Fleck versus Carnap
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Fleck versus Carnap
1 Fleck versus Carnap: Linguagem e Ciência Fleck versus Carnap: Language and Science Fernanda Schiavo Nogueira1 Mestranda do Departamento de História Universidade Federal de Minas Gerais [email protected] [email protected] No presente trabalho, pretendemos apresentar resultados parciais da investigação sobre questão fundamental para o entendimento da conflituosa convivência mantida entre o pensador polonês, Ludwik Fleck, com a corrente de pensamento dominante no contexto de produção de sua teoria da ciência, o Círculo de Viena, mais especificamente, com um dos integrantes do movimento, Rudolf Carnap. Nesse texto, buscaremos avaliar quais as possíveis divergências existentes entre os pontos de vista desenvolvidos, tanto por Fleck, quanto por Carnap, a respeito de objeto de estudo em comum, as correlações mantidas entre linguagem/mundo, estabelecidas na ciência. Para o cumprimento dos objetivos propostos, realizaremos o mapeamento do tratamento dado à problemática, com base na utilização exclusiva das informações obtidas na leitura de obras publicadas pelos dois pensadores, Fleck e Carnap, em especial, Gênese e desenvolvimento de um fato científico e A estrutura lógica do mundo, o Aufbau, respectivamente. Palavras-chave: Ludwik Fleck, Rudolf Carnap, linguagem In this work, we intend to present partial results of research on the fundamental question for understanding the conflicting coexistence maintained between the polish thinker, Ludwik Fleck, with the dominant current of thought in the context of production of his theory of science, the Vienna Circle, more specifically, with the one of the members of the movement, Rudolf Carnap. In this text, we evaluate the possible 1 Agradecemos ao CNPq, pela bolsa concedida para o desenvolvimento da presente pesquisa, ao Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé, meu orientador, pelas críticas e sugestões dadas, após a leitura atenciosa do texto. E, ao Prof. Dr. Carlos Alvarez Maia, pelo debate estabelecido sobre o meu objeto de estudo, anteriormente a consecução do que segue. 2 differences between the points of views developed by both two thinkers, Fleck and Carnap, of the object of study in common, the correlations between language/world, established in science. To fulfill the objects presented, we realize the mapping of the attention given to the problem, based on the exclusive use of the information obtained from the readings of published works by two thinkers, Fleck and Carnap, in particular, Genesis and development of a scientific fact and The logical structure of the world, the Aufbau, respectively. Keywords: Ludwik Fleck, Rudolf Carnap, language Em Gênese e desenvolvimento de um fato científico, Fleck não visa, propriamente, articular uma teoria da linguagem voltada para a orientação da rotina de trabalho dos cientistas, como Carnap, no Aufbau. No entanto, não quer dizer que o pensador polonês ignore a importância fundamental do papel desempenhado pela linguagem na estruturação das investigações desenroladas na ciência, durante as discussões realizadas, ao longo da obra. Na realidade, Fleck desenvolve reflexões muito fecundas sobre o funcionamento das redes de significados criadas pelo cientista, subjacente à teoria da ciência, trabalhada como objeto de estudo central do livro. Para a melhor apuração das pistas fornecidas pelo pensador polonês sobre as maneiras pelas quais caracteriza as interações entre linguagem/mundo estabelecidas na ciência, cabe realizar estudo pormenorizado dos principais conceitos da obra, como, o estilo de pensamento. Em citação de Gênese e desenvolvimento de um fato científico, Fleck (2010, p.98) define: “as palavras não apresentam significado em si e recebem significado somente no contexto, em um campo de pensamento [variação, sinônima de estilo de pensamento]”. Contudo, o estilo de pensamento não constitui mera coletânea de jogos de palavras abstratos, produto da especulação de inteligências alienadas: a instância incorpora em si a “disposição para uma e não outra maneira de agir [no mundo]” (FLECK, 2010, p.110). Logo, Fleck funde, no estilo de pensamento, a criação de redes de significados com a atuação no mundo, por conseguinte, o pensador polonês possibilita a perfeita coincidência entre a linguagem e a praxe, o saber fazer do cientista. No entanto, o estilo de pensamento não remete ao esforço individual de cognição isolada, a solidão do indivíduo redobrado sobre as próprias reflexões, porque “resultado de atividade social”, da lide cotidiana do coletivo de pensamento (FLECK, 2010, p. 8182). Logo, em meio ao turbilhão da rotina de trabalho, construída em empreitada 3 conjunta, surgida da soma dos esforços mobilizados pelos cientistas, unidos em cooperação, emerge o estilo de pensamento, como rede de significados. Em Gênese e desenvolvimento de um fato cientifico, Fleck caracteriza o estilo de pensamento como rede de significados atuante no papel de instrumento concreto de intervenção no mundo, surgido na lide cotidiana do coletivo de pensamento. Aqui, a definição de estilo de pensamento distancia-se do ideal de funcionamento da linguagem da ciência, segundo defendido por Carnap, no Aufbau. Em primeiro lugar, o estilo de pensamento não atua como representação do mundo, “linguagem-espelho”, criada para refletir passivamente tudo o que os fenômenos do mundo constituem. Em segundo, o estilo de pensamento não surge de abstração, base de sustentação idealista, transcendental, fundamentos ancorados sobre ontologia absoluta, os fenômenos do mundo, os dados. No Aufbau, Carnap estabelece rígidas fronteiras de demarcação entre o que seria puramente teoria, articulação de conceitos inventados pela criatividade do cientista, do que seria puramente dado, natureza surgida de geração espontânea. Na obra, os dados constituem o substrato material da pesquisa em estado bruto, força autônoma capaz de existir independentemente das construções engendradas pelo cientista, como os conceitos – os dados funcionam como o a priori da linguagem. Contudo, Fleck, em contraposição, aponta para as deficiências do ponto de vista defendido por Carnap, no livro Gênese e desenvolvimento de um fato científico. De acordo com Fleck (2010, p. 92), os fenômenos do mundo são entidades formadas pela linguagem na observação do cientista, afinal o profissional, na rotina de trabalho, não lida propriamente com o “dado em si”, mas com “conceito da época”, fornecido pelo estilo de pensamento Ou seja, o cientista não tem acesso direto à objetividade dos fenômenos, porque o profissional realiza a abordagem do substrato material da pesquisa, norteado por redes de significados originadas no estilo de pensamento, os conceitos (FLECK, 2010, p.132). Contudo, Fleck (2010, p.145) não ignora ou anula a importância crucial dos fenômenos trabalhados em laboratório pelo cientista, pois, para o pensador polonês, a constituição do “solo firme dos fatos” consiste no “principal finalidade da ciência”. O “solo firme dos fatos” exerce “coerção sobre o pensamento do cientista”, constitui “sinal de resistência”, capaz de impor limites ao livre exercício da criatividade do profissional, situação, sem a qual, as investigações da ciência transformariam em pura 4 convenção, “arbitrariedade” (FLECK, 2010, p.142). No entanto, “não existem condições exclusivamente objetivas”, porque para determinação “do que seria fisicamente possível ou impossível”, o cientista depende do “sistema de referência do estilo de pensamento”, nas palavras de Fleck. (2010, p.98) Portanto, segundo o pensador polonês, a instância atuante como rede de significados disponibiliza diretrizes fundamentais para definição de todas as considerações articuladas pela ciência acerca da observação dos fenômenos, do que pode ser dito ou não sobre o mundo. No Aufbau, Carnap localiza as origens de todos os conceitos criados pelo cientista em núcleo duro comum, os conceitos fundamentais, conceitos originados diretamente das proposições de protocolo, consideradas a fonte de correspondência imediata com os dados. De acordo com o pensador alemão, a proposição de protocolo abrange todos enunciados, voltados para reproduzir fielmente a percepção dos fenômenos testados pelo cientista tal como ocorrem no laboratório. Contudo, Fleck, em discordância, interdita a legitimidade dos posicionamentos defendidos por Carnap, no livro Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Segundo o pensador polonês, (2010, p.139-140) a proposição de protocolo não corporifica a “descrição da observação pura”, mas “hipótese”, formulada com base em “pressupostos”. Qualquer observação do mundo registrada pelo cientista não permite a duplicação dos fenômenos do mundo: todas equivalerão à suposição formulada por olhar previamente condicionado por redes de significados do estilo de pensamento, o “ver formativo”. Na conceituação de Fleck, o “ver formativo” constitui a capacidade do cientista de identificar, imediatamente, no mundo, significados congruentes com o estilo de pensamento de onde origina, em detrimento de outros considerados incongruentes. Quando o cientista ingressa no estilo de pensamento, o profissional adquire o “ver formativo” por meio de longo treinamento, no qual vivenciará uma multiplicidade de situações diversas, onde exercitará a aplicação da habilidade em aprendizado (FLECK, 2010, p.142). Ao longo do tempo, o “ver formativo” transforma em capacidade de observação tão arraigada à lide cotidiana do cientista, que, para o profissional, a atividade pode ser repetida automaticamente, “quase [de forma] inconsciente, como a respiração”. Se caso o cientista não seguir a orientação definida pelo “ver formativo”, o profissional “age como cego [na investigação]”, caso defrontado com o substrato 5 material de pesquisa, trabalhado em laboratório, adverte Fleck, no artigo Para olhar, para ver, para saber. Do ponto de vista do pensador polonês, a “observação pura” não possibilita visualizar informações pertinentes à investigação, nos resultados obtidos dos experimentos: os dados coletados na pesquisa corresponderão a impressões confusas, não compreensíveis. Por conseguinte, no caso hipotético das proposições de protocolo corresponderem à descrição da observação pura, constituiriam terreno infértil de pesquisa, leitura de mundo capaz de conter unicamente o caos de sensações dispersas provocadas pelo contato com o fenômeno. Ora, os dados, escolhidos como objetos de estudo, ganham inteligibilidade tão somente quando vislumbrados sob o prisma de observação guiada por pressupostos, o olhar norteado pelas redes de significados do estilo de pensamento, o “ver formativo”. No Aufbau, a validade dos conhecimentos da ciência depende de pedra fundamental de onde origina a construção de todas as proposições criadas pelos cientistas, os dados – o ponto arquimédico da linguagem. A base de sustentação da ciência ancorada em proposições estruturadas sobre fundamentos absolutos transforma a teoria de linguagem da ciência, desenvolvida por Carnap, em proposta idealista metafísica. Contudo, grave contradição interna perturba o ponto de vista propugnado por Carnap. Se, por um lado, Carnap busca a purificação da linguagem da ciência da contaminação provocada pelas proposições não baseadas na observação dos dados, sob a alegação que as construções gerariam idealismos infecundos, o transcendental. Por outro lado, Carnap acaba atribuindo lugar privilegiado a presença do transcendental na constituição da linguagem da ciência, quando transforma os próprios dados em fundamentos absolutos das proposições, tipo de ontologia fundante, entidade em si idealista – metafísica. Em Gênese e desenvolvimento de um fato científico, Fleck, em contraposição, não visa à criação de fundamentos absolutos, voltados para a regulação de todas as possibilidades de interação estabelecidas entre linguagem/mundo, corporificadas no estilo de pensamento. Uma vez que o estilo de pensamento, como rede de significados, emerge de interações concretas mantidas com o mundo pela atuação conjunta dos cientistas, prescinde de qualquer base de sustentação idealista, ancorada em pontos de apoio baseados em ontologia fundante. Ora, Fleck faz questionamentos diretos à idealização vazia do Aufbau, os esforços dispendidos na “tentativa de construir o mundo a partir de “dados”, enquanto elementos últimos”, em nota de rodapé, destinada 6 especialmente a Carnap. A busca pela criação de base de sustentação ancorada em fundamentos absolutos permite a construção de uma proposta de interpretação tão insuficiente que o “próprio Carnap abandonou, por etapas, a posição” defendida, em artigo posterior ao Aufbau, intitulado Conhecimento, esclarece Fleck (2010, p.141) No entanto, em qual proporção o pensador polonês não incorreria no mesmo equívoco: os acoplamentos passivos ou ativos atuariam na condição de ontologias fundantes na estruturação do estilo de pensamento, como rede de significados? De acordo com Fleck (2010, p.50), os acoplamentos passivos abrangem tudo o que for identificado como “real”, “efetivo”, todos os processos ocorridos concretamente na investigação, “independente da escolha do cientista” – o “objetivo” . Enquanto os acoplamentos ativos abrangem tudo o que for identificado como “artefatos”, todas as teorias formuladas para interpretação do material coletado na investigação, “dependentes da escolha do cientista” – o “subjetivo” (FLECK, 2010, p. 49). Na obra, a formulação de um dos acoplamentos depende da do outro, logo as instâncias atuam condicionadas por influências recíprocas, em equilíbrio, na medida em que participam conjuntamente da constituição do estilo de pensamento (FLECK, 2010, P.50). Não existe “ordem de razões” capaz de impor a anterioridade de um acoplamento sobre o outro, nenhuma das instâncias constitui o ponto arquimédico, a fonte primordial da constituição do estilo de pensamento – a ontologia fundante. Ora, tanto os acoplamentos passivos, quanto os ativos não comportam em si essência, condição de existência imutável, capaz de perdurar ad infinitum: as instâncias poderão “trocar reciprocamente os papéis”, ao longo do tempo, do ponto de vista de Fleck. Para o pensador polonês, com o processo de evolução desencadeado, o estilo de pensamento sofre profunda “recriação”, dinâmica na qual os acoplamentos são “retrabalhados”, logo, por meio da operação, existe a possibilidade do que antes era passivo transformar em ativo, e vice-e-versa. Logo, a definição se o acoplamento será passivo ou ativo cabe, exclusivamente, à contingência imediata, à situação historicamente situada, o arranjo interno exigido pelas mudanças sofridas pelo estilo de pensamento, quando evolui de um para o outro (FLECK, 2010, p. 152). No Aufbau, Carnap circunscreve a criação da linguagem da ciência dentro da estreiteza da produção intrínseca dos cientistas, a realização de testes, destinados a possibilitar a confirmação ou não da validade dos conceitos – o “contexto de 7 justificação”. Na obra, o procedimento coincide com o processo de purificação, através do qual os conceitos são expurgados de fontes de imprecisão, intuições, consideradas fonte de inspiração originada de fatores relacionados às vivências do dia-a-dia – o “contexto de descoberta”. Em discordância com a cisão “contexto de justificação” e “contexto de descoberta”, Fleck propõe o estilo de pensamento, como rede de significados, gerada na rotina de trabalho do coletivo de pensamento, em interação com as influências plurais do cotidiano vivido, tanto tendências sociais, quanto políticas, econômicas, psicológicas... O pensador polonês não identifica a criação da linguagem na ciência como resultado do trabalho recluso do cientista dentro das fronteiras restritas do laboratório, compartimento considerado imune às inspirações da conjuntura de inserção da época, como defende Carnap. Em Gênese e desenvolvimento de um fato cientifico, Fleck (2010, p. 62, 86). classifica todas as teorias da ciência, cujos pensadores vislumbrariam no “contexto de descoberta” “lamentável imperfeição a ser combatida”, como “jogo de palavras vazio”. Os que adotam o ponto de vista incorrem em grave equívoco, porque sem os fatores historicamente situados “não seria possível” a articulação das redes de significados na ciência, tais como, os conceitos. Contudo, não quer dizer que o pensador polonês (2010, p.63). ignore o papel estruturante do “contexto de justificação”: o trabalho de “legitimação” abrange “provas objetivas importantes” para conversão dos conhecimentos, condensados nos conceitos, em “componentes da ciência”.No entanto, a compreensão de todas as condições envolvidas no “contexto de justificação”, a reprodução de quais são e como ocorre a atuação dos recursos aplicados no trabalho de “legitimação”, não traz informações suficientes, do ponto de vista de Fleck (2010, p.62). Ora, nenhuma teoria da ciência chega ao entendimento da articulação dos conceitos, “sem a abordagem histórica”, o estudo detalhado do “caminho complicado e retorcido” percorrido pelos constructos, ao longo do tempo – o exame detido do “contexto de descoberta” (FLECK, 2010, p.62). De acordo com o pensador polonês, cabe à teoria da ciência privilegiar a interpretação de como as modificações sofridas pelos conceitos ocorrem em consonância com as diferenças existentes entre o modus operante desenvolvido pelos coletivos de pensamento de cada época. Por seu turno, o modus operante do coletivo de pensamento deve ser analisado como atuação no mundo criada, sob a influência de inspirações plurais, provenientes do cotidiano vivido no período, seja as de cunho social, político, econômico ou psicológico. 8 Portanto, os conceitos válidos cientificamente surgem do intenso fluxo de trocas estabelecidas entre o “contexto de descoberta” e o “contexto de justificação”, instâncias incapazes de ser brutalmente separadas, postas em lados opostos, dicotômicos, na perspectiva de Fleck. Uma vez que o pensador polonês retrata os cientistas como agentes reunidos em grupos de atuação sob a constante interação com a conjuntura de inserção da época, todos os conceitos criados na atividade constituem criações historicamente situadas, influenciadas pelas diversas esferas da vida coletiva do período. Já na perspectiva de Carnap, os conceitos válidos cientificamente surgem exclusivamente do “contexto de justificação”, da purificação das interferências sofridas da conjuntura de inserção da época, por meio da realização de operações para atestar a validade ou não dos constructos. Uma vez que o pensador alemão retrata os cientistas como inteligências alienadas, bitoladas no trabalho recluso nos bastidores do laboratório, todos os conceitos criados na atividade constituem abstrações desencarnadas, força capaz de gravitar acima das condições concretas do cotidiano vivido – da história. Em Gênese e desenvolvimento de um fato científico, Fleck não defende a separação entre o “contexto de justificação” e o “contexto de descoberta”, a imposição de fronteiras rígidas entre o “científico” e o “não científico”, como Carnap, no Aufbau. Apesar do “científico” controlar a definição dos parâmetros de cientificidade, o “científico” não integra totalidade autônoma, fechada sobre si, porque instância construída sobre o intenso fluxo de intercâmbios mantidos com o “não-científico”. Na obra, o “não-científico” fornece balizas aptas a influir decisivamente na condução das investigações desenvolvidas em torno da atuação conjunta dos cientistas, participação esta prevista no “científico” muito superior ao reduzido papel destinado “ao nãocientífico” no Aufbau. Na obra, Carnap identifica, no “não-científico”, fonte de inspiração, importante como impulso inicial do poder de criação do cientista, mas não influente nos padrões de regulação da produção ocorrida nos bastidores do recinto recluso do laboratório, no “científico”. Em discordância, Fleck aponta, o “científico”, representado metaforicamente pela lide cotidiana do laboratório, não constitui compartimento fechado, mas zona de troca com fronteiras permeáveis às diversas influências exercidas pelo “não-científico”. Do ponto de vista do pensador polonês, o “não-científico” impõe direcionamentos cruciais, quando da seleção de quais fenômenos do mundo merecerão 9 atenção especial como objeto de estudo nas pesquisas conduzidas pelos cientistas na rotina de trabalho. Em primeiro lugar, o “não-científico” demanda a maior mobilização de esforços das pesquisas em torno da busca de soluções eficientes para as dificuldades enfrentadas no cotidiano, respostas concretas aos problemas vivenciados no dia-a-dia. Em segundo, o “não-científico” fornece incentivos maciços, como a criação de espaços para discussão das conclusões das pesquisas, construção de centros especializados, concessão de investimentos, em termos de recursos humanos e financeiros. No entanto, Fleck não restringe a participação do “não cientifico” ao papel reduzido de mero condicionante externo, agente apto a atuar “por fora”, sem penetrar no interior do “científico”, a produção dos resultados apurados em laboratório. Para o pensador polonês, o “não-científico” constitui agente apto a atuar “por dentro”, a instância adentra os bastidores da pesquisa e influi no arranjo interno de toda rotina de trabalho conduzida na investigação, por meio das “proto-ideias”. As “proto-ideias” proporcionam direcionamentos importantes para a orientação da atuação conjunta dos cientistas, parâmetros de como e onde os profissionais poderão buscar por respostas para os comportamentos dos fenômenos do mundo. Em Gênese e desenvolvimento de um fato científico, as “proto-ideias” abarcam todas as alusões do passado, aptas a fazer referência prévia a tudo o que for adotado pelo coletivo de pensamento na condição de elementos constitutivos da pesquisa conduzida no presente, como, teorias, práticas, experimentos, conceitos... Na obra, as “proto-ideias” poderão provir, seja do não “científico”, seja do “científico”, mas, nas duas conjunturas de emergência, requerem adequação à rigores de objetividade da ciência, a validação ou não da sua procedência por meio da metodologia aplicada na pesquisa. Quando as “proto-ideias” são apropriadas pelo cientista, atravessam processo de transição, de predisposição vaga, confusa, são transformadas em orientação comprovada objetivamente, referencial seguro para o modus operante do coletivo de pensamento. Logo, se as “proto-ideias” condicionam o modus operante do coletivo de pensamento, local de proveniência do estilo de pensamento, exercem influência sobre a constituição das redes de significados criadas pelo cientista, como os conceitos. 10 Referências Bibliográficas Livros CARNAP, Rudolf. The logical structure of the world [1928]. Berkeley: University of California Press, 1968. FLECK, Ludwik. Genesis and development of a scientific fact [1935]. Chicago: The University of Chicago Press, 1979. FLECK, Ludwik. La genésis y el desarollo de un hecho científico [1935]. Madrid: Alianza Editorial, 1986. FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico [1935]. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. Artigos em livros FLECK, Ludwik. “On the crisis of reality” [1929]. In: COHEN, Robert Sonné; SCHNELLE, Thomas (ed.). Cognition and fact: materials on Ludwik Fleck. New York: Kluwar Academic Publishers, 1986, p. 47-57. FLECK, Ludwik. The Problem of Epistemology [1946]. In: COHEN, Robert Sonné; SCHNELLE, Thomas (ed.). Cognition and fact: materials on Ludwik Fleck. New York: Kluwar Academic Publishers, 1986, p. 79-112. FLECK, Ludwik. “To look, to see, to know” [1947]. In COHEN, Robert Sonné; SCHNELLE, Thomas (ed.). Cognition and fact: materials on Ludwik Fleck. New York: Kluwar Academic Publishers, 1986, p. 129-151.