Uma alternativa de mobilização social: caracterizando a festa junina
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Uma alternativa de mobilização social: caracterizando a festa junina
XV Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste / Pré-ALAS Brasil 04 a 07 de setembro de 2012 UFPI, Teresina – PI GT 07 – Cultura, comunicação e desenvolvimento: perspectivas políticas e econômicas Uma alternativa de mobilização social: caracterizando a festa junina para além da espetacularização Autora: Hayeska Costa Barroso (UECE). [email protected] Francisco Horacio da Silva Frota (UECE). [email protected] Resumo Caracterizar a festa junina na atualidade implica considerar seus aspectos religiosos de celebrações aos santos, suas características ligadas às tradições do campo e das colheitas, mas, sobretudo, atentar para as transformações pelas quais passou nos últimos tempos. A cidade foi o palco privilegiado em que se gestaram tais mudanças, na qual as quadrilhas juninas se estilizaram nas vestimentas, nas músicas, nos passos de dança e em diversos outros aspectos. A festa junina ganhou ares de grande espetáculo, mobilizando uma complexa organização econômica, social, política e cultural. À luz da proposta de análise de Mafra (2006) sobre as estratégias e os processos de comunicação para a mobilização social, o presente trabalho objetiva analisar a festa junina para além da dimensão da festa e do espetáculo, principalmente no que concerne à sua dimensão argumentativa. 1.INTRODUÇÃO A festa junina foi celebrada nas terras portuguesas nos festejos dedicados aos santos populares de Santo Antônio, São João e São Pedro. Portugal foi o país responsável por trazer a cultura das celebrações juninas para o Brasil no início do século XIX. Naquele país, a quadrilha, dança típica da festa junina, figurava nos salões da corte e em meio à nobreza. Em terras brasileiras, durante a transição do Império para a República, a quadrilha junina passou por transformações em relação às suas formas originais, figurando, principalmente, fora da paisagem urbana. As localidades do campo e os espaços rurais passaram a compor o cenário de realização constante das danças e festejos juninos, comemorando boas colheitas e pedindo bons frutos para a próxima plantação. Com o passar do tempo, a festa junina portuguesa havia se “abrasileirado” incorporando inúmeros elementos dessa nova realidade às suas práticas. Caracterizar a festa junina na atualidade implica considerar seus aspectos religiosos de celebrações aos santos, suas características ligadas às tradições do campo e das colheitas, mas, sobretudo, atentar para as transformações pelas quais passou nos últimos tempos. A cidade foi o palco privilegiado em que se gestaram tais mudanças, na qual as quadrilhas juninas se estilizaram nas vestimentas, nas músicas, nos passos de dança e em diversos outros aspectos. A festa junina ganhou ares de grande espetáculo, mobilizando uma complexa organização na qual os sujeitos envolvidos direta e/ou indiretamente irão assumir funções outrora inimagináveis. Ainda assim, Moutinho (2008) considera que, por mais estilizada que seja, a festa junina é fundamentalmente uma festa interiorana, ligada às tradições do campo, às colheitas, inseparável de certo clima matuto. A cidade como lugar por excelência de concentração e efervescência da vida social, econômica, política e cultural e como uma totalidade em constantes transformações (SPOSITO, 2008) é o cenário em que a festa junina se depara com suas dimensões econômica, simbólica, de espetáculo e festividade, de inovação e de desenvolvimento local. Dentre tantos aspectos, Barquero (2004) chama a atenção para seu aspecto econômico, considerando as cidades como o espaço físico dos sistemas produtivos locais. Dessa forma, o presente artigo volta-se para uma análise da festa junina, como manifestação cultural que vem passando por processos de ressignificação e reinvenção no espaço urbano, através dos quais o componente econômico surge como grande potencial de desenvolvimento social, econômico e cultural. Nesse sentido, apresenta-se como uma abordagem em consonância com aquilo que se entende por economia criativa, reconhecendo, sobretudo, o impacto econômico, que antes passava despercebido ou francamente negligenciado (REIS, 2011), dos setores que integram as cadeias produtivas da festa junina, tendo por base a criatividade. 2. Caracterizando a festa junina para além da “espetacularização” À luz da proposta de análise de Mafra (2006) sobre as estratégias de comunicação para mobilização social e considerando a festa junina como um fenômeno de mobilização social e comunitária, pela capacidade mesma de unir sujeitos diversos, articular forças sociais, econômicas, políticas e culturais, consideraremos a festa junina a partir de duas dimensões a priori que a caracterizam: espetacular e festiva. A dimensão espetacular tem como objetivo chamar a atenção, despertar o interesse, ser algo excepcional, atrair o olhar, capturar a atenção dos sujeitos, sair do ordinário, do cotidiano. Aquilo que se apresenta como espetacular possui um natureza carregada de sentido e memória (RUBIM apud MAFRA, 2006). Debord (1997), por sua vez, evoca a ideia de espetáculo como promovedora de uma experiência vazia comprometedora da autonomia do indivíduo inserido na lógica capitalista cruel. Para Debord (1997) as imagens que constituem o espetáculo tendem a querer transformar as representações aparentes e artificiais em mundo real1. Ainda assim, não passam de representações que se permitem ver e que consideram o espectador como aquele que assiste, contempla estático o espetáculo. Para Moutinho (2008), a “espetacularização” de manifestações culturais, no sentido de Debord (1997), possui o potencial de destruir a base cultural local. Trata-se, na verdade, segundo Serpa (2007), das leis do mercado adentrando na substância dos objetos culturais. Bezerra (2008) nos chama a atenção para o fato de pensar a festa na contemporaneidade, principalmente no que tange ao fenômeno de sua tendência à mercantilização2. Para a referida autora, Nesse processo de (re)criação e (re) invenção da festa, os rituais, que inicialmente possuíam um caráter quase espontâneo dos valores e das tradições populares dos diversos grupos sociais, vêm sendo apropriados pelos administradores públicos e empresariais, transformando-se em megaeventos, cujo caráter de empreendimento econômico e comercial tornou-se muito acentuado. (BEZERRA, 2008, p.8) Para a noção de espetáculo nos processos de mobilização social, contudo, a ênfase não deve estar voltada, principalmente, para os elementos da esfera sensacional, extraordinária, e para a área da encenação, da dramaturgia, mas não como uma inversão concreta da vida e uma cristalização do mundo, como afirma Debord (1997). Aquilo que se apresenta como surpreendente propicia uma suspensão temporária das regras cotidianas, pois 1 Debord (1997) considera que a sociedade do espetáculo seria uma sociedade de alienação, com ênfase na mídia-entretenimento, submersa e mantenedora da lógica capitalista. 2 Serpa (2007) opta por falar em “festa-mercadoria”, a qual nega a invenção lúdica e vai transformando história, cultura e tradição em divertimento e lazer. outro conjunto de normas próprias e específicas do momento do espetáculo insurgem. Também, na medida em que a existência do espetáculo pressupõe o espectador, faz-se necessário a existência de outros indivíduos em contraponto, os que representam, os homens de ação. Assim, atores e espectadores encerram o caráter dramatúrgico do fenômeno espetacular. Nesse sentido, como estratégia de mobilização social, o espetáculo possui um grande desafio: fazer com que os sujeitos que assistem possam assumir outros papéis além de espectadores (MAFRA, 2006) A festa junina, em si, denota a dimensão festiva de ações de mobilização social. Durkheim (1996) considera que festas são indispensáveis para o reavivamento de laços intersubjetivos que tendem a se enfraquecer e até mesmo se dissolver com o passar do tempo. O grau de efervescência, de exaltação dos sentidos e emoções presente no momento em que os indivíduos estão reunidos e interagidos em festa permite com que se gere uma força contrária ao sentido da dissolução completa dos vínculos, favorecendo a vivência do lúdico àqueles indivíduos (MAFRA, 2006). Segundo Bezerra (2008), as experiências sociais e as representações identitárias locais, através da festa, são (re)atualizadas, ritualizadas e celebradas. As dimensões de espetáculo e de festividade presentes na festa junina trazem à baila o potencial mobilizador e interativo, de construção de identidades intersubjetivas, de considerar o sujeito na sua individualidade e especificidade a partir de sua relação com outros indivíduos. À primeira vista, pode não parecer, mas a festa junina aglutina grande potencial mobilizar tomado a partir das duas dimensões consideradas. 3. Falando sobre economia criativa Os estudos sobre economia criativa são recentes, datam precisamente das duas últimas décadas e estão intimamente relacionados ao reconhecimento do impacto econômico que, antes passava despercebido ou francamente negligenciado (REIS, 2011), de setores que tem por base a criatividade. Paul Tolila inicia seu livro Cultura e Economia: problemas, hipóteses e pistas (2007) com as seguintes indagações “Como pensar a economia do que chamamos, por comodismo, de ‘setor cultural’? E, para começar, qual a utilidade de uma reflexão econômica nesse campo?”. O que se observa, essencialmente, é uma mudança de paradigma, no qual a cultura passa a ser vista como elemento de desenvolvimento (BOTELHO, 2011) e A criatividade e a diversidade passam a ser vistas e re-significadas, portanto, a partir da “descoberta”, principalmente por parte de economistas, como propulsoras do desenvolvimento e do crescimento. Assim, cidades criativas, classe criativa, economia criativa e indústrias criativas refletem esse momento em que há a difusão da crença na importância da inovação como motor essencial do desenvolvimento social e econômico, diretamente relacionada com a satisfação das sociedades, grupos e indivíduos nessa emergente economia global baseada no conhecimento. (Idid., 2011) Pensar a economia culturalmente e a cultura economicamente diz respeito a aspectos distintos tanto da cultura quanto da economia. No nosso caso, pensaremos economicamente a cultura, essa nova economia, onde a dimensão simbólica cumpre o papel de agregar valor. E isso exige uma mudança de mentalidade em relação à chamada velha economia. Assim, Pensar a economia do setor cultural é uma arma para a cultura. Uma arma de que o setor cultural deve se apossar para melhorar sua própria visão das coisas, defender suas escolhas e sua existência, participar de maneira ativa do seu desenvolvimento futuro. (Ibid, 2007, p.19) O conceito de economia criativa originou-se do termo indústrias criativas, inspirado no projeto Creative Nation, da Austrália, de 1994. Entre outros elementos, este defendia a importância do trabalho criativo, sua contribuição para a economia do país e o papel das tecnologias como aliadas da política cultural, dando margem à posterior inserção de setores tecnológicos no rol das indústrias criativas. Os trabalhos até o presente momento voltados para a produção do conhecimento nesse setor são, em sua maioria, oriundos do debate anglo-saxão, mostrando-se inadequados às especificidades brasileiras. Mas este processo está mudando. O Plano da Secretaria da Economia Criativa3 (BRASIL-MinC, 2011 preocupou-se em deixar claras as definições e denominações, a fim de que, em virtude da crescente utilização do termo indústria criativa, não se procedesse como se tudo fosse considerado indústria criativa e tal debate não passasse de especulações e elaborações teóricas vagas desconexas da realidade brasileira. O espectro do que venha a ser economia criativa é muito grande, havendo o risco de se considerar tudo como sendo economia criativa. Nesse sentido, apresenta a seguinte definição: Os setores criativos são todos aqueles cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de valor simbólico, elemento central da formação do preço, e que resulta em produção de riqueza cultural e econômica. [...]a essência e o valor do bem criativo se encontra na capacidade humana de inventar, de imaginar, de criar, seja de forma individual ou coletiva. (BRASIL, 2011, p. 22) . Tal compreensão amplia o leque de abrangência dos setores tipicamente culturais, onde as quadrilhas juninas estão incluídas (pelo menos é o que acreditamos nesse primeiro momento), segundo a UNESCO, como um setor criativo nuclear, na seara da macro-categoria dos espetáculos e celebrações, cujas atividades associadas se situam nas festas e festivais. Quando observamos os princípios norteadores da economia criativa brasileira apresentados no Plano em questão, quais sejam a diversidade cultural, a sustentabilidade, a inclusão social e a inovação, relacionamos diretamente a processos que, grosso modo, também caracterizam a realidade sui generis dos festejos juninos na atualidade. 3 A Secretaria da Economia Criativa foi criada em 2011, no governo Dilma Rusself, no âmbito das ações do Ministério da Cultura, tendo como secretária a cearense e ex-secretária de cultura do Estado do Ceará a cearense Cláudia Leitão. O Plano referido é o primeiro documento com diretrizes e linhas de ação do órgão. Tal documento chama a atenção por apresenta claramente a transversalidade da economia criativa para além do MinC, bem como elabora uma conceituação específica e adequada à realidade brasileira. O Ministério da Cultura4 assume, tão logo, a liderança na formulação, implementação e monitoramento de tal política para atender aos desafios de um novo desenvolvimento, pautado nos princípios da inclusão social, sustentabilidade, inovação e diversidade cultural brasileiras. O Plano assumese, então, como um marco para o reposicionamento da cultura como eixo e componente central dos processos de desenvolvimento5 econômico e social, seu potencial empregador, produtivo e inovador. Tal desenvolvimento deve significar, sobretudo, qualidade de vida e ampliação de escolhas, de modo que ele em si não configure o fim último da atividade humana, mas um meio para que o verdadeiro objetivo seja alcançado: a liberdade humana (FURTADO, 1978). 3.1. Criatividade: matéria-prima da economia criativa Quando se fala em criatividade a ideia que se tem, grosso modo, é que diz respeito excepcionalmente a indivíduos altamente criativos, dotados de alguma habilidade extraordinária, um dom divino reservado a uns poucos indivíduos que ocorre num instante de inspiração inexplicado, como mágica, ou que depende apenas de fatores intrapessoais. Há quem defenda que criatividade é uma questão de grau: alguns indivíduos são mais e outros menos criativos. Outra ideia errônea é afirmar que criatividade. Alguns estudos, ainda, destacam que condições ambientais podem favorecer ou inibir a produção criativa (SIMONTON apud FROMM, 2003). Tal compreensão não parte do pressuposto de que a criatividade é multifacetada, pode ser ensinada e está intimamente ligada à experiência (FLORIDA, 2011). Sendo a criatividade a matéria-prima por excelência dos processos e setores 4 A economia criativa não se limita ao leque de atuação apenas de um Ministério, o que será possível observar mais adiante, sua extensa rede e alto grau de capilaridade institucionais. No entanto, figurar na esteira do Ministério da Cultura foi uma alternativa estratégica para o reconhecimento e revalização da cultura como eixo do desenvolvimento. 5 Celso Furtado alia a idéia de criatividade ao desenvolvimento, afirmando que aquela é a matéria-prima da inovação; que é possível ser criativo sem que tal fato gere inovação. O referido autor preocupa-se, sobremaneira, numa noção de desenvolvimento descentralizadora. Cf. FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. criativos da chamada economia criativa, é válido dedicar atenção à sua compreensão. Todo ser humano apresenta certo grau de habilidades criativas que podem ser treinadas e aprimoradas por meio da prática e que podem ser motivadas por recompensas intrínsecas ou extrínsecas. Independente da motivação e de estar ligada ao indivíduo, o processo criativo é social, não só individual; logo, requer formas de organização (FLORIDA, 2011). Ser criativo requer, portanto, a preparação do indivíduo, sua disciplina, dedicação, esforço consciente, trabalho prolongado e conhecimento amplo da área do saber em que atua (FROMM, 2003, p. 16). Criatividade é um conceito relativo, de modo que os produtos são considerados criativos somente em relação a outros em um determinado momento da história. Criatividade pode envolver a produção de algo novo, que é aceito como útil e/ou satisfatório por um número significativo de pessoas em algum ponto no tempo. (STEIN apud FROMM, 2003); ou, pode caracterizara emergência de algo único e original (ANDERSON apud FROMM, 2003); ou, até mesmo, compreender um processo de se tornar sensível a problemas, deficiências e lacunas no conhecimento; identificar a dificuldade; buscar soluções, formulando hipóteses acerca das deficiências; testar e retestar essas hipóteses; e, finalmente, comunicar os resultados (TORRANCE apud FROMM, 2003) Florida (2011), em seu livro A ascensão classe criativa, acredita que a criatividade humana é o agente central na economia e da vida em sociedade, não sendo exatamente um “bem”, mas fruto da atividade humana, de modo que a criatividade não pode ser comprada e vendida, ou ativada e desativada ao bel-prazer de quem quer que seja. O éthos criativo, segundo o referido autor, transpõe o mundo do trabalho e penetra em todas as esferas da vida. Dessa modo, é atribuído caráter central à criatividade, pois a mesma é considerada característica determinante da vida econômica, impulsionando as grandes transformações em curso. Ainda assim, Florida (2011) reconhece que a criatividade tecnológica e econômica é fomentada pela criatividade cultural. 4. Um exemplo de economia criativa no Brasil: O caso das festas juninas no Ceará Envolvimento de cerca de 600 mil pessoas, criação de 8 mil postos de empregos sazonais, injeção de R$ 45 milhões na cadeia produtiva da economia cearense e R$ 170 milhões na economia da Região Nordeste, geração de R$ 8 milhões no segmento de transportes, R$ 6 milhões na indústria têxtil, R$ 2,9 milhões na contratação de músicos, R$ 2,7 milhões na atividade de costura e R$ 2,6 milhões em cenografia, sem falar das atividades ligadas à chapelaria, ao artesanato e aos outros setores: esses são alguns dos números reveladores da magnitude das festas juninas no Ceará, conforme afirma Kiko Sampaio, presidente da FEQUAJUCE e da União Nordestina de Entidades de Quadrilhas Juninas (UNEJ), em entrevista concedida ao Jornal O Estado6. Segundo ele, no Ceará existem atualmente cerca de 700 quadrilhas, do total de 2.930 presentes em território nordestino, o que significa dizer que as quadrilhas cearenses representam aproximadamente 25% do total das quadrilhas existentes no Nordeste. Dos R$ 45 milhões gerados pela cadeia produtiva dos festejos juninos, R$ 20 milhões são oriundos dos festivais e o restante das próprias quadrilhas. Corroborando com esse cenário, Cassiolato [et.al.] (2008) afirma que a percepção sobre o valor econômico das atividades culturais e sua importância no processo de globalização têm levado a cultura ao centro da agenda de desenvolvimento mundial e das políticas a ele direcionadas nos mais diversos países. Nesse mesmo cenário, mudanças também são visíveis nas festas e folguedos populares a partir da intervenção de variáveis econômicas, sociais, culturais, educacionais entre outras redimensionadas e agudizadas no âmbito de uma sociedade cada vez mais pautada pelo avanço e proliferação das chamadas conexões tecnológicas (SILVA, 2011). O tradicional (que não significa arcaico) não se dá mais como uma oposição direta ao moderno, até porque inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta (HOBSBAWN, 1997,p.12-13). Acreditamos que as festas juninas estão 6 Entrevista concedida no dia 23 de junho de 2011, sob o título “São João – Festejos injetam 45 milhões no Ceará”. passando exatamente por esse processo, em que a inovação se adapta quando se faz necessário conservar velhos costumes em condições novas ou usar velhos modelos para novos fins (Ibid, 1997, p.13). Esquematicamente falando, a quadrilha junina será encarada como o lócus onde diversos setores criativos irão aportar (moda, design, música, costura, dentre outros). Isso significa dizer que a quadrilha junina na maneira como ela se manifesta nos dias de hoje, “estilizada”, pode se apresentar como um feixe de múltiplas determinações, sendo muito mais um efeito do que uma causa do processo criativo o qual gera. Moutinho (2008), ao analisar o sistema inovativo cultural do Maior São João do Mundo, realizado na cidade de Campina Grande, na Paraíba, afirma que em eventos da natureza da festa junina, há a concorrência de três cadeias produtivas: a replicação de uma cadeia produtiva empresarial, desenvolvida exclusivamente para o evento; uma cadeia produtiva empresarial independente do evento, mas que direciona suas atividade para este durante sua realização; e, uma cadeia produtiva cultural-criativa, a partir da qual se constrói o espetáculo que caracteriza o produto final. Nos dias atuais, a exigência pelo aprimoramento e a inovação são demandas constantes, na qual figuram como resultado final grandes espetáculos7. Trigueiro (2004) afirma que estamos vivendo no mundo em que quase tudo se torna espetáculo. Prêmios em dinheiro são concedidos aos melhores grupos de quadrilhas juninas, àqueles que atenderem positivamente aos principais critérios de avaliação, dentre os quais: melhor casamento matuto, melhor conjunto, melhor figurino, melhor animação, melhor marcador, dentre outros. Se em suas origens européias a quadrilha esteve ligada à nobreza, quando vinda ao predominantemente Brasil rural popularizou-se do período e “adaptou-se” colonial. Hoje, já ao cenário devidamente “urbanizada”, modernizou-se e agregou novos valores, atualizou seus traços 7 Segundo Moutinho [et.al] (2008), a festa junina é um evento folkmidiático que reúne o novo ao tradicional. antigos e vive permanentemente o conflito entre o moderno estilizado e o tradicional. Muito mais que as danças das quadrilhas juninas, as festas juninas passaram a ter uma organização muito mais complexa, uma indústria e uma economia próprias que se dispõem ao seu redor, uma economia criativa. Os festejos que antes se restringiam ao mês de junho, passaram a iniciar mais cedo e terminar, por vezes, em agosto. A preparação para tudo isso se inicia, por vezes, antes do começo do ano, envolvendo distintas etapas de produção, bem como de setores econômicos e não-econômicos. Há todo um aparato a ser providenciado: artesãos, equipe de audiovisual, cabeleireiros, maquiadores, cenógrafos, chapeleiros, compositores, coreógrafos, costureiras, designers, estrutura de eventos, figurinistas, fotografia, músicos, produtores culturais, roteiristas e diretores, sapateiros e sonoplastia8, integrando o que se pode chamar de sistema produtivo local. A esse respeito, os sistemas produtivos locais são modelos de organização da produção apoiado na divisão do trabalho entre as empresas e a criação de um sistema de intercâmbios locais que produz o aumento da produtividade e o crescimento da economia. [...] A análise do funcionamento dos sistemas produtivos locai demonstrou que a existência de uma rede de empresas industriais gera uma multiplicidade de mercados internos e áreas de encontro que facilitam os intercâmbios de produtos, serviços e conhecimento. (BECATINNI, 1997 apud BARQUERO, 2004, p. 215) Trigueiro (2004) chama a atenção para os processos de ressignificação e reinvenção pelos quais vem passando as festas populares ao apropriarem-se de novas tecnologias para recriar seus próprios produtos culturais. Assim, as festas populares [...] que eram realizadas espontaneamente pelos grupos locais e agora são organizadas com a participação de grandes grupos multimidiáticos, empresas de bebidas e comidas, promotores culturais e empresas de turismo. É como se existissem duas festas, uma dentro da outra, ou seja, a festa central institucionalizada, de interesse econômico dos megagrupos empresariais, políticos e até religiosos, e a outra periférica, que continua sendo organizada através da mobilização da comunidade, pelas fortes redes sociais de comunicação, com a finalidade alegórica de rompimento com o 8 O site da Federação de Quadrilhas Juninas do Ceará (FEQUAJUCE) www.fequajuce.com.br enumera tais elementos como sendo os fornecedores do ciclo junino. cotidiano e com o mundo normativo estabelecido. (TRIGUEIRO, 2004) Dessa forma, ainda que a festa junina tenha passado por processos de diferenciação, homogeneização e modernização, em sua dimensão espetacular e festiva encerra possibilidades de mobilização social. Ainda que estilizada e no cenário urbano, a festa ganha novos contornos e se ressignifica ao se encontrar no bojo das intensas e inúmeras transformações da cidade, lócus privilegiado da inovação, da economia criativa, dos sujeitos criativos, enfim, da produção de identidades individuais e coletivas. 7. Referências bibliográficas BARQUERO, Antonio Vázquez. Desenvolvimento endógeno: interação das forças que governam os processos de crescimento econômico. In: ROJAS, Patrício Antônio Vergara. Desenvolvimento endógeno: um novo paradigma para a gestão local e regional. Fortaleza: IADH, 2004. BENDASSOLLI, Pedro F. et al. Indústrias criativas: definição, limites e Possibilidades. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 49, n.1, jan./mar. 2009. (p.10-18). 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