O Que Falta Discutir sobre a Saúde Pública Brasileira
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O Que Falta Discutir sobre a Saúde Pública Brasileira
evista R 2013 • novembro C u lt u r a e E x t e n s ã o U S P 10 evista R 2013 • novembro • volume 10 Cultura e Extensão USP Presença em diretórios e bases de dados: Latindex (Catálogo): http://www.latindex.unam.mx U N I V E R S I D A D E D E S Ã O PA U L O Assistente Técnico do Gabinete da PRCEU Reitor Eduardo Alves Prof. Dr. João Grandino Rodas Chefe da Divisão de Comunicação Institucional Vice-Reitor Irany Emidio Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz Chefe da Divisão de Ação Cultural Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária Juliana Maria Costa Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda Chefe da Divisão Acadêmica Pró-Reitora de Graduação Sandra Lara Profa. Dra. Telma Maria Tenório Zorn Chefe da Divisão Administrativa e Financeira Pró-Reitor de Pós-Graduação Valdir Previde Prof. Dr. Vahan Agopyan Assessoria de Projetos Especiais Pró-Reitor de Pesquisa Abílio Tavares Prof. Dr. Marco Antonio Zago Vice-Reitor Executivo de Administração Prof. Dr. Antonio Roque Dechen Vice-Reitor Executivo de Relações Internacionais Prof. Dr. Aluisio Augusto Cotrim Segurado P R Ó - R E I T O R I A D E C U LT U R A E E X T E N S Ã O U N I V E R S I TÁ R I A Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda Pró-Reitor Adjunto de Extensão Universitária C o m issão E ditorial Editora responsável Profa. Dra. Diana Helena de Benedetto Pozzi Editores associados Prof. Dr. Ferdinando Crepaldi Martins Prof. Dr. José Nicolau Gregorin Filho Prof. Dr. José Tavares Correia de Lira Profa. Dra. Marina Mitiyo Yamamoto Prof. Dr. Waldenyr Caldas Assistentes Editoriais Prof. Dr. José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres Pérola Ramira Ciccone Verônica Cristo Pró-Reitora Adjunta de Cultura Bolsistas Profa. Dra. Marina Mitiyo Yamamoto Assessor Técnico de Gabinete André Alves de Sousa Marina Salles Teixeira Prof. Dr. José Nicolau Gregorin Filho Assessor Técnico de Gabinete José Clóvis de Medeiros Lima Assistente Técnico do Gabinete da PRCEU Cecílio de Souza Universidade de São Paulo. Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária Revista Cultura e Extensão – USP. São Paulo Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária Vol. 10 (nov. /2013). 140 p. Semestral ISSN 2175-6805 1. Cultura. 2. Extensão. 3. Revista. I. Título R evista C ultura e E xtensão U S P Rua da Reitoria, 374, 2o andar Cidade Universitária – São Paulo-SP – 05508-220 Serviço de Produção Editorial: (11) 3091-3250 www.prceu.usp.br – [email protected] Sumário Contents 5E D I T O R I A L EDITOR I AL Walden yr C aldas E n trevi s ta interview 11 O Que Falta Discutir sobre a Saúde Pública Brasileira What is Missing over the Discussion on the Brazilian Public Health e n t re vi st a c o m Mig uel S rou g i p o r Marina Salles OPINIÃO OPINION 21 Revista de Cultura e Extensão Universitária: Forma e Abrangência Culture and Universitary Extension Review: Form and Comprehensiveness D iana H elena de B enedetto P o z z i ARTIGOS A RT I CL E S 29 Canção Popular Versus Autoritarismo (Os Militares No Poder) Pop music vs authoritarianism (Military power) Walden yr C aldas 43 A Necessidade de Ações Articuladas na Cultura e Extensão The Need for Jointed Actions in Culture and Extension V inicius P edra z z i Marina Miti y o Ya m a m oto 53 Perspectivas da Extensão Universitária no Projeto Troca de Saberes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Prospects of The University Extension related to the Project Exchange of Knowledges of Santa Catarina State University Guilher m e Da S ilva R icardo Álvaro L ui z Maf ra 63 Região Central Histórica de Santos e o Território Usado: Síntese de Múltiplas Determinações Central Historical Area of Santos City and the Used Territory: Synthesis of Multiple Determinations A nita Kurka I veliz e Ferraz J uliana A nastácio 75 Desenvolvimento Participativo de um Suporte para Almofada das Rendeiras de Bilro do Município de Saubara, Bahia Participatory Development of a Support Pillow for Bobbin Lace Makers of the City of Saubara, Bahia Gabriel R ibeiro Tatiana R ibeiro V elloso 85 Sistema Estrutural e Construtivo do Módulo (M) em Madeira como Instrumento de Aproximação Social na Promoção da Cidadania de Crianças e Jovens Socialmente Vulneráveis MODULE (M) Structural and Constructive Systems in Timber as a Tool of Social Approach in Promoting Citizenship of Children and Socially Vulnerable Youngsters Francisco A ntonio R occo Lahr et al 105 Saúde Pública ao Alcance da População: O Papel das Bibliotecas Virtuais nas Rádios Comunitárias Public Health Reaching Undeserved People: the Role of Virtual Libraries and Community Radios A n g ela Maria B elloni C uenca Paulo R o g é rio Gallo 113 Segunda Sem Carne na Faculdade de Saúde Pública: Um Projeto de Intervenção Meatless Monday at Public Health School: an Intervention Project B runa L acerda e t al 121 Qualidade de Vida Relacionada à Saúde de Pacientes Oncológicos sob Cuidados Paliativos Health Quality of Life Related to Cancer Patients’ Health Under Palliative Care C intia R achel Gomes S ales J os é C arlos R osa Pires I dalina C ristina Ferrari Júlio 133 I NS T R U Ç Õ E S P A R A O P R E P A R O E E N C A M I N H A M E N T O D O S T R A B A L H O S I N S T R U CT I O N S F O R P R E PA R I N G A N D F O RWA R D I N G O F PA P E R S Editorial Editorial A partir deste número, a Revista Cultura e Extensão USP terá um visual dife- Wa ldenyr Ca lda ss rente das edições anteriores. A novidade que veio para ficar é seu aspecto cromático, que certamente tornará a leitura dos artigos mais atraente e agradável aos leitores. As ilustrações coloridas, os gráficos, os detalhes peculiares de cada ensaio e da própria revista, ganharão mais destaque e, em decorrência, darão um novo visual estético que, sem dúvida, é muito bem-vindo. Isto não significa apenas um avanço na qualidade do material empregado nesta Revista. Tem a ver com o aumento do apoio e a dedicação da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão ao perceber a expressiva acolhida deste periódico por parte da comunidade científica em nosso país. No mais, é natural que busquemos sempre o aprimoramento das coisas que estamos realizando. É assim que pensa nossa equipe e é nessa direção que estamos trabalhando. O entrevistado desta edição é o Prof. Dr. Miguel Srougi, urologista e professor titular da Faculdade de Medicina da USP. Com notória experiência profissional e objetividade, ele respondeu às perguntas que lhes foram feitas acerca do Programa Mais Médicos, mostrando ao leitor as fragilidades e impertinências das decisões governamentais. Para ele, são medidas que tentam apenas abrandar um problema cuja magnitude requer atitudes de caráter mais abrangente, relativas à necessidade de repensar a infraestrutura da saúde em nosso país, e não só de algo que possa ser resolvido a curto prazo. Realizar projetos de base de forma apressada, que demandam minuciosos estudos apenas para tentar acalmar o clamor popular, resulta mesmo em “uma solução falaciosa”, como diz nosso entrevistado. As considerações da Profa. Dra. Diana Pozzi sobre o papel de uma revista de Cultura e Extensão de uma universidade trazem o debate para uma questão, quando menos original: a necessidade de se pensar sobre os reais objetivos da própria área de cultura e extensão no âmbito acadêmico. Ao analisar essas duas expressões, a professora enfatiza o compromisso que a universidade pública deve ter com a sociedade. Levar a todos os serviços prestados pela academia e democratizar o acesso às manifestações culturais, proporcionadas por essa instituição, é apenas uma das formas de devolver à sociedade os Universidade de São Paulo. Escola de Comunicações e Artes, São Paulo, Brasil Rev. Cult. e Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.5-6, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p5-6 5 benefícios auferidos pela universidade. Assim, estreitaríamos ainda mais os laços sociedade/universidade. Com esta interpretação, temos, ao contrário do senso comum, a real dimensão da importância dos serviços de cultura e extensão da universidade pública. Este número inclui ainda três artigos que tratam de forma precisa e em diferentes dimensões da saúde pública, certamente um dos maiores problemas enfrentados, ao mesmo tempo, pelo Estado e pela sociedade brasileira. Nada mais pertinente. Como se sabe, a saúde em nosso país está doente, muito doente. Pelo menos para os estratos mais modestos da população. Nesse sentido, os artigos aqui apresentados são bem oportunos. Entre outros motivos, porque não tratam do problema com emocionalismo, mas com a razão de quem quer refletir e analisar de forma isenta e descompromissada com ideologias. Temos ainda quatro artigos que analisam as relações do binômio Estado/sociedade, tendo como eixo condutor para o debate: a história, a reflexão sobre o artesanato, a canção popular do nosso país, entre outros aspectos. Todos eles, porém, convergem para o que aqui podemos chamar de participação dos atores sociais na cultura popular brasileira. A bem sucedida análise da formação do porto de Santos, a promoção da cidadania entre crianças e jovens socialmente vulneráveis, o trabalho das rendeiras de Saubara, na Bahia, e a importância da canção popular como instrumento de resistência e denúncia do autoritarismo militar completam o bloco dos temas que trabalham a história e a cultura nesta edição. Para finalizar, nossa Revista inclui dois consistentes artigos que contemplam o debate sobre temas relativos à cultura e extensão universitária. A interpretação do Regimento de Cultura e Extensão é uma das contribuições originais. Ele mostra, entre outros aspectos, o caráter interativo e transformador entre Universidade e sociedade, ao procurar aproximar a comunidade do universo acadêmico. Uma tarefa nada fácil, mas que, nos últimos anos, tem obtido resultados altamente satisfatórios, especialmente no Estado de São Paulo. Outra experiência semelhante vem do Estado de Santa Catarina, mas desta vez envolvendo significativa contribuição para o desenvolvimento socioambiental. Trata-se do projeto Troca de Saberes, cujo objetivo precípuo é estimular a prática da cidadania como forma de participação sobre as mudanças socioambientais em suas diversas formas e práticas. Pelo exposto neste editorial, o caro leitor tem apenas uma rápida ideia do conteúdo da Revista e não poderia ser diferente. Desde a entrevista, até o último artigo, pode-se constatar a presença de temas e reflexões que vão ao encontro de questões contemporâneas ainda abertas ao debate acadêmico, mas não só. A sociedade, as comunidades, as associações de classes, os pequenos agrupamentos sociais, enfim, os cidadãos na sua plenitude, devem também engajar-se nessas discussões, que não estão circunscritas apenas à academia. São problemas a serem pensados e resolvidos por todos nós, indistintamente. Os propósitos da Revista Cultura e Extensão USP são justamente esses. Estimular o debate e a interlocução sobre os problemas latentes do nosso país. professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e editor associado da Revista Cultura e Extensão USP – e-mail: [email protected] Walden y r C aldas 6 Editorial Revista Cultura e Extensão USP Volume 10, nov. 2013 7 8 Editorial e n t revis t a interview Revista Cultura e Extensão USP Volume 10, nov. 2013 9 Renato Tamaoki Observar, absorver, dissolver-se (a partir da obra de James P. Blair) fotomontagem ano: 2013 10 entrevistainterview O Que Falta Discutir sobre a Saúde Pública Brasileira What is Missing over the Discussion about the Brazilian Public Health Muito tem se falado sobre a situação do sistema de saúde no Brasil, tanto em Marina Salles razão das manifestações que ocorreram no país durante o final do primeiro semestre deste ano, como também em função da lei do Ato Médico e da criação do Programa Mais Médicos. Mas, além das alternativas apresentadas pelo governo, o que mais poderia ser proposto para atender às reivindicações por melhorias na rede pública de saúde? Miguel Srougi, urologista e professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em entrevista para a Revista Cultura e Extensão USP, procura colaborar com a resposta a essa pergunta, oferecendo um novo panaroma sobre questões já tão debatidas atualmente em nosso país. A partir de dados relevantes e de um ponto de vista crítico sobre o que interfere de forma direta no dia a dia da população, ele traz à tona preocupações que devem suscitar novas dúvidas a respeito dos prós e contras do atendimento de saúde oferecido aos brasileiros em regiões mais afastadas e nos grandes centros urbanos. Universidade de São Paulo. Escola de Comunicações e Artes, São Paulo, Brasil Revista Cultura e Extensão USP – O número de médicos formados por instituições públicas e particulares tem sido suficiente para suprir a demanda por esses profissionais no país? Miguel Srougi – Na verdade, o mundo inteiro tem falta de médicos, essa é uma constatação que agora está se tornando clara. Calculou-se que, nos Estados Unidos, faltam aproximadamente 15.200 médicos na atenção à saúde básica. No estado do Texas há menos médicos por habitante que no Brasil. Na Inglaterra, os hospitais de emergência na região de Yorkshire não contam com médicos à noite, sendo que têm sido convocados militares médicos do Exército para cobrirem o serviço de emergência durante esse período. O que eu estou querendo dizer é que o mundo inteiro está precisando criar mecanismos para oferecer mais médicos para as populações. Uma das razões para o aumento da demanda no setor está relacionada ao envelhecimento da população. Nossa pirâmide etária está quase de cabeça para baixo e os idosos têm alta demanda por assistência médica. Isso significa que está crescendo o número de pessoas que precisam ser tratadas, apoiadas, orientadas, e os médicos, embora venham aumentando em número, não estão sendo suficientes. Nos últimos anos, o número de Rev. Cult. e Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.11-17, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p11-17 Miguel Srougi é urologista e professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 11 vagas nas escolas médicas brasileiras aumentou em quase 70%, apesar disso, a quantidade de médicos por habitante está aquém do ideal. O governo precisa adotar medidas para compensar um pouco esse desequilíbrio, o que é algo difícil quando ações são pautadas por interesses pessoais, de grupos ou com função eleitoreira. RCE – A criação de novas Escolas de Medicina seria uma alternativa viável para suprir a falta de médicos no Brasil? Além disso, de que maneira uma melhor distribuição dessas instituições de ensino poderia contribuir para a melhoria do quadro de inoperância do sistema de saúde nas áreas mais afastadas? MS – Aumentar a quantidade de escolas médicas é uma necessidade, mas é também algo muito caro, sendo que você precisa ter não só uma tremenda estrutura física e de equipamentos, como também, dispor de professores, o que não é muito simples. Os professores existem. Todos os formados na área Médica são professores em potencial, mas se você quiser criar escolas médicas boas é necessário que eles estejam preparados para isso. É importante que os professores tenham vocação genuína e saibam como prover educação médica e não apenas transmitir conhecimentos. A criação de escolas em locais mais distantes é talvez menos eficaz do que possa parecer à primeira vista, já que os médicos não se fixam nos lugares em que fizeram o seu curso de Graduação, mas sim em lugares atraentes para o exercício profissional. Nesse sentido, espalhar as escolas médicas tem um valor social: faz com que as pessoas que vivem nas zonas mais afastadas dos grandes centros possam se decidir pela carreira, sem a necessidade de se deslocar para longe, o que é caro e às vezes impossível para quem vem de áreas remotas. Agora, em termos de fixar os indivíduos no local, tal estratégia não funciona, o pessoal se forma e vai para onde há oportunidades de crescer profissionalmente. De qualquer maneira, o número de médicos precisa crescer e uma proposta que me atrai seria, ao invés de criar mais escolas médicas, aumentar o número de alunos por meio de algum financiamento governamental que permitisse o aproveitamento da infraestrutura que já existe. Aumentando em 20% ou 30% a quantidade de alunos em instituições existentes seria possível usar uma estrutura montada e rapidamente começar a incorporar estudantes à graduação. Essa proposta é perfeitamente assimilável para a maioria das escolas médicas. Se fôssemos criar novas escolas, talvez em 2020 ainda não se teria avançado nessa questão. RCE – E o Programa Mais Médicos seria uma solução nesse sentido? MS – O governo brasileiro adotou uma medida simples de grande apelo popular com a criação do Programa Mais Médicos, mas essa solução é falaciosa porque os grandes gargalos da saúde pública brasileira são a ausência de infraestrutura e de gerenciamento eficiente; também há falta de recursos financeiros, de interesse sincero e de sensibilidade dos nossos governantes. Com isso, não se criou um sistema de saúde que ofereça atendimento de qualidade, principalmente, na assistência primária. Colocar médicos estrangeiros nas pequenas cidades gera, então, um tremendo apelo, de repente uma cidade que não tinha nenhum profisional vai contar com dois ou três médicos; mas eles não vão conseguir proporcionar saúde minimamente decente, o que eles vão fazer qualquer outro profissional paramédico teria condições de fazer também. Durante semanas o governo e a imprensa oficialista documentaram insistentemente 12 O Que Falta Discutir sobre a Saúde Pública Brasileira a chegada desses médicos, quiseram criar a impressão de que estava chegando uma legião de estrangeiros no Brasil. Entrevistavam sempre as mesmas pessoas, contando as histórias de uns e de outros, enaltecendo suas características humanísticas, que nem sabemos se são reais, procurando seduzir o povo brasileiro, o que acho que conseguiram temporariamente, até que a empulhação apareça de forma clara. Neste ano o Brasil vai formar 13 mil médicos; se esses médicos tivessem apoio financeiro, material e a colaboração de outros agentes da saúde, tenho a impressão de que uma parcela deles aceitaria de bom grado ir trabalhar na área de saúde básica em regiões remotas. Ao invés de financiar Cuba, estaríamos pagando para os brasileiros, oferecendo oportunidade e vida digna para os nossos cidadãos. RCE – Em sua opinião, o que tem motivado esses médicos estrangeiros a virem para o Brasil? MS – Os médicos que estão migrando para cá vieram porque estão mal nos países deles. Só por isso; não porque o Brasil tem um projeto maravilhoso. O assunto tem sido focado nos valores humanos desses profissionais, que afirmam terem vindo para cá a fim de ajudar os brasileiros, mas que vão ganhar 80 vezes mais do que eles ganham em seus países de origem e vão viver em um país lindo, onde, apesar de existir pobreza, prevalece a liberdade. Então, fica fácil entender o porquê do trabalho humanitário. Você acha que os médicos cubanos vão melhorar alguma indecência que nós temos na saúde? Até nas grandes cidades estamos cheios de problemas; sabe quanto tempo um doente demora para ser internado na Divisão de Urologia do Hospital das Clínicas de São Paulo? Em média, são seis meses; se ele tiver câncer, serão três ou quatro meses; se ele for portador de um rim bloqueado e sem funcionar, poderão ser até oito meses. Atualmente, existem 1.450 pacientes na fila de espera para internação nessa Divisão e a Urologia representa apenas 1/35 do Hospital das Clínicas. RCE – E o que motivaria os brasileiros a deslocar-se para atender a demanda por profissionais nas áreas periféricas? MS – Nenhum médico fez juramento de pobreza. Ele quer trabalhar onde ele possa viver bem, onde ele possa se atualizar, onde ele tenha colegas com quem conversar, onde ele tenha acesso aos congressos, às bibliotecas, às revistas, aos eventos científicos que o façam crescer. É óbvio que dinheiro também tem valor, mas a prova de que a questão não é material, como o governo tenta insinuar (os médicos brasileiros seriam gananciosos), é que nas cidades pequenas os prefeitos pagam quantias de dinheiro absurdas para os médicos irem para lá, mas a maioria se nega a prestar esse serviço. Tem lugar que oferece de 15 mil a 20 mil reais de salário para que os médicos aqui do Brasil trabalhem no interior, só que logo surgem problemas. Primeiro que, após poucos meses, os salários frequentemente deixam de ser pagos e os médicos acabam desistindo. Vão embora e cidades com prefeitos desonestos têm que oferecer salários cada vez mais altos, não pela ganância médica, mas pela perspectiva de calote aos médicos. Segundo que, algumas vezes, nas cidades pequenas, os médicos fazem mais sucesso que os prefeitos e isso cria uma dinâmica perversa. O médico atende à população carente e o prefeito, enciumado, para de pagar o profissional. Esse é outro motivo que obriga prefeitos a oferecerem salários maiores, que não serão honrados. Rev. Cult. e Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.11-17, nov. 2013 13 O Mais Médicos caiu do céu para os prefeitos mal intencionados, pois agora eles podem demitir médicos contratados, substituindo-os por profissionais oferecidos pelo Governo Federal. Os médicos passam a ganhar R$10 mil por mês e a prefeitura fica livre desse ônus. RCE – Além da bolsa auxílio e de uma ajuda de custo para moradia, algum dos nossos direitos trabalhistas está reservado aos médicos que participam do programa? Essa medida não é discutível? MS – O dinheiro que vai ser pago aos médicos do programa é injusto e ilegal. Para uma sociedade pobre como a nossa, essa quantia parece, à primeira vista, um salário imenso, mas essa pessoa não tem 13°, não tem férias, direito trabalhista, fundo de garantia, não tem nada, tampouco progressão na carreira. Totalmente irregular e inconstitucional. Demonizando os médicos brasileiros, o governo conseguiu implementar essa medida e, por isso, ninguém tem coragem de reclamar. E, assim, essa situação é omitida, enquanto o governo se utiliza de eufemismos e repete o óbvio, que é necessário, sim, atender aos mais pobres: “precisamos pensar nesses outros seres humanos”. RCE – Como o senhor encara a questão da humanização da Medicina? Quais melhorias poderiam ser adotadas nesse sentido? Aumentar o contato dos estudantes com os pacientes e oferecer mais disciplinas relacionadas ao tema na grade do curso são alternativas? MS – Os médicos se preocupam com isso mais do que as pessoas imaginam. O nosso curso de Urologia é composto de nove períodos, sendo que dois deles são só sobre humanização. A gente não fala em rim, bexiga, próstata. O que acontece é que o processo de humanização é um processo complexo. Você não ensina humanização em uma sala de aula, você ensina pelo exemplo. Por isso é preciso ter professores comprometidos com essa ação. As Faculdades de Medicina discutem isso a todo momento, mas falta implementar uma melhor estratégia prática a respeito. É preciso identificar os verdadeiros modelos e colocá-los para ensinar. Os médicos ligados à Academia gostam de dar aulas para os alunos de graduação, muitas vezes com o objetivo de engrossar seus currículos, mas, em muitos casos, estão despreparados para transmitir ensinamentos humanísticos. As escolas médicas deixam de reconhecer essa situação. RCE – Em relação à proposta de serviço obrigatório a ser realizado no SUS por estudantes de Medicina que ingressarem na faculdade a partir de 2015, qual a sua opinião? MS – Essa é outra medida equivocada. Você não pode ferir o direito à liberdade das pessoas; você não pode obrigar alguém a trabalhar onde não quer. É preciso atrair e não obrigar, pois essas são coisas bem diferentes. Depois das manifestações de junho, o governo propôs um aumento do curso de graduação médica de seis para oito anos, incorporando dois anos de estágio obrigatório no SUS. Pretendia aumentar a mão de obra barata para a assistência às populações carentes, sem compromisso sério com os estudantes de Medicina – ao lançá-los à prática clínica totalmente despreparados para tal – e, pior do que isso, colocando em risco a saúde dos desassistidos. Outro assunto importante que deveria receber atenção, inclusive antes de serem feitas novas propostas de mudança no curso de Medicina, diz respeito à criação de residências médicas. O Brasil forma 13 mil médicos e tem agora 7 mil vagas no país, o que 14 O Que Falta Discutir sobre a Saúde Pública Brasileira significa que entre 5.000 e 6.000 estudantes ficam sem treinamento todos os anos. O governo nunca deu importância para isso e agora fala em criar residências sem compreender a real dimensão do que essa questão representa. Abrir novas vagas não é simples, você precisa ter hospitais bons e, acima de tudo, bons professores e programas capacitados. Ademais, a proposta governamental promete um número de novas vagas para residência, que até para qualquer iniciante no tema, é notoriamente irreal e inexequível. Propuseram, também, que os hospitais filantrópicos passasem a atender mais doentes carentes, como forma de pagar suas dívidas tributárias. Nada mais surrealista, já que essas instiutições tornaram-se inadimplentes justamente por atender pacientes do SUS e não serem ressarcidas honestamente pelo Governo Federal. Para se ter uma ideia do descalabro, em hospitais públicos que dão atendimento a pacientes do SUS, uma mulher submetida a uma cesariana custa para o hospital R$ 2.038,00, sendo que o SUS paga ao hospital cerca de R$ 550,00 pelo procedimento, que inclui R$ 150,00 para a equipe médica e R$ 290,00 para o hospital. RCE – De que maneira a Faculdade de Medicina da USP contribui para atenuar essa falta de vagas em residência médica? MS – A FM-USP cumpre seu papel social nesse processo. Formam-se, a cada ano, em nossa institutição, 180 alunos e, segundo o Ministério da Educação (MEC), as escolas médicas têm que oferecer 70% de vagas de residência em função do seu número de alunos. Considerando essa porporção, a FM-USP deveria disponibilizar em torno de 150 vagas anuais para novos residentes, mas atualmente oferecemos 540. Estamos ajudando a formar médicos graduados em todo o país, suprindo a defiência de outras escolas e retribuindo à sociedade, de forma comprometida, o apoio que dela recebemos. RCE – Qual a verba destinada à saúde pública no Brasil? MS – O Governo Federal destinou ao Ministério da Saúde em 2012 mais ou menos R$ 90 bilhões para gerenciar todos os níveis de atenção à saúde. Mas, no fim desse mesmo ano, esse Ministério deixou de gastar R$ 9 bi por inoperância e incompetência dos seus gestores. Com R$ 9 bilhões poderiam ter sido construídas e equipadas 18 mil Unidades Básicas de Saúde, essas clínicas dispersas pela periferia e locais mais pobres, onde os pacientes são atendidos de forma resolutiva, reduzindo a demanda incontrolável nos hospitais públicos. Outro cálculo demonstra que, com R$ 9 bilhões, poderiam ter sido construídos e equipados cerca de 90 hospitais, com 200 leitos cada, para atender às pessoas carentes. O Brasil perde, com a corrupção nos órgãos públicos, cerca de 70 bilhões de reais por ano, segundo a Fundação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), ou R$ 200 bilhões, de acordo com a ONU. Mais que o dobro dos recursos que o Ministério da Saúde dispõe para dar atendimento médico a todo o povo brasileiro, de assistência primária a campanhas de vacinação e prevenção de doenças, fornecimento de medicamentos, finaciamento à rede de hospitais e serviços de emergência. Se eles conseguissem preservar um terço desse dinheiro manchado, estariam disponíveis cerca de R$ 60 bilhões, que poderiam ser investidos na saúde, contribuindo para atenuar a situação que enfrentamos hoje. O pouco caso com a saúde reflete-se em outra estatística vergonhosa. A Argentina destina mais ou menos 20% do seu PIB para a saúde, a Colômbia 18% e o Brasil 8,7%, menos Rev. Cult. e Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.11-17, nov. 2013 15 do que a média africana, que é da ordem de 10,5%. Em resumo, e apesar do discurso oficial mentiroso, destinam-se poucos recursos para a área da saúde brasileira e essa improcedência é agravada pelos desvios criminosos e as perdas impostas pela inoperância governamental. RCE – Pensando nessas comparações, que exemplos o Brasil poderia seguir? MS – No Canadá também faltam médicos, mas lá eles optaram por medidas consistentes para enfrentar o problema. Contrataram profissionais de outros países e fizeram um ranking de universidades. Assim, se o médico vem de uma universidade boa, ele não precisa fazer o exame para ir trabalhar lá e os que vêm de faculdades mal rankeadas fazem o exame. Uma vez aprovados, os médicos ocupam postos na saúde pública em cidades pequenas, recebem um salário condigno, auxiliam as esposas a terem empregos estáveis, seus filhos têm acesso à escola gratuita e de qualidade e o médico também pode manter relação com uma rede médica que lhe proporciona acesso a bibliotecas digitais, eventos e outros contatos da área. Esse sim é um projeto completo para importar médicos. No Brasil há muito que se fazer e uma solução seria fixar médicos oferecendo boas condições de vida para eles; outra ação relevante seria oferecer uma ajuda real para que as pessoas carentes pudessem sair do estado de pobreza. O Bolsa Família foi uma medida boa, mas ela está ruindo por um motivo muito simples: esse dinheiro é distribuído para as pessoas, elas ascendem socialmente, começam a comprar comida, roupa, objetos pessoais – isso foi uma coisa grandiosa – só que o governo esqueceu de exigir que os filhos dessas famílias crescessem do ponto de vista educacional. Claro, existem as regras, o Bolsa Família exige que as crianças frequentem a escola, que tenham carteira de vacinação, tudo direito, mas o governo não cobra isso e vai cobrar menos agora, porque é época eleitoral. As famílias ascenderam, os filhos não estão estudando, não têm saúde e o que vai acontecer quando essas crianças forem adultas? O mais provável é que elas migrem de volta para a pobreza, porque, nas sociedades contemporâneas, sem educação e saúde ninguém sai da indigência. Além disso, seria possível privilegiar um programa que já existe, o Programa de Saúde da Família (PSF), que foi idealizado pelo professor Adib Jatene e tem como base a criação de equipes multiespecialistas de saúde em comunidades carentes. Essas equipes atendem um certo número de habitantes e dão apoio a eles, sendo formadas por médicos, enfermeiros, dentistas, psicólogos e assistentes sociais. Estruturado de maneira simples, o programa representa um modelo excelente para suprir a necessidade de atendimento à população de baixa renda. O problema é que menos da metade da populacão brasileira tem direito ao PSF e, em muitos casos, as equipes se dissolveram por falta de pagamento. Nós médicos também erramos com a insistência na aprovação da lei do Ato Médico. É importante permitir que profissionais paramédicos atuem nas pequenas cidades nos casos de assistência primária. Criar um posto de saúde e colocar para trabalhar nesse local enfermeiros, psicólogos e farmacêuticos é uma saída para começar a mudar o quadro de assistência à população que reside em locais remotos, onde médicos não querem clinicar. RCE – A busca pela aprovação da lei do Ato Médico não é justificável no contexto da saúde pública brasileira? MS – O Ato Médico tem sentido quando o assunto diz respeito ao atendimento de 16 O Que Falta Discutir sobre a Saúde Pública Brasileira moléstias complexas ou quando procedimentos mais sofisticados são necessários para uma ação médica eficiente. Contudo, sua proposta carrega certo traço corporativista, por não admitir qualquer ação em saúde que não seja realizada por médicos. Em países pobres e com carência desses profissionais não se pode impor o Ato Médico. Nesses locais, outros profissionais da área da saúde, com certo preparo e experiência prática, podem suprir com relativa eficiência a ausência de médicos no trato de problemas básicos de saúde. Até nos Estados Unidos, rigoroso com a prática da Medicina, enfermeiras e paramédicos em saúde podem prescrever medicação, examinar doentes, ajudar em cirurgias e isso aumenta o número de profissionais disponíveis para o atendimento. RCE – Por fim, é possível afirmar que a discrepância entre o número de médicos especialistas e generalistas prejudica o atendimento à saúde básica, principalmente na rede pública de saúde? MS – A fragmentação é uma tendência não só da Medicina, mas também de outras áreas do saber. O conhecimento médico está se tornando muito vasto, muito específico, então não dá para um profissional dominar todos os avanços da Ciência Médica. O sujeito, quando faz Urologia, começa a estudar um campo específico e se torna um grande conhecedor do assunto para poder exercer a função dele com muito mais facilidade, eficiência e êxito. Uma das frases, cujo autor ignoro, mas que reflete com graça o momento médico atual diz que “o generalista entende nada de quase tudo e o especialista entende tudo de quase nada”. Mas essa é uma tendência própria do ser humano, querer conhecer profundamente a área em que atua. Existe um problema também de recompensação financeira: os especialistas ganham muito mais do que os generalistas. Essa situação cria insatisfações e, às vezes, desalento, pois, mesmo os médicos impregnados de sentimentos humanísticos e que se colocam ao lado dos mais humildes, também têm aspirações de propiciar uma vida digna para si mesmos e para as suas famílias. Como um bom governo agiria para corrigir essa distorção? Criando facilidades e dando incentivos para se trabalhar na área básica. Como se cria isso? Como o Canadá fez, pagando um salário melhor, oferecendo moradia para o médico viver descentemente, garantindo uma boa estrutura de direitos para ele e chances de o médico continuar se aperfeiçoando. Assim você atrai gente para a saúde pública. Criticar os médicos é fácil, mas essa pessoa iria para um rincão trabalhar nas condições oferecidas a essa categoria profissional? Ninguém vai, ninguém quer viver assim. graduanda do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e bolsista da Revista Cultura e Extensão USP – e-mail: [email protected] MARINA SALLES + C u lt ur a e E x t e n s ã o n a I n t er n e t Saiba mais sobre dois projetos de extensão desenvolvidos pela USP em: www.prceu.usp.br/revista Envelhecer Sorrindo: A professora Maria Luiza Frigerio, da Faculdade de Odontologia da USP, fala sobre o projeto que trata de pacientes idosos. Poli Cidadã: Antonio Luís Mariani fala sobre a iniciativa que procura oferecer novas soluções para demandas sociais, de modo a contribuir com o aprendizado dos alunos da Escola Politécnica da USP. Rev. Cult. e Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.11-17, nov. 2013 17 18 O Que Falta Discutir sobre a Saúde Pública Brasileira O P I N I Ã O opinion Revista Cultura e Extensão USP Volume 10, nov. 2013 19 Renato Tamaoki A cidade é o absurdo (a partir das obras de Clifton R. Adams e Xtazer) fotomontagem ano: 2013 Trabalho finalista da 21ª edição 20 do Programa Nascente OPINIÃOopinion Revista de Cultura e Extensão Universitária: Forma e Abrangência Culture and Universitary Extension Review: Form and Comprehensiveness Para refletir sobre o significado de uma revista de Cultura e Extensão de uma universidade é necessário pensar sobre o objetivo da própria área de Cultura e Extensão no âmbito acadêmico. Nesse sentido, é possível promover uma ampla discussão sobre o conceito de Cultura, que está associado, em um primeiro momento, aos usos e costumes de um povo. Contudo, observamos que, atualmente, o conceito de Cultura tem sido minimizado, restringindo-se às manifestações artísticas de um povo. Cabe observar, ainda, que a criatividade e a arte são partes significativas de qualquer ação humana, seja ela artística ou não. E a universidade, uma instituição formadora por natureza, exerce um papel fundamental na formação cultural de uma sociedade. Por definição, entende-se por Extensão todas as atividades desenvolvidas no âmbito da universidade que, de alguma maneira, mantenham contato direto com a sociedade. Uma universidade tem uma ampla gama de atividades produtivas, formando profissionais nas mais diversas áreas do conhecimento. Ter um papel ativo no atendimento à população é fundamental para promover uma formação adequada de seu alunado, além de ser fonte para o fomento da pesquisa científica. A atividade de Extensão aproxima a universidade e a sociedade e, dessa maneira, amplia a divulgação dos resultados de pesquisa, o que tem sido feito, primordialmente, por meio de periódicos direcionados aos pares e na linguagem própria de cada área do conhecimento. Atualmente, são publicações desse gênero que têm orientado os processos avaliatórios e de ascensão na carreira docente na Universidade. As atividades de Cultura e Extensão sempre tiveram espaço no âmbito da universidade; entretanto, em 1988, o Ministério da Educação e Cultura decidiu compartimentalizar as atividades universitárias em quatro áreas: Graduação, Pós-Graduação, Pesquisa e Cultura e Extensão. Desde o início, sempre foram claras as ações das áreas de Graduação, Pós-Graduação e Pesquisa; entretanto, a área de Cultura e Extensão tornou-se mais abrangente e Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.21-24, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p21-24 Diana Helena de Benedetto Pozzi Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina, São Paulo, Brasil 21 abstrata. Para alguns, ela teria sido criada com o objetivo de permitir que fosse exercida uma atividade remunerada na universidade, produzindo eventos para os docentes que dela participassem. Outros concluíram que esta área deveria compreender todas as atividades que não fossem próprias das demais áreas. Contudo, cabe observar que as áreas de Graduação, Pós-Graduação e Pesquisa exercem atividades de Extensão e participam da formação da cultura para bem atender os seus fins. Sendo assim, qual seria a função de uma área de Cultura e Extensão na universidade? Eis a pergunta que permanece suscitando debates, mas sem chegar a conclusões. As múltiplas interpretações sobre essa área favorecem uma desvalorização da Cultura e Extensão no âmbito acadêmico. Se sua finalidade fosse tão somente aumentar proventos institucionais de docentes, poder-se-ia classificá-la como uma atividade administrativa e não como atividade de ensino e pesquisa. Por esta razão, têm sido criadas normas para reger o processo de avaliação nas quais sejam discriminadas as atividades remuneradas e não remuneradas. A área de Cultura e Extensão tem âmbito muitíssimo mais amplo do que as atividades de pós-graduação lato sensu e, principalmente, do que cursos de especialização voltados para profissionais de mercado bem remunerados em busca de uma eventual promoção na carreira. A maioria dos cursos ministrados em uma universidade pública é programada em função do aprimoramento profissional em áreas nas quais os profissionais também precisam se aprimorar, contudo, sem ter ônus financeiro. Ao mesmo tempo, a área de Cultura e Extensão está vinculada também à Graduação, Pós-Graduação e Pesquisa, uma vez que proporciona uma melhor formação de graduando e pós-graduandos, além de proporcionar, através de suas “atividades de campo”, uma grande fonte de questionamentos que podem orientar uma pesquisa original e de ótima qualidade. Dessa maneira, a Cultura e Extensão não deve ser entendida como uma área na qual são colocadas as atividades que não se encaixam na classificação tradicional de Graduação, Pós-Graduação e Pesquisa e que habitualmente são rotuladas como “outros”. A Cultura e Extensão é a área na qual todas as demais se encontram; um espaço no qual é permitida e desejada uma linguagem comum e acessível a toda a sociedade, ao invés de uma linguagem acadêmica e, principalmente, vinculada a áreas do conhecimento cada vez mais específicas. Notoriamente, nem mesmo os acadêmicos das diferentes áreas entendem essas diferentes linguagens. Assim, cabe à área de Cultura e Extensão fazer essa “tradução” e levar à sociedade o conhecimento produzido pela Universidade, de maneira que, com isso, permita à população em geral usufruir, se aproximar e querer dela participar. Assim, a universidade deixaria de ser encarada como uma instituição de elite e alheia à sociedade. Por que criar uma revista de Cultura e Extensão? A divulgação da produção acadêmica já se faz por diferentes meios, inclusive por periódicos. A atividade docente tem sido avaliada dessa maneira. Então, qual é a finalidade de mais um periódico? Quantos periódicos específicos utilizam uma linguagem plural que alcance toda a população – acadêmica e não acadêmica? Muito poucos. Fica claro que há uma necessidade de ampliar esse espaço e atingir a um público mais amplo. A cultura da sociedade pede por informação e é obrigação da universidade fornecê-la numa linguagem acessível e com uma apresentação de qualidade. 22 Revista de Cultura e Extensão Universitária: Forma e Abrangência Poder-se-á argumentar que estamos na era da informática e que uma revista não estaria acompanhando o seu tempo, uma vez que as informações eletrônicas disponíveis pela rede teriam alcance muito maior, particularmente entre os mais jovens. Eis mais um aspecto altamente discutível. Umberto Eco e Jean Claude Carrière escreveram, em 2009, Não contem com o fim do livro. De acordo com os autores, pinturas e fotografias, assim como o teatro, o cinema e a televisão, coexistem e, da mesma maneira, o livro também irá permanecer. Poderíamos lembrar, ainda, as gravações musicais e os concertos. As gravações podem ser obtidas com facilidade e ouvidas em qualquer local, mas os concertos permanecem, e com grande procura pelos aficionados. Todas essas atividades são buscadas também pelos jovens. Isso fica bem claro ao se entrar em uma livraria e observar o perfil de sua clientela. Outro argumento é que os docentes precisam ter sua produção avaliada e que uma revista de Cultura e Extensão não atende a esse propósito, uma vez que as revistas que têm sido incluídas para avaliação são aquelas ligadas às áreas específicas, que estão indexadas e atendem aos padrões preconizados pela área de pesquisa. Ora, esta é uma conduta que não pode ser considerada correta e definitiva e que pode e deve ser reformulada. Se considerarmos a importância social da Cultura e Extensão, inclusive seu papel junto à Graduação, Pós-Graduação e à Pesquisa, não há como manter esse tipo de conduta depreciativa em relação a uma área que é essencial para a qualidade da produção das demais. Há quem sugira que uma revista de Cultura e Extensão seria uma maneira de os docentes publicarem trabalhos feitos em suas áreas de especialização que não estão em conformidade com os requisitos das revistas especializadas. Contudo, esta ideia implicaria na confecção de uma revista que atenderia a especialistas, com artigos escritos em suas linguagens características e inteligíveis só para os seus pares. Ficaria até a sugestão de que seria, otimistamente, uma revista de segunda classe. Ora, uma revista que seguisse esse padrão não iria encontrar espaço na população em geral e nem mesmo na comunidade acadêmica. E até mesmo sua validade em processos de avaliação seria discutível. Esses seriam os argumentos contrários a uma revista não especializada e escrita numa linguagem acessível aos leitores de formações diversas, como é o caso de uma publicação que deve atender àquilo que se espera de uma área de Cultura e Extensão. Trata-se de um modo pelo qual a academia pode colaborar com aprimoramento da sociedade. Por outro lado, existem os argumentos que explicam e justificam a existência de uma revista de Cultura e Extensão. Temos uma sociedade que, como todas as outras, está sempre se formando e se transformando. A procura pelo conhecimento é evidente e é o conhecimento que propicia a cultura. As fontes de informação são múltiplas e variadas; uma das mais acessíveis atualmente é a internet, com inúmeros locais abertos à população tanto para propagar informações quanto para buscá-las. Face àquilo que todos nós defendemos – a liberdade de expressão – as informações propagadas são as mais variáveis e nem sempre são reconhecidamente válidas. Devemos reconhecer, contudo, que tais informações estão em uma linguagem mais acessível à população em geral. Qualquer um pode escrever qualquer coisa e, mesmo em alguns sites, como, por exemplo, na Wikipédia, existe a possibilidade de qualquer um alterar ou inserir as informações que desejar, modificando o texto original. Dessa maneira, a sociedade não está bem informada por essa via. É fato que podem existir erros em qualquer publicação, Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.21-24, nov. 2013 23 assim como se pode descobrir que algo escrito hoje pode estar errado após algum tempo. Tudo isso implica na necessidade de uma formação crítica dos leitores de qualquer meio de divulgação e, para isso, é necessário não somente a informação, mas também a formação, ou seja, a cultura. Fica aparente a relevância de fontes de informação mais seguras e acessíveis para a sociedade no seu todo, tal qual uma revista publicada e inserida na rede, com artigos escritos por pessoas que têm conhecimento reconhecido a respeito do tema, em linguagem acessível para todos e avalizados por um corpo editorial pertinente. Afinal, uma universidade – constituída por profissionais e acadêmicos – tem uma obrigação com a sociedade que a sustenta e, consequentemente, tem o dever de se comunicar com essa sociedade de uma maneira inteligível. Dessa maneira, essa mesma sociedade poderá se beneficiar, assim como perceber a Universidade não só como uma instituição de elite, mas como algo que faz parte da sociedade. Uma revista de Cultura e Extensão deve, portanto, ter esse objetivo e, consequentemente, ser devidamente valorizada como atividade de ensino lato sensu devido a sua ação formadora e informadora. REFERÊNCIAS ARRUDA, M. A. do N. Carta de São Paulo – Políticas Públicas de Cultura e Extensão Universitária. 2010. Disponível em: <http://www.prceu.usp.br/eventos/ proext/cartasp.pdf>. Acesso em: 28 ago 2013. ECO, H; CARRIÈRE, J.-C. Não contem com o fim do livro. São Paulo: Editora Record, 2010. POZZI, Diana Helena de Benedetto. I Seminário sobre Revistas de Cultura e Extensão: breve relato. Revista de Cultura e Extensão USP, Brasil, v. 8, p. 11-12, out. 2012. ISSN 2316-9060. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rce/article/view/47731>. Acesso em: 01 Nov. 2013. doi:10.11606/issn.2316-9060.v8i0p11-12. I SEMINÁRIO SOBRE REVISTAS DE CULTURA E EXTENSÃO. Disponível em: <http://www.prceu.usp.br/revista/seminario.php>. WIKIPÉDIA.< http://pt.wikipedia.org>. professora doutora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e editora da Revista Cultura e Extensão USP – e-mail: [email protected] D iana H elena de B enedetto P o z z i 24 Revista de Cultura e Extensão Universitária: Forma e Abrangência Revista Cultura e Extensão USP Volume 10, nov. 2013 25 26 Revista de Cultura e Extensão Universitária: Forma e Abrangência a r t i g os articles Revista Cultura e Extensão USP Volume 10, nov. 2013 27 Renato Tamaoki Todo céu que me resta (a partir das obras de B. Anthony Stewart e Michael Wolf) fotomontagem 28 artigosarticles Canção Popular Versus Autoritarismo (Os Militares no Poder) Pop Music vs Authoritarianism (Military Power) RESUMO A política nacional e a música popular brasileira sempre estiveram juntas. Desde a época do Estado Novo (1937-1945), com Getúlio Vargas, e até mesmo durante a Velha República, compositores e homens da administração pública, especialmente dos três poderes, vêm construindo a história do nosso país até nossos dias. Embora juntas, cada qual trilhou caminhos diferentes, em alguns momentos convergentes e noutros divergentes. Os políticos, em que pese todos os percalços e obstáculos inerentes ao jogo de interesses notórios nessa atividade, atravessaram décadas defendendo causas nobres e espúrias, democráticas e antidemocráticas. Durante muito tempo e ainda um pouco atualmente, a sociedade brasileira se vê surpreendida por falcatruas, corrupção e negociatas ilícitas, que colocam em risco os verdadeiros princípios republicanos da democracia no Brasil. O caso mais recente é chamado de “mensalão” pela mass media. Ao lado desse quadro, sabemos que nossa história está entrecortada de golpes contra presidentes legitimamente eleitos, reflexos da nossa frágil democracia. O último acontecimento sinistro dessa natureza se deu entre 1964 e 1985, com a presença dos militares, que fizeram suas leis e tomaram decisões à revelia da Constituição. A música popular brasileira participou deste episódio, contestando e denunciando por meio do discurso poético. Palavras-chave: Canção. Militares. Autoritarismo. Censura. Democracia. Waldenyr Caldas Universidade de São Paulo. Escola de Comunicações e Artes, São Paulo, Brasil ABSTRACT The national politics and the Brazilian pop music have always been united. Since the New State time (1937-1945) with Getúlio Vargas and even during the Old Republic, composers and men of public administration, especially from the three public powers, are building the history of our country until today. Even though together, each of them trod different paths. In some instances convergent but divergent at others. The politicians, in spite of all the setbacks and obstacles inherent in the game of interests notorious in this activity, Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.29-40, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p29-40 29 crossed decades championing noble causes and spurious ones, democratic goals and antidemocratic ones. For a long time and also a bit nowadays, the Brazilian society finds itself surprised by shenanigans, corruption and illicit negotiations, that endanger all the truly republican principles from democracy in Brazil. The most recent scandal is called mensalão by mass media. Alongside this, we know that our history is intersected of coups against legitimately elected presidents. The last of such a sinister event occurred between 1964 and 1985, with the presence of the military, which made up their laws and took decisions in defiance of the Constitution. Brazilian pop music actively participated of this episode, contesting and denouncing through its poetic discourse. Keywords: Song. Militaries. Authoritarianism. Censorship. Democracy. INTRODUÇÃO A música popular brasileira sempre acompanhou os acontecimentos políticos do nosso país. Seja por meio da sátira, da denúncia, da mera narrativa dos fatos ou ainda em forma de protesto. Os elogios, a exaltação e o ufanismo, completam o quadro desse binômio música/política. Assim, através desses recursos, pode-se afirmar que é possível se conhecer muito bem a história política do Brasil ouvindo canções que tratam dos diversos momentos da nossa trajetória política. Os exemplos são muitos e, para isso, vamos seguir a cronologia dos acontecimentos. Apenas como primeiro caso, comecemos pelo governo de Getúlio Vargas e, especialmente, pelo período histórico conhecido como “Estado Novo” (1937-1945). É dessa época o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) que, entre outras coisas, servia como instrumento de censura do Estado. O rádio, principal veículo de comunicação da época, era estreitamente vigiado e controlado. Na prática, censurado pelo Governo Federal, atento a todas as formas de comunicação com a sociedade. Na música popular, ou qualquer outra manifestação artística, a concepção do trabalhismo, de exaltação ao trabalho deveria estar presente. Mas não era assim que pensava uma parte dos compositores da canção popular desse período. Wilson Batista, por exemplo, sempre esteve na contramão do que desejava o Estado autoritário. Seu samba “Lenço no pescoço”, feito dois anos antes da criação do Estado Novo, não exaltava o trabalhismo como queriam as autoridades. Ao contrário, a malandragem carioca é quem ganha o destaque e uma imagem bastante simpática no texto poético da canção. Versos e rimas como, “eu tenho orgulho em ser tão vadio”, “eu vejo quem trabalha andar no miserê”, “eu sou tão vadio porque tive inclinação”, nos dão a ideia da transgressão daquele compositor. Mas, é bom que se diga: ele não estava só. Havia, nas mais diversas manifestações artísticas, uma atitude de resistência à política populista e autoritária implantada por Getúlio Vargas. Com o fim do Estado Novo, o presidente Eurico Gaspar Dutra governaria o Brasil (1946-1951). Foi um governo que se propôs a redemocratizar o país, e não poderia ser de outra forma. Com desempenho sofrível, sua gestão seria ofuscada pela volta de Getúlio Vargas (1951-1954), mas, desta vez, eleito democraticamente. Agora, a canção popular volta mais forte à cena política do país. Os compositores Armando Cavalcanti e Klécius Caldas escreveram a marcha “Maria Candelária”, expressivo sucesso do carnaval de 30 Canção Popular Versus Autoritarismo (Os Militares no Poder) 1952, que traz elementos da sátira, da denúncia e do próprio protesto. Tudo isso, claro, de forma muito bem humorada, quase um deboche, revelando-se um meio bastante inteligente de protesto contra os desmandos e a corrupção na administração pública. Assim, passados 62 anos, o texto poético dessa marchinha carnavalesca continua atual. A personagem Maria Candelária representa a imagem do funcionário público oportunista e corrupto, como em nossos dias, que usufrui de privilégios escusos, como se nada estivesse acontecendo de grave com seu comportamento. Afinal, ela goza da proteção de político de prestígio e, entre outras coisas, recebe um salário e não trabalha. Mesmo assim, “caiu na letra ó, ó, ó, ó, ó!”, o que, na época, destacava os funcionários mais graduados, de funções mais relevantes e de melhores salários. Mas, dos tempos de Maria Candelária até nossos dias, o Brasil mudou em muitos aspectos. Por uma questão de espaço, não podem ser discutidos aqui. Em um desses casos, porém, continuamos como há 62 anos atrás. A corrupção na administração pública, fez com que a personagem Maria Candelária atravessasse o tempo e passasse a conviver conosco no século XXI. A única diferença é que agora recebe o nome genérico de “funcionário fantasma”. Como a personagem dos anos 1930, ele também ganha muito bem, tem proteção de político corrupto e não aparece para trabalhar. Apenas vai ao Banco no dia de pagamento receber seu salário. Assim, apesar do sistemático uso da sátira, do protesto e da denúncia que se faz através da música popular brasileira, este vício espúrio permanece incólume, sem alteração na cultura política do nosso país. Não há dúvida de que, até mesmo em países onde a democracia já está consolidada, há casos de corrupção. Este exemplo, claro, não vale para o Brasil. Até porque, como todos sabemos, ainda não temos um processo democrático sólido, firme e consolidado. Em nossa trajetória política, podemos ver, pela canção popular, que as liberdades individuais nem sempre foram respeitadas. Em alguns momentos, a democracia foi arranhada, maltratada, até mesmo vilipendiada, para ceder espaço aos governantes autoritários. Resta-nos um consolo. Sabermos, por exemplo, que a canção popular em todo esse período de autoritarismo, sempre criou resistência aos desmandos do Estado autoritário. Mas, infelizmente, sabemos que, em última instância, ele deixa resquícios e vícios abomináveis que se transferem para o Estado democrático. Um deles é a corrupção: em períodos de autoritarismo, os políticos não dão qualquer satisfação à sociedade sobre as finanças e muito menos sobre a governança do Estado; o desdobramento disso não é outro senão o aperfeiçoamento da corrupção, do oportunismo e dos desmandos políticos. Não podemos nos esquecer do governo de Juscelino Kubistchek. Apesar de legitimamente eleito, quase não tomou posse. Ele recebeu o país muito fragilizado democraticamente. Isto, porém, não impediu que repetisse alguns vícios inaceitáveis durante seu mandato, que são bem próprios dos desmandos autoritários. O cantor/compositor Juca Chaves, em sua canção “Presidente bossa-nova”, faz uma sátira precisa, inteligente e bem humorada dos exageros em regalias do presidente. Algumas estrofes como “Voar, voar, voar, voar / voar, voar pra bem distante, / até Versalhes onde duas mineirinhas valsinhas / dançam como debutantes, interessante! / Mandar parente a jato pro dentista” , revelam bem as extravagâncias de um presidente com o dinheiro público. Na verdade, em que pese as inumeráveis virtudes do seu governo, este comportamento era uma Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.29-40, nov. 2013 31 herança do autoritarismo que tomou conta da política brasileira por muito tempo. Insisto em dizer que, apesar de vivermos em uma democracia à procura de sua consolidação, ainda temos políticos oportunistas que criam privilégios para si mesmos em detrimento dos cofres públicos e, por extensão, da própria sociedade. Este é o chamado crime de peculato, conhecido popularmente como “mordomia” com o dinheiro público. O presidente, como chefe do poder executivo, podia tudo. Ou, quase tudo e, praticamente, não havia contestação a não ser em forma de paródia, sátira, denúncia ou protesto por meio da canção popular. Este é, aliás, um dos motivos fundamentais pelos quais nossa democracia sempre foi tão frágil. Sempre houve, pelo menos até o governo João Goulart, certo descompasso de ideias e objetivos entre os três poderes – especialmente entre o Legislativo e o Executivo. Enfim, são imperfeições do sistema presidencialista. Entre outros motivos, essa fragilidade democrática, causada justamente por esse descompasso, facilitou o fatídico golpe militar de 31 de março de 1964. Aliás, mesmo antes da posse de João Goulart, já se vislumbrava a possibilidade de um golpe militar. Tanto é assim que, como Juscelino Kubistchek, João Goulart quase foi impedido pelos militares de assumir a presidência, em face da renúncia de Jânio Quadros. Até aquele momento, ainda tínhamos uma débil democracia. Fraca, muito fraca. Após a deposição de Goulart, porém, passaríamos a conviver com o mais longo e cruel período na nossa história política. Foram 21 anos de autoritarismo militar no poder entre 31 de março de 1964 e 15 de março de 1985. Entre tantas formas de luta contra os desmandos e as arbitrariedades dos militares, deve-se enfatizar a importância da música popular brasileira. DISCUSSÃO Em 13 de dezembro de 1968 o governo Costa e Silva instaura o AI-5 e, assim, todos os veículos de comunicação passariam a ser severamente censurados. Era o fim da liberdade de imprensa. Mesmo assim, a resistência às arbitrariedades do Estado se fazia presente, às vezes de forma velada, outras vezes explicitamente. Na canção popular, por exemplo, os compositores usavam muito o recurso do duplo sentido nas letras de suas canções. Havia um jogo linguístico, metafórico e poético que o ouvinte deveria interpretar para, enfim, entender as intenções e a mensagem do autor. É justamente nesse momento que a chamada canção de protesto reage mais intensamente às arbitrariedades do Estado autoritário. Ela assume o papel de resistência contra todas as formas de autoritarismo dos militares, como se fosse porta-voz da vontade da sociedade. Há um grande repertório dessas canções. Elas abordam os mais diversos temas como: censura, liberdades democráticas, tortura, desencanto com o país, revolução socialista, expectativa de dias melhores, imperialismo, pobreza, entre tantos outros. Mas é para apenas um aspecto que todos eles convergem: o desejo soberano de ver justiça social e liberdade democrática. Duas canções tornaram-se, especialmente, referências nesse sentido. Elas trazem um texto poético velado e explícito. São elas, respectivamente, “Apesar de você”, de Chico Buarque, feita em 1970, e “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, composta em 1968, quando a apresentou no Festival Internacional da Canção no Rio 32 Canção Popular Versus Autoritarismo (Os Militares no Poder) de Janeiro, no Ginásio do Maracanãzinho. Em sua canção, Chico Buarque faz um sutil exercício de linguagem e poesia para não demonstrar ao censor seus objetivos. Com raro talento, ele dissimula seus versos, justamente para driblar a censura. Em alguns casos, conseguiu, e noutras ocasiões, foi punido. De qualquer forma, essa punição viria mais cedo ou mais tarde, em função das arbitrariedades e dos desmandos militares. Ao contrário do que já se veiculou em diferentes ocasiões pelos mass media e mesmo em ensaios acadêmicos, o autor de “A banda” e “Roda viva” não teve, em momento algum, a intenção de dirigir sua canção “Apesar de você” à pessoa do então presidente Emílio Garrastazu Médici*. E isso não teria nenhum sentido mesmo. Chico Buarque estava pensando, isto sim, na sociedade brasileira que vivia as agruras de uma ditadura terrível e sem qualquer perspectiva de redemocratizar-se. Não por acaso, após tantas vezes proibido e intimado a prestar depoimento aos censores, o autor decidiu se autoexilar em Roma, entre os anos de 1969 e 1970, quando, afinal, pôde livremente fazer canções que permanecerão sempre em evidência no cancioneiro popular brasileiro. “Samba de Orly” é uma delas. Aquela situação era angustiante para as pessoas que sempre defenderam a liberdade. Em síntese, vivíamos uma tragédia. A censura, as prisões arbitrárias, o fechamento do Congresso Nacional, a cassação de mandato dos políticos legitimamente eleitos, mas que contestavam a ditadura, as torturas e os assassinatos de opositores do regime, são apenas algumas das sinistras condições a que foi submetida a sociedade brasileira nesse período. Pela importância histórica que adquiriu essa canção, mas também para melhor compreendermos o momento político do nosso país naquela época, vale à pena reproduzirmos alguns trechos do texto poético de “Apesar de você”. Vejamos: *Esta é a declaração de Chico Buarque sobre a canção “Apesar de você”: “Faço menos músicas dedicadas às pessoas do que as pessoas pensam. Falaram que ‘Apesar de você’ era endereçada ao Médici, quando dizia respeito à situação do país como um todo”. Entrevista concedida ao jornalista José Rezende Júnior, do Jornal Correio Braziliense em 2 de setembro de 1999. Hoje você é quem manda Falou, tá falado Não tem discussão, não A minha gente hoje anda Falando de lado e olhando pro chão. Viu? Pois bem, diante da imposição da força bélica, das baionetas empunhadas em público e da truculência militar em situações quase pueris, não havia alternativa. Lutar desarmado contra o autoritarismo terrorista do Estado era algo comparável à escolha pelo suicídio. Restavam poucas alternativas. E a que se mostrava mais eficiente era mesmo o verbo, a palavra, como forma de denúncia da tragédia que vivíamos. Uma denúncia que, seguidas vezes, precisava usar de figuras de linguagem como metáforas e metonímias, por exemplo, justamente para driblar a censura implacável que os militares instalaram no país. Nos versos, “a minha gente hoje anda / falando de lado e olhando pro chão. Viu?”, temos a exata dimensão do grau de repressão e de abatimento moral aos quais foi submetida a sociedade brasileira. É difícil imaginar, mas não há nada mais humilhante do que ter de falar de lado olhando para o chão. Esta situação só se pode entender realmente quando vivida na prática. O esforço do poeta, no entanto, nos leva à realidade dos fatos. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.29-40, nov. 2013 33 Figura 1 – Foto publicada no jornal Estado de S. Paulo sobre manifestação contra a ditadura militar. Disponível em: <http://integras.blogspot. com.br/2008/12/h-40-anos-militares-assassinavam.html>. Acesso em: 15 set. 2013. Ao longo dos versos de “Apesar de você” o que se percebe, entre outras coisas, é um justo desabafo do autor já asfixiado pela privação total de liberdade. Não bastasse esse aspecto, o Serviço de Censura de Diversões Públicas estava sempre propenso a bater o indesejável carimbo “interditado” nas canções de Chico Buarque. Foi esse o principal motivo que o levou a adotar, em algumas músicas, o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Mas essa asfixia a que me refiro não se restringia aos artistas, estudantes, professores, profissionais liberais e jornalistas, entre outros. O trabalhador das fábricas, dos escritórios, o transeunte das ruas, também sentiam o peso da repressão e da falta de liberdade. Esse segmento social acima citado era apenas o mais pugnaz, o mais combativo. Não tinha medo do perigo. Enfrentava sempre as baionetas e a tirania dos militares. Era um grupo em que seus partícipes corriam mais riscos de serem presos, torturados e até assassinados, como ocorreu ao longo dos 21 anos de regime militar. Que se pense, apenas como exemplo, no conhecido caso de Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura. Ele foi torturado até a morte nas dependências do DOI-CODI em São Paulo. Como este ensaio tem limite de espaço, não poderei me alongar sobre este tema. De qualquer forma, registro aqui uma sugestão: especialmente sobre mortos e desaparecidos políticos no Brasil nessa época, convém ler o livro Reparação ou impunidade?, organizado por Janaína Teles e publicado pela Humanitas/FFLCH, em 2001. No tocante à análise do texto poético da canção em pauta, há um bom número de trabalhos feitos sobre a obra musical de Chico Buarque. Alguns deles abordam o binômio literatura/política, outros tratam da análise literária do texto poético. Vale à pena conferir. Apenas para registrar, esta é uma das canções mais ricas, mais consistentes em seu conteúdo, como forma de expressão sobre o autoritarismo dos militares em nosso país. 34 Canção Popular Versus Autoritarismo (Os Militares no Poder) Certa ocasião, em entrevista concedida ao jornal Correio Braziliense, o entrevistador perguntou a Chico Buarque sobre as chamadas “canções de protesto”. A resposta foi a seguinte: “De protesto mesmo, eu fiz poucas, talvez uma meia dúzia. Sobre a realidade social, eu continuo fazendo, como ‘Assentamento’”**. O autor estava se referindo, nesse caso, à canção que fez sobre o Movimento Sem Terra. Seja como for, o fato é que “Apesar de você” tem um forte discurso contestatório, que demonstrava, para a época em que foi composta, profunda angústia, tristeza e decepção com os rumos do nosso país. Ao mesmo tempo, ela nos traz a expectativa de que aquela tragédia decorrente da brutalidade dos militares não teria como permanecer. Em outros termos, é uma canção que inicia com mensagem extremamente forte da realidade sociopolítica brasileira e encerra seu discurso com um otimismo que renovava a energia das pessoas e das instituições que lutavam pela redemocratização do país. Basta analisar a história política do Brasil nessa época para concluir: Chico Buarque tinha razão, independentemente da beleza literária do seu texto poético. A partir do governo do presidente Ernesto Geisel, as arbitrariedades dos truculentos militares foram diminuindo sensivelmente. O próprio presidente declarou que teríamos uma abertura política “lenta, gradual e segura”. A ala mais radical, mais reacionária dos militares, bem que tentou impedir este projeto do presidente, mas esbarrou no seu prestígio e na liderança que ele tinha dentro das Forças Armadas. Para o bem do país, ele cumpriu seu projeto. Além disso, havia um grande clamor nacional pela redemocratização da nação, o que foi de grande importância política. Não poderíamos continuar asfixiados, calados, esperando os militares nos devolver o direito de participar politicamente das decisões do país. Mesmo com toda a repressão do governo Médici, “Apesar de você” não foi imediatamente proibida. A censura não entendeu o texto poético de Chico e a liberou para divulgação em todos os mass media. Tanto é assim que, segundo a própria gravadora, a canção chegou a vender cerca de cem mil exemplares. Logo depois, no entanto, foi proibida e só liberada novamente em 1978. A trajetória da canção “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, é convergente em seus propósitos com “Apesar de você”. Nesse aspecto, elas são unanimidade, especialmente entre os estudiosos desse sombrio período da nossa história política. Mas, se por um lado, o texto poético de ambas tinha o mesmo objetivo, ou seja, contestar, lutar por meio das palavras contra a insensatez e a truculência que vinha da caserna, por outro lado, essa identidade cessava nesse momento. A canção de Vandré, intencionalmente, não trazia metáforas, metonímias ou qualquer outra figura de linguagem assentada na sutileza do discurso para as pessoas cultas. O que se tem nela é exatamente a objetividade da linha reta. Qualquer cidadão que a ouvisse, entenderia o enfático e emocionado convite, aliás, pode-se falar de convocação, para fazer a revolução contra os militares que se apossaram do poder após o golpe de 31 de março de 1964. Transcrevo aqui o refrão, que não deixa dúvida dos propósitos da canção, seguido de uma estrofe que escolhi aleatoriamente. Sim, exatamente isso, aleatoriamente, porque qualquer uma delas mantém a clareza dos versos inconformados de Vandré. Vejamos: Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.29-40, nov. 2013 **Entrevista concedida ao jornalista José Rezende Júnior, do jornal Correio Braziliense, em 02 de setembro de 1999. 35 Vem vamos embora Que esperar não é saber Quem sabe faz a hora Não espera acontecer Pelos campos há fome Em grandes plantações Pelas ruas marchando Indecisos cordões Ainda fazem da flor Seu mais forte refrão E acreditam nas flores Vencendo o canhão À parte o refrão que conclama a sociedade brasileira a fazer a revolução, Vandré nos mostra com refinada ironia a vida dramática e miserável do trabalhador rural dos latifúndios. Nos versos, “pelos campos há fome, / em grandes plantações” percebe-se a inominável absurdidade. O lavrador, o sertanejo, o boia-fria, enfim, o homem do campo, do meio rural que trabalha a terra para ser produtiva ao seu patrão, vê-se na situação indigna de passar fome, muito embora sua força de trabalho seja inteiramente dedicada a gerar a prosperidade das grandes plantações que, no final das contas, revertem-se em benefício do dono da terra. Mas apenas em benefício deste. Nesse momento, é inevitável lembrar as obras de João Cabral de Melo Neto, Morte e vida Severina, e de Cândido Portinari, Os Retirantes. Ambas mostram as agruras da dura vida do homem nordestino abandonado à própria sorte que Vandré retoma em sua canção. Aqui, porém, há um aspecto a mais a se perceber em “Pra não dizer que não falei das flores”. O autor não dirige sua conclamação especialmente ao homem do campo. A canção fala das pessoas “nas escolas, nas ruas, campos, construções”, ou seja, é indistintamente, um apelo a todo o povo brasileiro. Esteja ele no meio rural, no interior ou no meio urbano-industrial. Mas, como já disse anteriormente, escolhi essas duas canções por serem uma forte referência da época sobre o governo dos militares. No entanto, convém registrar que a repressão, a censura e as proibições, não se restringiram apenas às canções políticas. A vigilância imposta pelos militares à cultura brasileira foi além do fato essencialmente político. Os valores morais, os hábitos, os costumes, enfim, o próprio ethos cultural do cidadão brasileiro passaria a ser monitorado por uma espécie de moral social estabelecida pelo Estado a ser seguida por toda a sociedade. Apenas um ato autoritário a mais. O cerceamento à liberdade era feito de forma truculenta e arbitrária. Todas as manifestações artísticas teriam, necessariamente, que passar pelo crivo censor do Estado. Alguns temas na música popular brasileira, por exemplo, estavam rigorosamente proibidos. Não por acaso, este período da nossa história ficou conhecido como os anos de chumbo da ditadura militar. Canções que falassem sobre prostituição, homossexualidade, hippies, racismo, exclusão social, drogas, sexo, histórias de amantes e adultérios, entre outros, estavam fadadas a mofar na gaveta dos censores. Seriam definitivamente proibidas. Segundo esses senhores, elas usurpavam os valores éticos e morais da sociedade brasileira. 36 Canção Popular Versus Autoritarismo (Os Militares no Poder) A chamada música brega, segmento importante, diria mesmo imprescindível, da nossa cultura lúdica e musical, foi especialmente prejudicada nessa ocasião. Perseguida. Este talvez seja o termo mais adequado. Quero, no entanto, esclarecer logo de início que essa perseguição se explica muito mais pelo despreparo dos censores, e muito menos pelas dissensões político-ideológicas que vivia o país. Não havia nada propriamente de político nessas canções. As proibições às músicas de Odair José, o mais censurado entre os chamados cantores bregas, Waldick Soriano, Benito di Paula, Sidney Magal, Dom e Ravel, entre outros, são produtos das arbitrariedades, da incompetência e dos desmandos dos censores da caserna. A proibição a essas canções era essencialmente moral e objetivava defender, sob a ótica dos militares, os “valores morais” e os “bons costumes” de uma sociedade acuada pelo autoritarismo. Nessas circunstâncias, é claro que os temas acima citados seriam proibidos. Para a censura militar eles eram considerados socialmente subversivos. Além da ação da força bruta contra todos os segmentos da cultura brasileira, devemos considerar ainda que a cultura lúdica, a cultura do entretenimento, tinha, como tem até hoje, grande espaço midiático. Isso incomodava muito os militares. Em certos momentos, eles investiam fortemente contra os media, especialmente a partir de 1968 com a brutal instituição do AI-5. Que se pense nas emissoras de rádio, como a Rádio Nove de Julho, Rádio Marconi, Rádio Cometa, entre outras. Todas elas foram definitivamente lacradas e todas estavam na cidade de São Paulo. Assim, temas como drogas, exclusão social, homossexualismo, entre outros, eram vistos pelos senhores da caserna como algo inteiramente proibitivos. E aqui temos uma questão muito esclarecedora. Se de um lado, a censura proibia a veiculação de canções bregas, de outro lado, seus cantores e compositores nem imaginavam os verdadeiros motivos desse ato. Até porque, os próprios censores, em certas ocasiões, também não sabiam as razões da proibição. Apenas vetavam a obra sem explicações. Odair José, por exemplo, não entendia e sempre estranhou ver algumas das suas canções censuradas. Ele jamais se manifestou ou fez protestos contra a opressão política e a censura dos militares. Suas canções, como de resto todo o segmento da chamada música brega, tinham um discurso ingênuo. Inofensivo mesmo. Em alguns casos, quase pueril. Tanto era assim, que não se tem registro de nenhuma prisão desses artistas, nenhum deles foi expulso do país, muito menos torturado. Até hoje, cantores e compositores bregas daquela época, sabem e declaram que não lutaram contra a ditadura dos militares. Grande parte deles nem chegou a tomar conhecimento, por exemplo, da guerrilha urbana, dos sequestros, da luta armada, das torturas, dos desaparecidos, dos assassinatos, das prisões arbitrárias, enfim, do quadro sociopolítico desse período em nosso país. Faziam seu trabalho como se estivessem vivendo em pleno Estado de direito. Para fazer justiça a esses profissionais, não podemos rotulá-los de alienados, como se fazia naquela época. Era um momento de intenso radicalismo político, que reverberava por todos os segmentos da sociedade. Não havia mediação político-ideológica. Quem não era declaradamente de esquerda e agisse como tal, estava sujeito, até mesmo por seus pares, a ser visto como radical de direita e, portanto, um alienado a favor do autoritarismo militar e do Estado burguês. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.29-40, nov. 2013 37 Enfim, uma bobagem. Esse cidadão cairia em desgraça imediatamente; era obrigado a abandonar seu grupo social, porque passaria a rejeitá-lo ostensivamente. A recíproca era verdadeira. Quem não se declarasse notoriamente de direita, correria o sério risco de ser visto como inimigo do Estado. Nesse caso, as consequências eram bem sinistras. A pessoa passava a ser estreitamente vigiada e, em alguns casos, intensamente interrogada ou expulsa do país, torturada e até mesmo assassinada. Era assim. Pura insensatez de ambos os lados. Em todo esse contexto, deve-se registrar, ainda, que havia um segmento da música popular brasileira que, embora não tivesse propriamente o estatuto de brega naquela época, era rejeitada pela intelligentsia da esquerda. Os motivos, claro, não eram estéticos e passavam pelas questões político-ideológicas, uma vez que o discurso poético, ao contrário das chamadas músicas de protesto, procurava reforçar o establishment imposto pela caserna. E aqui, por motivos óbvios, prevalecia o discurso consonante com o que desejavam os militares. Apologético, ufanista e, em alguns casos, até xenófobos. A divulgação dessas canções pelos mass media, como já se deduz, era muito maior do que qualquer outra forma de canção popular. Quero lembrar a canção “Pra frente Brasil”, composição de Miguel Gustavo e Raul de Souza, feita em 1970, por ocasião da Copa do Mundo no México. Pela primeira vez, a televisão transmitia ao vivo jogos desse campeonato. Nessa ocasião, os patrocinadores do evento, Gillette, Esso e Souza Cruz, em parceria com a TV Globo, realizaram um concurso para escolher a melhor música sobre a Copa do Mundo. A vencedora foi transformada em uma espécie de hino que antecipava todos os jogos do Brasil. Após a vitória brasileira, de forma quase uníssona, os mass media, repetidas vezes tocavam “Pra frente Brasil” e conclamavam o povo brasileiro a sair às ruas para festejar mais uma vitória brasileira. Estávamos no auge da luta político-ideológica e o governo militar capitalizava de forma sutil as vitórias brasileiras em benefício da sua imagem. Mas, certamente, o exemplo mais completo do ufanismo vivido nessa época está na canção “Eu te amo meu Brasil”, da autoria de Dom, integrante da dupla, Dom e Ravel. Gravada no início dos anos de 1970 pelo conjunto “Os Incríveis”, ídolo do Programa “Jovem Guarda”, da TV Record, a canção fez grande sucesso junto à juventude brasileira e outros segmentos da sociedade. Para melhor ilustrar, reproduzo o refrão (que se repete nada menos que três vezes): Eu te amo meu Brasil, eu te amo Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil Eu te amo meu Brasil, eu te amo Ninguém segura a juventude do Brasil. São muitas as canções desse período que seguem esse padrão discursivo. Esse era o estado comparativo, e deveria servir de modelo a todos os profissionais que não desejassem ver sua obra censurada. Apenas para lembrar, alguns compositores, já consagrados nessa época, chegaram a fazer canções que, mais tarde, foram criticadas pela chamada intelligentsia da esquerda. São os casos, por exemplo, de Ivan Lins, com sua canção “Meu país” e Jorge Ben, hoje conhecido por Jorge Benjor, com “País tropical”. No tocante à música de Ivan Lins, entendo que há certo exagero quando a interpretam como apologética 38 Canção Popular Versus Autoritarismo (Os Militares no Poder) e ufanista. Trata-se muito mais de uma canção romântica, que funde valores do folclore brasileiro com a imagem da mulher amada. Isto está longe de ser apologético ou ufanista. No caso de “País tropical”, o que se percebe é um texto poético muito alegre, libertário e inteiramente descomprometido com qualquer conotação político-ideológica. É preciso fazer justiça a quem é inocente. Ivan Lins e Jorge Benjor jamais apoiaram a política dos militares e sempre estiveram coesos com os artistas que a rejeitavam. A canção mais criticada de Ivan Lins intitulada, “O amor é meu país”, nada tem de “adesista” como já se escreveu sobre ela. Por uma questão de espaço não posso analisá-la aqui, mas o leitor atento saberá interpretá-la. Em outros termos, quero dizer o seguinte: não são apenas os exageros e as arbitrariedades da censura míope dos militares, que proibia coisas sem nem saber porquê estava procedendo daquele modo. Se isso era absolutamente repulsivo, não é aceitável também se fazer o chamado “patrulhamento ideológico”, como aconteceu justamente com Ivan Lins e Elis Regina. Quando entrevistados pelo jornal O Pasquim foram severamente cobrados a declarar suas respectivas preferências político-ideológicas. Uma situação muito delicada, especialmente se considerarmos o contexto político que vivíamos. CONCLUSÃO Enfim, para a infelicidade da sociedade brasileira, esse foi o quadro político em nosso país durante 21 anos. Ao longo desse tempo, boa parte dos documentos sobre os acontecimentos políticos da época permaneceu confinada como segredo de Estado, em lugar incerto e não sabido, pelo menos por parte do grande público. Apenas a partir dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula é que tomamos conhecimento de alguns documentos que se tornaram públicos para os pesquisadores, estudiosos e para toda sociedade brasileira. A Comissão da Verdade instalada pela presidenta Dilma Roussef, em 16 de maio de 2012, certamente trará à luz do conhecimento público, muitos outros fatos e elementos novos ainda desconhecidos desse sombrio período político do nosso país. Restará, portanto, aos pesquisadores e estudiosos, interpretar e reinterpretar os fatos novos até então confinados nos arquivos proibidos à pesquisa e ao conhecimento público. Para terminar este pequeno ensaio, quero fazer das palavras da nossa presidenta, as minhas palavras. Quando da instalação da Comissão da Verdade ela disse em seu discurso: “Ao instalar a Comissão da Verdade não nos move o revanchismo, o ódio ou o desejo de reescrever a história de uma forma diferente do que aconteceu, mas nos move a necessidade imperiosa de conhecê-la em sua plenitude, sem ocultamentos, sem camuflagens, sem vetos e sem proibições”. Apenas para manter fidelidade ao texto, mantive a palavra ocultamentos, mas o correto é ocultações. Nossa presidenta termina seu discurso assim: “[...] a força pode esconder a verdade, a tirania pode impedi-la de circular livremente, o medo pode adiá-la, mas o tempo acaba por trazer a luz. Hoje esse tempo chegou”***. Toda a sociedade brasileira precisa realmente acreditar no que disse nossa presidenta. O ódio e o revanchismo não contribuirão em nada. O acirramento de situações políticas não resolvidas até hoje, especialmente no plano ideológico, devem ficar sob a responsabilidade do Estado democrático que vivemos. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.29-40, nov. 2013 ***Trecho do discurso da presidenta Dilma Rousseff, quando da instalação da “Comissão da Verdade”, em 16 de maio de 2012, no Congresso Nacional. 39 Não sabemos a quais resultados chegarão a Comissão da Verdade. Estamos conscientes, isto sim, da sua importância para ajudar a elucidar muitos fatos políticos sombrios, obscuros mesmo, que tanto mal causou às pessoas dispostas a lutar sem limites pela redemocratização do nosso país. Quase que diariamente, os grandes veículos de comunicação nos revelam os resultados a que essa Comissão tem chegado, especialmente no tocante aos acordos entre os militares do Brasil, Uruguai, Argentina e Chile. A troca de presos políticos, de informações, de experiências sobre repressão, enfim, todos aqueles elementos postos em prática pela fatídica “Operação Condor”. Que se pense nos torturados, naqueles cidadãos que sobreviveram a essa inominável barbárie, nas pessoas assassinadas e naquelas que perderam definitivamente sua sanidade mental e hoje vivem compelidos e confinados à profunda reclusão. A Comissão da Verdade pode chegar aos fatos reais de alguns episódios ainda obscuros. Apenas isso. Resta saber se isso responde às expectativas da sociedade. A Comissão não tem poder para julgar e indicar penas por crimes políticos hediondos como a tortura e a morte, muito embora haja um respeitável grupo de estudiosos do direito penal que considere esse tipo de crime imprescritível. Nessas condições, se a justiça brasileira não concordar com esta última tese, a descoberta de novos fatos históricos terá mero efeito de uma pesquisa de alto nível para se chegar à verdade. Assim, a necessidade imperiosa de se conhecer a verdade sem ocultações e em sua plenitude, muito provavelmente um dia será alcançada. A sociedade brasileira anseia por esse momento, muito embora diversos segmentos, como a nossa juventude, por exemplo, esperem muito mais. REFERÊNCIAS ARAÚJO, P.C. de Eu não sou cachorro não. Rio de Janeiro: Record, 2003 CALDAS, W. A cultura político-musical brasileira. São Paulo: Musa, 2005. COUTO, R.C. História indiscreta da ditadura e da abertura no Brasil: 1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1998. SILVA, D. da Nos bastidores da censura. São Paulo: Clube do livro, 1989. TELES, J. (Org.) Reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas, 2001. VALLE, M. R. 1968 – o diálogo é a violência. Campinas: Unicamp, 2008. professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) – e-mail: [email protected] WA L D E N Y R C A L D A S 40 Canção Popular Versus Autoritarismo (Os Militares no Poder) Revista Cultura e Extensão USP Volume 10, nov. 2013 41 42 (Os Militares no Poder) A Necessidade de Ações Articuladas na Cultura e Extensão The Need for Jointed Actions in Culture and Extension RESUMO O Regimento de Cultura e Extensão Universitária regulamenta as atividades de cultura e extensão da Universidade de São Paulo, entendidas, neste contexto, como um processo que articula o ensino e a pesquisa para viabilizar a interação transformadora entre a universidade e a sociedade. Nesse sentido, esta ação enriquece o processo pedagógico, favorece a socialização do saber acadêmico e estabelece uma dinâmica que contribui para a participação da comunidade na vida acadêmica. A proposição de tal documento se deve à importância dos trabalhos desenvolvidos nesta área pela Universidade de São Paulo e também pela necessidade de rever suas diretrizes e conceitos. Dessa maneira, o regimento procura definir as atividades de cultura e extensão universitárias previstas no Estatuto e no Regimento Geral da USP, bem como estabelecer critérios de avaliação para esta ação. Com isso, visa também promover a valorização de tais atividades na avaliação de docentes, alunos e funcionários. Para atingir os almejados fins, é mister uma articulação indissociável entre o ensino, pesquisa e as atividades de extensão e cultura produzidos na academia, bem como a exteriorização dos resultados em prol de benefícios para a sociedade. Palavras-chave: Cultura. Extensão Universitária. Ações Articuladas. Vinicius Pedrazzi Universidade de São Paulo. Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil Marina Mitiyo Yamamoto Universidade de São Paulo. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, São Paulo, Brasil A bstract The Culture and Extension Regiment regulates the activities of culture and extension at University of São Paulo. In this context, it might be known as a process that articulates teaching and research to enable the transforming action between the University and society. In this way, it enriches the educational process by encouraging the socialization of academic knowledge and establishing a dynamic which contributes to the community's participation in university life. Due to the importance of the culture and university extension works which were conducted by the University of São Paulo and the need to review the concept of university extension activities used till now by the University, Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.43-50, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p43-50 43 changes were made in order to define the activities of culture and extension foreseen in the Statute and the General Regiment of the University of São Paulo. It is to enhance the cultural and extension activities in the evaluation of professors, students and university staff, even to encourage the establishment of criteria for the evaluation of university extension activities. To be able to achieve the desired purpose, it is necessary the inseparable articulation between teaching, research and extension activities and the culture produced in the academy, and the externalization of the results in favor of benefits to society. Keywords: Culture. Extension. Articulated actions. INTRODUÇÃO A valorização em igual par entre as atividades-fim da Universidade de São Paulo, onde se dê mesma valia para o ensino, para a pesquisa e para a extensão, tem sido uma luta árdua que se mistura com a própria origem da Universidade. Em sua “Carta de São Paulo: políticas públicas de cultura e extensão universitária”, a Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda, Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária da USP, levanta uma interessantíssima questão: a USP, comparada às coirmãs distribuídas em todo território nacional, apresenta uma característica que a distingue quando se trata de temas de cultura e de extensão universitária, pois ambas atividades são temas enlaçados que merecem mesmo peso e valor em uma mesma Pró-reitoria [1]. Ainda nesse documento, exarado após aprovação em plenária no enceramento do ProExt Cultura-SP, no auditório da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, em 2010, há uma perfeita construção a respeito de cultura e extensão, e sua articulação entre a Academia e a Sociedade: A área da cultura e da extensão deve se orientar, em suma, por uma visão pública das atividades que implementa, resguardando-se, todavia, das apropriações circunstanciais de suas ações. Por se tratar de instituições públicas, as universidades estão envolvidas por compromissos republicanos. A condição mesma desse exercício é a de se construir pontes com a sociedade que não suprimam a essência de sua identidade formada no axioma do conhecimento, sem o qual as ações extrovertidas não se diferenciariam de todas as outras que pululam nas sociedades contemporâneas e se perderiam em meio a inúmeras iniciativas aparentemente assemelhadas. Por fim, a universidade não cumpriria o papel de formar cidadãos para o mundo em movimento, caso não democratize e difunda o acesso à cultura, êmulo da ultrapassagem das profundas desigualdades sociais[1]. Tal qual para atividades específicas de ensino e de pesquisa, a manifestação e a extrapolação das atividades de Cultura e Extensão ocorrem por meio da elaboração de Projetos. Projetos de Extensão (ou culturais, ou envolvendo ambas as atividades) são textos analíticos resultantes de estudos e revisões ou de experiências desenvolvidas nas áreas temáticas estabelecidas para a cultura e para a extensão universitária, a saber: 1. Comunicação; 2. Cultura; 3. Direitos Humanos; 44 A Necessidade de Ações Articuladas na Cultura e Extensão 4. Educação; 5. Meio Ambiente; 6. Saúde; 7. Tecnologia e Trabalho. Assim, para que sejam alcançadas as atividades almejadas, se faz mister a elaboração de um projeto de extensão completo, que preveja itens inerentes às atividades propostas; bem como é altamente salutar a articulação entre atividades de ensino, de pesquisa e de extensão, que pode até prever a assistência à sociedade. Também a interdisciplinaridade em suas distintas emanações é muito incentivada e valorizada. Para que se desenvolvam ações articuladas na extensão, deve-se iniciar, portanto, com um planejamento (planejar o projeto), e é preciso haver, necessariamente, um perfeito engajamento entre o líder e a equipe. Em se tratando de planejamento estratégico, a Figura 1 apresenta um bom exemplo de fluxograma denominado “Hélice Tripla" que, citando Ribeiro (2010), “o tripé, que une a articulação entre governo e setor privado, com forte presença da academia (negrito do autor), se estabelece cada vez mais como motor para o desenvolvimento econômico e social” [2]. Note-se aqui o centro de intersecção dos círculos, que coloca em evidência as pessoas e as ideias. E, no conceito de atividades de extensão, a maior valia é dada para a articulação entre a produção de conhecimento acadêmico (ideias) e a aplicação em benefício da sociedade (pessoas). Financiamento Público Impostos Figura 1 – Hélice tripla das ações articuladas (fomento e ação) Governo Pessoas e Ideias Empresa Universidade Recursos Recursos Recursos Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.43-50, nov. 2013 45 Nesse contexto é de suma importância a obediência do binômio: 1. a responsabilidade de cada um e; 2. o comprometimento de todos. Um projeto de extensão requer uma integração simbiótica ou de mutualismo para que possa atingir os melhores objetivos propostos. Isso é articulação. Um bom exemplo de ações articuladas foi a realização do I Fórum de Integração dos Serviços de Saúde e das Atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão da USP, realizado no Bloco Didático da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, nos dias 15 e 16 de março de 2011. O evento teve a finalidade de discutir as relações da universidade com os serviços de saúde, as fontes de fomento e os programas do Ministério da Saúde. Após receberem informações nas diversas palestras ministradas no primeiro dia do Fórum, os participantes foram distribuídos em cinco grupos multidisciplinares de discussão sob o tema: “Inserção, infraestrutura, recursos humanos e materiais e interdisciplinaridade nos serviços de saúde” [3]. No I Congresso Brasileiro de Extensão Universitária (2002), realizado em João Pessoa (PB) os participantes reafirmam o conceito de extensão como “O processo educativo, cultural e científico, que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável, viabiliza a relação transformadora entre a universidade e os demais segmentos da sociedade, trazendo para a universidade a pergunta sobre a relevância social da produção e socialização do conhecimento” [4]. O objetivo da elaboração deste artigo foi divulgar a palestra proferida pelos autores do artigo durante o 3ºWorkshop de Agentes de Cultura e Extensão Universitária Diagnósticos e Perspectivas, realizado entre os dias 18 a 20 de junho, no Museu Republicano de Itu, ocasião em que se discutiu o impacto das políticas de incentivo à produção cultural na rotina universitária. M AT E R I A I S E M É T O D O S A Pró-reitora de Cultura e Extensão Universitária, Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda, ministrou a palestra inaugural abordando como o volume da produção de docentes da USP, no campo da cultura e da extensão, é revertida em publicações, participações em eventos acadêmicos e, principalmente, como isso é percebido e valorizado pela comunidade uspiana. O Workshop de Agentes de Cultura e Extensão Universitária foi organizado pela primeira vez em 2008, com o objetivo de aprimorar o processo de divulgação do acervo cultural da Universidade e ampliar a interação entre os agentes que atuam nessa área. Para reforçar esse objetivo, este evento é organizado em espaços da USP normalmente desconhecidos da comunidade universitária. O evento foi transmitido simultaneamente pelo IPTV e a programação pode ser acessada em: <http://www.prceu.usp.br/eventos/ workshopagentes2013.php>. A palestra foi desenvolvida a convite da Comissão Organizadora do Evento, pelos 46 A Necessidade de Ações Articuladas na Cultura e Extensão autores deste artigo, sendo ministrada no dia 18 de junho de 2013, e teve como objetivo demonstrar e discutir a importância das ações articuladas entre ensino, pesquisa e extensão, por meio do desenvolvimento de projetos de cultura e extensão dentro dos programas perenes e também naqueles eventuais e Editais Especiais da Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária. Após a palestra, os docentes dialogaram com os ouvintes respondendo a várias dúvidas e questionamentos. R esultados A diferenciação de projetos de pesquisa (puros) daqueles de cultura e extensão foi abordada, bem como explicitados os itens constantes, objetivos, metas, público-alvo e benefícios para a implantação correta dos projetos almejados. Foram apresentados brevemente cada um dos programas estáveis da PRCEU, como: »» Aprender com Cultura e Extensão »» A USP e as Profissões »» Editais Especiais »» Comissão de Estudos de Problemas Ambientais »» Giro Cultural USP »» Nascente »» Fomento às Iniciativas de Cultura e Extensão »» Caminhos da Cultura »» Núcleo dos Direitos, com subprogramas: »» Aproxima-Ação »» ITCP-USP »» Núcleo de Excelência pela Primeira Infância »» Universidade Aberta à Terceira Idade »» USP Diversidade »» USP Legal Os programas de Extensão visam integrar projetos universitários com as necessidades da comunidade em que estão inseridos e têm caráter de continuidade. Foi citado como exemplo: projeto de ginástica laboral com música na associação de moradores de uma comunidade. Os atores do projeto tanto podem operar, aplicando os conceitos diretamente na comunidade, quanto formando agentes comunitários multiplicadores da ação, com apoio da Prefeitura ou ACI, para atender trabalhadores que vivem próximos à universidade ou faculdade. A articulação é importantíssima na ação formadora direta, individual ou em massa, e na formação de células disseminadoras dos conhecimentos aprendidos para as diversas comunidades. A socialização do conhecimento é uma das formas mais democráticas para o desenvolvimento de uma Nação soberana. Foi apresentado também um quadro sinótico na forma de fluxograma para que os ouvintes pudessem se inteirar da sistemática de funcionamento da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão dentro do organograma da USP (Figura 2). Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.43-50, nov. 2013 47 Universidade de São Paulo Figura 2 – Organograma simplificado de atuação da PRCEU na atenção às atividades de Cultura e Extensão Reitoria de USP –RUSP Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitáia –PRCEU Pró-Reitor Adjunto Extensão Câmera de Ação Cultural e de Extensão Universitária Câmera de Cursos Câmera de Formação Profissional Comitê de Fomento Pró-Reitor Adjunto Cultura CoCex Assessores Técnicos de Gabinete Assistentes Técnicos do Gabinete Chefes de Divisão Comissão de Cultura e Extensão Universitária Ações Articuladas Grupo Coordenador das Atividades de Cultura e Extensão Universitária do Campus de Ribeirão Preto Pedrazzi, 2013 DISCUSSÃO O sucesso das ações articuladas na Cultura e Extensão está diretamente relacionado e comprometido com a elaboração e apresentação de Projetos de Extensão. Estes são, via de regra, articulações concretas de conhecimentos oriundos de ensino e/ou pesquisa aplicados em atividades que possam gerar ações transformadoras em uma comunidade, seja ela interna ou externa à Universidade de São Paulo. Um bom exemplo de ações articuladas na Cultura e Extensão foi a criação, pela Resolução CoCEx 5.174, de 3 de fevereiro de 2005, do Grupo Coordenador das Atividades de Cultura e Extensão Universitária do Campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Composto por um presidente e um vice-presidente, eleitos pelos pares, que são presidentes das Comissões de Cultura e Extensão das unidades do campus de Ribeirão Preto, possui representantes discentes (um aluno de graduação e um de Pós-Graduação), dois representantes da Prefeitura do Campus de Ribeirão Preto e um representante da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto. O Grupo coordenador tem as funções precípuas de fomentar a política de ação cultural e extensão universitária para uso qualificado do campus de Ribeirão Preto, promover o desenvolvimento de ações culturais e de extensão universitária interunidades no campus (articulação e interdisciplinaridade) e aprovar e supervisionar a execução dos projetos e das atividades culturais do campus. Os projetos de extensão devem apresentar algumas características para a sua 48 A Necessidade de Ações Articuladas na Cultura e Extensão implementação e obtenção de melhores resultados. Devem, além da natureza acadêmica, cumprir ao preceito da articulação entre ensino, pesquisa e extensão (com integração da atividade de extensão desenvolvida à formação técnica e cidadã do estudante e pela produção e difusão de novos conhecimentos, novas técnicas e novas metodologias); ter, sempre que possível, características de interdisciplinaridade, pela interação de modelos e conceitos complementares, de material analítico e de metodologia, com ações interprofissionais e interinstitucionais, apresentando consistência teórica e operacional que permitam a viabilização das atividades de extensão. É salutar ainda que as atividades de extensão gerem impacto positivo na formação técnico-científica, pessoal e social com a atribuição de créditos acadêmicos, sob orientação ou tutoria docente e a avaliação do estudante, bem como a geração de produtos ou processos, como publicações, monografias, dissertações, teses, abertura de novas linhas de extensão, ensino e pesquisa. A existência no projeto/programa de ações articuladas envolvendo atuação na educação (Educação de Jovens e Adultos, Formação de Professores, Educação Ambiental, etc.), bem como a sua relação com a sociedade, o impacto social – pela ação transformadora sobre os problemas sociais, contribuição à inclusão de grupos sociais, ao desenvolvimento de meios e processos de produção, inovação e transferência de conhecimento e a ampliação de oportunidades educacionais – facilita o acesso ao processo de formação e de qualificação. Deseja-se, também, estabelecer relação bilateral com os outros setores da sociedade, pela interação do conhecimento e experiência acumulados na academia com o saber popular e pela articulação com organizações intra e extramuros, objetivando o desenvolvimento de sistemas de parcerias interinstitucionais (interdisciplinaridade – trans, pluri, multi). Assim, objetiva-se a contribuição na formulação, implementação e acompanhamento das políticas públicas prioritárias ao desenvolvimento regional e nacional. É importante que, durante todo o processo, desde a sua aprovação e implementação, haja uma estrutura bem definida para o monitoramento, acompanhamento e avaliação do projeto e de suas ações transformadoras. A partir da análise dos resultados alcançados, caberá ao comitê gestor deliberar pela sobrevivência, reapresentação, cancelamento ou mesmo perenidade do mesmo, que poderá transformá-lo em um programa! CONCLUSÕES Projetos de Extensão são textos analíticos resultantes de estudos e revisões sobre temas relacionados à extensão universitária ou de experiências desenvolvidas nas áreas temáticas estabelecidas para a extensão universitária, a saber: 1. Comunicação; 2. Cultura; 3. Direitos Humanos; 4. Educação; 5. Meio Ambiente; Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.43-50, nov. 2013 49 6. Saúde; 7. Tecnologia e Trabalho. Os programas de Extensão visam integrar projetos universitários com as necessidades da comunidade em que estão inseridos e têm caráter de continuidade. Os atores do projeto podem tanto operar aplicando os conceitos diretamente na comunidade, quanto formar agentes comunitários multiplicadores da ação, com apoio da Administração ou Prefeitura, para atender trabalhadores que vivem próximos à universidade ou faculdade. REFERÊNCIAs [1] ARRUDA, M. A. N. Carta de São Paulo: políticas públicas de cultura e extensão universitária. 2010. Disponível em: <http://www.prceu.usp.br/eventos/ proext/cartasp.pdf>. Acessado em: 09 set. 2013. [2] RIBEIRO, C. Inovabrasil. FINEP. Brasília, 2010. Disponível em: <http://inovabrasil.blogspot.com.br/2010/09/helice-tripla-acoes-articuladas-dao.html> Acesso em: 17 set. 2013. [3] SAWADA, N. O.; PEDRAZZI, V.; RODRIGUES, M. L. V. I Fórum de Integração dos Serviços de Saúde e das Atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão da USP. Revista de Cultura e Extensão USP, Brasil, v. 6, p. 33-40, out. 2011. ISSN 2316-9060. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rce/article/view/532>. Acesso em: 01 Nov. 2013. doi:10.11606/issn.2316-9060.v6i0p33-40. [4] CONGRESSO BRASILEIRO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, 1, 2002. (Anais). João Pessoa, 2002. Disponível em: <http://www.prac.ufpb.br/anais/ Icbeu_anais/anais/ficha.html>. Acesso em: 16 set. 2010. professor associado 3 do Departamento de Materiais Dentários e Prótese da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e Coordenador da Câmara de Ação Cultural e de Extensão Universitária – e-mail: [email protected] V I N I C I U S P E D R A ZZ I professora associada da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo e Pró-Reitora Adjunta de Cultura da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo M A R I N A M I T I Y O YA M A M O T O 50 A Necessidade de Ações Articuladas na Cultura e Extensão Revista Cultura e Extensão USP Volume 10, nov. 2013 51 52 A Necessidade de Ações Articuladas na Cultura e Extensão Perspectivas da Extensão Universitária no Projeto Troca de Saberes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Prospects of the University Extension related to the Project “Exchange of Knowledges” of Santa Catarina State University RESUMO Este artigo aborda a Extensão Universitária em uma experiência de acadêmicos do Centro de Ciências Agroveterinárias (CAV), da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), participantes no projeto Troca de Saberes – Grupo de Trabalho para Preparo de Ações Junto ao Núcleo Extensionista RONDON (NER) – UDESC, desenvolvido no Planalto Catarinense. A prática da Troca de Saberes entre a Universidade, através de seus acadêmicos, e a comunidade, contribui para o desenvolvimento socioambiental na área que recebe a aplicação direta da proposta deste trabalho. Mudanças de caráter pessoal, acadêmico e profissional são alcançadas pelos protagonistas dessa iniciativa, os acadêmicos da UDESC. Dessa forma, o projeto toma suas ações como importante ferramenta pedagógica para a prática da cidadania e transdisciplinaridade, tornando-se instrumento político pedagógico para a complementação de uma formação acadêmica baseada em valores e experiências sociais vinculadas à localidade onde o projeto se insere. A gestão participativa é, em muitas situações, providencial para solução de problemas socioambientais para assim alcançar o objetivo comum. Nesse sentido, a extensão universitária circunscrita do Projeto Troca de Saberes atua diretamente para as mudanças socioambientais em suas diversas formas e práticas. Palavras-chave: Extensão Universitária. Troca de Saberes. Formação Acadêmica. Guilherme da Silva R icardo e Á lvaro Luiz Mafra Universidade do Estado de Santa Catarina. Centro de Ciên cias Agroveterinárias, Santa Catarina, Brasil ABSTRACT This article addresses the theme University Extension through the experience of academics Centro de Ciências Agroveterinárias (CAV) of Universidade do Estado de Santa Catarina, participants in the project Exchange of Knowledge developed in the Santa Catarina highlands. The practice of Knowledge Exchange between university students and the community, contributes to socio and environmental development in the area that receives the direct application of this work proposal. Changes in personal, Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.53-61, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p53-61 53 academic and career are achieved by the agents of this initiative, academics UDESC. In this way the project takes your actions as an important educational tool for the practice of citizenship and transdisciplinarity, assuming as an instrument in complementing of a academic formation based on values and social experiences linked to location where the project is inserted. Participatory management is in many situations, providential for solving environmental problems and thus achieve the common objective. In this sense the university extension by Exchange of Knowledge project works directly for environmental changes in their different forms and practices. Keywords: University Extension. Exchange of Knowledge. Academic Formation. INTRODUÇÃO A ideia de desenvolver o Projeto de Extensão Troca de Saberes na comunidade do entorno do campus III da UDESC, o Centro de Ciências Agroveterinárias (CAV), localizado na cidade de Lages, Santa Catarina, surgiu de experiências em atividades da extensão universitária do Núcleo Extensionista RONDON (NER/ UDESC) que desenvolve ações regionais no Estado de Santa Catarina, tendo como principal finalidade atender demandas da sociedade. O NER já atuou em diferentes áreas do território catarinense abrangendo as regiões: Meio Oeste, Extremo Oeste, Planalto e Extremo Sul Catarinense. As diferentes realidades encontradas nas ações do NER, nas quais a academia esteve imersa por dias, em contato direto com a comunidade local, conduziu o olhar para a identificação das demandas socioambientais existentes no contexto em que o campus CAV está inserido. Trazer a metodologia das ações regionais para o local em que os acadêmicos constroem suas graduações é o objetivo deste projeto, que está amparado teoricamente na literatura de pensadores clássicos como Paulo Freire, e pesquisadores recentes como Munhoz (2009), Bulhões (2010) e Santos (2012). Dessa forma, as análises das demandas socioambientais feitas pelos acadêmicos, professores e gestores da educação do CAV/ UDESC e de outras instituições de ensino confirmam a necessidade de intensificar a participação universitária junto à sociedade sediada ao entorno do campus, com o objetivo de promover o seu desenvolvimento. Para a academia, buscam-se, nessas experiências, os benefícios de uma complementação na formação do indivíduo que identifica a sua competência e responsabilidade de contribuição direta para a sociedade que financia seu aprendizado. O referencial teórico deste artigo ancora-se em outros autores que identificam a extensão universitária como atividade imprescindível às universidades, estando apoiado na Política de Extensão Universitária da UDESC, regulamentada na resolução Nº 007/2011 do seu Conselho Universitário. A P R E S E N TA Ç Ã O E O R I G E M D O P R O J E T O O Projeto de Extensão Troca de Saberes conta com uma equipe multidisciplinar que desenvolve atividades de natureza transdisciplinar, tendo como base o Plano Nacional de Extensão de 2007, que, por meio do Fórum de Pró-Reitores/as de Extensão das 54 Perspectivas da Extensão Universitária no Projeto Troca de Saberes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Perspectivas da Extensão Universitária no Projeto Troca de Saberes Universidades Públicas Brasileiras, estabelece a necessidade de maior relação entre universidade e sociedade [5]. A partir dessa necessidade, o projeto promove a articulação de discentes e docentes dos cursos de graduação em Agronomia, Engenharia Ambiental, Engenharia Florestal, Medicina Veterinária e Pós-Graduação do CAV/UDESC, através de um grupo de estudantes voluntários que se renova semestralmente, atuando em um projeto que tem como pré-requisito o comprometimento com a responsabilidade socioambiental e o interesse em viver experiências como multiplicadores do conhecimento adquirido na universidade. O projeto está situado na região do Planalto Catarinense, que detém os seguintes valores no Índice de Desenvolvimento Humano: Lages/SC – IDH (0,551 em 1991), (0,674 em 2000) e (0,770 em 2010). Atualmente o IDH situa-se ligeiramente abaixo da média estadual que é de 0,774 para ano 2010, segundo o Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Brasil (PNUD) [3]. Entretanto, a condição regular, em relação à média estadual, não coloca a cidade em zona de conforto, em função das demandas socioambientais existentes e identificadas neste projeto. O projeto sai dos limites físicos da universidade por meio da extensão universitária levando, através dos acadêmicos, o conhecimento acadêmico às escolas públicas. Estas, que são importantes espaços de diálogo e portadoras de um conhecimento que é absorvido pelos acadêmicos, uma vez que a Extensão Universitária é uma via de mão dupla, conforme salienta o Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras [5]. O projeto Troca de Sabres nasceu das experiências com as operações regionais do NER/UDESC organizadas em parceria com cidades interessadas em receber acadêmicos extensionistas voluntários por um período de tempo de operação que tem sido de, aproximadamente, dez dias, sempre ao final dos semestres acadêmicos. Desde a sua criação, em 2010, o NER realizou cinco operações em Santa Catarina: Operação Contestado (2010.2); Operação Fronteira (2011.1); Operação Caminho dos Tropeiros (2011.2) e Operação Serra & Mar (2012.1); Operação Integração (2013-1) [14]. Nessas ações, o público catarinense contemplado foi maior do que 35.000 pessoas, com participação efetiva de aproximadamente 650 acadêmicos da UDESC e de outras Instituições do Brasil, como a Universidade de Brasília (UnB). A partir da Operação Fronteira (2011.1), o projeto Troca de Saberes começou a ser planejado, tendo suas atividades iniciadas no primeiro semestre de 2012. Além das ações locais que o Troca de Saberes desenvolve junto à comunidade, também orienta os acadêmicos extensionistas já capacitados do ponto vista metodológico, a participarem das operações semestrais do NER, também conhecidas na universidade como “Operações do Projeto RONDON/UDESC”. A UDESC também participa no Projeto RONDON de abrangência Nacional, coordenado pelo Ministério da Defesa, que seleciona acadêmicos de todo o Brasil para suas operações*. M AT E R I A I S E M é T O D O S O projeto tem suas ações amparadas pela RESOLUÇÃO Nº 026/2012, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE), que regulamenta as atividades complementares nos Cursos de Graduação da UDESC, segundo Art. 2º item III**. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.53-61, nov. 2013 *“[...] O Projeto Rondon, coordenado pelo Ministério da Defesa, é um projeto de integração social que envolve participação voluntária de estudantes universitários na busca de soluções que contribuam para o desenvolvimento sustentável de comunidades carentes e ampliem o bemestar da população [...]”. E ainda: “[...] O Projeto Rondon tem por finalidade levar as Instituições de Ensino Superior e seus estudantes àquelas regiões menos favorecidas do Brasil, para dar-lhes a oportunidade de conhecerem essas realidades, socializarem seus saberes e, na interação com as comunidades, elaborarem propostas e criarem soluções participativas, de modo a atenuar as deficiências estruturais locais, contribuir para o bemestar dessas populações, e, simultaneamente, consolidar a formação dos universitários como cidadãos” [1]. **Atividades de extensão que constituam uma oportunidade da comunidade interagir com a Universidade, construindo parcerias que possibilitam a troca de saberes popular e acadêmico com aplicação de metodologias participativas. [4] 55 Os extensionistas desenvolvem oficinas temáticas dentro das áreas da extensão universitária: comunicação, cultura, direitos humanos e justiça, educação, meio ambiente, saúde, tecnologia e produção, e trabalho. As oficinas são desenvolvidas com base nas demandas socioambientais locais levantadas inicialmente pelo grupo a fim de determinar as potenciais questões a serem trabalhadas na comunidade. Nesta fase, cada oficina é descrita em documento que orienta as informações do saber a ser transmitido. São campos a serem preenchidos nesse documento: Justificativa para oficina, Público Alvo, Objetivos Específicos, Resumo de Aplicação, Carga Horária, Número de Participantes da oficina, Recursos e Materiais Necessários, Descrição Metodológica da Dinâmica, Duração, Resultados Esperados e Avaliação. Em cada oficina é necessário o desenvolvimento de uma Dinâmica de fixação do conhecimento que utilize linguagens e métodos diferenciados, de acordo com o perfil do público alvo, o que permite contextualizar a demanda levantada e oferecer, de forma clara e objetiva, uma ou mais propostas de solução para a temática em questão. A dinâmica permite envolver acadêmicos e público interessado em uma construção coletiva do saber, tendo ao seu final uma reflexão acerca do conhecimento proposto pela oficina. Há um direcionamento espontâneo das oficinas para a área temática ligada ao Meio Ambiente, o que acontece de forma natural em função do potencial acadêmico em trabalhar a temática, uma vez que os cursos do Centro de Ciências Agroveterinárias (CAV/UDESC) são vinculados à grande área Meio Ambiente, que possue demandas constantemente evidenciadas por lideranças comunitárias, por governantes e atores sociais locais e globais. Após período de desenvolvimento interno, as oficinas são aplicadas em escola(s) pública(s), grupos da sociedade civil organizada e/ou entidades parceiras do projeto. Todas as oficinas são avaliadas posteriormente com relatório e debate interno ao grupo. Ao final de cada agenda de aplicação, cada oficina documentada e aplicada pelo Projeto Troca de Saberes é adicionada a um arquivo único que forma uma apostila que é disponibilizada ao grupo e ao NER, formando um acervo de trabalhos a serem utilizados por outros acadêmicos da universidade em ações futuras da UDESC. ***Tal relação tornou-se defasta para o ambiente quando a sociedade subordinou a natureza a uma lógica mercadológica. Esse processo de separação entre indivíduo e natureza, não a reconhecendo como legítima mas como um recurso, juntamente com as possibilidades acumuladas pela técnica e pela ciência, conduziu a um processo de crescimento industrial desordenado, intensificando os problemas ambientais, que atingem hoje um largo espectro, desde a dilapidação dos ecossistemas até o aumento da criminalidade [8]. 56 DISCUSSÃO A Extensão Universitária e o Meio Ambiente O Centro de Ciências Agroveterinárias (CAV) possue em seus cursos de graduação e pós-graduação corpo docente e discente qualificado para desenvolver ações de Extensão Universitária na área temática Meio Ambiente, e também o compromisso de desenvolver essas atividades frente às demandas locais identificadas. O meio ambiente e as relações socioambientais vem sendo foco de discussões e estudos pela atual geração, devido aos casos negativos resultantes da ação humana sobre os recursos naturais. Neste sentido, buscam-se soluções para problemas ambientais a partir da reflexão e atitudes que resultem em mudanças dos hábitos negativos impostos pelo capital e pela política do produtivismo em sua atual e influente relação com o meio ambiente***[8]. Perspectivas da Extensão Universitária no Projeto Troca de Saberes O potencial de contribuição das universidades com projetos locais é enorme, atualmente existem cerca de 5 milhões de estudantes universitários (Dados do Censo de Educação, INEP). Se cada estudante dedicar parte de seus estudos em atividade sociais, seria possível, por meio da extensão universitária, desenvolver inúmeras atividades socialmente engajadas que contribuiriam para a melhoria dos problemas brasileiros**** [12]. É o que afirma Lucas Maciel Ramalho, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, coordenador do Programa de Extensão Universitária do Ministério da Educação [7]. O projeto Troca de Saberes identifica essa oportunidade e aposta na extensão universitária como contribuinte para a consolidação de uma sociedade que detenha hábitos e ações mais sustentáveis. A educação ambiental baseada em valores humanos e na valorização do meio ambiente é o caminho para essa meta global, conforme entende o documento das Nações Unidas “O Futuro que Queremos” nos parágrafos 229; 233; 251, desenvolvidos na Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável (RIO+20), respectivamente expostos***** [11]. ****Esta ação transformaria a educação superior em um verdadeiro vetor de melhoria da qualidade de vida da população. A Extensão Universitária e a Formação Acadêmica A extensão universitária do projeto Troca de Saberes permite a expansão dos horizontes do pensamento ao colocar acadêmicos em contato com experiências que os fazem refletir profundamente sobre valores e aspectos da dinâmica social ******. O projeto confirma a presença da academia na comunidade, dando ao estudante a oportunidade de ter uma experiência de aprendizado que vai além da cadeira acadêmica em uma relação direta com a sociedade, como explica Freire (1983) [6]. As demandas locais trabalhadas em oficinas estimulam a construção coletiva de saberes que beneficiarão: a comunidade, ao fomentar o raciocínio para solução do tema proposto, e o acadêmico, pelo fato de possibilitar a visão da problemática a partir de um ângulo diferenciado, o que contribui para um melhor entendimento de questões socioambientais que poderão, posteriormente, ser seu objeto de estudo no meio acadêmico ou na vida profissional. São experiências diferentes para cada voluntário, mas *****Reafirmamos nosso compromisso com o direito à educação e, nesse sentido, comprometemo-nos a reforçar a cooperação internacional para alcançar o acesso universal à educação primária, especialmente para países em desenvolvimento. Reafirmamos ainda que o acesso pleno à educação de qualidade em todos os níveis é uma condição essencial para alcançar o desenvolvimento sustentável [...]. (RIO+20, 2012). Tomamos a decisão de promover a Educação para o Desenvolvimento Sustentável e integrar o desenvolvimento sustentável mais ativamente na educação para além da Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (2005-2014). (RIO+20, 2012) Reconhecemos que há uma necessidade de informação global, integrada, e com bases científicas, sobre o desenvolvimento sustentável. [...] [...] Também nos comprometemos a mobilizar recursos financeiros e capacitação, particularmente para países em desenvolvimento, para garantir o sucesso dessa iniciativa. (RIO+20, 2012). ******“[...] A eficácia do trabalho extensionista está em fornecer um modelo pelo qual é possível observar a realidade. A realidade, por sua vez, nos fornece elementos para teorizar, e a teoria nos fornece elementos para expandir a análise da realidade [...]” [9]. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.53-61, nov. 2013 57 *******“[...] O conhecimento é gerado entre os homens em uma relação social, onde existem vários sujeitos que pensam, dialogam e comunicam, e que, por meio dessas ações constroem o mundo e constroem a si mesmos” [13]. que possuem um denominador comum, o sentimento de contribuição social*******. As falas dos estudantes que participaram do projeto são confirmadas por suas experiências particulares que vão ao encontro com o que o projeto busca e os teóricos observam. “a todo o momento houve troca de experiências e histórias entre o público alvo e os universitários”; “pode-se notar um grande interesse dos participantes pelo tema Meio Ambiente. No decorrer da Oficina houve uma troca de conhecimentos muito positiva”; “creio que o momento foi de extrema aprendizagem para todos”. ********Para a formação do profissional cidadão, é imprescindível sua interação com a sociedade por meio da extensão, seja para ele “se situar historicamente, para se identificar culturalmente e/ou para referenciar sua formação técnica com problemas que um dia terá que enfrentar” [10]. Tais experiências oferecem ao acadêmico a oportunidade de se reafirmar nas suas escolhas********. R E S U LTA D O S Entre 2012 e julho de 2013, foram realizadas 31 atividades, sendo 11 trabalhos desenvolvidos no primeiro semestre de 2012, 14 no segundo semestre, e 6 no primeiro semestre de 2013. A temática Meio Ambiente, com 58,0% das oficinas aplicadas, teve maior aplicação dentre outras áreas associadas à proposta pedagógica do projeto, como a Educação, com 29,0%, e a Saúde, com 12,9% dos trabalhos aplicados. Os diferentes cursos de Graduação envolvidos no projeto formaram uma equipe multidisciplinar com distintas formações e conhecimentos, o que tornou possível abranger diferentes demandas socioambientais. Houve um sutil destaque na participação do curso de Engenharia Ambiental em relação aos outros cursos do Centro, como mostra o Gráfico 1. Gráfico 1– Graduandos Participantes do Projeto por Curso 12 10 11 9 8 10 8 6 4 4 2 0 58 E ngen h aria E ngen h aria A mbiental F lorestal A gronomia Perspectivas da Extensão Universitária no Projeto Troca de Saberes M edicina E ngen h aria V eterin á ria A mbiental O projeto contemplou diferentes públicos com diversas faixas-etárias, tendo maior direcionamento de suas oficinas para alunos entre 0 e 5 anos de idade no primeiro semestre de 2012 e entre 6 e 11 anos no segundo semestre de 2012. Além desses contemplados, alunos com idade entre 12 e 17 anos participantes do Programa Ensino Médio Inovador do Ministério da Educação (ProEMI – MEC) [2], receberam oficinas no primeiro semestre de 2013, e alunos do Projeto Educação Jovens e Adultos (EJA), com faixa-etária entre 18 e 59 anos tiveram grande expressão numérica no somatório dos dois semestres iniciais do projeto. São os grupos, divididos por faixa etária, conforme o Gráfico 2. Gráfico 2 – Público Recebedor do Projeto por faixa Etária e Semestre Faixa Etária (anos) 18 a 59 53 12 a 17 68 245 81 6 a 11 233 0a5 162 20 0 1o semestre de 2013 1o semestre de 2012 2 o semestre de 2012 25 50 75 100 125 150 275 200 225 250 275 Quantitativo do Público Participante do Projeto Durante o período de aplicação do projeto, a temática Meio Ambiente envolveu 444 estudantes. A segunda grande área mais trabalhada foi a de Educação, que recebeu, em oficinas, 302 participantes. A temática Saúde, também de grande relevância no contexto local, recebeu 116 alunos em oficinas, como sintetiza o Gráfico 3. Gráfico 3 – Público Recebedor do Projeto por Área Temática Saúde 116 Educação 302 Meio Ambiente 444 0 100 200 300 400 500 Quantitativo do Público Participante Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.53-61, nov. 2013 59 CONCLUSÃO O projeto esteve, até o momento, em contato com a sociedade através de escolas públicas do município de Lages/SC e da escola Serviço Social da Indústria (SESI). Em suas atividades, o projeto sempre visou proporcionar aos estudantes o conhecimento de distintas realidades em suas relações com os públicos alvos e com os locais de aplicação. As abordagens das oficinas aplicadas foram além dos seus títulos e conteúdos de base, expandindo-se em assuntos contextualizados com a temática central da oficina, assuntos que, na maioria das vezes, foram levantados pelo público alvo conhecedor da problemática, pois este já a percebeu através de sua vivência cotidiana e/ou em situações distintas. Dessa forma, observou-se uma pré-disposição da sociedade em debater situações de seu interesse, sendo essas discussões orientadas e amparadas tecnicamente pelos acadêmicos. Tais debates e reflexões se fizeram positivos e construtivos junto ao público alvo que, conduzidos ao entendimento do objeto de estudo, se autodeclarou conscientizado. Nesse sentido, o trabalho realizado sempre esteve comprometido com os princípios de uma extensão universitária emancipatória, multidisciplinar e conectada com uma construção coletiva do saber, colocando em prática o papel e compromisso da universidade pública para com a sociedade que a financia. O projeto beneficiou ,entre 2012 e 2013, um total de 862 pessoas. REFERÊNCIAS [1] BRASIL. Ministério da Defesa. Projeto Rondon. Disponível em: <http://www. defesa.gov. br/projeto_rondon>. Acesso em: 20 jun. 2011. [2] BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Projeto Ensino Médio Inovador – ProEMI. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_ content&view=article&id=13439>. Acesso em: 10 mar. 2013. [3] BRASIL. Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Brasil (PNUD). Atlas de Desenvolvimento Humano 2013. Disponível em: <http://www.atlasbrasil.org.br/2013/download>. Acesso em 1 de ago. de 2013. [4] CONSELHO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO (CONSEPE) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). RESOLUÇÃO Nº 026/2012 – CONSEPE. Disponível em: <http://secon.udesc.br/consepe/resol/2012/0262012-cpe.pdf>. Acesso em 10 de mar. de 2013. [5] FÓRUM NACIONAL DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS. 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Acesso em: 08 jul. 2013. graduando do curso de Engenharia Ambiental do Centro de Ciências Agroveterinárias da Universidade do Estado de Santa Catarina (CAV/UDESC) – e-mail: [email protected] Guilher m e da S ilva R icardo professor associado ddo Centro de Ciências Agroveterinárias da Universidade do Estado de Santa Catarina (CAV-UDESC) – e-mail: [email protected] Á lvaro L ui z Ma f ra Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.53-61, nov. 2013 61 62 Perspectivas da Extensão Universitária no Projeto Troca de Saberes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Região Central Histórica de Santos e o Território Usado: Síntese de Múltiplas Determinações Central Historical Area of Santos City and the Used Territory: Synthesis of Multiple Determinations RESUMO O presente trabalho é produto de um estudo bibliográfico, documental e exploratório sobre a Região Central Histórica da Cidade de Santos, que visa compreender o uso do território pelos diversos sujeitos sociais e as expressões da totalidade em movimento dentro desse recorte em particular. Palavras-chave: Santos. Território Usado. Totalidade. Movimento. A nita Kurka , Ivelize Ferraz e Juliana A nastácio Universidade Federal de São Paulo. Departamento de Saúde, Educação e Sociedade, São Paulo, Brasil ABSTRACT The present work is a product of a bibliographic, documental and exploratory study about the Central Historical Area of Santos City, which aims to comprehend the use of the territory by the various social subjects and the expressions of the moving totality inside of this particular side view. Keywords: Santos. Used Territory. Totality. Movement. INTRODUÇÃO Síntese de múltiplas determinações, a Região Central Histórica de Santos, outrora valorizada e habitada por famílias tradicionais, era marcada por palacetes e modo de vida peculiar das elites; a partir da década de 1940, passa por um processo de acentuada degradação, expresso no abandono da região por parte dos grupos mais abastados que partiam em direção à orla da cidade. Desde a metade final do século XX até início do XXI, a região esteve esquecida pelo poder público e por parte da sociedade, tornando-se sinônimo, no imaginário coletivo, de pobreza e periculosidade, devido às suas zonas de prostituição e de consumo de drogas, por suas habitações coletivas (cortiços) e por seu grande contingente de população em situação de rua. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.63-72, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p63-72 63 No entanto, no ano 2003, a Prefeitura Municipal de Santos (PMS), por meio da Secretaria de Planejamento (SEPLAN), lançou o Programa Alegra Centro, pela Lei Complementar nº 470, que tem por objetivo a “revitalização” da Região Central Histórica de Santos, através da concessão de incentivos fiscais para determinados empreendimentos que se instalarem em qualquer um dos seus cinco bairros (Vila Mathias, Vila Nova, Paquetá, Centro e Valongo) a fim de que a região volte a ser uma área nobre e um símbolo da riqueza de Santos. O projeto de pesquisa intitulado “Um estudo bibliográfico, documental e exploratório da Região Central Histórica de Santos” constituiu-se em uma aproximação com a temática de transformação do espaço urbano na área central da cidade de Santos, suscitando questões relevantes para futuros estudos sobre o uso do território e a coexistência de diversos agentes sociais, tais como empresas, estabelecimentos públicos e privados e moradias. A seguir, apresenta-se uma síntese das informações e dos dados coletados durante a pesquisa. DISCUSSÃO A partir da compreensão de que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem segundo sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” [9], torna-se evidente a necessidade de um resgate histórico para propor a análise e compreensão dos processos de transformação dos espaços urbanos em geral. Em concordância com o assinalado por Karl Marx [8], “o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do diverso”, considera-se que a “concretude” da Região Central Histórica de Santos, construída por processos decorrentes do uso do território pelos sujeitos, pelas empresas, por estabelecimentos da sociedade civil, entre outros, numa contínua relação entre o par dialético fixos e fluxos [17], é produto, enquanto síntese e resultado, mas é também ponto de partida para entendimento do real e produtora de relações sociais. No século XIX, Santos já era uma cidade vibrante, que pulsava, revelando toda a efervescência e os múltiplos eventos ocorridos nos lugares de seu território, como evidencia Tavares ao se referir a alguns dos epítetos recebidos por Santos” [19]: “‘Porto maldito’, ‘Centro sindical nº 1 do Brasil’, ‘Barcelona brasileira’, ‘Montecarlo do café’, ‘Cidade vermelha’, ‘Moscouzinha’, ‘Porto vermelho’, ‘Cidade heroica’, ‘Moscou brasileira’, ‘Cidade de Prestes’, ‘República sindicalista’. Partindo dessas alcunhas recebidas pela cidade, símbolos dos olhares e opiniões a respeito dela, versaremos sobre aspectos e processos históricos e sociais gestados em seu interior. O porto de Santos, hoje o maior da América Latina, com 13 quilômetros de extensão, era alegoria do crescimento econômico nacional já no início do século XX. Visando uma melhora qualitativa da organização dos serviços marítimos, sua construção foi iniciada no ano de 1888 via concessão a uma empresa privada, a Gaffrêe e Guinle [7]. Em razão da construção do cais em local insalubre, resultou o advento de determinadas doenças, tais como a varíola, peste bubônica e a febre amarela que, adentrando pelo porto, agravaram-se devido às práticas inadequadas dos moradores da cidade, como o 64 Região Central Histórica de Santos e o Território Usado: Síntese de Múltiplas Determinações descarte de dejetos nos quintais das casas ou em vias públicas, sendo a causa da morte de mais da metade da população entre os anos 1890 e 1904. Daí, o porto ser conhecido também pelo adjetivo “maldito”. Os bairros da Região Central Histórica de Santos, marcados por profundas desigualdades sócio-espaciais, durante o século XIX e nas primeiras décadas do século XX, caracterizavam-se pela presença de famílias com grande poder aquisitivo, como a elite cafeeira santista, que compôs o núcleo moderno e de maior importância econômica para a cidade. Por sua vez, os trabalhadores residiam em bairros próximos a essa região, como o Macuco, sendo a orla da cidade reservada aos pescadores tradicionais e a suas famílias. Após a abolição da escravatura e chegada da mão-de-obra estrangeira, determinados bairros passaram a ser referências do processo migratório. Como assinala Matos [10] acerca da imigração portuguesa na cidade de Santos e o uso do território por esse grupo social específico: O sistema implantado optou preferencialmente pela introdução de europeus e em unidades familiares, o que permitiu aos cafeicultores obter um suprimento de trabalho complementar barato, fornecido pela mão-de-obra feminina e infantil, garantindo o abastecimento de braços durante a colheita, enquanto ao colono, através da cooperação da unidade familiar, tornava-se possível um melhor aproveitamento das oportunidades de ganho. [10] Ainda decorrente do fluxo migratório, um fato curioso é que o atual bairro Valongo passou a ser conhecido como “Bairro Chinês” devido à imigração japonesa, confusão provocada por chineses e japoneses serem orientais e possuírem fenótipos semelhantes [12]. De acordo com Tavares [19], Do complexo emaranhado de fatores que distinguiam os bairros, os habitantes da época retiveram a distribuição espacial da população santista. Na década de 1930, tal divisão dava margem para que as pessoas retivessem a imagem de uma heterogeneidade entre os bairros de Santos e uma pretensa homogeneidade dentro de cada um. [19] Essa concepção é resgatada na memória social e impregnou o imaginário santista, pois a relação dos moradores (especialmente os mais antigos) com os bairros é de grande identificação, como se cada bairro da cidade – e cada habitante dele – possuísse características peculiares que o distinguisse dos demais e que mantivesse proximidade e semelhança apenas entre os sujeitos no interior de cada bairro. A elite santista que, até o início do século XX vivia, predominantemente, no bairro do Valongo, transfere-se para a Vila Nova, pois, com a expansão do comércio cafeeiro e do porto, o primeiro passa a abrigar inúmeros armazéns de estoque de café. Influenciada por esse contexto, há a construção do Mercado Municipal, no ano 1902, na atual Praça Iguatemi Martins. Composto por boxes que vendiam legumes, frutas, verduras, carnes e peixes, este surge pela necessidade de abastecer a população com produtos alimentícios, tendo, ainda, a prerrogativa de situar-se próximo a um canal marítimo. Em 1906, com a construção da rampa dos atracadouros, a Bacia do Mercado passa a integrar o transporte de cargas e pessoas para o antigo Itapema, localizado na cidade do Guarujá [6]. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.63-72, nov. 2013 65 Na atual Rua XV de Novembro, no Centro, agora restaurada, sob a iluminação de época e sobre o calçadão, entre cafés e restaurantes, há o imponente prédio transformado em museu, que outrora abrigou a Bolsa Oficial do Café, nos tempos áureos desse produto, pré-crise de 1929. Nessa época, Santos era conhecida como a “Montecarlo do Café”, de famílias tradicionais, elites palacianas, imigrantes (espanhóis, portugueses e japoneses, principalmente) e trabalhadores. Desse processo de coexistência e convivência entre diversos sujeitos sociais e espaços públicos e privados nas cidades, Ana Lanna explicita: O crescimento urbano foi caracterizado pela edificação de belas casas e palacetes, pela negação do sobrado colonial e das formas de vida nele estabelecidas, pela construção de novos espaços e formas de lazer, pelo aparecimento de lojas, cafés, restaurantes, teatros e parques. Mas foi, ao mesmo tempo, caracterizado pelo aparecimento de cortiços, de bairros populares, de trabalhadores ditos “arruaceiros”, “incivilizados”, “vagabundos” que com sua presença e movimento também marcaram as novas cidades.[5] Os chamados “arruaceiros” eram um símbolo de resistência em uma Santos onde a elite temia ante a possibilidade de revoltas com tendências comunistas (“Moscouzinha”) e anarquistas (“Barcelona Brasileira”), vendo-se obrigada a atender a determinadas demandas da classe trabalhadora a fim de manter o porto em pleno funcionamento e assegurando a exportação de café. A cidade foi, ainda, espaço de embates entre o Estado Varguista e os trabalhadores. O porto passa, assim, a ser um local onde a vigilância constante era necessária a fim de evitar influências advindas do exterior que pudessem ser prejudiciais ao que projetava o governo. O processo de expansão capitalista, com seus efeitos múltiplos, expresso em Santos na “expansão comercial e do porto e as facilidades de comunicação com a praia acabaram gerando um novo conceito de ‘morar bem’: os mais abastados se foram para a porção meridional da ilha” [14]. A consolidação do porto e as consequentes doenças por ele ocasionadas, bem como o movimento e circulação de trabalhadores na região central, a chegada e o estabelecimento de migrantes e a crise econômica (e social) ocorrida entre 1929 e 1932, que ocasionou a decadência do café, são alguns dos motivos pelos quais as famílias ricas deixaram as imediações do porto e partiram em direção à orla da cidade. Assim, a Região Central Histórica de Santos passou por um acentuado processo de degradação, revelador de desigualdades sócio-espaciais e do “caráter de classe na ocupação do solo” [19]. Os trechos abaixo assinalados, extraídos de publicações de jornais da cidade de Santos, revelam alguns aspectos dos bairros Paquetá, Vila Mathias e Centro, respectivamente, que integram a Região Central Histórica de Santos, evidenciando características da degradação política e social sofrida por aquela localidade: O Paquetá é delimitado pelas ruas São Francisco e Xavier da Silveira, Constituição e João Otávio. Desse quadrilátero que expõe muita miséria, o desenvolvimento parece passar longe. A própria Secretaria de Planejamento estima que todas as habitações ali são “subnormais”, classificação dada a moradias sem condições estruturais nem sanitárias de acolher seres humanos. [1] “Tô aqui na praça. Para onde é que eu vou? Tô sujo, só com essa roupa, mas nunca fui de pedir nada a ninguém. Tomo banho em torneira de obra, passo fome”. Rafix fala, lembra-se da família que ficou 66 Região Central Histórica de Santos e o Território Usado: Síntese de Múltiplas Determinações numa cidadezinha perdida no Nordeste e seus olhos se enchem de lágrimas. Ao seu redor, há muitas outras pessoas na mesma condição de miséria. Na rua, homens e mulheres passam apressados. Uma mistura de medo e desprezo estampados no rosto. [13] Onde foi parar aquele mundo de gente e de carros? O silêncio tomou conta do Centro: agora ele pertence aos bêbados, às prostitutas, às famílias dos porões. Pertence a essa gente amargurada. [11] Desde a metade final do século XX até início do XXI, a Região Central Histórica de Santos esteve esquecida pelo poder público e por parte da sociedade. Ficou conhecida, a partir de então, por suas habitações coletivas (cortiços), suas zonas de prostituição e de consumo de drogas, seu grande contingente de população em situação de rua e de trabalhadores informais, tornando-se sinônimo, no imaginário coletivo, de pobreza e periculosidade. Figura 1 – Pessoa em situação de rua nas imediações do campus da UNIFESP-BS. No entanto, no ano 2003, a Prefeitura Municipal de Santos (PMS), por meio da Secretaria de Planejamento (SEPLAN), lançou o Programa Alegra Centro, pela Lei Complementar nº 470, que tem por objetivo a “revitalização” da Região Central Histórica de Santos. Trata-se de um projeto higienista, vertical, que não objetiva a emancipação humana e a erradicação da pobreza, mas apenas um manejo das expressões da questão social, no sentido de esconder e camuflar, transferindo-as para outras regiões da cidade, como a Zona Noroeste e a Serra, por exemplo, e da Baixada Santista, a fim de que a região central volte a ser uma área nobre e símbolo da riqueza de Santos, atendendo aos interesses do capital e negligenciando as demandas sociais. Nas palavras de Comitre, com o programa Alegra Centro, a região central de Santos vai se reestruturando de acordo com os interesses do poder público, que neste caso muito se aproxima dos ideais privados, por meio da permissão ou não de determinado empreendimento se fixar nesta área. [3] através da concessão de incentivos fiscais para atividades que estejam direcionadas aos seguintes segmentos: Turismo e Hospedagem, Diversões, Beleza e Higiene Pessoal, Educação e Cultura, Comércio Varejista, Profissionais Liberais e Ateliês Artísticos, Prestadores de Serviços [15]. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.63-72, nov. 2013 67 Ante tais requisitos, o Alegra Centro impulsionou para a região empresas privadas e instituições de ensino, tais como a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP – Campus Baixada Santista) e a Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (FATEC), atualmente em construção no local da antiga Hospedaria dos Imigrantes, prédio datado de 1912, ambas situadas na Rua Silva Jardim, no bairro Vila Mathias. Incentivando o turismo, há o projeto Linha Turística – Museu Vivo do Bonde, que percorre um trajeto no Centro e passa pelos pontos de interesse cultural e histórico para a cidade. Junto com tais aparentes indicativos de desenvolvimento e crescimento econômico da região, há a especulação imobiliária, evidenciada na instalação do “Condomínio Trend Home & Office”, empreendimento de alto padrão, residencial e comercial, localizado entre as ruas Silva Jardim e Emílio Ribas. Ante essas informações acerca do processo de transformação do espaço urbano e uso do território da Região Central Histórica de Santos, evidenciam-se algumas questões que serão abordadas à luz da concepção teórica de Milton Santos. Partindo-se do conceito de Milton Santos relativo ao espaço geográfico como produto, mas também como produtor de relações sociais, numa perspectiva dialética, a análise da Região Central Histórica de Santos deve estar pautada na compreensão de que as marcas legadas pelo passado, no movimento histórico de urbanização e ocupação, são fundamentais no esforço de depreender o atual uso do território em questão. Para Milton Santos, o território só adquire significado quando é usado ou praticado, podendo conceituá-lo como um “conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações (intencionalidade para a qual é construído)” [4], possuindo sua centralidade no trabalho humano, através da ideação e transformação da natureza pelos homens e mulheres. A cidade é una e indivisível, sendo seu território usado em duas vertentes: como recurso e como abrigo. Tal conceito pode ser observado materializado na Região Central Histórica de Santos, onde convivem empresas privadas, estabelecimentos da sociedade civil, habitações coletivas (cortiços), residências de famílias tradicionais e moradores em situação de rua, em uma totalidade em movimento. O território usado como recurso é o espaço de ação do poder hegemônico, com preocupações imediatistas e nenhum ou pouco compromisso com o entorno. É o poder desterritorializado, segundo o qual a lógica de funcionamento pode ser descontínua. Segundo Bauman [2], as corporações têm a liberdade de movimento para mudarem-se quando lhes for conveniente, isto é, quando as possibilidades de lucro estiverem esgotadas, mas as consequências de sua passagem permanecem na localidade, revelando o caráter de uso do território apenas como um recurso volúvel e descartável. O território como abrigo refere-se ao espaço banal, ao espaço que, enraizado pela ação social, é o suporte da vida de relações, da solidariedade doméstica. É a ação social territorializada, cuja lógica de funcionamento obedece à contiguidade, à vizinhança. Nas cidades, esses territórios convivem, são interdependentes, por vezes apartados, outras vezes sobrepostos; a proximidade e a vizinhança ganham novos contornos de cooperação e conflito, pois o que é vizinho pode não ser próximo, daí originando-se os conflitos que agudizam a vida urbana. Por tal motivo, os conflitos da atualidade não podem ser compreendidos sem uma clara análise dos diferentes usos do território. Objetivando a aproximação e a apreensão do uso do território pelos diversos agentes 68 Região Central Histórica de Santos e o Território Usado: Síntese de Múltiplas Determinações sociais, foi realizada uma coleta de dados acerca da localização e distribuição nos lugares do território da Região Central Histórica de Santos dos equipamentos públicos de saúde e de assistência social e dos estabelecimentos socioassistenciais filantrópicos, bem como das instituições religiosas. Por meio de fontes oficiais, como o site da Prefeitura de Santos, foi possível a construção de listagens, que indicaram a presença de 40 equipamentos públicos de saúde, 15 de assistência social, de 16 equipamentos socioassistenciais filantrópicos e 37 instituições religiosas. Figura 2 – Área onde foi realizada visita de campo. Atendendo o objetivo já mencionado, mas visando uma compreensão para além daquela possibilitada pelos órgãos oficiais, foram selecionadas algumas ruas situadas dentro de um polígono demarcado, que tem como polos a UNIFESP e o Mercado Municipal. Nessa área, foram realizadas visitas de campo, observação e início de uma cartografia da ação, visando um recorte da totalidade em movimento que nos forneça subsídios para o entendimento das relações contraditórias que marcam o uso do território. Por cartografia da ação [16] entende-se o tipo de levantamento espacial que inclui os elementos territoriais e os sujeitos sociais que realmente existem e deles fazem uso. Tal percurso foi escolhido por abrigar construções antigas e de significado social e histórico, como a Hospedaria dos Imigrantes (1888) e o Mercado Municipal (1902); novos projetos e empreendimentos decorrentes do programa Alegra Centro, como a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); empresas e galpões industriais relacionados ao Porto de Santos; habitações coletivas (cortiços) e de “famílias tradicionais”; equipamentos socioassistenciais filantrópicos, como o Grupo Amigo do Lar Pobre (GALP); equipamentos públicos, como a Unidade Básica de Saúde (UBS) Martins Fontes; grupo de imigrantes, especialmente portugueses; população em situação de rua; pessoas que trabalham e/ou estudam nas imediações; entre outros sujeitos e equipamentos que coexistem e constroem a vida nos bairros Vila Mathias e Vila Nova. No interior do polígono, Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.63-72, nov. 2013 69 foram localizados 185 estabelecimentos comerciais, 17 estabelecimentos públicos e 23 estabelecimentos da sociedade civil (instituições religiosas e filantrópicas). As informações obtidas por meio do processo de pesquisa revelam a existência e convivência dos mais variados tipos de imóveis, destinados a fins diversos, cada qual possuindo um público alvo específico, que caracteriza e influencia o cotidiano da vida social, conforme assinalado por Milton Santos: O dia-a-dia das sociedades gira em torno dos objetos fixos, naturais ou criados, aos quais se aplica o trabalho. Fixos e fluxos combinados caracterizam o modo de vida de cada formação social. Fixos e fluxos influem-se mutuamente. [18] Embora as cidades não sejam algo planejado e previsível, a distribuição dos fixos nos lugares do território não ocorre de forma aleatória, mas sim atendendo a interesses pré-determinados. Geralmente, os fixos privados atendem a interesses econômicos, de acordo com a lei da oferta e da procura e, os fixos públicos, às demandas sociais, sendo que a localização espacial destes são reflexo dessas necessidades. No entanto, em países de capitalismo tardio, como o Brasil, não há a adoção de “um distributivismo geográfico que sirva de base à desejada justiça social” [18]. Apesar de haver certa defasagem entre os dados da listagem oficial e aqueles coletados através da visita de campo, especialmente ao que se refere a instituições religiosas de pequeno porte, pode-se afirmar que a população residente na Região Central Histórica de Santos não se encontra desassistida, pois há considerável quantidade de equipamentos públicos da saúde e da assistência social nas imediações. Contudo, cabe ressaltar a questão dos problemas estruturais do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em que as necessidades e demandas da população usuária acabam por ultrapassar a possibilidade de ação, devido, entre outros motivos, à escassez de recursos e práticas burocratizadas. Ainda como elemento revelador de desigualdades sócio-espaciais, pode-se citar o fato de que as instituições religiosas e os estabelecimentos comerciais renomados e de grande porte estão situados em ruas e avenidas de maior visibilidade e facilidade de acesso. CONCLUSÃO Ante o resgate histórico e a análise conceitual apresentados, nota-se que o uso do território por todos os agentes sociais gera um princípio a ser considerado: as desigualdades sócio-espaciais, que constituem a essência da dinâmica dos lugares, devendo ser identificadas e enfrentadas pelos profissionais – da academia e da administração pública – juntamente com a população, na implantação e consolidação de políticas públicas. As observações feitas e o conhecimento construído acerca da Região Central Histórica de Santos apontam, ainda, para a realização de novas pesquisas, tal como uma que já vem sendo realizada atualmente a respeito das estratégias de sobrevivência de moradores/as de cortiços. 70 Região Central Histórica de Santos e o Território Usado: Síntese de Múltiplas Determinações REFERÊNCIAS [1] A TRIBUNA DE SANTOS. Lugar onde os cortiços se impõe. A Tribuna de Santos, Santos, 07 jun. 2010. Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/ santos/bairronm.htm>. 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São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2007. professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista (UNIFESP-BS) e responsável pelo grupo de estudos Território Usado e Memória Social, ligado ao Núcleo de Políticas Públicas Sociais A N I TA K U R K A graduanda em Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista (UNIFESP-BS) – e-mail: [email protected] IVELIZE FERRAZ graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista (UNIFESP-BS) J U L I A N A A N A S TÁ C I O 72 Região Central Histórica de Santos e o Território Usado: Síntese de Múltiplas Determinações Revista Cultura e Extensão USP Volume 10, nov. 2013 73 74 Região Central Histórica de Santos e o Território Usado: Síntese de Múltiplas Determinações Desenvolvimento Participativo de um Suporte para Almofada das Rendeiras de Bilro do Município de Saubara, Bahia Participatory Development of a Support Pillow for Bobbin Lace Makers of the City of Saubara, Bahia R esumo A economia solidária tem se apresentado como alternativa de geração de trabalho e renda que, na sua essência, se constitui de valores de cooperação, democracia e solidariedade. Na economia solidária há a preocupação com a inclusão social geradora de benefícios econômicos e melhores condições de saúde e trabalho. Baseado nesse pensamento, realizou-se a análise ergonômica do trabalho (AET) das rendeiras de bilro da Associação dos Artesãos de Saubara, cidade localizada no Recôncavo Baiano. Os resultados da AET das rendeiras de bilro revelaram condições posturais inadequadas, durante o rendar, aspecto que pode provocar lesões na coluna vertebral e nos membros superiores. A partir da análise desses dados, foi proposta a criação de um suporte para as almofadas, onde são confeccionadas as rendas, seguindo o método do design participativo. Espera-se que esse suporte possa melhorar a qualidade de vida das rendeiras de bilro de Saubara, Bahia, e que essta iniciativa possa ser replicada por rendeiras de em outras regiões do Brasil. Palavras-chave: Economia solidária. Design participativo. Rendeiras. Gabriel R ibeiro e Tatiana R ibeiro Velloso Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Centro de Ciências Agrárias, Ambientais e Biológicas, Bahia, Brasil A bstract The solidarity economy's has emerged as alternative source of employment and income, which in essence there are values of cooperation, democracy and solidarity. In solidarity economy's concern with social inclusion that generates economic benefits and improved health and work. Based on that thought there was the ergonomic analysis of work (EAW) of bobbin lace makers of the Association of Artisans Saubara, a city in Recôncavo Baiano. The results of EAW for bobbin lace makers proved inadequate postural conditions during the render, an aspect that can damage the spine and upper limbs. From the analysis of these data was proposed to create a support for the cushions, where rents are made by the method of participatory design. It is hoped that this support can Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.75-83, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p75-83 75 improve quality of life of bobbin lace makers of Saubara, Bahia and that this initiative can be replicated by the lace makers in other regions of Brazil. Keywords: Solidarity economy's. Participatory design. Lace makers. I ntrodução A economia solidária surge como uma alternativa de organização capaz de gerar e de distribuir riquezas considerando que, para a reprodução de qualquer sociedade, são necessários os laços de solidariedade, de forma a contrapor o modelo individualista e competitivo [9]. Dessa forma, pode-se afirmar que a interação social dividiu-se em dois campos distintos na sociedade: o competitivo, vinculado ao processo de acumulação de capital, e o solidário, com a centralidade no ser humano. A economia solidária (ES) compreende diferentes tipos de empreendimentos que objetivam proporcionar a seus membros benefícios econômicos. Esses empreendimentos surgem como reações a carências que o sistema dominante se nega a resolver, assim como uma forma de inverter o centro das atenções a partir do ser humano e não do capital [9]. Nesse contexto, os empreendimentos solidários possuem formas de organização como associações, cooperativas, empresas recuperadas autogestionárias, agricultura familiar, fundos rotativos solidários, redes e articulações de comercialização de cadeias produtivas solidárias. Segundo Roberto Silva e Maurício Faria [8], o “Brasil identificou, até agosto de 2007, a existência de quase 22 mil Empreendimentos Econômicos Solidários (EES), com cerca de um milhão e setecentos mil homens e mulheres”. Dentre as atividades dos EES, pode-se destacar o artesanato desenvolvido por rendeiras de bilro em diversas regiões do Brasil. A renda de bilro é uma arte produzida a partir de cruzamentos e entrelaçamento de linhas, por meio de bilros (hastes cilíndricas de madeira) que são manejados sobre um esboço feito no papel. Este esboço de papel é fixado em uma almofada, através de alfinetes, que orientam a passagem dos fios dos bilros. As almofadas são apoiadas sobre um suporte (caixote) de madeira que é sobreposto em um banco ou cadeira, posicionado à frente do local onde as artesãs ficam sentadas [5]. Tal prática demanda alta repetição e grande velocidade nos movimentos de braços, punhos, mãos e dedos, movimentos esses que normalmente levariam ao desenvolvimento de lesões ocupacionais, tais como LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho) que são lesões que ocorrem em ligamentos, músculos, tendões e em outros segmentos corporais, relacionadas à repetição de movimentos, posturas inadequadas e outros fatores, como a força excessiva. Apesar disso, existe uma baixa prevalência de LER/DORT nas rendeiras de bilro por conta de fatores como: controle do próprio ritmo e jornada de trabalho; substituição do medo de demissão devido à insuficiência de produção pelo compromisso com o trabalho acabado; ausência de hierarquia, que minimiza o estado de tensão e alerta. Ainda assim, foram relatadas dores, parestesias em membros superiores e patologias como bursite e tendinite, que não foram relacionadas à atividade de rendar propriamente dita, mas às condições de trabalho inadequadas em que a mesma é desempenhada [5]. 76 Desenvolvimento Participativo de um Suporte para Almofada das Rendeiras de Bilro do Município de Saubara, Bahia Frente a essa problemática, surge a possibilidade de intervenções no ambiente de trabalho, através de modificações no espaço físico no intuito de diminuir a sobrecarga musculoesquelética das trabalhadoras a partir do processo de incubação de empreendimentos solidários. O processo de incubação é inovador, porque tem a universidade como um dos sujeitos que pode contribuir e ter contribuição no sentido de promover a extensão universitária de forma integrada com o ensino e a pesquisa. As incubadoras universitárias de empreendimentos solidários buscam atender às demandas tanto dos trabalhadores como de outros segmentos da economia solidária que possam apoiar a formação de empreendimentos solidários. Neste sentido, o objetivo deste trabalho foi descrever o processo de construção de uma estrutura de suporte para as almofadas das rendeiras de bilro da Associação das Artesãs de Saubara (Bahia), utilizando como referenciais a análise ergonômica do trabalho e o design participativo, com fortalecimento das ações da associação na sua dimensão econômica, social, cultural e política no processo de incubação. M ateriais e M étodos Caracterização da Associação das Artesãs de Saubara Localizada no Recôncavo Baiano, às margens da Baia de Todos os Santos, Saubara – nome de origem indígena que significa “terra dos comedores de formiga”. A renda de bilro e o trançado de ouricuri, artesanatos produzidos nessa comunidade tradicional da Bahia, são uma marca, passada de geração a geração [7]. Atualmente, a associação conta com cerca de 110 associadas, sendo reconhecida pela comunidade local como Casa das Rendeiras. O trabalho da Associação de Artesãs de Saubara baseia-se na preservação de aspectos culturais, como o uso de linha de algodão de cor branca, formato tradicional da renda, e trabalho solidário como princípio definido por todas as rendeiras. A confecção da renda se transformou num ofício que complementa o sustento das famílias, visto que a maioria dessas artesãs trabalha pela manhã como marisqueiras e, à tarde, na atividade da renda de bilro. Análise Ergonômica do Trabalho das Rendeiras de Bilro A avaliação ergonômica da atividade das rendeiras de bilro baseou-se nos princípios da análise ergonômica do trabalho (AET). Esta proposta avalia a adaptação das condições laborais ao trabalhador por meio de observação do ambiente trabalho, das atividades que são desenvolvidas pelo corpo e das dificuldades físicas e cognitivas que afetam diretamente a vida dos trabalhadores. Sendo assim, a AET depende da participação efetiva dos indivíduos avaliados que, através de suas interpretações sobre os problemas, identificam os pontos críticos que os cercam [6]. Primeiramente, a AET procura delimitar o problema específico com base na análise dos principais pontos críticos, buscando entender o problema para, assim, poder elaborar métodos de intervenção. Nesse sentido, AET centra seus objetivos e métodos em Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.75-83, nov. 2013 77 melhorias e modificações no ambiente de trabalho, propondo estratégias de prevenção de riscos, conforto, segurança e bem-estar ao trabalhador [10]. Segundo Fialho e Santos [1], a AET comporta três fases: de análise da demanda, análise da tarefa e análise das atividades. A análise a demanda é a definição do problema a ser analisado, a partir de uma negociação com os diversos atores sociais envolvidos; a análise da tarefa é o que o trabalhador deve realizar e as condições ambientais, técnicas e organizacionais desta realização; a análise das atividades é o que o trabalho, efetivamente, para executar a tarefa. É a análise do comportamento do homem no trabalho. [1] A partir da análise da demanda, foram levantadas as questões organizacionais das situações de trabalho em estudo através de entrevistas com as rendeiras de bilro e da matriz de priorização de problemas. Esta última técnica, elemento do diagnóstico rápido participativo, é uma ferramenta que permite o levantamento e a discussão dos principais problemas identificados durante o diagnóstico de acordo com sua importância e/ou urgência [11]. Na análise da tarefa, foram utilizadas observações aberta e armada (vídeos, fotografias) e o método RULA (Rapid Upper Limb Assessment), descrito por Mc Atamney e Corlett [3]. A análise das atividades foi feita através da utilização da técnica de autoimagem, por meio de vídeos e fotografias. Após a visualização das tarefas que executam, as trabalhadoras puderam perceber a sobrecarga a que seus corpos estão submetidos e, consequentemente, refletir sobre as possibilidades de mudança. Design Participativo Segundo Lima et al. [2], design social é aquele que vai além da satisfação das necessidades econômicas e mercadológicas para beneficiar toda a sociedade. Uma ampla agenda de pesquisa para o design participativo deve começar considerando uma série de questões. Pode-se usar uma abordagem multifacetada para explorar essas questões. Questionários de pesquisa e entrevistas com profissionais de serviços humanos, designers e administradores de agências podem ser conduzidos para reunir informações sobre percepções e atitudes, a fim de solicitar sugestões para mudança. A combinação de métodos de pesquisa deve explorar questões que variam do amplo contexto social, dentro do qual os designers trabalham, até especificidades para desenvolver um produto voltado para um sistema de clientes em particular [4]. Segundo Zanella et al. [12], a renda de bilro é uma manifestação cultural. Assim, deve ser entendida como atividade social realizada por um coletivo. Ao aprendê-la, o indivíduo toma parte não somente de um fazer, mas também de toda a história e valores que lhe são característicos, imprimindo-se uma marca singular. A observação participativa possibilita o ingresso de designers, ergonomistas e outros profissionais em ambientes sociais desse tipo, permitindo observar e documentar as necessidades sociais que podem ser atendidas pelo design participativo. O processo de design participativo, desenvolvido neste estudo, teve como principal foco a adequação do posto de trabalho das rendeiras à atividade por elas desenvolvida. 78 Desenvolvimento Participativo de um Suporte para Almofada das Rendeiras de Bilro do Município de Saubara, Bahia R esultados e D iscussão Análise Ergonômica do Trabalho das Rendeiras de Bilro No processo de análise da demanda, as rendeiras de bilro da Associação das Artesãs de Saubara relataram que os principais problemas estruturais desta atividade laboral são: peso da almofada onde se faz a renda, falta de espaço para movimentar os membros inferiores e dificuldades para manter a coluna encostada sobre alguma superfície de apoio durante o ato de rendar. De acordo com o relato das trabalhadoras, a almofada deve ser posicionada de forma paralela e perpendicular a elas, durante a ação de rendar, e este ato de carregar a almofada, para modificar o posicionamento, promove uma sobrecarga na musculatura do pescoço (músculos da região cervical da coluna vertebral). A falta de espaço para movimentar as pernas gera câimbras e formigamento (parestesia) em membros inferiores, enquanto a falta de apoio para a coluna vertebral leva ao aparecimento de dores na região lombar (lombalgias). A análise da tarefa das rendeiras de bilros evidenciou condições posturais inadequadas, tais como: excessiva flexão do tronco (associado à falta de apoio para a coluna vertebral) e flexão dos braços (acima de 45 graus). Além disso, foi verificado que o peso da almofada demanda grandes esforços musculares do trapézio superior e do angular da escápula (Figura 1). Figura 1 – Posturas adotadas pelas rendeiras de bilro da Associação das Artesãs de Saubara durante atividade laboral. Esses aspectos relacionaram-se às queixas álgicas das rendeiras, localizadas sobretudo na coluna lombar e sobre os músculos da cintura escapular, principalmente, trapézio superior e angular da escápula. A tarefa das rendeiras obteve escore 6, no método RULA, sugerindo a necessidade de investigações e inserções de mudanças na estrutura física do ambiente de trabalho. A análise das atividades feita através da utilização da técnica de autoimagem, com apoio de fotografias e vídeos, permitiu que as trabalhadoras refletissem sobre o posicionamento adotado durante a atividade laboral, concluindo que a estrutura de suporte para a almofada, caixote sobre banqueta, não contribui para a realização de um trabalho ergonomicamente adaptado. A AET da atividade das rendeiras de bilro sugere a modificação da estrutura de Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.75-83, nov. 2013 79 suporte para a almofada, no intuito de garantir condições posturais adequadas tais como, coluna ereta e plenamente recostada, braços com ângulo de flexão menor que 45 graus e pernas com liberdade para deslocamento durante a atividade laboral. Desenvolvimento Participativo do Suporte para Almofada das Rendeiras de Bilro O primeiro movimento na construção do suporte para almofada das rendeiras foi informá-las sobre os principais objetivos deste processo, dentre eles, tornar o trabalho menos insalubre, diminuir os esforços físicos, prevenir doenças ocupacionais e, principalmente, desenvolver uma estrutura de acordo com as sugestões e necessidades apontadas pelas trabalhadoras. Posteriormente, foi identificada a necessidade de construir um suporte que atendesse diferentes padrões antropométricos (altura corporal e comprimento dos membros inferiores) e as demandas das atividades laborais. Nesta perspectiva, foi elaborado um primeiro protótipo em madeira composto de um tampo com altura fixa, associado à pernas articuladas em “X”, dotada de estruturas removíveis de suporte para almofada, formando uma única peça (Figura 2). Esse protótipo, composto por um sistema de travas, possibilita o uso de um novo modelo de almofada (Figura 2), mais leve, que permite o manuseio com menos esforço, e consequentemente, diminui a sobrecarga em membros superiores. Esse protótipo elimina também a limitação de extensão do joelho, pois há espaço suficiente sob o tampo para a sua movimentação. Em contrapartida, as rendeiras apontaram algumas limitações para o protótipo, dentre elas: largura insuficiente para acomodação da coxa e perna de algumas rendeiras, falta de praticidade para regular a altura do suporte e, principalmente, dificuldade para trabalhar com o novo modelo de almofada. Este último aspecto relaciona-se com a cultura de confeccionar sua própria almofada de trabalho com materiais da própria região a partir de um conhecimento repassado entre gerações – tentar alterá-lo não foi a melhor estratégia. Figura 2 – Primeiro protótipo do suporte para almofada das rendeiras de bilro da Associação das Artesãs de Saubara. De acordo com as inadequações do primeiro protótipo, resolveu-se construir um segundo protótipo, em estrutura metálica, composto por três regulagens. Dentre essas, regulagem da altura do suporte, eixo para rotação do suporte, permitindo que a almofada fique orientada de forma paralela e perpendicular às rendeiras e eixo de inclinação permitindo 80 Desenvolvimento Participativo de um Suporte para Almofada das Rendeiras de Bilro do Município de Saubara, Bahia que a almofada fique inclinada em diferentes ângulos. Além disso, o suporte para almofada deveria contemplar a liberdade para deslocamento dos membros inferiores durante a atividade laboral. A figura 3 representa o croqui do segundo protótipo. Este croqui foi apresentado às rendeiras de bilro que aprovaram a construção do segundo protótipo. Figura 3 – Croqui do segundo protótipo para almofada das rendeiras. I – barra que permite a rotação do suporte; II – barra que permite regular a altura do suporte; III – base do suporte. Este segundo protótipo (Figura 4) foi apresentado às trabalhadoras, que solicitaram um último ajuste relacionado à configuração de sua base de sustentação. Figura 4 – Teste do segundo protótipo por uma rendeira de bilro da Associação das Artesãs de Saubara. Segundo as rendeiras, o formato da base não permitiu que o suporte se aproximasse do corpo, sendo bloqueado pelos pés da cadeira onde as rendeiras ficam sentadas, o que continua sobrecarregando a coluna, em posição fletida. A adaptação proposta foi realizada (Figura 5) e esse novo protótipo serviu como base para construção de dez suportes, a um custo de 180 reais por unidade, valor referente ao serviço de serralheiro e aos materiais. Esses suportes serão utilizados pelo período de seis meses pelas rendeiras de bilro. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.75-83, nov. 2013 81 Figura 5 – Segundo protótipo para almofada das rendeiras de bilro, com a discriminação das subpartes e suas respectivas medidas de referência utilizadas na construção do protótipo. Esse período de utilização, de seis meses, permitirá que as trabalhadoras verifiquem a praticidade do uso do novo suporte para que novas unidades sejam construídas de acordo com a percepção de possíveis inadequações, que só poderão ser identificadas em médio ou longo prazo. Espera-se que possa melhorar a qualidade de vida das artesãs e que esta iniciativa possa ser replicada em outras regiões do Brasil. É importante considerar também que o processo da construção foi educativo tanto para as artesãs como para a equipe acadêmica, que trabalhou com a problematização da questão da saúde e da necessidade de cuidados preventivos voltados para a qualidade de vida, a partir da atividade de um empreendimento solidário formado por mulheres. R eferências [1] FIALHO, F. A. P.; SANTOS, N. Manual de Análise Ergonômica do Trabalho. 2. ed. Curitiba: Gênesis Editora, 1997. [2] LIMA, M. V. M. et. al. A contribuição do design social para projetos de extensão universitária “papel social” e “revitalização histórica – cultural do bairro da Barra”. Extensão em Foco, n. 4, p. 173-183, 2009. [3] MC ATAMNEY, L.; CORLETT, E. N. RULA: a survey method for the investigation of work-related upper limb disorders. 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USP, São Paulo, n. 10, p.75-83, nov. 2013 83 84 Desenvolvimento Participativo de um Suporte para Almofada das Rendeiras de Bilro do Município de Saubara, Bahia Sistema Estrutural e Construtivo do MÓDULO (M) em Madeira como Instrumento de Aproximação Social na Promoção da Cidadania de Crianças e Jovens Socialmente Vulneráveis MODULE (M) Structural and Constructive Systems in Timber as a Tool of Social Approach in Promoting Citizenship of Children and Socially Vulnerable Youngsters RESUMO O artigo trata sobre a apresentação de sistema estrutural e construtivo em madeira perfilada roliça de reflorestamento, denominado MÓDULO (M), cuja aplicação como artefato arquitetônico visa promover a cidadania e garantir os direitos de crianças e jovens socialmente vulneráveis de comunidades carentes no entorno das cidades de pequeno, médio e grande porte. Historicamente, no Brasil, a madeira tem uso não compatível com a sua relevância na construção civil, notadamente em elementos estruturais. Este trabalho procura um modo não convencional em pensar estruturas, por meio de uma nova abordagem arquitetônica conceitual, que possibilite configurações espaciais das mais diversas, permeadas com preocupações estéticas. Um exemplo desta abordagem é o MÓDULO (M) que reforça a ideia da aplicação da madeira de reflorestamento em estruturas, concebendo espaços arquitetônicos agradáveis e confortáveis e com preocupações ecológicas, causando mínimo impacto ao meio ambiente. O objetivo deste trabalho é apresentar uma estrutura demonstrativa em madeira de reflorestamento que atende a programas funcionais de interesse social, privilegiando prioritariamente às necessidades programáticas de comunidades sobrevivendo em favelas (normalmente situadas nas periferias das cidades) , de crianças e jovens socialmente vulneráveis. Este sistema é projetado para ser implantado em solos de diferentes declividades e de difícil acesso. Palavras-chave: Módulo. Sistemas Estrutural e Construtivo. Madeira de Reflorestamento. F ra ncisco A n ton io R occo L a hr , Ca r l i to Ca lil Jr . e D ecio G onça lve s Universidade de São Paulo. Escola de Engenharia de São Carlos, São Paulo, Brasil A ndr é L uis Chr istof oro Universidade Federal de São João del-Rei, Minas Gerais, Brasil ABSTRACT This article presenting a timber structural and constructive system of round profiled from reforestation log wood, named MODULE (M), whose application as architectural artifact aims to promote citizenship and guarantee the rights of socially vulnerable children and youth from poor communities in the small, medium and large surrounding towns. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.85-102, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p85-102 85 Historically, in Brazil, the timber use is not compatible with its relevance in construction, especially in structural elements. This paper seeks a way to think in unconventional structures through a new conceptual architectural approach that enables spatial configurations of the most diverse, permeated with aesthetic concerns. An example of this approach is the MODULE (M) which reinforces the idea of applying reforested log wood in structures, designing architectural spaces pleasant and comfortable, with ecological issues, causing minimal impact to its environment. The objective of this paper is to present a timber demonstrative structure that meets social interest case studies, prioritizing programmatic needs of a community socially vulnerable of children and young people, usually located on the outskirts of cities, surviving in housing type slums. This system is designed to be implanted in soils with different declivities and hard access. Keywords: Module. Structural and Constructive Systems. Reforested Log Wood. INTRODUÇÃO A realidade ocupacional urbana no Brasil, no que se refere às Habitações de Interesse Social (HIS), reflete a tendência acentuada de localizar-se no entorno das grandes cidades, em terrenos considerados difíceis (região de morros). Sua característica predominante é a de alojar população de menor poder aquisitivo e carente de informações para reivindicar seus próprios direitos. Histórica e culturalmente, resta a esta população os piores terrenos, devido aos seus parcos recursos financeiros para construção de moradias ou, como na maioria das vezes, são áreas fruto de invasões. Ainda que a criação do Estatuto da Cidade no Brasil, em 2001, tenha dado um alento à questão, constata-se que a maior parte dos empreendimentos para HIS carece de mínimas qualidades projetuais aceitáveis, nos seus mais variados aspectos, o que evitaria problemas como: interferência inadequada no ambiente, flexibilidade e personalização projetual inexistentes, falta de sintonia com os anseios e necessidades dos usuários. Essas edificações são constituídas basicamente por três tipos de habitações: 1) simples barracos em favelas alocados nas encostas, em áreas invadidas e sujeitas à desocupação judicial; 2) casas humildes desprovidas de um mínimo conforto, executadas pelo processo de autoconstrução, nos loteamentos ditos populares; 3) habitações uni ou multifamiliares construídas através de programas habitacionais com a participação do Estado. Via de regra, neste último tipo, os projetos arquitetônicos pensados para implantações em terraplanos são reutilizados ipse literis em terrenos ditos difíceis, acarretando desastres de grandes proporçõese ocasionando prejuízos financeiros, além de irreparáveis perdas humanas (Figura 1). 86 Sistema Estrutural e Construtivo do MÓDULO (M) em Madeira como Instrumento de Aproximação Social na Promoção da Cidadania de Crianças e Jovens Socialmente Vulneráveis Figura 1 – Desastre em encosta – Fonte: [6]. Nesse contexto, seria redundante relatar o número crescente e alarmante de acidentes gerados a partir desse procedimento, causando, entre outros: 1) desastres nas encostas; 2) presença de solos erodidos, resultando assoreamento de fundos de vales e várzeas, o que cria condições favoráveis de inundações nas baixadas. Ao longo dos anos tem sido desafiador para projetistas, e particularmente arquitetos e engenheiros, pensarem sistemas estruturais e construtivos em madeira, quiçá em madeira roliça de reflorestamento, com qualidade projetual que atendam às necessidades de se implantar artefatos arquitônicos em terrenos íngrimes de topografía acentuada e de difícil acesso. No Brasil, como exemplo, têm relevância duas obras elitistas em madeira serrada: a primeira, a Residência Aflalo, no Jardim Vitória Régia, na capital de São Paulo, fruto da parceria do casal de arquitetos Marta e Marcelo Aflalo (Figura 2a e 2b); e a segunda, a Residência Ricardo Baeta, no litoral de São Paulo, na cidade de Guarujá, com projeto do arquiteto Marcos Acayaba e cálculo estrutural do Engenheiro Hélio Olga Jr (Figura 3c). Figura 2 – Obra Residência Aflalo (a) e (b); Residência Hélio Olga Jr (c). (a) (b) (c) O leitmotiv da obra do casal Aflalo foi demonstrar que, apesar de o Brasil ser dotado de uma das maiores reservas de matas naturais do planeta, bem como de consideráveis extensões de reflorestamento com espécies exóticas, existe uma manifestada resistência a adotarem-se sistemas estruturais em madeira, utilizando particularmente espécies exóticas. De uma forma geral, esse “preconceito”, não só em relação às espécies exóticas, mas também em relação às nativas, foi sendo arraigado firmemente, mas nem sempre em razões bem expressas, escondendo-se, via de regra, outros interesses. Em geral, tal Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.85-102, nov. 2013 87 resistência fundamenta-se no mito de que a madeira se tornou sinônimo de algo antiquado, anacrônico, frágil, não resistente ao fogo, desprovido de recursos tecnológicos de ponta e, o pior, caro. Esse posicionamento contra a construção em madeira tem sua origem cultural e, de forma sintomática, advém do desconhecimento de sua tecnologia, por meio de assertivas como: madeira “apodrece”, “pega fogo”, é “fraca”, “entorta”, “racha e entorta”, e tantas outras “preciosidades” que proliferam em virtude do acúmulo de imagens negativas existentes no Brasil. As florestas, das quais a madeira se origina, sequestram o gás carbônico durante o dia, por meio da reação de fotossíntese. O oxigênio também é devolvido para a atmosfera durante o dia, como decorrência da fotossíntese, minimizando as consequências danosas ao meio ambiente do efeito estufa (aquecimento da temperatura da crosta da Terra com o passar do tempo devido, prioritariamente, às atividades humanas desordenadas). Este artigo objetiva, em primeiro lugar, chamar à atenção para a relevância do uso da madeira perfilada roliça como elemento predominante em sistemas estruturais e construtivos. No Brasil, ainda nos dias atuais, a madeira não é considerada uma possibilidade consistente quando se pensa em estruturas, sendo priorizados usualmente outros materiais convencionais como o concreto armado, o aço, entre outros. O Brasil caminha na contramão da tendência mundial que privilegia a madeira como material empregado em larga escala como elemento estrutural. Países como os euro-centrais, os asiáticos, os Estados Unidos, a Inglaterra, entre outros, são exemplos marcantes desta abordagem. Procura-se neste artigo, em segundo lugar, de forma mais relevante e contundente, apresentar uma alternativa projetual arquitetônica para Habitações de Interesse Social (HIS) que privilegiem a formação e a inserção no contexto global de crianças e jovens socialmente vulneráveis em situações habitacionais não dignas de um ser humano, na maioria das vezes sobrevivendo em favelas. Aspectos envolvidos na temática da formação e inclusão de crianças e jovens socialmente vulneráveis A temática da formação e inserção de jovens e crianças socialmente vulneráveis vem sendo um tópico dos mais relevantes dentro do contexto de uma sociedade dita preocupada com o bem estar de seus cidadãos. O ato de dar de ombros à questão pode ser considerado no mínimo insano, senão despido de qualquer lógica e espírito humanitário. Basta ver os altíssimos níveis de criminalidade infantil em comunidades que sobrevivem no entorno das pequenas, médias e grandes cidades. Atos e ações esparsos têm emergido neste desértico campo de ideias, cite-se, como exemplar, o Programa da Universidade de São Paulo Aproxima-Ação. O Programa “[...] pretende tornar-se um espaço privilegiado de interlocução entre ações e projetos da Universidade e as demandas sociais comunitárias, e assim inventariar, articular e dar suporte a atividades de formação e inclusão social por meio de ações dentro das diversas áreas de conhecimento” [13]. 88 Sistema Estrutural e Construtivo do MÓDULO (M) em Madeira como Instrumento de Aproximação Social na Promoção da Cidadania de Crianças e Jovens Socialmente Vulneráveis M AT E R I A L E M É T O D O S Material Madeira de reflorestamento A utilização da madeira como material na construção de edifícios remonta a milhares de anos. Na Grécia antiga, com mais ênfase na passagem do período pré-socrático para o helênico, nota-se, com maior visibilidade, o emprego da madeira de forma consistente na estrutura de templos. A madeira, um elemento da Natureza, portanto renovável, com grande oferta, exige pouca energia para o seu processamento, sendo agradável ao tato, entre outras inúmeras qualidades. O uso responsável da utilização do material madeira do Brasil e no mundo tem requerido uma abordagem bastante específica no sentido de propiciar condições criteriosas que privilegiam o seu processamento e seu emprego industrial de forma sustentável. No Brasil, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) é o órgão definidor e regulador desta atividade para sua racional preservação, inclusive no que se refere à emissão de registro de produtos preservativos de madeira. Segundo o IBAMA, um dos tópicos mais relevantes da preservação da madeira no Brasil está relacionado com a diminuição da pressão sobre as florestas nativas, desta forma, o aumento da vida útil da madeira resulta em uma maior conservação dos recursos naturais florestais do Brasil. Tem havido, por parte do setor de preservação de madeiras, um acentuado estímulo ao reflorestamento no Brasil devido à larga gama de espécies de reflorestamento para tais fins, como o pinus e o eucalipto, constituindo-se em alternativa viável para a substituição do uso das madeiras nativas, uma vez que essas espécies são passíveis de tratamento. Recentemente, foi adotada pela legislação brasileira a obrigatoriedade do uso de madeira preservada nos serviços de utilidade pública, tendo como paradigma os setores elétrico e ferroviário. Devido à relevância da questão, o Instituto salienta que, referente aos riscos envolvidos em sua preservação, “a atividade de preservação de madeiras, envolve a utilização de produtos químicos, na sua grande maioria, altamente tóxicos e que, se não utilizados corretamente podem causar danos à saúde dos trabalhadores e ao meio ambiente. Para que os benefícios dos preservativos de madeira superem os seus riscos, o IBAMA vem intensificando e ampliando diariamente suas atividades específicas” [10]. No caso do sistema estrutural focalizado neste artigo é priorizado o uso da madeira perfilada roliça de reflorestamento e o aço para as ligações metálicas (LM). A concepção do sistema parte da premissa da essencialidade do emprego de madeira de reflorestamento, dando ênfase às espécies pinus (soft wood) e eucalipto (hard wood), cada uma utilizada conforme as características físicas mais adequadas para a sua aplicação [4]. Segundo Hellmeister [8], como matéria orgânica, a madeira participa “como um dos mais importantes fatores de equilíbrio biológico da natureza, a mesma tem explicação para sua formação como vegetal do mais alto nível de desenvolvimento”. Em relação ao apodrecimento, algumas espécies são suscetíveis ao ataque de organismos em circunstâncias específicas, porém estas têm sua durabilidade prolongada quando Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.85-102, nov. 2013 89 previamente tratadas com substâncias preservativas. Outros materiais estruturais, como o aço e o concreto armado, são produzidos por processos altamente poluentes, antecedidos por agressões ambientais consideráveis para a obtenção de matéria-prima. Com relação à resistência da madeira ao fogo, Moura Pinto [12] acentua que é àquela que, “com ou sem proteção contra incêndio, tem grande probabilidade de resistir aos esforços solicitantes em temperatura elevada, de forma a evitar o seu colapso”. Por suas características específicas, a madeira torna-se um excelente material para ser usado como elemento estrutural, tanto em estruturas de pequenos e médios portes, quanto em megaestruturas. A madeira possui grande flexibilidade quanto ao meio ambiente, apresentando diferentes possibilidades de aproveitamento, com perda pouco significativa de material nas reformas e ampliações, além de um fator altamente importante: a baixa demanda de quantidade de energia para a sua extração e processamento quando comparada a outros materiais. Tabela 1 – Dados comparativos de diferentes materiais estruturais. Fonte: Revista Brasileira em Engenharia Agrícola e Ambiental – Relatório PIT/SP [14]. M aterial Densidade (kN/m3) E nergia para produção ( M J /m 3 ) Resistência ( M Pa ) Relação entre valores de resistência e densidade Concreto 24 1920 20,3 0,84 Aço 78 234000 250,4 3,21 Madeira 9 630 90,5 10,00 Pode-se observar na tabela 1 a alta resistência da madeira em relação à densidade, mostrando como a madeira propicia a produção de estruturas leves e resistentes. Outro aspecto que favorece a madeira é o fato de que o crescimento, a extração e o desdobro de árvores envolvem baixo consumo de energia, além de não provocarem prejuízo ao meio ambiente, desde que seja feito o devido manejo da área de extração. Com relação à tecnologia do MÓDULO (M) é possível visualizar vantagens do sistema, seu design favorece a distribuição de esforços, de forma a diminuir o número de apoios necessários no solo. Na realização dos cálculos estruturais verificou-se que a estrutura é leve quando comparada a outros sistemas estruturais, o que acarreta fundações menos robustas. Como se pôde ver até então, sua tecnologia, além de uma inovação de produto, pode ser observada como uma inovação de processo, dado que a sua montagem é muito particular frente o das tecnologias similares. Em comparação ao processo padrão realizado pelas tecnologias similares, esta tecnologia requer pouco espaço no canteiro de obras, isso porque os módulos da estrutura podem ser transportados em pallets, ocupando menos espaço no veículo de carga. O Brasil é um país privilegiado em termos de diversidades de espécies provenientes de florestas naturais e artificiais, apresentando algumas espécies de alto rendimento para emprego em elementos constituintes estruturais. 90 Sistema Estrutural e Construtivo do MÓDULO (M) em Madeira como Instrumento de Aproximação Social na Promoção da Cidadania de Crianças e Jovens Socialmente Vulneráveis Depreende-se daí, que a madeira possui qualidades especiais para construções civis, dotada de características únicas de aplicabilidade, pela sua facilidade de manuseio e alto índice de trabalhabilidade, apresentando, apesar de sua densidade diminuta em relação a outros materiais, grande resistência mecânica. A madeira de reflorestamento empregada no MÓDULO (M) apresenta níveis de desempenho estruturais bastante satisfatórios, mostrando-se como alternativa projetual e construtiva excelente para aplicação em diversos programas funcionais capaz de ser implantado em diferentes declividades e terrenos de difícil acesso. Esse sistema, em termos estruturais, é basicamente composto por treliças espaciais, pilares tipo “diamante” (DA), vigas principais, vigas secundárias e vigas barrotes, sendo seus elementos estruturais em madeira unidos por ligações metálicas (LM), utilizando cavilhas de madeira como conectores. Empregando-se todos estes meios e métodos, em ensaios de compressão realizados no LaMEM/SET/EESC/USP com o pilar “diamante” (DA), elemento mais relevante do MÓDULO (M), o seu comportamento estrutural foi excelente. Aço Nas ligações metálicas (LM) do MÓDULO (M) empregaram-se aço 1010/1020, pertencendo ao tópico dos itens mais relevantes neste sistema. Inicialmente, optou-se pelo emprego de (LM) em função de já ter sido utilizada com sucesso pela parceria de autores Herzog, Natterer, Schweitzer, Volz e Winter [9] que desenvolveram ligações deste tipo em treliças planas dotadas de peças de madeira laminada colada, vencendo grandes vãos e utilizando cavilhas de madeira. Em termos de normalização do emprego de ligações metálicas, a NBR 7190 [2] não privilegia conexões, ligando duas peças de madeira perfilada roliça ou serrada, tendo entre elas uma chapa metálica; diante disso, empregou-se as Normas Eurocode 5 [5] e a Espanhola UNE-EN 409 [16]. No Brasil, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) tem as normas “Ligações em estruturas de aço”, NBR 8800 [3], que define o cálculo do dimensionamento das ligações metálicas (LM). Estas Normas são adaptadas às condições do MÓDULO (M) para a determinação por meio de esforços de compressão dos deslocamentos relativos correspondentes, consequentemente às deformações correspondentes e, por fim, a força convencionada Fc, para o cálculo do número de cavilhas de madeira por ligação metálica (LM). Outro aspecto envolvido, quando se utiliza chapas metálicas soldadas entre si ou chapas soldadas a tubos metálicos, é que se consegue estabelecer estruturas com configurações espaciais das mais variadas, inclusive as que remetem à imagem da “árvore”. O MÓDULO (M) emprega ligações (LM) com chapas soldadas a tubos, utilizando elementos estruturais de madeira (barras) conectadas por chapas e solidarizadas por meio de cavilhas de madeira. No caso da junção de madeira com madeira, a ligação é feita pelo contato direto das peças, por concavidades das mesmas e solidarizadas por parafusos autoatarraxantes. A espessura da chapa de aço para as ligações metálicas (LM) no experimento citado anteriormente foi determinada por cálculo específico conforme a Norma 8800:1986 – “Projeto de execução de estruturas de aço em edifícios” – bem como o número de Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.85-102, nov. 2013 91 conectores por (LM) da espécie Pau-roxo (Peltogyne recifenses Ducke), Classe C60. Também fez-se necessário para o cálculo da estabilização da estrutura o uso da Norma NBR 6123 [1], “Forças devidas ao vento em edificações”. A madeira especificada para os elementos de barra foi da espécie eucalipto clonado AMARU ou similar. As ligações apresentam-se como um dos elementos constituintes do SETA e de seu pilar “diamante” de apoio (DA) de maior relevância na função dessa tecnologia, pois tornam possível uma configuração espacial do sistema estrutural agradável ao olhar e essencialmente lógica. As ligações metálicas (LM) transladam os esforços nas barras, de maneira a simular, as fibras dos componentes de uma árvore (no caso da árvore, nós rígidos, enquanto que, nas treliças espaciais, nós articulados). Desta forma, possibilitam que os esforços axiais sejam contínuos ao longo da estrutura, resultando em reduções das dimensões das peças, trazendo como consequência uma esbelteza das formas da estrutura (os comprimentos das peças de madeira são no máximo de quatro metros, para compatibilizar com os comprimentos das carrocerias usuais de caminhões). Métodos O MÓDULO (M) é um dos elementos estruturais que compõem o Sistema Estrutural Treliçado Modular em Madeira (SET-2M), posteriormente denominado Sistema Estrutural Tipo Árvore (SETA), alvo da de Doutorado na FAU-USP, sendo desenvolvido, no momento, no LaMEM/SET/EESC/USP. Caracteriza-se por se repetir nos planos de laje (PL) que se superpõem (Figura 3) e formam o sistema estrutural [7]. Figura 3 – Maquete digitalizada do SETA (a) e (b); maquete física do SETA, mostrando detalhes de modelo de construção (maquete na escala 1:25) – Residência Unifamiliar de 385 m2 (c). (a) (b) (c) A análise inicial do cálculo numérico do SETA foi feita pelo Engenheiro Marcos Monteiro da firma PLANEAR/SP, utilizando o software MIX (Figura 3a e 3b). O SETA tem Pedido de Patente depositado junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) sob no P.I. 0.600.454-7 com o título “Sistema Estrutural Modular Tipo Árvore”, em 27/01/2006, do qual a Universidade de São Paulo figura como Titular. A par desse fato, o referido Projeto foi encaminhado pela Agência de Inovação da USP para a sua inserção no Programa de Investigação do Estado de São Paulo (PIT/SP), sendo que o Relatório de Investigação da Tecnologia foi concluído em setembro de 2007. O mesmo sistema foi premiado em Concurso Público Federal pelo Conselho Federal de Engenharia, 92 Sistema Estrutural e Construtivo do MÓDULO (M) em Madeira como Instrumento de Aproximação Social na Promoção da Cidadania de Crianças e Jovens Socialmente Vulneráveis Arquitetura e Agronomia (CONFEA), sendo a certificação ocorrida durante o WORLD ENGINNER’S CONVENTION 2008 (WEC 2008) em dezembro de 2008. A partir do SETA foram desenvolvidos diversos estudos de casos em madeira perfilada roliça, com os mais variados programas funcionais, dentre eles destacam-se: Residências uni e multifamiliares, Centros de pesquisas, Centros de recreação e cultura, Unidades Educacionais, Abrigos (parada) de ônibus, Cochos para bovinos. No contexto projetual é difícil desassociar-se o SETA do seu pilar “diamante” de apoio (DA), referente a essa concepção, todavia, a bem da verdade, o SETA foi projetado a partir do pilar “diamante” de apoio (DA). O projeto do SETA e, particularmente, o seu “diamante” de apoio (DA) foram pensados segundo abordagem que privilegiou uma Arquitetura que tivesse sérias preocupações com a Natureza, sua preservação, causando o mínimo impacto ao ambiente. Para tal, tornou-se fundamental a escolha de um sistema construtivo que atendesse a tais requisitos, a começar por ter poucos pontos de contato com o solo, fosse um sistema modular, pré-fabricado, dotado de racionalidade construtiva e empregasse um material renovável no seu elemento constituinte mais relevante (a estrutura) e, também, confortável ao tato. Por sua concepção projetual especial foram criadas condições de dissipação de esforços em suas barras, minimizando assim as cargas que atuam sobre elas e são transferidas aos pilares de concreto que se assentam nas diferentes declividades do solo, possibilitando elementos estruturais de dimensões reduzidas quando comparado a outros sistemas estruturais convencionais em madeira. Graças a seu design, a quantidade de mão de obra não especializada (operários) é diminuta, fazendo-se necessário, ao menos, um profissional carpinteiro no canteiro de obras e dois ajudantes. A quantidade de equipamentos no canteiro de obras também é reduzida, dado o menor peso da estrutura, o que exclui a necessidade de tratores e máquinas de içamento pesadas, sendo necessária apenas uma pequena grua tipo caminhão-Munk (guindaste menor, mais simples). Há um mínimo impacto no ambiente a ser implantado do SETA e seu “diamante”, pois exige mínimo espaço para canteiro de obras e se apoia sobre três pilares de concreto que são ancorados no solo de forma pontual. Quando de juntam três DA formando o SETA, deve-se também levar em consideração todo o envolvimento de fatores ecológicos, bem como a inserção do artefato arquitetônico no solo se verificar através de somente três pontos de apoio. As montagens dos elementos constituintes dos DA processam-se através da utilização de recursos simples, exigindo equipamentos e ferramentais disponibilizados correntemente no prazo de montagem exíguo devido às suas características projetuais de concepção e de construção. Aliado a todos estes atributos, o SETA e seu pilar “diamante” (DA) apresentam uma excelente relação custo-benefício quando pensada sua fabricação em termos de escala de mercado, apresentando diversas possibilidades para implantação de programas funcionais: residências uni e multifamiliares, shopping centers, hangares para abrigar aeronaves de pequeno, médio e grande porte, chalés, centros de pesquisa, entre outros. Colocadas todas essas hipóteses e condicionantes, além de outras, em sua concepção projetual, o sistema estrutural ideal escolhido foi o que remeteu à imagem metafórica Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.85-102, nov. 2013 93 da árvore, fazendo-se alusão à obra do Arquiteto catalão Antoni Gaudí, na obra Sagrada Família, em Barcelona, Espanha (Figura 4). Figura 4 – Obra: Pilares da Sagrada Família [11] Outra característica projetual relevante é a questão dos aspectos bioclimáticos envolvidos na concepção desse sistema estrutural, entre outros, a aeração natural ocorrida em função das características específicas (vazios) do sistema estrutural projetado. Este sistema é composto por planos de laje, sustentados por três pilares, “diamantes” de apoio (DA), caracterizando as três treliças espaciais (TE), que ligam estes “diamantes”, resultando assim a aeração natural. Com relação à tecnologia em si, já é possível visualizar uma vantagem do sistema, pois seu design favorece a distribuição de esforços, de forma a diminuir o número de apoios necessários. Além disso, ainda nessa etapa, verificou-se, na realização dos cálculos estruturais, que a estrutura é leve, o que resulta em fundações menos robustas. Como se pode ver, a tecnologia, além de uma inovação de produto, conduziu a uma inovação de processo, dado que esse processo de montagem é muito particular frente ao das tecnologias similares. Em comparação ao processo padrão realizado pelas tecnologias similares, a mesma requer pouco espaço no canteiro de obras, isso porque os módulos da estrutura podem ser transportados em pallets, o que ocupa menos espaço no veículo de carga. Consideradas todas estas condicionantes e hipóteses, procederam-se aos cálculos teóricos, elaborados a partir do texto referencial “Dimensionamento de Elementos Estruturais de Madeira” de autoria de Calil Junior, Rocco Lahr e Dias [4], que leva em consideração a ABNT NBR 7190 [2]. Estes cálculos foram complementados pela aplicação do software CYPECAD, versão 2007.1.i, que tem como base o método de elementos finitos. A opção pela utilização deste software se deu em virtude do mesmo considerar também no dimensionamento da estrutura as recomendações da ABNT NBR 7190 [2]. Foi definida a espessura das chapas de aço que compuseram as ligações metálicas (LM) e, ao mesmo tempo, especificou-se a espécie roxinho (Peltogyne recifencis Ducke), Classe C60, usada nas cavilhas das ligações metálicas (LM). A madeira especificada para os elementos das barras em madeira do (DA) foi o Pinus oocarpa, madeira classificada Classe C40. Com esses dados e os cálculos elaborados, construiu-se o pilar “diamante” (DA) na Oficina Mecânica da Escola de Engenharia de São Carlos e o mesmo foi ensaiado posteriormente no LaMEM à compressão paralela às fibras (Figura 5). 94 Sistema Estrutural e Construtivo do MÓDULO (M) em Madeira como Instrumento de Aproximação Social na Promoção da Cidadania de Crianças e Jovens Socialmente Vulneráveis Figura 5 – Ligações metálicas (LM) – escala real. C aracteri z ações da tecnologia : função da tecnologia do S E TA e de seu D A O SETA é uma estrutura espacial que possui um design diferenciado das estruturas normalmente utilizadas. Ela tem por principais características ser modulada, feita em madeira e o fato de poder ser implantada em terrenos de declividade variada. O elemento que articula esta adequação à topografia do terreno é o pilar de concreto, que se assenta sobre as diferentes declividades do solo de implantação em diferentes alturas. Esse sistema é definido e composto pelos seguintes elementos estruturais: três pilares “diamante” de apoio (DA), três treliças espaciais (TE), vigas principais, vigas secundárias e vigas, formando o plano de laje (PL) (Figura 6). Deve ser evidenciada, neste ponto, a relevância do projeto estrutural ser desenvolvido de modo a serem previstos detalhes construtivos que garantam maior durabilidade do material empregado, evitando-se a exposição excessiva aos raios solares e à chuva. Figura 6 – Modelagem do MÓDULO (M) no CYPECAD: perfil real (a) e discretização de barras e nós (b). (a) (b) O fato de a estrutura ser modular possibilita a maximização do processo de montagem de megaestruturas, pois requer espaços exíguos no canteiro de obras, redução da mão de obra não especializada e não há a necessidade de uso de equipamentos pesados. O desenho desse sistema estrutural é singelo por possuir estruturas de sustentação e Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.85-102, nov. 2013 95 nós particulares, além de possibilitar a aplicação da estrutura em terrenos de alturas variadas, já que as colunas ajustam-se em função de diferentes declividades do solo. E nsaio do pilar “ diamante ” de apoio ( D A ) Com o intuito de confirmar em ensaio de laboratório o desempenho altamente interessante do pilar “diamante”, foi construído, na Oficina Mecânica da Escola de Engenharia de São Carlos, um protótipo com as seguintes características: »» Elementos de sustentação: peças cilíndricas de Pinus oocarpa, com diâmetro médio de 16 cm; »» Elementos metálicos para a composição, incluindo peças cilíndricas vazadas e prolongamentos planos, solidarizados por meio de solda; »» Ligações com cavilhas de diâmetro de 16 mm, torneadas a partir de peças da espécie pau-roxo também conhecida como roxinho (Peltogyne recifencis Ducke). O ensaio ocorreu com o pilar “diamante” (DA) posicionado na horizontal, de modo a facilitar a aplicação das forças que representam a solicitação de compressão paralela a que o referido elemento estrutural está sujeito em serviço. Na Figura 7 (a) se apresenta o pilar na posição de ensaio. As forças foram aplicadas por intermédio de um cilindro hidráulico de 50 kN de capacidade nominal acionado manualmente. A transmissão das forças para o conjunto estrutural se processou com o auxílio de aparato metálico integrado por barra (previamente aferida) e placas. A leitura das forças foi feita utilizando o equipamento Kiowa: STRAIN INDICATOR, modelo SM-60B (Figura 7b). Foi aplicada força máxima de 15,0 kN, ligeiramente superior ao dobro da força prevista nos cálculos pelo CYPECAD, da ordem de 7,3 kN. Na Figura 7 (a) aparece o cilindro hidráulico que comprime o pilar “diamante” de apoio (DA), atuando longitudinalmente, ao passo que, na Figura 6, é mostrado o aparelho medidor de força da célula de carga, o KYOWA. As duas Figuras, 7a e 7b, se complementam, pois, em conjunto, retratam toda a dinâmica do ensaio de compressão a que foi submetido o pilar “diamante” (DA). Figura 7 – Ensaio a compressão feito no LaMEM (a); sistema de aquisição de dados (b). a) 96 b) Sistema Estrutural e Construtivo do MÓDULO (M) em Madeira como Instrumento de Aproximação Social na Promoção da Cidadania de Crianças e Jovens Socialmente Vulneráveis Deslocamentos relativos entre elementos metálicos de solidarização do conjunto estrutural foram medidos com relógios comparadores com sensibilidade de 0,01 mm. Tais deslocamentos foram desprezíveis. O ensaio foi desenvolvido em quatro repetições e confirmou o excelente desempenho, sob solicitação, do pilar “diamante” (DA). PROGRAMAS FUNCIONAiS DO “MÓDULO (M)” E DO SEU DESDOBRAMENTO PROJETUAL O “SISTEMA ESTRUTURAL E S TA I A D O T I P O Á R V O R E – S 2 E TA ” O programa funcional definido para o MÓDULO (M), desdobramento projetual do SETA, foi um Centro de recreação e cultura para sete crianças/jovens, contendo um lavabo social, apresentando área construída de 23 m2. Adotou-se para a sua concepção projetual o triângulo equilátero como elemento geométrico básico (EGB) de 0,90 m de lado, em função da exiguidade de espaço da área externa do LaMEM, pois sua construção não poderia inviabilizar a passagem de caminhões nesta área. Em função desta modularidade, o MÓDULO (M) pode ter um gama de variações abrangentes, como por exemplo, quando o (EBG) de 1,50 m for adotado, a área passa a ter 64 m2 e neste caso pode acolher 17 crianças/jovens, em princípio, dentro de uma programação de ocupação de 2 ou 3 dias/ por semana. A Figura 8 expressa a sequência de montagem do MÓDULO(M) no LaMEM. Figura 8 – Sequência de montagem do MÓDULO (M) no LaMEM (Julho de 2012). (a) (c) (b) (d) Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.85-102, nov. 2013 97 (e) (f) A Figura 9 apresenta o programa funcional do MÓDULO (M) de um Centro de lazer e cultura de 23 m2 para crianças e jovens socialmente vulneráveis. Figura 9 – Plantas do MÓDULO (M). (a) (b) (c) 98 Sistema Estrutural e Construtivo do MÓDULO (M) em Madeira como Instrumento de Aproximação Social na Promoção da Cidadania de Crianças e Jovens Socialmente Vulneráveis Outra característica do MÓDULO (M) é a possibilidade de ser implantado em terrenos difíceis, de diferentes declividades, mas, para isto, é apresentada uma nova abordagem projetual, derivada de sua concepção original. Desta forma, foi criado o Sistema Estrutural Estaiado Tipo Árvore (S2ETA) que se adapta às diferentes declividades em função de seus estais, comportando vários programas funcionais, inclusive para Centros de recreação e cultura, sendo dotado de dois ou mais pavimentos, mais a cobertura, com áreas construídas substancialmente superiores às do MÓDULO (M) (Figura 10). Destaca-se que o MÓDULO (M) foi o vencedor do “III Concurso Brasileiro de Arquitetura em Madeira”, categoria profissional, com o título “Cobertura em madeira do Módulo do Sistema Estrutural Tipo Árvore –SETA”, no âmbito do XII Encontro Brasileiro em Madeira e em Estruturas de Madeiras (EBRAMEM), realizado na cidade de Vitória, Espírito Santo, em julho de 2012. Figura 10 – Plantas do programa funcional Residência unifamiliar do Sistema Estrutural Estaiado Tipo Árvore – S2ETA. (a) (b) (c) Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.85-102, nov. 2013 99 A Figura 11 mostra maquetes físicas do S2ETA. Figura 11 – Maquetes físicas do S2ETA. (a) (b) (c) (d) R E S U LTA D O S E D I S C U S S Õ E S O MÓDULO (M) e o seu desdobramento projetual o Sistema Estrutural Estaiado Tipo Árvore – S2ETA são caracterizados como “on going projects”, ou seja, são projetos em desenvolvimento, daí serem inseridas algumas alterações projetuais e construtivas de forma consistente e rotineira em função de buscar-se uma tecnologia que esteja up-to-date com os mais avançados métodos que privilegiem técnicas aprimoradas de pensar e executar sistemas estruturais e construtivos em madeira perfilada roliça de reflorestamento. 10 0 Sistema Estrutural e Construtivo do MÓDULO (M) em Madeira como Instrumento de Aproximação Social na Promoção da Cidadania de Crianças e Jovens Socialmente Vulneráveis CONCLUSÕES O período pós-1990, no Brasil e no mundo, foi marcado por alguns experimentos investigativos singulares e singelos quanto ao pensar uma obra, ainda que esparsos, privilegiando o emprego da madeira em suas concepções projetual e construtiva. Paralelamente, nesta época, surge uma nova mentalidade ecológica no trato com esse material. Ao mesmo tempo, com o aparecimento de novos processos de usinagem e montagem, da implantação de sistemas racionais de pré-fabricação, aliados à vontade de criar algo singular e singelo, esses fatores somados foram o turning point desta gestação longa e difícil [15]. O SETA e seus desdobramentos projetuais (o MÓDULO (M) e S2ETA), entre outros projetos em desenvolvimento, se apresentam como alternativas estruturais viáveis para aplicações nos mais diversos programas funcionais, aliado ao fato, de poder ser implantado em terrenos com declividades variadas, os chamados terrenos difíceis. Suas implantações causam mínimo impacto ao seu entorno, exigindo espaço exíguo para sua montagem e reduzido pessoal para sua montagem e implantação. Apresenta um Rendimento estrutural R bastante interessante, da ordem de 15, ou seja, para cada metro cúbico de madeira empregada em seu processo de fabricação, resultam 15 metros quadrados de área útil [15]. Salienta-se que esses projetos, no desenvolvimento atual do processo construtivo, ainda são uma obra não conclusiva, em contrapartida, o seu pilar “diamante” de apoio e o MÓDULO (M) já são uma realidade construtiva. Destaca-se o excelente desempenho das cavilhas de madeira da espécie roxinho nos ensaios à compressão paralela às fibras, realizados no LaMEM/SET/EESC/USP, Campus de São Carlos. Por fim, mas não menos pertinente, vale reafirmar a premência do emprego da madeira perfilada roliça, pensando-a como uma das primeiras opções projetuais e construtivas em obras civis, com ênfase em sistemas estruturais. O SETA, bem como o seu pilar “diamante” de apoio (DA) e seus desdobramentos projetuais, entre eles o MÓDULO (M), são possibilidades reais de aplicações em sistemas estruturais, que têm a preocupação com o singular e o singelo. Acredita-se que, com esta abordagem, resultarão obras de alto valor arquitetônico e permeadas com preocupações ecológicas. É relevante salientar que a aplicação dessa tecnologia em madeira para fins sociais tem uma relevância ímpar na abordagem da formação e inclusão de crianças e jovens socialmente vulneráveis. REFERÊNCIAS [1] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6123: Forças devidas ao vento em edificações. Rio de Janeiro, 1988. [2] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 7190: Projeto de estruturas de madeira. Rio de Janeiro, 1997. [3] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 8800: Projeto e execução de estruturas de aço em edificações – Método dos elementos Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.85-102, nov. 2013 101 finitos. 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A partir das teses e dissertações produzidas na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), os autores gravam programas de rádio, em linguagem jornalística, no seu Centro de Produção Digital. A Biblioteca: Centro de Informação e Referência (CIR) da FSP atua em duas frentes: indexação dos programas e disponibilização em bases de dados e bibliotecas virtuais a partir da tecnologia desenvolvida pela BIREME e qualificação dos comunicadores de rádios comunitárias para usarem as bibliotecas virtuais. Reforça-se a importância da integração de múltiplos profissionais, o papel do bibliotecário na organização da informação e qualificação dos comunicadores de rádio, do jornalista para a tradução do saber científico de forma correta e do comunicador de rádio na divulgação dos conteúdos. Palavras-chave: Saúde pública. Bibliotecas virtuais. Rádios comunitárias. A ngel a Ma r ia Belloni Cuenca e Paulo R ogér io Gal lo Universidade de São Paulo. Faculdade de Saúde Pública, São Paulo, Brasil ABSTRACT This paper presents the experience in transferring scientific information in public heath for undeserved communities through the virtual libraries. This can be possible by production and transmission of spots in the radio schedule. The authors of the theses edited by the School of Public Health at University of São Paulo (FSP-USP) record spots with journalistic language in an Laboratory (Laudio) of the School. The Library: Reference and Information Centre operates in two fronts: the spots are indexed and available in databases and virtual library through the technology developed by BIREME. The Library promotes training to teach the broadcaster in how to access and how to use the virtual library. It emphasizes the importance of integration of multiple professional Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.105-111, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p105-111 105 – librarian’s role in information organization and teaching of broadcasters, the journalist for the translation of scientific knowledge accurately and the broadcaster to distribute this content to the undeserved community. Keywords: Public health. Virtual libraries. Community radios. I ntrodução O saber científico para beneficiar a sociedade deve ser compartilhado entre os pesquisadores, comunicado em publicações e traduzido para a população. Na saúde pública, a transferência da informação para a população pode levar a benefícios imediatos, visto que sua produção não somente é baseada nas condições de vida da população como sua aplicação se reflete na saúde de grande número de pessoas. Embora pareça óbvio, há grande dificuldade na disseminação das ações em saúde pública para comunidades pobres que devem ser o foco da atenção dos governos no que tange à saúde. A grande questão é: como a gestão descentralizada do conhecimento científico pode alcançar comunidades carentes e estas se beneficiarem das informações e descobertas em saúde pública? Algumas iniciativas em âmbito local [1] e internacional [2] vêm sendo implementadas por setores sociais e governamentais, e inseridas nas políticas públicas visando ampliar as ações voltadas à integração da população no universo da cidadania [6]. Como as rádios comunitárias são veículos potenciais de penetração nas comunidades carentes e seus comunicadores contam com grande credibilidade da população local, a iniciativa de veiculação via rádio de conhecimentos de saúde pública produzidos no âmbito universitário foi oficialmente referendada na Reunião da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, em Genebra, 2003. Nessa reunião, foram firmados compromissos de empenho dos países para a redução do hiato de conhecimento entre as classes sociais e para a minimização dos problemas da exclusão digital, do acesso à internet e do direito à comunicação [8]. No entanto, no caso brasileiro, foi constatado que, por vezes, as informações em saúde veiculadas em programações de rádios comunitárias mostravam-se confusas ou distorcidas dos conteúdos originais [6]. Disto surgiu a ideia de qualificar os comunicadores de rádios em noções de saúde pública e, também, no uso de bibliotecas virtuais para acesso à informação. Este trabalho tem o objetivo de apresentar o relato da experiência de disseminação da informação científica em saúde pública a comunidades carentes com o uso de bibliotecas virtuais para a produção e veiculação de programas de rádio em acesso aberto na internet. A ideia Após alguns cursos de noções de saúde pública para comunicadores de rádios comunitárias de bairros pobres da Grande São Paulo, que incluíam o aprendizado do acesso e uso de bibliotecas virtuais, surgiu a ideia de se criar uma fonte de informação, neste caso, uma série de programas de rádio que ficariam disponíveis numa biblioteca virtual. 10 6 Saúde Pública ao Alcance da População: o Papel das Bibliotecas Virtuais nas Rádios Comunitárias Biblioteca virtual é a expressão usada quando se extrapola o conceito de biblioteca física, implicando um espaço virtual na internet onde a informação científica e técnica, validada por especialistas, é registrada, organizada e armazenada em formato eletrônico e acessível de forma universal. Esse conceito permeia a ideia de acesso imediato e gratuito aos conteúdos [7], ou seja, os programas de rádio seriam organizados de forma que, qualquer pessoa, radialista, agente comunitário, entre outros interessados, pudessem ter acesso em qualquer hora e de qualquer computador ligado à internet. Para serem inseridas em bibliotecas virtuais, as informações científicas seriam traduzidas para uma linguagem jornalística e tornar-se-iam presentes na grade de programação das rádios comunitárias em formato adequado à característica de cada comunidade. Os agentes comunicadores, geralmente líderes comunitários, seriam qualificados para o acesso e uso das bibliotecas virtuais e, desta forma, eles próprios poderiam selecionar a informação e reeditá-la de acordo com a necessidade e demanda sentidas em suas comunidades. Para tornar essa ideia uma realidade, vários saberes técnicos e instituições teriam que ser mobilizados. O estabelecimento das parcerias A Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), uma das maiores produtoras brasileiras de pesquisa em saúde pública, visando potencializar a divulgação de informações em saúde para a população, realizou vários cursos de extensão universitária para comunicadores de rádio, em parceria com o Ministério da Saúde e a Associação Brasileira de Rádios Comunitárias [6]. Esses cursos tiveram por objetivo qualificar os líderes comunitários em noções de saúde pública, na realização de diagnóstico comunitário de saúde e na produção de programas de rádio. Os participantes eram líderes comunitários (de várias regiões que compõem a chamada periferia da Grande São Paulo) e, em outra vertente, docentes (potenciais multiplicadores desse saber nas demais universidades brasileiras). A Biblioteca: Centro de Informação e Referência (CIR) da FSP-USP, além de manter um acervo impresso de mais de 350 mil volumes, um dos maiores da América Latina em saúde pública e nutrição, é dotada de infraestrutura tecnológica e de equipes bibliotecárias especializadas na construção de bibliotecas virtuais [3] e na capacitação de usuários [4]. Por esse motivo, participa dos cursos para comunicadores de rádios comunitárias desenvolvendo módulos práticos de acesso e uso de bibliotecas virtuais para que possam contar com uma ferramenta de busca de informação com validade científica. A Biblioteca/CIR, além de conduzir sua versão de website e serviços on-line, também é parceira da Biblioteca Virtual em Saúde Pública, desenvolvida pela BIREME [7], portanto, com competência na metodologia e manutenção de bibliotecas virtuais. A BIREME lidera a tecnologia para a disseminação da informação em saúde, cujas iniciativas exitosas – desde a década de 1980, como base de dados LILACS, a SciELO nos anos de 1990 e a tecnologia da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) nos anos de 2000 – vem contribuindo com a visibilidade da produção científica e a promoção da saúde no Brasil Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.105-111, nov. 2013 107 e países da América Latina. Essas bibliotecas virtuais operam integrando diversas fontes de informação, tais como: literatura técnica e científica produzida nos países; base de sites especializados; diretório de eventos; lista de especialistas na área; indicadores de saúde; textos completos de artigos científicos, de teses e monografias e de editoras eletrônicas. A união das expertises dessas instituições culminou na construção de uma fonte de informação, neste caso, em um portal de áudio. Os pesquisadores gravam depoimentos e entrevistas sobre suas teses no Centro de Produção Digital da FSP-USP, que os transforma em programas (spots) de rádio. Estes são armazenados em servidores (repositório institucional da Biblioteca), organizados e descritos em seus metadados, em planilhas desenvolvidas na metodologia BIREME. Os arquivos são disponibilizados na base de dados LILACS, nos catálogos da Biblioteca (como Audioteca) e na Biblioteca Virtual em Saúde Pública (BVSP) via Portal de Teses e Dissertações. O resultado * No site da Biblioteca da FSPUSP (www.biblioteca.fsp.usp. br), em Bibliotecas Virtuais, selecionar Audioteca e digitar na caixa de busca o assunto desejado (meio ambiente, por exemplo). Clicando no ícone de áudio você poderá ouvir o spot de rádio. Caso queira ver a lista de todos os spots basta digitar $ (cifrão) na caixa de busca e <enter>. ** No site da Biblioteca Virtual em Saúde/BIREME (www. bvs.bireme.br) selecionar Literatura Científica e digitar na caixa de busca o assunto desejado (meio ambiente, por exemplo) e clicar Pesquisa. Na coluna à direita em Filtrar, selecionar no final da tela, em Tipo de Documento o item Áudio. Aparecerá a lista dos registros referentes às teses defendidas na FSP-USP com programas de áudio. São dois links: um com o spot sobre a tese e outro com uma entrevista com o autor. 108 Para ampliar as possibilidades de acesso ao conhecimento, foram inseridas novas mídias como fontes de informação no campo da saúde pública em uma interface em áudio organizada em uma Audioteca. Seu acervo é composto por registros de depoimentos de pesquisadores a respeito de suas dissertações [5]. Participam dessa iniciativa pesquisadores, docentes, bibliotecários, jornalistas e pessoal de informática. Essa nova fonte de informação resulta da parceria de várias instituições que disponibilizam seus arquivos em áudio nas suas bibliotecas virtuais e, assim, se estabelece uma rede social. Nessa experiência, foram produzidos, até 2013, cerca de 200 spots ou programas de rádio, com acesso universal e gratuito na internet via catálogos da Biblioteca da FSP-USP* e via base de dados LILACS**. Na Figura 1 é possível visualizar um registro de tese nas bases da Biblioteca e na Figura 2, o registro na base de dados LILACS. Ambas com arquivos em áudio associados e respectivos ícones para reconhecimento do usuário. Cada ícone representa um arquivo extensão .mp3 com áudio de cerca de 6 minutos. As mídias em áudio podem atender às demandas de informação de várias categorias de usuários: o pesquisador pode utilizá-las como objeto de investigação; um professor do Ensino Médio ou Fundamental para fundamentar suas aulas; serviços de saúde para auxiliar na prática de seus profissionais; os radiocomunicadores para contribuir para a promoção da saúde nas regiões em que estão inseridos. Em breve, o número de acessos deverá ser aumentado quando a BIREME colocar para acesso público o Portal de Áudio, como uma das mais novas fontes de informação da Biblioteca Virtual. Outras instituições parceiras como a Fiocruz, por meio da Escola Nacional de Saúde Pública e o Ministério da Saúde, também deverão colocar seus acervos em áudio nesse Portal. Achado o caminho, houve necessidade de desenvolver planilhas, ou seja, customizar o software, para a descrição de áudio e vídeo de outros tipos de documentos como livros, artigos, congressos, entre outros que disseminam a informação científica em saúde pública. Saúde Pública ao Alcance da População: o Papel das Bibliotecas Virtuais nas Rádios Comunitárias Figura 1 – Registro da tese na base de dados da Biblioteca com a indicação de áudio. Figura 2 – Registro da tese na base de dados da Biblioteca durante a execução do áudio Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.105-111, nov. 2013 10 9 Para avaliação do impacto dos programas de rádios nas comunidades está sendo desenvolvido um estudo com as rádios comunitárias participantes do projeto sobre alterações sentidas nas ações de saúde, a percepção dos profissionais de saúde e gestores dessas regiões sobre o conhecimento da população dos direitos à saúde e, com os comunicadores de rádio, sobre as mudanças ocorridas antes e depois da inserção das noções de saúde nos cursos de difusão universitária e na programação das rádios. L ições aprendidas A integração multidisciplinar de profissionais envolvidos, a intersetorialidade da produção do saber científico e a possibilidade de sua gestão de forma descentralizada permitem perceber a importância de um trabalho voltado à equidade das ações em saúde no âmbito das comunidades mais pobres. O desenvolvimento dessa nova fonte de informação reuniu cientistas, jornalistas, produtores e comunicadores de áudio, bibliotecários, profissionais ligados à tecnologia da informação, webdesigners, analistas de sistemas, entre outros, convergindo para um mesmo fim, a transferência do conhecimento científico para a população, constituindo um aprendizado inigualável. A importância do bibliotecário, principalmente das bibliotecas acadêmicas, mostra-se em sua atualização para acompanhar a necessidade do novo usuário, passando a ser o educador (trainer), qualificando o usuário a se tornar permanentemente autônomo para fazer a busca da informação, de forma eficiente e, sobretudo, eficaz. Desta forma, estabelece-se o aprendizado ao longo da vida, característica da competência informacional tão discutida nos dias atuais. A participação de alunos de jornalismo nos grupos de pesquisa e de desenvolvimento de TI tem sido fundamental para que a linguagem científica torne-se acessível às populações carentes, algo imprescindível na comunicação via rádios comunitárias, criando-se condições para que a universidade experimente novas formas de extensão. Essa experiência propicia forte incremento no processo de educação e promoção de saúde em âmbito comunitário, por meio da inclusão digital. Reforça-se, assim, a responsabilidade da transferência da informação científica, de forma correta, com responsabilidade social, para que esta tenha seu uso adequado, ou seja, transmitir uma informação com validade científica traduzida sem vieses, sem outras conotações que não sejam as de promover a saúde e reduzir a desigualdade social junto à população carente. REFERÊNCIAS [1] BIREME. 8º CONGRESSO REGIONAL DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE (CRICS). Rio de Janeiro, 16-19 set. 2008. Declaração do Rio. 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Acesso em: 2 out. 2013 AGRADECIMENTOS Agradecimentos à equipe multidisciplinar que vem atuando na fonte de informação Audioteca: as bibliotecárias Claudia Guzzo, Hálida C. R. Fernades, Eidi R. F. Abdalla, Maria Imaculada da Conceição; Maria do Carmo Avamilano Alvarez; as jornalistas Claudia Malinverni, Heloisa Ferraz; as especialistas em saúde pública Sophia K Motta-Gallo e Alina Zoqui Cayres; o técnico de áudio Amadeu dos Santos; na informática, Daniel Marucci e equipe, e a todos os pesquisadores que se propuseram a gravar os programas. docente do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e coordenadora dos projetos da Biblioteca Virtual em Saúde Pública na Biblioteca/CIR da FSP-USP – e-mail: [email protected] A n g ela Maria B elloni C uenca docente do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e coordenador do Laboratório de Áudio da FSP-USP – e-mail: [email protected] Paulo R o g é rio Gallo Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.105-111, nov. 2013 111 112 Saúde Pública ao Alcance da População: o Papel das Bibliotecas Virtuais nas Rádios Comunitárias Segunda Sem Carne na Faculdade de Saúde Pública: um Projeto de Intervenção Meatless Monday at Public Health School: an Intervention Project R esumo O consumo excessivo de carne, principalmente vermelha e processada, está relacionado com o aumento da incidência de doenças crônicas como câncer, diabetes, doenças cardiovasculares, excesso de peso e maior risco de mortalidade. Além do custo gerado à saúde, a produção da carne também gera grande impacto no meio ambiente. A partir dessas informações, elaborou-se o projeto Segunda Sem Carne na Faculdade de Saúde Pública. O trabalho tem por objetivo discutir os riscos causados à saúde e ao meio ambiente pelo consumo excessivo de carne bem como avaliar o impacto do mesmo na mudança do hábito alimentar da população estudada. A iniciativa contou com a divulgação de dados sobre consumo excessivo de carne, seus impactos na saúde e no meio ambiente, propondo a inclusão de um cardápio sem carne em uma segunda feira de cada mês do período letivo do ano de 2012 no restaurante da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo/COSEAS. Para avaliar a eficácia da iniciativa, foram realizadas três pesquisas de opinião com os comensais do restaurante ao longo do projeto, sendo uma online e duas presenciais. Sete meses após o início da intervenção, 73% dos pesquisados disseram estar mais conscientes sobre os malefícios associados ao consumo excessivo de carne; 42% disseram que diminuíram o consumo de carne devido aos esclarecimentos fornecidos pelo projeto. Palavras-chave: Consumo de Carne. Saúde. Projeto de Intervenção Bruna L acer da , A line Ca rva lho, J oyce Ma rt ins, Ca m il a N egrão, Soraya Sele m, R egina F isberg e D irce Marchioni Universidade de São Paulo. Faculdade de Saúde Pública, São Paulo, Brasil A bstract Excessive meat consumption, especially red and processed meat, is related to the increase in the incidence of chronic diseases such as cancer, diabetes, cardiovascular diseases, overweight and increased risk of mortality. Besides the cost generated to health, beef production also generates impacts on the environment. Thus, the Meatless Monday Project was designed at the School of Public Health, in order to discuss the risks Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.113-119, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p113-119 113 caused by excessive meat consumption. Data about excessive meat consumption, health and environment impacts were offered to population and a no-meat menu included on one Monday of each month within the period of the academic year of 2012 in the restaurant of the School of Public Health, University of São Paulo/Superintendence of Social Welfare. Three polls were performed to evaluate the effectiveness of the initiative throughout the project, the first was done online and the others were interviewer-interviewee. Seven months after the intervention, 73% of people said they were more aware about the harms associated with excessive consumption of meat; 42% reduced meat consumption due to the clarifications provided by the project. Keywords: Meat Consumption. Health. Intervention Project. I ntrodução A prevalência de doenças crônicas tem aumentado progressivamente nas úl- timas décadas, tornando-se um grave problema de saúde pública [9]. Há evidências da associação entre o consumo excessivo de carne, principalmente vermelha e processada, e doenças cardiovasculares, além de diabetes [11], câncer de cólon e reto [16], ganho de peso [7,15] e maior risco de mortalidade [7,15]. Estudos mostram que o consumo de 50g de carne processada pode aumentar o risco em 42% de doenças cardiovasculares e 19% de diabetes [11]. A carne sempre teve grande importância na alimentação humana devido à sua composição, com quantidade significativa de proteína, minerais, vitaminas e ácidos graxos [10]. Atualmente, as diretrizes brasileiras orientam a ingestão de uma porção de carne por dia, equivalente a 190 kcal, como parte de uma dieta saudável para a população [12]. Porém, o que se tem percebido é um aumento progressivo desse consumo [4]. Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) evidenciam que a carne está inserida no grupo de alimentos que lidera os gastos com alimentação no país (21,9%), nas áreas urbana (21,3%) e rural (25,2%). Comparando os resultados de 2002/03 e 2008/09, é possível observar um aumento no percentual de gastos de 18,3% para 21,9% com esse tipo de alimento [8]. Em um estudo de base populacional realizado em São Paulo, observou-se que o consumo de carnes aumentou cerca de 20% de 2003 para 2008 [5]. O consumo médio de carne total em São Paulo (163g) foi superior aos encontrados em diversos países como Irlanda (138g), Espanha (135g), Holanda (125g) e Alemanha (120g) [10]. Para carne processada, o consumo do paulistano (33g) [5] foi superior ao da Irlanda (25g), Grécia (8g) e Itália (27g) [10]. Além do custo à saúde gerado pelo consumo excessivo de carne, a sua produção também gera impacto sobre o meio ambiente, pois promove o desmatamento [12], ocupando e degradando vastas áreas de terra, resultando no aumento do efeito estufa, na redução da biodiversidade, na reposição de água doce, no estímulo à compactação do solo, o que reduz a infiltração da água, resultando no aumento do escoamento e em perda de nutrientes do solo [1,14]. A pecuária é o setor responsável por emitir cerca de 18% dos gases de efeito estufa 114 Segunda Sem Carne na Faculdade de Saúde Pública: um Projeto de Intervenção do mundo [12]. Para a produção de um quilograma (kg) de carne bovina são gerados cerca de 44 kg de gases de efeito estufa [6]. O impacto ambiental gerado pela produção de carne para abastecer o município de São Paulo foi estimado em 18 milhões de toneladas de equivalentes de CO2 em 2003 [6]. Pensando nos efeitos que a produção e o consumo de carne causam na saúde e no meio ambiente, elaborou-se o projeto de extensão “Segunda Sem Carne na FSP” (SSC na FSP) em parceria com a Superintendência de Assistência Social da USP (SAS). O principal objetivo do projeto é discutir a relação entre o consumo excessivo de carne e o risco à saúde e ao meio ambiente. O bjetivo Avaliar o impacto do projeto de extensão universitária Segunda Sem Carne na FSP. M etodologia O projeto de extensão Segunda Sem Carne na FSP consiste em uma intervenção na comunidade da Faculdade de Saúde Pública da USP a partir da divulgação de dados sobre o consumo excessivo de carne e seus impactos na saúde e no meio ambiente, por meio de vídeos; site do projeto; palestras; boletins informativos; mídias sociais; entrevistas a jornais, revistas, rádios, canais de televisão; e, durante o ano letivo de 2012, introdução de um cardápio sem carne em uma segunda-feira de cada mês no Restaurante Universitário da Faculdade de Saúde Pública. Foram realizadas três pesquisas de opinião com os comensais ao longo do projeto, sendo uma online e duas presenciais. A primeira pesquisa foi realizada em março de 2012 e teve como objetivo avaliar a aceitabilidade do novo cardápio, estimar a proporção de pessoas que se preocupavam com o tema e estavam dispostas a realizar mudanças em seus hábitos alimentares, além de saber como os materiais educativos e o site melhoraram o entendimento sobre o tema. Para tal, foi aplicado um questionário online. A segunda pesquisa foi realizada em outubro de 2012 e teve como objetivo avaliar a aceitação do projeto. Foi utilizada uma urna montada na saída do restaurante, em que era feita a pergunta: “O que você acha do projeto Segunda Sem Carne na FSP?”, utilizando-se os cartões nas cores vermelha, amarela e verde como resposta, que representaram “não gosto”, “indiferente” e “gosto”, respectivamente. Também foram disponibilizados cartões nos quais os participantes da pesquisa puderam deixar seus comentários, críticas, dúvidas, elogios e sugestões. A terceira pesquisa foi realizada em novembro de 2012 e teve como objetivo avaliar se o projeto Segunda Sem Carne na FSP estava conseguindo conscientizar os usuários do restaurante universitário SAS/USP sobre os malefícios do consumo excessivo de carne e se eles haviam diminuído seu consumo de carne a partir das informações fornecidas. Para tal, foi aplicado um questionário na saída do restaurante, com as perguntas: Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.113-119, nov. 2013 115 “A partir do projeto você percebeu que o consumo excessivo de carne pode trazer malefícios para saúde e meio ambiente? Você diminuiu seu consumo de carne a partir das informações oferecidas pelo projeto?” R esultados e D iscussão Na primeira pesquisa, registraram-se 156 respostas, sendo que a maior parte dos participantes eram alunos da graduação (48%), seguidos dos alunos da pós-graduação (29%), funcionários (13%), visitantes (7%) e docentes (3%). Verificou-se que 92% das respostas foram positivas quando os comensais foram questionados sobre a iniciativa do projeto e 73% alegaram que, a partir das informações fornecidas pela campanha, pretendiam diminuir seu consumo de carne. Verificou-se que 58% das pessoas que responderam a primeira pesquisa acessaram o site e 87,5% acharam que o conteúdo do site contribuiu para esclarecimento dos objetivos do projeto, sendo que, dessas, 34% acharam que o site contribuiu muito. A segunda pesquisa aconteceu presencialmente no dia 22 de outubro de 2012. Cerca de 190 pessoas responderam a pesquisa e 78% dos participantes alegaram gostar do projeto. Na terceira pesquisa realizada foram obtidas 120 respostas. Verificou-se que 73% dos pesquisados disseram estar mais conscientes sobre os malefícios associados ao consumo excessivo de carne devido as informações oferecidas pelo projeto, e 42% afirmaram ter diminuído o consumo de carne após o início da intervenção. Em relação à divulgação do projeto, a página do Facebook alcançou usuários de mais de 20 países, como Estados Unidos, França, Reino Unido, Portugal, Argentina, entre outros. No Brasil foram atingidas diversas cidades das regiões Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país e a página recebeu cerca de 600 visitas diretas e 4.000 indiretas nesse período. O site alcançou mais de 2.000 acessos. Observou-se que essas formas de divulgação constituíram um caminho mais imediato e abrangente para intensificar a divulgação científica para a comunidade FSP, além de atrair a atenção de mais pessoas para o assunto em questão, tornando comuns informações de caráter inter e transdisciplinar. O projeto também foi divulgado por meio de entrevistas para jornais, rádios, revistas e sites como Rádio Estadão, CBN, Jovem Pan, além TV USP, TV Cultura, Revista Vida e Saúde, Jornal do Campus entre outras. Além de ser produzido um vídeo na forma de desenho animado stop-motion para divulgar o projeto aos comensais. Existem projetos similares ao Segunda Sem Carne na FSP, como na Alimentação Escolar do município de São Paulo. Desde 2011, a Secretaria do Verde e Meio Ambiente e a Secretaria de Educação do município propuseram um projeto de merenda escolar sem carne duas vezes ao mês a crianças e adolescentes da rede pública. Atualmente, cerca de 625 mil alunos recebem refeições sem carne quinzenalmente [13]. Posteriormente, outras cidades também aderiram à campanha, como Curitiba [2], Piracicaba, Recife, Niterói e Osasco [13,3]. Apesar da alteração do cardápio da alimentação escolar da rede pública de alguns municípios brasileiros, poucas atividades educativas foram realizadas com o intuito de explicar o projeto e mostrar o possível impacto da mudança na alimentação, na saúde e 116 Segunda Sem Carne na Faculdade de Saúde Pública: um Projeto de Intervenção no meio ambiente. Observou-se, no presente trabalho, que o uso de materiais educativos e formas diferentes de divulgação ampliaram a discussão sobre o tema, e puderam promover mudança do hábito alimentar em parte da população estudada. C onclusão Verificou-se que o projeto Segunda Sem Carne na FSP foi bem avaliado pela comunidade que participou das pesquisas. Além disso, a divulgação sobre os efeitos do consumo excessivo de carne foi efetiva, visto que quase metade dos entrevistados na terceira pesquisa alegou ter diminuído o consumo de carne a partir das informações fornecidas pelo projeto. Esse fato é importante, pois o elevado consumo de carne tem um impacto direto e indireto sobre a saúde e o meio ambiente. O Segunda Sem Carne na FSP é um importante passo para aproximar a pesquisa, produzida pela Universidade, da população e incentivar ações que podem melhorar a qualidade de vida dos indivíduos a longo prazo. R eferências [1] BLEIL, S. I. 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Ao Segunda Sem Carne Brasil pelo apoio e discussões. doutoranda do Programa de Nutrição em Saúde Pública do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) – e-mail: [email protected] A L I N E C A R VA L H O BRUNA LACERDA graduanda em Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) JOYCE MARTINS graduanda em Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) 118 Segunda Sem Carne na Faculdade de Saúde Pública: um Projeto de Intervenção CAMILA NEGRÃO bacharel em Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) mestre em Ciências do Programa de Nutrição em Saúde Pública do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) S O R AYA S E L E M pesquisadora e professora associada do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) REGINA FISBERG pesquisadora e professora associada do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) DIRCE MARCHIONI Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.113-119, nov. 2013 119 120 Segunda Sem Carne na Faculdade de Saúde Pública: um Projeto de Intervenção Qualidade de Vida Relacionada à Saúde de Pacientes Oncológicos sob Cuidados Paliativos Health Quality of Life Related to Cancer Patients’ Health Under Palliative Care RESUMO O texto discute os principais resultados obtidos na dissertação do Mestrado em Psicologia da Saúde pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) concluído em 2012, que teve por objetivo avaliar a Qualidade de Vida Relacionada à Saúde (QVRS) de pacientes oncológicos sob cuidados paliativos. Trata-se de um estudo quantitativo, descritivo e de corte transversal, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UCDB, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. A amostra compôs-se de 70 participantes que realizavam acompanhamento paliativo no Hospital do Câncer de Dourados/MS. Foram aplicados dois instrumentos para coleta de dados: o Questionário Sociodemográfico Ocupacional e um instrumento específico para avaliar a QVRS em oncologia, o EORTC QLQ – C30. Os resultados demonstraram que a identificação objetiva dos domínios, quando correlacionados às variáveis sociodemográficas ocupacionais, pode favorecer o direcionamento das intervenções assistenciais que a equipe multidisciplinar oferece ao paciente oncológico em relação ao enfrentamento da doença e aos efeitos adversos do tratamento, o qual, ocasionalmente, pode comprometer sua QVRS. Palavras-chave: Qualidade de Vida Relacionada à Saúde. Oncologia. Cuidados Paliativos. C in t ia R achel Gom e s Sa le s Centro Universitário da Grande Dourados. Mato Grosso do Sul, Brasil J osé Ca r los R os a Pir e s Universidade Católica Dom Bosco. Mato Grosso do Sul, Brasil Ida lina C r ist ina F er ra r i Júlio Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Mato Grosso do Sul, Brasil ABSTRACT This paperwork discusses the main results of the Health Psychology Master Degree Dissertation of Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) concluded in 2012, which aimed to assess the health quality of life of cancer patients under palliative care. This is a quantitative, descriptive and cross-sectional study, approved by the Ethics Research Department of (UCDB) in Campo Grande, Mato Grosso do Sul. The sample consisted of 70 participants who underwent palliative monitoring care at the Cancer Hospital in Dourados/MS. Two instruments were applied to collect data: a Social Demographic Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.121-130, nov. 2013 DOI: 10.11606/issn.2316-9060.v9i0p121-130 121 Occupational Questionnaire and a specific instrument to assess the health quality of life in Oncology the EORTC QLQ – C30. The results showed that a target identification of domains, when related to Social Demographic Occupational variability, may favor the assistance interventions that the multidisciplinary team offers to cope with the disease and side effects of cancer treatment in order to improve those individuals health quality of life. Keywords: Quality of life. Oncology. Palliative Care. INTRODUÇÃO O câncer é definido como uma doença crônico-degenerativa e, por isso, é con- siderado como um problema de saúde pública. O diagnóstico precoce contribui de forma significativa para a reabilitação física, social e psicológica do doente [4]. Porém, seu diagnóstico confirmado abrange, de forma gradativa e simultânea, aspectos físicos, psicossociais, emocionais e financeiros do paciente. Por muitos anos, o tratamento do câncer estava vinculado ao ponto de vista da morbidade, mortalidade ou cura. No entanto, os avanços da medicina já permitem o controle dos sintomas e estadiamento de tal doença. De acordo com as implicações psicológicas, tanto na etiologia quanto na terapêutica do câncer, um crescente interesse em estudos que avaliem a QV, tem buscado demonstrar a autopercepção de bem ou mal-estar e sua contribuição na evolução biológica da enfermidade, podendo constituir-se como um cofator terapêutico. Assim, a avaliação da QV poderia promover eficácia e segurança aos tratamentos propostos [5]. No entanto, a Qualidade de Vida (QV) é um conceito que, nas últimas décadas, tem sido alvo crescente de interesse tanto na literatura científica, como entre o público em geral. Na literatura específica, observa-se uma diversidade de significados para o termo QV, com variadas abordagens teóricas e inúmeros métodos para a medida do conceito. Instrumentos que mensurem a QV têm sido desenvolvidos e avaliados, uma vez que permitem a identificação dos problemas em áreas relativas ao estado emocional e estado físico geral, bem como a interação social e o delineamento de programas adequados de intervenção, possibilitando um acompanhamento multidisciplinar ao paciente oncológico [3]. Recentemente, o conceito de Qualidade de Vida Relacionado à Saúde (QVRS) passou a ser considerado de extrema importância, pois revelou que a eficácia do tratamento não pode ser determinada simplesmente pela perspectiva do tempo livre de doença ou de sobrevida. Partindo dessa premissa, a pesquisa buscou avaliar a QVRS dos pacientes oncológicos sob cuidados paliativos cadastrados no Centro Ambulatorial de Tratamento de Câncer, no município de Dourados, Mato Grosso do Sul, em 2011. Além da interface com a pesquisa, esse trabalho também visa o envolvimento multiprofissional, a fim de fomentar discussões e o aprimoramento profissional em relação à assistência ao paciente oncológico. Diversos estudos têm proposto, a partir de delineamentos qualitativos e quantitativos (esse último, por meio de instrumentos genéricos e específicos), identificarem, mensurarem e avaliarem domínios afetados pela doença no indivíduo com câncer. Considera-se um desafio a aplicação clínica frente aos domínios propostos a serem avaliados e 122 Qualidade de Vida Relacionada à Saúde de Pacientes Oncológicos sob Cuidados Paliativos mensurados, pois compreende-se os inúmeros efeitos colaterais e secundários advindos do câncer e de seu tratamento, como alterações estéticas (mutilações), sociais, funcionais e de comportamento, os quais incidem de forma peculiar em cada sujeito. Mesmo com o uso crescente no âmbito nacional e internacional de escalas de avaliação de QV, não há no Brasil uma medida de avaliação desse constructo voltada especificamente para a população em cuidados paliativos. Por isso, teve início a tradução, a adaptação cultural e a validação no Brasil do instrumento Palliative Outcome Scale (POS), que apresenta validade convergente satisfatória quando comparado às dimensões do EORTC QLQ C-30 [2]. No entanto, a maioria dos instrumentos (94,4%) busca avaliar a QV do paciente de forma multidimensional, incluindo aspectos físicos, emocionais, sociais, econômicos, espirituais, além do relacionamento com a família e com a equipe de saúde. Entende-se que essa tendência seja decorrente da compreensão de que as necessidades dos pacientes oncológicos sob cuidados paliativos devem ser identificadas de forma absoluta, a fim de implementar medidas pautadas no alívio do sofrimento e na melhora da QV [2]. M AT E R I A I S E M É T O D O Tipo de Estudo Trata-se de um estudo de caráter quantitativo, descritivo e de corte transversal, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Católica Dom Bosco (CEP/ UCDB), processo nº 008/11, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Local do Estudo O estudo foi realizado no Hospital do Câncer, no município de Dourados, Mato Grosso do Sul. Coleta de Dados Para a coleta de dados foi utilizado um questionário de identificação, construído para a coleta de dados sociodemográficos (idade, escolaridade, sexo, cor, estado civil, religião, atividade laboral, renda mensal e familiar, prática de atividades físicas) e dos dados clínicos e terapêuticos (quantidade de internações após a confirmação do diagnóstico oncológico, tipo de tratamento – quimioterapia e/ou radioterapia – duração do tratamento e diagnóstico clínico). Para a avaliação da QVRS, utilizou-se o instrumento European Organization for Research and Treatment of Cancer Quality of Life Questionnaire – Core 30 (EORTC QLQ C-30), considerado um questionário de Qualidade de Vida Relacionado à Saúde (QVRS) devidamente validado para a população brasileira para uso específico em pacientes com câncer [1]. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.121-130, nov. 2013 123 Análise dos Dados Após a coleta sistemática em 70 participantes, os dados foram inseridos em planilhas do software Excel e, em seguida, deu-se a análise estatística. Para a caracterização da amostra, foi realizada uma análise descritiva dos resultados, com frequência absoluta e relativa. A caracterização da amostra foi comparada com os domínios do instrumento EORTC QLQ C-30 por meio do teste não paramétrico da Mediana de Mood. Esse teste é indicado quando se compara grupos pequenos ou quando há ausência de distribuição normal de probabilidade, pois altera minimamente os resultados atípicos observados. O teste da Mediana de Mood foi utilizado nessa amostra devido a disparidade apresentada em todos os domínios, isto é, distribuição anormal de probabilidade. O programa utilizado foi Minitab na versão 14.0 for Windows. O nível de significância foi de 5% (p≤0.05), ou seja, todos aplicados com 95% de confiabilidade. R E S U LTA D O S A amostra inicial, com 105 participantes, foi selecionada de forma conveniente, mediante critérios de inclusão. Porém, cinco dos indivíduos selecionados participaram apenas do projeto piloto, a fim de verificar a viabilidade, adaptação e o tempo de duração da pesquisa. Apenas 70 entrevistas foram concluídas, devido a 30 dos pacientes selecionados faltarem ou irem a óbito. A coleta foi obtida entre os meses de junho e julho de 2011, mediante agendamento hospitalar de retorno ou consulta. A abordagem se deu antes ou após a realização do atendimento terapêutico (quimioterapia ou radioterapia) ou da consulta médica. No entanto, a amostra se caracterizou de forma homogênea, uma vez que todos os pacientes estavam em seguimento ambulatorial de tratamento paliativo. Em relação ao perfil das variáveis sociodemográficas ocupacionais e terapêuticas (Tabela 1), evidenciamos o predomínio do sexo masculino (65,71%) com a prevalência do câncer de próstata. A maior frequência foi de 60 anos (60%), cor predominante branca (65,71%), católicos (81,43%), casados (68,57%), ensino fundamental incompleto (77,14%), não exercem atividades laborais (81,16%), renda familiar bruta com mais de um salário mínimo (76,81%). Percebeu-se que os participantes da pesquisa eram advindos de diferentes estratos sociais e a renda familiar bruta era, em geral, de pouco mais de dois salários mínimos, o que pode dificultar o acesso à escolaridade e, consequentemente, à adesão de informações pertinentes à prevenção e ao tratamento adequado do câncer. Também, nota-se que, a maioria possui um vínculo religioso, podendo ser o principal responsável em motivá-los a continuar o acompanhamento e o tratamento clínico. A maioria dos participantes não praticava alguma atividade física (65,71%) e sua terapêutica não ultrapassou cinco anos (60%). Foram submetidos a dois tipos de tratamentos oncológicos – quimioterapia e radioterapia – (60,29%) durante o curso da doença, contudo, tiveram apenas uma internação (55,07%). Outro fato que merece destaque é a procedência da população em estudo, embora 55,38% do total fossem de Dourados/MS, os demais participantes eram de regiões próximas, e a 124 Qualidade de Vida Relacionada à Saúde de Pacientes Oncológicos sob Cuidados Paliativos maioria dependia de transporte fornecido pela prefeitura de sua cidade de origem, o que demandava tempo de espera e de deslocamento. Além disso, observou-se que o atendimento é realizado por ordem de chegada e o tempo de espera no ambulatório para consulta ou tratamento específico é, na maioria das vezes, demorado. Na Tabela 2 apresentamos o percentual de diagnósticos dos pacientes participantes do estudo, com predomínio do sexo masculino (65,71%) com câncer de próstata (37,14%) e câncer de esôfago (12,86%), seguido do câncer de mama no sexo feminino (21,43%). Devido à disparidade no restante dos diagnósticos, não houve valor estatisticamente significativo a ser discutido. Tabela 1 – Perfil das variáveis sociodemográficas ocupacionais e terapêuticas dos pacientes atendidos no Hospital do Câncer – Dourados/MS, 2011. Vari áveis Sexo Escolaridade Religião Praticante da Religião Cor Estado Civil Trabalha Aposentado Afastado Atividade Física Terapêutica Tratamento Idade N % Feminino 24 34,29% Masculino 46 65,71% Até Fundamental incompleto 54 77,14% Fundamental ou mais 16 22,86% Católico 57 81,43% Outros 13 18,57% Não 10 14,71% Sim 58 85,29% Branca 46 65,71% Outras 24 34,29% Casado 48 68,57% Outros 22 31,43% Não 56 81,16% Sim 13 18,84% Não 33 47,14% Sim 37 52,86% Não 14 42,42% Sim 19 57,58% Não 46 65,71% Sim 24 34,29% Até cinco anos 42 60,00% Acima de cinco anos 28 40,00% Dois 41 60,29% Um 27 39,71% Até 60 anos 28 40,00% Mais que 60 anos 42 60,00% Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.121-130, nov. 2013 125 Salário Renda Familiar Bruta Internações Até um s.m. 50 73,53% Mais que um s.m. 18 26,47% Até um s.m. 16 23,19% Mais que um s.m. 53 76,81% Até uma 38 55,07% Mais que uma 31 44,93% Tabela 2 – Percentual de diagnósticos dos pacientes atendidos no Hospital do Câncer – Dourados/MS, 2011. *Se uma hipótese for rejeitada quando deveria ser aceita, diz-se que foi cometido o Erro Tipo I. Se por outro lado, for aceita uma hipótese que deveria ser rejeitada, diz-se que foi cometido um Erro Tipo II. Em ambos os casos ocorreu uma decisão errada ou erro de julgamento (SIEGEL et al., 2006). 126 Diagnóstico n % Próstata 26 37,14% Mama 15 21,43% Esôfago 9 12,86% Pulmão 4 5,71% Intestino 2 2,86% Mieloma múltiplo 2 2,86% Colón 2 2,86% Coluna 2 2,86% Estômago 1 1,43% Glândula parótida 1 1,43% Sarcoma de partes moles 1 1,43% Laringe 1 1,43% Melanoma de pálpebra 1 1,43% Pâncreas 1 1,43% Reto 1 1,43% Rim 1 1,43% Tireoide 1 1,43% Útero 1 1,43% Total 70 100,00% Nesse estudo, todos os domínios no instrumento EORTC QLQ C-30 apresentaram distribuição anormal de probabilidade. Porém, em decorrência dos testes terem sido feitos com 95% de confiabilidade, espera-se que 0,75% dos 15 resultados significativos talvez não sejam coerentes para afirmar melhor ou pior QV, mas sim obra do acaso (Erro Tipo I)*, como demonstrado nos resultados da escolaridade em relação ao domínio NAV, da religião e do estado civil em relação ao domínio FAD [6]. Tal instrumento EORTC QLQ – C30 (version 3) possui cinco escalas funcionais: funções física, cognitiva, emocional e social e desempenho de papel; três escalas de sintomas: fadiga, dor e náusea/vômito, uma escala de saúde global/qualidade e vida; cinco outros itens que avaliam sintomas comumente relatados por doentes com câncer: Qualidade de Vida Relacionada à Saúde de Pacientes Oncológicos sob Cuidados Paliativos dispneia, perda de apetite, insônia, constipação e diarreia, além de um item de avaliação de impacto financeiro do tratamento e da doença [1]. Os escores das escalas e das medidas variam de zero a 100, sendo que um valor alto do escore representa um alto nível de resposta. Assim, se o escore apresentado na escala funcional for alto, representa um nível funcional saudável, enquanto que um escore alto na escala de sintomas, representa um nível alto de sintomatologia e efeitos colaterais. Os escores dos domínios para o EORTC QLQ – C30 (version 3) são calculados multiplicando-se por quatro, a média de todos os itens incluídos dentro do domínio. A avaliação dos resultados é feita mediante a atribuição de escores para cada questão, os quais podem ser transformados numa escala de zero a 100, onde zero corresponde a uma pior QV, e 100 a uma melhor QV. Porém, cada domínio é analisado separadamente [1]. Contudo, mediante a comparação das variáveis do Questionário Sociodemográfico Ocupacional (QSDO) em relação aos domínios do QLQ – C30, a Tabela 3, demonstrou melhor coerência à QV em indivíduos: »» Aposentado (p = 0,009): indivíduos aposentados em relação ao domínio DIF, tiveram (mediana = 0,00) < escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Afastado (p = 0,003): indivíduos que não estão afastados de suas atividades laborais, em relação ao domínio FS, tiveram (mediana = 83,30) > escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Duração da Terapêutica (p = 0,019): indivíduos que estão em tratamento de até cinco anos, em relação ao domínio FF, tiveram (mediana = 80,00) > escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Duração da Terapêutica (p = 0,049): indivíduos que estão em tratamento de até cincos anos, em relação ao domínio FE, tiveram (mediana = 100,00) > escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Duração da Terapêutica (p = 0,049): indivíduos que estão em tratamento de até cinco anos, em relação ao domínio FC, tiveram (mediana = 100,00) > escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Quantidade de Tratamento (p = 0,002): indivíduos que realizam apenas um tipo de tratamento (quimioterapia ou radioterapia), em relação ao domínio FAD, tiveram (mediana = 11,10) < escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Quantidade de Tratamento (p = 0,020): indivíduos que realizavam apenas um tipo de tratamento (quimioterapia ou radioterapia), em relação ao domínio DOR, tiveram (mediana = 0,00) < escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Idade (p = 0,048): indivíduos com idade até sessenta anos, em relação ao domínio DIS, tiveram (mediana = 0,00) < escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Renda (p = 0,019): indivíduos que possuem até um salário mínimo, em relação ao domínio EGS/QV, tiveram (mediana = 91,70) > escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Internações (p = 0,048): indivíduos que tiveram até uma internação desde o diagnóstico oncológico confirmado, em relação ao domínio FC, tiveram (mediana = 100,00) > escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Internações (p = 0,031): indivíduos que tiveram até uma internação desde o Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.121-130, nov. 2013 127 diagnóstico oncológico confirmado, em relação ao domínio INS, tiveram (mediana = 0,00) < escore, indicando melhor QV nesse domínio. »» Internações (p = 0,006): indivíduos que tiveram mais que uma internação desde o diagnóstico oncológico confirmado em relação ao domínio DIF, tiveram (mediana = 33,30) > escore, indicando melhor QV nesse domínio. Tabela 3 – Comparação das variáveis do QSDO em relação aos domínios do EORTC QLQ – C30 dos pacientes atendidos no Hospital do Câncer – Dourados/MS, 2011. Domí nio Vari ável n≤ n≥ M ediana Até Fundamental incompleto 36 18 0,00 Fundamental ou mais 15 1 0,00 Católico 36 21 11,10 Outros 4 9 22,20 Casado 33 15 11,1 Outros 7 15 22,2 Não 12 21 33,30 Sim 25 12 0,00 Não 3 11 83,30 Sim 14 5 66,70 Até cinco anos 18 24 80,00 Acima de cinco anos 20 8 66,70 p ESC O L AR I D ADE NAV 0,032 RELIGIÃO fad 0,033 ESTADO CIVIL fad 0,004 APOSENTADO dif 0,009 AFASTADO fs 0,003 DURAÇÃO DA TERAPÊUTICA ff fe fc Até cinco anos 20 22 100,00 Acima de cinco anos 20 8 83,30 Até cinco anos 20 22 100,00 Acima de cinco anos 20 8 83,30 Dois 18 23 22,20 Um 22 5 11,10 Dois 14 27 16,70 Um 17 10 0,00 Até 60 anos 24 4 0,00 Mais que 60 anos 27 15 0,00 Até um s.m. 4 12 91,70 Mais que um s.m. 31 22 83,30 0,019 0,049 0,049 QUANTIDADE DE TRATAMENTO fad dor 0,002 0,020 IDADE dis 0,048 RENDA egs/qv 128 Qualidade de Vida Relacionada à Saúde de Pacientes Oncológicos sob Cuidados Paliativos 0,019 INTERNAÇÕES fc ins dif Até uma 18 20 100,00 Mais que uma 22 9 83,30 Até uma 28 10 0,00 Mais que uma 15 16 33,30 Até uma 26 12 0,00 Mais que uma 11 20 33,30 0,048 0,031 0,006 Notamos que os resultados caracterizaram melhor QV nos indivíduos abaixo de 60 anos em relação à DIS (um sintoma comumente referido por pacientes oncológicos) aposentados em relação à DIF, nos que não estavam afastados de suas atividades laborais em relação à FS e aos indivíduos que possuíam até um salário mínimo em relação à EGS/QV. Porém, em relação às variáveis terapêuticas, os resultados foram melhores em indivíduos que estavam em terapêutica de até 5 anos, em relação aos domínios FF, FE e FC. Já os que realizavam apenas um tipo de tratamento obtiveram melhor QV em relação aos sintomas FAD e DOR. E, por fim, os sujeitos que foram submetidos a pelo menos uma internação desde o diagnóstico confirmado, mostraram melhor resultado em relação a três escalas distintas, respectivamente, nos domínios FC, INS e DIF. Dessa forma, os resultados demonstraram que a identificação objetiva dos domínios, quando correlacionados às variáveis sociodemográficas ocupacionais, pode favorecer o direcionamento das intervenções assistenciais que a equipe multidisciplinar oferece ao paciente oncológico em relação ao enfrentamento da doença e aos efeitos adversos do tratamento, no qual, ocasionalmente, pode comprometer a qualidade de vida dessa população. REFERÊNCIAS [1] BRABO, E. P. Validação para o Brasil do questionário de QV para pacientes com câncer de pulmão QLQ LC 13 da organização Européia para a Pesquisa e Tratamento do Câncer. Dissertação (Mestrado em Clínica Médica) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. [2] CORREIA, F. R. Tradução, adaptação cultural e validação inicial no Brasil da Palliative Outcome Scale (POS). Dissertação (Mestrado em Enfermagem em Saúde Pública) – Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2012. [3] KIMURA, M.; SILVA, J. V. Índice de qualidade de vida de Ferrans e Powers. Revista de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 43, n. esp, dez. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342009000500014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 01 nov. 2013. http:// dx.doi.org/10.1590/S0080-62342009000500014 [4] MACHADO, S. M.; SAWADA, N. O. Avaliação da qualidade de vida de pacientes oncológicos em tratamento quimioterápico adjuvante. Texto Contexto de Enfermagem, Florianópolis, v. 17, n. 4, out/dez., 2008. Disponível em: Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.121-130, nov. 2013 129 <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072008000400017&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 01 Nov. 2013. http:// dx.doi.org/10.1590/S0104-07072008000400017. [5] NUCCI, N. A. G.. Qualidade de vida e câncer: um estudo compreensivo. 2003. Tese (Doutorado em Psicologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2003. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/59/59137/tde-27012004-222429/>. Acesso em: 11 mar. 2012. [6] SIEGEL, S. et al. Estatística não-paramétrica para ciências do comportamento. Porto Alegre: Artmed, 2006. fisioterapeuta, enfermeira, mestre em Psicologia da Saúde da Universidade Católica Dom Bosco (UCDC). Docente do Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN) – e-mail: [email protected] CINTIA RACHEL GOMES SALES médico psiquiatra, doutor em Ciências Médicas da UNICAMP e pós-doutor da Universidade de Lisboa. Docente da Universidade Católica Dom Bosco JOSÉ CARLOS ROSA PIRES IDALINA CRISTINA FERRARI JÚLIO enfermeira e especialista em Oncologia. Docente da Uni- versidade Estadual de Mato Grosso do Sul 130 Qualidade de Vida Relacionada à Saúde de Pacientes Oncológicos sob Cuidados Paliativos Revista Cultura e Extensão USP Volume 10, nov. 2013 131 132 Segunda Sem Carne na Faculdade de Saúde Pública: um Projeto de Intervenção Instruções para o Preparo e Encaminhamento dos Trabalhos Instructions for Preparing and Forwarding of Papers P reparação Os trabalhos devem ter no mínimo 10 e no máximo 15 páginas, incluindo a referência bibliográfica. Se no trabalho houver a inclusão de imagem (s), esta (s) deverá (ão) ser enviada (s) em outro arquivo, com formato JPG e com resolução de, no mínimo, 400 dpis. T í tulo do T rabal h o Deve ser breve e indicativo da finalidade do trabalho. O título deverá ser apresentado em português e em inglês. A utor ( es ) Por extenso, indicando a (s) instituição (ões) à (s) qual (ais) pertence (m). O autor para correspondência deve ser indicado com asterisco, fornecendo endereço completo, incluindo o eletrônico. R esumo em português Deve apresentar, de maneira resumida, o conteúdo, a metodologia, os resultados e as conclusões do trabalho, não excedendo a 200 palavras. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.133-137, nov. 2013 133 Palavras - C h ave Observar o mínimo de 3 (três) e o máximo de 5 (cinco). As palavras-chave em inglês (keywords) devem acompanhar as em português. R esumo em inglês Deve conter o título do trabalho e acompanhar o conteúdo do resumo em português. No caso de trabalhos escritos em língua inglesa, deverá ser apresentado um resumo em português. I ntrodução Deve estabelecer com clareza o objetivo do trabalho. Extensas revisões de literatura devem ser substituídas por referências aos trabalhos bibliográficos mais recentes, onde tais revisões tenham sido apresentadas. M ateriais e métodos A descrição dos métodos usados deve ser breve, porém suficientemente clara para possibilitar a perfeita compreensão e repetição do trabalho. Estudos em humanos devem fazer referência à aprovação do Comitê de Ética correspondente. R esultados Deverão ser acompanhados de tabelas e material ilustrativo adequado. D iscussão Deve ser restrita ao significado dos dados e resultados alcançados. C onclusões Quando pertinentes, devem ser fundamentadas no texto. 134 Instruções para o Preparo e Encaminhamento dos Trabalhos R eferências A exatidão das referências bibliográficas é de responsabilidade dos autores. Elas devem ser organizadas de acordo com as instruções da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) NBR 6023 e ordenadas alfabeticamente no fim do artigo, incluindo os nomes de todos os autores. C itações no te x to As citações bibliográficas inseridas no texto devem ser indicadas por numerais arábicos entre colchetes. Quando for necessário mencionar o (s) nome (s) do (s) autor (es) no texto, a seguinte deverá ser obedecida: »» Até 3 (três) autores: citam-se os sobrenomes dos autores; »» Mais que 3 (três) autores, cita-se o sobrenome do primeiro autor, seguido da expressão latina et al.; »» Caso o nome do autor não seja conhecido, a entrada é feita pelo título. C itações na lista de referências A literatura citada no texto deverá ser listada em ordem alfabética e numerada de forma sequencial, usando numerais arábicos entre colchetes. A lista de referências deve seguir os padrões mínimos estabelecidos pela ABNT NBR 6023, de agosto de 2002, resumidos a seguir: Livro no todo Autor (es), título em negrito, edição, local, editora e ano de publicação. Exemplo: BACCAN, N.; ALEIXO, L. M.; STEIN, E.; GODINHO, O. E. S. Introdução à semimicroanálise qualitativa. 6. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1995. Livro em parte Autor (es) e título da parte, acompanhados da expressão in, da referência completa do livro, do capítulo e da paginação. »» Exemplo: SGARBIERI, V. C. Composição e valor nutritivo do feijão Phaseolus vulgaris L. In: BULISANI, E. A. (Ed.). Feijão: fatores de produção e qualidade. Campinas: Fundação Cargill, 1987. cap. 5, p. 257-326. Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.133-137, nov. 2013 135 Artigo em publicação periódica Autor (es) e título da parte, título da publicação em negrito, local (quando possível), volume, fascículo, paginação, data de publicação. »» Exemplo: KINTER, P. K.; van BUREN, J. P. Carbohydrate interference and its correction in pectin analysis using the m-hydroxydiphenyl method. Journal Food Science, v. 47, n. 3, p. 756-764, 1982. Artigo apresentado em evento Autor (es), título da parte, seguido da expressão in:, título do evento, numeração do evento (se houver), local (cidade) e ano de realização, título da publicação em negrito, local, editora, data de publicação e paginação. »» Exemplo: BRAGA, A. L.; ZENI, G.; MARTINS, T. L.; STEFANI, H. A. Síntese de calcogenoeninos. In: REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE QUÍMICA, 18, Caxambu, 1995. Resumos. São Paulo: Sociedade Brasileira de Química, 1995. res. QO-056. Dissertação, tese e monografia Autor, título em negrito, ano da defesa, número de páginas, descrição do trabalho acadêmico, grau e área de conhecimento, a vinculação acadêmica, local e ano de aprovação. »» Exemplo: CAMPOS, A. C. Efeito do uso combinado de ácido láctico com diferentes proporções de fermento láctico mesófilo no rendimento, proteólise, qualidade microbiológica e propriedades mecânicas do queijo minas frescal. 2000. 80p. Dissertação (Mestre em Tecnologia de Alimentos) – Faculdade de Engenharia de Alimentos, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. Trabalho em meio eletrônico As referências devem obedecer aos padrões indicados, acrescidas das informações relativas à descrição física do meio eletrônico (disquete, CD-ROM, on-line etc.), de sua localização (em caso de páginas eletrônicas) e data de acesso. »» Exemplo: SÃO PAULO (Estado). Secretaria do Meio Ambiente. Tratados e organizações ambientais em matéria de meio ambiente. In: _______. Entendendo o meio ambiente. São Paulo: SMA, 1999. p. 7-14. Disponível em: <http://www.bdt. org.br/sma/entendendo/atual.htm>. Acesso em: 8 mar. 1999. 136 Instruções para o Preparo e Encaminhamento dos Trabalhos Legislação Jurisdição e órgão judiciário competente, título, numeração, data e dados da publicação. »» Exemplo: BRASIL. Portaria nº. 451, de 19 de setembro de 1997. Regulamento técnico princípios gerais para o estabelecimento de critérios e padrões microbiológicos para alimentos. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 set. 1997, Seção 1, n. 182, p. 21005-21011. A gradecimentos Agradecimentos e outras formas de reconhecimento devem ser mencionados após a lista de referências. os artigos devem ser enviados em arquivo eletr ô nico para o e - mail : [email protected] T ermo de concord â ncia e cessão de direitos de reprodução O (s) abaixo assinado (s) _______________________________, autor (es) do artigo intitulado _______________________________________, declaram tê-lo lido e, aprovando-o na sua totalidade, concordam em submetê-lo à Revista Cultura e Extensão USP para avaliação e possível publicação como resultado original. Esta declaração implica que o artigo, independente do idioma, não foi submetido a outros periódicos ou revistas com a mesma finalidade. Declaro (amos) que aceito (amos) ceder os direitos de reprodução gráfica para a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo (PRCEU-USP), no caso do artigo com o título descrito acima, ou com o título que posteriormente venha a ser adotado para atender às sugestões de editores e revisores, seja publicado pela Revista Cultura e Extensão USP ou quaisquer periódicos e meios de comunicação e divulgação da PRCEU-USP. Em adição (necessário se existir mais que um autor), concordamos em nomear _______________ como o autor a quem toda a correspondência e separatas deverão ser enviadas. Cidade: Endereço: Data: Nome (s) e assinatura (s): Rev. Cult. Ext. USP, São Paulo, n. 10, p.133-137, nov. 2013 137 Título Revista Cultura e Extensão USP Revisão de texto Mônica Gama e Priscila Conde Projeto gráfico Ricardo Assis – Negrito Produção Editorial Coordenação de Produção Gráfica Verônica Cristo e Vitor Borysow Editoração Eletrônica Guilherme Zorzella Formato 205 x 265 mm Fontes Avenir e Arno Pro Papel do miolo Alta alvura 90 g/m² Papel da capa Cartão Duo Design 350 g/m² Número de páginas 140 CTP, impressão e acabamento Imprensa Oficial do Estado de São Paulo C a n ç ã o P o p u l a r V e r s u s A u t o r i ta r i s m o ( O s M i l i ta r e s N o P o d e r ) » A N e c e s s i d a d e d e A ç õ e s A rt i c u l a d a s n a C u lt u r a e E x t e n s ã o » P e r s p e c t i va s d a E x t e n s ã o U n i v e r s i tá r i a n o P r o j e t o T r o c a D e S a b e r e s d a U n i v e r s i d a d e d o E s ta d o d e S a n ta C ata r i n a ( U d e s c ) » R e g i ã o C e n t r a l H i s t ó r i c a d e S a n t o s e o T e r r i t ó r i o U s a d o : S í n t e s e d e M ú lt i p l a s D e t e r m i n a ç õ e s » D e s e n v o lv i m e n t o Pa r t i c i pat i v o d e u m S u p o r t e pa r a A l m o fa d a d a s R e n d e i r a s d e B i l r o d o M u n i c í p i o d e S a u b a r a , B a h i a » S i s t e m a E s t r u t u r a l e C o n s t r u t i v o d o M ó d u l o ( M ) e m M a d e i r a c o m o I n s t r u m e n t o d e Ap r o x i m a ç ã o S o c i a l n a P r o m o ç ã o d a C i d a d a n i a d e C r i a n ç a s e J o v e n s S o c i a l m e n t e V u l n e r áv e i s » S a ú d e P ú b l i c a a o A l c a n c e d a P o p u l a ç ã o : O Pa p e l d a s B i b l i o t e c a s V i r t u a i s n a s R á d i o s C o m u n i tá r i a s » S e g u n d a S e m C a r n e n a Fa c u l d a d e d e S a ú d e P ú b l i c a : U m P r o j e t o d e I n t e r v e n ç ã o » Q u a l i d a d e d e V i d a R e l a c i o n a d a à S a ú d e d e Pa c i e n t e s O n c o l ó g i c o s s o b C u i d a d o s Pa l i at i v o s