Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
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ESPETÁCULOS E DESAFIOS NA PROVENÇA ANGEVINA: NOTAS SOBRE OS TORNEIOS E JUSTAS NA CORTE DE RENÉ I (1434 – 1480) Paulo Edmundo Vieira Marques 10 “Outro tesouro não há, que não o júbilo”. (Divisa de Francisco II, duque da Bretanha, século XV). “Possa eu sempre dos meus desejos ter satisfação e nunca de outro bem deleitação” (Divisa do senhor de Ternant, cavaleiro da corte de Felipe, o Bom, duque de Borgonha, século XV). “Se como um bravo eu lutar e, morrer, Ao lado de Deus haverei de sentar e, viver” (De um Cavaleiro Anônimo) 11 AGRADECIMENTOS Agradeço a minha orientadora, professora Eliana Ávila Silveira, pela objetividade em indicar-me um rumo correto à pesquisa. À professora Elisabeth Torresini, pela sensibilidade e apoio dado a mim quando da escolha da temática a ser estudada. Ao médico oftalmologista, doutor Sergio Kwitko, que acreditou e possibilitou através de inúmeras intervenções cirúrgicas, que eu tivesse uma acuidade visual compatível para a conclusão deste trabalho. Aos meus poucos amigos, mas fiéis e sinceros, que sempre acreditaram em mim, principalmente nas horas difíceis onde o suporte da amizade verdadeira é fundamental. A todos os meus colegas da História da PUCRS. Especialmente, os que ingressaram no primeiro semestre de 2002. Pelo incentivo e estímulo constantes. A todos os funcionários dos arquivos e bibliotecas nos quais foram realizados os estudos e pesquisas. E agradeço a Deus e a Nossa Senhora das Graças, afinal de contas, se desejarmos chegar a algum lugar, não basta contar com saúde e intelecto: é preciso espiritualidade em equilíbrio. 12 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 - Fonte: Bayeux Tapestry, Museu Britânico, obra de arte bordada entre 1070-1080 pelos artesãos da catedral de Canterbury a pedido do bispo Odo de Bayeux, meio-irmão de Guilherme, o Conquistador ................................................................................................................ 33 Ilustração 2- Área provável de treinamento de torneios e justas .................................................. 34 Ilustração 3 - Torneio em Londres Séc. XV. Fonte: Bodleian Library Oxford University, Londres.................................................................................................................................................40 IIlustração 4 - A preparação dos torneios nos arredores da cidade. Fonte Bibliotèque Nationale de France, BNF, Manuscrits Français.Séc. XV. ................................................................................ 41 Ilustração 5 - Prazeres perigosos da vida mundana. Mestre Ermengol, Le bréviaire d’amour, séc .XIII. (Madrid, Biblioteca do Escorial), ....................................................................................... 47 Ilustração 6 - Cavaleiros em Justas, Séc. XV. Fonte: BNF, Paris, França..................................... 56 Ilustração 7 - Mapa da França Séc. XV, 1430. Fonte: Enciclopédia Britannica............................ 61 Ilustração 8 - Mapa Lingüístico da França – Séc. XV, Fonte: http://parlange.free.fr/pages/chronologie.html................................................................................ 63 Ilustração 09 - Luis XI, Século XV, Museu do Brooklyn (New-York).............................................. 66 Ilustração 10 - Mapa da Provença Séc. XV, 1430. Fonte: www.fordham/edu................................ 68 Ilustração 11 - Expansão Angevina (do séc. XIII, ao início do séc. XV) As possessões territoriais e influências da Casa de Anjou. Fonte: Cartographie Patrick Mérienne.................... 70 Ilustração 12 - René d’Anjou e Joana de Laval, Pintura de Nicolas Froment, 1474, Museu do Louvre Paris, França...........................................................................................................................73 Ilustração 13 - Le Jouvencel de Jean de Bueil, 1470, BNF, Paris, França.................................... 82 Ilustração 14 - Apresentação dos cavaleiros para uma justa, iluminura séc. XV. Fonte: Bibliothéque Prince Albert, Bruxelas, Bélgica................................................................................ 83 Ilustração 15 - René d’Anjou e a sua corte. Fonte Biblioteca de Marselha, França.................... 85 13 Ilustração 16 - Château Provença, Séc. XV, Tarascon. Fonte: Bibliothéque Aix, Provence...... 88 Ilustração 17 - Carta Administrativa de René d’Anjou com instruções ao Sénéchal (Chefe da Casa do Rei), 1462, Fonte: BNF, Paris ............................................................................................. 90 Ilustração 18 - René d’Anjou e a sua Armada. Século XV, 1484. Fonte: BNF. Français 5054, fl. 171, Paris, França............................................................................................................................... 92 Ilustração 19 - A entrega do Livro dos Torneios após a sua confecção por Barthélémy d’Eyck à René d’Anjou. Fonte: BNF, Paris, França......................................................................................... 95 Ilustração 20 - É mostrada a maneira em que o duque da Bretanha, Senhor Provocador, dá a espada ao Oficial das Armas, para apresentá-la ao duque de Bourbon, Senhor Defensor. Fonte: BNF. Français 2695, Fl. 3................................................................................................................. 100 Ilustração 21 - Detalhe da Indumentária no Final da Idade Média no Livro dos Torneios. Fonte BNF, Français 2695, Fl. 7................................................................................................................. 102 Ilustração 22 - É demonstrada a maneira e a forma como o Oficial das Armas apresenta a espada ao duque de Bourbon, Senhor Defensor. Fonte BNF, Français 2695, Fl. 7................... 104 Ilustração 23 - É mostrada a maneira e forma que o Oficial de Armas dá os oito brasões dos cavaleiros e dos escudeiros ao duque de Bourbon. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 11........... 106 Ilustração 24 - Demonstrada a maneira que o Oficial das Armas, com o pano dourado em seu ombro e, os dois capitães e os brasões dos juízes ilustrados nos quatro cantos do pergaminho anunciam o torneio e, como os representantes dão um pequeno escudo com os brasões dos juízes a todos que desejem fazer parte do torneio. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 19............. 109 Ilustração 25 - É mostrada a maneira em que o arauto expõe ao público as quatro bandeiras dos quatro juízes, árbitros do torneio. Fonte: BNF, Français 2695. Fl.. 62................................. 110 Ilustração 26 - Forma e estilo das cristas e elmos (arreios p/cabeça). Fonte: BNF, Français, Fl.23.................................................................................................................................................... 112 Ilustração 27 - Forma e estilo das espadas e massas. Fonte: BNF, Français, Fl.31.................. 113 Ilustração 28 - O estilo e a forma dos corseletes (cuirass) apropriados para competir. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 25............................................................................................................... 115 Ilustração 29 -- Iluminura do livro também escrito por René d’Anjou, Couer d’amour épris, 1460, onde descreve o simbolismo do armamento na vida do cavaleiro. Fonte: BNF; Manuscripts Medièvale, ms-français, fls. 2541, 2542.....................................................................116 14 Ilustração 30 - O duque da Bretanha (Senhor Provocador) e o duque de Bourbon (Senhor Defensor), armados e montados, com as cristas, com vestimentas completas para o torneio. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 45................................................................................................... 117 Ilustração 31 - Detalhe da ilustração n° 30, onde se observa a verticalidade do Cavaleiro e a horizontalidade de sua montaria. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 45.......................................... 118 Ilustração 32 – A entrada dos juízes e arautos na cidade organizadora dos torneios. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 57............................................................................................................... 120 Ilustração 33 - Descrição de como os capitães expõem seus brasões nas janelas das estalagens. Aqui representada pelos brasões dos cavaleiros, escudeiros, representantes do conde de Bourbon. Fonte: BNF, Français 2695, Fl.55................................................................... 121 Ilustração 34 – Entrada dos cavaleiros participantes do torneio na cidade. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 66, 67................................................................................................................................... 123 Ilustração 35 – Detalhe da Ilustração 32. O uso das trombetas, para a marcação do início ou encerramento de qualquer tipo de solenidade nos torneios. BNF, Français 2695, F. 57.......... 125 Ilustração 36 - Os embates nos torneios: Fonte: BNF, Français 2695, Fls. 100 e 101............... 127 Ilustração 37 – Detalhe da Ilustração 36, onde se observa os detalhes pormenorizados do armamento dos cavaleiros nos torneios do século XV. A precisão dos traços para descrever (espadas, elmos, couraças, etc.), que se usavam á época. Fonte: BNF, Français 2695, Fls. 100 e 101...................................................................................................................................................... 128 Ilustração 38 - Descrição de como a dama, o cavaleiro ou escudeiro de honra e os juízes dão o prêmio ao vencedor do torneio. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 103........................................... 130 Ilustração 39 – Detalhe da Ilustração 38. Indumentária Feminina, no final da Idade Média. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 103............................................................................................................. 131 15 16 INTRODUÇÃO Nos dias de hoje, agitados e estressantes, as luzes e cores da ostentação podem oferecer uma fuga da realidade mundana. A vida medieval era geralmente mais monótona1 e bem mais calma que a nossa, suas grandes ocasiões distinguiam-se ainda mais fortemente diante de tal cenário. Imagine um mundo onde as cores vivas eram um luxo, a música era ouvida, sobretudo nas feiras, nas igrejas, nas cortes e em grandes aglomerações do mesmo tipo, onde os entretenimentos podiam ser vistos somente em raros intervalos e, por conseguinte, especialmente nas cidades, nas festas religiosas e nos vilarejos mais povoados. Certamente era um mundo no qual, após o anoitecer, a escuridão era quebrada por alguns tênues clarões. Mas como nota Pastoureau, a festa, o jogo e o torneio representaram também um aspecto importante da vida medieval. Para os nobres o torneio significava um evento especial, seu principal divertimento. Hoje, quando nossos sentidos são bombardeados por uma farta gama de imagens, ainda conseguimos reagir à pompa de uma grande ocasião. O efeito de um espetáculo suntuoso sobre um espectador medieval era muitas vezes mais intenso. . Pesquisar e enfocar os torneios na França2 medieval, mais especificamente na Provença, é expandir os horizontes de conhecimento sobre a própria vida cultural e social da Idade Média européia. Assim, o objetivo fundamental deste trabalho foi o de estudar os torneios e justas medievais, situando-os no contexto histórico da sociedade cavalheiresca. Ao final da Idade Média, na França e na Provença, apesar das inúmeras guerras e crises, os torneios proporcionaram variadas formas de convivência e relações 1 PASTOUREAU, M. No Tempo dos Cavaleiros da Távola Redonda , São Paulo, Cia das Letras. p. 133. 2 O termo França, foi usado neste trabalho para designar todos os reinos subordinados ao soberano francês no período pesquisado (1434-1480), e também os territórios que o acaso das heranças, o sucesso das guerras e anexações diplomáticas foram submetidos ao rei francês desde o início do reinado de Carlos VII (1422-1461), e no decorrer de seu sucessor Luis XI (1461-1480). Os termos sociedade francesa e franceses correspondem aos pertencentes ao contexto geopolítico e cultural das regiões acima citadas e também subordinados ao Delfim. 17 sociais, conseqüentemente, trocas culturais. No decorrer dos séculos XIV e XV, o intercâmbio cultural, estabelecido entre franceses e provençais3, constituiu um processo muito relevante para a formação de uma sociedade cavalheiresca diferenciada das demais do Ocidente medieval. A proposta geral deste trabalho é, portanto, analisar o significado e a importância dos torneios e das justas na cultura da sociedade franco-provençal da Baixa Idade Média. Situamos em especial o estudo das mesmas na sociedade da Provença, ao longo do reinado de René I, o Bom (1434-1480). Para a compreensão dos desafios aristocráticos expressos, nos torneios e nas justas, desenvolvidos na corte angevina4 do século XV, toma-se como fonte e objeto de análise o Livro dos Torneios, obra do próprio René d‟Anjou ilustrada por Barthélémy d‟Eyck (1455-1460). Essa obra nos revela aspectos importantes da mescla cultural entre a sociedade provençal com o restante da Europa medieval. Tal fonte foi escolhida em virtude de ser também um documento riquíssimo em informações e dados sobre a prática dos torneios e das justas nas cortes do sul da França. Em seu conteúdo, esta obra apresenta comentários, textos e imagens que revelam informações, muitas vezes desconhecidas, da cultura medieval, em todos os seus aspectos. Dessa maneira, foram selecionados os torneios e as justas praticadas na corte provençal, em função de acreditarmos que o registro destas atividades, voltadas ao espetáculo, contribui para nos revelar muito das 3 Os termos sociedade provençal e provençais foram utilizados, neste trabalho, para designar todo aquele pertencente ao Condado da Provença, no sul da França, onde prevalecia a soberania do rei René d‟Anjou, no período compreendido entre 1434 e 1480. 4 Dinastia relativa e proveniente do Condado de Anjou, antiga província da França, compreendida entre o Maine, o Poitou e a Touraine e, que formou o Departamento do Maine-et-Loire. A partir de 1204, a Normandia e o Anjou foram confiscados por Felipe II da França ao rei João Sem Terra. Entre 1245 e 1285, Anjou foi considerado dependência da Coroa francesa por Carlos, irmão de Luis IX. Foi ele, como Carlos I, rei da Sicília, que fundou a nova casa de Anjou (II Dinastia Angevina), a qual deu reis para Nápoles, Hungria e Polônia. A Terceira Dinastia Angevina a qual pertencia René d‟Anjou , não conseguiu impor seus direitos à Nápoles, mas reinou no Anjou e no Maine a partir de 1360 e, na Provença a partir de 1382 Com a morte do rei René foi incorporado às terras da Coroa francesa em 1480. 18 peculiaridades e das trocas culturais ocorridas entre a sociedade cavalheiresca no território francês e provençal. O estudo das obras compiladas durante o reinado de René I, um príncipe preocupado com a ordem social aristocrática, patrono das artes, patrocinador dos grandes eventos dos torneios, possibilita um olhar sobre a vida na corte, atentando para os modelos5 e para a criação de um modo de vida mais suntuoso e magnificente da aristocracia francesa. Para estudar os torneios e as justas na sociedade francesa e provençal, é importante compreender o contexto geral destes dois reinos, separados administrativamente, mas ligados umbilicalmente em virtude das inúmeras trocas sociais, políticas e culturais. A França, a partir do reinado de Carlos VII, o Bem Servido (1422-1461), soberano que como diz Goubert: “parecia não acreditar em si mesmo, talvez nem mesmo na sua legitimidade, assim como as pessoas que o rodeavam (divididas, corruptas, desonestas) também não” 6 . A energia e a fé faltavam a todo este mundo “delfinal”: mas vieram todos estes componentes de Donremy, através de Joana d”Arc. Após a morte da “santa d‟Arc”, a Guerra dos Cem Anos tomava um novo rumo. A Provença, território ao sul da França, no decorrer do reinado de René d‟Anjou (1434-1480) se alinhava com o Delfim. Da costa ensolarada e promissora vinha, inegavelmente um intercâmbio que se manifestava para o norte do Loire, que contribuía para o florescimento cultural e o renascer da França. Como mostra Will Durant na expressão: Gállia Phoenix7. 5 SILVEIRA, A. Eliana. Cultura e Poder na Baixa Idade Média Castelhana: O Livro das Armas de Dom João Manuel (1282-1348). O texto estuda os paradigmas aristocráticos de comportamento, bem como analisa os procedimentos da educação nobiliárquica. Tese de Doutorado, Curitiba Nov/2005, p. 135, 136, 137, 218 e 219. 6 GOUBERT, Pierre. História Concisa de França, Lisboa, Europa-América. 2001. p. 64. 7 DURANT, Will. A História da Civilização: Uma História da Civilização Européia de Wyclif a Calvino (13001564), Rio de Janeiro, Ed. Record, 2002, p. 76. 19 O sucessor de Carlos VII, seu filho Luis XI (1461-1483) também recebeu o apoio do rei provençal, apesar de certas restrições e conflitos, até a morte do mesmo, em 1480. A partir daí, o soberano francês, em virtude do desaparecimento do chamado bom rei René, resolve anexar as terras independentes da Provença aos domínios do reino da França em 1481. A França, neste período, nem pelo traçado das fronteiras, nem por sua estrutura política, administrativa e jurídica apresenta uma coesão definitiva, que será mais tarde um dos traços essenciais do Estado moderno. Tal ausência de unidade, agravada pela dificuldade de estabelecer relações entre as suas diversas regiões, não constitui apenas um fator essencial da história deste tempo, mas também se reflete nos múltiplos aspectos da vida material e cultural dos habitantes com os seus particularismos provinciais como no caso da Provença. A França do século XV é um vastíssimo território que, apesar dos conflitos políticos, era mais rico e mais povoado que qualquer outro Estado da Cristandade. Sua população pode ser avaliada em quinze milhões de habitantes8, densidade notável, só excedida por algumas regiões da Itália do Norte e da Flandres, mas que ultrapassava em muito a da Inglaterra, da Alemanha e da Espanha. Por outro lado, a melhor imagem da Provença deste tempo seria dada, sem dúvida, por um “mapa de castelos”, em que cada um constituía, simultaneamente, uma base de operações políticas, sociais, econômicas, religiosas e culturais e, um instrumento de poderio do rei René d‟Anjou sobre as regiões a ele subordinadas. Reino próspero, limitado ao 8 CHAUNU, Pierre. A História Como Ciência Social, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976. p. 473. 20 sul da França, a norte pelo Delfinado e pelo Condado Venaissin, a leste pelo Piemonte e pelo Condado de Nice, ao sul pelo Mediterrâneo e a oeste pelo Languedoc, mantinha intercâmbios diversos com Florença, Amsterdã, Gênova, Barcelona, Lisboa, Paris, dentre outras. Na Idade Média, a sociedade francesa e a provençal eram marcadas por suas especificidades históricas. Mas, no decorrer deste período alcançaram modos de interação social, política e cultural. A prática nobiliárquica dos torneios e das justas forneceu elementos significativos para melhor compreendermos essas trocas culturais. Os cronistas medievais, em geral, escreviam de maneira superficial sobre os torneios, com poucos detalhes e muito brevemente. Deste modo, é importante procurar os fragmentos das evidências deixadas, e reunir o que pudermos dos textos medievais, dos manuscritos, das iluminuras e dos livros específicos sobre o tema, como o já citado Livro dos Torneios de René D’Anjou, do século XV. Diante das raras fontes encontradas a respeito do assunto, procurou-se apresentar ilustrações (iluminuras) 9 que dessem sustentação e apoio à narrativa, tentando possibilitar através delas uma melhor compreensão ao leitor sobre o tema abordado no presente trabalho. Para isso foi utilizada na pesquisa a mesma metodologia adotada por Georges Duby, presente nas obras “História Artística da Europa, A Idade Média e História da Vida Privada, Da Europa Feudal à Renascença”. São produções nas quais o autor, como coordenador e impulsionador das pesquisas, utiliza imagens iconográficas pertinentes ao contexto medieval, para enriquecer e tornar clara ao leitor a sua narrativa. Tentando primar pela síntese, Duby e seus colaboradores, trazem ao leitor suas devidas 9 As iluminuras medievais, especialmente as dos séculos XIV e XV, desempenham um papel ao mesmo tempo decorativo e narrativo. É uma função narrativa o que inspira uma iluminura de página inteira, verdadeiros quadros que ilustram o texto. Muitas vezes o espaço iluminado é subdividido em pequenos compartimentos, cada um deles contendo uma cena, por forma a oferecer uma série de episódios em uma seqüência na mesma página. Cada uma das cenas, por vezes, é enquadrada por uma moldura trilobada e a página iluminada tem uma estrutura semelhante à de um grande vitral. Chamam a atenção a riqueza e a variedade de detalhes, o esplendor do colorido e a abundante presença do ouro. (GOZZOLI, Maria Cristina. Como Reconhecer a Arte Gótica, Ed. 70, Lisboa, 1978). p. 56, 58. 21 constatações, deixando sob responsabilidade das ilustrações a sustentação das mesmas. Procurou-se neste trabalho aliar à imagem, o sentido da palavra de um texto, crendo que no caso da Idade Média este método se impõe mais do que no de outras eras, em virtude da exuberância que as iluminuras daquela época continham. Os termos “Torneio” e “Justas” tem duas especificações distintas. No trabalho, o primeiro termo “Torneio”, foi usado para descrever a ocasião toda. Durante a Idade Média, a alternativa comum nas crônicas inglesas e francesas, sobretudo, no período de 1100-1400 é Hastiludium10. Mas a partir do século XV ele recebe uma nova conotação como Pas d’Armes, Tourney, Tournois. Em um torneio, as duas equipes encontravam-se como se fossem ao campo aberto de batalha, em uma competição geral ou mêlée (luta corpo-a-corpo). Era quase a mais perigosa forma de desafio e, conseqüentemente, tornou-se cada vez mais rara. Ao mesmo tempo em que o torneio, em seu sentido técnico, tornava-se mais raro, a palavra que o designava ia sendo aplicada de maneira mais ampla, abrangendo todas as formas de combate cavalheiresco. No âmbito dos jogos e exercícios militares, o segundo termo, “Justas”, era definido como combate simples, um cavaleiro contra o outro, embora o competidor de justa possa pertencer também a uma equipe. No período compreendido entre o século XII e XIV, elas eram geralmente travadas sem uma barreira central para separar os combatentes. A arena era a área anexa na qual os torneios e as justas eram disputados. No período inicial dos torneios, as fronteiras eram muito amplas, e nem sempre claramente definidas, mas provavelmente a partir do século XIV um cercado fortificado parece ter sido estabelecido 10 Literalmente um jogo de arpões, um jogo de lanças, (recontro entre cavaleiros armados com pesadas lanças de madeira, que tinham como principal objetivo desmontar o adversário). Podendo ser aplicado a todas as formas de combate montado, seja em masse (em massa) ou individual. (CARDINI, O Homem Medieval, 1989, p.69). 22 como padrão. Exploraremos as implicações detalhadas destes termos mais adiante, nos capítulos pertinentes ao assunto. Diante disto, para o desenvolvimento da proposta geral da pesquisa, o trabalho dispõe dos seguintes objetivos específicos: a) Estudar o contexto histórico da França e da Provença medieval, destacando as características principais da sociedade francesa e provençal. b) Analisar a organização dos Torneios e das Justas como elemento significativo de integração sócio, política e cultural na sociedade provençal no decorrer do século XV, durante o reinado de René I, principalmente no período de (1434-1480). c) Compreender a contribuição especifica da Provença à vida social e cultural e aos costumes dos torneios e espetáculos da corte Angevina no período estabelecido. Quanto à problemática da pesquisa, é fundamental dizer que o trabalho propõe um estudo histórico dos torneios e das justas na Idade Média, evidenciando uma reconstituição do contexto destes eventos na Europa da época. Deste modo, intenta-se perceber quais as relações que a sociedade medieval mantinha com tais práticas. Para que se possa compreender o papel dos torneios e das justas algumas indagações são importantes: Quais as suas origens? Como um combate simulado tornou-se um espetáculo? Qual a diferença dos torneios no período compreendido entre os séculos XI e XIV para com os torneios do século XV? Como eram planejados, organizados e elaborados os torneios no Condado Provençal? Havia regras e formas estabelecidas? O Livro dos Torneios de René 23 d‟Anjou pode ser qualificado como um manual da Cavalaria do século XV? Os torneios deixaram de ser práticas e exercícios militares para se tornarem espetáculos? As respostas são surpreendentemente difíceis de encontrar e foi somente nos últimos anos, com o renascimento do interesse pela realidade histórica da Cavalaria, que os estudiosos começaram a responder a algumas dessas questões, de acordo com Le Goff : “Com grandes esforços de métodos e respeitáveis esforços de imaginação, podemos, entretanto, fazer com que as lacunas falem. É uma das tarefas dos medievalistas que virão fazer falar os silêncios atuais da Idade Média”. 11 Esta pesquisa procura exibir um quadro coerente do Torneio Medieval, no entanto, muitas conclusões precisarão, inevitavelmente, ser provisórias. Os torneios estavam no centro de grande parte da ostentação medieval, e é esta imagem que permanece até hoje. Eles combinavam o espetacular com a excitação de um combate físico, hábil e perigoso, e com a conseqüente veneração dos heróis, de suas estrelas. Somado a isso, havia um elemento de idealismo, de honra, de coragem e de fidelidade, pois o torneio era fundamental ao mundo da Cavalaria. As damas que assistiam das arquibancadas estavam lá tanto para inspirar como para admirar seus cavaleiros, e para fortalecer-lhes a coragem com sua presença. O interesse por estas questões deve-se a possibilidade de estudar aspectos do cotidiano e da mentalidade dos homens do medievo, mostrando como sua vida cavalheiresca possuía um tempo para as guerras e um tempo para os jogos e exercícios militares. Com isso pretende-se estabelecer um contraponto a uma visão da Idade Média, principalmente da Baixa Idade Média, vista como um período que simplesmente antecedeu o Renascimento, preconceito este, mais do que injusto para o século XV onde se verificou muita complexidade e diversidade cultural de extrema relevância. Como observa Franco Jr.: 11 LE GOFF, Jacques. Em Busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.50. 24 “(...) a recuperação a partir de meados do século XV, deu-se em novos moldes, estabeleceu novas estruturas, porém ainda assentadas sobre elementos medievais: o Renascimento (baseado no Renascimento do século XII), os descobrimentos (continuadores das viagens dos normandos e dos italianos), o Protestantismo (sucessor vitorioso das heresias), o Absolutismo (consumação da centralização monárquica)”. 12 Neste sentido, os alicerces do Renascimento foram concretados anteriormente com processos contínuos. Assim, o século XV de maneira alguma pode dissociar-se do medievo nem do Renascimento. Na tentativa de responder a estas questões, buscou-se alguns autores que fornecem um embasamento histórico e teórico ao entendimento da temática dos torneios no contexto da sociedade medieval. A fim de organizar os principais tópicos tratados na pesquisa, divide-se o estudo da monografia em quatro capítulos. No primeiro capítulo, será destacada uma reflexão teórica sobre os torneios a partir da noção de espetáculos apresentada por Debord. A seguir em conjunto com as análises desenvolvidas por Michel Pastoureau, Johan Huizinga, Norbert Elias, Jean Flori, Georges Duby, Jacques Heers e Jacques Le Goff, autores que trazem importantes reflexões sobre a sociedade medieval, procuraremos compreender a vida cavalheiresca. No segundo capítulo, busca-se enfatizar as origens dos torneios e das justas no contexto histórico europeu. De maneira cronológica, para melhor compreensão do tema, o trabalho analisa a sua evolução no decorrer da Idade Média. No terceiro, trataremos do contexto histórico, em especial da França e da Provença durante a Baixa Idade Média e a sua transição para o Renascimento, sobretudo nos 12 FRANCO JR. Hilário. A Idade Média, Nascimento do Ocidente, São Paulo, Ed. Brasiliense, 2001. p. 16, 17. 25 anos compreendidos entre 1430 e 1480. Ao retratar o contexto destas regiões, visaremos contemplar o processo que vai do final da Guerra dos Cem Anos, após a morte de Joana d‟Arc, até a formação do Estado Moderno. Buscaremos também estudar o contexto cavalheiresco da corte provençal no século XV, salientando suas novas implicações para as transformações da Cavalaria, bem como as repercussões destes eventos no cotidiano da sociedade medieval, principalmente no que tange á organização e elaboração dos torneios. A quarta e última parte do trabalho será destinada ao estudo dos torneios e das justas especificamente na Provença, mediante a análise documental da literatura da corte angevina. No que se refere ao Livro dos Torneios de René d‟Anjou, serão enfocadas tanto a sua introdução, onde ressalta-se dados importantes a respeito da confecção do livro e também as imagens das iluminuras que retratam vários momentos da organização e elaboração de um torneio. A obra do soberano provençal, “Um Tratado na Forma e Organização de um Torneio” 13 , é um dos primeiros tratados que relata de maneira pormenorizada, os torneios medievais, nela encontramos importantes aspectos organizacionais e estruturais. Em virtude da riqueza de dados, verifica-se em tal obra, uma relevante importância para o contexto histórico em pauta, pois proporciona uma espécie de código normativo a respeito dos torneios da época, e também dos aspectos sociais e culturais. Por fim, o estudo das iluminuras e manuscritos medievais é uma das peçaschave para a compreensão da cultura do Ocidente. A iconografia medieval nos fornece excelentes subsídios de análise e interpretação de um determinado contexto histórico, desde que visualizada atenta, demorada e prazerosamente. 13 Texto traduzido do francês arcaico para o inglês por Elizabeth Bennett, disponível no site http://www.princeton.edu/~ezb/rene/renebook.html#Intro, Universidade de Princeton. Posteriormente traduzido do inglês para o português, por nosso intermédio, para sustentação e subsídio ao trabalho. Acesso 26.03.2003. 26 1. TORNEIOS E ESPETÁCULOS NA IDADE MÉDIA: ASPECTOS TEÓRICOS, HISTÓRICOS E CONCEITUAIS. Estudar o período medieval é uma tarefa árdua. Dissertar sobre os torneios e desafios medievais também exige muita pesquisa, em virtude da escassez de fontes e material a respeito do tema. No campo das palavras, por exemplo, procurar uma definição exclusiva para os termos torneios e espetáculos medievais é uma tarefa que requer inúmeras leituras e estudos. Inclusive a tentativa de se elaborar uma explicação definitiva sobre as origens dos torneios, é de certa forma limitada. O termo “Torneio” empregado em latim (torno) refere-se à ação de tornear, rodopiar, arrendodar, agrupar ou (torneamentum) de origem latina e francesa com o mesmo significado14. Provavelmente uma alusão ao movimento dos cavaleiros entre um ataque e outro, ou de um evento para outro. Para Duby: “rodar (tourner) também queria dizer fazer torneios. Ir de um torneio a outro”. 15 O torneio não possui uma conotação de sentido apenas individual é um combate coletivo. Neste aspecto, pode significar a cavalgada, o nomadismo (torneamento) dos cavaleiros de uma região para outra, no objetivo de realizar assembléias16, ou seja, a reunião dos combatentes com determinada finalidade, provavelmente às guerras e batalhas. Jean Flori menciona: 14 Dicionário Latim/Português, Português/Latim, Porto, Portugal, Ed. Porto, p. 239. 15 DUBY, Georges. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo, Ed. Graal 3ª ed. Rio de Janeiro, 1995, p.102. 16 O termo assembléias, no contexto medieval da Cavalaria, refere-se a agrupamentos de cavaleiros, geralmente realizados nos campos entre duas cidades de relativa importância. Esses duram vários dias, e neles são regulamentados e organizados os preparativos para a formação de grupos de cavaleiros. 27 “(...) que aos torneios... evocou-se também algumas vezes a errância dos cavaleiros “torneando” de lugar a lugar para participar dessas assembléias organizadas na maioria das vezes “em degraus”, isto é, nas zonas intermediárias entre os domínios bem estabelecidos das grandes potências da época, particularmente na França, na periferia do domínio real”. 17 O termo “Spetaculum”, raiz semântica (latina) de espetáculo, tem como significado tudo que atrai e prende o olhar e a atenção. Recorrendo ao dicionário, três outras significações podem ser enumeradas: representação teatral; exibição esportiva, artística etc. e cena ridícula ou escândalo. 18 De qualquer modo, todas elas implicam em uma visão atenta a uma circunstância, em uma relação entre espectador e evento, a qual chama a atenção e prende o olhar. Em todos os casos a interação evento-espectador se afirma, e o sentido do olhar adquire menção prioritária. Em todos os períodos históricos as sociedades buscaram nos jogos militares e nas arenas os seus heróis. Nos antigos espetáculos medievais o entretenimento e o heroísmo compartilhavam certos cenários como, praças públicas e grandes campos abertos afastados da cidade, mas nunca ocorriam em espaços fechados. Centenas de pessoas prestigiavam e se entusiasmavam com tais espetáculos, quase de forma doentia, denotando com seu comportamento, a busca por desafio, luxo, honra, proeza e valentia. Assim observa Jacques Heers: “Os torneios e justas, nas cortes de França, no final da Idade Média, obedeciam a rituais complexos e sutis, ostentavam um luxo absurdo, apelavam a um passado extinto e exaltavam a proeza de um exercício guerreiro que deixara de ter as virtualidades práticas de outrora; e, desse modo, gratuitas, pareciam situar-se fora do tempo e do mundo. E os grandes torneios, os jogos cênicos, que alternam com os ajustes de lanças proporcionam representações capazes de entusiasmar ou de comover as multidões”. 19 17 FLORI, Jean, A Cavalaria, A Origem dos Nobres Guerreiros da Idade Média, Madras Edit., 2005, São Paulo. p. 99 e 100. 18 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Dicionário Aurélio 6ª Ed., Curitiba, Ed. Positivo, 1998, p.371. 19 HEERS, Jacques. Festas de Loucos e Carnavais, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987. p. 18, 19. 28 Desta forma podemos considerar os torneios medievais, principalmente aqueles que se realizavam no século XV, como verdadeiros espetáculos. Dois eixos interpretativos ganham destaque, e podem servir de âncora, para a compreensão da concepção de espetáculo no contexto da Baixa Idade Média, conforme a construção teórica de Debord. Um dos eixos aponta o espetáculo como expressão de uma situação histórica em que a “mercadoria ocupou totalmente a vida” 20. Espetáculo, mercadoria e capitalismo se unem umbilicalmente. Desse modo, a sociedade do espetáculo pode ser interpretada como a confrontação de atividades de diversão e entretenimento baseadas nos lucros de um mercado em formação. Guardadas as peculiaridades e diferenças, o avanço das trocas, a rentabilidade comercial e a financeira, através das letras de câmbio, da usura e das operações bancárias, detectadas na Idade Média, principalmente no século XV, nos remete ao que Delumeau chamou de “primeiro capitalismo”. 21 O outro eixo interpretativo para espetáculo é a separação entre o real e a representação, nela, as imagens passam a ter lugar privilegiado. Nas palavras de Debord: “O espetáculo, como tendência a “fazer ver” o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana. (...) o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. 22 . Os torneios medievais ganham nova forma a partir do século XV, tais espetáculos tentam buscar no passado uma nova roupagem suntuosa, magnificente e espetacular. 20 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo - Comentários sobre a sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p. 30. 21 DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento, Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 217. 22 DEBORD, Guy, op. cit. P. 17. 29 A suntuosidade, a magnitude de um espetáculo medieval, tal como nos são apresentados nos torneios do século XV, adquiriram uma nova dimensão de evento extraordinário e grandioso. A afirmação de Alejo Carpentier, em A Literatura do Maravilhoso, colabora para tal conceituação: “A produção do extraordinário acontece, quase sempre, pelo acionamento do maravilhoso, de um grandioso que encanta, que atraí e que seduz os sentidos e o público. Esse “maravilhamento” produz-se pelo exarcerbamento de dimensões constitutivas do ato ou evento, da dramaticidade de sua trama e de seu enredo, através de apelos e dispositivos plástico-estéticos, especialmente os relativos ao registro da visão, mas também aos sonoros, em menor grau. A plasticidade visual, componente essencial, e a sonoridade tornam-se vitais: os movimentos, os gestos, os corpos, as expressões corporais e faciais, o vestuário, os cenários, a sonoridade, as palavras, as pronúncias, as performances; enfim, todo esse conjunto de elementos e outros não enunciados têm relevante incidência na atração da atenção, na realização do caráter público e na produção das simbologias e dos sentidos pretendidos com o espetáculo.” 23 Dessa maneira, os torneios medievais, em particular a partir do século XV, no final da Idade Média, remetem à esfera do sensacional, do surpreendente e do extraordinário àquilo que se contrapõe e supera o ordinário, o cotidiano do vilarejo, que vive à margem do poder eclesiástico. A instalação, no âmbito do extraordinário potencializa a atenção e o caráter público do ato. A ruptura da vida ordinária, condição de existência do espetáculo, pode ser produzida pelo acionamento de inúmeros expedientes Os torneios, tais como seu planejamento e organização, apresentam fortes tendências para a diversificação da cultura, em vista da sua suntuosidade. O surgimento dos mecenas e dos patrocinadores dos espetáculos, no final da Idade Média, mostra esta nova tendência. Ela reforça uma vertente na qual é necessário ser sagaz e ardiloso para organizar um torneio ou uma justa, ou seja, ter capacidade de reunir espectadores diante de um espetáculo e mantê-los permanentemente atentos e interessados. 23 CARPENTIER, Alejo. A Literatura do Maravilhoso, São Paulo, Vértice, 1987, p. 45. 30 No que tange ao aspecto econômico e social, as cidades procuravam organizar os jogos objetivando um bom retorno financeiro. Em virtude de serem de extrema importância para os moradores, as mesmas esforçavam-se por ajudar nas suas instalações; suspendiam os impostos suplementares sobre o vinho, o sal, as casas de prostitutas, confiscavam os bens dos maus oficiais e dos prevaricadores, para assim enriquecer o seu cofre das festas. Enfim, através dos espetáculos, as cidades buscavam uma integração, uma união da população, para futuramente tirarem proveito do evento por elas patrocinado. Referindo-se ao amplo aspecto proporcionado pelos torneios e justas, Jacques Heers exalta as suas abrangências no cotidiano citadino medieval: “Seria, no entanto um enorme erro não ver nos torneios, ou pelo menos nas justas e nos concursos, mais do que divertimentos de casta reservados aos nobres, totalmente separados do seu contexto social. Os grandes torneios régios atraiam multidões, familiares, clientes, pessoas da comitiva, trabalhadores dos ofícios da cavalaria e das armas, mas também curiosos, comerciantes, burgueses, artesãos de todas as profissões”. 24 O caráter necessariamente público desse ato tinha que ser reivindicado de imediato às cortes mais próximas, estas deveriam receber os comunicados o mais breve possível. Para chamar a atenção e prender o olhar, o evento deveria impressionar e fisgar as pessoas, e para isso o evento deveria realizar-se publicamente. Mais que isto, a magnitude reivindicada, e muitas vezes alcançada, pelo evento espetacular requeria sua localização em um lugar geograficamente determinado, dentro ou nos arredores das cidades ou dos vilarejos, mas necessariamente público. Só as cidades, com uma população considerável e diversificada, com nobres e burgueses empreendedores, teriam o retorno econômico desejado. O espetáculo medieval também exigia perspicácia e agilidade para gerir proveitos materiais. Teoricamente, os torneios no século XV, buscavam alcançar a magnitude de um evento aristocrático, mas 24 HEERS, Jacques, op. cit. p. 163. 31 não se descuidavam do aspecto comercial. Ainda que tais eventos possuíssem um perfil aristocrático, mobilizavam também grande parte da população urbana. A partir do século XV, os torneios tomam uma forma flexibilizada, a ponto de congregar o povo às camadas sociais mais altas, constituindo um folclore amplo e com participação de todos, como nos coloca Heers: “Quando dos torneios, pagos pelos grandes burgueses, por vezes apoiados pela municipalidade e pelos impostos que o povo pagava, por ocasião dos jogos de guerra, das recepções áulicas e dos banquetes por vezes mesclados com danças, entremezes ou representações de mistérios, juntavam-se as paradas imponentes, as cavalgadas sumptuosas, e em determinadas oportunidades, autênticos paródicos: desfiles e apresentações satíricas que anunciavam já o Carnaval”. 25 Diante disto, nas cidades e nos campos da Baixa Idade Média, numerosos e variados espetáculos, irrompem no curso cotidiano da sociedade, tanto nas solenidades religiosas, como nas grandes celebrações civis e políticas. Os torneios, as procissões, os cortejos, as competições e as festas medievais, reflexo de uma civilização, veículo de mitos e de lendas, apresentam-se como o espelho de uma sociedade e das intenções políticas que a cercam, colocando-se à margem da rotina e do ritmo da vida cotidiana medieval. Por outro lado, os torneios estão estreitamente ligados ao exercício do poder político, pois são os nobres, preponderantemente, que deles participam como bem cita Flori, “A sociedade que “torneia” é, portanto, mais ou menos a mesma sociedade aristocrática que guerreia26. Nessa perspectiva, o espetáculo dos jogos militares passa a ser produzido como modo de sensibilização pública, visando à disputa do poder, e como construtor de 25 26 HEERS, Jacques, op. cit. p.167 FLORI, Jean, op. cit. p. 100. 32 legitimidade política. As articulações, entre espetáculo e poder, mostram distinções relevantes, ressaltando-se a sua adequação ao momento político. O torneio visto em uma perspectiva mais abrangente, associado a duelo e a poder, retrata tanto implicações políticas quanto sócio-culturais. Nesse ponto, Huizinga também nos argumenta a respeito da ritualização que este tipo de desafio adquiriu na sociedade da Idade Média, principalmente entre os nobres: “Na Baixa Idade Média era muito habitual que os reis ou príncipes em guerra resolvessem sua querela mediante um duelo entre eles. Este duelo era preparado com grande solenidade e grande cópia de pormenores, sendo sempre o motivo expressamente apresentado (...). Foi durante muito tempo uma comédia internacional, um cerimonial vazio entre as casas reais. Todavia a tenacidade com que os monarcas permaneceram fiéis a este antigo costume e a semi-seriedade com que ele foi mantido revela sua origem na esfera ritual”. 27 Outra conotação que se percebe nos torneios e nos desafios medievais, diz respeito aos seus aspectos sócio-políticos. Esse tipo de evento fornecia a sociedade cavalheiresca uma maneira de extravasar o ímpeto guerreiro, mostrar o poder e ao mesmo tempo regrar a violência endêmica. Nessa linha, Michel Pastoureau observa: “(...) apesar de constantes proibições feitas pela Igreja e certos soberanos, sua moda, os torneios, os jogos, não cessam de crescer. Nas regiões em que a paz de Deus diminuiu as guerras privadas, o torneio representa, com efeito, o único meio da classe dos cavaleiros extravasar a agressividade e uma, das raras ocasiões de deixar o castelo, sua monotonia ociosa e a existência rotineira”. 28 Os torneios evidenciam aspectos importantes, nos costumes, bem como nos valores cavalheirescos. Em conjunto com os romances arturianos29 instigam o maravilhoso 27 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo, Perspectiva, 2005, 5ª Ed., p. 218. Op.Cit. p. 105. 28 PASTOUREAU, Michel, op. cit. p. 134. 29 No final da Idade Média era o romance mais ilustrado pelos autores da época. Temática de origem Bretã, que põe em cena o Rei Artur, soberano dessa região e os seus cavaleiros da Távola Redonda. 33 pagão, ou seja, o cavaleiro errante em busca de aventuras. Busca-se nos torneios a suntuosidade do espetáculo sem descuidar-se do culto à coragem e ao heroísmo, do respeito à benevolência, por interesse ou por ideal, da rendição do homem desarmado caído por terra, do respeito à palavra dada e também do zelo pela reputação, ampliada pela bravura de uns e pela generosidade de outros. O século XV apresenta-se como uma transição que implicará em alterações na conduta e na organização dos torneios. Diante do avanço tecnológico renascentista diz Ariosto, “maldito, máquina abominável” 30 , referindo-se às armas de fogo que ameaçavam ocupar o espaço da espada e da lança. A Cavalaria mundaniza-se e preocupase menos com a fé e o respeito pelas leis evangélicas. Os cavaleiros forjam uma moral militar, que já não tem apenas a defesa de Deus e da Igreja como fim exclusivo, mas a de um Estado e de seu príncipe. Como muito bem comenta Norbert Elias: “Ele não é mais um homem relativamente livre, senhor de seu castelo, do castelo que é a sua pátria. Agora vive na corte. Serve ao príncipe. Presta-lhe serviços à mesa. E na corte vive cercado de formidade com a sua posição e a delas na vida. Precisa aprender a ajustar seus gestos exatamente às diferentes estações e posições das pessoas na corte, medir com perfeição a linguagem, e mesmo controlar exatamente os movimentos dos olhos. É uma nova autodisciplina, uma reserva incomparavelmente mais forte, que é imposta às pessoas pelo novo espaço social e os novos laços de interdependência”. 31 Apesar disto, a religiosidade e o papel da Igreja nunca deixaram de ter uma influência considerável no universo dos torneios e das festas medievais. Dentro dessa proposição, é interessante observar o que Jean Flori argumenta a respeito: 30 Tradução da citação contida na obra de: CONTAMINE, Philippe. Les Tournois en France à la fin du Moyen Age. Ed. Weckesser Paris, 1990. p. 43. 31 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, Uma História dos Costumes, Vol. 1, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1990. p. 212. 34 “Pelo exercício das armas, os cavaleiros são os primeiros ameaçados pela mácula do sangue derramado. Alguns dentre eles, tomados pela emotividade, renunciaram a essa profissão e vestiram o burel, sobretudo depois de algum crime íntimo particularmente odioso; outros mais, mais numerosos, esperaram para fazer isso quando estavam à beira da morte. A maioria, às vezes com alguma obra piedosa, fundação de um monastério, doações às peregrinações. O favor imenso encontrado pelos torneios, apesar das proibições repetidas da Igreja, comprova que o exercício das armas não lhes parecia de forma alguma, por si só, maculado de pecado. Em compensação, a doutrina eclesiástica e a moda dos torneios, embora radicalmente opostas, contribuíram ambas fortemente para a definição da cavalaria e da ética cavalheiresca”. 32 A Igreja teve um papel político duplo em relação aos torneios: primeiro procurou penetrar nestes eventos, para controlá-los e condená-los; posteriormente, usou-os, progressivamente, em defesa de seus interesses exclusivos, em virtude de que através dos torneios poderia recrutar milícias religiosas. Diante da proliferação dos torneios na Europa Ocidental, a Igreja se esforçou por cristianizar tais rituais. Igualmente interessante e de extrema relevância, é a combinação entre religiosidade, drama, amor, erotismo, teatro e educação encontrada nos espetáculos medievais, especialmente nos torneios. Como coloca Huizinga: “As lutas na Baixa Idade Média, sempre e por toda a parte contiveram um elemento dramático e um elemento erótico. Nos torneios medievais estes dois elementos eram de tal modo dominantes, que o seu caráter de competição, de força e de coragem quase tinha sido obliterado em favor do seu conteúdo romântico”. 33 “(...) as competições em habilidade, força e perseverança sempre ocuparam um lugar dos mais importantes em todas as culturas, quer em relação ao ritual ou simplesmente como divertimento. A sociedade feudal só se interessava pelos torneios, sendo o resto apenas divertimento popular e nada mais. Ora o torneio, com sua encenação extremamente dramática e sua pompa aristocrática, dificilmente pode ser considerado um esporte. Desempenhava uma das funções próprias do teatro, sendo apenas a classe mais alta, numericamente reduzida, nele tomava parte. Esta unilateralidade da vida esportiva medieval devia-se em grande parte à influência da igreja: o ideal cristão não favorecia a prática organizada do esporte e o cultivo dos exercícios, a não ser na medida em que estes últimos contribuíam para a educação aristocrática”. 34 32 FLORI, Jean, op. cit. p. 93. 33 HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média, Ed. Ulisseia, Lisboa, 172. Op.cit. p.82. 34 HUIZINGA, Johan, op. cit. p. 218. 35 Uma discussão que suscita alguma controvérsia é a relação feita aos torneios medievais como exercícios esportivos. Le Goff, objetivamente, procura dirimir dúvidas a respeito de sua conceituação no âmbito dos jogos e exercícios medievais: “Nada de estádio, nada de circo na Idade Média. Nada de esporte. Pois não existe lugar específico reservado a essas práticas. Campos, vilarejos, praças: são sempre espaços improvisados que servem de terreno para o desenrolar das fortes tensões e das “excitações agradáveis” do corpo, isto é, do corpo-a-corpo em público (...).É possível hoje, todavia, ver a continuidade dos exercícios e jogos da Idade Média no cabo-de-guerra ou na luta que se pratica nos campos (...). Mas, se é preciso reconhecer a importância e a existência das manifestações físicas medievais, não se pode associa-las ao esporte”. 35 As abordagens teórico-conceituais sobre os torneios e espetáculos medievais podem ser relacionadas aos aspectos sócio-culturais, político-militares, econômicos e religiosos, como se tentou dissertar nas páginas anteriores. Entretanto, suas implicações abrangem um estudo ainda pouco explorado, no que tange a complexidade para o período escolhido para o presente trabalho: a passagem da época medieval para a época moderna. Período complexo que, por tratar-se de uma transição onde as realidades são vastas e variadas, demandaria outros enfoques de estudo. Porém, procurou dar-se sustentação e subsídio ao objetivo central da pesquisa, que se direcionou ao estudo da corte do Rei René I, da Provença, e a confecção do seu Livro dos Torneios. 35 LE GOFF, Uma História do Corpo na Idade Média, Ed. Civ. Brasileira, Rio de Janeiro, 2006. Op.Cit. p.151. 36 2. OS TORNEIOS NO OCIDENTE EUROPEU MEDIEVAL: ANTECEDENTES HISTÓRICOS 2.1 As Origens Jogos militares e exercícios para soldados são tão antigos quanto à própria história da guerra. O conhecimento das vantagens do treinamento e da disciplina militar existe desde os tempos de Esparta e Roma. Os exemplos do mundo clássico, particularmente de Roma, foram citados e imitados durante a Idade Média, e os torneios também são uma continuação dessa forma de treino militar. No entanto, o mais questionado é: “Quando foi realizado o primeiro torneio?” Não se sabe exatamente o momento em que o torneio deixou de ser um simples exercício marcial para se tornar um evento de grande magnitude no cotidiano medieval. Os primeiros textos que fizeram referência à realização de torneios são datados entre os séculos XI e XII, como Flori observa: “Ninguém conhece com certeza a data de nascimento dos torneios. Uma tradição, transmitida em um texto do início do século XIII, atribui a invenção a um senhor das regiões do Loire, Geoffroy de Preuilly. A gesta dos condes de Anjou registra a sua morte em 1066. Essa atribuição é contestada por muitos historiadores que gostariam de se basear em documentos mais seguros e mais antigos. Infelizmente, eles não existem e é preciso contentar-se aqui com probalidades. Ora, o que sabemos das origens dos torneios torna muito plausível essa atribuição. Os primeiros textos que assinalam a existência desses torneios datam do início do século XII” . 36 Todavia, alguns jogos de Cavalaria já aparecem, provavelmente, em 842 para celebrar a aliança entre Luis da Alemanha e Carlos, o Calvo. Também como declara Cripps-Day, primeiro historiador que estudou os torneios medievais em seus pormenores: 36 FLORI, Jean, op. cit. p. 98. 37 “(...) a descrição diz que os cavaleiros galoparam em dois grupos, então, em formação militar, de três cavaleiros para cada lado, e começaram a se movimentar com seus cavalos como se estivessem em uma dança, e se posicionaram como em uma batalha: os dois grupos apontaram suas lanças uns aos outros e fizeram um sinal de paz, e posteriormente um círculo em torno do corpo, e deram voltas neste mesmo corpo como se fosse um ritual”. 37 Conforme menção do mesmo autor medievalista, “um cronista do século XII, Lambert d’Ardres (1160-1227) atribuiu a morte de Raoul, Conde de Guines, a um torneio realizado em sua propriedade provavelmente entre 1035 e 1038” 38 . Mas Cripps-Day deixa claro que torneios em datas tão antigas são de difícil comprovação, e merecem estudos mais apurados para a sua provável existência nesta época. Assim, os torneios parecem ter surgido de um distinto jogo marcial, para um exercício militar, no final do século XI, na França. Este é o mesmo período que assinala a criação de uma nova tática de guerra. Essa consistia em reunir todos os cavaleiros em formação regulamentar, que investissem contra o inimigo ou desafiante, como se fosse uma unidade, uma base única de ataque e defesa. Para Cardini “É difícil dizer quando nasceu o encontro, em campo fechado, de dois grupos opostos, chamado hastiludium ou conflictus gallicus (...). Do ponto de vista meramente tipológico, é bastante fácil supor que nasceu muito cedo, como forma de adestramento para a guerra, (...). O que é fato é que a moda do torneio, desconhecida até finais do século XI, surge repentinamente no princípio do século XII(...)”. 39 Dentro das inovações táticas destaca-se o uso, em um mesmo momento, no combate, da espada ou do escudo, que eram comumente usados na mão direita, com a lança preferencialmente no braço esquerdo, apoiada à sela da montaria, por ser mais pesada, mas 37 CRIPPS-DAY, F.H. The History of the Tournaments ,Londres, 1918; reeditado New York, 1982. p. 14. 38 Ibid., p. 15. 39 CARDINI, Franco, LE GOFF, Jacques Org, In: O Homem Medieval, Editorial Presença, Lisboa, 1989, Op.cit.71. 38 maleável ao cavaleiro, não restringindo a sua eficácia nos ataques. Junto a isso, foram criadas novas formas de manusear a lança, que era a principal arma de guerra da época. Ela poderia ser usada tanto nos ataques de curta como nos de longa distância. Porém, em contraposição, estas táticas tinham a desvantagem de que, ao estocar o inimigo ou arremessar a lança, tornava-se difícil recuperar a arma, acabando o cavaleiro desarmado, vulnerável aos ataques. O peso do homem e do cavalo eram dois agravantes, podendo limitar a mobilidade dos mesmos, por isso, o cavaleiro desarmado mantinha uma boa distância de seu oponente, dificultando o seu ataque. Se a lança quebrasse, o cavaleiro deveria continuar usando-a da mesma maneira, a menos que o seu oponente, ou desafiante, concordasse na substituição da mesma, o que raramente ocorria em batalhas, mas nos torneios era uma prática comum. Com relação ao avanço, concomitante, das técnicas de embates em batalhas e torneios, Le Goff argumenta: “Quanto aos cavaleiros, aperfeiçoam sua técnica em torneios, que surgem a partir do século XI e se multiplicam no século seguinte, apesar das repetidas proibições da igreja (Clermont, 1130). Até o fim do século XII, esses torneios não se diferenciam das guerras verdadeiras, de que são réplica codificada”. 40 A combinação de fortes cavalos, armamentos compatíveis, e cavaleiros destemidos era o suficiente para “abrir um buraco na muralha da Babilônia” 41, dizia Anna Comnema, a princesa bizantina que foi testemunha da devastação na Primeira Cruzada. A nova tática parece ter surgido no norte da França, sendo a grande responsável pelo sucesso dos Francos na primeira cruzada, no século XI, (1096-1099). Esta conjugação de elementos também contribuiu para as conquistas militares dos Normandos, em regiões do sudoeste da Itália e na Inglaterra. 40 LE GOFF, Jacques, Schmitt, Jean-Claude. Dicionário Temático Medieval, Edusc, São Paulo, 2002. p. 195. 41 Trecho “Alexiad”, Tradução de GRAVETT, Christopher. Knights and Tournaments, (Londres, 1988). p. 35. 39 Como afirma Richard Barber, ao analisar a Tapeçaria de Bayeux: “Na Tapeçaria de Bayeux, que registra a conquista militar dos Normandos na Inglaterra, em 1066, sob a liderança do duque Guilherme, o conquistador, pode perceber-se a modificação no uso das lanças e a organização tática da Cavalaria e também a postura do cavaleiro diante de um embate de armas”. 42 Tais aspectos podem ser visualizados na ilustração abaixo: Ilustração 1 - Fonte: Bayeux Tapestry, Museu Britânico, obra de arte bordada entre 1070-1080 pelos artesãos da catedral de Canterbury a pedido do bispo Odo de Bayeux, meio-irmão de Guilherme, o Conquistador. A importância do novo método de combate exigia muita disciplina e coordenação. Mais do que isso, um resultado positivo só poderia ser atingido com um determinado número de cavaleiros lutando simultaneamente. Era necessário muito treino e muita prática em equipe. O torneio correspondeu às necessidades militares, de forma admirável, para as práticas de combate em unidades estabelecidas em blocos. 42 BARBER, Richard. Tournaments, Jousts, Chivalry and Pageants in the Middle Ages, London, Boydell & Breer Ltd, 2000, p. 14. 40 O torneio, em sua forma original, era um mêlée (luta corpo a corpo) que se travava em campo aberto, num espaço que era cruzado por rios, árvores e plantações. Naquela época, não havia delimitações de terras, os únicos limites formais eram algumas áreas especiais, que de alguma forma, eram cercadas. Os descampados, as planícies, eram os locais preferidos dos cavaleiros, nos quais se refugiavam para treinar. Ilustração 2 - Área provável de treinamento de torneios e justas Para facilitar o treinamento, muitas das companhias eram formadas, em média, por 200 cavaleiros em cada grupo, sendo esses liderados pelos Lordes, a quem os combatentes serviam tanto em tempos de guerra como de paz. Neste período inicial, não havia qualquer regra para diferenciar torneios de batalhas reais, nenhuma tática de guerra era proibida, e mesmo que fosse não haveria ninguém para supervisionar, ou forçar, os cavaleiros a seguir tais regras. Nos embates reais ou nos torneios, indistintamente, com outras companhias, às vezes vários cavaleiros atacavam um só da equipe adversária por estar desarmado, ou com parte de sua armadura danificada, tornando-se assim um alvo fácil. As únicas concessões existentes, para os jogos e para as batalhas eram os refúgios, onde o cavaleiro poderia ficar caso estivesse desarmado, e era fundamental ter conhecimento de que o objetivo principal visava a captura do cavaleiro adversário, e não sua morte. Isto também 41 fornecia à companhia vencedora a obtenção de resgates43, geralmente pagos em moedas de ouro, através do aprisionamento do cavaleiro derrotado ou aprisionado. Desta maneira, em virtude da inovação do treino com lanças, que foi introduzido na segunda metade do século XI, e em função de que os torneios pareciam ter a responsabilidade de treinar, e de certa forma “testar”, as novas técnicas, é possível vê-los com referências mais sérias no final do século XI. Nos textos escritos, as referências aos primeiros torneios do século XI são, todavia, ainda escassas, a não ser em passagens de algumas crônicas, como a Crônica de São Martins de Tours, interpretada por Péan Gatineau, um membro da ordem, no norte da França em 1066. Tais fontes são ainda muito esparsas e não identificam com exatidão as circunstâncias que envolvem os torneios. Por volta do século XII, as referências a esses eventos aumentam, e são enriquecidos com um aumento do conteúdo descritivo. Em seus escritos, a princesa bizantina, Anna Comnema, relata-nos uma passagem fascinante sobre as práticas cavalheirescas do desafio de armas, em sua “Alexiad”44. Segundo tal texto, um dos cavaleiros franceses que voltava da Primeira Cruzada 43 Os resgates, ao longo da Idade Média, desempenharam um papel importante para suprir as dificuldades econômicas da nobreza militar, em virtude das elevadas somas que envolviam. Desde o século XII que ele faz parte do código de guerra entre as cortes. Fazer prisioneiros, de preferência ricos e poderosos, a fim de conseguir um resgate vultoso, foi uma das finalidades da guerra. O resgate nesta época, era de fato uma dívida como as outras, que dava lugar a processos, mas também a um rito particular, a “desonra”, se o devedor tardava a pagar. O credor mandava então pintar um cartaz representando o seu adversário, com as suas armas bem evidentes para que todos os o reconhecessem, de cabeça para baixo, pendurado pelos pés. O cartaz era afixado nas portas das cidades e das igrejas, o mais perto possível das terras do mau pagador, sendo o ideal colá-lo à porta do seu castelo. (François Autrand, O Resgate, Primeiro Desafio da Batalha. In: O Tempo dos Cavaleiros, Lisboa, 200l. p. 121 e 122 44 Livro em que a princesa relata passagens de sua vida e fatos pertinentes à época das Cruzadas. Nele achou-se registros sobre os mais diferentes assuntos; medicina, geografia, questões militares e história. 42 sentou-se no trono do imperador, seu pai. Quando foi reprovado por ter cometido este ato insolente, o cavaleiro fez um discurso desafiando o Imperador Aleixo: “Eu sou franco puro, de família nobre. Uma coisa eu sei: nas estradas que cruzam o meu país onde eu nasci existe um lugar; para onde qualquer um que queira entrar em combate, vai preparado para a luta; ali ele ora para Deus pedindo ajuda e ali ele espera o homem que irá responder ao seu desafio. Passei algum tempo nesta estrada, esperando pelo homem que iria lutar. Mas ninguém se atreveu”. 45 Assim, a possibilidade de que os torneios já fossem conhecidos nos tempos da Primeira Cruzada, em 1099, é apoiada também pelo monge cronista Roberto, o Monge 46, que considerou que os cruzados passavam o seu tempo treinando alguns exercícios, que se tornaram populares, devido aos movimentos técnicos de cunho militar. Nesta época, porém, o torneio não era ainda chamado por sua designação específica, no entanto todos os elementos fundamentais do jogo, como por exemplo, a prática do desafio, a valorização da coragem e da técnica, a ânsia de vencer, e a busca da glória aparecem claramente nos romances cavalheirescos, principalmente nas descrições dos embates pás d’armes 47. Além disso, historicamente, durante a Primeira Cruzada, expedição dominada pelos Francos, foi uma oportunidade dos combatentes franceses mostrarem aos demais cavaleiros, recrutados em diferentes regiões da Europa, o seu novo treinamento com 45 Trecho “Alexiad”, Tradução de GRAVETT, Christopher. Op. cit. p. 37. 46 Fonte disponível em: <http://www.fordham.edu/HALSALL/source/urban2a.html> . Acesso em 12.l0.2004. 47 “Passagem dos Braços”, Um Cavaleiro marcava com o seu oponente um local (ponte, entrada da cidade, beira de um rio) para duelaram caso tivessem sofrido alguma desonra. 43 as armas, aprendido através dos jogos militares. Conforme Gravett “isto contribuiu para a difusão e proliferação dos torneios em toda a Europa”. 48 Outras descrições dos torneios não vêm somente dos cronistas, mas de registros deixados pelos negociantes, os próprios organizadores e articuladores dos torneios. Nas cláusulas e documentação escritas por eles, a respeito da organização dos eventos, podem ser percebidas as punições e os controles para que a batalha do jogo não afetasse acordos de paz entre regiões envolvidas nos eventos. Já no início do século XII, os torneios eram considerados um benefício para os cavaleiros, e também de muita valia aos grandes senhores feudais, para que os seus guerreiros se exercitassem em tempos de paz. Eram também interessantes para as cidades e os vilarejos, que se movimentavam em torno dos eventos que, subsequentemente, davam retorno monetário, ou seja, geravam lucros às comunidades e aos organizadores. Diante disto, os torneios multiplicaram-se por toda a Europa, e percebeu-se que os desafios também estavam se popularizando fora da França, como cita o Conde Carlos o Bom, de Flandres, que foi assassinado em 1127: “Torneios freqüentados na Normandia e na França, e fora deste reino também, mantém os cavaleiros exercitados em tempos de paz e estendem sua fama e glória dentro e fora do país”. 49 Em 1130 os duelos e desafios se proliferaram de forma considerável, chamando a atenção da igreja. O aumento foi tão significativo, que o primeiro pronunciamento oficial do clero foi uma condenação; não sendo uma posição surpreendente, 48 49 GRAVETT, Christopher. Knights and Tournaments, London, Osprey Publishing Ltd, 1988, p. 46. BARBER, Richard, op. cit. p. 18. 44 pois a igreja tentou controlar a violência na sociedade medieval em todos os momentos em que houvesse possibilidade de mortes em números acentuados. Os movimentos “Paz de Deus” e “Parceiros de Deus”, por mais de um século, haviam tentado limitar o número de atividades militares, e proteger os não combatentes. Igrejas locais, de certas regiões, haviam proibido qualquer tipo de luta ou embate, de segunda a sexta, e em datas santas. Limitados por estas regras, muitos cavaleiros seriam punidos pela igreja se não seguissem as normas préestabelecidas. Isto era inevitável, considerando o fato de que os torneios não passavam de imitações das batalhas, já à época muito constantes, e de certa forma comum nas práticas de exercícios militares regulares. No Conselho de Clermont, mais solenemente em 1139, no Concílio de Latrão II, a Igreja se posiciona oficialmente com o seguinte pronunciamento; “Nós firmemente proibimos os detestáveis mercados e trocas que os cavaleiros estão acostumados a se submeter, em batalhas onde usam o seu corpo, a morte de homens e os perigos para a alma sempre ocorrem. Mas se alguém for morto no torneio, mesmo que ele peça misericórdia e o viaticum50, o poder eclesiástico será duro com ele”. 51 A razão para que os torneios sejam associados ao mercado, conforme pronunciamento da igreja, é o fato de que os cavaleiros que participavam dos jogos precisavam comprar comida, bebida e armas para os embates e, com isso, abria a possibilidade das trocas comerciais nos vilarejos e cidades medievais durante a realização de tais eventos. Esta negação da Igreja, com referência a este comércio “desordeiro”, foi repetida e confirmada no Conselho de Rheims em 1148, e no Terceiro Conselho em 1179. 50 Do latim p/português, as provisões de viagem, ou seja, as bênçãos da boa morte, a penitência. 51 CRIPPS-DAY, F.H., op. cit. 28. 45 Apesar da negação da Igreja, e de suas condenações a este tipo de evento, o jogo havia crescido de tal forma que chamou a atenção do clero e dos reis, que acabaram regulamentando, mesmo de forma regional e aleatória, regras para o seu desenrolar. Cabe observar que já há nesta época um envolvimento dos torneios em todas as camadas sociais com os torneios, resultando na aproximação de grupos humanos, que sem dúvida, representa transformações no cotidiano medieval, como bem descreve Marc Bloch: “(...) desde 1050 até 1250, transformou a face da Europa. O efeito que ressalta imediatamente é, sem dúvida, a aproximação entre os grupos humanos. Entre as diversas concentrações, exceto em algumas regiões especialmente áridas, acabar-seiam, dali em diante, os espaços vazios. As distâncias que ainda subsistiam tornaramse, aliás, mais fáceis de transpor. Na verdade, precisamente favorecidos na sua ascensão pelo progresso demográfico, surgiram ou consolidaram-se poderes, aos quais se impõem novas preocupações, mercê de seu horizonte dilatado: burguesias urbanas, as quais sem o tráfico nada seriam; realezas e principados, também interessados na prosperidade do comércio do qual retiram grossas quantias em dinheiro, por meio dos impostos e das portagens, conscientes, além disso, mais do que no passado, da importância vital que para eles reveste a livre circulação das ordens e das tropas”. 52 Diante de tal constatação, é provável que os torneios muito contribuíssem para a aglutinação e conseqüentemente para a ocupação dos muitos espaços vazios existentes entre o campo e as cidades medievais. Também dentro destas modificações sociais, Jean Flori ressalta a efervescência destes eventos, a despeito de todas as regras impostas pelos poderes clericais: “O prestígio dos torneios não diminui, prova de que eles respondem então a uma real necessidade e desempenham uma função julgada indispensável. As interdições reais, na Inglaterra, por exemplo, não produzem mais efeito. Privados de guerras ou de rapinas pela autoridade crescente das monarquias e os sucessos da reforma gregoriana que, pouco a pouco, arranca dos leigos seu domínio sobre as igrejas e sobre seus bens, os cavaleiros têm necessidade dessas catarses, manifestações tangíveis de sua identidade cavalheiresca, afirmação de seu estado, muitas vezes também meio de sua existência”. 53 52 BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal, Edições 70, Lisboa, 2ª Edição, 2001. p. 86. 53 FLORI, Jean, op. cit. p. 104. 46 Durante o século XII, o reino britânico ganhou prestígio e sofisticação, aspectos que passaram a influenciar outros reinos. Na Inglaterra, por volta dos anos 1140 a 1160, os torneios se tornaram freqüentes, sem qualquer preocupação com regras e regulamentos, mas privilegiando a suntuosidade. A riqueza das decorações, e a cordialidade de todos com os combatentes de torneios, era exuberante. Nos torneios realizados em Londres, principalmente, os vencedores dos embates, tinham sua bravura e coragem aclamadas pelos senhores. Ao reino que se destacava nos eventos, eram dadas armas e roupas com uma cor distinta Posteriormente, as damas presentes, após o término dos torneios, vestiam-se com esta mesma cor. As mulheres, permanentemente presentes, estavam sempre dispostas a dispensar todo o seu apreço a qualquer homem que tivesse sobrevivido a, pelo menos, três combates. Ilustração 3 – A Entrada dos Cavaleiros para um Torneio em Londres, Séc. XV: Fonte: Jean Froissart, Chroniques, vol. 4 MS 4379, f. 99. Bodleain Libray, Oxford University, Londres. Ainda em Londres, geralmente os cavaleiros revigorados pela comida e bebida consumidas, adentravam na cidade com a aclamação de seus habitantes e das damas que os recepcionavam no portão da entrada principal. Posteriormente, prontos para os jogos de guerra, reunidos em grupos, eram recepcionados pelo rei. 47 Os torneios, em toda a Europa, já eram um evento conhecido apesar da pouca preocupação em relação à sua organização. Com suas particularidades em cada região, aos poucos eles começam a se regionalizar. Os cronistas já se prontificavam para relatar os feitos dos cavaleiros que mais se destacavam, como se visualiza na ilustração abaixo que descreve os preparativos de um torneio nos arredores da cidade. Ilustração 4 - A preparação dos torneios nos arredores da cidade. Nota-se a preocupação dos cronistas para descrever os feitos do cavaleiro. Fonte: BNF, Manuscrits Français. Séc. XV. 48 Neste período, dentre as expressões individuais, destaca-se, no âmbito dos torneios, a do cavaleiro Frederico Barbarossa (1122-1190), imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Senhor “treinado em exercícios militares”, o soberano germânico tinha como ambição devolver ao Império sua antiga glória. Venceu vários torneios e passagens de armas. Contra os Bávaros, com técnicas retiradas dos torneios, participou de vários embates, saindo vencedor na maioria deles. Nas cruzadas, efetuou os ataques a seus adversários utilizando técnicas de derrubadas similares às das justas. “Por ironia viria a morrer a caminho de Jerusalém, afogado no rio Salef”. 54 É importante atentar para tais eventos realizados na Península Ibérica, mais precisamente na Espanha, onde o evento era chamado de “torneo” e tinha um sentido completamente diferente dos torneios de outros reinos. O torneio espanhol só veio a se tornar um jogo comum a outros reinos no século XIII. O primeiro registro de um torneio na Espanha, segundo Barber: “(...) parece ter ocorrido em 1272, quando Jaime I, Rei da coroa Catalã-Aragonesa (1208-1276), conheceu Afonso X, o Sábio, Rei de Castela e Leão (1252-1284) em Valencia. Esta história aparece nas Cantigas de Santa Maria, escrito na corte do Rei Afonso. Esses torneios são os primeiros mencionados na Espanha”. 55 No final do século XI e início do século XII, os torneios tornaram-se tão populares que as expressões, Hastiludium, Tournaments, Conflictus Galicus, eram conhecidas por todos, até mesmo por aqueles que não estavam familiarizados com os eventos. 54 LOYN, H.R.. Dicionário da Idade Média, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.160. 55 BARBER, Richard, op. cit. p. 91. 49 Surgiam novos valores. O torneio agora se tornava o centro da literatura sobre a Cavalaria, e foi nesta nova modalidade literária, que os heróis dos romances ganharam o amor das damas, provando sua proeza e demonstrando sua coragem. As Canções de Gesta56, datadas do início do século XII, com suas histórias cercadas de batalhas entre feudos, e com ênfase na lealdade entre homens e seus Lordes, foram aos poucos sendo adaptadas, em 1170, pelos novos romances, como comenta Segismundo Spina: “O maior acontecimento do século é a descoberta do amor romântico (do amor eternamente insatisfeito, fonte de toda a poesia européia posterior). O idealismo cavaleiresco entroniza a Mulher: a Cortesia promove a idealização do objeto amado e a espiritualização do Amor. A épica do Norte (Chansons de Geste) é contaminada pela Cortesia do lirismo meridional, pela erótica ovidiana e pela matéria bretã, derivando para a fase do romance cortês. O período de vigência da canção de gesta, na sua plenitude, vai de 1050 a 1150 (Idade heróica); a sua segunda fase, representada pelo romance cortês, decorre de 1170 a 1240 (Idade cortês)”. 57 O romancista, e grande inovador do gênero, foi Chrétien de Troyes (11351183) e não é por acaso que seus senhores eram Henrique e Maria, Conde e Condessa de Champagne e Felipe, Conde de Flandres que eram devotos e patronos dos torneios. A importância desta conexão não pode ser esquecida, pois Henrique de Champagne era casado com a filha de Eleonor da Aquitânia, e seu cunhado era Henrique II, rei da Britânia. A família de Eleonor era igualmente um importante eixo patronal para o desenvolvimento dos jogos e para a literatura sobre a cavalaria. Seu pequeno círculo inter-relacionado era poderoso; jovens ricos e cultos se conheciam durante os torneios em campos do norte da França ou dos Países Baixos. Durante o dia, eles se exercitavam com as armas, e no final da tarde, podiam acender fogueiras e contar histórias. Romancistas e cavaleiros, cada um com sua 56 Narrativas anônimas, de tradição oral, que contavam aventuras de guerra vividas nos séculos VIII e IX, período do Império Carolíngio. A mais conhecida é a Chanson de Roland (Canção de Rolando) surgida em 1100. 57 SPINA, Segismundo. A Cultura Literária Medieval, Ateliê Edit. São Caetano do Sul, SP, 1997, p. 78. 50 especialidade, contavam os romances da terra sagrada, os romances sobre o rei Arthur ou as canções de gesta ao tempo dos Carolíngios. As crônicas cavalheirescas fluíam na mente de seus romancistas, como podemos observar no conto de Chrétien, a respeito da realização de um torneio na localidade de Tenebroc, em seu romance Eric et Enide: “Um mês depois de Pentecostes ocorreu um torneio em Tenebroc. Muitas pessoas estavam presentes. Muitas lanças foram usadas em combate, pintadas de vermelho, algumas azuis e outras tantas cores e modelos, algumas blindadas e outras de madeira. O campo estava completamente coberto por armas. As equipes se posicionaram em dois lados diferentes, e quando foi dado o sinal iniciaram a batalha e podia-se ouvir o barulho das lanças sendo quebradas e escudos sendo atingidos. Alguns corriam fugindo e assumindo a derrota, outros corriam para se proteger. Astride, o cavalo branco de Erec ficou posicionado de frente para o cavalo do oponente, o cavaleiro Haughty e, quando estes estavam em posição, correram em direção um ao outro de forma veloz e furiosa. Erec protegido por seu escudo, conseguiu atingir o oponente de forma violenta, ao acertar o golpe, seguiu com seu cavalo em direção aos outros cavaleiros, mostrando sua proeza e coragem; e todos que assistiam ao evento ficaram impressionados com a proeza do cavaleiro, que no final, desencorajou os oponentes a prosseguir com a luta, e foi declarado vencedor, tomando posse de alguns cavalos do oponente”. 58 Já a descrição dos torneios na história de Guilherme, O Marechal, está muito distante do mundo de Chrétien de Troyes, mesmo tendo as mesmas raízes. É uma das mais completas fontes historiográficas a respeito da Cavalaria medieval; contém relato minucioso, com riquezas de detalhes e pormenores a respeito do cotidiano de um cavaleiro medieval que participava dos torneios, como se pode observar nos trechos a seguir: “Ao saberem do torneio acorriam, basicamente, “donzéis”, cavaleiros ainda não casados (sem mulher, sem casa), “andantes”. Contudo, como já disse, eram bem poucos os que vinham sós a campo, na manhã da partida. A regra era que chegassem aos grupos ao lugar escolhido para o combate. As casas mais numerosas dirigiam-se com todos os seus membros, conduzidas pelo seu chefe ou suplente, atrás da bandeira que lhes exibia as cores. Antes disso todos se preparavam, entusiasmados, na parte pública da residência do chefe, na sala onde os cavaleiros domésticos se deitavam lado uns dos outros, de noite, para dormir. Os cavaleiros queriam, como na guerra, conquistar armas, arreios, cavaleiros, prender homens. Às vantagens já garantidas, ao soldo ou salários que recebiam do chefe de sua equipe, desejavam juntar um suplemento, a parte que tivessem no saque. Os maiores predadores se recrutavam entre os “donzéis”; aos senhores, aos homens casados, uma tal cobiça parecia menos conveniente.” 59 58 Trecho traduzido do original p/inglês por BENSON, Larry D. "The Tournament in the Romances of Chrétien de Troyes”, Medieval Institute Publications, 1980. 59 DUBY, Georges. Guilherme Marechal, ou o Melhor Cavaleiro do Mundo, R. J. Graal, 1995. p. 130,139. 51 De extrema relevância histórica, existem ainda outras boas histórias sobre Guilherme, o Marechal: “certa vez ele perdeu um prisioneiro enquanto o levava para a sua tenda; um objeto atingiu o seu cavalo e o prisioneiro aproveitou o momento para fugir; em outra ocasião, ele venceu a um torneio, porém não foi localizado na hora de ser apresentado como vencedor, pois estava em uma ferragem local aguardando que o ferreiro corrigisse o formato original de seu capacete”. 60 Esta é também uma boa forma de contra balançar a atmosfera romântica e mostrar um lado mais realista sobre a vida dos participantes de torneios. A história escrita por estes romancistas nos remete ao mundo da Cavalaria de formas diferentes, mas que nos dá uma noção historiográfica aproximada de tais eventos. Podemos de certa forma, apreender as prováveis origens e o desenrolar dos torneios no medievo, através da sensibilidade literária destes contistas. Os torneios necessitavam de certa organização. As regras e os regulamentos eram rudimentares, foram criados rapidamente e prontamente aceitos pelo mundo dos torneios. A divisão das equipes era baseada na região nas quais provinham os participantes, e cuidava-se para que grupos inimigos não lutassem entre si, de forma que a rivalidade durante o embate ficasse restrita ao jogo, e não baseada em rixas pessoais entre regiões. Em alguns casos, durante o período de realização dos torneios, aconteciam alguns incidentes e confrontos mais acirrados, transformando uma competição em um combate real, especialmente quando a linha de comportamento de um torneio, e a conduta de guerra, estavam tão próximas. Sem consentimento do povo local, alguns participantes dos torneios causavam grande desordem e até destruição das cidades. Os torneios eram episódios em que a violência, em certos 60 Ibid. p. 138. 52 momentos, exasperava, como podemos perceber na obra de Richard Barber, quando se refere ao torneio de Lagny na Champagne (1180), que reuniu mais de três mil combatentes franceses, flamengos, ingleses, normandos e angevinos: “(...) mostram um completo descaso e desobediência em relação às regras e, desrespeito ao local onde estavam lutando. Muitas vezes, vinícolas, e outras plantações eram destruídas, prédios em fazendas eram usados para fazerem emboscadas e, até mesmo as ruas dos vilarejos se transformavam em um cenário para a descontrolada batalha. Muitos não-combatentes sofriam grandes prejuízos quando os competidores saíam de controle e destruíam a cidade em que estava ocorrendo o torneio”. 61 O número de mortos resultante dos torneios, quando as rivalidades no mêlée ou nas justas se tornavam hostilidades reais, aumentava consideravelmente. O século XII vivenciou muitos acontecimentos desse gênero, como o caso de Godofredo, Conde da Britânia, filho de Henrique II, rei da Inglaterra, que foi morto em um torneio próximo à Paris em 1186, e Leopoldo, Duque da Áustria, que morreu em 1194 depois de seu cavalo cair sobre a sua cabeça, quando ele passava o seu tempo em “um exercício de jogo”. Advertências eram feitas para evitar a perda de vidas; as proibições da Igreja com relação aos jogos e exercícios militares, geralmente eram ineficazes contra o interesse local de que estes torneios ocorressem. As imposições, em geral, não forçavam a realização dos eventos, preferindo a Igreja excomungar as vitimas e os participantes dos mesmos. Apesar das perseguições e condenações, os torneios, no início do século XIII, se expandiram em toda Europa, e já se mostravam como um evento popular, sendo caracterizados como um prazer perigoso, como podemos observar na ilustração a seguir: 61 BARBER, Richard, op. cit. p. 113. 53 Ilustração 5 - Prazeres perigosos da vida mundana. Mestre Ermengol, Lê bréviaire d’amour, séc .XIII. (Madrid, Biblioteca do Escorial), podemos visualizar na segunda coluna de cima para baixo, os torneios como prática profana e perigosa. Na Inglaterra, o fato de alguns torneios serem legalizados, principalmente àqueles que se realizava em Londres e nos seus arredores, criou uma relação especial, entre cavaleiros e reis, nunca vista antes em qualquer outro lugar com relação a este tipo de evento. Junto a isto, pelo fato de que a realeza tinha amplo controle sobre o evento, permitiu que a Inglaterra, como patrona, se tornasse referência em toda a Europa. Reis ingleses não perdiam 54 sua dignidade real ao participar de torneios, na verdade, fazendo isso, acabavam se aproximando dos cavaleiros e ganhando reputação internacional. É relevante salientar, o procedimento do rei inglês Ricardo Coração de Leão (1189-1199), a respeito da utilidade dos torneios para o aprimoramento de suas tropas, nas batalhas na Terra Santa, como descreve Gravett: “Ricardo ao partir para Jerusalém, na III Cruzada, ao lado do rei francês Filipe Augusto, observando que o treino e instrução dos franceses nos torneios, faziam com que eles fossem mais experientes e fortes na guerra, desejou que os cavaleiros do seu reino pudessem também treinar em suas próprias terras. E a partir disto, poderiam aprender as táticas de torneio, e como conseqüência os cavaleiros ingleses não seriam mais insultados pelos cavaleiros franceses, como fracos e despreparados”. 62 No final do século XII, o torneio se tornou um mito nas histórias da Cavalaria. Nenhum conto, romance ou aventura estava completo sem um torneio. Praticamente, somente a Península Ibérica parece não ter histórias a respeito do tema, ou pelo menos, não existem registros mais detalhados de torneios na região. Em torno do ano de 1200, em quase toda a Europa, na França, nos Países Baixos, na Itália, na Alemanha, na Inglaterra, e até mesmo no reino franco de Jerusalém, cavaleiros participavam de torneios regularmente. Diversas formas de duelos e desafios foram surgindo em diferentes áreas, mas eram todas muito semelhantes, de maneira que o cavaleiro poderia viajar de uma região para outra em busca de torneios. O torneio, inicialmente reprovado pela Igreja, transformara-se em um divertimento simbólico, dado em honra da Ordem de Cavalaria e, portanto, em honra de Deus. 62 GRAVETT, Christopher, op. cit. p. 58. 55 2.2 Os Torneios: Condenação Espiritual e Ordem Social. Dentro dos antecedentes históricos dos torneios, no contexto medieval europeu, procurou-se, também na proposição do trabalho, estudar estes eventos e ressaltar alguns aspectos que se julgaram pertinentes com relação a sua ampla implicação. Foi de extrema importância o aspecto condenatório, exercido pela Igreja, neste tipo de jogo militar, e também o da organização e manutenção da ordem pública pelas autoridades, para manter este tipo de evento sob controle. A partir das influências da Igreja e das nobrezas governantes, os torneios e as justas, caracterizaram-se social e politicamente, na sociedade medieval européia, de formas diversas. Por muito tempo os torneios foram condenados pela Igreja e banidos por leis seculares. Observa-se que os torneios se desenvolveram muito nos séculos XII e XIII, e neste período, as regras da Igreja foram rígidas. Eram contrárias a estes eventos, colocando restrições severas aos cavaleiros que participassem de torneios, pois estavam sujeitos a punições espirituais. A enorme popularidade dos torneios, no entanto, enfraqueceu as imposições da Igreja, e por isso foram criadas novas leis seculares para tentar regular o combate. Diante disso, durante muitos anos, um cavaleiro que participasse dos torneios estaria desafiando Deus e o rei, criando um confronto que perdurou por longo tempo e que contribuiu para a transformação sócio-cultural da sociedade medieval, como argumenta Jean Flori: “O favor imenso encontrado pelos torneios, apesar das proibições repetidas da Igreja, comprova que o exercício das armas não lhes parecia de forma alguma, por si só, maculado de pecado. Em compensação, a doutrina eclesiástica e a moda dos torneios, embora radicalmente opostas, contribuíram ambas fortemente para a definição da cavalaria e da ética cavalheiresca”. 63 63 FLORI, Jean, op.cit. p.93. 56 A Igreja declarou sua oposição aos torneios logo quando eles surgiram. O Nono Decreto do Conselho foi criado em uma reunião eclesiástica, em Clermont, em 1130. Proibia a realização dos torneios e, em caso de morte de algum competidor, durante um embate, era proibido a concessão de perdão eclesiástico ao cavaleiro e aos demais participantes, era também negado o viaticum (perdão concedido a quem matou o oponente). A razão para criar tais proibições era simples: torneios tiravam a vida de cavaleiros e colocavam suas almas em risco. O embate era perigoso e violento, o crime de homicídio era facilmente cometido, mesmo que sem intenção de matar. As colocações proibitivas faziam sentido, mas outros motivos, além da violência, como a ostentação do amor e do erotismo, característicos dos torneios medievais e distantes da política eclesiástica, faziam com que a Igreja aumentasse sua divergência para com os embates realizados nestes eventos, como argumenta Cardini: “O penhor de amor ostentado em torneio é, juntamente com as armas pintadas no escudo, as sobrevestes e a gualdrapa 64 do cavalo, o emblema característico do cavaleiro que participa os jogos militares. A tensão erótica, que pode ir até ao espasmo, é uma característica essencial deste tipo de atividade cavaleiresca e permite-nos entender por que motivo a Igreja, opondo-se a ela, pretendia propor um discurso ético e social muito mais profundo e complexo do que poderíamos imaginar, se nos limitássemos a avaliar essas proibições sob o ponto de vista redutivo de uma política eclesiástica destinada a limitar a violência e o derramamento de sangue”. 65 No decorrer do século XII, os combates já estavam bem estabelecidos e enraizados no cotidiano cavalheiresco. A autoridade da Igreja estava enfraquecida em demasia para conseguir banir a prática dos jogos militares. Mesmo assim, sua posição oficial permaneceu inalterada pelo menos 200 anos. No começo, o decreto do Conselho de Clermont, regulamentando as proibições, foi simplesmente repetido, sucessivamente, em outros conselhos. 64 Cobertura Longa (espécie de manta) que adorna principalmente o dorso dos cavalos. 65 LE GOFF, Jacques Org, In: CARDINI, Franco, op. cit. p. 71. 57 Os romances de Chrétien de Troyes, datados do século XII, que Cripps-Day qualifica como provocativos ao poder da Igreja66, surgiram apregoando os torneios como sendo parte central na vida dos cavaleiros. Era a forma de como os cavaleiros provavam a sua origem nobre, mostrando suas proezas e suas habilidades. Foi através dos torneios que eles atraíram a atenção e o amor das damas, foi assim que eles despertaram as virtudes do cavaleiro - como a coragem, a cortesia e a generosidade. Perante isto, pressentindo um afastamento da nobreza cavalheiresca dos ensinamentos clericais 67, como cita Barber, e para tentar conter a proliferação dos torneios, a Igreja tentou criar uma ideologia mais atraente aos cavaleiros participantes dos jogos. O Papa Celestino III tomou a decisão de escrever, em 1193, aos bispos ingleses, uma carta68 em que proibia os torneios e encorajava os cavaleiros a participar das cruzadas na Terra Santa, onde eles poderiam usar de suas habilidades para se tornarem mais experientes, e com isso beneficiariam seu corpo e sua alma. A última imposição formal de um papa ocorreu em 1312, com extrema rigidez, e exigia que as proibições fossem aplicadas e supervisionadas. Clemente V chamou todos os príncipes da Europa para que libertassem a Terra Tanta das mãos dos pagãos, proibiu os torneios, e até mesmo as távolas redondas. Qualquer um que participasse de torneios seria excomungado, e somente o papa poderia absolvê-lo. Caso o cavaleiro estivesse morto, automaticamente estava condenado. Havia aqueles que não concordavam com as regras do Papa, alegando insensatez, o que veio causar inúmeros atritos, gerados pelo fato do pontífice conclamar os cavaleiros para a Guerra Santa, porém, ao mesmo tempo negava os jogos militares, alegando que resultavam em um grande derramamento de sangue. 66 CRIPPS-DAY, F.H., op. cit. p. 47. 67 BARBER, Richard, BARKER, Juliet, op. cit.. p. 132. 68 Fonte disponível: < http://web.uni-bamberg.de/ggeo/hilfswissenschaften/hilfswiss/immagini.html >. Acesso em 15.07.2005. 58 Quando João XXII chegou ao trono papal, em Avignon, no ano de 1316, uma de suas prioridades foi remover as proibições da igreja em relação aos torneios. Em apenas 11 dias como Papa, ele criou o Quia In Futurorum, que finalmente admitia que a Igreja houvesse falhado em suas tentativas de banir os espetáculos. Após criar seus próprios argumentos, confessou que seus antecessores cometeram um erro ao proibir os torneios, pois compreendia que os cavaleiros não quisessem participar das Cruzadas, a menos que tivessem também o direito de participar dos torneios e justas. Estes argumentos, na verdade, eram uma forma de esconder o verdadeiro motivo pelo qual o Papa removeu as proibições; o motivo real era que os filhos de Felipe, o Justo, da França, fizeram grande pressão política sobre ele para que liberasse os torneios. A atitude oficial foi reconhecida por todos os grandes da Igreja no período de 1316. As histórias em torno dos torneios eram as mais diversas, em virtude da grande polêmica que causavam. Graças as crônicas de Walter Map69, na década de 1190, e de Thomas Chantimpré 70 , 1201-1270, pode-se notar que quando os argumentos da Igreja falhavam, os cronistas se encarregavam de salientar os horrores dos torneios. Os autores criavam lendas, (principalmente as de mortes trágicas)71 - como a de um cavaleiro desconhecido que teria morrido no momento em que ia vencer uma feroz batalha em um torneio; também relatam a morte de cavaleiros, sobre espíritos que, sem perdão, ficavam vagando, sem ter o descanso eterno, e atormentando aqueles que ousassem participar de torneios. Dentro das histórias relatavam a inclusão dos demônios, que voavam sobre os 69 Fonte disponível: < http://www.ritmanlibrary.nl/ >Acesso em 10.08.2005 70 Fonte disponível: < http://www.library.upenn.edu/exhibits/rbm/schoenberg/schoenberg_bonatext.html >. Acesso em 15.08.2005. 71 As pessoas da Idade Média e, principalmente os cavaleiros, receavam a “morte trágica”, aquela que não se vê chegar e que surpreende o pecador, sem que ele tenha tempo de se arrepender, de se confessar e de receber o sacramento da penitência. Antes dos torneios, os combatentes, podiam dirigir-se ao confessor. Depois, era tarde de mais. Durante muito tempo, os moralistas cristãos disseram e repetiram que aquele que morria de espada na mão arriscava sua alma. (Françoise Autrand, Artigo publicado em Historie Special, nº55, Setembro, 1998), Paris. 59 campos dos torneios, como um presságio do número de fatalidades que estavam prestes a ocorrer; contavam também certas visões de uma viúva sobre a terrível morte de seu esposo, em um torneio, e de seu fantasma que sofria no inferno. Porém, existiam também as histórias de milagres, que favoreciam os cavaleiros, como nos relata Larry Benson, a partir da tradução de manuscritos da época. “Uma história de milagre muito popular (a primeira que apareceu no final do século XIII) a respeito dos torneios, descreve como um cavaleiro que sempre acenava para a população local antes de se dirigir a algum torneio, e que um dia ele teria chegado atrasado a esse evento. Por conseguinte em seu lugar um anjo (algumas versões diziam que era a Virgem Maria) teria lutado em seu lugar e capturado diversos oponentes; alguns consideraram esta história uma blasfêmia, passível de punição severa”. 72 Até Cristo é descrito como um cavaleiro que teria lutado em Jerusalém, vestindo a armadura contra o diabo, segundo o relato das traduções de Benson: “Sublime e majestoso, com sua armadura prateada e reluzente, a frente dos cavaleiros, o Filho de Deus, brandindo sua espada, conclama a todos os cristãos para a libertação da Terra Prometida na luta contra satanás.. O Cristo homem se faz presente diante da insensatez do mal que reina na cidade sagrada”. 73 No século XIV, a Igreja decidiu que não haveria mais problemas em permitir que os torneios ocorressem desde que, os combates transcorressem com espírito de se exercitarem militarmente e dentro de um posicionamento cortês e fidalgo. Era aceitável que os cavaleiros participassem dos torneios com o objetivo de praticar e se exercitar no uso das armas, com a intenção de serem melhores soldados, para posteriormente oferecerem seus serviços às Cruzadas. 72 Tradução: BENSON, Larry D. The Tournament in the Romances of Chrétien de Troyes & L'Histoire de Guillaume Le Maréchal, London, 1999. p. 38. 73 Ibid. p. 40 60 A Igreja via os torneios como um risco à salvação do homem, e as autoridades seculares viam os torneios como um risco à ordem pública. Um grupo de homens armados era um risco potencial à ordem pública, e é por isso que os reis da Inglaterra e da França atentaram e criaram certas restrições, nos séculos XII e XIII, como forma de controlar possíveis desordens públicas, que poderiam ocorrer em virtude da presença de homens armados nos vilarejos e nas cidades. Era muito comum a utilização dos torneios para a realização de conspirações ou assassinatos. A lei Statuta Armorum, criada em 1292, por Eduardo II, rei da Inglaterra, (1307-1327), foi uma forma legal de prevenir que os torneios deturpassem a ordem pública. Estas regras não eram passadas aos participantes diretos, os cavaleiros, e sim para os assistentes, que geralmente, conforme a nobreza, eram os causadores de desordem. Em outras regiões, principalmente no norte da Europa, foram tomadas precauções especiais, principalmente a partir do século XIV, ou seja: os cavaleiros eram recebidos nas cidades somente se a declaração dos conselhos municipais informasse que eles haviam se comportado bem e pago as suas contas nos centros onde eram realizados os jogos. Posteriormente, as cidades, durante os torneios, convocaram arqueiros, como guardas caso ocorressem distúrbios. Desde meados do século XV a Cristandade Ocidental se vê em crise e os torneios no aspecto religioso e espiritual, acabaram sofrendo transformações. Constantinopla é tomada, em 1453, pelo sultão turco Maomé II. Os reis cristãos, politicamente divididos, e o papado romano corrompido, são impotentes para reagir. A grande peste (Peste Negra), e a Guerra dos Cem Anos, deixaram um rastro de destruição apocalíptico. Nesse ambiente, muitos pensadores se tornaram audaciosos na crítica à visão de mundo tradicional, e aos valores perpetuados pela teologia medieval, como cita Minois: 61 “O Humanismo triunfante e sua virtude enervante (no sentido etimológico) ganha as mais altas esferas do clero, inclusive papas. As preocupações intelectuais se sobrepõem às exigências espirituais e dogmáticas, o saber sobre o agir, as veleidades sobre as decisões. O imenso apetite de cultura inverte os limites impostos pela fé dos séculos precedentes. O espírito se abre a todos os domínios do conhecimento humano; os exclusivos recuam. O mundo dos intelectuais começa a se instalar no terreno, com uma retomada de admiração pelas antigas obras pagãs, um desejo de usufruir os bens presentes e um otimismo sorridente para o futuro, que os engenheiros já povoam de máquinas fantásticas que tornarão a vida mais agradável. O céu não é esquecido, por certo, mas, por enquanto, não há pressa”. 74 Perante tais transformações, principalmente ao que concerne à admiração das obras literárias pagãs, em toda a Europa, os torneios também sofreram influências e modificações nos seus aspectos sociais, políticos e religiosos, e se desenvolveram de duas formas bem diferentes. De um lado, torneios em grande escala se tornaram muito caros. Cercados por um cenário elaborado e programas dramáticos (teatrais), restringiam-se, somente aos reinos ricos, como a Provença e a Borgonha, que tinham experiência e recursos para organizá-los. Enquanto por outro lado, os desafios individuais (duelos), mais modestos, ganharam grande popularidade, como uma das poucas formas de um cavaleiro adquirir fama e deixar sua marca na história. Nestes desafios, a justa, (lança contra lança) que tem a sua grande difusão na corte de Borgonha, e posteriormente se alastra, principalmente para o sul da França, no século XV, leva o mais alto grau de sofisticação à prática do torneio. Impregnados de romances, os organizadores reconstituem a sua atmosfera ao redor de justas de tema. “Uma das mais célebres justas de tema, foi a da Árvore Carlos Magno, realizada em 1443 durante seis semanas por Pierre de Bauffremont, senhor de Charny, e outros doze cavaleiros e escudeiros borgonheses. Com um grande número de espectadores, as arenas do torneio foram acrescentadas enormes tendas, enquanto que três castelos foram escolhidos para hospedar os participantes, onde se realizaram festas suntuosas durantes dois meses”. 75 74 MINOIS, G. - L'Église et la Science: histoire d'un malentendu. Fayard. Paris, 1990. p. 290. 75 GAIER, C. Technique des combats singuliers d'après les auteurs 'bourguignons du XV siècle, Le Moyen âge, Favard, 1985. p. 91. 62 Ilustração 6 – Cavaleiros em Justas, Árvore Carlos Magno Século XV, (1443). Fonte: BNF, MS. 13467 FL. 29, Paris, França. Ainda no âmbito dos duelos individuais, o gênero mêlée (luta corpo a corpo, preferencialmente realizada no chão, sem os cavalos), se tornou raro. Um modelo distinto de embate surgiu como pas d’armes76, em que o indivíduo, ou uma equipe, proclamavam sua intenção de defender um determinado local contra todos os possíveis oponentes. Somente na Provença e na Borgonha, provavelmente se poderia, nesta época, vislumbrar as modalidades justas, mêlée, e pas d‟armes inclusas em um único evento de torneio. No século XV, não existem dúvidas de que todos os olhos estavam atentos aos cavaleiros, que poderiam ter sua grandiosidade encontrada na literatura da época, que o Rei René I muito bem registra no seu Livro dos Torneios, foco dessa pesquisa. As implicações sociais e políticas, a partir do século XV, sofreram alterações substanciais no que tange a organização dos torneios e aos desafios provocados pela nobreza. 76 Os pas d’armes do século XV, tinham formalização diferente àqueles realizados nos séculos XIII e XIV. Os desafios, em sua maioria, eram embates a fim de defender a propriedade e a honra. Posteriormente, nos séculos subseqüentes (XVI e XVII), diante da tecnologia das armas de fogo, tornou-se necessariamente um confronto, onde um dos oponentes teria que sucumbir, desde que atingido em sua honra por um dos confrontadores. 63 3. O CONTEXTO HISTÓRICO FRANCO-PROVENÇAL: DA RESTAURAÇÂO À UNIFICAÇÃO (1430-1481). No final da Idade Média, ainda que com densidade desigual nas suas diferentes regiões, toda a Europa Ocidental foi atingida pelas crises do século XIV e da primeira metade do XV, época que Edouard Perroy chamou de “Tempos Difíceis” 77 . Esta depressão generalizada deveu-se à crise frumentária78 de 1315-1317, ligada a fatores climáticos e à saturação populacional, à crise monetário-financeira de 1335-1345, decorrente de uma economia de paz para uma guerra, provocada pela Guerra dos Cem Anos (13371453), e por fim à crise demográfica de 1348-1350, resultante da Peste Negra. Estes fatores, movimentos pendulares79, influenciaram profundamente os Reinos da França e da Provença, como veremos a seguir, no período entre 1430-1481, nos seus aspectos políticos, sociais, militares e econômicos. No decorrer deste período, o decréscimo de parte da nobreza, as migrações que possibilitaram a fuga de servos, a substituição de exércitos feudais por mercenários, e o despertar do nascimento de novos Estados, aceleraram a decadência do feudalismo. Graças a isto, e à necessidade de centralização, numa época de guerra, a monarquia francesa foi-se fortalecendo, até que a vitória final e a consolidação territorial do país, como exemplificam a anexação da Provença, em 1481, deram ao rei um poder até então desconhecido, abrindo caminho para a concretização do processo de unificação nacional. 77 PERROY, Édourd, Org. CROUZET, Maurice. História Geral das Civilizações, A Idade Média Tempos Difíceis Vol. VIII, Ed. Bertrand, Rio de Janeiro, 1994. 78 Lei Frumentária, lei segundo a qual o Estado era obrigado a vender trigo à população urbana por preço inferior ao de mercado. A crise frumentária, à esta época foi provocada por colheitas fracas, que ocasionaram uma alta no preço do trigo. 79 SILVEIRA, A. Eliana op. cit. p. 23 e 26. 64 3.1 A França Para melhor compreendermos os cinqüenta anos decorridos no período entre 1430-1481, faz-se necessário analisar as inúmeras adversidades instaladas na França em momentos anteriores. Dentre elas, destaca-se a série de conflitos entre franceses e ingleses, conhecida como Guerra dos Cem Anos. Devemos considerar que desde a conquista normanda da Inglaterra, o rei desta possuía vastos territórios na França. Durante muito tempo, conflitos entre estes dois reinos foram constantes. O início do conflito foi marcado por uma ligeira superioridade britânica. Interrompido pela Peste Negra, reiniciou após o término da mesma. Mas na segunda metade do século XIV, aproximadamente trinta anos após o início da Guerra dos Cem Anos, com a subida de Carlos V, o Sábio, primeiro herdeiro do trono da França a usar o título de Delfim (1364-1380), a guerra tornou-se favorável aos franceses. Graças às guerrilhas do general Bertrand Du Glescin, o reino francês recuperou quase todos os territórios em poder dos ingleses, dos quais restou apenas Calais, Cherbourg, Brest, Bordéaux e Bayonne. Porém, para infelicidade da França, o rei seguinte, Carlos VI, ficou louco, e quando o seu irmão quis apossar-se da regência, foi morto a mando do duque da Borgonha, iniciando-se assim uma guerra civil de grandes proporções em todos os feudos do reino francês. Na citada guerra, opunham-se pontualmente as grandes Casas nobiliárquicas, os Armagnacs, partidários reais, e os Borgonheses, partidários do duque da Borgonha e de sua amante, a rainha. Esses pediram auxílio aos ingleses para enfrentarem os Armagnacs, dando-se assim a batalha de Azincourt80 80 Nesta batalha, usando arcos de mão, que lhes permitiam disparar flechas rapidamente e à longa distância, os arqueiros ingleses destruíram ondas sucessivas da cavalaria francesa em várias batalhas da Guerra dos Cem Anos. Para alguns historiadores, Azincourt foi a última batalha da Cavalaria. Cavaleiros franceses embaraçados com um equipamento demasiado pesado, vão muitos morrer no assalto em os arqueiros ingleses terão provado a supremacia das armas ligeiras. 65 (1415), em que mais uma vez, apesar de inferiorizados numericamente, os ingleses conseguiram atingir uma espetacular vitória. Em 1419, os homens do Delfim mataram o duque da Borgonha, e com isso o rei Carlos VI adquiriu uma imagem de assassino aos olhos dos partidários borgonheses, isto é, praticamente toda a França, do leste e do norte, incluindo Paris. Diante de tal fato, a rainha assinou com os ingleses o Tratado de Troyes (1420). Através dele, a rainha francesa deserdava seu próprio filho, fazendo do rei inglês Henrique V o herdeiro da França e seu regente, enquanto durasse a loucura de Carlos VI. Porém, no mesmo ano em que morreu Carlos VI, morreu também Henrique V, disputando então o trono francês Henrique VI, rei da Inglaterra, que baseava a sua reivindicação no Tratado de Troyes, e o legítimo herdeiro, o filho de Carlos VI. Nesta situação, bastante confusa e amarga para os franceses, surgiu a figura de Joana d‟Arc, que conquistou vários territórios para os franceses, coroando o rei Carlos VII em Reims (1429), legitimando a sua posição e, principalmente, despertando o entusiasmo de seu povo. Tornou-se ela, sem dúvida, a mãe de um sentimento nacionalista francês. Mesmo após a sua morte81, ocorrida em Rouen em 1431, os franceses, imbuídos do novo espírito, conseguiram várias vitórias diante dos ingleses. Já nesta época, podia-se perceber, em virtude da Guerra dos Cem Anos, segundo Pierre Chaunu, um recuo demográfico de forma direta, com uma mortalidade de 50 a 80 por cento dos efetivos militares e com massacres de populações civis, mas também 81 Joana d‟Arc, acusada de diversos crimes, incluindo feitiçaria, foi condenada e queimada numa fogueira, em praça pública, com apenas 19 anos de idade. Em 1456, Joana foi reabilitada pela Igreja após um processo aberto a pedido da família. Na França, ela nunca foi esquecida inteiramente, mas o seu sacrifício só voltou a ser verdadeiramente admirado no século XIX, durante a Era Romântica. Em 1869, o bispo de Orleãns pediu a sua canonização, que, após a beatificação de 1909, veio a ocorrer em 1920. 66 indiretamente, devido às epidemias e às fomes, favorecidas pela guerra. 82 A mobilidade social, ascendente e descendente, caracterizou-se por uma renovação da nobreza com a concentração de bens entre seus sobreviventes, pela ruptura ou afrouxamento dos laços sociais, pelas migrações provocadas em função das mudanças econômicas e demográficas, por causa da ascensão e consolidação da burguesia e pela formação de novas categorias dentro deste contexto, como de soldados profissionais. No início do reinado de Carlos VII, a estrutura política do Reino da França ainda não apresentava uma unidade efetiva. A realeza não dispunha, apesar dos avanços rumo à centralização, de um suporte de instituições estáveis que abarcassem o conjunto de seu domínio com uma organização uniforme. A maioria de suas províncias mantinha um sentimento particularista ainda muito forte, favorecido muitas vezes pela política dos senhores locais. Geopoliticamente, a leste, o reino da França conservou, a grosso modo, os limites fixados em 843 pelo Tratado de Verdun: Escalda, Mosa, Saona e Reno. Fronteira mal conhecida pelos próprios franceses, com enclaves, territórios disputados pelo império germânico, e a monarquia franca. Esta tendeu, sobretudo desde o fim do século XII, a desenvolver a sua influência sobre os países de língua, e civilização francesas, situados em terras do império. Certas regiões passaram para a sua soberania: tal é o caso do feudo de Barrois, terra natal de Joana d‟Arc, na Lorena imperial, da cidade e Condado de Lion e do Delfinado Vienez. Outras regiões, igualmente francesas, permaneceram fora do reino, tais como o Condado da Borgonha (Franco Condado), a Sabóia e a Provença (estreitamente ligada ao reino em virtude do parentesco da dinastia angevina com a coroa). No Mediterrâneo, o rei 82 CHAUNU, Pierre. op. cit. p. 327. 67 da França apenas possuia a estreita facha do Languedoc, com os portos de Narbona, Saint-Gil e Montpellier. A sudoeste, a cadeia dos Pirineus mais une do que separa as populações das duas vertentes, com dialetos e modos de vida semelhantes. Ao norte, subsiste o Condado da Flandres. A oeste, o reino da França se estende até o Atlântico, mas a soberania da coroa não se expande por toda a parte até a costa, ela detem-se em face de dois grandes feudos: o Ducado da Bretanha, ao norte e o Ducado da Aquitânia, ao sul. Ilustração 7 – Mapa da França Séc. XV, 1430. Fonte: Enciclopédia Britannica. A administração do rei goza de maior autoridade e prestígio, especialmente nos territórios do reino onde, entre ele, a população e a rede de vassalagem, não se interpõem a autoridade de um príncipe feudal autônomo, desfrutando de um verdadeiro poder de soberania. Territórios que, em virtude de heranças, (caso da Provença) ou caso de sucesso das 68 guerras, viveram durante alguns séculos sob a mesma linha dinástica, ganharam o sentimento da sua personalidade. A nacionalidade provincial é anterior à nacionalidade francesa, e até, por vezes, oposta. Mas a partir do reinado de Carlos VII, a Europa sofrera grandes transformações políticas e sócio-econômicas, como Fernand Braudel observa: “(...) o espaço francês, que foi o campo de batalha da Guerra dos Cem Anos, recupera a sua coerência política e já econômica com os reinados de Carlos VII e de Luis XI, o mundo ao seu redor mudou terrivelmente”. 83 Neste aspecto, a reviravolta no norte da França, de língua Oil84, rumo a uma estabilização e reconstrução política, econômica e social, deu-se essencialmente por obra do rei, de uma filha do povo, Joana d’Arc, de um burguês, Jacques Coeur, tesoureiro de Carlos VII, mas também pelo auxílio dos particularismos dos reinos do sul, de língua Oc85, entre eles a Provença, como argumenta Duby, ressaltando o conjunto de fatores que contribuíram para a libertação do reino francês e à expulsão do ocupante: “A França da língua oc poupada, fiel, tratou de libertar a do Norte, devastada.. Carlos VII foi restabelecido em seus poderes. Ele encarnava a ordem e a paz, e teve o bom senso de não questionar essa diversidade de que o Estado se revestira durante as perturbações. Foi sobre esses particularismos que se baseou a reconstrução. As províncias conservaram seus costumes, suas assembléias, sua capital e suas instituições específicas. Contendo suas exigências, a autoridade real soube distribuir judiciosamente os privilégios fiscais entre as boas cidades, os corpos profissionais, as diferentes categorias de seus servidores.”. 86 83 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV-XVIII, O Tempo do Mundo, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1998. p. 298. 84 A região norte do que seria a França atual chamava-se Languedoil, que era a maneira como se pronunciava a palavra oil, como uma corruptela da palavra oui (sim), herança de uma presença mais forte do Reino dos Francos Sálicos e seu sotaque germanizado. 85 No sul existia a Languedoc, que significaria literalmente "Língua (langue) Documentada (oc, abreviado)". A língua germanizada dos Francos além de sofrer a influência do latim vulgar (documentável), também teve a influência do sotaque catalão, com raízes visigóticas. Língua falada ao sul do rio Loire, na qual a palavra oc exprimia a afirmação. 86 DUBY, Georges. Idade Média na França (987-1460) – de Hugo Capeto a Joana D’Arc, Ed. Jorge Zahar, 1992, Rio de Janeiro. p. 276. 69 Ilustração 8 – Mapa Lingüístico da França. Séc. XV – Fonte: http://parlange.free.fr/pages/chronologie.html Ao lado disso, a tentativa de reação da nobreza às inúmeras modificações, conhecida pelo nome de Praguerie (1440), não desestabilizou o governo. Ainda que Carlos VII, até o fim de seu reinado, tenha sido alvo das revoltas de seu filho, e sucessor, futuro rei Luis XI, pôde, ainda assim, dotar o seu reinado de um embrião de exército permanente (as companhias de ordenança, 1445) e de uma fiscalização que garantia rendimentos regulares (talha87, impostos diretos, gabela88). Carlos VII, em 1444, assinara com os ingleses as tréguas de Tours, tréguas que duraram cinco anos, reforçadas pelo casamento de Henrique VI com Margarida de Anjou, filha do Rei René, e que permitiram ao país recobrar o alento. Porém, a necessidade de uma maior segurança contra o inimigo, fez com que o rei francês criasse as Companhias de Ordenança (primeira cavalaria permanente criada num reino cristão do ocidente). Houve 87 Imposto que correspondia a uma parte de tudo o que era produzido no manso servil, pago na forma de produtos. 88 Taxação do sal, posteriormente imposto sobre a troca de mercadorias. 70 inicialmente dez companhias de língua oil, depois cinco de língua oc. Desta última, a Provença auxiliou a França com quatro companhias, apesar de não pertencer ao reino da França, o Condado provençal sempre se mostrou um aliado importantíssimo ao Delfim. Com relação à Igreja, retomando, e agravando a política utilizada anteriormente por Felipe, o Belo, Carlos VII assentou as bases duradouras do galicanismo89 pela Pragmática Sanção de Bourges (1438). Afora isso, nos últimos anos da Idade Média, a Igreja atravessava uma crise profunda, a um só tempo material e moral, e os ataques lançados contra ela pareciam anunciar a Reforma Protestante. Mas, graças a esta crise, a Igreja francesa se esforçou por desempenhar um papel dirigente, no domínio temporal bem como no espiritual. As manifestações da fé traduziam uma exaltação e um apuro da sentimentalidade religiosa; mas nas práticas piedosas, o sobrenatural exprimia-se por formas mais humanas e mais materiais, os pensamentos procuravam expressão nas imagens, como cita Huizinga: “No fim da Idade Média dois fatores dominaram a vida religiosa: a extrema tensão da atmosfera religiosa e a marcada tendência a representar-se em imagens. (...)O espírito da Idade Média, ainda plástico e ingênuo, anseia por dar forma concreta a todas as concepções. Cada pensamento procura expressão numa imagem, mas nessa imagem se solidifica e se torna rígido”. 90 Na ordem política e econômica, ao final do reinado de Carlos VII, a França conseguiu certo equilíbrio nas finanças, bem como uma melhor estruturação do sistema de 89 Doutrina por meio da qual a igreja da França, embora afirmando a sua ligação à fé católica e à Santa Sé, pretendia restringir a autoridade do soberano pontífice, em especial no domínio temporal, em nome de determinados privilégios particulares, chamados liberdades galicanas. 90 HUIZINGA, Johan, op. cit. p. 159. 71 impostos, o que possibilitou um movimento de restauração da política régia. Como bem salienta Goubert: “Carlos VII conseguiu acumular um rendimento de dois milhões de libras, soma jamais até então atingida; dois terços provinham das talhas. O pequeno “rei de Burges” encontrava-se daqui em diante à frente de um grande e poderoso reino. Deixava a um filho difícil uma tarefa facilitada” 91. Deste modo, quando em 1461, Luis XI subiu ao trono, virou as costas à sua juventude tempestiva e tumultuada, a fim de promover as modificações, necessárias, iniciadas pelo seu pai, para o fortalecimento do reino, e quebrar a coligação dos grandes senhores feudais, como Édouard Perroy sustenta: “No decurso da segunda metade do século XV, o Estado moderno monárquico desembaraça-se do mundo senhorial, ultrapassando os três obstáculos que entravavam sua marcha: ruptura das hierarquias tradicionais, compartimentação da cristandade, necessidade de enfrentar novas e múltiplas tarefas com meios limitados”. 92 Apesar de seus erros e mesmo de seus delitos, esse rei, geralmente doente, entre seu confessor, seu médico e alguns especialistas em justiça sumária, reinou como um bom soberano. Procurou ainda mais o apoio das burguesias das cidades, que lhes deram respaldo. Mas a França, apesar do término da Guerra dos Cem Anos, ainda se via ameaçada pelos ingleses que sonhavam com uma nova invasão. No leste e no norte, o poderoso ducado borgonhês, um dos Estados mais importantes da Europa do século XV, ameaçava gravemente a realeza francesa. 91 GOUBERT, Pierre, op. cit. p. 68. 92 PERROY, Édourd, Org. CROUZET, Maurice, op. cit. p. 154. 72 No decurso da sua luta com Carlos, o Temerário, duque da Borgonha, Luis XI cometeu muitos erros, mas conseguiu safar-se de todas as situações graças a sua astúcia e a ajuda dos suíços, que derrotaram Carlos em Grandson e Morat. O domínio real continuava aumentando (anexação do Anjou, do Maine). Em 1481, invadiu a Provença, com o grande porto de Marselha, anexando-a ao reino. Da rica herança borgonhesa, Luis XI recebeu apenas o ducado da Borgonha e a Picardia. O desaparecimento do Estado borgonhês, que extinguia um magnífico foco de civilização, foi um acontecimento cheio de conseqüências - a luta do rei contra o vassalo demasiado poderoso, iria suceder o antagonismo entre a França e os Habsburgos. Luis XI, quando morreu, não tinha sessenta anos, e havia antecipado as decisões acerca dos pormenores de sua sucessão, que foram assim acatados e executados, embora tal atitude não seguisse os costumes. Aproxima-se o instante em que a França começava sua expansão pelas velhas terras germânicas, situadas a leste do limite consignado pelos tratados do século IX, à Francia Ocidental. É a monarquia que vai dominar a história da França. A partir desse momento, a grande união nacional está feita, mas será preciso assegurá-la e completá-la. Ilustração 9 – Luis XI, Século XV, Museu do Brooklyn (New York). 73 3.2 A Provença A Provença também sofreu as conseqüências dos inúmeros acontecimentos decorrentes do século XIV e início século XV. Durante a Guerra dos Cem Anos, os senhores feudais impuseram novos tributos que aumentaram substancialmente suas rendas. Os gastos com a guerra, incluindo os com o armamento dos cavaleiros, a eles subordinados, gerou terríveis conseqüências. Contudo os maiores danos foram causados aos milhares de camponeses mortos, e à destruição de seus valiosos campos por intermédio dos ingleses e dos mercenários. Os Principados e os Condados empobreceram, e entre eles, também a Provença não escapou de tal crise. No aspecto demográfico a Provença enfrentou, no século XIV, uma de suas maiores crises. Sua população teve um recuo que girou em torno de 50 por cento. Tal fato se deu em função da Peste Negra (Peste Bubônica), que teve seu foco inicial no continente europeu e, por conseguinte, de maior gravidade, no porto de Marselha, proveniente do Oriente (Criméia). Porto esse, de intenso movimento, pois recebia embarcações provenientes de todo o Mediterrâneo, e simplesmente teve paralisadas as suas entradas e saídas, gerando uma grave crise financeira ao território provençal. A revolta dos marinheiros do porto de Marselha, ocorrida após a epidemia da peste paralisou completamente o sistema portuário no sul da França. No final do século XIV e início do XV, com a depressão, a camada senhorial, entre elas a provençal, passou por grandes dificuldades, pois a falta de mão-de-obra obrigou os senhores a fazerem concessões, estabelecendo em suas terras, camponeses 74 assalariados ou transformando os encargos servis em quantias fixas, pagas em dinheiro. Com a alta de preços generalizada, as rendas senhoriais se desvalorizavam, mesmo porque a principal produção de suas terras, os cereais, subiu menos que os outros produtos. Além disso, o estilo de vida dos senhores mudara, passando eles a adquirir artigos de luxo e não se contentando mais com aquilo que era produzido em seus próprios domínios. Procurando recuperar a sua antiga condição, os senhores novamente elevaram as taxas sobre os camponeses, e tentaram reforçar os laços servis. Esta reação senhorial explica as revoltas camponesas, como a ocorrida em Arles, Provença, em 1407. Por volta de 1430, a Provença era limitada ao norte pelo Delfinado e pelo condado de Venaissin, a leste, pelo Piemonte e pelo Condado de Nice, ao sul, pelo Mediterrâneo e a oeste pelo Languedoc. As suas principais cidades eram: Aix, Arles, Marselha, Toulon, Tarascon e Avinhão. Ilustração 10 – Mapa da Provença séc. XV, 1430. http://www.fordham.edu/halsall/sbookmap.html Com relação à linha dinástica angevina, para uma melhor compreensão de como o rei René chegou ao poder, destacamos que, depois da morte de Raimundo Berengário 75 V, Branca de Castela combinou o casamento de seu filho, Carlos de Anjou, irmão de São Luis, com Beatriz, filha e herdeira do último conde catalão, (1246). A Provença passou assim para a casa de Anjou e encontrou-se envolvida nas aventuras dos príncipes angevinos. Mas foi a partir de René d‟Anjou, nobre, filho do duque Luis II de Anjou e Provença e Iolanda de Aragão, nascido no castelo de Angers, em 16 de janeiro de 1409, cidade francesa do département de Maine-et-Loire, distando 191 milhas a sudoeste de Paris e a 50 a leste de Nantes, situada numa área conhecida naquele tempo como Anjou, que foi Duque de Anjou, Conde de Provença (1434-1480), Conde de Piedmont, Duque de Bar (1430-1480), Duque de Lorraine ou Lorena (1431-1453), Rei de Nápoles (1438-1442-1480) e de Jerusalém (14381480) e Aragão (1466-1480), incluindo Sicília, Majorca e Córsega, que a Provença conheceu a sua maior notoriedade e importância como reino no século XV. René d‟Anjou era um príncipe de extremo refinamento. Mas não se descuidou dos aspectos políticos e econômicos da Provença quando ela mais necessitou. Diferentemente da maioria dos senhores feudais da época, era um sonhador, um romântico, apesar dos inúmeros infortúnios enfrentados, não desaparecia de sua face uma aura cortês. Era um artista, um poeta. René era inteligente, atrativo e tolerante. Ele próprio via-se como um guerreiro cavaleiro, já na sua juventude, com 17 anos, participava de várias justas e planejava torneios. Aliado de Carlos VII, por parentesco e convicções políticas, estava presente na corte de Lorena em Nancy em 1428, quando Joana d‟Arc veio pedir auxílio ao rei francês. Complementando a ajuda para Joana, conforme relato de Jacques Levron, nos estudos em manuscritos da época, René lhe ofereceu quatro escudos e um cavalo preto, o que ela aceitou 76 prontamente.93 O soberano provençal também estava presente em 1429, na coroação do Delfim em Reims. Igualmente esteve presente ao lado de Joana d‟Arc ao cerco de Paris e, posteriormente, foi o emissário do rei para informar que tal cerco cessaria. Com implicações em todos os sentidos na história provençal, francesa e italiana. René, o Bom, inegavelmente notabilizou o reino da Provença, quer na literatura, nas artes, na política, na economia, enfim, em todos os campos nos quais a transição de uma era já se fazia presente. Em 1430, René d‟Anjou, filho de Luis II e Yolanda de Aragão, já possuía várias possessões e áreas de influências, como se visualiza no mapa abaixo: Ilustração 11 – Expansão Angevina (do séc. XIII, ao início do séc. XV) As possessões territoriais e influências da Casa de Anjou. Fonte: Cartographie Patrick Mérienne. 93 LEVRON, Jacques. Le Bon Roi René, Paris, Ed. Perrin, 2004, p. 193. 77 Sua mãe conseguiu fazer adotar René pelo cardeal-duque de Bar e casá-lo com Isabel, filha e única herdeira do duque de Lorena. Mas a sucessão ao ducado de Lorena é disputada também por um candidato do duque da Borgonha, o conde Antonio Vaudémont, e com isso instala-se a guerra. O Bom rei René é derrotado e aprisionado (1431) na fortaleza borgonhesa de Talant e, posteriormente no próprio palácio de Felipe, também o Bom, em Dijon, e para a sua libertação foi solicitado um resgate no valor de 400.000 escudos94. Isabel da Lorena não só deu ao esposo nove filhos (o primeiro, João da Calábria), como soube preservar os seus feudos durante o cativeiro, que durou três anos e só terminou por um tratado que regulamentou a sucessão da Lorena a contento de todos. Sobrepondo as crises do início do século anterior, Provença prosperava; o porto de Marselha era um dos mais movimentados do Mediterrâneo, apesar dos conflitos entre o rei René e Afonso V, do reino de Aragão, a propósito do reino de Nápoles, que privava o porto de alguns mercados italianos, a troca de mercadorias com Florença e com portos como o de Gênova e o de Barcelona intensificou-se, como cita Jacques Heers: “Na Provença, Marselha e Avinhão, centros de fretes e núcleos financeiros, controlam todo o comércio de trigo. No Mediterrâneo, Marselha exporta o trigo, mel, azeite, as lãs da Provença, às vezes os produtos do vale do Ródano e da Borgonha; tem armações para a pesca de coral e explora as marismas”. 95 René acabava de receber outras duas concessões: a de seu irmão Luis III, de Anjou e da rainha Joana II, de Nápoles. Ao mesmo tempo em que guardava o título de rei da Sicília, retirou-se para o ducado de Anjou e para a corte de Carlos VII, seu cunhado, sobre o qual tinha muita influência, e por este motivo em 1444, transformou-se no primeiro ministro 94 LEVRON, Jacques, op. cit. p. 147. 95 HEERS, Jacques. O Ocidente nos Séculos XIV e XV-Aspectos Econômicos e Sociais, Ed. USP, São Paulo, 1973. p. 128, e 168. 78 oficial de um rei da França, posição que ressaltava ainda mais a influência angevina na corte francesa. Pouco antes da morte da mulher, Isabel da Lorena, René apaixonou-se por uma jovem, Joana de Laval, que vira dançar numa comédia pastoril 96. Tendo ficado viúvo, casou-se com a bela jovem em 1453, dois anos após a morte da primeira esposa. Este casamento feliz, apesar da diferença de idades, abrandou um pouco o sofrimento do rei pela morte do filho, o ambicioso João da Calábria. Consolou-o também pela perda do Anjou, confiscado por Luis XI e pelas terríveis desgraças que caíram sobre a sua filha, Margarida de Anjou, rainha da Inglaterra. Em 1466 foi reconhecido como Rei pelos catalães do nordeste da Espanha. Juntamente com a sua jovem esposa retirou-se, em 1471, definitivamente para o condado da Provença. A partir deste momento cuidaria da administração mais de perto, no gerenciamento de suas terras e especialmente das artes e das letras, preocupações que realmente iriam ocupá-lo durante dez anos seguidos. O tempo nunca pareceu longo para ele. De forma agradável, foi cercado pelos bons companheiros e as inúmeras pessoas que freqüentavam a sua corte para divertirem-se ao seu lado. Politicamente ainda, René não mediu esforços para obter um tratado com Afonso V, para o restabelecimento da segurança da navegação e o comércio do Mediterrâneo, e consequentemente não causar uma ruptura completa com o reino de Aragão. Também concluiu um tratado com Gênova, que garantisse a navegação livre e sem restrições para os navios da Provença, naquele importante porto da Itália. Mas sem dúvida, de agora em diante se dedicaria aos festivais e espetáculos de sua corte. Procuraria as distrações sedentárias, no meio das flores, das frutas dos pomares, cercado 96 Evento teatral, a comédia pastoril aparece, sobretudo nos séculos XV e XVI. Valoriza a vida simples dos pastores como modelos de uma vivência inocente, idílica e nostálgica. 79 por sua esposa e por sua neta Marguerite, pelos seus amigos e seus artistas preferidos, entre eles Barthélémy d‟Eyck, ilustrador de seu Tratado de como organizar um torneio. Mas os excessos da boca já prenunciavam que estava acima de seu peso, e consequentemente passou a sofrer de inúmeras enfermidades. Seguidamente cancelava compromissos diplomáticos, principalmente àqueles ligados ao Reino de Nápoles e da Sicília, na Itália. De acordo com relatos, René dizia à amigos que abraçaria sem medo a hora suprema, desdenhando a morte. 97 À exceção de Lyon em maio de 1476, não saira mais da Provença, o que não o impedira que fizesse deslocamentos dentro das cidades provençais. Em 1480, René foi para Aix-de-Provence. Vivia feliz no meio de seu povo, na boa cidade de Aix ou no castelo de Tarascon, que dotara de todo o conforto possível na época. Nicolas Froment representou o casal, onde René exibe um rosto redondo aparentando um filósofo, e Joana de Laval um rosto doce, iluminado por dois olhos amendoados e um sorriso misterioso. Ilustração 12 – René d’Anjou e Joana de Laval, pintura de Nicolas Froment 1474, Museu do Louvre Paris, França. 97 LEVRON, Jacques, op. cit. 272. 80 O bom rei morre em 10 de julho de 1480 e o seu sobrinho, Luis XI, que há muito tempo cobiçava a herança dos angevinos, apressa-se em anexar o condado da Provença, em 1481, aos seus domínios. Em 1487, a ligação definitiva da Provença à França ficou consagrada por um tratado de união. Perante esta unificação, constata-se uma grande influência vinda do sul do reino francês. O Renascimento despertava na França, e para isto muito contribuiu a Provença, através dos inúmeros contatos e trocas com a Itália, principalmente com Florença, intermediados e possibilitados por René d‟Anjou. Outro tempo se abre, com horizonte cuja linha não mais cessará de estenderse, século após século. A respeito desta transição, mais embasadamente, Le Goff com objetividade, nos coloca: “(...) nesta época, a Idade Média até parece exasperar-se. O Outono da Idade Média, tal como foi visto por Huizinga, estava cheio de furor e de ruído, de sangue e de lágrimas. O gótico deu esse flamejante barroco extravagante, que incendiava rendilhados de chamas nos pináculos das casas, das igrejas e dos retábulos, torcia as linhas em todos os sentidos e deslocava as atitudes de homens e mulheres”. 98 Consequentemente, em virtude dos variados deslocamentos e atitudes dos homens da época, o mundo feudal cavalheiresco também se modificava, e com ele os torneios e justas medievais. 98 LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval, Vol. II. Ed. Estampa, Lisboa, 1984. p. 130. 81 3.3 O Mundo Cavalheiresco Francês e Provençal no Século XV: A Nova Cavalaria Cavaleiros emplumados que cruzam as lanças, enquanto arautos99 soam as longas trombetas. Damas com altos penteados que contemplam o combate de uma varanda onde tremulam bandeiras. Mas será esta a representação mais popular da vida medieval no seu aspecto cavalheiresco? Possivelmente não, tal quadro não poderá simbolizar a Idade Média. Estes elementos são tirados das miniaturas e iluminuras dos séculos XIV e principalmente a do século XV, e apenas para esta época constituem, em certa medida, uma representação valiosa. Trata-se ainda de um episódio de caráter excepcional, que não engloba senão um grupo social extremamente reduzido, uma aristocracia, que está longe de confundir-se com o conjunto da classe feudal. No século XV é grande o contraste entre a exaltação das virtudes cavalheirescas e a realidade vigente, na qual prevalece o perjúrio e a violência, pois nascida de circunstâncias espirituais e temporais, a Cavalaria manteve-se viva e dominante por muito tempo, em virtude de que os fatos que exigiram a sua criação mantiveram o seu peso na sociedade medieval. Ela foi a solução empírica dada à questão posta, simultaneamente pela lenta evolução das entidades territoriais, de quem os cavaleiros eram os garantidores, e pela delicada conciliação entre a força guerreira e o amor evangélico. Mas assim que a autoridade espiritual e o poder temporal estabeleceram um consenso, a utilidade da Cavalaria diminuiu e o cavaleiro deixou de ser o laço de uma sociedade sacralizada, para ser o soldado de um Estado Nacional incorporado por um príncipe profano. O próprio título, acompanhado da nobilitação, tornou-se uma qualificação honorífica destinada a recompensar os plebeus por serviços prestados à coroa. 99 Os repórteres medievais, cronistas, peritos em direito de armas e em cerimônias, os oficiais de armas dos séculos XIV e XV que são bem definidos por Philippe Contamine, como “especialistas da comunicação”. 82 Na Provença, nota-se claramente, em virtude de exemplos advindos das terras flamengas e germanas, uma transformação na organização dos torneios e das justas. Sua elaboração é voltada para a magnificência, ao esplendoroso, ao espetáculo, influenciadas tanto pelas Novelas de Cavalaria100 como pela Literatura do Amor Cortês101, apreciando as duas formas indistintamente.. Nesta região contempla-se o que de mais suntuoso existe na nobreza. Os desafios, como uma necessidade, tem que serem feitos para chamar a atenção, não somente dos nobres que deles participam, mas também da nobreza das regiões próximas como das longínquas. È preciso revelar a suntuosidade de tal evento, como intentando demonstrar que a corte responsável pela efetivação de um torneio espetacular, é merecedora de todos os elogios diante dos reinos da Europa. As cortes do sul da França já se preparavam para realizar os torneios de uma forma diferente, como que prenunciando o declínio do tradicional. Na França, o sentimento de honra é comum a toda a classe feudal, mas dentro dela, aqueles que têm efetivamente direito ao título de cavaleiro constituem, no princípio do século XV, apenas uma restrita minoria. Anteriormente, os torneios na França, visavam somente exercitar os cavaleiros para futuras batalhas. Já na Baixa Idade Média, mais do que desafios individuais, as interferências entre o anseio de “façanha” e as necessidades da tática são perigosas para o resultado da guerra. As três grandes derrotas francesas na Guerra dos Cem Anos deveram-se, em grande parte, à indisciplina da cavalaria feudal, impaciente 100 Narrativas de aventuras guerreiras que exaltam a valentia, a fidelidade ao soberano e a defesa dos fracos. Celebram também uma concepção mais realista do amor do que a literatura cortês. São exemplos de novela centrada em proezas militares as lendas celtas e bretãs do ciclo arturiano, relatando as peripécias do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda; os poemas ingleses Beowulf e Sir Gawain e o Cavaleiro Verde; os espanhóis, Amadis de Gaula e Los cantares del mio Cid; os franceses, O romance de Alexandre e Lancelot, de Chrétien de Troyes; ou o russo Canto da batalha de Ígor. As várias versões da lenda de Tristão e Isolda, entre as quais a do alemão Gottfried von Strassburg, são uma da maiores contribuições para a novela de temática amorosa. 101 Literatura cortês, celebrando formas idealizadas de amor, em geral platônico e inatingível, surge, a partir do século XI, na poesia provençal, do sul da França, com Arnaud Daniel, Guilherme de Aquitânia, Marcabru, Peyre Cardenal ou Bernard de Ventadour. Da França se irradia para toda a Europa, através de trovadores como o alemão Walther von der Vogelweide, ou os reis dom Afonso X, o Sábio, da Espanha, e Dom Dinis, de Portugal. Sua manifestação mais importante é O Romance da Rosa, dos franceses Guillaume de Lorris e Jean de Meung. 83 por travar combate, e o desejo de encontrar-se, cada um, na primeira fila. Ceder a certas regras de prudência tática surgia como uma forma de covardia. A Cavalaria resiste. Até a metade do século XV, apesar das mudanças dos tempos, onde a guerra requer outras implicações e estratégias, a cavalaria adaptou-se às conjunturas, como Huizinga relata: “A sede de honras e de glória tão característica do homem do Renascimento não difere muito da ambição cavalheiresca dos tempos anteriores, e é de origem francesa. Simplesmente libertou-se da sua forma medieval e revestiu-se de um garbo mais clássico. (...) A conquista da glória e das honras vai a par com o culto do herói, o que pode significar o prenúncio do Renascimento. Se a cavalaria tinha de ceder à estratégia e à tática, nem por isso deixava de conservar importância no aparato exterior da guerra. Um exército do século XV, com a sua esplêndida exibição de ricos ornamentos e pompa solene, oferecia ainda o espetáculo de um torneio de glória e honra. A quantidade de bandeiras e pendões, a variedade de brasões heráldicos, o som dos clarins, os pregões de guerra ressoando durante o dia inteiro, tudo isto, com o próprio traje militar e as cerimônias de armar cavaleiros antes da batalha, tendia à guerra a aparência de um desporto nobre”. 102 Do início do século XV até meados de 1440, a Cavalaria reluta às transformações, mas agora participando das batalhas como uma complementação, ainda importante e muito contributiva. Os torneios e justas continuam nos cursos das operações militares, veiculando sua ética e divulgando-a na própria guerra, como cita Jean Flori: “No fim da Idade Média, apesar do interesse novo que se tem pelas tropas de infantaria, pelos besteiros genoveses e pelos arqueiros gauleses armados com o grande arco, é fácil observar que nenhuma grande batalha foi vencida sem a contribuição notável da cavalaria. Sua função militar e mais ainda seu prestígio ideológico estão intactos e até reforçados. È somente com o triunfo da artilharia de pólvora e mais ainda da artilharia manual que ela declinará nesses dois planos”. 103 Mas a partir de, aproximadamente 1440, na França e na Provença, com o cuidado dos soberanos em melhor controlar o seu território e reforçar os seus poderes 102 HUIZINGA, Johan, op. cit. p. 72 e 104. 103 FLORI, Jean, op. cit. p. 108. 84 político-sociais, levaram-nos a cessar as guerras privadas entre senhores. Os príncipes asseguraram o monopólio da força e, portanto, da guerra. Despojado do seu papel de guerreiro individual, também o cavaleiro desejoso de continuar a combater e a guerrear, é obrigado a submeter-se à autoridade central e a servir em exércitos regulares arregimentados pelo Estado, cujo exemplo, foi as Companhias de Ordenança, criadas por Carlos VII, suporte de um exército permanente e nacional. Diante disto, resta para o cavaleiro um papel de “polícia” e de oficial de justiça, visando manter a paz desejada pelo príncipe, fazendo aplicar e respeitar suas decisões políticas. Tal transformação teve como conseqüência o desenvolvimento extremo dos substitutos do combate, que eram as justas e os torneios, fazendo do cavaleiro um profissional admirado por uma sociedade de salão, ou seja, glamourosa e cortês. A paz interna favorece o desenvolvimento de uma elite urbana na qual se apóia o príncipe, a burguesia, especialista na arte de gerir um orçamento e de manipular os homens. Durante a Idade Média a burguesia progride lentamente até o nível da Cavalaria, para ultrapassá-la definitivamente a partir do século XVI. A via das armas não é a única a conferir prestígio e a servir um príncipe. O serviço civil, sobretudo na justiça e nas finanças, abre uma outra via aos ambiciosos, uma via menos perigosa, mais eficaz e mais útil ao rei e ao burguês. A promoção desse, implica um enfraquecimento político-social da Cavalaria feudal, que tende a um empobrecimento acrescido. Daí a prática, desde o final do século XIV, de vender os feudos à burgueses ricos. O resultado foi o regresso de numerosos cavaleiros, e da sua descendência, ao nível do povo das cidades e dos campos. Argumentando sobre este quadro da cavalaria, Emmanuel Bourassin comenta: 85 “Em França, o poder centralizador, apoiado em recursos previamente previstos e num sólido exército, fizera progredir o reino na via da ordem e da pacificação. A ordem monárquica veio substituir a ordem feudal, pelo menos no domínio real. Os cavaleiros franceses, submetidos, reentrando na ordem, aceitavam a disciplina, graças a um salário regular pago pelos tesoureiros reais. A guerra anglo-francesa deixara-os arruinados; para conseguirem pagar os seus próprios resgates ou dos filhos, tiveram de hipotecar os seus feudos aos banqueiros da burguesia. Os nobres sentiam-se muito felizes por receberem o pão das mãos reais; disputava-se a entrada nas companhias de ordenança. Apesar de tudo isso, os cavaleiros não renunciavam ao seu orgulho. Os cavaleiros de armadura que vamos encontrar nas guerras de Itália serão dignos dos seus antepassados pela coragem e pela abnegação, mas enquadrados num exército real fortemente estruturado”. 104 A Cavalaria, no sentido restrito da palavra, no decorrer do século XV, tende apenas a constituir uma elite reduzida da nobreza feudal, e esta redução faz-se acompanhar de um crescente requinte dos sentimentos e práticas cavalheirescas, como se pode constatar nos reinos da Provença e Borgonha, onde a magnitude dos eventos relacionados a Cavalaria adquirem tons de exagero. As grandes Ordens de Cavalaria de tempos atrás – Templários, Hospitalários, etc., tinham sido criadas com vista à ação; pode-se dizer que é essencialmente atendendo à exibição que nascem as numerosas novas ordens. Não há príncipe ou grande senhor que não alimente a ambição de se tornar ilustre, criando uma nova ordem. Apesar da implantação de inúmeras Ordens de Cavalaria105 no decorrer do século XV, é o sonho de glória e de amor que forma a base do sentimento cavalheiresco, e encontra a sua manifestação mais expressiva nas justas ou torneios que, aos olhos dos cronistas, constituem os grandes feitos históricos do tempo. Dentro deste contexto um elemento significativo na nova Cavalaria, não só nela, mas em todos os setores, é o papel que 104 BOURASSIN, Emmanuel. Os Cavaleiros, Esplendor e Crepúsculo, Ed. Europa-América, Mem Martins, Portugal, 2003. p.147. 105 São fundadas por reis ou príncipes e aparecem a partir do segundo terço do séc. XIV. Associações firmadas sob juramento, muitas vezes fundadas por um motivo religioso e podem dispor de uma influência política no fim da Idade Média. As principais foram: A Ordem dos Cavaleiros do Tosão de Ouro, Felipe, o Bom, Borgonha, Ordem do Dragão, Hungria, Ordem da Águia, Alemanha, Ordem de Santo Huberto, duque Juliers, Ordem de São Jerônimo, Frederico II, da Saxônia e a Ordem de São Miguel, fundada por Luis XI, 1471, dentre outras. Mas a Ordem concorrente mais forte aos duques da Borgonha era a de René d‟Anjou a Ordem do Crescente, fundada em 1448. 86 nela ocupa a mulher, inspiradora das virtudes cavalheirescas, como salienta Georges Duby: “será preciso, aguardar o final da Idade Média (justamente quando da ascensão da burguesia) para que a voz feminina se faça ouvir nas fontes históricas acessíveis”. 106 È total a ausência de um motivo razoável para realizar uma justa cavalheiresca na sua mais pura forma. Os adversários não têm outras justificativas para se defrontarem além do desejo de fazer brilhar o seu valor, e ao mesmo tempo, de testemunhar a sua inteira submissão à dama que lhe inspira a coragem. E em virtude disto, as autoridades se mostram hostis a estas demonstrações, nas quais se esbanjam virtudes heróicas, que poderiam encontrar melhor emprego nos campos de batalha. Interessante também observar, principalmente na Provença, a partir de 1450, são os encontros cavalheirescos (justas). A encenação que rodeia os mesmos parece ter mais importância que os próprios embates. A diferença da indumentária e das armaduras dos cavaleiros desta época, para com as usadas nos séculos XII e XIII, sem dúvida, demonstra a transição sofrida pela Cavalaria, principalmente daqueles que de torneios e justas participavam no século XV. Retirado das páginas do Livro dos Torneios, de René d”Anjou, podemos constatar a suntuosidade de tais vestes, observemos: o cavaleiro tinha três trajes de gala; um de damasco carmesin bordado com prata e debruado com pele de marta zibelina, o segundo de cetim azul bordado com losangos de ouro, e terceiro, finalmente, de damasco negro tecido com fio de ouro, e com guarnições de arminho e bordas de plumas de avestruz, verdes, violetas e cinzentas; em honra da dama, o cavaleiro, às vezes, usava a manga de honra, espécie de faixa que prende ao ombro até o chão. Sobre o traje de cores vivas, vestiam a armadura de torneio, cinzelada e incrustada de ouro e prata. È da Alemanha que se 106 DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens. São Paulo, Companhia das Letras, 1989 p. 95. 87 mandam vir as armaduras mais famosas, mas vendem-se na França, principalmente Marselha, boas imitações.107 Por imposição do requinte, a vida da Cavalaria acabou por ser apenas um jogo de sociedade de grande aparato, sem o mínimo contato com a realidade, a qual se mostra cada vez mais hostil à cavalaria no próprio terreno em que deveria demonstrar as suas virtudes. O mundo cavalheiresco do século XV transformou-se. As cotas de malha aos poucos são substituídas por armaduras que, embora mais eficientes, eram muito pesadas; era difícil encontrar cavalos capazes de carregar e suportar tanto peso, e seu custo, somado ao da cara armadura nova, era quase proibitivo. Os novos exércitos da Europa eram formados por infantes profissionais altamente treinados e bem armados, capazes de permanecer em campo de batalha, prontos para lutar, durante uma temporada inteira de campanha. Esta nova Cavalaria, diga-se de transição, é muito bem representada por Jean de Bueil, que combateu sob a bandeira de Joana d’Arc, tomou parte da Praguerie e morreu em 1477, no romance intitulado Le Jouvencel que em certo trecho relata como via o cavaleiro daquela época: “(...) verdadeiro oficial, formado na prática quotidiana da guerra, tendo subido os postos da carreira militar graça às qualidades de prudência tática, cavalheiresco sem dúvida no sentido mais geral desta palavra, pela sua generosidade e cortesia para com o adversário vencido, mas não tendo senão desprezo para o heroísmo exagerado, que sacrifica a sorte de uma companhia ou de um exército ao desejo vão da glória pessoal” .108 107 D‟ANJOU, René. Traité de la forme et devis comme on fait um tournoi, Provence, (1455-1460). Fonte: BNF. Biblithéque Nationale France. 2695, FL. 08. 108 Trecho traduzido do original tendo como fonte Bibliothèque Nationale de France, BNF Paris. Doc. 3312. Fla.06. 88 Le Jouvencel é já um chefe militar moderno, um cavaleiro integrado às novas exigências das guerras e batalhas. Um novo contexto cavalheiresco se insere na Baixa Idade Média, e dentro deste quadro, os torneios também sofrerão mudanças, tornando-se desafios de cunho espetacular. Ilustração 13 – Le Jouvencel de Jean Bueil, 1470, BNF, Paris, França. As controvérsias dos historiadores a respeito do declínio ou não da cavalaria no século XV, nos remete a uma conclusão indispensável, independente de opiniões, e ela pode ser resumida por Franco Cardini que diz: “(...) as instituições cavalheirescas e a cultura que, entre o século o século XI e o século XVIII (e talvez para além deles) lhes conferiu prestígio, revelaram-se um dos motores mais poderosos do processo de individualização do homem ocidental, aquilo a que Norbert Elias chamou processo de civilização. É um elemento importante, que não se pode desconhecer e ao qual nós, contemporâneos, não podemos de maneira nenhuma renunciar”. 109 109 LE GOFF, Jacques Org, In: CARDINI, Franco, op. cit. p. 78. 89 O mundo cavalheiresco na França e na Provença, no século XV, apesar das influências inglesas, alemãs e flamengas110, é um contexto que, de maneira alguma, podemos renunciar, em virtude de suas particularidades e implicações no âmbito da história da Cavalaria medieval. Ilustração 14 – Apresentação dos cavaleiros para uma justa, iluminura séc. XV. Bruges, Flandres. Fonte: Bibliothéque Prince Albert, Bruxelas, Bélgica. 110 Os torneios franceses e provençais, a partir do século XV, sofreram inúmeras influências das regiões inglesas, alemãs e flamengas, principalmente no que concerne a elaboração e organização de um torneio. Notificando-se mais pelo aspecto suntuoso e luxuoso. Da região da Flandres vieram os principais exemplos que posteriormente seriam adotados pela corte de René d‟Anjou na Provença. 90 3.3 René I, o Bom: O Rei Sábio, Mecenas, Escritor e a sua Corte. Na Provença, as transformações políticas e culturais aparecem mais rápidas e mais nítidas, em virtude das constantes trocas com Florença, Milão e Gênova111, como nos relata Aldo Bastié; observa-se, porém, também em toda a parte, quase ao mesmo tempo. A Europa do século XV opera uma transformação de pensamento e de formas. A Igreja exerce somente uma influência, diluída sobre as inteligências que se emancipam. A escolástica cede à flexibilidade do saber. Artistas, escritores, voltando às fontes, inclinam-se sobre as obras originais da Grécia e de Roma. Para eles, a antiguidade ressuscita em sua beleza. Grandes descobertas transtornam o mundo material e moral. A imprensa, com Gutenberg, põe ao alcance de todos os conhecimentos humanos. As viagens dos venezianos, portugueses e espanhóis, revelam o Extremo Oriente, as costas da África e fazem surgir Novos Mundos, com Cristóvão Colombo. O universo se amplia, curva-se, e o globo aparece. O grande mar não é, desde então, o Mediterrâneo para os provençais, mas sim o Atlântico. Tomam consciência dos recursos que lhes oferece a geografia de seus reinos. Tempos em que os homens se espalham, disseminando as mais variadas culturas e os mais diversos conhecimentos. A Renascença iniciada na Itália ganha os Países-Baixos, a França, a Alemanha e a Espanha. Dante, Petrarca e Boccaccio preparam-se desde o século XIV, na poesia e na pintura, Giotto e Orcagna e a escola de artes em Avinhão na Provença. O século XV floresce exuberante com Ariosto, François Villon, Donatello e Leonardo, que serão seguidos imediatamente por Michelangelo e Rafael. Maquiavel trabalha o campo das idéias. Commines já é um historiador completo. Os flamengos Van Eyck, Barthéleme d‟Eyck (afilhado de René d‟Anjou), Rogier Van Weyden e Memling, os alemães 111 Bastié, Aldo. Histoire de la Provence, Editios Ouest France, Rennes, 2001. p. 21. 91 Dürer, Holbein e o francês Jean Foucquet sobem ao topo na pintura. Embora pouco conhecido pela historiografia medieval, René d‟Anjou, (1409-1480), teve grande influência e participação neste contexto no decorrer do século XV. Graças à ajuda, através das obras de Jacques Levron, Le Bon Roi René, Paris 2004, e Miguel Maryvonne, Quand Le Bon Roi René Était em Provence, Paris, 1991, podemos conhecê-la um pouco melhor. René d‟Anjou era um homem sensato, cujos horizontes da Provença, banhados pelo sol, adorava. “Sensível, conta-se que, quando vieram informá-lo que acabava de perder o ducado de Anjou, estava ele a pintar uma perdiz; a notícia não o impediu de continuar a pintar o quadro” 112 . Vivia em um mundo luxuoso, de uma sociedade suntuosa, sem dúvida, mas cujo esplendor e implicações culturais não podem deixar-nos indiferentes como historiadores, principalmente pelo legado exuberante de René, que nos permite estudar, com ricos detalhes, o contexto em que viveu o rei sábio, patrocinador, mecenas e escritor. Extremamente inteligente, falava latim, francês, grego, hebreu e catalão. Dançava e compunha músicas, escrevia poemas, interessava-se por teologia, astronomia, matemática, medicina e particularmente geografia. Ilustração 15 – René d’Anjou e a sua corte. Fonte Biblioteca de Marselha, França. 112 MIGUEL, Maryvonne. Quand le bon roi René était en Provence, 1447-1480, Paris, Ed. Favard, 1991, p. 64.. 92 Dentre tantas, são três as obras que permitem que o nosso tranqüilo soberano faça parte do Panteão literário da Idade Média: Le Mortifiement de vaine plaisance (Modificação dos vãos prazeres), O Livre des Tournois (Livros dos Torneios) alvo da nossa pesquisa e Couer d’amour épris (Coração apaixonado). A primeira obra não é relevante na historiografia medieval, mas o Livro dos Torneios, que veremos mais detalhadamente no último capítulo deste trabalho, é um manuscrito enriquecido com lindas iluminuras, que reconstitui todo o ambiente cavalheiresco em que o rei René fazia parte. O livre du coeur d’amour épris, transporta-nos através de um lindo caminho do “amor romântico”, vigente na vida cavalheiresca do século XV. Obras que hoje nos mostram o requinte de uma sociedade preciosa e refinada. Pela sensibilidade do autor e das iluminuras, podemos avaliar a importância da coligação cavaleiro, mulher, amor, cortesia, honra, fausto dentro do mundo da Cavalaria na Provença na segunda metade do século XV. Um amante das artes, das festas e dos prazeres, o rei René era um patrono generoso dos artistas, dos arquitetos e dos poetas. Em uma estada longa em Nápoles, se encontrou com mestres da escola italiana, como: Coleulino del Fiore, Ângelo Franco, Antonio Solário. Conta-se, inclusive, que em uma de suas viagens à Itália, em um encontro com Cosimo de Médici, mecenas de Florença, os dois trataram de decisões importantíssimas que entre elas incluíam: “fundação da primeira biblioteca pública da Europa em São Marco em 1444, com manuscritos raros do pensamento neo-platônico e pitagoreano; a instrução da universidade de Florença para começar a ensinar o grego; e uma academia para o estudo de Pitágoras e de Platão” 113. Gostava de ser cercado por escritores, por pintores e por músicos. Trouxe pintores flamengos que em Lorena viviam, entre eles Barthélemy d‟Eyck, criador das iluminuras que servem de objeto de análise deste trabalho, escultores famosos, pintores de 113 LEVRON, Jacques, op. cit. p. 138. 93 escolas importantes, entre elas a de Avinhão, onde encontrou Nicolas Froment e Enguerrand, mestres maiores desta escola que ilustraram o seu reino. No fim do século XV, aproximadamente 40 artistas residiam em Aix-en-Provence, trabalhavam sob o contrato do rei René, produzindo trabalhos de qualidade e participando das festividades habituais da corte. O soberano provençal também coletou inúmeros manuscritos e iluminuras e os imprimiu em livros. Incentivou a impressão e adquiriu as primeiras edições de Cícero, Heródoto, São Jerônimo e outros. Mostrava-se particularmente interessado na instrução pública. Protegeu a universidade de Aix e dotou escolas com professores capacitados e produção de livros elementares. A instrução das crianças era uma de suas prioridades, sendo que no seu château, em Anjou, instalou uma escola para as mesmas, com alimentação e ensino gratuito. Apesar de certas restrições de alguns historiadores (entre eles o francês Michel Mourré), diante da bibliografia e das fontes pesquisadas, o rei René era um homem generoso, misturava-se com o povo, principalmente nas festas religiosas e nos torneios. Sentia-se feliz no meio da população. A música estava sempre presente na corte do rei René, tanto nas festas, religiosas como nas profanas; acompanhava as entradas solenes, os bailes, os torneios dos cavaleiros, assim como realçava o brilho dos ofícios divinos. Apreciador da boa música, seguidamente o rei cantava poesias de sua autoria, fazendo-se acompanhar ao som do ludo114. Suas residências principais, onde passava a maior parte de seu tempo, o palácio de Aix e o château de Tarascon, foram decoradas e reconstruídas pelo próprio rei, que as refez de acordo com a sua imaginação e planejamento. Homem de extrema religiosidade acompanhou pessoalmente a construção da capela de Pimpéan, a que mais gostava, na 114 Instrumento musical de cordas, espécie de viola. Muito popular no final da Idade Média. Instrumento oval, constituído de quatro ou cinco cordas. 94 construção de seus afrescos em que os anjos carregavam os instrumentos da paixão, cenas essas que comoviam profundamente ao rei. “Em Tarascon construiu galerias que permitiam assistir aos torneios e procissões sem que deixasse seus aposentos.” 115 . Aliás, preocupações próprias e novas na construção de castelos no limiar da Renascença. René gostava muito de jardins, pessoalmente ornamentava, planejava e arquitetava aqueles ao redor de suas residências. Tal aspecto revela outra concepção arquitetônica, decorativa e cultural do final da Idade Média. Amante das decorações florais, seus jardins apresentavam exuberantes plantações de lavanda, rosas e outras variedades de flores. De acordo com o depoimento de Froment, verdadeiros tesouros naturais, como diz em um manuscrito: “dos jardins de René , não se tem vontade de sair, pois o perfume do paraíso ali há de se sentir”.116 Ilustração 16 - Château Provença, Séc. XV, Tarascon. Fonte: Bibliothéque Aix, Provence. 115 MIGUEL, Maryvonne, op. cit. p. 64. 116 Ibid, p. 101. 95 Dentro desta cultura aristocrática, “seu interesse também se estendia à criação de cavalos e cães, mas também possuía uma enorme variedade de animais, onde se incluíam os selvagens como leões e leopardos e, em quase todos os arredores dos châteaus havia também numeroso um rebanho de carneiros”. 117 Na sua corte, como todos os príncipes do século XV, ele teve um importante conjunto de conselheiros, secretários e de empregados. Juntou todos aqueles que poderia necessitar, desde seu médico, o seu confessor (necessidades para o corpo e necessidades para o coração) até os músicos e os insanos. Havia, além disso, as senhoras e donzelas serviçais que acompanhavam a rainha e cercavam também o rei, pois René era particularmente sensível à presença de mulheres bonitas. Era óbvio no entanto, que a corte não era escoltada em todos os seus deslocamentos. Enquanto residiu no castelo d‟Angers, em Aix ou em Tarascon, o número de membros que formavam a corte era imponente. Se o rei permanecesse em seus solares118 como Chanzé, Baugé ou Gardanne, ficava satisfeito com o serviço mais familiar. Seus conselheiros fiéis giravam em torno de dez pessoas, que constituíam o elemento permanente da corte, aqueles aos quais o rei, desde a juventude, tinha dado a sua confiança, e que lhe haviam permanecido fiéis. Louis de Beauvau era o mais íntimo dos empregados. Ele negociava em nome do rei artigos e leis, uma espécie de procurador. O Sénéchal119 tinha assistido a todos os grandes espetáculos dos torneios organizados por René, 117 LEVRON, Jacques, op. cit. 213. 118 A maior parte da nobreza francesa no século XV, residia em solares. Habitações que se caracterizavam por não possuírem as defesas próprias dos castelos: torres, muralhas exteriores, frontarias etc. Procuravam tirar-lhes a aparência de fortaleza: abrem-nas para o exterior, rasgam as paredes com janelas, enchem os fossos, transformando-os em terraços. 119 Chefe da casa do rei, responsável pelas armas do reino. Articulador administrativo e da segurança do reino. 96 e era um dos principais mentores de tais realizações. O rei tinha por ele uma afeição que o mesmo nunca desmereceu. Ilustração 17 - Carta Administrativa de René d’Anjou com instruções ao Sénéchal (Chefe da Casa do Rei), 1462, Fonte: BNF, Paris. Ao lado dos sénechals de Anjou, os chanceleres ocupavam papel relevante ao lado do rei, principalmente no que se referia às grandes negociações políticas da época, muito instáveis, em virtude das constantes rixas e conflitos entre reinos próximos. Os chanceleres da Provença governaram o reino ao lado de René com imparcialidade e muito esforço. Entre os confessores da corte, o rei confiava a responsabilidade do seu coração a Bernardin de His. Que ajudou espiritualmente o príncipe durante anos. Acompanhou-o na França, entretanto, ao retornar para Itália, em uma visita, no ano de 1444, veio a falecer. Em virtude da morte do franciscano Bernardin, o rei delegaria os futuros cargos de confessores e conselheiros espirituais aos seus secretários. Os mesmos eram geralmente os confidentes do soberano, dentre eles Jean Alardeau foi o principal. René nunca cessou de 97 alugar a sua fidelidade, de sua honestidade e de sua diligência. Empregou-o sempre com satisfação em missões difíceis, e o fez responsável pelo bispado de Marselha em 1466. Dos seus médicos, o de maior confiança era Jean de Bonnet. Relatam os amigos presentes nos últimos dias do soberano que: “René o manteve com os seus serviços até a sua morte e que foi o doutor que cuidou de sua doença em março de 1480, e que quatro meses antes de falecer, o rei lhe concedeu um rendimento de trezentos escudos”. 120 Na Provença, nota-se na metade do século XV, que os nobres, principalmente os cavaleiros, ao virem à corte, onde tudo é caro, se arruínam devido aos encargos excessivos com servidores, cavalos, vestuários e alimentação. Ao contrário, a vida simples e privada que levavam nos castelos não exigia grandes despesas, nem ricos trajes, nem cavalos de alto preço, nem banquetes, nem outros gastos requeridos pela corte. Foi por essa razão que se introduziu o costume, principalmente nos arredores de Aix e Arles, de servir apenas durante um quarto do ano. Cada nobre servia durante três meses na corte. No restante da ano, podia reduzir e compensar, com economias, as despesas que teria nos imprescindíveis torneios-espetacúlos, em que a nobreza se apresentava para ostentar o que tinha economizado a duras penas. Os jogos de René d‟Anjou eram imperdíveis. Os cavaleiros freqüentadores da corte do bom rei René, como se fosse uma regra, usavam todos um anel de sinete, e vestiam peles, que era a marca de um cavaleiro, assim como manejar a espada ou carregar um falcão. Em Aix era ilegal para alguém que não tivesse nascido nobre, adornar-se com peles. Não estando envolvidos em torneios, preferiam chapéus de pele e de plumas, túnicas floridas e jaquetas elegantes com mangas bufantes. As 120 LEVRON, Jacques, op. cit., p. 164. 98 vezes, em companhia do rei, distraíam-se, agora que os canhões haviam tornado obsoletas as defesas dos castelos, eles jogavam gamão, xadrez ou damas (chamadas de cronometrista na Itália e dames na França, principalmente na Provença). A caça e a falcoaria era o passatempo, ao ar livre, preferido dos cavaleiros provençais. Sobre o cotidiano da vida do cavaleiro desta esta época Elias cita: “(...) essas cenas dão certa idéia de onde o cavaleiro ou fidalgo procurava e encontrava gratificação. Mas o castelo e o solar, a colina, o riacho, os campos e as aldeias, as árvores e bosques ainda formam o pano de fundo de sua vida, aceitos como naturais e considerados sem nenhum sentimentalismo. Nesse ambiente ele está em casa e é senhor. Divide basicamente sua vida entre guerras, justas, caçadas e amor”. Mas no próprio século XV e, mais ainda no século XVI, muda a situação. Nas cortes semi-urbanas de príncipes e reis, forma-se uma nova aristocracia (...)”. 121 Ilustração 18 – René d’Anjou e a sua Armada. Séc. XV, 1484. Fonte: Manuscritos BNF. Français 5054, fl. 171, Paris, França. Ao lado de figuras notáveis que viveram na corte, havia os pequenos (anões), aos quais René tinha grande afeição. Nas horas amargas e tristes eles procuravam aliviar a angústia dos príncipes. Triboulet era o favorito de René, pela perspicácia e inteligência. Anão de cabeça pequena, causava espanto aos senhores de outros reinos, em 121 ELIAS, Norbert, op. cit. p. 211,212. 99 virtude sua complexão física, quando a corte se locomovia para a realização de espetáculos e eventos. Na corte do rei René d‟Anjou, Jean Alardeau teve um papel importante. Na função de tradutor direto do soberano, para as línguas italianas e espanholas, embora o rei usasse o latim, preferencialmente quando se correspondia com seus estados situados fora da França. René d „Anjou aceitou os seus últimos sacramentos, pedindo perdão por suas falhas, no dia 10 de julho de 1480, no decorrer da tarde. A dor de seus amigos foi enorme. O arquivista do quarto dos clientes (recinto da despedida), Honorat de La Mer, faz menção à morte do rei registrando: “O rei ilustre retornou seu coração a Deus no meio dos rasgos e das dores de todos os seus povos e, especialmente dos habitantes de sua cidade”. 122 A influência de René d‟Anjou, e de sua corte, na cultura européia, no final da Idade Média e no início do Renascimento, foi de uma riqueza de especificidades que, pesquisando, deparamo-nos com uma variedade de dados, que nos dariam um enorme leque de possibilidades para se escrever História. Como se antecipando aos novos tempos, René proporcionou-nos diante das fontes por ele deixadas, verdadeiras relíquias culturais, para que nossos conhecimentos historiográficos viajassem pelos aspectos sociais, políticos, religiosos e culturais de uma época deliciosa e cativante para se escrever sobre a História. Creio que tais ensinamentos foram deixados de propósito, para que no futuro nós desfrutássemos das tantas informações contidas nas fontes deixadas pelo Bom Rei D‟Anjou. 122 LEVRON, Jacques, op. cit., p. 278. 100 4. OS TORNEIOS NO LIVRO DE RENÉ D’ANJOU: TEXTO E IMAGENS 4.l Introdução do Livro dos Torneios de René d’Anjou O livro de René, Le Livre des Tournois, é talvez o mais vasto e completo tratado teórico-descritivo e normativo da ciência dos torneios cavalheirescos medievais até hoje escrito. Inspirados na tradição francesa e nos exemplos alemães e flamengos, longos capítulos são consagrados aos preparativos do torneio. O autor não deixa em branco nenhuma das idas e vindas dos arautos de armas, nem qualquer das fórmulas que deverão empregar para anunciar o caminho de que são mensageiros. A mesma precisão se manifesta no que diz respeito ao equipamento dos combatentes, não só o descreve minuciosamente, como também apresenta miniaturas, que são documentos de valor incomparável. As dimensões e a disposição da arena são indicadas com exatidão, assim como a composição do cortejo que acompanhava cada combatente. Uma última parte é consagrada ao que deve ser a cerimônia de entrega dos prêmios dos cavaleiros vitoriosos. O livro de René d‟Anjou foi feito, pelo menos em seu texto, entre 1451 e 1452, mas datações nos manuscritos, realizadas mais recentemente por intermédio da Bibliothéque Nationale France (ms.français), detentora do original, confirmam a sua confecção, incluindo os textos e as iluminuras entre 1455 e 1460. Sete cópias medievais do Livro dos Torneios, e outras quatro feitas nos séculos XVII e XVIII, ainda hoje permanecem intactas. O manuscrito original do livro, de posse da Bibliothéque Nationale de France, foi belamente ilustrado com pinturas de água-cor (aquarela), por Bathélémy d‟Eyck, um dos artistas protegidos do rei René em sua estada na Provença (1447-1469). 101 Foi um pintor de extrema sensibilidade. As ilustrações do livro são notáveis pela sua beleza e claridade, sendo que naquela época, o gosto pelo pormenor e os estudos sobre a perspectiva e a luz na pintura acentuam a impressão de riqueza cromática123·. Cada detalhe é gravado com cuidado e, além das ilustrações dos participantes, os manuscritos incluem desenhos detalhados das armaduras e da construção das liças e arenas. Ilustração 19 – A entrega do Livro dos Torneios após a sua confecção por Barthélémy d’Eyck à René d’Anjou. Fonte: BNF, Français 2692 fl. 1- Paris, França. 123 Para uma boa visão panorâmica dessa tendência na pintura medieval, ver Henri Focillon, Arte do Ocidente, A Idade Média Românica e Gótica, Ed. Estampa, Lisboa, 1993. 102 Cinco cópias deste manuscrito foram feitas no século XV. Dentre seus proprietários estavam Jacques d‟Amagnac, duque de Nemours, Louis de la Gruthuyse, e o rei Carlos VIII, que provavelmente a recebeu em 1489. As outras cópias, conforme informação da biblioteca da França encontra-se na universidade de Harvard, na Inglaterra e na cidade de Dresden, Alemanha. As demais, pelo menos a biblioteca não tem conhecimento do seu paradeiro. Diante das várias particularidades que o livro nos mostra, destaca-se a consideração que o autor das iluminuras tem para com o autor do texto, formando uma harmonia entre os dados técnicos do torneio e as suas ilustrações. A produção literária de René d‟Anjou no Livro dos Torneios, prende-se exatamente na confecção do Traité de la forme et devis comme on fait um tournoi (Um Tratado na forma e organização de um torneio). O texto não contém ficção, alegoria, nem cunho poético, mas um tratado detalhado da técnica e das especificidades que um torneio requeria para a sua perfeita realização. O ritual das justas do século XV está minuciosamente descrito: após o desafio transportado pelo Oficial das Armas124, dos arautos, do “Senhor Provocador” “Senhor Defensor” 126 125 ao , a escolha dos juízes, a descrição do vestuário e dos brasões, a disposição das arenas, os gritos de guerra lançados pelos oficiais das armas, até à entrega do prêmio atribuído ao “melhor executante” pela rainha do torneio. Como diz Levron: “A linguagem do tratado é saborosa, como um bom vinho da Provença”. 127 124 Status mais elevado dos arautos, profundo conhecedor da “ciência das armas” e dos brasões de todas as regiões envolvidas nos torneios. 125 Aquele que inicialmente desafia, instiga à realização do torneio. 126 Aquele que aceita ou não ao desafio, diante das normas estabelecidas. Mas ambos de maneira cordial. 127 LEVRON, Jacques, op. cit., p. 18. 103 4.2 Texto e Imagens As iluminuras e o texto do Livro dos Torneios de René d‟Anjou, nos revelam muitas informações sobre os torneios na corte do rei provençal. Neles, encontram-se registrados o ambiente social e cultural, onde tais eventos eram praticados, e as pessoas que freqüentavam estes lugares. As personagens destas ilustrações também são responsáveis pelo registro de uma época, pois foram descritas suas indumentárias, seus gestos e os aspectos normativos dos torneios, desde o seu início, até o seu final. As expressões das personagens envolvidas, os duques, os arautos, os cavaleiros o senhor das armas, dentre outros, são muito importantes, pois nos revelam a empolgação e a atitude diante da realização de um torneio. A imagem, nada mais é, do que a expressão cultural das relações sociais estabelecidas entre as diversas camadas da sociedade cavalheiresca, todas envolvidas em tais eventos. Os traços do pintor das iluminuras, Bathélémy d‟Eyck, revelam inúmeros significados e constituem verdadeiras representações do quadro social. No final da Idade Média, o requinte das iluminuras denunciam o visualismo e o realismo da época128. A cor, o espetáculo, a decoração luxuriante, o rebuscamento, num constante afago dos olhos, é a expressão de uma arte laica, de uma arte nobre, que procura ressaltar o prestígio das grandes cortes régias e aristocráticas. Ao lado da arte religiosa, difundida pela Igreja, o individualismo se afirma progressivamente no âmbito das imagens, que passam a ser expressões da personalidade artística. No término da Idade Média, o artista assina as suas obras e sai do anonimato, consequentemente, usufrui de rendimentos consideráveis quando trabalha na corte e é patrocinado por um senhor. O Livro de René d‟Anjou nos mostra toda essa transição nos meios culturais e artísticos da época. 128 DUBY, G. ARIÈS, Philippe. Org. In: Philippe BRAUNSTEIN: História da Vida privada, Da Europa Feudal à Renascença, Vol. II, São Paulo, Cia das Letras, 2002. p. 14. 104 Na parte textual, a obra de René d‟Anjou, nos relata os preparativos dos torneios que começavam, meses e até anos antes de sua realização, com o envio de convites através dos arautos. A luta em si era precedida e seguida de cerimoniais, banquetes e danças. Esperava-se que o evento durasse uma semana inteira, com a luta iniciando-se na segundafeira. O desfile circundante era planejado para envolver os espectadores e estender a excitação da ocasião além da competição real na arena. Para alcançar esse objetivo, havia sempre a possibilidade de encenar a ocasião como uma espécie de drama, com cavaleiros e damas representando papéis baseados nos romances de cavalaria. A parte escrita mostra-nos de como um desafio, segundo René d‟Anjou, deva ser feito. Tendo elaborado a obra, o Tratado para o seu irmão Carlos de Anjou, o rei relata o objetivo para escrever a forma e a maneira de se fazer um torneio: “Eu decidi fazer para você um tratado pequeno, o mais completo de que eu tenha conhecimento, na forma e na maneira em que eu penso que um torneio deva ser empreendido na corte ou em outra parte das marcas da França, como determinados príncipes gostariam de ter feito. Eu fiz exame desta forma na maior parte daquela usada na organização de torneios feitos na Alemanha e no Reno, mas também dos costumes que existem em Flandres e nos arredores de Brabante, e na mesma maneira dos costumes antigos que nós seguimos na França, que eu encontrei em manuscritos. Destes três costumes eu, fiz exame do que parecia mais conveniente e, fi-lo assim de modo a compilar dele uma quarta maneira de um torneio, como você verá, se o agradar, o que segue daqui por diante”. Percebe-se no texto do bom rei, especialmente quando cita a metodologia adotada para escrever o Tratado, que no decorrer do século XV e início da Renascença, deu origem a um contexto bastante diferente. A troca das relações sociais se tornou mais complexa e precisou ser codificada e regulada. Surgiu uma necessidade de regularizar e estabelecer normas para determinadas coisas. O tempo passou a ser um eixo comum de 105 referência entre os cidadãos do Ocidente medieval que necessitavam sincronizar suas atividades sociais, dentre elas, os torneios. Paralelamente, houve uma expansão do espaço, com a descoberta de novos territórios e com a busca de parcerias comerciais. Os eventos, os espetáculos, já não são mais privilégios de uma determinada região, mas de um contexto mais amplo e abrangente. Surge uma projeção temporal no sentido de preservar o que veio antes e de projetar o que virá a seguir. De fato, passado e futuro passaram a determinar o presente. Os aspectos lúdicos e heróicos dos torneios dos séculos anteriores, instigam nobres como René d‟Anjou, a buscar no passado, exemplos para a confecção de obras com cunho cortês e romântico, mas com especificidades inovadoras e renascentistas, como é o caso do seu Um Tratado na Forma e Organização de um Torneio. Neste sentido, Delumeau salienta que “O Homem do Renascimento definiu-se a si próprio como um olhar em direção ao passado, a caminho de presente”. 129 No que tange as iluminuras do Livro dos Torneios, de René d‟Anjou, as imagens destacadas inicialmente, ilustrações 20 e 22, foram escolhidas por apresentarem os aspectos preliminares à realização do torneio. Além disso, como o próprio René nos relata, para exemplificar ao irmão a forma ideal para a organização de um torneio, ele recorre a dois nobres: o duque da Bretanha, Senhor Provocador e ao duque de Bourbon, Senhor Defensor do embate. Através de instruções e normas, os dois nobres trocam detalhes, através do Oficial das Armas, ou arauto conhecedor das armas, para a concretização e realização de um torneio, como bem descreve René no seu Tratado, inicialmente através da manifestação do Senhor Provocador, duque da Bretanha: 129 DELUMEAU, Jean, op. cit. p. 85. 106 “Oficial das armas, pegue esta espada e vá a meu primo o duque de Bourbon e diz-lhe que representa sua coragem, valor e cavalheirismo. Eu lhe enviei esta espada para significar que eu desejo realizar um torneio de armas contra ele, na presença das damas, e de muitos outros, no dia e hora marcados e, em lugar apropriado e conveniente para este. E para este torneio eu sugiro quatro juízes, escolhidos por oito cavaleiros e escudeiros, que explicitarão os detalhes; estes juízes arranjarão lugar e hora e, prepararão as liças. E você deve saber que o senhor provocador sempre deve escolher metade dos juízes: isto é, dois do reino do senhor defensor e, os outros dois de seu próprio reino, ou de outra forma, como de sua preferência”. Ilustração 20 – É mostrada a maneira em que o duque da Bretanha, Senhor Provocador, dá a espada ao Oficial das Armas, para apresentá-la ao duque de Bourbon, Senhor Defensor. Fonte: BNF. Français 2695, Fl. 3. 107 A seguir, René salienta ao seu irmão, Carlos de Anjou, as providências que devem ser adotadas para o prosseguimento do torneio: “E você deve saber que o Senhor Provocador sempre deve escolher metade dos juízes: isto é, dois do país do Senhor Defensor, e os outros dois de seu próprio país, ou de outra forma, como de sua preferência: e deve direcionar a escolha dos juízes de forma a disponibilizar os barões, cavaleiros e escudeiros mais notáveis, mais honoráveis e antigos que puder encontrar; aqueles que mais tenham viajado e presenciados torneios, aquele mais sábio e que possua o maior conhecimento sobre feitos relacionados a combates, mais do qualquer outro homem”. Posteriormente, no texto e na representação visual, o Oficial das Armas se dirigirá ao Senhor Defensor, duque de Bourbon, da seguinte maneira, conforme descrição textual do livro: “Muito nobre e poderoso príncipe e renomado senhor, o muito nobre e poderoso príncipe e meu renomado senhor duque da Bretanha, seu primo, enviou-me ao senhor diante de todo o cavalheirismo e perícia que sabe existir em sua nobre pessoa. Com todo o amor e amizade e, longe de qualquer animosidade, deseja realizar um torneio de armas diante das damas; e para representar esta intenção envia-lhe esta espada, apropriada para este contexto”. E o senhor Defensor, diante da manifestação do Oficial das Armas, expressará a sua aceitação ou não do desafio proposto pelo Senhor Provocador. Percebe-se diante do texto e das ilustrações analisadas, a riqueza dos detalhes das indumentárias à época, apesar de se restringir a um contexto elitizado, nos fornece indicativos de uma transformação dos costumes na vestimenta no final da Idade Média. 108 A indumentária conhece uma espécie de revolução, com vestes bem justas, apertadas na cintura; a moda transforma completamente a silhueta masculina. A Corte procura especialmente o insólito. Como se percebe nas ilustrações, as cores são muito vivas para os vestuários divididos em partes iguais: vermelho e roxo, ou azul e amarelo Os calçados são vivos em cores, finos e alongados, de palas levantadas em intermináveis bicos revirados, moda francesa adotada em toda a Europa: o traje torna-se, para os nobres, um sinal distintivo da classe, como confirma Philippe Braunstein: “No fim da Idade Média, a mobilidade econômica, fechamento das castas e círculos privilegiados aceleram, na corte e na cidade, os ciclos de uma moda mais breve e mais tirânica, que afina as formas até o inverossímil, descobre ou sublinha pelo enchimento a estrutura do corpo, alia o cinturado e o colante com o plissado, o inchado como um balão, o flutuante, o retalhado. Uma moda nervosa, violenta, sofisticada exalta os atrativos e as vantagens, expondo-os ou sugerindo-os. Renunciando à aparência de um clérigo, o jovem, o homem põe em evidência seus músculos e suas juntas para se parecer com São Jorge ou com os companheiros de Artur”. 130 Ilustração 21 – Detalhe da Indumentária no Final da Idade Média no Livro dos Torneios. Fonte BNF, Français 2695, Fl. 7. 130 DUBY, G. ARIÈS, Philippe. Org. In: Philippe BRAUNSTEIN, op. cit. p. 566, 567. 109 Quanto aos adornos de cabeça, se pode observar, e constatar, que o chapéu é o mais importante. Tinha várias formas e cores, e provavelmente era feito com diversos tipos de materiais, como a pele de animais. Nota-se diversos tipos de barrete com cores diversas. Os cabelos, nas ilustrações, vê-se que eram compridos e encaracolados; percebe-se também que raramente se usava barba. Não podemos deixar de atentar para a imaginação do artista que pintou tais iluminuras, pois complementando e embelezando aspectos da indumentária que lhe são pouco atraentes, o resultado é que essa imaginação às vezes produz um quadro cuja exatidão não é absoluta. Estas transformações na moda131, e também em outros aspectos culturais do século XV, ocorrem nas pequenas cortes principescas, cujo brilho nem sempre ultrapassou os limites da província, caso da corte de René d‟Anjou, em virtude de receberem os padrões da França. Já que, naquela época, a Corte, sua suntuosidade e suas formas artísticas, suas fontes de inspiração artística e literária, eram profundamente marcadas pelo gosto francês. É Paris primeiro, depois o Vale do Loire, que ditam as normas. Outro aspecto desta ilustração e texto é a cordialidade proposta pelos desafiantes. Há certa ligação parental entre os participantes, como se os torneios fossem uma coisa familiar, apesar dos variados convidados virem de toda a parte da Europa. As cores dos mantos dos nobres envolvidos no torneio são diferenciadas, ressaltando as regiões de onde provêm. Nota-se também a preocupação da imparcialidade na elaboração do resultado do embate como na escolha dos juízes. 131 Já em 636, Isidoro de Sevilha, descrevia o traje como valor seguro pelo qual se reconhecem povos e nações, como sinal distintivo dos grupos. Mas a moda, tal como a entendemos, aquela de que se fala nas cortes, nasce nos séculos XI e XII, no momento em que economia e grandes Principados conhecem um desenvolvimento comum. Da França veio a moda, e no século XV o seu estilo impôs-se por toda a Europa. (Diane Owen-Hughes, Como se Vivia na Idade Média, In: Os Franceses Lançam a Moda nas Cortes Européias, Lisboa, 2001.p.136. 110 Ilustração 22 – É demonstrada a maneira e a forma como o Oficial das Armas apresenta a espada ao duque de Bourbon, Senhor Defensor. Fonte BNF, Français 2695, Fl. 7. 111 Outra importante imagem, ilustração 23, mostra todo o cenário em que o duque de Bourbon, Senhor Defensor, após a aceitação do embate, acolhe o Oficial das Armas, para o prosseguimento dos preparativos do torneio. Na ilustração percebe-se a apreensão e a curiosidade das personagens em relação à escolha do nobre duque dos juízes do torneio. Momento de expectativa e ansiedade por parte dos pertencentes a corte de Bourbon. No texto, após o duque de Bourbon concordar com a realização do torneio, segurando a espada, nota-se a satisfação do mesmo em realizá-lo, com um posicionamento cortês e romântico, como cita René d‟Anjou: “Eu duque de Bourbon aceito, não por qualquer animosidade, mas em razão do prazer de meu primo e, em razão do entretenimento dirigido às damas”. Posteriormente, no texto, René relata de como deve proceder, o Oficial das Armas, com as palavras diante do Senhor Defensor. Momento de extrema relevância na organização do torneio, pois chancela os seus juízes. O Oficial diz: “Muito nobre e poderoso príncipe e muito renomado senhor, o muito nobre e poderoso príncipe e meu muito renomado senhor duque da Bretanha, seu primo, envia-lhe no momento os brasões de oito cavaleiros e escudeiros em rolo de pergaminho, de modo que vossa senhoria possa escolher dentre estes oito, os quatro que vossa senhoria gostaria que fossem os juízes”. No que responde o duque de Bourbon, conforme normas do bom rei: “Quanto aos brasões dos juízes que você me mostrou, agradam-me os senhores de tais e tais lugares para cavaleiros, e senhores de tais e tais lugares para escudeiros. E a respeito disso, você encaminhará cartas a eles assinadas por mim. Também quero pedir a meu primo, o duque da Bretanha, que comunique se está disposto a aceitar, e digame também o dia e o lugar do torneio, o mais cedo possível”. 112 Ilustração 23 – É mostrada a maneira e forma que o Oficial de Armas dá os oito brasões dos cavaleiros e dos escudeiros ao duque de Bourbon. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 11. 113 Cabe ressaltar a extrema importância dos brasões132 nas iluminuras e no texto. A heráldica acresce um simbolismo muito forte ao cavaleiro, tanto no plano profano, em que os brasões se tornam o centro dos altos feitos de armas cantados pelos cronistas e anunciado pelos arautos, como no plano espiritual ligado à pessoa do cavaleiro e à sua demanda. O brasão de armas é um condensador de energias físicas e psíquicas, um apoio graças ao qual o cavaleiro permite identificar a energia e a força, presentes dentro do conteúdo simbólico das suas armas. A heráldica torna-se uma verdadeira cultura, elemento capital da identidade nobiliárquica. Já as imagens das ilustrações 24 e 25 foram escolhidas em função de mostrarem como deve ser anunciado publicamente um torneio. Após a aceitação do Senhor Provocador, no caso, o conde da Bretanha, e do Senhor Defensor, o conde de Bourbon, citados como exemplos de desafiantes por René d‟Anjou, o Oficial das Armas, acompanhado por três ou quatro arautos e representantes, anuncia o festival do torneio. Assim, depois que os juízes aceitaram o encargo, o Oficial das Armas, deve ter os brasões dos juízes ilustrados nos quatro cantos do pergaminho, que simbolizará que os dois acima são os cavaleiros, e os dois abaixo são os escudeiros. Ao centro, com ilustrações de figuras a cavalo e com seus mantos, os desafiantes. E para dar início aos proclames oficiais do torneio o texto normaliza: “Primeiramente, um dos representantes, da companhia oficial das armas que deve ter uma voz bastante alta, deve anunciar o torneio, tomando bastante ar por três vezes e realizar três grandes pausas: Ouvir-me, ouvir-me, ouvir-me.” 132 Os brasões de armas, provavelmente, surgem a partir do século XII (1125-1175), por razões ligadas simultaneamente à evolução do armamento defensivo do guerreiro, que o torna irreconhecível, e ao desenvolvimento dos torneios e justas. Originalmente reservada às grandes famílias dinásticas e grandes senhores feudais, as armas passam depois a ser adotadas por todos os combatentes (Séc. XIII), a seguir pelos não combatentes (cidades, comunidades, etc.). Primeiro pessoais, no século XIII tornam-se fixas e hereditárias, enquanto que, sob ação dos arautos, se estabelecem as regras e as composições gráficas da heráldica. Fonte: BOURASSIN, Emmanuel, op. cit. p. 23. 114 Prosseguindo o arauto, continua a evidenciar os termos da proclamação do torneio: “Deixe todos os príncipes, senhores, barões, cavaleiros e escudeiros das marcas da Ilha de França, Champagne, Flandres, Ponthieu, senhores de Vermandois e Artois, Normandia, Aquitânia e Anjou, Bretanha e Berry e, também Corbie e todas as outras marcas que se encontram neste reino e todos os reinos cristãos restantes, que não banidos ou inimigos do rei, nosso senhor, Deus o salve; saibam que em um determinado dia e em um determinado mês, em determinado local, em uma determinada cidade, realizar-se-á um grande festival de armas e um torneio muito nobre, com um número imensurável de belas espadas, armaduras apropriadas, com brasões ilustrados nas armas e cavalos, como se dá nos nobres torneios e, como diz o antigo costume”. Ilustração e texto de extrema importância histórica, pois abrange aspectos culturais diversos, prevalecendo a oralidade medieval na voz dos arautos, o conhecedor das armas e brasões. O ofício dos arautos consiste em buscar informações a respeito dos feitos das armas, estarem presentes nos embates dos torneios e designarem o vencedor. Apreciam as proezas como conhecedores, zelam pelo respeito do direito das armas e designam para cada geração “o melhor cavaleiro do mundo”. Peritos em matéria de cavalaria desempenham o papel de comunicadores nos jogos e exercícios militares. Nos torneios, o arauto de um grande senhor, presente ao seu lado, dá-lhe o nome do adversário com quem se defrontará, dado que um torneio é feito de uma infinidade de embates singulares. Ele enumera os feridos depois dos torneios e os identifica, graças ao seu conhecimento dos brasões envolvidos no evento. Serve de mensageiro entre o seu senhor e os demais cavaleiros, e a sua cota de malha e indumentária com as armas do seu soberano serve de bandeira junto aos juízes. Os arautos das armas possuem um saber técnico: a ciência do brasão. Ela serve-lhes, em primeiro lugar, para identificar os combatentes dos torneios. Encerrados, escondidos na sua armadura e com o elmo na cabeça, estes só se reconhecem pelos brasões que figuram no escudo e na sua cota de armas. 115 Ilustração 24 – É demonstrada a maneira que o Oficial das Armas, com o pano dourado em seu ombro e, os dois capitães com os brasões dos juízes ilustrados nos quatro cantos do pergaminho, anunciam o torneio e, como os representantes dão um pequeno escudo com os brasões dos juízes a todos que desejem fazer parte do torneio. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 19. 116 Os arautos fazem-se escritores, redatores de tratados de heráldica, recenseando as armas de inúmeros senhores e da sua casa. Conhecedores de feitos das armas, os arautos são, por vezes, historiadores. Raramente nobres, os arautos e outros oficiais de armas eram muitas vezes recompensados com títulos de nobreza, alcançados no fim da carreira. Mas nobres ou não, possuíam uma idéia elevada dos seus direitos e dos seus deveres, e na quinta ilustração pode-se visualizar outra atribuição dos arautos, quando anunciam os brasões das casas dos juízes participantes dos torneios, especificados em pennons (bandeiras). Ilustração 25 – É mostrado a maneira em que o arauto expõe ao público as quatro bandeiras dos quatro juízes, árbitros do torneio. Fonte: BNF, Français 2695. Fl.. 62. 117 Nas imagens seguintes, ilustrações 26, 27 e 28, visualiza-se os equipamentos dos combatentes, como armaduras, elmos, espadas e massas, componentes importantes dentro do torneio, que são minuciosamente descritos por René d‟Anjou e ilustrados por Barthélémy d‟Eyck. A armadura sempre foi parte essencial nos equipamentos do cavaleiro, e o desenvolvimento das armaduras específicas era uma solução para os diferentes tipos de torneios. A proteção física era vital, considerando o fato de que os combates podiam ser fatais. O declínio do espírito cavalheiresco, e a aparição das primeiras armas de fogo, aproximadamente entre 1315 e 1320, arrastam uma reação geral tendente à proteção total do cavaleiro. No fim do século XIV adotaram-se as primeiras placas de aço: ombreiras, joelheiras, cotoveleiras, grevas, braçais, guantes, coxais. O elmo dá lugar ao bacinete com viseira (1300), ao bacinete com malha de ferro, ao bacinete com viseira móvel. Outros capacetes aparecem: chapéu de ferro, salada, barbita, elmeto, etc . No início do século XV, os avanços no trabalho com metal permitiram que se criasse uma armadura completamente feita de metal, dos pés até a cabeça. Os construtores, milaneses e alemães, eram conhecidos pela qualidade de seus trabalhos com o metal e, por isso, a maioria das armaduras produzidas por eles era usada nos torneios da Provença. Dentro da solicitação destas encomendas, o rei René reivindicava que as espadas tivessem a capacidade de corte removida. As espadas eram maiores do que as usadas em combates, em guerras. O formato do escudo foi alterado para maximizar o efeito da lança nos torneios, dentre outras alterações. 118 Mas de acordo com as normas estabelecidas no Tratado de René, ele salienta como deve ser a especificação deste tipo de equipamento: “Primeiramente, a crista (acima do elmo) deve ser montada em peça do cuir boulli (armadura), que deve ser bem acolchoada à espessura de um dedo, ou de mais no interior, e a parte de couro deve cobrir todo o topo do elmo, sendo coberto com mantling (brasão), decorado com as armas de quem o utilizará. E no topo do elmo deve estar a crista e, em torno dela um rolo torcido com as cores que o participante do torneio desejar, com a espessura de um braço ou de mais ou menos se assim desejar”. “O elmo está na forma de um bacinete ou de um capeline, exceto que a viseira é diferente, como é pintado abaixo. E para explicar melhor o estilo da crista, o cuir boulli (armadura) e o elmo, são mostrados abaixo em três maneiras”. Ilustração 26 – Forma e estilo das cristas e elmos (arreios p/cabeça). Fonte: BNF, Français 2695, Fl.23. 119 O detalhe das espadas e massas que se usava nos torneios é de uma especificação tão pormenorizada, que se pressupõe que seria impossível ater a todos os dados relatados pelo autor, mas é rico em detalhes e como documento histórico nos remete a análises exatas com respeito a este tipo de armamento à época, utilizada em torneios. Segue a orientação do autor a respeito das mesmas: “Sobre o tamanho e a forma das espadas e das massas, devem ter quatro dedos de largura, de modo que não possam passar através da fenda dos olhos, as duas bordas devem ser tão largas quanto à espessura de um dedo. E para que não fique pesada, deve ser oca no meio e arredondada na parte dianteira, desde a empunhadura (cruz) até o final, e a empunhadura deve ser curta, para que possa obstruir todo o golpe que por acaso deslizar abaixo da espada, chegando aos dedos. E deve ser tão longa quanto a mão do homem que a carrega, da mesma forma a massa. A massa deve ter um pequeno círculo no cabo bem na frente da mão, para protegê-la. E você pode, se desejar, unir uma corrente, uma trança ou uma corda na sua espada ou massa, juntamente em torno do braço, de modo que se vier a escapar de sua mão, você possa recuperá-la antes que caia ao chão”. Ilustração 27 – Forma e estilo das espadas e massas. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 31. 120 A espada medieval levou 400 anos para mudar, e é na metade do século XV que esta mudança mais se acentua. “No final da Idade Média, começam a surgir espadas decididamente caracterizadas como “militares”, em oposição àquelas de “uso civil, de “diplomata” ou “sem corte”, e usadas frequentemente nas cortes de Paris, Borgonha e Provença”. 133 Estas são armas imaginadas mais como símbolos de poder, ou de função, do que propriamente causar dano. As espadas militares, por sua vez, dividem-se em espadas para combate a pé e sabres para combate a cavalo, mas a tendência, no final da Idade Média, era que a espada se tornasse uma arma secundária134, restringindo-se o uso das mesmas, amplamente descritas no Livro dos Torneios de René d”Anjou, a eventos e espetáculos como os Pás d‟Armes e Torneios. Com relação à armadura e ao restante dos equipamentos de proteção do cavaleiro, o rei enfatiza de como deve ser a sua indumentária: “O arreio do corpo é como um corselete, e você também pode competir em um colete (brigandine) se você desejar; mas em qualquer proteção extra que você desejar competir, é necessário que seja amplo o bastante em todos os lugares onde você vestirá o pourpoint por baixo. É necessário que o pourpoint esteja acolchoado a uma espessura de três dedos nos ombro e ao comprimento dos braços até a garganta e, na parte traseira também, porque os encontros das massas e das espadas ocorrem mais frequentemente nestes lugares do que em outra parte. Vê-se que a forma mais adequada para competir, ilustrada a seguir, é com corselete (cuirass)135 perfurados na forma e estilo mais apropriado para o torneio”. 133 BITTENCOURTE, José. Armas: Ferramentas da Paz e da Guerra, Bibliex, RJ, 1991. p. 45.) 134 SILVA, Victor D. da. Cavalaria e Nobreza no Fim da Idade Média, São Paulo, Edusp, 1990. p. 249. 135 Espécie de armadura ou colete protetor de peito, exclusivamente feito para os torneios. 121 Ilustração 28 – O estilo e a forma dos corseletes (cuirass) apropriados para competir. Fonte: BNF Français 2695, Fl. 25. Dentro do simbolismo do armamento do cavaleiro, que muito contribuiu para compreendermos a exatidão e os pormenores descritos no Livro dos Torneios, destaca-se a conotação dada por René d”Anjou às armas do cavaleiro no seu Livro Couer d’amour épris, (Coração Apaixonado): “O elmo corresponde a esperança, inteligência; a couraça, a prudência, piedade, proteção contra o vício e o erro. Já as luvas simbolizam a justiça, honra, discernimento; o escudo a fé, conselho, proteção contra o orgulho e a heresia. A lança significa a caridade, sabedoria, justa verdade; as esporas o temor a Deus, zelo pela salvação, os deveres do cavaleiro e a espada simboliza força, Palavra Divina, bravura, poder, símbolo de condição nobre, destruidora da ignorância e do mal”.136. 136 (Fonte: BNF; Manuscripts Medièvale, ms-français, fls. 2541, 2542) 122 Diante dos conceitos de René d‟Anjou com relação às armas dos cavaleiros, podemos compreender o modo cortês, romântico, virtuoso e extremamente singular quando o soberano, no texto do Tratado, refere-se ao armamento dos cavaleiros. Como o próprio autor diz “o simbolismo das armas do cavaleiro permite-lhe elevar-se ao mundo celeste” 137 Ilustração 29 – Iluminura de Barthéléme d’ Eyck, do livro também escrito por René d’Anjou, Couer d‟amour épris, 1460, onde descreve o simbolismo do armamento na vida do cavaleiro. Fonte: BNF; Manuscripts Medièvale, ms-français, fls. 2541, 2542. Enquanto que nas guerras do século XV havia um encouraçamento excessivo dos cavaleiros, o contrário acontecia com os competidores dos torneios da Provença, onde se buscava um equipamento mais maleável e flexível, para possibilitar a agilidade dos cavaleiros competidores. Com relação a indumentária completa dos cavaleiros, em seu tratado René d”Anjou, indica através da iluminura de Barthélémy d‟Eyck, como deve vestir-se o cavaleiro pronto para o embate. Exemplificando, mostra-nos o duque da Bretanha e o duque de Bourbon prontos para o início do torneio e dos respectivos embates. 137 (Fonte: BNF: Manuscripts Medièvale, ms-français, fl. 2543). http://gallica.bnf.fr/themes/LitMAzc.htm 123 Ilustração 30 – O duque da Bretanha (Senhor Provocador) e o duque de Bourbon (Senhor Defensor), armados e montados, com as cristas, com vestimentas completas para o torneio. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 45. 124 Analisando-se a ilustração de número 30, nota-se claramente a substituição das armaduras pesadas por mantos coloridos, os brasões de confecções exageradas, ornamentados tanto nos cavaleiros como nos cavalos. Ou seja, o aspecto de suntuosidade é ressaltado tentando mostrar aos participantes dos torneios e ao público o apogeu e a magnificência dos reinos envolvidos nos embates. Também se identifica nas iluminuras uma preocupação na figura do cavalo, como diz Contamine, “companheiro do cavaleiro, “o veículo” da sua demanda espiritual” 138 , muito ilustrado no livro de René d‟Anjou. Percebe-se uma atenção especial aos animais desenhados. Sendo o cavalo, o corcel, um símbolo de impetuosidade nos desejos tanto destrutivos como portadores de vida, que o cavaleiro não deve destruir, mas canalizar positivamente. O domínio do animal não é senão o reflexo do domínio interior do cavaleiro. Como nota-se na iluminura, o lado obscuro do cavalo cede lugar ao seu aspecto luminoso e solar. Pelo domínio, através dos joelhos e das esporas, de duas forças contrárias, mas complementares, uma vinda de cima, outra de baixo, combinando o positivo e o negativo, a verticalidade (o Cavaleiro) e a horizontalidade (o cavalo). Ilustração 31 – Detalhe da ilustração n° 30, onde se observa a verticalidade do Cavaleiro e a horizontalidade de sua montaria. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 45. 138 CONTAMINE, Philippe, op. cit. P. 43. 125 Prosseguindo no relato textual do rei René, em conjunto com as iluminuras de Barthéléme d‟Eyck, escolheu-se as ilustrações 32 e 33, em virtude de todo o envolvimento da cidade onde se realiza o torneio, direcionando a atenção da sua população somente para este tipo de evento. Para a mobilização, é feito todo um ritual para comunicar a entrada dos participantes na cidade. Para conhecimento da população de quem participa dos jogos, também são estabelecidas normas, conforme instrui o autor do texto: “(...) depois que um senhor ou um barão chegar na estalagem, ele deve indicar seu brasão na janela. Deve mandar os arautos e os representantes colocarem uma placa longa junto a parede, na frente de seus alojamentos, onde é pintado o seu brasão, mostrando as suas cristas e escudos, e aqueles que da sua companhia farão parte do torneio, igualmente os cavaleiros e escudeiros. E deve colocar sua bandeira indicada em uma janela elevada na estalagem e, para fazer isto, aos arautos e representantes devem ser pagos quatro soldos para colocar cada brasão, e cada bandeira e , devem fornecer os pregos e as cordas para levantar e baixar as bandeiras, as flâmulas (pennons) e os brasões sempre que necessário” Percebe-se todo o envolvimento dos organizadores, dos participantes e espectadores para o espetáculo. Os nobres instigavam a comunidade a participar do evento como Jacques Heers salienta, “O próprio duque intervinha, impunha a obrigação da festa, emprestava algum dinheiro e, sobretudo ameaçava... e os vereadores da cidade imitavamno”. 139 Em Tarascon, na Provença, os momentos que antecediam um torneio eram estritamente regulamentados por várias determinações administrativas do rei René. As procissões eram antecipadas, os mantimentos alimentícios eram guarnecidos, para que os mesmos não fossem roubados. O vinho era engarrafado somente na manhã do evento. A festa, o espetáculo era cuidadosamente organizado com a ajuda de toda a comunidade. E tais cuidados eram compartilhados não somente pela nobreza, mas por todos os habitantes da cidade organizadora do torneio. 139 HEERS J., op. cit. p. 166. 126 Ilustração 32 – A entrada dos juízes e arautos na cidade organizadora dos torneios. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 57. 127 Ilustração 33 – Descrição de como os capitães expõem seus brasões nas janelas das estalagens. Aqui representada pelos brasões dos cavaleiros, escudeiros, representantes do conde de Bourbon. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 55. 128 Em virtude do grande fluxo de cavaleiros, que vinham à cidade na ânsia de participar do torneio, é pertinente salientar o que as normas previam àqueles que não possuíam uma descendência nobre, René instrui em nota: “Se alguém vier ao torneio e não for um cavaleiro de boa linhagem, mas for um virtuoso, não deverá ser banido num primeiro momento; os príncipes e os grandes senhores, sem feri-lo, irão até ele com suas espadas e massas, ato que deverá sempre considerado honroso. E este será um sinal que por causa de sua grande bondade e virtude, merece estar no torneio, então ninguém pode reprovar sua linhagem, sua terra, sua honra no torneio ou em qualquer lugar. Então poderá colocar um novo emblema, ou trocar suas armas se assim o desejar e, mantê-las consigo posteriormente”. Percebe-se que apesar das restrições quanto à linhagem cavalheiresca, os organizadores maiores do torneio mantêm a postura cortês, procurando não criar distúrbios com aqueles cavaleiros que pretendem participar do evento. Cavaleiros que não tinham uma descendência nobre participavam dos torneios em grande número, pois nesses eventos vislumbravam oportunidade magnífica de obter renome junto às cortes envolvidas no espetáculo, e consequentemente, uma chance de conseguir recursos: a montaria e os pertences do adversário derrotado, assim como os prêmios que outorgava o senhor que organizava o evento. Nem todos tinham a sorte de herdar um senhorio, obter títulos decorrentes de batalhas ou casar-se com uma dama rica. Alguns cavaleiros, sem título de nobreza e poucos recursos, muito prosperavam, lutando de castelo em castelo ou de cidade para cidade, mas sempre na dependência de não perder o seu cavalo e suas armas, caso fossem derrotados em um embate, o que não diminuía a sua impetuosidade e coragem. Percebe-se na ilustração 34 a seguir, que primeiramente adentra na cidade o senhor provocador, Duque da Bretanha, um dos combatentes principais do torneio, e a seguir os demais cavaleiros participantes. 129 Ilustração 34 – Entrada dos cavaleiros participantes do torneio na cidade. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 66, 67. São os embates, os desafios, os confrontos diretos, impressão de um mêlée caótico, {grifo nosso}, que se visualiza na ilustração 36. Os juizes são assentados no centro da ilustração, em uma caixa ou pavilhão, com seus brasões abaixo e os brasões dos dois senhores combatentes no alto. Ao lado deles, as donzelas e as senhoras são assentadas à direita e à esquerda. Todos os cavaleiros do combate estão mostrando a sua roupa e brasões para serem reconhecidos facilmente e evidenciar seu prestígio, sua categoria social. Observase as decorações ornamentais dos cavaleiros. Elmos com variedades enormes de adereços, como - flores, animais, pássaros, rodas etc. O arauto exclama bem alto para que todos possam ouvir, conforme descrição do texto, as regras e normas do torneio que está por iniciar-se. Estas regras buscam salvaguardar a honra dos cavaleiros nos embates: 130 Ouvir-me, Ouvir-me, Ouvir-me. “Meus senhores os juízes rezam e requerem que nenhum de vocês honrados cavaleiros atinjam os outros com a ponta ou o cabo da espada, nem abaixo da cintura, como prometido e, golpear e atacar somente quando for permitido; também não atacarão quando qualquer elmo estiver caído, até que o recoloque novamente e, também ninguém será atacado por mais de um, a não ser que seja alguém designado para tanto. No mais, aviso que assim que as trombetas soarem e as barreiras forem abertas, se vocês permanecerem por muito tempo nas arenas, não ganharão o prêmio”. Seguindo os costumes e os trâmites demarcados para o início do embate, as normas ratificam o comportamento e o espaço regulamentado para o desenvolvimento das operações dos competidores: “Depois que as trombetas140 soarem e o anúncio for feito, os juízes devem dar aos competidores pouco espaço, o comprimento de sete palmos mais ou menos, para ficarem em ordem. E quando isto for feito, o Oficial das Armas deve anunciar, pela ordem dos juízes, tomando ar e fazendo três grandes pausas, dizer “cortem as cordas e iniciem o combate quando desejarem”. E depois que o terceiro for dado, os cabos deverão ser cortados. E então, primeiramente aqueles que carregam as bandeiras e os servos e, aqueles a pé ou montados devem emitir os anúncios que pertence a cada competidor. Então os dois lados devem se reunir para lutar, até que a ordem dos juízes, ao som das trombetas, ordene o recuo”. Os momentos que antecedem ou precedem qualquer tipo de solenidade são marcados, invariavelmente, pela presença de sons marcantes, que procuram chamar a atenção de todos para os eventos a serem apresentados. Dentre estes sons, destacam-se o das trombetas, cornetas longas com um bocal fino e saída de som com uma extremidade com diâmetro largo. Ainda no final da Idade Média, com relação aos instrumentos de sonorização 140 A partir do toque das trombetas, muitos peregrinos e participantes de procissões, que antecediam aos torneios, se distinguiam usando guizos, chocalhos e sinos, tidos até como amuletos. Nessa época, os instrumentos se dividiam em dois grupos: altos (com sons fortes - não obrigatoriamente agudos) e baixos (sons fracos). Fonte: LAÍNEZ, Fernando. Caballeros Medievales: Señores de La Guerra em La Europa Feudal, In: Historia y Vida, Madrid, 2006. p. 48 e 49. 131 voltados para chamar a atenção pública, o uso das trombetas era privilégio da realeza e do clero, enquanto outros instrumentos, como a matraca, eram usados para identificar a aproximação de leprosos. Praticamente em todas as ocasiões do desenvolvimento dos torneios, como proclamação, aclamação dos participantes, entrada na cidade dos contendores dos embates, premiação etc., são anunciados através deste instrumento de atração e chamamento dos espectadores. Como bem diz Richard Barber: “a magnitude com que eram realizados os torneios, requeria que em todos os momentos a sonoridade pontual se manifestasse, pois realçava a sua suntuosidade perante os participantes e espectadores”. 141 Ratificando tal constatação, o historiador Steve Muhlberger cita que: “Em Paris, nas festas e torneios da corte do rei Carlos VII, em certos momentos, poderia se contar em torno 80 a 100 trombetas soando para marcar acontecimentos de relevância. Prática que seria adotada quase em todos os torneios nos reinos com influência ou subordinados ao Delfim”. 142 Ilustração 35 – Detalhe da Ilustração 32. O uso das trombetas, para a marcação do início ou encerramento de qualquer tipo de solenidade nos torneios. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 57. 141 BARBER, Richard, op. cit. p. 214. 142 MUHLBERGER, Steve. A French Knight and English Squire Joust, Nipissing University, 1996. p. 11. 132 A solenidade toda é marcada por rituais minuciosamente planejados e com requintes magnificentes, que bem espelham o quanto os pormenores iniciais dos torneios tinham que ser extremamente elaborados para pontuar o brilho do evento todo. Para não alterar a programação e segui-la de maneira organizada e minuciosamente cronometrada, o texto recomenda os seguintes cuidados e detalhes para o perfeito início do torneio: Na manhã do dia do torneio cada um dos cavaleiros e escudeiros, cavaleiros de bandeiras, devem fazer tudo que necessitem antes da hora do almoço; e também devem descansar se entenderem necessário; pois depois das dez horas, eles não terão tempo algum para fazer qualquer coisa, a não ser armar-se e aprontar-se para o torneio. Depois das onze horas eles devem estar prontos e armados em seus destriers, saindo de suas estalagens para se dirigirem às estalagens de seus capitães, com quem competirão nesse dia, na hora em que os arautos e representantes anunciarem. Pois às onze horas, os arautos e representantes devem anunciar diante das estalagens dos competidores, em voz alta, “peguem seus elmos, peguem seus elmos, peguem seus elmos, senhores cavaleiros e escudeiros, peguem seus elmos, peguem seus elmos, peguem seus elmos e saiam com suas bandeiras para juntá-las às bandeiras de seu capitão.” Então cada um dos competidores devem estar prontos na rua, e devem ir montados em seu cavalo à estalagem do capitão, ou a alguma rua mais larga, como recomendado pelo capitão, para escoltar a bandeira do capitão, e reunir todos competidores. Ainda na ilustração 36, que mostra o confronto direto dos combatentes, a descrição da iluminura é de uma riqueza impressionante de traços. Pois se analisando atentamente, percebe-se que Barthélémy d‟Eyck não esquece dos mínimos detalhes ao que está referido e descrito no texto normativo onde René pormenoriza os embates no início do torneio. A imagem apresenta-se com o rigor e a beleza de uma liturgia militar profana, levada à perfeição. Nela vislumbra-se, evidencia-se o cenário completo dos torneios idealizados por René. Apesar do aspecto violento e descontrolado das lutas, praticavam-nas com “armas de recreio” ou “armas cortesãs”, a fim de evitar os feridos e as mortes. 133 Ilustração 36 – Os embates nos torneios: Fonte: BNF, Français 2695, Fls. 100 e 101. 134 Ilustração 37 – Detalhe da Ilustração 36, onde se observa os detalhes pormenorizados do armamento dos cavaleiros nos torneios do século XV. A precisão dos traços para descrever (espadas, elmos, couraças, etc.), que se usavam á época. Fonte: BNF, Français 2695, Fls. 100 e 101. 135 A última imagem escolhida do livro de René d‟Anjou, ilustração 38, nos remete diretamente a forma de premiação existente no torneio. Ápice do evento, em virtude da fama adquirida pelo vencedor, e da honra em receber tal prêmio das damas e donzelas as quais em sua homenagem lutaram. Como nos relata René d‟Anjou os procedimentos devem ser os seguintes: “O Oficial das Armas deve dizer ao cavaleiro a quem o prêmio será dado às palavras que seguem e, deve fazê-lo de acordo com a honra que recai sobre ele, sendo um príncipe, um senhor, um barão, um cavaleiro ou um escudeiro. Aqui diante desta nobre senhora e donzela, acompanhada pelo cavaleiro ou pelo escudeiro de honra e por meus senhores os juízes, que vieram lhe dar o prêmio do torneio, pois você foi eleito o cavaleiro ou escudeiro que melhor lutou hoje no torneio e, minha dama reza que você o aceite de bom grado”. Percebe-se toda uma hierarquia muito bem determinada no que tange a incumbência de cada personagem envolvida no evento. Além disso, o texto evidencia o papel ocupado pela mulher na entrega dos prêmios aos melhores cavaleiros. Posteriormente o Tratado segue instruindo os seguintes procedimentos com relação a premiação: “A senhora deve descobrir o prêmio e dar-lhe. Ele deve pegar e beijála, as duas damas se preferir. Então o Oficial das Armas e os arautos devem anunciar os seus feitos para todo o recinto. Feito isso, deve conduzir a senhora para a dança, se mais soar as trombetas” A primeira premiação segue o ritual descrito anteriormente, mas o torneio prossegue pelo menos por mais dois dias e com relação a isto a orientação, de acordo com o texto, é esta: “(...) o Oficial das Armas, ou um arauto, deve anunciar as justas para o dia seguinte para todos aqueles que queiram competir individualmente do que em equipes; nas justas serão dados três prêmios: O primeiro será um bastão de ouro para aquele que melhor golpear com a lança neste dia; o segundo será um rubi avaliado em mil moedas, para aquele que mais quebrar lanças; e o terceiro será um diamante avaliado em mil moedas, para aquele que permanecer nas arenas por mais tempo sem perder seu elmo”. 136 Ilustração 38 – Cerimônia de Premiação. Descrição de como a dama, o cavaleiro ou escudeiro de honra e os juízes dão o prêmio ao vencedor do torneio. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 103. 137 Momento de extrema importância no torneio, principalmente pelo reconhecimento ao cavaleiro vencedor. Visualizam-se também nesta ilustração, muitos detalhes pertinentes à indumentária feminina. Vestidos de seda, decotados e longos, o não uso de luvas, e adornos de cabeça extremamente altos, como um cone profundo, de seda ou veludo, com um véu preso na parte mais alta (lé hénin), característicos das cortes francesas, principalmente de Paris, de onde originou-se tal moda O cabelo era penteado para trás e ficava oculto sob o hénin.143 Ilustração 39 – Detalhe da Ilustração 37. Indumentária Feminina, no final da Idade Média. Fonte: BNF, Français 2695, Fl. 103. A iluminura nos mostra, dentro da relevância do momento, um ambiente bastante hierárquico, onde pode se vislumbrar o luxo e o requinte da indumentária das damas. O recinto parece modesto, com candelabros de madeira, direcionando-se toda a ocasião para os feitos do vencedor, através do relato do arauto a respeito do que o mesmo fez na arena. Ao vencedor, a glória. Mas a impressão e o desejo, de todos que do torneio participam, é de que ele demore, para multiplicar as entradas suntuosas e os fogos que ocasionam. Um espetáculo. 143 Para melhores esclarecimentos sobre a indumentária feminina à esta época ler Carl Köhler, História do Vestuário, Martins Fontes, São Paulo, 2001. 138 CONCLUSÃO A História dos Torneios e das Justas medievais ainda não ganhou o merecido reconhecimento por parte dos historiadores. Isso é verificável pela escassez de obras específicas sobre o tema. Apesar de uma variedade de artigos e recortes abordados superficialmente aqui ou ali, os historiadores europeus e brasileiros não apresentam grandes obras sobre o assunto. Igualmente, sobre os espetáculos medievais, também não se encontram obras em abundância, principalmente se compararmos com a produção existente sobre outros temas da Idade Média, como as Cruzadas, os Templários ou ainda sobre as inúmeras guerras ocorridas no medievo. Sobre os torneios na Idade Média, no Brasil, pelo menos que se tenha conhecimento, não há nenhuma obra que se refira especificamente aos torneios e às justas medievais. Apenas estudos adjacentes a um contexto maior que abrange a temática da Cavalaria medieval. As informações são fragmentadas, sem muita análise e pesquisa. Há muito que se estudar e pesquisar sobre os torneios, os espetáculos e os divertimentos no mundo medieval, mas sem sombra de dúvidas as dificuldades são imensas, principalmente pela falta de incentivos e pela escassez de fontes de pesquisas.. Em virtude dos empecilhos, é necessário que se busquem soluções através de outras opções, outras fontes alternativas, dados que se encaixem dentro do tema específico escolhido. Em parte, foi isto o que este trabalho se propôs a fazer. Utilizar de fontes da época, que não focalizassem somente os torneios, mas que, em algum momento, exprimissem o contexto cavalheiresco medieval, sem deixar de objetivar o foco central, ou seja, os torneios e as justas na Baixa Idade Média. Mas, diante de tal desafio, das dificuldades em se obter fontes, a vontade e o desejo de concretizar um bom trabalho cada dia aumentava, pois seguidamente recordava-se das palavras de Le Goff a respeito da emoção que é escrever sobre a Idade Média: 139 “A Idade Média certamente não me trouxe soluções para o tempo presente. Em compensação, ela trabalhou em mim tanto quanto eu trabalhei nela; e trabalhou em mim como homem militante tanto no século XX como agora no XXI. A História me empurrou para a ação. Jamais eu poderia separar minha leitura de Ivanhoé do entusiasmo que suscitava em mim (...) A Idade Média só me conquistou por seu poder quase mágico de me transportar para um ambiente novo, de me arrancar das inquietações e das mediocridades do presente e, ao mesmo tempo, de tornar o presente para mim mais ardente e mais claro”. 144 As primeiras constatações deste trabalho são claras: os torneios medievais se originaram diante de uma necessidade dos cavaleiros em se exercitarem militarmente, ou pelo menos organizadamente, nos tempos de paz. A Cavalaria revelou-se em primeiro, no plano espiritual, e depois de um período difícil de conciliação entre a espada e a cruz, a mesma, juntamente com a prática dos torneios, foi penetrada pelos ensinamentos evangélicos; foi uma ajuda preciosa para a edificação e defesa de uma Europa cristã. É ainda à Cavalaria e ao contexto dos torneios e das justas, que o cavaleiro ou guerreiro medieval deve a observância de certas leis morais, na paz e na guerra, como proteger os fracos e os pobres, respeitar, na guerra, o inimigo prisioneiro ou não o matar quando ferido. Os torneios e justas intensificaram, no cavaleiro medieval, o gosto pela proeza individual, do desafio gratuito, do “bonito gesto”, da bravura pela bravura, sem ter em conta o êxito ou fracasso, mas simplesmente objetivando a glória, a proeza, a honra, a cortesia. Isto claramente se pôde observar nos torneios do século XV, apesar da maioria de seus participantes serem nobres, estavam voltados para o reconhecimento de seus atos de bravura nos eventos, indiferentes a derrota, desde que ela viesse de maneira heróica. O aspecto guerreiro subsiste, mas cede a primazia ao aspecto lúdico e festivo. Contudo, no final da Idade Média, constata-se que a Cavalaria sofreu uma transição. O Cavaleiro do século XV 144 LE GOFF, Jacques, op. cit. p. 19 e 20. 140 convive, daí por diante, com o burguês, o homem de leis e o financeiro, por sinal, essenciais na elaboração e organização dos torneios à época, no seio de uma sociedade racionalizada e imbuída de progresso e economia. Domesticada pelos Estados, absorvida pela nobreza, como se concluiu na análise da corte do rei René d‟Anjou, a partir deste momento ela se confunde, enfraquecida pela hereditariedade, a Cavalaria não passa de uma forma esvaziada da sua substância. E os torneios, neste período, século XV, tentarão recuperar no cavaleiro, o valor da questão pessoal e não de privilégios. O Livro dos Torneios, elaborado por René d‟Anjou, é muito mais uma descrição detalhada de como organizar um torneio do que um manual de Cavalaria. Entretanto, no livro observa-se e confirma-se, através de suas normas e instruções, que o mesmo forneceu um imaginário fértil e normativo para os cavaleiros dos três séculos precedentes. Também com uma visão muito interessante, percebe-se na narrativa de o que o Cavaleiro do século XV não esquecera as virtudes dos eventos dos séculos anteriores, como a cortesia, honra e a valentia, mas sim as preservou diante de um grande público, de uma forma espetacular. No livro do bom rei René, com respeito ao embate propriamente dito, aflora-o em poucas linhas tão pouco explícitas, que se torna impossível saber se inicialmente comportará justas e se os combatentes se defrontarão a pé ou a cavalo, contrariamente ao restante do texto, onde as descrições são de uma riqueza de detalhes impressionante. Assim, se pode concluir que, manifestadamente, o que apaixonava o rei René era o pormenor da encenação. 141 A influência de René na cultura européia, no final da Idade Média e no início do Renascimento, foi de extrema relevância, apesar das escassas obras a respeito do bom rei. Alguns historiadores relegam a sua história a um segundo plano, em virtude da suntuosidade e do excesso de sua corte, mas pesquisando e analisando, constatou-se que a sua vida, as suas obras e o seu legado são ricos em todos os aspectos, que se enquadrariam perfeitamente na confecção de trabalhos em vários campos da História MedievalRenascentista, como: História Cultural, História do Cotidiano, História Literária, História Militar, História Social, dentre outras. Esse trabalho não teve pretensão de esgotar o assunto trabalhado, muito pelo contrário. Sua principal meta foi mostrar que dentro da Cavalaria medieval, os torneios e as justas tinham especificidades próprias, implicações sócio-culturais distintas de um contexto mais amplo como as guerras e as batalhas da Idade Média. Diante disto, é necessário que fique claro que a História dos torneios no medievo precisa ser estudada, e também de como ela poder ser muito importante para o estudo da História. Em tempo, uma indagação se impõe com referência à escolha do contexto temporal e temático deste estudo, que é a seguinte: Qual o sentido em estudar o Ocidente medieval, uma sociedade tão longínqua no tempo e no espaço, a partir das terras americanas e, em particular, brasileiras? Argumenta-se que, como já se viu no trabalho, a Baixa Idade Média continuou caracterizada pelas estruturas fundamentais de dois séculos anteriores. Encontraram-se nela os mesmos grupos dominantes principais e os mesmos grupos dominados. A Igreja continuou sendo a instituição hegemônica, enquanto prosseguiu o desenvolvimento do mundo urbano e o reforço dos poderes monárquicos. A conquista e a colonização da América não é o resultado de um mundo novo, nascido de uma decomposição 142 e agonia da Idade Média. Muito além das transformações, das crises e dos obstáculos, é a sociedade feudal, prosseguindo a trajetória observada desde o início do segundo milênio, que empurra a Europa para o mar. É uma Europa ainda dominada por longo tempo pela lógica feudal, com seus protagonistas principais, a Igreja, a monarquia e a aristocracia (mercadores), que finca o pé na América, e não uma Europa saída transfigurada da crise do fim da Idade Média e agora portadora das luzes do Renascimento e do Humanismo. A América foi conquistada, não creditando aos seus autores a mentalidade americana, mas provavelmente aos seus valores e a lógica de seus comportamentos provenientes de um contexto medieval. Diante disto, complementando e ratificando a importância dos estudos medievais a partir de um olhar sul americano e brasileiro, fica a sugestão de uma próxima pesquisa: a análise sobre a influência dos torneios medievais nas cavalhadas latino-americanas. 143 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMSON, M. História da Idade Média: Do Século XI ao Século XV, Lisboa, Editorial Estampa, 1978. ACKER VAN, Teresa. Renascimento e Humanismo, São Paulo, Atual Editora, 1992. ARÌES, Philippe. 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