universidade federal da paraíba
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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – UFPB CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO E TURISMO – DECOM CURSO DE BACHARELADO EM TURISMO InterSETORIALIDADE e TransDISCIPLINARIDADE: EDUCAÇÃO, CULTURA POPULAR E TURISMO COMUNITÁRIO O caso da Ação Griô Nacional VIVIAN MAITÊ CASTRO João Pessoa - PB Agosto de 2009 2 VIVIAN MAITÊ CASTRO InterSETORIALIDADE e TransDISCIPLINARIDADE: EDUCAÇÃO, CULTURA POPULAR E TURISMO COMUNITÁRIO O caso da Ação Griô Nacional Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado em Turismo, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em cumprimento às exigências da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Turismo. Orientadora: Profa. Dr. Lígia Maria Tavares da Silva João Pessoa Agosto de 2009 3 C355i Castro, Vivian Maitê. Intersetorialidade e interdisciplinaridade: educação, cultura popular e turismo comunitário / Vivian Maitê Castro. – João Pessoa, 2009. 105f. : il. Orientadora: Ligia Maria Tavares da Silva Monografia (Graduação) – UFPB/CCHLA. 1. Cultura popular. 2. Política educacional. 3. OnG Associação Grãos de Luz e Griô. 4. Turismo comunitário. UFPB/BC CDU: 398.2 (043.2) 4 Esta monografia foi submetida à avaliação da Banca Examinadora composta pelos professores abaixo relacionados, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel em Turismo, outorgado pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB e encontra-se à disposição dos interessados no Laboratório de Turismo da referida Universidade. A citação de qualquer trecho desta monografia é permitida, desde que feita de acordo com as normas de ética científica. VIVIAN MAITÊ CASTRO InterSETORIALIDADE e interDISCIPLINARIDADE: EDUCAÇÃO, CULTURA POPULAR E TURISMO COMUNITÁRIO O caso da Ação Griô Nacional Aprovada em 19 de agosto de 2009, com média 10,0. BANCA EXAMINADORA ____________________________________________ Nota: 10,0 Profª. Dra. Maria Adailza Martins de Albuquerque Departamento de Metodologia da Educação - UFPB (Examinadora) ____________________________________________ Nota: 10,0 Prof. Bruno Muniz di Britto Departamento de Comunicação e Turismo - UFPB (Examinador) ____________________________________________ Profª. Dra. Lígia Maria Tavares da Silva Departamento de Geociências - UFPB (Orientadora) Nota: 10,0 5 Dedico este trabalho a minha família e a todos os mestres e amantes da cultura popular, que resistem fortemente lutando, cantando e contando histórias e saberes que são verdadeiras lições de vida e me fazem acreditar em possibilidades infinitas. Fontes inspiradoras de meu crescimento pessoal, eles encantam e mostram com simplicidade o verdadeiro significado de estarmos aqui: O amor pela vida e as Pessoas com as quais nos deparamos ao longo dela. 6 AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, por estar sempre ao meu lado, me guiando, protegendo e propiciando um caminho de autoconhecimento a partir dos erros e acertos ao longo da vida, porém tudo em seu devido tempo. Por permitir-me pertencer a uma família amorosa e aprender que não importa o que aconteça, com amor tudo é possível e resolvível. Por ensinarme o amor ao próximo e assim, buscar encontrar o melhor de cada pessoa. À minha mãe, Juraci Castro, e meu pai, Wilson Castro, maiores incentivadores e investidores de meus estudos. Pelo amor incondicional, apoio em todos os momentos e presença constante. Por acreditarem em mim, em meu potencial e em minhas decisões pessoais. Por serem referências de ideais, posturas, batalhas e ética frente ao que o mundo nos oferece. E, principalmente, por estarem sempre disponíveis, em qualquer momento, e sob qualquer circunstância. Aos meus irmãos, Vinícius Wilson Castro e Elis Valéria de Sousa Cornes, pelo amor, companheirismo, admiração e apoio. À minha orientadora, sobretudo amiga, a geógrafa e professora Lígia Maria Tavares da Silva, por acreditar em meus devaneios, sistematizar as possibilidades, cobrar com sutilidade, apoiar, incentivar, intervir em meu favor, rir e até me levar para viajar nos momentos finais de concepção do trabalho, onde o stress já atrapalha e uma pausa bem conduzida é essencial. Por me ensinar que o mais importante de tudo é estar em paz e feliz consigo mesmo e com a pesquisa, pois assim ela flui naturalmente. Pela competente e generosa orientação, muito obrigada. Ao professor Alberto “Guy” Nishida, pela amizade, compreensão, parceria e apoio no início das pesquisas para definição do objeto de estudo deste trabalho de conclusão de curso. Ao professor Elbio Troccoli, pela amizade, presença constante, críticas desafiadoras, apoio direto e indireto em meu caminho durante a graduação e nesta monografia. Ao professor Euler Siqueira, da Universidade Federal de Juiz de Fora, inspirador dos meus primeiros estudos aprofundados em ciências sociais na academia. Pela amizade e apoio na escolha de mudança de cidade e até mesmo propondo trabalhos conjuntos entre realidades diferentes, o Nordeste e o Sudeste do Brasil. Ao professor Gilberto Felisberto Vasconcellos, também da Universidade Federal de Juiz de Fora, folclorista nato que me apresentou e me fez despertar para a diversidade cultural brasileira, com suas peculiaridades e personalidades. Ensinou-me a reivindicar, questionar, 7 tentar promover e articular mudanças, enfim, a movimentar-se por aquilo em que acreditamos e a não compadecer com o injusto. Ao amigo Danylo Aguiar, por simplesmente ser aquele amigo de todas as horas, sejam elas de trabalho, de produção acadêmica ou de puro lazer e boas risadas. Ao amigo Saullo Farias, pelo companheirismo, carinho e afeto, e por lembrar-se de mim, mesmo com tamanha distância, incentivando-me a inscrever o projeto que culminou com a inclusão da Paraíba na rede da Ação Griô Nacional. À Leandro Cunha, pelo amor, carinho, paciência, apoio e presença essencial na finalização desta monografia. À Delci Gomes, pelas histórias, mensagens subliminares e lições de vida. Pela compreensão, apoio e por me adotar de braços abertos na Escola Viva Olho do Tempo. À Durval Leal, pela compreensão e apoio para realização desta monografia em paralelo com tantas outras demandas de trabalho na organização não governamental Para’iwa. Aos meus amigos, de tantas caminhadas pelas longas e diversas estradas da vida. Por aqueles que estão longe, porém estiveram presentes em momentos importantes e ainda estão próximos em afeto. E aos que estão perto, afirmam e validam minha escolha de estar em João Pessoa. Com vocês, minha vida padece sob constante felicidade crônica. Aos professores do Curso de Turismo da Universidade Federal da Paraíba, por acreditarem que vale a pena educar em um contexto político e estrutural tão adverso. Aos colegas das diferentes turmas do Curso de Turismo da Universidade Federal da Paraíba pelas quais transitei. Pelos bons momentos de discussão, aprofundamento teórico e, principalmente, de estreitamento de laços afetivos. Aos mestres e griôs de tradição oral, e aos militantes da Ação Griô Nacional, por me fazerem acreditar em uma possibilidade de atuação política em prol de nossa cultura popular, mas, sobretudo, pelas lindas pessoas que são, pelos ensinamentos, carinho, afeto e união nos momentos vivenciados nesta caminhada pelas nossas tradições culturais. Por fim, a todos os seres viventes que contribuíram direta e indiretamente para minha formação acadêmica, política, ideológica e pessoal, e que fizeram e ainda fazem-me acreditar em tantas possibilidades de trabalho e atuação cidadã, que me fazem pensar ser possível modificar o mundo a partir de pequenas ações, que somadas a outras pequenas ações, resultam em grandes ações transformadoras. E assim, de pouquinho em pouquinho, vamos tentando melhorar nossas vidas e as vidas de outras pessoas, partindo do principio de que é possível sonhar e, principalmente, alcançar estes sonhos. Basta acreditar em si mesmo, e agir conforme! 8 A people without the knowledge of their history, origin and culture is like a tree without roots. Marcus Darvey 9 CASTRO, Vivian Maitê. InterSETORIALIDADE e TransDISCIPLINARIDADE: Educação, Cultura popular e Turismo Comunitário - O caso da Ação Griô Nacional. 105 p. Monografia (Bacharelado em Turismo) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009. RESUMO Esta pesquisa tem por objetivo contribuir para as discussões e reflexões sobre a participação da sociedade civil organizada, na elaboração de iniciativas sociais, culturais, educacionais e turísticas que visam promover a cidadania, ao acrescentar, aprimorar e propor novas políticas públicas no Brasil. Analisa-se o momento político atual, para compreender uma proposta apresentada pela organização não governamental Associação Grãos de Luz e Griô que fora incorporada às políticas públicas para as diretrizes das culturas populares do Ministério da Cultura, no âmbito do Programa Nacional de Arte, Educação, Cidadania e Economia Solidária – Cultura Viva, denominado de Ação Griô. Ampliando sua abrangência em âmbito nacional, o programa objetiva a inclusão dos saberes e fazeres de tradição oral em diálogo com a educação formal, propondo uma reformulação na grade curricular brasileira, com vias a referenciar e afirmar a ancestralidade, identidade e diversidade cultural brasileira. A partir desse programa, a organização não governamental Associação Projeto Bagagem, de São Paulo, criou e implantou entre 2006 e 2008 as primeiras Trilhas Griô de Turismo de Base Comunitária na cidade de Lençóis, região da Chapada Diamantina, Bahia, em parceria com a Associação Grãos de Luz e Griô. Estruturadas em conjunto e de acordo com os anseios das comunidades tradicionais locais, e tendo como atrativo principal seus mestres e griôs de tradição oral, as Trilhas Griô fomentaram novas políticas públicas no Ministério do Turismo, que também incorporou a proposta advinda do terceiro setor e selecionou mais projetos similares de todo Brasil. Neste trabalho, exemplifica-se uma das trilhas griô, estruturada e em pleno funcionamento na cidade de Lençóis, a Trilha Griô do Quilombo, mostrando seus diferenciais e peculiaridades, que podem configurar como uma alternativa de turismo comunitário que gera renda aos receptores, promove cidadania, ao mesmo tempo em que valoriza os mestres de saberes populares da rica diversidade cultural brasileira. Palavras Chave: Cultura Popular, Política Educacional, Ação Griô, Turismo Comunitário 10 CASTRO, Vivian Maitê. InterSECTORY and TransDISCIPLINARY: Education, Popular Culture and Community Tourism – The case of National Griô Action. 105 p. Final Thesis for Tourism Bachelor Degree – Paraíba. Federal University, João Pessoa, 2009. ABSTRACT This research aims to contribute to the discussions and reflections on the participation of the organized civil society in creating social, cultural, educational and tourism projects to promote citizenship by adding, improving and proposing new public policies in Brazil. It analyzes the current political moment, to understand a proposal made by the non-governmental organization Grãos de Luz e Griô Association that has been incorporated as a public policy for popular culture in the Cultural Ministry, within the National Program of Arts, Education, Citizenship and Solidarity Economy – Cultura Viva (Alive Culture), called Açao Griô (Griô Action). Expanding its coverage in the national territory, the program aims to include the knowledge of oral traditions in dialogue with formal education, proposing a review on the curricular of Brazilian education to create a cultural reference and to affirm the ancestry, identity and cultural diversity in Brazil. From this program, the non-governmental organization Projeto Bagagem Association (Luggage Project), from São Paulo, which has created and implemented between the years of 2006 and 2008 the first Trilhas Griô (Griô Tracks) of Community Tourism, in the city of Lençóis, Chapada Diamantina, Bahia, in partnership with the Grãos de Luz e Griô Association. Structured in accordance with the desires of local traditional communities, and having as its main attraction the masters and griôs of oral traditions, the Trilhas Griô (Griô Tracks) encouraged new public policies in the Tourism Ministry, which also incorporated the proposal coming from the third sector and selected more similar projects throughout Brazil. This research gives, as an example, one of the Trilhas Griô structured and fully functioning in the city of Lençóis, the Trilha Griô of the Quilombo, showing their differences and peculiarities, which can set up an alternative of community tourism that generates income to its recipients, promotes citizenship, as well as it gives values on the masters of popular knowledge of the rich Brazilian cultural diversity. Key Words: Popular Culture, Educational Policy, Griô Action, Community Tourism 11 SUMÁRIO RESUMO ............................................................................................................................... 09 ABSTRACT ........................................................................................................................... 10 SUMÁRIO ............................................................................................................................. 11 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 13 PRELIMINARES E ESTRUTURA DO TRABALHO .................................................... 13 OBJETIVOS .......................................................................................................................... 17 METODOLOGIA ................................................................................................................. 18 1. REDEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA E NOVAS PRÁTICAS PEDAGOGICOCULTURAIS 1.1. - Resgate Histórico ............................................................................................... 20 1.2 - Redemocratização das Políticas Públicas ........................................................... 22 1.3 - Políticas Públicas para a Cultura Popular ........................................................... 25 2. - CULTURA POPULAR E IDENTIDADE BRASILEIRA 2.1 - A Formação Cultural do Povo Brasileiro ........................................................... 29 2.2 - A Cultura Popular e seus Saberes e Fazeres de Tradição Oral ........................... 30 3 - A AÇÃO GRIÔ NACIONAL: RESGATANDO A EDUCAÇÃO E A IDENTIDADE CULTURAL 3.1 - História da Educação no Brasil ........................................................................... 35 3.2 - Os Problemas da Educação no Brasil ................................................................. 38 3.3 - Educação Biocêntrica ......................................................................................... 42 3.4 - A Pedagogia Griô ............................................................................................... 46 3.5 - A participação da sociedade civil no processo de redemocratização da Educação: A Associação Grãos de Luz e Griô ............................................................................. 48 3.6 - A Vivência da Pedagogia Griô – Ritual de Vínculo e Aprendizagem ............... 55 3.7 - O Programa Ação Griô Nacional do Ministério da Cultura ............................... 58 12 4. - TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA 4.1 - O Turismo e suas Contradições .......................................................................... 66 4.2 - Turismo Comunitário: Sustentabilidade, Humanismo e Cidadania ................... 69 4.3 - Projeto Bagagem de Turismo de Base Comunitária ........................................... 71 4.4 - As Trilhas Griô ................................................................................................ ...78 4.5 - Trilha Griô do Quilombo – Comunidade do Remanso ...................................... 80 5. - CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 88 6. - REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 91 7. - ANEXOS .......................................................................................................................... 98 13 INTRODUÇÃO PRELIMINARES E ESTRUTURA DO TRABALHO O turismo e seus diversos segmentos e desdobramentos, frente ao recente crescimento da atividade, instigam estudos aprofundados quanto ao seu desenvolvimento, formas e modelos de implantação. A fim de analisar os impactos positivos e negativos ocasionados no ambiente e nas populações locais dos destinos turísticos, esta pesquisa visou encontrar referências positivas de desenvolvimento turístico aplicadas no Brasil, que possam inspirar futuros planejamentos sustentáveis de atuação e manutenção da atividade. Entendendo o turismo como uma atividade econômica, porém com reflexos sociais, culturais e ambientais, buscam-se maneiras de viabilizar seu desenvolvimento, em consonância com todas as áreas que a atividade atinge. Dentro dos diversos segmentos e possibilidades, este trabalho foca-se no modelo de turismo de base comunitária, voltado às culturas e comunidades tradicionalmente orais do território brasileiro, criado e implantado por uma organização não governamental, a Associação Projeto Bagagem. Entretanto, para abordar esse modelo, com gestão proveniente do terceiro setor, em conjunto com outras instituições da sociedade civil organizada e as comunidades receptoras, o estudo inicia-se, no primeiro capítulo, com um resgate histórico da política brasileira e dos movimentos sociais ao longo dos anos. Passando pela Constituição de 1988, que marca um importante momento de abertura política, após o período ditatorial com vias à democracia, até chegar ao governo atual, analisamos as políticas públicas e seu processo de redemocratização, que destacou e potencializou as ações do terceiro setor. A gestão federal atual, referência mais recente de estreitamento do diálogo e da incorporação de ações desenvolvidas pelo terceiro setor nas políticas públicas de governo, propõe um novo modelo organizacional de gestão. Este modelo baseia-se nos preceitos do holismo, como visão global de mundo e de ações interligadas, e na gestão compartilhada entre governo, sociedade civil organizada e sociedade de forma geral, de maneira a otimizar os recursos e viabilizar atuações concretas de retorno à população brasileira. No segundo capítulo, abordaremos a cultura como elemento principal no modelo de turismo de base comunitária, tratado neste trabalho, focando mais precisamente, na cultura popular e suas diversas manifestações no Brasil. Esse capítulo segundo serve de embasamento teórico, para entrarmos no âmbito da educação brasileira e sua estruturação, assunto do terceiro capítulo, a fim de mostrar como a 14 grade curricular inspirada em modelos europeus apresenta uma lacuna, no que tange aos aspectos culturais, durante a formação do povo brasileiro. O modelo vigente não contempla disciplinas relacionadas à identidade e ancestralidade cultural brasileira, o que provoca um estranhamento nos estudantes que não se enxergam dentro do espaço escolar, podendo ocasionar desinteresse nos estudos, além de poder colaborar com os altos índices de analfabetismo que colocam o país abaixo de nações menos desenvolvidas economicamente. Ao constatar essa lacuna existente em nosso sistema educacional, uma organização não governamental, a Associação Grãos de Luz e Griô 1, criou uma pedagogia para suprir esse problema - a Pedagogia Griô - com referenciais teóricos da educação dialógica de Paulo Freire, do princípio biocêntrico de criação de vínculos afetivos de Rolando Toro, e dos saberes e fazeres2 de tradição oral transmitidos pelos próprios mestres detentores desse conhecimento. Implantada com resultados positivos na cidade de Lençóis, na Bahia, em conjunto com a secretaria municipal e os professores locais, o projeto inspirou governantes, e passou a adentrar uma das ações do Ministério da Cultura, objetivando ampliá-lo em todo o país – A Ação Griô Nacional. Proposta de mobilização pela educação brasileira, a Ação Griô atua em todo Brasil, dividindo o território nacional em regionais especialmente delimitadas para suprir a dimensão do país, e adotando um modelo de gestão compartilhada, com a participação de entidades sem fins lucrativos, órgãos governamentais parceiros, sociedade civil e os próprios mestres de tradição oral. Essa política pública vem promovendo uma revalorização desses mestres e seus saberes em diálogo aberto com a educação formal. O objetivo maior é dar identidade, ancestralidade e referência cultural às crianças e adolescentes brasileiros, durante o processo educacional dos mesmos, instituindo um ato de cidadania. A Ação Griô Nacional já engloba 130 projetos associados, com aproximadamente 655 mestres e griôs de tradição oral que, intermediados pelos griôs aprendizes de cada entidade, que transitam entre a educação formal e o conhecimento popular, transmitem seus saberes e fazeres de tradição oral em escolas públicas parceiras dos projetos, atingindo hoje 20 estados da federação. Esse projeto impulsionou diversas outras ações em seus participantes, tantos nos mestres e griôs de tradição oral, como nas instituições sem fins 1 A palavra abrasileirada griô vem do francês griot, que traduz a palavra “dieli” na língua bamanan do Mali, noroeste da África. São os mestres genealogistas, contadores de histórias, músicos, poetas populares, mediadores políticos. “Dieli” originalmente significa “sangue que circula”, pois os griots caminham de aldeia em aldeia aprendendo e ensinando cultura. São educadores do popular, que aprende, ensina e se torna a memória viva da tradição oral. É o sangue que faz circular os saberes e histórias, as lutas e glórias de um povo, dando vida à rede de transmissão oral de uma região e de um país. (PACHECO 2006, p. 45) 2 Termo utilizado para caracterizar trabalhos manuais, como o artesanato, e atividades ligadas à cultura popular. 15 lucrativos pertencentes ao programa. É prerrogativa da Ação Griô criar e distribuir produtos educativos, relacionados à proposta, que são confeccionados através da economia solidária em pequenas comunidades, gerando renda em lugares longínquos e carentes. Dessa idéia de produtos agregados ao programa, que promovessem uma alternativa de geração de renda às comunidades carentes, e com mestres e griôs de tradição oral, nasceram as Trilhas Griô de Turismo de Base Comunitária, foco do quarto capítulo. Apresentamos inicialmente o turismo como atividade econômica que se depara com contradições, quando dos modelos de estrutura e desenvolvimento implantados em muitos destinos turísticos para, enfim, mostrarmos uma alternativa de Turismo de Base Comunitária que já apresenta resultados positivos. Criada por uma organização não governamental, visando desenvolver um turismo mais humano e cultural, além de mostrar boas iniciativas sociais ao redor do Brasil, a Associação Projeto Bagagem trabalha sempre em parceria com outras organizações não governamentais locais e as comunidades receptoras, que participam efetivamente da elaboração e estruturação da atividade turística. Planejando ações a médio e longo prazo, e em consenso com a população local, o Projeto Bagagem dedica de um a dois anos de estruturação da atividade em cada localidade onde se pretende estabelecer um roteiro de turismo de base comunitária. Neste quarto capítulo, apresentamos o embasamento teórico do Projeto Bagagem e seu modelo de turismo que, recentemente, chamou a atenção do Ministério do Turismo, que não tinha uma linha de atuação no segmento de turismo de base comunitária. Tal Ministério agora patrocinará projetos já selecionados em edital de seleção pública, que apresentaram propostas semelhantes de turismo de base comunitária e trabalhos organizados em redes sociais, buscando uma gestão compartilhada que se mostra como alternativa de organização e administração vigente em alguns setores do país. As primeiras Trilhas Griô foram pensadas e estruturadas pelo Projeto Bagagem em parceria com a Associação Grãos de Luz e Griô, gestora da Ação Griô Nacional. São três atualmente, na cidade de Lençóis, na Bahia, porém focamos nosso exemplo em uma delas, vivenciada pela autora desta pesquisa. Com os resultados positivos alcançados nestas primeiras trilhas, já estão previstas cinco novas trilhas na Bahia e em Pernambuco, sempre em parceria com organizações não governamentais locais. Esta pesquisa partiu da premissa de aprofundar seus estudos quanto à criação do programa Ação Griô Nacional, que busca o reconhecimento e a valorização dos mestres e griôs de tradição oral que, até pouco tempo, não eram referenciados em políticas públicas 16 governamentais, assim como transpor para o espaço acadêmico uma iniciativa da sociedade civil organizada, setor pouco divulgado na academia e nunca antes abordado como criador e gestor de projetos turísticos, nos trabalhos de conclusão do curso de Turismo da Universidade Federal da Paraíba. Após a inclusão da Paraíba no programa, e da proposta de articulação da regional de parte do Nordeste, a autora, que participa do projeto, obteve a possibilidade de entender melhor suas diretrizes e prerrogativas, além de participar de encontros, eventos e vivências da pedagogia griô, o que propiciou um encantamento pessoal, assim como mostrou-se uma alternativa de desenvolver o lado humano das pessoas, propiciar um turismo mais enriquecedor, e promover a cidadania num Brasil com tantos problemas e desigualdades sociais. Após ter desenvolvido os aspectos que consideramos relevantes em relação ao tema que nos ocupa, chegamos à parte em que devemos exprimir as nossas conclusões, que pelo seu caráter preferimos denominar apenas como Considerações finais. Com o conhecimento do modelo de turismo de base comunitária, proposto e adotado pela coordenação geral do programa, as “Trilhas Griô”, a definição do objeto de pesquisa e dos elementos que seriam abordados surgirão da indagação: Qual a importância da Ação Griô Nacional, dentro de uma proposta de educação voltada à identidade e ancestralidade cultural brasileira, e como ela pode auxiliar na estruturação de um turismo de base comunitária sustentável? As “Trilhas Griô”, já implantadas em Lençóis, mostraram-se como real possibilidade de desenvolvimento da atividade turística de forma sustentável e em consonância com as comunidades locais, além de promoverem um enriquecimento cultural aos turistas e enaltecer a identidade e diversidade cultural brasileira. Promovendo um contato direto com culturas tradicionais, através de mestres de saberes e fazeres de tradição oral, estimulando a valorização destes conhecimentos orais e gerando renda para as comunidades receptoras, as trilhas griô se apresentam como um novo modelo de turismo de base comunitária viável, inspirador e encantador. 17 OBJETIVOS Objetivo Geral Analisar a importância da Ação Griô Nacional como política pública de educação e cultura, que tem, no turismo de base comunitária, uma das ações de desenvolvimento da economia solidária em comunidades tradicionais. Objetivos Específicos Traçar um panorama histórico-político sobre o processo de redemocratização das políticas públicas brasileiras dentro da visão holística, focando naquelas voltadas à cultura popular; Relatar o processo de formação cultural do povo brasileiro, mostrando o retrato dos excluídos e enfatizando a cultura popular e seus saberes e fazeres de tradição oral, característicos desta população; Construir uma visão acerca do modelo educacional implantado no Brasil, mostrando a necessidade de inclusão de aspectos de nossa cultura que aborde a identidade e a ancestralidade brasileira, apresentando, assim, uma nova pedagogia que contempla esta lacuna – A Pedagogia Griô, que originou o programa Ação Griô Nacional, valorizando os mestres e griôs de tradição oral; Exemplificar um modelo de turismo de base local, as “Trilhas Griô”, elaborado por uma organização não governamental, que trabalha em parceria com outras entidades sem fins lucrativos e que tem, como atrativo principal, os mestres e griôs de tradição oral. 18 METODOLOGIA As metodologias utilizadas para realização deste trabalho, abrangem a pesquisa bibliográfica, documental e a observação in loco, como observador participante e participante ativa nos encontros e eventos ocorridos. A escolha do objeto de estudo, se deu através da minha entrada no programa Ação Griô Nacional, e a possibilidade de posicionar-se como participante, porém com um olhar exterior, observando seu funcionamento. Assim, a pesquisa principal pautou-se em conversas informativas com os envolvidos no programa, na realização da trilha de turismo de base comunitária e na estadia na comunidade onde este exemplo se desenvolve. O posicionamento adotado pela autora em sua maneira de ver o mundo, e conseqüentemente neste trabalho, se opõe ao cartesianismo e ao positivismo, que rejeitam a fluidez e a mobilidade da vida (HOLANDA, 1984, p.117). A perspectiva humanística, que engloba os conceitos de holismo, princípio biocêntrico e circularidade, tem como uma das prerrogativas essenciais, a vivência pessoal como objeto de estudo. Logo, a pesquisadora participou das vivências e práticas pedagógicas realizadas pela Associação Grãos de Luz e Griô, que coordena a Ação Griô Nacional, assim como em uma das Trilhas Griô de Turismo de Base Comunitária, exemplificada neste trabalho. O primeiro contato com o objeto de estudo ocorreu em agosto de 2008, com a leitura do livro Pedagogia Griô, escrito por Líllian Pacheco em 2006, para a inscrição de uma proposta pedagógica voltada ao edital de seleção pública Ação Griô Nacional, o qual fora realizado por mim em meu local de trabalho, a organização não governamental Congregação Holística da Paraíba, situada em Gramame, zona rural de João Pessoa. Com a aprovação do projeto, esta fora convidada a participar de um evento em novembro do mesmo ano, promovido pelo Ministério da Cultura, o TEIA 2008, que congrega todas as ações culturais promovidas pela atual Secretaria de Cidadania Cultural deste ministério, a qual a Ação Griô faz parte. Neste evento, houve o primeiro contato prático com a pedagogia griô proposta no programa, assim como com seus idealizadores, coordenadores, demais projetos aprovados, e os mestres de saberes de tradição oral de todo país. Em marco de 2009, realizei uma viagem à cidade de Lençóis, Bahia, para conhecer a organização não governamental que criou e implantou o programa, e suas outras ações na localidade. Desta visita, direcionou-se o objeto de pesquisa, assim como se extraíram experiências pessoais, conversas informativas e relatos acerca do objeto, os quais norteiam este trabalho. 19 Definido os objetivos procurados durante a observação in loco, apontamos os três principais citados por Hay (2002, p. 105, tradução da autora): A contagem, que enumera as funções a serem observadas, auxiliando na representação dos fatos e nas análises estatísticas de dados concretos. A evidência complementar, que são informações adicionadas antes, durante e depois da experiência, que auxiliam na estruturação e acréscimo de detalhes das descrições dos fatos. E o contexto subentendido, que procura construir uma interpretação profunda da experiência vivida. Outra metodologia muito utilizada durante a pesquisa foi à participação observante da autora que, segundo Kluckhohn apud HAY (2002, p. 109, tradução da autora) é definida de forma concisa como um momento de consciência, sistematização e compartilhamento de informações referentes às atividades humanas de um grupo específico de pessoas que sejam o foco do estudo, visando interpretar as experiências vividas. Esta pesquisa utilizou o participante como observador, que se caracteriza como o pesquisador que busca o entendimento social, gerado com a mudança no grupo estudado, realizando a pesquisa na própria localidade e em contato direto com a mesma. Neste estudo, a cidade de Lençóis, na Bahia, onde se localiza a organização não governamental Grãos de Luz e Griô, coordenadora do programa Ação Griô Nacional, focando o trabalho em sua área de formação acadêmica, no exemplo de turismo de base comunitária estruturado na comunidade tradicional do Remanso, zona rural da cidade. 20 1 - REDEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA E NOVAS PRÁTICAS PEDAGOGICOCULTURAIS A política é a continuação da guerra por outros meios FOUCAULT, na obra - “Em Defesa da Sociedade” 1.1 - Resgate Histórico O Brasil colônia recebeu intensa influência européia de Portugal que, naquela época, era considerado uma potência mundial, devido às grandes navegações e colocava-se como nação desenvolvida frente às novas terras descobertas, numa espécie de competição com as outras nações colonizadoras. Assim, impôs seu modo de vida e costumes aos nativos que aqui se encontravam, e inseriu seus modelos estruturais em todos os setores a serem desenvolvidos na nova terra. Comércio, cultura, educação, saúde, manejo dos recursos naturais, idioma e política, são alguns dos setores que foram se estruturando ao longo dos anos, tendo como referência os modelos europeus. No campo da política e seu processo democrático, tema abordado neste primeiro capítulo, as idéias positivistas de Auguste Comte3 destacaram-se durante o período republicano, o que resultou na presença de seguidores nos conselhos dos governantes. Entretanto, estes modelos importados não se adaptavam e, muitas vezes, ainda não se adaptam à realidade brasileira. Éramos essencialmente um país comandado por uma aristocracia agrária, que não compreendia os preceitos intelectuais positivistas, mas acabara por inserí-los aqui pela referência literária que estas idéias haviam alcançado na Europa. Era algo considerado superior, positivo, importado, algo a ser copiado das nações mais desenvolvidas, pois se funcionava no continente europeu, não tinha como não ser bom para o desenvolvimento do Brasil. Sergio Buarque de Holanda (1984), traça uma visão crítica acerca deste período de nossa história. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios ate onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar a 3 O francês Auguste Comte foi filosofo e criador da Sociologia e do Positivismo, que abrange conceitos filosóficos, políticos, sociológicos e científicos do século XIX e XX. 21 situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos. (HOLANDA, 1984. p. 119) Essa incorporação de modelos vigentes de outras nações, sem uma releitura e reformulação acerca da realidade brasileira, ocorreu em vários setores do país. A partir deste raciocínio de englobar tendências e modelos mundiais, podemos entender o porquê que os movimentos reformadores no Brasil foram quase sempre propostos das camadas superiores para as inferiores, de cima para baixo. Sem dúvida, tiveram inspiração intelectual, mas o povo não acompanhava esse movimento que tinha a Europa como referência, acabando por surpreender-se com as novas propostas, ao invés de entendê-las como conquistas sociais que o beneficiaria. “Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política, vieram quase de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência, ou hostilidade”. (HOLANDA, 1984, p. 119). A revolução de 1930 não instaura a liberalização e moralização política, refletindo na “ditadura” de Getúlio Vargas, que permaneceu no poder por 15 anos. Após o Estado Novo, em 1945, a democratização finalmente dá indícios de estruturação, impulsionada pela derrota do nazismo. Entretanto, o regime instituído pela Constituinte de 1946, figura como uma democracia formal. Na prática, o governo Dutra é autoritário e impõe limites, intervindo nos sindicatos e colocando a polícia contra manifestações sociais. O golpe de 1964, no presidente democraticamente eleito João Goulart, que assumiu o poder após a renúncia de Jânio Quadros, marca a intervenção dos Estados Unidos na política brasileira e das Forças Armadas, assumindo o poder político como instituição. Inicia-se o período repressivo da ditadura militar, que perdurou por duas décadas, e teve forte influência americana. O período da ditadura militar, de 1964 a 1985, configura como a época de privação das liberdades e direitos, isso em um século de república. Até 1968, a ditadura se manteve razoável, mas após este ano, o regime endureceu, marcando literalmente a vida de muitos brasileiros. Perseguições, prisões, torturas, exílios e a mais forte repressão aos direitos dos cidadãos que o Brasil já enfrentou. Esse momento crítico provocou uma reação de revolta e luta no povo, que logo organizou movimentos sociais coletivos em prol do retorno da cidadania, culminando com a campanha por eleições presidencialistas “Diretas Já” de 1984, que enfraquece a ditadura e marca a retomada da democracia no Brasil, com a eleição de Tancredo Neves. 22 No entanto, o período após 1985 ainda é uma tentativa de superação desse ciclo político-histórico. O resultado, expresso na constituição de 1988, é uma democracia mais incisiva no âmbito social, se comparada à de 1945, embora sua regulamentação e aplicação permaneçam sempre distantes do texto escrito. A nova Constituição instituiu o poder monopolista do presidente sobre o legislativo, o que mais uma vez nos aproximou das democracias parlamentaristas européias, mostrando novamente a referência a modelos internacionais implantados no Brasil. 1.2 - Redemocratização das Políticas Públicas A Constituição Federal de 1988 é um marco histórico da abertura política e do processo de redemocratização política do Brasil. Ela representa um Estado com direitos sociais instituídos, e um sistema político organizado que visa garantir a democratização da sociedade, por meio da democracia representativa e participativa. Em sua Carta Magna, ela assume a diversidade brasileira, a partir da inclusão de formas diferenciadas de organização social e cultural de distintos segmentos da sociedade brasileira, respeitando e assimilando a miscigenação étnica e a formação multifacetada do povo brasileiro. Em 2003, o governo Luis Inácio Lula da Silva inicia seu primeiro mandato, reelegendo-se posteriormente e estendendo seu governo até 2010. Além de seguir as políticas econômicas do governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso, Lula propõe diversas reformas no sistema político, e programas sociais voltados aos problemas da fome, pobreza e analfabetismo no país. Barros (2008) aponta uma das características culturais brasileiras que foi bastante visível na posse do atual presidente, que marca um novo período político no Brasil. “Mesmo nos piores momentos, sempre nos moveu a crença na formação de uma verdadeira consciência democrática, como valor maior; no dinamismo de uma sociedade civil forte e combativa, em conquistas de justiça social”. Em seu governo, a participação e o diálogo com a sociedade civil organizada se ampliam, aprofundando o regime democrático na medida em que ativa as formas de participação popular. Essa abertura política resulta num regime descentralizado, que alcança diversos setores da sociedade, ao mesmo tempo em que permite sua participação na concepção de propostas de melhorias no país. 23 O terceiro setor - “não-governamental” e “não-lucrativo” - seria organizado, independente, e mobilizaria a dimensão voluntária das pessoas. A entrada deste personagem acabaria por gerar mudanças nas relações entre Estado e mercado, ao proporcionar uma expansão da idéia corrente sobre a esfera pública, ao incorporar a dimensão cidadã, com a participação de ações de indivíduos, grupos e instituições que teriam como fim suprir necessidades coletivas. (FERNANDES, 1994 apud SILVA, 2008, p. 21-22) Historicamente, a sociedade brasileira sempre se comportou com o perfil Estadocêntrico (SILVA, 2008 apud SILVA, 1999), em que tudo gira em torno do Estado, responsável por solucionar os problemas e anseios da sociedade. No entanto, as mudanças sociais, políticas, institucionais e culturais dos anos de 1990, a exemplo do Plano Nacional de Educação Ambiental (PNEA) de 1999, promoveram o desenvolvimento de uma sociedade mais consciente e atuante, no processo de construção de melhorias sociais e ambientais. O Plano Nacional de Educação Ambiental colocou o Brasil como único pais latinoamericano a ter uma Política Nacional especifica para a Educação Ambiental. Em seus artigos, o PNEA aponta a visão global e holística no funcionamento do planeta, ampliando o conceito de meio ambiente, restrito anteriormente aos elementos da natureza, e envolvendo educação, cidadania, cultura, recursos naturais e desenvolvimento sustentável, como componentes que constituem todo o meio em que vivemos. Destacam-se os seguintes artigos (BRASIL, 1999) I – o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo. (Art. 4º) São objetivos fundamentais da educação ambiental: [...] IV – o incentivo à participação individual e coletiva, permanente e responsável, na preservação do equilíbrio do meio ambiente, entendendo-se a defesa da qualidade ambiental como um valor inseparável do exercício da cidadania. (Art 5º). Neste novo contexto de visão e organização que, aos poucos, o modelo sociocêntrico (SILVA, 2004 apud SILVA, 2008) de sociedade se afirma, através de leis criadas e aplicadas, assim como de experiências vivenciadas e, sobretudo, pela mudança de mentalidade e de cultura política no país. (SILVA, 2008, p. 82) A sociedade brasileira se organiza cada vez mais de forma horizontal com o governo, criando “redes” de participação e articulação que dialoga e elabora propostas de políticas publicas que atendam aos anseios da sociedade. Desta forma, a construção da democracia, a partir da relação entre setor público, privado e sociedade civil organizada, vem modificando a relação do Estado com a sociedade. Esta sempre manteve a marca de cobrança do Estado, muitas vezes sem a contribuição ou a participação dos atores envolvidos no processo da elaboração de políticas públicas. A proposta agora é construir políticas públicas, em parceria 24 com o Estado que resultem em efetivas melhoras para os cidadãos. O gráfico abaixo exemplifica esse novo modelo de gestão das políticas públicas. Gráfico 1 – A gestão participativa no processo de elaboração e de implementação das políticas públicas Fonte: SILVA, 2008. p. 94 Políticas públicas devem promover o desenvolvimento cultural geral da sociedade, contribuir para a inclusão social e a geração de ocupação e renda. Afirmar nossa singularidade diante das demais culturas do mundo. (...) A partir dessas ações culturais, constroem-se os sentimentos de identificação, de pertencimento societário, os laços comunitários e o senso crítico, uma possibilidade de simbolização que é consciência e defesa na relação com as mazelas sociais vigentes. (MACEDO apud FARIA, 2006, p. 91 e 97). 25 1.3 - Políticas Públicas para a Cultura Popular Centrando-se no setor cultural da gestão atual, foco desta pesquisa, o Ministério da Cultura criou novas secretarias, programas e projetos que atendessem a diversidade e as singularidades da vasta cultura brasileira, tendo como tema central a cidadania. Nesse processo, permitiu a entrada e participação efetiva da sociedade civil organizada, na concepção e acompanhamento das propostas, além de admitir a inclusão de iniciativas já aplicadas pelo terceiro setor, com êxito, dentro de ações do próprio Ministério. Esse modelo horizontal de formulação e implementação de políticas públicas culturais promove o diálogo entre os atores sociais e a esfera governamental, assim como otimiza os recursos financeiros em ações que garantam um retorno à sociedade. Em relação aos esforços do governo, podemos constatar que todas as políticas desenvolvidas atualmente pelo Ministério da Cultura têm sido construídas através de uma participação efetiva da sociedade civil para que ela possa ser o fiel da balança em qualquer tipo de política governamental. E, de uma maneira geral, o Ministério trabalha com aquilo que a sociedade já vem trabalhando, já vem construindo. O que se faz é tentar potencializar aquilo que a sociedade já desenvolve em termos culturais e garantir o direito republicano de que as diferenças sejam respeitadas. (MACHADO apud FARIA, 2006, p. 39). Essa abertura para o diálogo com a sociedade depende da vontade política do governo, que pode ou não permitir a participação popular como política pública. No entanto a sociedade atual está mais organizada, com bons projetos em andamento e uma vontade política de atuar em prol de causas sociais. Organizando-se em modelos de gestão compartilhada, com interesses comuns e “redes” bem amarradas e interligadas em todo país, a sociedade assumiu seu papel transformador e atuante dentro das políticas públicas. Apenas esperar por soluções e ações do governo não figura mais como perfil neste momento político que estamos vivenciando. Uma alusão a este movimento coletivo da sociedade em diálogo com o governo é a concepção do Plano Nacional de Cultura (PNC). Projeto ambicioso e inovador, que propõe as diretrizes da política cultural para todas as esferas da federação pelos próximos dez anos, porém com revisões periódicas, o PNC teve seu texto concebido coletivamente, a partir da Primeira Conferência Nacional de Cultura, em 2005. Sem antecedentes na democracia brasileira, nasceu da parceria entre governo federal e Congresso Nacional, e contou com a participação e revisão de cerca de cinco mil brasileiros de todos os estados do país, através de seminários, grupos de trabalho e do fórum realizado pelo Ministério da Cultura na internet. 26 Esse processo fortaleceu e amadureceu a proposta, que celebra uma construção coletiva constituída pelo governo, Congresso, Estado e sociedade civil. Para operacionalizar este plano, o Ministério da Cultura trabalha desde 2003 na implementação do Sistema Nacional de Cultura, que institui um modelo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas democráticas e permanentes, pactuadas entre as três esferas governamentais da federação e a sociedade civil. As ações do Plano Nacional de Cultura darão forma e consistência ao Sistema Nacional de Cultura, consolidando assim os dois projetos conjuntamente. (BRASIL, 2009). A figura 1 mostra todos os atores envolvidos na concepção do Plano Nacional de Cultura. Figura 1 – Elaboração do Plano Nacional de Cultura Fonte: Ministério da Cultura4 4 Disponível em Plano Nacional de Cultura: Diretrizes Gerais. BRASIL, 2009. p. 19 27 E, a figura 2 expõe o modelo de gestão proposto para o Sistema Nacional de Cultura, que se organiza circularmente, remetendo a visão holística de compreensão global dos elementos interligados, neste caso, através das etapas de funcionamento do Sistema. Figura 2 – Modelo de gestão do Sistema Nacional de Cultura Fonte: Ministério da Cultura5 Neste contexto de mudança e assimilação da diversidade cultural brasileira, em 2003, após um longo esforço do Movimento Negro do Brasil, tornou-se lei a inclusão da disciplina História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos oficiais do ensino brasileiro. Os professores devem inserir em seus programas, aulas sobre História da África e dos africanos, luta dos negros no Brasil, cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. Essa inclusão partiu da necessidade de se discutir cultura e identidade cultural, levando em consideração a intensa influência africana no Brasil. Essa nova lei, que ainda não vigora em muitos estados que precisam adequar seus sistemas de ensino para inserir a nova disciplina, é um exemplo de política pública para a cultura popular, que reconhece a importância africana na formação cultural do povo brasileiro, além de ser uma política de inclusão das minorias e de respeito aos descendentes africanos, que ainda hoje sofrem o 5 Disponível em Plano Nacional de Cultura: Diretrizes Gerais. BRASIL, 2009. p. 26 28 preconceito racial. Com a implantação dessa lei, o governo espera contribuir no apanhado histórico das influências dos povos negros nas áreas social, econômica, política e cultural do país. Caminhando nesta mesma direção, a Ação Griô Nacional, objeto de estudo desta pesquisa, nasceu da sociedade civil organizada para tornar-se uma política pública de educação e cultura focada nas culturas populares, sendo inclusa nas ações da Secretaria de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura. Um de seus focos de militância também é instituir uma lei de iniciativa popular que referencia a ancestralidade e a identidade cultural brasileira através do reconhecimento do valor social, econômico e educacional dos mestres e griôs de tradição oral. A Ação Griô Nacional utiliza um modelo de gestão compartilhada entre a coordenação nacional, os projetos participantes, e o Ministério da Cultura, através de uma rede articulada em quase todos os estados da federação, ampliando o programa a cada novo edital e, aos poucos, atingindo lugares longínquos do território brasileiro. Propondo uma reformulação nos currículos educacionais com uma pedagogia própria que inclui os saberes e fazeres de tradição oral, com a transmissão desses conhecimentos através de seus mestres e griôs, pretende-se criar um novo modelo de educação que contemple a diversidade cultural brasileira e permita aos estudantes enxergarem a si mesmos, através das culturas populares. Esse novo panorama de política pública concebida pelo povo, aceita pelo governo e ampliada para o povo, figura como exemplo de militância social em prol do processo de redemocratização da política brasileira. A griô de tradição oral Maria Moura, do Ponto de Cultura Cartola, no Rio de Janeiro, relata seu sentimento frente a essa mudança de paradigma político, em que as pessoas passam a ser apenas pessoas, e não somente cargos importantes. “Com o que eu aprendi só nessa cerimônia de abertura, eu já poderia voltar para casa. Eu nunca tive num encontro onde eu pude conversar olho no olho com um reitor de universidade e com políticos importantes, e ainda ser eleita para representá-los.” (PACHECO & CAIRES, 2009, p. 44) 29 2. - CULTURA POPULAR E IDENTIDADE BRASILEIRA A cultura não é algo a ser adquirido e sim a ser feito. Não é algo que possuímos, mas que cultivamos. Não é algo que se resolve no plano do ter, mas no plano do ser. Cultura é um artesanato extremamente complexo que se tece no cotidiano que indefinidamente se faz e se refaz. Constrói e se desconstrói para em seguida reconstruir. Um artesanato complicado que evolui para a arte de concluir-se a si mesmo; seja como sujeito coletivo, expressão de uma comunidade simultaneamente local e universal. Edgar Morin 2.1 - A Formação do Povo Brasileiro A formação cultural do povo brasileiro percorre o caminho histórico da constituição do Brasil a partir da fusão de três raças que aqui se encontraram: indígenas, portugueses e africanos. Darcy Ribeiro (1995, p. 19) elucida essa miscigenação étnica: “Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos”. A conseqüência desse encontro gerou o que ele denomina de um “novo povo”, no sentido de congregar uma mistura racial proveniente de matrizes diferentes, configurando, assim, algo distinto. “Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos”. Entretanto, essa confluência poderia ter gerado uma sociedade de opostos não convergentes e problemáticos, fato este que felizmente não se concretizou e, na realidade, seguiu caminho exatamente contrário. Em questão da miscigenação étnica, o Brasil demonstrou maturidade precoce e pacífica em assimilar diferentes culturas num mesmo território. Os brasileiros se sentem e se comportam como um único povo, uma única nação onde todos pertencem e vivem de forma relativamente harmônica, se compararmos a outras nações tão conflituosas ao redor do mundo. O Brasil formou-se do que Darcy Ribeiro delimita inteligentemente de “Gestação Étnica”, desdobrando em “Criatório de Gente”, “Moinhos de Gastar Gente” e “Bagos e Ventres”. Contudo, essa maturidade cultural invejada por tantas outras nações que não compreendem como aqui todos tratamo-nos como apenas brasileiros, caminha em sentido oposto à grande diferença de classes que caracteriza o Brasil como o país das desigualdades 30 sociais, devido à má distribuição de renda. Uma pequena camada da população detém grande parte da riqueza, enquanto a maioria não possui nada ou quase nada. Esse quadro é antigo e se acentuam cada vez mais com o passar dos anos. “O antagonismo classista que corresponde a toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças raciais” (RIBEIRO, 1995, p. 23). Desta análise, percebemos a imensa quantidade de excluídos que o Brasil abriga dentro de sua população de mais de 188 milhões de habitantes, segundo dados do IBGE de 20066. Neste contingente populacional, escondidos nas periferias das grandes cidades ou em lugares longínquos deste extenso país, encontram-se os excluídos culturais, focos de resistência cultural, especialmente no âmbito da cultura popular, que resguardam suas tradições da maneira como podem, independente de suas condições sociais. Esta pesquisa visa discursar sobre essas pessoas que fazem da cultura popular seus modos de vida, suas alegrias de viver e de pertencer a este país diverso, visualmente lindo, fisicamente enorme, culturalmente rico e estruturalmente desigual. 2.2 - A Cultura Popular e seus Saberes e Fazeres de Tradição Oral A cultura deveria ser compreendida como expressão simbólica, vetor de desenvolvimento, além de ser provida como um direito básico do cidadão, tão importante quanto o direito ao voto, a moradia, a alimentação, a saúde e a educação. “Os processos culturais e a cidadania são indissociáveis. Não há construção de uma nova cultura sem a promoção da cidadania. E não há cidadania efetiva que desconheça os valores culturais” (FARIA & SOUZA apud MEDEIROS, 2000, p. 66). Entretanto, se essas outras premissas citadas, que garantem a sobrevivência das pessoas, não conseguem ser basicamente supridas, a cultura figura como um item de menor relevância, diante de tantos outros mais urgentes. Como conseguir pensar em cultura se a fome é imediata a muitos brasileiros? Entretanto, a cultura tange outros aspectos que se encontram e se fundem. Toda produção cultural origina-se, desenvolve-se e difunde-se no campo social e econômico. Como cultura é produção especifica do homem, somente no seu desenvolvimento é que ela se justificara completamente. Assim, a expressão cultural local é sinônimo de auto-realização humana no seu mundo, uma dimensão social, em determinado território, de uma realidade política e econômica. (ARAÚJO, 2000. p. 09). 6 Diponível em www.ibge.gov.br. Acesso em 06/08/2009. 31 A cultura deve ser entendida não apenas como manifestações de arte diversas. “Cultura são valores, posturas, hábitos, lugares, conhecimentos, técnicas, identidades comuns e diversas, conceitos, saberes e fazeres múltiplos” (MACEDO apud FARIA, 2006, p. 91). “Inclui o modo como o povo vive, pensa, simboliza, cria e usa. Objetos, instrumentos, atividades humanas socializadas e padronizadas de produção de bens, da ordem social, de normas, palavras, idéias, símbolos, preceitos, crenças e sentimentos”. (BRANDÃO, 1985, p. 20, 37). A cultura é constitutiva da ação humana: seu fundamento simbólico esta sempre presente em qualquer prática social. (BRASIL, 2009, p. 217) Compreendendo toda essa abrangência, podemos pensar em cultura como um movimento político que objetiva obter melhorias e transformações sociais, através de uma mobilização e reorganização dos grupos populares em prol do fortalecimento de seu poder de classe. É utilizar a cultura, com o objetivo de conscientização do povo, elemento essencial e estimulante ao reconhecimento e afirmação da identidade cultural individual e coletiva. De forma organizada e articulada, o povo pode propor mudanças estruturais em suas políticas públicas, buscando alternativas de manutenção, transmissão, valorização e geração de renda. No atual processo de inclusão de milhares de brasileiros no usufruto de direitos elementares, a cultura é estratégica para a construção do protagonismo da sociedade civil. Ela é um importante meio de recuperação da auto-estima de grupos humanos com acesso restrito a direitos e oportunidades, uma condição preliminar para muitos que não partilham do conhecimento cultural e que não têm sua identidade valorizada socialmente. (MACEDO apud FARIA, 2006, p. 96). Neste contexto, a cultura popular figura como objeto de pesquisa deste trabalho, apresentando um recente despertar organizacional de parte deste segmento da sociedade, proposta pelo terceiro setor, com o objetivo de instituir uma política pública de reconhecimento do valor cultural, social, educativo e econômico, de mestres e griôs de tradição oral, detentores dos saberes e fazeres orais, buscando melhorias a estes excluídos culturais – A Ação Griô Nacional. Quando se fala na cultura popular, não enquanto manifestação dos explorados, mas enquanto cultura dominada, tende-se a mostrá-la como invadida, aniquilada pela cultura de massa e pela indústria cultural, envolvida pelos valores dos dominantes, pauperizada intelectualmente pelas restrições impostas pela elite, manipulada pela folclorização nacionalista, demagógica e exploradora, em suma, como impotente 7 Por que aprovar o Plano Nacional de Cultura: Conceitos, participação e expectativas. Ministério da Cultura, abril de 2009. 32 face à dominação e arrastada pela potencia destrutiva da alienação. (CHAUÍ, 1997, p. 63) A proposta da Ação Griô Nacional é justamente contrapor essa visão negativista em relação às culturas populares. É mostrar aos excluídos culturalmente que eles mantiveram suas tradições por amor e gosto ao longo dos anos, e que elas são extremamente fundamentais na formação do povo brasileiro, além de já estarem enraizadas na maioria das pessoas, mesmo sem elas perceberem. É unir forças e acreditar em mudanças, a partir de uma organização que visa angariar espaço para suas reivindicações sem muito alarde, porém numa perspectiva democrática de acesso e concepção das idéias. Apresentando uma proposta viável de união entre educação e cultura que funciona em pleno vigor nos quatro cantos no país, a Ação Griô Nacional vai ao encontro aos anseios de acadêmicos, pesquisadores, folcloristas e, é claro, dos mestres e griôs de tradição oral até então esquecidos nas ações governamentais em prol da cultura. Como já ressaltava ainda em 1963, Jarbas Marciel (apud BRANDÃO, 1985, p. 35), “Fazer Cultura Popular é, assim, democratizar a cultura. É antes de tudo um ato de amor... Podemos, então, definir educação como a instrumentalização do homem pela democratização da cultura”. A cultura popular nasceu naturalmente, da boca do povo nas estórias contadas desde o período de colonização do Brasil. Posteriormente, com a formalização da escrita e a chegada dos livros, pensou-se que esses saberes iriam ser substituídos pelos saberes literários, esquematizados poeticamente em páginas e páginas de livros. “O tema segue contado pelo povo e a página literária lida e citada pelos alfabetizados”. (CASCUDO, 1984, p. 17). Entretanto, muitos lugares do país não tiveram tanto acesso à literatura, os livros eram raros e o único divertimento e ilustração imaginária às crianças, adolescentes e até mesmo adultos, eram as estórias contadas de geração a geração. Luis da Câmara Cascudo, que viveu de 1898 a 1986, e produziu quase 150 livros acerca da cultura popular brasileira, divaga ao recordar sobre sua infância na introdução de sua obra Literatura Oral no Brasil: “Todos sabiam contar estórias. Contavam à noite, devagar, com gestos de evocação e lindos desenhos mímicos com as mãos. [...] Não tinha conhecimento anterior, para estabelecer confronto ou subalternizar um das atividades em serviço da outra”. (1984, p. 16). As tradições têm a forca da persistência pela oralidade e o poder de manter o tema e o escopo das estórias, ao passo que se adaptam facilmente diante da variedade ambiental, de mentalidade e de costumes onde são recontadas. Essa flexibilidade poética e adaptabilidade 33 unem-se ao jeito brasileiro de ser numa corrente de transmissão oral, que apresenta algumas variações de um lugar para outro. É visível percebermos que o coco de roda, típico no Nordeste do Brasil, porém inexistente nas outras regiões, encontra semelhanças rítmicas, musicais e até mesmo na dança, com outra manifestação característica do Sudeste, o jongo. Essas diferenças e semelhanças, que à primeira vista podem passar despercebidas ou até causar estranhamento a alguns estudiosos, fazem a cultura brasileira apresentar uma diversidade imensa, que só nos orgulha e enriquece ainda mais. Os mestres e griôs de saberes e fazeres de tradição oral são transmissores de vasto conhecimento, e têm a vantagem de não ambicionar ou possuir vaidade como os escritores da literatura tradicional. Na realidade, muitas vezes eles nem sabem com quem aprenderam tais conhecimentos, mas lembram de todo o enredo, gestos e componentes fundamentais para ilustrar as estórias, cantigas, danças, lendas e mitos. E tamanha riqueza deve-se justamente à miscigenação étnica que forma o povo brasileiro, além dos outros povos que contribuíram com estes primeiros que chegaram ao Brasil, tais como árabes, castelhanos e galegos. A literatura oral brasileira se comporá dos elementos trazidos pelas três raças para a memória e uso do povo atual. Indígenas, portugueses e africanos possuíam cantos, danças, estórias, lembranças guerreiras, mitos, cantigas de embalar, anedotas, poetas, e cantores profissionais, uma já longa e espalhada admiração ao redor dos homens que sabiam falar e entoar. (CASCUDO, 1984, p. 29) Alcançando a dimensão da importância da cultura oral na formação das pessoas, a Ação Griô Nacional propõe a inclusão desses conhecimentos no currículo escolar, em que aprendemos e nos formamos como seres pensantes. Desta forma, temos uma junção do conhecimento oficial e regular, transmitidos pelas escolas em sua estrutura curricular atual, e o conhecimento não-oficial, que contempla as tradições orais independentes de padrões estéticos e comportamentais, para serem incutidos nas pessoas. Eles são transmitidos socialmente, dentro de casa, nas ruas e por que não nas escolas. Falar em cultura é procurar identificar a expressão de um estilo, de um modo de viver e de fazer. Percorrer os caminhos da identidade é procurar saber quem somos e por que somos. É necessário descobrir como construímos nossas identidades. Isso se faz somando traços peculiares de um povo em contraste com outros. Dessa forma, a construção de uma identidade social, corroborando com DaMatta (1994) é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões, considerando o que é importante para um povo, sabendo quem é quem. E através dessas informações, obtém-se a identidade social, a cultura, a ideologia de cada sociedade.” (SILVA & FERNANDES apud ARAÚJO, 2000, p. 32) 34 Caminhando na mesma direção, o turismo de base comunitária encontra referenciais culturais importantes em sua concepção e implantação. Segundo Santos (1991, p. 38), “cultura é uma dimensão do processo social da vida em sociedade e diz respeito a todos os aspectos da vida social. Logo, sua relação com o turismo, atividade relacionada aos desejos e à satisfação das pessoas, permeia as concepções de cultura e identidade cultural”. Nesse sentido, fomentar ações em consenso com as políticas públicas que encontram a identidade cultural brasileira como vetor de atratividade e desenvolvimento local as comunidades receptoras, viabiliza projetos em médio e longo prazo, assim como proporciona alternativas sustentável e diferentes que podem contribuir para o aumento do fluxo de turistas nestas viagens, colaborando com a comunidade e com o crescimento da atividade no país. A cultura é uma ferramenta eficiente e poderosa para redução das desigualdades e para universalização de conquistas de qualidade de vida, permitindo o desenvolvimento das capacidades cognitivas, da inventividade e do discernimento crítico por parte da população. (MACEDO apud FARIA, 2006, p. 89). 35 3 - A AÇÃO GRIÔ NACIONAL: RESGATANDO A EDUCAÇÃO E A IDENTIDADE CULTURAL A cultura fornece a alma à civilização Herbert Marcuse 3.1 - História da Educação Brasileira A educação brasileira inicia-se logo após o descobrimento do país pelos navegadores portugueses. Encontrando nestas terras apenas indígenas, que não possuíam uma sistematização escrita de sua língua, tampouco um sistema educacional escolar, os colonizadores, além de explorarem nossas riquezas naturais, criaram e impuseram um sistema educacional aos moldes europeus. Coordenado pela Companhia de Jesus, mas conhecida apenas por seus jesuítas, assumiram a responsabilidade de catequizar os indígenas, o que também englobou a aprendizagem da leitura, escrita e cálculos, seguindo a língua e sistema educacional português. Esse fato não foi exclusividade do recém descoberto Brasil. Outros países, sob o domínio do Império Colonial Português, também tiveram sua educação coordenada por jesuítas, que diferia uma das outras pelas especificidades locais, porém focavam-se na formação das elites, para estas assumirem os postos chaves do Império. No entanto, a coordenação dessa educação jesuítica tinha como objetivo maior a evangelização. Para tanto, era preciso criar e estruturar o aprendizado, até chegar aos estudos da religião. Assim, a educação fora dividida em duas partes: O ensino secundário, que compreendia as Letras Humanas – Gramática latina, Humanidades e Retórica, Filosofia e Ciências – Estudos de Lógica, Metafísica, Moral, Matemática e Ciências Físicas e Naturais. Com a escrita, raciocínio e pensamento já estruturados, o ensino superior finalizava a formação da elite dentro do objetivo maior da missão, contemplando aulas de Teologia e de Ciências Sagradas. Este modelo colonial de educação, coordenado pelos jesuítas, perdurou por 210 anos e só se desestruturou em 1759, devido às reformas promovidas pelo Marques de Pombal, que tinha como missão, recuperar a economia por meio da concentração do poder real e de uma modernização da cultura portuguesa vigente. Suas reformas visavam transformar Portugal 36 numa metrópole capitalista, seguindo o modelo da Inglaterra, além de adaptar sua maior colônia, o Brasil, de acordo com esta nova ordem pretendida pela monarquia portuguesa. Em 1755, o Marques de Pombal proclamou a libertação dos indígenas em todo o Brasil, contrariando os proprietários de escravos índios e ao mesmo tempo os jesuítas, que dirigiam a vida das comunidades indígenas nas missões religiosas. Assim, logo após ter expulsado os jesuítas de Portugal, obrigou-os também a sair do Brasil, em 1760. Esta primeira reforma educacional no país discute a relação direta entre a expulsão dos jesuítas, que mantinham uma educação voltada aos interesses religiosos e defendiam uma política protecionista aos índios, e a necessidade de se fortalecer o regime absolutista português, que encontrou na modernização a implantação de um novo modelo educacional no Brasil, uma solução imediata. Este fato acabou por entrar para a história como o confronto entre as idéias iluministas de Pombal, com a tradição e a educação de base religiosa jesuítica, além de figurar como a primeira e desastrosa reforma do ensino no país. As novas propostas de Pombal começaram a ser implantadas em 1772, com a instituição das Aulas Régias em latim, grego e retórica. Com perfil de cadeiras isoladas e autônomas, sem currículo fixado, não se articulavam uma com as outras e tinham professores únicos, que tornaram-se nobres e concursados, recebendo teoricamente bons salários. Entretanto, seus salários proviam do “subsídio literário”, novo imposto colonial sobre produtos que custeavam os professores e a educação como um todo, porém não eram cobrados com regularidade, atrasando os pagamentos. Assim, no início do século XIX, a educação brasileira estava completamente desestruturada. A mudança da família real para o Brasil, em 1808, trouxe melhorias e uma tentativa de reestruturação educacional. Institui-se os primeiros cursos superiores nas áreas da saúde de Cirurgia, Anatomia, Medicina; e Academia Militar e da Marinha, além de cursos técnicos em economia, agricultura e indústria. Em 1824, a monarquia estabelece em constituição Imperial que a “instrução primária deve ser gratuita a todos os cidadãos”, criando em 1827 as Escolas de Primeiras Letras, para o ensino primário. No mesmo ano, instituem-se as duas primeiras faculdades de Direito do Brasil, em São Paulo e Olinda, com cursos de Ciências Jurídicas e Sociais. Já em 1834, o ato adicional à constituição de 1824, descentraliza as competências da educação, criando dois sistemas paralelos de ensino sob duas gerências governamentais. Às províncias, coube o direito de legislar sobre a instituição pública e promover o ensino 37 primário e secundário, que gerou os Liceus Provinciais. E ao poder central, atribuiu-se o primário e secundário nas capitais e todo ensino superior em geral 8. Nos anos subseqüentes, novas escolas e colégios foram criados em todas as regiões do país. Entretanto, é importante ressaltar que o modelo educacional brasileiro, desde sua implantação, baseia-se em moldes internacionais. Tanto as disciplinas quanto a metodologia e didática aplicada ao longo dos anos tiveram e ainda têm, como referência, a tradição erudita presente na educação do continente europeu. Como aponta Carvalho 9 (apud FARIA, 2006, p. 53) “temos vários processos formais de aprendizagem de cultura européia, em todas as artes, na literatura, no teatro, nas artes plásticas, na música etc, e em vários graus, tanto no ensino médio como no superior”. Mesmo com a independência e as mudanças ocorridas no Brasil ao longo dos anos, ainda seguimos a estudar o que foi implantado na época colonial. Houve algumas adequações de estudos pertinentes à realidade brasileira, assim como a recente inclusão da História e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial das redes de ensino do país. No entanto, a formação educacional dos estudantes ainda apresenta uma grande lacuna no que tange à identidade, diversidade e a formação cultural do povo brasileiro. A cultura é um ponto da criação minoritário na escola; não conseguimos criar a cultura européia como eles fazem, nunca conseguiremos ter igual produção, ou seja, seremos sempre subalternos na cultura erudita. O que temos de dominante aqui são as expressões das culturas populares, que atualmente estão fora da escola. Há uma sub-representação das transmissões culturais locais brasileiras em nosso currículo escolar, o que nos leva a formar jovens sem sensibilidade. Com nosso modelo de educação, geramos jovens que não conseguem ter diálogo com as culturas populares, ou seja, uma elite que desconhece e reproduz um eurocentrismo sem vinculo afetivo, já que desconhece por completo as culturas populares. (CARVALHO apud FARIA, 2006, p.17) 10 A miscigenação cultural tão visível nos rostos e cores das pessoas espalhadas por este imenso território deixa de ser obviedade, para situar-se em desprezo mantido há séculos, dentro do sistema educacional brasileiro. Os estudantes concluem seu ensino básico sem entender como a cultura brasileira fora formada. Estuda-se a história de conquistas, de 8 Almeida (2000) aponta a obra História da Instrução Pública no Brasil (1500-1889), escrita em 1889, onde na época do Brasil colônia, havia menção ao “grande número de negociantes ricos que não sabiam ler” (p. 37). Já no Império, admitia-se o voto dos analfabetos que possuíssem bens e títulos. O autor ainda aponta o fato, corrente ainda hoje, dos baixos salários dos professores, o que já naquela época causava uma evasão de pessoas inteligentes e bem qualificadas, denunciando a desconsideração governamental quanto a estes profissionais essenciais na formação do povo brasileiro. 9 Jose Jorge Carvalho é professor de Antropologia da Universidade de Brasília e pesquisador do CNPQ. 10 Palestra proferida durante a Oficina de Consulta para Políticas de Fomento, Difusão e Representação das Culturas Populares, promovida pela Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, ocorrida em 2006, que posteriormente, teve livro publicado. 38 escravidão, de lutas e glórias. Porém não se estuda como, quando e por que as cirandas e coco de rodas surgiram e são tão presentes no Nordeste, enquanto que, no Sudeste, o jongo e as congadas fazem à alegria do povo. Ou ainda as manifestações culturais ao redor do país, como o Norte do bumba meu boi e do reisado; o Centro Oeste das cavalhadas e marimbondos; e o Sul do vaneirão e do fandango. A Diversidade Cultural é diversa, ou seja, não se constitui como um mosaico harmônico, mas um conjunto de opostos, divergentes e contraditórios. A Diversidade Cultural é cultural e não natural, ou seja, resulta das trocas entre sujeitos, grupos sociais e instituições a partir de suas diferenças, mas também de suas desigualdades, tensões e conflitos.” (BARROS, 2008, p. 18) 3.2 - Os Problemas da Escolarização no Brasil A educação pública formal no Brasil, há décadas, encontra-se desestruturada, desprezada e viciada em erros e problemas que já se tornaram prosaicos aos olhos de quem trabalha ou estuda a educação. Professores desvalorizados, mal remunerados, sem motivação e estímulo para exercerem suas funções, passam a ser distantes e despreocupados com o ensino. Escolas com problemas estruturais, sem recurso suficiente para manutenção e ampliação de vagas, com número reduzido de profissionais e sem material didático, acabam por motivar ainda mais o desinteresse dos alunos. Alguns dados estatísticos sobre a educação no Brasil revelam a situação inferior do país, frente a outras nações mundiais que, economicamente, encontram-se em grau de paridade ou enfraquecidas. Os índices de analfabetismo e desenvolvimento humano apontam um grave problema que se arrasta por séculos. Enquanto em 2000, a Argentina ocupava a 34º lugar no ranking de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), o Brasil ocupava a 73º posição, em situação bem inferior à de outros países da América Latina, conforme mostra a Tabela 1. 39 Tabela 1 - Índice de Desenvolvimento Humano e Taxa de Analfabetismo da população de 15 anos ou mais – 2000 Pais IDH Posição Noruega Austrália Áustria Espanha Portugal Argentina Chile Costa Rica Trinidad e Tobago México Colômbia Brasil Peru Equador Cabo Verde 0,942 0,939 0,926 0,913 0,880 0,844 0,831 0,820 0,805 1º 5º 15º 21º 28º 34º 38º 43º 50º Taxa de Analfabetismo (%) 0,0 0,0 0,0 0,0 7.8 3,2 4,2 4,4 1,7 0,796 0,772 0,757 0,747 0,732 0,715 54º 68º 73º 82º 93º 100º 8,8 8,4 13,6 10,1 8,4 26,2 Fonte: Pnud e Unesco. Em números, o Brasil tem atualmente cerca de 16,295 milhões de analfabetos, que são classificados, segundo dados do IBGE, como aqueles incapazes de ler e escrever um bilhete simples no idioma que conhece. Metade deste número, segundo o Ministério da Educação, esta concentrada em menos de 10% dos municípios do país. Se levarmos em consideração o conceito de analfabeto funcional, que inclui pessoas com menos de quatro séries de estudos concluídos, este número passa para 33 milhões de analfabetos. Esses dados colocam o país no penúltimo lugar entre os países da América do Sul, ficando apenas à frente da Bolívia. Voltando-se para nossa realidade, a região Nordeste concentra graves problemas sociais, sendo o foco principal das políticas de incentivo de bolsas do governo atual. Entretanto, o maior índice de analfabetismo também se encontra aqui, como mostra a tabela 2. 40 Tabela 2 - Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais – 1996/2001 Unidade Geográfica 1996 1998 2001 Brasil 14,7 13,8 12,4 Norte 12,4 12,6 11,2 Nordeste 28,7 27,5 24,3 Sudeste 8,7 8,1 7,5 Sul 8,9 8,1 7,1 Centro-Oeste 11,6 11,1 10,2 Fonte: IBGE, Pnads de 1996, 1998 e 2001. Segundo o Mapa do Analfabetismo no Brasil, fruto de pesquisas realizadas pelo Ministério da Educação e o Instituo Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, cinco municípios do Piauí e dois da Paraíba estão entre os dez piores do país, em número médio de séries concluídas entre os habitantes, todos abaixo de duas. Este quadro banalizou-se tanto que deixou de ser novidade à população e aos noticiários televisivos. A situação é alarmante e coloca o Brasil em posição bem inferior a nações menos desenvolvidas economicamente. Enquanto isso, o governo foca-se em outras alternativas, para otimizar os recursos e acelerar o ensino, como forma de justificar os impostos que deveriam ser aplicados na educação. Entretanto, qualquer programa voltado à erradicação do analfabetismo no Brasil deve priorizar a qualificação dos alfabetizadores, pois são eles os executores das ações e, há tempos, caminham sem a devida importância dentro dos programas educacionais apresentados pelo governo. Esse descuido ajuda a entender o fracasso de boa parte dos programas de alfabetização já tentados ao longo da historia do país. Alfabetizar jovens e adultos, que já possuem falhas experiências educacionais, é muito mais complicado e requer recursos humanos qualificados e preparados. Interessante constatar que o Brasil detém positivas experiências de acadêmicos revolucionários, que criaram e ainda criam métodos pedagógicos alternativos copiados por outros países. Destaca-se o método dialógico, ação-reflexão-ação, criado por Paulo Freire que, nas décadas de 1960 e 1970, auxiliou a erradicação do analfabetismo no mundo. Entretanto, este encontrava-se exilado pela ditadura militar do Brasil e proibido de ajudar a combater o problema em seu próprio país. Era considerado um educador que trabalhava com elementos de subversão a ordem estabelecida. Afinal, propunha uma educação libertadora, baseada no diálogo como forma a adequar, enxergar e modificar a realidade educacional do país. De fato, 41 uma educação verdadeira e completa é sempre libertadora, pois abre os horizontes e, portanto, era vista como uma ameaça aos ditadores que temiam a revolta popular pela liberdade e democracia. O importante do ponto de vista de uma educação libertadora, e não “bancária”, é que, em qualquer dos casos, os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros. (FREIRE, 1967. p. 120) A educação é a base de uma construção da cidadania, de uma nação civilizada, justa, igualitária e desenvolvida. Logo, o Brasil continua a cometer erros, ao permanecer com uma educação deficitária, e programas que tentam minimizar índices estatísticos, porém insuficientes em diminuir e até mesmo erradicar o analfabetismo. O cerne do problema, que é a formação e investimento nos alfabetizadores, ainda não fora atingido pelas tentativas governamentais. Além do mais, conforme vimos anteriormente, nosso sistema educacional não contempla as inúmeras riquezas culturais de um país com dimensões continentais e população proveniente de tão distintas raças e costumes. A única forma de sabermos a origem e o porquê de nossos costumes e nossa cultura é através das histórias contadas de geração a geração, que tentam manter viva as tradições e a diversidade cultural do povo brasileiro. E é nessa linha que a Ação Griô Nacional coloca-se como metodologia pedagógica estratégica, para transmissão de conhecimentos de tradição oral em diálogo com o sistema educacional. Neste contexto, a proposta de alteração da grade educacional brasileira, incluindo os aspectos culturais vêm a complementar os ensinamentos de Paulo Freire (1996), principalmente quando ele enfatiza o homem como fruto de seu pensar, compreendendo sua formação e as características que o diferenciam dos outros. A proposta inovadora, porém viável, poderá contribuir com o problema do analfabetismo no Brasil, já que os estudantes se identificarão com sua cultura no ambiente escolar. Ensino de baixa qualidade, aliado a resultados que posicionam o Brasil entre os países mais pobres do mundo, mostram como nossa educação é incompleta e deficitária. A responsabilidade, antes do governo, em estruturar e fornecer educação pública de qualidade a todos os cidadãos, que pagam impostos para isto e tantas outras coisas, desde o princípio, vem sendo substituída pelas escolas particulares, destinadas apenas àqueles que têm condições financeiras. Em alguns casos, as entidades sem fins lucrativos que realizam trabalhos sociais voltados à educação, acabam por ocupar essa lacuna, entretanto alcançando apenas uma pequena parte da população. 42 Indo ao encontro deste papel da sociedade civil, a organização sem fins lucrativos Grãos de Luz e Griô, localizada na Chapada Diamantina, criou uma metodologia pedagógica com positivos resultados em Lençóis, que posteriormente fora incorporada ao Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura. O principio fundamental que rege a filosofia pedagógica da ação griô são os ensinamentos de Rolando Toro11 e seu Princípio Biocêntrico, que trataremos a seguir. 3.3 - A Educação Biocêntrica Com o avanço tecnológico, estamos pouco a pouco menosprezando aspectos fundamentais, para sentirmos as coisas boas da vida, e termos uma qualidade de vida considerável. Respirar bem, caminhar sem pressa, comunicar nossas emoções e sentimentos, sem vergonha ou receio da repressão do outro, compartilhar pensamentos, alegrias e tristezas, amar verdadeiramente e com intensidade. Com esta constatação, o educador chileno Rolando Toro desenvolveu um sistema educacional que reintegra as pessoas e propõe um maior aproveitamento da vida plena, com intensidade e amor. O Sistema Biodança, aplicação do conceito de Princípio Biocêntrico, que tem a afetividade como elemento norteador da vida plena e de superação das dificuldades diversas. Todo mundo diz que gostaria de ser amado, que gostaria de viver em paz e segurança. Porém vivemos numa cultura que nos faz esquecer como ter relações de ternura e ser profundamente afetivos, não só com uma pessoa determinada, como com todas as pessoas que nos rodeiam. (TORO, 2008) Rolando Toro dedicou grande parte de sua vida aos estudos da educação. Já na década de 1950, aplicou experimentos diferenciados em seus alunos, buscando um novo método educacional que contemplasse, sobretudo, as vivências humanas, o qual chamou de Escola Universo. Na década seguinte, acrescentou a este modelo o pensamento holístico, baseado na totalidade do universo e seus conjuntos integrados, propondo uma Educação Holística. O termo Educação Holística foi proposto pelo americano R. Miller (1997) para designar o trabalho de um conjunto heterogêneo de liberais, de humanistas e de românticos que têm em comum a convicção de que a personalidade global de cada criança deve ser considerada na educação. São consideradas todas as facetas da experiência humana, não só o intelecto racional e as responsabilidades de vocação e cidadania, mas também os aspectos físicos, emocionais, sociais, estéticos, criativos, 11 Chileno, psicólogo, antropólogo e presidente da International Biocentric Foundation – IBF, Rolando Toro trabalhou em universidades e hospitais psiquiátricos de onde teria nascido o sistema biodança. 43 intuitivos e espirituais inatos da natureza do ser humano. (YUS apud CAVALCANTE, 2007, p.70). Esta educação baseia-se num aprendizado experimental que considera todos os fatores, valores e relacionamentos externos do estudante, em seu processo de aprendizagem. A base da educação personalizada é que a educação holística reconhece a natureza multidimensional da experiência humana e respeita as necessidades emocionais/psicológicas, físicas e espirituais, assim como as necessidades cognitivas do aluno. Cada estudante é incentivado para a auto-estima, a responsabilidade pessoal e coletiva de todos os aspectos de nossas vidas. (TAVARES, 1998, p. 69) Em 1980, Toro denominou sua experiência de reaprendizagem das funções originais da vida de Educação Selvagem, que se focava em cinco canais: segurança, harmonia, contato, expressão, movimento. Segundo ele, por meio da ativação desses canais, construía-se o conhecimento biológico e social, uma vida mais ecológica e instintiva, com conseqüências psicológicas, sociais e pedagógicas. Tal aprendizado consiste na sensibilização dos instintos básicos, que se constituem uma expressão da programação biológica. O instinto é uma conduta inata, hereditária, que não requer aprendizado e que se manifesta diante de estímulos específicos. Sua finalidade biológica é a adaptação ao ambiente, indispensável à sobrevivência da espécie, comum a todos os seres vivos. Existe uma tendência cultural de associar o instinto à irracionalidade, não obstante, a função instintiva revela um tipo de sabedoria biológica da espécie que tem sua própria lógica.” (TORO, 2002 apud CAVALCANTE, 2007, p. 35) Ele explica: À parte, os eufemismos, creio que deveríamos retomar o significado do instinto e restabelecer seu valor psicoterapêutico, antropológico e educativo. Existe um tipo de medo generalizado quanto a esse propósito e uma postura hostil diante de qualquer manifestação do primitivo. Minha proposta tem a finalidade de resgatar nossa “selva interior”: considero que seja necessário ver as manifestações instintivas de uma perspectiva de exaltação da vida e da graça natural dela derivada. (TORO, 2002, apud CAVALCANTE, 2007, p. 36) Posteriormente, em diálogo com Ruth Cavalcante12, educadora cearense e grande seguidora do Sistema Biodança no Brasil, ela sugere a Rolando Toro a mudança de nome deste método para Educação Biocêntrica, pois o principio maior que fundamenta sua teoria é o Principio Biocêntrico. (CAVALCANTE, 2007, p. 55) A Educação Biocêntrica propõe a construção do conhecimento crítico, a partir de temas e palavras geradoras de reflexão, como forma a desenvolver um ser humano pensante e 12 Especialista em Educação Biocêntrica e Psicologia Transpessoal, Centro de Desenvolvimento Humano, CDH, Fortaleza/CE. Coordenadora do Curso de Especialização em Educação Biocêntrica na UVA – Universidade Vale do Acaraú. 44 consciente de suas ações e emoções. Essa construção dar-se-á através do diálogo com o outro, que transforma a realidade individual e social, a partir da afetividade e da criatividade. Ou seja, a partir do momento que eu conheço o outro e crio vínculo, podemos mudar nossa realidade individual e social criativamente, impulsionada pelo afeto, pelo amor um pelo outro. Assim, propõe-se o desenvolvimento da inteligência afetiva, da reeducação através do vínculo, da aprendizagem reflexiva e vivencial e do cultivo das energias organizadoras e conservadoras da vida. É privilegiar o instinto interior natural e articular a inteligência com o organismo, corpo, desejo e o prazer em relação amorosa com o outro, integrado à totalidade, um exercício de conhecer-se, conhecer o outro e o universo como um todo, onde o saber entra pelos sentidos e não apenas pelo intelecto. Toro simplesmente propõe que nos livremos de nossas amarras conceituais e comportamentais e passemos a dar credibilidade aos nossos sentidos, ao passo que nos permitimos expressar nossas emoções, alegrias e prazeres, tendo o amor comunitário como base da justiça social e da consciência individual e coletiva. Sua proposta de Cultura Evolucionária, contrapondo com as tendências da Cultura Ocidental, normalmente cheia de repressões, indica-nos um caminho de mudança em nosso estilo de vida, por meio de uma nova concepção do que é o ser humano em relação ao seu semelhante. Pretende-se estimularnos como corpo amoroso em nossa reflexão interna. Permitir-nos sentirmos vivos, parte da criação e do mundo, podendo viver nossas raízes animal e selvagem sem restrições. O princípio biocêntrico baseia-se em métodos da natureza para recriar a vida, tendo na biodança - dança da vida, obra maior de Toro, um sistema de integração afetiva e desenvolvimento humano. A partir de vivências coletivas, criadas por movimentos de dança, propiciam-se encontros não-verbais, centrados no olhar e no toque físico entre os membros do grupo. Em suma, uma reaprendizagem das funções originais da vida que se encontram bem guardadas em nosso interior, devido ao apelo do mundo contemporâneo contra demonstrações gratuitas de afeto e carinho, tratadas como atitudes desrespeitosas. Reaprende-ser a viver intensamente, a ser feliz cotidianamente e a vincular-se afetivamente com o outro sem malícias. Segundo Vygotsky (apud CAVALCANTE, 2007, p. 77), “todo conhecimento é construído socialmente. Na ausência do outro, o homem não se constrói homem”. A biodança pretende reativar e despertar estas funções inatas ao ser humano, que se encontram reprimidas, adormecidas em nossa sociedade pós-moderna. Através de uma metodologia simples, pautada em cinco linhas de vivências que, focadas na afetividade, procura-se, primeiramente, facilitar a conexão de cada um consigo mesmo, seus desejos e 45 necessidades, para depois voltar-se aos seus semelhantes mais próximos e, por último, ao universo como um todo. As linhas de vivência do sistema biodança são: Vitalidade: energia individual para enfrentar o mundo, potencial de harmonia e equilíbrio. Movimento; Criatividade: elemento de renovação que deve aplicar-se à própria vida. Criar a si mesmo e dar sentido a cada ato. Expressão; Sexualidade: dissolução gradativa das amarras que bloqueiam nossa sensibilidade. Integração; Afetividade: amor indiscriminado pelo ser humano. O dar e o receber. Nutrição; Transcendência: capacidade de ir além do ego e integrar unidades cada vez maiores. Conexão com a totalidade. Harmonia com o meio ambiente. Essas linhas pretendem estimular o lado positivo das pessoas, desenvolver a criatividade; melhorar a capacidade de comunicação; aumentar a resistência ao stress e à ansiedade; promover a integração e o desenvolvimento de cada indivíduo; e auxiliar no autoconhecimento, fortalecendo a identidade e a auto-estima. Com essa fundamentação teórica, o educador biocêntrico entende que educar é um ato permanente, um vínculo de diálogo e dedicação contínua. É participar por inteiro da vida do outro em vários momentos, e não somente naqueles específicos de transmissão de conhecimentos técnicos e científicos. Dialogar, conviver, estabelecer vínculos afetivos entre as pessoas; criar uma roda de convivência que dança e valoriza a diversidade, negando a padronização cultural e ideológica que menospreza as singularidades culturais, provocando o preconceito e a exclusão social. Nessa corrente, a Pedagogia Griô baseia-se em conceitos científicos, nas vivências de biodança e nos saberes e fazeres de tradição oral, transmitidos pelos mestres da cultura popular, preenchendo a lacuna presente na grade curricular da cidade de Lençóis, com estes conhecimentos populares tão característicos na cultura brasileira. 46 3.4 - A Pedagogia Griô Como dito anteriormente, a Pedagogia Griô tem, como conceitos e referências, a educação biocêntrica de Rolando Toro e Ruth Cavalcante, a educação para as relações étnicoraciais-positivas de Vanda Machado13, a psicologia comunitária de Cezar Vagner Góis14 e a educação dialógica de Paulo Freire15. Posteriormente, fora incorporado à metodologia relacionada ao corpo de Fátima Freire 16, que relaciona o processo educacional como um período de marcas deixadas na personalidade do educando, que o diferenciará no futuro. E a pedagogia do Teatro de Rua do Instituto Tá na Rua17 e de seu Mestre Amir Haddad18, que utiliza o teatro como instrumento de desenvolvimento do ser humano e conscientização de sua realidade política, social e cultural. O trabalho pedagógico voltado para as culturas tradicionais, proposto pela Associação Grãos de Luz e Griô e aplicado em Lençóis, iniciou-se a partir da percepção de que, nas culturas de tradição oral, a música e o movimento corporal fazem parte de um universo vivo e muito presente no cotidiano. São valores determinantes e intrínsecos ao modo de vida das pessoas. Como na biodança, a pedagogia griô é baseada em vivências afetivas entre as pessoas. No entanto, aqui, estas vivências são chamadas de “rituais de vínculo e aprendizagem”, os quais incluem os saberes e fazeres de tradição oral, tais como cantigas, danças, símbolos, versos, mitos, heróis, arquétipos, provérbios, artes, ofícios, e ciências da vida de tradição oral da comunidade e de seu grupo étnico-cultural, em uma rede de palavras e temas geradores. 13 Historiadora e Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Especializada em religiões afrobrasileiras, candomblé e mitos africanos. Criadora do Projeto Irê Ayó da Escola Eugenia Anna dos Santos na Comunidade de Terreiro Afonjá que tem como referencial para o processo de aprendizagem de crianças e jovens a cultura afro-brasileira. Principais publicações: Ilê Axé: Vivências e invenção pedagógica, Crianças do Afonjá Salvador: Edufba/SMEC, 2000. O menino no caminho do Rei, Salvador: TEA/UFBA/SMEC/PMS, 2001. Ilê Ifé – O Sonho do Iaô Afonjá. Vanda Machado da Silva e Carlos Petrovich. 14 Professor de Psicologia da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Psicologia Social Comunitária pela Universidade de Barcelona. Dentre suas principais publicações podemos citar: Psicologia Comunitária: Atividade e Consciência. Ed: Instituto Paulo Freire de Estudos Psicossociais. Fortaleza, Ceará, 2005 e Psicologia Comunitária no Ceará: Uma Caminhada. Ed: Instituto Paulo Freire de Estudos Psicossociais. Fortaleza – Ceará 2003. 15 Educador popular brasileiro nascido em 1921 em Recife. Dedicou-se inicialmente à educação popular de adultos em área periféricas urbanas e rurais do Estado de Pernambuco, criando o “método Paulo Freire” de Educação. Este propõe uma discussão em roda das experiências de vida de cada um, onde os alfabetizandos definiam os temas ou palavras geradoras relacionadas a suas realidades, posteriormente, sendo decodificadas para a escrita e a compreensão do mundo. Para o pedagogo a educação estava muito além da sala de aula e da educação formal. (www.projetomemoria.art.br.) 16 Pedagoga pela Pontifica Universidade Católica de São Paulo; Filosofa pela Universidade de Coimbra. Graduada em Línguas Romanas pela Universidade de Varsóvia; E, psicopedagoga pelo Instituto Jean-Jacques Rousseau de Genebra. Lecionou Psicologia e Filosofia no Liceu Nacional Kwane Nkrumah, em Guine Bissau. Foi coordenadora do Programa Crer para Ver, da Fundação Abrinq. É membro do conselho do Instituto Paulo Freire, alem de ser filha desse grande educador popular. Autora do livro Quem Educa Marca o Corpo do Outro, referencia a pedagogia griô. 17 Grupo de teatro de rua do Rio de Janeiro. Ponto de Cultura do Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura; e projeto pertencente a Ação Griô Nacional, do mesmo programa do governo federal. 18 Diretor e ator. Dirige grupos alternativos desde a década de 1970, fundamentando uma linha de trabalho pautada na disposição não convencional da cena; desconstrução da dramaturgia; utilização aberta dos espaços cênicos; e interação entre atores e espectadores. 47 Esse ritual pode ser realizado em vários espaços de aprendizagem que não somente nas escolas formais. Espaços públicos diversos, ruas e oficinas de temas variados podem incluir um ritual de vínculo e aprendizagem da pedagogia griô, como ponto inicial de abertura das atividades, assim como este se aplica a públicos diferentes. Crianças, jovens, adultos e idosos cantam e dançam numa mesma roda a diversidade cultural brasileira junto ao prazer da integração afetiva com o outro. No sistema biodança, a vivência está orientada para a potencialidade natural e expressiva do ser, não priorizando o condicionamento, a interpretação e a razão, mas sim a geração de vínculos. De acordo com Toro, a vivência é o instante vivido com grande intensidade por um indivíduo e que envolve processos subjetivos e as funções viscerais e emocionais. Na Pedagogia Griô há uma nova elaboração da “vivência” do sistema biodança inicialmente proposto por Rolando Toro, como explica Lillian Pacheco: Queríamos criar uma linguagem que se voltasse diretamente para as culturas tradicionais, de onde, na verdade, a biodança bebeu. Fui criando um acúmulo de vivências a partir dos princípios da biodança. Por exemplo, o princípio de autorregulação do grupo, de trabalhar os três níveis de vínculo – comigo, com o outro e com o grupo; o princípio da progressividade, de cuidar para que as pessoas entrem devagar no processo, vinculando-se consigo e com o outro e entregando-se a sua própria vivência, seu próprio sentido; o princípio do respeito ao processo e ritmo do outro, a história como ele conta, a sua verdade. Essas são algumas coisas que a gente vai reelaborando, no jeito de fazer a vivência. Substituindo, por exemplo, os exercícios de dança e as músicas da biodança pelas danças e cantos tradicionais e também do grupo, integrando as histórias de vida e a palavra na vivência. A vivência é a força do ritual, o ritual da comunidade, das culturas de tradição oral. (LOPES, 2009, p. 45) A pedagogia griô, além de basear-se nas vivências afetivas, culturais e nos rituais de vínculo e aprendizagem, que facilitam o diálogo entre todas as pessoas, independente de idade, origem ou religião, também propõe a interação de saberes ancestrais de tradição oral com as ciências formais, fortalecendo a identidade cultural brasileira e a celebração da vida, como um momento único de se vincular com o outro (PACHECO, 2006). Segundo Góis (1998), “a nossa crise não é de conhecimento, mas de percepção”. Perceber-se, perceber o outro e ser percebido numa realidade atual de globalização, aceleração e tecnologia. Neste contexto, a pedagogia griô propõe uma abertura ao convívio com o outro, buscando aguçar percepções afetivas e dar maior sentido à vida, através das tradições orais que nos permeiam e nos identificam como seres humanos. A inclusão da tradição oral na educação formal encontra força em Paulo Freire (1996), que já alertava quanto ao uso exclusivo de livros e cartilhas didáticas, como instrumentos de 48 transmissão do conhecimento no sistema educacional brasileiro. Segundo ele, estes mecanismos poderiam diminuir o diálogo e a interação dos educadores com seus educandos e comunidades, na busca por tema geradores de percepções e opiniões. Defendia a idéia de convívio e da construção do conhecimento não apenas científico-didático, mas sim pessoal e dialógico. Na pedagogia griô, a prática do diálogo coletivo é constante e fundamenta-se numa educação construída com os pilares da tradição oral, que valoriza o poder da fala e da escuta como princípio básico de aprendizagem. Na educação biocêntrica (CAVALCANTE, 2007), o conhecimento crítico é construído através da conscientização, quanto aos significados das falas, escutas e gestos, por meio de palavras geradoras. A expressão do mundo se dá através do diálogo com o outro, transformando a realidade tanto individual quanto social. Na pedagogia griô, essa construção ocorre através da grande Roda da Vida e das Idades, onde circulam diálogos multissetoriais e intergeracionais, permeados por cantigas, danças, mitos e histórias de vida da comunidade e da tradição oral. [...] E sonhei, porque acredito em sonhos, com mestres, griôs e aprendizes caminhando portão adentro nas escolas, rompendo com amor as grades curriculares, transformando salas quadradas em círculos de cultura, dançando cirandas, contando histórias e vivificando o saber decantado.” Chico Simões, griô aprendiz e mamulengueiro. (PACHECO & CAIRES, 2009, p. 40) 3.5 - A participação da sociedade civil no processo de redemocratização da Educação: A Associação Grãos de Luz e Griô A Associação Grãos de Luz e Griô é uma organização social sem fins lucrativos, que se organiza em grupos de trabalho, distribuídos entre os educadores das oficinas Grãos de Luz, grupos juvenis cooperativos, equipe de comunicação e artes gráficas, equipe de produção cultural, um jovem da área contábil e a equipe de copa e limpeza, também responsável pelo lanche das crianças. A história de vida do casal Márcio Caires e Líllian Pacheco, coordenadores da Associação, permeia suas formações individuais, objetivos e ideais de vida, até a chegada na cidade de Lençóis, Bahia. Líllian tem 42 anos, é coordenadora pedagógica e de projetos da associação Grãos de Luz e Griô e da Ação Griô Nacional. Filha de uma professora primária, desenvolveu sua paixão pela educação, ao acompanhar a mãe em seu trabalho. Orientada por Padre Hugo, professor de matemática da escola onde estudava, que lhe mostrou o universo dos trabalhos 49 sociais em Salvador e propôs que ela buscasse seu próprio modelo de educação. Formou-se em Análise de Sistemas, e ingressou no Tribunal de Justiça da Bahia, objetivando a sustentabilidade econômica. Em paralelo, fez diversos cursos na pedagogia de Paulo Freire, biodança, psicologia e terapias, sempre em busca de criar seu modelo de educação. Atuou na escola de biodança da Bahia, que lhe apresentou o universo da educação biocêntrica e proporcionou-lhe diversas viagens ao exterior. No entanto, segundo ela, sempre quis voltar para o interior da Bahia e trabalhar com “seu povo”, o que fez ao casar-se com Márcio Caíres, aos 29 anos. Márcio nasceu ali mesmo na Chapada Diamantina, há 40 anos, no município de Rio de Contas. Coordena a associação Grãos de Luz e Griô ao lado de Líllian, ministra oficinas de música e tradição oral, e incorpora o Velho Griô em caminhadas pela zona rural de Lençóis. Neto de sanfoneiro e bisneto de rendeira, cresceu e aprendeu muito junto as diversas manifestações culturais, presentes na Chapada Diamantina, de onde busca inspiração para suas caminhadas como Velho Griô. Formado em Ciências Sociais, foi professor de matemática, sociologia da educação e filosofia da educação, em turmas do magistério da escola estadual local. Em 1999, desenvolveu, junto à escola, o projeto Escola Real, Escola Ideal, que tinha por objetivo estabelecer o diálogo entre a escola e a comunidade. Segundo ele, os alunos não conheciam a realidade social da zona rural e precisavam de experiências práticas em sua formação. Faziam caminhadas com violão em punho, buscando conhecer as comunidades através de suas historias. A Associação Grãos de Luz e Griô localiza-se no centro histórico da cidade de Lençóis, Chapada Diamantina, Bahia. Não possui organograma ou hierarquia e é composta, juridicamente, pela jovem presidente e griô aprendiz Eniele Santos; e pela tesoureira Aline Viana, educadora de artesanato e retalhos. Foca seus esforços na realização de oficinas que norteiam a construção da identidade e ancestralidade brasileira, voltando-se principalmente às raízes indígenas e africanas. Baseadas na valorização, disseminação e inclusão dos saberes e fazeres de tradição oral, com a participação dos mestres e griôs locais, suas práticas vivenciais cultuam as tradições e a memória viva, como elemento essencial na concepção do ser humano. O modelo aplicado, vivenciado e sistematizado pela Associação Grãos de Luz e Griô, em suas atividades regulares, propõe quatro estratégias de ação, integradas em forma de rodas concêntricas. Cada estratégia é direcionada a determinados setores sociais e idades, facilitando a criação e interação entre as rodas, que são divididas da seguinte maneira: 50 Rodas de Cooperativas e Oficinas, com crianças, adolescentes, jovens e suas famílias. Privilegia-se a participação de afro-descendentes e de meninas, tendo como critérios de preenchimento das vagas, a vulnerabilidade social e a condição familiar do educando. No caso das oficinas, a participação parte do desejo dos próprios alunos em se inscreverem, os quais devem não somente ter a iniciativa, como também explicar o porquê do desejo de participar, não sendo aceitas inscrições realizadas pelos pais. Os educadores visitam suas casas, visando conhecer a história de vida de cada um deles, para construir o projeto pedagógico das aulas, a partir dessas histórias, assim como para embasar o conhecimento da realidade individual e do grupo a ser trabalhado. Os educadores realizam reuniões quinzenais para discussão dos conceitos que norteiam a pedagogia griô, acompanhada pela coordenadora pedagógica Líllian Pacheco. Elaboradas trimestralmente, as oficinas oferecidas trabalham com diversas linguagens, tais como o teatro, educação ambiental, artesanato, retalhos, biodança e brincadeiras, artes gráficas, fotografia, audiovisual e comunicação. Entretanto, sempre incluindo os saberes e fazeres de tradição oral no processo de ensino-aprendizagem dos educandos. De acordo com Carolina Melo, educadora de biodança e brincadeiras, e coordenadora dos educadores, as oficinas buscam abranger aspectos relevantes para a comunidade, abordando temas de gênero, étnico-culturais e raciais. O resultado é apresentado em produtos culturais à comunidade, sob a forma de livros, exposições, aulas-espetáculo, vídeos, entre outros. Um dos objetivos da Pedagogia Griô, aplicada na associação, é o de fazer com que as crianças e os adolescentes olhem para sua própria história de vida, relacionando-a com os mitos, arquétipos e a ciência, e integrando-a com a cultura local e comunitária. O projeto atende 140 crianças e adolescentes entre sete e quinze anos de idade. Eles têm aulas duas vezes na semana em um único turno, manhã ou tarde. Experimentam diversas linguagens ao longo das oficinas, porém o foco maior é a historia de vida de cada um, e a integração e transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral. Já no caso das cooperativas, iniciaram-se em 2004, quando a Associação fora contemplada pelo edital de Pontos de Cultura19 do Programa Cultura Viva. Uma das ações do programa foi o agente cultura viva, que visava a geração de renda, e a inclusão e promoção do 19 Ponto de Cultura é uma ação prioritária do Ministério da Cultura em seu Programa Cultura Viva. Propõe a transversalidade e a gestão compartilhada entre poder publico e sociedade civil organizada, financiando instituições não governamentais que já atuam na área cultural junto a comunidades, para realizarem ações e capacitações diversas. Atualmente já são cerca de 1000 pontos de cultura espalhados pelo país, de acordo com Célio Turino, secretario de cultura e cidadania em palestra proferida no III Encontro de Planejamento da Ação Griô Nacional, ocorrido em abril de 2009 em Lençóis. 51 acesso de jovens às manifestações e grupos culturais locais. Logo, os grupos cooperativos foram formados por estes agentes. Atualmente, são 19 jovens com faixa etária de 15 a 24 anos, que participam das atividades de artesanato em retalhos, papel reciclado, turismo de base comunitária, música e tradição oral, comunicação e artes gráficas, e contabilidade. Todas as cooperativas são baseadas nos princípios de economia solitária. E além das atividades dos grupos cooperativos, os jovens atuam como monitores nas oficinas Grãos de Luz. Cada um recebe uma bolsa mensal de R$ 130,00, financiada pela organização não governamental LENA (Lençóis-Naron, da Galícia, Espanha) e pelo Programa Monumenta do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Realizam atividades semanais, tendo como foco principal a geração de renda a partir da venda de seus produtos. Eles gerenciam as cooperativas e, com a venda dos produtos, que estão diretamente ligados às ações da instituição, conseguem elevar a renda mensal para R$ 300,00.20 Entretanto, uma visão interessante da Associação é trabalhar para melhorar o futuro destes jovens. Assim, cada cooperativa possui uma conta bancária onde são depositados os lucros com a venda dos produtos. Ao final do ano, o dinheiro é repartido entre os membros da cooperativa, de acordo com o trabalho que cada um realizou para gerar tais lucros. No entanto, eles só podem investir o dinheiro em estudos pessoais ou na compra de imóveis, terrenos e outros bens que possam auxiliá-los no futuro. Hoje já existem alguns jovens cursando universidade, com terrenos e casas construídas, estando em melhores condições, e podendo se qualificar e propiciar maior conforto a si mesmo e aos seus familiares. Destaco o grupo cooperativo de Turismo de Base Comunitária, organizado pelas jovens Maíza, Ane e Lane, exemplo de modelo turístico desta pesquisa. Comercializando aos turistas da cidade e visitantes da Associação as Trilhas Griô, implantadas em Lençóis nas comunidades de Iuna, Remanso e Capivara, o grupo ultrapassou por três vezes em 2007 a meta financeira estabelecida de R$ 5.000,00 Em 2008, este número subiu para R$ 54.000,00.21 A Roda da Caminhada do Velho Griô (griô aprendiz), com mestres, griôs e grupos culturais pelas escolas e comunidades, surgiu com a criação deste personagem mobilizador, visando construir um elo, uma linguagem de comunicação que possibilitasse o aprendizado dos saberes e fazeres de tradição oral presentes nas comunidades de Lençóis. 20 LOPES, 2009, p, 31-35. Números informados em palestra proferida pela coordenadora do Projeto Bagagem, Cecília Zanotti, no III Encontro de Planejamento da Ação Griô Nacional, ocorrido de 17 a 22 de abril de 2009 na cidade de Lençóis, Bahia. 21 52 Eu inventei o Velho Griô porque vi que a gente precisava criar uma linguagem e uma pedagogia que se comunicasse com a tradição oral, com a comunidade. Porque a gente já caminhava entre as comunidades tentando aprender a cultura, trazendo para as oficinas. Só que a gente não tinha se compreendido um caminhante que estava trocando a cultura, aprendendo isso aqui e ali. Quando eu vi essa história do Griô, eu comecei a entender mais claramente que era um processo. Que era uma tradição que estava ali. Acontecendo mesmo, através da gente. Líllian Pacheco (LOPES, 2009, p. 32) O Velho Griô surgiu da experiência já desenvolvida por Márcio Caíres, como professor de uma escola estadual, dentro do projeto Escola Real, Escola Ideal. Este visava criar o diálogo entre escola e comunidade, levando alunos do magistério para práticas e vivências pessoais e profissionais na zona rural de Lençóis, onde caminhava com violão, conhecendo as comunidades através de suas histórias. Vestido com um paletó cinza, bordado com fuxicos, desenhos infantis e outros símbolos da cultura local e um chapéu preto, o Velho Griô caminha com seu violão em punho, cantando cantigas aprendidas de outros mestres e griôs de tradição oral ao longo de suas andanças. Chega de surpresa na comunidade e, cantarolando, convida crianças, adultos e idosos a participarem de uma “vivência”. Ao longo da dinâmica, este utiliza-se de cantigas, músicas, danças e da contação de histórias que remetem à cultura local, procurando transmitir os saberes que já aprendeu com outros mestres e griôs, assim como aprender com os mestres e griôs locais, valorizando a sabedoria popular dos moradores daquela comunidade visitada. A missão do Velho Griô é o de mediador entre os saberes e fazeres de tradição oral dos mestres e griôs com as comunidades e escolas de Lençóis, sempre objetivando a transmissão desses conhecimentos. Entretanto, suas caminhadas pela zona rural não são agendadas, previstas ou formalmente planejadas. Segundo Márcio Caires, o encontro com os mais velhos acontece de forma espontânea, a partir do desejo de aprender novos saberes de tradição oral, ou ainda, reencontrar mestres e griôs das comunidades pelas quais já caminhou. Ele ainda ressalta que os mestres criam vínculos com as pessoas e não com instituições, e que sua relação com eles é de aprendizagem e troca de saberes. O Velho Griô é o momento de ritualização de uma vivência. O Velho Griô é como um terreiro. Tem um momento que ritualiza uma vivência com as roupas. Com a divindade, com o arquétipo. O Velho Griô é esse arquétipo que encarna. Existe um momento do dia que a gente pede a bênção junto, que o Velho Griô chega junto e a gente faz aquela missão. Missão mesmo de ir para a escola. Mas durante o dia não. Durante o dia sou eu convivendo. Eu não chego ao momento dessa ritualização desse jeito. Tem outros rituais. Qual história o Velho Griô conta na escola? O Velho Griô conta a história de vida para a roda na escola. Aí o Velho Griô já chegou lá, 53 contou a história de uma criança, de uma pessoa. Chega na hora da escola, que você elabora, ritualiza para contar, parece que tudo vem. Algumas vezes eu conto outra história, eu posso contar algum mito, para compartilhar mitos de outras regiões. Mas no geral o principal é o saber da região ali. Chegar naquele saber, no mito da região, no mito daquele lugar. Márcio Caíres (LOPES, 2009, p. 35.) Os saberes aprendidos nestas caminhadas são sistematizados e fazem parte do processo de concepção da pedagogia griô, além de serem aplicados nas vivências das oficinas Grãos de Luz. A estratégia de criar um personagem que se aproxima dos mestres, griôs e das próprias comunidades rurais de Lençóis, colocando-se em posição de igualdade, propicia uma comunicação direta com os detentores da cultural oral, além de valorizá-los de forma natural, interativa e no cotidiano. Através da memória dos mais velhos, a instituição busca mediar a transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral, assim como desenvolver um processo de unidade, continuidade e organização social, que reconstrói os sentidos e significados simbólicos. Pollak (apud LOPES, 2009), afirma que a memória individual e coletiva teria como elementos constitutivos os acontecimentos vividos pessoalmente e os vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa sente pertencer. Esses seriam acontecimentos de que a pessoa nem sempre participou, mas que estão presentes no imaginário. Além dos acontecimentos, a memória é constituída por pessoas, personagens e lugares. Ainda ressalta que a memória é seletiva, nem tudo fica gravado e registrado. Memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. (...) Cada vez que uma memória está relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, de coerência, de unidade, de continuidade, de organização (POLLAK apud LOPES, 2009, p. 36). A Caminhada do Velho Griô, pelas escolas e comunidades de Lençóis, promove a integração e o encontro das pessoas com o saber oral. A figura do sábio andarilho que percorre lugares, transmitindo saberes e fazeres de tradição oral, se junta aos mestres, griôs e grupos culturais locais, caminhando, cantando e transmitindo conhecimento de forma oral e lúdica. Roda dos educadores, que integram a tradição oral no currículo de educação municipal, e conta com atores de todas as idades do sistema municipal de ensino de Lençóis. Eles são transmissores da pedagogia griô, e transformam teoria em prática, aplicando a 54 metodologia nas salas de aula, atuando como elementos fundamentais no processo de reestruturação do currículo educacional brasileiro. O Projeto Pedagógico Griô surgiu do convite da Secretaria Municipal de Educação de Lençóis, em 1999, para que a Associação Grãos de Luz participasse da semana pedagógica municipal, elaborando um programa de formação continuada para os professores da rede municipal de educação, que integrasse os saberes populares de tradição oral, no currículo formal da escola. Tal programa foi sistematizado e organizado pela coordenação pedagógica da Associação e a Secretaria Municipal de Educação de Lençóis. Durante os três dias de encontro em um hotel no Vale do Capão, na Chapada Diamantina, os educadores vivenciaram a pedagogia griô, e seus rituais de criação de vínculo e aprendizagem, além de aprenderem alguns saberes de tradição oral transmitidos pelo Velho Griô. Ao final, receberam um kit educativo com materiais de auxílio, para práticas em sala de aula, além de assumirem a responsabilidade de desenvolver planejamentos pedagógicos em torno de um tema gerador anual, que integrasse a tradição oral, na grade curricular, do ensino municipal de Lençóis. E por último, a Roda da Vida e das Idades, com todos os participantes, em diálogo com parceiros dos três setores sociais, conselhos municipais, estaduais e federais, universidades, ONGs, projetos, programas e políticas do país e do mundo. Esta se inspira na qualidade multissetorial, intergeracional, dançante e solidária das rodas de capoeira, dos candomblés, das manifestações culturais indígenas, das tradições orais do noroeste da África, e outras manifestações e organizações de tradição oral no Brasil. (PACHECO, 2006, p. 86-90) O ritual de vínculo e aprendizagem é o elemento norteador de todas as outras rodas que culminam na Roda da Vida e das Idades. Nele há uma integração de cantigas, danças, símbolos, mitos, saberes, artes, ofícios, ciências da vida e da comunidade, numa rede de palavras e temas geradores. A afetividade destes rituais busca o vínculo entre os seres humanos e a natureza, suas relações com as divindades, mistérios e histórias de vida. A intenção é facilitar o encantamento pela tradição oral e as ciências da vida, assim como fortalecer a identidade pessoal e local, vislumbrando melhorias na qualidade de vida. A idéia inovadora do projeto pedagógico foi a de mobilizar e sensibilizar a comunidade e o poder público local, para a importância da inclusão destes saberes na educação formal. Assim, a formação educacional das crianças, como seres conscientes que entendem suas origens e se enxergam dentro da cultura brasileira, ganha identidade e referência local, baseada nas tradições orais dos mais velhos, os mestres e griôs. A vivência 55 afetiva e cultural da pedagogia griô é o instante em que parecemos encontrar um sentimento de pertencimento a esta cultura, orgulho de nossa ancestralidade e identidade. 3.6 - A Vivência da Pedagogia Griô – Ritual de Vínculo e Aprendizagem A vivência proposta pela Pedagogia Griô, em uma sistematização, passa pela abertura, integração da roda, expressão da identidade no centro da roda, harmonização, contação de histórias e mitos, expressão artística e artesanal e despedida. (PACHECO, 2006, p. 92 e 93). O gráfico a seguir mostra didaticamente a fruição do ritual de vínculo e aprendizagem, dentro dessas etapas mencionadas. Orienta-se, no gráfico, com o eixo vertical demarcado, a consciência de si mesmo, no limite superior; e a consciência da ancestralidade, no limite inferior. As etapas ocorrem uma a uma, respeitando o tempo do outro e a interação do grupo. O objetivo central de todo ritual é facilitar a vivência afetiva e cultural do grupo, auxiliando na construção de uma roda da vida e das idades, fortalecendo a identidade pessoal e local, bem como motivando o encantamento e a valorização dos diversos saberes de tradição oral. Fonte: Pedagogia Griô: A Reinvenção da Roda da Vida22 22 Gráfico e explanação disponível em PACHECO, 2006, p. 92, 93. 56 As cores representam os seguintes momentos: Abertura: Inicia-se com o pedido de bênção, forte característica das culturas populares tradicionais. Na pedagogia griô, é um momento de reverência à ancestralidade e às pessoas que, de alguma forma, ensinaram-nos algo importante para a vida. Também é uma forma de reconhecimento de si mesmo, e fortalecimento da identidade individual e coletiva do grupo. Neste momento, pede-se a bênção: “Eu peço a bênção a...” e cada um finaliza sua fala com: “Eu sou.... ou Eu.... falei”. Após a bênção, entoam-se cantigas para danças coletivas em roda, celebrando o encontro do grupo e possibilitando a todos que se enxerguem dentro da roda. As cantigas e músicas são sempre iniciadas com a menção de onde foram aprendidas, e quem as ensinou, referenciando a origem do conhecimento oral que ali está sendo transmitido. Lançam-se palavras geradoras de caminhada, e a integração e início de vínculo afetivo entre os membros do grupo começa. Integração da roda: Após as palavras geradoras, outras cantigas e danças rítmicas animadas de chamamento ao trabalho são entoadas. Umbigadas, sambas de roda, quadrilhas, entre outras; objetivando concentrar e despertar as energias do grupo para as atividades seguintes. Expressão da identidade no centro da roda: Momento em que os membros do grupo são incentivados a se expressarem. Inicia-se com música, danças ou um jogo de versos, que desencadeia a participação individual, e motiva o reconhecimento de si mesmo, diante dos outros, no centro da roda. Essa etapa refere-se ao momento de clímax do ritual. Harmonização: Após todo esse processo de integração do grupo e reconhecimento individual, a etapa de harmonização é o momento da pausa e reflexão. Cantigas e danças lentas, de ninar e embalar são cantadas, assim como cantigas melódicas de amor ao próximo. Desacelerando o ritmo, entra-se num estágio de vínculo maior entre os membros do grupo. O momento que segue necessita de que todos estejam em harmonia, com confiança de si mesmo, e de se expressar diante do grupo. Contação de histórias e mitos: Mostrar-se, e contar sua história de vida, ou uma história que aprendeu com alguém, algum mestre. Em ambientes efetivos e míticos, facilitados pela reverência à escuta, à palavra geradora e ao diálogo de saberes, a contação de histórias é um momento que, por vezes, emociona alguns membros do grupo. Mensagens de afeto são 57 transmitidas, ou lições que a vida nos ensina. Assim como histórias e mitos antigos, referências a nossa origem e ancestralidade. A partir de cada história de vida, integra-se a identidade individual e coletiva por meio de um processo cultural, social, político, pedagógico e educacional. Há uma ressonância para a história de nossa origem, contexto e cultura, e a forma como nos relacionamos com essas três dimensões. Expressão artística e artesanal: Ocorre entre os membros do grupo de forma voluntária. Objetiva motivar pesquisas e vivências para a construção do conhecimento, através das artes e ofícios. Produzindo, apreciando e celebrando as expressões, aprendemos a valorizar coisas simples e momentos de reflexão, interação e vínculo com o outro. Despedida: Momento de registros e memórias do que foi vivido. Pautado por cantigas e danças de roda, a caminhada de despedida acontece e finaliza o ritual. A Pedagogia Griô integra a escola com a comunidade, através da inclusão dos saberes e fazeres de tradição oral, como elementos lúdicos e de reflexão quanto à identidade, diversidade e ancestralidade brasileira. Propondo uma educação mais completa e coerente à realidade cultural brasileira, estudantes e educadores de escolas e universidades interagem com griôs e mestres de tradição oral dos Pontos de Cultura, e organizações não governamentais pertencentes ao programa, numa roda de encontro consigo mesmo e com sua cultura. Saberes das ciências e currículos formais do país unem-se às histórias de vida, mitos e saberes da tradição oral das comunidades tradicionais brasileiras. A escrita é uma coisa, e o saber é outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente. Tierno Bokar Salif23 (HAMPÂTÉ BÂ apud PACHECO & CAIRES, 2009, p. 7). 23 Tierno Bokar Salif passou toda sua vida em Bandiagara (Mali, África). Grande mestre da ordem muçulmana de Tijaniyya, foi igualmente tradicionalista em assuntos africanos. Faleceu em 1940. 58 3.7 - O Programa Ação Griô Nacional do Ministério da Cultura Em 2004, o Ministério da Cultura lançou o Programa Cultura Viva, parte integrante da Secretaria de Projetos e Programas Culturais, que hoje denomina-se Secretaria de Cidadania Cultural. O programa objetiva fomentar, investir e movimentar projetos e ações culturais no país. Sua ação prioritária são os Pontos de Cultura, iniciativas desenvolvidas pela sociedade civil organizada, em convênio com o Ministério da Cultura, através de edital de seleção pública, visando impulsionar ações culturais já existentes. A proposta baseia-se na transversalidade e na gestão compartilhada em prol da construção de uma rede articulada e mobilizada que trabalha a promoção, proteção e transmissão da diversidade cultural brasileira. Em suma, o Ministério da Cultura repassa recursos para projetos elaborados previamente que promovam acesso, opções e capacitações na área cultural. Atualmente, são mais de 650 pontos de cultura espalhados pelo Brasil, e eles se articulam com as demais ações do Programa Cultura Viva, que, até 2006, eram Escola Viva, Cultura Digital e Agente Cultura Viva. Ao lançar o Programa Cultura Viva, o Ministério recebeu cerca de 840 projetos de instituições, sem fins lucrativos, já em seu primeiro edital de seleção pública. Dentre eles, estava a experiência educacional implantada em Lençóis, pela Associação Grãos de Luz e Griô. Entretanto, o trabalho que ela propunha, e já realizava, era diferente, e não se encaixava em nenhuma das linhas de ação estabelecidas pelo programa. O projeto unia a tradição oral, a memória viva dos mestres e griôs, e uma ruptura com os parâmetros educacionais formais através de uma pedagogia própria, que já funcionava e apresentava resultados positivos. Assim, em 2006, o Programa Cultura Viva engloba uma nova linha de atuação: a Ação Griô Nacional, sob total gestão da sociedade civil organizada. Em depoimento proferido durante o III Encontro de Planejamento da Ação Griô Nacional, o Secretário de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura, Célio Turino, não só compartilhou sua história de vida com os presentes, durante um ritual de vinculo e aprendizagem, como também explicou sua visão de gestão, dentro do Ministério da Cultura, o que norteia as ações criadas e descritas acima. Eu estava presente no encontro e transcrevo seu depoimento abaixo, de maneira a elucidar as ações criadas pelo Ministério da Cultura e sua visão de gestão, assim como em referência ao primeiro capítulo desta pesquisa, que aborda o atual processo de redemocratização no Brasil. 59 O Griô é a reinvenção, reestruturação desse abrasileiramento de conjuntos que vão se entrelaçando. Uma ampla diversidade cultural que encontra uma essência comum. O que é mais ou menos como eu vejo os pontos de cultura. São vários conjuntos e, para entendê-los, é só buscar a essência das coisas. Por exemplo, o método cientifico de Goethe – observação goethianistica – Na ampla diversidade de formas, encontrar a essência, tentar se colocar no lugar do outro e dar um empurrãozinho pra que esses conjuntos se entrelacem cada vez mais rápido. Um puxando o outro e promovendo o desenvolvimento. Vygotsky mostra que o desenvolvimento infantil da pulos, quando as crianças mais velhas, ensinam coisas as mais novas, estabelecendo relações entre elas. Florestan Fernandes, em seu trabalho de conclusão de curso pela USP sobre Brincadeiras Populares: As Trocinhas do Bom Retiro, aponta que a transmissão da cultura oral não era ensinada por adultos para as crianças, e sim entre elas mesmas, de diferentes faixas etárias. Vygotsky aponta o entrelaçamento dos conjuntos, um entrando no outro, como o fator que cria zonas de aproximação, que ele chama de desenvolvimento proximal, que é o modelo proposto pelos pontos de cultura, onde o Cultura Viva vai entrelaçando esses pontos com jeitinho, tentando entender a essência de cada um. O símbolo do Programa Cultura Viva, três bonecos de braços abertos, e dos pontos de cultura, um boneco apenas, teve como referência o Homem Vitruviano feito por Leonardo da Vinci no século XVI, que traz um homem dentro de um circulo. Só que isso tem uma origem muito anterior. Um arquiteto chamado Vitruvio, 100 a.C., que fez os arcos romanos, e desenvolveu seus estudos a partir de estudos de proporções, lançando um problema ao mundo que demorou 1500 anos a ser solucionado por Da Vinci. Como fazer um círculo perfeito em torno do homem? Entretanto, houve interpretações errôneas, referindo-se ao homem no centro do universo, a medida de todas as coisas. Sendo que o estudo de proporção estabelece a nossa relação com as pessoas, com o planeta, com as construções, as coisas. Os braços abertos do homem vitruviano mostra a nossa capacidade de agir humano, a capacidade de transformação, o que é a essência dos pontos de cultura em suas diversas formas. A gente descobrir nossa identidade e somar com a do outro. Se perceber na identidade do outro, que é a alteridade. E a soma de identidade mais alteridade é igual a solidariedade, que ainda é pouco praticada pelas pessoas. A relação de mediação é política. Fazer política é mediar, o que no entanto apodreceu ao longo dos anos, tornando-se absolutamente alienada da vida. Mas a gente vai trabalhando para recuperar a política nesse sentido nobre, que é o da mediação. Recolocar o sentido de compaixão, aqueles que se compadecem pelo outro, dentro da política. Erroneamente deixamos a compaixão apenas no território religioso de nossas ações. Mas a compaixão deve ser parte do território da vida. Compadecer por uma árvore, um rio, uma pessoa... a gente acabou por inverter nossas ações e não se sensibilizar e compadecer com essas coisas simples. Ao invés de proteger uma criança, ficamos com medo dela quando ela vem na direção do carro num cruzamento de uma grande cidade, por exemplo. A gente fecha o vidro, fica com medo e acaba criando uma situação que é maluca, pois todos devíamos acolher as crianças. Na cultura indígena isso não acontece, pois as crianças são vistas como elemento principal, as próximas gerações. É se emanar, entender que estamos num planeta vivo e a idéia de entrelaçamento é construir e se fortalecer a cada encontro. Que a gente trate bem a todo mundo e ao planeta, e que ele nos trate bem também, nos acolha. Na carta de pero Vaz de caminha há uma descrição de como os índios nativos receberam os colonizadores. Musica, dança e alegria são os elementos mencionados e diferenciados das outras nações descobertas anteriormente, o que não explica como o país desandou tanto e se encontra com tantos problemas sociais. Mas já que desandou, a idéia de conjuntos que se entrelaçam, como os pontos de cultura, é justamente promover o reencontro das pessoas e fazer do Brasil uma terra boa de se viver pra todos”. Célio Turino (Grifos Meus) 60 A Ação Griô, em pouco tempo, tornou-se Pontão de Cultura24 com atuação nacional, recebendo mais recursos do Ministério da Cultura e ampliando-se ao redor do território brasileiro. No entanto, este novo desenho deu-se em parceria com os pontos de cultura já existentes no país, selecionados através de edital de seleção pública, lançado em setembro de 2006. As diretrizes do projeto e os conceitos de mestres, griôs de tradição oral e griôs aprendizes a serem selecionados começaram a circular em capitais e cidades pequenas de todas as regiões. O edital previa a seleção de 50 pontos de cultura que se propusessem a fortalecer a causa de militância em favor da transmissão de saberes de tradição oral, através da aplicação da pedagogia griô em escolas formais parceiras, por meio de mestres e griôs de tradição oral da própria comunidade. Cada projeto indicava cinco mestres e/ou griôs de tradição oral e um griô aprendiz, que atuaria como mediador entre escola e saber popular, diminuindo a burocracia e os entraves formais das escolas, e abrindo espaço para a chegada dos mestres com seus ricos saberes orais. Todos os indicados receberiam uma bolsa auxilio do Ministério da Cultura, para realizarem o trabalho de transmissão oral, com o valor de R$ 380,00, e validade de um ano, porém podendo ser prorrogada por mais um ano. Líllian Pacheco define os perfis de mestres, griôs de tradição oral e da figura fundamental, na proposta de transmissão desses conhecimentos, o griô aprendiz, que faz a mediação entre os mestres e as escolas. Mestres de tradição oral são doutores das ciências da vida, com idade mínima de 60 anos. Reconhecidos pela comunidade como detentores de saberes e fazeres únicos, com sabedoria e experiência de vida, os mestres são referências vivas. Possuem histórias de vida de tradição oral fascinantes, e a habilidade de ensinar ofícios e formar seres humanos com referências ao passado e a sua ancestralidade. (PACHECO, 2006, 47-49) Griôs de tradição oral são aspirantes a mestres, geralmente iniciados por um mestre, mesmo que inconscientemente, com idade mínima de 50 anos. São pessoas envolvidas com a cultura popular e a tradição oral e com facilidade de transmissão dos saberes através da palavra. São instrumentistas, contadores de histórias ou cantadores, e possuem envolvimento profundo com as raízes de nossa cultura. Os griots são genealogistas, contadores de histórias, músicos/poetas populares, mediador político, “dieli” que, na língua bamanan do Mali, noroeste da África, significa “sangue que circula”. Caminham de aldeia em aldeia, aprendendo e 24 Projeto com orçamento maior, patrocinado pelo Ministério da Cultura durante um ano, que seleciona Pontos de Cultura articulados em prol de um objetivo comum ou produto final. 61 ensinando a cultura. Eles, às vezes, são contratados por uma família nobre para pesquisar e contar sua história e genealogia, seus heróis e glórias. Eles podem, com suas histórias, enfeitar ou alegrar, como os palhaços nos eventos de uma comunidade. Na tradição oral, a palavra tem um poder e um significado bem diferente, é divina, tem um compromisso com a verdade e com os ancestrais. Dar o poder de brincar com as palavras (enfeitá-las e criar fantasias) para a tradição oral é algo polêmico entre os griôs e mestres. É um educador popular que aprende, ensina e se torna a memória viva da tradição oral. Ele é o sangue que faz circular os saberes e histórias, as lutas e glórias de seu povo, dando vida à rede de transmissão oral de uma região e de um país. A palavra abrasileirada griô vem de griot em Francês, que traduz a palavra “dieli” na língua bamanan. Os Griots, para se formar, têm que viajar e caminhar sempre. Quanto mais viajar e caminhar, mais ouvirá e conhecerá. Na Amazônia, temos pessoas da cultura indígena que têm esse mesmo lugar social – o falador. É um conceito proposto pelo Grãos de Luz e Griô que vem complementar o conceito de Mestres dos Saberes tão utilizado no Brasil. O conceito de mestre nos remete ao sábio, ao curador, ao iniciador das ciências da vida, das artes populares e dos ofícios artesanais, é diferente do Griô. (PACHECO, 2006, p. 45). O mestre é a raiz, o Griô é a sua rama. Mestre Dunga, Lençóis, BA. (PACHECO, 2009, p. 5). A figura do griô aprendiz identifica-se com o perfil de caminhante, brincante, pesquisador e mobilizador social. Ele abre espaço e cria uma atmosfera lúdica para a chegada dos mestres e griôs nas escolas. Romper com os padrões estéticos e quadrados do espaço escolar, com preconceitos individuais e com um modelo educacional vigente, há anos, não é atividade fácil. O griô aprendiz vem desta realidade, porém dialoga entre os saberes de tradição oral e a educação formal, agindo como mediador dos mestres e griôs, assim como transmissor dos saberes e fazeres. (PACHECO, 2006, p. 47) Num ambiente alegre e interativo, os saberes de tradição oral são transmitidos socialmente, através de músicas, danças, histórias e mitos, transformando o espaço escolar num ambiente integrado e festivo, onde as pessoas se enxergam e criam vínculos umas com as outras. É o encontro de si mesmo com o outro, suas raízes e identidade cultural. Com o bom andamento da Ação Griô em todo Brasil, em junho de 2008, a Associação Grãos de Luz e o Ministério da Cultura lançam o segundo edital de seleção publica para novos projetos. Privilegia-se a ampliação da rede, em troca do aumento da bolsa auxílio aos mestres contemplados no primeiro edital, permanecendo o mesmo valor. E nesse momento, o edital permite a participação não somente dos pontos de cultura já instituídos no país, como também das entidades sem fins lucrativos que se identifiquem com a proposta, tais como organizações sem fins lucrativos (ONG), associações, organizações sociais civis de interesse público (OSCIP), entre outras. 62 Assim, a Ação Griô Nacional amplia-se para 131 projetos no total, beneficiando cerca de 700 mestres e griôs de tradição oral, além dos griôs aprendizes25. As regionais incorporam mais estados brasileiros e algumas recebem nova denominação, além da criação de uma sétima regional: Regional Bahia, agora com 21 projetos e mais a Associação Grãos de Luz; Regional Ventre do Sol, estados de Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe e Paraíba, com 24 projetos no total; Regional Nascente das Veredas, estados do Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás e Minas Gerais, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, com 15 projetos; Regional das Águas, estados do Ceará, Tocantins, Maranhão e Piauí, com 22 projetos; Regional Amazônica, estados do Pará, Amazonas, Roraima, Acre e Rondônia, com 11 projetos; Regional Rio, com 14 projetos no total; Regional Terra, estados do Rio Grande do Sul, Santa Catariana, São Paulo e Paraná, com 24 projetos. Os projetos distribuídos no mapa da Rede Ação Griô Nacional: 25 In PACHECO & CAIRES, 2009, p. 34-37. 63 Fonte: Nação Griô: O Parto Mítico da Identidade do Povo Brasileiro26 Regional Bahia Reginal Terra Regional Rio 26 Regional das Águas Regional Amazônica Regional Nascente das Veredas Disponível em PACHECO & CAIRES, 2009, p. 36. Regional Ventre do Sol 64 Neste novo modelo, as regionais tornaram-se descentralizadas do Pontão de Cultura, que termina seu projeto inicial, ao final de 2008. Agora, cada regional procura captar seus próprios recursos, através de editais de seleção pública, parceria com outras instâncias governamentais e projetos para as leis de incentivo a cultura. Cabe aos griôs aprendizes articuladores, agora dois a três por regional, a gestão dos projetos, além de uma assessora pedagógica que mantêm o olhar atento na inserção da pedagogia griô nas escolas parceiras. Alem desse foco pedagógico principal, a Ação Griô Nacional promove cidadania, através da geração de renda dos produtos criados pelos projetos que a compõem, que movimentam as comunidades numa proposta de economia solidária. É prerrogativa de cada regional criar produtos culturais e educacionais, tais como cartilhas, gibis, revistas, vídeos, CDs de música, livros, cordéis e produtos artesanais que possam ser comercializados ou distribuídos nos encontros promovidos pela Ação Griô, assim como nas escolas parceiras. Outros produtos e propostas de atividades econômicas que promovam a geração de renda às comunidades e seus mestres também são incentivados e realizados. Dentre elas, as trilhas griô, modelo de turismo de base comunitária em comunidades tradicionais, assunto que trataremos no próximo capítulo. 65 4 - TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA É importante reconhecer que o turismo deve servir ao homem, e não o contrário Jost Krippendorf27 O turismo é um fenômeno mundial com proporções grandiosas. Atualmente, a atividade tornou-se a maior geradora de divisas aos países, além da promessa de originar muitos empregos diretos, indiretos e prosperidade às localidades. Estas e seus governantes transmitem imagens e incentivam o turismo, propondo sua inserção como a salvação de muitos lugares e seus problemas, o que isoladamente não é verdade. A atividade turística passou a ser vista, erroneamente, como uma das únicas possibilidades de redenção econômica do lugar. O turismo contemporâneo influencia e é influenciado por um contexto muito amplo que abrange a economia, a sociedade, a política e a cultura (...). A cultura contemporânea reserva um espaço privilegiado para o prazer e o lazer, o que ajuda afirmar a ascensão desta atividade. (TRIGO, 1996. p.38). Em decorrência do crescimento da atividade, que figura como um novo produto a ser consumido, mesmo sendo um produto intangível, a mídia aparece como veículo difusor na promoção da ideologia do consumismo dos destinos turísticos. Assim, o turismo praticado pela maioria das pessoas e promovido pelos destinos turísticos também vem relacionado ao seu consumo e status social. No entanto, a atividade turística é muitas vezes mencionada e vista, erroneamente, apenas pela lógica de mercado. É através das estatísticas de fluxo e lucro que sabemos seus avanços em escala global, é devido ao provável retorno financeiro, que esta ganhou destaque e prestígio diante das outras atividades econômicas. A maioria dos governantes e investidores não se atentam para os possíveis impactos negativos decorrentes da atividade em todos os seus âmbitos. O interesse econômico acaba prevalecendo nesta atividade prazerosa, porém, ao mesmo tempo bastante consumista, esquecendo-se dos impactos ambientais e socioculturais nas localidades onde esse turismo de base mercadológica e industrial é desenvolvido. O turismo de base comunitária apresenta-se, 27 Sociólogo alemão que aprofunda seus estudos em entender a alteração de valores na sociedade industrial moderna, que passou a usar o turismo como forma de se afastar do cotidiano. Ele defende que a atividade turística deve ser um momento de aprendizado e de experiência, com o objetivo de redescobrir o próprio cotidiano enquanto fora dele, para modificá-lo ao regressar a rotina habitual. 66 portanto, como uma alternativa que combina o objetivo econômico com os interesses da comunidade. 4.1 - O Turismo e suas contradições A chamada indústria do turismo, caracterizada por vincular um modelo estruturante, impactante de transformação do local, para receber os turistas, além de ter uma visão essencialmente mercadológica, vem agindo de forma a não considerar e respeitar a população local e o meio ambiente, quando da implantação de estruturas turísticas para o desenvolvimento da atividade. Busca-se atrair o maior número possível de turistas, em um planejamento em curto prazo, que possam devolver o investimento e promover o lucro rapidamente. Este modelo impulsiona ainda mais o consumo de massa, além de provocar o esgotamento do local, em poucos anos. A maior parte dos destinos vislumbra crescer com a atividade turística e opta por aplicar este modelo de estrutura da indústria do turismo, que geralmente atrai muitos turistas, assim que o destino fica pronto para recebê-los, embora seja caracterizada por uma intensa transformação do local. Construções em massa de infra-estrutura de apoio ao turista acabam por impactar o ambiente, além de transformá-lo, causando a perda das peculiaridades locais e dos diferenciais que antes eram vistos como atrativos turísticos. Os grandes projetos e investimentos turísticos, ao redor do mundo tendem a homogeneizar os lugares e as paisagens, além de destruir as diferenças e os significados simbólicos que poderiam ser inclusos nos atrativos turísticos das localidades, acabando por padronizá-las. Essa conseqüência não visualizada, no momento do planejamento da atividade turística, propicia uma diminuição no fluxo turístico, pois os visitantes sentem que os lugares são similares uns aos outros, e percebem que não vivenciam a experiência da viagem de forma tão proveitosa, como descobridores do local. Logo, passam a buscar novos destinos que possuam diversidades e singularidades, para assim sentirem a experiência de ver e viver coisas diferentes. Porém, se o planejamento deste novo local seguir os mesmos padrões da indústria do turismo, após um tempo, este destino também se torna homogeneizado, entrando em declínio no seu fluxo de turistas. Enfim, é um ciclo vicioso que se instala através da implantação de um modelo de turismo, baseado na super estrutura, no lucro e no desenvolvimento ao curto prazo. No Brasil, por exemplo, as nossas singularidades naturais estão se esgotando com a massificação, a construção excessiva e pouco se aproveita da cultura local, como atrativo 67 turístico, deixando o segmento do turismo cultural à margem do processo de implantação da atividade, num país que é referência mundial em diversidade cultural. Infelizmente, encontramos apenas uma alusão à cultura brasileira, nos roteiros turísticos de vários destinos, que são as pequenas apresentações culturais montadas exclusivamente para serem exibidas aos turistas, num formato que alguns teóricos denominam de espetacularização da cultura. É montar um espetáculo cultural em formatos pré-determinados, para ser mostrado aos turistas, o que acaba por diminuir a importância das manifestações culturais locais. “A tendência é sempre criar padrões. Padrões que, na verdade, empobrecem senão anulam a diversidade cultural brasileira” (BANIWA apud FARIA, 2006, p. 69). Entretanto, é importante ressaltar que estes modelos e transformações, geradas com a atividade turística, também são decorrentes dos próprios turistas, pois visam satisfazer os desejos destes consumidores de viagens. Contudo, o turista é um ser contraditório, pois ao viajar, pretende deixar o cotidiano entediante e repetitivo, para se aventurar por novas experiências. No entanto, inconscientemente, este começa a querer que os destinos satisfaçam seus desejos intrínsecos, que são relacionados ao seu cotidiano e bem estar. Como já apontava Krippendorf (1989, p.70): “Mesmo quando se faz outra coisa, conserva-se o ritmo cotidiano habitual”. Assim, os turistas levam consigo todos os seus hábitos, cultura, estilo e exigências. Passam a querer que os locais tenham as mesmas estruturas que encontram nas grandes cidades, os quais já estão habituados. Querem encontrar o conforto e os serviços da mesma forma e padrão, provocando, assim, o crescimento desenfreado que transforma o destino numa extensão do seu cotidiano. O turista busca a área onde a paisagem natural esteja preservada e o próprio modo de vida (mais simples, mais rústico) proporcione um “relaxamento” do mundo urbano. Porém, ele carrega consigo todos os seus valores, costumes e normas do mundo urbano (...). (LUCHIARI, 1996, p. 150) No entanto, ao encontrar um destino parecido ao seu cotidiano, o lazer passa a ser monótono e sem sentido, pois se tornou muito similar a sua vida habitual, a tudo que ele teoricamente está fugindo ao viajar. Ao constatar isso, ele busca novos destinos que não tenham este padrão, promovendo o declínio da atividade aos super estruturados, que não possuem mais atratividade e diferencial. Outro aspecto relevante quanto ao ato de viajar é como o turista define a sua viagem, pois esta passou a ser difundida apenas em função dos lugares e do status social, e não das pessoas e cultura destes. Assim, ao escolher um novo lugar, o turista apenas reconhece tudo o 68 que já havia visto nos meios de comunicação através de publicidades. Passa pelos mesmos lugares onde muitos já passaram, e não se atentam ao aspecto humano e cultural das localidades. Os turistas fazem suas viagens quase sem sair do lugar, confinados nos mesmos ônibus, nas mesmas cabines de avião, nos mesmos quartos climatizados dos hotéis e desfilam diante de monumentos e paisagens que já viram centenas de vezes, os prospectos e na telinha da TV. (GUATTARI, 1994. p. 9-10) Nestes momentos de lazer, de sair do cotidiano repetitivo e do mesmo grupo social, a viagem surge como uma oportunidade de se conhecer novas realidades, pessoas, lugares, costumes e culturas diferentes. No entanto, este intercâmbio pouco acontece, pois não há interesse por parte dos visitantes, em se estabelecer um contato mais profundo com os autóctones e, conseqüentemente, os roteiros e pacotes turísticos são estruturados de modo a evitar esta interação. Por tudo isso, a atividade turística precisa ser planejada em benefício das comunidades locais, e não somente aos turistas, bem como deve ser entendida como fonte de novas experiências, trocas culturais e interação entre os turistas e a população local. O aumento do número desenfreado de turistas, que se colocam como expectadores das janelas dos ônibus em vez de buscar ver, sentir e viver com as pessoas o local que ali vivem, assim como o excesso de transformação local torna-se práticas que caminham na contramão de um turismo mais humano e sustentável. A viagem deve abrir os horizontes das pessoas e fazê-las enxergar outros modos de vida, costumes, a diversidade cultural de um povo, que aparece de forma intrínseca e marcante, diferenciando e caracterizando os destinos. “Enquanto se entender o turismo apenas na lógica do crescimento econômico, e não como uma possibilidade de troca humana respeitosa e uma ampliação mutua do convívio, ele será desencantado”. (CARVALHO apud FARIA, 2008, p. 12) 69 4.2 - O Turismo Comunitário: Sustentabilidade, Humanismo e Cidadania O viajar parece-me um exercício proveitoso. Nele a alma exercita-se continuamente a observar coisas desconhecidas e novas, e não conheço escola melhor para formar a vida, senão propor-lhe a diversidade de tantas outras vidas, fantasias e usos e levá-la a saborear variedade tão perpétua das formas de nossa natureza. Montaigne28 Na contramão ao modelo mercadológico da indústria turística, o Turismo de Base Comunitária propõe um formato diferente de desenvolver e implantar a atividade, a partir da interação entre o turista e a população local, promovendo uma experiência de viagem cultural diferenciada, um turismo mais consciente e enriquecedor, e não apenas visando ser economicamente rentável. “O turismo consistente, saudável, sustentável é o que atrai pessoas desejosas de conhecer o lugar, curtir as belezas naturais, o folclore, a gastronomia e se interrelacionar com culturas e povos diferentes.” (CORIOLANO, 1997, p. 130). Os preceitos do Turismo Comunitário discorrem sobre outro foco de organização da atividade, pautados na participação coletiva da comunidade, no processo decisório da estruturação da atividade e na experiência cultural local, como foco dos roteiros das viagens. Sua prerrogativa maior é a participação da comunidade em seu desenvolvimento e implantação, tornando-se articuladora da cadeia produtiva, e direcionando a renda e o lucro gerado para ela mesma, contribuindo, assim, para a melhoria da qualidade de vida de seus membros. Esse modelo já desenvolvido em algumas comunidades no Brasil, a exemplo da Prainha do Canto Verde no Ceara29, é uma reação inteligente das comunidades, frente ao turismo predador, posicionando-se como atores da transformação e gerando oportunidades de ganhos e formas de desenvolvimento de acordo com seus interesses. Como ressalta Coriolano (1998, p.148), “contanto que signifique, acima de tudo, um desenvolvimento em escala humana, atendendo as demandas sociais. Nesse tipo de desenvolvimento, o homem passa a ser a medida de todas as coisas e não apenas os índices quantitativos e o lucro.” 28 Escritor e ensaísta francês, considerado o criador dos ensaios pessoais. Analisava as características culturais da sociedade de sua época, focando-se nos ideais e valores do ser humano, o que lhe conferiu a identificação de humanista. 29 In CORIOLANO & LIMA (orgs), 2003. A Prainha do Canto Verde: Locus de Resistência e Turismo Comunitário. 70 Milton Santos30 (apud Coriolano, 1998, p. 143) já repetia em seus livros e na imprensa falada que “o que globaliza separa; e o que é o local, permite a união; além de ser somente possível humanizar a partir do local”. A proposta de turismo de base comunitária, também chamado de turismo de base local, foca-se justamente nas diferenças e peculiaridades dos locais. Nas pequenas comunidades, que possuem características “desglobalizadas”, cultuam seus costumes e tradições, situando-se à margem das tendências nacionais e mundiais. É exatamente um posicionamento oposto aos modelos super estruturantes da indústria do turismo e da ideologia consumista, difundida pela mídia nos destinos turísticos. A partir de uma organização e estruturação local, criam-se roteiros turísticos diferenciados, com a participação ativa das comunidades tradicionais na elaboração, gestão e comercialização das viagens que, ao serem divulgadas, promovem essas localidades e seus atrativos singulares, tirando-as do anonimato e provocando interesse nos turistas em conhecêlas de perto. Desta maneira, estabelece-se uma nova possibilidade de geração de renda, que traz melhorias às comunidades, a partir de uma atividade estruturada, de forma a não modificá-las em excesso, assim como planejada dentro dos preceitos da sustentabilidade, garantindo sua manutenção a médio e longo prazo. (...) não é que o ser humano agora seja menos solidário, é que ninguém se solidariza com o anonimato. A humanização do desenvolvimento, ou a sua re-humanização, passa pela reconstituição dos espaços comunitários. O próprio resgate dos valores e a reconstrução da dimensão ética do desenvolvimento exigem que para o ser humano o outro volte a ser um ser humano, um indivíduo, uma pessoa com os seus sorrisos e suas lágrimas. (DOWBOR apud CORIOLANO, 2003, p. 28) O turismo de base comunitária vem sendo implantado em diversas comunidades no Brasil, que antes eram contrárias à atividade, e agora já apresentam resultados positivos. Além de promover a valorização do lugar, das pessoas e suas culturas, a base local se mobiliza e se une diante do desafio de gerir a atividade turística, ganhando forca e poder decisório frente à indústria do turismo e suas padronizações. Participar é um ato de livre escolha, uma ação de liberdade, é uma decisão de cada um. Assim, quando alguém decide participar, mobiliza sua vontade para agir em direção aquilo que definiu como objetivo e passa a se sentir responsável. Quando essa compreensão é coletiva, mobiliza grupos sociais capazes de mudar a realidade. É isso que se presencia nas comunidades de base, nas pequenas experiências de desenvolvimento local, de turismo de base local, espalhadas em todo o território brasileiro. (CORIOLANO, 2003, p. 34). 30 Geógrafo brasileiro de destaque que focou seus estudos em Geografia Urbana e aspectos do Terceiro Mundo. Dizia que o maior ato de coragem nos dias atuais era o pensar. 71 O reconhecimento da cultura local, elevação da auto-estima, orgulho e fortalecimento da associação comunitária são alguns dos resultados mais importantes deste modelo de turismo, que busca valorizar pessoas, lugares e modos de vida que não estão integrados ao modelo convencional da indústria turística. Os habitantes das comunidades não precisam mudar para receber turistas, pois devem se apresentar a eles exatamente como são. O turista conta com isso, pois não é um visitante qualquer. É alguém que abre mão do conforto e do luxo para ter contato verdadeiro com esse lado do Brasil. (Cecília Zanotti, idealizadora do Projeto Bagagem, 2007) 31. O principal diferencial do turismo de base comunitária é a oportunidade de o turista interagir e compartilhar conhecimentos com a população local, de uma maneira que não seja apenas a compra de um serviço. Ao viajar, o turista acaba tornando-se parceiro dessas comunidades, e a relação de troca, partilha, convivência e aprendizagem são os fatores principais que impulsionam os turistas. Assim, a atividade é estruturada a partir da visão cultural, objetivando o encontro das pessoas com outras e suas culturas. A viagem passa a ser educativa, estimulante da curiosidade, do crescimento pessoal e cultural. É nesse objetivo de encantamento com as viagens, que trataremos a seguir do Projeto Bagagem de Turismo de Base Comunitária, uma organização não governamental que estrutura e implanta um modelo de turismo comunitário, focado nas culturais orais em comunidades tradicionais. 4.3 - Projeto Bagagem de Turismo de Base Comunitária A Organização não governamental Associação Projeto Bagagem nasceu ao final de 2001, do sonho de duas amigas de faculdade, Mônica Barroso e Cecília Zanotti, ambas formadas em administração de empresas, porém atuando no terceiro setor. Envolvidas com este setor, pensavam em como empreender uma iniciativa social que beneficiasse comunidades carentes do Brasil. Identificaram diversas experiências sociais inovadoras, bem estruturadas e organizadas no país, que conseguiam suprir com responsabilidade as lacunas deixadas pelas políticas públicas. Desta percepção e do sonho de beneficiar pessoas, nasceu o Projeto Bagagem de Turismo de Base Comunitária, em fevereiro de 2002, sendo legalmente formalizado em 2004, na cidade de São Paulo. A principal idéia do projeto é estruturar viagens de férias aos 31 Em entrevista concedida ao jornal express de 20/05/2007. Acesso em 09/07/2009. www.jornalexpress.com.br 72 interessados, em ver e vivenciar as experiências sociais desenvolvidas no Brasil, estabelecendo contato direto com a população local, que vem utilizando o turismo de base comunitária como alternativa de fonte de renda e, prioritariamente, beneficiando-se da atividade. Por esta iniciativa, a Associação Projeto Bagagem foi uma das seis finalistas do prêmio Global Development Network, e um dos dez finalistas no prêmio Seed Awards de 2007, que avaliou 230 propostas de desenvolvimento sustentável em 70 países. Até 2006, a equipe era voluntária, mas com a conquista de financiadores como Fundação Kellogg, Ashoka Empreendedores Sociais em 2007 e, ao vencerem o prêmio Supporting Entrepreneurs for Environmet and Development, o Projeto Bagagem conseguiu estruturar sua equipe e aumentar significativamente o impacto do seu trabalho. O projeto se inicia com reuniões sobre turismo comunitário e seus princípios, e com a decisão de querer ou não receber turistas, no modelo proposto pelo Projeto Bagagem. A discussão é realizada entre comunidade, organização parceira e o pessoal do Bagagem. Em alguns momentos, as decisões são tomadas somente pela comunidade, verdadeira vivenciadora da experiência turística a ser implantada. A demanda de pessoas, querendo trabalhar com turismo comunitário, aumentou nos últimos anos, devido ao modelo não requerer praticamente nenhum investimento financeiro inicial na comunidade receptora. No entanto, as premissas do Projeto Bagagem defendem que, para as comunidades trabalharem com turismo comunitário, já devem ter processos de organização comunitária, pois, para gerar riqueza, esta deve estar mobilizada e participativa, caso contrário, pode gerar competitividade entre seus membros. Os roteiros estabelecidos pelo Bagagem proporcionam o intercâmbio cultural, através do convívio com modos de vida tradicionais, oferecendo a oportunidade de o visitante experimentar a vida das comunidades como ela realmente acontece, in loco, entendendo seu funcionamento, aprendendo sua cultura e vivenciando o contato direto com mestres de saberes de tradição oral em suas atividades diárias. Objetiva-se ampliar o conhecimento sobre desenvolvimento comunitário, além de promover uma reflexão sobre como é possível mobilizar a própria comunidade. O objetivo é propiciar o contato simples e direto com pessoas que fazem da mobilização comunitária uma realidade no país, em destinos especiais, por meio de vivências e práticas que permitem aos turistas sair do papel de observadores. (Cecília Zanotti, 2007). 73 A possibilidade de conviver com uma parteira, uma cirandeira, e aprender com elas dificilmente aconteceria em outras oportunidades na vida de algumas pessoas. Ao mesmo tempo, fazer isso nas férias, como atividade de lazer em uma região de rara beleza, onde é possível aprender com a cultura e com projetos de manejo sustentável que estão dando certo, interessa a muitas pessoas. A interação se dá nos passeios, nas visitas às comunidades, nas gincanas culturais, nas rodas de conversa, no forró, nas oficinas de cestarias, nos passeios de canoa, nas trilhas na mata, nas refeições, nas pousadas domiciliares, na palhoça onde visitantes e comunidade se apresentam. Este intercâmbio cultural acontece o tempo todo, porém no ritmo e jeito da comunidade. Antes de cada viagem, os visitantes participam de reuniões onde cada um apresenta sua bagagem cultural e expectativas. Por outro lado, a comunidade se organiza para recebêlos, abrindo suas casas para a hospedagem, preparando pratos típicos, músicas, fotografias, histórias para contar, atividades culturais e passeios nas escolas locais. Neste tipo de iniciativa, o visitante se adapta ao contexto da região visitada e não o contrário. Tendo como missão: "Contribuir com o fortalecimento de comunidades no Brasil por meio do Turismo Comunitário”, e como visão: "Tornar o Brasil um país referência no Turismo Comunitário"32; o projeto bagagem identifica iniciativas de organizações não governamentais que enfrentam dificuldades em gerar renda para a população em geral, a partir de suas ações sociais. A partir daí, estrutura roteiros turísticos com as comunidades atendidas e seus atrativos humanos, criando uma rede de economia solidária. Uma das coordenadoras do projeto, Mônica Barroso33 ressalta: "Num país sem educação, sem luz e água, em zonas do Norte e Nordeste, é importante pensar numa atividade que transforme a qualidade de vida das populações locais com o turismo, como estratégia de geração de renda, não um fim em si mesmo". As organizações sem fins lucrativos identificadas pelo projeto precisam ter reconhecido impacto social, experiência no trabalho com jovens, transparência e eficiência no uso e gerenciamento de recursos e principalmente, desenvolver trabalho reconhecido em comunidades carentes. A importância em trabalhar em parceria com uma ONG local está no fato de um projeto ser uma iniciativa a médio e longo prazo, que necessita de apoio, diálogo e acompanhamento por alguns anos. Assim, o Projeto Bagagem auxilia as ONGs locais a se 32 33 Disponível em www.projetobagagem.org. Acesso em 12/07/2009 Idem 74 estruturarem, captando recursos por meio da elaboração de projetos, compartilhando metodologias, participando dos processos de planejamento do turismo, divulgando os resultados obtidos pelas comunidades e abrindo canais de divulgação na mídia. A partir desse impulso inicial, que fortalece ainda mais o trabalho das ONGs, pretende-se que elas criem uma estratégia própria de trabalho com o turismo, que ganhe autonomia e novos parceiros, após algum tempo. Os roteiros turísticos criados pelo Projeto Bagagem apresentam três componentes essenciais em sua concepção: o destino especial, que reúne algumas das melhores experiências de mobilização comunitária no Brasil, possibilitando conhecer e conviver de maneira simples e direta com as pessoas que fizeram esse processo se tornar realidade; o visitante especial, que busca um tipo de turismo diferente, optando por uma viagem mais simples, mas que lhe possibilite conhecer verdadeiramente o modo de vida da comunidade e a realidade local; a viagem especial, estabelecida pelo Projeto Bagagem, abrindo espaço para que o melhor lado de cada um se sobressaia dentro do grupo, fortalecendo os valores de cooperação, colaboração, flexibilidade e criando uma relação de confiança com as ONG parceiras e membros das comunidades. O elemento principal do turismo comunitário é ter a gestão do negócio nas mãos da comunidade. A visita não é parte de um pacote com 'cara social', a comunidade é, sim, a dona do negócio e não apenas atração. A renda é dividida com as associações comunitárias, que decidem onde aplicar o recurso, num caixa para saúde, numa festa, na formação de guias. (Cecília Zanotti, 2007) A programação dos roteiros e definição das atividades são feitas com as comunidades, a partir do que os moradores identificam como riquezas a serem compartilhadas. Busca-se agregar ao pacote turístico, produtos artesanais confeccionados pelas comunidades e pela ONG parceira, dando identidade ao roteiro e gerando outra alternativa de renda. A gestão inicial é organizada do começo da atividade, de acordo com as avaliações dos turistas, da comunidade e do Núcleo de Jovens, que será explicado na seqüência. A metodologia de turismo comunitário criada pelo Projeto Bagagem baseia-se em alguns preceitos: Turismo da comunidade, sendo ela o foco na criação dos roteiros, assim como na gestão coletiva; Turismo para a comunidade, principal beneficiária da atividade turística, que existe para o desenvolvimento e fortalecimento da Associação Comunitária; Atração Principal = Seu Modo de Vida, sua forma de organização, os projetos sociais lá existentes, as formas de mobilização comunitária, tradição cultural e atividades econômicas; Partilha Cultural, as atividades são criadas para proporcionar o intercâmbio cultural. Não há 75 apresentações das manifestações de cultura popular e sim atividades que fazem parte do cotidiano da comunidade, e que o turista vivencia de forma natural, reconhecendo o valor dos mestres da cultura oral no turismo e proporcionando uma reflexão sobre a própria identidade cultural do visitante. E no que tange à localidade, os princípios são: Conservação Ambiental, respeitando as normas de conservação da região e procurando gerar o menor impacto possível com o turismo; Transparência no uso dos recursos, a comunidade e os visitantes recebem uma planilha de custos bem explicada, com a distribuição justa dos recursos financeiros34; Parceria Social com Agências de Turismo, buscando envolver todos os elos da cadeia do turismo no benefício das comunidades35. Enfatiza Cecilia: “A gente acredita que todo brasileiro deveria conhecer esses projetos. Nós ficamos muito encantadas com os lugares e os projetos desenvolvidos pelas ONG, mas queríamos contribuir de alguma forma para o desenvolvimento das comunidades”36. A idealização pretendida pelo Projeto Bagagem é exemplificada na ilustração a seguir: Fonte: Projeto Bagagem37 A ilustração mostra suas três linhas de atuação, que objetiva fortalecer a rede de turismo comunitário no país, sempre em parceria com Núcleos de Jovens Locais das ONGs parceiras, que são elas: 34 Exemplo de planilha de custos explicativas fornecida aos turistas, anexo 1. Conceitos encontrados no site do Projeto Bagagem e nos textos indicados por eles e mencionados no link Turismo Comunitário. www.projetobagagem.org 36 Em entrevista concedida ao Portal Aprendiz Uol, 14/07/2007. Acesso em 11/07/2009. http://portalaprendiz.uol.com.br 37 Disponível em www.projetobagagem.org 35 76 1. Rede de Destinos de Turismo Comunitário Com os roteiros já estabelecidos no país, que atualmente são: Amazônia Ribeirinha, em parceria com a ONG Projeto Saúde e Alegria, de Santarém no Pará; Gurupá Terra das Águas, em parceria com o Instituto Gurupá, também no Pará; Conexões Caiçaras, em parceria com a Cooperguará Ecotur de Guaraqueçaba e com a SPVS em Curitiba; Baixada e Lençóis Maranhenses, em parceria com o Instituto Formação, no Maranhão; e as Trilhas Griôs, em parceria com a ONG Grãos de Luz e Griô, de Lençóis na Bahia38, a qual nos deteremos mais detalhadamente adiante. 2. Rede de Comercialização Em parceria com agências de turismo e cooperativas de turismo sustentável nacionais e internacionais, universidades ou organizações interessadas em apoiar a iniciativa, divulgar os roteiros e formar grupos de visitantes. 3. Rede de Saberes Uma rede que busca sistematizar e divulgar as metodologias e roteiros bem sucedidos no turismo comunitário, e disseminar este modelo de turismo junto ao governo, entidades sem fins lucrativos e comunidades. Outro diferencial do Projeto Bagagem é a criação dos Núcleos de Jovens Locais de Turismo de Base Comunitária, ponto estratégico na disseminação da metodologia do projeto e na criação de novos destinos no Brasil. Eles são os responsáveis pela gestão dos roteiros turísticos em sua localidade, em parceria com as comunidades, propiciando uma alternativa profissional sustentável aos jovens já atendidos pelas organizações não governamentais. A criação de Núcleos de Jovens de Turismo de Base Comunitária é um processo de fortalecimento da identidade do jovem que reconhece sua história e as potencialidades do seu cotidiano para contar aos visitantes. Ao mesmo tempo, é um processo de empoderamento dos jovens e das associações comunitárias locais, focado na geração de renda por meio de uma maneira diferente de fazer turismo. (Líllian Pacheco, 2007). 38 Novos destinos citados em palestra proferida durante o III Encontro de Planejamento da Ação Griô Nacional, ocorrido de 17 a 22 de abril de 2009 na cidade de Lençóis, Bahia, a qual a autora estava presente. 77 A capacitação desses jovens locais inclui viagens para roteiros de turismo de base comunitária já estruturados, criação das regras de gerenciamento e distribuição da renda gerada com as viagens, além de pesquisas sobre o potencial local, focado nas riquezas culturais e naturais. Os jovens ensaiam os roteiros previamente, identificando as dificuldades e facilidades no recebimento dos grupos e na condução das viagens. Também produzem fotos e vídeos para ilustração dos folders e banners de divulgação, assim como para vinculação na internet. O projeto ainda prevê atividades de troca cultural entre turistas e a ONG parceira da comunidade, incluindo nos roteiros, uma visita à instituição. Esse processo de aprendizagem acontece de forma bem prática, pois o primeiro grupo de visitantes a inaugurar o roteiro estabelecido ocorre nos primeiros seis meses de formação. Entretanto, no início da atividade, os jovens contam com o apoio do pessoal do Projeto Bagagem, que deixam a localidade e o projeto implantado dentro de um a dois anos, passando a gestão e gerência dos roteiros para o núcleo de jovens já capacitados. A capacitação dos moradores para o gerenciamento da atividade turística e seus empreendimentos familiares, assim como investimentos em infra-estrutura de apoio, só ocorre após certo tempo de amadurecimento da atividade nas comunidades. Nos primeiros meses, fortalecem-se as relações de confiança e consolidação entre o projeto bagagem e a comunidade, com intermédio da ONG parceira. Após esse tempo, discutem-se coletivamente as melhorias que poderiam ser implantadas para atender aos turistas e ao mesmo tempo, beneficiar a comunidade. No entanto, é importante frisar que o beneficio financeiro gerado pelo turismo de base comunitária não atinge uma comunidade inteira; apenas aqueles que participam diretamente da proposta. Segundo ressalta Zanotti (2007) “Não adianta achar que o turismo vai beneficiar todo mundo, inclusive quem não participa, até porque a renda do turismo comunitário, na maioria dos projetos do Brasil, ainda é pouca”. Existem turistas nacionais e estrangeiros interessados em viajar nesse modelo de turismo, que se desenvolve também na África e na América Latina. A Bolívia já tem uma política de turismo comunitário há alguns anos, e no Brasil, existem cerca de 20 projetos similares já implantados por outras comunidades. Em uma palestra proferida durante o III Encontro de Planejamento da Ação Griô Nacional, ocorrido em abril de 2009, na cidade de Lençóis, Cecília Zanotti relatou uma nova parceria do Projeto Bagagem e seu Turismo Comunitário, com o Ministério do Turismo. Eu estava presente neste encontro, e transcrevo abaixo a fala da idealizadora do projeto: 78 “O Ministério do Turismo não tinha uma ação efetiva de turismo comunitário. Em reunião com o projeto bagagem e mais dois parceiros, saiu a proposta de lançar um edital de seleção pública, para escolher de 10 a 15 projetos de turismo de base comunitária no país, pensando que receberiam em torno de 100 inscrições. No entanto, o Ministério recebeu 520 propostas e resolveram assim aprovar 50 projetos, devido ao número de inscritos. O Grãos de Luz e Griô, o Projeto Bagagem e mais cinco parceiros foram aprovados entre os 25 primeiros. Esses seis projetos inscreveram propostas já articulados em rede. Assim com a rede da Ação Griô Nacional, e tentando um turismo comunitário integrado, há muitas chances de conseguirmos avançar para difusão do turismo comunitário, no fomento de políticas públicas voltadas para este segmento, mostrando uma alternativa de turismo diferenciada, que inclua o aspecto cultural e outras formas de convivência”. (Grifos Meus) A iniciativa deste modelo de turismo de base comunitária, aos poucos, caminha e se difunde no território brasileiro, assim como caminha a Ação Griô Nacional, seus mestres, griôs e griôs aprendizes, ambos costurando redes articuladas e mobilizadas que acreditam em mudanças possíveis em prol de um Brasil melhor socialmente, economicamente e culturalmente. 4.4 - As Trilhas Griô As fundadoras da Associação Projeto Bagagem pensavam em iniciar suas idéias de turismo de base comunitária em uma cidade que já era consolidada como destino turístico, porém que não se encontrasse estagnada, ou em processo de declínio da atividade. Depois de pesquisas, em novembro de 2005, chegaram à cidade de Lençóis, na Chapada Diamantina, Bahia, para conhecer o trabalho da Associação Grãos de Luz e Griô in loco. Após participar das oficinas Grãos de Luz, das vivencias de tradição oral e dos grupos cooperativos, Cecília Zanotti encantou-se com o trabalho desenvolvido pela ONG e explanou os objetivos do Projeto Bagagem, propondo a parceria para a criação de um turismo de base comunitária nas redondezas de Lençóis. Em pouco tempo, mudou-se com a família para iniciar o trabalho de criação, estruturação e implantação de um turismo de base comunitária com a participação dos jovens locais. Em depoimento ao programa Monumenta39, Cecília aponta seu encantamento com a proposta cultural da Associação Grãos de Luz e Griô: Passei cinco dias participando das vivências junto com um grupo de jovens da ONG. Em um sábado, fizemos atividades das 8 horas da manhã até às 6 horas da tarde. Algo muito forte. Muitas rodas, danças, exercícios em grupo e expressão de 39 Cartilha publicada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), dentro do Programa Monumenta e sua coleção Patrimônio e Desenvolvimento: Chapada Diamantina – Lençóis, numero 11. 79 sentimentos sob variadas formas. Acabaram-se os cinco dias e eu já não queria só organizar um roteiro de viagem. Então disse à Líllian que também queria ser educadora em Lençóis e que criássemos uma oficina de turismo de base comunitária. (BRASIL, 2007, p. 16) Em sua proposta de oficina de formação em turismo de base comunitária, os jovens ajudariam a construir as trilhas, participando de todas as etapas: Em vez de eu vir até aqui planejar com as comunidades e depois trazer um grupo turistas, teríamos uma ação muito mais abrangente. Juntaríamos a pedagogia griô, de trabalhar a história de vida desses jovens e que busca valorizar a cultura afrobrasileira com a qual o visitante vai ter contato, com a metodologia do Projeto Bagagem de criação de roteiros. (BRASIL, 2008, p. 17) Assim, em parceria com a Associação Grãos de Luz e Griô, o Projeto Bagagem instituiu e estruturou as primeiras Trilhas Griô de Turismo de Base Comunitária no Brasil, entre os anos de 2006 a 2008. Envolvendo três comunidades rurais de diferentes características de Lençóis: Remanso, Iuna e Capivara, as trilhas griô objetivam gerar renda e proporcionar um turismo diferenciado, pautado no contato com afrodescendentes e mestres de saberes e fazeres de tradição oral locais, tais como sanfoneiros, parteiras, garimpeiros, pais de santo, pescadores e contadores de história. Instituiu-se o Núcleo de Jovens locais - Grupo Calumbé40, formado por três jovens Roseane Bernardo, Maíza Sousa e Marilane Freitas, que gerenciam a atividade turística em parceria com as comunidades, despertando-lhes a valorização do espaço em que vivem e sua cultura. Elas organizam a produção da viagem, recebem os grupos de visitantes, conduzem reuniões de acompanhamento com as comunidades, participam de eventos na região, e de encontros de formação de jovens em turismo de base comunitária de outras ONG e Pontos de Cultura. As trilhas temáticas são feitas em pacotes de dois dias (Trilha Griô do Quilombo, Trilha Griô das Ciências Tradicionais e Quilombo e Trilha Griô da Afrodescendência) e de um dia (Trilha Griô do Garimpo). Em cada uma delas, há todo um preparo especial, para que o visitante se sinta integrado ao local. Cortejos, apresentações culturais locais, presença de mestres, rodas de conversas, danças, banho de rio e cachoeiras são alguns dos atrativos que estão impregnados do forte universo cultural que invoca a tradição dos povos. Os pacotes turísticos incluem o roteiro do passeio, brindes que são confeccionados pela comunidade e entregues durante as trilhas, vivências culturais, cortejo com mestres de 40 Calumbé, nome escolhido pelo grupo, é uma espécie de vasilha de madeira usada pelos garimpeiros para transportar o cascalho a ser lavado em busca do diamante. A escolha do nome faz referência a figura central da historia da Chapada Diamantina, o garimpeiro, sendo os jovens filhos ou netos de garimpeiros da região. 80 tradição oral, hospedagem nas casas dos moradores, alimentação fornecida pela comunidade e troca de experiências e aprendizagem com os mestres e seus saberes. O preço estipulado prevê gastos fixos e benefícios às comunidades, como aponta Maíza Sousa: "Dentro do pacote, há uma parte que é destinada para as associações das comunidades. Elas gerenciam o dinheiro para a construção de escolas, praças, atendendo a demanda dos moradores"41. Em contrapartida, os turistas vivenciam outro tipo de turismo, voltado ao ser humano, na convivência entre as pessoas e na transmissão de conhecimentos populares. "Os turistas que chegam aqui conhecem de perto a comunidade, seus valores, vivenciam uma outra forma de conhecer lugares", relata Roseane Bernardo42. As Trilhas Griôs de Lençóis, roteiros de educação, cultura oral e turismo comunitário serviram como inspiração para a criação de cinco novas trilhas na Bahia e em Pernambuco. Aprovado pelo Programa Monumenta, os pontos de cultura Nação Xambá e Cais do Parto de Olinda, Fundação Pierre Verger e Terra Mirim de Salvador, Simões Filho e o Conselho Quilombola de Cachoeira, em parceria com o Ibens (Instituto Brasileiro de Educação em Negócios Sustentáveis) 43, participaram de vivências em Lençóis e tiveram suas primeiras trilhas avaliadas, que em breve, estarão prontas para receber turistas. 4.5 - Trilha Griô do Quilombo – Comunidade do Remanso A fim de buscar experiências diferenciadas em turismo de base comunitária, e realizar uma pesquisa participativa-observante para a elaboração deste Trabalho de Conclusão de Curso, realizei uma das trilhas griô,44 da cidade de Lençóis, em marco de 2009. Na época, contamos com a companhia de uma alemã, que visitava o Brasil, pela primeira vez, e também tinha interesse em ver, sentir e entender o país através do contato com o povo e sua cultura. 41 Relato obtido durante a visita da autora a instituição, em marco de 2009. Depoimento extraído da cartilha do programa monumenta. IPHAN, 2008, p. 19. 43 Organização não governamental que desenvolve negócios sustentáveis em comunidades tradicionais. 44 Programação da trilha recebida pelo Núcleo de Jovens em anexo. 42 81 No mesmo momento, duas representantes do Pontão Instituto Pólis45, de São Paulo, estavam em Lençóis para disseminar um dos focos da entidade, o Pontão de Cultura Convivência e Cultura de Paz, assim como vivenciar as praticas pedagógicas da Associação Grãos de Luz e Griô. Logo, fizemos todas juntas a Trilha Griô do Quilombo, na comunidade quilombola do Remanso. Vivencia Griô com as crianças da entidade (Foto Monumenta IPHAN) Saímos de manhã de carro da Associação Grãos de Luz e Griô, acompanhados por Marilane Freitas, mais conhecida como Lane, da cooperativa de turismo de base comunitária; e Delvan, jovem da equipe de comunicação da Associação, nascido na comunidade, onde sua família ainda vive. Associação Grãos de Luz e Griô – (Foto da autora) Ao chegarmos, o mestre sanfoneiro Sr. Aurino, griô de tradição oral Robertinho e a griô aprendiz Eniele Santos, aguardavam-nos à porta da casa de Jaré de Dona Juanita. Fomos apresentados e recebidos por cantigas do mestre Aurino, que relata: “Ser mestre griô é referenciar as pessoas das comunidades. Quem faz eu ser mestre são as pessoas, e não eu mesmo. Desde criança, realizo trabalho com minha cultura, gostaria que todas as crianças gostassem de fazer este trabalho um dia.” Mestre Aurino – (Foto Monumenta Iphan) 45 Mais informações, ver www.convivenciaepaz.org.br 82 Seguimos em caminhada, sob um forte sol quente baiano, pelas ruas de barro batido. Não sabíamos aonde íamos, porém a música fácil de ser repetida nos levava em harmonia por aquele vilarejo que parecia haver parado no tempo. Casas simples, a maioria de sapé, algumas de alvenaria. Comunidade do Remanso - (Foto da autora) Todas pequenas e baixas, sem portões ou identificação. Poucas pessoas nas ruas, as que estavam, abrigavam-se em sombras de árvores, e trabalhavam tecendo redes de pesca, que posteriormente aprenderíamos a fazer. Caminhamos, cantando em direção a uma construção que, de longe, parecia um galpão. Surgem rostos infantis nas janelas e percebemos ser a escola da comunidade. A agitação é perceptível desde fora, e eles já começam a cantar, acompanhando a música. Adentramos o portão, e todos saem das salas, e já formam uma grande roda, acompanhados pelas professoras. A música pára e a griô aprendiz Eniele Santos toma a frente e começa a liderar uma prática da pedagogia griô com as crianças. Ela entoa uma ciranda e todos dançamos em roda, de mãos dadas. Enile entoando musicas com as crianças (Foto da autora) 83 Curioso perceber que todas as crianças, com idades entre sete a dez anos, são negras. Apenas uma das professoras e seu filho, que é aluno na escola, são brancos. Percebemos ali o que é estar num remanescente quilombola isolado da cidade, que mantém suas tradições e origens, com pouca miscigenação racial. Da ciranda, Eniele inicia um samba de roda, manifestação típica do Recôncavo Baiano, e na seqüência, uma das crianças entoa uma música espontaneamente. É a pedagogia griô funcionando, transmitindo os conhecimentos de tradição oral que já surgem na oralidade das novas gerações. Vivenciamos com mestre Aurino, a sua história de vida, como começou a tocar sanfona e de onde aprendeu as canções. As crianças escutam atentas, sentadas em roda, assim como nós. Mestre Aurino contando sua historia de vida (Foto da autora) Em seguida, Eniele conta uma história sobre uma orixá africana – Euá, que marca o encontro do rio com o mar e na África, pode-se encontrar, ainda hoje, um rio com seu nome. Todas as histórias e cantigas transmitidas por Eniele são iniciadas com a menção de quem lhe ensinou, referenciando seus mestres. 84 Cortejo pela comunidade – (Foto da autora) Robertinho, griô de tradição oral, também conta um pouco de sua história de vida e a vivência da pedagogia griô termina com uma canção de despedida, que considero reflexo de tudo aquilo que vivemos ali, e do que a pedagogia griô e a Ação Griô Nacional propõe: “Na minha chegada, o povo ri. E quando eu sair, tem alguém que chora. Minha senhora, não chore não. Me dê a mão, que eu tô indo embora”. Nesse embalo saudoso, saímos da escola em direção à pousada Bracinho domiciliar e sua do Sr. esposa, Zé Dona Lourdes. Muita comida típica e saborosa para o almoço, além de camas bem feitas, nos aguardavam. Após o almoço, seguimos para casa de Dona Dominga, agricultora e pescadora que com seu trabalho, criou os cinco filhos sozinha. Pousada Domiciliar do Sr. Bracinho – (Foto da autora) No quintal de sua casa de sapé, embaixo de uma mangueira, sentamos em esteiras de palha, para aprender a tecer o maio, nome dado à rede de pesca que eles fabricam manualmente. E ao mesmo tempo, Robertinho chega com muito cipó, para nos ensinar a fazer vasos e peças decorativas. Dona Dominga tecendo o Maio – (Foto da autora) 85 Robertinho ensinando a confeccionar objetos de cipó (Foto da autora) Escutando suas histórias de vida, aprendendo no convívio e conversando, passamos boa parte da tarde a exercitar as mãos com criatividade e destreza. Ao final, tudo que produzimos fica para nós mesmos, assim como alguns presentes de suas artes, dados por eles. Eu saio de lá com um vaso de cipó pequeno que fiz, e outro bem grande dado por Robertinho, sem nem saber como o trarei para casa, mas isso é o menos importante diante da demonstração de afeto que criamos em pouco tempo. Coisa de brasileiro, de gente boa, de coração aberto a vivências e trocas culturais. Seguimos com ele, para um passeio de barco pelo rio que margeia a comunidade. Divididas em duas canoas, fomos rio adentro por cerca de duas horas, enquanto eles explicam a natureza ao redor, contam histórias da origem da comunidade e nos mostram as redes de pesca, que acabamos de aprender a tecer, escondidas nas águas do rio. Passeio de barco – (Foto da autora) Forro com a comunidade – (Foto da autora) À noite, ainda temos a quadrilha improvisada, pois o São João estava quase chegando, e ouvimos forró pé de serra na associação de moradores da comunidade, onde há a presença de crianças, adolescentes e mais velhos, numa grande festa feita por eles, assim como para eles. A festa que geralmente fazem nos fins de semana para se divertirem. Dançamos a noite 86 toda, e interagimos naturalmente com os outros moradores e jovens da comunidade. No segundo dia, fomos levados à casa de Dona Judite, conhecedora das ervas medicinais. Ela nos mostra inúmeros saquinhos de ervas, identificados com seus nomes, e nos leva à cozinha, onde um fogão a lenha espera a feitura do xarope natural46. Aprendemos como fazê-lo e passamos a manhã toda a conversar com Dona Judite, que conta muitas histórias já acontecidas na comunidade. Dona Judite preparando o xarope – (Foto da autora) Após o almoço, despedimos-nos da comunidade e regressamos a Lençóis, para a casa do Sr. Cori, no centro histórico da cidade. Aos 81 anos, porém plenamente lúcido e cheio de histórias de garimpeiros para contar, Sr. Cori nos leva ao pequeno museu que construiu com peças do garimpo que, por 65 anos, foi o único trabalho que realizou e sustentou sua família. Museu do Garimpo do Sr. Cori – (Foto da autora) Explicações das peças, misturadas a lembranças pessoais quanto a elas, Sr. Cori ainda nos mostra como costumava encontrar os diamantes no meio dos cascalhos. Ele joga dois diamantes na água e com peneiras de diâmetros diferentes, vai ensinando como eles identificavam a localização do diamante e todo o processo necessário para achá-los. Nem a idade avançada e os olhos cansados enganam Sr. Cori, que é o único, entre nós todos, a conseguir encontrar os diamantes novamente em meio a tantos cascalhos. 46 Em alguns estados do Brasil, este xarope também é chamado de Lambedor. 87 Despedimos-nos do Sr. Cori, com o pesar da experiência já ter chegado ao fim. Ficam os ensinamentos, as conversas e os momentos de interação com aquela comunidade tradicional quilombola, escondida na zona rural de Lençóis. E a certeza de que o preço que pagamos para realizar a trilha não se compara à aprendizagem vivida, ao beneficio cultural e ao contato pessoal que tivemos com mestres de tradição oral e pessoas singulares e diferentes do nosso cotidiano, que ficarão guardadas em nossa memória. Sr. Cori em busca dos diamantes (Foto da autora) 88 6. - CONSIDERAÇÕS FINAIS O momento político atual apresenta mudanças conceituais e estruturais que figuram como um movimento de redemocratização política no Brasil. O diálogo entre a sociedade civil e os governantes, em algumas instâncias, tem estreitado e proporcionado políticas públicas efetivas em determinados setores do país. Neste estudo, focalizamos exemplos de políticas de cultura, educação e turismo, e a maneira pela qual estes exemplos foram intersetorializados, a partir da Ação Griô. Com estas mudanças, novos desafios surgiram, assim como possibilidades de atuação governamental em setores antes não atingidos pela política. A inclusão de ações específicas, para o segmento das culturas populares e do turismo de base comunitária, em conformidade e trabalho conjunto com o terceiro setor, comprovam uma nova mentalidade política de beneficio às camadas sociais menos favorecidas economicamente, porém extremamente ricas culturalmente. A participação da sociedade civil organizada, como proponente de ações culturais e sociais, nos programas de governo, assim como o reconhecimento deste às iniciativas bem desenvolvidas, mostra uma abertura política de incorporação e de trabalho conjunto em prol da cidadania, o que comprova um avanço no processo de redemocratização brasileira. Entretanto, por ser pioneiro, esse movimento atual esbarra em burocracias intergovernamentais, que atrasam projetos impulsionantes de políticas públicas direcionadas e mais efetivas. Porém, aos poucos, os convênios, repasses de recursos e tramites burocráticos estão sendo superados, com persistência, perseverança e muito diálogo. Mestres da cultura popular, ou dos saberes e fazeres de tradição oral nunca foram antes lembrados e assistidos em políticas de governo. Tampouco tiveram um reconhecimento de sua importância cultural, social, educacional e até mesmo econômica, bem como uma proposta de turismo que os envolva diretamente como principal motivo da viagem. Pela primeira vez, esses mestres, contemplados pela Ação Griô, estão orgulhosos de seus ofícios, que sempre fizeram durante a vida toda, mesmo diante da pouca valorização da sociedade e do governo na história do país. Vô Aerson, mestre de tradição oral do Ponto de Cultura da Rocinha, no Rio de Janeiro, relata seu sentimento: “A minha mãe um dia me disse que eu seria respeitado por aquilo que eu faço, por aquilo que eu sou. Esse dia chegou.” (PACHECO & CAIRES, 2009, p. 38). Depoimentos como este elucidam a importância de se valorizar o ser humano e a essência de cada um acima de qualquer outro interesse. Aprender as ciências da vida oralmente, os conhecimentos populares que não se encontram nas disciplinas escolares, ver 89 beleza e sabedoria nas coisas simples e, acima de tudo, reconhecer e despertar o sentimento de afeto e semelhança entre todas as pessoas é o objetivo da Ação Griô. Uma iniciativa emocionante que promove o reencontro das pessoas com elas mesmas, com suas identidades interiores e com outras pessoas, numa grande Roda da Vida e dos saberes orais fundamentalmente humanos. Nessa mesma proposta, as Trilhas Griô de Turismo de Base Comunitária promovem esse encontro intergeracional, enriquecendo os turistas culturalmente e propiciando momentos singulares de contato humano que superam as expectativas focadas apenas nos destinos turísticos. A idéia dessas trilhas é incentivar o intercambio cultural e a vivência em comunidades tradicionais, porém focando-se em seus membros e não na aparência visual destas comunidades. É promover a possibilidade de identificação cultural e reencontro com o ser e suas origens através da aprendizagem de saberes contidos nas memórias dos mestres e griôs brasileiros. Na expansão do projeto inicial da Associação Grãos de Luz e Griô, em âmbito nacional, a Ação Griô consegue articular uma rede atual de 130 organizações em todas as regiões do país. A rápida capilaridade e a aceitação da proposta de um diálogo entre a tradição oral e a educação formal nas escolas, demonstra a lacuna que havia nas políticas públicas do país, referente à valorização da tradição oral no processo educacional e no fomento a redes de transmissão destes saberes. A proposta conseguiu agregar novos conceitos, e atingir uma camada da sociedade que não era contemplada pelos programas do Governo. Da mesma forma, o modelo de turismo de base comunitária, focado nas comunidades tradicionais, proposto pela Associação Projeto Bagagem e incorporado às políticas do Ministério do Turismo, vem dar credibilidade e confiança às iniciativas hesitosas apresentadas pelo terceiro setor, evidenciando ainda uma abertura política de diálogo com a sociedade e o reconhecimento institucional, quanto à ausência de políticas que contemplassem toda a gama de possibilidades turísticas no Brasil. A consolidação e expansão da Ação Griô, nos moldes de gestão compartilhada entre governo e sociedade civil organizada, possibilitou maior abrangência e facilidade de acesso ao seu público alvo: instituições da sociedade civil, pessoas e comunidades de tradição oral, alunos e educadores. Esse fato pode trazer novas perspectivas acerca da valorização do Patrimônio Imaterial, com vias à transmissão desses saberes de tradição oral às próximas gerações, afirmando a identidade e ancestralidade brasileira com muito orgulho e referências vivas. Assim, pode propiciar um avanço nos modelos de implantação do turismo no país, através de propostas que privilegiem a cultura brasileira e as comunidades tradicionais, 90 posicionando-se em grau de paridade com os outros segmentos turísticos já mais desenvolvidos e vinculados à imagem do Brasil. A formulação do conceito de cultura, nas premissas da Ação Griô Nacional, passa fortemente pelo universo simbólico, contido nas culturas populares de tradição oral, principalmente as de matrizes indígenas e africanas, que foram sempre colocadas à margem do sistema educacional brasileiro. Nessa reconstrução de conceitos, estes saberes são valorizados e apresentados por seus mestres e griôs através da oralidade. O modelo de transversalidade e integração das ações e práticas pedagógicas, já desenvolvidas pelas escolas, procura promover práticas de articulação comunitária, sendo as Trilhas Griô um exemplo dessa prática. Apesar de apresentar possibilidades viáveis de execução e resultados positivos já implantados no Brasil, o ineditismo e a ousadia da Ação Griô Nacional, que congrega os setores da educação e da cultura, ainda esbarra em limites conceituais e estruturais. Transformar os modelos vigentes da educação e construir uma pedagogia baseada na roda, com cantigas, danças e interações entre as pessoas de diferentes gerações, de maneira a permitir e instigar os estudantes à livre expressão, livrando-os das amarras comportamentais exigidas normalmente em salas de aula, é uma desconstrução difícil, visto que os paradigmas educacionais vigentes têm uma longa história de exclusão social e cultural no país. Educadores, mestres, griôs, aprendizes e militantes da Ação Griô, aos poucos, tentam transpor estes limites estruturais e conceituais. Proferimos ditos populares, prestigiamos as festas, danças e manifestações culturais em todo país, sem nos darmos conta de como são importantes, como valores e comportamentos enraizados em nosso ser e que, portanto, deveriam fazer parte das práticas escolares. Pensar e agir no reconhecimento desses conhecimentos para as próximas gerações dentro do processo educacional, assim como fomentar roteiros turísticos, focados em comunidades tradicionais, oferecendo uma alternativa diferenciada de turismo, que inclui as iniciativas do terceiro setor e os mestres de saberes de tradição oral como atrativos principais, são atos de coragem e respeito com nossa ancestralidade. Com isso, agrega-se valor cultural, social e econômico às comunidades, ampliando as possibilidades de promoção da cidadania e contribuindo para a construção de um Brasil democrático, de fato. 91 7. - REFERÊNCIAS ALMEIDA, Jose Roberto Pires. Instrução pública no Brasil (1500-1889). In Revista Brasileira de Educação (mai-ago). n. 014. Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação. São Paulo. 2000, p. 189-191. ANSARAH, Marília Gomes dos Reis. Turismo Segmentação de Mercado. São Paulo: Futura, 2000. ARAÚJO, Walkiria Toledo (org). Cultura Local: Discursos e Práticas. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2000. AYALLA, Marcos, AYALLA, Maria Ignez Novais. Cultura Popular no Brasil. 2ed. São Paulo: Ática, 1985. (Série Princípios, Perspectiva de Análise). BARRETO, M. Turismo e Legado Cultural: as possibilidades do planejamento. Campinas, SP: Papirus, 2006. BARROS, Jose Marcio. Diversidade Cultural: Da proteção à promoção. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. 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Projeto Bagagem de Turismo de Base Comunitária. Disponível em <http://aprendiz.uol.com.br/content/driroswepr.mmp>. Acesso em 11 jul. 2009. 98 ANEXOS 1) 99 2) Roteiro da Trilha Griô do Quilombo - 2 dias Dia 1 – 25/03/2009 8:30h Traslado do Grãos de Luz e Griô para comunidade do Remanso 9:30h Cortejo com jogos de verso e cantigas da região com jovens do Grãos de Luz e Griô e mestres da comunidade. 9:50h Visita a casa de Jaré de Dona Juanita 10:00h Vivência da pedagogia Griô em frente a casa de Sr. Aurino, mestre sanfoneiro da Comunidade do Remanso 12:00h Almoço e descanso nas pousadas familiares. 14:00h Vivência de tradição oral: Maio, muzuá e rede de pesca com Dona Dominga e Robertinho; Pesca e passeio de canoa com Robertinho. 17:00h Banho, descanso e jantar na pousada familiar 19:00h Noite cultural - troca de saberes entre a comunidade e os visitantes. Forró e quadrilha com Mestre Aurino, sanfoneiro 22:00h Pernoite nas pousadas domiciliares quilombolas Dia 2 - 26/03/2009 7:00h Café da manhã com comidas típicas na pousada familiar 8:00h Vivência de fabricação de remédio com ervas naturais (xarope), com Dona Judite. 12:00h Almoço nas pousadas familiares 14:00h Vivência com o Sr. Cori, antigo garimpeiro que montou um pequeno museu no quintal de sua casa, e uma simulação do garimpo de diamantes 15:00h Despedida 100 3) Roteiro da Trilha Griô das Ciências Tradicionais e Quilombo – 2 dias Vivência no Grãos de Luz e Griô Almoço na sede do grãos Translado para comunidade da Iuna Roda de conversa e uma vivência na casa de dona Jovita parteira, sobre a ciência do parto tradicional. Ida para casa da família Maia para ver apresentação do samba de roda. Translado para Comunidade do Remanso com pernoite. 4) Roteiro da Trilha Griô do Garimpo - 1 dia das 9:00 as 15:00h Vivência com cantigas, danças, histórias e mitos sobre o Garimpo no Grãos de Luz e Griô. Visita ao museu de Sr.Cori, garimpeiro que montou no quintal da sua casa uma simulação do garimpo manual de diamantes, com roda de música, contaçao de sua de vida Visita as cachoeiras do Serrano e Tocas, visita ao salão de areias coloridas para fazer uma pequena vivência e banho de rio. 5) Roteiro da Trilha Griô da Afrodescendência - 2 dias Dia 1 Translado para comunidade da capivara Montagem das barracas de camping Banho de rio no Poção do Rio Capivara Almoço e descanso Visita á casa Palácio de Ogum e Caboclo Sete Serras para conhecer a história do Jarê, variante do Candomblé presente apenas na Chapada Diamantina e a história de Pedro de Laura, importante pai de santo de Lençóis Passeio pela região Pernoite nas barracas e no palácio de Ogum Vivência na fogueira de cotação de história e uma dança que envolve os elementos naturais com a água, terra, ar e fogo. 101 Dia 2 Caminhada para Cachoeira do rio Capivara Almoço Retorno para Lençóis 102 6) Cordel de Lançamento da Ação Griô Nacional 7) Brochura distribuída aos projetos pertencentes à Ação Griô Nacional e aos potenciais. 103 8) Folder de Programação do III Encontro de Planejamento da Ação Griô Nacional 104 9) Livro Pedagogia Griô: A Reinvenção da Roda da Vida, 2006. 10) Livro Nação Griô: O Parto Mítico da Identidade do Povo Brasileiro, 2009.