release - Deckdisc

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MUNDO LIVRE S/A – “COMBAT SAMBA”
Por Renato L.*
"Johnny Rotten e Jorge Ben no mesmo groove". Quando os amigos brincam de
rotular o som do Mundo Livre S/A, essa frase é uma das preferidas. Basta
substituir o vocalista do Sex Pistols por Mick Jones ou Joe Strummer (vocalistas da formação
original do Clash) e temos sintetizada com perfeição a receita desse “Combat Samba”, a
primeira coletânea da carreira do subcomandante Fred Zeroquatro e seus demais
companheiros.
O título “Combat Samba”, obviamente, é uma referência ao "Combat Rock", quinto
disco de estúdio do Clash, a banda seminal do Punk inglês ao lado do Sex
Pistols. Assim como Strummer e Jones buscaram expandir as fronteiras
sonoras e temáticas do pop inglês, o Mundo Livre, desde os primeiros shows
no distante ano de 1984, entorta o universo da música popular brasileira, em
especial o do samba. Uma coletânea temática como essa, portanto, está mais do
que justificada. Sobretudo quando se tem em mente que uma boa parcela do público que tem
comparecido aos últimos shows da banda é formada por uma molecada em torno dos vinte
anos, que não teve oportunidade de acompanhar o início dessa trajetória.
Das 14 faixas selecionadas pelo produtor Carlos Eduardo Miranda para “Combat
Samba”, 13 saíram da discografia anterior da banda, formada pelos CDs “Samba
Esquema Noise” (1994), “Guentando a Ôia” (1996), “Carnaval na obra” (1998), “Por
Pouco” (2000) e “O Outro mundo de Manuela Rosário” (2004), e pelo EP “Bebadogroove vol.
1 - garagesambatransmachine” (2005). A coletânea é encerrada com uma música inédita,
“Estela (A Fumaça do Pajé Miti Subitxxi)”, gravada no estúdio Muzak, no Recife, em março
deste ano, com produção do próprio Miranda.
NO BALANÇO DA BIOPIRATARIA
A história dessa faixa nova merece um comentário à parte. Composta no ano passado, a
canção conta com uma das melodias mais envolventes já criadas pela banda, que remete
tanto a Jorge Ben quanto ao "manchester sound" dos anos 80 (Smiths, New Order, etc). A
letra, em clima de realismo fantástico, tempera doses de ironia com neologismos
divertidíssimos, e foi inspirada em parte por uma denúncia aterrorizante publicada no site da
Agência Amazônia de Notícias. Segundo relatou o repórter Chico Araújo, amostras de
linhagens de células e do DNA do sangue de crianças, adolescentes, adultos e idosos das
tribos Karitiana e Suruí, de Rondônia, estão sendo comercializadas, via internet, pela Coriel
Cell Repositories, um grande laboratório sediado em New Jersey. "A empresa também
coloca à venda amostras sanguíneas de índios do Peru, Equador, México, e de vários outros
países. A Coriel possui quase um milhão de recipientes com sangue e, de 1964 para cá, já
comercializou 120 mil amostras de células e outras 100 mil de DNA. Esse material foi
vendido a cientistas de 55 países". Tem mais: "Com um simples clique e a disposição de
gastar módicos US$ 85, uma pessoa de qualquer parte do planeta compra, sem sair de casa,
os componentes sangüíneos dos índios do Brasil. É muito fácil".
Quem acha que tudo pode não passar de teoria conspiratória, é bom saber que em 2002 a
Procuradoria da República em Rondônia ingressou com uma ação civil pública na Justiça
Federal. Na ação, o MPF acusa o médico brasileiro Hilton Pereira da Silva e a companheira
dele, Denise Hallak, pela coleta ilegal de sangue. A dupla teria convencido os índios a doar o
sangue, sob o argumento de que o material deveria ser utilizado em pesquisas para o
desenvolvimento de novos remédios. Ainda segundo a reportagem, a assessoria da Funai
teria declarado que a instituição não pode impedir o site de comercializar o sangue pelo fato
dele estar hospedado nos EUA. Zeroquatro apela para que se divulgue o endereço da
agência, para que todos possam ter acesso à matéria intitulada "Empresa dos EUA vende
sangue indígena na internet": www.agenciaamazonia.com.br
FONODIVERSIDADE COM EMBALAGEM DE PRIMEIRA
Toda a complexidade de uma das bandas brasileiras mais criativas das últimas décadas está
aqui. A pegada maravilhosamente pop comparece com “Meu Esquema” e “Musa da Ilha
Grande”. O samba que se debruça sobre a própria história está representado na faixa de
abertura do disco, “O Mistério do Samba”. E, claro, os comentários às vezes irônicos, às
vezes carregados de raiva, mas sempre de uma precisão certeira, de Zeroquatro sobre o
estado de coisas do planeta, ocupam uma larga fatia da coletânea.
“Combat Samba” tem ainda outra atração: Jorge Du Peixe - companheiro de Zeroquatro na
idealização do movimento Mangue Beat, no início dos anos 90 - é quem assina a capa, junto
com Valentina Trajano. E o encarte conta com comentários faixa a faixa produzidos pelo
próprio Zeroquatro. Com a embalagem à altura do conteúdo, não há do que reclamar. Essa
coletânea vai abrir um sorriso de satisfação no rosto de Jorge Ben, Mick Jones e todos os
demais combatentes do Samba - e do Rock.
Maio 2008
* Renato L – é jornalista e escreveu, ao lado de Fred Zeroquatro e Chico Science, o
Manifesto “Caranguejo com Cérebro”, marco inicial do movimento Mangue Beat.
FAIXA A FAIXA
Por Fred Zeroquatro
O Mistério do Samba
A letra foi inspirada no livro homônimo do antropólogo Hermano Viana. No cavaquinho, o
suspeito fez questão de envenenar a levada da mão direita com temperos de maracatu e
carimbó. O comparsa Eduardo Bid (produtor do disco “Por Pouco”) tomou a iniciativa de
convocar o maestro Tiquinho, que turbinou de vez a faixa com o fulminante arranjo de metais.
Édipo, o homem que virou veículo
Depois de iniciar uma noite bebendo e apreciando, embasbacado, a velha guarda da Portela
(ao vivo num antro tradicional da boemia carioca), a mente criminosa catou seu cavaquinho e
compôs a melodia e a harmonia, varando a madrugada num quarto de hotel em Copacabana.
A inspiração para a letra só surgiria dias depois, a partir de uma nota ainda mais perversa
publicada friamente num jornal pernambucano. Edu K., o produtor da faixa, teve a idéia
mórbida e doentia de catar latas, garrafões e baldes na vizinhança e montar uma bateria de
sucata no estúdio para o suspeito Xef Tony executar a ação.
Livre Iniciativa
A letra foi inspirada no slogan matador do cinema novo, “uma câmera na mão e uma idéia na
cabeça”. Partiu de um dos elementos produtores do disco Samba Esquema Noise, Carlos
Eduardo Miranda, a iniciativa de convocar para a ação a então guitarrista do PUS, Syang,
que acabou se transformando na irresistível vedete do primeiro clipe oficial da banda.
Muito Obrigado
Um libelo implacável contra a obrigatoriedade de filiação à Ordem dos Músicos. A singela
fábula sobre urubus e canários foi encontrada por acaso numa apostila da faculdade de
psicologia que a musa Maria Eduarda cursava na época. A escolha dos samplers se deu no
tempo em que Deus, mais conhecido como Kid Morengueira, ainda circulava entre os pobres
mortais.
Seu Suor É o Melhor de Você
A letra nasceu de uma experiência transformadora, vivida pelo chefe da quadrilha em 88,
quando o cujo ganhava a vida medíocre e sem horizontes como datilógrafo numa farmácia de
manipulação em São Paulo. Depois de passar alguns dias na base de pão e água (pra
economizar e poder pagar o ingresso), ele assistiu a um show do ídolo Iggy Pop numa casa
suspeita chamada Projeto SP. E tudo mudou.
A expressão exata
Em 97, época da pré-produção do álbum Carnaval Na Obra, a quadrilha passou alguns
meses morando em São Paulo e ensaiando no estúdio Quorum, em Perdizes. Esta foi uma
das poucas obras “fresquinhas”, nascidas durante as jam sessions dos ensaios. Pois boa
parte do repertório ainda tinha origem em releituras e reciclagens das sobras do longo – e
fértil – período da “garagem”, na ilha grande (84 a 93).
Terra Escura
Nem Freud, nem Jung. Em se tratando de perturbações da cachola, a principal referência da
cambada sempre foi um tal de R. D. Laing. Médico e escritor indiano de ascendência inglesa,
o cujo ganhou projeção mundial ao lançar, no final dos 60ś, os fundamentos da
antipsiquiatria. A letra desta débil pérola foi literalmente sequestrada de um ensaio de Laing
sobre psicose e esquizofrenia. Neurosamba com efeitos borbulhantes garimpados pelo
produtor Charles Gavin.
Saldo de Aratu
Há algo sobre a mentalidade das instituições financeiras que dá pra entender rapidamente
quando se perde o emprego. Elas não investem em verbos, substantivos ou adjetivos. Não
deve dar lucro. Por isso costumam usar uma linguagem bem, digamos, econômica pra
expressar o quanto apreciam seus clientes arruinados. “SALDO ATUAL – 0,00”. Aí o
elemento fica inquieto e inventa um riff de guitarra tortuoso e mal intencionado, inspirado em
Robert Fripp.
Meu Esquema
Os brutos também amam...e fazem gostoso. Ainda mais quando podem contar com a
cumplicidade maliciosa de um produtor como Eduardo Bid, de um trompetista como
Reginaldo 16, de um contrabaixista chicano como Joey Santiago* e de um pós-produtor ítalobrasileiro como Mário Caldato Jr.
Musa da Ilha Grande
A lenda corre há anos entre renegados e delinqüentes dos mares tropicais. A princesa virgem
de pele clara e longos cabelos negros entra displicentemente no mar, trajando apenas um
frágil biquini branco. Na praia, olhos e óculos esbugalhados, o elemento fica daquele jeito,
pronto pro refrão criminoso. Ação automática e fulminante. A entidade Naná Vasconcelos cai
do céu com sua magia e a rainha das estrelas, Malu Mader, ainda resolve emprestar
gentilmente o seu brilho no final. Aqui pra nós, que violência!
E a vida se fez de louca
A versão final da letra só se definiu durante a mixagem, quando algumas frases foram
adicionadas. Mas a idéia original remonta à década de 70, quando um dos malfeitores leu
pela primeira vez o romance naturalista O Cortiço, de Aluisio Azevedo. Foi um chute no
estômago do então estudante do Colégio Militar do Recife que mal completara 15 anos. As
picapes suingadas do DJ KSB e o sete cordas do comparsa mestre Bozó ajudaram a dar o
tom mortal.
Super Homem Plus
O século XX foi uma farra interminável para os fabricantes de armas e artefatos bélicos em
geral. Seus sócios, senhores da guerra, além de fazerem a festa, ainda inventaram – com o
aval da ONU – uma nova categoria de assassinato em massa: efeito colateral. Eles
mereciam coisa bem pior, mas nossos rebeldes pelo menos reagiram com um panfleto de
breque contra todo terrorismo de estado. Pilotando seu míssil de sete cordas, o parceiro
Swami Jr. forneceu munição de altíssimo calibre. Bem feito!
Carnaval Inesquecível na Cidade Alta
Em 2005, os rebelados decidiram apostar pela primeira vez numa aventura 100% autônoma,
fundando sua própria plataforma de lançamentos, o selo Ôia Records. O primeiro artefato
disparado foi o escalafobético EP “Bebadogroove Vol 1 – garagesambatransmachine”, de
onde foi retirada esta peça. Sem produtores ou músicos convidados, a obra relembra a época
em que os soturnos punks da Ilha Grande tentavam matar o tempo infernizando a ultrafestiva
Olinda.
Estela (A fumaça do Pajé Miti-Subitxxy)
O personagem Caciqqy Stardust veio ao mundo no carnaval de 2007. A indumentária foi
confeccionada, sob encomenda, pelo artista plástico Jacaré, ícone da cena mangue
recifense. Desde então os elementos vêm se empenhando no desenvolvimento do conceito –
etnocosmofonia. A pergunta que não quer calar é: eram os tupãs astronautas? Aguardem os
próximos capítulos...
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