspirado, pois ele sabe emprestar às suas
receitas um fundo misterioso, e, mediante tais sortilégios, disfarça o simples curativo que os
seus doentes já conhecem por tradição” (Debret, 1978,
p124). Deixando de lado o
preconceito do viajante francês, que enxerga nas curas do cirurgião negro uma simples
encenação “misteriosa” para enganar seus pacientes, podemos notar a consideração que tal
ofício tinha entre a população negra. Relata Karasch que o costume de aplicar ventosos e
chupar o ar que estava dentro encontra paralelo nas tradições religiosa dos Bakongos, da
África central, que acreditavam estar sugando os espíritos malignos que causavam a doença
(Karasch, 2000, p354).
Não é difícil, assim, ligar a liderança do João Barbeiro às suas habilidades de cura e a
sua capacidade de manipular o sobrenatural. Ele era dotado de dons especiais, conseguia
combater a feitiçaria e proteger seus companheiros do infortúnio. A concepção de mundo dos
escravos africanos e seus descendentes, permite afirmar que seria impossível pensar em uma
revolta sem a liderança de uma figura como a do João Barbeiro. Seria como ir para uma
guerra sem armas. O poder dos revoltosos não estava apenas nas azagaias, facas e
espingardas, que juntavam para a revolta, estava também na capacidade de curar feitiço, no
poder dos espíritos invocados, nos dons sobrenaturais do liberto. O mesmo é possível dizer do
Diogo Rebolo. Era impensável o dia-a-dia separado da religião, a doença desvinculada da
feitiçaria, o mundo dos vivos afastado do mundo dos mortos. Tudo se misturava o tempo
todo. No momento de preparação de uma insurreição não era diferente, as forças sobrenaturais
cumpriam um papel fundamental, e aqueles capazes de manipulá-las eram peças
indispensáveis.
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