ANO I, 2015 - Programa de Pós-Graduação em Letras
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ANO I, 2015 - Programa de Pós-Graduação em Letras
SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA A palavra reinventada: com quantos caracteres se faz literatur@? Organização: Alba Valéria Niza Silva Andrea Cristina Martins Pereira Ingrid da Silva Marinho Júnia Cleize Gomes Pereira Ano I Outubro de 2015 Realização: Apoio: ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 SUMÁRIO CARTAS A OSVALDO ANDRÉ DE MELLO Alba Valéria Niza Silva ----------------------------------------------------------------- 5 LUIZ FERNANDO CARVALHO: UM OLHAR DIFERENTE ONDE TUDO PARECE IGUAL Andrea C. Martins-------------------------------------------------------------------- 20 LUIZ VILELA NO ENSINO FUNDAMENTAL: ALTERNATIVAS METODOLÓGICAS E FORMAÇÃO DE LEITORES Angela Nubiato Lopes ------------------------------------------------------------- 32 EPIGRAFE E REFERÊNCIAS BIBLICAS EM “O PIROTECNICO ZACARIAS” DE MURILO RUBIÃO Camila Alves da Silva -----------------------------------------------------------------46 VIOLÊNCIA NEGRA: UMA LEITURA DE INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES Cristiane R. Antunes da Silva e Prof. Dr. Osmar Pereira Oliva -------------52 “DRAMA DE BÁRBARA HELIODORA” EM MADRINHA LUA, DE HENRIQUETA LISBOA Daiana Santos Machado--------------------------------------------------------------62 NAVEGAR É PRECISO: A CARTA DO “ACHAMENTO” DO BRASIL INTERMEDIADA PELO E-MAIL DE CAMINHA, DE ANA ELISA RIBEIRO Daiane Silva de Andrade ------------------------------------------------------------72 A INVENÇÃO DE UMA TERCEIRA MARGEM: DA DISSOLUÇÃO DO SUJEITO AO DEVIR-RIO Daniel Silva Moraes -----------------------------------------------------------------80 MORAL DA HISTÓRIA- A LITERATURA INFANTIL COMO PROCESSO DE FORMAÇÃO, POR LÚCIA MIGUEL PEREIRA Edwirgens A. Ribeiro Lopes de Almeida ----------------------------------------86 ESCRITURAS E TECITURAS: A CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA SOB A ÓTICA DO ESCRITOR MONTESCLARENSE JOÃO LUIZ MACHADO LAFETÁ Enólia Nunes Ferreira Lopes ------------------------------------------------------94 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A INSUBMISSÃO FEMININA NA NOVELA "ROQUE SANTEIRO" (1985) Gabriela Miranda de Oliveira ------------------------------------------------------104 PÁGINAS EM BRANCO: AUSÊNCIA DA MULHER E O APAGAMENTO DA ESCRITORA NEGRA NA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA OITOCENTISTA Geraldo Ferreira da Silva e Ivana Ferrante Rebello--------------------------114 CRÔNICAS DA VIDA REAL: REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA NA OBRA DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO Gustavo Souza Santos, Andréa Nogueira do Amaral Ferreira e Josiane Santos Brant Rocha -----------------------------------------------------124 A SENSUALIDADE E SEXUALIDADE DA MULHER CIGANA EM LA GITANILLA E CARMEN Ianny Lima Maia -----------------------------------------------------------------------134 EROS VERBALIZADO NA POESIA DE MAX MARTINS: A LINGUAGEM DO AMOR E DO DESEJO Ingrid da Silva Marinho ------------------------------------------------------------143 “PRECISA-SE DE COZINHEIRA, QUE FAÇA ODES, POEMAS E NOVELAS”: A CORRESPONDÊNCIA ENTRE MULHERES DE LETRAS Drª Ivana Ferrante Rebello ---------------------------------------------------------153 CORRESPONDÊNCIAS ENTRE MACHADO DE ASSIS E OS BACHARÉIS EM DIREITO JOAQUIM NABUCO, MAGALHAES DE AZEREDO E MÁRIO DE ALENCAR Iuri Simões Mota --------------------------------------------------------------------- 165 EDSON LOPES, DILUIÇÕES EM ÁGUAS DO SÃO FRANCISCO Júlio Cipriano da Silva Neto Rita de Cássia Silva Dionísio Santos --------------------------------------------175 GRANDE SERTÃO: VEREDAS – A FLORA EM PERSPECTIVA Júnia Cleize Gomes Pereira -------------------------------------------------------183 OS PÁSSAROS COMO METÁFORA DE MUDANÇA EM “HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” Júnia Cleize Gomes Pereira --------------------------------------------------------191 COMO ESCREVER PARA AS CRIANÇAS: A IDEIA DE ALEXINA DE MAGALHÃES PINTO SOBRE O INFANTIL E A LITERATURA ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Laura Emanuela Gonçalves Lima Rita de Cássia Silva Dionísio Santos -------------------------------------------201 VIRTUDES PARA DELEITE DOS BRASILEIROS: A PRESENÇA DE TEXTOS DE LÍNGUA PORTUGUESA N'O LIVRO DAS VIRTUDES Leonardo Tadeu Nogueira Palhares ---------------------------------------------208 A AUTOFICÇÃO DE JEAN-LOUIS FOURNIER COMENTÁRIOS ACERCA DA TRADUÇÃO DE OÙ ON VA, PAPA? Luíz Horácio Pinto Rodrigues ---------------------------------------------------218 CORPOS MARCADOS, MENTES ASSOMBRADAS: A RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA NAS ADAPTAÇÕES DE O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?, ALGUMA COISA URGENTEMENTE, BATISMO DE SANGUE E AS MENINAS Marina Rodrigues de Oliveira ------------------------------------------------------229 O ESPELHO: MACHADO DE ASSIS, FICÇÃO E FILOSOFIA Mauricio Alves de Souza Pereira -------------------------------------------------238 RECEPÇÃO CRÍTICA EM O FILHO DO PESCADOR: DIVERGÊNCIA OU CONVERGÊNCIA DE INTERESSES? Noêmia Coutinho Pereira Lopes --------------------------------------------------247 AS MULHERES DE TIJUCOPAPO: O ORGANISMO TRÁGICO E O DISCURSO DA MEMÓRIA-TRAUMA DE RÍSIA Rafael da Silva Mendes -------------------------------------------------------------257 AS FACETAS EM BÁRBARA DE MURILO RUBIÃO Priscilla Neves-----------------------------------------------------------------------267 SAINDO DO ESPAÇO DA REPRESENTAÇÃO: A CRISE CONTEMPORÂNEA NA LITERATURA DE SÉRGIO SANT’ANNA Sarita Erthal ---------------------------------------------------------------------------274 DE SUBSERVIENTE A INSUBMISSA: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM A DANÇA DOS CABELOS Shantynett Souza Ferreira Magalhães Alves ----------------------------------283 INEXPLORADOS CAMINHOS POÉTICOS DE EMÍLIO MOURA Viviana Pereira Silva ----------------------------------------------------------------293 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 CARTAS A OSVALDO ANDRÉ DE MELLO Alba Valéria Niza Silva Resumo: Pretendemos discutir no texto a seguir a presença de autores e obras que, a partir da pesquisa realizada, do material levantado nos arquivos do escritor, de modo especial as cartas, demonstram peso significativo na produção literária do poeta Osvaldo André de Mello. Palavras-chave: Osvaldo André de Mello; Cartas; Poesia. Resumen: Se pretende discutir en el texto que sigue la presencia de autores y obras que, a partir de la búsqueda realizada, del material levantado en los archivos del escritor, de modo especial a las cartas, demuestran peso significativo en la producción literaria del poeta Osvaldo André de Melo. Palabras clave: Osvaldo André de Mello; Cartas; Poesia. A carta enquanto gênero textual A carta, como gênero textual, atesta o desejo humano de permanência, assim como a poesia. A diferença entre ambas, entretanto, é explicada por Maria José de Queiroz, no prefácio às Cartas à Noiva/Rui Barbosa (1982): Instrumento e meio de comunicação pessoal e confidencial, quando não secreto, a carta escapa à divulgação a que necessariamente se sujeitam os gêneros literários. E ao lograr publicidade cumprem, freqüentemente, função ancilar: qual seja, a de iluminar episódios e eventos biográficos – velados ou ignorados -, explicar peculiaridades de comportamento, justificar inclinações, ojerizas, compromissos e hábitos de vida. Mais: o recuo a que geralmente obriga, pois a correspondência pessoal nunca se difunde nem se publica à data da redação, implica solução de continuidade e mudança de perspectiva. A história da epistolografia padecerá portanto de todas as vicissitudes e dos vícios decorrentes. (QUEIROZ, 1982, p. 10). Por ser datada, a carta, de certa maneira, atualiza o passado. Através das suas letras, ao leitor será possível rever e rearranjar fatos, posicionamentos e impressões. Queiroz acrescenta que: Os dados biográficos – acidentais ou de rotina, conscientemente escamoteados ou não - emergem de um 5 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 fundo permanente de reserva e de sigilo. À devassa da indiscrição ou da curiosidade descortina-se o universo moral do processo e da confissão, implícito no enunciado singular. (QUEIROZ, 1982, p. 11). Maria José de Queiroz menciona três tipos de autores de carta: “aqueles que delas se servem para expor ideias; os que, tendo poucos fatos a contar, transformam em maravilhoso relatório os mínimos incidentes de uma vida (...); e aqueles, finalmente, que escrevem porque não podem fazer outra coisa, e lançam o próprio eu, comovente e vivo, na sua correspondência” (MAUROIS apud QUEIROZ, 1982, p. 11). É preciso que se registre a existência de uma mistura desses tipos. Pensamos que se encaixa, aqui, a primeira definição, mesclada à terceira, por se tratar de correspondências em que predomina a visão ou a impressão que as poesias de Osvaldo André – destinatário - causaram a seus leitores - remetentes. Em À Margem da Carta, Walnice Nogueira Galvão (1998) reitera o inestimável valor das missivas para os estudos literários e, citando vários autores que se utilizaram desse gênero, dentre eles Mário de Andrade, diz: Contam-se aos milhares, dirigidas aos principais contemporâneos modernistas, como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Rodrigo de Mello Franco, etc., ou mesmo aos da geração seguinte, como Fernando Sabino. “Nenhum outro epistológrafo brasileiro escreveu com tal profusão e com tal originalidade”, na afirmação de Drummond. (GALVÃO, 1998, p.155). Walnice Nogueira afirma que, nas citadas cartas, Mário de Andrade “aconselha, admoesta, comenta, discorda, prega, teoriza, doutrina, corrige poemas e escritos” (GALVÃO, 1998, p.155). Partindo do que foi dito, acreditamos, como a ensaísta, encontrar, nas cartas, importantes elementos para construção ou reconstrução de biografia, ideias e teorias não influenciadas pela forma estética e “um estatuto exclusivo devido à 6 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 qualidade impecável da escrita” (p. 156). Tudo isso reforça a ideia de que elas possuem importante “peso” para os estudos literários e: Acrescente-se que quem se dedica a esses estudos acaba por tornar-se aficionado de tudo quanto seja não só carta, mas também memórias, diários íntimos, resenhas, rascunhos, biografias, listas de palavras, anotações, manuscritos em geral. Em suma, por qualquer material paralelo à obra literária. (GALVÃO, 1998, p.156). A afirmação acima reitera e valida o viés adotado por nós neste estudo. Galvão salienta, ainda, que, na maioria das vezes, em se tratando de pesquisa, chega-se às correspondências por mero acaso que logo se transforma em necessidade. Podemos dizer que algo semelhante nos aconteceu, pois, o interesse primeiro deste estudo, enquanto ainda projeto, restringia-se ao acervo e sua marginália, bem como aos manuscritos do autor em estudo. Diante dos “papéis” do poeta, constatamos a numerosa e valiosa correspondência que será, em parte, transcrita e analisada a seguir. Não há como negar que a vida deixa marcas na obra de um autor, e estas podem ser utilizadas para compreendê-lo, ao mesmo tempo em que a produção pode trazer à tona aspectos “obscuros e silenciados na vida do escritor”. (BRANDÃO; OLIVEIRA, 2011, p. 97). No caso desta pesquisa, a correspondência em análise é a passiva, que se traduz em análises de “pontos de contato, que carregam seus encantos enlaçando vida (bio) e obra (grafema) (...) Já não mais estaríamos na pretensa busca de verdades inabaláveis, mas pormenores, traços biográficos, alguns gostos e inflexões. E mais: revelados não pelo escritor, mas pelo leitor”. (BRANDÃO; OLIVEIRA, 2011, p. 108). Trataremos, sobretudo, a seguir, nas cartas selecionadas no acervo de Osvaldo André de Mello, dos trechos em que dá o registro de um momento cultural brasileiro, o do poeta e seu entorno, e, mais, daqueles em que se percebe da parte do missivista uma intenção 7 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 pedagógica (professoral?), aperfeiçoamento do poeta como forma iniciante. de Nesse contribuir sentido, para teve o papel significativo o Movimento Agora, fundado em 1967, graças ao idealismo de Lázaro Barreto, Sebastião Benfica Milagre e Fernando Teixeira, entre outros. Vários elementos ligados ao Movimento, citados recorrentemente nas cartas que serão apresentadas a seguir, alcançaram sucesso estimulados pelo jornal literário Agora, de Divinópolis. O “Movimento Agora”, sua importância e repercussões Autores como Adélia Prado e Lázaro Barreto viram-se editados por uma respeitada editora que é a “Vozes”, de Petrópolis. Osvaldo André de Mello, estimulado por numerosos prêmios obtidos desde o início da adolescência, lançou, aos dezenove anos, seu livro de estreia, sugestivamente intitulado A Palavra Inicial (1969), garantindo desde logo um lugar de destaque entre os valores jovens de Minas Gerais. A crítica nacional lhe rendeu elogios que se estenderam a Portugal, “Diário de Lisboa” e “Jornal do Algarve”, bem como nos Estados Unidos, na Revista Books Abroad e, na Espanha, jornal literário El Astillero. Esses são exemplos das realizações do “Agora”. Nomes como o de Waldyr Caetano e outros são alguns, além dos citados anteriormente, que o “Agora” descobriu e divulgou. Por outro lado, o Movimento conseguiu atrair para o seu meio Bueno de Rivera, Affonso Ávila, Laís Corrêa de Araújo, Elias José, Mário de Oliveira, dentre outros. Vários dos nomes acima citados, senão todos e mais alguns figuram nas obras ou na correspondência do poeta, justificando a ligação entre eles, seja através do Movimento, seja através da arte. Não há como negar que o “Agora” trouxe à tona talentos que existiam e estavam latentes, marcando, dessa forma, a vida literária e artística de Divinópolis e fazendo com que a cidade viesse a se tornar 8 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 respeitada como um dos núcleos culturais mais importantes de Minas Gerais. Conhecido dos escritores de Minas Gerais e do Brasil, José Afrânio Moreira Duarte foi contista, ensaísta, crítico literário, entrevistador e poeta. Ele apresenta suas considerações acerca do jornal literário e sinaliza positivamente para os jovens escritores, como pode ser visto a seguir: Belo Horizonte, 4-3-68 Caro Oswaldo, (...) Espero que o “Agora” não fique estagnado e que volte a circular, ainda que sua periodicidade não seja mensal, mas bimestral ou trimestral. Ou até mesmo que fique na base do jornal uruguaio “EL CHÚCARO” que “Aparece cuando sale y sale cuando puede”. O importante é não parar. Leio e releio seus poemas enviados com a carta. E cada vez gosto mais de “Igreja do ó” em que você revela mais seu talento de poeta e uma extraordinária capacidade de síntese. Porém os outros trabalhos são também bons. Só não gostei muito do poema que começa com “o grito ensina” – vejo que êle está de acôrdo com as tendências mais em moda atualmente porém eu não gosto muito dessas tendências, embora não as rejeite. Na poesia, prefiro o delicioso meio termo entre o tradicional e o moderno, êsse meio termo ameno e agradável que a gente encontra em Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Emílio Moura, Fernando Pessoa, Stella Leonardos e em você, do poema premiado aqui em Belo Horizonte. Estou mesmo com muita vontade de ir a Divinópolis, exclusivamente para ver vocês, os jovens de “Agora” – Afinal, vocês não são de Cataguases mas também são azes (^) Um abraço do José Afrânio 9 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Como se vê, a data da carta é anterior ao lançamento da primeira obra de Osvaldo André, que é de 1969. O comentário acerca dos poemas do escritor deve estar relacionado a produções avulsas. O autor e a recepção crítica Várias são as manifestações que dão notícias da publicação do primeiro livro de Osvaldo André. Podemos citar nomes como o de Adão Ventura, Ascendino Leite, Blanca Lobo Filho, Carlos Drummond de Andrade, Edgard Pereira Reis, Francisco Iglésias, Hélio Teixeira, Jerry R. James, Luis da Câmara Cascudo, Martins de Oliveira, Massaud Moisés, Nélida Piñon, Nelly Novaes Coelho, Oscar Kellner Neto, Osman Lins, Rosário Fusco, Stella Leonardos Cabassa, dentre outros. Também os livros posteriores serão objeto de elogios, como se vê em cartas de Laís Corrêa de Araújo e Affonso Ávila, Lázaro Barreto, Lacyr Schettino, Elias José, Márcio Almeida, novamente Drummond (referindo-se com agrado à apresentação “lúcida” de Henriqueta Lisboa ao segundo livro), Yeda Prates Bernis, José Afrânio, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, e tantos outros. A recepção crítica de A palavra inicial (e de outros livros do autor), tal como a vemos nas cartas de que daremos notícia a seguir, é das mais acolhedoras. Mesmo se levarmos em conta o caráter “educado”, “generoso” de tal tipo de recepção, sobretudo se feita por amigos, ou por escritores de maior renome que procuram com suas palavras estimular o escritor que estreia nas letras, pode-se perceber no conjunto das manifestações de que aqui trataremos uma admiração sincera pelo jovem poeta de Divinópolis, capaz de escrever um livro não tão “iniciante” assim, como o título do livro sugere. Chama a atenção nesse conjunto de cartas a presença acentuada de escritores mineiros consagrados, dos quais muitas obras ocupam as prateleiras da biblioteca do autor, sugerindo leituras até certo ponto inspiradoras de temas e escolhas poéticas de natureza variada. 10 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Como ressalta Hans Robert Jauss (2002), em sua teoria da “estética da recepção”, as leituras das obras variam conforme a época em que são feitas, e para isso o “horizonte de expectativas” do leitor, um dos conceitos-chave de sua teoria, é fundamental para a avaliação das mesmas. Partindo de uma perspectiva dialética, as leituras de uma obra de arte constituem um intercâmbio de experiências, um jogo de perguntas e respostas. É de se pensar, pois, que a obra de Osvaldo André de Mello encontrou, dentro de certo horizonte de expectativas da época, uma boa receptividade nos leitores/críticos de seu tempo. Por outro lado, se pensarmos nas leituras feitas pelo poeta analisado, também ele sujeito a essa troca dinâmica que se faz no ato de qualquer leitura, podemos conjecturar que, tanto as obras daqueles escritores, presentes em sua biblioteca, e de que ele se diz, abertamente, admirador, como as cartas recebidas sobre seus escritos, terão permanecido como referência substantiva para sua obra e terão tido seu peso na construção de seus livros. Temas, lembranças, traços residuais de versos, visões de mundo se mostram, nem sempre veladamente, nos versos do poeta de Divinópolis, confirmando o diálogo intertextual. Sobre o primeiro livro, A Palavra Inicial (1969), obedecendo a uma ordem cronológica, começamos com a carta de Hélio C. Teixeira, poeta, crítico literário desde a juventude, no Rio de Janeiro, e jornalista literário muito respeitado, que escreve extenso texto contendo as suas impressões sobre A Palavra Inicial (1969): Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1969 Caro poeta Osvaldo André de Mello: Acabo de receber um exemplar do seu livro “A Palavra Inicial” e vejo que, hoje, você completa dezenove anos. Felicito-o, pois, sinceramente e faço votos para que você, durante o longo tempo de vida que tem pela frente, continue fiel ao seu ideal de arte que já é autêntico. (...) 11 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 “A Palavra Inicial” constitui, no entanto, uma realidade merecedora de incentivo. Nesse livro, um poeta autêntico já se revela. (...) E o principal já possui: o dom da poesia. Já sabe captar e transmitir o encantamento e o mistério das coisas imponderáveis que escapam à percepção das pessoas comuns. Já penetra no mais fundo sentido das idéias para expressá-las em sua mensagem. (...), consegue demonstrar verdadeira fôrça de sua capacidade criadora, como nos poemas “A Tarde”, “Ao Desconhecido” e “Lição de Pedra”, que são, a meu ver, os três pontos mais altos de “A Palavra Inicial”. Nesses poemas, você pôde realizar autêntica poesia moderna, livrando-se do exagero e da extravagância que muitos confundem com técnica modernista. Saiba, pois, que sobriedade e equilíbrio são indispensáveis a qualquer expressão de arte, seja ela moderna ou tradicional. A tendência do artista poderá obedecer a esse ou àquele processo, mas o resultado de sua atividade terá sempre que ser equilibrado e sóbrio, para não fugir aos princípios da estética, sem os quais não se consegue realizar a verdadeira arte reveladora da beleza pura. (...) Como se vê, não importa ser moderno ou tradicional. O que importa é ser autêntico e fiel à arte pura. É passageira a fama dos que obtêm renome à custa de extravagâncias. O tempo logo os põe no esquecimento completo. Os valores genuínos é que passam à posteridade. E todo espírito consciente não se submete aos caprichos da moda. Atende, isto, sim, aos imperativos da razão, colocando, acima de tudo, as regras eternas do bom gosto que, no terreno da arte, conduzem o artífice à beleza ideal. E, sem essa beleza, não existe arte. Prezado poeta, aí estão as palavras sinceras que eu tinha para dizerlhe, depois da leitura atenta do seu livro. Prossiga no rumo que escolheu, de acordo com a mentalidade nova de nossa época, mas fiel sempre a você mesmo, ao seu ideal, de arte, receba o mais cordial abraço do amigo e admirador Hélio Teixeira Percebe-se, na correspondência acima, a presença de uma aula de poesia. Mais uma vez, Drummond escreve ao poeta, agora motivado pela publicação de A Palavra Inicial – correspondência mencionada na Introdução deste trabalho: Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1969. A segunda obra publicada por Osvaldo André de Mello é A Osvaldo André de Mello, Revelação do Acontecimento e é também foco das correspondências. Meu agradecimento pela gentileza da oferta de A Palavra Inicial, que abre de maneira expressiva a sua caminhada na poesia. Cordialmente, 12 Carlos Drummond de Andrade. ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Escolhemos a de Laís Correa de Araújo Ávila, poetisa, escritora e jornalista. Ao lado do seu marido, o poeta Affonso Ávila, Laís C. Araújo exerceu grande influência no meio literário de Minas Gerais, como ensaísta, poeta e editora do Suplemento Literário de Minas Gerais, além de titular da coluna Roda gigante, publicada regularmente durante muitos anos no jornal Estado de Minas. A sua crítica é firme e pormenorizada, passando pela parte gráfica até chegar aos versos de Osvaldo André. Beagá, 10/6/74 Osvaldo André Nem bem recebi o seu livro, já lhe escrevo, mas não só para agradecer como pra botar a minha colher torta no seu angu. Vou por partes. Aspecto geral do livro - muito bom. Talvez se a capa fosse em cores, ficasse mais atrativa.(...) Mas o teu está bastante bom; a impressão, dentro, também melhorou consideravelmente. (...) Quanto à substância – assustou-me um pouco a primeira parte, pela dramaticidade que você assume, pela impressão tensa que nos transmite, uma apreensão da realidade que me parece pouco normal na sua idade, embora comovente pelo testemunho humano que nos dá. A própria escolha da epígrafe é uma perigosa aproximação com uma poeta que, essa sim, por razões que não vale a pena saber, foi sempre usada pelas lágrimas. Mas ao jovem Adônis, ao belo e tranquilo Osvaldo, o “sentimento de mundo” não deve tocar. Para a sua poesia, acredito sinceramente, não cabem “as palavras velhas”, que nem devem ser “reconsideradas” nem “reinventadas”, esse sentimento da “própria destruição verbal”. Nós, os velhos, já cansados de tentar encontros e realizações, isso seria compreensível. Não, mas lhe perdôo uma sensibilidade tão capaz de flagelar-se na identificação com o outro. Por isso – e talvez também por motivos simplesmente críticos – parece-me a segunda parte muito mais você, com outra e diferente força de expressões, não mais no por dentro e bem mais no por fora, isto é, no aspecto propriamente criativo do texto. “Escavações no soneto, “O cabide”, “Roteiro de ida a Catas Altas” são poemas que se mantém por si, independentes dessa empatia que se supões necessária a produtor/consumidor. Talvez essa minha mania de “palpitar” sobre trabalhos alheios (defeito de muitos anos de ofício crítico) esteja errada. Mas se v. permite a minha idade e experiência – coisas que os jovens detestam! – alguma ressalva eu lhe diria, direi, já disse, que é nessa segunda e mais rigorosa etapa que v. legisla melhor a sua poesia. Outra coisa que acho extremamente perigosa é que v. tem um talento muito versátil e deve ser constantemente tentar a fazer demais. A cada dia me convenço que a poesia é extremamente exigente e a opção por essa arte de loucos é extremamente dolorosa. Não há o que ganhar com a poesia. Não falo, é claro, de ganhar materialmente; isso é ponto passivo. Mas de que se perde de nós mesmos, da gente como ser, da gente como vida, em cada poema escrito, “a cada poema concluído nesta ânsia”. ... Agora vejo que estou amargurada e transmitindo a v. esta amargura. Desculpe. Tudo é mesmo velhice, que v. deve desprezar e esquecer. Para a frente, Osvaldo. Meu abraço, Laís. 13 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Mesmo confirmando o amadurecimento do poeta, Laís Araújo, homenageada com a epígrafe mencionada – ela “sempre usada pelas lágrimas” – sente-se à vontade para, como ela mesma disse, “botar a colher torta no angu”. Apesar de algumas ressalvas feitas, acreditamos que em nada desmerece a poesia de Osvaldo, demonstrando sobretudo atenção e dedicação à leitura que lhe foi oferecida, além de, acreditamos, apresentar a visão de escritora mais experiente. Com relação ao terceiro livro do autor, Ilustrações (1996), abrimos espaço e damos destaque a duas correspondências. A primeira é de Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, eleito três vezes prefeito da cidade de Ouro Preto e presidente da Associação Brasileira de Cidades Históricas, além, é claro, de autor da apresentação à citada obra. Prefeitura Municipal de Ouro Preto, 18-VI-96 Prezado Osvaldo André, envio-lhe o texto de apresentação. Em meio à correria do final de meu governo, consegui produzi-lo para não deixar de atender sua simpática solicitação. É bom rever, com você, nossas cidades históricas. Espero que seja do seu agrado e possa ser aproveitado como você achar melhor – orelha ou introdução. Com minhas congratulações pela obra e pela volta ao livro, o abraço cordial do Ângelo Oswaldo de Araújo Santos P.s. Devolvo-lhe os originais pois você pode precisar deles. O texto escrito por Ângelo Oswaldo apresenta os novos poemas de Osvaldo André de um modo bem especial – através da Paixão de Minas. Vamos a ele: 14 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A Kodak excursionista dos primeiros modernos revelou, na década de vinte, a poesia das velhas cidades mineiras. Andar pelas Minas Gerais do ouro e dos diamantes é acumular visões de poesia como nas seqüências de cinema. Lavrada em solenes frontispícios ou e, em retábulos delirantes, plasmada na paisagem, entrecortada em ângulos surpreendentes, suspensa nos morros e derramada no cascalho, essa poesia visual de Minas provoca o texto como o desafio que o minério propõe ao garimpeiro e ao ourives. Incita-o. E o faz ganhar a página branca, tornando o poeta um “ilustra-dor” instigante, um criador de ícones. A poesia se faz palavra fotográfica (luz escrita, literalmente) nas imagens que o poeta retira dos impactos surgidos ao longo do caminho. Ouro Preto, Mariana, Catas Altas do Mato Dentro, Caraça, Tiradentes, Serro, Minas Novas estendem o périplo no mapa de Osvaldo André. Mineiro de Divinópolis, ele perlustrou esses cenários ancestrais para recolher as contemplações que compõem este volume. Transforma sua volta ao livro, treze anos depois do último lançamento, no colóquio verbo-visual entre a Minas que se vê e a que se lê. A emoção do poema e o alumbramento da imagem se fundem no trabalho do autor, que documenta, registra, mas também perquire e convoca a essência da vertigem visual dos espaços históricos. Osvaldo André de Mello, viajor das Minas, não enfeixa estes poemas como a flor de olvido entre as páginas de um livro. Entrega-os como o código do cartógrafo de territórios a serem desvelados. O leitor os receberá como senhas do país que se eleva diante de si muitas vezes despercebidamente. Com olhos de ler e ver, vamos reviver a paixão de Minas na viagem a que nos conduz o poeta. Ângelo Oswaldo de Araújo Santos Ouro Preto, novembro de 96. Minas é “fotografada” por Osvaldo André e colocada à disposição daqueles que veem e leem com a emoção, como confirma Ângelo Osvaldo. Como dito anteriormente, o livro em destaque privilegia o espaço e a visualidade das velhas cidades de Minas do ouro e dos diamantes. Surgem paisagens dos espaços históricos, o que talvez tenha 15 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 proporcionado ver Minas através dos olhos do poeta e sentir “identidade” nas citações. A outra carta data de 27 de fevereiro de 1997 e é assinada por Laís Corrêa de Araújo, que acrescenta, de forma atenciosa, o nome do seu marido, Affonso Ávila, no fecho. Num tom diferente da carta anteriormente enviada, a escritora e poeta agradece o “belo presente” que fora enviado. Beagá, 27. 2. 97 Osvaldo André Sob a barreira das águas, a porta de Ouro Preto desapareceu sufocada. As letras pungentes “Minas não há mais” pautam o som das almas dos inconfidentes que “vagam pelas ruas e gritam de mudez espectral”. Tremem as texturas dos ossos antigos em lajes inseridas e pisoteadas nas igrejas. Estamos voltando, tristes, de passeio por aí. Mas encontramos e sabemos que subsistem os poetas nunc et semper – segurando a verdade pesada dos púlpitos e imagens e anjos para aliviar o sobressalto dos “guardiões das chaves de Minas. Poetas como Osvaldo André de Mello em suas “Ilustrações” – traços limpos de novo cinzel modelando a utopia e coragem de criar. Simples, quase totalmente retos nas suas volutas de fantasmas? Artistas anônimos? Sedução? Íntimo passado presente? Obrigados somos – ler e entender as senhas de seu livro, manual de redescoberta, sinais do formão de poeta e “cata do oculto” sempre visível para o olhar do viajante: “nada menos visão.” Belo presente recebemos, Laís e Affonso Como pode ser comprovado, a uma análise mais atenta, toda a correspondência apresentada neste trabalho é relevante para construção do perfil poético e artístico de Osvaldo André de Mello além, é claro, de esclarecer pontos porventura ainda obscuros na sua obra. Entendemos que, com um trabalho voltado para as fontes primárias, caminhamos para a revitalização do texto literário. Como nos lembra Souza, os acervos dos escritores estão eivados de material de grande relevância – correspondências, entrevistas, biblioteca, etc. Sendo 16 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 assim, construímos, a cada momento, o nosso objeto de estudo, ao lidarmos com os arquivos (SOUZA, 2011, p.41). Ao examinarmos o acervo dos escritores, com as obras que o compõem e elegermos o material para análise e o método a ser adotado, marcamos ou apontamos para a crença de que é preciso transitar pelo público e pelo privado, ou melhor dizendo, pela junção dos dois. Segundo Eneida Maria de Souza: O comportamento do crítico que se interessa pelos manuscritos e bibliotecas autorais se pauta ainda pela lição de Walter Benjamin, autêntico e apaixonado colecionador de livros. Rodeado de mil tomos, de variada literatura, afirmava que o bibliófilo, ao adquirir um livro velho, assumia o poder de lhe dar nova vida. Na sua obra, Benjamin repete o processo revitalizador do bibliófilo, transformando-se em colecionador de citações, arrancando os fragmentos de seu contexto e os organizando numa forma nova, sempre arbitrária e nunca definitiva. Lê e coleciona, desloca a tradição, por um processo simultâneo de conservação e destruição. Amplia este raciocínio para ambiente privado do burguês, o qual se afasta do espaço público e transforma sua casa – espaço privado e afetivo – em santuário, lugar propício à criação da privacidade. A biblioteca atua como materialização dessa privacidade, por se erigir como lugar de encontro do colecionador com seu universo de lembranças e de objetos auráticos, sejam eles de qual natureza for. (SOUZA, 2011, p.44-45). A partir do pensamento acima podemos, ainda, dizer, chamando à discussão Edgar Morin, que a sociedade é o resultado das interações entre indivíduos. Essas interações criam uma organização que possui características próprias como a cultura e a linguagem que, por sua vez, atuam sobre os indivíduos, criando a sociedade. Ou seja, “os indivíduos produzem a sociedade, que produz os indivíduos”. (MORIN apud SCHNITMAN, 1996, p. 48). É pertinente citarmos também Antonio Candido e a sua Formação da Literatura Brasileira, publicado pela primeira vez em 1959, em que o autor menciona a existência e a importância da sociabilidade ou rede entre escritores. De acordo com Candido, para haver literatura é 17 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 necessária a construção do que ele chamou de sistema ou “Sistema Orgânico Literário”, como nos esclarece o Professor Flávio Leal (2011): A Formação, com seu arcabouço teórico, realiza uma distinção entre as manifestações literárias, termo caro e já fixado por José Aderaldo Castelo em sua Presença, e o próprio conceito de Literatura, que será entendido por Candido como um sistema com sua organicidade, ou seja, a Literariedade dos textos estará não mais no aspecto imanentista de cada obra, mas sim em sua relação de existência na sociedade e seus aspectos de produção, recepção e tradição que farão a obra como objeto existente em um sistema articulado por uma tríade dinâmica e histórica (autor-obra-público). (LEAL, 2011). Para a existência da literatura, é preciso que produtores literários, receptores e mecanismo transmissor estejam interligados, o que justifica a afirmação de que autores de ontem dialogam com autores de hoje e dialogarão com os que ainda nascerão. Visões do mundo, escolhas estéticas, assuntos, estilos, tons. As aproximações ou confluências são múltiplas. Não existe poeta que não converse suas intimidades com outras várias. REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Correspondente contumaz: Cartas a Pedro Nava (1925-1944), escritas por Mário de Andrade. Fernando da Rocha Peres (Org). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. BRANDÃO, Ruth Silviano; OLIVEIRA, José Marcos Resende. Machado de Assis: uma viagem à roda de livros. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. GALVÃO, Walnice Nogueira. À Margem da Carta. In: Desconversa (ensaios críticos). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. LEAL, Flávio. A historiografia literária brasileira: História e Perspectivas. Disponível em: http://www.ucm.es/info/especulo/numero34/hisliter.htm. Acesso em: 24 out. 2011. 18 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 MELLO, Osvaldo André. A palavra inicial. Divinópolis: Movimento agora, 1969. MELLO, Osvaldo André. Revelação do acontecimento. Belo Horizonte: Imprensa oficial, 1974. MELLO, Osvaldo André. Cantos para flauta e pássaro: 3 estudos de poesia. Belo Horizonte: Imprensa oficial, 1983. MELLO, Osvaldo André. Meditação da carne. Belo Horizonte, 1997. MELLO, Osvaldo André. Ilustrações. 2 ed. Divinópolis: Sidil, 1998. MELLO, Osvaldo André. As mesmas palavras. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2012. QUEIROZ, Maria José de. Prefácio In: BARBOSA, Rui. Cartas à noiva/ Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa: Civilização Brasileira, 1982. SCHNITMAN, Dora Fried. (Org.) Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Trad. Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. SOUZA, Eneida Maria de. Janelas Indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. 19 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 LUIZ FERNANDO CARVALHO: UM OLHAR DIFERENTE ONDE TUDO PARECE IGUAL Andrea C. Martins (Doutora em Estudos de Linguagem - Unimontes) RESUMO - O ensaio aborda o olhar e a consequente criação do diretor Luiz Fernando Carvalho que, embora tenha quase toda a sua obra produzida para televisão, sempre fugiu dos clichês, das fórmulas fáceis e repetitivas que costumam dar a tônica nos programas destinados a esse veículo. Estudioso aplicado de técnicas e produções cinematográficas de épocas e estilos diversos; amante do teatro, da pintura e da cultura popular, recriador contumaz de obras literárias, Carvalho defende e busca o que ele chama de uma televisão comprometida com a reeducação do telespectador, a partir das imagens e dos conteúdos. Comumente chamado de “maestro”, Carvalho rompe a barreira criativa geralmente imposta pelos índices de audiência, para impor uma estética diferente onde tudo, ou quase tudo, parece igual. PALAVRAS-CHAVE – Luiz Fernando Carvalho, televisão, estética. ABSTRACT - The test on the look and the consequent creation of the director Luiz Fernando Carvalho, although most of his work produced for television, always ran away from clichés, the easy and repetitive formulas that usually give the keynote in the programs designed for this vehicle . Studious applied techniques and film production times and different styles; theater lover, painting and popular culture, contumacious recreative literary works, Carvalho defends and seeks what he calls a committed television with the re-education of the viewer, from the images and content. Commonly called "maestro", Carvalho breaks the creative barrier usually imposed by audience ratings, to impose a different aesthetic where everything, or almost everything looks the same. KEYWORDS – Luiz Fernando Carvalho, television, aesthetic. A imagem inicial, em tela inteira, é de um dorso masculino, nu, negro, suado, e de braços que se movimentam, ressaltando os músculos volumosos. Para quem vem acompanhando os capítulos da narrativa da qual o fragmento faz parte, ambientada em fazendas de cacau da Bahia, em que diariamente se veem peões em atividades braçais, parece não haver dúvida de que se trata de mais uma cena de trabalho árduo. Há uma novidade, entretanto, a trilha sonora, geralmente composta de canções brasileiras de temática regional, é aqui substituída por uma valsa de Strauss. Lentamente, a câmara se abre para desconstruir a primeira impressão: nem peão, nem trabalho rural, trata-se de um homem exercitando-se em um aparelho de musculação. O cenário é, pois, uma academia de ginástica, por onde entra o personagem Damião, o jagunço vivido pelo ator Jackson Antunes, em tudo destoando do ambiente: 20 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 bigodes fartos, cabeleira parcialmente escondida sob um chapéu de caubói, camisa cuidadosamente abotoada e arrumada dentro de calças jeans desbotadas. O cinto e as botas de couro dão o acabamento. Sempre em câmara lenta e ao som de Strauss, Damião anda pelo ambiente, causando o evidente contraste entre sua figura e a dos usuários da academia. A trilha sonora, por sua vez, destoa tanto do personagem, quanto do cenário, e reforça o estranhamento que a cena provoca. Não por ser exótica, mas por ser poética, porque em todo o seu estranhamento, a valsa de Strauss e o ritmo lento do movimento da cena conferem poesia ao quadro. Dando sequência à ação, Damião para em frente a Eliana, a moça fina interpretada por Patrícia Pillar, por quem ele deixou a esposa e o emprego de peão para ir para São Paulo, onde está agora. A câmara vai do rosto rústico, queimado de sol, e o olhar sério, descontente e decidido de Damião para os olhos azuis no rosto branco de Eliana, iluminado por um sorriso largo e apaixonado, mas que vai murchando aos poucos, à medida que ela lê o semblante do amante. Abruptamente, a música é suspensa. Sem dizer nada, Damião dá as costas a Eliana e vai saindo da academia. Agora são seus passos que ressoam pesados no ambiente. Eliana levanta-se e vai atrás dele. Trata-se de uma cena da novela Renascer, (Globo, 1993), escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Apenas mais uma entre centenas de outras cenas que compõem essa trama de 213 capítulos, e que chama a atenção do telespectador mais atento pelo trabalho minucioso com que foi construída, arquitetada em seus mínimos detalhes, porque cada detalhe tem uma função na construção do sentido. Não me aprofundarei na análise da cena, porque este não é o objetivo. O exemplo serve apenas para introduzir algumas palavras sobre um diretor que mesmo em se tratando de novelas, tradicionalmente o programa mais popular da TV, nunca se contentou em apenas contar uma história, mas que sempre procurou recheá-la de – pelo menos algumas – cenas 21 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 elaboradas com o máximo de requinte estético possível, considerando as limitações que o ritmo intenso de produção impõe ao processo de criação dentro desse formato. Foi com cenas como essa que a novela Renascer, assim como os capítulos iniciais de O rei do Gado (1996) e Esperança (2002), folhetins posteriores em que se repete a dupla formada por Ruy Barbosa e Carvalho, chegou a resultados ao mesmo tempo acessíveis e sofisticados, cumprindo com êxito o objetivo de ser atraente às grandes massas – os índices de audiência superaram a média esperada para o horário – porém indo além, a ponto de agradar também a crítica especializada. Retomando a observação de Fiorin (2008), segundo a qual a identificação do sujeito com o objeto artístico pode se dar pelo conteúdo ou pela expressão; considerando ainda a observação de Duarte de que em meio às atividades do cotidiano o telespectador não costuma estar disposto a programas que “exigem sua total atenção, o que é incompatível com o ambiente familiar” (DUARTE, 2004, p. 58); e por fim, levando em conta o interesse que as narrativas de temática rural escritas por Ruy Barbosa sempre despertaram no público desde Pantanal, parecenos pertinente supor que o conteúdo de Renascer tenha sido, em princípio, o responsável maior pela empatia com o grande público. O efeito sensorial causado pelo plano da expressão, no entanto, certamente acrescenta um algo a mais a todos quantos assistirem às cenas, pois ainda que parte dos telespectadores não consiga identificar ou explicar o que seja esse algo a mais, a beleza natural ressaltada pelo modo de olhar da câmara fala por si mesma. Já o leitor criticamente consciente, que sabe que há um arquiteto por trás de cada quadro, de cada janela aberta, geralmente identifica-se, primeiro, com as escolhas expressivas, com a linguagem utilizada pelo diretor. Pelo menos é o que se depreende dessa fala da pesquisadora Ivana Bentes, durante entrevista com Carvalho, por ocasião do lançamento do filme Lavoura 22 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Arcaica (2001): “... Renascer dá até uma legitimidade mesma, digamos, artística para uma linguagem de televisão na hora em que apareceu, que foi muito importante...” (BENTES, 2002, p. 30). Em outro momento da conversa, ela afirma se lembrar de todos os primeiros capítulos da novela, tão forte lhe ficou a impressão causada especialmente pela fotografia de Walter Carvalho: “tem alguns elementos ali que eu acho que já estavam marcados e que vão reaparecer no [filme] Lavoura...” (Idem, p. 29) Tanto a novela quanto o filme mencionados são, na verdade, respostas aos longos anos de estudos e experiências com a linguagem cinematográfica, empreendidos pelo diretor: Com apenas um curta e um longa-metragem em sua bagagem cinematográfica, pode-se dizer que Carvalho se formou em cinema para atuar em televisão, já que em seu currículo, até o momento, predominam as produções para TV: um documentário, quatro novelas, um especial musical, quatro casos especiais, cinco minisséries, duas séries e quadros para o Fantástico, citando apenas as atuações como diretor geral. Daí, talvez, o fato de muitas vezes a linguagem que ele utiliza em seus trabalhos televisivos ter sido comparada (ou confundida) com a linguagem cinematográfica, o que, aliás, ele contesta: No intuito de elogiar, as pessoas falam que meu trabalho na televisão é cinema, mas eu discordo. Agradeço o elogio, mas discordo. Cinema para mim é uma coisa e televisão é outra, e a diferença é uma questão de linguagem. Em nenhum de meus trabalhos para TV, tive o desejo de assistir aos episódios emendados uns aos outros, partes com partes, como se formassem um filme, porque sabia, de antemão, que não constituiriam um filme. Pelo menos um “filme” que me interessaria realizar. (CARVALHO, 2008, s/p) O que Carvalho sempre defende – e a seu modo, pratica – é um respeito maior com o telespectador, uma nova “missão” para a TV, que esteja “diretamente ligada à educação, a uma reeducação a partir das imagens e dos conteúdos.” (CARVALHO, 2002, p. 31). Esse compromisso maior com o aspecto criativo da obra, que lhe confere o status de diretor autoral, é, sem dúvida, herança do Cinema Novo, - pelo qual ele confessa 23 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 ter sido fortemente influenciado, especialmente por Glauber Rocha, representante maior do movimento que revolucionou o cinema brasileiro nas décadas de 1950 e 1960. “O Cinema Novo foi a versão brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade e da criação.” (XAVIER, 2001, p.57) Essa política de autor, ainda segundo Ismail Xavier, é resultado do diálogo empreendido pelo Cinema Novo, e depois pelo Cinema Marginal, com um movimento empreendido por realizadores de diferentes partes do mundo - Welles, Antonioni, Pasolini, Rossi, Resnais, Cassavetes, entre outros - que optaram por se opor ao cinema clássico e predominantemente industrial, pelo exercício livre da autoria, pela criação de novos estilos, de forma a revitalizar a cultura cinematográfica: “foram cineastas cuja forma de exercer a sua consciência da técnica, da forma e dos modos de produção ensejou um exercício da autoria que Pier Paolo Pasolini sintetizou muito bem em sua noção do moderno como um ‘cinema de poesia’’’ (XAVIER, 2001, p. 14). É, portanto, a experiência e a visão estética desses revolucionários da linguagem do cinema que estão na base da formação de Luiz Fernando Carvalho, tanto pelo contato através do Cinema Novo, quanto pelo contato direto com a filmografia dos grandes mestres. “Sem dúvida nenhuma, eu tinha consciência de que estava me alimentando para um dia conseguir me expressar”, diz ele. (CARVALHO, 2002, p. 22) A estreia oficial em televisão foi como assistente de direção na minissérie Grande Sertão: Veredas (1985). Antes disso, porém, a amizade com o também diretor de TV Maurício Farias levou-o a fazer alguns estágios em cinema: um pouco de tudo, como ele mesmo conta (2002, p. 15), incluindo aí técnica de som, assistente de montagem e assistente de direção. Ao lado dessas experiências iniciais, ele agregou imersões nas melhores fontes de teoria e prática cinematográfica, com Sergei Eisenstein, Tziga Vertov, André Bazin, Luis Buñuel, Pasolini, 24 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Luchino Visconti e muitos outros. A disciplina História da Arte estudada durante o curso inconcluso de Arquitetura foi decisiva em sua formação, e a Faculdade de Letras contribuiu para estreitar relações com a literatura e com a escrita de roteiros. Aliado a tudo isso, a dedicação que o fazia, já em Grande Sertão..., debruçar-se sobre cada cena com o esmero de um artesão: Existiam trinta cenas no capítulo e, entre elas, duas que me eram dadas. Eu estudava aquilo, virava noites estudando aquelas duas ceninhas. Para mim aquelas duas cenas era a coisa mais importante do mundo, como exercício da gramática narrativa e de tudo, e eu me debruçava sobre as duas ceninhas talvez até com um entusiasmo exagerado. Mas eu era um jovem de 24 anos, sedento, então neste meu ímpeto cabia virar a noite relendo as teorias de Vertov para aplicar na cena do dia seguinte, era o alimento que eu tinha. (CARVALHO, 2002, p. 10) Pelo pouco que já foi dito aqui sobre o diretor, não é difícil entender de onde vem a singularidade presente na sua obra, mesmo nas mais populares realizações que são as novelas. Pode-se dizer que Carvalho sempre procurou e conseguiu fugir da “massa indiferenciada” veiculada pela TV, de que fala Machado (1992) e enquadra-se, guardadas as particularidades da linguagem audiovisual, na afirmação de Fiorin sobre os escritores: “Quem escreve um texto literário não quer apenas dizer o mundo, mas recriá-lo nas palavras, de forma que, nele, importa não só o que se diz, mas também o modo como se diz.” (FIORIN, 2008, p.57) É assim que Carvalho se comporta nos bastidores da televisão: um diretor que não se contenta em apenas contar uma história, mas que procura recriá-la através das imagens, dos sons, do ritmo, e do diálogo com outras formas de expressão artística. Falar em singularidade remete, inevitavelmente, à questão do estilo, que é “o conjunto global de traços recorrentes do plano do conteúdo (formas discursivas) e do plano da expressão (formas textuais), que produzem um efeito de sentido de identidade” (FIORIN, 2008, p. 96). Portanto, quando Ivana Bentes diz que alguns elementos presentes em Renascer irão reaparecer em Lavoura Arcaica, ela não está falando de 25 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 outra coisa senão do estilo que Luiz Fernando Carvalho vem imprimindo à sua obra. Bentes se referia a elementos expressivos da fotografia aplicados a outro ponto que une as duas obras: a temática rural, que pertence ao plano do conteúdo. A terra, aliás, e todas as questões ligadas a ela; a terra enquanto símbolo de mãe, e enquanto sinônimo de brasilidade, é, assumidamente, “o elemento mais primordial” na obra desse diretor, especialmente a partir de Renascer, a primeira direção geral de uma novela, que foi também seu primeiro trabalho após o período em que esteve no Nordeste em busca de lembranças da mãe de quem ficou órfão aos quatro anos de idade. Desse mergulho na região, Carvalho conheceu e internalizou elementos da realidade e da cultura brasileira que vieram à tona em praticamente todos os trabalhos posteriores, especialmente nos casos especiais – A farsa da boa preguiça, Uma mulher vestida de sol – e mais recentemente nas minisséries a partir de Hoje é dia de Maria. Mesmo na recente série Suburbia, cuja temática é essencialmente urbana, a terra está presente nas cenas iniciais gravadas no sertão das carvoeiras de Minas Gerais, e a cultura popular emerge, em plena favela do Rio de Janeiro, num cortejo religioso carregado de sons e imagens do interior do país. A terra e tudo o que está ligado a ela, portanto, fornece ao mesmo tempo os elementos dos planos do conteúdo e da expressão, já que este se ajusta àquele pelas cores, pelos sons, pela luz, e por tudo, enfim. É pela linguagem, portanto, que o estilo de Luiz Fernando Carvalho se faz notar, o que confirma o pensamento de Norma Discini, que, relendo a Retórica de Aristóteles, diz: Aristóteles (384 a.C- 322 a.C) pode ser ponto de partida e de chegada para novas reflexões sobre o estilo, que visem não apenas ao que o texto diz. Considerando, por exemplo, as partes componentes do sistema retórico, a inventio (o conteúdo, de onde se extraem provas e argumentos relacionados ao tema); a dispositio (a maneira de organizar ou planejar as diferentes partes do discurso); a elocutio (as escolhas da expressão que se adequarão ao conteúdo) e a actio (a execução ou atualização do discurso, que supõe timbre de voz e entonação, pausa e ritmo) sabemos que é na elocutio 26 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 que se consideram instaladas as bases do estilo. (DISCINI, 2003, p.16-17) Não é difícil, portanto, encontrar em Lavoura Arcaica, o inconfundível jogo de luz e sombras da fotografia de Walter Carvalho utilizada em Renascer, que faz com que prevaleçam os tons em amarelo e preto, e que se repete em praticamente todas as obras que vieram depois. A imagem, ora excessivamente focada, ora totalmente desfocada e certos enquadramentos e movimentos de câmara que produzem um desvelamento gradual, como a cena citada no início deste texto, são também opções recorrentes na obra de Carvalho. Há, enfim, uma recorrência do olhar que vê – e mostra – a cena, assim como há um cuidadoso trabalho com a própria mise em scène, essa palavra de sentido até certo ponto indefinido, como sugere Aumont, mas que ele resume como sendo “a ‘composição dramática’, a maneira de conjugar, de declinar as figuras no espaço para atingir a expressividade máxima” (AUMONT, 2004, p. 162), e onde entram então todos os elementos constitutivos da cena: o figurino, o cenário, os objetos de cena, a luz, etc. Não podemos deixar de mencionar também a trilha sonora, que é sempre marcante nas obras do diretor, seja pela originalidade e, portanto, pela adequação dos sons ao universo da obra (Lavoura Arcaica,A Pedra do Reino, Hoje é dia de Maria), seja pelo bucolismo causado pelo som característico do vinil em canções antigas de Roberto Carlos (Afinal, o que querem as mulheres e Suburbia), ou pelas inserções de sons e ritmos da cultura popular (Renascer, Hoje é dia de Maria, A Pedra do Reino, Suburbia, entre outras). E, evidentemente, não podemos deixar de mencionar, ainda, todo o hibridismo de culturas, linguagens e épocas que já rendeu ao seu estilo a pertinente definição de barroco, como nessa análise de Ilana Feldman sobre A Pedra do Reino: Na opera mundi de Luiz Fernando Carvalho, tanto em Hoje é dia deMaria como, mais radicalmente, em A Pedra do Reino, a encenação contempla, incorpora e devora, almejando totalizar todas as formas de manifestação artística, que, ao gosto do barroco, cujo sentido literal é “acumulação”, une e mistura cinema, teatro, poesia, pintura, circo, ópera, literatura, 27 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 romance, odisséia, sátira, tragédia, picardias, cordel, maracatu, papangus e novelas de cavalaria. Do popular ao erudito, da artesania à tecnologia, da ancestralidade à busca da nacionalidade, a mão barroca e o “estilo régio” de Luiz Fernando Carvalho orquestram excessos, intensidades, contrastes, júbilos sem limite, jorros declamatórios e diversos registros e linguagens. (FELDMAN, 2007, s/p) Feldman está certa ao dizer que a incorporação de diferentes linguagens estéticas é mais evidente em Hoje é dia de Maria e, principalmente, A Pedra do Reino – à qual Capitu se junta no ano seguinte. Entretanto, muito antes da realização dessas duas obras, já nos primeiros trabalhos que levam a assinatura de Luiz Fernando Carvalho, é possível perceber um flerte recorrente com outras artes, em especial o teatro, a pintura, a literatura (em prosa, em poesia e em cordel) e, sobretudo, o cinema. A origem da intimidade com o cinema, conforme já foi dito, está na raiz da formação profissional. O mesmo se pode dizer da pintura, tema central da História da Arte, disciplina preferida e uma das poucas que ele concluiu no curso de Arquitetura. Quanto à dramaturgia, ele confessa “uma grande paixão pelo teatro como elemento mítico [...] como negação do naturalismo...” (CARVALHO, 2002, p. 52) E a literatura é a arte que está sempre na raiz de seus trabalhos, conforme ele mesmo diz. Já foi dito aqui mesmo neste capítulo que a linguagem televisual, em sua origem, é um híbrido de outras linguagens, especialmente as do rádio, do cinema, do teatro e da literatura. Jacques Aumont (2004) acrescenta ainda a pintura, de quem o cinema (e, por extensão, a televisão) teria herdado não só luz e cores, como a própria noção de quadro, enquadramento, limitação do que vai ser apresentado. Portanto, apenas dizer que Luiz Fernando Carvalho dialoga com outras artes pareceria lugar comum. Acontece que o diálogo que ele empreende com tais linguagens supera o que seria uma simples questão de forma embutida no conceito de hibridismo enquanto origem da linguagem televisual. O que se vê em suas obras é um diálogo através do qual se busca a expressividade mesma de cada linguagem, expressividade esta 28 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 que atinge o seu máximo a partir de Hoje é dia de Maria, chegando aos “excessos e intensidades” de A Pedra do Reino – mencionados por Feldman – e Capitu, a ponto de causar algum estranhamento em parte do público. A aproximação com outros gêneros, entretanto, já se faz presente em obras do início da carreira do diretor. É possível encontrar traços fortemente teatrais nos casos especiais Os homens querem paz (1991), Uma mulher vestida de sol (1994) e A farsa da boa preguiça (1995). A literatura, não obstante ser a fonte para boa parte de sua obra –as exceções talvez sejam as novelas, Os homens querem paz e Suburbia, cujos roteiros são originais – é também elemento intrínseco a muitas delas, especialmente no gênero cordel, como em Os homens querem paz, A farsa da boa preguiça, Hoje é dia de Maria e A pedra do reino, apenas para citar algumas. A obra de Cândido Portinari foi inspiração para a concepção visual de Hoje é dia de Maria, onde a presença da pintura, conforme abordamos no artigo As cores de um sertão em preto e branco, “especialmente no céu do cenário da narrativa é tão forte que, misturada a outros objetos de cena, ao figurino e à própria atuação dos personagens, deixa a nítida impressão de que cada cena foi construída com o esmero de quem pinta um quadro à mão.” (PEREIRA, 2009, p.39-40) Também em Lavoura Arcaica, a presença de elementos pictóricos foi bastante ressaltada pela crítica, e o próprio diretor admite influência de “toda a pintura tenebrista espanhola [...] com uma predominância dos fundos negros e a presença dos dourados, que também dialoga com Rembrandt. As figuras alongadas de El Greco entram por Caravaggio, Tziano, Van Gogh, Degas, Munch, Millet, Cézanne...” (CARVALHO, 2002,p.101) Ao falar das obras assinadas por Carvalho – ou por qualquer outro diretor de cinema e TV – não podemos nos esquecer de que estamos falando de obras audiovisuais, cuja elaboração é coletiva e, portanto, recebe contribuição de diferentes criadores. Mas no caso desse diretor 29 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 especificamente, pelo estatuto de autoral a que já nos referimos, todas as etapas de criação passam pelo seu crivo, e seu método de trabalho envolve uma minuciosa busca pela sintonia perfeita entre os membros da equipe, que quase sempre é a mesma em diferentes trabalhos. E a busca de sintonia passa invariavelmente pela imersão de seus colaboradores – dos atores à equipe técnica – no universo da obra a ser criada, às vezes com uma antecedência quase exagerada. A luz e o enquadramento de Lavoura Arcaica, por exemplo, foram conversados com Walter Carvalho durante cerca de seis meses, conforme conta o diretor. Para o mesmo filme, o elenco literalmente “morou” na fazenda que serviu de locação durante três meses antes das filmagens, a fim de incorporar os respectivos personagens, compartilhando espaços da casa e desenvolvendo as atividades inerentes a cada um, como preparar e plantar a terra, ordenhar ovelhas, etc. A equipe de produção de Hoje é dia de Maria foi submetida a palestras sobre a obra de Portinari, o mesmo acontecendo com a equipe de Capitu em relação a Dom Casmurro, de Machado de Assis. Já para A pedra do Reino, Carvalho selecionou todo o elenco entres atores nordestinos, muitos deles moradores locais, por trazerem internalizados o espaço e a cultura representados por Ariano Suassuna, mas também levou sua equipe técnica para interagir com o reino de D. Pedro Dinis FerreiraQuaderna. Enfim, o que fica dessa breve imersão no método de trabalho e na obra de Luiz Fernando Carvalho, é que o título de maestro lhe cai bem, pois é como maestro que ele comanda a orquestra em que transforma cada obra que é oferecida ao público. É o que diz Walter Carvalho1, cujas palavras pegamos de empréstimo para encerrar este artigo: O cinema do Luiz é um cinema de orquestra, é um cinema de um cara que, de posse do seu roteiro, que seria a partitura, quando ele levanta a batuta, um conjunto de coisas, de músicos, de cantores, de cores, de cordas, de metais, se 1 Extraídas do Making-off (“Nosso diário”) de Lavoura Arcaica. 30 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 juntam num ritmo, numa velocidade, numa cor, num compasso, num diapasão. (CARVALHO, 2007, s/p) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUMONT, Jacques. O olho interminável – cinema e pintura.(Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2004. BENTES, Ivana. 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Revista USP – Dossiê PEREIRA. Andrea C. Martins. As cores de um sertão em preto e branco. In. OLIVA. Osmar Pereira (org.). Os nortes e os sertões literários do Brasil. Montes Claros: Unimontes, 2009. Pg. 37-46 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. 31 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 LUIZ VILELA NO ENSINO FUNDAMENTAL: ALTERNATIVAS METODOLÓGICAS E FORMAÇÃO DE LEITORES Angela Nubiato Lopes (Mestranda/UFMS) RESUMO: O presente artigo tem como objetivo expor o trabalho com o método comunicacional cuja fundamentação teórica está no livro de Maria da Gloria Bordini e Vera Teixeira Aguiar, Literatura: a formação do leitor alternativas metodológicas (1993). O livro traz a exploração de problemas referentes à formação de leitores literários. O aporte literário para aplicação dessa metodologia foram os contos do escritor Luiz Vilela, distribuídos em 16 antologias voltadas para o público infanto-juvenil. Buscamos, através do desenvolvimento da proposta, alguns caminhos para propiciar aos alunos, estudantes do 8° ano do Ensino Fundamental, uma formação literária adequada, que abranja e trabalhe com os sentidos globais e os implícitos do texto, adequando-os às situações reais de vida dos alunos. Esses contextos, abordando temas relacionados à juventude, sensibilidade, solidão, incomunicabilidade entre os seres humanos e conflitos existenciais estão representados nas narrativas de Luiz Vilela, que, pela linguagem singela e medida, pela temática real e reflexiva, propiciam elo adequado para o trabalho com a alternativa metodológica estudada. Os resultados da pesquisa demonstraram a importância da aplicação da alternativa e a necessidade de adaptação da mesma ao público direcionado. As obras de Luiz Vilela provocaram grande interesse e motivação nos alunos e trouxeram reflexões relativas à realidade deles despertando uma visão mais crítica e autônoma. Palavras- chave: Literatura; Alternativas Metodológicas; Método Comunicacional; Luiz Vilela. ABSTRACT: This article aims to expose the work with the communication method whose Theoretical Foundation is in the Book of Maria da Gloria Bordini and Vera Teixeira Aguiar, Literature: Formation of Readers Methodological Alternatives (1993). The book presents the exploitation of problems related to formation of literary readers. The literary contribution for this methodology were Luiz Vilela’s tales, distributed in 16 anthologies aimed to children and teenagers. We aimed, through the proposal development, some ways to provide to the 8 degree students of elementary school a proper literary training, that covers and work with the global senses and the text implicits, adapting them to the students real life situations. These contexts, approaching issues related to youth, sensitivity, loneliness, lack of communication between human beings and existential conflicts are represented in Luiz Vilela’s narratives, which, for the simple language, for true and reflective theme, provide a suitable connection with the studied methodological alternative. The research results show the importance of the alternative application and its need for adaptation to the target audience. Luiz Vilela’s work interested and motivated the students and brought reflections related to their reality, awakeing more criticism and self employed view. Key-words: Literature; Methodological alternatives; Communicational method; Luiz Vilela. Introdução O livro Literatura: a formação do leitor - alternativas metodológicas, de Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar, é 32 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 resultado de um extenso trabalho de pesquisa em diferentes instituições de ensino superior e fundamental, que foi realizado nos anos de 1983 à 1986 com caráter experimental e que, ao longo das aplicações, foi sendo melhorado. A pesquisa investigava as condições e problemas do ensino de literatura no Rio Grande do Sul, pelo centro de pesquisas literárias da PUC-RS que contou com apoio financeiro do INEP/MEC. Concebida de modo a dar conta da realidade das salas de aula e, ao mesmo tempo, trazer dessas as contribuições práticas que pudessem alicerçar a investigação universitária para alternativas metodológicas nessa área. A proposta se desenvolveu em dois planos paralelos. Foram entrevistados 240 alunos e 80 professores de escolas públicas e particulares, de 1° e 2° graus de Porto Alegre. A intenção era verificar como era trabalhado ensino de literatura em salas de aula. Essa parte da pesquisa teve como foco o levantamento do processo percorrido pelo ensino de literatura. No outro plano da pesquisa ocorreu a elaboração de alternativas metodológicas que seriam as contribuições práticas da pesquisa. Os resultados foram apresentados ao INEP/MEC sob o título Diagnóstico da situação do ensino de literatura no 1° e 2° graus em escolas de Porto Alegre. As conclusões básicas foram à constatação de um crescente desinteresse pelos alunos, conforme o avanço do grau de escolaridade, e um considerável despreparo dos professores quanto à abordagem das obras literárias nos vários currículos escolares. No que se refere aos resultados após a aplicação dos métodos, foi constatado que dos 362 alunos participantes, 294 sujeitos passaram a se interessar pela leitura e pela literatura. A partir da pesquisa e de sua aplicação em universidades e escolas e após o processo de reformulação a que a proposta foi submetida é que as autoras Bordini e Aguiar desenvolveram o livro em que descrevem cinco métodos – científico, criativo, recepcional, 33 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 comunicacional e semiológico. As respectivas alternativas oferecem liberdade para que o professor possa escolher os materiais literários para sua aplicação e visam fazer da literatura uma prática de ensino planejada. Com a metodologia adequada em mãos partimos para a busca de um material literário que pudesse auxiliar nesse processo e encontramos Luiz Vilela, escritor brasileiro que, além de romances e novelas, escreve contos. Essas pequenas histórias, que foram utilizadas nesse estudo, tratam do cotidiano das pessoas. Com linguagem simples, mas carregada de sentidos profundos, os contos levam o leitor à reflexão. Luiz Vilela nasceu em Ituiutaba – MG, no ano de 1942, e foi criado numa família em que todos liam muito. Com 13 anos de idade começou a escrever e, aos 14, fez sua primeira publicação em um jornal de estudantes. O escritor mineiro publicou, até o momento, sete volumes de contos, três novelas, cinco romances e cerca de quinze antologias. A escolha da obra de Luiz Vilela se deu em razão da linguagem concisa e prática, além de poucas personagens, temas que tratam da incomunicabilidade entre as pessoas, conflitos existências, sentimentais e situações cotidianas, o que facilitaria a abordagem e a recepção pelos alunos que se encontram na fase da adolescência. Sanches Neto (2009) discorre sobre a obra do autor: Uma das marcas de sua ficção são os fartos diálogos, próprios e uma percepção mais profunda das experiências cotidianas, de uma maneira interiorana de habitar o tempo. A sua é uma literatura sem pressa, que devassa as situações narradas, criando uma temporalidade mais espessa, extremamente original numa literatura contemporânea baseada na rapidez [...] Nele, a linguagem tem medidas humanas (SANCHES NETO, 2008, p. 202-203). A exploração do cotidiano, conflitos envolvendo situações corriqueiras da vida de personagens aparentemente simples, de temas que abordam a visão de pequenas cidades ou o confronto entre a partida de um pequeno para um grande centro, do foco muitas vezes voltado para o mundo rural, da criação de histórias envolvendo os maus tratos aos animais, são perspectivas tratadas nas obras de Vilela: 34 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 [...] a simplicidade enganosa; a representação do cotidiano das pessoas comuns; a atmosfera rarefeita que se aproxima da crônica literária; o silêncio; a crise de comunicação; o enfraquecimento do narrador, quando não a sua ausência; a narrativa desdobrando significados ocultos, como o iceberg proposto por Hemingway; o homem na circunstância de seu momento histórico, quase sempre o do nosso presente; o conto pressupondo um passado, sobre o qual o diálogo reflete, e propondo um futuro, que o conto escamoteia, deixando-o em aberto. (RODRIGUES, 2006, p. 291). Luiz Vilela engloba em sua obra uma infinidade de existências, impele o leitor a conversar, por meio de sua escrita, com outros autores, como Hemingway, Joyce e Kafka, entre outros, esboçando através de sua escrita única, sensibilidade e crítica. Essa perspectiva inquieta o leitor, universaliza as sensações, o que torna o autor tema constantemente atual, porque sua obra é focada na reação, no conflito que o ser humano tem ao vivenciar os fatos cotidianos. Essas reações muitas vezes são demonstradas por meio das confusões internas das personagens e são descritas por meio de diálogos diretos na obra do autor. E essas reações são recorrentes e sentidas por qualquer ser humano: Nesse sentido, os contos de Luiz Vilela representam a tentativa do homem urbano desdobrar-se dentro de suas aflições, complexidades, isolamentos, na busca de resolver-se, de encontra-se. Se, assim, a identidade é um tema central na obra de Luiz Vilela, o tema, muitas vezes, tem por protagonistas crianças ou jovens em momentos cruciais de sua formação, da definição de seu caráter, na descoberta da crueza do mundo e do modo pelo qual devem enfrentar a alteridade com a qual se confrontam. É no desnudamento das faces que compõem a estrutura social, utilizando-se de uma linguagem simples, objetiva e totalmente expressiva e significativa que Luiz Vilela propicia ao leitor o contato com as ideologias sociais e uma reflexão das mesmas, promovendo, consequentemente, a transformação do aluno, enquanto sujeito leitor (MACHADO, 2015, p. 42-43). A linguagem simples utilizada nos contos confronta-se com a profundidade do texto. Essa complexidade na absorção e entendimento dos sentimentos, a exposição das manobras sociais para inibir nas personagens na exploração dessa interioridade obscura que são os 35 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 pensamentos, as sensações, a nítida impressão de que há uma ideologia que impõe os costumes, o modo de viver e sentir, estão presente em Luiz Vilela e "vale lembrar ainda que essa simplicidade de linguagem é uma herança de suas experiências infantis, as quais o autor se mantém fiel." (SANCHES NETO, p. 205, 2008). Embora seus contos sejam elaborados com linguagem simples, de uso cotidiano, eles promovem um diálogo profundo, incitando no aluno uma reflexão crítica que pode ser explorada pelo professor. A inserção dos contos de Luiz Vilela, no Ensino Fundamental, foi realizada em conjunto com a aplicação do método proposto por Bordini e Aguiar (1993). A linguagem singela e medida, a temática real e reflexiva, propiciou elo adequado para desenvolver uma alternativa metodológica significativa de ensino que auxiliou na promoção do gosto pela leitura do texto literário. Mediação pedagógica utilizando o Método comunicacional O método comunicacional estrutura-se em torno da valorização linguagem, proposta que o coloca como constituinte dos fenômenos culturais, e, portanto, exteriorização do pensar. As autoras fundamentam seus estudos nos postulados de Jakobson (1969)2, para quem a comunicação é constituída de atos comunicacionais que compreendem o remetente, a mensagem, o destinatário, o contexto, o código e o contato, que, assumindo ordens hierárquicas diversificadas, determinam a intenção do remetente com o destinatário. Jakobson (1969) reitera que todo ato comunicativo perpassa pelo sistema de um emissor (remetente) que enviará a alguém (destinatário) por meio de um sistema de signos (código) e de veículo de comunicação (canal) a partir de uma temática comum (contexto) aquilo que deseja transmitir (mensagem). 2 JAKOBSON, R. Linguística poética. Cinema. São Paulo: Cultrix, 1969. 36 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Cada elemento comunicacional é pensado e estruturado a fim de alcançar o objetivo comunicativo, portanto, assume funções diferentes em determinados contextos, denominadas de: denotativa (o tema ou aquilo que se fala – contexto), emotiva (o remetente e sua disposição para emitir algo a alguém), conativa (aquele que é afetado pela mensagem emitida – destinatário), fática (o elemento que possibilita a veiculação da mensagem – canal), metalinguística (o sistema de signos que constroem a mensagem – código) e a poética (aquilo que comunica – mensagem). Nesse sentido, esses elementos comunicacionais são dispostos para que o remetente consiga, por meio de uma motivação, interagir com os demais. Um ensino de literatura por meio do método comunicacional centrase na busca de desvendar outros elementos que fazem parte da construção significativa da narrativa, como a análise metalinguística, os objetivos fáticos, o seu teor referencial, o modo como os signos são dispostos, explorando assim, a apreensão das ideias principais, da aquisição do vocabulário e da identificação historiográfica, comumente observada no trabalho com o texto literário. A avaliação desse método é qualitativa, uma vez que deve ser feita constantemente dentro do processo educativo, sendo capaz de constatar se os estudantes conseguem discernir textos em linguagens variadas, observando suas particularidades e suas intenções nos processos comunicativos. Constituem-se etapas de desenvolvimento do método comunicacional o contato com textos que comuniquem um fato individual ou social; a identificação dos elementos do jogo comunicativo; a análise das funções linguísticas expressas nos textos comunicativos; o exame das formas de manifestação da função predominante e o cotejo dos textos quanto à predominância de funções linguísticas. 37 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 O método comunicacional produz sujeitos capazes de perceber a vida como um jogo de comunicações em que circulam mensagens emitidas com certas intenções, recebidas através de um filtro também intencional, em que influenciam o canal, o código e o contexto a que estão vinculadas (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 154). Por ser um método analítico é necessário observação e mediação para que as ações não recaiam em atividades mecânicas pautadas em esquema teórico isolado da prática comunicativa global. È necessário considerar todos os elementos analisados sob um contexto de vivência social e significativa para o aluno. Aplicação do Método Comunicacional No método comunicacional3 do currículo por áreas, o conteúdo recaiu na literatura como expressão comunicacional da sociedade. Os materiais utilizados foram os contos: “Feliz Natal” e “O suicida”. O conto "Feliz Natal" apresenta a história de um homem cheio de mistérios que sai de sua casa no meio da noite de natal para buscar uma encomenda. Ele se disfarça e, no caminho, tenta se desviar de todas as pessoas para não ser reconhecido. Depois de pegar a encomenda que foi buscar, volta rapidamente para seu prédio onde tem uma surpresa: E assim, bufando de cansaço e exausto emocionalmente, chegou ao décimo andar onde morava para descobrir que, exatamente agora, na última etapa de sua caminhada o maior dos azares o esperava: a porta do apartamento vizinho, estava aberta e havia gente na sala conversando [...] chorou de raiva. (VILELA, 1979, p. 19). Após essa emoção, o homem é salvo por um acidente de carro, ocorrido na rua, que faz com que todos os ocupantes do apartamento vizinho corram para as janelas e escadas, deixando o caminho livre para que ele pudesse voltar à segurança de seu apartamento e assim abrir o 3 As descrições do método fazem parte da obra de Bordini e Aguiar e as reproduções nesse artigo são pautadas nas descrições das autoras mesmo quando não explicitado. 38 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 pacote que havia buscado e que continha um vinho e um pote de azeitonas. O conto “O suicida” descreve a história de um homem que liga para uma rádio dizendo que alguém vai se suicidar. Logo a história se prolifera e na frente do edifício citado pelo homem se amontoa uma multidão. As pessoas ali reunidas discutem sobre a possível tragédia: O magrinho voltou para fora: "O cúmulo do azar é se um freguês me chamar na hora exata que o sujeito pular." O velho olhou para dentro da loja para ver de quê que era e ficou mascando as gengivas, depois voltou a olhar para o alto do edifício. Olhou as horas. " Ainda tenho de ir longe daqui", falou; "Até as cinco e quinze eu espero; se até a essa hora não acontecer nada, eu vou embora, não posso perder tempo". Quando parava de falar, mascava mais depressa ainda. "Bom se a gente tivesse um binóculo aqui", falou o magrinho (VILELA, 1983, p. 122). Ao final do conto o que é esperado não acontece, ninguém pula, só a multidão que continua a discutir sobre o suicídio, esperando ansiosa, como se a ocasião fosse um espetáculo, que a tragédia aconteça. O objetivo foi propor à classe textos literários para análise dos procedimentos artísticos associados à denúncia e reivindicação social. Quanto aos procedimentos didáticos, foram passados aos alunos dois vídeos abordando o tema sobre direitos humanos e o código de defesa do consumidor. Ocorreu uma discussão sobre os temas abordados nos vídeos. Após a conversa, a professora propôs que os alunos realizassem uma pesquisa via internet ou meios aos quais eles tivessem acesso, sobre Código de Defesa do Consumidor e direitos humanos, para que pudessem discutir o tema posteriormente. Em outro momento de interação os alunos relataram à professora a percepção do Código de Defesa do Consumidor como uma ferramenta que pode ser utilizada no dia a dia, mas que não é empregada por grande parte das pessoas, seja por falta de conhecimento ou por falta de vontade de buscar os direitos que lhes são destinados. 39 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Em relação à pesquisa sobre os direitos humanos, os alunos relataram que os cidadãos têm muitos direitos, porém, esses não são respeitados e que a própria população não cobra um posicionamento político, social para que estes sejam cumpridos e muitas vezes esses direitos são suprimidos. Com base nessa discussão é que a docente dramatizou o conto "Feliz Natal", utilizando um terno preto, montando um cenário com pouca luz, exprimindo as características da personagem como a perna manca e a demonstração dos sentimentos de medo e pavor. A professora leu alguns trechos em voz alta, e ao final do conto, instigou que os alunos identificassem quais os elementos que estavam guardados naqueles embrulhos e perguntou aos alunos, qual o motivo do disfarce da personagem, de seu medo e do mistério envolvendo toda a história. Os alunos expressaram reações animadas, empolgadas e curiosas diante das respostas de todos os envolvidos, solicitando constantemente a revelação do conteúdo dos embrulhos. O mistério foi mantido com a promessa de resolução na próxima semana. Na aula seguinte, já sem estar caracterizada, a docente retomou o assunto abordado na aula anterior, aguçando a mesma curiosidade nos alunos. Como nenhum aluno acertou qual era o conteúdo dos embrulhos, a professora revelou que havia o vinho e o pote de azeitonas. A revelação causou frustração nos alunos que não entenderam o significado de a personagem ter que esconder aqueles elementos. A decepção fez com que os alunos levantassem a hipótese de perguntar ao escritor Luiz Vilela qual o motivo de uma personagem ter que se esconder e ter tanto medo para comprar um vinho e um pote de azeitonas. Nesse momento, observando todas as reações, é que a docente interveio trazendo para a discussão o questionamento sobre a data de publicação do conto e o que estava acontecendo no Brasil nesse período. 40 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Sem dizer qual era o período, narrou alguns acontecimentos, expondo o regime militar no qual que havia toque de recolher, esboçando um sistema repressor para aqueles que desejassem combater o governo e dizendo que as medidas supressoras da liberdade foram sentidas principalmente nas capitais e que nas cidades interioranas a percepção desse sistema não foi tão intensa. Nesse momento, a professora destacou a questão da liberdade de expressão e, assim, entrou na literatura de Luiz Vilela, explicando que o conto na verdade era uma denúncia velada sobre esse período em que a liberdade para escrever era cerceada e que o autor não poderia escrever a denúncia de forma mais clara sob pena de não ter seu livro publicado. Uma aluna, interpelando a professora, e se expressando com emoção, disse ter descoberto a chave do mistério. O conto se tratava do período da ditadura e que ela havia entendido o sentido do texto, propondo-se a explicar aos amigos a sua visão. Muitos pontos, após a descoberta da aluna, foram tratados pelos colegas de sala, como o medo da personagem em ser identificada e denunciada e até mesmo presa e torturada. Discutiram a tensão e a angústia que pairava sobre a época, resultando na falta de liberdade de expressão e na repressão dos direitos. O vinho foi colocado como fator embriagante e, portanto, alienante sobre a realidade e a azeitona como algo tão pequeno como era a liberdade naquela época. A questão sobre a liberdade de expressão e sobre a repressão dos direitos foi retomada em aula posterior para propor uma discussão sobre o que seres humanos fazem quando têm liberdade para expressar suas ideias. Neste momento, foi promovida a atividade de leitura do conto "O suicida". A atividade foi desenvolvida de forma que os alunos divididos em grupos de no máximo quatro pessoas para realizar a leitura do conto. Os contos deveriam ser organizados segundo a estrutura original do texto, já que estavam desorganizados, os parágrafos haviam sido recortados e 41 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 misturados. Para isso, foram dadas a cada grupo cartolinas em que deveriam anexar e organizar em sequência as partes do conto. Sobre a identificação dos elementos do jogo comunicativo, depois de realizada a leitura dos contos, a professora propôs correlação dos textos lidos, colocando um esquema no quadro. Esse esquema foi desenvolvido em relação aos contos "Feliz Natal", "O suicida" e aos temas sobre direitos humanos e Código de Defesa do Consumidor. Os alunos deveriam refletir sobre questões como: Quem? A quem? O quê? Através de quê? Quais as regras para x funcionar? Sobre o quê? Os alunos, em conjunto com a docente, refletindo sobre os contos e os temas chegaram à conclusão de que o indivíduo quando tem liberdade, como no conto "O suicida", não sabe utilizá-la em seu favor. Ao invés de aproveitar a rádio para passar informações de utilidade pública, que pudessem auxiliar a comunidade, a via de informação foi utilizada para criar um falso espetáculo. Levantaram também a questão da falta de liberdade, quando as notícias são manipuladas, associando-a ao conto "Feliz Natal". Os alunos observaram a questão do aproveitamento do tempo nos dois contos. No primeiro conto apresentado, apenas uma fração da noite faz com que a personagem desenvolva toda sua história, no outro, a multidão perde a tarde toda esperando ocorrer um suposto suicídio. Ao final, os alunos produziram alguns textos e compararam suas escritas observando as intenções comunicativas de cada narrativa. 4.4.1 Método Comunicacional- análise A análise do método comunicacional incidiu na literatura como expressão comunicacional da sociedade. A proposta para os alunos foi que fizessem uma relação entre os contos "O suicida" e "Feliz Natal". O primeiro conto narra uma suposta tentativa de suicídio que acaba se tornando um grande espetáculo para muitas pessoas; o segundo conto 42 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 descreve a história de um homem que, na tentativa de comemorar o natal, sai em busca de alguns alimentos que possa comprar para a festa, todavia ele não pode ser visto e a tensão toma conta do espaço da história. Os discentes promoveram algumas reflexões por meio de textos elaborados durante a aplicação; uma aluna descreveu que relação entre os contos se dá por meio do aspecto do segredo. No conto "O suicida" há a demonstração do que ocorre quando todos ficam sabendo de um segredo, o que cria um grande espetáculo. Já no conto "Feliz Natal" há todo um cuidado para esconder um segredo. Sendo assim a aluna que manifestou essa impressão diz que "Feliz Natal" é uma metáfora: o homem se esconde junto de uma caixa durante toda a história, e "O suicida", fala sobre a “língua do povo” e, entender o que havia dentro da caixa (azeitonas) representa um possível segredo que ele (personagem) tanto guardava para não cair na “lábia do povo". Outra participante não fez uma relação entre os contos e sim uma conexão do conto "Feliz Natal" com o período histórico em que ele foi escrito, na época da ditadura ocorrida no Brasil de 1964 a 1985. A aluna relatou que a falta de liberdade fazia com escritores "corajosos" publicassem textos com mensagens subliminares falando mal do governo para o povo. Ela relacionou essa época de repressão militar com as lutas atuais pelos direitos e liberdades do povo justificando que esses artistas enviavam esses tipos de mensagens por que "eles queriam tirar aquelas pessoas do poder e terem seus direitos de volta"4. Traçando um paralelo entre o texto de Luiz Vilela e a ditadura, outra participante, discorreu que na primeira leitura o conto não fez muito sentido "no começo, o desfecho do conto não tinha sentido algum, mas ele se passa na época da ditadura onde as pessoas tinham medo de conversar, tinham medo de ser elas mesmas"5. Após essa reflexão a 4 5 Reprodução integral da fala da aluna. Reprodução integral da fala da aluna. 43 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 aluna vê sentido nas atitudes da personagem justificando que a história foi o "modo que Luiz Vilela encontrou de se expressar e libertar sua opinião"6. Na reflexão sobre o conto "O suicida" a aluna resume o conto ao espetáculo provocado pela esperança do povo de que um homem pule de um prédio. Porém o homem acaba não pulando e a aluna relata que "o pior foi que as pessoas ficaram tristes pelo homem não ter pulado"7. Ela relaciona o texto ao contexto atual de nossa sociedade ao dizer que "O conto destaca a mídia e sua repercussão nos dias atuais", fazendo assim uma análise crítica sobre os meios midiáticos e sua influência negativa na vida das pessoas uma vez que temas relacionados a "tragédias" tomam grande espaço nos noticiários. Os objetivos do método foram alcançados quando observamos que os alunos conseguiram assimilar as diferentes formas de comunicação de nossa sociedade, que incorre nos meios midiáticos e na liberdade de expressão individual. Uma vez que a primeira é manipulada para servir uma elite dominante e a segunda é cerceada para alienar a população, a reflexão recai no contexto histórico de abordagem das obras de Luiz Vilela, a qual os alunos compreenderam, discutiram e refletiram sobre possíveis soluções. CONCLUSÃO O trabalho com a metodologia e a inserção da obra de Luiz Vilela no Ensino Fundamental foram contribuições de elevado valor em relação à construção crítica dos alunos. Esses pareciam possuir uma visão alienada da forma como a sociedade se estrutura, privilegiando o sistema em que vivem como o único meio de possibilidade de existência social. Esses alunos por meio da metodologia aplicada, tiveram a oportunidade de despertar uma análise crítica do mundo e desenvolver um gosto pelo aprofundamento da leitura literária. Essa metodologia foi à 6 7 Reprodução integral da fala da aluna. Reprodução integral da fala da aluna. 44 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 ferramenta necessária para que pudessem refletir, confrontar e buscar novas ideias e perceber que seu contexto não é o mesmo que de toda a população. Esses discentes entenderam que a história de nosso país não possui soluções simples, como um "felizes para sempre", e que é necessário busca, empenho e estudo para que a alienação não tome conta de mentes tão jovens. Perceberam o quanto é importante não desistir da aquisição do saber, que há um percurso (método) necessário para que ocorra o conhecimento e não só o acúmulo de informações. O professor, que é a ferramenta mediadora de todo o processo, também foi um grande beneficiado com a pesquisa; deve estar em constante renovação no processo de aquisição do saber, ser um bom leitor, especificamente do texto literário, para que mostre, por meio de sua fala, de suas ações e de sua vivência, o papel fundamental da leitura para a sensibilização, decodificação, e interpretação dos códigos e das ideologias. REFERÊNCIAS BORDINI, M. G; AGUIAR, V. T. Literatura: a formação do leitor, alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. MACHADO, T. K. Literatura, escolarização e práticas de ensino: A recepção dos contos de Luiz Vilela no Ensino Fundamental. Três Lagoas, MS. Tese (Mestrado- Estudos Literários). Orientador Rauer Ribeiro Rodrigues, 2012. RODRIGUES, R. R. 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Durante o desenvolver da história, outros símbolos podem ser associados às passagens da Bíblia, mais precisamente às passagens ligadas aos profetas e ao apocalipse. O próprio Murilo Rubião afirma em suas entrevistas que a Bíblia fora uma de suas fontes inspiradoras para a sua curta obra de criações fantásticas. O conto escolhido para esta pesquisa é o que apresenta maiores inferências intertextuais entre a Bíblia e a ficção fantástica já produzida pelo escritos mineiro. Palavras-chave: “O pirotécnico Zacarias”, Murilo Rubião, Bíblia, Referências, Intertexto. Abstract: When we read the short story "O pirotécnico Zacarias" of the writer Murilo Rubião, easily we are led to associate it with some biblical passages. The story is introduced by a biblical reference of Job, which has the function of anticipate what we will see along the tale. In addition, the name chosen for the main character of the story, Zecharias, is the same name of a lower biblical prophet. During the development of the story, other symbols can be associated with Bible passages, specifically the passages connected to the prophets and the apocalypse. Murilo Rubião said in interviews that the Bible was one of his sources of inspiration for your short work of fantastic creations. The story chosen for this research is the one with larger inferences intertextual between the Bible and the fantastic fiction ever produced by Murilo Rubião. Keywords: "O pirotécnico Zacarias", Murilo Rubião, Bible, References, Intertext. O escritor mineiro Murilo Rubião tinha por hábito a reescritura de seus contos. Alguns chegaram a ter quatro republicações com alterações promovidas pelo autor que abrangiam a substituição de palavras por sinônimos, supressões, alterações de títulos, etc. O conto “O pirotécnico Zacarias” também fora republicado, sendo a primeira vez em 1943, na edição de Abril da revista O Cruzeiro, e a segunda, ocorreu com a publicação da antologia homônima ao conto, em 1974. 8 Graduada em Letras Espanhol pela Universidade Estadual de Montes Claros, atualmente mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários da Universidade Estadual de Montes Claros. 46 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Neste nosso trabalho trataremos das duas publicações e suas especificações correlacionadas ao tema aqui em estudo, que serão as inferências bíblicas possíveis de serem observadas no conto “O pirotécnico Zacarias” e que dão o caráter intertextual à obra. O primeiro ponto que nos chama atenção, e de qualquer leitor assíduo dos contos de Murilo Rubião, é a ausência da epigrafe bíblica na versão de 1943, já que esta é uma marca nos contos rubianos. Porém, identificamos que esta marca só começa a aparecer em sua primeira publicação de contos reunidos, de 1947, O ex-mágico, mas somente em cinco contos dos quinze é que encontramos as epígrafes, sendo que uma aparece nas páginas iniciais da obra e as demais antecediam os contos “Arco-Íris”, “Mulheres”, “Montanha”, “Condenados” e “Família”. Somente a partir de A estrela vermelha (1953) é que todos os contos passarão a ter uma epígrafe bíblica própria individual. A epígrafe bíblica de Jó, XI, pertencente ao Antigo Testamento, introduz o conto na versão de 1974 e o contista não a utiliza em seu sentido de caráter religioso, mas como uma chave de leitura ou ampliação do sentido da narrativa. “E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te julgares consumido, nascerás como a estrela d’alva.” (Job, XI, 17). O livro de Jó é o primeiro dos livros poéticos na Bíblia hebraica, alguns acreditam ter sido esse o primeiro livro a ser escrito da Bíblia. A passagem conta a história de um homem crente em Deus que desfrutava de uma vida de prestígio e posses e pessoas, e que foi subitamente atingido por todos os lados, devastado, sugado até a sua base. Entretanto, sua fé o fez suportar todas as provas, sendo daí a origem da expressão popular “paciência de Jó”. A passagem é um emocionante drama de uma pessoa que vai da riqueza à extrema miséria, e é restituído em dobro por conta de sua fé. 47 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A epígrafe se resume nas questões de fé e esperança, que mesmo diante do mais grave problema, aquele que perseverar em sua fé não haverá problema que o abalará. Neste conto, não só a epígrafe nos faz retomar a Bíblia, mas também o nome de nosso personagem principal, Zacarias. Zacarias é um dos livros mais apocalípticos e messiânicos dentre todos os profetas menores, explora o futuro, o vasto mar inexplorado do desconhecido, que poderá deter alegrias ou terrores. O futuro nos desperta grande interesse, algumas pessoas temem os dias futuros e querem saber que mal podem espreitar no desconhecido; outros consultam videntes e cartomantes na desesperada tentativa de descobri-lo. O profeta Zacarias encorajou o povo judeu a retomar a reconstrução do templo, mas sua mensagem ultrapassou os muros físicos e as questões daquela época. Com uma espetacular imagem apocalíptica, o profeta descreveu com detalhes a vinda do Messias, aquele a quem Deus enviaria para salvar o seu povo para reinar sobre toda a terra. O profeta proclamou uma mensagem comovente de esperança de que o Rei logo chegaria para a salvação de seu povo. Durante todo o conto encontraremos este diálogo com a bíblia, principalmente com as histórias que envolvem os livros de Jó e de Zacarias. Antes de sua morte, o personagem Zacarias do conto de Murilo Rubião, relata que no processo de sua passagem de vida para a morte, ocorreu uma explosão de cores que se confundem com o explodir de fogos de artifícios, mas quando ele relata que: A princípio foi azul, depois, verde, amarelo, e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor. Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou. (RUBIÃO, 1974, p.14) 48 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 O negro, o vermelho, amarelo-esverdeado e o branco são as mesmas cores dos cavaleiros do apocalipse descritos na bíblia, mais precisamente no livro de Apocalipse que revela a devassidão da humanidade e retrata toda a autoridade de Deus. ¹E havendo o Cordeiro aberto um dos selos, olhei e ouvi um dos quatro animais que dizia como trovão: Vem e vê! ²E olhei, e eis um cavalo branco: e o que estava assentado sobre ele tinha um arco: e foi-lhe dada uma coroa, e saiu vitorioso e para vencer. ³E, havendo aberto o segundo selo, ouvi o segundo animal, dizendo: Vem e vê! 4 E saiu outro cavalo, vermelho; e ao que estava assentado sobre ele foi dado que tirasse a paz da terra e que se matassem uns aos outros; foi-lhe dada uma grande espada. 5 E, havendo aberto o terceiro selo, ouvi o terceiro animal, dizendo: Vem e vê! E olhei, e eis um cavalo preto; e o que sobre ele estava assentado tinha uma balança na mão. 6 E ouvi uma voz no meio dos quatro animais, que dizia: Uma medida de trigo por um dinheiro; e três medidas de cevada por um dinheiro; e não danifiques o azeite e o vinho. 7 E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem e vê! 8 E olhei, e eis um cavalo amarelo; e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia: e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte da terra com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra. (BIBLIA, APOCALIPSE, 6, 1-8, p.1814) Os quatro cavalos aparecem quando os quatro primeiros selos são revelados. Eles representam o julgamento divino sobre os pecados e a rebelião dos homens. Os quatro cavalos representam uma antecipação do julgamento final que ainda virá. A imagem dos quatro cavalos também é encontrada no livro de Zacarias, 6, 1-8. Cada cavalo tem uma cor diferente. Alguns entendem que o cavalo branco representa a vitória e que seu cavaleiro deve ser Cristo (porque, mais tarde, Cristo cavalga para a vitória montado em um cavalo branco). Mas como os outros três estão relacionados ao julgamento e à destruição, é muito pouco provável que esse cavaleiro seja Cristo. Os quatro fazem parte do desenrolar do julgamento de Deus, e seria prematuro para Cristo surgir como um conquistador. Algumas interpretações apontam que o cavaleiro branco 49 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 possa ser o falso cristo, o anticristo. Os outros cavalos representam diferentes tipos de julgamento: vermelho para a guerra e derramamento de sangue; preto para a fome; e amarelo para a morte. Mais à frente, o mesmo trecho é repetido no conto logo após o acidente e a “morte” de Zacarias (RUBIÃO, 1974, p. 15). E no parágrafo final do conto, mais uma vez o simbolismo da cor branca é retomada, Amanhã o dia poderá nascer claro, o sol brilhando como nunca brilhou. Nessa hora os homens compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque a minha existência se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva ternura dos meus olhos. (RUBIÃO, 1974, p. 19) Este trecho pode ser associado com a esperança depositada no branco baseada no trecho do livro de Apocalipse, 11 E vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O que estava assentado sobre ele chama-se Fiel e Verdadeiro e julga e peleja com justiça. 12 E os sus olhos eram como chama de fogo; e sobre a sua cabeça havia muitos diademas; e tinha um nome escrito que ninguém sabia, senão ele mesmo. (BIBLIA, APOCALIPSE, 19, 11-12, p. 1929) No cenário da visão de João o céu se abre e Jesus aparece – dessa vez não como um Cordeiro, mas como um guerreiro montado em um cavalo branco (simbolizando a vitória). Jesus veio primeiro como um Cordeiro para ser sacrificado pelo pecado, mas Ele voltará como um Rei vencedor para executar o juízo (BIBLIA, 2 TESSALONICENSES 1, 7-10, p.1695). E para os que se encontram mortos, ou em condição tão desesperadora como a de Zacarias, nem morto e nem vivo, no livro de Tessalonicenses, há a esperança de serem ressuscitados no dia do juízo final, 13 Não quero, porém, irmãos, que sejais ignorantes acerca dos que já dormem, para que não vos entristeçais, como os demais, que não têm esperança. 14 Porque, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também aos que em Jesus dormem Deus os tornará a trazer com ele. 50 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 15 Dizemo-vos, pois, isto pela palavra do Senhor: que nós, os que ficarmos vivos para a vinda do Senhor, não precederemos os que dormem. 16 Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro; 17 depois, nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor. (BIBLIA, 1 TESSALONICENSES, 4, 13-17, p. 1690) Como o próprio Murilo Rubião afirma em suas entrevistas, a Bíblia fora um dos livros bases para a construção de seu conhecimento sobre o fantástico. Apesar de ateu, o autor apresenta um exímio domínio sobre o conteúdo bíblico, realizando com louvor o diálogo entre o conto e as passagens apocalípticas que são consideradas as mais fantásticas e mais abertas para uma diversidade de interpretações. Em entrevista para o jornal Diário de Notícias, Rubião aproxima a função do escritor com a função de um profeta bíblico, sendo que, Os escritores são, de certa forma, profetas dos tempos modernos. Eles fazem parte dessa vaga que incluem os filósofos, sociólogos, etc., que consegue cristalizar as novas noções éticas, as ideologias nascentes. Mas é o escritor, através da literatura, que faz a síntese desse conhecimento e o divulga para o povo. (RUBIÃO, 1975, s/p) Sendo assim, na década de 1940, Murilo Rubião antevia o sucesso do movimento literário fantástico que tomaria conta da América Latina e do mundo, antevendo a explosão e sucesso de vendas de “O pirotécnico Zacarias” em 1974. Além de “pai da literatura fantástica”, tinha o dom mediúnico de escritor à frente de seu tempo. REFERÊNCIAS BIBLIA. Bíblia de estudo e aplicação pessoal. Versão Almeida. Revista corrigida. Editora CPAD, 2004. RUBIÃO, Murilo. Diário de notícias. Porto Alegre, 30 de março de 1975. RUBIÃO, Murilo. O pirotécnico Zacarias. São Paulo: Ed. Ática, 1974. RUBIÃO, Murilo. O pirotécnico Zacarias. In: Revista O Cruzeiro. Rio de Janeiro, abril de 1943. 51 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 VIOLÊNCIA NEGRA: UMA LEITURA DE INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES Cristiane R. Antunes da Silva9 Prof. Dr. Osmar Pereira Oliva10 RESUMO: Este trabalho diz respeito ao meu projeto de pesquisa de mestrado que objetiva investigar nos contos do livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), de Conceição Evaristo, como a narrativa da autora apresenta os tipos de violência praticada contra a mulher negra, a insatisfação das protagonistas e as possíveis superações dos traumas. Na obra, a autora aborda temas como violência de gênero, classe e etnia. As protagonistas são vítimas de agressões físicas e/ou psíquicas pelo simples fato de serem mulheres, negras e pobres. Sendo assim, o uso do adjetivo “negra” caracterizando o substantivo “violência”, no título, quer destacar o intenso grau das maldades cometidas contra as protagonistas dos contos, o que denota, portanto, uma violência funesta, ameaçadora, monstruosa, que assusta e apavora. Por outro lado, o adjetivo expressa o direcionamento da violência praticada por homens contra a mulher negra. PALAVRAS-CHAVE: Conceição Evaristo. Insubmissas lágrimas de mulheres. Violência. ABSTRACT: This work relates to my master's research project that aims to investigate in the tales' book Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), by Conceição Evaristo, as the narrative of the author presents the types of violence against black women, the dissatisfaction the protagonists and possible overshoots of trauma. In the book, the author addresses issues such as gender violence, class and ethnicity. The protagonists are victims of physical and/or psychological, aggression simply because they are women, black and poor. Thus, the use of adjective "negra" characterizing the noun "violence", in the title, wants to highlight the intense degree of evil committed against the protagonists of the stories, which denotes therefore a baleful, menacing and monstrous violence. It scares and it terrorizes. On the other hand, the adjective expresses the direction of violence by men against black women. KEYWORDS: Conceição Evaristo. Insubmissas lágrimas de mulheres. Violence. Maria da Conceição Evaristo Brito é uma mulher negra, filha de lavadeira, que venceu a pobreza, as injustiças sociais e o preconceito. É hoje, doutora em Literatura Comparada. Tem obra traduzida para o inglês e publicada nos Estados Unidos (Ponciá Vicêncio 2008 – que se encontra em processo de tradução para a língua francesa) e textos em antologias estrangeiras. Conforme as observações de Eduardo Duarte (2006, p. 306), as narrativas da autora são voltadas “para a construção de uma imagem do povo negro infensa aos estereótipos e empenhada em não deixar esquecer o passado de sofrimento, mas, igualmente, de resistência 9 Mestranda em Literatura Brasileira/Unimontes – CAPES. Orientador/ Unimontes. 10 52 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 à opressão”. A autora aborda a violência étnica e de gênero, desde o romance de iniciação, Ponciá Vicêncio (2003; 2006 e 2008 - tradução), passando por Becos da memória (2006), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), até Olhos d’água (2014). No primeiro, sua escrita expõe a condição do negro e, principalmente, da mulher afrodescendente, na sociedade pós-escravocrata. O segundo livro é uma narrativa que denuncia a exploração e as injustiças individuais e coletivas sofridas pelos moradores de uma favela durante o processo de desfavelamento. Na obra Insubmissas lágrimas de mulheres, a autora reúne 13 contos intitulados com os nomes das protagonistas de cada drama, os quais abordam temas como violência de gênero, classe e etnia, revelando as desigualdades instaladas na sociedade pós-moderna e trazendo à tona a violência sofrida pelas mulheres afrodescendentes. Essas protagonistas são vítimas de agressões físicas e/ou psíquicas pelo simples fato de serem mulheres, negras e pobres. Por último, temos Olhos d’água, um livro de contos que, assim como os demais, abarca as dificuldades da pobreza e a violência urbana que acometem os afrodescendentes, se diversifica das citadas anteriormente, porque também incorpora homens como protagonistas. Nessa perspectiva, as obras de Conceição Evaristo são consideradas literaturas afro-brasileiras, visto que possuem os três critérios que, segundo Célia Regina dos Santos e Vera Helena Gomes Wielewicki (2009, p. 342), são comumente usados para conceituar a literatura afro-brasileira: “o critério étnico (ligação da obra à origem negra ou mestiça do autor); o critério temático (conteúdo literário relacionado aos temas referentes à cultura afro-brasileira); e o que chamaremos de transgressão (o texto como forma de reivindicação e resistência)”. O tema deste projeto de pesquisa é: Violência étnica e de gênero em Insubmissas Lágrimas de Mulheres de Conceição Evaristo. Sendo assim, o uso do adjetivo “negra” caracterizando o substantivo “violência”, no título 53 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 do projeto, quer destacar o intenso grau das maldades cometidas contra as mulheres afrodescendentes, protagonistas nos contos do corpus selecionado, o que denota, portanto, uma violência funesta, ameaçadora, monstruosa, que assusta e apavora. Por outro lado, o adjetivo expressa o direcionamento da violência praticada por homens contra a mulher negra. As dissertações e teses que têm Conceição Evaristo como objeto de estudo são, especificamente, sobre Ponciá Vicêncio. Por esse motivo – e embora a violência contra as mulheres negras seja tema recorrente nas obras dessa escritora desde seus primeiros contos e poemas publicados nos Cadernos Negros da editora Quilombhoje – escolho Insubmissas lágrimas de mulheres por ser recente, portanto, ainda carente de estudo, mas principalmente por ser esta, dentre as demais obras da autora, a que apresenta maior incidência da violência étnica e de gênero, assunto que me interessa investigar. A problematização que será inquirida é esta: Como a narrativa de Conceição Evaristo, em Insubmissas lágrimas de mulheres, apresenta as formas de violência praticadas contra as mulheres negras protagonistas, e como elas lidam com a violência sofrida? As hipóteses levantadas, que norteiam esta pesquisa, são as de que (1) o cânone literário brasileiro estereotipou as afrodescendentes como mulheres submissas condizentes com a sociedade patriarcal, enquanto as protagonistas de Conceição Evaristo reagem às violências (psíquicas e/ou físicas) sofridas; (2) a mulher negra era tradicionalmente representada do ponto de vista de escritores-homens, Conceição Evaristo é uma escritora negra que se contrapõe a essa visão machista numa perspectiva engajada e de denúncia; e (3) as protagonistas do corpus selecionado reagem às diversas formas de violência sofridas pela mulher negra e as superam. Desde os tempos coloniais, a sociedade patriarcal subjugava a mulher afrodescendente ao homem branco, relacionando-a ao sexo e à sensualidade. Foi dessa forma que ela passou a figurar como personagem da maioria das obras literárias escrita por homens. São 54 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 inúmeros os autores que construíram a figura da mulata como mulher envolvente e sedutora, desprovida de razão e sentimentos, entregue à lubricidade, como a conhecida Rita Baiana, de O cortiço (1896) de Aluísio Azevedo, ou Gabriela, do romance Gabriela, cravo e canela (1958) de Jorge Amado. Conceição Evaristo, mulher negra, é uma escritora que se contrapõe a essa visão machista, que contribui para estigmatizar a mulata como mulher sensual. Seu livro Insubmissas lágrimas de mulheres é uma obra em que as protagonistas rememoram fatos dramáticos, os quais foram vencidos e superados. Como no relato de Aramides, que, no começo da narrativa, é apresentada como uma sobrevivente que rejubilava a partida do marido. Eles tinham um casamento feliz, até que gestos violentos do marido fizeram com que ela desconfiasse de que ele queria levá-la ao aborto. Após o nascimento do filho, a violência aumenta e ele abusa sexualmente da esposa ainda de resguardo: Numa sucessão de gestos violentos, ele me jogou sobre nossa cama, rasgando minhas roupas e tocando violentamente com a boca um dos meus seios que já estava descoberto, no ato de amamentação de meu filho. E dessa forma o pai de Emildes me violentou. E, em mim, o que ainda doía um pouco pela passagem do meu filho, de dor profunda sofri, sentindo o sangue jorrar. [...] Nunca a boca de um homem, como todo seu corpo, me causara tanta dor e tanto asco até então. E, inexplicavelmente [...] Era esse homem, que me violentava, que machucava meu corpo e a minha pessoa, no que eu tinha de mais íntimo. Esse homem estava me fazendo coisa dele, sem se importar com nada, nem com o nosso filho, que chorava no berço ao lado. (EVARISTO, 2011, p. 18). Aramides foi vítima de um homem insensível, violento e desumano. A narrativa aparentemente é polifônica: o narrador-observador dá espaço a um narrador-personagem à medida que o conto vai ficando mais d(t)enso; um recurso que a autora utiliza para sensibilizar ainda mais o leitor. Cada uma das demais personagens dos contos de Conceição Evaristo viveu algo muito doloroso, assim como esse de Aramides. São 55 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 casos de estupro, pedofilia, sequestro, humilhação, enfim, as variadas formas de violência contra mulheres. O conto de Shirley Paixão é narrado pela protagonista. Ela tentara matar o próprio marido. Pai de três meninas as quais ela amava tanto quanto amava suas legítimas filhas. O homem frequentemente violentava Seni, a filha mais velha, desde a morte da mãe dela. A narrativa termina voltando para o presente. Trinta anos após o acontecido a confraria de mulheres havia conseguido seguir em frente. Seni tornara-se médica pediatra. Nas obras canônicas, a sexualidade das personagens negras é frequentemente consensual, enquanto que na obra em questão o sexo é violento e forçado. Essa produção é inovadora, provoca e aguça as reflexões acerca das atitudes (des)humanas. As literaturas de Conceição Evaristo são consistentemente afrobrasileiras, visto que, em linhas gerais, refletem a busca da identidade e da resistência do negro no Brasil, resgatam a ancestralidade africana, denunciam a violência contra as mulheres negras e ainda reivindicam um lugar para a escritora negra desconstruindo a ideia de literatura como instituição masculina, branca ou europeia. Isso posto, vemos que a escrita dessa autora está em confluência com a ideia de Margareth Rago (2000, p. 25) de que o feminismo ataca o “conceito universal de homem, que remete ao branco-heterossexual-civilizado-do-Primeiro-Mundo, deixandose de lado todos aqueles que escapam deste modelo de referência”. Destarte, Rago reafirma que “os principais pontos da crítica feminista à ciência incidem na denúncia de seu caráter particularista, ideológico, racista e sexista”. Nessa mesma direção, Joan Scott (SCOTT, apud MUZART, 2011, p. 17) afirma que a história das mulheres – por tanto tempo excluída e marginalizada – “é sempre uma história política”. É a partir da luta política e social e da resistência das mulheres negras que nasce a literatura afrobrasileira, que vem outorgando voz àqueles que a historiografia literária 56 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 sempre silenciou. Conforme também se verifica em Simone Pereira Schimidt (1999, p.287): “A tarefa que hoje se coloca para nós, (...) é a de re-situar e re-significar os sujeitos que somos, politizando e historicizando o pós-moderno, para efetivamente construirmos uma poética do lugar que seja também uma política do lugar.” Assim sendo, a escrita de Conceição Evaristo se configura no que Nancy Fraser e Linda Nicholson (FRASER e NICHOLSON apud COSTA, 2000, p.68) chamariam de “feminismo pósmoderno”, visto que denota uma “identidade social mais plural e mais complexa, onde o gênero aparece como somente um dentre muitos outros elementos, tais como raça, classe, etnia, idade e orientação sexual”. Os contos de Conceição Evaristo são configurados como uma identidade real da mulher fruto da miscigenação, escritos sob a perspectiva de uma afro-brasileira e não de um homem branco, dando continuidade à linha diaspórica iniciada pela primeira escritora negra abolicionista do Romantismo brasileiro, Maria Firmino dos Reis – a matriarca da literatura afro-brasileira – autora de Úrsula (1859). Conceição Evaristo, tendo sido instigada, no Rio de Janeiro, pelo Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978 – momento em que se assistia à luta dos negros por direitos civis, nos Estados Unidos, e a descolonização dos países africanos, que refletiram no cenário brasileiro – sucede sua precursora consolidando a literatura afro-brasileira. Numa nova situação histórica, uma nova mulher – a afro-brasileira – cria uma literatura inovadora, carregada de individualidade nacional e do “sentimento íntimo” que propunha Machado de Assis. Que choca. Que fala das mulheres da nossa terra – filhas da miscigenação – dos seus sentimentos e emoções, mas principalmente de suas atitudes subversivas diante da violência. Obra que tem brasilidade, universalidade e engajamento político. Nos contos de Conceição Evaristo, a mulher negra é vítima do homem hostil e desumano, no entanto, ergue-se resistente e insubmissa 57 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 às agressões preconceituosas. As narrativas são tão realistas que fazem o leitor se lembrar de que histórias como essas acontecem não apenas no Brasil, mas no mundo todo. De modo que a autora concilia um elemento nacional, e ao mesmo tempo, universal. Insubmissas lágrimas de mulheres documenta história na literatura através da narradora-observadora/ ouvinte que é, provavelmente, a mesma em todos os contos, um flâneur11, que sai em busca de narrativas, fazendo com que as protagonistas busquem na memória fatos violentos dos quais foram vítimas. É dessa forma que a obra de Conceição Evaristo imbrica memória individual e coletiva da luta das mulheres negras. Então a narradora ouvinte nos conta esses fatos para que eles não sejam desprezados. A personagem fictícia, Shirley Paixão, apesar de ter sido orientada a fugir do flagrante e mesmo tendo agido em defesa de Seni, foi presa por ter quase matado seu marido “homem-animal”. Passou três anos na cadeia. Não havia lei que a amparasse. O livro aqui apresentado faz memória para que violências como as vivenciadas na ficção não sejam esquecidas. “O dever de memória é muitas vezes, uma reivindicação, de uma história criminosa, feita pelas vítimas” (RICOUR, 2003, p. 6) 12 fictícias, para que então, haja justiça com vítimas reais. De acordo com Heloisa Buarque de Hollanda um dos principais compromissos da corrente feminista é o de denunciar “a ideologia patriarcal que permeia a crítica tradicional e determina a construção do cânone da série literária” (HOLLANDA, 1994, p.11-12). Segundo ela, a escrita da mulher – inúmeras vezes silenciada ou excluída da historiografia literária – traz para o centro da cena feminista dominante temas como racismo, o antissemitismo, o imperialismo, o colonialismo, a ênfase nas diferenças de classes e, principalmente, a possibilidade de 11 Charles Baudelaire criou a significação de que flâneur é uma pessoa que sai em busca de experiências urbanas. 12 O título original desta conferência escrita e proferida em inglês é Memory, history, oblivion. 58 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 interpelação dos atuais modelos teóricos feministas. O questionamento sobre os paradigmas do essencial e da universalidade que “determinaram os critérios estéticos e as estratégias interpretativas da crítica literária tradicional” (HOLLANDA, 1994, p. 12). O livro Insubmissas lágrimas de mulheres é uma literatura afrobrasileira de autoria feminina que explicita o quanto é significativa a construção de personagens femininas como representações das afrobrasileiras que sofrem violências no cotidiano pós-moderno. Sobretudo no que se refere às suas atitudes comportamentais frente à violência, subvertendo a imagem da mulher negra, que na ficção canônica era tão subserviente aos preconceitos da sociedade patriarcal. As protagonistas de Conceição Evaristo são mulheres fortes, sonhadoras e insubmissas, que conseguem reagir aos preconceitos de classe, gênero e etnia, e assim, resgatam suas vidas, tornando-se símbolos de mulheres guerreiras e perseverantes. Por ser uma obra carente de estudo e tendo conhecimento de sua importância, pretende-se, com esta pesquisa, contribuir para a formação da fortuna crítica de Conceição Evaristo. O objetivo geral da pesquisa é investigar nos contos do livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011) os tipos de violência praticada contra a mulher negra, a insatisfação das protagonistas e as possíveis superações desses traumas familiares. Os objetivos específicos são: contextualizar a produção de Conceição Evaristo e, de modo específico, verificar o “lugar” do livro Insubmissas lágrimas de mulheres em relação à essa produção; discutir as representações físicas e sociais da mulher negra e as formas de violência praticadas contra ela no corpus escolhido; analisar como as protagonistas reagem a essa violência em Insubmissas lágrimas de mulheres; investigar as aproximações da obra em relação com o feminismo. 59 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A pesquisa é de cunho teórico e bibliográfico. Para a execução deste projeto, serão feitas leituras e análise da obra Insubmissas lágrimas de mulheres. Também serão lidos e analisados textos teóricos sobre a mulher afrodescendente na literatura. Será feita uma investigação de fatores de natureza histórica e sociopolítica que contribuíram para a construção de estereótipos étnicos e de gênero. A metodologia a ser utilizada nesta pesquisa é de abordagem dedutiva, a partir de bibliografia crítica e teoria sobre os estudos de gênero e de violência contra a mulher negra. REFERÊNCIAS COSTA, Cláudia Lima. O feminismo e o pós-modernismo/pósestruturalismo: As (in)determinações da identidade nas (entre)linhas do contexto. In: PEDRO, Joana Maria e GROSSI, Miriam Pillar. Masculino Feminino Plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2000. DUARTE, Eduardo de Assis (Org). Poéticas da diversidade.Belo Horizonte: UFMG, 2002. EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011. HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Introdução: Feminismo em tempos pósmodernos. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. JESUS, Damázio de; GIORDANI, Annecy Tojeiro. Violências contra a Mulher. São Paulo: Yendis, 2006. JOB, Sandra Maria. Em texto e no contexto social: Mulher e literatura afrobrasileiras. Doutorado em Literatura. Biblioteca Depositária: Biblioteca Universitária central da UFSC, 2011. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas Literaturas: Escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: PEDRO, Joana Maria e GROSSI, Miriam Pillar Grossi. Masculino feminino plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998. 60 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 RICOUR, Paul. Memória, história e esquecimento. Universidade de Coimbra. 3,2003. Disponível em: http://goo.gl/nmPqrb. Acesso em: 26 jun. 2015. SANTOS, Celia Regina dos; WIELEWICKI, Vera Helena Gomes. Literatira de autoria de minorias étnicas e sexuais. In: BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs).Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá, PR: Eduem, 2009. SCHMIDT, Simone Pereira. Falar ou falar-se: o corpo no texto pós-moderno. In: SILVA, Alcione Leite da et. al. (Orgs). Falas de Gênero. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999. SCOTT, Joan W. Gênero: Uma Categoria Útil Para Análise Histórica. Tradução: Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. Edição S.O.S; Recife, 1985. 61 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 “DRAMA DE BÁRBARA HELIODORA” EM MADRINHA LUA, DE HENRIQUETA LISBOA Daiana Santos Machado (UNIMONTES) Resumo: Henriqueta Lisboa, poetisa mineira, traz em seu livro de poesia Madrinha Lua, a personagem Bárbara Heliodora. Em meio a tantos personagens históricos importantes de Minas Gerias, Heliodora é a única mulher, que recebe um poema dedicado a ela, intitulado “Drama de Bárbara Heliodora”. Neste poema elucidaremos sua posição em pleno século XVIII como mulher, poetisa e ativista política no movimento da Inconfidência Mineira. Dessa maneira, evidenciaremos sua resistência ao meio conflituoso de sua época, sua superação e importância na construção da história e identidade mineira. Palavras- chave: figura feminina; história mineira; superação Resumen: Henriqueta Lisboa, poetisa minera, trae en su libro de poesía Madrinha Lua, el personaje Bárbara Heliodora. En medio de tantas figuras históricas importantes de Minas Gerais, Heliodora es la única mujer que consigue un poema dedicado a ella, intitulado "Drama de Bárbara Heliodora". En este poema elucidaremos su posición en el siglo XVIII como una mujer, poeta y activista político en el movimiento de Minas Conspiración. Por lo tanto, evidenciaremos su resistencia a los medios de confrontación de su tiempo, su capacidad de superación y importancia en la construcción de la historia e identidad minera. Palabras clave: figura femenina; historia minera; superación Ao longo de sua carreira literária, Henriqueta Lisboa foi agraciada com diversos prêmios importantes, como o Prêmio Othon Bezerra de Mello da Academia Mineira de Letras, em 1949, e o Prêmio da Câmara Brasileira do Livro, por Madrinha Lua, em 1952. O Prêmio Brasília de Literatura, pelo conjunto de sua obra, em 1971, e o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, também pelo conjunto da obra, em 1984. Dentre as homenagens que recebe estão a Medalha de Honra da Inconfidência de Minas Gerais, em 1955, o título de “Cidadã Honorária de Belo Horizonte”, em 1972, e o Diploma de Mérito Poético do Governo do Estado de Minas Gerais, comemorativo dos 50 anos de sua poesia, em 1979. Os prêmios e homenagens acima elencados, além de tantos outros, mostram o lugar de Henriqueta Lisboa no espaço literário e cultural do seu tempo, de modo a se poder tomá-la como mulher privilegiada, por ter ultrapassado os limites domésticos a que as mulheres em geral, nesse 62 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 período, estavam submetidas, e ter inscrito seu nome como poetisa e intelectual de referência no país. O fato de ter sido a primeira mulher eleita para a Academia Mineira de Letras o ressalta de modo evidente. Como afirma Eneida Maria de Souza a respeito desse lugar ocupado pela autora: “Como escritora vivendo no meio intelectual dominado por homens, sua posição firme e audaciosa rompeu barreiras e respondeu de forma lúcida às críticas à sua poesia” (SOUZA, 2010, p. 34). Apresentamos, a seguir, um trecho de entrevista que Henriqueta Lisboa concedeu ao jornal O Estado de São Paulo, em 1984, no qual comenta a recepção de sua obra no início de sua carreira, dando destaque a essa sua condição de “mulher poeta”: Mulher, além de mineira, escritora aparecida há cinqüenta anos, as condições não me seriam favoráveis; e foi preciso perseverança para prosseguir no trabalho, ou melhor, na força de vocação. Todavia tive gratas compensações: a crítica me apoiou desde o início, os colegas de ofício me têm dado apreço, fui a primeira mulher eleita para a Academia Mineira de Letras, tenho sido distinguida com títulos de meu Estado e tenho recebido prêmios de nível nacional [...] Se houve preconceitos, eles já não existem (LISBOA apud PAIVA, 2006, p. 118). Henriqueta revela, nesse fragmento, que houve esforço de sua parte por superar esse estigma que existia em relação ao lugar social da mulher e afirmar-se como poetisa. Apesar de ter passado por dificuldades com a crítica em relação a essa questão, a poetisa as superou, como sugere no final de sua fala. Talvez pelo fato de ter surgido como escritora num momento de revolução no campo intelectual e das letras no Brasil (o Modernismo), o olhar sobre sua obra foi pouco marcado por preconceitos desse tipo, voltando-se mais para suas qualidades intrínsecas. É interessante, porém, notar como os primeiros críticos da autora não viam a questão da feminilidade como alheia a essas qualidades literárias. Como nos mostra Adriana Rodrigues Machado (2013), em comentário a uma crítica produzida por autor identificado apenas como 63 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 “M” (publicada em jornal no ano de 1922), a poesia de Henriqueta se destacava das demais marcadas pela emergência de uma voz feminina. Citamos abaixo, um trecho desse texto recuperado pela pesquisadora: [...] Os seus versos, alguns cheios de encantadora simplicidade, iluminam-se de um suave panteísmo, que é como um prolongamento dessa “divina surpresa”, que nos fere, e impele o artista a enamorar-se, no primeiro instante de vida emocional, da natureza, do firmamento, do espaço, da luz, que o abençoa. [...] (“M”, 1922, apud MACHADO, 2013, p. 31) Essa relação entre feminilidade e qualidade literária (a Henriqueta Lisboa mulher e poetisa ao mesmo tempo) foi destacada também por Paschoal Rangel, em sua elogiosa apresentação da autora, intitulada Essa Mineiríssima Henriqueta (1987). Entretanto, esse tom elogioso, eleva a mulher e pouco enaltece a poetisa atribuindo-lhe características mais de fêmea do que propriamente de “poeta”. Nota-se também, como o título já sugere a referência à presença de Minas como dado demarcador da personalidade literária de Henriqueta Lisboa. Vejamos, a esse respeito, o trecho abaixo: Quem é ela? Fêmea espantada inquietíssima silenciosa, toda sobre-si e tão sobre-o-mundo, sobre o céu, a terra, o homem. Tão poeta! Mineiríssima Henriqueta, de antiga árvore ibérica, que deixou lembranças de Portugal pegadas no seu nome: Henriqueta Lisboa. Quem é essa mulher? Ninguém sabe, como “ninguém sabe Minas. Só mineiros sabem, e não dizem nem a si mesmos...” “Minas é cimo e fundo.” Assim, Henriqueta. E quanto! (RANGEL, 1987, p.15) Podemos observar, nesse trecho, um movimento ambivalente, que vai do olhar sobre a Henriqueta poetisa para a figura feminina que a partir dela se desvela. Quando pergunta sobre a poetisa, Rangel lembra-se da Henriqueta mulher, com seu jeito inquieto e silencioso, ao mesmo tempo. Retorna ao que encontraremos como uma característica de sua poesia, o voo do espírito sobre o mundo físico, que estaria relacionado, como sugere o crítico, à origem ibérica e mineira da autora. Depara-se, enfim, com a impossibilidade de definir Henriqueta Lisboa, tanto como mulher 64 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 quanto como poetisa, já que, como uma típica mineira, ela vai ao alto e ao fundo (dimensões contrastantes) num mesmo movimento, impedindo que se a fixe num lugar único. Rangel, ainda no mesmo estudo, melhor aprofunda esse olhar sobre a personalidade literária da autora aludindo a constantes temáticas e formais que encontraremos como determinantes em Madrinha Lua: Ela [Henriqueta Lisboa] que parece tão em-si, de repente é história, é geografia, Mariana, Caraça, Ouro Preto, Aleijadinho, Bárbara Heliodora, o arcebispo Dom Silvério, é epopéia lírica, romanceiro, é vibração religiosa, é infância, é metafísica, “pousada do ser”; é lucidez, é erudição, é agudez crítica, é enigma (“reverberações”), visão onírica, é cimo e fundo, lavras e céu, isto e aquilo. (RANGEL, 1987, p. 15) Em meio a tantos personagens e cidades históricas trazidas pela poetisa no livro objeto de nosso estudo: Madrinha Lua; uma figura feminina ganha atenção especial na de Henriqueta Lisboa em “Drama de Bárbara Heliodora”, leia-se o poema que retrata a vida dessa personagem: “Bárbara bela do norte estrela que o meu destino sabes guiar.” Quem é esse que assim canta como quem está chorando? Suas faces encovaram, seus olhos se amorteceram, sobre seus cabelos negros cai uma chuva de cinza. Ah! e havia tanta brasa em torno de seus cabelos, tanto sol na sua ilharga, tanto ouro nas suas minas, tanto potro galopando nas suas terras sem fim. Grão de poeira quando o vento a madrugada castiga: Já não é mais Alvarenga Quem foi Alvarenga um dia. 65 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Do galho cai uma fruta verde sobre o lago fundo. A árvore guardava a seiva Toda nessa fruta verde. A mão trêmula do poeta mal sabe aquilo que escreve: “Tu entre os braços Ternos abraços da filha amada podes gozar” A essas horas, na distância, vai pela tarde dorida sob a chuva, entre salpicos de lama, em caixão mortuário sem enfeites nem bordados, senão os que a lama asperge no pano que cobre as tábuas. Quando a alvura da açucena se refugiava nas moitas, Maria Ifigênia encontra sua gruta para sempre. É deveras a Princesa do Brasil, essa menina de madeixas escorridas, de lábios esmaecidos, de túnica mal vestida? Essa, a mesma por quem vinham da Corte os melhores mestres de dança e língua estrangeira? A de damascos e auréolas a quem brotavam nos dedos tíbios ramos de coral? Linda, lendária Princesa, por quem chora já sem lágrimas pobre mulher desvairada de olhos que olham mas não vêem. Chora Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira. E em suas artérias corre o sangue de Amador Bueno! Chora, porém já sem lágrimas. É de mármore seu rosto. Seu busto cai sobre os joelhos: flores que de trepadeiras pendem murchas para o solo. Talvez já nem saiba como — para donaire da estirpe — 66 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 na ponta dos pés erguida em hora periclitante ousou admoestar o esposo: “Antes a miséria, a fome, a morte, do que a traição!” Valem muralhas de pedra para represa dos rios, certas palavras eternas que decidem do destino. (LISBOA,1980, p.27-29) Bárbara Heliodora, única, mas imprescindível personagem feminina que ganha voz através da poesia não só por ser mulher, mas por sua importância na poesia (musa inspiradora para Alvarenga Peixoto) por seu dom de poetisa, além de atuar como ativista política brasileira. Antônio Sérgio Bueno em seu estudo “Sinfronismo feminino” na introdução de Madrinha Lua, sugere que o interesse de Lisboa por esta personagem surge: Talvez pelo fato de a protagonista ter sido mulher e poeta, o Drama de Bárbara Heliodora tenha recebido de Henriqueta Lisboa um tratamento tão soberbo. A verticalidade brutal da “queda” da heroína, a terrível precariedade da ventura, chegam ao paroxismo nos versos do poeta: “Chora Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira. E em suas artérias corre O sangue de Amador Bueno! Chora, porém já sem lágrimas.” (BUENO. In: LISBOA,1980, p. 9) Henriqueta Lisboa, assim, nos apresenta a figura de Bárbara mulher, musa, esposa, heroína, e com estigmas, pelo seu sangue, sua descendência. A poetisa evidencia o título de nobreza, ressaltado pela referência ao sangue do bandeirante (Amador Bueno). Entretanto antes de tudo, Bárbara é mulher, e é evidenciando suas características de fêmea que a poetisa, acentuando o lirismo próprio de sua poesia, inicia o poema: “Bárbara bela/ do norte estrela/ que o meu destino/ sabes guiar.” (LISBOA, 19980, pg.27). 67 Estes versos compõe ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 “Bárbara Bela” poema feito em cárcere pelo próprio marido, inconfidente e poeta. Fazendo assim uma analogia dos acontecimentos da vida desta personagem e o lugar de esposa/ mulher que esta ocupara. Outros aspectos femininos são evidenciados, como por exemplo, seus olhos e seus cabelos negros, entretanto seus encantos de mulher estão “amortecidos” pelas lutas, desgostos e sofrimentos dessa mulher que tanto padece e até mesmo seu canto se assemelha ao pranto como elucida a poetisa: “Quem é essa que assim canta como quem está chorando?” (LISBOA, 1980, p. 27) Da vida dessa mulher bela, forte e determinada, destacaremos dois acontecimentos marcantes em sua vida, que a transformara em “pobre mulher desvairada/ de olhos que olham mas não vêem” (LISBOA, 1980, p. 27) tantos acontecimentos lhe fizeram sofrer, que parece não ser mais a mesma mulher, como evidencia Lisboa: “Já não é mais Alvarenga/ quem foi Alvarenga um dia” (LISBOA1980, p. 27). Dentre tais acontecimentos trágicos mais marcantes temos: A participação de seu marido na Inconfidência Mineira e a condenação do mesmo a degredo perpétuo e a morte de sua filha com apenas treze anos de idade. Desse segundo episódio sabe-se através dos relatos históricos que do envolvimento de Bárbara com Alvarenga Peixoto, nasceu Maria Ifigênia, e que com a idade de três anos, seus pais se casaram oficialmente. Dez anos mais tarde Mª Ifigênia sofre uma queda de cavalo que lhe levaria à morte. As estrofes do poema, aqui analisado, elucidam o fato: A essas horas, na distância, vai pela tarde dorida sob a chuva, entre salpicos de lama, em caixão mortuário sem enfeites nem bordados, senão os que a lama asperge no pano que cobre as tábuas. Quando a alvura da açucena se refugiava nas moitas, Maria Ifigênia encontra 68 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 sua gruta para sempre. (LISBOA, 1980, p.28) Bárbara como mulher/ mãe, que então já estava sofrendo pela distância do marido, agora não mais poderá ter a filha nos braços. Antes de perdê-la, entretanto, a voz de Alvarenga, em degredo na África, no poema diz “Tu entre os braços/ ternos abraços/ da filha amada/ podes gozar.” Algum tempo depois, a filha do casal falece. Heliodora como toda mãe que ama incondicionalmente, sofre em demasia pela perda de sua filha. Do segundo episódio, há relatos de que, o minerador e proprietário de grandes lavouras, Inácio José de Alvarenga Peixoto com muitas dívidas e impostos em atraso e sobre pressão, se envolveu no movimento da Inconfidência. Dessa participação resultou a inscrição latina “Libertas quae sera tamem” na bandeira de Minas Gerais, de sua autoria. Muitas das reuniões dos inconfidentes aconteciam na casa dos Alvarenga nas quais sua esposa, Bárbara, presenciara algumas e sempre apoiara seu marido durante todo o movimento, e mesmo quando foi condenado por participar do mesmo. Dessa trajetória de Bárbara, companheira fiel de seu marido, Aureliano Leite, em A vida heróica de Bárbara Heliodora, enfatiza que a personagem foi essencial na vida de Alvarenga Peixoto, acrescenta ainda que: ...Ela foi a estrela do norte que soube guiar a vida do marido, foi ela que lhe acalento o seu sonho da inconfidência do Brasil…quando ele, em certo instante, quis fraquejar, foi Bárbara quem o fez reaprumar-se na aventura patriótica. Disso e do mais que ela sofreu com alta dignidade fez com que a posteridade lhe desse tratamento de Harmonia da Inconfidência. (LEITE, 1860) Logo, percebe-se uma mulher companheira, mãe que teve uma filha antes de consumar seu casamento, acontecimento incomum e preconceituoso naquele tempo. Mulher que embora casada, ainda preferiu conservar seu nome de solteira e que mesmo após a morte do 69 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 marido, cuidou da educação dos seus quatro filhos e administrou todos os bens da família mesmo quando estes foram confiscados pela coroa. Tais adversidades, entretanto, não foram maiores do que a coragem e a honra de Heliodora como evidencia Henriqueta nos versos “Antes a miséria, a fome/ a morte, do que a traição” (LISBOA, 1980, p. 29).Além de tudo isso, ousada para a época, Bárbara foi a primeira poetisa do Brasil. Por fim, nas análise desta personagem por André Figueiredo Rodrigues em “A mulher na Inconfidência Mineira”, concordamos que: Analisar Bárbara Eliodora é difícil de fazer com objetividade, porque reluz sobre a sua fronte a auréola do mito. Por ser mulher sofredora por excelência, que viu seu marido arrancado de casa e levado algemado ao Rio, e sentir na pele o desprezo dos amigos, sua trajetória e histórias a fizeram entrar no panteão das heroínas brasileiras. Bárbara Eliodora é considerada a mulher-símbolo, o exemplo típico da mulher mineira: culta, esposa dedicada, mãe de família e sofredora. Ela foi, ainda, o vulto feminino que mais se destacou na Inconfidência Mineira. (RODRIGUES, s.d, p. 34) REFERÊNCIAS BUENO, Antônio Sérgio “Sinfronismo feminino”. In: LISBOA, Henriqueta. Madrinha Lua. Belo Horizonte: Coordenadoria de Cultura de Minas Gerais, 1980, p.15-16. LEITE, Aureliano. A Vida Heroica de Barbara Heliodora (em português). [S.l.: s.n.], 1860. LISBOA, Henriqueta. Madrinha Lua. Coordenadoria de Cultura de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1980. LOBO FILHO, Blanca. A Poesia de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1966. MACHADO, Adriana Rodrigues. Rosa plena: a sagração da poesia em Henriqueta Lisboa. 2013. 311 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013 PAIVA, Kelen Benfenatti. Histórias de vida e amizade: as cartas de Mário, Drummond e Cecília para Henriqueta Lisboa. 2006. 187 f. Dissertação 70 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 (Mestrado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. PEIXOTO, Alvarenga. Lira 21. In: LAPA, Manuel Rodrigues. op. cit., p. 3031. O refrão – “Isto é castigo // que Amor me dá” – não se encontra publicado na edição organizada por Joaquim Norberto em 1856 das obras poéticas de Alvarenga Peixoto. Conferir: SILVA, Joaquim Norberto de Souza e. Obras poéticas de Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: Garnier, 1856, p. 263-266. RANGEL, Paschoal. Essa Mineiríssima Henriqueta. Belo Horizonte: O Lutador, 1987. RODRIGUES, André Figueiredo. Disponível http://www.histoecultura.com.br/artigos/03/AFR%20%20art%20AGL2012.pdf. Acesso em: 02 de Outubro de 2015. em: SOUZA, Eneida Maria de. “A dona Ausente”. In: ANDRADE, Mário de; LISBOA, Henriqueta. Correspondência. Organização, introdução e notas de Eneida Maria de Souza; transcrição dos manuscritos Maria Silvia Ianni Barsalini. São Paulo: Editora Peirópolis; EDUSP, 2010. 71 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 NAVEGAR É PRECISO: A CARTA DO “ACHAMENTO” DO BRASIL INTERMEDIADA PELO E-MAIL DE CAMINHA, DE ANA ELISA RIBEIRO Daiane Silva de Andrade (Professora Ensino Básico Técnico e Tecnológico) IFNMG- Campus Araçuaí RESUMO: A carta do escrivão real Pero Vaz de Caminha tem importância substancial nas salas de aula por trazer discussões dos mais variados campos, sendo indispensável para a compreensão da história e formação do povo brasileiro. Muito se tem discutido também sobre seu suposto caráter literário gerado, entre outros motivos, pela subjetividade de alguns trechos. Entretanto, é notório o quanto a linguagem do século XVI traz algumas dificuldades para o aluno contemporâneo que, por vezes, se afasta inicialmente desse texto alegando as dificuldades de lidar com uma versão mais arcaica da língua. Este trabalho busca averiguar a forma como a escritora Ana Elisa Ribeiro tenta, de maneira lúdica, mostrar o quanto a histórica Carta também pode ser pensada em um contexto mais atual. As relações hipertextuais traçadas entre a carta do “achamento” do Brasil e a versão moderna criada pela autora em forma de e-mail permitem discussões comparativas sobre os gêneros textuais, destacando o caráter atemporal da literatura. Palavras-chave: literatura, hipertexto, educação, gêneros literários. Abstract: The letter of the actual scribe Pero Vaz de Caminha has a considerable importance in classrooms' discussions once it brings different points of view and it is an indispensable tool to understand the history and formation of the Brazilian people. It has discussed a lot about his supposed literary character generated, even because of, the subjectivity of some passages. However, it is clear how the language of the sixteenth century become difficult for the contemporary student comprehension and for this reason they get apart from this texts and they complain when first have contact with this archaic version language. This paper searches to determine how the writer Ana Elisa Ribeiro tries, in a playful way, to demonstrate how this historic letter may also be valid in the current days .The hypertext relations traced by the mentioned letter of Brazil and the modern version created by the author in the form of e-mail allow comparative discussions on the genres, emphasizing the timeless character of literature. Keywords : literature, hypertext , education, literary genres. É notório que as novas descobertas tecnológicas vêm, nas últimas décadas, transformando a vida humana em vários aspectos, sobremaneira, no modo de aquisição de conhecimentos e nas muita possibilidades de leitura. Tornou-se comum, para um leitor tipicamente contemporâneo, clicar num link, ler uma tirinha, ouvir uma canção, assistir ao trailer de um filme lançado recentemente, pesquisar a biografia de uma celebridade. Ações que eram impossíveis, pelo menos de forma tão veloz e simultânea, sem o aparato da tecnologia. Inserido nesse contexto, o 72 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 leitor vê-se seduzido por um universo plural que mescla imagens, sons, cores, palavras. Entretanto, essas transformações trazidas pela tecnologia não deixam de trazer impactos ou amedrontar como historicamente aconteceu com a aquisição da técnica de uso do fogo que gerou deslumbramento e, simultaneamente, descoberta da dor que poderia ser causada por ele, por exemplo. Segundo Arlindo Machado, pesquisador da multiplicidade de aspectos gerados pela tecnologia, Com as tecnologias modernas de tratamento da palavra, estamos assistindo a uma transformação tão importante no modo de produção textual quanto aquela que, em outros tempos, substituiu instrumentos como o pincel, o caniço e a pena de ganso por caracteres móveis uniformes, ou suportes como a pedra, o papiro, o pergaminho e o velino por folhas de papel seqüenciais (MACHADO, 1996, p. 169). Torna-se claro, através das considerações de Arlindo Machado, que as evoluções geradas pelas descobertas, num misto de encantamento e medo, modificam a sociedade gerando indagações e também outras descobertas. Sendo assim, o advento da internet tanto foi louvado devido aos aspectos práticos que trouxe para o cotidiano, como também foi vislumbrado de maneira apocalíptica como responsável pela morte de práticas e funções há muito estabelecidas na sociedade. De acordo com Pierre Lévy, o surgimento do ciberespaço “tem um efeito tão radical sobre a pragmática das comunicações quanto teve, em seu tempo, a invenção da escrita” (LÉVY, 1999, p.114). Para ele, certamente gerou, concomitantemente, admiração e espanto algumas inovações trazidas pelo surgimento da escrita como a possibilidade de comunicação entre pessoas separadas geograficamente e também a perenidade fornecida ao discurso como, por exemplo, poder arquivar, de maneira gráfica, as ideologias e/ou criações de alguém já falecido. 73 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Seguindo também esse raciocínio, Jean–François Lyotard enfatiza que a influência da multiplicação de máquinas informacionais será tão grandiosa quanto o surgimento dos transportes, dos sons e das imagens (LYOTARD, 2006, p. 4). As inovações não surgem de maneira passiva: hábitos, o modo de pensar e até mesmo as relações humanas e históricas são transformadas. Passada a euforia inicial causada pelos recursos tecnológicos, sobremaneira para a divulgação e permanência da obra literária, despontaram discussões sobre o fim da linearidade, o texto fracionado, as questões relacionadas à autoria, bem como o temor sobre o fim do livro diante de tantos aparatos tecnológicos. Dessa forma, indagações sobre os rumos da educação nesses novos tempos foram ganhando espaço e surgiu a necessidade de entender além das novas mídias, os gêneros textuais que nasciam com esse ambiente virtual, pois, paulatinamente, gêneros digitais como o email, chat, blog, entre outros, despontaram. Luiz Antônio Marcuschi esclarece que os gêneros textuais são produtos das estruturas e realidades de cada cultura sofrendo, assim influências das mais variadas transformações sociais já que “os gêneros não são categorias taxionômicas para identificar realidades estanques.” (MARCUSCHI, 2002, p. 4). Sendo assim, Marcuschi (2002) ressalta a necessidade de investigarmos os gêneros denominados digitais principalmente devido ao uso compulsivo dos mesmos, às suas idiossincrasias estruturais e à necessidade de se reavaliar conceitos solidificados sobre os gêneros textuais. É justamente nesse contexto de discussão como os gêneros digitais vêm modificando a relação com a leitura e a escrita que nasceu este trabalho. Diante da leitura do livro “O e-mail de Caminha”, da professora e escritora mineira Ana Elisa Ribeiro, percebe-se um exemplo da inserção dos gêneros digitais na própria literatura. Já pelo título, o leitor se depara 74 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 com uma junção de elementos contraditórios historicamente: o e-mail, produto tecnológico do século XX, e a figura de Caminha que remete ao contexto histórico de 1500. Através desse título que se encaixa, no que Gérard Genette denominou de títulos temáticos “que indicam, qualquer que seja a maneira, o ‘conteúdo’ do texto”. (GENETTE, 2009, p.74), já se depara com elementos que são apresentados de maneira intertextual e também paralela dentro da narrativa, uma vez que tanto é apresentada a narrativa criada pela autora que, como base a “Carta a El Rei D. Manuel” escrita por Pero Vaz de Caminha, toma esse documento como hipotexto (GENETTE, 2005, p. 12) para trazer para um contexto contemporâneo o “achamento” das terras brasileiras e apresentá-lo de maneira jocosa por meio linguagem das ferramentas de comunicação eletrônicas atuais como o e-mail e o twitter; como também é apresentada a versão original da carta de Caminha, possibilitando, assim, comparações entre a linguagem, contexto, hábitos e ideologias de cada época. Seria fácil cair na obviedade de traçar críticas ao livro aportando em argumentos sobre as consequências de se “facilitar” uma obra para o aluno, restringindo os benefícios de contato com um texto histórico e de clara importância, inclusive literária, para o país. Entretanto, é preciso analisar o modo de construção do livro e observar a recepção do mesmo pelos alunos para compreender as leituras que podem ser feitas d’ “O email de Caminha”. O e-mail é um gênero digital de grande circulação e bem presente na rotina da maioria dos estudantes. Marcuschi esclarece que o e-mail nasceu no início da década de 1970 e popularizou-se quase duas décadas depois e também gerou ansiedades, uma vez que Foi grandemente aperfeiçoado e vem sendo extremamente utilizado, tendo sido vaticinado como “o fim dos correios tradicionais” e das cartas escritas. Contudo, isso não se verificou, assim como os e-livros (livros eletrônicos) não representam a menor ameaça aos livros impressos. Assim foi também com o surgimento do telefone que parecia ser o 75 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 coveiro dos correios. No entanto, nada mudou nesse particular, assim como a televisão não suplantou o rádio. (MARCUSCHI, 2002, p.21) O autor ainda ressalta que, nesses gêneros, a linguagem pode assumir, dependendo dos interlocutores, certa formalidade, mas a linguagem predominante é não-monitorada, com grande interferência da oralidade. O e-mail se aproxima, estruturalmente, da carta. Talvez seja exatamente por esse motivo que a autora Ana Elisa Ribeiro escolheu apresentar o documento considerado como “a certidão de nascimento do Brasil” nesse gênero digital. O livro traz alusões à linguagem e comunicação nos meios eletrônicos como, por exemplo, a explicação de Caminha ao Rei Dom Manuel, de que hesitou se era melhor passar as informações através de um blog, página do facebook ou usar o twitter; o uso das hastags em vários momentos da narrativa como “#partiuindias #tchauBelém #viagem sem wifi” (RIBEIRO, 2014, p. 8), logo no início da viagem, ou “#olharnãoarrancapedaço #xavecototal #vaiquecola” (RIBEIRO, 2014, p. 36) no momento que observou as primeiras índias, e ainda “#partiuPortugal #raça #missãocumprida #jávolto” (RIBEIRO, 2014, p. 79), já no final da narrativa Observa-se também a influência dos recursos tecnológicos em elementos paratextuais como a capa, que traz ícones de comando do universo cibernético, a fonte escolhida, o usos de caracteres da informática nas ilustrações e descrições como a falta de wifi em determinados momentos, o pedido do Rei para que Caminha usasse também o recurso do skype para que ele pudesse visualizar a nova terra, entre outros. Entretanto, o aspecto da estrutura do gênero digital e-mail que parece ter sido mais utilizado pela autora é justamente a linguagem mais informal que garante uma maior proximidade de um leitor mais jovem. Expressões como “Desculpe aí qualquer coisa” (RIBEIRO, 2014, p. 9), 76 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 “Rolou uma tragédia” (RIBEIRO, 2014, p. 14), “Estou aqui com soninho já” (RIBEIRO, 2014, p. 38), são comumente observadas na escrita de Pero Vaz de Caminha. O Rei Dom Manuel também emite, por sua vez, dizeres como “Afff! Perdi uma nau então” (RIBEIRO, 2014, p. 14), “Só isso? Caraca!” (RIBEIRO, 2014, p. 15), “#nãotáfácilpraninguém” (RIBEIRO, 2014, p.50), “#desembucha” (RIBEIRO, 2014, p. 65). Inverossimilhança pensar em um Rei respondendo a uma comunicação de maneira tão solta? Não se pensarmos que, assim como a carta, o e-mail pode ser construído de maneira mais objetiva ou subjetiva. A situação que delimita o conteúdo e estilo. No caso, eles estão tratando o assunto ainda de maneira não oficial, de forma simultânea aos acontecimentos. E de que forma a Carta de Caminha ser apresentada de uma maneira tão lúdica e contemporânea pode contribuir para as discussões inerentes a esse documento tão necessárias em sala de aula? Primeiramente é preciso frisar que todos os historiadores e estudiosos da literatura são categóricos em atestar a Carta como um documento importante. Envolta em mistérios por quase três séculos, a Carta ficou esquecida porque muitos historiadores da época não lhe deram importância. Ela foi publicada, pela primeira vez, somente em 1817, pelo padre Manuel Aires do Casal. Sua alcunha de “Certidão de Nascimento do Brasil só nasce no século XIX. A Carta traz uma descrição detalhada da fauna, flora dos índios e, principalmente do momento histórico que a tornou alvo de muitos estudos e traduções. Encontra-se hoje no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Apesar de toda essa importância histórica, muito se discute sobre seu caráter de texto literário. Essa discussão também deve ser feita com os alunos, apresentando a visão dos nossos maiores críticos literários sobre o assunto. Partindo desse princípio, é preciso voltar à indagação acima exposta sobre o livro “O e-mail de Caminha”. Será que o texto de Caminha sofre alguma perda ao ser colocado de forma paralela a uma versão tão 77 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 “facilitada”. Para responder a essa pergunta, é preciso discorrer sobre uma experiência feita, no primeiro semestre de 2015, em sala de aula, com alunos dos 1º ano do Ensino Médio. Após estudarem o contexto histórico do estilo de época Quinhentismo, previamente eles leram o livro e procederam à discussão do mesmo em sala de aula. A maioria relatou que a versão moderna da Carta, feita através de e-mail pela escritora Ana Elisa Ribeiro, colaborou para a compreensão do texto original, fazendo com que eles realmente conseguissem imaginar o choque cultural advindo do encontro entre portugueses e índios. Muitos citaram a dificuldade de compreender alguns vocábulos da Carta que foram colocados de maneira desembaraçada pela narrativa de Ana Elisa, ou ainda conceituados quando a autora coloca, ligados a algumas palavras, boxes explicativos, criando uma espécie de link para maior compreensão do texto. Em atividade escrita de análise da obra, foram percebidos comentários sobre o caráter esclarecedor exercido pelo livro como “(...) Essa obra é uma grande contribuinte da composição da identidade brasileira, pois permite uma leitura mais fácil de um texto importantíssimo para a nossa história, fazendo com que mais pessoas tenham acesso às informações culturais presentes no dito texto.” Pela observação dos aspectos aqui brevemente analisados, percebe-se que “O e-mail de Caminha” dialoga de maneira intertextual com a Carta de “achamento” do Brasil, tornando-a mais próxima do leitor e presentificada no contexto atual. Partindo do pressuposto que o texto só se realiza ou continua vivo em interação com o leitor, é preciso repensar na função do mesmo. O papel do leitor na narrativa é salientado por Roger Chartier, no livro A aventura do livro, do leitor ao navegador. Segundo ele, é a partir da maneira como o leitor, usando seus conhecimentos e experiências, recebe o texto que este vai se realizar e tomar forma. Chartier ressalta ainda que há uma “[...] trilogia absolutamente indissociável se nos interessamos pelo processo de produção de sentido. O texto implica 78 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 significações que cada leitor constrói a partir de seus próprios códigos de leitura, quando ele recebe ou se apropria desse texto de forma determinada” (CHARTIER, 1998, p. 152). Sendo assim, ao invés de uma percepção de que textos clássicos estão sendo corrompidos pelo universo cibernético, é necessário enxergar as novas tecnologias da informação e a linguagem que surge consequentemente delas como novas ferramentas para leitura, escrita e análise textual. É preciso navegar, mesmo que os meios para isso tenham mudado e ainda que tenha sido transformada a forma de se relatar as aventuras, porque o mar da leitura ainda continua cheio de mistérios a serem desvendados. REFERÊNCIAS CHARTIER, Roger. A aventura do livro do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun / Roger Chantier. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Editora UNESP, 1998. GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Ed. bilíngue. Trad. Luciene Guimarães; Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005. (Caderno Viva-Voz). GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. Trad. Álvaro Faleiros. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999. LYOTARD, Jean-François. A condição Pós-Moderna. 9ª ed. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. MACHADO, Arlindo. O sonho de Marlamé. In Máquina e Imaginário: o desafio das poéticas digitais. São Paulo: Edusp, 1996. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais emergente no contexto da tecnologia digital. In.: GEL – GRUPO DE ESTUDOS LINGUISTÍCOS DO ESTAO DE SÃO PAULO. USP – Universidade de São Paulo, 23-25 de maio de 2002. RIBEIRO, Ana Elisa. O e-mail de Caminha. Belo Horizonte: RHJ, 2014 79 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A INVENÇÃO DE UMA TERCEIRA MARGEM: DA DISSOLUÇÃO DO SUJEITO AO DEVIR-RIO Daniel Silva Moraes RESUMO: O presente ensaio tem como objetivo analisar o conto “A Terceira Margem do Rio”, de João Guimarães Rosa, destacando a importância dos elementos imaginários na construção da narrativa e dos personagens. O trabalho irá utilizar o conceito de “imaginação” desenvolvido pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre, analisando como os personagens do conto utilizam esta imaginação para se relacionar com o mundo e entre si. Assim, o trabalho irá focar em elementos como a “presença ausente” do pai; a criação de uma figura idealizada de pai (substituindo a figura do patriarca ausente) por parte do filho-narrador; e o conflito final entre real e imaginário. Por fim, o ensaio irá sugerir enxergar o “pai ausente” como uma ilustração que pode ser usada para ajudar a compreender o conceito de “imagem mental”, conforme definido por Sartre. Palavras-chave: imaginação; Guimarães Rosa; Sartre; imaginário; real ABSTRACT: This paper aims to analyze the short story "A Terceira Margem do Rio” by João Guimarães Rosa. It highlights the importance of imaginary elements in the construction of narrative and characters. The work will use the concept of "imagination" developed by the French philosopher Jean-Paul Sartre, analyzing how the characters of the tale use this imagination in order to relate to the world and each other. Thus, the work will focus on elements such as the "father’s absent presence" ; the creation of an idealized father figure (replacing the figure of the absent patriarch) by the son-narrator; and the final conflict between real and imaginary. Finally, the essay will suggest to see the "absent father" as an illustration which can be used to help understand the concept of "mental image" according to Sartre’s definition. Key-words: imagination; Guimarães Rosa; Sartre: fancied (imaginary); real Introdução O escritor mineiro João Guimarães Rosa publicou, no ano de 1962, na primeira edição do livro Primeiras Estórias, o conto “A Terceira Margem do Rio”, que apresentou ao mundo a intrigante história de uma família que, morando às margens de um rio caudaloso, “de não se poder ver a forma da outra beira” (ROSA, 2001, p. 80), tem sua vida completamente alterada pela decisão do pai de ir viver em um barco, sobre as águas desse mesmo rio. A escolha incomum do pai, cujas motivações permanecem um mistério mesmo após o final do conto, dá início a uma série de questionamentos por parte dos demais integrantes do núcleo familiar, que se veem obrigados a, assim como fez o patriarca, criar/inventar um novo modo de viver. 80 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Embora curto, o texto em questão é riquíssimo, dando margem (com trocadilho, por favor) a inúmeras interpretações, em especial sobre qual seria esta misteriosa “terceira margem”, o lugar/não-lugar para onde o pai foi, sem jamais retornar. O próprio Guimarães Rosa reconheceu, em carta enviada ao seu tradutor para o francês, o livro Primeiras Estórias como sendo uma “obra aberta”, conforme a definição de Umberto Eco (2001). Assim, o autor encarava sua obra como naturalmente sujeita a mais de uma interpretação: Muito mais que uma coleção de estórias rústicas, o 'Primeiras Estórias' é, ou pretende ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra, nele, assume pluralidade de direções e sentidos, tem uma dinâmica espiritual, filosófica, disfarçada. Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista. Há pouco, com poucos dias de diferença, um crítico, aqui, aludiu ao que há nele, como sendo um 'transrealismo', e outro crítico dava à coisa a denominação, aparentada, de 'realismo cósmico'. É um livro contra a lógica comum, e tudo nele parte disso. Só se apóia na lógica para transcendê-la, para destruí-la. (ROSA, 1963, internet) Assim, diante de um conto que pode abrigar várias interpretações, iremos abordar como a imaginação dos personagens determina os rumos de suas vidas e da própria narrativa, já que esta imaginação modifica as vidas de todos, de formas muitas vezes radicais. Assim, tentaremos chegar a uma resposta para a seguinte questão: “Qual é a importância dos elementos imaginários na construção dos personagens e do lugar do conto?”. Para isso, levantamos as seguintes hipóteses: - A fuga do pai é uma catalisadora para a constituição de um outro modo de vida/mundos possíveis: Conforme comenta Tania Rivera: Nessa falta de beira, nesse rio-tempo sem direção nem palavra, a partida do pai vem estabelecer uma margem. O pai parte e reparte a cena do conto, corta o espaço da casa em relação a um outro espaço inapreensível, disruptivo, duplicando em outro espaço – esse “subjetivo”, se quisermos, o da vivência do narrador – uma marca fundamental. (RIVERA, 2005, p. 83) 81 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 - A imaginação do filho cria a imagem do pai “ausente”: Conforme a definição de Jean-Paul Sartre: O ato de imaginação, como acabamos de ver é um ato mágico. É um encantamento destinado a fazer aparecer o objeto no qual pensamos, a coisa que desejamos, de modo que dela possamos tomar posse. Nesse ato, há sempre algo de imperioso e infantil, uma recusa de dar conta da distância, das dificuldades. (SARTRE, 1996, p. 165) - Ao deixar a casa e o convívio com as pessoas, o pai se funde com o rio, tornando-se um com ele: Nas palavras do conto: “(...) nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente.” (ROSA, 2001, p. 81) Por trás de todas estas hipóteses, está a capacidade do ser humano (simbolizados pelos personagens) de se inventar/reinventar, criando e se adaptando às circunstâncias. Imaginação e Memória Quando analisamos o ponto de vista do filho-narrador, tratamos, principalmente, sobre a questão da imaginação, já que o mesmo cria, em sua mente, a imagem do pai que se ausentou. Jean-Paul Sartre definia a imaginação como sendo o “conhecimento por imagens” (SARTRE, 2008, p. 15). Estas imagens, que ele chama de imagens mentais, são utilizadas pela nossa mente como forma de apreender o mundo, permitindo que nos relacionemos com objetos que não estão sendo percebidos com nossos sentidos físicos (seja aqueles que não têm existência como aqueles que existem, mas que não estão, atualmente, presentes), presentificando, assim, objetos ausentes . Segundo Sartre: A apreensão desses objetos faz-se sob a forma de imagens, o que quer dizer que eles perdem seu sentido próprio para adquirir um outro. Em vez de existir para si, no estado livre, são integrados numa nova forma. A intenção serve-se deles como meio de evocar seu objeto, tal qual nos servimos de mesas 82 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 moventes para evocar os espíritos. Servem como representantes do objeto ausente, mas sem que suspendam essas característica dos objetos de uma consciência imaginante: a ausência. (SARTRE, 1996, p. 36) É precisamente esta função da imaginação (a representação de algo ausente) que o filho (assim como sua mãe e seus irmãos) retratado no conto utiliza de seu imaginário para jamais permitir que seu pai, mesmo distante dos olhos, deixe de fazer parte de sua vida, de seu dia a dia, o que fica claro na seguinte passagem: A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. (ROSA, 2001, p. 83) A questão da Memória também é importante no conto, já que permeia toda a narrativa, como no seguinte trecho: “Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos” (ROSA, 2001, p. 82-83). O filho conta a história como se falando de acontecimentos distantes, ocorridos em um passado remoto, trazendo uma narração que, ao final, revela estar sendo feita em seu leito de morte, como podemos deduzir pelo final do conto: “Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio” (ROSA, 2001, p. 85). Ele fala daquilo de que se lembra, e destaca, ao longo da narrativa, passagens que ficaram marcadas fortemente em sua memória, por causa de seu grande impacto emocional: “E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta”(ROSA, 2001, p. 80). É a partir dessas lembranças, pois, que o nosso narrador vai montando sua história. É importante destacar, porém, que segundo a visão de Sartre, memória e imaginação são coisas inteiramente diversas: 83 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Certamente, a lembrança parece, de vários pontos de vista, muito próxima da imagem, e às vezes podemos extrair nossos exemplos da memória para compreender com maior clareza a natureza da imagem. Se evoco um acontecimento de minha vida passada, não o imagino, lembro-me dele. Ou seja, não o coloco como dado-ausente, mas como dado-presente no passado. (…) Existe como uma coisa passada, o que é um modo de existência real entre outros. (SARTRE, 1996, p.236) Assim, ele afirma que a memória faz parte do processo de constituição da imagem, mas não é, ela mesma, uma imagem. No conto, uma das mais fortes características do personagemnarrador é justamente sua incapacidade de se libertar do passado, já que o mesmo chega a afirmar não ter a capacidade de se esquecer dos fatos vivenciados: “E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta”(ROSA, 2001, p. 80 – grifo nosso). Ao destacar sua incapacidade de esquecer, o narrador explicita sua prisão em relação ao passado, que o impede de viver o presente e avançar rumo ao futuro. REFERÊNCIAS ECO, Umberto. Obra Aberta: Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. (Tradução de Giovanni Cutolo do original Opera Aperta, 1962). São Paulo: Perspectiva, 2001. RIVERA, Tania. Guimarães Rosa e a psicanálise: ensaios sobre imagem e escrita. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ROSA, João Guimarães. Carta de 14 de outubro de 1963 endereçada a Jean-Jacques Villard. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/6/30/mais!/10.html>. Acessado em 07/09/2014. ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 84 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 SARTRE, Jean-Paul. A imaginação (tradução de Paulo Neves do original L'imagination). Porto Alegre: L&PM, 2008. SARTRE, Jean-Paul. O imaginário: Psicologia fenomenológica da imaginação (Tradução de Duda phénoménologique de Machado do l'imagination, 85 original 1940). L'imaginaire: São Paulo: Psychologie Ática, 1996. ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 MORAL DA HISTÓRIA- A LITERATURA INFANTIL COMO PROCESSO DE FORMAÇÃO, POR LÚCIA MIGUEL PEREIRA Edwirgens A. Ribeiro Lopes de Almeida (UNIMONTES) RESUMO: A escritora Lúcia Miguel Pereira foi uma das pioneiras mulheres a investir na crítica literária brasileira. Ademais dessa sua reconhecida função, a mesma também investiu na escrita romanesca não adquirindo muito destaque nessa função. Ao lado de quatro romances intitulados Maria Luísa, Em Surdina, Amanhecer e Cabra-cega, destinados ao público adulto nos quais a autora destaca a condição social da mulher nos primeiros cinquenta anos do século XX, escreveu ainda, entre os anos 1939 e 1943, títulos como A fada menina, Na floresta mágica, Maria e seus bonecos e A filha do Rio Verde, narrativas que visavam a agradar a imaginação infantil. Como esse acervo infantil encontra-se desaparecido, podemos depreender o posicionamento da escritora mineira acerca da literatura para crianças através de registros críticos publicados em jornais do Rio de Janeiro. Neles, revela que a arte literária pode ser entendida como um instrumento de formação, isto é, um elemento pedagógico que evidencia, indica e transforma a condição da criança/leitora. Palavras-chave: ficção, crítica, literatura infantil RESUMEN: La escritora Lúcia Miguel Pereira fue una de las pioneras mujeres a investir en la crítica literaria brasileña. Además de su reconocida función, la misma también fue novelista no teniendo mucho destaque en esa función. A lo largo de cuatro novelas rotuladas Maria Luísa, Em Surdina, Amanhecer e Cabra-cega, destinadas al publico adulto en los quales la autora destaca la condición social de la mujer en los primeiros cincuenta años del siglo XX, escribió, entre los años 1939 y 1943 títulos como A fada menina, Na floresta mágica, Maria e seus bonecos e A filha do Rio Verde, narrativas que objetivan agradar a la imaginación de los niños. Como esta colección infantil no se encuentra disponible, podemos inferir la posición de la escritora de literatura para niños a través de los registros críticos publicados en periódicos de Rio de Janeiro. En ellas, se revela que el arte literario puede ser entendido como una herramienta de formación pedagógica que cambia la condición del niño/lector. Palabras clave: ficción, crítica, literatura infantil É preciso destacar, não somente no âmbito brasileiro, o foco dado à literatura destinada a crianças marcava contornos de comportamentos desejados, sobretudo pela classe dominante. Sendo assim, a literatura infantil brasileira nasceu sob a influência dos contos de fadas e folclóricos voltada para a explícita intenção moralizante. Contudo, no Brasil, há poucos registros de escritoras que se empenharam nesse tipo de literatura na transição do século XIX para o XX. Do período que compreende os anos de 1890 a 1930, destacam-se as escritoras Carmen 86 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Dolores, Júlia Lopes de Almeida e Madame Chrysanthéme, psedônimo de Cecília Bandeira de Mello Vasconcellos e Lúcia Miguel Pereira. Esta última é bastante conhecida como crítica literária, historiadora da literatura, biógrafa de Machado de Assis e de Gonçalves Dias, porém pouco lida como romancista, sendo que atuou na escrita para adultos e para crianças. Desse legado romanesco, temos contato com os quatro romances que visam à reflexão da condição social da mulher Maria Luísa, Em Surdina, Amanhecer e Cabra-cega, mas foi-nos cerceada a possibilidade de leitura dos quatro livros escritos para crianças intitulados, A fada menina, Na floresta mágica, Maria e seus bonecos e A filha do Rio Verde. Produzidos entre 1939 e 1943, essas obras infantis desapareceram das estantes dos leitores, sendo que, consequentemente, nenhum estudo críticos tenha sido realizado sobre eles. Já que não nos foi possível, até o presente momento, contatar essa produção infantil da autora, resta-nos refletir acerca de seu posicionamento sobre este tipo de literatura nos registros deixados como crítica de textos de ficção, deixados entre as décadas de 30 e de 40 em jornais e revistas. Entendendo que este público merecia uma atenção especial dos escritores, Lúcia Miguel Pereira, além de focalizar as crianças em alguma de suas ficções, expõe, sob teor crítico, sua leitura sobre a magia que cerca o mundo infantil. Distinguindo a literatura infantil daquela que visa a alcançar o público adulto, Lúcia Miguel Pereira, escrevendo para o Boletim de Ariel do Rio de Janeiro em julho de 1932, argumenta: Poder escrever, não só para criança, mas ainda como criança, é um precioso dom. Todos nós poluímos tão depressa a frescura de imaginação, a espontaneidade necessárias para isso. E, sobretudo, perdemos o sentido do ilimitado, das possibilidades sem fim, quase do milagre, que torna imenso e riquíssimo o universo infantil (PEREIRA, 1992, p. 243-244). A autora destaca acima a distinção entre se escrever como e para crianças, deixando entrever a inocência presente nos textos infantis, já 87 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 perdida pelos adultos. Ressalta também a pluralidade de sentidos, das múltiplas possibilidades de leituras que o universo infantil propicia. Contudo, é preciso ter presente que o texto literário, seja escrito para adultos seja escrito para crianças, cumpre uma prática ética e social. Por conseguinte, é recheado de ideologia, podendo ou não se comprometer com o mundo referencial. Nesse sentido, a arte é social, sofrendo e exercendo influência do e sobre o meio. Para Candido, A arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais (CANDIDO, 2000, p. 20). Sob esse pressuposto de que a arte influencia e é influenciada, é que Lúcia Miguel Pereira trata a importância da literatura infantil. Relevante anotar que nos registros da década de 30, o viés do pensamento crítico se estrutura em torno da beleza da arte escrita para crianças. Segundo ela, “as crianças são muito sensíveis ao belo” (PEREIRA, 1992, p. 245) e só lhes interessam os livros que se vivem, mais que aqueles que se lêem. Completa: “Não sei bem em que residirá essa diferença, mas é sensível; talvez esteja na qualidade da emoção que comunicam, mais intelectual nos primeiros, nos últimos mais direta, mais elementar, isto é, influindo nos elementos, nas fontes da sensibilidade” (PEREIRA, 1992, p. 245). Ainda para a escritora, o belo e o deslumbramento em literatura infantil se dão quando o maravilhoso e o quotidiano se sucedem sem transição aparente. O extraordinário e a surpresa tornam o ambiente do livro encantador. Citando como exemplo, Lúcia Miguel Pereira argumenta que uma obra que merecia ser traduzida para a alegria das crianças brasileiras por compor todos esses requisitos que conquistam as crianças é o livro tcheco-eslovaco dos irmãos Capek, intitulado no inglês de Fairy Tales. Nele, é evidente uma sensação de estar vendo o impossível 88 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 realizado e é notada uma dissolução das barreiras de aliar a fantasia às coisas da vida comum, o que torna a obra muito agradável, inclusive para os adultos. Ainda ali, na década de 30, a crítica traz a problemática sobre os tipos de textos adequados ao público infantil. E escreve, para o Boletim de Ariel, há quem condene, para a infância, a leitura dos contos de fadas... Mas esses devem ter tido uma triste meninice, para ignorarem assim que, nessa idade, tudo é conto de fada. Um sabugo de milho é uma boneca, um cabo de vassoura é um cavalo (PEREIRA, 1992, p. 246). Ao destacar a importância da fantasia no universo infantil, entendendo a relação da imaginação com a realidade, e ressaltando também a relevância do texto infantil comunicar o mundo de fantasia vivido pela criança. Ao exemplificar como os contos de fadas povoam o universo infantil, faz uma alusão à representação tão bem expressa por Monteiro Lobato no Sítio do Picapau Amarelo entre os anos 1920 até 1947, transformando objetos do cotidiano em personagens da imaginação do pequeno público leitor. Nesse sentido, apresentando-se como um dos motivadores de que a leitura para crianças abordassem temáticas do próprio universo infantil, Monteiro Lobato se configura num dos mais importantes escritores de literatura infantil do Brasil. Na trilha da prática lobatiana, Lúcia Miguel elege essa destruição entre as barreiras dos fatos comuns e a fantasia como um elemento primordial na concepção de um bom livro para agradar o pequeno público. Antonio Candido, em artigo intitulado “Lúcia”, destaca que a crítica, “desde menina manifestou muita capacidade fabulativa, criando um personagem, a princesa Rosa Violeta, protagonista das histórias que inventava para as irmãs e apareceria mais tarde nos seus belos contos infantis” (CANDIDO, 2004, p. 129). É importante ressaltar que a literatura para crianças ganha força no Brasil a partir dos escritos de Monteiro Lobato, contudo, segundo Ana 89 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Maria Mauad (1999), os princípios da educação e instrução oitocentista no Brasil registra que, paralela à literatura de caráter universal, prevalecia uma literatura de cunho moralista, própria do século XIX, direcionada à infância e à adolescência: formadora de caráter, de moral identificável, com modelos de virtude, amor e desprendimento a serem seguidos pelas crianças e jovens. A própria literatura romântica cumpria um modelo que visava à educar as mocinhas dentro de um paradigma patriarcal. Nos escritos para crianças, um dos matizes orientadores dessa produção esteve muito relacionado à preocupação com o moralismo, ou melhor, com o caráter didático que esses textos apresentam. Sobre essa questão, Lúcia Miguel Pereira escreve para o jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, no ano de 1945: O problema do moralismo em literatura assume nos livros infantis feição particularmente grave. De certo modo, toda obra de ficção é moralista, já que, patenteando uma concepção de vida, encerra forçosamente um sentido moral; por isenta, por pouco concludente que seja, revela, mesmo a despeito do autor, uma orientação tanto mais sugestiva e convincente quanto mais involuntária e espontânea (PEREIRA, 1994, p. 52). Entendendo que todo texto de ficção pretende-se moralista, se não é escrito prioritariamente com essa função a mesma exerce quando apresenta certa concepção de vida e espera-se que tal mensagem seja assimilada pelo leitor. Como salienta Pereira, nas histórias para crianças, os riscos de transgredir os limites entre o desejo de influenciar e a tomada de posição, entre o moralismo e a atitude moral é mais acentuado que em outras obras. Lúcia Miguel Pereira também esclarece que, para um adulto, um livro pode ser apenas fonte de entretenimento enquanto para uma criança pode exercer função educativa. Completa: Para um adulto, um livro pode ser mera distração, pode ser simples documento, pode ser aceito parcialmente ou 90 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 parcialmente rejeitado: para um menino, que está sempre, inconscientemente, aprendendo e assimilando, é muito mais que isso: é um contato com a existência, é uma experiência nova, é uma abertura para o mundo, é alguma cousa de vivo que se incorpora à sua sensibilidade; desde que o interesse, que lhe consiga captar a atenção, terá sobre ele uma influência de cujos resultados não sabemos bem aquilatar, ignorantes como somos das condições e disposições de cada jovem leitor (PEREIRA, 1994, p. 52). Compreendendo as dificuldades de se mensurar os limites da assimilação de um texto por um jovem leitor, a crítica assegura que as crianças são disponíveis e receptivas às leituras, mas não são passivas. Dessa forma, “o simplismo das chamadas leituras edificantes, onde se pretende mostrar a virtude recompensada e o erro castigado provém de um preconceito, de se julgar que as crianças são completamente disponíveis, passivamente receptivas” (PEREIRA, 1994, p. 52). Para exemplificar, a crítica argumenta que a reação de uma criança à leitura de um texto pode surpreender. Um texto que se queira edificante pode marcar na criança mais os traços do mal e esta nem perceber a lição que lhe tentam dar. Segundo Pereira, é comum uma criança se ater com mais acuidade aos detalhes de uma narração, repetindo seus pormenores, que ressaltar seu sentido moral, por isso resulta inútil o moralismo. Sem dúvida, a preocupação de ser sadio, de mostrar da existência os aspectos mais nobres, não deve faltar ao gênero dedicado a quem tem diante de si a vida toda, e precisa sentirse confiante. Mas pureza e otimismo são uma coisa, e moralismo outra. A intenção de fornecer bons exemplos, de inspirar sentimentos elevados será louvável, mas não basta e tornar-se-á mesmo, em alguns casos, contraproducente – pois é preciso não esquecer o espírito de contradição das crianças (PEREIRA, 1994, p. 53). Sem se prender ao moralismo, Lúcia Miguel Pereira entende que o importante é que o livro saiba comunicar uma clara e alegre impressão de sinceridade e de liberdade, de limpeza espiritual em todas as suas instâncias, nas palavras escolhidas, na harmonia da frase, em cada personagem em cada cena e nos conceitos expedidos, não ficando o 91 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 moralismo apenas na conclusão. Através de sensações intelectuais e estéticas, buscar desenvolver o raciocínio em leituras agradáveis e risonhas, que os façam pensar. Marina Warner explica que “os narradores dos contos de fadas sabem que um conto, para cativar, deve levar os ouvintes ao prazer, ao riso ou às lágrimas, pois se falharem, ninguém mais vai querer ouvir suas histórias” (WARNER, 1999, p. 449). Na trilha dessa mesma reflexão que orienta o pensamento crítico da transição do século XIX para o XX, Lúcia Miguel põe em relevo o gosto pela leitura que se deve despertar no pequeno leitor. Para ela, muitos livros incorrem no erro de serem infantis demais. Linguagens muito simplificadas, temas banalmente cotidianos que não estimulam a imaginação. Possível perceber como as crianças se interessam por obras cujo alcance não apreendem inteiramente e que não foram escritas para elas como Robinson Crusoé, As viagens de Gulliver, Dom Quixote e até certas peças de Shakespeare e de Corneille. Para as crianças, “é pelo senso poético que, instintivamente, se comunica com o universo; o impossível não existe para ele, o maravilhoso lhe é tão próximo como o quotidiano” (PEREIRA, 1994, p. 53). Como salienta Bruno Bettelheim, a criança sabe que “a verdade dos contos de fadas é a verdade da nossa imaginação” (BETTELHEIM, 1980, p. 148). E, nesse sentido, Lúcia Miguel Pereira já, no ano de 1945, critica o fato de pedagogos combaterem as histórias de contos de fadas. Para ela, “querer expulsar o irreal do mundo infantil é tentar - em vão- reduzir-lhe as dimensões, abafar-lhe as ressonâncias, empobrecê-lo, amesquinhá-lo; querer subordiná-lo estritamente à lógica é desconhecer o ímpeto criador da imaginação ainda não sofreada pela vida” (PEREIRA, 1994, p. 53). Diante do exposto, é preciso destacar que Lúcia exprime, nos textos críticos examinados, a distinção de abordagem no texto infantil. Nesses, antes de apresentar personagens que devem se comportar em situações de virtudes, devem expor o campo de atuação infantil, seu universo mágico, uma vez que a maior contribuição da literatura para crianças é o 92 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 despertar do gosto pela leitura, do desenvolvimento da imaginação, pois esse universo é que fala à fantasia e aos sentidos das crianças, sendo esta, de fato, a moral da história. REFERÊNCIAS BETTELLEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. (Trad. Arlene Caetano) Rio de Janeiro: Paz e terra, 1980. CANDIDO, Antonio. Lúcia. In: O albatroz e o chinês. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004. p. 127-132. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8.ed. São Paulo: Queiroz, 2000. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. (Trad. Hildegard Feist) São Paulo: Companhia das Letras, 1994. MAUAD, Ana Maria. 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Thelma Médici Nóbrega) São Paulo: Companhia das letras, 1999. 93 ESCRITURAS E TECITURAS: A CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA SOB A ÓTICA DO ESCRITOR MONTESCLARENSE JOÃO LUIZ MACHADO LAFETÁ Enólia Nunes Ferreira Lopes RESUMO: A crítica literária brasileira tem ao longo dos anos apresentado períodos de intenso trabalho intelectual, com renomados autores e obras. Dentre estes, se encontra o escritor montesclarense João Luiz Lafetá. Pretende-se, nesta pesquisa, evidenciar na obra de Lafetá, os elementos que caracterizam a sua crítica, no que diz respeito aos pressupostos metodológicos de gênero, de linguagem, de perspectivas histórico-sociais, dentre outras nuances. Pesquisar em sua produção os modos como se apresentam as dimensões marxista, psicanalítica e da teoria estética e, como se dá a em seus construtos, a articulação dos nexos essenciais entre subjetividade e história social, técnica literária e consciência política. Enfim, revelar ao universo acadêmico norte-mineiro, o legado de Lafetá, enquanto estudioso da literatura nacional, para a qual ele se faz tão importante, constitui o foco deste projeto. Palavras-chave: Crítica literária. João Luiz Machado Lafetá. Montesclarense. ABSTRACT: The brazilian critical literature has, over the years, presented periods of a intensive intelectual work, with renowned authors and works. Among them, is the miner writer João Luiz Machado Lafetá. In this research, we intende to present the elements that can characterize his criticism, with regards to his methodology, genre, language and social-histhoric perspective, to research in his production, the form that he presents the marxism, phsychoanalytic and the esthetic theory and how is possible to see in it, the articulation between subjetivity and social-history, technical literature and political conscience. Finally, to show to the academic universe, the Lafetá collected work, as a researcher of the brazilian literature, in,a field where he is so important, is the focus of this project. Key-words: Critical. Literature. João Luiz Machado Lafetá. Montesclarense Para Leyla Perrone-Moisés (1982, p.163), o discurso crítico dos escritores é o mais investido, o mais interessado, o mais implicado e o de maiores consequências: porque orienta a produção de suas próprias obras, dando assim continuação à Literatura. Esta autora fala sobre a falta de critérios estáveis que começaram a faltar aos escritores modernos, desde que as academias começaram a se calar e as obras deixaram de surgir sob a expectativa de um critério estável, sejam de caráter moral, de gênero e de estilo e passaram a investir no desejo de escrever com certo conforto. 94 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Percebe-se então, que, no partir do Romantismo, os críticos literários se valem de nova maneira de se expressar sobre a obra avaliada, sejam estas obras do seu próprio tempo ou que tenham sidos escritos em época anterior. Esta nova postura, ou esse renovar da crítica literária, passa então a assumir características diversas, seja esta crítica amadora ou profissional, o que parece contribuir para a cercear a liberdade no uso de determinados critérios para a qualificação da obra, cuja justificativa se assenta no fato de tentar se precaver quanto ao julgamento a emitir. Tal prática, se concretiza no romantismo, de maneira que então passe a predominar na análise, a possiblidade de um novo julgamento, e que contemple o novo, o inusitado, o diferente, de modo a romper com o modelo clássico e suas regras. A crítica literária nacional, ao longo de sua história, tem apresentado períodos de intenso trabalho intelectual, com o surgimento de grandes nomes. Não caberia aqui nomeá-los, sob o risco de se cometer injustiças. Dentre os vários autores que poderíamos citar, há um que, segundo o estudioso Antonio Candido, (2004, p.14) tem reconhecidamente, por parte de colegas, alunos e amigos, qualidades raras e originais, de homem e de intelectual, cuja ausência continua causando uma mágoa não cicatrizada. Este é João Luiz Machado Lafetá, que parece ser, aos olhos da comunidade acadêmica norte mineira, pouco revelado. Desnudar a obra de Lafetá, o seu legado enquanto estudioso e crítico da literatura nacional, para a qual ele se faz tão importante, constitui o foco deste trabalho. O montesclarense João Luiz Machado Lafetá foi um nome atuante na literatura brasileira nas décadas de 1970 e 1980 e construiu uma obra rica e elaborada sobre sólidas raízes, tornando-se referência obrigatória quando se refere à crítica literária neste país. Segundo Antonio Candido, seu professor e orientador de estudos na Universidade de São Paulo: 95 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A sua contribuição à crítica literária é muito importante, sobretudo pela argúcia das análises e das interpretações. O seu livro 1930: a crítica e o modernismo (1974) definiu de maneira original o movimento que, na literatura contemporânea do Brasil, deu lugar à passagem do “projeto estético” dos anos de 1920 ao “projeto ideológico” dos anos de 1930, processo que localizou, definiu e nomeou, incorporando seus conceitos, o seu modo de ver ao cânon crítico. (PRADO, 2004. p. 11). Desta maneira, constitui objetivo desta pesquisa, buscar em sua escrita, as influências que se estabelecem pelas nuances do marxismo, da psicanálise e da teoria estética, dimensões caracterizadoras da sua obra, que interlaçadas, se constituíram em uma visão integrada e instigante da crítica literária, permeada pelas suas múltiplas visões e experiências sociais e culturais. Segundo Prado (2004. p. 15) Lafetá construiu uma perspectiva crítica extremamente reveladora, capaz de surpreender na articulação da forma os nexos essenciais entre subjetividade e história social, técnica literária e consciência política. Em A dimensão da noite, o escritor Antonio Arnoni Prado (2004) reuniu mais de quarenta textos — muitos deles inéditos em livro — que desenham a trajetória intelectual completa de Lafetá, das primeiras análises de peso nos anos 1970 até sua morte prematura em 1996. Nesta, Lafetá traz ensaios penetrantes sobre o modernismo brasileiro, com textos que analisam a obra de Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Ferreira Gullar ou Rubem Fonseca, alguns deles inéditos, mas não menos intensos, em que numa narrativa clara, bem construída, e sobretudo, inteligentes. Com a astúcia que lhe é facilmente perceptível e peculiar, procura apontar, numa crítica incisiva e penetrante, os aspectos em que as produções destes escritores, seus contemporâneos, avançaram ou se confrontaram com os novos tempos. Muitos são os indicativos da qualidade da obra de Lafetá. Para Carlos Tavares (2005, p.8) ele faz parte da uma linhagem rara, que agrega nomes como Oswaldino Marques, Davi Arrigucci Jr, Silviano Santiago, Antônio Olinto, Alexandre Barbosa e Roberto Schwarz. 96 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Para Lafetá, a literatura produzida na década de 1930 foi uma continuidade daquilo que estava sendo produzido na década de 1920, e o que diferencia os dois momentos é uma ênfase de foco. Segundo este, no modernismo a ênfase estava voltada para a questão estética e durante os anos 30 esse olhar teria sido deslocado para a questão ideológica. Acredita-se que nesta pesquisa seja preciso ir em busca de outros nomes, com o objetivo de construir os argumentos necessários à fundamentação teórica, tendo em vista que revelar a crítica presente na obra de João Luiz Machado Lafetá não é tarefa das mais simples. Pois para Candido (2002) O fato, porém, da pessoa do crítico ser a base do processo crítico, não quer dizer que ela seja a sua razão de ser, nem que deva ser o seu aspecto principal. Muito pelo contrário. Creio mesmo firmemente, que o trabalho do crítico só começa quando ele ultrapassa a sua pessoa, num esforço e colocar em primeiro plano aquilo que lhe parece a realidade da obra estudada. Rejeito, portanto, integralmente – como por mais uma vez já o tenha feito em artigo – o conceito impressionista que faz da crítica uma aventura da personalidade, um passeio através das obras e dos autores com o intuito exclusivo de penetração e de enriquecimento pessoal. Parece, então, que quando se fala em João Luiz Lafetá, os autores os quais conviveram com ele e com sua obra, têm sempre considerações importantes a fazer. Com sua morte, em 1996, Tavares (2005) diz que “abriu-se um dos claros mais lamentados na vida universitária brasileira, referindo-se à falta do Lafetá professor, crítico e ser humano de qualidade excepcional que era”. Diante do desafio de expor as ideias de Lafetá, com o propósito de discutir o lugar deste crítico no painel dos estudos literários brasileiros sobre o modernismo, não se pretende fazer um julgamento da obra deste estudioso, mas, contrapor a sua crítica, a partir das obras de outros autores, cujos critérios de análise se assemelhem aos adotados pelo 97 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 montesclarense, pois segundo Derrida (1930), a crítica literária como julgamento tornou-se teoricamente impossível. E ainda, para completar este argumento, buscar nas palavras de Leyla Perrone-Moisés, sobre os críticos de inspiração psicanalítica ou psicológica, que buscam muito mais nas obras, para muito mais do que as verdades que elas revelam, sendo que o valor dessa é proporcional à capacidade do escritor em revelar essas verdades: [...] “Bons tempos do humanismo: os críticos valorizavam a obra em função do que ela nos ensinava”. (PERRONE-MOISÉS, 1982, p.162) Assim, pelas páginas de A dimensão da noite, de 30: Crítica ao Modernismo (2004) e outras obras da escritura de Lafetá, pretende-se buscar o que este autor nos revela sobre as possibilidades de releitura de textos de autores por ele adotados. Os critérios a serem adotados para esta análise serão definidos na medida em que a pesquisa seja feita, uma vez que será necessário como procedimento metodológico, realizar um levantamento bibliográfico, de toda a obra com caráter de crítica literária do autor, sua trajetória enquanto escritor, as influências que podem estar presentes em sua análise, para se tentar elencar os elementos pelos quais ele se vale, em seus procedimentos de escritor-leitor, na releitura das obras. E tentar, assim, expor os aspectos que se tornam relevantes para compreender o fio condutor da sua análise. A proposta aqui feita, parte do pressuposto de que [...] um texto se reescreve indefinidamente à medida que é sucessivamente lido e, ainda mais, que ele se escreve no momento em que é lido, já que a leitura é condição da escrita e não o inverso, como antes se postulava (Roland Barthes, 1966, p.66) É sabido que o papel do crítico literário, na história da literatura brasileira, já passou por momentos gloriosos, como também por aqueles em que recebeu estigmas como inferior, aleijado, impotente. Eis a desoladora conclusão de um colóquio sobre a crítica, do ano de 1966, de Georges Poulet, citada por Perrone-Moisés: 98 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 O crítico não é aquele que rouba a poesia do poeta, que se enfeia com as plumas do pavão, que, por um dia ou uma hora, toma o lugar do rei? [...] Um cego a que se emprestam olhos, um não-poeta que recebe o dom da poesia, eis o que é um crítico [...]. Digamos, em suma que eu me substituo por alguém melhor do que eu” (PERRONE-MOISÉS, 1978). Para Perrone-Moisés, esta ainda é a atitude de muitos críticos contemporâneos. Mesmo que haja questionamentos tão contumazes sobre a crítica literária, que há muitos anos são assunto dos textos especializados, nas várias leituras em que se busca argumentos sobre o tema, o que se percebe, pode-se arriscar dizer, é que o crítico, ao fazer uma análise da obra, compromete-se definitivamente com ela. O leitor passa, então, passa a compor o texto, é o elo de ligação entre o escritor e o mundo. Vê-se que o papel do crítico então, tem uma importância imensurável para o autor, pois ele, como o leitor, é que garante a permanência e a continuidade da obra. Essa trajetória da crítica literária no Brasil, permeada por momentos de grande notoriedade e por outros de insignificância, parece ter influência direta do momento histórico-social do país. É possível perceber que da crítica de rodapé à crítica universitária, as tensões entre o valor do crítico e seu papel social tem perpassado por momentos distintos. Tendo em vista esses altos e baixos do papel do crítico e o contexto em que se realizam os seus construtos analíticos, o modo como influencia e sofre influência, propõe-se aqui, uma investigação científica de caráter bibliográfico e documental que tenha como objetivo revelar através das obras de Lafetá, qual foi o seu legado para a história da crítica literária brasileira. Embora este seja mineiro de Montes Claros, percebe-se que foi fora daqui, da sua cidade Natal, que construiu a sua história, tendo primeiro atuado na Universidade de Brasília - UNB e depois na Universidade de São Paulo - USP, dois dos maiores centros acadêmicos brasileiros. Nesta empreitada, constitui objetivo material, a elaboração escrita, sob o molde científico, das características da produção crítico-literária 99 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 deste montesclarense, através dos livros e ensaios produzidos por este durante a sua vida acadêmica, de modo a investigar, catalogar e propor uma interpretação das suas obras. Através de levantamentos de acervos, promover a leitura destas, e levantar os elementos norteadores da sua crítica, como linguagem, gênero, contextos, dentre outros aspectos que possam revelar, caracterizar e fundamentá-la. Acredita-se que, com esta metodologia de pesquisa, seja possível o acesso à obra de Lafetá e a manipulação das informações acerca do seu trabalho. E ainda, comparar a literatura crítica de Lafetá com outras críticas de escritores brasileiros, contemporâneos do mesmo e de renome nacional, a serem definidos durante o levantamento bibliográfico e evolução dos estudos. O Estudo bibliográfico permitiria, também, meios para “definir, questionar, e responder hipóteses já levantadas, ou mesmo suscitar outras que, ao serem exploradas, podem trazer informações novas, importantes indispensáveis ao estudo” (MANZO, 1971, p. 32 apud MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 44). Outro caráter presente na pesquisa é a análise documental, uma vez que buscará arquivos existentes sobre a vida e obra de Lafetá, através da sua família, amigos, parentes, que possam contribuir para o enriquecimento da mesma, assim como para comprovação dos fatos. Conforme Cervo e Bervian (2002, p. 66), neste tipo de pesquisa investigam-se os documentos para “descrever e comparar modelos usos e costumes, tendências, diferenças e outras características”. As fontes desta pesquisa podem ser extraídas de documentos escritos ou não escritos, tais como depoimentos, relatos, vídeos, fotografias, gravações. Os objetivos descritos neste projeto, embora possam parecer amplos e complexos, tendem a se esclarecer na medida em que forem sendo levantados os objetos, os meios, de modo que ela se encaminhe para o seu corpus principal, qual seja revelar a crítica presente nas obras de Lafetá, contrapondo-a a outros estudiosos seus contemporâneos, de modo a identificar e caracterizar os possíveis elementos que o 100 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 diferenciam ou o associam a estes, assim como identificar os elementos metodológicos, filosóficos, históricos e linguísticos constituintes de sua produção crítica e buscar apontar de que forma estes elementos contribuíram para a crítica literária brasileira. Enfim, espera-se, com a conclusão deste estudo, contribuir especialmente para a comunidade acadêmica, com uma análise de caráter científico, sobre a obra deste escritor, de modo a caracterizar os elementos condutores de sua literatura crítica, e o que, em sua trajetória, especialmente dos anos de 1970 a 1990, tenha feito com que ele se tornasse um dos maiores nomes da literatura brasileira. REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Vida Literária. Pesquisa, estabelecimento de texto, introdução e notas de Sônia Sachs. Ed USP, São Paulo, 1993. CANDIDO, Antônio. Textos de intervenção. Seleção apresentações e notas de Vinícius Dantas. São Paulo: Duas cidades; Ed.34, pp 23-36, 2002. CARPEAUX, Otto Maria. Presenças. Ministério da Educação e Cultura – Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro, pp 52-56, 1958. COUTINHO. Afrânio. A crítica e os rodapés. Crítica & críticos. Rio de Janeiro: Simões, pp. 19-23, 1969. 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ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A INSUBMISSÃO FEMININA NA NOVELA "ROQUE SANTEIRO" (1985) Gabriela Miranda de Oliveira13 RESUMO: A telenovela, assim como a literatura, oferece uma rica possibilidade de estudo acerca de seus personagens. Estudar a relação entre a mulher e a telenovela bem como as construções das representações femininas transmitidas por esse veículo é também compreender as relações de gênero e relações de poder existentes no cotidiano de cada época. Este trabalho pretende estudar as identidades e os discursos femininos da telenovela Roque Santeiro, que foi exibida no ano de 1985, após ter sido censurada dez anos antes de sua exibição. Nesta telenovela há uma desconstrução dos valores e paradigmas sociais que foram construídos em relação à postura das mulheres. A infidelidade, a desvalorização da família, a emancipação feminina e principalmente outra forma de "final feliz", sem casamentos, nem nascimento de crianças mostram a singularidade das personagens femininas de Roque Santeiro. Palavras-chave: Gênero. Telenovela. Roque Santeiro. RESUMEN: la telenovela, así como la literatura, ofrece una rica oportunidad de estudiar sobre sus personajes. Estudiar la relación entre la mujer y la telenovela y la construcción de representaciones femeninas por este vehículo es también comprender las relaciones de género y las relaciones de poder que existen en la vida cotidiana de cada temporada. Este trabajo pretende estudiar los discursos femeninos y las identidades de la telenovela Roque Santeiro, que fue exhibido en el año de 1985, después de haber sido censurados diez años antes de su exhibición. En esta telenovela de una deconstrucción de los valores y paradigmas sociales que se han construido en relación con la postura de las mujeres. Infidelidad, la devaluación de la familia, la emancipación y sobre todo otra forma de final feliz, no hay bodas, no hay nacimiento de los niños muestra la singularidad de los personajes femeninos de Roque Santeiro. Palabras clave: género. Telenovela. Roque Santeiro. As pesquisas a respeito das telenovelas no Brasil compõem um campo de estudo ainda pouco explorado. O primeiro estudo abordando essa temática ocorreu vinte e dois anos após a exibição da primeira telenovela brasileira, e de acordo com algumas pesquisas, essa demora seria justificada pelo fato da novela ser um produto tipicamente feminino. (SIFUENTES, 2009, p. 70). Sendo assim, estudar a relação entre a mulher e a telenovela bem como as construções das representações femininas transmitidas por esse veículo é também compreender as relações de gênero e relações de poder existentes no cotidiano de cada época. Este trabalho pretende estudar as identidades e os discursos femininos da telenovela Roque Santeiro, que foi exibida no ano de 1985, 13 Mestranda em História- PPGH 104 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 após ter sido censurada dez anos antes de sua exibição. Nesta telenovela há uma desconstrução dos valores e paradigmas sociais que foram construídos em relação à postura das mulheres. A telenovela é um gênero midiático inspirado em um modelo de programação dos Estados Unidos denominado soap-operas (óperas de sabão), assim chamados devido às multinacionais fabricantes de produtos de higiene e limpeza que os patrocinam. Essas grandes empresas patrocinavam esse tipo de produção visando vender seus produtos para o público-alvo específico: as dona de casa. E assim, através dos patrocinadores, das temáticas, e da própria herança histórica da telenovela, é possível traçar a relação existente entre as mulheres e as telenovelas. O estudo desse tipo de programação midiática possibilita construir análises sobre as relações de poder existentes nas relações de gênero. A autora Lírian Sifuentes analisa a telenovela como “mediação essencial na construção da identidade de gênero, pois transmite, diariamente, o que é ser mulher e quais comportamentos e ambições são permitidos à mesma” (SIFUENTES, 2009, p. 67). A escolha da novela "Roque Santeiro" se faz em razão do fato desta novela ter sido censurada pelo Regime Militar no ano de 1975, sendo considerada ofensiva à moral e aos bons costumes da época. Dentre as críticas presentes na obra, há uma carência de estudos acerca da singularidade das personagens femininas. A novela “Roque Santeiro” foi escrita por Dias Gomes e Aguinaldo Silva, tendo a colaboração de Marcílio Moraes e dirigida por Paulo Ubiratan, Gonzaga Blota e Jayme Monjardim. A narrativa se passa na fictícia cidade de Asa Branca, que foi saqueada por um grupo de ladrões liderados por um bandido chamado Navalhada. Nesse contexto, um cidadão “asabranquense”, conhecido como Roque Santeiro, devido à sua habilidade de modelar imagens de Santos, para proteger o povo, enfrenta os ladrões e é morto. Essa é a 105 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 versão que em Asa Branca foi propagada durante 17 anos, tomando uma proporção imensurável quando a figura de Roque Santeiro é santificada, cultuada e mitificada. A partir disso, muitos moradores da cidade, se tornam adeptos à exploração comercial da fé, onde, comercializando objetos relacionados a Roque Santeiro, acabam enriquecendo. A história de supostos milagres realizados pelo Santeiro que virou Santo, movimenta o turismo na cidade, e tem divulgação nacional. Em meio a tudo isso, aparece uma suposta viúva, que através de uma história duvidosa, relata ter casado com o Roque e apresenta certidão de casamento, dessa maneira se torna uma das maiores beneficiárias de toda essa história. Mesmo que alguém da população duvide, não poderá ir contra, visto que esta, além de uma personalidade forte, é aliada ao Coronel Sinhozinho Malta, fazendeiro de muitas posses e muito influente na região. No momento em que Luiz Roque Duarte, Roque Santeiro, volta para a terra natal e descobre todas as mentiras, fraudes e construções em volta da sua imagem, os beneficiários da exploração do mito, se desesperam. Dessa forma se dá a problematização da novela. A dona da boate, Matilde e também dona da pousada de maior sucesso de Asa Branca é interpretada pela atriz Yoná Magalhães, “(...) na novela faz o papel de Matilde, a sensual e bem-sucedida dona da primeira boate da cidade, que traz as dançarinas e o streap-tease para Asa Branca.” (HAMBURGER, 2005, p. 106). Em Roque Santeiro, Matilde é mencionada na novela como empresária do ramo do turismo, pois administra a “Pousada do Sossego” e a boate “Sexus”. A personagem é uma mulher decidida e bem sucedida em seus negócios. Durante a telenovela se mostra independente, sempre dizendo que não precisa de um homem ao seu lado para ser realizada. “Sapos, são todos sapos. Príncipe encantado só existe na imaginação romântica da gente.” (Novela Roque Santeiro, 1985). Após essa fala, Matilde é questionada por uma de suas funcionarias que pergunta se ela possui essa opinião por ter se desencantado. Matilde responde que a 106 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 mulher só chega a essa conclusão através de uma “tomada de consciência, de uma lucidez, assim se alcança a independência.” (Novela Roque Santeiro, 1985). O diálogo citado está presente na cena 109, que foi escrita por Agnaldo Silva. Matilde produz um discurso incomum na televisão, o qual nas novelas anteriores não é abordado. Sua participação em Roque Santeiro fortalece a ideia de que essa novela veicula representações femininas distintas e inovadoras. A personagem Tânia, também ilustra uma mulher com novas condutas. Na novela é interpretada pela atriz Lídia Brondi, é a filha do fazendeiro Sinhozinho Malta que foi criada no Rio de Janeiro. Tânia é uma “jovem contestadora que vive em atrito com o pai.” (MEMORIA GLOBO, 2012). A personagem não concorda com várias atitudes do pai e não tem medo de expor sua opinião. O ideal de modernidade é usado como mecanismo de atração midiática. As produções de telenovelas na tentativa de atrair uma grande quantidade de telespectadores, principalmente as mulheres, exploram o campo das novidades, como novos figurinos, novos adereços, novos penteados, novas perspectivas, novas formas de ser, facilitando a identificação de um maior número de mulheres, para que a representação possa agregar algum valor na vida da telespectadora. “O moderno se concebe, então, como o novo, o diferente, o que gera rupturas, o que amplia as perspectivas, mas também o que adentra territórios desconhecidos fomenta linguagens inéditas, estende suas coberturas de expansão e impacta outras ordens de vida social.” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 125). Logo no início da telenovela, Tânia começa a namorar o personagem Roberto Matias, interpretado pelo ator Fábio Júnior. No entanto, Sinhozinho Malta não é a favor do relacionamento da filha e quando descobre, no capítulo 106, que a filha passou a noite com o namorado, se desespera e diz que precisa defender a honra de sua filha. Tânia contesta defendendo que o pai vive em um mundo diferente do 107 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 dela, e Sinhozinho Malta diz que “o mundo é uma coisa só, a moral também é uma coisa só, é para todo mundo.”. (Novela Roque Santeiro, 1985). Nesse momento Tânia diz a Sinhozinho Malta que não era virgem desde quando veio do Rio de Janeiro, o pai fica sem reação, dizendo que a filha estava muito diferente. Na cena descrita acima Tânia, que representa um ideal de modernidade, desafia o patriarcalismo pregando uma liberdade sexual para o universo feminino. Uma das únicas mulheres casadas na telenovela Roque Santeiro, é a personagem interpretada pela atriz Cássia Kiss, do qual o nome Lugolina de Aragão é poucas vezes mencionado na telenovela, onde todos a chamam de Lulu. Ela é casada com o personagem Zé das Medalhas, que trabalha com o comércio de artigos religiosos na cidade. O casal vive em situação de conflito, onde a esposa, durante várias vezes, tenta se divorciar do marido, mas não obtém sucesso. O comerciante mantém a esposa trancada em casa, como uma prisioneira, e a primeira aparição de Lulu em Roque Santeiro, é quando a personagem foge de casa e vai até a boate que havia sido inaugurada em Asa Branca. No momento em que Zé das Medalhas a encontra na rua, há uma sequência de agressões, que começam na rua e terminam no quarto do casal. Zé das Medalhas conduz a esposa de maneira agressiva até a casa, enquanto a personagem grita. O comerciante humilha a esposa e trata a mesma como uma propriedade. Assim que entram em casa, ele chega a ameaçá-la de morte e critica a roupa da esposa dizendo: “Que vergonha, meu Deus que vergonha! Lulu, eu sou um empresário, eu estou prosperando na vida, eu tenho que ter uma mulher que seja descente, que se dê ao respeito, e você me sai com essa porcaria de vestido?”(Novela “Roque Santeiro”, 1985). Então Lulu diz que seu vestido é igual ao das mulheres da televisão, que não há nada de errado. Diante disso o marido proíbe a personagem de ver televisão e rasga seu vestido. 108 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 O discurso do personagem Zé das Medalhas, quando proíbe a mulher de ver televisão, reporta o pronunciamento do oficial especializado no combate a propaganda subliminar, citado no início desse capítulo, em que alerta acerca do perigo das representações femininas na televisão. O personagem Zé das Medalhas pode ser visto como uma crítica à manutenção das tradições, pois seu personagem é caricato e em diversos momentos atrapalhado. Telespectadores tomam os personagens e tramas de novela como modelos de comportamento, tipos ideais de comportamento, que compartilham com os outros brasileiros telespectadores (HAMBURGER, 2005, p. 144). Assim, a autora Esther Hamburger, analisa o fenômeno de projeção por parte do público, que é ilustrado em Roque Santeiro nas cenas acima do casal Zé das Medalhas e sua esposa Lulu. A personagem de Cássia Kiss sente-se “pertencer a certa comunidade imaginária” (HAMBURGER, 2005, p. 144) por estar com uma roupa igual a que viu na televisão. Apenas duas personagens são casadas na novela Roque Santeiro, a Lulu que sofre com as exigências do marido conforme exposto acima. E Dona Pombinha, a primeira dama da cidade. Interpretada pela atriz Eloísa Mafalda, a personagem se comporta como uma beata que nutre um casamento de muitos anos. No início da novela, a Dona Pombinha é devota de Roque Santeiro, seguidora radical da religião Católica e se mostra bastante autoritária no relacionamento conjugal. Gradativamente o prefeito Florindo Abelha tem sua imagem cada vez mais caricaturada, de um homem submisso e sem iniciativas. Seu marido é um homem calmo que em nenhum momento maltrata sua esposa. Dona Pombinha é uma personagem que apresenta uma inovação na teledramaturgia no que tange ao posicionamento da mulher casada. Enquanto, na mesma novela, a outra personagem casada é reprimida pelo marido e sofre agressões por parte do mesmo, Dona Pombinha representa uma postura de fere o patriarcalismo. 109 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Todavia, a personagem mantém a postura de uma beata, figura clássica e sempre presente nas telenovelas assinadas por Dias Gomes. Dona Pombinha não aceita a inauguração da boate na cidade de Asa Branca e organiza várias manifestações em defesa da “moral e dos bons costumes”. Com uma postura caricaturada, Dias Gomes critica o patriarcado, mesmo com as personagens que tentam reafirmar os discursos patriarcais. A Mocinha, filha de Dona Pombinha e interpretada por Lucinha Lins, figura uma personagem que critica a tradicional “mocinha”, e no decorrer da novela não se destacou, mesmo sendo uma das personagens centrais. “Mas isto não é privilégio da televisão, ela está apenas dando imagens elétricas às imagens mentais construídas em romances literários do século XVIII, conhecidos como água-com-açúcar, a heroína romântica e virgem a espera do príncipe encantado.” (LOPES, 2007). Esse tipo de heroína já não atende aos anseios da sociedade contemporânea. A personagem se veste como uma beata e anda pela cidade em companhia da mãe e das religiosas de Asa Branca. Porém durante a telenovela, por ter passado por decepções amorosas e religiosas, sofre mudanças comportamentais que ajudam a entender a crítica presente nessa personagem. No início da telenovela, a ex-noiva de Roque Santeiro, que jurou não se entregar a nenhum homem em virtude da morte do noivo, tem constantes brigas com a “viúva” Porcina, devido a Mocinha não aceitar e não acreditar na história contada pela viúva. Nas discussões Porcina chama Mocinha de “viúva virgem”, como forma de rebaixar a personagem. Após a volta de Roque Santeiro para cidade e o reencontro com Mocinha, a personagem ao descobrir a farsa do Santo que sempre foi devota, se decepciona com o ex-noivo e também com todas as mentiras sociais da cidade. Como uma espécie de epifania, ocorre uma mudança na personagem na forma de ser e de agir. 110 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Durante esse momento de mudanças, Mocinha desenvolve um comportamento estranho, dizendo ver tudo sujo a sua volta. Passa o dia inteiro limpando a casa, e toma banhos muito demorados, que por vezes os pais da moça precisam arrombar a porta do banheiro para ver se ela estava bem. Chega a dizer que não quer mais viver, porque o mundo não faz mais sentido já que tudo está sujo, inclusive ela. Até o fim da telenovela, Mocinha sofrerá alguns distúrbios de comportamentos, como o que foi citado, o que levará outros personagens da trama, incluindo sua mãe Pombinha e o pai, Prefeito Florindo Abelha, a julgarem que a moça estava ficando doida. Nenhum dos parentes de Mocinha procurou tratamento para a mesma e a personagem termina sozinha desiludida com as pessoas, com os relacionamentos amorosos, com a Igreja e com tudo que a rodeia. Dentre as personagens que compõem o elenco da novela, a que mais se difere das representações das novelas anteriores é a viúva Porcina. O excesso de ornamentos e a forma espalhafatosa de ser, compõe o figurino da viúva Porcina. A viúva Porcina incorpora elementos tidos como inadequados para uma mulher em sua representação, como hábitos vulgares. A personagem não tem filhos e em nenhum momento da novela fala sobre a maternidade. Como as outras personagens femininas dessa telenovela, Porcina não se casa no último capítulo. Com isso, percebe-se que a personagem não segue o papel destinado à mulher em uma sociedade patriarcal, onde procriar, zelar pelo bem estar da família e do lar constituem uma máxima comportamental. Levando em conta que a mídia desempenha um papel na naturalização das relações de poder socialmente construídas, “Roque Santeiro” contribui para a propagação de um modelo alternativo de “ser mulher”, naturalizando um novo tipo de protagonista. Inicialmente a Viúva Porcina seria a vilã da história em virtude da mentira que a insere no contexto da novela, em que finge ser viúva de 111 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Roque Santeiro. Contudo, diante da boa recepção da personagem, a mesma se torna protagonista. A música tema de Porcina também acompanha o sucesso da personagem. Escrita por Sá e Guarabyra e interpretada pelo grupo Roupa Nova, a música “Dona” foi uma das canções mais tocadas nas rádios brasileiras no ano de 1985. Em alguns versos da música, a letra oferece informações importantes da personagem, como em: “Não há pedra em seu caminho, não há ondas no teu mar, não há vento ou tempestade que te empeçam de voar”. (SÁ E GUARABYRA, 1985). A ideia de liberdade, onde nada lhe impedirá de alcançar seus objetivos, e a transgressão aos padrões machistas, em que a mulher é dona de si, faz com que a música seja compatível com o propósito da personagem. Percebe-se que a telenovela Roque Santeiro, critica não só a repressão da mulher nos relacionamentos conjugais, mas também a repressão exercida pela igreja. Dessa maneira, buscamos analisar o processo de mudança no perfil de heroína da telenovela, bem como a singularidade das representações das personagens da novela Roque Santeiro na mídia brasileira. REFERÊNCIAS CALAZANS, Vevé. Fruta Mulher. Intérprete: Nana Caymmi. In: Roque Santeiro Nacional. Vol. 2. Som Livre, 1985. HAMBURGER, Esther. O Brasil Antenado: a sociedade da novela. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. LOPES, Paulo Fernando de Carvalho. Telenovela- o erotismo como produtor de sentidos. Piauí, 2007. Disponível em: http://www.accionaudiovisual.uc.cl/prontus_fcom/site/artic/20070416/asocf ile/20070416090408/08_paulo_fernando.pdf Acesso em: 11 de Fevereiro de 2013. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva. 2 ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. MARTINS, Vitor e LINS, Ivan. A Outra. Intérprete: Simone. In: Roque Santeiro Nacional. Vol. 1. Som Livre, 1985. MARTINS, Vitor e LINS, Ivan. Vitoriosa. Intérprete: Ivan Lins. In: Roque Santeiro Nacional. Vol. 2. Som Livre, 1985. 112 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 MEMÓRIA GLOBO. Roque Santeiro. 2012. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273230813,00.html Acesso em: 11 de Fevereiro de 2013. ORTIZ, Renato. BORELI, Silvia Helena Simões. RAMOS, José Mário Ortiz. Telenovela - História e produção. 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991 PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. São Paulo, v.24, N.1, P.77-98, 2005. SÁ, Luíz Carlos Pereira de. e GUARABYRA, Guttemberg. Dona. Intérprete: Roupa Nova. In: Roque Santeiro Nacional. Vol. 1. Som Livre, 1985. SIFUENTES, Lírian. ROSINI, Veneza. O que a telenovela ensina sobre ser mulher? Reflexões acerca das representações femininas. Revista FAMECOS. Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 131-146, 2011. 113 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 PÁGINAS EM BRANCO: AUSÊNCIA DA MULHER E O APAGAMENTO DA ESCRITORA NEGRA NA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA OITOCENTISTA Geraldo Ferreira da Silva14 Ivana Ferrante Rebello15 RESUMO: O presente artigo reflete sobre o panorama histórico nacional e suas relações com o apagamento da escritora, na historiografia literária brasileira. A ausência da escritura de mulheres, no Brasil colonial e até início do período imperial, é decorrente da transplantação cultural, oriunda da invasão portuguesa ao Brasil que suprimiu a cultura literária oral indígena e africana e implantou o pater famílias. Nesse cenário, destaca-se com rara exceção, a escritora afrodescendente, Maria Firmina dos Reis, autora do primeiro romance abolicionista do Brasil, Úrsula. Palavras-chave: Escrita de gênero. Escrita afrodescendente. Historiografia literária. ABSTRACT: This article reflects about national historical scene and its relations with the deletion of the writer, in the Brazilian literary historiography. The absence of scripture of women in colonial Brazil and up to the beginning of the imperial period, is the result of cultural transplantation from the Portuguese invasion to Brazil that suppressed the literary culture oral indigenous and African and arranged the pater families. In this scenario, stands out with rare exception, the afro-descendant writer, Maria Firmina dos Reis, author of the first abolitionist novel of Brazil, Úrsula. Keywords: Gender writing. Afro-descendant writing. Literary historiography. O Brasil foi uma nação invadida por europeus – como os demais países que formam o Continente Americano – razão por que a influência europeia fez-se sentir de forma majoritária em todos os aspectos da sociedade brasileira. A expansão colonial portuguesa foi avassaladora no tocante à economia, agricultura, religião, cultura, arte, música, teatro, línguas. Comportamentos emocionais e sociais foram impostos aos nativos de Pindorama. O choque cultural e étnico foi intenso. Os lusos, ao perceberem que a terra era produtiva e estava sendo invadida por outras nações europeias, dividiram-na em capitanias. Seus 14 Mestrando em Letras/Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros – Minas Gerais – UNIMONTES – [email protected] e [email protected] 2015. 15 Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários da Universidade Estadual de Montes Claros – Minas Gerais – UNIMONTES - Orientadora 114 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 donatários, então, a cata de braços fortes que dessem vazão a seus propósitos colonialistas, deram início ao tráfico negreiro, comercializando negros africanos e os escravizando, em terra brasileira, para que estes trabalhassem na agricultura e na pecuária. Nos campos da cultura, religiosidade e linguagem, os invasores portugueses anularam e não reconheceram os fazeres culturais e artísticos dos índios e dos negros africanos e brasileiros. Foi desconsiderada, principalmente, sua literatura oral, que era ampla e diversificada em cada tribo e nação nativa ou escravizada. Célia Regina dos Santos e Vera Helena Gomes Wielewicki (2003), afirmam que “a marginalização dos textos indígenas e negro-africanos é um reflexo, no ambiente letrado, do estatuto subordinado dessas culturas no espaço mental brasileiro – na estrutura da sociedade nacional”. Outros, que são chamados de “textos de viagem” e que Risério (1993) intitula de “relatos etnográficos” são considerados como fonte de germinação da Literatura Brasileira, porém excluem a magnitude da tradição oral das populações indígenas como nos referem as autoras: Tais textos revelam a marginalização do índio no que tange à opção textual lusocêntrica como representante e formadora de nossa literatura nacional. A análise desses textos prova-nos que a história da crítica literária brasileira não reconhece a existência do que Risério (1993) chama de “textualidades extraliterárias” ou criações textuais “extraeuropeias”. Ou seja, apesar de serem ágrafas, as culturas indígenas aqui encontradas possuíam uma arte verbal muito rica e diversificada, a qual Risério (1993, p. 39) denomina poemúsica. Nessa perspectiva, a “poesia dos índios” seria o início da criação textual em nossos trópicos (SANTOS e WIELEWICKI, 2003, p. 338). Segundo Risério (1993), a poesia do índio brasileiro foi mencionada pelo escritor francês Ferdinand Denis que esteve aqui no Brasil no período de 1816 a 1819 e escreveu sobre nossa literatura o Resumé de Histoire littéraire du Brésil salientando o tema natureza-indianismo que no séc. XIX foi referendado pelo Romantismo, porém, a literatura indígena e 115 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 afrodescendente foram e continuam relegadas ao acaso e ao esquecimento porque estas produções espontâneas destes textos extraeuropeus não tiveram uma tradição escrita/impressa, portanto, impeliu o grafocentrismo a relegá-los num plano inferior, marginal e ou mesmo inexistentes até mesmo pelas academias. A invasão portuguesa no Brasil foi uma violação, em todos os sentidos, não só no campo histórico e territorial, mas também na esfera pessoal. Se a discriminação estendia-se aos nativos indígenas e ao negro escravizado, em relação à mulher, também considerada inferior e sem privilégios intelectuais, a exclusão também se fazia notória. Quando os lusos chegaram ao Brasil não trouxeram suas esposas para se arriscarem nessa perigosa aventura, e sim os eunucos que faziam os serviços do lar, inclusive os de mulheres na cama. Mas, em contatos com as índias nuas, que tinham “comportamentos liberais” (grifo nosso) em relação ao estereótipo de mulher submissa ao marido e aos princípios religiosos da cultura machista, prevalecente na Europa e no Oriente, os invasores consideraram-nas como mulheres sensuais, promíscuas, sem moral e sem proteção do marido e da religião, como nos orienta Maria Lúcia Rocha-Coutinho: No início da colonização, a família – baseada em uma união legalizada – era praticamente inexistente no Brasil. Isto se deveu ao fato de que os portugueses, na sua maioria, não se transferiam para a nova terra com intenção de se estabelecer definitivamente. Desta forma, suas mulheres geralmente permaneciam em Portugal e eles mantinham aqui relações irregulares com índias e escravas (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 66). Na colônia portuguesa do Brasil, o comportamento promíscuo foi incorporado pelos brancos primeiro à índia e, mais tarde, à negra, à mulata sensual. (TELLES, 1989, p. 02) O atentado à liberdade da índia e da negra ao seu corpo, à sua sexualidade e à sua união estável com seu possível pretendente se deu por parte do colonizador porque este 116 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 supunha ter propósitos de união respeitável com sua esposa, senhora branca, fiel, dedicada a faina familiar, que ficou em Portugal ou na reclusão da casa grande e que servia ao seu esposo de maneira assexuada, conforme orientação da Igreja Católica. O nascimento da família de origem patriarcal portuguesa/católica surgiu no Brasil mediante objetivos políticos e econômicos de apossar o imenso território que hoje forma o Brasil que estava sendo invadido por outras nações europeias, para tanto, criou-se concessão das capitanias hereditárias e das sesmarias para a produção agrícola e exploração das reservas minerais, principalmente as auríferas. Surgiu, portanto, uma família atípica que englobava em seu núcleo, nem só a esposa e os filhos legítimos e ilegítimos, mas também os escravos, agregados e concubinas. O poder patriarcal envolvia, além da família, todos os que viviam na proteção do senhor latifundiário. Nascia, portanto, o pater familias, como nos informa Maria Lúcia Rocha-Coutinho: Estas primeiras famílias formavam grupos autônomos de produção, administração, justiça e autodefesa e sua autoridade máxima era o pater familias, que detinha o poder não apenas sobre os escravos, empregados e agregados, como também sobre seus filhos e sua esposa. O poder dos patriarcas, ampliado pelo isolamento dos grupos familiares que, no seu início, eram relativamente poucos, era do interesse e, portanto, reforçado pela própria Coroa portuguesa que, assim, melhor podia controlar sua colônia (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 670). O patriarcalismo, transplantado da cultura europeia e oriental e internalizado à força aos habitantes do Brasil não se limitava apenas à família, mas à sociedade, à política, à economia agrícola e agropecuária escravocrata, e perdurou, como modelo do mandonismo do homem sobre a mulher, até metade do século XIX, impondo a cozinha, as prendas domésticas e o papel de mãe e de dona do lar, de geradora de filhos herdeiros às suas esposas, filhas e agregadas e às escravas a função de escrava, tanto na cozinha, na senzala, na roça e na cama, como nos diz Eduardo de Assis Duarte: 117 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Tais exemplos ressaltam a força de permanência de uma imagem que atravessa os séculos e marca a representação das descendentes de africanos na literatura brasileira. Em sua origem, esta configuração se vincula ao instituto do trabalho forçado, à consequente poligamia dos brancos e à posição indefesa das escravas frente ao assédio dos patriarcas, de seus filhos e agregados [...] (DUARTE, 2009, p. 11). Essa realidade patriarcal/mandonista imposta à mulher branca, índia, esposa ou solteira, era duplamente incidente sobre a mulher negra. Era-lhe negada a participação na vida social e cultural, seus direitos de ir e vir e a posse do seu próprio corpo. As ideais doutrinais da contrarreforma e os comportamentos sociais e emocionais sugeridos por elas eram os objetivos da Igreja Católica e da coroa portuguesa no tocante à religião e a conquista de um povo à catequese e ao império lusitano, uma vez que o governo português não tinha interesses em criar escolas nos países colonizados, porque os filhos de portugueses estudavam em Portugal. Essa realidade na educação do Brasil perdurou do início da colonização até meados do século XVIII. Havia também as escolas leigas: aquelas em que o professor detinha uma formação incompleta, não tinha o magistério, porém exerciao, ensinava na casa grande as primeiras instruções de gramática e matemática aos filhos e parentes próximos dos senhores fazendeiros. Aos pobres, negros e índios eram oferecidas a negação da escolarização, como afirma o texto: Para a população de origem africana, a escravidão significava uma negação do acesso a qualquer forma de escolarização. A educação das crianças negras se dava na violência do trabalho e nas formas de luta pela sobrevivência. As sucessivas leis, que foram lentamente afrouxando os laços do escravismo, não trouxeram, como consequência direta ou imediata, oportunidades de ensino para os negros. São registradas como de caráter excepcional e de cunho filantrópico as iniciativas que propunham a aceitação de crianças negras em escolas ou classes isoladas – o que vai ocorrer no final do século. Algo semelhante se passava com os descendentes indígenas: sua educação estava ligada às práticas de seus próprios 118 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 grupos de origem e, embora fossem alvo de alguma ação religiosa, sua presença era, contudo, vedada nas escolas públicas (LOURO, 2004, p. 445). Além disso, a educação nestes tempos era ministrada por homens. Poucas mulheres sabiam ler, e, quando liam, seu universo de leitura restringia-se às receitas de bolos, pontos de bordados, algumas poesias, livros sacros e alguns compêndios da literatura clássica greco-romana. Portanto, temos uma dificuldade imensa em encontrar mulheres que soubessem ler e escrever, nos séculos XVIII e início do XIX, uma vez que poucas mulheres estudavam em escolas secundárias. A pouca instrução que recebiam era voltada para o objetivo de serem esposas, donas de casa, e raríssimas tinham acesso aos livros além de sofrerem repreensões dos esposos, quando se dedicavam à prática da leitura. Quando surgiu a prosa de ficção, as reações da crítica e dos leitores concentravam-se em considerá-la perniciosa, sobretudo para as mulheres, que poderiam ter seu caráter e comportamento alterado pelo um hábito da leitura. A crítica reproduzia o pensamento sobre a forma como os textos foram recebidos por uma camada de intelectuais e identificava a leitura de romances como moralmente perigosa, se comparada às leituras eruditas que ampliavam o conhecimento e aos textos religiosos que aperfeiçoavam o espírito. Márcia Abreu faz uma análise comparativa do que significava ler romances, no século XVIII, em relação à leitura de outros tipos de textos: Embora fonte de inconvenientes físicos, há leituras que valem a pena, enquanto outras são unicamente perniciosas. Dentre essas, muitos incluem a leitura dos romances, tida como perigosa pois faz com que se perca tempo precioso, corrompe o gosto e apresenta situações moralmente condenáveis. A leitura de romances traz à baila discussões de natureza ética, religiosa e intelectual, tanto mais acaloradas quanto mais se percebe a disseminação do gênero e sua influência sobre os leitores.(...) Enquanto a leitura das belas letras tem por objetivo formar um estilo e ampliar a erudição e as leituras religiosas visam aprimorar o espírito e indicar o caminho da virtude e da 119 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 salvação, a leitura dos romances parece sem finalidade (ABREU, 2002, p. 225). Tal conceito sobre a leitura de romances provinha das ideias pautadas por alguns eruditos que tinham como modelo para a excelência dos textos o padrão clássico ou os textos religiosos, que serviam como parâmetro para avaliar a boa leitura. Apesar da repressão e censura, no século XVIII, algumas mulheres liam e escreviam seus cadernos de poesias e memórias que se perderam em seus baús de recordações, uma vez que não tinham apoio das academias, da imprensa, de seus esposos e da sociedade. Eram atividades, em sua maioria, feitas às escondidas, e em raras ocasiões. A imprensa era eminentemente masculina, bem como os intelectuais brasileiros, que só registraram, do período, a pouquíssima literatura feita por homens, a maior parte deles de origem nobre, que estudaram em Portugal ou nas raríssimas universidades brasileiras, ou ainda aqueles pertencentes a alguma academia literária. Pesquisadoras, entre elas Zahidé Lupinacci Muzart desenvolvem pesquisas no resgate de mulheres escritoras no Brasil nos séculos passados, visando a reescreverem uma nova historiografia que inclua a mulher escritora. Dada a dificuldade de encontrar textos e escritoras do século XVIII, as pesquisas, entretanto, contém maiores registros de escritoras do no século XIX. Do século anterior, ela, Zahidé, cita apenas três nomes de mulheres escritoras, no livro: Escritoras brasileiras do século XIX: antologia / organizado por Zahidé Lupinaccin Muzart – 2. ed. ver. – Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. Preferimos privilegiar no nome do livro o século XIX e, aparentemente, esquecer as três escritoras de séculos anteriores – Rita Joana de Souza, Ângela do Amaral Rangel e Bárbara Heliodora. E isso porque todas as outras 49 escritoras ou são nascidas no século XIX ou, mesmo no século XVIII, como Maria Josefa Barreto, Maria Clemência da Silveira 120 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Sampaio, Beatriz Brandão, Delfina Benigna da Cunha e Ildefonsa Laura César, somente publicaram suas obras no século XIX (MUZART, 2000, p. 28). Percebem-se as ausências das mulheres na Historiografia literária, obviamente inspiradas nos mesmos requisitos que apagaram o nome delas da História do Brasil, salvo raras e inspiradoras exceções. Poucas foram as mulheres, que, na metade do século XIX, no período imperial, conseguiram estudar, ler os romances ingleses, franceses traduzidos e os produzidos por brasileiros. Mesmo sem a aprovação dos maridos e pais, empreenderam esforços na luta pelos seus direitos com participação em movimentos sociais e literários, desenvolvendo suas escrituras em artigos de jornais e romances de folhetins. Entre essas pioneiras podemos citar: Nísia Floresta Augusta, Ana Luísa de Azevedo Castro, Amélia Rodrigues, Luísa Amélia de Queirós, Narcisa Amália, entre outras. Seus nomes não constam dos compêndios literários brasileiros, e, quando aparecem, resumem-se a poucas linhas ou a notas de rodapé. Nesse cenário de exclusão, destaca-se um caso singular na nossa literatura: a escritora negra Maria Firmina dos Reis que nasceu em 1825, em São Luís, Maranhão, filha de pai desconhecido, carregando o pesado adjetivo de “bastarda”, num país e época com forte influência patriarcal. Muito jovem, aos 22 anos, dedicou-se ao magistério após vencer um concurso público. Paralelamente às atividades, como professora, em Guimarães/MA, Maria Firmina empreendeu participação constante na imprensa de São Luís/MA, publicando diversas poesias, crônicas e contos. Em 1859, aos 34 anos, publica o romance Úrsula, uma de suas obras mais marcantes. O romance é tido, por diversos historiadores, não apenas como o primeiro romance abolicionista brasileiro, mas também como o primeiro romance da literatura afro-brasileira. Nele a autora inscreve sua condição de mulher, negra, bastarda e pobre. A defesa que 121 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 o romance enceta da liberdade do negro, seguida de denúncias sobre os males da escravidão, identifica, pela primeira vez na literatura nacional, a condição do afrodescendente vista pela perspectiva do negro. Ao publicar a obra, Maria Firmina adotou medidas preventivas: Úrsula foi publicado sob o pseudônimo de “Uma Maranhense”. A ausência do nome da escritora revelava o apagamento da voz da mulher negra, no panorama da literatura nacional. No prólogo do romance, a autora declarou que “pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.” (REIS, 2009, p. 13) A consciência da escritora era, antes de tudo, uma denúncia. Sua vida e sua luta pela liberdade dos escravos e pela igualdade entre homens e mulheres está a requerer maiores pesquisas. REFERÊNCIAS ABREU, Márcia. O Caminho dos Livros. Tese Livre Docência apresentada na Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP: UNICAMP, 2002. DUARTE, Eduardo de Assis. Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. Volume 17-A (dez. 2009) – ISSN 1678-2054. Disponível em <http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa> Acesso 03-08-2015. LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. História das mulheres no Brasil / Mary Del Priore (org.); Carla Bassanezi (coord. de textos). 7. Ed. – São Paulo: Contexto, 2004. MUZART, Zahidé Lupinacci. Pedantes e bas-bleus: história de uma pesquisa. Escritoras brasileiras do século XIX: antologia / organizado por Zahidé Lupinacci Muzart – 2. Ed. rev. – Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. RISÉRIO, Antonio. Textos e tribos: poéticas extraocidentais nos trópicos. 1993. Revista Literaria Latinoamerica. Año 21, No 41(1995), p. 270-273. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/4530811> Acesso em 29-072015. 122 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 REIS, Maria Firmina dos. Úrsula: A escrava / Maria Firmina dos Reis: atualização do texto e posfácio de Eduardo de Assis Duarte. – Florianópolis: Mulheres: Belo Horizonte: PUC Minas, 2009. ROCHA-COUTINHO. Maria Lúcia, Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de janeiro: Rocco, 1994. SANTOS, Célia Regina dos e WIELEWICKI, Vera Helena Gomes. Literatura de autoria de minorias étnicas e sexuais. Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Organizadores: Lucia Osana Zolin e Thomas Bonnici, Maringá: EDUEM, 2003. TELLES, Norma. Rebeldes, escritoras, abolicionistas. Revista História [online], São Paulo, 120, p. 73-83, jan/jul. 1989. Disponível em <www.revistas.usp.br/revhistoria/article/download/18593/20656> Acesso em: 21-07-2015. 123 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 CRÔNICAS DA VIDA REAL: REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA NA OBRA DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO Gustavo Souza Santos16 Andréa Nogueira do Amaral Ferreira17 Josiane Santos Brant Rocha18 RESUMO: É do feitio da crônica usufruir de linhas temporais e condimentá-las com recursos, estilos e táticas linguístico-simbólicas ambientadas no usual, tornando-o extraordinário, e no comum, tornando-o um espetáculo narrativo, descritivo e informativo. A cultura e o cotidiano são a enseada literária desse gênero, e este se valida na vida social em seu consumo e proveito, como em sua produção e apreciação, propiciando trocas de experiências entre leitores e escritores em um vórtice cultural rico e valioso à dinâmica social. Desse modo, este estudo empenhou-se em analisar as representações da cultura e identidade brasileira nas crônicas de Luís Fernando Veríssimo, tecendo leituras sobre a relação entre literatura e cultura, tendo por corpus sua obra Comédias da Vida Privada (1996). Através das investigações literárias e culturais em torno da crônica e da brasilidade, empreendeu-se um observatório das crônicas da vida privada da ficção e da realidade, nas representações difusas nos textos do autor. Palavras-chave: Crônica. Luís Fernando Veríssimo. Cultura. Brasilidade. ABSTRACT: It makes part of the chronicle using timelines and seasoning them with resources, styles and linguistic and symbolic tactics acclimated in the quotidian making it extraordinary, and in the common, making it a narrative, descriptive and informative spectacle. Culture and quotidian are the literary cove in this genre and it is validated in social life in its consumption and profit as in its production and assessment, providing experiences exchanges among readers and writers in a rich cultural vortex and valuable to the social dynamics. Thus, this study undertook to examine how representations of culture and Brazilian identity in Luís Fernando Veríssimo’s chronicles developing analysis about the relations between literature and culture, having as a corpus the book Comédias da Vida Privada (Comedies of Private Life). Through the literary and cultural investigations through chronicle and Brazilianness, it was undertaken an observatory of the chronicles of the private life of fiction and reality in the diffused representations in Veríssimo’s texts. Keywords: Chronicle. Luís Fernando Veríssimo. Culture. Brazilianness. INTRODUÇÃO A gênese da crônica remonta a meados do século XVI e já nessa época, o gênero em construção se constituía de combinações entre realidade e ficção, como elucida Sant’Anna (2000). O autor ainda explica que a crônica despontou como um gênero histórico tendo por substrato os medos e superstições acerca das terras indianas e americanas em 16 Mestrando em Geografia pela Unimontes, docente das FIPMoc. Mestre em Letras/Estudos Literários pela Unimontes e docente das FIPMoc. 18 Doutora em Ciências do Desporto pela UTAD, docente da Unimontes e FIPMoc. 17 124 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 descobrimento recente. No século XIX, assumiu-se factual nas mãos de José de Alencar e Machado de Assis e, passa no século XX, a se tornar um dos principais gêneros do rádio e do jornal, e hoje se deflagra na hipermídia (SANT’ANNA, 2000). Sá (1999) destaca que no Brasil, as crônicas se abrigaram inicialmente à sombra dos folhetins. A princípio tratava-se de uma miscelânea de elementos com fins informativos e que, paulatinamente, com o desenvolvimento dos folhetins a crônica tomou parte na frondosa sombra oferecida pelos jornais. A pauta que se deleita no cotidiano e tece literatura no corriqueiro sempre foi recorrente. Bender e Laurito (1993) salientam que a crônica sempre possuiu um tom despretensioso, flexível e leve para aguçar o paladar imersivo do leitor. É do feitio da crônica usufruir de linhas temporais e condimentá-las com recursos, estilos e táticas linguístico-simbólicas ambientadas no usual, tornando-o extraordinário, e no comum, tornando-o um espetáculo narrativo, descritivo e informativo. Prova isso sua etimologia, do grego khronus que indica tempo. A crônica assume com maestria sua relação com o tempo nas vivências humanas e seus gestos em historicizar as coisas, narrar acontecimentos, fazer memória e compartilhá-las. Por isso, no gênero não é o assunto abordado o cerne de sua construção linguística e significante, e sim a temporalidade, isto é, o sabor que a brevidade e os momentos dispensam da condição humana no tempo. No Brasil, a crônica é tida como bigenérica, isto é, um hibridismo entre jornalismo e literatura. Massaud (2012) afirma que a crônica se espraia entre o factual e o literário, emprestando cor e tom aos acontecimentos, criando uma atmosfera rarefeita que não se desprende da atualidade, mas se imiscui do fantástico. Essa condição híbrida, completa Sant’Anna (2000), torna a crônica um gênero fugidio à aura dos manuais literários, todavia sem perder seu fragor. Sem a densidade, mas aninhando-se ao conto, à poesia e o ensaio, a crônica perfaz seu próprio 125 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 caminho ressaltando o estilo de sua linguagem pessoal e comunicando-se soberana com seu leitor. A cultura e o cotidiano são a enseada literária desse gênero, e este se valida na vida social em seu consumo e proveito, como em sua produção e apreciação, propiciando trocas de experiências entre leitores e escritores em um vórtice cultural rico e valioso à dinâmica social. Desse modo, este estudo empenhou-se em analisar as representações da cultura e identidade brasileira nas crônicas de Luís Fernando Veríssimo, tecendo leituras sobre a relação entre literatura e cultura, tendo por corpus sua obra Comédias da Vida Privada (1996). Através das investigações literárias e culturais em torno da crônica e da brasilidade, empreendeu-se um observatório das crônicas da vida privada da ficção e da realidade, nas representações difusas nos textos do autor. ENTRE AS CRÔNICAS DA VIDA PRIVADA E DA VIDA REAL De si, Veríssimo se diz “gigolô das palavras”: Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto em sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família, nem os que os outros já fizeram com elas. Se bem que não tenha o mínimo escrúpulo em roubá-las de outros quando acho que vou ganhar com isso (VERÍSSIMO, 1982, p. 27). Seu texto é consagrado pela sátira de costumes, declamando com ironia e cumplicidade os suplícios cotidianos, as imperfeições das pessoas, a política, a vida social, os costumes, as vivências e os relacionamentos, como dissertam Duarte (2007) e Madeira (2005). Na mesa, na rua, em casa, no trabalho, no imaginário e em praça pública, tempo e espaço, modernidade e vida privada são roteirizados de maneira 126 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 cálida e bem condimentada em seu estilo leve e certeiro. O humor que ruboriza e faz deleitar não se opõe a crítica reflexiva que sua obra também remete. Um painel completo onde o ordinário se manifesta extraordinário na proposta retrátil e energética de seu texto, tornando-se efervescente na exploração da vida privada e das identidades nela atreladas. Em Comédias da Vida Privada (1994), o cotidiano de cenas e cenários privados são postos a prova com as mais diversas situações nas quais o trivial se espetaculariza. Veríssimo articula o imaginário, o factual e recombina com a tessitura de sua criação literária sempre sob a umidade inventiva do humor, da ironia e do sarcasmo. A brasilidade desliza por suas crônicas e a identidade é deflagrada em cada história que, sob um corpus espaciotemporal, permite identificações imediatas e associações pontuais sob uma conjuntura narrativa. Isto é, as crônicas da vida privada de alcunha de Veríssimo ganham aderência às crônicas da vida real do leitor e de seus pares na quotidianidade. A brasilidade nas crônicas e comédias da vida privada Diálogos com o pai, situações com a mãe, a presença dos tios, os cunhados sempre próximos, os amigos no bar, os vizinhos em derredor, o Mendocinha, o Dr. Pompeu e a Regininha. Personagens dos quais as comédias da vida privada entregam ao leitor mais do que figuras que entornam excentricidades e espirituosidade narrativa, mas elos humanos prontamente identificáveis e próximos seja na memória, na circunstância ou no imaginário. Na temporalidade emoldurada por Veríssimo, tais personagens dispensam características fundantes de uma brasilidade que se estampa das crônicas de sua ficção para as crônicas da vida real. Todavia, são micronarrativas sem a aquiescência da ficção típica que o autor entrega ao leitor. É uma interlocução entre comuns não estereotipados nem aditivados, mas comuns que acessam um palco onde a trivialidade 127 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 ganham da leitura um holofote que se adere às conexões mais enraizadas de brasilidade. A criação de Veríssimo monta então cenários com personagens que condensam em sua micronarrativa e eventos nos quais circulam como personificações representativas da quotidianidade que se desvela no perfil imersivo do leitor. Em outras palavras, no encontro com as histórias e seus personagens, a obra projeta o leitor para um arquétipo dinâmico de identidade e cultura, onde a brasilidade e seu perfilamento são marcadores que tornam a leitura cadente e orientada a reminiscências e visões de mundo. Entre identidades e coletividades, Comédias da Vida Privada promove o alinhavo de sujeitos e situações, identidades e coletividades, configurando a relação autor/criador e leitor/continuador da criação em uma grande família brasileira. Família de classe média, trajada de realismo, empoderada pelo enfrentamento da vida e composta por ritmos que sob a cumplicidade, generosidade e ironia narrativas de Veríssimo, ganham um viço penetrante e mais do que apenas alusivo. Essas comédias da vida privada desvelam uma brasilidade alegre, não por um cinismo e ocultamento narrativo, mas pelos influxos que o humor e o próprio gênero da crônica permitem. Os problemas, os fracassos, as contrariedades e os acasos tornam-se espetáculos nos quais o privado – sempre atraente – sob a atmosfera da crônica fazem entreter, refletir e agir ao mesmo tempo. Uma brasilidade figurativas, mas não menos plausível se reflete nas construções textuais e amarram sentidos e conexões pareadas com as ideias de Brasil, de vida e factualidade que o leitor possa ter e que o autor transbordou sob sua criação. Na brasilidade dessas comédias da vida privada, a vida real trafega representativa e visível, sem o emudecimento das grandes narrativas, sem o torpor da densidade narrativa que outros gêneros podem promover – não fazendo aqui uma crítica, mas diferenciando a crônica e lhe 128 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 lançando lume. Assim, é possível explorar nas crônicas de Comédias da Vida Privada como lócus privilegiados de íntimos, bizarros e secretos desejos. Os desfrutes, as consternações, as emoções e as sujeições da vida cotidiana são potencializados em cada crônica com uma vivacidade irônica que expande a identificação entre panorama literário, repertório e cultura identitária. Com esse vórtice literário e intersubjetivo, um dispositivo de identificação e imersão leitora se associa a uma produção literária imiscuída culturalmente. Encontros entre literatura, cultura e brasilidade As peripécias e tramas insólitas de que as crônicas de Veríssimo dispensam em Comédias da Vida Privada se amalgamam na realidade que se entrecruza às memórias do leitor, suas vivências ou sua consciência sobre o cotidiano que compõe e recompõe sua experiência de vida. A crônica se potencializa em um veículo cuja nau é o imaginário e os ventos condutores são as microestruturas cotidianas fecundas, divertidas e permissivas. O microcosmo da vizinhança, as relações familiares, a vida social, os ódios, os desejos, os querer-ser e os querer-ter se misturam produzindo uma tessitura narrativa que se imiscui da cultura cotidiana e se apresenta irrestrita no formato do gênero crônica. Tal efeito possibilita às crônicas e comédias da vida privada da ficção se arrolarem às crônicas e comédias da vida privada do aqui e do agora, em uma sucessão de leituras, peças imaginativas e composições emocionais e espirituosas. Em Veríssimo, o gênero a condimentação de uma brasilidade que se revela nas entrelinhas irônicas, nas descrições espirituosas e em toda sorte de carga emocional que sua palavra sustenta. O relacionamento entre literatura e cultura não é novo, todavia apresenta elucubrações e um fervilhar de perspectivas sempre fecundas aos estudos literários. Isto porque as instâncias literária e cultural convergem por um caminho comum imbricando perspectivas de suas 129 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 alçadas específicas, seja no jogo linguístico e na expressividade da produção literária, seja na tessitura simbólica e construtiva entre sujeitos e coletividades. Olinto (2008) discute que a linguagem – aqui entendendo a literatura – em sua expressividade discursiva funciona como uma entidade institucional na orientação da cognição individual sob o aporte de significados culturalmente aplicados. Nas acepções sobre a cultura, está aquela que a vê saberes coletivos acionados em processos cognitivos e comunicacionais em torno de comportamentos, atos e memórias. Nesse sentido, a produção literária e as formações culturais em torno de sua complexidade, se anelam e se acoplam mutuamente como fenômeno socializante e de matiz humana e existencial (SINDER, 2008; MASSAUD, 2008). Afinal, os caminhos entre literatura e cultura são inócuos mutuamente, como assegura Souza (2008). Estudos sobre a cultura, sua representatividade e dimensão (GEETZ, 2008; WAGNER, 2012; LARAIA, 2014) tem se fundamentado, como explicita Olinto (2008), a partir do entendimento da pertença dos indivíduos ao próprio processo cultural. Isto significa apontar que os estudos de cultura apontam para uma tendência contemporânea de autocompreensão, de uma visão a partir de dentro sobre como valores, princípios e aspectos identitários se estabelecem e não tão somente a princípios régios vistos de fora do próprio processo cultural onde pertencem os indivíduos. Partindo do princípio que a literatura constitui-se simultaneamente patrimônio e prática cultural (SOUZA, 2008), seu escopo e produção se constituem matéria de incidência cultural e espelho reflexivo de sua conjuntura (HALL, 2013; COSTA, 2011). Olinto (2008) salienta que a cultura é um objeto disciplinar referente à observação, análise, comparação e integração de práticas culturais que emergem e se mesclam por interferências inter e transculturais. Assim, a produção literária que, observa e funde-se à realidade para expressar-se e dar-se, forma um importante receptáculo e expositor de matizes 130 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 culturais diversos, derivados das relações autor/leitor (FOUCAULT, 2006) e com forte apelo sobre sujeitos e coletividades. Nesse ínterim, as proposições que se ancoram a este estudo ganham relevância e substância ao articular o discurso literário – que se torna embebida da realidade e, portanto, de influxo cultural – à dimensão do objeto de sua locução, o alvo de sua expressão, seu sentido e espírito próprio. A identidade nacional e os elementos que constroem a natureza cultural do Brasil são temas abrangentes e foram alvo de grandes estudos e obras (DAMATTA, 1997a; 1997b; 2004; RIBEIRO, 2006; 2008). Dos ensaios antropológicos de Roberto Damatta (1997a; 1997b) e Darcy Ribeiro (2006) ao painel áureo de João Ubaldo Ribeiro (2008), o território, o tempo, o espaço, o brasileiro, hábitos, costumes, práticas e contextos nacionais são entrelaçados a fim de se costurar o tecido plural e opulento da identidade do Brasil. Na obra de Veríssimo não é diferente. O autor construiu através de crônicas, contos, romances e cartuns tratados, visões, criações e sátiras sobre o ordinário trivial do brasileiro, tornandose estimado, de grande leitura e influência. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo concorre por uma brasilidade com reflectância literária. Nas crônicas de Comédias da Vida Privada, Luís Fernando Veríssimo delineia com sua escrita irônica e versada no cotidiano, um ordinário extraordinário que nada mais representa do que a cultura brasileira ela mesma, partilhada no dia a dia, recombinada e complexificada no tempo e no espaço. Do gênero, pode-se constatar sua eficácia bigenérica de trafegar entre o conto e o jornalismo tendo o tempero corrigido pela quotidianidade, a brevidade e a criação do autor. Tais características tornam a crônica um gênero espaço e um gênero tempo, isto é, hábil em promover interações espaciotemporais, logo, prontamente identificáveis junto ao leitor. Essa acepção consagra a crônica como representante do 131 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 cotidiano que sob o pulso de Veríssimo se torna um observatório da cultura. A brasilidade e as identidades que se espraiam nos textos das crônicas e comédias da vida privada são peças de identificação de um vórtice cultural mais amplo e que no entrecruzamento cultura e literatura, expiram e inspiram pelo retrato do aqui, do agora, da memória, da percepção e das construções socioculturais que são parte do autor, do leitor e de todos e cada um. REFERÊNCIAS BENDER, Flora; LAURITO, Ilka Brunhilde. A crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993. COSTA, Gracilene Dias da. Currículo, narrativas culturais e processos identitários. Currículo sem Fronteiras. v. 11, n. 2, p.54-69, jul./dez. 2011. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Antropologia do dilema brasileiro. São Paulo: Rocco, 1997a. Para uma __________________. O que é o Brasil? São Paulo: Rocco, 2004. __________________. O que faz do brasil, Brasil? 8 ed. São Paulo: Rocco, 1997b. DUARTE, Sílvia Maria Silva. 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São Paulo: Cosac Naify, 2012. 133 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A SENSUALIDADE E SEXUALIDADE DA MULHER CIGANA EM LA GITANILLA E CARMEN Ianny Lima Maia19 RESUMO: Por muito tempo, o corpo feminino era desconhecido e, por isso causava tantos equívocos. Chegou a ser considerado como impuro, imperfeito e algumas de suas funções biológicas eram tidas como abomináveis, fazendo com que as mulheres reprimissem sua sexualidade e fossem temidas, tendo-as como um símbolo do pecado. Uma das representações literárias de sensualidade e sexualidade que temos é a da figura cigana. Sabemos que a literatura constrói estas personagens ciganas muitas vezes como promíscuas, avassaladoras e permissivas, mas que, na realidade, esconde uma sociedade extremamente machista. As duas obras aqui pesquisadas, La Gitanilla (1614), de Miguel de Cervantes e Carmen (1845), de Prosper Mérimeé, demonstrar-nos-á dois perfis distintos de personagens ciganas que carregam estes estigmas da sensualidade e sexualidade. Palavras-Chave: Sensualidade. Sexualidade. Mulher. Cigana. RESUMEN: Durante mucho tiempo, el cuerpo femenino era desconocido y, por tanto, hizo que muchos malentendidos. Llegó a ser considerado como impuro, imperfecto y algunas de sus funciones biológicas se tomaron como abominable, haciendo que las mujeres reprimen su sexualidad y eran temidos, que tiene como símbolo del pecado. Una de las representaciones literarias de la sensualidad y la sexualidad lo que tenemos es la cifra gitana. Sabemos que la literatura construye estos personajes gitanos a menudo como promiscuas y permisivas abrumador, pero que en realidad esconde una sociedad muy machista. Ambas obras aquí encuestados, La Gitanilla (1614), de Miguel de Cervantes y Carmen (1845), de Prosper Mérimée, nos mostrará dos perfiles distintos de personajes romaníes que llevan estos estigmas de la sensualidad y la sexualidad. Palabras-Llave: Sensualidad. Sexualidad. Mujer. Gitana. Assinalamos que ser mulher não é mais enigmático que ser homem, pois o autêntico enigma é o da sexualidade humana em geral. Maria das Mercês Maia Muribeca Por muito tempo, o corpo feminino era desconhecido, e por isso causava tantos equívocos. Chegou a ser considerado como impuro, imperfeito, e algumas de suas funções biológicas eram tidas como abomináveis. Na Idade Média, muitas mulheres foram queimadas vivas pela santa inquisição, por causa da libido feminina, uma vez que estas filhas de Eva ainda representavam o pecado. A psicóloga Maria das Mercês Maia Muribeca afirma-nos sobre as mulheres: “Ligada à natureza, à carne, ao sexo e ao prazer, ela foi 19 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros. 134 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 responsabilizada por induzir o homem à traição e ao pecado” (MURIBECA, 2010, p. 101), ou seja, durante longos séculos, as mulheres ainda eram inferiorizas por causa de seu sexo. Muitos anos depois, já no fim do século XIX, o psicanalista Sigmund Freud (1856-1939), em seus estudos, relata-nos as possíveis origens dos traumas femininos, que, segundo ele, viria da infância da mulher, que a psicologia chama de castração. Como toda teoria foram-lhe apontados pontos positivos e negativos, uma vez que a teoria é sustentada na insatisfação feminina por não ter o órgão genital masculino. Todavia, devemos nos ater à sexualidade das ciganas estudadas, mas antes de tudo devemos destacar os costumes ciganos sobre a temática. Segundo Clébert (1965), o povo gitano é abertamente contra a homossexualidade e a uma vida extraconjugal. Caso venha a ocorrer o adultério, as punições são diferentes. Para o homem que expuser sua esposa a vexames e constrangimentos, o casamento é anulado imediatamente, e este corre o risco de ser excluído do grupo. No caso da mulher adúltera, ela terá seus cabelos raspados como um sinal de sua infidelidade e sofre violência, no caso mutilações, como nos informa Clébert: “(...) los etnólogos han recogido casos preciosos, tales como un ojo arrancado, dientes rotos, orejas arrancadas” (CLÉBERT, 1965, p. 158). Podemos inferir que há a desigualdade até mesmo nos castigos. Sabemos que a literatura, em sua maioria constrói personagens ciganas, como promiscuas e levianas, mas como podemos comprovar no trecho acima, com as punições apontadas, estes atos tornam-se repreensíveis, inclusive Clébert (1965) nos indica que na realidade não existe prostituição cigana. Todavia, os pudores desta casta de mulheres não correspondem com os nossos costumes ocidentais. Para elas, os seios não são considerados partes sensuais e sexuais, portanto, os expor não causa nenhum constrangimento. 135 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Por outro lado, partes como músculos, pernas e ventre devem ser tampados, adequadamente. Raramente são expostos em danças típicas ciganas: “Evidentemente, las danzas de las gitanas revelam una gran parte de sus piernas y muslos, pero, cosa notable solos los gitanos ven en ellas un espectáculo erótico” (CLÉBERT, 1965, p. 158). Devemos ressaltar que o erotismo na dança não é algo intencional e como um bom exemplo, em La gitanilla, tanto homens como mulheres tinham o gosto em ver Preciosa dançar, ou seja, não é cogitado, ou intencionado provocar sexualidade e insinuações aos homens e expectadores. Nas obras, objetos de estudo, depreendemos que as personagens têm algumas atitudes muito diferentes, principalmente no que tange ao ego e ao desejo. Como podemos perceber em nossas leituras, enquanto Preciosa não gostava de receber galanteios, Carmen fazia questão de responder a cada olhar atrevido e carregado de cortejamento. Esta convivia com muitos homens do seu bando, enganava a qualquer um e ainda usava roupas sinuosas, como podemos observar no trecho: “Llevaba una falda roja, bastante corta (...) Iba acomodándose la mantilla para que no se le viera la garganta y un ramo de acacia que le salía del pecho” (MÈRIMÈE, 2005, p. 73). Diante disso, podemos dizer que Carmen era uma mulher que exalava sensualidade, mistério e não tinha nada de pudores, talvez por isso atraísse tantos homens. A autora Suzana Pravaz, em seu livro Três estilos de mulher, traznos o modelo de uma mulher sensual e da qual se encaixa perfeitamente a nossa cigana: “Seu território é a relação com os homens, sua tarefa é conquistar o olhar e a atenção afetiva das pessoas que a rodeiam. O êxito supremo era ser a escolhida, a favorita do Homem Máximo, o mais desejado, cotado e inacessível dos prêmios” (PRAVAZ, 1981, p. 59). Para Carmen, a conquista era o melhor da relação, porém quando o conquistado já não lhe bastava, ela o descartava facilmente. Sobre o comportamento da cigana, Buades nos fala: “Aproveita seus encantos 136 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 para atraí-los, conquistá-los, despojá-los de sua dignidade e depois jogálos fora como se fossem objetos fúteis” (BUADES, 2006, p. 229). Em contraponto, temos Preciosa, mulher discreta e arraigada a seus valores. Ela sempre buscava cantar poemas românticos, que não ofendessem a honra nem a moral dela e de ninguém. Em muitas de suas falas sobre seus princípios, podemos destacar o seu discurso para Don Juan: “Una sola joya tengo, que la estimo en más que a la vida, que es la de mi entereza y virginidad, y no la tengo de vender a precio de promesas ni dádivas” (CERVANTES, 1938, p. 39), vemos que a virgindade era algo de apreço da personagem e podemos colocar algumas considerações do porquê desse apreço. Primeiro porque a novela era exemplar e essa exemplaridade se refletia nas personagens de Miguel de Cervantes. A segunda é a verdadeira “genética” de Preciosa, uma vez que ela é nobre, logo tem a “predisposição” ao refinamento e boa conduta. Outro fato é a de ser cigana, sabendo que estas davam muita importância à castidade, uma vez que a sociedade cigana é machista, todavia apresenta um discurso ambíguo. Quem nos comprova isto é Colin Thompson, quando nos afirma que: “Para ella, la virginidad de la que se precia tiene un valor más espiritual que físico; simboliza la libertad del alma y el dominio que quiere ejercer sobre el cuerpo” (THOMPSON, 2001,p. 89), ou seja, que a virgindade de Preciosa significa sua dignidade como mulher, que pode fazer suas próprias escolhas. Devemos destacar que a virgindade, por muitos anos, foi cultivada pelas moças como símbolo de sua pureza e motivador para o bom casamento, preceito criado tanto pela religião, quanto pela sociedade. Entre os ciganos, como já foi falado, há uma grande importância na virgindade de uma mulher, como podemos observar no trecho: “(...) las muchachas que se entregan con amor, tienen circusntancias atenuantes. En general, la cuestión de la virginidad no se plantea hasta el momento del matrimonio” (CLÉBERT, 1965, p. 152), ou seja, o ato sexual só pode 137 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 ocorrer mediante o casamento. Preciosa, portanto, mantém-se virgem, todavia em Carmen, deixa-se subentendido a liberdade sexual da personagem, uma vez que mantinha vários amantes. Entretanto, podemos notar que a honra está presente nas duas narrativas. Em La gitanilla, por várias vezes, nos é exaltada a honra de Preciosa e de Don Juan /Andrés, mesmo quando este entra para o grupo cigano. Roubar lhe causava muito mal, por isso criou outros meios para sobreviver. Acerca deste gesto Luisa López Grigera comenta “(...) el jóven Cristiano de buena família se marcha con ellos por amor de Preciosa, y se mantiene sin cometer ninguno de los delitos tópicos de los gitanos” (LÓPEZ GRIGERA, 1994, p. 156), além de manter sua promessa de esperar a decisão da ciganinha de se casar ou não “(...) pues entrambos habremos guardado honestamente y con pontualidad lo que nos prometimos” (CERVANTES, 1938, p. 83). Revisitando a criação de Cervantes, notamos a importância da honra, na manutenção dos compromissos e do cumprimento das regras, como nos assegura Lopes Grigera Precisamente el narrador atribuye esa honestidad firme al hecho de su agudeza, cosa que se corresponde con las teorías de la moral aristotélica: el obrar y operar siguen al conocer la verdad, al distinguir entre el bien y el mal (LÓPEZ GRIGERA, 1994, p.158). Em Carmen, percebemos uma preocupação de Don José com a honra de Carmen “Y como además era la primeira vez que mostraba ante mi algo del recato de las mujeres honradas, fui bastante simple para creer que se había realmente corregido de sus modales de antaño” (MÈRIMÈE, 2005, p. 113). Vemos que ele se preocupava com a mudança de atitudes de Carmen, uma vez que ela mesma não se importava com as opiniões alheias e nem como suas ações poderiam repercutir. Uma vez que estamos falando sobre este assunto, não podemos deixar de falar de outro tema recorrente nas duas obras: a liberdade, que 138 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 segundo nos afirma a mestre Marcella Macêdo Sampaio de Souza, em sua dissertação O Amor, a liberdade e a morte: diálogos entre A Casa de Bernarda Alba e Os sete gatinhos explica que: “Libertar, senso comum, é um verbo associado a manifestações de júbilo, quase sempre relacionadas com a reparação de um estado anterior de aprisionamento, físico ou espiritual” (SOUZA, 2002, p. 49). Dessa maneira, apreendemos que a liberdade não condiz somente com a prisão física, mas também, com a mental e com a sentimental. Sabemos que a liberdade é à base de uma vida cigana e nômade. Os ciganos procuram, ao máximo, não terem raízes, não terem moradia fixa. Muitos não têm documentação, não guardam objetos dos que já foram e se quer registraram sua cultura. Com isso, nota-se que a liberdade é fundamental como nos afirma: “Os ciganos prezam, acima de tudo, a liberdade” (MARSIGLIA, 2008, p. 60). Nas narrativas, o discurso das personagens não poderia ser diferente, inclusive há nas duas obras falas muito parecidas. Vejamos: Carmen diz para Don José já prestes a morrer: “(...) pero Carmen será siempre libre. Caló nació y caló morirá” (MÈRIMÈE, 2005, p. 155). Preciosa diz algo muito parecido para Don Juan e ao velho cigano: “Estos señores bien pueden entregarte mi cuerpo, pero no mi alma, que es libre, y nasció libre, y ha de ser libre en tanto que yo quisiere” (CERVANTES, 1938, p. 55). Como se vê, devemos salientar novamente que a sociedade cigana é sexista e quando fazemos a leitura dos conselhos dados pelo velho cigano, podemos comprovar isto, quando Colin Thompson nos chama a atenção dizendo: “(...) no es dificil llegar a la conclusión de que Cervantes está condenando una sociedad masculina que se dedica con una ferocidad bestial a la opresión de las mujeres” (THOMPSON, 2001, p. 89), ou seja, este dizeres das personagens são a reafirmação para elas mesmas e para os outros, que serão livres até que elas morram. Pois não será uma sociedade ou um homem que decidirá 139 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 seu destino, como se a liberdade fosse um lema cigano. Neste caso da mulher cigana, a liberdade é a base de suas vidas. Souza ainda nos aponta que “Muito do que se diz sobre a liberdade remete ao exercício da sexualidade e, neste âmbito, com o subjugo da mulher numa sociedade (...)” (SOUZA, 2002, p. 50), de comum acordo com a citação, a personagem Carmen sempre desejou o amor e uma relação afetiva, mas de forma que respeitasse sempre sua liberdade “(...) No quiero que me den ordenes, y menos que me obliguen. Quiero ser libre y hacer lo que se me antoje” (MÈRIMÈE, 2005, p. 140). A personagem necessita de sua liberdade para sentir-se plena. Clébert (1965) nos aponta que os ciganos são unidos pelo amor à liberdade, por estarem sempre fugindo das amarras da sociedade, e sempre sendo donos de si mesmos. A culpa de Carmen é desejar tanta liberdade, como identidade cultural, já que a causa maior dos gitanos é a necessidade vital de ser liberto. Preciosa também afirma que precisa de sua autonomia: “(...) sepa que comigo há de nadar siempre la liberdad desenfadada” (CERVANTES, 1938, p. 40). A todo o momento, a personagem fala de sua condição a Andrés, que se quiser tê-la como esposa, primeiro terá que aceitá-la com uma mulher livre. E mais uma vez nos apoiamos na seguinte afirmação: “El humorismo cervantino ve en ellos a personajes interesantes, por lo menos, e incluso a personajes «libres» en un mundo con poca libertad” (CLÉBERT, 1965, p. 9), ou seja, Miguel de Cervantes escreveu Preciosa como uma revolucionária, que desejava a sua independência numa época, cuja liberdade lhe era pouca, e em uma sociedade sobrecarregada de preconceitos. Das colocações feitas neste texto, devemos ressaltar a importância que a figura cigana tem nas duas obras, visto que são ícones da nação espanhola, representando uma dança, uma cultura, um estereótipo e um povo discriminado que encontrou na vida nômade traços inconfundíveis que nos permite identificá-las como sinônimo de beleza, alegria e 140 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 sensualidade. Para Preciosa, há muita importância a sua virgindade e a sua liberdade. Já para Carmen a liberdade era crucial, mas não somente a liberdade física, mas a liberdade de amar, de se expressar e morrer lutando por seus ideais. Carmen é a representação do anti-herói. As divergências entre Carmen e Preciosa enriquecem a vastidão do mundo cigano. Esta altruísta e pura e aquela lasciva e jactanciosa. REFERÊNCIAS BUADES, Josep. M. Os espanhóis. São Paulo: Contexto, 2006. CERVANTES, Miguel de. Novelas Ejemplares. (Edición, introducción y notas de Pedro Henríquez Ureña). Buenos Aires: Editora Losada, S.A, 1938. Vol.1. CLÉBERT, Jean Paul. Los Gitanos. Prólogo del Dr. Julio Caro Baroja. Barcelona: Aymás, S.A. Editora, 1965. LÓPEZ GRIGERA, Luisa. La Retórica en la España del Siglo de Oro: teoría y práctica. Salamanca: Universidad, 1994. MARSIGLIA, Luciano. A saga cigana. A história e os segredos do povo mais misterioso do mundo. Revista Super Interessante, São Paulo, Ed.256, p.80 – 85, set. 2008. MÈRIMÉE, Prosper. Carmen. 2. Ed. Buenos Aires: Longseller, 2005. Clásicos de Siempre. MURIBECA, Maria das Mercês Maia. Das origens da sexualidade feminina ao feminino nas origens da psicossexualidade humana. Estudo de Psicanálise, Aracaju, n.33, p.101-108, julho, 2010. PRAVAZ, Susana. Três Estilos de Mulheres: a doméstica, a sensual, a combativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. SOUZA, Marcella Macêdo Sampaio de. O Amor, a Liberdade e a Morte: Diálogo entre A Casa de Bernarda Alba e Os Setes Gatinhos. 109. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2002. 141 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 THOMPSON, Colin. Horas hay de recreación, donde el afligido espíritu descanse: reconsideración de la ejemplaridad en las Novelas ejemplares de Cervantes. Actas del V Congreso de la AISO, Frankfurt: Christoph Strosltzki (ed.), Iberoamericana, Vervuerl, 2001. 142 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 EROS VERBALIZADO NA POESIA DE MAX MARTINS: A LINGUAGEM DO AMOR E DO DESEJO Ingrid da Silva Marinho (UFPA/UNIMONTES) RESUMO: Este estudo debruça-se sobre a poesia de Max Martins, no sentido de sugerir ligações de sua poética com o erotismo - veia criadora de pulsão e de continuidade na poesia, considerando a linguagem como fio condutor de sua produção, apresentando uma escritura marcada por um rigoroso trabalho com a palavra, a poesia fertilizada pelo verbo. Eis que surge a linguagem do amor e do desejo na poesia de Max, a partir de um Eros verbalizado pelo poeta. Para além, farei uma breve contextualização do modernismo, enfatizando a literatura produzida em Belém do Pará, referente à época de produção de Max Martins. Em seguida, Eros traça seu caminho até chegar na linguagem do amor, passeando pelo Banquete, e do desejo do Poeta-Édipo, quem nos revela os enigmas de sua Poesia-Esfinge. Palavras-chave: Max Martins. Poesia. Eros. Amor. Desejo. RESUMÉ: Cette étude se prenche sur le poésie de Max Martins, dans le sens à suggérer des liens de sa poétique avec l’érotisme – veine créatrice d’impulsion et de la continuité dans la poésie, en considérant la langue comme le fil conducteur de sa production, en présentant une écriture marquée par in travail rigoureux avec le mot, la poésie fécondé par le verbe. Voici le language de l’amour et du désir dans la poésie de Max a partir d’un Eros verbalisé par le poète. Ensuite, Eros trace son chemin jusqu’à l’obtenir le language de l’amour, en promenant par le Banquet, et le désir du Poète-Édipo, qui nous révèle les enigmes de da Poésie- Sphinx. Mots-clés: Poésie, Erotisme, L’amour, Désir, Max Martins. É possível entender o erotismo como uma atividade de significação e subjetividade humana, no sentido de ser uma experiência interior, um mecanismo de ligação entre seres descontínuos os quais, por meio da relação erótica, procuram estabelecer uma relação de continuidade com o outro, mas também com o todo, com o cosmo. Nessa visita ao estudo do erotismo, encontrei o poeta Max Martins, condutor de meus passos por esse caminho, quem sabe, duvidoso. Superados os percalços, este trabalho propõe analisar as manifestações do erotismo em seus poemas, considerando a linguagem como fio condutor de sua produção poética, sem que o erotismo tenha, apenas, a finalidade de reprodução e/ou prazer, mas sim o acasalamento entre palavras cuidadosamente fecundadas para suas poesias. 143 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Max da Rocha Martins nasceu em 20 de junho de 1926, em Belém do Pará. Filho de Eurico Martins, estudou no Colégio Paes de Carvalho e frequentou o Central Café, acompanhado por uma geração de intelectuais formada por Benedito Nunes, Jurandyr Bezerra, Cauby Cruz, Mário Faustino, Paulo Plínio, todos orientados pelo professor Paulo Mendes. Um grupo que formaria a mais brilhante geração literária da história belenense. Em 1952, publicou seu primeiro livro O estranho, seguido por Anti-retrato (1960), H’era (1971), O ovo filosófico (1975), O risco subscrito (1976), A fala entre parênteses – com Age de Carvalho (1982), Caminho de Marahu (1983), 60/35 (1986), Não para consolar (1992), Para ter onde ir (1992) e Poemas reunidos (2001). Na tragédia Édipo-Rei20, de Sófocles, é a esfinge que Édipo21 encontra em seu caminho trágico. Ele lhe decifra o enigma e, como consequência, a esfinge atira-se ao mar para morrer. No entanto, antes que isso ocorresse, a esfinge lá esteve a devorar os que não resolviam seu enigma. Ou me decifras ou te devoro, dizia a estranha mulher de pedra. Segundo SANT’ANNA (1993), os estudiosos desse mito assinalam duplicidade de seu significado, sendo ao mesmo tempo uma imagem ligada ao amor e à morte. Mas para Max Martins, a poesia é esfinge fácil/dedilhável22, puro amor à palavra. Max, o Poeta-Édipo soube decifrar o enigma da Poesia-Esfinge. Fez parte de uma geração de intelectuais que frequentava as reuniões do Central Café, em Belém, liderada pelo professor Francisco Paulo Mendes, o Chico Mendes. Para o Poeta-Édipo poesia é: Eu não sei, busco saber o que seja. Pergunto para ela... A poesia é sempre uma dúvida. Começa que a palavra que a gente tem a ilusão... mente a si mesmo de que a palavra é a coisa, mas nunca é a coisa. É como diz o mestre zen budista: 20 “Rei de Tebas, que matou seu pai, casou-se com sua mãe, trouxe por seus atos infame a peste e a desolação ao seu povo, culminando no suicídio da mãe-esposa, na cegueira voluntária do herói (que fura os olhos), no seu banimento e na execração de seus filhos, [...].” (CHAUÍ, 1984, .55) 21 Aquele que arrancou os próprios olhos depois que viu o assassínio e o encesto que cometera. (SANT’ANNA, 1993, p.76) 22 Poema No princípio era o verbo. (MARTINS, 2001, p.209) 144 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Não confunda a lua com o dedo apontando para a lua. (MARTINS, 2000, p.03) Como artesão da palavra, o Poeta-Édipo soube elevar o nível linguístico da Poesia-Esfinge às composições estéticas que comprovam todo um trabalho e uma preocupação com um estilo próprio e diferenciado de fazer poesia, trabalhando com o léxico à medida que construiu uma composição entre imagem e palavra. Os poemas de natureza erótica do “Mestre- Aprendiz”23 refletem situações existenciais; o erótico se manifesta além do carnal, onde a poesia procura se apresentar por meio de uma constante busca do autoconhecimento. No poema Koan24, segundo Nunes (2000), é possível notar essa relação como elemento de força, erotizando a natureza (terra), “a união de dois numa só carne com a penetrante escavação semânticoetimológica de venérea palavra castiçamente latina (fodere = cavar)”. (NUNES, 2000, p. 28) O desvelado verbo sexualiza a natureza. Cavo esta terra – busco num fosso FODO-A! agudo osso oco flauta de barro sôo? (MARTINS, 2001, p. 280) Caldas (2000) afirma que, na poesia de Max, o erotismo se distancia do sexo puro e simples – o qual tem o objetivo apenas de procriação e/ou desejo- e se aproxima do autoconhecimento; passa a ser, então, Anti-retrato. O Mestre- Aprendiz desvela o corpo do poema, entre a carne e o osso do poema25 escava a terra à procura da palavra, do verbo carnal, nos confins do poema, onde erotismo e poesia se aproximam. E o verbo se fez carne escrita se precipita esfinge fácil (MARTINS, 2001, p. 209) 23 Título do prefácio Max Martins, Mestre-Aprendiz, escrito por Benedito Nunes, do livro Não para Consolar, publicado em 1992. 24 Livro H’era. 25 Poema Duas figuras (MARTINS, 2001, p.67) 145 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 O verbo brota do sêmen de Eros e, Eros do corpo das letras. Eros semeia e é semeado e, a poesia fertilizada. Mas o poeta vai além. Ele trabalha a palavra em função de sua sonoridade e de sua imagem na composição geral do poema, apresentando uma escritura marcada por um rigoroso trabalho com a palavra – o próprio gozo da palavra dita / da palavra lida: Vida26. Nas palavras de Lutero, amar é o mesmo que odiar a si mesmo; e nas palavras de Santo Agostinho, o amor mata o que fomos, o que podemos ser, o que não fomos. Seria o amor um nó, no qual se amarram, indissoluvelmente, destino e liberdade, como Octávio Paz (1994, p.39) afirmou? Para responder as infinitas indagações a respeito, o autor relembra o surgimento da filosofia do amor, que segundo ele surgiu na Grécia e destaca Platão como o primeiro filósofo do amor, também poeta. Fedro e O Banquete, de Platão, são os dois diálogos consagrados ao amor. De acordo com Macedo (2001): Esses discursos são véus e máscaras que ocultam e revelam a natureza de Eros, em um jogo discursivo a oscilar entre o elogio e a verdade, entre mostrar e esconder a verdade do amor. (p.18) Platão, em O Banquete, mostra algumas inversões do amor. A condenação ao Eros sexual nos discursos de Fedro e de Pausânias é uma discussão que perdura até os dias de hoje. No discurso de Fedro não está explicito as desgraças que Eros passa causar ao homem por causa do desejo sexual. Eros ora aparece como maravilhoso, digno de admiração dos deuses, ora como vergonhosa, mas em nenhum caso (exceto em Aristófanes) a relação de amor se constitui a partir da reciprocidade. O amor instaura entre os seres humanos, não uma luta desigual pela posse do objeto amado, mas, como Platão deixa claro, uma erótica fundada na habilidade de transfigurar-se ambos a si mesmos e vencerem os degraus da paixão amorosa e do desejo e, com mais forte razão, do conhecimento e da contemplação. 26 Poema Eu, poema (MARTINS, 2001, p.143) 146 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A linguagem do amor também enobrece a poesia. Os versos de Max Martins. Ao passear os olhos na prazerosa leitura de Platão, vi também nos versos de Max o Amor: a fera27. A menção ao verso moderno nos remete à caracterização de uma poesia mais livre, uma poesia nua. Corpo e poesia se misturam. O tema do amor se anuncia desde 1960, com a publicação de Anti-Retrato, segundo livro de Max Martins. Nele a equivalência entre erótica e a poética aparece na construção das metáforas do corpo feminino como mediadoras do trabalho artístico com as palavras. “A pá nas minhas mãos vazias/ [...] Cavo esta terra-busco num fosso/FODO-A/ agudo osso/oco/flauta de barro/soo?”28 – Max Martins inscreve sua arte no genuíno reino de Eros, aquele que espreita na escuridão. O ato poético, desse modo, se faz escrita, ato fundador: língua e erotismo se enlaçam indefinidamente, aguçando os sentidos humanos. Nessa imersão, difícil é para o leitor distinguir o caráter erótico do trabalho lapidar com a linguagem. Ambos fundam a linguagem poética do Poeta-Édipo, conforme se pode ler a seguir: poema Copacabana. Copacabana Preamar de coxas sugestão de pelos úmidos no verde-mar-azul Os sexos derramam-se na areia (conchas) furam as ondas (seios) baixam palpitam As coxas abertas frescas Dentro o mar lhes canta planta a branca espuma do amor e esfria. (MARTINS, 2001, p.336) No poema acima, Max Martins manifesta o amor, tema que tomará proporções muito maiores nas demais obras e assumirá o posto de centro gerador dessa poesia; a temática do amor carnal está sempre às voltas 27 28 Poema Amor: a fera, in MARTINS, Max. Poemas reunidos 1952-2001. p.301. Poema Koan, in MARTINS, Max. Poemas reunidos 1952-2001. p.280. 147 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 com a poesia de Max. A lírica de Max Martins é marcada por estar desnudada e sem tabus; ela se apresenta sem vestes diante dos olhos do leitor, que nela passeia, desfrutando de todo o prazer (ou angústia) que dela jorra. Nessa lírica, entrelaçados intimamente estão o erotismo e a poesia. Nas palavras de Octavio Paz (1994): A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição complementar [...] A imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora. (p.12) Assim como o erotismo, a poesia destina-se a provocar prazer no mundo, no seu exterior. Ambos destinam-se aos mesmos fins, contudo utilizam-se de meios diferentes. O erotismo se realiza através do corpo, já a poesia o faz por meio do verbo. A linguagem de Max acende a “caixa de Pandora”29 do amor – O amor escreve / escreve / apaga escreve / lambe30. O amor pode ser agora, como foi no passado, uma via de reconciliação com a natureza. Na poesia de Max Martins, as dimensões do erotismo e do poético se entrelaçam, tal como o amor e a natureza materializam-se na plenitude da experiência erótica. O poeta bebe o vinho do amor, come a carne e o osso do poema. Marilena Chauí (1990), no texto Laços do desejo, apresenta um histórico do erotismo que parte de uma visão primordial muito ligada às forças da natureza, uma força cósmica ordenadora do mundo, até os dias atuais. A reflexão presente no artigo de Chauí (1990) consiste em construir um percurso filosófico do desejo desde o século XVII, a fim de perceber que o sentido atual de erotismo não é mais o mesmo de outras épocas. O que era natural passa a ser interditado, o sentido foi transmutado após o “desencantamento do mundo”, ou seja, a chegada da modernidade, que a autora considera “ideias e práticas desenvolvidas na 29 É um artefato da mitologia grega tirada do mito da criação de Pandora, a primeira mulher criada por Zeus. 30 Poema Humor (MARTINS, 2001, p.92) 148 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Europa a partir do século XVII, sob os imperativos da racionalização de todas as esferas do real [...]” (CHAUÍ, 1990, p.19). Chauí (1990) encerra seu artigo com a questão: “Que é, pois, o desejo?”. Após tantas reflexões em torno de várias concepções, podemos afirmar que Chauí chega ao mesmo ponto que Bataille (2004), isto é, define o desejo como a busca de uma satisfação que nunca vai ser atingida. Além disso, ele é o esforço do sujeito de se manter distante da morte; nas palavras da autora, é “manifestação consciente do esforço individual de autoconservação na existência” (CHAUÍ, 1990, p.56). Entender que os territórios do desejo de Max, nos torna atentos e dispostos a mergulhar nas águas de jogos verbais; o poeta redesenha os territórios da linguagem, liberto de cobertas e coberto de prazer e desejo traz em si a demanda diária de uma poesia em essência germinativa: “pois que há uma canção em ti/submarina/ [...] Eu/Eros/quero/te dizer, disseminar, minar-te” (MARTINS, 2001, p.91) Um corpo Por ele canto escrevo-falo pelo eu dum osso Cresce nele um sopro um corpo escorre o seu discurso Tu és o leito Eu o leitor e nisto leito deito o aquilo dito lido líquido que o sangue supre a pele sua e me interpela: escrevo-amo? Dizer não é Tudo é interdito ou não se vê tão perto E disto nisto escrevo-escravo (MARTINS,2001, p.247) A erotizada palavra-corpo de Max Martins, no poema acima, nos dá uma ideia em que portos a poesia de Max irá ancorar. Paz (1994) afirma: “A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, 149 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal” (p.12). A metáfora, então, seria a sexualidade transfigurada em erotismo. E como assevera o autor, o sexo tem como sentido primeiro a procriação, mas o erotismo não, pois ele não alcança a funcionalidade procriadora, é sexo em ação e tem o fim em si mesmo. Logo, a linguagem poética de Max Martins é em sua essência erotismo; ela erotiza a linguagem ao desviar a língua de seu intuito primeiro, o de comunicar. Por isso, o texto poético é diferente do informativo, sua comunicação é mais velada, não inacessível, ele se comunica com o espírito humano. A poesia-corpo de Max Martins não se detém em manifestar os desejos carnais, mas gera em suas entranhas novas concepções de corpo. Em torno do círculo rodeado por metáforas, o poeta escava as palavras, a poesia e o amor seguem – o poema é a sede que o desejo de uma sede maior sacia31. Segundo Nunes (2000), o amor é o tema central em Anti-retrato, velado, sob a metonímia do corpo feminino – As coxas abertas frescas32, da carnalidade – Teu, meu corpo / sangrando de ti33. Se é verdade que o amor sexual é o tipo gerador de todo outro amor, conforme NUNES (2000), não é menos certo que uma poesia erótica é, antes de tudo, como a de Max, uma poesia carnal do corpo todo. Max Martins desejou uma poesia, que tem como componente fundamental a busca permanente pela palavra mutante, as quais conduz para um lugar de imagens; imagens que deslizam dentro do poema; a poesia como matéria da poesia. (...) o poema se faz de conteúdo e forma, desse acasalamento, o poema é uma grande cópula entre as palavras. Essa é outra coisa que me interessa do erotismo na poesia, as palavras se casando, a palavra que puxa a palavra. (MARTINS, 1990, p.06) Em suma, os corpos do poema se encontram plenamente reconciliados na unidade “absoluta” do acontecimento erótico-amoroso, 31 Poema Edmond Jábès: as palavras elegem o poeta (MARTINS, 2001, p. 377) Poema Copacabana (MARTINS, 2001, p. 336) 33 Poema Sangrando de ti (MARTINS, 2001, p. 167) 32 150 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 em torno do círculo rodeado por metáforas, o poeta escava as palavras; a poesia e o amor seguem. O desejo de Max foi encontrar o gozo da palavra, renovando sua linguagem poética, através do verso livre, do jogo com as palavras e da ruptura com o tradicional. O Poeta-Édipo desvenda o enigma da Poesia-Esfinge, viola a linguagem e equilibra o desejo da poesia e do amor, do verbo e do corpo, em um só espelho, líquido e livre. Max adotou o erotismo da palavra. A palavra escolhida. O verbo certo para compor suas linhas de labor poético. O ato de fazer amor com as palavras, simulação de um ato físico, erótico, agora com outros corpos. Nos poemas de Max Martins aqui transcritos, a palavra encontra-se numa estreita relação entre Arte erótica e Arte poética, entre sexualidade e linguagem; aparece como motivo centralizador, que traz pelo fio condutor de Eros uma escrita marcada pelo labor poético. REFERÊNCIAS BATAILLE, George. O Erotismo. Trad. de Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004. BONAPARTE, Marie. Chronos, Eros, Tanatos. Paris: Denoel, 1948. CALDAS, Yurgel. Um Mundo sem cegos. In Revista Asas da Palavra. v. 5, n.11. Belém: Unama, 2000. MARTINS, Max. Entrevista concedida ao Jornal Diário do Pará. Belém, caderno Você, 15/12/2000, p.6. CHAUÍ, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto. O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.19-66. MACEDO, Dion Davi. Do elogio à verdade: um estudo sobre a noção de Eros como intermediário no Banquete de Platão. Porto Alegre: EdiPucRS, 2001. MARTINS, Max. Poemas reunidos: 1952- 2001. Belém: EDUFPA, 2001. MARTINS, Max. Poetas do Pará: depoimento. [28 de junho, 2000]. Belém: Jornal O Liberal. Entrevista concedida a Tito Barata. 151 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 NUNES, Benedito. Max Martins, Mestre- Aprendiz. In Revista Asas da Palavra. v. 5, n.11. Belém: Unama, 2000. MARTINS, Max. Entrevista concedida ao Jornal O Liberal. Belém, 15 març. 2001. PAZ, Octávio. A Dupla Chama: amor e erotismo. Trad. Wladyr Dupont. São Paulo: Siliciano, 1994. PAZ, Octávio. Conjunções e disjunções. Trad. Lúcia Teixeira. São Paulo: Perspectiva, 1979. MARTINS, Max. Entrevista concedida ao Jornal A Província do Pará. Belém, 16/06/1990. PLATÃO. O Banquete. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém: EdUFPA, 2011. SANT’ANNA, Affonso. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. 152 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 “PRECISA-SE DE COZINHEIRA, QUE FAÇA ODES, POEMAS E NOVELAS”: A CORRESPONDÊNCIA ENTRE MULHERES DE LETRAS Drª Ivana Ferrante Rebello (Universidade Estadual de Montes Claros- UNIMONTES) RESUMO: A análise da correspondência de três escritoras – Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e Lúcia Machado de Almeida, num período que compreende a década de quarenta até 1963, revela a cumplicidade de mulheres escritoras e uma complexidade de papeis que confundem as reflexões de intelectuais com as questões rotineiras, como os afazeres domésticos e os problemas de saúde. Essas correspondências, que se encontram no Acervo de Escritores Mineiros, da UFMG, evidenciam questões singulares do fazer literário feminino e elucidam um movimento de bastidores que se formava, rumo a uma consciência sobre o lugar da mulher escritora no panorama literário nacional. Palavras- chave: Correspondência; Cecília Meireles; Henriqueta Lisboa; Lúcia Machado de Almeida. Abstract: This article analyzes the correspondence of the three writers - Cecilia Meireles, Henriqueta Lisboa and Lúcia Machado de Almeida, between forty to sixty, the twentieth century. This correspondence reveals the complicity of women writers in their roles as intellectuals and housewives. The letters show expressions of women's writing and allow reflection on the place of women in the national literary scene. Key words: Correspondence; Cecília Meireles; Henriqueta Lisboa; Lúcia Machado de Almeida. Escrever cartas, antes de ser uma reconhecida forma de interação social, é um ato intrinsecamente ligado à memória e, como tal, também ligado ao arquivamento do eu. Mas para que se escrevem cartas? Para conhecer e ser conhecido; para se informar, expressar opiniões e sentimentos, narrar acontecimentos; para alívio próprio, para ser lido por um ou por muitos. Escreve-se, antes de tudo, para conhecer a si mesmo, como observa Mário de Andrade em carta a Henriqueta Lisboa: “escrevendo eu parece que consigo penetrar mais fundo em mim” (CARVALHO, 1991, p. 119). A carta, tal como a memória, é marcada pela lembrança e pelo esquecimento, é um discurso lacunar que nasce da ausência de algo ou de alguém. Como queria Foucault (2004, p.156), escrever é uma objetivação da alma, uma introspecção seguida de uma abertura para o 153 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 outro. Se escrever cartas também é uma forma de arquivar-se, vale lembrar as considerações de Philippe Artières sobre o arquivamento do eu: O arquivamento do eu não é uma prática neutra, é muitas vezes a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como desejaria ser visto. Arquivar a própria vida é simbolicamente preparar o próprio processo: reunir peças necessárias para a própria defesa, organizá-las para refutar a representação que os outros têm de nós (ARTIÈRES, 1998, p. 31). Ao arquivar-se nas cartas, além de uma defesa prévia para representações que os destinatários tenham criado, o escritor também prepara sua encenação e, de forma intencional, deixa exposta uma ou várias imagens de si mesmo, o que configura uma atitude que em nada se aproxima da imparcialidade. O arquivamento do eu, assim, seria uma forma de controle e de resistência, pois, arquivando-se, o escritor controlaria sua imagem pública e resistiria ao esquecimento, reafirmandose no cenário intelectual. A correspondência enviada por Cecília Meireles a Henriqueta Lisboa constitui-se de um conjunto de cartas inéditas, que retratam aspectos biográficos e inquietações, principalmente ligadas ao fazer literário. Os arquivos de Cecília encontram-se lacrados por seus herdeiros, o que impossibilita a reconstituição do diálogo estabelecido entre duas importantes figuras femininas do cenário das letras nacionais. Assim, no caso das cartas enviadas por Cecília Meireles, foram estudados apenas os originais que se encontram na Sala Henriqueta Lisboa, no Arquivo de escritores mineiros, UFMG. Em carta datada de 16 de fevereiro, de 1945, Cecília Meireles confessa a Henriqueta: “Sabe o que eu acho cada vez mais admirável? A amizade entre gente de letras, principalmente quando essa gente é do nosso sexo.” Na observação da autora de Romanceiro da Inconfidência, ler-se-ia um desconforto e a necessidade da construção de um lugar 154 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 outro, que contemplaria um perfil de mulher e de escritora, ainda pouco explorado pelos estudiosos da escrita de gênero. A correspondência de Cecília Meireles endereçada a Henriqueta Lisboa constitui-se de um conjunto de 42 cartas e sete cartões, enviados no período de 1931 a 1963, sendo mais intensa a troca de cartas entre 1942 e 1949. Trata-se de um importante material de pesquisa, pois contém informações biográficas, reflexões sobre o processo de criação literária, a recepção da crítica, e notícias a respeito de publicações das autoras. No conjunto de cartas assinado por Cecília, há uma certa cumplicidade entre as correspondentes, o que não se observa nas cartas de Drummond ou nas de Mário de Andrade. Tal cumplicidade se nota, por exemplo, em assuntos desusados entre os missivistas masculinos como o pedido de 122 informações sobre que tipo de traje usar nas noites da capital mineira, ou ainda em comentários irônicos sobre a crítica literária feita nos jornais e a atitude do ser humano. Os desabafos de problemas pessoais, relativos à saúde, à administração da casa, à solidão e ao excesso de trabalho, também são temas constantes. Às vezes, o tom bem humorado cede lugar à angústia causada pelo ritmo alucinante de trabalho e pelas condições de saúde desfavoráveis, como se observa na carta de 19 de março de 1945: “sou obrigada a trabalhar tanto, em coisas inadiáveis, por debaixo dos remédios estou como uma coisa partida”. Rodeada pelas responsabilidades da vida privada, da administração da casa e das atividades de escritora, Cecília apresenta-se atordoada e angustiada diante do tempo restrito para o grande número de atribuições. Em carta de 27 de abril de 1945, escreve: “Estou precisando muito libertar-me de tantos compromissos, de tantas ocupações. Preciso aprender a dizer não”. No ano seguinte, a situação não é diferente; Cecília escreve em carta de 14 de agosto: Minha cara Henriqueta: apresso-me em responder à sua carta de hoje, porque de tal forma anda a minha vida que não posso garantir senão o imediato. Tenho 155 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 passado as mais tenebrosas desventuras, estou como um boxeador arrasado, com as mãos no estômago, caído de bruços no trabalho. O excesso de trabalho rende à autora uma sensação de exaustão tão bem representada pela metáfora do boxeador abatido na luta ou pela “coisa partida”. Cecília cria, assim, para sua interlocutora, imagens poéticas que retratam a inquietude e o cansaço diante das inúmeras atribuições. Seu desalento exemplifica as dificuldades de se buscar a ocupação de um espaço na vida profissional, como se lê em carta de 14 de agosto de 1946: Os meus padecimentos são os da época, porém agravados pelo fato de eu ser bem dizer uma pessoa só (todos saem cedo e só voltam para o jantar) – e a casa por ser muito grande e não haver maneira de ajustar os interesses da casa com os das empregadas. Por minha vez, com todos os compromissos que tenho, não posso controlar o serviço como é preciso, infelizmente – e confio tanto em todos que estou sempre fazendo o papel de uma grande boba. Tais queixas, entretanto, ultrapassam o ambiente doméstico: abrangem o meio intelectual e a convivência com o próprio ser humano: “Estou em luta com os 4 elementos clássicos e mais o 5º, que é o homem, - o mais terrível de todos...”, desabafa Cecília em carta de 16 de janeiro de 1945. A autora, em certos momentos, manifesta cansaço e afirma que escrever para os jornais estava cada dia mais enjoativo e que até os livros já a estavam aborrecendo. Cecília afirma, em 19 de agosto de 1945, estar exausta com seu ritmo alucinante de trabalho e com seus padecimentos: Sinto uma profunda necessidade de recolhimento, depois de tanto dinamismo. Creio ter conquistado meu direito à solidão, pelo que tenho feito e sofrido pelos outros, infatigavelmente. Tudo que sabia, já disse, tudo que podia, já dei. Agora só se me acrescentar. E para isso não vejo outro modo que o de concentração e síntese. Talvez nos transfigure. 156 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 O desencanto de Cecília se dá com seus pares e com a própria vida. Mas em outros momentos, o discurso é literariamente intencionado e eivado de imagens poéticas, perpassadas pelo humor, como se observa, por exemplo, na missiva de 14 de agosto de 1946: Hei de sugerir ao Carlos que escreva a “Elegia do Poeta assassinado pela cozinheira”. O Carlos fará isso muito bem, com um trinchante que já estou vendo a gotejar e a fumegar, atravessado no coração do poeta, agarrado àquilo como um frangalho de bife. Os livros nas estantes rezarão abrindo e fechando folhas, e dos retratos familiares cairão lágrimas enormes, como as resinas dos cajueiros. A cozinheira dançará a dança de Salomé – salvo seja – com o garfo na destra e o prato na sinistra, e os passarinhos cairão desmaiados das árvores porque um poeta transformado em bife significa uma safra colossal do mar transformada em sopa, de flores em salada e paisagens enroladas em omeletes. Significa a prepotência dos pançudos e o aniquilamento dos etéreos. A sua morte e a minha! Pobres de nós! Ao falar sobre o excesso de atribuições domésticas, a escritora, ainda assim, deixa entrever em suas palavras um cuidado estético e uma intenção literária. A carta, neste caso, lembra-nos uma crônica, gênero tão conhecido e praticado pela poetisa nas páginas dos jornais em que escreveu. O diálogo intertextual estabelecido no fragmento também se dá com o texto bíblico, quando ela relaciona a figura da cozinheira – causadora das aflições domésticas de Cecília – com a de Salomé – causadora do infortúnio de João Batista. Ao relatar os problemas e dificuldades pessoais, Cecília retrata também as inquietudes comuns a outras mulheres que, como ela, ocupavam cada vez mais o lugar de escritora e intelectual. Nesse sentido, a história de uma se torna a história de muitas, o que, certamente, é significativo para compreendermos e conhecermos melhor o contexto e as condições em que se encontravam as mulheres que participaram do meio literário em meados do século XX. 157 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Em carta a Henriqueta, datada de 17 de outubro de 1949, Cecília Meireles menciona, de forma irônica, a crítica masculina e reafirma uma cumplicidade necessária entre escritoras: O mais admirável não é V. dizer tantas coisas boas a meu respeito (isso não é admirável, mas espantoso!). O mais admirável é você fazer um artigo40 como os nossos colegas varões deviam aprender a fazer, isto é, estudando os autores e as obras, em lugar de distribuírem elogios a torto e a direito apenas porque possuem uma coluna de jornal e alguns amigos que desejam celebrizar... Ah, Henriqueta, eu nunca fui feminista, mas acho que vou acabar sendo, por me convencer de que as mulheres têm mais talento e seriedade que os homens. Os responsáveis por isso são, de um lado, eles e do outro V. Quando eu aparecer de colarinho alto e bengala para combater os que usam esses acessórios como emblemas naturais, irei prevenindo: “Foi Henriqueta que me decidiu a tanto!” Será meu grito de guerra. E todos me deixarão passar, porque é em nome do Anjo-Henriqueta que enfrento a multidão. A brincadeira direcionada à amiga mineira reafirma a defesa da capacidade feminina, e aproxima as correspondentes em uma espécie de cumplicidade contra o sexo oposto. A crítica de Cecília às feministas, de certa forma, reproduz o estereótipo da mulher masculinizada “de colarinho alto e bengala para combater os que usam esses acessórios como emblemas naturais”. Interessante é que, de certa forma, a imagem construída por Cecília coincide com a imagem da mulher escritora criada e criticada duramente por alguns na imprensa. Provavelmente trata-se de “Cecília Meireles”, texto inserido posteriormente em Convívio poético: Porque hoje em dia, quando se ouve falar numa mulher que escreve, ninguém procura saber o que essa mulher escreve; dizse logo, ‘ela escreve’, e pelos olhos passa uma figura de mulher masculinizada, tipo de sufragista, pisando duro, sobraçando uma pasta e calçando sapatos ‘Brogue’. A estilização da figura feminina, presente às vezes no próprio discurso da mulher, é consequência de fator cultural, que pressupõe a alegria, a boa educação e a pureza como atributos femininos, e é claramente expressa em diferentes meios sociais. As representações da 158 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 imagem feminina na época eram estabelecidas pelo estereótipo de mulher bem comportada, como evidenciam os jornais guardados por Henriqueta Lisboa. Nestes, há sempre elogios à figura discreta e bem educada da poetisa mineira que, desde sua estreia, encantava a todos pela presença “delicada e recatada”. Há, nos artigos e notas publicados no início dos anos 20, uma concepção preconceituosa em relação à mulher escritora. Abgar Renault, em artigo intitulado “Musa”, de 1926, afirma que dois nomes mereceram destaque entre as escritoras no Brasil, Francisca Júlia e Gilka Machado; “uma, excessivamente cerebral; outra, excessivamente instintiva; ambas, ao cabo, pouco femininas”. Para o autor, Henriqueta Lisboa viria se juntar a poucos nomes da literatura nacional, como Cecília Meireles, já que ambas realizaram uma arte feminina cujo principal pressuposto era a sensibilidade poética. Seguindo tais parâmetros, Renault (1926) afirma: É bem feminina a sua arte, quero dizer, é uma arte sentida, na qual nada é disfarce ou maquillage. Sua arte é pouco artificiosa. Nem malabarismos de palavras, nem chinezices de expressão. Simplicidade, sobriedade, elegância, todas tocadas de uma comovida emoção – eis as qualidades melhores de seus versos. Não descambar para a vulgaridade, nem desviar-se para o extravagante. Renault deixa claro em seu artigo certa aversão às mulheres escritoras. O autor é enfático e até sarcástico, ao dizer que “escrever versos é tanto quanto diferente de empunhar um baton de rouge ou um arminho de pó de arroz”, palavras que vêm ao encontro de sua postura já declarada em 27 de janeiro de 1926, numa carta sobre Henriqueta, na qual afirma que os versos de Fogo fátuo, primeiro livro da poetisa enviado a ele com uma “generosíssima dedicatória”, tinham lhe despertado admiração: Tem um verdadeiro talento essa moça, não acha? Finura, elegância, presença, assim de formas como de expressões [...] e, sobretudo, uma rara feminilidade, qualidade, a meu ver, tanto ou quanto efusiva entre as musas femininas. [...] faço questão de expressar a admiração que em mim despertaram os versos de 159 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Henriqueta Lisboa, em mim... que sou tanto séptico a propósito de inteligência de mulher... A resistência à mulher intelectual era visível. Valéria Lamego (1996), no artigo “A musa contra o ditador”, relata um desentendimento referente ao prêmio da Academia Brasileira de Letras, recebido por Cecília Meireles, pelo livro Viagem. Segundo Lamego, Cecília disputou o concurso com “vinte e oito obscuros candidatos” e, diante de tantos concorrentes, a comissão do concurso resolveu atribuir um prêmio único a Cecília Meireles. Tal decisão irritou a imprensa e causou insatisfação em 146 alguns acadêmicos, entre os quais estavam Fernando de Magalhães e Alceu Amoroso Lima. O impasse levou a uma divisão do prêmio: o primeiro lugar dado a Viagem e o segundo, a Pororoca, de Vladimir, Emanuel, autor amazonense. Contudo, o conflito não estava ainda resolvido, pois Cecília, que ficara incumbida de discursar na entrega do prêmio, teve seu discurso submetido à censura, o que não era comum, se se tratasse de autores masculinos, e, somente depois, liberado. Ofendida, ela se recusou a ler o texto na cerimônia. Tal episódio, sem dúvida, contribuiu para certa mágoa que se revela nas palavras a Henriqueta. Cecília, em 1945, critica, sobretudo, os arranjos políticos inerentes à escolha dos eleitos para a Academia. E prossegue: “Henriqueta, seja sempre assim alada! Se a Academia lhe tocar nas asas, liberte-se! Devia haver uma Academia Etérea para V”. As dificuldades de participar ativamente da vida intelectual não se restringiram à desconfiança de muitos intelectuais, abrangeram também o espaço doméstico e a rotina cotidiana das mulheres nesse momento. As queixas sobre a administração da casa é tema frequente nas cartas de Cecília às amigas mineiras. Em vários momentos, relata a Henriqueta os problemas domésticos que a afligem, a falta de arrumadeira e cozinheira, o tamanho da casa, as ausências do marido, como nesta carta de 9 de julho de 1946: 160 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Cara Henriqueta: V. sabe o que é mudar-se uma pessoa para uma casa de dois andares, com um jardim em ziguezague, que deixa as barrigas das pernas duras como queijos, estando a casa ainda em obras, [...] e ficar-se na dita casa sem nenhuma criada, porque a zona é populosa em sambistas, mas desconhece cozinheiras, copeiras e outras profissionais? Depois de um ano de lutas tremendas, consegui arranjar, há quinze dias, duas empregadas, com as quais estou muito satisfeita. Mas como nunca se pode ter sossego, no momento em que penso o problema resolvido, as duas dão para interromper as suas relações diplomáticas. Tais considerações marcam o lugar de fala da escritora e as diferenças de classes sociais se evidenciam de forma bastante explícita. O conflito constante da patroa com as empregadas domésticas reforçam as distâncias entre as classes privilegiadas e abastadas e as pobres, e exemplificam, sobretudo, as relações de poder existentes no âmbito do espaço privado. Em correspondência com Lúcia Machado de Almeida, as questões domésticas retornam: Andei fatigadíssima, e não estou ainda muito melhor. Os assuntos domésticos tem-me dado, tanta preocupação, que já estamos arrependidos da bela casa que arranjamos. Toda a minha vida está embaraçada com essas massadas de criadagem. [...] Para que vejas a gravidade do problema, basta que numa carta se lhe consagre tão longo capítulo, havendo na vida mil coisas interessantes, empolgantes, alucinantes de que tratar. É isso justamente que eu não perdoo à divisão de trabalho: que eu não possa escrever as minhas coisas, porque ninguém quer fazer o meu almoço nem a minha cama, sem, em compensação, escrever o que eu deixo de escrever. Porque eu até gostaria muito que outra pessoa fizesse por mim o que eu tenho necessidade de fazer, e decerto, se isso acontecesse, iria preparar almôndegas e quibebes com muita arte e engenho. Se anunciássemos: “Precisa-se de boa cozinheira que faça odes, poemas e novela, de diferentes maneiras, propondo-se a patroa a realizar os quindins e macarrões que ela deixar de fazer”? Achas que apareceria alguma? A construção discursiva de Cecília para tratar das questões domésticas que a afligiam parece seguir um modelo de escrita que parte da confissão, mas busca na ironia o tom criativo para tratar do tema. Ao tratar de assuntos ligados ao ambiente comezinho, da dona de casa e 161 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 esposa, a verve da escritora transforma o relato do cotidiano em textos carregados de imagens e metáforas. Ao falar dos problemas de saúde de Lúcia Machado de Almeida, Cecília também recorre à inventividade e ao humor: Cara Lúcia: a estas horas V. deve estar curada, se os meus pensamentos tiverem a força atômica que pretendem. Pois logo que V. me contou aquelas histórias pulmonares, a Sereia sua parenta, e eu, sua amiga, nos pusemos em transe, e ela com o seu doce violino e eu com a minha fanhosa voz, imploramos as potências marinhas que trouxessem todas as coisas melhores do mundo, para você. [...] Na certa, os deuses mandam isso por tapeação, para nós ficarmos desgostosas, de queixo caído, e envergonhadas: mas lá em Belo Horizonte, que nós daqui não vemos, devem estar oferecendo à Lúcia as coisas mais adoráveis do ultra mundo, e devem acalentá-la, e criar invenções dentro da cabeça dela, e deixá-la todinha em sonho, que é a coisa melhor que pode acontecer a um mortal! Para consolar a amiga de suas aflições de saúde, Cecília Meireles recorre a uma imagem que aparece com alguma frequência em seus livros: a sereia. O diálogo promovido entre a ficção – a personagem sereia – e a realidade – a doença da amiga – é significativo para compreendermos como a Literatura misturava-se ao cotidiano dessas mulheres e serve-nos ao ensejo para desvendar um retrato de mulher na poesia ceciliana, como se pode ler no poema Sereia, da obra Viagem: Linda é a mulher e o seu canto, ambos guardados no luar. Seus olhos doces de pranto - quem os pudera enxugar Cecília aproxima a mulher à sereia, ao canto, à solidão e à ambiência noturna, valores que manifestam, em sua poética, uma condição feminina. Assim, diz a primeira estrofe. Todavia, esta mulher, que é a sereia – logo se saberá – é aquela que canta enquanto chora. No transcorrer do poema, vê-se que ela canta para expressar seus pesares; porém, ao dizê-los tão lindamente nesse canto, ela salva o mundo. Entretanto, de tanto cantar – tal como a cigarra – ela se exaure. Ou seja: 162 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 o mesmo canto com que ela ajuda o mundo a sonhar é aquele que a mata, como afirma a última estrofe: A mulher do canto lindo ajuda o mundo a sonhar, com o canto que a vai matando, ai! E morrerá de cantar. (pp.279-280) Este poema parece explicar qual é o destino do canto que os outros poemas do livro exortavam. Se, de fato, uma das encarnações do feminino em Cecília Meireles parece ser, pois, a sereia, não posso deixar de concluir que, através dessa emblemática, a mulher perfaz, nesta obra, um trágico circuito. Ela é aquele ser indulgente e magnânimo, capaz de transformar a dor em música para dar alma e enlevo ao mundo; todavia, enquanto executa sua heroica missão tutelar, acaba morrendo em nome desta. Presente em versos como os do poema “Sereia”, de Viagem, ou em textos como a crônica “A Sereiazinha”, publicada inicialmente na Folha de São Paulo, em 05 de maio de 1964, essa figura mítica é transportada para o gênero epistolar, também no vocativo, a designar a “Azul Sereia Lúcia”, aproximando a vida da criação. Em outra carta de Cecília, datada de 8 de setembro de 1945, ela menciona a Lúcia sobre sua personagem: Mas para alegrar V. que está doentinha, adiantarei que a Sereia não canta, como as outras: a Sereia toca violino sem arco! E tem um furo no alto da cabeça, por onde entra e sai a inspiração! De lado, parece um barco; de frente é igual a uma bomba. Tem cabelos compridos, usa brincos e travessa [?]! Que é que V. acha? Dizem que veio da Espanha, que veio de Portugal – já a encontraram no alto de uma igreja do Peru – e afinal vamos fundar a Confraria da Sereia, que não será uma Nossa Ordem Social ou Política, mas uma Nossa Ordem Lírica e mística. Em linguagem metafórica, Cecília Meireles designa como parte da “Confraria da Sereia” aqueles ou aquelas capazes de enxergar o mundo com a sensibilidade da arte, especialmente da arte poética. Nesse grupo estariam as amigas Henriqueta Lisboa e Lúcia Machado de Almeida. 163 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A “Confraria da Sereia”, poeticamente aludida na correspondência de Cecília Meireles a suas amigas escritoras, funda, no imaginário de quem lê as cartas entre amigas, uma construção de desassossego e de resistência, em que se inscreve um lugar ainda pouco discutido, posto que perpassado, ainda, de certo mal-estar: o da mulher e seu papel compósito de dona-de-casa e intelectual. REFERÊNCIAS ACERVO HENRIQUETA LISBOA – Acervo de Escritores Mineiros – UFMG. ACERVO LÚCIA MACHADO DE ALMEIDA – Acervo de Escritores Mineiros – UFMG. LAMEGO, Valéria. A musa contra o ditador. Folha de São Paulo. São Paulo, 4 ago. 1996. MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 164 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 CORRESPONDÊNCIAS ENTRE MACHADO DE ASSIS E OS BACHARÉIS EM DIREITO JOAQUIM NABUCO, MAGALHAES DE AZEREDO E MÁRIO DE ALENCAR Iuri Simões Mota34 RESUMO: Machado de Assis partilhou da amizade de vários juristas, muitos formados em São Paulo, no largo de São Francisco, outros em Recife/Olinda. Certo é que o escritor mantinha um contato assíduo com diversos bacharéis, constatação que é possível com base na análise da vasta correspondência trocada entre ele e os seus amigos bacharéis em Direito. Vários estudiosos catalogaram as correspondências de Machado, que foram publicadas por diversas editoras. Nas cartas, o escritor abordava assuntos variados, perpassando por questões literárias e teóricas, até questões pessoais, dependendo da intimidade com o correspondente. Três amigos próximos a Machado de Assis, os bacharéis em Direito Joaquim Nabuco, Magalhães de Azeredo e Mário de Alencar, mantinham uma constante troca de correspondências com o autor. A análise dessas cartas possibilita verificar a ligação de Machado com o universo jurídico do século XIX, bem como a sua amizade com os bacharéis. Palavras-chave: Machado de Assis. Correspondências. Bacharéis. ABSTRACT: Machado de Assis shared the friendship of several legal experts, many trained in São Paulo, in Largo de Sao Francisco, another in Recife/Olinda. It is certain that the writer kept a frequent contact with several graduates, finding that it is possible based on the analysis of the vast correspondence between him and his friends bachelors in law. Several scholars cataloged the Machado matches, which were published by different publishers. In the letters, the writer addressed different issues, passing by literary and theoretical questions, to personal issues, depending on the closeness to the correspondent. Three close friends to Machado de Assis, the bachelors of law Joaquim Nabuco, Magalhães de Azeredo and Mário de Alencar, maintained a constant exchange of correspondence with the author. The analysis of these letters enables check Machado connection with the legal world of the nineteenth century, as well as his friendship with the alumni. Keywords: Machado de Assis. Matches. Graduates. Machado partilhou da amizade de vários juristas, muitos formados em São Paulo, no largo de São Francisco, outros em Recife/Olinda. Certo é que o escritor mantinha um contato assíduo com diversos bacharéis, constatação que é possível com base na análise da vasta correspondência trocada entre Machado de Assis e seus amigos bacharéis em Direito. 34 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros. Mestrando em Letras/Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros. Professor das Faculdades Santo Agostinho. E-mail: [email protected] 165 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Vários estudiosos catalogaram as correspondências de Machado de Assis, que foram publicadas por diversas editoras. A análise de algumas dessas publicações possibilita notar que não são completas, constando absolutamente todas as correspondências do autor. Os organizadores certamente selecionam o material, seja intencionalmente, seja por dificuldades de acesso. Tomando por base uma dessas publicações, a coletânea Machado de Assis Obra Completa, da editora nova Aguilar, organizada por Afrânio Coutinho, foi possível realizar um levantamento sobre a abrangência do ciclo de relações de Machado de Assis com bacharéis em Direito. Relacionando todos os nomes destinatários das correspondências de Machado apresentadas pela referida edição e pesquisando suas bibliografias, é possível concluir que, do total de 30 (trinta) destinatários, 11 (onze) eram bacharéis em Direito, ou seja, 37% (trinta e sete por cento) das pessoas com as quais Machado de Assis se correspondia eram juristas. A verificação de que mais de um terço dos correspondentes de Machado tinha formação jurídica reforça a ideia de que o autor convivia amplamente com bacharéis e mantinha com eles uma constante troca de pensamentos sobre variados assuntos. Essa constatação possibilita compreender como Machado conhecia bem as características típicas do bacharel em Direito e podia reproduzir caracteres adequados para formar um personagem, ou até mesmo balizar toda uma narrativa. Nas cartas, Machado abordava assuntos variados, perpassando por questões literárias e teóricas, até questões pessoais, dependendo da intimidade com o correspondente. O escritor evitava assuntos políticos e não se posicionava com relação a polêmicas, no máximo fazia referência a algum fato notório, mas sem expressar opiniões próprias. Manteve nas cartas o mesmo recato que o caracterizou no trato pessoal, toda crítica que quis emitir sobre o contexto social que o cercava não fez diretamente, mas por meio dos inúmeros textos literários que produziu. Nas cartas, 166 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 pouco se ouviu a voz de Machado de Assis sobre as querelas do seu tempo, mas o tom irônico de Brás Cubas, as contradições de Bentinho, a força conquistadora de Capitu, as teorias de Quincas Borba, e as incontáveis vozes que permearam romances, contos e crônicas, marcaram decisivamente a sociedade, como a expressão nítida dos conflitos humanos. Maria Cristina Cardoso Ribas, na obra Onze anos de correspondência: os machados de Assis, discorre sobre a postura reservada de Machado nas cartas, considerando: Machado, na correspondência, não desfere golpes demolidores na estrutura social em que se insere. Sua performance epistolar não inclui contar singularidades, fazer confidências, a não ser as esperadas acerca de sua doença, relatar fatos que comprometeriam seus amigos ou conhecidos, tampouco polemizar sobre o Império, Canudos, escravidão, abolicionismo, questão militar, República. Diante dessa formatação da correspondência, mesmo assim é mais útil, para o intérprete, ler o texto pelo viés das negativas sem, de imediato, traduzi-las meramente com o rótulo de omissão, indiferença, comprometimento pessoal com alguma das partes envolvidas ou absenteísmo político – estigma alimentado mais pelo preconceito do que pelo conhecimento efetivo desses textos. (RIBAS, 2008, p. 42). As cartas comprovam que Machado manteve um zelo constante para preservar a sua imagem, sem demonstrar nódoas que pudessem comprometer, de alguma forma, a visão respeitosa que o conjunto da sociedade tinha dele. A sua estratégia foi exitosa, pois até mesmo os críticos mais severos mantiveram por ele considerável admiração. Dos correspondentes bacharéis em Direito que Machado de Assis mantinha, cabe destacar três personalidades: Joaquim Nabuco, Magalhaes de Azeredo e Mário de Alencar, que chamam a atenção por razões diversas, como o número de correspondências, ou o trato mais íntimo demonstrado na escrita, ou pela relevância do conteúdo discutido. A análise dos nomes escolhidos colaborará na verificação da ligação do autor com o universo jurídico. 167 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu em Recife em 19 de agosto de 1849, filho do Senador José Tomás Nabuco de Araújo e de Ana Benigna Barreto Nabuco de Araújo, “em 1865, seguiu para São Paulo, onde fez os três primeiros anos de Direito e formou-se no Recife, em 1870.”35. Começou na carreira diplomática como adido de primeira classe em Londres, depois em Washington, de 1876 a 1879. Joaquim Nabuco ingressou na política quando eleito deputado geral, passando a defender vigorosamente a abolição da escravidão no Brasil. Segue trecho em que Celso Uemori, no artigo Joaquim Nabuco, um jacobino contra a aristocracia? aborda essa transição para a política e o impacto gerado na sociedade pela luta abolicionista de Nabuco: O jovem que queria ser poeta, admirador de Renan, a quem conhecera pessoalmente, que não tinha nenhum interesse pela política, deu lugar ao reformista social que lutou pela abolição da escravidão. Os intérpretes dos seus discursos, elaborados nesses quase dez anos, definiram-no como o político e intelectual “radical”, o “desertor da sua classe e raça”, o “socialista-cristão”, “a voz isolada” ou o “liberal radical”, o homem público que “enxergou além de seu tempo” e contrariou a classe a que pertencia ao se colocar na defesa de libertos, escravos e demais trabalhadores livres, da abolição sem indenização e da “reforma agrária”. (UEMORI, 2005. p. 66). Filho da elite do Nordeste brasileiro, Nabuco sempre se interessou por poesia e literatura; trilhando um caminho típico da aristocracia brasileira, bacharelou-se em Direito e seguiu para a carreira na diplomacia e posteriormente na política. Entretanto, como deputado, empreendeu grandes esforços abolicionistas, posição que contrariou boa parte da elite escravocrata, que passou a considerar Nabuco um traidor da sua própria classe. Mesmo com os ataques e ofensas, Nabuco continuou firme com o discurso abolicionista, tornando-se uma das principais lideranças na defesa da abolição da escravidão sem o pagamento por parte do Estado 35 Biografia disponível no sítio eletrônico da Academia Brasileira de Letras. 168 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 de nenhum tipo de indenização aos proprietários. Por sua luta incessante, teve seu nome marcado como herói na história brasileira, reconhecido como um homem de pensamento moderno e vasta intelectualidade. Joaquim Nabuco manteve um contato próximo com Machado de Assis, como bem expressa o seguinte trecho do artigo Joaquim Nabuco, artista de José Américo Miranda: (...) em 31 de janeiro de 1865, no folhetim “Ao acaso”, do Diário do Rio de Janeiro, Machado de Assis havia-se referido elogiosamente ao “jovem estreante da poesia” Joaquim Nabuco. Já no dia seguinte, 1º. de fevereiro, o “jovem estreante” escreveu sua primeira carta a Machado de Assis. Foi o início de uma correspondência que se prolongou por aproximadamente 43 anos. A última carta veio dos Estados Unidos, onde Nabuco era embaixador, datada de 3 de setembro de 1908 – 26 dias antes da morte do grande escritor, autor de Dom Casmurro. (MIRANDA, 2010, p. 35). Machado de Assis e Joaquim Nabuco trocaram correspondências por um longo período, cartas e amizade que duraram até o final da vida de Machado. Nabuco foi um dos principais colaboradores para o desenvolvimento do projeto de fundação da Academia Brasileira de Letras, sendo o fundador da Cadeira nº 27. Nas cartas Machado e Nabuco tratavam de poesia, literatura, trabalho, cotidiano, dentre outros assuntos. É notório que a partir de certo ponto os correspondentes tornam-se mais íntimos, como mostra o trecho da despedida de Machado em uma carta de 1882: “Vou para fora, como disse, mas Você pode mandar as suas cartas com endereço à Secretaria da Agricultura. Adeus, meu caro Nabuco. (...) Adeus, e escreva ao amigo do coração Machado de Assis.”. (ASSIS, 2011, Tomo II, p. 214). Durante três anos, de 1881 a 1883, Joaquim Nabuco esteve em uma espécie de exílio voluntário em Londres, após uma derrota política no Brasil. Momento em que ampliou a sua produção literária e o seu contato com entidades abolicionistas internacionais. Durante esse período, escreveu a importante obra O Abolicionismo, publicada em 1883. Nas 169 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 correspondências, é possível encontrar um Machado de Assis incentivador e motivador, rendendo apoio e conforto ao amigo: Pela minha parte, creio escusado dizer a afeição que lhe tenho, e a admiração que me inspira. A impressão que Você me faz é a que faria (suponhamos) um grego dos bons tempos da Hélade no espírito desencantado de um budista. Com esta indicação, Você me compreenderá. Adeus, meu caro Nabuco, Você tem a mocidade, a fé e o futuro; a sua estrela há de luzir, para alegria dos seus amigos, e confusão dos seus invejosos. Um abraço do Amigo do Coração (ASSIS, 2011, Tomo II, p. 224). Machado não trata diretamente sobre a luta de Nabuco pela abolição, mas expressa a admiração que sente pelo amigo e demonstra empolgação sobre suas possíveis conquistas. Essas circunstâncias colocam Machado de Assis como um dos motivadores de um dos maiores nomes do abolicionismo brasileiro. Os correspondentes trocavam também textos literários, para promover a permuta de observações e sugestões. Nas últimas cartas, Nabuco e Machado trataram amplamente sobre questões voltadas à Academia Brasileira de Letras. As cartas comprovam a amizade e a mútua admiração existente entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco. Os dois compartilharam experiências e demonstraram sintonia de ideias, influenciando decisivamente um na vida do outro. No caso de Machado, essa influência certamente colaborou na construção da sua escrita. Outro importante nome presente nas correspondências de Machado de Assis é o de Mário de Alencar, nascido no Rio de Janeiro em 30 de janeiro de 1872, filho do ilustre romancista José de Alencar. “Fez os primeiros estudos no Colégio Pedro II, obtendo o título de bacharel em ciências e letras, e formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo.”36. Mário e Machado mantinham uma comunicação próxima por meio das cartas, dividindo ideias e acontecimentos importantes da vida. Foi por 36 Biografia disponível no sítio eletrônico da Academia Brasileira de Letras. 170 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 meio de correspondência que Mário informou a Machado sobre o seu noivado e posteriormente sobre o casamento, em determinado trecho de uma das cartas ele justifica a necessidade de informar esses fatos por escrito: “Sendo o meu noivado o primeiro ato sério da minha vida, entendo eu que participar-lho por escrito é um dever da respeitosa amizade que lhe tenho.” (ASSIS, 2011, Tomo III, p. 55). Os acontecimentos da vida de Machado também eram acompanhados com atenção por Mário, como no difícil momento profissional enfrentado por Machado no ano de 1898, quando ele foi colocado em disponibilidade do serviço público ativo, ficando afastado do cargo de diretor da Diretoria-Geral da Viação, adido à Secretaria da Indústria. O fato aconteceu em decorrência de mudanças no regulamento do Ministério, que passou a exigir no cargo de Diretor um profissional formado. Mário de Alencar foi um dos primeiros a render apoio ao amigo, como consta nos comentários de Irene Moutinho e Sílvia Eleutério, organizadoras da edição pela Academia Brasileira de Letras das cartas de Machado de Assis: Machado ficou magoadíssimo, embora recebesse vencimentos integrais e apesar das palavras amáveis do ministro. Machado comentou que lhe faziam um enterro de primeira classe. A primeira reação foi a de Mário de Alencar, que em carta do mesmo dia disse que mal podia crer na notícia de que Machado ficara “adido à Secretaria de Indústria”. Mário fala em “espanto indignado” e em sua revolta com esse “ato iníquo do governo.” Como consolo, Machado devia lembrar-se de que o pai do missivista, José de Alencar, “quando o magoavam e abatiam os dissabores políticos, se refugiava no seio das Letras, onde as alegrias são puras e o consolo infinito.”. O agradecimento de Machado segue no mesmo dia 1º de janeiro: “A sua carta é ainda uma voz do seu pai e foi bom citar-me o exemplo dele; é modelo que serve e fortifica.” (ASSIS, 2011, Tomo III p. XVII). No complicado momento enfrentado por Machado, as palavras de consolo, incentivo e amizade foram rapidamente encaminhadas por Mário, que, valendo-se do exemplo do pai, José de Alencar, recomendou a Machado abrigo no âmbito das letras. Alguns pontos em comum, como 171 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 a característica reservada e o enfrentamento da epilepsia, certamente contribuíram para o estreitamento das afinidades entre Mário e Machado, que nas correspondências compartilhavam angústias e fraquezas, mas também promoviam o incentivo e a motivação mutuamente. Mário de Alencar mantinha uma grande amizade com outro importante correspondente de Machado, o diplomata Magalhães de Azeredo, nascido no ano de 1872, bacharelou em Direito em 1893 na Faculdade de Direito de São Paulo, pouco tempo depois de formado ingressou na carreira diplomática em 1895. Azeredo começou a corresponder-se com Machado quando tinha apenas 17 anos, iniciando uma amizade que perdurou até a morte do consagrado escritor. As cartas entre Machado e Azeredo, a partir de 1889, foram intensas e tratavam de questões variadas, como literatura, cotidiano, política, fatos pessoais e amizades em comum. Nos anos finais de Machado de Assis, a correspondência com Magalhães de Azeredo ganha destaque pela confiança que o escritor depositava no jovem bacharel e diplomata, praticamente todos os fatos importantes que aconteciam com Machado eram retratados nas cartas, que totalizaram mais de 90 correspondências. A importância que Machado dava a estas cartas era diferenciada, situação que contribui para a consagração de Magalhães de Azeredo, como aborda o seguinte trecho da compilação de cartas de Machado organizadas e comentadas por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério e editadas pela Academia Brasileira de Letras: Ao contrário das dezenas de cartas escritas e recebidas por Machado que se perderam irremediavelmente ou jazem no fundo de um velho baú de colecionador, as trocadas entre Machado e Azeredo foram guardadas até o fim pelos dois correspondentes. Sentindo-se próximo da morte, Machado pediu a Veríssimo que devolvesse a seu autor os originais das cartas dele recebidas. Posteriormente Azeredo doou todo esse acervo epistolar à Academia Brasileira de Letras. E eis como um escritor pouco valorizado hoje em dia chegou à posteridade pelo mero fato de ter tido o dom de relacionar-se com o maior escritor do Brasil. (ASSIS, 2011, Tomo III, p. VIII). 172 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A correspondência com Machado eternizou Magalhães de Azeredo, que não tinha nenhuma obra literária em destaque e como diplomata seria mais de um de muitos. Entretanto, a intensidade e intimidade que alcançou com Machado possibilitou a sua notoriedade. Azeredo foi “um dos dez intelectuais convidados para integrar o quadro dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Escolheu para patrono Domingos Gonçalves de Magalhães, a quem coube a cadeira nº. 9. Foi o mais novo dos fundadores, aos 25 anos.”37. O ingresso de Azeredo como fundador da Academia Brasileira de Letras teve a influência direta de Machado de Assis, que atuou ativamente para viabilizar o convite. As cartas entre Machado e Azeredo mostram um Machado de Assis afetuoso, com o coração aberto a uma sincera amizade. Saudoso das notícias e dos textos literários que o amigo enviava, interessado nas histórias sobre outras sociedades, disposto a partilhar da sua experiência para aconselhar e orientar o jovem amigo. A diferença de idade entre Machado e Azeredo era de 33 anos, mas a afinidade entre os dois fica evidente nas correspondências, como se fossem amigos de infância. A admiração é o elo que liga essas duas personalidades, Machado via em Azeredo um futuro promissor, um jovem talento. Azeredo via o mestre, gênio das letras, já amplamente reconhecido. Mas o que faria um dos grandes escritores brasileiros, já envelhecido, se interessar pela vida de um jovem rapaz? A resposta pode ser analisada por meio de uma famosa frase grafada na obra Dom Casmurro: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.” (ASSIS, 2008, p. 12). Machado apreciava acompanhar a trajetória de Azeredo, retratada por meio das cartas, era como se vivenciasse experiências que não pôde ter. O ambiente da faculdade, os estudos e o percurso para a obtenção do bacharelado, depois as viagens para vários países, a troca cultural com diversas sociedades. 37 Biografia disponível no sítio eletrônico da Academia Brasileira de Letras. 173 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Por meio das correspondências de Machado de Assis com os amigos bacharéis em Direito é possível compreender como o servidor público e escritor, sem formação jurídica, podia conhecer tanto sobre bacharéis, as suas técnicas, os seus instrumentos e as suas vivencias. Todo esse conjunto de relações de Machado possibilitava que o escrito conseguisse construir personagens com caracteres representativos da realidade, retratando com esmero a sociedade que o cercava. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo II, 1870-1889 / coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. – Rio de Janeiro: ABL, 2011. ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900 / coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. – Rio de Janeiro: ABL, 2011. ASSIS, Machado de. Obra Completa. Organizada por Afrânio Coutinho. 10. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 2ª ed. – São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. MIRANDA, José Américo. Joaquim Nabuco, artista. V. 19. O Eixo e a Roda. Belo Horizonte: UFMG, 2010. RIBAS, Maria Cristina Cardoso. Onze anos de correspondência: os machados de Assis. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; 7 Letras, 2008. UEMORI, Celso Noboru. Joaquim Nabuco, um jacobino contra a aristocracia?. V. 13/14. São Paulo: Lutas Sociais (PUCSP), 2005. 174 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 EDSON LOPES, DILUIÇÕES EM ÁGUAS DO SÃO FRANCISCO Júlio Cipriano da Silva Neto Rita de Cássia Silva Dionísio Santos Resumo: Edson Lopes, escritor ribeirinho de Minas Gerais, traz em sua obra infantil “Historinhas Integrais em Prosa e Verso”, Editora All Print, 2014, a cultura dos piraporenses, privilegiando, assim, o rio São Francisco com suas narrativas e histórias de ficção que parecem estar diluídas nas próprias águas do rio. Seu livro, resultado de um trabalho conjunto com seus alunos, é produto de oficinas de escrita em uma escola de bairro periférico da cidade de Pirapora. Propõe-se, nesta comunicação, refletir sobre a metodologia e recursos expressivos que o autor utiliza na obra citada, bem como sobre as manifestações identitárias dos sujeitos infantis que colaboraram com esta produção. Palavras-chave: Edson Lopes, Literatura de Minas Gerais, Literatura infantil. ABSTRACT: Edson Lopes, riverside writer of Minas Gerais, brings in its child labor "Short stories integrals in Prose and Verse," Publisher All Print, 2014, the culture of piraporenses, thus focusing on the São Francisco River with their narratives and stories fiction that seem to be diluted in the very waters of the river. His book, the result of a joint effort with their students, is the product of writing workshops in a school in suburb of the city of Pirapora. It is proposed in this paper, reflect on the methodology and expressive resources which the author uses in the cited work, as well as the identity manifestations of children's subjects who collaborated on this production. Keywords: Edson Lopes, Minas Gerais Literature, Children's Literature. Escritor barranqueiro contemporâneo, Edson Lopes nasceu em Curvelo, Minas Gerais, e reside há 16 anos em Buritizeiro, onde foi professor de literatura. Atualmente, é professor de português no município vizinho, Pirapora, onde desenvolveu sua obra Historinhas integrais em Prosa e Verso na escola Municipal Professora Maria Coeli Ribas Andrade e Silva junto a seus alunos. O autor considera a literatura infantil como instrumento para ir além do plano real, meio transfigurador para outros universos: A literatura em minha vida tem como principal o papel de me salvar de mim. Da grande bobagem que sinto de me desintegrar, de escapar para o vácuo. A literatura me lembra da existência de muitos mundos além do meu, mundos a transfigurar, a reinventar. Sinto-me um poeta, um médico, um louco, uma criação criadora (Edson Lopes, 2014). 175 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Tratamos aqui nesse ensaio a literatura infantil como algo lúdico e fantástico, capaz de nos transportar para momentos bons, felizes e até mesmo tristes. Para Maria Helena Frantz, “a literatura infantil é também ludismo, é fantasia, é questionamento, e dessa forma consegue ajudar a encontrar respostas para as inúmeras indagações do mundo infantil, enriquecendo no leitor a capacidade de percepção das coisas.” (Frantz, 2001, p.16). No livro Historinhas integrais em prosa e verso, Edson inova na metodologia de escrita literária tradicional e passando a escrever junto aos alunos a partir de histórias relatadas por esses. Contrapondo o método usual, no qual se dá através de um adulto escrevendo para crianças afim de transmitir, através da escrita, os conhecimentos julgados interessantes para esse público. Cecilia Meireles em Problemas da literatura infantil nos mostra tal forma tradicional mencionada: Em suma o ‘o livro infantil’, se bem que dirigido à criança, é de invenção e intenção do adulto. Transmite os pontos de vista que este considera mais úteis à formação de seus leitores. E transmite-os na linguagem e no estilo que adulto igualmente crê adequados à compreensão e ao gosto do seu público (MEIRELES, 1979 p. 29). Edson Lopes em entrevista, 2015, conta como se deu o processo de criação literária a partir de suas aulas. Encontrou algumas dificuldades no ensino, mas nada impedisse sua vontade de lecionar. No começo o professor dividia a sala de aula com outra professora, mas devido as complicações que se ocasionaram, buscou outra alternativa, indo ocupar o espaço aberto da escola. Em baixo de árvores Edson encontrou a solução para o problema. Organizava cadeiras e mesa e esperava a companhia de seus alunos para iniciar sua aula. Disposto de materiais mais lúdicos e interativos como leitura de música e canto, Edson buscou atingir todos os seus alunos. Sendo esses em que em sua maioria não 176 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 sabiam ler ou escrever, portanto e acompanhavam através do canto e de figuras. O autor ribeirinho faz uso dessa didática para despertar a curiosidade e hábito de leitura em seus alunos. Inovado sua metodologia incentivando os alunos a contar histórias a partir de suas vivências e o modo como eles viam o mundo ao redor, transformando assim a vida de cada criança com o uso da literatura. Segundo José Eustáquio Romão, Revista Nova Escola, 2008, a pedagogia freireana, considera o sujeito da criação cultural não de forma individual, particular, mas sim como o coletivo, tendo em vista que em sala de aula tanto professor quanto aluno aprendem e produzem juntos, sendo necessário equidade nas relações afetivas e democráticas, garantindo o direito a todos de se expressarem. ROMÃO, José Eustáquio. Um dia comecei a pedir a eles para contarem coisas que eles imaginavam ou que acontecia em suas vidas, comecei a anotar em um caderno. Lembro-me de um dia em que li, em uma aula, um conto de um livro de Português, em que um grupo de meninas fizeram uma dinâmica com outra em particular, incentivando-a a brincar com as palavras, criando aliterações e assonâncias, o que deu origem ao poema Bichos de Versos, que faz parte do livro (LOPES, Edson, 2015). Historinhas integrais em prosa e verso trás o poema Bichos de verso: Bichos de versos No universo da criança, a palavra é lavra de letras, Deixa-se quase ver o pensamento que chove da nuvem chamada sonho. Um par de olhinhos intensos abarca um mundo imenso em torno. São passarinhos que passarão por aqui: bem-te-vi, que ainda não viu Curiosidade de curió, sabiá que só sabe que nada sabe. A criança torna-se obsoleto o soletrar, sem se dar conta, Afinal de contas, um pá não lavra letras? A criança faz-se face à literatura. Assim, e dado em prosa ou verso a cada bicho o seu nicho: A mosca masca música de zumbir; O mosquito mescla mau humor com amor entre ficar ou sumir; Um gafanhoto é garfado grafando uma frase errado Arranhado por uma aranha loira e lesa que se viu viúva; Uma libélula liberta de teia alheia tolhe-se, atabalhoada, 177 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Na incerteza de tomar a reta ou a curva; Ali, ao lado, inalado e ilhado em si, Um calango cala, faz tranquilo o quilo ao rés do barranco; Olhando, desconfiado, ao redor da rua, um caramujo caga e mija, É liso, mas lento, sem pernas, mas manco. Entretanto, a mente da criança toma um tranco e trava, que pateta! Parar quando estava quase virando poeta! A partir da leitura do poema podemos aferir o uso de recursos humorísticos e rimas feitas pelas crianças, dando melodia ao texto literário. No poema Bicho de Pé podemos perceber a escrita das jovens que utilizam de recursos linguísticos já citados anteriormente que utiliza também o fenômeno antropomorfismo, que consiste em dar características humanas aos animais. O autor, associa sua obra ao escritor Guimarães Rosa, no que tange os métodos da escrita literária, Edson Lopes, 2015: “Na Verdade, a viagem do Historinhas Integrais em Prosa e Verso poderia ser considerada uma ação inspirada em Guimarães Rosa, sem querer ser pretensioso e já sendo. Ouvir histórias e "estórias", transformá-las em literatura.” Guimarães rosa, famoso escritor mineiro, fala das narrações das memorias e histórias que ocorrem ao longo da vida: Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narrar estórias corre por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens (ROSA, Guimarães.). Esta citação refere-se a necessidade de escrever histórias, mostrando a necessidade dos homens em deixa-las perpetuadas no tempo. Narramos os acontecimentos ao longo da vida, passando de geração em geração. Isto é, segundo Guimarães é inerente a natureza humana que perpassa e fica gravado ao longo do tempo, seja de forma 178 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 oral, ou através dos livros de autores apaixonados por consultar o passado para escrever na literatura as aventuras dos outros, como faz Edson em seu livro, com ajuda de seus alunos. O autor mineiro ressalta a importância do Velho Chico que está de forma diluída, como são as almas em todo corpo, como é a poesia nos textos literários que se dizem em prosa, em todos os textos de Historinhas Integrais em Prosa e Verso. Revela também como o contato com o rio São Francisco influencia em sua escrita. “Gosto muito deste rio, que passa, praticamente no fundo de meu quintal. Pesco, nado, divirto-me muito nele. Ao mesmo tempo, entristeço-me por conhecer de leitura e de ouvido, que aqui vivem há mais tempo que eu.” Historinhas integrais em prosa e verso trás o poema Sorria, Rio!: Sorria, Rio! Nosso Velho Chico Peleja, tristonho, Mas há de vir chuva Alegrar os dias, Enchê-lo de águas Tão fartas de peixes, Fazer com que o rio De novo sorria. A partir da leitura do poema, percebemos a preocupação das crianças com o rio São Francisco, o qual passa por uma resseção hídrica, Agencia Nacional de Águas, 2014. Edson afirma em entrevista,2015 que: “...a alma dos pequenos ribeirinhos de Pirapora, a alma dos periféricos meninos do Bairro Cidade Jardim, faz parte do corpo das águas de nosso rio da unidade nacional.” Para o nosso autor barranqueiro, após sua obra, ratifico, produzida em conjunto com seus alunos, a Escola Coeli Ribas e esses alunos inseridos no contexto de bairro periférico nunca mais serão os mesmos. Pois a literatura desenvolvida, por menos que pareça, transfigura, transforma, muda o mundo. “Basta que leiamos um simples poema para, ao terminarmos, sentirmos que já não somos os mesmos.” (LOPES, Edson,2015). 179 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Ainda em tempo, o autor afirma que alguns textos têm raízes diferentes: o poema musical "Peleja de Gente e Rato", foi escrito em 2011, por ocasião de uma visita à Coeli Ribas de Bernardo Sabino, Filho de Fernando Sabino. Essa visita contribuiu com conhecimento biográfico dessa legenda literária brasileira, muita literatura: "Peleja de Gente e Rato" é uma paráfrase musical do livro e conto "O Ratinho Curioso", de Fernando Sabino. (ANEXO). Ainda sobre o livro o autor afirma que alguns textos foram criados para jograis, como o que parafraseia Os três porquinhos e outro que cita a Branca de Neve, além de "Cantiga do último cariri", que conta de forma poética nuances da origem de Pirapora e de seu povo. (ANEXO). O trabalho transformador de Edson Lopes evidencia o poder do professor em mobilizar uma comunidade, junto a família dos alunos e o corpo docente da escola, usando a literatura como instrumento transformador de vidas. Melhorando a sociedade escolar, e dando oportunidades para desanimando, cada Edson criança. Lutando Lopes utiliza diariamente dessa didática e nunca inovadora, abandonando o método engessado da sala de aula. Para finalizar, deixo o poema Criança dessa maravilhosa obra, Historinhas integrais em prosa e verso: Criança Criança É uma obra De (fazer) arte. REFERÊNCIAS LOPES, Edson. Historinhas Integrais em prosa e verso. 1. ed. Pirapora, Minas Gerais: Ed. All Print, 2014, p. 1-40. FRANTZ, Maria Helena Zancan. O ensino da literatura nas séries iniciais. 3. ed. Ijuí – RS: Ed. UNIJUI, 2001, p.16 180 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 LORENZ, Günter W. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 62-97. MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3 a edição. São Paulo, Summus, 1979, p. 29. CRISE HÍDRICA FAZ CHESF DIMINUIR VAZÃO DO RIO SÃO FRANCISCO. s/p. Disponível em: <http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2015/05/crise-hidrica-faz-chesfdiminuir-vazao-do-rio-sao-francisco.html>. Acesso em: 02 de outubro de 2015. ROMÃO, José Eustáquio. Revista Nova Escola, 2008. s/p. Disponível em: <http://revistaescola.abril.com.br/formacao/mentor-educacao-consciencia423220.shtml?page=all> Acesso 02 out. 2015 Júlio Cipriano da Silva Neto atualmente é graduando do curso de Letras/Português da Universidade Estadual de Montes Claros. ANEXOS 181 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Figura 1: Cantiga Peleja de gente e rato. 182 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 GRANDE SERTÃO: VEREDAS – A FLORA EM PERSPECTIVA Júnia Cleize Gomes Pereira (Mestranda – UNIMONTES/FAPEMIG) Orientadora: Prof.ª Dr.ª Telma Borges (UNIMONTES) RESUMO: Esta proposta tem por objetivo apresentar os resultados parciais do projeto de Pesquisa “Enciclopédia do grande sertão”, do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Literatura e afins – Nonada, mais especificamente sobre a flora presente em Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa. Durante a pesquisa, fizemos leituras de bibliografias referentes ao tema e leituras minuciosas do romance, catalogando a flora que o compõe. Feito isso, realizamos uma busca da etimologia, da serventia e dos nomes populares dos vegetais encontrados; estudamos ainda, livros e dicionários especializados em botânica, comparando com os termos da flora empregados por Riobaldo em seu discurso. Resultado de tal trabalho foi uma monografia que se transformou em verbete, este que irá integrar uma enciclopédia organizada pelo Grupo e que contribuirá para o avanço da fortuna crítica rosiana. Palavras-chave: Literatura de Minas Gerais. Guimarães Rosa. Flora. ABSTRACT:This proposal aims to present the partial results of the research "Enciclopédia do grande sertão", the Interdisciplinary research Group in Literature and the like - Nonada, more specifically on the flora present in Grande Sertão: veredas written by João Guimarães Rosa. During the research, were made bibliographies readings on the topic and detailed readings of the novel, cataloging the flora that compose it. Thus, we conducted a search of etymology, the usefulness and popular names of plants found; study also books and specialized dictionaries in botany, comparing with the terms of flora used by Riobaldo in his speech. As a result of this work a monograph has been done and it turned into entries, this one will integrate an encyclopedia organized by the Group and will contribute to the advancement of Rosa's critical fortune. Keywords: Minas Gerais Literature. Guimarães Rosa. Flora. O presente artigo é resultado parcial dos estudos realizados junto ao projeto de pesquisa “Enciclopédia do grande sertão”, cujo objetivo foi analisar os vegetais existentes em Grande Sertão: veredas. Dado o tema, veio a necessidade de verificar a relação desses vegetais com o enredo, ações e personagens da narrativa. A flora está representada no romance com espécies típicas do cerrado: capins, ervas, arbustos e árvores que são empregados na alimentação, na medicina, em jardins e em outras serventias. Algumas dessas espécies ganham certo destaque, como o buriti, o mais citado no relato e que, como outras, ganharam o mundo nas páginas de Guimarães Rosa. 183 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 No decorrer deste trabalho, falaremos sobre a presença desses vegetais e apontaremos possíveis simbologias e importância para o desenvolvimento da narrativa. Segundo Mônica Meyer, “Em Grande Sertão: Veredas pode-se dizer que a natureza não se apresenta como um palco, cenário ou moldura onde se desenrola a ação, mas está dentro de cada personagem e cada um faz sua natureza” (MEYER, 2008, p. 25). Assim, partimos do pressuposto de que a vegetação não se apresenta somente como um plano de fundo em Grande Sertão: veredas, ela tece a trama da vida de Riobaldo, personagem principal, e delineia a singularidade da vegetação do sertão e sua relação com o “homem humano”. É registrado no romance em estudo as tradições do sertanejo, as indescritíveis belezas cênicas e a fabulosa biodiversidade da fauna e da flora do Cerrado, registros estes que revelam um vasto mundo: o sertão dos Gerais. Na flora, Guimarães identifica as árvores, as flores e frutas dando realce às suas cores, aos cheiros e aos seus nomes populares, uma maneira de catalogar o saber do povo sertanejo. Esses vegetais revelam o potencial da flora na alimentação, na medicina, no fornecimento de madeira e em outras formas de manejo que favorecem as populações locais. São destacados na obra o pequi, o jatobá, a macaúba, a imburana, o pau d’óleo, o tamboril, o agrião, a mangaba, a mandioca, o maracujádo-mato, o joazeiro, o olho-de-boi, a peroba, o pau-pombo, o capimcapivara, o buriti, entre tantos outros. Dentre as espécies citadas, destacamos para este trabalho o pequi, o buriti e a “flor do amor”. Assim, exemplificaremos e concretizaremos, ainda que parcialmente, a importância dos vegetais no romance e suas simbologias. O pequi, da família Caryocaraceae, tem como nome popular: pequi, piqui, piquiá, piqui-do-cerrado. O pequizeiro é habitual no bioma do cerrado, produz fruto (o pequi) e tem uma grande variedade de uso. Do pequi se come a polpa fresca, em conserva ou na forma de farinha, doce ou licor; sua madeira é utilizada na construção de dormentes, esteiros de 184 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 curral, fabricação de móveis, etc; o óleo da poupa é extraído e utilizado para pratos típicos e uso medicinal; o chá das folhas serve como regulador do ciclo menstrual; há também o uso na cosmética e na tinturaria. (ALMEIDA et al, 1998, p. 106-108). A polpa amarela do pequi, com seu sabor e aroma marcantes, tem seu uso cada dia mais diversificado na culinária. A castanha que fica escondida dentro do caroço do fruto também é saborosa e muito nutritiva, podendo ser consumida in natura ou como ingrediente para elaboração de pratos salgados, doces e pães. Essa castanha do pequi tem coloração branca e um sabor exótico que, para alguns, assemelha-se ao sabor de queijo. O pequizeiro é uma planta muito versátil, no que diz respeito às suas utilidades, pois dela se aproveita praticamente tudo. Na língua indígena da região seu fruto é chamado de “casca espinhenta”, isso porque seu caroço é dotado de muitos espinhos e tem que haver certo cuidado ao roer o fruto. Outra expressão usada para designar o pequi é “carne” do cerrado. Além das proteínas, poliglicerídeos e carboidratos necessários ao organismo, contém alto teor de pró-vitamina “A” em sua polpa. (ALMEIDA et al, 1998, p. 108-109). Em Grande Sertão: veredas, os pequizeiros, além de caracterizarem a vegetação típica do Cerrado, são mencionadas suas serventias como alimento, o uso da sua madeira, o uso no comércio local e também como marcador de tempo, pela sua floração. Vejamos alguns trechos do romance em que o narrador cita o pequi e seus diferentes desempenhos práticos na vida do sertanejo: O Garanço se regalava com os pequis, relando devagar nos dentes aquela polpa amarela enjoada. Aceitei não, daquilo não provo: por demais distraído que sou, sempre receei dar nos espinhos, craváveis em língua. (ROSA, 2001, p. 200). De como, no prazo duma hora só, careci de ir me vendo escorando rifle e alvejando, em quentes, em beira de mato e campo, em virada de espigão, descendo e subindo ramal de ladeirinhas pequenas, e atrás de cerca, debaixo de cocho, trepado em jatobá e pequizeiro, deitado no azul duma laje 185 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 grande, e rolando no bagaço doce de cana, e rebentando por dentro de uma casa. (ROSA, 2001, p. 246). A quase meio-rumo de norte e nascente, a quatro léguas de demorado andamento, tinha uma venda de roça, no começo do cerradão. Vendiam licor de banana e de pequi, muito forte, geléia de mocotó, fumo bom, marmelada, toucinho. Sempre só um de nós era que ia lá – para não desconfiarem. Ia o Jesualdo. A gente outorgava a ele o dinheiro, cada um encomendava o que queria. (ROSA, 2001, p. 310). Tomando o tempo da gente, os soldados remexiam este mundo todo. Milho crescia em roças, sabiá deu cria, gameleira pingou frutinhas, o pequi amadurecia no pequizeiro e a cair no chão, veio veranico, pitanga e caju nos campos. (ROSA, 2001, p. 319). Ao analisar tais passagens sobre o pequi, verificamos que Rosa caracteriza o fruto destacando sua cor e seu consumo; como uma espécie de esconderijo e instrumento que auxilia na guerra; o uso do licor no comércio, ou seja, como fonte de renda; o consumo da bebida pelos jagunços, uma espécie de divertimento e no estabelecimento da passagem do tempo pela floração e frutificação. O amadurecimento do pequi, por exemplo, acontece em uma determinada época, só se frutifica de novembro a fevereiro. Assim, para dizer da passagem do tempo e de sua relação com o deslocamento dos soldados no espaço do confronto, o narrador opta por fazer o tempo se desenrolar na frente do leitor por meio de uma descrição que atribui ao tempo a materialidade da natureza em seu processo contínuo de renovação: as roças crescem, os animais reproduzem, as flores viram brotos, depois frutos que caem, como o pequi que, maduro, cai no chão sinalizando o fim de um ciclo – o da reprodução – e o início de outro – o do consumo, momento no qual a natureza, pródiga que é, se oferece ao homem como sustento. Ao escolher a natureza para fazer o leitor visualizar o transcurso do tempo, o narrador opta por fazer o leitor não ser apenas informado do tempo que os soldados demoraram por ali, mas o ser poeticamente informado desse tempo de guerras entre 186 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 jagunços e soldados, um tempo que não é tecnicamente, mas naturalmente mensurado. Como já foi dito anteriormente, o buriti é, de longe, a espécie mais citada na obra de Guimarães Rosa; pertence à família Palmae (Arecaceae) e tem como nomes populares: buriti, carandá-guaçu, carandaé-guaçu, miriti, muriti, palmeira-buriti, palmeira-dos-brejos. O buriti também é encontrado na região do cerrado, em locais alagados ou acompanhando os cursos de águas permanentes. Sua imagem está associada a terrenos férteis, ricos em água, plantas e bichos. É utilizado para as mais diversas finalidades pelo povo do sertão; dele se obtém abrigo, alimento e até mesmo transporte. As seguintes passagens de Grande sertão: veredas dão uma dimensão do potencial de utilização e da ecologia do buriti: O senhor estando lembrado: aqueles cinco, soturnos homens, catrumanos também, dos Gerais, cabras do Alto-Urucuia. Os primeiros que com Zé Bebelo tinham vindo surgidos, e que com ele desceram o Rio Paracatu, numa balsa de talos de buriti. (ROSA, 2001, p. 512). Topar um vivente é que era mesmo grande raridade. Um homenzinho distante, roçando, lenhando, ou uma mulherzinha fiando a estriga na roca ou tecendo em seu tear de pau, na porta de uma choça, de buriti toda. (ROSA, 2001, p. 398). Quase que cada um era escuro de feições, curtidos muito, mas um escuro com sarro ravo, amarelos de tanto comer só polpa de buriti, e fio que estavam bêbados, de beber tanta saeta. (ROSA, 2001, p. 400). Pois, várias viagens, ele veio ao Curralinho, me ver – na verdade, também, ele aproveitava para tratar de vender bois e mais outros negócios – e trazia para mim caixetas de doce de buriti ou de araticum, requeijão e marmeladas. (ROSA, 2001, p. 131). Cabeça de um se bolou, redondante, feito um coco, por cima da palha de buriti que cobria uma casa de vaqueiro. (ROSA, 2001, p. 352). Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-buriti, sempre ajudava. E seguimos o corgo que tira da Lagoa Suçuarana, e que recebe o do Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros. (ROSA, 2001, p. 71). 187 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Aquela Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus-buritizais levados de verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto. (ROSA, 2001, p. 614). Entre a vasta utilidade do buriti, verificamos em Grande Sertão: veredas diversos usos, como exemplificados acima: o buriti na fabricação da balsa e da porta, o consumo da sua polpa: é usado para fazer doce e farinha; usa-se a palha para cobrir casas. Na última passagem citada, Riobaldo lamenta a morte de Diadorim que, por sua vez, foi quem o ensinou a admirar os pássaros e a ver as “cores do mundo sertanejo”. Com Diadorim, Riobaldo passou a ver natureza do sertão com outros olhos; por isso relaciona a morte d(o)a amad(o)a com a natureza: “meus-buritizais levados de verdes...” (ROSA, 2001, p. 614). O buriti é uma palmeira verde, assim como os olhos de Diadorim. Com a morte desse, é como se os buritis tivessem perdido sua cor e, por extensão, todo o sertão; tendo em vista que, para Riobaldo, o verde intenso do sertão, e que ele passou a apreciar, é uma projeção do verde dos olhos de Diadorim. É, portanto, no verde dos olhos de Diadorim que está a cor, a vida desse sertão universal. Morto ele, é como se com ele morresse também o sertão pelo bloqueio de sua cor mais vibrante. Além dessas passagens, é importante observar que nas veredas sempre tem buritis e onde tem buriti tem águas. Como diz Riobaldo, “o buriti é das margens” (ROSA, 2001, p. 393), “não se aparta das águas carece um espelho” (ROSA, 2001, p. 325). Com isso, é perceptível que o buriti é vital para a vereda, ele é o caminho das águas do sertão. No romance rosiano, temos ainda espécies vegetais com uma pluralidade de significados e usos, como é o caso da “flor do amor”, uma flor branca e perfumada que se parece com um lírio. Essa “flor do amor”, significante deslizante, tem a ver com a relação entre Riobaldo e três mulheres. 188 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Na narrativa essa flor tem vários nomes, pois ao indagar sobre o nome da flor, tem-se diferentes respostas. A flor tem o nome de casacomigo para Otacília, dorme-comigo para Nhorinhá e Liroliro quando Diadorim pergunta a Otacília o nome da planta. Riobaldo, em sua trajetória de jagunço, experimentou diferentes situações amorosas; cada um desses amores teve importância particular em sua vida e por cada uma dessas mulheres nutriu um tipo de sentimento diferenciado. Os gregos fazem três tipos de distinção de amor, usavam a palavra de acordo com o tipo de amor a que se referiam: Ágape é um amor sentimental, fraternal e espiritual; podemos relacioná-lo ao amor de Otacília; Eros se refere ao amor sexual, carnal e que relacionamos a Nhorinhá; por fim, temos o Philos que é um amor vinculado a amizade e que pode ser relacionado a Diadorim e, nesse caso, também a um amor impossível. Otacilía sente por Riobaldo um amor sentimental; é ela quem o oferece estabilidade, fidelidade e afeto constante. Por tais motivos é que é relacionada à flor casa-comigo. Diferente de Otacília, Nhorinhá é o amor carnal; por ser prostituta, representa o amor físico e é com ela que Riobaldo vive momentos de profunda satisfação, por isso é relacionada à flor dorme-comigo. O último de seus amores, Diadorim, é quem representa para ele um amor inexplicável e impossível, proibido. Um amor que se apossa do jagunço como um feitiço, um encanto que o perseguiu ao longo de sua travessia; esse é um amor travestido de amizade, relativo ao nome da flor, quando denominada liroliro. Essas três denominações, referindo-se a três tipos de pessoas, a namorada, a prostituta e ao amigojagunço, simbolizam no romance os diferentes discursos sobre o amor. Além dessas relações baseadas nos significados das palavras, analisaremos as estruturas das palavras relacionando-as aos seus respectivos significados. Casa-comigo tem letras iguais no começo de cada palavra, dorme-comigo tem letras diferentes no começo das palavras, ambas formam um locução, cujos vocábulos se unem por meio 189 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 do hífen. Liroliro é uma palavra dobrada, repetida, espelhada. Podemos associar que em casa-comigo há um casamento entre as palavras, por meio da letra “c” que se repete no início de cada uma. Na segunda palavra – dorme-comigo – não há essa combinação, por isso, pode remeter a uma relação passageira; e, por fim e ironicamente, a palava liroliro, sem hífen, com identidade absoluta entre as palavras que a forma, é a expressão metafórica de relação interdita. Assim, percebemos que na narrativa de Riobaldo a flora que compõe o sertão físico caracteriza o costume sertanejo, os hábitos alimentares, auxilia na contagem do tempo, ou seja, está integrada à vida do sertanejo. Já a flora que configura o estado da alma, simboliza os seres criando uma relação com o “homem-humano”, seus crespos, venturas e desventuras, sabores e dissabores; é a natureza metaforizando as humanas paixões. REFERÊNCIAS ALMEIDA, S.P. de; PROENCA, C.E.B.; SANO, S.M.; RIBEIRO, J.F. Cerrado: espécies vegetais úteis. Planaltina: EMBRAPA-CPAC, 1998. BRAGA, Renato. Plantas do Nordeste: especialmente do Ceará. 3. ed. Fortaleza: Editora ESAM, 1976. MEYER, Mônica. Ser-tão Natureza: a natureza em Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. RIBEIRO, Ricardo Ferreira. Florestas Anãs do Sertão: o cerrado na história de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 19 ed., 2001. 190 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 OS PÁSSAROS COMO METÁFORA DE MUDANÇA EM “HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” Júnia Cleize Gomes Pereira (Mestranda – UNIMONTES/CAPES) RESUMO: Este trabalho tem por objetivo estudar os pássaros como metáfora de mudança no conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de João Guimarães Rosa e a tradução intersemiótica de Roberto Santos, de 1965. Para isso, realizamos leituras acerca de tal temática e análises das passagens em que fica visível a similaridade da trajetória de Matraga com os pássaros, estes que estão em constante movimento migratório, assim como o personagem principal. Guiados por este fio condutor, nos deparamos com uma relação e interação do meio natural com o homem, o que é retratado através de diferentes maneiras pelos sistemas em estudo – um pela letra, o outro pela tela. Comprovamos que, assim como no conto, na tradução fílmica os pássaros fazem parte da vida de Augusto Matraga, além de serem fundamentais na decisão do mesmo ao sair pelo mundo em busca de sua hora e vez. Palavras-chave: Pássaro. Mudança. Augusto Matraga. ABSTRACT: This work aims to study the birds as a metaphor of changes in the tale "A hora e a vez de Augusto Matraga" written by João Guimarães Rosa and intersemiotic translation of Roberto Santos, 1965. For this, we did readings about this theme and analysis of the passages in which is visible the similarity of Matraga trajectory with the birds, those that are in constant migration, as well as the main character. Guided by this thread, we came across a relation and interaction of the natural environment with the human, which is portrayed through different ways by the systems under study - one by the letter, the other around the screen. We proved that, as in the tale, the filmic translation birds are part Augusto Matraga's life, as well as being essential in the decision thereof to leave the world in search of his time and again. Keywords: Bird. Change. Augusto Matraga. Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu. (Rosa, 2012, p. 358). Publicada em 1946 na obra Sagarana, a novela38 “A hora e a vez de Augusto Matraga” de Guimarães Rosa traz uma saga pessoal acerca da existência do homem e sua busca pela salvação divina. É considerada pelo próprio autor, na carta a João Condé, como a “história mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras” (ROSA, 2012, p. 27). 38 Neste estudo, utilizaremos os termos conto, novela e narrativa, uma vez que não há uma distinção clara entre estes conceitos usados pelos estudiosos da obra de Guimarães Rosa em seus textos e até mesmo pelo próprio autor. 191 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Augusto Matraga nos é apresentado como um homem violento e prepotente, que acaba sendo abandonado por seus capangas, por sua mulher Dionóra e sua filha Mimita. Na busca por vingança, cai numa emboscada sofrendo uma surra que o coloca à beira da morte. No entanto, ao ser jogado numa ribanceira, é encontrado por um casal de pretos que o acolhe e o reaproxima da religião católica. Passado o tempo, já recuperado fisicamente e cheio de energia espiritual, Matraga se muda com o casal de pretos para longe, queria ir para um “sitiozinho perdido no sertão mais longínquo” (ROSA, 2012, p. 341). Acabam chegando em Tombador, onde Matraga começa uma verdadeira empreitada em busca de sua redenção. É também nesse lugar que o personagem se encontra com o bando de jagunços de seu Joãozinho Bem-Bem e os hospeda. Esse encontro causa uma série de perturbações em Augusto Matraga, desencadeadas pela vida livre da jagunçagem. Em seguida, ele resolve partir, se lançar ao mundo. No lombo de um jumento, à deriva, é levado aos caminhos do acaso. Mas o palco final de sua vida já estava sendo armado, pois encontra-se novamente com o bando de seu Joãozinho Bem-Bem e é travado entre eles os últimos momentos de suas vidas. Nessa trajetória de Matraga, é perceptível que a “mudança” é um dos principais fios condutores da narrativa. Há uma mudança do campo pessoal/ espiritual, visto que o homem violento, prepotente e incrédulo se transmuta em um homem pacífico, benigno e religioso após uma marcante experiência que quase o matou. Sobre esse tipo de mudança, Guimarães Rosa nos lembra mais tarde em Grande Sertão: veredas: “O senhor… mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão.” (ROSA, 2001, p. 39). 192 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Além dessa mudança pessoal/espiritual, há mudanças no campo geográfico: do cenário inicial, o arraial da Virgem Nossa senhora das Dores do Córrego do Murici, para o rancho do casal de pretos, deste para Tombador e, por fim, para o mundo, em busca da sua hora e vez. Apesar de haver essa alternância de cenários, a história se passa em um espaço maior: no sertão. Na obra rosiana, o sertão não é apenas um cenário natural em que se desenrolam as ações, é também um personagem que faz com que as ações aconteçam ou que com elas se (con)funde. Em seu livro Ser-tão Natureza: a natureza em Guimarães Rosa, Mônica Meyer sustenta a ideia de que a natureza rosiana não se confirma somente como um caminho ou uma paisagem, mas como elemento que constitui o homem. Vejamos: A presença marcante e constante da natureza e das viagens na obra rosiana indica, intuitivamente, que tanto a natureza como a viagem têm um significado que ultrapassa a dimensão espacial de paisagem natural e de deslocamento geográfico. O valor metafísico emerge através de situações em que há entrelaçamento entre personagem e natureza. Nada é descrito gratuitamente, como composição e enfeite. (MEYER, 2008, p. 203). Essa harmonia entre personagem e natureza que cita Meyer é retratada pela trajetória de Matraga. No início do conto, sendo um homem perverso, pecador e indiferente em relação à esposa e à filha, não há uma integração com a natureza. Somente depois da surra que quase acarretou em sua morte que ele passa a apreciá-la. Mas, para isso, foi preciso que Matraga renascesse, conforme discorre Tânia Macedo em Guimarães Rosa: Na verdade, é um renascer que se prepara entre gente humilde – o casal de pretos – e numa cabana muito parecida com um presépio. Ou, se quisermos pensar de outra maneira, a sua nova vida começa a se realizar em um “útero da natureza”. (MACEDO, 2008, p. 34). Após essa gestação no “útero da natureza”, temos um personagem sensível e que passa a ser um observador do meio natural. Depois das 193 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 mudanças ocorridas em sua vida, a natureza se faz constante e Matraga a contempla: Parou. Para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descansar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d’arco florido e de um solene pau-d’óleo, que ambos conservavam, muito de-fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez, teve de escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para Itacambira, com a vaqueirama encourada – piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão. E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático que chaudicava a estrada a fora, um pedaço, antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem em tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié-piranga, ainda mais vermelho – e o tié-piranga pousou num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava, porque agora tinha um ramo que era de mulungu. (ROSA, 2012, p. 356-360 – grifos nossos). Em tal passagem, Guimarães Rosa descreve poeticamente a natureza, mostrando que com a mudança interior do personagem, este passa a conhecer e apreciar o exterior, o cenário natural. O que é decorrente em Rosa. Em Grande Sertão: veredas também temos uma mudança de visão de mundo através de Diadorim, este que ensina a Riobaldo a enxergar as “quisquilhas” da natureza com outros olhos. Dentre os diversos elementos naturais em “A hora e a vez de Augusto Matraga”, os pássaros nos chamaram atenção pelo fato de aparecerem frequentemente se relacionando a Matraga, desde a sua estada na cabana dos pretos, uma vez que tal moradia é comparada a um ninho de maranhão, que é uma espécie de ave: “... era um cofo de barro seco, sob um tufo de capim podre, mal erguido e mal avistado, no meio das árvores, como um ninho de maranhões” (ROSA, 2012, p. 337). 194 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Seguindo essas marcações do texto, Tania Macedo afirma que Matraga “é como uma pequena ave que ainda vai ter que aprender muito, até voar” (MACEDO, 1998, p. 34). E de fato voa, como veremos a seguir. Numa manhã, enquanto Augusto trabalhava, presenciou uma belíssima explosão de pássaros voando: Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava o céu acima, num azul de água sem praias, com a luz jogada para o outro lado, e um desperdício de verdes cá em baixo – a manhã mais bonita que ele já pudera ver. Estava capinando, na beira do rego. De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, tralejando de rir. E outro. E ainda outro, mais baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro. (ROSA, 2012, p. 357). Ao observar a passarada, Matraga percebe que estes estão em constante mudança: “Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem estar longe daqui... Longe, onde?” (ROSA, 2012, p. 358). Todo esse vaguear e desfilar de liberdade perante Matraga, suscita o desejo de mudança, pois, logo depois, anuncia sua partida. Segundo ele, para sua hora e vez chegar, ele precisa de estar “em outras partes” (ROSA, 2012, p. 359), assim como os pássaros. De acordo com o Dicionário de Símbolos39 o pássaro simboliza a inteligência, a sabedoria, a leveza, o divino, a alma, a liberdade, a amizade. Por possuírem asas e o poder de voar, em muitas culturas são considerados mensageiros entre o céu e a terra. O pássaro, se opõe à serpente, como o símbolo do mundo celeste ao mundo terrestre. Partindo dessa simbologia dos pássaros, encontramos uma explicação para a constante integração dos mesmos com Matraga, visto que tal personagem, após sua transformação, é um homem religioso e que tem o anseio de ir para o céu, ambiente representado pelos pássaros: 39 Disponível em: http://www.dicionariodesimbolos.com.br/passaros/. Acesso em 08/05/2015. 195 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 "- Eu vou pra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... Pra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..." (ROSA, 2012, p. 344). Além disso, os pássaros simbolizam o divino, a alma e o mundo celeste. Matraga parece ter consciência de tal relação, pois o momento em que ele pede a arma para Joãozinho Bem-Bem a fim de experimentar sua pontaria é revelador. Joãozinho lhe entrega a arma, aponta para um pássaro e sugere: “ — Pode gastar as oito. Experimenta naquele pássaro ali, na pitangueira...”. Porém, rapidamente ele diz: “— Deixa de criaçãozinha de Deus. Vou ver só se corto o galho... Se errar, vocês não reparem, porque faz tempo que eu não puxo dedo em gatilho...”. (ROSA, 2012, p. 353-354). Analisando tal passagem do conto, Tânia Macedo diz que “Nhô Augusto já aprendera a domar sua violência” (MACEDO, 1988, p. 38). Ele, que teve a oportunidade de refazer sua vida, defendia os seres tendo por objetivo a salvação divina. Ou seja, metaforicamente, o pássaro que outrora estava no ninho, aprendendo as lições da vida, agora pode voar. Da letra para a imagem: a migração dos pássaros “A literatura significa, o cinema expressa”. (METZ, 1972, p. 10). Nesse enveredar do trabalho, tomaremos a obra cinematográfica “A hora e vez de Augusto Matraga” dirigida por Roberto Santos como uma tradução da obra literária de Guimarães Rosa. Antes, vejamos como Romam Jakobson define a tradução intersemiótica: A tradução inter-semiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais. [...] transposição inter-semiótica – de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura. (JAKOBSON. Aspectos lingüísticos da tradução, p. 65, 72). 196 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A obra de Guimarães Rosa sofreu várias traduções intersemióticas. A primeira ocorreu em 1965, com o filme A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, nosso objeto de estudo. Realizado em preto e branco, este filme contou, em seu elenco, com atores como Leonardo Villar no papel de Augusto Matraga, Jofre Soares como Joãozinho BemBem, e Maria Ribeiro atuando como Dionorá. A música é de Luiz Roberto Oliveira e Geraldo Vandré. Assim como no conto rosiano, no filme um dos temas condutores da narrativa é a questão da mudança de Augusto Matraga e, com base nisso, podemos dividir sua história de em três partes: na primeira, as características negativas da personagem são reveladas. A segunda parte é o momento de transformação do personagem, na qual ele tenta se redimir e, a terceira, marcada pela busca da redenção divina. Ou seja, sua história divide-se em: perversão, penitência e redenção. Na adaptação, a natureza também segue o percurso de Matraga. Uma cena importante que nos mostra a interação do personagem com a natureza é a que o mesmo tenta domar o burro, o “bichinho valente”, como ele o chama. O animal é resistente, empaca e derruba Augusto seguidas vezes. Mas em uma das vezes em que está em cima do burro, Matraga abre os braços e o vento sopra forte, uma bela cena, em que mostra uma harmonia entre o personagem e os elementos naturais. Não há passagem semelhante na obra de Guimarães Rosa, porém, há uma fala do padre para Augusto: “Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele...” (ROSA, 2012, p. 340). O poldro, cavalo novo, foi substituído por um burro na passagem fílmica, assim sendo, Roberto Santos traduziu essa fala e criou a cena em questão, esta que através da imagem, nos transmite a poesia da relação homem-mundo existente na letra rosiana. Sobre o papel do tradutor Enio Luiz de Carvalho Biaggi em Cinema e Vídeo na Obra de Guimarães Rosa corrobora que 197 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Retomando o conceito de tradução, em termos gerais, esse é o nome que se dá ao processo de leitura e reescrita de um determinado texto pelo tradutor. O tradutor é aquele que lê, interpreta e reescreve um determinado texto, dentro de um mesmo sistema lingüístico (tradução intralingual), em línguas diferentes (tradução interlingual) ou, até mesmo, em diferentes sistemas de signos (tradução intersemiótica). (BIAGGI, 2007, p. 34). Tendo em vista essa leitura, interpretação e reescrita do tradutor, inferimos que Roberto Santos também fez uma leitura da presença constante dos pássaros na novela rosiana. Ao invés da palavra, Santos utilizou das imagens e dos sons, recursos cinematográficos, para mostrar a relação entre o personagem e as aves. Conforme foi dito anteriormente, a história de Matraga se divide em três momentos: perversão, penitência e redenção e, para demarcá-las, Roberto colocou cenas em que bando de pássaros aparecem a voar pelo céu, num movimento migratório, metaforizando as mudanças do personagem principal. Segundo o Dicionário Online de Português40, a migração é a movimentação constante de espécies que saem de uma região para outra, normalmente ocasionada por uma alteração no clima ou no ambiente. Ou seja, os pássaros são motivados a fazer uma mudança, assim como Matraga também sofre mudanças e migrações, uma vez que há transições de ambientes em sua trajetória. A primeira cena em que mostra o revoar dos pássaros acontece quando Augusto Matraga é jogado no abismo e é encontrado pelos pretos, o que marca a mudança do estado de perversão para a penitência; o segundo revoar acontece quando a mãe Quitéria chama o Padre para Augusto se confessar, marcando a fase da penitência; e, por fim, o terceiro revoar ocorre quando Augusto anuncia sua partida de Tombador em busca de seu destino, assim como na novela rosiana, marcando o abandono da fase de penitência em busca de sua redenção. 40 Disponível em: http://www.dicio.com.br/migracao/. Acesso em 10/05/15. 198 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Durante essa metamorfose de Matraga, a música e os sons dos chocalhos, do vento, do trovão, dos bichos etc. estão sempre presentes, merecendo destaque, pois eles narram ao mesmo tempo em que as cenas são dramatizadas. O cantar dos pássaros é um som constante nos dias de Matraga, o que reforça a interação do mesmo com a natureza e o vínculo que o personagem e tais aves têm por partilharem de ideais em comum – alçar voos, em movimentos migratórios, em busca de objetivos. Assim como no conto, averiguamos que na tradução fílmica os pássaros fazem parte da vida de Augusto Matraga, principalmente na fase de penitência, na qual o personagem passa a admirar e interagir com o meio natural, além de serem fundamentais na decisão de Augusto ao sair pelo mundo montado no jumento. Ademais, com sua morte, na qual é assinalada o alcance de sua hora e vez, de sua redenção, segundo a crença e o desejo de Matraga, há a possibilidade do mesmo de ir para o céu, ambiente simbolicamente representado pelos pássaros. REFERÊNCIAS BIAGGI, Enio Luiz de Carvalho. Cinema e vídeo na obra de Guimarães Rosa: uma análise intersemiótica de “Cara-de-Bronze” e “Famigerado”. Belo Horizonte: UFMG, 2007. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP76SJ3P/disserta__o___enio_luiz_de_carvalho_biaggi.pdf?sequence=1. Acesso em 09/05/2015. Conceito de Migração. Disponível em: http://www.dicio.com.br/migracao/. Acesso em 10/05/15. JACKOBSON, Roman. Aspectos lingüísticos da tradução. In: JACKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Trad. Isidoro Blikstein; José Paulo Paes. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 63-72. MACEDO, Tânia. Guimarães Rosa. São Paulo: Editora Ática, 1988. METZ, Christian. A significação no cinema. Trad. e posfácio de JeanClaude Bernardet. São Paulo: Perspectiva, 1972. 199 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 MEYER, Mônica. Ser-tão Natureza: a natureza em Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. ROSA, João Guimarães. Sagarana. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. Simbologia dos pássaros. Dicionário de Símbolos: significado dos símbolos e simbologias: Disponível em: http://www.dicionariodesimbolos.com.br/passaros/. Acesso em 08/05/2015. 200 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 COMO ESCREVER PARA AS CRIANÇAS: A IDEIA DE ALEXINA DE MAGALHÃES PINTO SOBRE O INFANTIL E A LITERATURA Laura Emanuela Gonçalves Limai Rita de Cássia Silva Dionísio Santosii RESUMO: Alexina Magalhães Pinto foi uma escritora mineira, pioneira em obras destinadas às crianças. A importância da autora – em especial no que diz respeito a sua singular atuação na educação escolar de crianças no início do século XX – é evidente, mas infelizmente, é pouco estudada e está caindo no esquecimento. Em suas obras, ela procurou trazer à tona a cultura popular e o folclore para perto das crianças. O que escrever para as crianças e por quê? Pensando sobre essa escrita, propõe-se investigar sobre a ideia de Alexina de Magalhães nas suas tentativas de renovação da leitura literária e sua relação com e o ensino infantil. Palavras-chave: Literatura de Minas Gerais, Alexina de Magalhães Pinto, Literatura infantil. ABSTRACT: Alexina de Magalhães Pinto was a writer, from Minas Gerais, pioneering works for children. The importance of the author – in special about her singular action on children’s education at the beginning of the XX century – it is clear, but unfortunately, it is not so studied and it is falling by the wayside. In her works, she sought out to approach popular culture and folklore culture close to the children. What should be written for the children and why? Thinking about this writing, it is proposed to have an investigation about the idea of Alexina de Magalhães in her attempts of renewing the literary reading and her relation with the children’s education. Keywords: Literature of Minas Gerais, Alexina de Magalhães Pinto, children's literature. Há ainda quem pense em literatura infantil como um gênero inferior. Se pensarmos em toda a caminhada dessa literatura para a sua consolidação, veremos que ela passou por várias problemáticas, inclusive a chamada literatura “pedagógica”. É fato que a escrita para crianças começou com esse intuito, de educá-las, já que em séculos passados, a criança era tratada como um adulto, em que não se tinha tratamento especial para elas. Frequentavam reuniões sociais junto aos adultos e o que era lido para elas, eram as histórias criadas para os adultos. A partir desse conjunto de questões, Leonardo Arroyo, em sua obra Literatura infantil brasileira, na busca por um conceito de literatura infantil, nos traz duas teses defendidas por pedagogos de grande destaque sobre essas discussões: 201 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 (a) não deve haver literatura especialmente escrita para crianças, mas a utilização, condensada ou adaptada, das obras-primas da literatura universal; (b) a diferença de mentalidade na criança implicaria na feitura de obras especiais para elas. (ARROYO, Leonardo, 1968, p. 27). Essas duas teses são contestadas a partir de duas obras muito famosas, Rubison Crusoe, de Daniel Defoe, escrita para adultos e consagrada pelas crianças; e A ilha do tesouro de Robert Louis, que destinada às crianças, atingiu a qualquer público. O grande número de obras infantis publicadas, e o gosto infantil ser algo permanente, nos traz a alusão de que escrever para crianças é algo fácil. É interessante, então, pensar sobre o que escrever para elas. No primeiro momento, supõe-se em escrever algo que chame a atenção das mesmas, mas será que apenas chamar a atenção desse público, que é questionador, faz com que a literatura infantil continue atraindo autores e público para a sua solidificação? A literatura infantil brasileira teve seu início no final do século XIX, com o propósito de formação da elite burguesa. A escola participava do processo de manipulação da criança, atendendo a vontade dessa classe dominante, provocando nas crianças uma imagem de seres dependentes, em que a alternativa delas era aceitar as normas impostas. No início do século XX, portanto, percebe-se a necessidade de uma literatura essencialmente brasileira. Trazendo, assim, para a discussão, uma escritora mineira, com especialidades estrangeiras, Alexina de Magalhães Pinto tem seu nome citado nas origens da literatura infantil brasileira. Suas obras, consideradas raras, totalmente destinadas ao público infantil, resultam de temas que trazem a alma do povo, a cultura, o folclore. Por ter sido professora, suas obras podem se confundir com o didatismo que outras obras infantis do século XIX continham (dado que Alexina de Magalhães sempre pensou na saúde física, moral e intelectual das crianças), mas a 202 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 sua ideia de inovação para dentro da sala de aula e nas suas obras infantis, devem ganhar todo o reconhecimento. Alexina de Magalhães, como professora e escritora, entra no contexto de inovação quando traz o folclore para ser trabalhado nas escolas, uma vez que, a cultura popular não fazia parte dos padrões sociais vigentes da época. Ela trouxe a “voz” que faltava para as crianças desenvolverem seu imaginário. Desta forma, “a escola e a literatura podem provar sua utilidade quando se tornarem o espaço para a criança refletir sobre sua condição pessoal” (ZILBERMAN, 1985, p. 21). Segundo Flávia Carnevali, “Alexina costumava rasgar as tradicionais cartilhas para não habituar seus alunos a lerem pelo ‘superado método de associação de palavras’. Ela só admitia a aprendizagem global” (CARNEVALI, 2009, p.17). Esse método se caracteriza pela utilização de unidades completas de linguagem para depois dividi-las em partes menores. Pode-se considerar que Alexina de Magalhães acreditava no poder de percepção e de associação das crianças, principiando a questão da interpretação e da autonomia para criação, seja de histórias orais ou escritas. A autora procura reconhecer os temas da formação cultural brasileira em seus livros, maravilhada nas nossas tradições e reconhecendo o valor pedagógico do folclore, empenha-se em concretizar algo que sirva de suporte para o desenvolvimento humano, que nesse caso seria a literatura infantil: Vislumbrando nas nossas tradições – práticas, ethicas e estheticas, não escriptas, os esforços da raça para sua vida e caracterização á parte; divizando no folk-lore brasileiro a própria pedagogia nacional, empenhei-me, primeiro, em coligir fiel e indistinctamente tudo o que encontrasse; depois na tarefa de separar o que em livrinhos á infância pudesse continuar a servir de arrimo aos esforços espontâneos da raça para o seu próprio desenvolvimento (PINTO, 1916, p. 193).iii Diante do cenário de suas obras – que engloba jogos infantis, cirandas, cantigas, parlendas, provérbios e histórias – é interessante 203 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 lembrar que muitos desses conteúdos foram passados de geração a geração, chegando até nós, muitas vezes, deturpados. Logo, destacamos o valor científico e o valor histórico das obras, já que, contém registros que foram muito bem selecionados pela autora a partir de suas pesquisas no meio social. Leonardo Arroyo, em Literatura infantil brasileira, nos fala ainda mais sobre a importância de Alexina de Magalhães Pinto no contexto histórico da literatura infantil, ressaltando que ela foi a primeira autora a indicar obras mínimas para as crianças lerem, além de ela ser significativa na questão de “reação à literatura escolar e aos velhos conceitos sobre a infância” (ARROYO, 1968, p. 257). A ideia de infância de Alexina de Magalhães torna-se parte essencial para a compreensão dessa sua dedicação às crianças, nas suas próprias palavras: Para conhecer, para dirigir a creança é preciso ama-la, judiciosamente observa-la; mais ainda apoia-la, guia-la nos folguedos, comprehende-la nos inevitáveis desvarios, ajuda-la nos trabalhos que espontaneamente empreenda (PINTO, 1916, p. 191). Seu trabalho de corrigir as histórias e cantigas contadas pelo povo – emendando ou suprimindo, mantendo-se fiel aos seus contadores anônimos e oferecendo um vocabulário necessário para a expressão do sentir e do pensar de seus “personagens” ou “narradores” – confirma seu papel de educadora ao sugerir suas obras como material de ensino e também de lazer. Aconselha aos professores e aos pais, nos paratextos e nas notas explicativas dos livros, a utilizarem as cantigas e as histórias populares (que servirão para a construção da educação infantil: física, intelectual e moral), e a maneira como deve ser feito: Ler expressivamente e aprender bem cada poesia antes de entoa-la. Preferir cantar sempre a meia voz. Após dez minutos de canto, cinco, pelo menos, de repouso. Evitar ler ou falar em voz alta após haver cantado. Resfriar-se ou resfriar a garganta após exercicios vocaes, será expôr-se o cantor a perder a voz (PINTO, 1916, p. 4). 204 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 O porquê de Alexina de Magalhães ter decidido escrever para crianças pode ser percebido a partir de uma carta direcionada a elas na primeira página do livro, Cantigas das Crianças e do Povo e Danças Popularesiv, em que ela convida as crianças a cantarem e a brincarem com seus amigos, mas que elas sejam amáveis e generosas com todos, para assim, se tornarem pessoas de bem. Pede que elas cantem com entonação, as cantigas, para que as memórias desses momentos de alegria fiquem marcados em suas vidas. Ela deseja que elas sejam alegres, fortes e nobres pelo sentimento e pelo saber, como se pode ver em uma nota no final de uma cantiga do livro: Ser valentão, meus meninos, só no palco e por brincadeira. Em sociedade, em famílias gabolices, as fanfarronadas são cousas mais que ridículas, - condemnaveis e só proprias dos tolos. Si, entretanto, gostaes de ser physicamente um valente, tendes as corridas a pé, a gymanastica, a natação, a lucta romana para vos exercitardes nellas á vontade (PINTO, 1916, p. 99). No livro, A Literatura Infantil na Escola, de Regina Zilberman, identificamos que a literatura infantil deve ser formadora, para que não se confunda com a didática, conservando a inocência das crianças, mas ao mesmo tempo, destruindo-a aos poucos, para que elas possam saber lidar com os embates da vida. Como escrever para crianças, portanto, é algo que vai depender primeiramente da intenção do próprio autor, que geralmente ocorre devido a vontade de que o adulto tem em relembrar ou regressar a uma infância que foi muito boa, ou a uma infância perdida. Não se pode também deixar de falar da inspiração, que é uma marca presente em qualquer escritor e deve ser colocada no papel imediatamente. Ressaltamos, inclusive, que nos dias atuais são muitos os estudos sobre a escrita para as crianças: como lidar com a ficção, com o fantástico, com a realidade, com assuntos transversais, qual a faixa etária adequada, entre outras questões. Dessa forma, abre-se caminho para 205 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 refletir se realmente existem ou necessita-se de técnicas para escrever livros infantis. Em se tratando de Alexina de Magalhães Pinto e admitindo-se a época em que suas obras foram publicadas, percebemos que, para escrever para as crianças não precisa-se de muita coisa. A princípio, de histórias que contem sobre o cotidiano, sobre algo que foi inventado do “nada”, sobre uma cultura espontânea, assim como são as crianças: naturais, produtoras de cultura e de novos significados para a realidade imaginativa delas. No entanto, se pararmos para observar o trabalho de Alexina de Magalhães para além da escrita, veremos que não foi pouca coisa: analisando o trabalho da folclorista, percebemos como ela estabelecia uma prática que pretendia construir uma memória artística nacional através da preservação de um material que fatalmente desaparecia, compilando e arquivando diversas formas de registro sobre a música e outras manifestações populares, em geral, de tradição oral (CARNEVALI, 2009, p. 4). Todavia, para a nossa autora em estudo, escrever para as crianças precisa-se, principalmente de amor e dedicação. REFERÊNCIAS ARROYO, Leonardo. Melhoramentos, 1968. Literatura infantil brasileira. São Paulo: CARNEVALI, Flávia Guia. “A mineira ruidosa” Cultura Popular e Brasilidade na Obra de Alexina de Magalhães Pinto(1870-1921). São Paulo, Universidade de São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-08022010-123212/ptbr.php> Acesso em: 05 de outubro de 2015. CARNEVALI, Flávia Guia. Música popular, Memória e História na folclorista Alexina de Magalhães Pinto. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/view/13207> Acesso em: 05 de outubro de 2015. 206 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 PINTO, Alexina de Magalhães. Cantigas das Crianças e do Povo e Danças Populares. Coleção Icks. Série A. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1916. Zilberman, Regina. A literatura infantil na Escola. 4. ed. São Paulo: Ed. Global, 1985. 207 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 VIRTUDES PARA DELEITE DOS BRASILEIROS: A PRESENÇA DE TEXTOS DE LÍNGUA PORTUGUESA N'O LIVRO DAS VIRTUDES41 Leonardo Tadeu Nogueira Palhares (Graduado em Letras/Português pela Universidade Estadual de Montes Claros — UNIMONTES) RESUMO: Lançado em 1995 no Brasil, O Livro das Virtudes é a versão em português de The book of virtues, uma antologia organizada por William John Bennett e publicada dois anos antes. Em maioria, consta-se a presença de diversos autores estrangeiros com textos traduzidos para o português (como Homero, Aristóteles, Hans Christian Andersen, Irmãos Grimm, Oscar Wilde, Tolstoi, dentre outros), os quais suas composições se encaixam em uma das mais variadas "virtudes" categorizadas — como Disciplina, Compaixão, etc. A versão brasileira, contudo, apresenta a singularidade de contar com a presença de escritos de literatos de língua portuguesa, tais como Monteiro Lobato, Olavo Bilac, Carlos Drummond de Andrade, dentre outros. Uma reflexão sobre o que implica a presença de tais escritores nesta obra é o que pretendemos nesta discussão. Palavras-chave: Antologias. Escritores de Língua Portuguesa. O Livro das Virtudes. William J. Bennett ABSTRACT: Published in 1995 in Brazil, O Livro das Virtudes is the portuguese version of The book of virtues, an anthology edited by William Joh Bennett and published two years earlier. In the majority, stated the presence of several foreign authors with texts translated into portuguese (as Homer, Aristotle, Hans Christian Andersen, the Brothers Grimm, Oscar Wilde, Tolstoy, among others), which his compositions fit in one of the most different "virtues" categorized - as discipline, compassion, etc. The Brazilian version, however, presents the uniqueness of having the presence of writings of portuguese-speaking writers such as Monteiro Lobato, Olavo Bilac, Carlos Drummond de Andrade, among others. A reflection on what implies the presence of such writers in this book is what we want in this discussion. Keywords: Anthologies. Writers Portuguese. The Book of Virtues. William Bennett 1 — Breves considerações sobre as antologias Ao advertir o leitor de sua coleção de Contos Populares do Brasil, Sílvio Romero realiza a seguinte ponderação: Resolvemos não incluir aqui os contos tupis que não passaram ás populações atuais do império. Consideramos o índio puro 41 Embora este título possa evocar alguma ambiguidade, a intenção é referenciar propriamente os textos publicados originalmente em língua portuguesa que constam n'O Livro das Virtudes, uma vez que falar dos textos de língua portuguesa na edição brasileira soaria redundante. 208 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 como estranho à nossa vida presente. O mesmo pensamos a respeito do negro da costa. O português, o emboaba, o reinol está nas mesmíssimas condições. O brasileiro é o resultado da à três almas que se reuniram, e por isso só colhemos os contos que nas vilas e fazendas do interior correm de boca em boca. (ROMERO, 1885, p. V-VI)42 Este trecho pode evocar vários questionamentos. A autoria de Romero pode-se reacender algumas discussões sobre esta personalidade brasileira dos fins dos oitocentos43. Embora possamos entender que a polêmica fazia parte de sua figura, em sua fala implica outra polêmica que certamente não lhe seria exclusiva: a questão das coletâneas. Se se trata de um apanhado de Contos Populares do Brasil, como atesta o título, até que ponto seria aceitável (ou não) a presença de textos dos tupis, dos negros ou dos portugueses em tal compêndio? Seria entender que apenas da miscigenação cultural entre os três, realizadas em séculos de história brasileira, é que se pode pensar que houve a produção de contos, e com ainda dois elementos: que fossem populares e brasileiros? Iniciamos com essa discussão para exemplificar algumas das inquietações que proporemos em relação a'O livro das virtudes (1995). A partir do subtítulo — "uma antologia de William J. Bennett" — pode-se fazer algumas inferências similares as que pressupomos a partir da advertência da coletânea realizada por Romero: qual é a forma de selecionar um texto para integrar uma antologia? E o que diferencia uma antologia de uma coletânea, de uma coleção (como Romero diz sobre seu livro), de uma miscelânea? A visar este estudo, encontramos poucas referências em relação ao entendimento de obras que objetivam agrupar textos literários de qualquer ordem. Tomamos, então, como ponto de partida as concepções de alguns desses vocábulos sob a ótima de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira 42 Tomamos a liberdade de adaptar o português do texto original conforme as normas ortográficas vigentes. 43 Sobre esta visão a respeito de Romero, nos foi intermediada a leitura do texto "Um Crítico Para Inglês Ver: Sílvio Romero e seu estudo sobre Machado de Assis", de Fábio Della Paschoa Rodrigues. Ainda sobre o lagartense, temos O Método Crítico de Sílvio Romero, de Antonio Candido. Dessa forma, cf. RODRIGUES (2006) e CANDIDO (2006). 209 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 (2001). Para Hollanda, uma antologia é uma "[c]oleção de trechos escolhidos em prosa e/ou em verso." (FERREIRA, 2001, p. 48). Já "coletânea" é um "[c]onjunto de trechos de várias obras ou de um autor." (FERREIRA, 2001, p. 163). "Miscelânea" é "[m]istura de variadas compilações literárias." (FERREIRA, 2001, p. 465). Contudo, "Coleção" é vista com um significado mais abrangedor, podendo ser conjunto de "qualquer natureza" (cf. FERREIRA, 2001, p. 163).44. Um estudo o qual percebe uma atenção para as antologias é o de Elisa Helena Tonon em sua dissertação Configurações do presente: crítica e mito nas antologias de poesia. A autora menciona Guillermo de Torre, em “El pleito de las antologías”45 para afirmar que a antologia é "um gênero insatisfatório por excelência, marcado por uma deficiência radical" (TONON, 2009, p. 90). Na posição de alguém que organiza antologias, a autora postula que As antologias são, ainda, essa aposta - que nos exige perguntas e reflexões, que deposita sobre nós uma responsabilidade. Com os gestos da leitura e da escritura, aceito a responsabilidade, ingresso no jogo do arquivo e me torno, também, uma arquivista ao retomar procedimentos, elencar textos [e] estabelecer recortes […]. (TONON, 2009, p. 90). Ao assumir que a antologia é também "insuficiência, falta, brecha, lapso ou corte" (cf. TONON, 2009, p. 91), poderia supor que tanto a justificativa de Romero, e quanto a que virá em nossas percepções sobre O livro das virtudes estariam esclarecidos. Se se pensarmos que uma antologia implica em polêmicas de dois lados — tanto pelos os que estão presentes, quanto os que não estão — há, no intermédio deste ditame da ausência e não-ausência, questionamentos a serem feitos: o que motiva a presença de um e não a do outro? Quais são as motivações deste 44 Ainda há outros termos referentes a mesma espécie: catalecto, crestomatia, espicilégio, florilégio, seleta, dentre outros. 45 Em nossas pesquisas sobre antologias, encontramos diversas menções a este texto de Torre. Contudo, não conseguimos acessar a versão na íntegra e até este momento não há versão em português disponível. 210 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 posicionamento? Assim refletiremos sobre a antologia em questão. 2 — Introdução à moda americana A versão brasileira d'O livro das virtudes possui 188 textos de diversos gêneros, como poesia, contos, trechos de romances, passagens bíblicas, lendas e mitos, fábulas, recortes de jornais, juramentos, dentre outros — uma abrangência que supera a limitação de prosa e versos conforme vimos da conceituação de Ferreira. Em maioria, consta-se a presença de diversos autores estrangeiros com textos traduzidos para o português (como Homero, Aristóteles, Hans Christian Andersen, Irmãos Grimm, Oscar Wilde, Tolstoi, dentre outros), os quais suas composições se encaixam em uma das mais variadas "virtudes" categorizadas: Disciplina, Compaixão, Responsabilidade, Amizade, Trabalho, Coragem, Perseverança, Honestidade, Lealdade e Fé. Da parte de Bennett, diz apenas que selecionou os "melhores", "antigos" e "comoventes" textos (cf. BENNETT, 1995, p. 9). Pode-se supor uma menção à questão do cânone. Sandra Erickson, em sua leitura de "O Cânone Ocidental", de Harold Bloom, traz uma percepção que podemos aproximar os termos "cânone" e "antologia": de que o primeiro "não é inclusivo, mas, ao contrário, exclusivo." (ERICKSON, 1999, p. 124). Dos conceitos postulados acima, é possível asseverar que o conceito de cânone é justamente ressaltar os "melhores" e "antigos" textos. Logo, a lógica da escolha da maioria dos textos que foi pertinente à esta antologia pode ser entendida como uma seleção daqueles que podem ser considerados canônicos sob alguma perspectiva e que tenham o fator "comovente", ou seja, que comove o leitor a partir de uma das virtudes a qual foi designado. Para compreender melhor esta disposição, elencaremos algumas acepções feitas pelo organizador, William John Bennett, político de linha conservadora nascido nos anos 1940 que já foi secretário de Educação 211 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 dos Estados Unidos e diretor do Departamento Nacional de Controle de Drogas46. A tradução do primeiro parágrafo da introdução afirma que "[e]ste livro se destina a auxiliar na eterna tarefa da formação moral." (BENNETT, 1995, p. 9). Pode ser possível realizar uma analogia à formação conservadora do autor a uma pretensão de selecionar diversos textos de diferentes épocas e elencá-los para ser lido sob a determinada virtude a qual foi deslocada. O organizador, em sua fala, exalta a literatura como fonte de educação moral. Atesta que evitara temas como "guerra nuclear", "aborto", "engenharia genética" ou "eutanásia", pois as "controvérsias atuais" não seriam parte da tarefa de "formação do caráter" dos jovens (cf. BENNETT, 1995, p. 9). Pode-se perceber, portanto, que o públicoalvo desta obra são os jovens e as crianças, conforme ressalta-se no discurso de Bennett, embora ele, à principio, não faça restrições e até declare pais e professores como integrantes do círculo de leitores desta obra47. O pensar de uma antologia voltada à educação infantil visando à moral é algo que os adultos — conforme as palavras de Maria José Palo e Maria Rosa D. Oliveira — tomam, ante a "minoria", ou seja, a "classe dominada" infantil (cf. PALO e OLIVEIRA, 2006, p. 5) uma atitude que vise à educação das crianças na visão adaptada pelo organizador. A arte e a criança, mesmo com desígnios e desejos diferentes (cf. PALO e OLIVEIRA, 2006, p. 7), podem ser vistos aqui com a condição de serem moldados e adaptados conforme a intenção do organizador, de maneira que altere a percepção da primeira objetivando a compreensão através de seu ponto de vista pelo segundo. Outro ponto que podemos ressaltar desta introdução é esta 46 Atesta-se a linha conservadora de Bennett de acordo com a sua breve biografia encontrada neste site, em inglês: http://www.notablebiographies.com/Ba-Be/BennettWilliam.html. "Bill" Bennett, como é mais conhecido, também possui seu site oficial, também apenas em língua inglesa: http://www.billbennett.com/ 47 Por outro lado, é natural pensar que, como a maioria dos textos presentes já datam de dois séculos ou mais, alguns destes temas, pela própria questão do tempo, não seriam abordados. 212 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 postulação de Bennett: "Embora intitulado O livro das virtudes — e os capítulos estão organizados por virtudes — é também um livro dos vícios. Muitas histórias ilustram o reverso de uma virtude." (BENNETT, 1995, p. 10). Pode-se ver que trata-se de um encaminhamento da leitura de algumas histórias para torná-las, portanto, passíveis de terem alguma moral delas extraída. É o que parece afirmar no parágrafo seguinte, sobre o seu interesse mais na "lição moral" do que na "histórica": é mais frutífero o aprendizado do que o contemplar do passado. O organizador é ciente de realizar uma proposta a visar a abrangência cujo limite é o que se destaca. Afirma que não é a antologia definitiva, e ainda sugere a leitura não-linear da obra, a partir de qualquer texto ou capítulo. Pode-se notar que, por ser uma tradução da introdução da edição norte-americana48, não há, por parte do autor, nenhum acréscimo ou referência a edição brasileira do livro — algo que só veremos na nota do editor, que veremos a seguir. Dada a localização da obra para o Brasil, a introdução norte-americana soa quase que como uma curiosidade, um dado para entender o que motivou a versão original deste compêndio. 3 — Virtudes para deleite dos brasileiros A "Nota do Editor", que introduz o livro, contém uma série de justificativas que nos faria compreender a presença da introdução literal da edição norte-americana e alguns outros aspectos do livro (como o corte de alguns textos, as traduções dos textos, a questão da autoria, a utilização de textos bíblicos, dentre outros). Para não divagarmos em excesso e fugir da proposta, atemos a nossa proposta de verificar o interesse da presença de textos publicados originalmente em língua portuguesa que se encontram nesta antologia. A respeito dos textos publicados originalmente em português, diz-se 48 Isto é dito conforme o título desta seção sugere, uma vez que não tivemos acesso à edição norte-americana. 213 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 que O organizador da antologia e sua agência literária permitiram e incentivaram a inclusão de alguns textos de língua portuguesa que ilustrassem as virtudes e que se adequassem ao espírito do livro. Escolhemos algumas joias de nossa literatura — de Camões a Cecília, de Eça a Lobato — para deleite dos leitores brasileiros. (BENNETT, 1995, p. 7). Dos 188 textos que compõem a versão em português de O livro das virtudes, dezoito são descritos como de autoria de autores em língua portuguesa: no capítulo da "Disciplina", constam "Soneto inglês nº 2", de Manuel Bandeira e "A galinha dos ovos de ouro", de Monteiro Lobato; em "Compaixão", "Velhas árvores", de Olavo Bilac, "O leão e o ratinho", de Lobato e "A bela e a fera", de Figueiredo Pimentel; em "Responsabilidade", "Os ombros suportam o mundo", de Carlos Drummond de Andrade; em "Amizade", "Cantar de vero amor", de Cecília Meireles; em "Trabalho", "Um apólogo", de Machado de Assis; em "Coragem", "I-Juca Pirama", de Gonçalves Dias e "A assembleia dos ratos", de Lobato; em "Perseverança", "Sonetos" de Luís de Camões; em "Honestidade", "A cumbuca de ouro", de Lobato; em "Lealdade", "Soneto" de Alphonsus de Guimaraens, "Fidelidade" de Henriqueta Lisboa e "Soneto da Fidelidade" de Vinicius de Moraes; e em "Fé", "Deus", de Casimiro de Abreu e "O suave milagre", de Eça de Queiroz. Nossa pretensão aqui não é analisar cada texto em função da virtude a qual lhe foi competida, uma vez também que o trabalho de tal tarefa poderia comprometer este ensaio. A nossa atenção deve-se aqui, por enquanto, à disposição dos mesmos dentro da antologia. Cada capítulo representando uma virtude é iniciado com um texto de português original, talvez como uma forma de familiarização do leitor com o conteúdo advindo de histórias traduzidas que preenchem majoritariamente cada seção. A presença de tais textos de língua portuguesa podem ser observados em alguns aspectos. O primeiro é a questão do domínio 214 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 público, como é o caso de Olavo Bilac, Machado de Assis, Gonçalves Dias, Alphonsus de Guimaraens e Casimiro de Abreu. Luís de Camões e Eça de Queiroz encontram-se no mesmo caso, porém destacam-se por serem os dois únicos autores não brasileiros a participarem desta organização. Figueiredo Pimentel, embora também seja um autor brasileiro dos oitocentos, apenas participa da coletânea por causa de sua versão de "A bela e a fera". A presença de Monteiro Lobato possui a mesma peculiaridade: "A galinha dos ovos de ouro", "A assembleia dos ratos" e "A cumbuca de ouro" são adaptações de contos clássicos. "O leão e o ratinho", embora igualmente oriundo de uma fábula, finaliza com um enxerto apresentando os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo refletindo sobre a narrativa. Lobato, junto com Drummond, Vinicius e Cecília, foram os autores que tiveram de serem solicitados aos pertencentes de seus direitos para que constassem na coletânea49 (cf. BENNETT, 1995, p. 4). Pode-se deduzir em uma questão estratégica de inserção de diversos autores de língua portuguesa — em suma maioria, brasileiros — como uma das formas de apelo comercial do livro. Se se pensar que foram necessários acordos pelos direitos autorais para a inclusão de autores ainda recentes nesta antologia, em conseguinte temos que o "pensamento moral", quando Bennett formulou essa organização e seccionou os textos em diversas virtudes, o que acaba por deslocar a leitura das composições conforme o condicionamento dos capítulos da antologia. Um exemplo do quão isso soa confuso é que não há claro, nem na introdução e nem na nota do editor, que uma mesma história foi categorizada em uma determinada virtude, porém poderia ser associada a outra, ou a várias. Para termos um exemplo, Monteiro Lobato em O livro das virtudes é 49 Quanto a Manuel Bandeira, não encontramos uma justificativa que ponderasse a sua presença n'O livro das virtudes sem atestar cessão por parte dos responsáveis pelos seus direitos autorais. 215 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 a presença mais constante dos autores que tiveram como língua pátria o português. Ele ainda é constado como o tradutor do capítulo de Pinóquio presente no livro, embora o texto seja referenciado ao apontado como o autor original, Carlo Collodi. No entanto, podemos pensar que, visando a familiaridade que uma tradução assinada por um autor brasileiro de renome, a inclusão das traduções de histórias com morais — e/ou virtudes — realizadas por Lobato seriam um fator chamativo, já que podemos ver que há certa atenção da crítica sobre a sua produção e recriação das histórias infantis50. 4 — Considerações finais No passo em que uma antologia sempre virá carregada de pretensões em face de seu caráter excludente, várias suposições poderiam ser feitas a respeito da inclusão de autores brasileiros n'O livro das virtudes. Se o livro ainda contém presença massiva de autores estrangeiros, parece certo que a intenção não foi perder a essência da antologia publicada anteriormente para nos estadunidenses. Se analisarmos por um lado que as antologias acabam por fazer exclusões, pode-se ter também o pensamento de que elas incluem, mas podem por acabar induzindo a nossa leitura dos "antologizados": estes autores podem até não sofrerem consequências dessa participação, mas são atingidos pelo risco de serem retirados de seu contexto e proposições iniciais. Ainda se vê o quão pode soar engrandecedor ter seu texto considerado como fonte de moral e virtudes — até mesmo na questão da leitura como virtude, conforme o editor diz. Mas ser engrandecedor é ser maior que algo, é incluir um e excluir outro. E, aparentemente, à isto 50 Um exemplo é o ensaio de Rosangela Marçolla, "Monteiro Lobato, contador e recontador de histórias de tradição oral: um agente folkmidiático", o qual considera Lobato como "o divisor de águas da literatura infantil brasileira", e destaca como o autor "recorre às fontes originais das histórias e as insere em suas obras (cf. MARÇOLLA, 2009, p. 1). 216 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 coube o julgo dos organizadores e editores. REFERÊNCIAS BENNETT, William. O livro das virtudes. Selecionados e adaptados da ed. Americana por Luiz Raul Machado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. CANDIDO, Antonio. O Método Crítico de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. ERICKSON, Sandra S. F.. "Resenha de O Cânone Ocidental, de Harold Bloom". Disponível em: http://www.principios.cchla.ufrn.br/arquivos/07P121-131.pdf. Acesso: 22-09-2015 14h54min. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. MARÇOLLA, Rosangela. "Monteiro Lobato, contador e recontador de histórias de tradição oral: um agente folkmidiático" Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/marcolla-rosangela-monteiro-lobato-contadorde-historias.pdf. Acesso: 21-09-2015 16h45mim. PALO, Maria José. OLIVEIRA, Maria Rosa D. Literatura infantil: voz de criança. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006. ROMERO, Sílvio (org.). Contos Populares do Brasil. Com um estudo preliminar e notas comparativas por Theophilo Braga. Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1885. RODRIGUES, Fábio Della Paschoa. "Um Crítico Para Inglês Ver: Sílvio Romero e seu estudo sobre Machado de Assis". Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/c00013.htm. Acesso: 17-09-2015 10h04min. TONON, Elisa Helena. Configurações do presente: crítica e mito nas antologias de poesia. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de PósGraduação em Literatura, Florianópolis, 2009 217 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A AUTOFICÇÃO DE JEAN-LOUIS FOURNIER COMENTÁRIOS ACERCA DA TRADUÇÃO DE OÙ ON VA, PAPA? Luíz Horácio Pinto Rodrigues RESUMO: O romance autobiográfico deve ser sincero? A tradução tem o dever de ser ética? Como traduzir o gênero autoficção? A partir dessas três indagações surgiu a ideia deste artigo, que trata da obra de Jean-Louis Fournier, Où on va, papa?, uma autoficção onde o autor narra sua convivência com seus filhos deficientes. Na primeira parte faço comentários acerca do gênero autoficção, a apropriação por determinados escritores, nem sempre seguindo o preconizado por Serge Doubrovsky (1977), e, sobretudo, sua disseminação na França, onde autores como Philippe Forest e Louis-Ferdinand Céline, são exemplos desse tipo de escrita de si. Na segunda parte, apresento uma análise da tradução para o português de Où on va, papa ( Aonde a gente vai, papai?), de Marcelo Jacques de Moraes, publicada em 2009. A partir das concepções de Antoine Berman, farei uma análise da referida tradução, com vistas a compreender as escolhas do tradutor e a propor outras possibilidades de tradução. “Se o destino de uma obra é ser traduzida, o de sua tradução é ser suplantada por outra tradução.” Utilizo reflexões de Antoine Berman como balizadoras da análise da tradução de Où on va, papa?, sobretudo no que se refere a uma tradução ética. Vale destacar que para Berman o ato de traduzir deve ter um objetivo triplo: poético (relacionado à forma), filosófico (em relação à verdade) e ético (em relação à precisão e exatidão no que se refere ao comportamento de homem frente si mesmo, ao outro, ao mundo, do ser no mundo e suas manifestações). Este trabalho não tem por objetivo apontar erros na tradução em análise e sim de apontar outras possibilidades de tradução. Palavras-chave: Autoficção; tradução; dimensão ética; Berman. RÉSUMÉ: Le roman autobiographique doit être sincère? Traduction a le devoir d'être éthique? Comment traduire l’autofiction? A partir de ces trois questions est venue l'idée de cet article, qui traite de l'œuvre de Jean-Louis Fournier, Où on va, papa?, Autofiction où l'auteur raconte sa vie avec leurs enfants handicapés. Dans la première partie je commente à propos de l'autofiction, l'appropriation par certains auteurs, pas toujours à la suite des recommandations de Serge Doubrovsky (1977), et surtout sa propagation en France, où des auteurs comme Philippe Forêt et Louis-Ferdinand Céline, sont des exemples de ce type de écrire. Dans la deuxième partie, je présente une analyse de la traduction en portugais de Où on va, papa? (Aonde a gente vai, papai ?),de Marcelo Jacques de Moraes, publié en 2009. À partir des conceptions de Antoine Berman, fera une analyse de la la traduction pour comprendre les choix du traducteur et de proposer d'autres possibilités de traduction. "Si le destin d'une œuvre est sa traduction, celui d’une traduction est d’être supplantée par une autre traduction." Je l'utilise réflexions d'Antoine Berman pour guider la meilleure traduction de Où on va,papa?, en particulier en se réfère à une traduction éthique. Notez que pour Berman l'acte de traduire doit avoir un triple objectif: poétique (liée à la manière), philosophique (de la vérité) et éthique (par rapport à la précision et l'exactitude en ce qui concerne le comportement de l'homme à l'avant lui-même, l'autre, au monde, d'être dans le monde et de ses manifestations). Le but de ce travail est de ne pas souligner les erreurs dans l'analyse de traduction, mais de proposer d'autres possibil compris les textes). Ce travail ne vise pas à signaler les erreurs dans la traduction en cours d'examen, mais plutôt de souligner d'autres possibilités de traduction. Mots-clés: l'autofiction; traduction; dimension éthique; Berman. 218 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Philippe Lejeune, em Le pacte autobiographique (1975), lança a questão: seria possível o herói de um romance ter o mesmo nome do autor? Para responder a pergunta de Lejeune e preencher esse vazio, Serge Doubrovsky escreve Fils. Enquanto a autobiografia se define como um pacto entre leitor e autor, onde autor/narrador/protagonista apresenta sua vida real, a autoficção faz as vezes de elo entre autobiografia e romance. Doubrovsky entende a autoficção como "uma ficção de acontecimentos e fatos estritamente reais, onde descrevo o gosto íntimo de minha existência e não sua impossível história" (DOUBROVSKY, 1988, p. 67) Na obra Écrire, pourquoi?, a escritora e crítica de arte Véronique Pittolo discorre sobre o que ela entende ser as duas formas de escrever: “ou se escreve sobre si a partir de uma experiência pessoal, autobiográfica, ou se escolhe um tema exterior para lhe fazer submeter todas as espécies de mutações e de metamorfoses”. (PITTOLO. 2005,p.135)51. À autoficção compete a primeira opção, ou seja, romancear a experiência vivida. A seguir alguns exemplos. Em Viagem ao fim da noite, de Louis Ferdinand Céline, o leitor, que sabe ter sido médico o autor, encontrará o protagonista Ferdinand Bardamu, médico também, chamado Ferdinand; e em inúmeras passagens fica explícito o pensamento, muitas vezes contraditório, de Céline. Em L'enfant eternel, Philippe Forest narra a história de Pauline,sua filha, menina de quatro anos atacada por um câncer. Desse material é constituído L’enfant éternel. Diz o autor: Fiz de minha filha um ser de papel A seguir apresentarei uma breve reflexão acerca da ética da tradução tendo como objeto a obra de Jean-Louis Fournier, Où on va, papa? , e a tradução de Marcelo Jacques de Moraes, Aonde a gente vai, 51 - Ou par écrit à votre sujet de son expérience personnelle, autobiographique, ou à l'étranger pour un thème que vous ne présenter toutes sortes de mutations et de métamorphoses.(tradução minha) 219 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 papai?, a partir da concepção de Antoine Berman acerca da ética da tradução. Em um seminário no ano de 1984 dentro do Colégio Internacional de Filosofia e que se centrou na tradução literal, Antoine Berman se permitiu a tarefa de combater as teorias e práticas dominantes da tradução, com foco na transferência de significado. As teorias e práticas da tradução dominante no Ocidente seriam as que ele define como "etnocêntrica" e "hipertextual", preocupadas com a transferência do significado em detrimento da letra do texto de origem. Entramos pois no terreno da ética. A ética da tradução seria condicionada pelo reconhecimento da estranheza do texto de origem no texto-alvo. Acolher o estranho na cultura da língua de chegada, tal seria a energia fundamental da tradução, sua ética essencial, de acordo com Antoine Berman. Ao dizermos ética obrigatoriamente lançaremos um olhar crítico, sobre original, no âmbito da autoficção e sua tradução. Sempre que mencionamos a palavra crítica, despertamos a impressão de um acento negativo. Não é diferente quando nos referimos aos textos traduzidos. Exemplos que corroboram essa impressão ao longo dos estudos da tradução são inúmeros. Não seremos ingênuos ao ponto de acreditar que podemos excluir a negatividade da função (ato) crítico. Walter Benjamin chama de “inevitável momento negativo do conceito”. Mas se existe o momento negativo o oposto se faz evidente. A crítica oportuniza a comunicação da obra com seu público. No entanto não queremos dizer aqui que para compreender determinada obra é condição sine quo non ter lido o que dela disseram determinados teóricos, por exemplo: para compreender Proust não necessariamente se faz obrigatório ter lido os estudos de Deleuze sobre a obra. Mas não vamos negar que todos esses estudos modificam, renovam a obra. 220 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A obra estimula, obriga, sua crítica e a consequente revelação de uma infinidade de significados da obra. Significados que no mais das vezes fogem ao controle do autor, mas que legitimam uma verdadeira obra de arte, aquela que conduz à reflexão. Mas quais parâmetros legitimariam a crítica das traduções? Estaríamos presos, mesmo que haja discordância, às noções de fidelidade, equivalência, interpretação, fluência, presença do estrangeiro, levar o autor ao leitor ou este ao autor? Dentre esses conceitos, existem outros, os mais citados e debatidos são fidelidade e equivalência, no entanto fidelidade é bastante discutível. O debate nesse sentido foi de há muito superado. Quanto à equivalência: Procurar equivalentes não é somente determinar um sentido invariante, uma idealidade que se expressaria nos diferentes provérbios de língua para língua. Significa recusar-se a introduzir na língua para a qual traduz a estranheza do provérbio original, (...) é recusar-se a fazer da língua para a traduz o “auberge du lointain”, significa, para nós, afrancesar: velha tradição. Para o tradutor formado nesta escola, a tradução é uma transmissão de sentido que, ao mesmo tempo, deve tornar este sentido mais claro, limpá-lo das obscuridades inerentes à estranheza da língua estrangeira.(BERMAN. 1999, p.14-15 tradução minha) Ao realizarmos crítica das traduções estabeleceremos um juízo, mas como afirmar que uma tradução é boa ou não? Baseado em quê? Baseado na fidelidade,na fluência, na literariedade? Creio que aumentamos o leque de dúvidas sem chegar, mais uma vez, a um consenso que nos sirva de parâmetro para avaliação de uma tradução. Para Berman o tradutor que traduz para o público acaba traindo o original. Preocupado com seu público acaba por também traí-lo pois oferece uma obra “ arrumada.” “Ao emendar as estranhezas de uma obra para facilitar sua leitura o autor acaba por desfigurá-la,e, portanto enganar o leitor a quem se pretende servir”.(BERMAN, 2007.p.66) 221 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Diante disso, restará ao tradutor a permanente tensão: “ servir à obra, ao autor, à lingua estrangeira (primeiro senhor) e de servir ao público e à lingua própria ( segundo senhor)”. ( BERMAN, 2002, p.15) Por que não analisarmos a tradução pelo viés da ética, da ética da tradução. Tratemos, pois da ética da tradução, um aspecto que reputo de extrema importância tanto para a crítica como para acentuar determinadas características das traduções. Sabemos que um mesmo texto pode ser traduzido de várias maneiras, mas caso admitamos a existência de uma exclusiva ética do traduzir, para um determinado texto será permitido apenas uma forma de tradução. Desse modo, partiríamos de ume ética pré determinada. Por outro lado, ao admitirmos uma relativização da ética permitiríamos que uma série de fatores (sociais por ex.) interferissem na determinação dessa ética. Diante do exposto restará ao tradutor a utilização de uma ética possível. Em Pour une critique des traductions: Johe Donne, Berman afirma que a tradução se afasta da ética quando ocorre num ambiente de inverdade. O aspecto ético reside no respeito, ou melhor, num certo respeito ao original. [...] Mas sabemos que, para o tradutor, tal respeito é a coisa mais difícil. [...] Mas a eticidade de traduzir é ameaçada por um perigo inverso e bastante comum: a não veracidade, a burla. Entretanto, não há veracidade na medida em que essas manipulações são apagadas, silenciadas.Não dizer o que faremos - por exemplo, adaptar ao invés de traduzir - ou fazer outra coisa e não o que foi dito, valeram a corporação o adágio italiano traduttore traditore. (BERMAN.1995, 92/93.tradução minha) Passemos a tradução de Où on va, papa ? publicado na França em 2008 por Jean-Louis Fournier, ganhou no mesmo ano o prêmio Femina. No Brasil a tradução de Marcelo Jacques de Moraes, Aonde a gente vai, papai? foi publicada pela editora Intrínseca em 2009. 222 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Diante do exposto por Berman, concluímos que uma má tradução é aquela que, “geralmente sobre pretexto de transmissibilidade, opera uma negação sistemática da estranheza da obra estrangeira.”(BERMAN, 2002,p.18). Traduções com essa características foram denominadas etnocêntricas, aquelas que tendem a destruir o sistema do original. (BERMAN, 2002,p.20) Sem nos atermos especificamente às questões de caracterizar ou não etnocentrismos examinaremos alguns trechos da tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Où on va, papa? é uma obra que traz em seu cerne, o protagonismo de crianças deficientes. O autor, pai, não se apresenta como um ser magoado, revoltado, ao contrário busca superar a dor fazendo uso de um humor bastante questionável, da ironia, da crueldade, e, digamos, um quê de amor. Autoficção? Como disse anteriormente, sim. Não sabemos até que ponto suas reflexões, suas descrições correspondem à realidade, pouco importa. O importante é que conduzam o leitor à reflexões, no caso sobre vários aspectos; da função pai à morte, do humor à crueldade. Por que tanta ironia com quem não entende ou é capaz de se defender? A intenção/necessidade de retirar o peso da tragédia torna grotesco o humor de mão única de Fournier. Suas personagens/vítimas jamais oporão restrições. Dito isso passemos à tradução, Aonde a gente vai, papai? Nas páginas iniciais Avec vous, il fallait une patience d’ange, et je ne suis pas un ange. Com vocês, era preciso uma paciência de santo, e não sou um santo. Trata-se de uma escolha do tradutor, preferir santo ao invés de anjo. Mas por que não traduzir ange por anjo. Simplesmente por não realizar uma tradução especular? Adiante ele faz escolha diversa. 223 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Regardez, ma Mère, il nous sourit, on dirait un petit ange, un petit Jésus... Olhe, Madre, está sorrindo para nós, parece um anjinho, um pequeno Jesus... Aqui realiza uma tradução especular, ligada à matriz linguística do original. Uma possibilidade, de maior autonomia da língua portuguesa: Repare, Madre, ele sorri para nós, me faz lembrar um anjinho, um pequeno Jesus. Um outro aspecto, e aqui podemos visualizá-lo através da lente da ética da tradução.Diz respeito a um trecho de pura ironia: Je ne m’ attendais pas à ça. Où on va, papa? On va prendre l’ autoroute, à contresens. On va em Alaska.On va carecer les ours.On se fera dévorer. On va aux champignons.On va cueillir des amanites phalloïdes et on fera um bonne omelete. Eu não esperava por isso. Aonde a gente vai, papai? Vamos pegar a estrada na contramão. Vamos para o Alasca. Vamos acariciar os ursos. Vamos nos fazer devorar. Vamos pegar cogumelos. Vamos colher Amanita phalloides para fazer uma boa omelete. O tradutor esquece de informar que o referido cogumelo é altamente tóxico e pode inclusive matar. Em Portugal é conhecido como chapéu da morte. Ao omitir essa informação, a ironia nessa frase pelo menos, se perde. E a ironia é o ponto forte da narrativa. Ignorá-la descaracteriza a 224 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 intenção do texto original. Uma nota ao pé de página seria bastante esclarecedora. O mesmo procedimento poderia ocorrer diante das expressões mantidas no idioma original Será que tenho physique du rôle? Que seja mantido, é preciso dar acolher o estrangeiro, mas por que não uma nota explicando a locução substantiva que significa “ ter aparência adequada ao papel”? Ocorre o mesmo com savoir-vivre. Saber viver, arte de viver bem. Ainda referente a necessidade de notas. Ce jour-là, j’aurais donné cher pour un cendrier biscornu comme un topinambour, que Mathieu aurait fait avec de la pâte à modeler et sur lequel il aurait grave “Papa”. Nesse dia eu teria pagado qualquer quantia por um cinzeiro disforme como um tupinambor, que Mathieu teria feito com massa de modelar e sobre o qual gravaria “Papai”. Por que não uma nota dando conta que tupinambor é uma planta semelhante ao girassol? Podemos citar também um caso de omissão. Il y a des petites coquilles Saint-Jacques en relief sur le manche de la cuiller et autour de l’ assiete. Com conchinhas em relevo no cabo da colher e na borda. O texto original se refere ao cabo da colher e a borda do prato. A tarefa do tradutor é extremamente exigente, traduzido o texto este deve ser lido em voz alta, de preferência a outra pessoa. Il doit porter as croix, avec un masque de douleur. Deve carregar sua cruz com ar de dor. Cacófato injustificável. 225 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Defendemos a liberdade, admitimos a liberdade do tradutor, suas escolhas, embora algumas nos pareçam bastante inusitadas e remetam à burla. É o que se pode concluir ao analisarmos o que segue. Je me souviens d’um coffret permettant de construire soi-même um récepteur de radio, il y avait dedans um fer à souder et plein de fils électriques. Lembro-me de um jogo que permitia construir sozinho um rádio. Havia na embalagem um ferro de soldar e uma porção de fios elétricos. Lembro-me de um estojo que permitia construir sozinho um rádio. Havia em seu interior um ferro de soldar e vários fios elétricos. Discordamos da tradução de coffret por jogo e dizer que havia na embalagem quando talvez fosse melhor dizer que havia no interior da embalagem, da caixa. Outra escolha de gosto duvidoso. O sentido inverso, Ils ne lui ont jamais écrite une lettre pour lui demander quelque chose. Nunca escreveram para ele uma carta pedindo alguma coisa. Nunca escreveram uma carta para lhe perguntar algo. Há casos de supressão. Exemplo: Comment vous serez? Comment vous serez habillés? O tradutor traduziu apenas Como vocês estarão vestidos? Por que omitir a primeira frase na tradução? Nos parece uma interferência no texto original. O contrário se vê logo adiante, onde o tradutor insere uma informação, deduz-se no sentido de esclarecer o leitor. Il va nous emmener faire des virées das as traction, il va vous faire boire, là-haut on doit boire de l’hydromel. Ele vai nos levar para dar uma volta em seu velho Citroen Traction, vai nos fazer beber, lá em cima deve-se beber hidromel. 226 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Enfim, como realizar a crítica de uma tradução? Aqui limitada ao âmbito da literatura. Em que se baseia, qual a sua receptividade junto ao leitor de traduções? Extrapolemos o ambiente acadêmico. O leitor de traduções geralmente é o leitor que não tem acesso ao texto original, logo que interesse despertará no mesmo a leitura de uma crítica de tradução. Sejamos otimistas e acreditemos que ele chegue até esse estágio. Ele não poderá avaliar a crítica, talvez no máximo lhe estimule alguma reflexão sobre seu estado de leitor monolíngue. No âmbito acadêmico, é de se esperar que a crítica ultrapasse os limites da correspondência entre texto traduzido e texto original. Segundo Berman “... une traduction devient um “nouvel original” (BERMAN.1995.p.42) Um ponto merecedor de longa reflexão e aqui o tangenciamos tão somente, diz respeito ao que deve ser traduzido e o que significa uma tradução se integrar ao sistema literário para o qual foi traduzida. Fiquemos com a obra aqui rapidamente analisada, a tradução de Où on va, papa?, obra premiada na França, sucesso de vendas. No Brasil, Aonde a gente vai, papai? edição esgotada, fora do mercado, e sem perspectiva de uma segunda edição.Podemos afirmar sua integração ao nosso sistema literário? É o mercado que legitima essa integração? Que papel, para o bem e para o mal, representa a obra traduzida para o sistema literário que a recebe? Outro aspecto: como analisar a recepção da obra traduzida? Como, se na maioria das vezes a obra traduzida não é tratada como tal? Ao abordarmos a ética do tradutor, nos parece bastante apropriado examinarmos também a ética de nossos editores. 227 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 REFERÊNCIAS BERMAN, Antoine. L´Âge de la traduction.Paris:Presses Universitaires de Vincennes.200______________. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris.Gallimard,1995 ______________. La traduction et la letrre ou l’auberge du lointain.Paris:Seuil,1999 CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 FOREST,Philippe. L’enfant éternel. Paris: Gallimard,1998. FOURNIER, Jean-Louis. Où on va, papa?. Paris:Stock,2008 ___________________. Aonde a gente vai, papai?. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2008 GASPARINI,Philippe. Autofiction. Paris: Seuil, 2008 GODARD, Henri. Un autre Céline. Paris: Textuel, 2008. LEJEUNE, Philippe.Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975. ______.O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. PITTOLO, Véronique. Écrire, pourquoi? Paris: Argol Éditions, 2005. 228 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 CORPOS MARCADOS, MENTES ASSOMBRADAS: A RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA NAS ADAPTAÇÕES DE O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?, ALGUMA COISA URGENTEMENTE , BATISMO DE SANGUE E AS MENINAS Marina Rodrigues de Oliveira RESUMO: A ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) foi marcada pela tortura, sequestro, prisão e “desaparecimento” daqueles que eram seus opositores. Este momento histórico, a partir do processo de reabertura política foi abordado em inúmeras obras literárias, dentre as quais, O que é isso, companheiro (Fernando Gabeira, 1979), Alguma coisa urgentemente (João Gilberto Noll, 1980), Batismo de sangue (Frei Betto, 1982) e As meninas (Lygia Fagundes Telles, 1985), bem como, mais tarde, em suas respectivas adaptações para o cinema, a saber: O que é isso, companheiro? (dirigido por Bruno Barreto, em 1997), Nunca fomos tão felizes (dirigido por Murilo Salles, em 1984), Batismo de sangue (dirigido por Helvécio Ratton, em 2006/2007) e As meninas (dirigido por Emiliano Ribeiro, em 1995). Este artigo tem por objetivo refletir acerca da representação da memória, nas adaptações das obras literárias supracitadas, tendo, como referencial teórico, dentre outros, estudos como os de Antonio Candido (1989), André Bazin (1991), Jacques Le Goff (2003), Tânia Pellegrini (2003) e Beatriz Sarlo (2007). Palavras-chave: ditadura militar; adaptação; memória. The brazilian dictatorship (1964-1985) was marked by torture, kidnapping, prison and “disappearance” of people who opposed it. This historical moment, as from the politic democracy reopening was broached in many literary opus, among it, O que é isso, companheiro? (Fernando Gabeira, 1979), Alguma coisa urgentemente (João Gilberto Noll, 1980), Batismo de sangue (Frei Betto, 1982) and As meninas (Lygia Fagundes Telles, 1985), as well as, later, their respective adaptations to cinema: O que é isso, companheiro? (directed by Bruno Barreto, in 1997), Nunca fomos tão felizes (directed by Murilo Salles, in 1984), Batismo de sangue (directed by Helvécio Ratton, in 2006/2007) and As meninas (directed by Emiliano Ribeiro, in 1995). This article has as objective to reflect about the representation of memory, in cinema adaptations of the another cited opus, has, as theoretician referential, among others, the studies of Antonio Candido (1989), André Bazin (1991), Jacques Le Goff (2003), Tânia Pellegrini (2003) and Beatriz Sarlo (2007). Keywords: Brazilian dictatorship; adaptation; memory. No final da década de 1970 e início da de 1980, a literatura brasileira passou a abordar a ditadura civil-militar, período que, aos poucos, entrava em declínio, iniciado com a promulgação da Lei da Anistia: (...) A lei de anistia aprovada pelo Congresso continha entretanto restrições e fazia uma importante concessão à linhadura. Ao anistiar ‘crimes de qualquer natureza relacionados com cries políticos ou praticados por motivação política’, a lei 229 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 abrangia também os responsáveis pela prática da tortura. De qualquer forma, possibilitou a volta dos exilados políticos e foi um passo importante na ampliação das liberdades públicas. (FAUSTO, 1999, p.504): Nesse contexto, inserem-se as obras aqui em análise - O que é isso, companheiro? (Fernando Gabeira, 1979), Alguma coisa urgentemente (João Gilberto Noll, 1980), Batismo de sangue (Frei Betto, 1982) e As meninas (Lygia Fagundes Telles, 1985) –, que fazem parte de um grupo maior, cujas principais características, conforme destaca Silviano Santiago (2002, p. 13; 14), foram o foco, cada vez maior, no processo de conscientização político-partidário dos personagens das classes operárias – em substituição à temática da exploração do homem pelo homem, predominante anteriormente – e a forte crítica ao autoritarismo vigente com a deflagração do golpe. A segunda característica, em particular, é bastante presente nas obras aqui em estudo, se configurando, tanto na fala das personagens, quanto na narração de cenas de tortura, como mostram os trechos abaixo: (...) Não poderiam me pendurar no pau-de-arara sem risco de morte, nem poderiam me fazer sentar na Cadeira do Dragão, que era uma cadeira eletrificada. O que se fazia de tortura, se fazia ali na cama ou não se fazia. (...) O básico dos interrogatórios era vencer pelo cansaço. (GABEIRA, 1979, p. 155). (...) - Tire a roupa, seu filho da puta! O religioso ficou de cueca, os acólitos da morte empurraram-no ao chão, enfiaram uma trave de madeira sob seus joelhos, curvaram-no, passaram suas mãos por baixo da trave, amarram-nas com cordas à frente das pernas e, entre duas mesas, dependuraram seu corpo como um frango no espeto (...). (FREI BETTO, 2006, p. 240). Podemos perceber, nos trechos acima, exemplos retirados de duas obras que mantém, historicamente, relações entre si: no primeiro exemplo, temos o relato da prisão de João, codinome de 230 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Fernando Gabeira, membro de um grupo guerrilheiro, o MR-8; no segundo, a tortura é dirigida a um membro da Igreja, frei Fernando, religioso dominicano que ajudava a ALN (Aliança Libertadora Nacional), aliada do MR-8 na ação de sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick. Além desse elo, há outro que perpassa ambas as narrativas, e que é destacado por Tânia Pellegrini (1987, p. 63-4), quando analisa O que é isso, companheiro?: a tortura como uma batalha extenuante, por parte do torturado, pela sobrevivência, lutando contra a morte, se agarrando ao tempo que não consegue enxergar, na tentativa de se salvar. Narrar o que foi sofrido, o que foi passado, as dores e injustiças cometidas, é uma necessidade, por parte daqueles que as sofreram e, em meio a isso, surge a memória como um importante recurso: A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da existência, redime-a de eu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum. A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda a temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar. (SARLO, 2007, p. 24-5). Não foram apenas as narrações baseadas em acontecimentos reais que ocuparam a literatura brasileira dos anos 60 e 70: em As meninas e Alguma coisa urgentemente, temos a representação de diferentes segmentos da sociedade que combateram a ditadura: na obra de Lygia Fagundes Telles, a personagem Lia/Rosa, simboliza a classe estudantil que rumou para a guerrilha urbana armada; no conto de João Gilberto Noll, o pai, sem nome, mantém sua vida clandestina de combatente escondida do filho, também inominado. Apesar de semelhantes, os destinos das duas personagens são distintos: no caso de Lia /Rosa, o exílio para a Argélia; no do pai, a 231 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 morte; são diferentes, também, as abordagens da violência imprimida pelo regime civil-militar: em As meninas, conforme destaca Maria das Dores Pereira Santos (2006, p. 26-7), dá-se por meio da incorporação de um texto-depoimento, lido por Lia/Rosa, à madre Alix, no qual são relatas as torturas sofridas por um prisioneiro político; em Alguma coisa urgentemente, através dos meios de comunicação, a exemplo da televisão e do jornal, mostrando, assim, o poder da mídia, à época. Passado o período de abertura política, e já com a redemocratização estabelecida, as obras literárias que abordam o regime civil-militar ganham adaptações para o cinema, tanto em meados dos anos 1980 /1990, quanto mais recentemente, nos anos 2000. A passagem do tempo, mais que uma mera mudança cronológica, reflete, também, uma nova abordagem acerca da ditadura: Marcia Santos (2009) (...) sugere uma ‘evolução’ cronológica no tratamento do tema, considerando que nos filmes mais recentes encontram-se não apenas personagens mais matizados, mas também uma maior pluralidade de perspectivas, que vão além do militante armado (...). (LEME, 2013, p.120). Diante desse panorama, é necessário tecer algumas considerações sobre o que já foi estudado acerca das adaptações das obras literárias aqui em estudo. Antes, porém, cabe destacar o conceito aqui adotado de adaptação, aqui entendido, a partir das contribuições teóricas de André Bazin (1991), Ismail Xavier (2003), Thaïs Flores Nogueira Diniz (2005) e Valquíria Elias Ferreira Rezende (2010), como um novo texto que se estabelece a partir de outro, pré-existente, no qual a leitura do adaptador atenderá a seus propósitos, que, não necessariamente, condizem com os do autor, dada as diferenças entre a literatura e o cinema. No que diz respeito à primeira adaptação fílmica aqui em estudo, Nunca fomos tão felizes 232 (1984), pode-se afirmar, ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 fundamentando-se em João Manuel dos Santos Cunha (2009) e Leme (2013), que é obra, sobretudo, centrada na fragmentação da memória, constituída a partir dos espaços nos quais a história se ambienta, particularmente no apartamento-“aparelho”, onde o filho, agora, nominado, Gabriel, passa grande parte de seus dias “preso”, buscando saber, por meio de objetos (fotografias, jornais, caixa de fósforo, pasta com documentos), quem é seu pai, desde que este o tirou do colégio interno. Os lugares de memória – categoria já presente em estudiosos como Joël Candau (2011, p. 157) e Paul Ricœur (2000, p. 47) – passam a servir como possíveis índices sob os quais a identidade do pai se forma e, simultaneamente, fragmenta: Nunca fomos tão felizes é um filme que se constrói sobre a ausência. Ausência do pai. Ausência de palavras. Ausência de explicações. Ausência de ação. O apartamento mais do que um cenário é um signo da ausência: amplo e quase sem móveis, prolonga-se na imensidão do mar azul, expressando o sentimento de desamparo e solidão experimentado por Gabriel. E a câmera, em movimentos de travelling e no uso da profundidade de campo, explora esse vazio. (LEME, 2013, p. 238). De forma irônica, Gabriel descobre a real identidade do pai apenas no momento da morte deste, momento que o jovem decide eternizar, através de sua polaroide, coincidindo com o encerramento do filme com os dizeres “Tão felizes, nunca fomos”. Em oposição a Nunca fomos tão felizes, que já conta com alguns estudos – a exemplo dos acima mencionados –, a adaptação homônima do romance As meninas, dirigida por Emiliano Ribeiro, não possui uma fortuna crítica mais aprofundada, restringindo-se a uma breve consideração presente em Leme (2013, p. 36), na qual a pesquisadora constata, no filme em questão, a ausência de definição acerca da posição ocupada pelos torturadores, dentro dos órgãos de segurança. 233 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 O que é isso, companheiro?, por sua vez, gerou, quando do lançamento de sua adaptação fílmica, dezenas de críticas, relacionadas, principalmente, ao caráter maniqueísta presente na oposição dos perfis do torturador Henrique e do guerrilheiro Jonas: Por outro lado, se o filme apresenta o guerrilheiro Jonas como um homem frio, disposto a matar qualquer companheiro que o desobedecer, sem vacilação, confere ao torturador Henrique (Marco Ricca) um tratamento bem diferente. Ele sofre angústias, não consegue dormir direito, tem problemas com a mulher quando ela descobre sua real atividade. É um carrasco em conflito (mas nem por isso deixa de continuar torturando e matando). Já Jonas, que luta contra a ditadura, que não tortura ninguém e que, pelo contrário, acaba morrendo na tortura (ao ser preso após o sequestro), é tratado como um facistoide. Nas suas angústias, Henrique é certamente bem mais humano. (SALEM, 1997, p. 49). Outro aspecto controverso, na adaptação do romance de Gabeira, relaciona-se ao caráter “higiênico” na representação das cenas de tortura, consideradas como relativamente leves, e, proporcionando, inclusive, posteriormente, o estabelecimento de uma relação amorosa entre torturador e torturada, conforme destaca Leme (2013, p. 45). Apesar dos aspectos acima serem, realmente, legítimos de crítica, o que provoca controvérsia, na referida adaptação, é a aparente oposição que se estabelece entre a memória transposta, para o cinema, a partir do relato de Gabeira e a que se entende como “legítima”, como “coletiva”, pertencente à História e aos outros que nela, além do autor, estiveram envolvidos nos fatos narrados / representados, aspecto elencado por, dentre outros, Paulo Moreira Leite (2007, p. 54-5; 55), Santos (2009, p. 150) e Leme (2013, p. 122-3), e que merecerá maior atenção, também, no presente estudo. A última das adaptações aqui em estudo, Batismo de sangue, dirigida por Helvécio Ratton, distingue-se de O que é isso, companheiro?, em um primeiro momento, pela maior ênfase dada às cenas de violência, fato este que foi considerado, por alguns críticos, 234 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 segundo Leme (2013, p. 47), como um excesso de realismo. Tal visão, entretanto, não é a predominante, uma vez que em estudos como o de Maria Luiza Rodrigues Souza (2009), este aparente excesso é considerado um dos maiores méritos da referida produção, pois serve como um suplemento à memória política. Ainda a respeito de Batismo de sangue, Leme (2013, p. 48) enfatiza que o filme aborda duas questões delicadas: a suposta delação dos frades Fernando e Ivo, que desencadeou a morte de Carlos Marighella, e o suicídio de frei Tito, em decorrência de suas memórias da tortura – representadas, no filme, por meio do recurso de flash back –. Dessa forma, a memória, na adaptação realizada por Ratton, é muito mais delicada, uma vez que está associada não apenas à tortura, mas, também, a um tabu religioso, o suicídio. É certo que existem outros aspectos a serem considerados, quando estudamos a transposição da memória existente nas obras citadas para suas respectivas adaptações cinematográficas. Entretanto, é impossível cobrir todos, sob a pena do esquecimento, dos lapsos, categorias que também constituem a memória. O mais importante é observamos, no presente artigo, é a necessidade de enxergar as narrativas em questão – tanto literárias, quanto fílmicas – como complementares, uma vez que retomam, ainda que em diferentes momentos históricos e políticos, uma importante parte da História do nosso país. REFERÊNCIAS BAZIN, André. Por um cinema impuro – Defesa da adaptação. In: ____. O cinema: ensaios. Tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. p. 82- 104. BETTO, Frei. Batismo de sangue: guerrilha e morte de Carlos Marighella. 14. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. p. 240. 235 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução de Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2011. p. 157. CUNHA, João Manuel dos Santos. 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Perpassando essas reflexões, podemos verificar a presença constante, na ficção, de um outro campo da ciência reiteradamente utilizado por Machado na construção de seus escritos, qual seja: a Filosofia. No conto O espelho, publicado em 1892, podemos perceber a ascensão da Filosofia no texto literário, discutindo e refletindo acerca do homem moderno. Nessa perspectiva, este trabalho propõe-se a analisar e discutir a dialética contida no conto, entre o diálogo ficcional e filosófico, buscando aliar os pensamentos contidos na narrativa a reflexões filosóficas já existentes, mostrando como a literatura machadiana passeia por outra área do conhecimento. Palavras-chave: Literatura. Filosofia. Espelho. Machado de Assis. ABSTRACT: The Machado's work, as we know, is marked by several reflections on modern society, man and their relationships. Running along these reflections, we can see the constant presence in the fiction, another field of science repeatedly used by Machado in the construction of his writings, namely: philosophy. The mirror in the tale, published in 1892, we can see the rise of Philosophy in literary text, discussing and reflecting about the modern man. From this perspective, this work proposes to analyze and discuss the dialectic contained in the story between the fictional and philosophical dialogue, seeking to combine the thoughts contained in the narrative to existing philosophical reflections, showing how Machado literature strolling through another area of knowledge. Keywords: Literature. Philosophy. Mirror. Machado de Assis. INTRODUÇÃO Ao ler a obra do escritor Machado de Assis, uma das muitas conclusões a que podemos chegar é a de que as reflexões filosóficas estão presentes em diversos momentos na escrita, junto às reflexões sociais por que passava a sociedade de sua época e que, ainda hoje, refletem na atualidade. Não é à toa que a crítica o considera um dos maiores escritores de todos os tempos, “a mais alta expressão do nosso gênio literário, a mais eminente figura da nossa literatura” (VERÍSSIMO, 1981, p. 277). Nas palavras de Mário de Andrade: Como um acadêmico, era um desprezador de assuntos. [...] Há contos dele movidos com tão pouca substância, tão sem uma base lírica de inspiração, que se tem a impressão de que Machado de Assis sentava para escrever. Escrever o quê? 52 Acadêmico do 3° período do curso de Letras-Português da UNIMONTES e Filosofia da UNIFRAN 238 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Apenas escrever. Sentava para escrever um gênero chamado conto, chamado romance, porém não tal romance ou tal conto. E é porque tinha no mais alto grau uma técnica, e bem definida a sua personalidade intelectual, que saiu este conto ou aquele romance. (ANDRADE, 2002, p. 127). Lendo e analisando o pensamento filosófico e reflexivo contido na obra machadiana, um de seus contos chama atenção pela forma com a qual é trabalhada a ficção e a teoria, qual seja, O espelho. Neste conto, Machado trabalha duas esferas: a filosófica e a literária. Esta trabalha com a narrativa da personagem Jacobina que, sentado à mesa com alguns colegas, põe-se a discutir questões da vida a partir de suas lembranças; aquela, por sua vez, trabalha com a faculdade da alma – ou almas, melhor dizendo. A partir dessas duas esferas trabalhadas nesse conto, este trabalho se propõe a analisá-las e discuti-las, de modo a perceber como se dá o passeio que o texto literário de Machado de Assis faz pelas teorias filosóficas, de modo especial àquelas concernentes às faculdades da alma. O espelho: uma nova teoria da alma humana O espelho: uma nova teoria da alma humana é um conto publicado, primeiramente, na Gazeta de Notícias, em 1982, e agregado ao livro cujo título Machado intitulou Papéis Avulsos, considerado por muitos uma de suas principais obras, marcada pelo desenvolvimento e amadurecimento de seus escritos. No conto, Machado traz a figura da personagem Jacobina, homem de idade “entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico” (ASSIS, 2006, p. 135) Jacobina desempenha papel principal e em torno do qual gira a narrativa. Este, sentado à mesa com alguns conhecidos, calado, a princípio, faz uso da palavra, e, a partir de então, começa a 239 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 refletir a respeito de algo que foge às discussões costumeiras: a alma. Um dos homens desafia-o a arguir sobre o assunto, mas o “casmurro”53 prefere utilizar, como forma de argumentação, uma ocorrência de seu passado. Neste momento, Jacobina começa a narração de uma de suas vivências e, no conto, as demais personagens que com ele estavam sentados se silenciam, dando ouvido somente à história – o que caracteriza a primeira relação do exercício de poder descrito no conto. “A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que concerta a ponta do charuto, recolhendo as memórias” (ASSIS, 2006, p. 137). Podemos dizer, assim como Alfredo Bosi (2014), em um ensaio direcionado aO espelho, que “o conto começa pelo fim”. Jacobina narra aos seus ouvintes um momento de sua vida em que foi nomeado alferes da Guarda Nacional, fato que foi motivo de alegria para muitas pessoas: mães, primos, tios; e que causou, ainda, conforme a escritura, “choro e ranger de dentes”54. Uma de suas tias, Marcolina, ficou tão feliz com o título recebido pelo sobrinho que pediu para que ele fosse visitá-la em seu sítio; cumprido o pedido, Marcolina escreve à mãe de Jacobina dizendo-lhe que este ficaria por lá, no sítio, por, no mínimo, um mês. A personagem da tia desempenha um importante papel na narrativa, uma vez que é ela quem, explicitamente, mais desperta em Jacobina o sentimento megalomaníaco, que desencadeia as reflexões que permeiam o conto: “E abraçava-me! Chamava-se também o seu alferes. (...) chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher (...) alferes pra cá, alferes pra lá, alferes a toda a hora” (ASSIS, 2006, p. 138). A alegria e orgulho da tia foram tão grandes que mandou por no quarto do alferes 53 Forma com a qual Machado faz referência, no conto, à personagem Jacobina. 54 Alusão a uma passagem da Bíblia, no livro de Lucas, capítulo 13: “Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, e Isaque, e Jacó, e todos os profetas no Reino de Deus, e vós lançados fora”. Machado, através da menção, mostra o sentimento de inveja causado pela personagem principal em algumas pessoas quando se torna alferes da Guarda Nacional. 240 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 “um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples” (ASSIS, 2006, p. 138). Fica evidente o respeito dado ao alferes, que, com isso, deixou de ser o Jacobina e passou a ser “exclusivamente alferes”. Com tanto zelo, há um momento em que sua tia precisa deixar o sítio para atender a uma emergência, a partir desse momento a narrativa começa a tomar outros rumos, e toda uma carga teórico-filosófica trabalhada no início do conto começa a ser refletida nas ações da personagem. O discurso filosófico no corpus literário Analisar os aspectos filosóficos contidos na obra de Machado de Assis, conforme acentua Miguel Reale, é pensar: “Filosofia de Machado de Assis, ou na obra de Machado de Assis?” (REALE, 1982, p. 3). Dessa forma, é possível perceber que as reflexões machadianas, embora muito parecidas, de fato, com algumas teorias filosóficas de autores por ele lido, tomam um viés de certa forma autônomo, uma vez que, aliando seus pensamentos a reflexões já existentes, aprimora-as e acrescenta-lhes novas ponderações bem mais características do homem e da sociedade de seu tempo. Para se utilizar o discurso filosófico, Machado utiliza, como vimos, a personagem Jacobina, que reflete também as características do homem moderno. Conforme afirma Afrânio Coutinho Machado descobriu enfim a sua vocação verdadeira: contar a essência do homem, em sua precariedade existencial. As suas personagens não apresentam mais uma estrutura moral unificada e típica. São antes seres divididos consigo mesmos, embora sem lutas violentas, já naquele estado em que a cisão interna entra no declive dos compromissos e da instabilidade de caráter. O homem não é mais aquele ser responsável dos romances anteriores; é um joguete de forças desconhecidas. (COUTINHO, 2004, p. 159). 241 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 No conto em questão, a filosofia está presente desde o início da obra. Voltemos, portanto, ao início, para percebermos alguns pontos importantes e que devem ser levados em consideração. Retomemos ao início do conto, que sinaliza o assunto debatido pelos cinco cavalheiros na mesa: questões de alta transcendência. A personagem Jacobina é quem começa as reflexões, principalmente no que concerne às faculdades da alma; a primeira proposição feita pela personagem é acerca da dualidade da alma, tema com o qual ele discorre o seu texto e suas reflexões: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro...” (ASSIS, 2006, p. 136). A duplicidade da alma explicitada pela personagem Jacobina sinaliza as inconstâncias da alma e do ser humano: a alma interna, marcando as características subjetivas do ser humano; a externa, as relações do indivíduo e da sociedade em que vive. Machado trabalha, na obra, a vida do homem de seu tempo, ou seja, o homem moderno. Nesse trabalho, ele mostra a dualidade dessa alma moderna. A alma exterior, conforme percebemos no conto, caracteriza sua existência pela existência dos outros, ou seja, sobrevive das relações humanas em sociedade, tema bastante discutido em toda a obra realista machadiana. A alma interior, por sua vez, é instável e inconstante. Essa teorização dada por Jacobina parte do princípio de sua própria vivência, narrada no conto. Retomando, mais uma vez, à história do conto, quando a tia de Jacobina sai do sítio, este passa a viver só, ou melhor, consigo e suas duas almas. Neste momento, as reflexões machadianas aproximam-se das filosóficas; reflexões de alguns filósofos podem ser encontradas, Arthur Schopenhauer é um deles. Nas palavras de Reale (1982): Nada de extraordinário, por conseguinte, que a visão pessimista de Machado de Assis tenha encontrado abrigo e consolo na doutrina de Schopenhauer, também um de seus autores prediletos. São vários os motivos schopenhaurianos que podemos identificar na obra machadiana, motivos que valem a confirmação de crenças obscuramente brotadas de sua própria experiência. (REALE, 1982, p. 12). 242 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Friedrich Nietzsche também pode ser encontrado nesse pensamento de multiplicidade da alma, em sua obra Para além do bem e do mal, quando diz: “nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas” (NIETZSCHE, 1993, p. 25). Aqui, ater-nos-emos apenas a um desses filósofos. Machado traz um símbolo que dá um sentido especial ao texto: o relógio. O relógio (e ainda a figura da pêndula) configura um símbolo de intensificação do sentimento da personagem. Quando Jacobina encontrase sozinho, vivencia sentimentos negativos, tais como o desespero, a ânsia, a angústia e o tédio; é trazida por Machado a figura do relógio para mostrar o aprofundamento da negatividade vivenciada pelo indivíduo e sua alma: “as horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um pirapote contínuo da eternidade” (ASSIS, 2006, p. 140). Mais à frente, Machado começa a descrever algumas atividades corporais exercidas pela personagem Jacobina: “(...) às vezes, fazia ginástica; outras dava beliscão nas pernas; mas o efeito era só uma sensação de dor ou de cansaço, e mais nada”. A realização das atividades parecia não fazer sentido, como se não houvesse proeminência alguma para o futuro, gerando, pois, o tédio. O tédio extrai o sentido dos fazeres humanos, tornando a vida insignificante. É neste momento que o pensamento machadiano se aproxima do schopenhauriano. Para Schopenhauer, a existência é permeada por um círculo vicioso, no qual se apresenta o desejo, a satisfação, o tédio e retoma ao desejo. O que sempre retorna à vida, portanto, é o nada. No conto, a personagem Jacobina perde sua humanidade a passar por esse círculo, nem mesmo sua alma interior tinha sentido de existência. Jacobina, ao tornar-se alferes, conforme nos mostra o conto, sentese seduzido pelo poder. A partir de agora, não é mais o velho Jacobina, é o alferes, sem compaixão pelos outros. Machado sinaliza na personagem 243 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Jacobina duas naturezas: “– O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.” Ao tornarse esse ‘outro’, Jacobina entra cada vez mais no jogo de poder, querendo-o cada vez mais para si. A sedução por sua imagem, refletida pelo espelho de sua própria alma, torna-se cada vez mais forte, até o momento em que ele cai em si mesmo e, como já dissemos, no tédio. A falha cometida pela personagem advém de sua própria vaidade e sedução exasperada pelo poder. É trágica, pois o próprio autor da vaidade é o receptor das consequências advindas dela. A queda se dá quando Jacobina cai em si mesmo e entra no círculo desejo/satisfação/tédio/desejo. O desejo pelo poder, a satisfação após se tornar alferes, o tédio da alma interior vazia e a insignificância de sua vida e, mais uma vez, o desejo, agora, de voltar a ser quem era. A saída encontrada para ausentar o tédio por Jacobina é através do espelho, mais uma vez, aí, podemos perceber a aproximação do pensamento de Schopenhauer em relação à visão do mundo como mera representação. Para Schopenhauer, o mundo é uma representação individual: “O mundo é minha representação. Esta é uma verdade que vale em relação a cada ser que vive e conhece, embora apenas o homem possa trazê-la à consciência refletida e abstrata” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43). O espelho figura como ‘autoadoração’ da própria personagem, a duplicidade do ser é assinalada mais uma vez. Nas palavras de Gilson Motta (...) é simbolizada pelo reflexo especular, pelo desdobramento de si que a imagem refletida no espelho provoca. Assim, o objeto espelho tem o poder de realizar uma operação metafísica: ele mostra o homem para si e em si mesmo como alteridade. Trata-se aqui do ato de pensar a si mesmo a partir do seu reflexo: pensar a si como um outro. Este conflito – ser um e ser outro – é parte mesmo do homem. Mais precisamente, este conflito é o próprio homem. (MOTTA, 2007). 244 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Considerações finais O conto O espelho, como percebemos, é um exemplo das obras que aliam a ficção literária às teorias filosóficas. Na narrativa em questão, fica evidente o passeio que o texto literário faz a outro campo do conhecimento, feito de maneira ímpar por Machado de Assis. Além das considerações feitas neste trabalho acerca da narrativa e de algumas ideias filosóficas, podemos perceber que o autor vai além, trazendo, no conto, críticas sobre o homem moderno, de modo especial, o capitalista. Quando Machado cria a personagem Jacobina e este torna-se alferes, sua natureza é mudada completamente, mostrando como o poder transforma a vida do ser humano. Ao obter esse poder, o autor mostra como o ser humano entra ainda mais nesse jogo, buscando ainda mais domínio de si e dos outros. Ao obter esse poder, exemplificado, no conto, através da farda, a personagem perde o controle, passando por cima de tudo e de todos. Podemos perceber isso, em geral, no histórico da obra machadiana. Ao mostrar o homem burguês, capitalista, na busca constante pela posse aquisitiva, Machado traz o jogo de poder que envolve o ser humano e que, quando o consegue, deixa que sua alma exterior, marcada pelas relações exteriores e com a sociedade, sobressaia-se, olhando apenas para si mesmo e não se importando com seus atos para com o próximo. Esta reflexão, que marca o homem moderno e se estende ao homem atual, mostra-nos como, muitas vezes, agimos também em busca do poder e de nós mesmos. Além do mais, a leitura e a reflexão do conto levam-nos a refletir, também, a nossa própria existência, colocando-nos, do mesmo modo, no círculo schopenhauriano; o fato de, muitas vezes, nossa imagem nos seduzir e levar-nos à vaidade, querendo cada vez mais o crescimento e, consequentemente, a nossa própria desumanização. Ante o desejo realizado, a satisfação completa, o próximo passo é o tédio, assim que descobrimos o sentido, ou melhor, a ausência de sentido da vida. O desejo, mais uma vez, aparece no círculo, 245 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 quando queremos sair da imagem que é refletida, mesmo que de poder, e voltar ao momento em que a vida era dotada de sentido e relações com os outros. A dialética entre a filosofia e a ficção trazida no conto deixanos, ainda, uma reflexão que permeia toda a existência e a busca de sentido pela vida humana: quem eu sou? REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. ASSIS, Machado de. O espelho: uma nova teoria da alma humana. In: Papéis Avulsos (p. 135-143). São Paulo. Martin Claret, 2007. BIBLIA SAGRADA. A. T. Lucas. Cap. 13, 28. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/lc/13> Acesso em: 24 de agosto de 2015. BOSI, Alfredo. O duplo espelho em um conto de Machado de Assis. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142014000100020> Acesso em: 12 de agosto de 2015. 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Noêmia Coutinho Pereira Lopes¹ RESUMO: O presente resumo objetiva discutir acerca da recepção crítica sobre o livro O filho do pescador, de Teixeira e Sousa, publicado em 1843. Tecemos considerações sobre o referido objeto de estudo e levantamos hipóteses sobre o porquê de o autor ser mencionado pelos críticos de maneira tão diversa. Embora tenha alcançado sucesso junto ao público com a veiculação de seus textos nos folhetins, Teixeira e Sousa chega a ser rejeitado pelos manuais de Literatura, tachado de “autor menor”. Assim, perguntamos: E por que não também Teixeira e Sousa? Estaria ele necessitando de uma nova classificação junto aos manuais de literatura, agora não como aquele que disputa com Joaquim Manuel de Macedo o título de precursor do Romantismo no Brasil e sim como um folhetinista de sucesso? É um caso a se pensar. Palavras-chave: O filho do pescador; romance-folhetim; crítica; Teixeira e Sousa. ABSTRACT: The purpose of this summary discuss about the critical reception of the book The son of the fisherman, Teixeira e Sousa , published in 1843. We weave considerations on the study object and raise hypotheses about why the author be mentioned by critics so as diverse. Although it has achieved success with the public with the airing of his texts in serials, Teixeira e Sousa gets to be rejected by Literature manuals, branded a "minor author." So we ask: Why not also Teixeira e Sousa ? Was he in need of a new classification with the literature manuals, now not as one who disputed with Joaquim Manuel de Macedo the title of Romanticism precursor in Brazil but as a serial writer of success? It is a case to think about. Keywords: The son of the fisherman; serial novel; critical; Teixeira e Sousa. Publicado nos rodapés do Jornal O Brasil em 1843, O filho do pescador narra uma história de paixões, crimes, reviravoltas e redenção. Ambientado no Rio de Janeiro, tendo várias cenas passadas no bairro de Copacabana – na época, um bairro praticamente despovoado – acompanhamos a trajetória dos personagens às voltas com uma sequência de relacionamentos cheios de interesse, principalmente no campo afetivo. Tendo Teixeira e Sousa apresentado esse romance-folhetim em 1843 e sendo essa uma época ainda conturbada no tocante à história do país, propomo-nos voltar nosso olhar para a recepção crítica do autor no século XIX. Lembrando que Teixeira e Sousa iniciou sua incursão ao mundo das letras publicando poemas e algumas peças de teatro, obteve, já no princípio de sua carreira, reconhecimento do público e dos críticos que, ora favoráveis, ora não, apresentavam nos periódicos da época suas 247 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 impressões sobre as publicações do referido autor. A respeito dessas impressões, Hebe Cristina da Silva nos aclara: Os textos poéticos e dramáticos que Teixeira e Sousa publicou na imprensa e na forma de livros foram apreciados em estudos críticos divulgados ao longo do século XIX, confirmando a importância dessas produções para a obtenção do reconhecimento de seus contemporâneos (SILVA, 2012, p. 61). Silva, ao longo de sua tese de doutorado e demais pesquisas sobre Teixeira e Sousa, elenca várias notas em periódicos nos quais foram publicados comentários sobre as produções do autor, fazendo menção a vários gêneros literários. No gênero poesia, chegou a ser considerado um “discípulo de Gonçalves de Magalhães” por Fernandes Pinheiro. Teve inclusive, o poema Três dias de um noivado traduzido por Luís Vicente de Simoni, médico italiano. No romance, a partir da década de 1860, Teixeira e Sousa passou a ser lembrado predominantemente em função do papel que desempenhara na formação do romance brasileiro, o que se justifica se considerarmos que ele dedicou especial atenção às narrativas ficcionais (SILVA, 2012, p. 65). Observamos um autor cujos textos circularam entre leigos e críticos literários. Não menos interesse despertou O filho do pescador. Mesmo após a publicação em folhetim, a narrativa veio a público em reedições. Se levarmos em consideração o preço dos livros na época, uma reedição não pode passar despercebida. Em 1859, A Marmota publicou uma nota, informando aos leitores que O filho do pescador seria reeditado nos rodapés. Obviamente, levamos em consideração que poderia se tratar apenas de uma propaganda com o intuito de impulsionar a venda do produto jornal. No entanto, “[n]ão podemos desconsiderar as informações fornecidas pelo mesmo acerca da boa aceitação e da constante procura pelo romance, cuja primeira edição estava esgotada (SILVA, 2012, p. 67). Teria a crítica do século XIX observado o fazer literário de Teixeira e Sousa e o grande público que o consagrava, ou apenas levado em consideração se o referido autor se enquadrava nos padrões cultuados 248 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 como o certo, o modelar de então? Sobre isso, Silva nos informa que “[l]ogo após o término dos folhetins, o romance foi publicado em volume pela Tipografia de Paula Brito, atestando o êxito que obteve junto aos leitores” (SILVA, 2012, p. 66). Sob o olhar da crítica, temos a impressão de Santiago Nunes Ribeiro que, em 1844, publicou uma nota em tom elogioso, servindo para nos reafirmar que também a crítica foi favorável à narrativa O filho do pescador. Consideramos relevante transcrever a nota. Nesta obra quis o Sr. Teixeira e Sousa mostrar que a novela pode ser um gênero muito moral e que, por conseguinte, da leitura dos livros desta ordem, compostos segundo iguais princípios, não pode resultar o mal que vem desses mil romances imorais e corruptores que pululam na América e na Europa (RIBEIRO² apud SILVA, 2012, p. 66). Ressaltamos que em fevereiro de 1847, tendo já Teixeira e Sousa lançado seu segundo romance, As fatalidades de dois jovens, Paula Brito publicou no Jornal do Comércio, uma nota sobre Tardes de um pintor, ou intrigas de um jesuíta – terceiro romance – em que diz que o acolhimento favorável com que o público recebeu O filho do pescador e As fatalidades de dois jovens, do mesmo autor, nos fez lançar mão deste romance, que em maior escala é muito superior aos dois[...]3 (BRITO apud SILVA, 2012, p. 68). Observamos que houve aceitação dO filho do pescador assim que a narrativa veio a público. Ou, nas palavras de Paula Brito (1847), “acolhimento favorável”. Assim como a produção literária de Teixeira e Sousa não se findou com seu terceiro romance, as notas nos periódicos continuavam em tom elogioso sempre que se anunciava nova publicação ou reedição. Expressões como “o bem conhecido talento do autor”, “produções estimadas”, “satisfazer os desejos de todos os que se interessem por esta linda composição” são usadas nos periódicos para se referirem a Teixeira e Sousa. Claro que levamos em consideração que também se tratavam de propagandas para as publicações e, se estas 249 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 eram nos jornais, temos então uma estratégia para aumentar a vendagem. Entretanto, o que ressaltamos aqui não é o teor propagandístico dessas publicações elogiosas e sim a recorrência dessas mesmas publicações nos periódicos do séc. XIX. Esse ponto novamente nos remete a um autor conhecido, lido e discutido em seu contexto de produção. Nosso objetivo é trazer à discussão que Teixeira e Sousa foi um autor conhecido em sua época, embora não seja nosso objetivo aprofundar na modalidade da crítica feita então. Também Teixeira e Sousa não teve formação em Letras, mas foi conquistado por elas e seguiu seu coração. Sabemos que não havia uniformidade na opinião literária. Grande parte dos escritores da época desenvolviam atividades paralelas à escrita. Claro que, mesmo ainda em meados do século XIX, já se reconhecia o papel social do escritor. No entanto, como ressaltou Candido, não havia dedicação exclusiva por parte do escritor, não sendo possível lapidar com esmero suas criações. Tal situação, na qual também se encontra Teixeira e Sousa, trouxe como consequência uma espécie de literatura amadora, ou, nas palavras de Candido, “artesanal”. Nessa dialética de construção de sociedade da primeira metade do século XIX, buscamos primeiramente imitar a literatura europeia, negando o nosso fazer literário para enfim nos encontrarmos no que somos e produzimos. Acreditamos que buscar alcançar um objetivo maior, refletir sobre a escolha de um tema em detrimento de outro já seja um exercício de crítica, uma espécie de “amoldamento” do barro para se transformar em um objeto de arte ao gosto do freguês. Ainda a respeito desse momento, Candido diz que [d]esta verdadeira proclamação de independência literária (...) decorrem, do ponto de vista crítico, certos temas que serão os condutores no Romantismo: estabelecimento de uma genealogia literária, análise da capacidade criadora das raças 250 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 autóctones, aspectos locais como estímulos da inspiração. (CANDIDO, 2012, p. 639). Conforme citado, havia já na primeira metade do século XIX um constante questionar-se diante do fazer literário. Tornar-se um escritor reconhecido era o objetivo de quem escrevia; os jornais com seus folhetins conquistavam um público cada vez maior, o que alavancava as vendas e, de olho nesse mercado, os escritores considerados talentosos se viam disputados pelo mecenato, dentre eles, Teixeira e Sousa. Segundo José Ramos Tinhorão, [e]ssa popularidade dos folhetins de jornal, em um país e uma época em que a publicação de obras de ficção em livro – principalmente no caso de estreantes – constituía dificuldade bastante para desencorajar muitas vocações, constituiu por certo fator de estímulo ao aparecimento de toda uma nova geração de escritores (TINHORÃO, 1994, p. 39). De acordo com Afrânio Coutinho, [o] progresso geral do país durante a fase de permanência da Corte portuguesa (1808-1821), imediatamente seguida pela Independência (1822), teve indisputável expressão cultural e literária. O Rio de Janeiro tornou-se, além da sede do governo, a capital literária, e, com a liberdade de prelos, desencadeouse intenso movimento de imprensa por todo o país, em que se misturavam a literatura e a política numa feição bem típica da época (COUTINHO, 2004, p. 17). E se literatura é produção, o que foi produzido no Brasil nesse contexto teve não só reconhecimento do público a que se destinava, como também o direcionamento da crítica, mesmo sendo essa um esboço do que viria a ser. Examinando a ideia, não podemos deixar de mencionar os postulados de Antoine Compagnon. Para ele, [p]or crítica literária compreendo um discurso sobre as obras literárias que acentua a experiência da leitura, que descreve, interpreta, avalia o sentido e o efeito que as obras exercem sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores não necessariamente cultos nem profissionais. A crítica aprecia, 251 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 julga; procede por simpatia (ou antipatia), por identificação ou projeção: seu lugar ideal é o salão, do qual a imprensa é uma metamorfose, não a universidade; sua primeira forma de conversação (COMPAGNON, 2010, p. 21). Se a crítica literária pressupõe o texto, acreditamos então que um e outro caminhem juntos, alimentam-se dos mesmos nutrientes do terreno. O texto sendo o primeiro broto, amolda-se pela crítica, sendo esse outro broto um pouco mais novo, entretanto, ambos fazem parte de mudas com diferença mínima de idade, mas tão próximas uma da outra que chegam mesmo a se confundir como sendo partes de um mesmo galho. É de acordo com a recepção que o texto tem quando mais uma folha é lançada à luz do público que há de se comportar o andar da nova interpretação. Dessa forma, propomos como exercício esse pensar as coisas no seu tempo, analisar as relações e então apresentar um novo olhar sobre o pensado. Seria Teixeira e Sousa realmente um autor “menor”? De acordo com Veríssimo, Teixeira e Sousa [f]ora carpinteiro, tipógrafo, caixeiro, revisor de provas, guarda da alfândega, editor, mestre-escola e por fim escrivão no foro. Mas sobretudo foi, com mal empregada e malograda vocação, homem de letras. E não as tinha de todo más, pois compunha versos latinos e era lido nas literaturas modernas (VERÍSSIMO, 1981, p. 161). Percebemos em Teixeira e Sousa um autor que viveu em seu contexto, ligando-se aos literatos, trabalhando com palavras e dando vida a seus personagens. Crescendo também enquanto pessoa, amoldandose à sociedade, como um ramo que toma forma entre as brechas da corpulenta ramagem. Ainda segundo Veríssimo, Teixeira e Sousa “[e]ra porém, uma real vocação literária, desajudada embora de gênio e de cultura” (VERÍSSIMO, 1981, p. 161). Sendo a crítica nessa época ainda embrionária, no entanto real, Teixeira e Sousa também teve seu nome citado. Assim, pensamos que o fato de não ter passado despercebido – 252 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 apresentando falhas em sua escrita ou não – já faz com que nosso olhar para com esse autor não deva ser tão superficial assim. Ressaltamos que não foi nosso objetivo discordar da importância dos anos de 1870 no que diz respeito à crítica literária no Brasil, muito menos desconsiderar a grande contribuição a nós deixada por Silvio Romero, José Veríssimo, Araripe Júnior ou o próprio Antonio Candido. E é, justamente, por estas razões que O filho do pescador merece ser estudado, como um signo não transformado, mas que se está transformando um pensamento do século XIX. Afinal, a leitura pode abrir a mente para novos olhares e questionamentos. Então, qual a missão do escritor nos anos 1840? Como pensar Teixeira e Sousa nesse contexto se nos propusermos a refletir sobre a crítica tecida a respeito dele? De acordo com Coutinho, [u]m traço peculiar da concepção do homem de letras devida ao movimento romântico, e que logrou aceitação no Brasil, foi o da missão civilizadora do escritor, que, mago e profeta, estaria destinado a influir na marcha dos acontecimentos, graças à inspiração ou iluminação suprema. Cabia-lhe uma responsabilidade, uma vocação particular, um papel de reforma social e política, na condução da vida da comunidade, uma função educadora, moralizante, progressiva, a exercer junto aos contemporâneos (COUTINHO, 2004, p. 29). Interessante considerar que esse era também um fator de estímulo àqueles que queriam enveredar pelas letras. Alguns escritores ainda no início de carreira vislumbraram nessa oportunidade também uma ascensão social, ou, nas palavras de Tinhorão, [a]o lado desse fator de estímulo à popularização da literatura de ficção – e consequentemente de sua democratização, através do alargamento da área dos leitores para faixas mais amplas da população, em um tempo em que o interesse por literatura era quase privilégio de minorias – a cronologia do aparecimento de novelas e romances em capítulos de imprensa serve para comprovar um fato inesperado: o folhetim jamais deixou de ser cultivado desde seu aparecimento na década de 1830 no Brasil, chegando até à atualidade sem 253 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 interrupção em sua trajetória (TINHORÃO, 1994, p. 40). de mais de 150 anos Os textos eram escritos para um público definido, veiculados em folhetins, a grande sensação da época, de grande repercussão nacional. Fazer parte da lista dos mais lidos era o objetivo da maioria dos escritores que pretendiam fazer carreira nesse cenário e se viam disputados pelo mecenato. Assim, diante desse contexto de produção, talvez alguns autores não tenham recebido dos críticos a devida atenção e consideramos Teixeira e Sousa, tomando como ponto de partida seu livro O filho do pescador, um desses. Não se trata de classificá-lo como o precursor do Romantismo no Brasil e sim propor um outro olhar para o referido autor: agora como um folhetinista de sucesso. Há uma dicotomia entre algumas informações, principalmente sobre o autor ter obtido reconhecimento ou não. É possível que ele não tenha chegado ao patamar que desejou, no entanto, não podemos desconsiderar as publicações – propagandísticas ou não – nas quais o nome de Teixeira e Sousa figurou no século XIX e ainda hoje, século XXI. Retomando a discussão, Alfredo Bosi (1987) não situa Teixeira e Sousa no mesmo plano de Macedo, Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Bernardo Guimarães e Taunay. Considera que o modelo de Teixeira e Sousa é a subliteratura francesa. Silvio Romero (1953), em seus estudos acerca de Teixeira e Sousa, também critica os romances do autor, classificando-os como um “gênero pavoroso”. Já Candido (2012) considera Teixeira e Sousa como “gente honrada”, colocando-o ao lado de Magalhães, Norberto, Macedo e outros. Aclara que foi um grupo respeitável que conduziu o Romantismo para o conformismo, o decoro, a aceitação pública. Ainda segundo Candido, a qualidade literária da obra de Teixeira e Sousa é questionável, porém o considera como um autor de grande relevância histórica e um representante do folhetinesco do Romantismo, uma vez que, com efeito, 254 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 ele o representa “em todos os traços de forma e conteúdo, em todos os processos e convicções, ridículos, virtudes”. Na construção de seu texto, Teixeira e Sousa visou um público jovem, de homens e mulheres, trabalhadores e semi-letrados, que viam no folhetim uma fonte de entretenimento. Aqui está a razão de seu estilo de escrita. Como ele mesmo inicia sua narrativa, “Que tarefa!” (TEIXEIRA E SOUSA, 1997, p. 01), entendemos que o autor estava ciente de que teria um desafio pela frente e para o qual se entregaria a fim de alcançar reconhecimento. Tal estratégia do autor faz com que percebamos que escrevia para um público determinado, daí o estilo de escrita escolhido ser o romance-folhetim. Idas e vindas, reviravoltas na história, novas paixões. O folhetim fez sua parte e, apropriando-se do contexto histórico, trouxe à tona a liberdade de criação e do fazer literário com função comercial, tornando o autor alguém muito conhecido pela massa da época, tendo O filho do pescador chegado à quarta edição, logo após o término de sua publicação em folhetim. Teixeira e Sousa, ciente de seu contexto de produção, contribuiu para a formação de um início de cultura literária no país. Assim, merece que sua obra seja revisitada com mais atenção. NOTAS 1 Mestre em Literatura Brasileira (Unimontes/2015) – [email protected] 2 RIBEIRO, Santiago Nunes. “Um fragmento do poema romântico Três dias de um noivado, por A. G. Teixeira e Sousa” In: Minerva Brasiliense, Rio de Janeiro, 01/01/1844. 3 Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 19/02/1847. REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 3ª Ed. 8ª tiragem. São Paulo, Cultrix, 1987. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012. 255 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad. De Cleonice Paes Barreto Mourão & Consuelo Fortes Santiago. 2. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol. 1. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Global, 2004. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol. 3. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Global, 2004. ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Terceiro – Transição e Romantismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953, pp. 910 a 915. (1ª Ed. 1888). SILVA, Hebe Cristina da. Teixeira e Sousa entre seus contemporâneos – vida, obra, recepção e textos selecionados. Cabo Frio, RJ: Secretaria de Cultura de Cabo Frio, Prefeitura Municipal de Cabo Frio, 2012 SOUSA, Antônio Gonçalves Teixeira. O filho do pescador. Rio de Janeiro: Artium, 1997. TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetins no Brasil: 1830 à atualidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994 VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira, 1601 a Machado de Assis, 1908. Intr. De Heron de Alencar. 4ª Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. 256 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 AS MULHERES DE TIJUCOPAPO: O ORGANISMO TRÁGICO E O DISCURSO DA MEMÓRIA-TRAUMA DE RÍSIA Rafael da Silva Mendes RESUMO: No romance As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, a protagonista Rísia sai em jornada buscando a terra natal de sua mãe, Tijucopapo, enquanto rememora fatos, traumas e personagens do seu passado. No presente trabalho, defendemos a tese de que são incômodos físicos e enjoos que provocam a lembrança de sensações traumáticas e momentos trágicos em sua vida, especialmente relacionados às suas relações com sua mãe e com os homens. Ao mesmo tempo, se desenrola em Tijucopapo o princípio de uma revolução, deflagrada por um grupo de mulheres, que terá grande importância na verdadeira viagem narrada no romance: a jornada de Rísia para dentro (e para trás) de si mesma. Palavras-chave: Marilene Felinto; revolução feminina; introspecção; narrativas de viagem. ABSTRACT: In the novel Women of Tijucopapo, by Marilene Felinto, the protagonist Risia sets out on journey seeking the homeland of her mother, Tijucopapo, while recalls events, traumas and characters from her past. In this paper, we defend the thesis that the memory of traumatic feelings and tragic moments in her life, especially related to their relationship with their mother and with men, are brought by physical discomfort and sickness. At the same time, a revolution begins in Tijucopapo, triggered by a group of women who will have great importance in the real journey narrated in the novel: the journey of Risia inside herself. Keywords: Marilene Felinto; feminine revolution; introspection; travel narratives. 1. O fio do enredo desfiado As mulheres de Tijucopapo se anuncia como um romance de viagem, diário da busca da protagonista Rísia pela terra-natal de sua mãe. Ao menos é o que o leitor espera ao ler a breve sinopse comercial disponibilizada pela editora e divulgada nos sites das livrarias. O que o leitor encontra efetivamente é uma viagem, sim; uma busca, também; mas uma viagem da protagonista para dentro e para trás de si mesma; uma busca de autoconhecimento através de reflexões acerca de seus próprios sentimentos, atos e passado. 257 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Rísia sai de São Paulo para conhecer Tijucopapo, Pernambuco, onde teria nascido sua mãe, numa viagem que leva nove meses, mas o que há de relato de acontecimento nesta obra é mínimo; este é um livro de reflexões, e não de ações. Após vinte e oito capítulos de fluxo de pensamento e rememoração de eventos passados, somente no vigésimo nono Rísia narra algo que se refere à viagem presente: o encontro com um guerrilheiro chamado Lampião – e então descobre que havia uma revolução iniciada em Tijucopapo que desceria para São Paulo pela estrada. Como que para explicar por que há tão pouco acontecimento efetivo na obra, a protagonista revela, quase ao fim da narrativa: “De tanta impaciência de que um fato só pudesse ocorrer depois do outro, de tanto cansaço dessa espera, eu não mais me importava com que os fatos acontecessem ou não.” (FELINTO, 1982, p. 128). Esta atitude de Rísia enquanto personagem reflete e justifica suas opções enquanto narradora. 2. Organização estrutural da obra O romance em questão é uma obra fundamentalmente transgressora, e em diversos sentidos, começando pela traição do gênero “diário de viagem”, como salientamos. O próprio título já se apresenta como possível chave de leitura para a dimensão simbólica da obra. Apesar do discurso todo composto em primeira pessoa e de revelações muito íntimas da protagonista, a expressão “as mulheres de Tijucopapo” sugere uma perspectiva de afastamento de uma subjetividade singularizada, enfocando a terceira pessoa e num aspecto coletivo. Assim, o título confere enorme relevância a um grupo de mulheres que representa um ideal de força e resistência que Rísia almeja para sua própria existência. Corroborando esta ideia, há as evidências historiográficas de que tais mulheres existiram de fato. Marilene Felinto recupera um episódio histórico, ocorrido em um pequeno vilarejo em Pernambuco, no século 258 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 XVII, em que as mulheres se organizaram e lutaram sozinhas contra os invasores holandeses e os expulsaram. Conta o escritor pernambucano Lula Falcão: A luta foi desigual. Cerca de 600 holandeses e brasileiros aliados, fortemente armados, saíram da ilha de Itamaracá, em Pernambuco, para saquear a pequena aldeia de São Lourenço do Tejucopapo, hoje distrito de Goiana, a 63 km do Recife. No local, quase não havia homens para resistir ao ataque. Restava basicamente uma tropa maltrapilha de mulheres – a maioria agricultoras de origem indígena. Mesmo assim, naquele 24 de abril de 1646, travou-se ali uma batalha épica, de fortes contra fracos, que ganhou contornos de mito ao consagrar a vitória do improvisado exército feminino e a expulsão dos invasores. Maria Camarão, Maria Quitéria, Maria Clara e Joaquina estavam à frente desse combate. Elas e as companheiras recorreram às poucas armas que havia e a objetos rústicos, como estrovengas (roçadeiras), paus e chuços, uma espécie de lança para catar crustáceos. Tachos com água fervente e pimenta-malagueta esmagada em pilões foram especialmente preparados para a peleja. O alvo eram os olhos do inimigo. Desnorteados pela ardência da mistura e a dor das queimaduras, os soldados caíam estrebuchando nas roças ou na única rua do povoado de 500 habitantes (FALCÃO, 2012). A despeito de certas divergências historiográficas quanto à quantidade de invasores, estas mulheres se alçaram a um estatuto mítico, de forma que até hoje se comemora e se encena, em Goiana, a famosa batalha. Esta dimensão mítica se desdobra numa vasta dimensão simbólica e representativa. Falcão já explicita, em seu texto, as oposições “fracos x fortes”, “poucos x muitos”; registros históricos revelam que as próprias guerreiras de Tijucopapo se reconheciam na oposição “católicos x protestantes”, além de “invadidos x invasores”. Marilene Felinto, ao batizar as líderes revolucionárias de seu livro como “mulheres de Tijucopapo”, realiza a referência histórica, mas evidenciando as oposições “pobres x ricos”, “nordeste x sudeste”, “povo oprimido x autoridade opressora” e, principalmente: “mulheres x homens”. Diferente do episódio histórico, as mulheres no romance não se revoltam sozinhas contra homens, mas iniciam uma revolução e a lideram, arregimentando homens sob seu comando, para lutarem contra outros 259 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 homens – um modo de oposição mais consistente que o simples embate frontal. Ao fim da narrativa, reencontrando o amor em Lampião – que é referência direta à figura do cangaceiro símbolo da virilidade e da coragem masculinas no sertão – e inspirada pelo vigor das Mulheres de Tijucopapo, descobre: “Vim fazer a revolução que derrube [...] os culpados por todo o desamor que eu sofri e por toda a pobreza em que vivi.” (FELINTO, 1982, p. 133). O romance divide-se em trinta e três capítulos curtos, em que se expõem as reflexões da protagonista, baseadas em lembranças de sua vida particular, ativadas por emoções ou sensações muito íntimas, e expostas e reiteradas obsessivamente pelas repetições no discurso. Considerando o caminho de São Paulo a Tijucopapo, que Rísia trilha quase todo a pé, sozinha e silente, como quem paga promessa, enquanto ainda ardem as feridas de uma desilusão amorosa, pode-se dizer que esta é sua Via Crucis, alusão que confere relevância ao número de capítulos do livro. Da mesma forma, esta sua estrada fúnebre é também uma vereda de renovação; é um renascimento, levando-se em conta que dura nove meses. Apesar da justificativa da própria aparentemente desconexa de seu Rísia discurso, para que a estrutura apresentamos anteriormente, há estudiosos que ainda hoje insistem em criticar a transgressão da narratividade tradicional e linear realizada por Marilene Felinto como se isto fosse um defeito da autora. Um deles faz a seguinte consideração: “Romance? As mulheres de Tijucopapo compõe-se de muitos ingredientes que poderiam ter dado um romance, mas ficam espalhados de modo pouco orgânico ao longo do discurso de Rísia. O desfecho, principalmente, evidencia a falta de rumo do projeto narrativo” (PAULO, 2015). O que há, na verdade, é um projeto narrativo de rumo alternativo. A título de exemplificação, temos que, em certo momento do romance, a personagem sofre um ataque, cai de sua montaria e desmaia. Isto suscita 260 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 na narradora reflexões sobre a simbologia da queda e uma lembrança pontual de sua infância. Depois, revela: “Quando eu acordei eu já estava em Tijucopapo.” (FELINTO, 1982, p. 127). A ação relevante, portanto, já havia ocorrido, porém foi deliberadamente omitida: enquanta Rísia estava inconsciente, o grupo de Lampião lutou contra “os macacos” (as autoridades policiais) e a moça foi resgatada. Não se pode sequer argumentar que ela não narra esses eventos por estar desacordada, pois a Rísia narradora se destaca da Rísia personagem ao não interromper o discurso mesmo durante o desmaio – apenas optando por tecer reflexões e expor lembranças em vez de narrar. Esta espécie de literatura, mais preocupada com os dramas internos que com as tramas externas, não foi inventada por Felinto, é uma forma de expressão experimental já típica da modernidade e que há muito apresenta nomes de grande relevo, como James Joyce, Clarice Lispector e embrionariamente no Brasil, o próprio Machado de Assis. É já uma vertente própria, uma nova tradição estabelecida. Entretanto, como todo bom autor, Marilene Felinto imprime personalidade em sua obra – e particularidades em cada obra. Em As mulheres de Tijucopapo, se a progressão do texto não se dá pela continuidade de acontecimentos, encadeados pela lógica da causalidade, ela se dá pelo encadeamento de sensações e sentimentos de Rísia, que vêm à tona pela memória – o que chamaremos de “discurso da memóriatrauma”, suscitado pelo seu “organismo trágico”, que reage fisicamente às memórias traumáticas. 3. Rísia: corpo e discurso A organização do discurso de Rísia diz tanto sobre ela quanto seu próprio conteúdo. Da mesma forma, suas ações e reações físicas e orgânicas se relacionam intimamente às suas reflexões e de maneira indissociável. Os atos e pensamentos obsessivos de Rísia se fundamentam em situações traumáticas da infância e se perpetuam na 261 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 vida através do discurso, da repetição, e todos são expostos e justificados em flashbacks, que dominam a narrativa junto com as reflexões acerca dos acontecimentos e dos personagens do passado. 3.1. O organismo trágico Afirma o psicólogo José Henrique Volpi, a partir dos trabalhos de Wilhelm Reich: Descartes, no século XVIII, dizia que as funções mentais eram separadas do corpo, [...] Hoje não é novidade alguma que os estados psíquicos como estresse, depressão, ansiedade, medo, raiva, etc, favorecem o desenvolvimento e/ou a manifestação de doenças orgânicas como úlceras, colites, problemas cardíacos, alergias, doenças da pele e até mesmo o câncer (VOLPI, 2005, p. 1). Esta interferência mútua entre corpo e mente configura o conceito reichiano de “somatização”, e pauta toda a trajetória de Rísia, radicalizada em dimensões verdadeiramente trágicas. Tanto pelos acontecimento em si quanto pelas reações muito e sempre passionais da personagem, além das reações incômodas e incontroláveis de seu corpo; dentro e fora, Rísia é explosiva. As situações trágicas e traumáticas por que passa Rísia não raro a levam a um estado de mal estar físico, chegando ao extremo da ânsia de vômito ou ao próprio vômito. Seu nome já constitui uma ironia trágica – e ligada a um aspecto físico do corpo humano – pela semelhança com o vocábulo “riso”, relação insinuada a certa altura da narrativa: “Quando você morreu eu vou buscar, em todas as fotos de antes, os meus sorrisos. Não terei mais risos?” (FELINTO, 1982, p. 61). Os elementos trágicos, às vezes, são dados banais, que se transmutam em experiência traumática devido à força com que a distância temporal da felicidade golpeia a protagonista: “Sempre tia trazia um doce, um salgado, dos lanches do avião. Dos lanches do avião... Pois uma vez, eu jantava no avião indo em viagem para Recife e me lembrei assim de 262 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 tia e de eu menina e as lágrimas caíram em bagas e ensoparam os pãezinhos do meu jantar e eu solucei tanto que quase vomitei.” (FELINTO, 1982, p. 34). Em outras ocasiões, uma questão moral traz a lembrança de outras, tão ou mais graves e profundas, em geral ligadas à sua família – que é também, de certo modo, um organismo, por seus laços indesatáveis e pela inevitável influência da vida de um membro sobre a de outro. Assim ocorre quando Rísia escuta de uma mulher que a tem por confidente sobre seu caso com um homem casado: Eu me agachara a pegar algo no chão quando ela entra e passa por mim: - ‘Ontem dormi com ele’, num sussurro. Eu levantei devagar o meu rosto para o rosto dela era um rosto em culpa e em cheiro de porra. Eu disse cheiro de porra e mistura do mênstruo marrom que devia ser o daquela mulher. Eu disse um cheiro imundo. Eu disse: as mulheres de meu pai! As mulheres de meu pai! E saí em disparada para o banheiro e vomitei quase até as tripas. Deve haver algo de ultra sensível no meu estômago. Pois não pude olhar mais na cara daquela mulher durante dias (FELINTO, 1982, p. 16-7). Todo seu sofrimento lhe dói com tanta força que se reflete em sofrimento físico, martírio; Paixão. Como já indicamos, sua Via Crucis transcorre justamente por trinta e três capítulos, e “este é um livro bíblico porque interroga a origem da culpa” (CHAUÍ, 1982, p. 10), para Marilena Chauí, mas Rísia busca a remissão de si mesma, apenas. Se Cristo se sacrifica em prol da salvação do povo, Rísia encontra no povo, nas mulheres de Tijucopapo, a força para sua própria redenção. 3.2. A memória-trauma Rísia revela, no decorrer da narrativa, uma série de eventos traumáticos de sua infância, que retornam incessantemente em outras ocasiões de sua vida, como comer um lanche de avião a faz lembrar da tia e a entristece. Este é um exemplo do quão recorrente é a rememoração destes eventos a partir de uma sensação ou sentimento, e de como isso devasta internamente a protagonista. 263 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Volpi classifica a memória em dois tipos: “a memória intelectual, localizada na mente; a memória sensorial, localizada no corpo” (VOLPI, 2004, p. 1). Neste estudo, estamos nos baseando na noção da memória sensorial, mas reelaboramos o conceito, cunhando “memória-trauma”, na intenção de transpor o conhecimento da Psicologia para um contexto literário específico, não subsidiário de outros saberes científicos, que lhe são apenas acessórios, de modo a não realizar uma leitura senão literária do texto. A “memória-trauma” é, neste sentido, a forma específica de a personagem Rísia se relacionar traumaticamente com o mundo que a circunda. Esta reação se intimiza com a ideia reichiana de que “o conflito psíquico possui um equivalente somático, uma couraça muscular. O homem é afetado por seu corpo, mesmo quando os problemas pertencem à esfera do psíquico” (VOLPI, 2004, p. 6). O que espanta em Rísia é o caráter imediato e recorrente de tal processo, o que se evidencia através dos muitos episódios descritos no romance Dentre estes, há o trauma do natal. A narradora relata: Estou indo de volta para Tijucopapo, vou passar por onde eu estava em 1964. Eu chorei como nunca em 1964, Natal. Nossa árvore de natal era o esforço de mamãe para nos dar um Natal. Já que papai tinha outras mulheres e não se interessava por nós. Papai tinha outras mulheres. Papai não se interessava por nós (FELINTO, 1982, p. 20). Enquanto a passagem por um determinado local causa um incômodo que remete ao natal de 1964, transportando a narrativa automática e imediatamente ao flashback, a repetição do discurso reitera o caráter traumático daquela ocasião e aprofunda sua dimensão trágica, engrandecendo o efeito das traições do pai na menina Rísia. “Sei que sou uma pessoa atacada por lembranças atormentadoras”, (FELINTO, 1982, p. 37), ela reconhece, a certa altura. 264 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Em outro momento, no flashback referente ao natal de 1964, Rísia narra o ocorrido e explica esse trauma: Às dez horas eu me pus em pensamentos de mamãe em perigo. E se desse meia-noite e mamãe não tivesse vindo? [...] Eu chorei como nunca. Eu berrei em soluços. Eu chorei como o quê. [...] Mamãe desceu do ônibus eram dez e meia. [...] Ela vinha calma e vagarosa. Eu sequei as lágrimas envergonhada. Pois eu sabia, mamãe me olharia como não me olhou, me abraçaria como não me abraçou. [...] Mamãe nunca me abraçava (FELINTO, 1982, p. 24-5). Através desta explicação, Rísia chega ao seu trauma fundamental: os não-abraços; o desamor. A razão de Rísia ser infeliz e de ter sido má com uma colega de escola, Luciana, que apenas desejava sua amizade. A Rísia narradora reconhece as falhas da Rísia narrada e confessa: “Eu queria era descontar em Luciana o que tinham me feito em não me abraçar, mamãe, papai, Lita” (FELINTO, 1982, p. 29). Dessa forma, corrobora a influência de todos os membros que participam de sua existência (familiar/social ou orgânica/biológica) para suas tragédias íntimas. 4. Considerações finais Segundo os estudos de Volpi, “não existe uma área específica do cérebro ou do corpo em que a memória fica armazenada. Ela é um fenômeno celular, biológico e psicológico que envolve vários sistemas neuropsicofisiológicos que funcionam em conjunto.” (VOLPI, 2004, p. 1). Dessa forma, se justificam a integração entre o corpo e a mente de Rísia – que se concretiza no discurso literário. Devido mesmo à sua função de narradora, que a distância da condição de narratária e de todas as sensações imediatas que a elas se relacionam, Rísia demonstra excelente memória intelectual, sendo capaz de recuperar diversos episódios de sua infância em detalhes. Mesmo que sua memória intelectual bloqueasse essas lembranças, devido ao seu 265 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 caráter traumático (que parece, na verdade, ativar esta memória), sua memória sensorial lembraria. Ainda de acordo com Volpi, “o corpo não esquece. Tudo o que foi vivido durante a infância, através de sensações, permanece registrado. A somatização é uma forma de comunicação desses registros ancorados no corpo” (VOLPI, 2004, p. 8). REFERÊNCIAS CHAUÍ, Marilena. “Prefácio”. In: FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. FALCÃO, Lula. “As mulheres que defenderam Pernambuco dos holandeses”. In: Guia do Estudante, 2012. Disponível em: <http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/mulheresdefenderam-pernambuco-holandeses-678267.shtml>. Acesso em: 01 out. 2015. PAULO, Eloésio. “As mulheres de Tijucopapo”. In: Revista Pessoa, 2015. Disponível em: <http://www.revistapessoa.com/2015/03/as-mulheres-detijucopapo/>. Acesso em: 01 out. 2015. VOLPI, José Henrique. Somatização: a memória emocional ancorada no corpo. Curitiba: Centro Reichiano, 2004. Disponível em: <www.centroreichiano.com.br/artigos>. Acesso em: 01 out. 2015. VOLPI, José Henrique. Quando o corpo somatiza os conflitos da mente. Curitiba: Centro Reichiano, 2005. Disponível em: <www.centroreichiano.com.br/artigos>. Acesso em: 01 out. 2015. 266 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 AS FACETAS EM BÁRBARA DE MURILO RUBIÃO Priscilla Neves RESUMO: O objetivo deste artigo é fazer um comentário do conto “Bárbara”, de Murilo Rubião. Pretende-se mostrar como o fantástico aparece no conto e a falta de hesitação dos personagens diante dessas situações, bem como os aspectos, que tornam Barbara retrato de uma sociedade individual e consumista. Palavras-chave: Murilo Rubião. Bárbara. Literatura Fantástica. ABSTRACT: The purpose of this article is to make a review of the story "Bárbara", Murilo Rubião. It is intended to show how the fantastic appears in the short story and lack of hesitation of the characters in such situations, as well as aspects that make Barbara portrait of an individual and consumerist society. Keywords: Murilo Rubião. Bárbara. Fantastic Literature. INTRODUÇÃO Murilo Rubião, nascido em Carmo de Minas começou sua produção literária muito jovem. Embora tenha cursado direito e iniciado carreira em jornalismo, seu verdadeiro envolvimento foi com a literatura, fato que começou desde cedo, uma vez que seu pai e avô também eram escritores, o que possibilitou contato com clássicos da literatura mundial e a Bíblia na biblioteca de seu pai. Sua vida profissional ultrapassa o jornalismo e literatura, pois também foi funcionário público. Assim dos seus trabalhos, alguns mais burocráticos que os outros, podemos destacar como relevante o de chefe de gabinete de Juscelino Kubistschek. Pautado em uma linguagem repleta de fantástico, seus contos podem causar estranheza, uma vez que a realidade e a fantasia caminham juntas, ato que nem sempre ocorre na literatura no Brasil. Murilo Rubião escreveu aproximadamente cinquenta e três contos, e trinta e três deles foram escolhidos para seus livros. Nesse elenco, temos “Bárbara”, que foi publicado no Rio de Janeiro em 1965. Um conto que se inicia com a epígrafe bíblica: “O homem que se extraviar do caminho da doutrina terá por morada a assembleia dos gigantes.” (Provérbios, XXI, 267 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 16). Embora o trecho apontado, seja retirado da bíblia, não tem como provar se há ligação cristã, mas talvez uma forma simbólica de mostrar o tema a ser abordado no conto. Porém, se o leitor não for atento, essa ligação pode não ser percebida. Rubião mostra que a criação literária também se faz a partir de diálogos com diferentes textos. Nesse contexto, os contos de Murilo Rubião apresentam temáticas interessantes e que ajudam refletir assuntos de interesse social, ao mesmo tempo em que nos transporta para a fantasia. DESENVOLVIMENTO 1. “Bárbara” O conto “Bárbara” pode ser visto como uma metáfora repleta de significações para as questões humanas. O fantástico é representado por personagens incomuns que exemplificam e ajudam na abordagem da temática de consumismo, como afirmação do ser humano. Para Tzevetan Todorov, o sentido real da fantasia, está na falta de explicação racional. Assim, o fato do conto transparecer emoção, mesmo com algo que seja impossível de vermos, pode ser uma oportunidade de conhecermos o fantástico. “A fé absoluta, com a incredibilidade total, nos levam para fora do fantástico, é a hesitação que lhe dá vida” (TODOROV, 2004, p.36). Ou seja, o leitor hesita com o personagem uma situação inexistente ao mundo real. Os contos de Murilo Rubião destacam-se por seus personagens ímpares, criados intencionalmente, tal característica faz de seus leitores, os próprios personagens. Em Bárbara, a narrativa passa em 1° pessoa, e imediatamente, somos despertados aos sentimentos do personagem, ora defendendo-o, ora contradizendo-o. Somos o personagem-narrador, que mesmo insatisfeito de sua situação de mero companheiro não cansa de satisfazer os desejos da amada. É o próprio absurdo, citado pelo personagem, que caracteriza o fantástico em 268 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Bárbara. Acredita-se ser intencional a colocação da personagem, pois é o leitor que se inquieta e espera que ao final, Barbara se satisfaça inteiramente ou que seus desejos diminuam de complexidade. Barbara é o retrato de uma sociedade consumista, mais capitalista e menos solidária; já seu marido, é a imagem do sujeito conformista, aquele que se cala para não sofrer as consequências das atitudes de Barbara e também de si mesmo. Uma história de uma mulher movida a pedidos, os quais eram satisfeitos por seu marido, como se nota no fragmento a seguir: Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava. Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente. Não os retive todos na memória, preocupado em acompanhar o crescimento do seu corpo, se avolumando à medida que ampliava sua ambição. Se ao menos ela desviasse para mim parte do carinho dispensado às coisas que eu lhe dava, ou não engordasse tanto, pouco me teriam importado os sacrifícios que fiz para lhe contentar a mórbida mania. (RUBIÃO, 2010, p.27). A partir desse trecho, podemos perceber como Bárbara é individualista, uma vez que suas vontades, embora sem utilidades, era a única coisa que a interessava. Evidente ainda, a forma como seu marido se sentia preso às vontades da esposa, uma situação de causa e efeito: Pedir e engordar. Se seus desejos eram realizados ela engorda, se isso não ocorresse, ela definhava. Percebe-se uma grande desarmonia entre o casal, uma vez que há grandes diferenças de sentimentos dele em relação aos dela. Ela dificilmente demonstra algum tipo de ternura por ele. Contudo, essa estranha relação não sofreu mudanças desde quando eram namorados, pois ele sempre tentava atender aos pedidos de Bárbara, mesmo se essa situação causasse sofrimento a ele, e satisfação somente a ela; 269 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Bárbara era menina franzina e não fazia mal que adquirisse formas mais amplas. Assim pensando, muito tombo levei subindo em árvores, onde os olhos ávidos da minha companheira descobriam frutas sem sabor ou ninhos de passarinhos. Apanhei também algumas surras de meninos aos quais era obrigado a agredir unicamente para realizar um desejo de Bárbara. E se retornava com o rosto ferido, maior se lhe tornava o contentamento. Segurava-me a cabeça entre as mãos e sentia se feliz em acariciar-me a face intumescida, como se as equimoses fossem um presente que eu lhe tivesse dado. (RUBIÃO, 2010, p.27). Uma relação marcada pelo prazer em ver o outro sofrer, já que ela não importa em vê-lo se desdobrar para realizar suas vontades, ao passo que ele, mesmo se prejudicando atende aos seus anseios. Com o passar do tempo, os pedidos de Bárbara vão ficando cada vez mais caros e difíceis de serem realizados. O seu tamanho e peso também aumenta. Ela não se relaciona com o mundo que a cerca, não tem contato algum com sua família, pois sua atenção é destinada a um novo pedido e esquece-se das pessoas e de qualquer outra coisa. Uma vez, seu marido pensou em não realizar mais seus pedidos, ameaçou separar, mas ela logo ficou triste e angustiada. Ao descobrir que ela estava grávida, ficou preocupado e implorou que ela pedisse algo; Ingênuas esperanças fizeram –me acreditar que o nascimento da criança eliminasse de vez as estranhas manias de Bárbara. E suspeitando que a sua magreza e palidez fossem prenúncio de grave moléstia, tive medo de que, adoecendo, lhe morresse o filho no ventre. Antes que tal acontecesse, lhe implorei que pedisse algo. (RUBIÃO, 2010, p.28) Nem a maternidade faz com que Bárbara demonstre sentimentos; como se o fato de ser mãe não alterasse nada em sua vida. O bebê nasce raquítico e ela se recusa a alimentá-lo. “Enquanto ele chorava por alimento, ela se negava entregar-lhe os seios volumosos e cheios de leite.” (RUBIÃO, 2010, p. 29). A narrativa segue com Bárbara sempre pedindo algo e o marido se esforçando para realizar as suas vontades, que cada vez se 270 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 tornam mais difíceis. Um dia pediu o oceano, depois um baobá. Esse pedido a deixou muito feliz. Fato que permitiu transparecer por parte dela uma pequena amostra de carinho ao esposo; Feliz e saltitante lembrando uma colegial, Bárbara passava as horas passeando sobre o grosso tronco. Nele também desenhava figuras, escrevia nomes. Encontrei o meu debaixo de um coração, o que muito me comoveu. Esse foi, no entanto, o único gesto de carinho que dela recebi. (RUBIÃO, 2010, p.30) Porém, o baobá murchou e as folhas e ficaram secas. Logo se desinteressou pela árvore. Como estava muito gorda, houve uma tentativa de levá-la ao cinema, a campos de futebol a fim de desviar sua atenção, mas nada adiantava. Ela estava terrivelmente gorda e como sempre alheia ao marido e ao filho. Assim, Bárbara representa o consumismo exacerbado que a desumaniza. Esse fato fica evidente a prática de Murilo Rubião de usar o irreal para criticar o sentido vazio da vida, a vaidade e o consumismo desenfreado. Embora esse recurso não cause estranheza para os personagens, geralmente para os leitores é motivo de espanto. Conforme Hermenegildo Bastos, no artigo Do insólito ao espectral em “Ofélia, meu cachimbo e o mar”; O fantástico é o gênero mais limitado por normas, mais do que o realismo no sentido restrito de estilo de época. Os traços que o caracterizam são obrigatórios, não podendo, pois, faltar. Entre esses traços, aquele que Todorov chamou de hesitação (1970, p. 175): o leitor e, às vezes os personagens não sabem se os acontecimentos são reais ou não. O fantástico deve, portanto, diferenciar-se do realismo. A diferenciação não se consegue sem um rigoroso conjunto de normas. (BASTOS, 2001, p. 98). Nem a diversidade de desejos realizados seria suficiente para deixar Bárbara feliz. Pelo contrário, servem apenas para engordar e almejar mais e mais pedidos. Percebemos assim, o insólito no físico e no psicológico de Bárbara, ela não demonstra vontade de ser uma pessoa normal, pois mesmo tendo consciência que seu corpo aumentava com 271 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 cada pedido, ela não controlava seus anseios. Esse fato causa espanto nos leitores, pois a metamorfose vivenciada pela personagem, não coincide com nenhuma realidade humana. Qualquer pessoa obesa e que gosta de viver normalmente, naturalmente tenha vontade de si cuidar, até mesmo por problemas de saúde. Apesar de seus anseios serem parecidos como ferramentas para fuga em busca de felicidade momentânea, uma vez que seus desejos geralmente são inúteis. O último pedido, porém foi diferente: “Mas, a cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porem uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la” (Rubião, 2010, p. 32). A atitude dela em pedir uma estrela e ele ir buscar (ação absurdo), mostra como o fantástico pode ser simbólico, uma vez que desejar uma estrela pode ser visto como algo sublime, além do real, mas de grande significado. O fato de Bárbara querer ter uma estrela, algo humanamente impossível de se conseguir, pode revelar uma busca por uma felicidade impossível de se alcançar. Um gesto de desespero, pois como ela já havia pedido coisas difíceis, porém mais alcançáveis, demonstra que a procura da felicidade para ela está ligada ao possuir, quando ela consegue, ela perde o interesse porque ela não descobre essa alegria sonhada. O fato de uma pessoa ter tudo o que almeja, não significa felicidade. Sentimento, que pode estar além de se possuir tudo. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir desse breve estudo, foi possível perceber que o fantástico no conto Bárbara, de Murilo Rubião, aproxima o leitor da obra, pois a falta de estranheza dos personagens seduz e intriga o mesmo, já que o conto aborda situações humanamente impossíveis. O fantástico propagado no conto, além de causar espanto, serve de reflexão e nos permite contato com o lúdico, mas sem nos tirar a capacidade de refletir temas importantes como: consumismo, valores familiares e o amor. 272 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 REFERÊNCIAS BASTOS, Hermenegildo José. Literatura e Colonialismo: Rotas de navegação e comércio no fantástico de Murilo Rubião. Brasília: Editora Universidade de Brasília: Plano Editora: Oficina Editorial do Instituto de Letras-UnB, 2001. RUBIÃO, Murilo. Obra Completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. TODOROV, Tzevetan. Introdução à literatura fantástica. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. 273 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 SAINDO DO ESPAÇO DA REPRESENTAÇÃO: A CRISE CONTEMPORÂNEA NA LITERATURA DE SÉRGIO SANT’ANNA Sarita Erthal55 RESUMO: Este artigo pretende abordar a escrita de Sérgio Sant’anna a partir do conflito entre a modernidade e da crise da representação. “Saindo do espaço do conto”, integrante da coletânea O voo da madrugada, estará no centro deste debate. Em uma escrita que extrapola os padrões tradicionais do conto, o autor anuncia que o espaço literário/imaginário a ser desenvolvido é outro: o da dramaturgia. Esse texto traz em seu cerne um jogo textual cujo pano de fundo se volta para uma das grandes preocupações da humanidade: a vida após a morte. A literatura contemporânea, em sua nova vertente do realismo, tende a mostrar em vez de relatar. Nesse sentido, o estudo em questão objetiva analisar o modo com que Sérgio Sant’anna concentra, em suas narrativas, junto com o humor, com a ironia e com o finíssimo pastiche, a discussão sobre a representação. Palavras-chave: Sérgio Sant’anna; pós-modernidade; representação ABSTRACT: This article is a study of the conflict between modernity and the crisis of representation at Sergio Sant'anna’s writing. "Saindo do espaço do conto", part of the collection O voo da madrugada, will be at the center of this debate. In a writing that goes beyond the traditional standards of the short story, the author announces that the literary space / imaginary being developed is another: the drama. Contemporary literature in its new strand of realism, tends to show rather than tell. In this sense, the study in question aims to analyze the way in which Sergio Sant'anna focuses on their narratives, along with the humor, the irony and the fine pastiche, the discussion of the representation. Key-words: Sérgio Sant’anna; post-modernity; representation Sérgio Sant’anna concentra em suas narrativas, junto com o humor, com a ironia e com o finíssimo pastiche, a discussão sobre a representação. A realidade contemporânea é, então, pano de fundo para a tentativa de o autor dominá-la por meio da linguagem, fato que justifica o valor da literatura frente à filosofia, conforme os princípios de Rorty (in LOBO, 2001). Não há, com isso, como deixar de estabelecer uma relação entre a modernidade e a crise da representação: (...) o autor do texto moderno é aquele que, independente de uma camisa de força cronológica, leva para o princípio de composição, e não apenas de expressão, um descompasso entre a realidade e sua representação, exigindo, assim, reformulação e rupturas dos modelos “realistas”. Neste sentido, 55 Professora de literatura e produção textual em Campos dos Goytacazes – RJ. Mestra em Cognição e Linguagem pela UENF – Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro E-mail: [email protected] 274 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 o que se põe em xeque é não a realidade como matéria da literatura mas a maneira de articulá-las no espaço da linguagem que é o espaço/tempo do texto. (BARBOSA, 1990, p. 120). A saturação de informações, típica do mundo pós-moderno, não é mote para Sérgio Sant’anna. Superficialmente, o autor trata de temas cotidianos, no entanto, em profundidade, há outro nível de elaboração. A violência, a ruptura de raízes, a alienação, a impessoalidade, o empobrecimento da experiência e dos vínculos culturais afetivos, tais quais nos apresenta Eagleton (1998), dissolvem-se em uma linguagem pautada na imaginação. É perceptível a crise da narrabilidade da experiência, conforme os preceitos de Walter Benjamin (1994), em um contexto cultural no qual narrar experiências torna-se impossível. É, portanto, por meio da imaginação que Sant’anna consegue fugir dos clichês pós-modernos sem deixar de lado o compromisso com a arte literária. O mimetismo, como procedimento do romancista, é derivado da curiosidade (BENJAMIN, 1994, p. 43). Cabe, à observação meticulosa, o modo com o qual os pormenores e as intimidades do mundo a ser narrado serão transfigurados para o texto. Para que haja uma correlação entre as semelhanças é preciso que exista entre elas uma conformidade para, então, elucidar no receptor alguma correspondência. No entanto, conforme Benjamin (1994, p. 109): Nem as forças miméticas nem as coisas miméticas, seu objeto, permaneceram as mesmas no curso do tempo; que com a passagem dos séculos a energia mimética, e com ela o dom da apreensão mimética, abandonou certos espaços, talvez ocupando outros. Talvez não seja temerário supor que exista uma direção essencialmente unitária no desenvolvimento histórico dessa faculdade mimética. O processo mimético – filogenético – ao qual se refere Benjamin (1994) inunda o texto fictício com semelhanças de cenas do dia a dia num caráter subjetivo entre texto e autor. Se, para Bakhtin (1997, p. 41), a palavra está em todo ato ideológico, mesmo que os signos não sejam 275 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 expressos ou constituídos por elas – como em uma música, uma pintura ou um gesto – elas os apoiam e os acompanham; pela interação social e pelo diálogo, a palavra se precisa e se modifica. Linda Hutcheon (2000) retoma Wittgenstein para dizer que “as palavras expandem seus significados ao longo de extensos períodos de uso em contextos diferentes e específicos”. Com isso, Hutcheon acredita que é necessário levar em consideração o efeito cognitivo quando o objetivo é analisar a ironia. O conceito de ironia é aberto à multiplicidade: por se estruturar em relação a uma diferença, falta um referente, mesmo que semelhante para que o número de significantes seja restrito. Com relação à escrita de Sérgio Sant’anna, a ironia é uma atitude intelectual na qual “o ironista fica sempre no topo, e o interpretador que compreende (atribui) não fica muito abaixo, quer na ironia retórica, quer na romântica” (HUTCHEON, 2000, p. 886). É como se “grupos fechados” fossem criados em prol de uma linguagem enigmática sobre a qual só teriam acesso a seu significado aqueles que tivessem a chave. Ainda se, de acordo com Wittgenstein, um conceito só pode ser desenvolvido quando somos inseridos em uma linguagem que o designe, instaura-se, então, a crise do sujeito em consequência da própria crise da representação. A representação, usualmente atribuída ao uso das perspectivas que se relacionam ou interagem mutuamente, demanda presunção por parte do emissor e receptor. Acaba por ser, então, carregada de um cinismo comedido pelo próprio desgaste das imagens existentes no mundo. “Saindo do espaço do conto”, texto integrante da coletânea O voo da madrugada, de Sérgio Sant’anna (2007, p. 557), traz em seu cerne um jogo textual cujo pano de fundo se volta para uma das grandes preocupações da humanidade: a vida após a morte. Em uma escrita que extrapola os padrões tradicionais do conto, Sant’anna anuncia que o espaço literário/imaginário a ser desenvolvido é outro: o da dramaturgia. Dramaturgia, porém, com as fronteiras entre o real e o fictício diluídas por 276 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 fazer emergir não só a linguagem representada pela palavra, mas o próprio “corpo-pergaminho”, como se o enredo a ser dissertado se presentificasse inteiro na verdadeira existência humana. O que Sant’anna “tira” do espaço do conto, materializa-se no imaginário do leitor como uma cena em construção. Em apenas três parágrafos, diversas imagens são sugeridas em torno de um “jovem dramaturgo arruinado pela peste hodierna”. A partir do título, Sant’anna supõe estar saindo do território ficcional, “do espaço do conto”, para se voltar para os dramas subjetivos desse jovem. A forma nominal do verbo sair, no gerúndio, indica que tal saída não se concretizara, e que está, ainda, no decorrer de sua performance: a simulação se transformando em simulacro. Simulando a saída do espaço do conto, entra-se no gênero dramático, cujo enredo é vivido pela personagem protagonista. O drama, enquanto gênero e enquanto modo de vida, figura não no palco teatral, mas no próprio teatro da vida: a escrita está “encravada no corpopergaminho” (SANT’ANNA, 2007, p. 557). Ainda assim, ficcionalizar não é mais possível, quer dizer, não é apenas o real que é ficcionalizado, mas a própria ficção. A simulação da ação ocorre a todo momento: “[...] acostumado a ver a vida como se ela se passasse num palco, mesmo a sua tragédia pessoal, o jovem hospitalizado instala um outro jovem, que o representa, no balcão daquele bar, e que pergunta ao barman [...] se ele acredita em Deus” (SANT’ANNA, 2007, p. 557-558). O jovem é um sujeito cindido, de identidade fragmentada, “compelido a sacrificar sua verdade e identidade em nome da pluralidade, a que passam a chamar ilusoriamente de liberdade” (EAGLETON, 1998, p. 49). Para Eagleton, esse fato é consequência da falta de alicerces no mundo, o que o torna “arbitrário, contingente e aleatório”. O sujeito é fundamentado pela própria falta de fundamento: sua liberdade não decorre de sua indeterminação, mas precisamente porque ele se define por um processo de indeterminação (EAGLETON, 1998, p. 49). 277 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Com a crise da representação, o sujeito cindido é impossibilitado de historiografar. Sua identidade é aberta, contraditória, inacabada e fragmentada. Esse homem é levado pelas contingências. Não existe aquele que busca a verdade e a transcendência. Não há motivos para transcender. Há apenas a possibilidade de encerrar o vagar daquele corpo-pergaminho pela vida e tentar descobrir se ela realmente existe após a morte. O narrador de “Saindo do espaço do conto” é onisciente, crítico e descrente neste mundo corrompido. Põe em pauta um homem com as características esquizofrênicas inerentes à contemporaneidade, aliadas às alucinações e aos delírios causados pela morfina. É nítida a sensação de decadência da personagem, acostumada a ver a vida ilusoriamente, “como se ela se passasse num palco”. Seu estado de perecimento percorre toda a narrativa, desde os aspectos físico e emocional do jovem até os elementos melancólicos que configuram o espaço narrativo: [...] mente, em devaneios de morfina, antevê germes saídos desse corpo metamorfoseados numa orquídea sobrevoada por uma borboleta; antevê, ainda, sua carne e espírito exumados em fogos fátuos que são como os neons da noite, formando afrescos angelicalmente sensuais, e o letreiro verde e vermelho de um bar chamado A Mariposa, com a figura azul e amarela do inseto batendo em movimentos tripartidos as suas asas e, lá dentro, um homem com um bandoneon que toca um tango lento dançado por dois casais na pista, [...] uma moça sentada à mesa do computador [...] envia um poema para alguém em outro canto do mundo; [...] fregueses no balcão pensam ou trocam impressões sobre suas experiências pessoais, amores, solidão, a doce melancolia daquele tango e Deus. (SANT’ANNA, 2007, p. 557) A escrita pós-moderna de Sérgio Sant’anna é evidenciada em “Saindo do espaço do conto” justamente por não haver, nesse texto, a narração tradicional de um conto. O primeiro parágrafo localiza o leitor como se ele estivesse lendo um roteiro ou as indicações de uma cena em construção. No segundo, continuando com as sugestões de algo inacabado, o narrador atribui à personagem a possibilidade de interpretar uma outra: “o jovem hospitalizado instala um outro jovem, que o 278 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 representa, no balcão daquele bar”. As personas se fundem, e o jovem do balcão – o representado pelo imaginário do hospitalizado – passa a figurar como o protagonista da cena. É ele quem observa a mistura dos coquetéis do barman enquanto questiona-o sobre a existência de Deus. No terceiro e último parágrafo do conto, o jovem é localizado, novamente, no hospital. Pensa em seu gato morto há dois anos, o qual figuraria na peça que ele escreveria caso houvesse tempo. Ao protagonista da peça, seriam emprestadas as características do dramaturgo hospitalizado: suas inquietações, seus sentimentos e suas angústias sobre o vírus e a morte. O objetivo do rapaz é transmitir ao público seu drama real, por meio de estímulos concretos: “O público seria posto em sintonia com esses estímulos concretos, que adquiririam um peso maior por se saber que o personagem trafegava na rota da morte”. O gato, já habituado ao cenário, agiria naturalmente em cena, contribuindo para o alcance da veracidade almejada. O conto é dessacralizado. Se, inicialmente, tem-se a impressão de que algo será narrado sobre um jovem hospitalizado, com o decorrer do texto, a escrita se desterritorializa, torna-se simulacro em função da crise da representação e do sujeito. A solidão e o niilismo se fazem presentes em uma trama desvinculada de origens espaciais e temporais. A desorganização temporal é entendida por Fredric Jameson (2007) sob a luz da exposição lacaniana acerca da esquizofrenia. Ele ressalta, porém, que o termo não deve ser tomado pela concepção clínica, mas pela ruptura da cadeia de significação: O que geralmente chamamos de significado – o sentido ou o conteúdo conceitual de uma enunciação – é agora visto como um efeito-de-significado, como a miragem objetiva da significação gerada e projetada pela relação interna dos significantes. Quando essa relação se rompe, quando se quebram as cadeias da significação, então temos a esquizofrenia sob forma de um amontoado de significantes distintos e não relacionados. (Jameson, 2007, p. 53). 279 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A conclusão de Jameson (2007, p. 53) é que, pela nossa incapacidade de unificar passado, presente e futuro da sentença, somos, de igual modo, “incapazes de unificar o passado, o presente e o futuro de nossa própria experiência biográfica, ou de nossa vida psíquica”. Assim, o presente é o instante perpétuo na pós-modernidade. Pela ruptura da cadeia de significação, a experiência do esquizofrênico se desvincula da temporalidade, e uma nova maneira de percepção é capaz de emergir entre diferentes relações, “algo que a palavra collage é uma designação ainda muito fraca” (Jameson, 2007, p. 57). Com base neste pensamento, David Harvey (2007, p. 58) afirma que “rejeitando a ideia de progresso, o pós-modernismo abandona todo sentido de continuidade e memória histórica, enquanto desenvolve uma incrível capacidade de pilhar a história e absorver tudo o que nela classifica como aspecto do presente”. Já Philadelpho Menezes (1994, p. 180) vê a perda do sentido de história como uma “perda do eixo da contiguidade que afetaria a linguagem e a mentalidade atuais”; e continua: Na incapacidade ou na rejeição de juntar sequencialmente os eventos da história aparece a pós-história – assim como na afasia do eixo da contiguidade o doente está impossibilitado de justapor seguidamente as partes do discurso. A indisposição, voluntária ou involuntária, de organizar sequencialmente o discurso da história é a indisposição, então, de se proceder a qualquer formulação discursiva (Menezes, 1994, p. 180). Para Menezes (1994, p. 182), “a perda da temporalidade na linguagem (que se reflete na perda da temporalidade na experiência vivida) reflete a cisão interna da linguagem e desta com a realidade”. E conclui que “é pela cisão com a realidade da qual nasce que a linguagem pós-moderna se marca, como se a própria realidade agora se separasse de seus elementos constituintes” (Menezes, 1994, p. 183). Em “Saindo do espaço do conto”, a linguagem constrói o imaginário esquizofrênico do jovem, um sujeito de identidade cindida e incapaz de constituí-la a partir 280 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 do outro. Em sua angústia existencial, quer saber sobre uma questão inerente ao ser humano: a existência de Deus. A busca pela sua origem, cujo conhecimento é elemento constituinte da identidade e subjetividade, vai além do contexto social (relativo à origem familiar) ou territorial (relativo à pertença em alguma localidade – cidade ou nação). Sua incerteza é a base de um dos maiores mistérios da humanidade: de onde viemos e para onde vamos. Contudo, é irônico pensar que tal dúvida é ressaltada pelo fato de o jovem estar à beira da morte. Seria por este motivo que o rapaz quer saber da existência de Deus? Se existe outra vida após a morte, seu único conforto é reencontrar seu gato. Sérgio Sant’anna torna irônico o fato de (sobre)viver, a ponto de fazer com que o jovem pense que só encontrará a felicidade após a morte, quando se encontrar com seu bichano, “morto há dois anos”. A personagem reluta em meio à crise da representação e simula, ainda, a ideia de um palco e de uma peça na qual figuraria um felino de verdade: “A peça deveria consistir num monólogo, mas o protagonista, a quem o jovem emprestaria inquietações ou sentimentos seus, como que conversaria com o gato”. Do palco, a plateia ouviria relatos concretos, “que adquiririam um peso maior por se saber que o personagem trafegava na rota da morte” (SANT’ANNA, 2007, p. 558). Diluído pelos simulacros da pós-modernidade, o sujeito fictício ficcionaliza a própria vida, transformando-a em palco. Torna-se, também, multifacetado pela mutação ocorrida na sua psique. Existe, por parte desse jovem, a necessidade de se desterritorializar para tentar buscar, na morte, a territorialização. É irônico pensar sob esse aspecto, pois a transcendência como uma das características da arte, é transmitida a um ser irracional, o gato: “um gato vive ainda quando nos ausentamos, ainda quando morremos” (SANT’ANNA, 2007, p. 558). “Saindo do espaço do conto” narra a performance dos conflitos do sujeito: o corpo-pergaminho é um sujeito linguístico tremendamente 281 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 exposto à violência, à deriva de sua própria carência e solidão. Resta, a ele, a diluição nesse mundo desencantado e perverso. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo: ensaios de crítica. São Paulo: Iluminuras, 1990. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Trad. Elizabeth Barbosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. 16 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Julio Jeha. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2. ed. São Paulo: Ática, 2007. LOBO, Luiza. 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Três gerações de Isauras assumem alinhavar os fragmentos da genealogia de mulheres de uma mesma família resgatando uma história de submissão da mulher pelo patriarcado e suas tentativas de rompimento com essa estrutura opressora. O feminino ressoa nesse espaço de experimentação da escritura, dando voz ao texto a partir das representações que nos cercam. O recorte que aqui se faz, é parte de um dos capítulos da dissertação de mestrado em desenvolvimento acerca do romance supracitado. Palavras-chave: Literatura de Minas; representações sociais; A dança dos cabelos. ABSTRACT: propose to reflect on the social representations that depict and refract that begin on the subjection of the female characters whose voices guide the narrative in A dança dos cabelos from the writer Carlos Herculano Lopes. Three generations of “Isauras” take baste the fragments of the genealogy of women from the same family rescuing a history of women submission by patriarchy and its attempts to break this oppressive structure. The female resonates within that scripture trial, giving voice to text from the representations that surround us. The cut that is made here is part of one of the chapters of the dissertation in development on the aforementioned novel. Key-words: Minas literature; social representation; A dança dos cabelos. As representações das mulheres são numerosas e milenares, modulam a aula inaugural do Gênesis com a sedutora Eva, percorrendo a tradição literária universal com a prodigiosa Penélope, na literatura brasileira, com a dissimulada Capitu, ou adentrando a historiografia do sertão nortemineiro com a guerrilheira sertaneja Dona Tiburtina. Mulheres cujo silêncio era o comum. “No início era o Verbo, mas o Verbo era Deus, e Homem. [...] Aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se e calar-se” (PERROT, 2005, p.9 e10), silêncio imposto pela ordem simbólica que não se restringia somente a fala, mas também a expressão, gestual ou escriturária, infringia a mulher o processo de naturalização da subserviência. Segundo Michelle Perrot, O silêncio é um mandamento reiterado através dos séculos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento. Silêncio das mulheres na igreja ou no templo; 56 Mestranda em Letras/Estudos Literários da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. 283 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 maior ainda na sinagoga ou na mesquita, onde elas não podem nem mesmo penetrar na hora das orações. Silêncio nas assembléias políticas povoadas de homens que as tomam de assalto com sua eloquência masculina. Silêncio no espaço público onde sua intervenção coletiva é assimilada à histeria do grito e a uma atitude barulhenta demais como a da “vida fácil”. Silêncio, até mesmo na vida privada, quer se trate do salão do século 19 onde calou-se a conversação mais igualitária da elite da Luzes, afastada pelas obrigações mundanas que ordenam que as mulheres evitem os assuntos mais quentes — a política em primeiro lugar —suscetíveis de perturbar a convivialidade, e que se limitem às conveniências da polidez. “Seja bela e cale a boca”, aconselha-se às moças casadoiras, para que evitem dizer bobagens ou cometer indiscrições. (PERROT, 2005, p.9-10). Assim, o conceito de gênero viabiliza uma discussão importante para a compreensão da mulher, pois legitima e constrói as relações sociais. A historiadora norte-americana Joan Scott em seu artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” define o gênero como “um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” e, como “uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p.86). Em sua proposição teórica, a pesquisadora toma de empréstimo alguns conceitos pós-estruturalistas elaborados por Jacques Derrida e Michel Foucault, dentre os quais é relevante para esta pesquisa o desconstrutivismo derridiano. Para Scott, é necessário desconstruir a oposição binária masculino-feminino, o pensamento dicotômico e polarizado sobre os gêneros que reflete sobre a lógica dominaçãosubmissão. Segundo Louro, “ao aceitarmos que a construção de gênero é histórica e se faz incessantemente, estamos entendendo que as relações entre homens e mulheres, os discursos e as representações dessas relações estão em constante mudança” (LOURO, 2003, p.35). Teorias surgem atreladas as realidades concretas, desse modo as representações sociais se apresentam como uma forma de se pensar e interpretar a realidade cotidiana. Denise Jodelet, em seu capítulo “Representações sociais: um domínio em expansão”, pontua ser a representação social “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a 284 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Tânia Navarro Swain, em “A invenção do corpo feminino ou ‘a hora e a vez’ do nomadismo identitário”(2015), propõe analisar a representação social das mulheres centrada sobre a maternidade, que institui uma imagem da verdadeira mulher e cria um corpo sexuado, o corpo feminino. Ainda que a pílula anticoncepcional fizesse com que as mulheres se reapropriassem de seus corpos, para a historiadora, o Estado, a medicina e a religião continuam a lutar por suas prerrogativas masculinas de decidir sobre os corpos das mulheres. A sociedade cobra das mulheres a reprodução e muitas delas sentem-se inferiorizadas, excluídas. Segundo Swain é preciso refletir sobre a questão: “Que corpo é este que me impõe uma identidade, um lugar no mundo, que me conduz no labirinto das normas e valores sociais/morais?” Na linhagem das vozes narradoras de A dança dos cabelos, a iniciadora do clã assume a condição de “boa esposa chocadeira e criadeira”. Uma história marcada pelo derramamento de sangue, que revela, segundo Brun, “o arcaísmo e a rudeza arquetípicos do patriarcalismo rural agônico que, em algumas regiões do Brasil, ainda no século XIX, apresentava-se na sua forma primária” (BRUN, 2008, p.23). O espaço doméstico era o definidor da feminilidade, ser mulher seria constituir-se e ser parte constitutiva desse espaço onde as mulheres foram submetidas a inúmeras limitações e preconceitos, sexo domesticado, cuja maternidade era seu destino. Antônio se apropriou de Isaura subtraindo-lhe o papel de sujeito e privando-a do controle sobre seu próprio corpo. Nessa perspectiva a Isaura-avó representa crenças, valores e atitudes do modelo de “verdadeira mulher” do modo de vida burguês, aquela que cumpre seu destino social e biológico. Isaura é capturada pelos jagunços de Antônio que ao receber a recusa de negociação das terras do pai de Isaura manda assassinar de forma brutal a família da moça, e após o trágico acontecimento, ordena a 285 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 seus homens que capturem a adolescente. Ouçamos as palavras da própria Isaura: Mas à minha frente com aqueles dentes de ouro, o homem, com as mãos estendidas e um chicote em volta do pescoço, esperava que eu as beijasse. Enquanto os seus capangas, ao redor, olhavam para mim, que de cabeça baixa, me recusava a acreditar em tudo aquilo que só se converteria em realidade, para meu desespero, quando um sujeito que mancava de uma perna e tempos depois soube que se chamava Jó, e em Paulistas havia matado um padre, chegou onde estávamos. E após tirar o chapéu, pedir licença e gaguejar um pouco, disse, repetindo três vezes a mesma frase: tudo pronto patrão (LOPES, 2001, p.43) Em Vigiar e punir, Michel Foucault delineia “dois tipos de poder: o que presta justiça e formula uma sentença aplicando a lei e o que faz a própria lei” (FOUCAULT, 2010, p.76), Antônio legitima o segundo tipo ao manter Isaura enclausurada dentro de um quarto, vigiada por seus homens, onde a comida lhe era entregue por um buraco. As necessidades, ela as fazia em um urinol que era recolhido diariamente junto com as peneiras que ela tinha a obrigação de trançar. Uma negra levava-lhe o banho, aos sábados, encarregada também de levar de vez em quando algumas ervas cheirosas, e que aos poucos foi se afeiçoando a Isaura revelando-lhe notícias de algum parente ou amigo, mas também sobre as intenções de Antônio. Antônio, que na vigilância contínua exercida sobre o corpo de Isaura deixaria em seu ventre de menina o primeiro dos quatorze filhos. É pertinente observar que, para Swain (2015), a ‘necessidade’ da maternidade, o ‘instinto materno’ são criações sociais. Mary Del Priore, em “Magia e medicina na colônia: o corpo feminino” (2013), reforça a construção social do corpo materno, “a fêmea não devia ser mais do que terra fértil a ser fecundada pelo macho”, reproduzindo o discurso médico do período colonial “ a mulher não passava de um mecanismo criado por Deus exclusivamente para servir à reprodução”(DEL PRIORE, 2013, p.8283). As representações sociais encontram fundamento na realidade produzida e vivenciada pela sociedade, e de acordo com Jodelet, “elas 286 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 circulam nos discursos, são trazidas pelas palavras e veiculadas em mensagens e imagens midiáticas, cristalizadas em condutas e em organizações materiais e espaciais” (JODELET, 2001, p.17-18), e não se pode deixar de observar que “enquanto produtos sociais, têm sempre que ser remetidas às condições que as engendra, ou seja, ao contexto de produção”(SPINK, 2000, p.121) . Na linhagem das vozes narradoras, Isaura-mãe mostra-se mais resistente à submissão com relação à Isaura-avó, mas não escapa as matrizes identitárias do feminino. Sob a ditadura do silêncio, a segunda Isaura presencia a traição conjugal do marido, além de ser rejeitada por Antônio: Porque você, até de deixar de me procurar, fantasiando encontros meus com outros homens que nunca existiram, e se ligar a outras mulheres, que forma tantas, sempre zombou dos meus peitos caídos ou da gordura que aos poucos, sem que eu tivesse controle, foi tomando conta de mim. Enquanto você, com algumas rameiras, até aqui dentro de casa se encontrava, e eu fingia não perceber (LOPES, 2001, p.20-21) A sexualidade está associada ao prazer do homem, e principalmente, a possibilidade masculina de buscar prazeres fora do relacionamento conjugal. Diante da política familiar mineira que faz apologia ao casamento e a sua indissolubilidade, Isaura fingia não ver, entretanto, sabia o que esperava o marido quando ele depois de dar uma desculpa qualquer a deixava entre os lençóis frios para ir se deitar com a amante que talvez lhe fizesse as mesmas coisas de que Isaura gostava, mas que nem sempre lhe foram permitidas. Antônio é capaz de deixar múltiplas cicatrizes em Isaura ao se apropriar da violência denominada por Bourdieu de “simbólica”, a violência insensível que humilha, ofende, desvaloriza. Antônio anuncia a realização de um antigo e sempre adiado sonho de sair conhecendo o mundo, Isaura é repelida aos empurrões ao tentar convencê-lo em levá-la junto com a filha. A agressão física ou psicológica se desdobra na narrativa onde é possível fazer releituras das diferentes modalidades de violência, a violência conjugal, a violência doméstica, a violência sexual, a violência psicológica. Cito: 287 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Mas fui obrigada a me calar pela violência de seus gritos seguidos da aridez de suas frases enquanto ele dizia: eu cansei, Isaura, eu me cansei desta merda toda. [...] E tem mais, eu não quero você, te rejeito como desprezei meu diploma e os louvores e as medalhas de melhor aluno. Eu não gosto, nunca gostei de você, que jamais me completou como homem e que simplesmente — e isto não basta — rezou e abriu as pernas (LOPES, 2001, p.28-29). Dentre as diversas agressões sofridas, a violência emocional está sempre presente. Isaura experimentara a angústia de dividir sua casa com Penha, uma cigana pela qual Antônio se envolvera quando ela chegou com seu bando em Santa Marta. Isaura ratifica sua insígnia identificatória de dor e sofrimento quando o marido inicia uma longa viagem que duraria anos, apenas retornado quando todo seu dinheiro já havia acabado. Embora pareça ser dotada de coloração submissa, Isaura-mãe apresenta aspirações sexuais e afetivas excessivas para seu tempo. O modelo passivo, subserviente e maternal cede espaço à força subversiva capaz de inverter as perspectivas tradicionais. Isaura torna-se duplamente transgressora, mantém um caso extraconjugal ao experimentar uma relação homoerótica, o “abominável pecado nefando”. Em decorrência das relações assimétricas, a infidelidade feminina não constitui objeto de tolerância como a masculina, já que as mulheres não dispunham de seus corpos e tampouco de sua sexualidade. Em A dança dos cabelos, Isaura rompe com o padrão legitimado pela visão judaico-cristã: Passei minha infância e cresci como outras meninas, vendo tantas coisas acontecerem. E algumas delas, quando já estava casada, inesquecíveis: como a descoberta, aqui perto de mim, daquela pessoa tão terna e do sol de agosto secando os nossos corpos — enquanto as suas tranças cobriam os meus seios, as suas pernas encontravam-se com as minhas — e aos meus ouvidos você falava, eu te quero, e outros mimos ainda hoje guardados a sete chaves (LOPES, 2001, p.19) Os desejos de Isaura extrapolam os papéis tradicionais femininos, visto que, de forma ambígua, ela se mostra resignada aceitando que o 288 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 companheiro mantenha aventuras amorosas fora do casamento, em contrapartida, a personagem não se mantém fiel ao marido, mas revida já que desde a resolução em se casar com Antônio, ela pressentia que dificilmente alcançaria com Antônio o que ansiosamente esteve a procurar nas horas seguintes àqueles sonhos: Quando, sem sobre eles exercer qualquer controle, as minhas mãos desciam pelo meu corpo molhado, que só viria a sentir mais intensamente o prazer, em um final de primavera e começo das chuvas quando descobri que, bem perto de mim, existia uma pessoa muito bonita, com a qual — e esta foi a minha maior aventura, e este o meu mais forte segredo — me encontrei inicialmente nos porões, entre ratos que denunciavam nossa presença, passando daí e livrando-nos deles e do cheiro de mofo, para lugares menos sombrios nos quintais, debaixo de umas árvores, onde ouvíamos as suaves melodias de uma caixinha de música e sentíamos em nossos corpos o vento frio da cachoeira, em cujas águas o sol dourou ainda mais as nossas peles, deixando mais negras as suas tranças e carnudos os seus lábios que sedentos buscaram os meus e umedeceram minhas pernas nas horas em que, entre gemidos e abraços, eu descobri aqueles que seriam os meus breves momentos de amor, cujas lembranças, Marcela, são talvez o único acalanto em noites como esta (LOPES, 2001, p.72-73). Percebe-se aqui um corte necessário entre a representação social da mulher que encontra no casamento sua identidade em consonância com as leis sociais e aquela que busca novos modelos de identificação enfrentando os dogmas tradicionalistas que persistem em “calar” as vozes das minorias. Segundo Jodelet, Geralmente, reconhece-se que as representações sociais — enquanto sistemas de interpretação que regem nossa relação com o mundo e com os outros — orientam e organizam as condutas e as comunicações sociais. Da mesma forma, elas intervêm em processos variados, tais como a difusão e a assimilação dos conhecimentos, o desenvolvimento individual e coletivo, a definição das identidades pessoais e sociais, a expressão dos grupos e as transformações sociais (JODELET, 2001, p.22). As representações sociais se constroem na realidade produzida e vivenciada pelas sociedades “com as interiorizações de experiências, práticas, modelos de condutas e pensamento, socialmente inculcados ou 289 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 transmitidos pela comunicação social, que a ela estão ligadas” (JODELET, 2001, p.22). Essas representações variam de acordo com o contexto em cada época, possibilitando conversões de experiências que conduzem a novas visões devido às dimensões históricas, sociais e culturais. No intenso labirinto das histórias intercaladas das três mulheres, a Isaura-neta, agente da escrita, se transforma em repositório da memória familiar, procura romper com os diversos silêncios. Isaura-neta afirma não querer ser herdeira das mesmas cicatrizes das gerações de mulheres de sua família. Diferente das gerações passadas, herdeiras de um destino cuja sina era a subserviência, destino de mulheres confinadas ao mutismo e ao espaço doméstico, Isaura-neta tem aspirações que extrapolam esses arquétipos. Isaura viaja para outros países, convive com diferentes pessoas e emoções validando a assertiva de Simone de Beauvoir de que “a mulher encerrada no lar não pode fundar ela sua própria existência; não tem meios de se afirmar em sua singularidade e esta, por conseguinte, não lhe é reconhecida” (BEAUVOIR, 1967, p.294). Sua força subversiva a faz escolher diferentes parceiros sexuais, trabalha sem escolher serviço tendo em vista superar o estado de dependência que cerceava as mulheres ao controle masculino. Diante do exposto, Carlos Herculano Lopes nos permite vislumbrar “versões da realidade encarnadas por imagens ou condensadas por palavras” (JODELET, 2001, p.21) por meio das três Isauras, três vozes labirínticas, três isotopias, três significações o feminino ressoa nesse espaço de experimentação da escritura a partir das representações que carregam as marcas sociais, uma tradução, uma versão da realidade vivenciada pelas mulheres operando uma transformação das representações estereotipadas de mulher subserviente contrapondo a mulher que renega sua condição passiva, e que pelo viés da transgressão procura romper com o silêncio. 290 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. BRUN, André Adriano. O trançado da morte nas tramas do tempo: uma leitura da condição feminina em Cartilha do silêncio e A dança dos cabelos. 2008. 215 p. 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Apesar da reconhecida importância desse poeta, sua obra ainda não foi devidamente apreciada, por isso este trabalho tem por objetivo apontar algumas possibilidades para se trilhar o ainda desconhecido “Itinerário poético” de Emílio Moura. Palavras-chave: Emílio Moura- Poesia - Modernismo- Minas Gerais. ABSTRACT: Emilio Guimaraes Moura was born in Dores do Indaiá, Minas Gerais, in 1902 and joined the important literary movement that was formed in Belo Horizonte in 20's decade. His abstract verses sounds like serene music amid the bustle of the modern world; apparently uninterested in objective reality, he built a idealized world. His reflections about the time, life and death lead the reader to rethink the human condition and the role of poetry in the modern world. Critics and poets of his time earneds him many accolades and honors, however, some factors contributed to Moura had was kept away from the media spotlight and the hegemonic literary criticism. Despite the recognized importance of this poet, his work has not yet been fully appreciated, so this study aims to point out some possibilities to tread the still unknown "poetic itinerary" of Emilio Moura. Keywords: Emilio Moura- Poetry - Modernismo- Minas Gerais. Quem é Emílio Moura? Eis a pergunta que muitas pessoas, inclusive nos meios acadêmicos, fazem ao ouvir o nome desse poeta, que é um dos grandes representantes da lírica brasileira do século XX. A resposta a tal questionamento, muitas vezes, resume-se em dizer que ele nasceu e viveu em Minas Gerais, foi amigo de Carlos Drummond de Andrade e integrou um grupo de intelectuais que se formou em Belo Horizonte na década de vinte. Essas características, entretanto, não definem a biografia, tampouco a poética de Emílio Moura, que, segundo Otto Maria Carpeaux, é um poeta “ainda não bastante admirado”. (CARPEAUX, 1966, p. 5) Na verdade, muitas resenhas e ensaios foram feitos sobre a poesia de Emílio Moura. Seus contemporâneos, ao examinarem sua obra, não 293 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 pouparam elogios, todavia, após sua morte, tornou-se esquecido pelos leitores e pela crítica. Laís Corrêa de Araújo salienta que a lírica desse poeta exige duas leituras: uma “encantatória”, por conta da “linguagem fluente, do funcionamento de um ritmo leve e funcionalmente respiratório, da imagética pura e despojada”; e outra “exigente, dolorosa e ontológica”, pois seus versos são perquirições profundas do pensamento e do sentimento humano. (ARAÚJO, 1969, p.8) De fato, a leitura da poesia de Emílio Moura exige tempo e persistência; o grau de abstração e complexidade de suas ideias não combinam com a agilidade e o automatismo do mundo moderno, e esse elemento, certamente, contribuiu para que sua poesia não fosse devidamente apreciada. Anelito de Oliveira ressalta que o poeta foi injustiçado pela crítica devido à sua autonomia poética, pois não se filiou a nenhuma escola literária e “diante de autores como esses, a crítica tende realmente a se ver ‘falida’, sem metodologia eficaz a aplicar”. (OLIVEIRA, 2002, p. 22) De fato, a autonomia é uma marca na obra de Emílio Moura; ele não se rendeu aos modismos do poema-piada, aos excessos na forma ou na linguagem, nem declarou guerra à sintaxe, aderiu aos versos livres, discretos e melancólicos, elementos comuns em outros poetas modernistas. Temístocles Linhares abordou a dificuldade de enquadrá-lo em uma escola literária e considera que o poeta é um caso à parte, que consolidou sua obra, independente de qualquer influência ou modismo, e salienta que esses casos isolados contribuem, significativamente, com a literatura: “Talvez sejam eles os maiores rebelados, pois marcham sozinhos, à margem de qualquer dirigismo”. (LINHARES, 1969, p. 12) Emílio Moura publicou vários livros, o primeiro deles, Ingenuidade, em 1931. Em 1969 selecionou e organizou sua obra poética no livro Itinerário Poético. Sua poesia foi especialmente influenciada pela tradição. O cunho universal de sua poética, a evocação à musa e o 294 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 acentuado lirismo de seus versos são heranças árcades; assim como os conflitos, indagações e gosto pelas sombras, pela noite e pela neblina reportam-nos ao barroco e à paisagem histórica de Minas Gerais. Contudo, ele não se furtou às tendências renovadoras, pois, em sua poesia, percebemos, também, fortes traços do Simbolismo, como o uso de imagens e sons que criam um mundo ideal em contraposição ao mundo material. Para conseguir esse efeito brumoso e abstrato, o poeta também manteve a riqueza e a musicalidade da linguagem que caracterizam os versos simbolistas. Em sua poética, Moura abordou temas ligados à condição humana, como o amor, a solidão e o medo da morte. Seus versos, em geral, são vagos, abstratos; a marca mais forte de sua escrita são as interrogações, que demonstram um sujeito lírico inquieto, desajustado com o mundo moderno. Para visualizarmos esses elementos, tomemos como exemplo o poema “Pastor de Nuvens”, de Habitante da tarde: Navegaste em palavras e não viste teu dia abrir-se em flor, a flor em fruto. Diante do mar apenas procuravas um marulho de concha a teus ouvidos. Que estradas mais abstratas. Que cenários de papel inventastes! Nunca viste que outras paisagens, vivas, te sorriam. Só de esquivas imagens te cercavas. Navegaste em palavras. Vivas? Mortas? Belas, apenas? Dóceis, tinham asas, E era tudo uma vaga arquitetura: tua amada, teu mundo, teu caminho, teu rebanho de nuvens, tantas nuvens, tua face no espelho, o próprio espelho. (MOURA, 2002, p. 234) Esses versos foram dedicados a Cyro dos Anjos, entretanto, esboçam a sua própria poesia, pois apresentam elementos estéticos presentes em toda sua poética. Os versos “Navegaste em palavras. Vivas? Mortas?/Belas, apenas?” 295 exemplificam os inúmeros ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 questionamentos existentes em sua obra. O poeta das indagações acreditava que seus questionamentos criavam no leitor um “estado de poesia” e de perplexidade diante do mundo. Em uma das raras entrevistas que concedeu, ele declarou: “minha poesia não afirma. Afirmando, resolveria a priori tudo para o leitor. Interrogando eu ponho o mundo diante do leitor”. ( MOURA, 1969, p. 4). Nesse sentido, o poeta não estabelece verdades prontas, nunca há respostas para suas perguntas; suas especulações instigam o leitor a fazer suas próprias reflexões acerca do medo, da solidão, da vida e da morte. Nos versos “E era tudo uma vaga arquitetura: / tua amada, teu mundo, teu caminho, /teu rebanho de nuvens, tantas nuvens”, o poeta parece descrever sua própria obra poética, marcada pela fluidez e abstração. Suas palavras brumosas não apreendem o mundo real, antes, criam um espaço onírico em que a vida, a amada e o próprio mundo são idealizados. O título do poema, “Pastor de nuvens”, remete-nos à tradição literária brasileira, uma vez que recupera a figura do pastor, presente na literatura árcade, da qual Emílio Moura herda alguns elementos, como as altas doses de lirismo e a presença inspiradora da Musa. Esse texto também estabelece um diálogo com a poesia modernista de Portugal, haja vista que Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, era um “guardador de rebanhos”. A expressão “pastor de nuvens” reporta-nos ainda a Drummond, que se declarava o “fazendeiro do ar”. Ilca Vieira de Oliveira afirma que “o poeta das interrogações se identifica com o gauchismo do amigo, pois se sente um ser torto e que também não encontra lugar no mundo”. (OLIVEIRA, 2014). Assim, em desajuste com o mundo moderno, o poeta torna-se um pastor de nuvens, percorre as “estradas mais abstratas”, cerca-se de “esquivas imagens” e recorre ao sonho e ao mito por meio da palavra poética, como forma de manter-se vivo em um mundo de desamor, de guerras e de bomba atômica. 296 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 A palavra “mito” é recorrente na poesia de Emílio Moura, e, frequentemente, está relacionada à Musa, entidade mitológica que, segundo Lílian Cristiane Moreira, é “referência constante entre aqueles que consideram a inspiração divina como a responsável pelo trabalho dos poetas”. (MOREIRA, 2011, p. 24). Por isso, em seus versos, o mito e a musa podem ser associados à ideia de inspiração, eternidade e transcendência. Affonso Ávila afirma que “a incidência mítica é de fácil constatação na poesia de Emílio Moura, porquanto o próprio poeta, seguidas vezes, nomeia nessa categoria simbólica os objetos articuladores de seu universo mítico”. Contudo, esse processo mitificador não se verifica apenas na recorrência da palavra “mito” e seus derivados, ele também se manifesta quando o poeta transpõe os dados concretos, reais, para o plano da vivência ideal. (ÁVILA, 1972, p. 63). Os elementos míticos da poesia de Moura, portanto, manifesta-se em sua capacidade de traduzir em poesia e idealizações suas experiências reais. O verso final “tua face no espelho, o próprio espelho” parece ratificar a ideia de que o poeta está falando de si, uma vez que a imagem do espelho é bem recorrente em sua obra. O espelho, na poética de Emílio Moura, não é apenas um objeto capaz de duplicar ou, simplesmente, refletir a realidade, é antes um instrumento que projeta outro espaço, em que o eu é um outro (muitas vezes fragmentado); espaço “entre o real e a fábula”, lugar em que se misturam o sonho e a fantasia, em que se pode dar asas à imaginação. Talvez o espelho possa ser visto como uma metáfora da própria poesia, já que, para Moura, ambos representam um espaço de infinitas possibilidades. Conforme mencionamos, o mistério e as frustrações da vida, o medo da morte, a amada ausente, o mito e a poesia são os principais objetos de sua poética. Tomemos como exemplo o poema a seguir, por meio do qual o poeta faz algumas reflexões sobre o mundo, o homem e a própria poesia. 297 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 Gênese Há sempre uma hora, uma hora densa, uma hora inesperada, em que a paisagem mais inocente tem o fulgor de um fiat. O tempo sonha que é espaço, o espaço sonha que é tempo, a realidade se compenetra de sua irrealidade. O homem repensa o mundo. O mundo se recompõe em sua nostalgia de Deus. (MOURA, 2002, p. 268) O título do texto, bem como as palavras “fiat” e “Deus” revelam uma intertextualidade com o livro do Gênesis, texto bíblico que narra a criação do mundo segundo a tradição religiosa judaico-cristã. Conforme essa versão, a terra era vazia, disforme e coberta pelas trevas até que Deus, cujo espírito pairava sobre as águas, deu vida e forma a todas as coisas. Em seis dias, usando apenas o poder da palavra, Ele criou o dia, a noite, o céu, a terra, os astros, as plantas e os animais. E, vendo que tudo estava perfeito e harmônico, decidiu criar o homem à sua imagem e semelhança para usufruir desse lugar paradisíaco. No poema “Gênese”, entretanto, não percebemos a satisfação e o otimismo sugeridos pelo texto bíblico, ao contrário, temos um tom melancólico, em que o eu lírico nos reporta a um mundo que precisa ser repensado pelo homem, que sente nostalgia de Deus e precisa se refazer. Em sua acepção mais simples, o termo “nostalgia” quer dizer “saudade”; no senso comum, esta pode ser entendida como uma profunda tristeza causada pela sensação de não podermos reviver algum acontecimento agradável que marcou o nosso passado. Nesse poema, a “nostalgia de Deus” não deve ser concebida como uma visão religiosa do eu poético, uma vez que a poesia de Moura é conduzida pelo laicato, mas como uma metáfora criada pelo poeta para problematizar a situação em 298 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 que se encontrava a humanidade. O eu lírico recupera a imagem do mundo idealizado por Deus para manifestar a saudade que sente da beleza, da harmonia e da paz que outrora reinavam no planeta. No mundo moderno, o canto dos pássaros deu lugar ao barulho das fábricas; o progresso devorou os rios, as matas e ar puro; perdeu-se a paz e o equilíbrio. Tomado por bombas e guerras, o mundo retornou ao caos. Nesse poema, o termo “Gênese” pode ganhar, ainda, um sentido mais amplo e associar-se à própria criação do texto poético. Destacamos que o sujeito lírico enuncia uma “hora inesperada”, em que a paisagem mais inocente “tem o fulgor de um fiat”. A expressão “inesperada” e outras de aproximado valor semântico aparecem com frequência nos poemas metalinguísticos de Emílio Moura. Sempre que o poeta aborda seu fazer literário, refere-se a uma força que o invade “de repente”, sem que a esperasse, como nestes versos: “Às vezes, subitamente, a poesia te visita./Pura/ Infinitamente pura”. Essa força estranha e pura, que o invade subitamente e possui a potência criadora de um deus, é a poesia. A palavra poética, na concepção de Moura, tem o poder de criar mundos, de misturar tempo e espaço, confundir realidade e irrealidade e, principalmente, tem a capacidade de restituir ao homem a paz, a harmonia, os mitos e os sonhos há muito esquecidos. Ela constitui, portanto, um meio de recriar o paraíso perdido – ainda que no plano das ideias –, reinventar um novo mundo, fazer nascer uma “aurora de redenção”. Os versos de Moura não descrevem, nem representam a impactante condição do mundo, no entanto, não ignoram as consequências que as transformações políticas, sociais e culturais provocaram na humanidade. No texto “Emílio Moura - Palma severa”, que serve de abertura para o livro Itinerário Poético, Drummond assegura que o autor de Habitante da tarde atingiu a razão última e secreta da criação artística, que é “satisfazer à necessidade de muitos, cuidando encher apenas uma carência pessoal”. Isso nos leva a entender que a introspecção, a 299 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 melancolia e o desejo de viver em um mundo melhor não são elementos exclusivos dos seus poemas, por isso o eu poético declara: “Meu coração se multiplica:/ agora é apenas meu coração que está palpitando no mundo”,57 portanto, o eu lírico toma para si as dores humanas; e não obstante o caráter subjetivo de seus versos, o poeta expressa um anseio da coletividade. Em sua obra, Emílio Moura abordou temas clássicos, que nunca saem de moda, cantou a vida, a infância e a história do nosso país, transformou a realidade e as lembranças em palavra poética por acreditar que ela perdure apesar de tudo, que ela resista ao tempo e à modernidade. Moura não cantou a superficialidade do mundo, cantou a complexidade do homem; ao abordar os dramas, amores, medos e dores que fazem parte da vida de todo ser humano, sua poesia deixa de ser provinciana para se tornar um canto universal. Não é preciso, portanto, encaixá-lo em nenhuma escola literária, como tentaram alguns críticos de sua época. O estudo da poesia de Emílio Moura ajudou-nos a compreender que a relevância de sua obra consiste em ocupar um “não-lugar” no mundo e nas escolas literárias. Sua obra dispensa classificações, ela carece apenas de novos leitores que por ela se interessem, que fechem os ouvidos à agitação do mundo e dediquem-se à sincera escuta dessa serena música. Sua obra não precisa ser “escolarizada”, mas precisa ser cuidadosamente investigada, pois ainda há muitos espaços inexplorados. Ainda há que se compreender os mistérios que unem o sujeito lírico à musa; investigar os fragmentos de vida que se refletem no espelho, estudar a recorrência do platonismo, as imagens da infância, as relações estabelecidas com a casa, com o pai; o diálogo com os clássicos. Enfim, esses são apenas alguns exemplos de um rico universo que ainda não foi 57 Poema “Meu coração”, do livro Canto da Hora Amarga. In: MOURA, 2002, p. 62, 300 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 devidamente explorado e espera por leitores que queiram se enveredar por esse itinerário poético. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Laís Corrêa de. Emílio Moura e seu Itinerário Poético. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 4, n. 137, p. 8, abril, 1969. ÁVILA, Affonso. As singularidades de um processo lírico. In: ÁVILA, Affonso. O poeta e a consciência crítica. São Paulo: Summus, 1978. p. 63. CARPEAUX. Otto Maria. Algumas opiniões da crítica sobre a poesia de Emílio Moura. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.4, p. 5, abril, 1966. HOLANDA, Aurélio Buarque Ferreira de. Minidicionário da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 488. LINHARES, Temístocles. Posição de Emílio Moura. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 4, n. 138, p. 12, abril, 1969. MOREIRA, Lílian Cristiane. Nos encalços de Emílio Moura: encruzilhadas de um Itinerário Poético. 2011. 228f. Tese (Doutorado em Literatura e Crítica Literária) Programa de Pós-Graduação em Letras - Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 18 de abril de 2011. p. 24. MOURA, Emílio Guimarães. Itinerário poético: poemas reunidos. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 234. MOURA, Emílio. Emílio Moura, um poeta perplexo. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 4, n. 137, p. 4-5, abril de 1969. Entrevista concedida a Frederico Morais. OLIVEIRA, Anelito de. Mundo de dentro. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 37, n. 1260, p. 22-23, mar. 2003. OLIVEIRA, Ilca Vieira de. Ouro Preto e a meditação dos poetas Carlos Drummond de Andrade e Emílio Moura. Disponível em: http://www.textopoetico.org/index.php?option=com_content&view=article& id=21&Itemid=14. 301 ANAIS DO SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA – Outubro de 2015 i Graduanda em Letras da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES; participa da Iniciação Científica, como bolsista da FAPEMIG, do projeto “Infância em diálogos: a literatura infantil brasileira pelas letras de escritoras mineiras”, sob orientação da professora Dra. Rita de Cássia Silva Dionísio Santos. ii Doutora em Literatura, Professora da Graduação em Letras e dos Programas de Pósgraduação em Letras: Estudos Literários e Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS da Universidade Estadual de Montes Claros. iii Neste trabalho, decidimos manter a grafia da língua portuguesa da forma como se encontra no livro, publicado no ano de 1916. iv Título original: Cantigas das Creanças e do Povo e Dansas Populares. PINTO, 1916. 302