Saber mais - Instituto de Sociologia

Transcrição

Saber mais - Instituto de Sociologia
IS Working Papers
3.ª Série, N.º 9
Cenas musicais,
experiências identitárias e
práticas de consumo: os
bailes black no Rio de
Janeiro
Luciana Xavier de Oliveira
Porto, dezembro de 2015
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
Cenas
musicais,
experiências
identitárias
e
práticas de consumo: os bailes black no Rio de
Janeiro
Luciana Xavier de Oliveira
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Tulane University New Orleans, EUA
E-mail: [email protected]
Submetido para avaliação: novembro de 2015/ Aprovado para publicação: dezembro de 2015
Resumo
A partir de uma discussão concetual a respeito da noção de cena musical, sob a
perspectiva crítica da cultura, esse artigo se propõe a abordar as cenas como espaços
agenciadores de sociabilidades e processos de identificação, utilizando como exemplo
a cena dos bailes black no Rio de Janeiro. Levando em consideração as discussões em
torno das identidades, territorialidades e do consumo cultural, pretende-se
compreender as cenas enquanto alianças dinâmicas, marcadas por uma vasta gama de
processos de diferenciação social e interação diante da manutenção de vias de
comunicação entre grupos culturais e comunidades de gosto marginais. Como
ferramenta interpretativa, a ideia de cena musical é central para a elaboração de
valores e significados mediante o consumo da música popular. E os bailes se
concretizam como territórios simbólicos que reúnem diferenças, estilos e
performances relacionadas a experiências diaspóricas e etnicorraciais, implícitas em
processos de hibridizações e interconexões de tradições nacionais, símbolos
cosmopolitas, mercados alternativos e a cultura mainstream.
Palavras-chave: cenas musicais, consumo cultura, identidade, territorialidade.
Abstract
From a conceptual discussion of the notion of music scene in the critical perspective of
the culture, this article aims to understand the scenes as spaces of sociability and
identification processes, by the black dances scene in Rio de Janeiro. Taking into
account the discussions around identity, territoriality and cultural consumption, we
intend to understand the scenes as dynamic alliances, marked by a wide range of social
2
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
differentiation processes and interactions, on the maintenance of a communication
between cultural groups and marginal taste communities. As an interpretive tool, the
idea of music scene is central to the development of values and meanings around the
consumption of popular music. And these dances are realized as symbolic territories
that get together differences, styles and performances related to diasporic, ethnic and
racial experiences, implied in hybridization processes and interconnections of national
traditions, cosmopolitan symbols, alternative markets and the mainstream culture.
Keywords: music scenes, cultural consumption, identity, territoriality.
3
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
1. Cenas musicais: uma introdução
Um dos pontos mais importantes levantados pelas recentes discussões desenvolvidas
no campo da comunicação a respeito da noção de cena musical refere-se a reflexões
que se detém sobre a relação entre cenas, consumo cultural e representação. A
vinculação da cena musical a questões envolvendo processos de identificação tem sido
frequente no Brasil, especialmente em trabalhos acadêmicos cujo objeto é o mangue beat
(ver Ribeiro, 2006 e Lima, 2007). A discussão também tem apresentado outros
desmembramentos mais recentes, em trabalhos que fazem referência às cidades e aos
espaços urbanos a partir da ação de culturas juvenis que se estruturam em torno de
práticas musicais, incluindo aí as comunidades virtuais e redes sociais que trazem para
a questão a ação das novas tecnologias de comunicação. Esse cenário evidencia a
importância da ideia de cena acionada por diferentes autores na investigação de
objetos variados (ver Straw, 2001; Berger, 1999; Kahn-Harris, 2000; Baulch, 2003;
Janotti Jr., 2012). Esses trabalhos abordam as cenas musicais a partir das condições de
produção, circulação midiática e mercadológica dos produtos musicais, enfatizando a
ação cultural e o exercício estético de fãs, artistas, produtores e indústria fonográfica.
Mas nem sempre privilegiam os processos de representação sociocultural e dinâmicas
subjetivas da experiência e do consumo musical, que agenciam sociabilidades e
identidades culturais marginais e/ou alternativas.
Se compreendemos que os participantes de uma determinada cena musical demarcam
suas fronteiras a partir de um autorreconhecimento dinâmico e correlacionado a
instâncias produtivas e ações reflexivas de consumo, não é possível isolar as relações
entre música e identidade em territórios simbólicos, que são configurados justamente
por meio da afirmação urbana do consumo musical. Nesse sentido, pois, entendemos
que as cenas musicais são fenômenos marcadamente cosmopolitas, pautadas pelo
consumo cultural e por estratégias simbólicas de diferenciação.
Isso nos permite depreender que as cenas se constituem como resultado do consumo
globalizado da música e da materialização de expressões musicais em diferentes
espaços urbanos (Janotti Jr., 2012, p.116). Essas culturas de consumo da música, de
maneira geral, se afirmam em negociações efetivadas entre associações cosmopolitas
e apropriações culturais locais ou regionais de produtos globais. Essas práticas de
consumo mundializado ampliam a própria noção de identidade cultural, não mais
centrada em nações, línguas, fronteiras, já desestabilizados pelos próprios processos
de migrações de pessoas, bens e símbolos.
Essa concepção de identidade cultural se refere a um constructo social de caráter
relacional e contingente, que difere de um contexto para outro, expressa por meio de
processos individuais e coletivos de reconhecimento e autorreconhecimento. Nessas
4
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
dinâmicas, são estabelecidas relações sociais e simbólicas, de valores e hábitos
compartilhados por um determinado grupo. As identidades seriam, pois, dotadas de
mobilidade, já que são constantemente afetadas pela história e pelas condições
contemporâneas das sociedades, da mesma forma que pelas dinâmicas locais e globais.
No entanto, como afirma Paul Gilroy (2001), a identidade não é um conceito fixo e
transcultural, pois mantém certa coerência no tempo e no espaço, sendo mobilizada
de acordo com determinadas circunstâncias pelos indivíduos. Ao mesmo tempo, como
aponta Hall (2002), uma identidade totalmente unificada e coerente é uma fantasia,
pois ela é permanente confrontada pela multiplicidade de sistemas de significação e
representação cultural. Assim, ela seria efetivamente determinada pelo conjunto de
papéis que são performatizados nas interações sociais e também pelas condições
sociais decorrentes da produção da vida material, sempre em processo de mutação, da
mesma forma que são todos os processos culturais, seguindo uma visão crítica da
cultura.
Com efeito, o caráter móvel, híbrido e contingente do fenômeno das cenas musicais já
era apontado por Will Straw, em 1991, numa conferência que deu origem ao artigo
Systems of Articulation, Logics of Change. Nele, o professor canadiano sistematiza a
noção de cena musical (1991) e critica o conceito de comunidade utilizado por
pesquisadores de Estudos Culturais, que seria dotado de uma pretensa uniformidade.
Straw defendia que as cenas inferiam em uma gama de práticas musicais projetadas
sobre um território, conectadas à sobreposição de experiências subjetivas
materializadas em torno da música. Havia também uma crescente influência, dentro
da teoria cultural, que tendia a um engajamento em conceitos como território e nação.
Uma preocupação que acompanhava as discussões em torno da autenticidade dentro
dos estudos de música popular, mas que acabava por engessar as reflexões e o próprio
conceito de identidade cultural.
O objetivo de Straw ao trabalhar com o conceito de cena era construir uma proposta
interpretativa para a compreensão das práticas musicais na cidade, que transformam
clubes, ruas, bares, clubes, praças, casas noturnas em territórios culturais, demarcados
por fronteiras geográficas e processos de diferenciação, materializando diversos
envolvimentos afetivos e experiências em diferentes culturas musicais. O conceito de
cena musical, até então, já era amplamente utilizado pela imprensa musical, e foi
sistematizado por Straw em trabalhos consecutivos (1991, 2002 e 2006, entre outros)
como uma visão alternativa à ideia de subculturas urbanas, trabalhada por autores
como Dick Hebdige (1979) e Paul Willis (1978). Os estudos subculturais, apesar de
oferecerem importantes contribuições à compreensão das dimensões estéticas da
cultura popular juvenil acabaram por deixar algumas lacunas na reflexão sobre
5
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
formações de alianças afetivas vinculadas à expressão musical (Cardoso Filho &
Oliveira, 2013).
De certa forma, esses primeiros autores correspondiam à tendência acadêmica
engajada dos cultural studies dos anos 60 e 70, cujas teorias eram marcadas por um
compromisso crescente com questões políticas. O Centre for Contemporary Cultural
Studies da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, pretendia promover estudos e
pesquisas interdisciplinares sobre novas práticas culturais com um viés neomarxista e
com o propósito de “habilitar e encorajar os estratos subordinados a resistir à opressão
e a contestar ideologias e estruturas de poder conservadoras” (Freire Filho &
Fernandes, 2006, p.1).
Nesses estudos subculturais iniciais havia uma proposta de compreender esses grupos
como uma manifestação legítima da vida juvenil, analisando como os estilos de vida,
espaços territoriais e artefatos da cultura de consumo eram utilizados de forma crítica,
espetacular e criativa diante das instâncias hegemônicas dominantes da sociedade. No
entanto, essas visões passaram a sofrer críticas por novos autores a partir dos anos de
1990, que denunciavam o conceito de subculturas como algo datado diante da
profusão de estilos, formas e práticas culturais contemporâneas, mais voláteis e
movediças. A noção de subcultura também foi criticada por excluir de suas
abordagens questões como raça e gênero, privilegiando a classe como aspecto central
em sua definição. Outro problema da noção de subcultura era a atribuída falta de um
aprofundamento da discussão a respeito do próprio funcionamento do consumo
musical na formação e desenvolvimento das culturas juvenis, o que poderia ampliar
as possibilidades de experimentação e configuração criativa das identidades,
performances e linguagens.
Nesse panorama, a ideia alternativa de cena musical nos parece mais adequada, pois
dá conta da formação das redes de lazer, gosto, criatividade e identidade que
estruturam a relação entre as culturas juvenis e a música popular massiva, sinalizando
para a importância do consumo cultural como uma via de construção de alianças que
se estabelecem ao largo das tradicionais disputas por hegemonia. A noção de cena
também assinala a coexistência de diferentes práticas musicais que interagem entre
si, dinamizando variados processos de diferenciação e cross-fertilizations estimuladas
pela circulação global de formas culturais (Straw, 1991), e favorecendo a construção
de novos valores e símbolos. É nesse contexto que a internacionalização pode produzir
uma diversidade mais complexa, ao invés de uma uniformidade nas dinâmicas da
música popular massiva. No entanto, ainda é possível uma certa coerência no interior
desses espaços, ancorada justamente em um território, o que dá ao local geográfico
privilégio na garantia da continuidade histórica de estilos, gêneros e práticas musicais
6
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
(Cardoso Filho & Oliveira, 2013), definidos tanto pelas ações dos agentes sociais da
cena, como também pelos processos de subjetivação articulados às próprias fronteiras
culturais.
2. O entrelugar da cena: território e identidade
Como dito anteriormente, as cenas musicais, como qualquer outra instância da cultura
popular, representam zonas de tensão na definição de significados e valores não
apenas musicais, inscrevendo também diferentes formas de sociabilidade,
solidariedade e processos dinâmicos de identificação em núcleos coerentes e
particulares de atividade social e cultural. Aqui, a noção de identidade ou os processos
de identificação nos oferecem um dispositivo interpretativo importante para
pensarmos sobre as inter-relações entre individualidade, comunidade e solidariedade
(Gilroy, 2007, p.123). A identidade é a chave para se entender a interação entre
experiências subjetivas e cenárias histórico-culturais. Já a noção de cena musical é a
chave para a compreensão dos espaços de ligação entre identidade, territorialidade e
temporalidades contingentes. Estes seriam territórios simbólicos disjuntivos para
populações deslocadas (minorias, imigrantes, colonizados), entrelugares de
interseções e diferenças transitórias diante de uma cultura hegemônica.
O consumo da música, neste panorama, aponta para a fundamental e profícua maneira
de expressar a cidadania e a identidade, que podem, assim, se recompor em circuitos
desiguais e mutáve i s de produção, comunicação e apropriação cultural (GarciaCanclini, 2007, p. 137), em processos atualizadores de traduções e hibridizações
criativas constantes. As cenas musicais, entendidas aqui como circuitos midiáticos,
“ganham mais peso que os tradicionais locais na transmissão de informações e
imaginários sobre a vida urbana e, em alguns casos, oferecem novas modalidades de
encontro e reconhecimento” (Garcia-Canclini, 2007, p. 159). E o consumo musical,
nesta esfera, passa a ser compreendido como u m procedimento de experiência social
e apropriação coletiva de objetos mundanos que assumem novo valor, estruturando
relações de solidariedade e distinção que deixam explícito um “exercício refletido de
cidadania” (Garcia-Canclini, 2008) especialmente em contextos de desigualdade e
exclusão.
Como parte de um fenômeno integrativo e comunicativo das sociedades
contemporâneas, o consumo cultural afirma a “simbolização e o uso de bens materiais
como comunicadores, não apenas como utilidades”, de acordo com Mike Featherstone
(1995, p. 121). E ainda na visão do teórico, o mundo das mercadorias, a cultura de
consumo e seus princípios de estruturação são organizados em meio a tendências
7
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
globalizadoras, centrais para o entendimento da sociedade contemporânea. Desta
feita, o consumo concretiza a manifestação de sujeitos e identidades que interagem
entre si em uma experiência coletiva de apropriação e uso de produtos culturais em
meio a diferentes processos sociais.
Na vida quotidiana, o consumo é moldado pela estrutura material e simbólica dos
espaços geográficos, pelas desigualdades, pelos modos de vida, valores e estilos, e
também por transformações sociais (Mccracken, 2003). Os consumidores organizam
as sociedades usando os significados dos bens de consumo para expressar categorias
e princípios culturais identitários. O consumo passa a ser simbólico, para além das
materialidades, que destacam a dimensão social dos produtos das ações de consumo,
e também promovem relações entre indivíduos e experiências diversas. O consumo
cultural assim é configurado por códigos e práticas do dia a dia, que elaboram
classificações, reafirmam diferenças e modulam comportamentos que estão em
constante tensão com ideologias de mercado e estratégias interpretativas distintivas.
Compartilhar identidade é estar vinculado fundamentalmente com a formação de
padrões de pertencimento, através de conexões subjetivas e alianças afetivas instáveis,
movediças e contingentes. Essa partilha articula os sujeitos não apenas a uma
unidade coerente, como o território significativo da cena musical, como também uns
aos outros. Neste sentido, apesar de não ser algo recente, o pensamento que vincula
a identidade ao território pode ser também útil para a compreensão das relações de
afeto e pertencimento que articulam uma comunidade de fãs a uma cena. Isso
simboliza também a relação da consciência, da experiência e da sensibilidade com o
território, que possui implicações políticas, culturais e sociais. A cena oferece, pois, um
lócus para a afirmação de laços emocionais e afetivos, além de traços culturais
divergentes e marginais que se concretizam em atividades sociais e em espaços de
compartilhamento de afinidades e identidades.
A ideia de cena musical também é importante por oferecer um dispositivo para
compreender os laços afetivos entre indivíduos e a música, e como essa relação
transforma os espaços urbanos e contextos sociais. As práticas sociais de configuração
e ocupação de territórios significativos engendradas nas cenas incluem os indivíduos
nos processos de criação, distribuição e circulação musical, que envolvem relações
sociais e econômicas (Pires, 2011, p. 4). Estes processos também são formulados a
partir de negociações da diferença, que ultrapassam hierarquias e binarismos fixos da
alteridade. O que tem estreita relação com uma reflexão ética sobre as identidades
culturais, inscritas em processos contingentes, dinâmicos e instáveis de negociação.
É preciso pensar as identidades culturais longe de polaridades fixas, interpretando
suas mobilidades reflexivas, câmbios e hibridações como formas diferentes de saberes
8
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
negados, que se infiltram no discurso dominante e embaralham suas regras de
reconhecimento, como sinaliza Homi Bhabha (1998, p. 165), ao propor uma
substituição da ideia de diversidade cultural pela noção de diferença cultural. Suas
reflexões propõem também a substituição do reconhecimento de conteúdos e
costumes culturais pré-dados, mantidos em um enquadramento temporal relativista,
liberal e ocidental, por uma perspectiva da diferença enquanto processo da enunciação,
que constrói sistemas múltiplos de identificação cultural a fim de criar um espírito
mais produtivo da alteridade (Bhabha, 1998, p.36).
A partir da perspectiva crítica da cultura, a compreensão da diferença cultural assume,
pois, um caráter discursivo, visto que toda cultura é uma forma de atribuir significado
a um mundo circunscrito em termos temporais e geográficos. Diante da negociação da
diferença, o que está em jogo são tradições culturais e hábitos internalizados e
cristalizados e, em instâncias mais profundas, os significados construídos sobre as
diferenças a partir de territórios simbolicamente definidos. Assim, diferença e
negociação caminham juntas, e ultrapassam mecanismos simples de apropriação, já
que o outro é da ordem do indefinível, do incomensurável, que negocia com outras
alteridades e se constitui “na estreita passagem do entrelugar do discurso do
enraizamento e do afeto do deslocamento” (Bhabha, 2011, p.153). O entrelugar, neste
viés, é o ponto de gestação e mutação de subjetividades híbridas, que negociam entre
si em sua ambiguidade, contradição e ambivalência. É o limite epistemológico e
fronteira enunciativa para uma gama de outras vozes subalternas (Bhabha, 1998, p.24)
na instituição de novas redes de poder.
As hifenações híbridas enfatizam os elementos incomensuráveis – os pedaços –
teimosos – como a base das identificações culturais. O que está em questão é a
natureza performativa das identidades diferenciais: a regulação e negociação daqueles
espaços que estão continuamente, contingencialmente, se abrindo, retraindo as
fronteiras, expondo os limites de qualquer alegação de um signo singular ou
autônomo de diferença – seja ele classe, gênero ou raça. (Bhabha, 1998, p.301).
Assim a representação da diferença não reflete apenas traços culturais ou étnicos
preestabelecidos, inscritos em uma tradição fixa. Sua articulação social, especialmente
em se tratando de minorias, passa por negociações complexas que conferem
legitimidade aos hibridismos culturais que surgem em momentos de transformação
social e histórica. Essa relação instável entre espaços e identidades é o que relega à
cena musical
seu caráter de fluidez, processo indeterminado por ciclos
circunstanciais, próprios das mutações do espaço urbano. As cenas seriam fendas em
territórios fronteiriços, pontos de encontro e também de desconstruções discursivas –
para Bhabha, um tipo de “terceiro espaço” – que confere às culturas e identidades
9
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
híbridas sentidos nunca totalmente transparentes. Este terceiro espaço é o espaço
instigante e privilegiado da negociação cultural, locus legitimamente gerador de
hibridismos, que desconstrói “a fantasia da origem e da identidade fixa” (Bhabha,
1998, p.106), negando e negociando autoridades ao perturbar ordens estabelecidas
pela mescla inconclusa e insubordinada de subjetividades.
Recusando uma homogeneidade opressiva, estas novas vozes marginais fazem da
diferença uma força política para legitimar publicamente o caráter político de suas
identidades, que estão fora do alcance da fixidez de tradições e estereótipos. Se o
consumo deve ser compreendido como um sistema de significação que supre
necessidades simbólicas, ele funciona, pois, como código a partir do qual as relações
sociais e subjetivas são construídas (Rocha & Barros, 2008). Desta forma, o status
simbólico e material dos produtos midiáticos pode ser uma fonte geradora de um
código cultural para vozes marginais. Que estabelecem alianças provisórias e por
vezes contraditórias, com a finalidade de aumentarem sua força reivindicatória,
forjando uma legitimidade, mas sempre dentro de processos imanentes, heterogêneos
e mutáveis.
Assim, a cena musical apresenta-se, nesta perspectiva, como uma “comunidade
cosmopolita vista como uma marginalidade” (Bhabha, 2011, p.145), um ambiente de
reconhecimento de diferenças negadas em outras esferas hegemônicas sociais e
culturais. Ao mesmo tempo que oferece um espaço para identificações afetivas, a cena
musical é um território de travessia entre diversos meios sociais, local de encontros e
experiências intersticiais que instauram um patamar intermediário entre o indivíduo
e a sociedade. Atuando como espaço de celebração de alianças e sobrevivências de
singularidades ligadas a memórias trans-históricas e estruturas representacionais,
sempre provisórias. Nesse ponto, é possível articular o posicionamento de Bhabha
com a de um precursor dos Estudos Culturais ingleses que reivindicava uma reflexão
estética menos formalista e mais próxima da vida cotidiana: Raymond Williams. É dele
o conceito de estruturas de sentimento, que busca pontuar a necessidade de identificar
a emergência de aspectos transformadores nas práticas culturais.
A formulação mais evidente dessa ideia se encontra em Marxismo e Literatura (1979),
em que Williams articula historicidade e cultura, pensando nas formas como surgem
novas consciências a partir das rotinas, destacando um enfoque sobre os processos
ativos dos sujeitos na produção do sentido (Cardoso Filho, 2014, p. 73). Portanto, é na
performance cotidiana que os participantes das cenas musicais se articulam para tecer
narrativas, construir novos circuitos culturais e estabelecer diferentes disposições
afetivas. Neste contexto, as cenas seriam constituídas também como formas de sentir,
perceber e estabelecer valores para os produtos midiáticos à disposição, na
10
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
determinação de novas apreensões de experiências das práticas culturais. Essas
experiências se concretizam no território e ressignificam tanto os atos de consumo
cotidianos quanto a própria vida nas cidades de maneira alternativa e marginal.
Nessa proposta, há tanto um sentido ético, direcionado para as condutas em
sociedade, quanto uma dimensão estética que constrói uma sensibilidade comunitária,
com a qual os variados atores do processo acabam negociando. As cenas são, assim,
compreendidas como fenômenos estéticos e dotadas de força política, moldadas por
afetos, valores, formas de sentir e de perceber o mundo. E entendemos que as práticas
expressivas, o consumo de produtos e símbolos, bem como performances e estilos
dispostos nas cenas musicais se constituem como políticas, uma vez que podem
“(re)posicionar os sujeitos em processos distintos de partilha, criando competências
diferentes nas esferas públicas do cotidiano” (Cardoso Filho, 2014, p. 75). É
importante, pois, no estudo das cenas musicais, aproximar a questão estética da
questão política na análise das práticas culturais de grupamentos juvenis, o que pode
auxiliar na compreensão de determinadas posturas de resistência e de formas de
negociação de posições estratégicas, presentes tanto em atos de consumo cotidianos
quanto em atos performáticos que configuram atos políticos tomados por afetos e
emoções. São essas estruturas de sentimento que possibilitam o surgimento de novas
consciências e estilos de vida, dotados de um explícito gesto político que torna público
um pensamento e dá sentido tanto ao consumo de objetos simbólicos quanto à
ocupação de um espaço que acompanha a própria formação de uma comunidade.
3. Cenas e diferença: o Movimento Black Rio
Como exemplo da ligação das cenas musicais a territórios geográficos e significativos,
constituídos ao redor de diferentes tipos de alianças em torno de questões de gosto,
valor, identificação e raça, podemos pensar no Movimento Black Rio, que modificou o
panorama cultural da cidade do Rio de Janeiro nos anos 70. Fenômeno que ainda hoje
encontra ecos na paisagem urbana, pois lançou as primeiras bases para o
estabelecimento de um circuito de consumo musical e entretenimento afroperiférico na cidade. No à toa, hoje em dia o Rio de Janeiro é reconhecidamente
caracterizada pela efervescência cultural em torno de novas cenas musicais negras
periféricas, para além do circuito do samba, como o movimento do funk carioca e
do charme, em cujos bailes emergem novos gêneros musicais, novas formas de
dançar, e diferentes experiências de afirmação identitária e mobilização política em
torno da cultura. O Movimento Black Rio também é um bom exemplo para se
pensar a articulação entre práticas musicais e estratégias alternativas de
representação e negociação de diferenças no contexto racializado brasileiro.
11
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
Na compreensão do movimento Black Rio, para essa pesquisa, foi realizada uma coleta
sistemática de informações em bibliografia especializada e na análise documental
disponível tanto na Internet quanto em arquivos públicos de jornais e revistas da
época e atuais, a fim de contextualizar e aprofundar o conhecimento sobre o fenômeno
aqui estudado. Na recuperação dessa cena já extinta, foi importante também
acompanhar algumas trajetórias de vida e origens sociais que se estabeleceram em
torno do consumo de um determinado gênero musical, a soul music, a fim de perceber
como foram construídas as representações sociais dessa comunidade de fãs e
participantes.
Para tal, recorremos a um conjunto de autores de diferentes áreas que abordaram o
fenômeno da constituição dos bailes black como espaços de novos exercícios
identitárias afro-brasileiras a partir do consumo da música popular massiva como
Frias (1976), Bahiana (1980), Vianna (1997), Hanchard (2001), Mccann (2002), Essinger
(2005), Thayer (2006), Giacomini (2006), Alberto (2009), entre outros Na revisão
bibliográfica desse conjunto de textos “clássicos” sobre a Black Rio encontramos dados
históricos sobre esse momento da história urbana do negro brasileiro em busca de uma
nova identidade, a partir do desenvolvimento de tensivas estratégias simbólicas de
diferenciação e consumo cultural na configuração de uma nova produção cultural
negra independente (Oliveira, 2015).
Nos subúrbios do Rio de Janeiro, como nas periferias de muitos centros urbanos de
países em desenvolvimento, o período do pós-Guerra foi marcado por um aumento
significativo da circulação de bens culturais como aparelhos de rádios, toca-discos,
discos de vinil, televisores, dentre outros produtos massivos. Essa condição se refletiu
na solidificação da indústria cultural no Brasil que favoreceu a constituição de uma
produção cultural internacional-popular diante de um sistema de trocas simbólicas
(Dias, 2000). Neste momento, foi significativa a penetração de discursos advindos dos
movimentos pelos direitos civis norte-americanos, da ideologia Black Power, e da
sonoridade da soul music entre uma juventude negra e mestiça proletária carioca, que
ia ao encontro de demandas econômicas e de um contexto marcado pela situação
cotidiana de segregação e marginalização social e racial.
Esse foi o cenário ideal para a emergência, no Rio de Janeiro, de uma cena musical
intitulada pela imprensa e por produtores e DJs como Movimento Black Rio. Com uma
trajetória que acompanhou o decorrer da década de 70, o fenômeno testemunhou o
desabrochar de um segmento de mercado pautado pela formação de uma cultura
“black”, e também foi palco para os primeiros passos de um showbusiness alternativo
carioca, em que jovens DJs e produtores de bailes populares estabeleceram um circuito
marginal de consumo musical e de entretenimento para uma população suburbana
12
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
que buscava formas de lazer alternativas. O movimento difundia, também, uma
ideologia e uma estética altamente influenciada pela cultura negra dos Estados
Unidos, como forma de afirmação de possíveis exercícios identitários e de gosto que
tensionavam polaridades como nacional x estrangeiro, tradição x modernidade,
autenticidade x cooptação (Oliveira, 2015).
A Black Rio, basicamente, foi desencadeada pela ação de dezenas de equipes de som
(ou equipes de baile) que começaram a ser criadas e passaram a atuar em diversos
vários bairros suburbanos e na zona metropolitana da cidade. Essas equipes
realizavam festas que chegavam a atrair de 10 a 20 mil pessoas, inclusive organizando
shows com renomados artistas nacionais e internacionais da black music. Os bailes
eram uma opção de lazer barata e acessível, e seus produtores se esforçavam por tornálos cada vez mais atraentes, realizando sorteios de vinis, concursos de dança e de
beleza negra. A preocupação com a questão racial nem sempre era uma unanimidade
em todas as equipes e bailes, mas alguns DJs ganharam fama justamente por articular
lazer e política de forma inovadora.
Em 1972, no clube Renascença, agremiação criada por uma classe média negra que no
bairro do Andaraí, zona norte do Rio, o produtor e articulador cultural Dom Filó (que
viria a ser, futuramente, dono da equipe Soul Grand Prix) começou a realizar festas
intituladas as Noites do Shaft (em referência ao personagem do seriado americano
homônimo). Através destes bailes, Filó tentava difundir, por meio da pista de dança,
um discurso mais politizado, voltado para a valorização de uma nova imagem do
negro brasileiro e para a formação de uma conscientização racial (Giacomini, 2006). Os
bailes do Renascença deram o tom da cena, articulada em torno de novas políticas
culturais e de lemas da ideologia do movimento Black Power americano como “I Am
Somebody” e “I’m Black and I’m Proud”, que passaram a ser incorporados pelos
frequentadores. Equipes como Cash Box, Furacão 2000 (ainda hoje em atividade), Black
Power, entre muitas outras (estima-se que havia em torno de 400 equipes em atividade
na época), se tornavam cada vez mais profissionais, contratando mais pessoal e
angariando altos lucros com investimentos crescentes em iluminação, sonorização,
divulgação e promoção (Essinger, 2005).
O fenômeno começou a atrair os holofotes da grande mídia, que deu o nome de
Movimento Black Rio à cena musical que se formou em torno dos bailes. Essa cena
acabou favorecendo a popularização da música soul no Brasil, difundindo uma moda
e um estilo black. Segundo a jornalista e crítica musical Ana Maria Bahiana (1980), na
época, o movimento foi responsável pelo enorme índice de vendagem de discos de
black music no Brasil, tanto de artistas brasileiros e americanos, como de coletâneas dos
hits assinadas pelas equipes de som e DJs mais famosos (cujas vendas superavam,
13
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
inclusive, lançamentos de discos de rock de grupos como Rolling Stones e Led
Zeppelin, por exemplo). O primeiro LP da equipe de baile Soul Grand Prix, lançado em
1974, vendeu mais de 106 mil cópias em poucas semanas, conquistando o disco de
ouro e superando, inclusive, o cantor brasileiro Roberto Carlos, maior vendedor de
discos de música popular no país (Bahiana, 1980).
Os frequentadores dos bailes representavam um enorme mercado em potencial,
explorado inicialmente por pequenos selos, mas logo chamando a atenção de grandes
majors do disco. Artistas nacionais que cantavam soul music tiveram suas carreiras
alavancadas pelo movimento e obtiveram grande êxito como Tim Maia e Jorge Ben
Jor, aproveitando esse mercado. Novos nomes como Gerson King Combo, Bebeto (“o
rei dos bailes”), Hyldon e Cassiano (antigos parceiros de Tim Maia) começaram a
despontar, angariando excelentes resultados para a indústria fonográfica1.
O também chamado movimento Black Soul chegou a outras cidades e estados
brasileiros, marcando intensamente a vida nas periferias de alguns centros urbanos e
periferias negras, e produzindo novos desmembramentos em décadas posteriores,
como o movimento hip-hop paulista, a criação dos blocos afro e do samba-reggae em
Salvador, e dando origem ao próprio funk carioca. Com efeito, a cena dos bailes black
pode ser compreendida como palco de novas estratégias interpretativas étnicoculturais e articulações identitárias alternativas por parte de grupos sociais
marginalizados. Mais que alternativas de consumo e entretenimento popular, os bailes
serviam como rituais coletivos de coesão e estruturação social, representando espaços
de exercício de sociabilidades. E ainda se confirmavam como territórios simbólicos de
difusão de discursos de afirmação e conscientização racial, divulgando e afirmando
estéticas e rituais coletivos que articulavam diferentes representações da diferença,
negada em outras esferas da vida cotidiana brasileira.
4. Práticas musicais e políticas culturais
Neste artigo, tentamos empreender uma discussão conceitual em torno da noção de
cena musical, chamando a atenção para o seu potencial de oferecer uma perspectiva
significativa para a compreensão das transformações nas políticas culturais que giram
em torno das experiências identitárias na contemporaneidade. Assim, partimos de
1
Em 1977, a WEA – Warner Music do Brasil – encomendou ao músico Oberdan Magalhães, a pedido da matriz norte-
americana, uma banda que mesclasse a soul music com samba, visando também atingir um mercado internacional.
Com produção artística de Dom Filó, que havia sido contratado pela WEA, foi criada a Banda Black Rio, com existência
curta e poucos índices de vendas, mas que marcou a música popular brasileira por criar uma sonoridade diferenciada
que mesclava influências da música instrumental com uma roupagem mais pop.
14
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
uma perspectiva não-definitiva e cambiante que aponta as cenas musicais marginais
como espaços de organização de categorias de ações de resistência, diferentes práticas
de consumo e novas manifestações culturais em um lócus da experiência, utilizando
como exemplo o Movimento Black Rio. Essa cena musical se constituiu sobre a pauta
da afirmação de uma negritude cosmopolita e de uma afro-brasilidade alternativa, da
qual derivaram práticas de consumo musical que reuniam diferenças sob a égide de
uma outridade invisibilizada, moldada a partir de experiências diaspóricas e
etnicorraciais implícitas em difusos processos de recombinações, hibridizações e
interconexões entre tradições nacionais, símbolos cosmopolitas, mercados alternativos
e cultura mainstream.
Após o panorama geral sobre a configuração da Black Rio, podemos compreender
como as cenas musicais materializam a ligação de um determinado grupo de ouvintes,
fãs e consumidores a um território tanto geográfico quanto simbólico, conectados por
um ato do consumo musical coletivo e por um conjunto de valores particulares, afetos
e performances partilhadas. É possível entender esse movimento como uma cena
musical, pois articulou diversas formas de comunicação e estratégias de ocupação de
um determinado espaço, demarcando fronteiras simbólicas e identitárias a partir da
construção de alianças em torno de novos significados do que era ser “negro” naquele
momento, e em torno do consumo da black music. Dos bailes surgiu um novo tipo de
estilo “black”, difundido pela cena, que unia consumo musical a usos diferenciados da
dança, da moda (criando uma estética “afro”) e da performance. Esse estilo se moldava
e articulava diferentes condições de existência e de produção de sentidos ao criar
linhas de influência e solidariedade ao redor da cena, articulando novas estratégias
interpretativas das influências culturais globais em nível local.
A noção de cena musical também funciona como uma adequada ferramenta
interpretativa no exame desse fenômeno pois dá conta não apenas das interações
puramente sociais,
mas
também abarca
lógicas
de
produção, circulação,
comercialização e consumo, tendo em vista que os bailes estabeleceram um novo
circuito e um novo mercado jovem, independente e periférico. A noção de cena, pois,
consegue enfatizar tanto o caráter híbrido e ambíguo quanto os pontos de unidade e
coerência do Movimento Black Rio ao levar em consideração as dinâmicas de forças
sociais, econômicas e institucionais que afetavam essa expressão cultural coletiva e
também as mecânicas sociais associadas à produção musical (Freire Filho &
Fernandes, 2006, p.6) de maneira complexa e tensiva.
Como pontua Straw (1991), a Black Rio se estruturava pela articulação de alianças
dinâmicas em torno do consumo cultural da música popular massiva, ao mesmo
tempo que possibilitava uma vasta gama de processos de diferenciação social e
15
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
interação, que reforçavam demarcações de diferenças raciais e étnicas, de classe e
gênero, mas mantendo vias de comunicação entre grupos culturais e comunidades de
gosto dispersas (Straw, 1991, p.372), mesmo quando seus ecos foram amplificados,
atingindo outras regiões e chegando à grande mídia.
Essa demarcação da diferença promovida no interior da cena foi central para a
elaboração do seu valor e significado musical, bem como para a construção de
articulações entre práticas musicais, identidades, estilos e afetos. A partir dessa breve
análise, pretendemos com este artigo contribuir para a compreensão das interconexões
entre práticas musicais, consumo cultural e ocupação de territórios urbanos
significativos, reconhecendo o papel fundamental de experiências estéticas,
sensibilidades e mediatizações na constituição das cenas musicais como lócus da
afirmação, representação e negociação de diferenças, especialmente em contextos
racializados e diaspóricos.
Nesse sentido, a materialização da cena da Black Rio se deu na proposição de modos
específicos de mapear, demarcar e ocupar o terreno urbano por meio de práticas
musicais autorreflexivas (Janotti Jr., 2012): os bailes black, espaços que correlacionavam
o consumo de gêneros musicais estrangeiros (o soul, o funk, a disco music), naquele
momento compreendidos como “black music”, a um território periférico urbano – os
subúrbios cariocas – ocupado majoritariamente por uma classe proletária negra
brasileira. Os bailes seriam, neste sentido, rituais partilhados coletivos que envolviam
tanto a atividade de consumidores, produtores e músicos quanto práticas de mercado.
Em que a música servia tanto como amálgama da expressão de afetos relativos a um
pertencimento a uma comunidade racializada, quanto como a expressão de
sentimentos de revolta contra o racismo e a renúncia a um modelo de sociedade
baseado em polarizações raciais, mas ocultadas sob o manto de uma suposta
“democracia racial”. Desta forma, a noção de cena musical é fundamental na
compreensão tanto das ações midiáticas e dos atos de consumo cultural quanto das
performances estéticas engendradas nesses territórios significativos. A ideia de cena
nos é útil, assim, pois funciona como moldura analítica para compreender a lógica da
formação de alianças no interior e ao redor dos bailes, como também para interpretar
a rede de afiliações mais amplas que deram corpo a experiências estéticas e musicais
independentes inovadoras que transformaram as práticas musicais e culturais urbanas
periféricas no Rio de Janeiro dos anos 70.
Na definição dos sentidos das cidades, observar as práticas dos integrantes de uma
cena musical em diferentes locais de socialidade oferece um panorama para a
compreensão da experiência musical (tanto em seus aspectos de produção de sentido
quanto estéticos) como um processo importante de demarcação e construção de
16
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
alianças afetivas e identitárias em torno de um território cultural. As cenas, desta
forma, ancoram em si estruturas de sentimento, q ue dizem respeito à partilha de
experiências, gostos e afetos comuns inscritos em práticas musicais urbanas
específicas, configuradas em determinado espaço. Nele, diversas narrativas se
entrelaçam na reconstituição de experiências subjetivas e na compreensão das
dinâmicas de produção de subjetividades.
O sentido político das cenas musicais, dessa forma, reside na articulação de
identidades, afetos e interesses de seus participantes, que não são contemplados pelas
instâncias h e g e m ô n i c a s da sociedade, e desenvolvem estratégias singulares e
alternativas de socialização e consumo cultural. Ao correlacionarmos gostos e práticas
de consumo com categorias de identificação, é possível examinar a maneira como
práticas musicais específicas atuam na produção de um senso de comunidade,
materializado nas cenas musicais urbanas periféricas. Que unificam sentimentos de
participação em alianças afetivas tão poderosas quanto aquelas normalmente
observadas dentro de práticas que são mais fincadas organicamente em
circunstâncias locais. As cenas musicais demarcam possíveis fronteiras híbridas para
as diferenças culturais e, como ferramenta interpretativa, estimulam a compreensão
das relações entre os atores sociais e os espaços culturais das cidades, tensionadas e
complexificadas em momentos de transformação histórica. Oferecendo, pois,
um aporte significativo para a incorporação da discussão dos aspectos políticos da
cultura, do consumo e da identidade aos estudos de comunicação.
17
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
Referências bibliográficas
Alberto, Paulina (2009). When Rio Was Black: Soul Music, National Culture, and the
Politics of Racial Comparison in 1970s Brazil. Hispanic American Historical Review.
Durham: Duke University Press.
Bahiana, Ana Maria (1980). Enlatando a Black Rio. In: Bahiana, Ana Maria (org.) Nada
será como antes – MPB nos anos 70. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 216-222.
Baulch, Emma (2003), “Gesturing elsewhere: the identity politics of the Balinese
Death/Thrash Metal scene”, Popular Music. 22 (02), 195-215.
Bhabha, Homi K. (1998), O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG.
Bhabha, Homi K. (2011), O bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses. Rio de Janeiro:
Rocco.
Berger, H. (1999), Metal, rock and jazz: perception and the phenomenology of musical
experience. Hannover: Wesleyan University Press.
Cardoso Filho, J. (2015), “Disputas de valor na música popular massiva: política,
estética e cultura”, Revista Perspectiva Histórica, Salvador: Centro Brasileiro de Estudos
e Pesquisas (CEBEP), 4 (6), 67-83.
Cardoso Filho, J. e Oliveira, L. X. (2013), “Espaço de experiência e horizonte de
expectativas como categorias metodológicas para o estudo das cenas musicais”, Trans.
Revista Transcultural de Música, Barcelona, Espanha: Sociedade de Etnomusicologia,
(17), 1-21.
Dias, M. T. (2000), Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da
cultura. São Paulo: Boitempo.
Essinger, S. (2005), Batidão: uma história do funk. Rio de Janeiro e São Paulo: Record.
Featherstone, M. (1995), Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Nobel.
Freire Filho, J. e Fernandes, F. (2006), “Jovens, espaço urbano e identidade: reflexões
sobre o conceito de cena musical”, In: FREIRE FILHO, J. & JANOTTI JÚNIOR, J. (org.).
Comunicação e Música Popular Massiva. Salvador: EDUFBA, 25-40.
Frias, L. (1976), “Black Rio: o orgulho (importado) de ser negro no Brasil”. Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 17 jul. 1976. Caderno B, p. 1 e 4-6.
Garcia-CanclinI, N. (2007), A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras.
18
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
. (2008), Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.
Giacomini, S. (2006), A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube social da Zona
Norte do Rio de Janeiro, o Renascença Clube. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: UFMG e
IUPERJ.
Gilroy, P. (2001), O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34.
. (2007), Entre Campos: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça. São Paulo: Anablume.
Hall, S. (2002). A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. 7 ed. Rio de Janeiro. DP&A.
Hanchard, M. G. (2001), Orfeu e o poder: movimento negro no Rio e São Paulo. Rio de
Janeiro: UERJ.
Hebdige, D. (1979), Subculture: The Meaning of Style. Florence, KY, USA: Routledge.
Janotti Júnior, J. (2012), “War for territory: cenas, gêneros musicais, experiência e uma
canção heavy metal”, ANAIS da XXI COMPÓS, Juiz de Fora, Minas Gerais.
Kahn-Harris, K. (2000), “Roots?: The Relationship Between the Global and the Local
Within the Global Extreme Metal Scene”, Popular Music. 19 (01), 13-30.
Lima, T. (2015), Mangueabeat – da Cena ao álbum: performances midiáticas de Mundo Livre
S/A e Chico Science & Nação Zumbi. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Salvador: FACOM/UFBA,
2007.
Consultado
a
03.01.2015,
em
http://www.midiaemusica.ufba.br/arquivos/t&d/LIMA.pdf.
McCann, B. (2002), “Black Pau: uncovering the history of Brazilian soul”. Journal of
Popular Music Studies, n. 14, p. 33-62.
Oliveira, L. X. de (2015). “Visões sobre o Movimento Black Rio: apontamentos teóricos
sobre estilo, consumo cultural e identidade negra”. Animus – Revista Interamericana de
Comunicação Midiática. 14 (27), Cascavel: Universidade Federal de Santa Maria, p. 7893.
Pires, V. A. (2011), “Cenas Musicais: do discurso jornalístico ao estudo acadêmico”,
Anais do XIII Intercom - Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, Maceió,
Alagoas, 2011.
19
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
Ribeiro, G. (2006), Do tédio ao caos, do caos à lama: os primeiros capítulos da cena musical
Mangue, Recife – 1980-1991. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em História. 232f.
Rocha, E. e Barros, C. (2008), “Entre mundos distintos: notas sobre a comunicação e
consumo em um grupo social”, In: BACCEGA, Maria Aparecida (org.). Comunicação e
culturas do consumo. São Paulo: Atlas.
Straw, W. (1991), “Systems of articulation, logics of change: scenes and communities
in popular music”, Cultural Studies, 5(03), 361-375.
. (2001), “Dance Music”, In: FRITH, S.; STRAW, W.; STREET, J. (Ed.). The
Cambridge Companion to Pop and Rock. Cambridge: Cambridge Unversity Press.
. (2006), “Scenes and Sensibilities”. E-Compós, 06, 1-16.
Thayer, A. (2006), “Brazilian Soul and DJ Culture’s Lost Chapter”. Wax Poetics, n. 16,
p. 88-106.
Thornton, S. (1996), Club Culture: Music, Media, and Subcultural Capital. New England:
Wesleyan University Press.
Vianna, H. (1997), O mundo funk carioca. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Williams, R. (1979), Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Willis, P. (1977), Learning to labour: how working class kids get working class jobs. Saxon
House: London, 1977.
20
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 9
IS Working Papers
3.ª Série/3rd Series
Editora/Editor: Paula Guerra
Comissão Científica/ Scientific Committee: João Queirós, Maria Manuela Mendes,
Sofia Cruz
Uma publicação seriada online do
Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
Unidade de I&D 727 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
IS Working Papers are an online sequential publication of the
Institute of Sociology of the University of Porto
R&D Unit 727 of the Foundation for Science and Technology
Disponível em/Available on: http://isociologia.pt/publicacoes_workingpapers.aspx
ISSN: 1647-9424
IS Working Paper N.º 9
Título/Title
“Cenas musicais, experiências identitárias e práticas de consumo: os bailes black no
Rio de Janeiro”
Autora/Author
Luciana Xavier de Oliveira
A autora, titular dos direitos desta obra, publica-a nos termos da licença Creative Commons
“Atribuição – Uso Não Comercial – Partilha” nos Mesmos Termos 2.5 Portugal
(cf. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/pt/).
21