Vol. 02 n. 04 JUL/DEZ 2013 - FAHS
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Vol. 02 n. 04 JUL/DEZ 2013 - FAHS
Revista de Filosofia e Teologia da Faculdade Dom Heitor Sales Corpo Diretivo: INSTITUTO DE TEOLOGIA PASTORAL DE NATAL - ITEPAN Dom Jaime Vieira Rocha Presidente Marluzia Maria Pessoa Diretora Executiva FACULDADE DOM HEITOR SALES - FAHS Jose Valquimar Nogueira do Nascimento Diretor Geral Vicente Laurindo de Araújo Vice-Diretor Washington Carlos de Lima Secretário Geral INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO Aurélia Sotero Angelo-Ms. Coordenadora CURSO DE TEOLOGIA – BACHARELADO Paulo Henrique da Silva – Ms. Coordenador CURSO DE FILOSOFIA – LICENCIATURA Túlio Sales Souza Lima-Dr. Coordenador CONSULTOR ACADÊMICO Prof. Dr. João Medeiros Filho INSTITUTO DE TEOLOGIA PASTORAL DE NATAL - ITEPAN FACULDADE DOM HEITOR SALES - FAHS Credenciada: Portaria MEC nº 875, de 05/07/ 2010, publicada no DOU de 06/07/2010 CNPJ: 00.947.539/0001-52 Avenida Câmara Cascudo, 390 - Cidade Alta - Cep 59025-280 Natal/RN Fones: (84) 3615-2827 / 3211-3191 Emails: [email protected] e [email protected] Site: www. fahs.edu.br SUMÁRIO EDITORIAL...............................................................................................5 Especial O SUPOSTO SILÊNCIO DE PIO XII..................................................9 Profª. Drª Vilma Lúcia de Oliveira Artigos RELIGIOSIDADE E FESTA: O SAGRADO E O PROFANO NA FESTA DO SANTO PADROEIRO...............................................40 Prof. Dr. Luiz Alencar Libório Msc. José Carlos Lima Filho SUBJETIVIDADE MOSAICA...........................................................57 Gilberto Benedito de Oliveira A CRISTOLOGIA PRIMITIVA E O ESTRITO MONOTEÍSMO JUDAICO DO SEGUNDO TEMPLO: REPENSANDO A IDENTIDADE DIVINA DE JESUS EM RELAÇÃO AO PANO DE FUNDO CULTURAL DA ÉPOCA...............................................72 Thiago dos Anjos Noleto Barros A HISTÓRIA NA PERSPECTIVA DA FILOSOFIA KANTIANA....87 Wanderson Luiz Freitas da Silva Fórum ENEAGRAMA E ESPIRITUALIDADE............................................98 Gisela Fleischhauer (Ir. Anaelise, IDP) Resenha..................................................................................................110 Denison Ricardo da Costa Barbosa Normas de Publicação..........................................................................113 Conselho Editorial Corpo Editorial Prof. Ms. Vicente Laurindo de Araújo Prof. Dr. Túlio Sales Lima Prof. Dr. Ivanaldo Santos Prof. Ms. José Nazareno Vieira da Nóbrega Prof. Ms. Paulo Henrique da Silva Prof. Ms. Ednaldo Virgílio da Cruz Prof.ªMs. Aurélia Sotero Angelo Conselho Científico Prof. Dr. João Medeiros Filho Prof. Dr. Ferdinand Röhr Prof. Dr. Roberto Lima de Souza Prof.ªDrª Vilma Lúcia de Oliveira Prof. Ms. Itamar de Souza A Revista de Filosofia e Teologia da Faculdade Dom Heitor Sales (FAHS), Natal - RN é uma publicação semestral da produção científica da Comunidade Acadêmica, na área do pensamento humanístico e teológico. Cada número constará de artigos acadêmicos, fórum de discussão temática e resenhas. Ano 02, nº 04 (jul/dez) 2013 ISSN: 2317-9805 Editoraçao e Produção Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 [email protected] EDITORIAL A instituição que, como a Faculdade Heitor Sales se propõe: “Educar para a cidadania, contribuindo com a construção de uma sociedade democrática e a formação integral da pessoa humana, assumindo um compromisso com a ética, com a justiça social e a sustentabilidade socioambiental,” tem que estar atento, às razões de sua afirmação e consolidação interna e externa, tendo em vista assumir e superar os desafios emergentes, próprios de quem precisa crescer de forma integrada e comprometida e, também, daquilo que ela tem que prestar contas: sua missão; objetivos, projetos, utopias que abrirão horizontes, quais campos livres para novas e futuras conquistas. A Revista FAHS quer continuar prestando uma colaboração emblemática, pela qualidade acadêmico/cientifica, como é constituída, a Faculdade Heitor Sales, de que é parte, a serviço da mesma construção: uma Filosofia e Teologia que não descurem colaborar com a promoção da vida humana, do “homem todo e de todos os homens”... (cf. Paulo VI, PP), e, também, ao transcendente de Deus, “Já que o homem ultrapassa infinitamente o homem.” (cf. Blaise Pascal). É a perene busca humana do Sagrado, no embate de abordagens plurais de que a lida acadêmica tem que compartilhar e contribuir, naquilo que lhe é próprio Essa é a percepção que, a nosso ver, demanda dos espaços de atuação da Faculdade Heitor Sales, na expectativa de seu Recredenciamento e, no limiar de suas primeiras turmas de formandos. Registrar eventos dessa natureza e afins é contribuir para a cultura, a Educação, é, também, construir a História de nossa Instituição, comprometida com a formação de uma sociedade, mais livre, mais consciente, mais ética, mais participativa, criando mais oportunidades para todos como deseja o Mestre dos Mestres (Cf. Jo. 10,10) “ Pai, que todos tenham vida...” Na escolha dos artigos e demais contribuições contidas no nº4 da FAHS, orientamo-nos por essa percepção e intenção. É o que lhe oferecemos! Essa tarefa é envolvente, porque suscita esperança, além de ser matéria prima para a realimentação da vida acadêmica e da missão própria da FAHS. Foi assim que se chegou ao ordenamento das matérias subsequentes. Escolheu-se: “Pio XII e o seu suposto Silêncio, ” da Profª.Dra. Vilma Lúcia, como artigo Especial, por reconhecer-se o inequívoco teor científiEditorial 5 co e crítico, pesquisado em fontes primárias, com metodologia específica, apta a resgatar a verdade histórica, de que, nessas mesmas fontes pode, é possível encontrar-se. O levantamento, a análise e interpretação de fontes primárias é tarefa para quem se habilitou para tanto, apropriando-se de metodologia específica, pois se trata de uma garimpagem que busca mais que o “ouro mais fino,” busca a verdade do ser mais precioso: a Verdade do Homem, nas motivações últimas de suas ações. É nessas regiões abissais que o historiador, como que exuma os fatos, desvelando-os; e os apresenta naquilo que os constituiu. O que não é tarefa para neófitos, isto porque a polêmica referente às acusações de que Pio XII teria se omitido, ao não utilizar-se da Diplomacia vaticana e da sua condição de Pontífice para uma veemente condenação do Nazismo no período da II Guerra Mundial de (1939-1945) necessitava de uma revisão que restaurasse a verdade dos fatos em substituição, fundamentados nas fontes e não em falseamentos das mesmas. A leitura do Artigo de Ir. Vilma extirpa dúvidas de interpretações inconsistentes e de má fé e recoloca a verdade histórica no seu lugar como Ciência. O artigo: “Religiosidade e Festa: o Sagrado e o Profano na Festa da Padroeira” do Prof. Dr. Luiz A. Libório e Ms. José Carlos L. Filho descreve a festa religiosa em sua origem e sentido manifestado pela fé e tradição, no espaço e tempo sagrado e profano. Os autores analisam o tema articulando dimensões essenciais do ser humano com a busca do Sagrado as manifestações de religiosidade popular, mais como culto do que como prática institucional doutrinária. Isto permite uma experiência religiosa desprovida de preocupações fundamentalistas e, portanto, mais livres, criativas, inventivas, onde os sujeitos se deixam envolver com dimensões mais simbólicas e mais próximas de suas origens míticas que o clima de festa reatualiza como “religião do sujeito, ” sugerindo aos estudiosos que existe uma “teologia feita pelo povo, ” contexto que parece diluir o profano em saudosas e utópicas experiências. Tudo é singelo, simples e sublime e manifesta exultação! O artigo: Subjetividade Mosaica do Prof. Gilberto Benedito de Oliveira sugere que o leitor se situe na perspectiva da “vista de um ponto: ” O deslocamento de uma visão Teocêntrica para Antropocêntrica, através de aproximações sincrônicas, ao longo dos tempos modernos, chegar-se à atualidade e compreensão do artigo que desperta para a necessária reflexão: no quê consiste, em última instância, a “subjetividade, ” que relações, nela(s) se implica(m)? O artigo remete a questões da Filosofia, da Ética da Antropologia e, também, do Direito. A questão é: Onde, nessas Ciências, 6 Editorial identificar-se a(s) subjetividade(s) e/ou preservá-la(s)? O de que ela (s) se constituem? O artigo: “A Cristologia primitiva e o Estrito Monoteísmo judaico do Segundo Templo” do graduando de Filosofia da FAHS e, pós-graduado, em Teologia do Novo Testamento e, em Docência do Ensino Religioso pela Faculdade de Teologia Batista do Paraná, Thiago dos Anjos Noleto Barros, apresenta importantes conclusões de pesquisas históricas de autores acadêmicos e pesquisadores sobre esse período neotestamentário, nas quais já se encontram uma elevada Cristologia. Essas concepções aparecem, segundo essas pesquisas, nas práticas litúrgicas, nos cultos e rituais, hinários, apesar de outras influências de origem grega, romana adicionadas pelo processo de incultaração da “diáspora. ” Utilizando a metodologia histórico crítica, aplicada à História Comparada e à Teologia Liberal, os autores referidos chegam a reforçar suas teses, recorrendo, também, à teologia trintária constitutiva do Credo Nicenoconstantinopolitano. Wanderson Luiz Freitas Silva, graduando de Filosofia da FAHS nos oferece um artigo: “A História na Perspectiva da Filosofia Kantiana, ” Apresenta, na concepção de Kant uma “Ideia de História Universal de um ponto de vista Cosmopolita. ” onde, esclarece conceitos fundamentais para a compreensão da convivência humana como: natureza e liberdade. Descreve a história humana, como dotada de uma teleonomia e, de um sentido que as acepções e práticas se encarregarão de adaptá-las, racionalmente, segundo o desígnio da natureza noumênica. A tarefa da Filosofia é encontrar, nesse curso absoluto e ininterrupto das coisas humanas, um propósito da natureza que possibilite, todavia, uma história segundo determinado plano da natureza. Se se trata de princípios internos determinantes, moralmente, tem-se o “imperativo categórico, ” se, de princípios externos e livres, tem-se o “imperativo hipotético. ” O artigo desafia também, os que estão preocupados com o “Estado de Direito” e com a Construção da paz entre as Nações. Apresenta-se, sob forma de FORUM, para debate nesse nº4 da FAHS: “Eneagrama e Espiritualidade” da Ms. Gisela Fleishhauer (Irmã Anaelise,IDP) O Eneagrama é um método utilizado pela Psicologia, objetivando superar o dualismo clássico: corpo x alma, matéria x espírito, estabelecendo uma ponte entre psicologia e espiritualidade, contribuindo, assim para o desvelamento do autoconhecimento, tipo de incursão nas profundidades do ser humano, como se realizasse um “mapeamento psíquico” dele, na perspectiva de sua capacidade de transformação, enquanto suscita no ser humano novas possibilidades e pulsões rumo à plenitude do seu vir a ser. Editorial 7 É, como que, um encontro do homem com sua última utopia: um encontro de amor, com a fonte do Amor que sacia toda a carne, no templo que somos nós, com ‘Aquele que é tudo para todos’. A Resenha, ora apresentada é uma contribuição de Denison Ricardo da Costa Barbosa, graduando de Filosofia da FAHS. Resenha ele, de TERRY, Luc “Aprender a viver- Filosofia para o nosso tempo. ” Para o autor a “Filosofia promete a salvação, não mediante a fé, mas pela razão. ” Através de três Eixos: Teoria- visão de mundo; Ética- comportamento a ter perante os iguais, -e, Sabedoria, busca de salvação: como viver para conviver bem! Apresenta duas vias de acesso: As transcendências horizontais ou imanentes, que o homem as encontra, naturalmente; e as transcendências verticais: Deus, Nação e Espírito, presentes nas culturas. Essas buscas conduzem a um “pensamento alargado”, ampliando as oportunidades de uma convivência, sempre mais plena, ética e, realizadora. É um humanismo em constante aperfeiçoamento e qualificação. Almejamos bons momentos com leituras agradáveis, proveitosas e enriquecedoras! Pe. Vicente Laurindo de Araújo. Editor-chefe 8 Editorial Especial O SUPOSTO SILÊNCIO DE PIO XII1 Profª. Drª Vilma Lúcia de Oliveira2 [email protected] Resumo: Este estudo visa apresentar o empenho de Pio XII, no período que antecede a Segunda Guerra Mundial, comprovando que ele não se omitiu para evitar a situação provocada por Hitler, bem como elucidar os insistentes apelos de paz realizados sob a égide da discrição, conforme mostram vários documentos diplomáticos da Santa Sé datados de setembro de 1939 a agosto de 1940. Também apresenta fontes que mostram outra visão diante das contestações sugeridas pela obra conhecida como O Silêncio de Pio XII (1939 – 1958). Procurase, portanto, dar uma visão geral sobre a intensa atividade da Santa Sé junto aos Chefes de Estado para evitar a Guerra. A pesquisa destes documentos mostra, principalmente, as prioridades da Santa Sé durante aquele conflito. Palavras chaves: O Silêncio de Pio XII, Segunda Guerra, Hitler, Diplomacia, Judeus, Conflito, Santa Sé, Vaticano. Abstrakt: Bei diesem Text handelt es sich um eine Studie mit dem Ziel, die Bemühungen des Pius XII in der Zeit vor dem Zweiten Weltkrieg ans Licht zu bringen, um zu beweisen, dass seine Stellungnahme bezüglich der von Hitler hervorgebrachten Situation keineswegs neutral war. Es soll anhand zahlreicher diplomatischen Dokumente des Heiligen Stuhls zwischen September 1939 und August 1940 erklärt werden, wie er wiederholt - wenn auch zurückhaltend - um Frieden anflehte. Hier werden Quellen vorgeführt, die die Fragen des Werks Das Schweigen Pius XII (1939 – 1958) aus einer anderen Perspektive betrachten lassen. Es wird versucht, also, die Tatsachen zu zeigen, die das intensive Zusammenwirken des Heiligen Stuhls und der Staatsoberhäupter, um den Krieg zu vermeiden, darstellen. Die Recherche 1 Revisado pela jornalista e pedagoga, Nadja Lira, graduanda de Filosofia da FAHS. Graduada em História pela Universidade Federal do RN; Mestrado e Doutorado em História Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Docente de História do Cristianismo e titular da Cadeira na Faculdade Dom Heitor Sales – FAHS. 2 Especial 9 dieser Dokumente zeigt vor allem die Prioritäten des Heiligen Stuhls während jenes Konfliktes. Schlüsselwörter: Das Schweigen Pius XII, Zweiten Weltkrieg, Hitler, Diplomatie, Stille, Juden, Konfliktes, Heiligen Stuhl. I – Introdução Em 1964, a Santa Sé respondeu à controvérsia em relação ao Silêncio do Papa Pio XII com a publicação da coleção: ADSS (Actes e Documents du Saint Siège relatifs à la seconde guerre mondiale – [Atas e Documentos da Santa Sé referentes à Segunda Guerra Mundial]). Ao autorizar esta publicação, o Papa Paulo VI (1963 – 1968) estava mudando parcialmente a política usual do Vaticano que era a de não liberar material de arquivo tão recente. Até então, o Arquivo do Vaticano só permitia abrir os acervos depois de passados 100 anos de um evento. Neste pontificado, essa política começou a mudar, com a abertura dos arquivos de todo o governo de Pio IX (1846-1878). Posteriormente e seguindo esse precedente, João Paulo II abriu os referidos arquivos. Primeiro para o período de Leão XIII (18781903), depois para o de Pio X (1903-1915) e Bento XV (1915-1922). Através da Secretaria de Estado, Paulo VI entregou a edição a estudiosos da Companhia de Jesus, conhecidos pelo método histórico, comprovado por suas publicações3. A tarefa de divulgar esses documentos fora confiada a três jesuítas: Pe. Pierre Blet, Angelo Martini e Burkhart Schneider. Depois Robert Graham, outro jesuíta, foi agregado ao grupo. O próprio Pe. Blet explicou, mais tarde, que a publicação dos ADSS era a resposta do Vaticano às acusações feitas a Pio XII, no início da década de 19604. As atividades da Santa Sé entre março de 1939 à primavera de 1945 são desenvolvidas em três direções: a primeira caracteriza-se pelos contatos com os Chefes de Estado, através de uma atividade diplomática especialmente a serviço da Paz e da Fraternidade. O volume correspondente ao foco deste trabalho descreve o primeiro período da respectiva atividade; a segunda é uma lição de caridade e de socorro; a terceira é marcada pelos contatos do Papa com os bispos. Toda a Obra – ADSS - visa tornar conhecida a documentação que a Santa Sé possui, tanto em relação à sua atividade desenvolvida no mundo 3 BLET Pierre in L’Osservatore Romano, n.° 17, 29 de abril de 1998, pp.16-17; Ibid. Pius XII and the Second World War, trad. Lawrence J. Johnson (New York: Paulist Press, 1999). 4 10 Especial confuso do conflito, como as diretivas desta mesma atividade, ou seja, os objetivos perseguidos no decurso da Segunda Guerra Mundial, pela Diplomacia Vaticana e pelo próprio Papa Pio XII. A documentação contida no primeiro volume da série compreende a etapa em que o conflito vai se agravando e instalando o estado de guerra entre a Alemanha, Polônia, França e Inglaterra, no período de setembro de 1939 a maio de 1940, o qual compreende a ofensiva alemã no Ocidente e a entrada da Itália na guerra até a conclusão dos armistícios. Devido à polêmica em torno das atividades de Papa Pio XII para evitar a guerra, suas consequências e pelo teor das acusações, percebeu-se que existe um desconhecimento destas Fontes, surgindo a intenção de elaborarse este estudo visando possibilitar uma melhor compreensão das atividades da Santa Sé no período de março de 1939 a agosto de 1940. Para isto foi utilizado como fonte principal, a introdução e alguns dos documentos publicados, no primeiro volume5. Logo, este trabalho limita-se apenas ao manual que abre a coleção que é composta por 12 volumes. No plano geral e teórico têm-se como referência as Encíclicas: Mit Brennender Sorge de 14 de março de 1937, contra o nazismo, do Papa Pio XI e a Summi Pontificatus de 20 de outubro de 1939, a primeira encíclica do Papa Pio XII. No plano prático, a correspondência é uma verdadeira mina de informações, mostrando a intensidade dos trabalhos, das intervenções, as iniciativas diplomáticas empreendidas para evitar o conflito e minimizar as agressões que já existiam antes da deflagração da guerra. No plano mais específico, este estudo objetiva apresentar: 1- alguns fatos que mostram o empenho da Igreja Católica e do Papa, comprovando que este não se omitiu diante do dever de interceder para evitar a situação provocada por Hitler; 2 - como a Igreja levou a efeito as suas intervenções através das ações de Pio XII e seus colaboradores e como os apelos de paz foram intensos, insistentes e realizados sob a égide da discrição; 3 - tornar conhecidos alguns fatos extraídos dos vários documentos, o que pontuou a atividade diplomática da Santa Sé nos meses de setembro de 1939 a agosto de 1940. Trata-se, portanto, de uma leitura que visa ajudar na compreensão crítica do que alguns chamaram de o Silêncio de Pio XII (1939 – 1958). Procura-se apresentar os fatos que, no seu conjunto, podem dar uma idéia da intensa atividade da Santa Sé junto aos Chefes de Estado, no sentido de evitar o conflito que culminou com a Segunda Guerra Mundial. A Introdução é do Pe. Pierre Blet, SJ - filósofo, teólogo e historiador, pesquisador e professor da Pontifícia Universidade Gregoriana. 5 Especial 11 É uma tentativa de mostrar alguns aspectos capazes de esclarecer a dinâmica e o envolvimento da Diplomacia Pontifícia e a atuação de Pio XII para evitar o referido conflito. A pesquisa e o estudo destes documentos mostram, principalmente, as prioridades da Santa Sé durante a crise. Sinteticamente seguem alguns aspectos da problemática em torno da atuação de Pio XII na Segunda Guerra Mundial, diversos elementos que caracterizam o contexto histórico, as dificuldades, as crises, a ética, a política diplomática da época e as razões que impediram ao Papa de fazer condenações públicas, além de algumas notas sobre as negociações diplomáticas e uma conclusão com algumas apreciações críticas. Por fim, antes de qualquer posicionamento contra ou a favor de Rolf Hochhut6, do historiador americano Robert Katz7 e também de John Cornwell, em seu livro o Papa de Hitler8, a bem da verdade histórica convém percorrer a referida obra e tentar responder a algumas interrogações, como Autor da peça, O Vigário. Nesta peça o Papa Pio XII é apresentado como tendo se recusado, em 1943, de fazer um pronunciamento em defesa dos judeus. 6 Em 1967 publicou, Morte em Roma, onde acusa Pio XII de não intervir para evitar o massacre das Foças Ardeatinas. 7 Adolf Hitler Presidente, Chanceler e Ditador da Alemanha nasceu em 20 de abril de 1889 em Braunau am/Inn, na Áustria, am-Inn e morreu em Berlim no dia 30 de abril de 1954. Filho de Alois Hitler e Klara Poezl, alistou-se voluntariamente no exército bávaro no começo da Primeira Guerra Mundial. Tornou-se cabo e ganhou duas vezes a Cruz de Ferro por bravura. Foi membro de um pequeno grupo nacionalista, o Partido dos Trabalhadores Alemães, que mais tarde se tornou o Partido Nacional-Socialista Alemão (nazistas compostos só de- SS = Schutz – Staffeln, setor de defesa). Em 1921, tornou-se líder dos nazistas e, dois anos mais tarde, organizou uma malograda insurreição, o “putsch” de Munique. Durante os meses que passou na prisão com Rudolph Hess, Hitler ditou o Mein Kampf (Minha Luta), um manifesto político no qual detalhou a necessidade alemã de se rearmar, empenhar-se na auto-suficiência econômica, suprimir o sindicalismo e o comunismo, e exterminar a minoria judaica. Em 1929, ganhou um grande fluxo de adeptos, de forma que, ajudado pela violência contra inimigos políticos seu partido floresceu. Após o fracasso de sucessivos chanceleres, o presidente Hindenburg indicou Hitler como chefe do governo (1933). Hitler criou uma ditadura uni-partidária. Com a morte de Hindenburg, ele assumiu o título de presidente do Reich Alemão. Começou então o rearmamento, ferindo o Tratado de Versalhes, reocupou a Renânia em 1936 e deu os primeiros passos para sua pretendida expansão do Terceiro Reich: a anexação com a Áustria em 1938 e a tomada da antiga Tchecoslováquia. Firmou o pacto de não-agressão nazi-soviético com Stalin, a fim de invadir a Polônia, mas o quebrou ao atacar a Rússia em 1941. A invasão à Polônia acionou a Segunda Guerra Mundial. Em 1941, assumiu o controle direto das forças armadas. Como o curso da guerra mostrou-se desfavorável à Alemanha, decidiu intensificar o assassinato em massa, que culminou com o holocausto judeu que teve seu fim anunciado no dia 27 de janeiro de 1945. Ainda em 1945 quando o exército soviético entrou em Berlim, Hitler se casou com Eva Braun. Há evidências de que os dois cometeram suicídio e tiveram seus corpos queimados em um abrigo subterrâneo em 1945. Cfr a obra de KERSHAW, Ian, Hitler, (trad do original inglês, Hitler 2008), Companhia das Letras, São Paulo 2010, 1160 pp. 8 12 Especial por exemplo: por que só em 1963, cinco anos depois da morte de Pio XII e 18 anos após o fim da guerra é que o alemão Rolf Hochhut editou a sua peça o Vigário? Por que o livro de Cornwell, O Papa de Hitler, foi anunciado como uma pesquisa séria quando a realidade dos fatos parecem não confirmar a seriedade? Por que este livro lançado em 1999 reascendeu a campanha anti-Pio XII? II - O Papa PIO XII Eugênio Pacelli nasceu em Roma, no dia 2 de março de 1876. Depois dos estudos clássicos foi complementar a sua preparação acadêmica no Colégio Capranica. Estudou Filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana e continuou sua formação sacerdotal no Seminário Romano. Destacando-se nos estudos, concluiu o curso de Teologia e utroque iure9. Ordenado sacerdote no dia 2 de abril de 1899, logo começou a fazer parte das atividades da Secretaria de Estado da Santa Sé, na Congregação para assuntos extraordinários onde foi nomeado, por Pio X (1903-1914)10, subsecretário em 1911 e em 1914 passou a exercer o cargo de Secretário. Desenvolveu sua predileção pelo Direito Canônico, ensinando no Ateneu do Seminário Romano e na Academia dos Nobres Eclesiásticos. Ajudou ao Cardeal Pietro Gasparri11 (Secretário de Estado de Pio XI [1922-1939])12 na preparação do Código de 1917 e publicou dentre outros É uma expressão latina que em um e outro direito. Era utillizada nas primeiras universidades européias para indicar os títulos conferidos aos que tinham concluido o curso de Direito Civil e de Direito Canônico. O título é ainda conferido pela Universidade Lateranensene e outras universidade européias. Esta espressão é frequente em diversos atos das cúrias episcopais. 9 258º Papa, seu pontificado foi de 4 de Agosto de 1903 a 20 de Agosto de 1914, foi precedido por Leão XIII e sucedido por Bento XV. Pio X nasceu no dia 2 de Junho de 1835, em Riese, Itália. Faleceu no dia 20 de Agosto de 1914, em Roma. Ao ser batizado recebeu o nome de Giuseppe Melchiore Sarto. Foi Patriarca de Veneza, Itália, foi ordenado padre em 18 de Setembro de 1858, Bispo em 16 de Novembro de 1884, Cardeal em 12 de junho de 1893 e Papa em 4 de agosto de 1903. Foi beatificação em 1951 e canonizado no dia 3 de Setembro de 1954 10 Pietro Cardinal Gasparri, nasceu no dia 05 de 05 de 1852, foi o 1º Secretário de Estado do Vaticano. Foi ordenado padre no dia 31de 03 de 1877. Assumiu o cargo de Secretário de Estado do Vaticano em 13 de10 de1914 e faleceu em 18 de 11 de 1934. 11 260º Papa, seu pontificado: 6 de Fevereiro de 1922 – 10 de Fevereiro de 1939; foi precedido por Bento XV e sucedido por Pio XII. Pio XI nasceu no dia 31 de Maio de 1857, em Desio, Itália recebendo como nome de batismo Acille Ratti e faleceu no dia 10 de Fevereiro de 1939 no Vaticano. Foi Arcebispo de Milão, Itália. Como padre foi ordenado em 20 de dezembro de 1879, bispo em 28 de outubro de 1919, feito Cardeal em 13 de junho de 1921 e Papa 6 de fevereiro de 1922. 12 Especial 13 o estudo histórico-jurídico: A personalidade e a territorialidade das leis, especialmente no Direito Canônico. Às ocupações na Cúria Pontifícia, unia estudos e o ministério sacerdotal, destacando-se como pregador. Em 1901 começou a trabalhou na Secretaria de Estado. Em 1914 participou da elaboração do Acordo com a Sérvia13. Com a morte do Núncio da Baviera, em um dos momentos mais difíceis da Primeira Guerra, o Papa Bento XV (1914-1922) o nomeou, em 1917, Núncio Apostólico junto ao Governo da Alemanha, que ainda não tinha rompido as relações diplomáticas com a Santa Sé. Em 1920 assumiu a Nunciatura em Berlim. Em 1929 tornou-se Cardeal e em 1930 foi nomeado Secretário de Estado tomando parte, portanto, em todos os eventos notáveis da política eclesiástica da época. Com a morte de Pio XI no dia 10 de fevereiro de 1939, o conclave que durou apenas um dia elegeu o então Secretário de Estado, Cardeal Eugênio Pacelli, que tomou o nome de Pio XII. Tratava-se de um homem de caráter místico, detentor de vasta cultura, um espírito aberto e cordial. A França, a Inglaterra, os Estados Unidos e outros países receberam a notícia com apreço e simpatia, mas o Governo alemão recebeu a notícia em relação ao novo Papa, com reservas. É bom lembrar que no dia 14 de março de 1937, o Papa Pio XI publica a Encíclica Mit Brennender Sorge contra o nazismo. Esta Encíclica foi redigida pelo Cardeal Faulhaber (1869-1952) e revisada pelo Cardeal Pacelli. Este documento foi infiltrado clandestinamente e lido nas igrejas alemãs a 31 de março daquele ano. No dia seguinte intensificou-se a perseguição aos católicos e judeus; era o protesto do Governo Nazista à resposta da Secretaria de Estado. O então Secretário de Estado, Cardeal Eugênio Pacelli, experimentou de perto esta reação de Hitler diante da Encíclica, que condenava o racismo nazista. A estreia do Pontificado de Pio XII (1939–1958) ocorreu sob as sombras do eclodir da Segunda Guerra Mundial. Para a Secretaria de Estado foi nomeado o Cardeal Luigi Maglione que já era Núncio em Berna e Paris. Depois da morte do cardeal Luigi Maglione, em 1944, Pio XII não nomeou A Sérvia é um país europeu, cuja capital é Belgrado, localizado no sudeste da Europa, na região balcânica do Leste da Itália. Faz fronteira ao Oeste, com o recente país Montenegro, da qual havia se separado em 2006, com a Bósnia – Herzegovina, com a Croácia; ao Sul com a Albânia e com a Macedônia; ao Oeste com a Romênia e a Bulgária; e ao Norte com a Hungria. É uma ex-república Iugoslava, tendo integrado, até Junho de 2006, uma união com Montenegro conhecida como Sérvia e Montenegro. No dia 5 de junho 2006, a Sérvia declarou sua independência, dois (2) dia após Montenegro, embora sendo o estado sucessor da união. 13 14 Especial outro Secretário de Estado e assim permaneceu até o próximo pontificado. O próprio Papa governou a situação em estreita colaboração com os dois diretores de duas sessões da Secretaria de Estado, o Cardeal Montini, mais tarde Paulo VI e o Cardeal Tardini14. A partir dos documentos consultados, percebe-se que Pio XII foi uma das personalidades mais críticas em relação ao nazismo. Dos 44 discursos pronunciados pelo Cardeal Eugênio Pacelli na Alemanha entre 1917 e 1929, 40 deles denunciam os perigos iminentes da ideologia nazista. Em março de 1935, em carta aberta ao pároco de Colônia, ele chama os nazistas de falsos profetas para o orgulho de Lúcifer. No mesmo ano, em um discurso em Lourdes, denuncia as ideologias possuídas pela superstição da raça e do sangue. Basta ler sua primeira encíclica como Papa, Summi Pontificatus, e logo percebe-se sua impostação antirracista. É tanto que os aviões aliados lançaram milhares de cópias do documento sobre a Alemanha, para fomentar o sentimento antirracista. Há evidências de que Pio XII não confiava em Hitler, a quem considerava “um homem furioso e criminoso”. Mesmo assim, trabalhou para que a Concordata com o regime nazista fosse assinada, embora mais tarde, o aval dado ao Führer venha a ser usado para enganar os católicos. Essa Concordata com o governo alemão, assinada por Hitler, garantia os direitos da Igreja na Alemanha, mas isto não foi respeitado. Não só o Cardeal Pacelli, mas outras pessoas como Chamberlain (Neville Chamberlain, primeiroministro Britânico) e Daladier (Primeiro-Ministro Francês) acreditaram na assinatura de Hitler neste Tratado de Munique em 1938. Mas foi exatamente este Tratado, o estopim que provocou a guerra em 1939. É sintomático o fato de que, quando o Cardeal Innitzer, de Viena, apoiou o Anschluss15 e gritou Heil Hitler, o Cardeal Pacelli o fez vir ao Vaticano e o persuadiu a mudar este posicionamento. O Cardeal Innitzer assinou um documento condenando Hitler e o Anschluss. O resultado quase lhe custou a vida. A prova é que seu palácio foi assaltado pelos nazistas que pretendiam atingi-lo fisicamente. Inclusive o Bispo de Münster, Clemens von Galen, não se calou diante dos crimes e das ameaças de Hitler, protestando alto contra os crimes nazistas. Cardeal Domenico Tardini, Secretário de Estado no Pontificado de João XXIII e Presidente da Comissão Preparatória do Concílio Vaticano II. 14 Anschluss é o termo que designa a união da Áustria com a Alemanha, articulada durante 20 anos e finalmente obtida à força pelo chanceler Adolfo Hitler em Março de 1938. 15 Especial 15 2.1. O Projeto da Conferência de Maio de 1939 Havia um temor de que a guerra seria iminente. Neste clima de insegurança, o dia 12 de março de 1939 foi marcado pela coroação de Pio XII diante de representantes de 35 nações. O temor diante do novo Papa tinha fundamento. No dia 15 de março as tropas alemãs entram em Praga. Alguns dias depois, a Lituânia recebe um ultimato alemão para ceder a cidade de Memel16. A Polônia, por sua vez, começa a se sentir ameaçada. Em meio à eclosão da Guerra, Hitler tinha como meta a posse do que reivindicara à Polônia: a anexação de Danzig17 à Alemanha. Trata-se de um corredor de terra que dividia a Prússia Oriental e o território do Reich18 o qual havia sido concedido à Polônia em 1919 e que desembocava no mar terminando então em Danzig. Esta reivindicação não foi aceita. As ameaças foram tomando corpo e neste ínterim deu-se a denúncia do pacto de não agressão entre a Alemanha e a URSS - pacto este que facilitara a entrada da Alemanha para atacar primeiro a Polônia e depois a França. Isto feria o pacto moral anglo-alemão e acionara a declaração de garantia anglo-francesa em favor da Polônia. Por outro lado, o Pacto de Aço19, entre Hitler e Mussolini20, Alemanha e Itália, selava uma aliança Memel ou Memelburg é o único porto de mar da Lituânia, no mar Báltico, que faz ligação com a Suécia, Dinamarca e Alemanha. 16 É uma grande cidade nas proximidades do Mar Báltico habitado por uma população de prevalência alemã, que o Tratado de Versalhes a fez independente. 17 Terceiro Reich é Hitler. Segundo Reich o criado por Weimar em 1891 e o Primeiro criado por Bismarck em 1871 18 É um acordo entre os dois paises, Alemanha e Itália, se um desses entrar em guerra o outro aliar-se-ia, automaticamente. 19 Benito Mussolini, político italiano, é o criador do Fascismo e foi ditador da Itália, também é conhecido por Duce, que significa chefe. Nasceu em Dovia di Predappio, na província de Forli a 29 de julho de 1883, filho de um ferreiro socialista e de uma professora primária. Torna-se professor primário em 1902. Envolve-se, na juventude, com movimentos esquerdistas e trabalhou como editor dos jornais de esquerda A Luta de Classes (Forlì, 1910) e Avanti!, órgão oficial do Partido Socialista Italiano, do qual se torna secretário, em sua cidade natal. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial adotou a posição de pacifismo do Partido, mas depois defende ardorosamente a entrada da Itália na guerra ao lado da França e da Inglaterra; foi, então, expulso do Partido. Funda em 1914 o jornal I Popolo d’Italia (O Povo da Itália) e organiza os Fasci d’Azione Rivoluzionaria. A Itália entrou na guerra em 1915, Mussolini lutou nos campos de batalha e foi ferido em 1917. Em 1919, funda os Fasci di Combattimenti em Milão e prega uma posição de cunho nacionalista e antiesquerdista. Une-se à burguesia e aos latifundiários que temem o avanço do comunismo, recebendo grande ajuda financeira. Em 1921 entra para o parlamento e funda o Partido Nacional Fascista. Em outubro de 1922 marcha sobre Roma e o rei Vítor Emanuel não vê alternativa senão pedir para que ele componha um novo governo. No ano seguinte criou o Grande 20 16 Especial militar entre si, ou seja, postulava uma intervenção de guerra, uma ao lado da outra. Embora a Itália publicasse a sua neutralidade diante do conflito, no dia 7 de abril bombardeia Tirana e a Albânia é ocupada. Estas e outras situações comprovam a preocupação do Papa e o faz pensar muito, antes de qualquer iniciativa. A ocupação de Praga causa uma revolução na política inglesa. A opinião pública inglesa irrita-se com o crescimento do poder alemão e fica chocada diante da violação de um acordo livremente consentido em setembro do ano anterior. Por isto, no dia 17 de maio Chamberlain constatara em um discurso, que era impossível tratar com Hitler. Foi então nesta ocasião, que ele fez a seguinte afirmação: “o Governo de Sua Majestade considera como dever, apoiar a Polônia”. O mesmo apoio foi estendido à Grécia e à Romênia. Ao celebrar a missa de Páscoa, Pio XII colocou sua homilia a serviço da Paz, já que como conhecedor da situação, via as convenções serem violadas. Ele, porém, sabia o quanto era difícil controlar ou impedir a corrida bélica, visto que por toda parte reinava a desconfiança em relação a Hitler e a Mussolini, sobretudo depois das bruscas ações contra a Tchecoslováquia. Roosevelt interfere diretamente e faz chegar até Hitler e Mussolini uma longa mensagem, a qual Hitler dá sua resposta em 28 de abril, num discurso pronunciado diante do Reichstag21. O chanceler alemão lançou um novo ataque, mais ameaçador ainda, contra a Polônia e ridicularizou a mensagem que havia recebido dos Estados Unidos. Conferindo as correspondências, percebe-se que a Santa Sé aparece como via segura e pacífica diante das ameaças nazistas para a saída do conflito. Muitos pensavam que o Santo Padre podia influenciar. Assim, são muitas as correspondências vindas de todas as partes do mundo, sugerindo ao Santo Padre para que ele interfira a fim de evitar o conflito bélico. Em um dos pedidos, como exemplo, podemos citar a sugestão para a criação de uma nova Liga das Nações. Outra correspondência sugere uma ConferênConselho Fascista e o parlamento “depurado” dá-lhe pleno poder. Em 1925 seu governo é uma ditadura aberta, a oposição é exterminada, as eleições para cargos públicos são feitas pelas corporações, que também ocupam o lugar dos sindicatos. Realiza o pacto Roma-Berlim com Hitler, aliança que lhe valeu uma fatia da Iugoslávia. Suas derrotas consecutivas na Grécia em 1940 e na África em 1941 proporcionaram um golpe que o derrubou em 25 de julho de 1943, consentido pelo seu Grande Conselho Fascista; é preso e só libertado pela ajuda dos alemães, readquirindo o poder no norte da Itália. Porém vem o colapso do nazifascismo, o Duce tenta fugir para a Suíça com sua amante Clara Petacci, mas são presos pela resistência italiana, os partigiani. Os dois são executados em Dongo, próximo ao lago de Como, a 28 de abril de 1945. 21 Prédio onde funciona o Parlamento Federal da Alemanha, hoje é conhecido como Bundstag. Especial 17 cia de Paz no Vaticano e não nos Estados Unidos, enquanto outras sugerem ajudas espirituais. Todas, porém, tem um ponto em comum: acreditam que o Papa deveria convocar uma Conferência Mundial para estudar uma solução pacífica para o problema. Pelas datas das correspondências, algumas datadas de 20 de abril, verifica-se que logo após, ou seja, no dia 21 de abril, o Pe. Tacchi Venturi SJ, que fora muitas vezes intermediário durante as negociações no Tratado de Latrão, foi recebido pelo Papa. Deste encontro resultou a solicitação da entrevista datada de 23 de abril de 1939 com Mussolini, a qual foi agendada para o dia 1° de maio de 1939. Foram concedidos apenas 15 minutos, os quais foram suficientes para o Pe. Tacchi expor as intenções do Papa diante da Paz ameaçada: convidar para a negociação, as cinco potências europeias: França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Polônia. Mussolini não quis responder imediatamente, desculpando-se por causa da hora avançada, por isto, não tinha como formular uma resposta diante da situação. Isto porque, a Alemanha não poderia confiar no sucesso dos seus intentos como acontecera com a Tchecoslováquia, pois a Polônia iria se defender, mas diante da superioridade das forças alemães, poderia ser destruída e isto traria o início de uma guerra européia. No dia seguinte, o Pe. Tacchi retorna ao palácio de Mussolini para receber a resposta definitiva. O Chefe do Governo Italiano concordou com o Papa. Apenas achava que deveria esperar pela súplica que faria a Hitler e ao Coronel Beck da Polônia. Segundo Mussolini, a estratégia do Santo Padre deveria ter a aprovação do mundo, principalmente por causa do grande número de católicos. Ele achava que Hitler não iria discordar. Apenas que se poderia precisar antecipadamente o início da Conferência e o regulamento em relação aos pontos de conflito tanto da Alemanha com a Polônia como da França com a Itália. O Santo Padre visivelmente preocupado diante do crescente perigo de conflagração bélica, já com uma impostação mundial, propõe-se a enviar uma paterna mensagem às cinco potências: França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Polônia convidando-as a resolver numa conferência, as questões que ameaçavam ampliar o conflito22. No dia 3 de maio partem quatro telegramas do Cardeal Maglione para os representantes da Santa Sé, na Alemanha, França, Polônia e Inglaterra. Os Núncios foram encarregados de fazer o convite aos governos junto aos quais estão creditados. Cfr. Correspondências in La Santa Sede e la Guerra in Europa, março de 1939 a agosto de 1940 pp 120 ss. Trata-se da correspondência aos Núncios em Paris, Berlim, Varsóvia e aos delegados apostólicos em Londres e suas respectivas respostas. 22 18 Especial As tentativas de mediação encontraram intransigências por parte da Alemanha e da Polônia. As outras Chancelarias manifestaram deferência à Santa Sé, mas no que diz respeito à convocação para uma reunião, a resposta, naquele momento, não pareceu suficientemente necessária e a conferência não aconteceu. Diante do descumprimento das negociações e dos conflitos de interesses, poderia-se até dizer que a diplomacia Pontifícia foi um fracasso. Apesar dos pesares, o Vaticano, via que, de certa forma, fora bem acolhido e que teria aberto os caminhos para posteriores acordos, uma vez que os Governos reconheciam a autoridade da Santa Sé e que esta poderia ser, num momento mais crítico, a última fonte para salvar a Paz. O fato de a Conferência não ocorrer, apresenta característica de uma polida rejeição, mas ainda assim restava o que se chamou de Bons Ofícios de Advertência. 2.2. Bons Ofícios de Advertência Os documentos dos meses de junho e julho são provas das intensas e persistentes atitudes da Santa Sé e da atuação do Papa para evitar um conflito. O relatório proveniente das conversas de 17 de maio, entre o Núncio de Berlim e Ribbentrop23 é uma das provas que justificam o aumento das preocupações e os cuidados que se precisa ter. O Santo Padre e seus colaboradores de posse deste relatório, não tinham como se iludir uma vez que se configurava uma situação mais complicada. A questão mais ardente era Danzig, o Corredor que colocava a Alemanha e a Polônia em conflito. A propaganda veiculada na imprensa nazista desencadeava uma onda de violência contra a Polônia. O Núncio perguntou a Ribbentrop se ele não temia a guerra contra as potências Ocidentais ao que ele respondeu: “não”- assegurando que “as defesas ocidentais da Alemanha jamais seriam vencidas pela França e que os submarinos alemães desafiavam a frota britânica e quanto à Polônia, se ela entrar na guerra, será totalmente massacrada”. Diante desta confidência, o Núncio colocara a questão da Rússia. Ora, a questão da Rússia era mais o da propaganda comunista, ela renunciando a esta propaganda nada mais impediria uma reaproximação. E agora, poderia se questionar qual seria a segurança do Núncio Orsenigo, uma vez era que o único elemento positivo era se Hitler realizasse suas conquistas sem “golpes”. O ministro das relações exteriores nazista, von Ribentropp, sempre fora contrário a uma invasão da URSS, preferindo atacar a Inglaterra. 23 Especial 19 No dia 22 de maio de 1939, Ciano24 e Ribbentrop assinavam na presença de Hitler o Pacto de Aço para reforçar o Eixo Roma–Berlim estabelecido desde 1936 e que já se estendera à Tóquio através do Pacto Anticominter em 1937, que colocava de lado a idéia de atacar a Rússia. Com estas negociações conclui-se o Pacto de 23 de agosto onde: Primeiro, publicamente estabelecera um acordo de não agressão; segundo, secretamente determinara as esferas de influência de cada País: para a Alemanha competia à Polônia e Lituânia; para a Rússia a Bessarabia, Finlândia, Estônia e Letônia. Apesar disto, sabia-se que Mussolini havia dito antes desta assinatura que, “a Itália não estaria pronta para a guerra antes de 1943”. O Papa começou a interferir diretamente junto a Mussolini, porque sabia que a Itália poderia exercer uma grande influência sobre Hitler. Pio XII pensava numa ação mediadora, persuadindo Mussolini a convencer Hitler de levar adiante os seus objetivos, por meios pacíficos. Resta, porém, o contato para evitar um conflito entre a Alemanha e a Polônia, a aproximação entre a França e a Itália, notificada pela intervenção entre o Núncio de Berlim e Ribbentrop. Sabendo da ameaça à Polônia, a Inglaterra reafirma a ela o seu apoio incondicional no dia 24 de agosto. O Papa de posse destes relatórios tinha o seguinte quadro: as garantias franco-inglesas asseguradas à Polônia e à Romênia e do outro lado o eixo Roma–Berlim: dois blocos hostis. Então, era necessário intermediar em favor da paz. Ele, então, tentou reaproximar a França da Itália para refazer o entendimento que havia se rompido depois da guerra da Itália com a Etiópia. Com este entendimento a Santa Sé não só evitaria que o conflito degenerasse em guerra, mas, sobretudo, poderia persuadir Mussolini a trabalhar pela Paz geral convencendo Hitler a atingir suas metas por meios pacíficos. Estas intenções da Santa Sé foram publicadas pela imprensa e assim o Vaticano continuou a trabalhar nesta direção. Os contatos foram feitos e, por fim, o Papa, através do seu enviado, chega até Mussolini, que com frieza ouviu a exposição do Pe. Tacchi Venturi: Vossa Excelência acredita na inevitabilidade da guerra? Certamente, respondeu o Duce pensando no trio: Rússia, França e Inglaterra. Isto não acrescenta absolutamente nada, isto que este trio faz é perfeitamente indiferente25. Em outro documento há comprovações de que na realidade Mussolini só faria guerra se perdesse a cabeça e quem estava pronta para a guerra era 24 Ministro dos Negócios Exteriores da Itália e genro de Mussolini. 25 ADSS, Doc. n° 58. 20 Especial a França26. Diante disto, o Papa poderia ficar tranqüilo em relação à Itália, mas não sobre a sorte da Europa, por causa das pretensões da Alemanha. Por outro lado, as Potências ocidentais estavam dispostas a não ceder às ameaças de Hitler e para isto contavam também com a Rússia. Alguns Diplomatas achavam que a situação estava comprometendo o prestígio das democracias e que a Santa Sé deveria permanecer na zona dos princípios, pois a situação na Alemanha era crítica e grande parte da população estava mal nutrida fisicamente; debilitada; logo não estava preparada para uma guerra. No dia 13 de junho, Ciano afirmava que a Alemanha não mais tencionava atacar a Polônia. Para Ciano, o perigo agora, era a própria Polônia que com receio de ser atacada, podia de um momento para outro se precipitar. Antes que isto aconteça, uma vez que a Polônia escuta o Papa é, pois a ela, que a Santa Sé deveria persuadir. No dia 10 de Junho, o cardeal Maglione sugeriu à Inglaterra pedir moderação à Varsóvia cabendo à Santa Sé intervir. No dia 16 de junho, o cardeal Maglione envia um telegrama para o Núncio de Varsóvia, utilizando as seguranças dadas por Ciano sobre as intenções da Alemanha27. O Núncio de Varsóvia contata o Ministro Beck, também de Varsóvia e este responde que não podia ter confiança num governo que falta sempre com a palavra, embora estivesse disposto a manter a devida prudência apesar de todas as provocações. Então, narra para o Núncio os incidentes que ainda estavam acontecendo em Danzig, como a tomada agressiva da alfândega polonesa por parte dos grupos nacionais socialistas, por exemplo. O relatório do Núncio de Varsóvia está datado de 22 de junho e no dia seguinte o Núncio de Berlim envia a Roma algumas novidades não muito tranqüilizadoras. Na Alemanha falava-se dos excessivos maltratos dos poloneses para com os alemães. E diante disto, o Ministro da Propaganda anunciou que dentro de três meses Danzig seria alemã. A Santa Sé encarregou o Primaz da Polônia para exercer alguma ação pacificadora junto ao povo e ao clero28. O mesmo fez em relação à Alemanha. Portanto, a Santa Sé, segundo o Cardeal Maglione estava segura de que a Alemanha conservaria a calma e a prudência neste momento tão delicado29, embora o Cardeal Maglione permanecesse inseguro em relação a eficácia desta exortação à calma por parte do Terceiro Reich. 26 ADSS, Doc. n° 67. 27 ADSS, Doc. n° 64 28 ADSS Doc. n° 78 29 ADSS, Doc. n° 80. Especial 21 Mais uma vez o Vaticano vai ao encontro de Mussolini para invocar a sua influência sobre Hitler. Falou da intervenção junto à Varsóvia e foi neste momento que a Santa Sé percebera a influência que Mussolini exercia sobre Hitler. Pois Ciano falou que Hitler tinha dito, na sua última viagem à Berlim, que a Alemanha tinha necessidade de um tempo de Paz. Em todo caso, continuou Ciano, a Alemanha não se moverá sem o nosso consentimento, e nem Mussolini e nem eu queremos a guerra30. Estas afirmações, plenas de segurança, por parte de Ciano, não estavam levando em consideração o que acontecera com a Tchecoslováquia, logo, o Vaticano recebia esta notícia com uma relativa tranquilidade, pois em Paris e na Inglaterra, o assunto corria um pouco diferente: achavam que um equívoco seria fatal. Justamente no dia 30 de junho, o embaixador Britânico, na França, comunicara ao seu governo as novidades que chegavam a Paris: Hitler preparava-se para organizar em Danzig um movimento popular para proclamar o reatamento deste lugar ao Reich. O Führer contava que, nem a França e nem a Inglaterra se moveriam. Falava-se de um golpe em Danzig e este pensamento do governo Alemão era uma ilusão, pois este golpe significaria uma guerra geral. Os contatos aumentam; são vários telegramas que comprovam a ação da Diplomacia vaticana e à ação da Santa Sé incorpora-se a do Governo dos Estados Unidos31. As ações de Pio XII são conhecidas através dos meios disponíveis da época, como o Jornal e a Rádio do Vaticano. Aos esforços de sua Diplomacia secreta, ele acrescentava a autoridade de sua palavra pública advertindo governos e povos para que meçam os horrores das ruínas que vão se acumulando. A documentação neste particular é vasta e pode-se entrever que Pio XII arquitetara estratégias e diversos meios para impedir a Guerra e os massacres. A questão seguinte é mais um dado que reforça e esclarece a complexidade do momento, que depois do último posicionamento de Stalin, evidentemente as possibilidades de invasão à Polônia, agora, são inevitáveis. 2.3. A Crise de Danzig e o Apelo de 24 de Outubro Em outubro a situação continuava se agravando. O Senado de Danzig suportava com dificuldades o controle dos guardas oficiais poloneses e estabeleciam medidas para dificultar, ainda mais. O Governo polonês deu 30 ADSS, Doc n° 81. 31 ADSS Doc n° 89. 22 Especial um prazo até o dia cinco de outubro, às 18:00h, para que fossem anuladas as medidas32. O governo alemão tomou conhecimento, com grande surpresa, sobre a intervenção de Varsóvia junto ao Senado de Danzig. Do mesmo modo comportava-se o Governo de Varsóvia em relação à Alemanha. Diante desta tensão, o Senado colocara a cidade em estado de defesa. Coronel Beck havia informado que durante 15 dias, a Alemanha estava instalando as tropas nas Fronteiras polonesas. O cardeal Maglione, ao tomar conhecimento disso telegrafa para o Monsenhor Cortesi pedindo-lhe para solicitar ao Governo de Varsóvia que acredite na ação da Secretaria de Estado. Aos 19 de outubro, o Secretário de Estado recebe o embaixador da Polônia que colocara a situação vigente entre Berlim e Varsóvia, desde o princípio do mês. Estava claro que a questão de Danzig era apenas um pretexto para justificar o ataque à Polônia, a fim de chegar à Ucrânia na área petrolífera. A Polônia acreditava na defesa que receberia das Potências Ocidentais ao lado do Rússia. A Inglaterra tinha decidido defender a Polônia e salvar o status quo da Europa e esperava do Vaticano a última chama de Paz. Isto se deduz da concepção do Lord Halifax. Ele concebia a atuação de Pio XII por dois meios: Fazendo uma demarcação junto às Grandes Potências, reservado para o momento mais crítico; Persuadindo a encontrar uma solução pacífica sem ainda chegar a um apelo formal aos povos e aos governantes, como intermediário. Aos 11, 12 e 13 de outubro, Ciano encontra-se com Hitler e Ribbentrop, em Salzburg. Neste encontro Ciano viu que para Hitler e Ribbentrop o ataque à Polônia já estava decidido. Aos 19 de outubro Osborne, ministro britânico, confessa ser impossível evitar a guerra, para o qual esta crise não era apenas Danzig e o Corredor, mas tratava-se da sorte da Polônia. Nesta ocasião, em 25 de outubro, comemorava-se o aniversário de morte de Pio X. O Papa então, no dia 24 de outubro dirige-se ao público destacando três metas principais: 1 – o pronto restabelecimento de uma Paz justa e honrada para todos; 2 – os limites do conflito; 3 – a ajuda às vítimas da guerra. “Nós Pontífices, pelo encargo que ocupamos, governantes e povos, somos todos chamados a salvar a paz, a fim de que a humanidade não seja material e espiritualmente destruída”. Mesmo diante do discurso do Papa, as notícias que chegavam eram 32 ADSS Vol VI, Doc. n° 774 , pp. 901-902 Especial 23 de que Hitler estava repetindo o mesmo procedimento empregado com os Sudetos33 e com a Tchecoslováquia. Logo, preparava secretamente uma agressão contra a Polônia. Aos 21 de outubro, a agência de imprensa Deutsch Nachrichten Büro comunicava: O Governo alemão e o soviético colocaram-se de acordo concluindo conjuntamente um pacto de não agressão34. Diante disto era claro que mais uma nação católica iria ficar sob o domínio alemão. O chefe britânico dirige um apelo a Hitler em favor da Paz. A movimentação pelas embaixadas aumenta. E diante do pacto da Alemanha com a Rússia, a Itália não tinha mais nada a fazer. Daqui em diante chegam as solicitações para que o Santo Padre faça uma condenação pública da guerra. O Santo Padre pronunciou o seu apelo dizendo que o momento era muito grave, mas ainda havia tempo para que todos os homens, principalmente os representantes das nações, fizessem algo em favor da Paz. Mesmo sem esperar que as palavras do Santo Padre produzissem algum eco, no dia 26 de outubro o ataque não aconteceu como fora previsto. Hitler hesitou e suspendeu a ordem de marcha. Porém, tentou afastar a Inglaterra e a França da Polônia. Por outro lado, Mussolini escrevera ao Führer que a Itália não estava preparada para um conflito. É importante ressaltar aqui, a mudança de estratégia de Hitler quando procurou oferecer sua amizade à Inglaterra, à França e a explicação de Mussolini, na qual reafirmava sua impossibilidade militar para um conflito. Com a assinatura do pacto de não agressão com a Alemanha em 23 de agosto de 1939, Stalin e Hitler efetivam um jogo militar ousado com seus adversários. Hitler precisava da neutralidade da Rússia para poder atacar a Polônia. Sabendo que a vantagem alemã no armamento não se manteria por muito tempo e que somente uma rápida seqüência de campanhas militares poderia evitar um fracasso semelhante ao da Primeira Guerra Mundial, criou o conceito do blitzkrieg. E conseguira anexar ao Terceiro reich: Danzig, a Prússia Ocidental e algumas regiões que sempre pertenceram à Polônia. Os judeus poloneses foram amontoados em guetos, como o de Varsóvia, por exemplo. Muitos perguntam sobre os motivos pelos quais Pio XII não denunO termo Sudetos desde o início do século XX foi usado para descrever os 3,5 milhões de alemães nas três províncias que costumavam ser chamadas de Coroa da Boêmia e estavam etnicamente relacionados aos bávaros, franconianos, saxões e silesianos, herdeiros de elementos das principais tribos germânicas. Sudeto é o nome de uma cadeia montanhosa de 320 km de extensão e de 30 a 60 km de largura, cobrindo o Norte da Boêmia e Morávia e parte da Silésia Sudetiana. 33 34 D.P.F.P Third, series VII, n° 153, p. 132 24 Especial ciou publicamente as atrocidades do Nazismo, ao que o Pe. Blet responde: Pio XII se questionou seriamente em várias ocasiões sobre a possibilidade de condenar ou denunciar publicamente o Nazismo. Ele sabia do perigo a que exporia mais pessoas. Já dispunha da experiência depois da publicação da Encíclica Mit Brennender Sorge, já que imediatamente após a sua publicação, desencadeou uma séria muito maior de atrocidades e agravou mais ainda a situação. Por isto, o Papa tinha consciência de que uma declaração desta natureza deveria ser considerada, pensada com muita seriedade e profundidade visando, sobretudo, os que sofreriam mais ainda. A Cruz Vermelha também chegou às mesmas conclusões. Os protestos não iriam servir mais e poderiam causar danos ainda mais as pessoas menos favorecidas. Uma declaração pública de Pio XII iria servir apenas para reforçar a idéia de que ele era inimigo da Alemanha. O Papa como Pastor, não podia deixar de levar em consideração a parte do seu rebanho que estava na Alemanha, onde havia 40 milhões de católicos. Ao mesmo tempo, continua o Pe. Blet, o Papa não alimentava ilusões a respeito das intenções do Terceiro Reich. A perseguição contra a Igreja já havia começado antes da guerra e durou por todo o tempo do Terceiro Reich. 2.4. Os últimos esforços da Diplomacia É importante para o historiador investigar as causas próximas que impulsionam a significativa atividade da Santa Sé nos dias que vão de 25 de agosto a 1º de setembro de 1939. Muitos passos foram dados naqueles fatais sete dias, pelos Núncios Apostólicos, em Berlim e Varsóvia. Tudo levava a crer que ainda restavam chances. Por isso a Rádio Vaticana permanece em constantes contatos telegráficos. O Núncio de Berlim, Orsenigo, falou que o Chanceler do Reich disse ao Embaixador inglês, Handerson, que estava decidido a tomar medidas militares não por questões territoriais de Danzig e do Corredor – pela reivindicação da Alemanha – mas, pelos desumanos maltratos que os poloneses dispensavam à minoria alemã. O Núncio acrescentou que acontecia o mesmo em relação aos poloneses que estavam sendo maltratados pelos alemães. Ao lado do interesse em resolver o problema das minorias, outros passos da Santa Sé foram dados visando o favorecimento de negociações alternativas diretas entre a Alemanha e a Polônia. Vinham solicitações de diversas partes, para dar uma solução efetiva de compromisso em relação ao problema de Danzig e do Corredor. Por exemplo, não faltaram sugestões para o Núncio de Berlim, para que ele fizesse, oportunamente, uso de uma proposta que veio de um nobre de Londres, Sir Ernet Graham Little, Especial 25 no dia 29 de agosto, para fazer do Corredor e do território adjacente um Estado independente, como os Principados de Mônaco e Liechtenstein, garantidos ou administrados pelas potências interessadas, de modo a assegurar plenos direitos a todas as nacionalidades e completa liberdade para o tráfego comercial. A Santa Sé, ao transmitir esta e outras sugestões procura ser clara, pois não tem a intenção de entrar no mérito dos interesses tidos como vitais para a Polônia. O que pretende mesmo é manifestar o seu afeto pela Polônia e servir de mediadora evitando um conflito sanguinolento. No dia 28 de agosto, o Pe. Pietro Tacchi Venturi foi encarregado de entrar em contato com Mussolini para convidá-lo, em nome do Santo Padre, a intensificar os seus esforços diante da iminência de um perigo ainda maior. Mussolini reafirmou que era necessário trabalhar pela Paz. Qualificou como crime o desabrochar de um conflito mundial por causa de Danzig e deu a entender que ao declararem guerra por tal região a Itália não entraria, a fim de proteger os seus. O Vaticano, portanto, tentou persuadir os governos de Berlim e Varsóvia para resolver os dois principais objetos da negociação: Danzig e as minorias étnicas. Hitler, porém, dizia que o problema era a minoria alemã que estava sendo maltratada. Para Pignati, diante da declaração do Santo Padre através de Mons. Tardini, dizia que a solução era a rendição da Polônia. Para o Ministro da Inglaterra, Osborne, a Santa Sé fez de tudo para evitar o conflito e estabelecer a Paz35, como se pode concluir da correspondência com os chefes das nações, com os componentes do corpo diplomático dos diversos países e do envolvimento das Nunciaturas, como, por exemplo, o que revela o texto seguinte: Podemos assegurar que Sua Santidade, até as últimas horas que precederam o início das hostilidades, dedicou-se sem cessar para as esconjurar, não somente pela ação já conhecida publicamente, mas também pelos passos confidenciais e de ordem prática. Ele esgotou todas as possibilidades que ainda restavam, fez o que estava ao seu alcance na esperança de manter a paz ou pelo menos excluir o iminente perigo de guerra36. Como já estava se aproximando o final do ano e o Natal do Senhor é uma ocasião muito propícia para os melhores augúrios, a próxima inves35 Doc. n° 197 36 Cfr. Doc. n° 212 26 Especial tida seria por ocasião da mensagem natalina do Santo Padre. Aqui nasce mais uma esperança, o projeto de trégua. 2.5. Projeto de trégua e a mensagem de Natal A primeira declaração pública como Papa, em 3 de março de 1939, já continha precisas alusões a um programa universal pela Paz. Estes pontos foram desenvolvidos pelo próprio Pio XII no discurso da Páscoa de 1939 e amplamente explicitado na primeira Encíclica Sumi Pantificatus de 20 de outubro de 1939, onde são tratadas as cinco conclusões fundamentais para uma paz duradoura entre os povos. A tarefa da Santa Sé para estabelecer a Paz, pode-se dizer que fora contínua. Apesar das urgentes solicitações para uma condenação explicita pública, só quando começou a chegar algum sinal das partes beligerantes é que Pio XII iniciou outros intentos em busca da conclusão do conflito sugerindo, desta feita, a Trégua por ocasião do Natal. O Papa, nesta mensagem, reuniu em cinco artigos os pressupostos da Paz: 1 – Assegurar o direito à vida e à independência de todas as nações pequenas e grandes; 2 – Liberar as nações da corrida armamentista; 3 – Reconstruir e criar instituições jurídicas a fim de rever, executar e garantir as convenções estabelecidas; 4 – O reconhecimento dos direitos das minorias étnicas; 5 – Reconhecer acima de qualquer lei e convenções humanas as normas santas e irremovíveis do direito divino. Esta trégua, porém, ficou apenas na teoria de sua radiomensagem natalina. Mesmo assim restava ainda a possibilidade que surgiu diante da oferta do Presidente dos Estados Unidos que tinha decidido restabelecer as relações oficiais entre a Santa Sé e a Casa Branca, tendo na pessoa de Myron Taylor o seu representante pessoal. Por isto, no fim de sua mensagem, com alegria Pio XII anunciou a notícia do envio de um representante pessoal do Presidente Roosevelt junto ao Papa, com o objetivo de colaborar no restabelecimento da Paz e para o alívio das vítimas da guerra. Deste modo, o Papa queria dar diretivas ao pensamento político aos que tinham fé e ao mesmo tempo influir nas decisões políticas concretas, tanto quanto possível. O Papa pretendia intermediar e oferecer os princípios eficazes para o pronto restabelecimento da Paz. E neste particular confiava na eficácia da parceria com o Presidente Roosevelt. Especial 27 2.6. Pio XII e Roosevelt À autoridade religiosa do Papa acrescente-se agora, o prestígio do Chefe da Casa Branca, dos Estados Unidos, visto que antes, a Santa Sé não mantinha relações diplomáticas oficiais com os Estados Unidos. A partir da visita do Arcebispo de Nova York, Mons. Spellman a Roosevelt, foi esclarecido o interesse da autoridade americana em estabelecer relações diplomáticas com a Santa Sé. Nestas circunstâncias é promissora a aliança entre duas grandes forças para o bem. A aliança foi concretizada através da visita de Myron Taylor, que foi acolhida pelo Santo Padre, como sendo mensageira de Paz. Esta missão logo começou a atuar através dos vários contatos com as partes em conflito, mediante viagens informativas do Secretário de Estado Summer Welles. Depois da visita do representante de Roosevelt a Mussolini e Ciano, ele vai ao encontro do Santo Padre. Sabe-se que o Papa não tinha possibilidade de fazer qualquer intervenção diretamente ao Chanceler do Reich, apesar de a Alemanha ter um representante no Vaticano, embora já bastante idoso. Com a visita da representação americana ao vaticano, um passo foi dado nesta direção também através do governo italiano, apesar de a estreita colaboração não permitir que se alimentasse muita esperança. Todavia, depois de renovados insucessos de um terceiro apelo de Roosevelt, ninguém via uma possibilidade de acolhimento de alguma proposta para evitar a expansão do conflito armado. Mesmo assim, ainda restavam esperanças a Santa Sé, por vias indiretas, através de Mussolini, mas a guerra praticamente já estava estabelecida. A confiança entre o Papa e Roosevelt era mútua no sentido de influenciar Mussolini a convencer Hitler na resolução dos conflitos sem a guerra. Também os italianos eram contrários a isto, mas os aliados não tinham confiança em Hitler e os alemães não estavam contentes com o III Reich por causa da excessiva vigilância da Polícia Secreta. Por outro lado, era preciso levar em consideração as controvérsias que circulavam nos Estados Unidos, diante da proposta de se estabelecer relações diplomáticas com a Santa Sé, o que era considerado por muitos como inconstitucional, por causa da separação entre Igreja e Estado, o que há muito fora estabelecido legalmente nos Estados Unidos. Os Estados Unidos eram, agora, a única grande nação de tradição democrática, ainda não envolvida diretamente no conflito. Também por isto, vários países neutros e alguns dos envolvidos na guerra viam a mediação americana com alguma esperança de Paz. Por causa das atividades que a Santa Sé vinha desenvolvendo em fa28 Especial vor da Paz como também em benefício das vítimas da guerra, Pio XII não hesitou em expressar a sua gratidão à iniciativa do Presidente Roosevelt ao nomear um representante pessoal junta à Santa Sé, com a categoria de embaixador extraordinário, mas sem título formal. Pio XII, na alocução de 24 de Dezembro de 1939 dirigida ao Colégio Cardinalício e à Prelatura romana, afirmou: É um anúncio natalício, (aquele de Roosevelt) que não nos poderia ser mais agradável, uma vez que isto representa, por parte deste eminente Chefe, uma tão grande e potente nação, uma válida e promissora contribuição para as nossas solicitudes, tanto para a consecução de uma Paz justa como para uma mais eficaz e larga obra de entendimento para minorar os sofrimentos das vítimas da guerra. Por isto temos de expressar também aqui, por este nobre e generoso ato do Sr. Presidente Roosevelt as nossas felicitações e o nosso grato ânimo37. Um dos motivos que o tornou aceito pelo povo americano foi a recordação da proveitosa visita aos Estados Unidos feita pelo Secretário de estado, o então Cardeal Pacelli. E assim começaram a trabalhar em conjunto no restabelecimento da Paz. Empreenderam tentativas de entendimento entre as partes conflitantes, para manter a neutralidade italiana. A Itália não deveria entrar na guerra ao lado da Alemanha como estabelecia o Tratado de Aço. 2.7. Pio XII e a neutralidade Italiana As iniciativas da Santa Sé por meio do Pe. Tachi Venturi nos meses de maio, junho, agosto e setembro de 1939, consistiam em evitar males maiores, salvar a Paz e restabelecê-la onde já estava ameaçada. Aqui se destaca a ação do Papa e da Santa Sé para evitar que a Itália entre na guerra, mantendo-se sempre em posição antibelicosa. Constata-se certo insucesso nos esforços do Papa também por causa da aparente neutralidade da Itália. Isto foi provocado porque a política de Hitler não facilitava a discussão do Tratado de Versalhes38 e também de37 Doc. n° 234 O tratado de Versalhes estabelecia que a Alemanha era obrigada a: - restituir a Alsácia e a Lorena à França; - ceder as minas de carvão do Sarre à França por um prazo de 15 anos; ceder suas colônias, submarinos e navios mercantes à Inglaterra, França e Bélgica; - pagar aos vencedores, a título de indenização, a fabulosa quantia de 33 bilhões de dólares; - redu38 Especial 29 vido ao posicionamento da Polônia em agosto de 1939, o qual facilitou o jogo do ditador Alemão. De qualquer modo, no dia primeiro de setembro de 1939, a Itália declarou que não entraria na guerra. A Santa Sé esforçou-se muito para ancorar-se a Mussolini nesta decisão e para isto contou com o apoio de Roosevelt, que no Natal iniciou oficialmente as relações diplomáticas com o Vaticano. No dia primeiro de setembro, Hitler enviara a Mussolini a seguinte mensagem: Duce, agradeço-lhe, cordialmente, pela ajuda diplomática e a política que recentemente você concedeu à Alemanha e ao bom direito. Sou persuadido a contar com o acréscimo de forças militares para a Alemanha para o dever que assumimos. Como conseqüência, acho não preciso, nesta circunstância, da ajuda militar italiana. (o pacto de aço o prendia através do 5° artigo como automático) Agradeço-lhe, Duce, por tudo aquilo que você vai fazer no futuro pela causa comum do fascismo e do nacional-socialismo. Por outro lado, Mussolini afirmara que a Itália não tomaria parte nas iniciativas de alguma operação militar. Havia uma clara insegurança e incógnitas nas palavras de Mussolini e como poderia se traduzir a palavra “não beligerante”, a contínua e clássica “neutralidade” não era tão clara. Diante disto, Pio XII encarregou outra vez, no dia 6 de setembro, o Pe. Tacchi Venturi de ir ao chefe do governo para fazer-lhe ciente que o Santo Padre tomou a particular iniciativa de exortá-lo e insistir em propósitos pacíficos, sobretudo a fim de manter fora do conflito o país que fora confiado à sua responsabilidade. O Jesuíta pediu audiência, mas a resposta que recebeu foi a de que o Chefe do Governo não poderia recebê-lo, mas ele poderia tratar o assunto com o Ministro do Exterior. À tardinha do mesmo dia, o Pe. Tacchi encontrou-se com Ciano ao qual expôs o conteúdo da sua incumbência. O ministro pediu para levar ao Santo Padre, da parte do Duce, os seguintes pontos: A declaração feita no Conselho dos ministros equivale a uma verdadeira e própria declaração de neutralidade. zir seu poderio bélico, ficando proibida de possuir força aérea, de fabricar armas e de ter um exército superior a 100 mil homens. 30 Especial 1) Esta declaração permanece firme e é intenção do Chefe do Governo que assim permaneça até o término do conflito, o qual não exclui que possa terminar depois de algumas semanas, isto é, depois de ultimada a guerra contra a Polônia. 2) Humanamente não se podem prever os eventos que obrigam a Itália, não obstante o presente propósito de permanecer neutra a seguir outra linha de conduta. “O ministro me assegurou, escreveu o Pe. Tacchi Venturi, que continuaria, como fez até aqui, a manter firme a neutralidade”. Contrariamente às previsões de Mussolini, com a conclusão da campanha alemã–polonesa, a situação política e militar internacional não era clara diante da intervenção soviética na Polônia. Contrariando as previsões de Mussolini, com a conclusão da campanha alemã–polonesa, a situação política e militar internacional ao invés de clarear, por causa da intervenção soviética na Polônia, agora, ficava mais fosca. Pio XII preocupado diante dos perigos que iam se agravando, não obstante as garantias recebidas de Paz na Itália, via uma extensão do conflito. Dirige-se ainda ao Conde Ciano a recomendação feita há três semanas antes também fora feita ao Chefe do Governo. O Papa confiara esta incumbência ao Núncio Mons.Borgongini – Duca, que foi recebido em audiência no dia 27 de setembro de 1939. Depois que o Núncio falou da situação internacional e outros assuntos, logo após falou também com o chefe de Gabinete do Ministro para recomendar algumas práticas ligadas a uma eventual beligerância italiana. O Funcionário respondeu: Fique tranqüilo que as operações militares não acontecerão. Digo-lhe confidencialmente que a guerra não se pode fazer porque não temos nada. O ministro Ciano agiu de modo admirável neste sentido39. No dia 21 de Dezembro, Pio XII recebera no Vaticano, o Rei, a Rainha e os dignitários da Corte, do governo e do Reino. A questão de não entrar na guerra estava na Ordem do Dia. Nesta ocasião, diante dos apelos do Papa e do reconhecimento pelos esforços para manter a Paz, o ministro Ciano, que fazia parte do séquito, declarou: “Eu fui a Salzburg para dizer: paz, paz; mas os outros responderam: guerra, guerra”. “Assim, eu pude salvar a paz da Itália, mas não pude salvar a paz da Europa”40. O Papa retribuiu a visita no dia 28 de dezembro; saiu do Vaticano, foi ao Quirinale, residência dos reis da Itália para agradecer a visita anterior 39 Doc. n°. 211 40 Doc. n° 224 Especial 31 e reforçar os seus intentos pela Paz. Em nenhuma destas visitas Mussolini esteve presente. Estas breves alusões são confirmadas através dos discursos públicos, os quais deixam transparecer bem que o Papa aproveitara as mais diversas ocasiões para inserir seus apelos e empenhos em prol da Paz, e isto está bem explícito no discurso ao Embaixador da França41. III – Conclusão 3.1. O Fato «Quando era Núncio na Alemanha (1917-1929) e secretário de Estado (1930-1939) e, sobretudo, como Papa, Pacelli denunciou de maneira clara e forte os males de seu tempo, ou seja, o racismo, os ódios raciais e étnicos, o nacionalismo exasperado, os crimes de guerra e as atrocidades contra as populações civis». Em sua primeira encíclica, Summi Pontificatus, publicada pouco antes do estouro da Segunda Guerra Mundial, Pio XII não só menciona a palavra “judeu”, mas também o faz em um contexto de defesa da família humana. Citando São Paulo, Pio XII diz: não há grego e judeu; circunciso e incircunciso; bárbaro, escravo, livre, mas Cristo é tudo e em todos (Summi Pontificatus, n. 36). Basta consultar os artigos de «L’Osservatore Romano» e as transmissões da «Rádio Vaticano» da época, para comprovar as defesas explicitas aos judeus, mencionando-os antes, durante e depois da guerra. Recomenda-se também, ler o que escreviam sobre o Papa Pacelli nos jornais nazistas. É evidente que para os expoentes do regime nacional-socialista as palavras de Pio XII eram sumamente claras como porta-vozes dos judeus. Em março de 1940, durante um encontro privado com Joachim von Ribbentrop, Ministro de Assuntos Exteriores Alemão, Pio XII condenou a perseguição nazista aos católicos e aos judeus de maneira forte e decidida. Respondendo à tese de Susan Zuccotti42, segundo a qual os católicos ajudaram aos judeus, é importante ressaltar que Pio XII não sabia nada; não tinha nada a ver com a obra de assistência. Doino43 explica a Zenit que se trata de uma tese absurda, e, de fato, The Pius War (A Guerra Pio) 41 42 Cfr. CHARLES- ROUX, Huit ans au Vatican, 357, 358 e 367. Historiadora Americana especialista em estudos sobre o holocausto. DOINO, William Jr., A Guerra Pio: Respostas aos críticos de Pio XII, Lexington Books, pp- 58-59. 43 32 Especial documenta amplamente a ajuda direta coordenada por Pio XII a favor dos perseguidos do nazismo em toda Europa: Entrevistei pessoalmente dom John Patrick Caroll-Abbing, conclui Doino, membro da rede antinazista em Roma, que me disse que recebia ordens diretamente de Pio XII para esconder e proteger os judeus. Passados apenas oito meses que Pio XII tinha assumido a Cátedra de Pedro, na sua primeira Encíclica Summi Pontificatus, de outrubro de 1939, no quinto capítulo, números 72, 73 e 74 declarou: A ANGUSTIOSA HORA PRESENTE Veneráveis irmãos, o momento em que vos chega às mãos esta nossa primeira encíclica, bem pode ser qualificado, sob vários aspectos, de uma verdadeira “hora das trevas” (Lc 22,53), na qual o espírito da violência e da discórdia verte sobre a humanidade a sanguinolenta ânfora de dores inomináveis. Será porventura necessário assegurar-vos que o nosso coração, repassado de compassivo amor, está nesta hora bem próximo de todos os seus filhos, e especialmente dos atribulados, dos oprimidos e perseguidos? Os povos arrastados para essa trágica voragem, que é a guerra, estão ainda, por assim dizer, no “princípio das dores” (Mt 24,8), mas reinam já, em milhares de famílias, morte e desolação, pranto e miséria. Do sangue de inúmeros seres humanos, mesmo de não combatentes, desprende-se lancinante brado, especialmente nessa dileta nação como a Polônia que, pela sua fidelidade à Igreja, pelos seus grandes méritos na defesa da civilização cristã, gravados em caracteres indeléveis nos fatos da história, tem direito à simpatia humana e fraterna do mundo, e aguarda, confiante na poderosa intercessão de Maria, “Socorro dos cristãos”, a hora de uma ressurreição que corresponde aos princípios da justiça e da verdadeira paz. O que aconteceu há pouco e o que ainda está acontecendo, passara diante de nossos olhos como uma visão quando, havendo ainda alguma esperança, nada deixamos de fazer do que nos sugeria o nosso ministério apostólico e os meios que tínhamos à nossa disposição, para impedir que se recorresse às armas e para conservar aberto o caminho que levaria a um entendimento honroso para ambas as partes. Convencidos de que o uso da força por uma das partes obrigaria Especial 33 a outra a recorrer às armas, julgamos dever imprescindível do nosso ministério apostólico e do amor cristão, fazer tudo o que pudéssemos para poupar à humanidade toda e à cristandade os horrores de uma guerra mundial, ainda que as nossas intenções e as nossas vistas corressem risco de serem mal interpretadas. Os nossos conselhos, se bem ouvidos com respeito, nem por isso foram seguidos. E enquanto o nosso coração de pastor, cheio de amargura e preocupação, observa o que se passa, como que aparece aos nossos olhos a figura do bom pastor, que é como se devêssemos, em seu nome, repetir ao mundo a queixa: “ah! se conhecesses a mensagem de paz! Agora, porém, isso está escondido a teus olhos” (Lc 19,42). O fato é que a guerra explodiu. Certamente nem tudo foi em vão, já que foram feitas várias intervenções por Pio XII em favor da Paz, através dos Núncios Apostólicos e de vários outros representantes Pontifícios e dos Chefes de Estado. Não se sabe claramente, mas é possível deduzir que o Papa tinha alguma ligação secreta com os alemães adversários do regime hitleriano. Mesmo que não possa ter evitado tantos massacres, se não deteve as tragédias, de alguma forma as retardou. São muito significativas as três importantes ações antes da explosão da guerra. Antes de tudo, no princípio de maio de 1939, a sondagem para uma Conferência com os cinco países Polônia, Alemanha, Inglaterra, França e Itália, para discutir e regulamentar os contrastes que provocavam o conflito entre a Alemanha e a Polônia. Esta iniciativa não foi acolhida por todos e foi suspensa no dia 10 de maio de 1939. Em seguida, o estreito acordo com o governo Inglês na tarde de 24 de agosto, e o apelo oficial, formulado de maneira contundente tendo em vista as negociações. Nada se perde com a Paz. Tudo pode ser perdido com a guerra. No dia 30 de agosto, realizou-se mais uma tentativa para convencer, no último momento, a Polônia a ceder às reivindicações da Alemanha. Tentativas que se remontam a Mussolini, apoiado pela Inglaterra. No dia 31 de agosto, uma exortação às Potências para uma solução pacífica do conflito. No dia 13 de setembro de 1939, L’Ossevatore Romano, em uma nota inspirada pessoalmente pelo Papa, declarava que a Santa Sé tinha tentado todas as possibilidades que de algum modo poderia ofertar, como tutela da Paz ou ao menos para excluir o perigo de uma guerra. Muitos eram contra a guerra e a Igreja em especial. Mas era preciso contar com os velhos rancores que Mussolini guardava contra os aliados, com as divergências 34 Especial ideológicas que separavam a Itália fascista das democracias ocidentais e por fim, o Pacto de Aço. 3.2. O Problema O que se reprovou na atitude do Papa foi o que se chamou de o Silêncio de Pio XII diante da guerra e das atrocidades cometidas pelas Potências do Eixo nos países ocupados, como também na Alemanha. A esta situação, o próprio Papa fez referências. Ele reconhece que decidir por outra metodologia de interferência naquelas circunstâncias era “dolorosamente difícil”. As discussões, os apelos e posicionamentos do Papa foram responsavelmente ponderados. As alternativas não se restringiram apenas ou simplesmente a falar ou calar. O problema era muito maior do que a clareza das palavras que a sua função exigira e ainda a complicação no que se relacionava à sua concretização quando se calculavam as consequências. Há um amplo reconhecimento de que ele atuou ativamente para evitar a guerra, para minorar as suas conseqüências e para salvar os judeus ou os perseguidos. Porém, esta atuação foi discreta, subterrânea. Era preferível assim ao invés de às declarações públicas e uma condenação oficial não faltou para despertar as consciências. A atitude do Papa, tanto quanto as informações que ele possuía, explica-se através da preocupação geral por parte dos nazi-fascistas, que certamente impedira a Igreja de desenvolver com mais facilidade o seu dever de salvar o salvável. Sobre este ponto é muito oportuna a resposta de D. Sapieha, Arcebispo de Cracóvia ao enviado de Pio XII, porque permite uma clara compreensão da situação e da problemática que envolvia os cuidados da Diplomacia Pontifícia: Ninguém mais do que nós poloneses deve ser grato à Sua Santidade pelo seu interesse. Mas se eu publicasse este documento ou se o encontrarem comigo, as cabeças de todos os poloneses não seria suficientes para uma represália. ordenada por Franck. Não se trata só dos judeus... matariam a todos... Que utilidade teria de dizer tudo o que já se sabe? É natural que o Papa esteja do nosso lado. Mas não é necessário tornar pública uma condenação pronunciada pelo Papa, se esta vem só para agravar os nossos males44. ZOLTOWISKI, P. Memória sul cardinale Adam Stefan Sapieha, in ocasione Del 6° della sua intronizzazione nella sede de Cracóvia, (o original é polonês), in Nasza Przeszlosc, 38 (1972), pp. 215-249. Para maiores esclarecimentos, cfr. A alocução de Páscoa de 1941; a rádiomensagem de 29 junho de 1941; a alocução aos cardeais de 2 de junho de 1943.; A. 44 Especial 35 Portanto, diante da exposição de tantos argumentos, resta-nos questionar: É possível afirmar que faltou coragem a Pio XII? Pode-se dizer que ele era favorável ao nazismo, uma vez que Hitler não o atendia? Ele ignorava o que estava acontecendo? O fato é que tais acusações provocaram a publicação dos documentos do Arquivo do Vaticano para iluminar a referida polêmica. Falta apenas o empenho científico dos historiadores para tornar mais conhecido o acervo publicado e o que ainda permanece fora do alcance do grande público. Um Diplomata, Secretário de Estado, antes de ser Papa, Pio XII, conhecia muito bem a problemática alemã e o nazismo. Portanto, preferiu as intervenções diplomáticas discretas, às declarações solenes. Evitou as condenações e aplicou todo empenho em defesa da vida e da paz. Por isso não se pode dizer que se trata de alguma deformação de pensamentos e de compromisso ideológico. Se os documentos são de natureza diplomática são também testemunhas de uma intensa atividade e no seu conjunto revelam que nos momentos cruciais e decisivos o Papa não fora apenas um diplomata ou um homem de Estado, mas alguém revestido de uma missão superior. Certamente faltou ao Papa uma tribuna adequada. O Cardeal de Munique, Julius Doepfner, num discurso em 1964 disse: O julgamento retrospectivo da história nos autoriza perfeitamente a dizer que Pio XII poderia ter protestado com mais firmeza. Mas não temos o direito, em todo caso, de colocar em dúvida a absoluta sinceridade de suas motivações, nem a autenticidade de suas profundas razões. E para o confronto com o que foi dito por John Cornwell, o Vaticano, no dia 14 de outubro de 1999, através da Sala de Imprensa da Santa Sé publicou uma declaração desmentindo várias calúnias escritas por John Cornwell em seu livro sobre o Papa Pio XII. A declaração demonstrou uma vez mais a inconsistência da investigação de Cornwell em sua obra: O Papa de Hitler. O que a declaração adverte, primeiramente é que Cornwell afirma que seu livro é o primeiro juízo científico e leal sobre Pio XII. Entretanto Ssbe-se que este autor não tem título acadêmico algum de História, de Direito ou de Teologia, critérios pelos quais os peritos famosos, reconhecidos mundialmente, baseiam suas críticas ao livro. Da mesma forma, são eviMARTINI, La Santa Sede e la guerra secondo i documenti degli Archivi Vaticani Vol I, in Civita Cattolica, 1965 IV, pp. 521-535; ID., La Santa Sede e i mesi più duri della seconda guerra mondiale in Cività Cattolica 1969 II, pp. 7-21 e de Pe. BLET, introduzione del Vol I degli Atti della Santa Sede relativi a la Seconda Guerra Mondiale. 36 Especial denciadas algumas das inverdades expressas por Cornwell em relação ao seu trabalho de investigação nos Arquivos Vaticanos, começando por sua afirmação de que foi a primeira pessoa a ter acesso a estes arquivos. Isto é completamente falso, esclarece o comunicado. A investigação do autor britânico se limitou a pesquisar somente duas séries de documentos, ambos anteriores ao ano 1922. Igualmente, Cornwell defende que trabalhou nos arquivos durante vários meses. Entretanto, a autorização que lhe foi concedida cobria seu trabalho em um período de somente três semanas, durante as quais o autor não foi visto no local todos os dias, conforme atestam os registros rigorosamente averiguados no Arquivo. Em seu livro, Cornwell afirma também, ter descoberto documentos secretos que permaneceram ocultos até a sua investigação, citando em especial, uma carta escrita pelo Papa Pacelli quando era ainda Núncio na Baviera. Entretanto, este documento secreto, indica a declaração, foi publicado em 1992, sete anos antes da descoberta de Cornwel. A afirmação feita por Albert Einstein nessa época é bem oportuna: Só a Igreja Católica protestou contra o assalto hitlerista à liberdade. Até então, jamais havia me interessado pela Igreja, mas hoje exprimo minha grande admiração e minha profunda afeição por esta Igreja que, sozinha, teve a inquebrantável coragem de lutar pelas liberdades morais e espirituais45. Também nãopodemos deixar de considerar as palavras de Golda Meir, uma das pioneiras do Estado de Israel, do qual era Ministra do Exterior quando da morte de Pio XII, ocasião em que fez as seguintes declarações: Durante o decênio do terror nazista, quando nosso povo sofreu terrível martírio, a voz do Papa se levantou para condenar os perseguidores e para pedir compaixão em favor de suas vítimas46. Logo, trata-se de um dos testemunhos que anula o suposto “Silêncio de Pio XII”. Certamente já se têm elementos suficientes para uma reflexão mais profunda sobre os posicionamentos acerca do pensamento dos autores antiPio XII, bem como vários argumentos desenvolvidos ao longo deste trabalho, que podem nortear pesquisas e posições que levem às direções que conduzam à verdade histórica. Pelo que se observa em pesquisa nas fontes primárias, o silêncio de EINSTEIN Albert, citado por Roche e St Germain, em “Pie XII devant l’Histoire”, prefácio, ed. Laffont, p.14. 45 46 Cfr. A entrevista do jesuíta Pierre BLET a Le Figaro Magazine, Paris, 18-9-99. Especial 37 Pio XII não foi absoluto, uma vez que os seus pronunciamentos chegaram também aos ouvidos não só de Einstein e Golda Meir, mas de tantos outros como se constata em vários documentos. O acervo publicado neste primeiro volume refere-se aos primeiros meses do Pontificado de Pio XII. No curso destes meses, a ação do Papa da Santa Sé, se desenvolve tanto num plano geral e teórico de iluminação doutrinal, como num plano prático cuja tônica incide nas iniciativas diplomáticas. Até então, o Vaticano, a priori, preocupava-se com o ministério sacramental, os direitos institucionais e até com a sobrevivência da Igreja Católica, como se pode deduzir da política das concordatas. Mas, diante da iminência da Guerra, sua eclosão e consequências, constata-se a dramática evolução na política diplomática do Vaticano. No que se relaciona ao problema internacional, a iniciativa, em sua maioria, provém da Santa Sé. Encontram-se iniciativas de cristãos isoladamente que, de certa forma, assinala uma presença de Igreja. Em todo caso, é uma constante o que Pio XII traçara com a sua experiência diplomática e seu profundo espírito religioso, visando à construção de caminhos efetivos de intervenções diplomáticas para salvar a Paz. Os Documentos contidos nos ADSS revelam a complexidade e variedade das atividades que a Santa Sé desempenhara não só para salvar a Paz como também para socorrer as vítimas da guerra. O processo da realidade política em prol da Paz é muito complexo. É preciso levar em consideração certo empobrecimento por causa dos limites, tanto em relação ao acesso às fontes, como às categorias de uma síntese que muitas vezes quer explicar muito e termina explicando pouco. Por outro lado, não se pode esquecer que a simples presença do documento, não significa que se tem claro o como tal documento foi recebido, qual foi a atenção devotada à sua recepção e como foi considerado ou tratado pelos vários círculos diplomáticos. Além disso, cada um dos editores tinha o seu foco na seleção dos Documentos. Por exemplo, encontram-se referências a documentos que não foram editados, logo, obviamente existem documentos que não foram publicados ou não se encontram no acervo da Santa Sé. Enfim, pelo que se consulta, a partir da correspondência entre a Santa Sé e os Chefes de Estado, Pio XII não silenciou. Resta saber qual era, de fato, a pretensão de tal acusação. 38 Especial Referências AA.VV., La Santa Sede e la Guerra in Europa, março de 1939 a agosto de 1940, I Vol. Cidade do Vaticano 1965. ANGELO MARTINI, La Santa Sede e la Guerra secondo i documenti degli Archivi Vaticani (vol I ), in Civittà Cattolica 1965 IV pp. 521-535 _________, La Santa Sede e la Guerra in Europa dal giugno de 1940 al giugno 1941, in Civittà Cattolica 1968 I pp. 8-22 _________, La Santa Sede e i mesi più duri della Seconda Guerra Mondiale in Civittà Cattolica 1969 II pp. 7 – 21 BLET Pierre, L’Osservatore Romano, n.° 17, 29 de abril de 1998, pp.16-17. -------------, Pius XII and the Second World War, (trad. Lawrence J. Johnson) New York: Paulist Press, 1999). _________, Pio XII e a Segunda Guerra Mundial. Que Dizem os Arquivos do Vaticano, Ed Principia, Portugal 1999. DOINO, William Jr., A Guerra Pio: Respostas aos críticos de Pio XII, Lexington Books, pp- 58-59 ZOLTOWISKI, P. Memória sul cardinale Adam Stefan Sapieha, in ocasione Del 6° della sua intronizzazione nella sede de Cracóvia, (o original é polonês), in Nasza Przeszlosc, 38, Cracóvia 1972. Especial 39 Artigos RELIGIOSIDADE E FESTA: O SAGRADO E O PROFANO NA FESTA DO SANTO PADROEIRO Prof. Dr. Luiz Alencar Libório47 Msc. José Carlos Lima Filho48 Resumo: A devoção ao santo, apesar de ser uma devoção antiga nos moldes do catolicismo de santos, consegue adequar-se ao catolicismo clerical, mesmo mantendo as expressões do catolicismo tradicional. Na verdade, a peregrinação, a procissão ou mesmo a romaria dedicada ao santo protetor se identificam como um fenômeno reinterpretado por diversas pessoas de segmentos sociais diferentes. O objetivo deste artigo é apresentar algumas considerações sobre o santuário de Santa Luzia (Mossoró-RN), a fé do povo e os ritos e como os peregrinos observam o rito itinerante. A metodologia está num modo descritivo com observação participante, seguindo um estilo jornalístico. A devoção e a festa abrem um vasto campo de possibilidades para a área das Ciências da Religião concernente à cultura e às demonstrações de mitos e de cosmologias da tradição de longa duração. Palavras-chave: Sagrado, profano, devoção, romaria, fé. Abstract: The devotion to the Saint, despite being an ancient devotion in the manner of the Saints of Catholicism, can fit the clerical Catholicism, even maintaining the expressions of traditional Catholicism. In fact, the pilgrimage, the procession or even the popular festival (pilgrimage) dedicated to the Saint Patron are identified as a phenomenon reinterpreted by different people from distinct social segments. The objective of this paper is to present some considerations on the shrine of Santa Luzia (Mossoró-RN), people’s faith and rites and as the pilgrims observe the traveling rite. The Methodology is in Este artigo é parte da Dissertação de Mestrado do Mestre em Ciências da Religião (UNICAP) José Carlos Lima Filho orientado por Dr. Luiz Alencar Libório. A publicação conjunta de artigos é uma recomendação da CAPES. 47 O Mestre José Carlos Lima Filho fez sua Dissertação de Mestrado sobre a Festa de Santa Luzia, em Mossoró (RN), caracterizada pela profundidade e estilo jornalístico. 48 40 Artigos a descriptive way with participant observation following a journalistic style. Devotion and feast open up a vast field of possibilities for the Religion Sciences area concerning the culture and demonstrations of myths and cosmologies of long term tradition. Key Words: Sacred, profane, devotion, pilgrimage, faith. Introdução Ao falarmos em expressão de religiosidade na festa, reportamo-nos ao rito, ao mito e ao símbolo como partes integrantes do espaço e do tempo sagrados. Para Rosendahl (1996, p. 30), “o espaço sagrado é um campo de forças e de valores que eleva o homem religioso acima de si mesmo que o transporta para o meio distinto daquele no qual transcorre sua existência.” É por meio dos símbolos, dos mitos e dos ritos que o sagrado exerce sua função de mediação entre o homem e a divindade. As expressões de religiosidade adquirem forma no espaço sacralizado, e, enquanto expressão do sagrado, possibilita ao romeiro entrar em contato com o transcendente. Conforme aponta Berger (1984, p. 39), “o homem enfrenta o sagrado como uma realidade imensamente poderosa...”. O romeiro sente vontade de se movimentar no espaço sagrado, daí o desejo de participar da construção do sagrado. Para o romeiro, os espaços sagrado e profano interagem mesmo sendo expressões contrárias e ao mesmo tempo se diferem e se atraem; entretanto, jamais se misturam. “O espaço sagrado e o profano estão sempre vinculados ao espaço social” (ROSENDAHL, 1996, p. 32). Este artigo trata de descrever a festa religiosa em sua origem e o sentido manifestado pela fé e tradição no espaço e tempo sagrado e profano. O santuário referente a qualquer santo oferece um campo vasto para a investigação do fenômeno religioso a partir do rito caminhante como: a promessa, procissão, peregrinação ou romaria, inserida na cultura, na qual está o mito, o rito e o simbolismo religioso, permitindo um estudo aguçado sobre a religiosidade popular com base na tradição, bem como no catolicismo institucional ou oficial. Outra questão pontual diz respeito à criação da ideia de proteção diante do rito. A intenção de pesquisar sobre religiosidade como expressão religiosa se justifica na ausência de uma literatura que trate, de modo acadêmico, sobre os ritos itinerantes, ou seja, os ritos processionais. Os ritos de movimentos, tais como procissões, peregrinações e romarias são similares nas expressões gesticulares, palavras, comprometimentos, Artigos 41 mas diferentes de um lugar para outro, porque a religiosidade é mais cultural do que doutrinária. A religiosidade surge com a mistura de crenças, culturas, religiões e superstições, com muita emoção e clima festivo. Para o povo devoto, o milagre nas imagens, está no mito de origem: cavernas, fundo do rio, floresta, capela, etc. O maravilhamento sobrenatural, o inexplicável; tudo é mito, ou seja, narrativas sagradas. Isso comprova que não existe rito sem o mito, daí ocorrerem à experiência religiosa e à intimidade do romeiro com o santo a afetividade, a afinidade, o contato e as trocas simbólicas que confirmam as expressões de religiosidade sem a presença de sacerdotes, geralmente no ambiente doméstico. As expressões de religiosidade são evidentes na relação íntima das pessoas com o santo, com o nome das cidades e dos estabelecimentos comerciais. Nas cidades, o fervor das pessoas na preparação para a festa é algo diferente; porém as expressões de religiosidade são iguais em termos de ritual em qualquer lugar do mundo, em que o belo aparece para receber o sagrado com folhagens, vasos, toalhas, areia colorida, papel brilhante, iluminação nas ruas, andores giratórios e decorados, entre outros. Na religiosidade popular não existe fundamentalismo, nem fanatismo, mas muita devoção e pouca religião. Participar religiosamente de uma festa implica a saída de duração temporal “ordinária e a reintegração no tempo mítico, reatualização na própria festa” (ELIADE, 2006, p. 63). Segundo Bourdieu (2009, p. 49), “religiosidade reverte-se de um caráter intensamente pessoal, tornando parte integrante da experiência religiosa”, enquanto que para Durkheim, a religião é um ritual, nunca uma festa. As festas brasileiras estão diretamente ligadas às tradições lusitana, indígena e africana. Sob a herança da cultura europeia, herdamos o catolicismo dos santos de devoção, como por exemplo: o culto às imagens, as novenas, as promessas; tudo isso misturado a elementos culturais e religiosos de povos nativos e africanos que resultaram nas rezas fortes, “benzeduras”. A imposição cultural total dos portugueses não foi possível em razão da resistência dos nativos. Uma das alternativas dos colonizadores foi, através das festas, ligada às produções agrícolas, realizar a religação entre colheita, semeadura e homens. A festa era para agradecer e pedir a proteção divina. Com o tempo, a festa passou a estar associada a outros elementos, tais como: padroeiros, seres sobrenaturais, adotando santos do catolicismo. Já existindo, as festas religiosas, de imediato, se adequam às festas católicas de padroeiro e de santo milagreiro. Dentre as festas religiosas, 42 Artigos também existiam as festas menores aos domingos, denominada de domingas (DEL PRIORE, 2001, p. 13). A Igreja Católica foi-se adequando às comemorações festivas alusivas a santos que passaram a dar nomes às capelas, às fazendas, às cidades, às pessoas e aos estabelecimentos comerciais. “Existe um grande número de cidades brasileiras, apadrinhadas com nome de santos e nossas senhoras, as mais variadas invocações” (AMARAL, 1998, p. 8). O termo “religiosidade” é inerente ao homem desde os primórdios da história da humanidade e sempre esteve presente antes da religião, em que o transcendente é revelado pela ação (sentimento, devoção e confiança). A religiosidade está nas emoções humanas, nas festas ou nas ritualizações, unindo o sagrado ao profano; portanto, um vínculo entranhado na cultura do povo. Vejamos o que diz Peter Berger (1999) a respeito da religiosidade: “é um sentimento difuso de ligação com o sagrado, sem hierarquia formal, regras de comportamento rígidas e centrando a atitude religiosa na liberdade do indivíduo”. A religiosidade é a religião de cada sujeito. É aquilo que entendemos por sagrado (sentimento religioso). É, pois, uma teologia feita pelo povo, fora do contexto e do texto. É o próprio conhecimento religioso com características popular, histórica e antropológica. Enfim, a religiosidade emana do conhecimento empírico e vivencial do povo, uma religião sem amarras; assistemática, espontânea, voluntária e coletiva. Uma festa organizada por diversos segmentos da sociedade, trazendo um resultado com ganhos significativos no tocante à mistura de crenças, valores e anseios. O evento festivo, que revive tradições, reconstitui a história a partir da identidade cultural e social da cidade. As informações que obtivemos na festa de Santa Luzia, em Mossoró (RN), recorreram às conversas espontâneas com romeiros, registros de imagens, coleta de dados de jornais, periódicos. Respaldamo-nos em alguns teóricos, os quais nos forneceram argumentação para a construção do nosso objeto, a saber: Eliade (1992), Dürkheim (1999); Del Priore (2000), Cascudo (2011), Berger (1999); Terrin (2003), Rosendahl (1996), Bourdieu (2009). O sentido da festa, numa relação sacro-profana, é constituída por ligações entre clero, moradores e devotos nos contextos histórico e cultural da promessa ao santo. Além disso, a questão da herança cultural dos nativos indígenas, africanos e lusitanos está inserida na religiosidade, na religião e na festa. Finalmente, há a análise do rito processional, ou seja, itinerante, como Artigos 43 fenômeno sociorreligioso que enriquece a nossa sociedade, buscando elementos que só contribuíram para a agregação de elementos culturais e religiosos. Na vida sociocultural e nas religiões, o rito é evidenciado e repetido todos os anos. Por fim, a religião no Brasil eclodiu a partir da religiosidade sincrética e híbrida, aglutinando elementos da cultura e da religião, enriquecendo a grande diversidade religiosa brasileira, sendo motivo instigante para se estudar na academia. As festas nos enfoques sagrado e profano, nas relações sociais, nos âmbitos cultural, temporal e espacial estão inseridas em todo contexto de uma festividade, através de um ponto convergente: a imagem. Como afirma Manguel: “As imagens tornam presentes para o analfabeto, para aqueles que só percebem visualmente, porque nas imagens os ignorantes veem a história que tem de seguir” (MANGUEL, 1997, p. 177). A imagem oferece uma mensagem tanto para o instruído como para o ignorante; enquanto para os alfabetizados, a imagem é uma opção de leitura, algo a mais, dizendo a imagem tudo para o analfabeto.. Certamente, já se estudou a respeito da festa, tratando do aspecto do sagrado, pelo seu valor e ressignificação nas expressões de religiosidade, fomentando uma riqueza histórica, social e cultural. Finalmente, as expressões de religiosidade na festa religiosa como características sagradas e profanas, embora se apresentem unidas, não se misturam. As expressões de religiosidade ganham visibilidade na festa, quando remonta a história de fundação da cidade, garantindo as identidades cultural e social como heranças lusitana, indígena e afrodescendente. 1. A origem do culto ao santo A devoção ao santo, apesar de ser uma devoção antiga nos moldes do catolicismo de santos, consegue adequar-se ao catolicismo clerical, mesmo mantendo as expressões do catolicismo tradicional. Na verdade, a peregrinação, a procissão ou mesmo a romaria dedicada ao santo protetor se identificam como um fenômeno reinterpretado por diversas pessoas de segmentos sociais diferentes. Neste artigo, mostraremos algumas considerações sobre o santuário e como os peregrinos observam o rito itinerante. A devoção e a festa abrem um vasto campo de possibilidades para a área das Ciências da Religião concernente à cultura e às demonstrações de mitos e de cosmologias da tradição de longa duração. Diante do universo católico institucional, a louvação e a veneração ao santo trazem visibilidade e autenticidade participante dos dirigentes 44 Artigos do clero. Os depoimentos dos romeiros de forma voluntária e espontânea foram como horizonte que se abriu na compreensão das expressões de religiosidade na festa e na devoção. Os ranchos e alojamentos acontecem nas escolas, nos hotéis da cidade e nas residências de amigos, em que a conversa, quase sempre informal, fornece ricas informações através de laços de convivência. Na verdade, todos buscavam o contato direto com a tradição que envolve a multidão que caminha todos os anos. Talvez a romaria possa ser uma ferramenta pela qual os peregrinos entram em contato com sua cultura, já ameaçada pela sociedade secularizada, reinventando a tradição. A riqueza de conhecimento a partir das conversas e das estórias é muito grande, pois nos romeiros estão os mitos, as lendas e as superstições, ou seja, o pensamento mágico da religiosidade. Diversos estudos sobre santuários, devoção e festa, apontados por outros autores em países diferentes coincidem com as estórias contadas pelos romeiros. A relação entre religião e mito remonta ao catolicismo dos santos e do catolicismo clerical. Busca-se mostrar essa relação no contexto histórico e religioso, a partir das expressões festivas e devocionais no rito que caminha. Observando e analisando a procissão ou peregrinação, destacamos alguns momentos e questões pontuais: • Primeiro momento: tem-se como finalidade aproximar o leitor deste estudo sobre ritos itinerantes. • Segundo momento: a discussão do sagrado no contexto da procissão: moradores, romeiros e instituição religiosa. • Terceiro momento: as experiências junto aos romeiros, os votos ou promessas. • Quarto momento: pontuar os rituais e a Festa na relação entre o profano e sagrado, construindo ligações entre clero, moradores e devotos. O foco está voltado para a tradição em torno da festa em homenagem ao santo e da experiência dos devotos. A origem da devoção do povo está relacionada com o templo, enquanto instituição, embora o fato histórico da Contrarreforma no Brasil tenha levado muitos leigos e clérigos da península Ibérica e da América a abandonarem a vida urbana em direção à natureza como ponto de encontro com o sagrado. Nesse sentido, essa tentativa de devoção do povo deu origem a muitos santuários na América Latina e, principalmente, no Brasil. Artigos 45 1.1. O santuário está na origem da devoção O santuário, durante muito tempo, limitou-se às condições política, social e religiosa local passando a fazer parte do catolicismo institucional. O espaço sagrado está na origem da devoção e a festa na peregrinação fundante e nas estórias dos romeiros. Os romeiros vão à procissão em busca de um lugar sagrado, pois o sentimento religioso está dentro do romeiro e a peregrinação é uma busca do espaço sagrado que está dentro de cada romeiro. Nos últimos tempos, o catolicismo romano resolveu assumir a voz daqueles que, em um passado próximo, foram obrigados a silenciarem. O sentimento religioso está vinculado ao romeiro e diretamente ligado ao lugar, em que o sagrado surge de modo concreto, ao alcance dos olhos, podendo ser tocado. A imagem e o sentimento religioso se entrelaçam nos relatos orais e escritos. A peregrinação abre caminho, permitindo o contato com sua própria subjetividade. A devoção, por outro lado, chama a atenção para um olhar que desperta, ilumina, liberta, transforma, cura, intercede e protege. Na verdade, as coisas são as mesmas, porém o nosso olhar pode ser novo. 1.2. O sentido da festa ao santo Na caminhada, os romeiros aglomeram-se, ajoelham-se, levam uma rosa do andor, beijam o vidro que protege a imagem, trazem consigo a fé e a devoção ao santo. O sentido da festa transcende o dia rotineiro. Hoje, a festa é todo dia, perdendo aquele encanto da esperança e da renovação. Daí, o sagrado apresenta uma conotação de curiosidade e de novidade provisória com efeito de turismo religioso. A festa sempre se configurou como uma dose de esperança. Hoje, talvez a festa remonte a um aspecto cultural originário do passado, ou seja, uma tradição preservada com saudade e memória da cultura e da fé. O sentido da festa, ou melhor, a ritualização na sociedade contemporânea é fardo para alguns e festa da vida para outros. 2. Peregrinação: o povo a caminho do sagrado devocional A imagem do santo exprime a vontade do povo em busca de Deus como proteção na importância e na atualidade do testemunho para os tempos modernos. 46 Artigos Os devotos trazem consigo a gratidão e o louvor na esperança de um mundo mais fraterno. Os sinos, os fogos e as sirenes se misturam com as vozes do povo que reverencia, em frente ao templo sagrado, a representação celeste na imagem do santo padroeiro da cidade. A autêntica expressão de fé e de devoção ao santo é um retrato real de um catolicismo sem amarras, espontâneo, livre de normas doutrinais, mas convicto do sentimento religioso que existe em cada fiel ao São Salvador na figura do santo como verdadeiro representante de Deus na Terra. Nos gestos, expressões de alegria e de choro, estampados nos rostos dos romeiros, além do esforço envidado para poderem estar presentes na festa, há muita convicção de fé e de devoção por acreditarem num mundo de esperança. A expressão da própria religiosidade popular se caracteriza pelas orações, louvores, aplausos e agradecimento. A festa é um momento forte de contato com o divino através do lazer, da vida religiosa e dos gestos de fé (novenas, missas, procissões e a parte festiva) e de devoção. 2.1. O caminhar manifestado pela fé e pela tradição A imagem para o devoto não é apenas uma figura simbólica, mas evoca uma divindade ausente. Como afirma Fernandes (1990, p.116), “é na sua materialidade que a santidade se manifesta efetivamente, de modo a ser visto e focado”. No dia da procissão, forma-se uma extensa fila de devotos que passam diante da imagem para rezar, tocar com reverência a santa protetora dos olhos (Santa Luzia). O momento apoteótico é a procissão, quando a imagem do santo sai em procissão pelas ruas da cidade, acompanhada pela multidão sobre um andor extremamente ornamentado com flores, filó e muita luz. É o momento em que o sagrado, fora do santuário, irradia uma verdadeira epifania. A sala dos milagres justifica a substituição da religiosidade. Para os romeiros, o sagrado é uma realidade que se pode enxergar e deixar-se tocar por eles, e, muito embora o culto clerical desautorize este misticismo, ele persiste no espaço do Santo como uma forma de aproximação ao sagrado. No espaço do santuário, mesclam-se celebrações do culto oficial com as devoções populares, por exemplo, tocar as relíquias do Santo, mesmo considerando uma atitude mágica, a autoridade religiosa não a reprime, mas evita falar sobre ela nos sermões. Grande parte dos peregrinos faz parte das classes menos abastadas, porém podemos constatar a presença de pessoas ilustres que acompanharam a procissão em todo seu trajeto. Artigos 47 A procissão não faz uso de cavalo ou do somente andar a pé. Hoje, o que se pode constatar é o uso de motocicletas, bicicletas e automóveis. Na opinião de alguns romeiros, dizem eles: “naquele tempo, as pessoas iam a pé pagar promessa ao Santo, com as trouxas na cabeça, quartinhas d’água, chapéu de palhas na cabeça. Andavam muitas léguas para ir visitar o Santo. Não tinha canseira, tinha muita fé”. Acrescenta ainda o romeiro: “parece que a quantidade de fé daquele tempo era mais do que hoje”. O uso de animal cargueiro levando mantimentos hoje foi substituído por carros fretados ou mesmo pelo carro próprio. Atualmente, os romeiros viajam de ônibus fretado, contratado por um chefe de romaria que se responsabiliza de organizar tudo: reúne os romeiros, faz a listagem dos interessados, acerta o preço e recolhe o dinheiro, marcando a data de saída, além de providenciar a hospedagem. Entre os romeiros do mesmo ônibus existe uma relação fraternal, todo mundo é amigo. Nos últimos tempos, com as rodovias asfaltadas e as exigências da lei de trânsito, os caminhões passaram a ser substituídos por ônibus, apesar de mais caros. A relação de amizade fraternal deixa de existir quando o organizador é um político. No caso, o que se observa é o clientelismo estabelecendo a relação entre fortes e fracos. O tempo máximo de permanência na cidade é de três dias, incluindo a chegada e a saída. Entre os romeiros, seus trajes são caracterizados, simbolizando o santo padroeiro. . Além dos romeiros devotos, temos outros visitantes atraídos pela festa do padroeiro. Esses romeiros geralmente viajam em carros particulares ou ônibus da linha e participam, de maneira eventual e curiosa, buscando entretenimento. Diante do exposto, vejamos o que diz sobre isso Sanchis (1983, p. 97): “a romaria não é uma simples reunião de pessoas que participam de uma mesma visão de mundo.” Já Eade & Sallnow (1991, p. 15) afirmam que a romaria é: “como uma espécie de espaço ritual capaz de acomodar sentidos e práticas diversas”. 2.2. Espaço de trocas simbólicas Os rituais da romaria nos santuários católicos apontam para um sistema de trocas simbólicas, entre o romeiro e o santo, como afirmam Eade & Sallnow (1991, p. 24), ao afirmarem que “são importantes os santuários depósitos e dispensários de graças e bênçãos em suas variadas formas materiais e não materiais; as doações em dinheiro, velas, missas 48 Artigos encomendadas às almas, o sacrifício e os favores que se espera alcançar materialmente e espiritualmente”. As mercadorias expostas nas barracas vão desde santinhos, artesanato e até aparelhos eletrônicos. Grande parte dos produtos é originária do Paraguai, salvo algumas barracas ligadas à Paróquia com produtos artesanais. Para o catolicismo oficial, o comércio é uma contravenção, enquanto para os romeiros, o comércio integra a festa, juntamente com as trocas simbólicas estabelecidas na celebração ao santo protetor. Muitos romeiros matam o tempo, olhando preços e comprando lembrança do Santo e da cidade para levar para casa, por exemplo: uma pequena estatueta em um quadro emoldurado com sentido de dar extensão à presença do santo milagreiro na sua vida. O fato é que o Santo e o mercado são representados como mediadores de bens materiais e espirituais. É evidente que o povo é religioso, sobretudo, supersticioso. É religioso; entretanto, não tem pertencimento a nenhuma denominação religiosa. Na romaria, constata-se a grande ligação com Deus, por intermédio da figura do Santo. Há uma preocupação dos dirigentes religiosos em valorizar as práticas rituais dos romeiros e de incorporá-las ao culto oficial, a fim de buscar uma liturgia mais popular, valorizando os sermões a partir do povo. As promessas feitas pelos peregrinos dão origem ao rito itinerante. Como afirma Fernandes (1990, p. 118), “ao fazer a promessa, o promesseiro reconhece que existe um centro que está fora dele, junto ao santo”. Para chegar até o centro, os peregrinos decidem caminhar e, como se refere a um contato com o sagrado, a caminhada é vivenciada como um ritual de aproximação e limpeza espiritual. O que leva o peregrino a se tornar um devoto está no milagre alcançado no espaço doméstico. Os milagres acontecem de fora para dentro do santuário. Na conversa que tivemos com os romeiros, não presenciamos nenhum milagre no local do santuário, enquanto para os dirigentes do culto, não existe nenhuma motivação com relação às manifestações de milagres no local do culto. A difusão dos milagres se dá boca a boca, pela experiência pessoal do promesseiro, através de uma cadeia de conversação oral; daí estabelecer a romaria ou a procissão como uma exibição pública e reconhecida por todos. Os relatos dos milagres que contribuem na tradição oral são como documentos que ajudam a sustentar o sistema de relações entre o Santo protetor e o devoto peregrino. As curas fora do santuário geralmente acontecem antes da promessa Artigos 49 ser cumprida junto ao Santo protetor; não apenas os votos e a fé nos milagres colocam as pessoas na trilha da peregrinação, mas também o contato coletivo de companheirismo que a procissão proporciona. Os rituais de uma procissão e o sentimento de religiosidade se apresentam de modo diferente, expressando um leque de práticas e símbolos a partir do catolicismo oficial, contrapondo com os espaços alternativos, onde o peregrino se comporta de modo espontâneo, livre, assistemático e fora do domínio ortodoxo. A procissão, a romaria ou a peregrinação transmitem aos devotos o sentido que sustenta a cultura, na qual eles estão inseridos. A ligação entre cultura e ritual leva o romeiro ao centro do culto, durante a caminhada celebrativa. O ritual atualiza o mito que vem das origens do culto ao Santo, sacralizando as normas e orientando a ação dos devotos. A cultura e o ritual andam juntos e os símbolos contribuem para compreender a visão de mundo. Os ritos praticados na procissão, mesmo mantidos na uniformidade de uma celebração, apresentam formas de um universo variado de práticas individuais, cujos devotos atuam livremente, distantes do controle normativo dos sistemas religiosos, incorporando símbolos que articulam pessoas de diferentes origens sociais e diferentes experiências religiosas. Os rituais na procissão são múltiplos, comparando com as celebrações como novenas, sermões, missas, a procissão e o culto à imagem do Santo. Porém os romeiros usam o catolicismo tradicional popular. Para Steil (1996), em sua obra: “O sertão das romarias, na polissemia da linguagem ritual”, as pessoas se identificam com os seus símbolos e sentem-se solidárias, apesar das diferenças sociais e ideológicas existentes entre elas. O culto católico, na maioria das vezes, tem sido usado como ferramenta de manifestação do poder clerical no santuário, reafirmando a mediação entre o peregrino e Santo. O culto religioso se constitui o ponto de convergência da procissão. Pierre Sanchis (1983, p. 98) reitera, dizendo: “o clero regula a procissão no entorno do santuário” Os romeiros jamais passariam sem a celebração religiosa. Eles a consideram o momento forte da procissão. Portanto, a missa é a ponte de ligação entre devoção e catolicismo clerical. O peregrino, quando está na festa, assiste à missa, volta à hospedaria, descansa e torna a voltar para a celebração religiosa. 50 Artigos O sagrado e o profano não estão tão separados, embora no pensamento popular esteja distante. Entretanto, a missa é central, proporcionando as diferentes experiências religiosas se interagirem entre si na polissemia do ritual. Nesse sentido, acreditamos haver um entendimento mais direto entre romeiros e dirigentes sacerdotais no processo de comunicação com o devoto. O culto religioso contempla emocionalmente os romeiros e seus participantes e a imagem do Santo, sendo privilegiada como sagrada, projeta-se para fora do santuário, sacralizando o espaço profano. A procissão proporciona certa igualdade onde todos caminham com o sentido de renovação espiritual. A multidão, caminhando pelas avenidas e ruas, é como se a vida saísse da rotina e penetrasse no domínio da liberdade utópica. Os caminheiros se despedem da imagem, fugindo do controle clerical, tocando-a para se revestir de santidade; a mesma representa um movimento de interiorização com a intenção de valorizar o espaço sagrado controlado pelo clero. O devoto dificilmente vai à cidade-santuário sem passar em frente à imagem, tirando fotos e tocando-a. Nos últimos dias de festa, formam-se longas filas e aglomeração. Diante da imagem, os romeiros a reverenciam e rezam, tornando-se diferentes e renovados espiritualmente. “Os romeiros, os significados míticos do lugar se incorporam à imagem ao longo do percurso histórico” (STEIL, 1996, p. 129). A relação direta com o Santo é uma das características do ritual itinerante, em que o Santo é uma pessoa íntima e humana, mas poderosa e solidária para o romeiro. A dimensão festiva do rito itinerante refere-se ao fato de o corpo ocupar um lugar central, enquanto ligação entre a morte e a vida, dor e prazer. Como escreve Sanchis (1983, p.155-160), “os contrários se compõem para homenagear o santo”. 3. A representatividade da imagem na festa em contexto histórico Nos textos sagrados cristãos, o segundo mandamento de Deus a Moisés não permite o uso de imagens: “não farás para ti imagens de escultura, nem figura alguma do que está em cima, nos céus, ou embaixo, sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra”. (Ex. 20,4). Artigos 51 Na religião e na arte, as imagens esculpidas pintadas e desenhadas sempre tiveram lugar de destaque, tanto para os letrados como para os iletrados. Com o surgimento da arte gótica no século XIII, as imagens tomaram conta das janelas, colunas, paredes, ou seja, a iconografia do sagrado se expandiu para a madeira, pedra e vitrais. Por volta do século XIV, as imagens saíram das paredes para o papel com pouco texto e muita imagem, o que se popularizou de imediato por toda a Idade Média, tornando-se a bíblia dos pobres, embora a escrita e a leitura fossem um privilégio de sábios e poderosos. Entretanto, o folheto e livros com muita imagem e poucas palavras já era um grande avanço. É bem verdade que a iconografia garantiu o imaginário do povo à feitura das imagens para a permanência do sagrado na fé meramente visual, projetando uma íntima relação de proximidade entre o fiel e o Santo. A representatividade da imagem na festa religiosa garante o culto aos santos, como foco fortalecedor do catolicismo na prática da fé, desde o início dos séculos e tem continuado até os dias atuais. É fato que as canonizações continuam, muito embora o processo de santificação se limite ao controle do Vaticano, em Roma. 3.1. A cultura religiosa e a santidade Na cultura religiosa, a dimensão da santidade é um aspecto difuso e multifacetado que vem adquirindo forma no decorrer do tempo. Ser santo, no início dos primeiros cristãos, era adotar regra do martírio ou ter assumido a causa do rei confesso. Em meados do século III, o termo “santidade” passou a ser encarado de outra forma, porque as perseguições não mais aconteciam. A santidade se voltou para os mosteiros e posteriormente para o clero, por serem representantes e intermediários entre o divino e o homem, além de portadores da concepção de sagrado. O título de Santo era acessível e automático para os sacerdotes. Já no século XI, somente o papa teria direito de santificar ou canonizar alguém como Santo que merecesse ser cultuado como Santo. A questão de Santo passava por uma formalização institucional, regido pelo direito canônico (PETRUSKI, 2005, p. 74). A imagem só tem valor significativo e estético quando a consciência mítica se rompe, surgindo um modo privado reconhecido na tradição, na arte, o que ocorre nos oratórios apresentados no período festivo. No Brasil, no século XVI, as ritualizações ou as festas devocionais vêm desde os primeiros anos de colonização. A função das festas religiosas 52 Artigos teve um papel fundamental na mistura entre grupos sociais e matrizes religiosas. Apesar das mudanças estruturais, a devoção e a promessa ao Santo, inseridas na festa do padroeiro e milagreiro, ainda hoje é uma evidência e motivo para festejar. 3.2. O perdurar da religiosidade popular em nossos dias Podemos afirmar que o rito no santuário está implícito nas expressões de religiosidade popular, ou seja, no catolicismo dos santos ainda hoje. As expressões religiosas populares se inseriram no catolicismo universal, frente aos símbolos, às crenças, aos mitos e aos ritos do espaço local que resistiu ao poder ortodoxo, mas se mantendo na tradição oral. O poder atrativo dos santuários diz respeito à diversidade do campo religioso brasileiro, especialmente no catolicismo dos santos, constituído por romeiros, moradores e autoridades religiosas, formando hierofanias diversas. Estudar a procissão como parte da festa do Santo padroeiro do lugar vai de encontro à tradição e contrapondo-se à modernidade. O que ocorre são dois universos fechados, confrontando com a experiência religiosa dos devotos, não diminuindo a prática da promessa, da procissão e da devoção ao Santo protetor nos últimos anos. O crescimento da festa permanece até os dias atuais, o que antes se constatava com a presença de romeiros vindos da zona rural. Hoje, grande parte dos romeiros é de origem urbana. Talvez a festa e a procissão tenham adquirido um novo perfil de turismo religioso, em que prevalece a curiosidade do evento religioso sem ser potencialmente institucional. As festas religiosas são manifestações que expressam a verdadeira religiosidade no grande mosaico religioso brasileiro, representadas pelos gestos, palavras, atos, na busca do encontro com o sagrado, alicerçado pelo mito, rito e o símbolo. Cultos aos santos, missas, ladainhas, novenas e procissões são práticas celebrativas que estabelecem uma relação de proximidade entre o romeiro e o Transcendente. As festas acontecem nos espaços sagrados, agregando pessoas de diferentes cores, faixa etária e classe social, promovendo um espetáculo de luz, cores e sons. O momento religioso apresenta-se com a função de socializar e valorizar os quesitos história e cultura. O encantamento dos romeiros se dá pelas velas acesas, fogos de artifício, Santos, vestimentas, ornamentos suntuosos a se aplicar na festa, são as dificuldades cotidianas esquecidas, vivendo o “novo” durante vários dias de festa. Artigos 53 Na história das civilizações, a festa tem sido o viés principal de todos os povos e religiões, levando em conta o espaço e o tempo sagrado como referência. Os textos sagrados cristãos podem constatar inúmeras festas, tanto no Antigo como no Novo Testamento. Dessa forma, o espaço e o tempo sagrados coincidem com a festa, ou seja, a ritualização destinada a cada Santo na data comemorativa. No Brasil, o catolicismo marcou, de modo incisivo, a figura dos santos como expressão de religiosidade, comprovada nos nomes das cidades, ruas, estabelecimentos comerciais, empresas, nome de pessoas, além dos feriados atinentes aos Santos protetores e padroeiros das cidades. Por uma questão histórica e cultural, os poderes político e econômico estão direta ou indiretamente ligados às festas religiosas, embora, de fato, o poder final termine com a instituição religiosa. O poder político apoia as festas religiosas, legitimando o poder teocrático, fazendo-se presente nas novenas, missas, procissões, entre outras práticas religiosas. Tudo gira em torno da festa do padroeiro. Desde o período colonial que o povo e a política se uniam nas procissões num certo nivelamento social aparente. Hoje, a presença dos políticos é prática obrigatória nas festas. No templo dedicado ao Santo protetor, os ritmos diversos são motivos de atrativos para o povo no entorno da Catedral, o que podemos denominar de parte profana, entretanto, os momentos sagrados acontecem no interior do templo, segundo opinião dos dirigentes religiosos. Para os romeiros, os momentos profanos fazem parte do sagrado, porque proporcionam a confraternização entre pessoas de diversas origens sociais. Muitas expressões de religiosidade fogem ao controle do clero. O santuário é um espaço urbano de amplas zonas rurais e por essa razão, ainda se preserva a identidade cultural, ou seja, a memória de algumas comunidades que defendem a tradição, apesar das rupturas culturais promovidas pela mídia e o bombardeamento de informações. Considerações finais No decorrer deste artigo, algumas questões pontuais foram-se estabelecendo, o que levou à reflexão sobre a festa do povo e suas expressões de religiosidade a partir dos aspectos históricos, culturais e sociais. A festa é uma oportunidade única de se criarem possibilidades, gerando manifestações nos seios cultural e religioso: na linguagem expressiva; na vivência de valores de solidariedade, articulando a vida do povo em torno dos símbolos, mitos e ritos. 54 Artigos O lúdico se manifesta nos valores, criando utopias, sintetizando vitórias e expressando o ethos de um povo, mesmo sendo uma sociedade globalizada, ou seja, a cultura nivelada de modo universalizado, trazendo em seu bojo animação agregada ao sentimento religioso, entranhado no ser humano. Ao terminar este artigo, sentimo-nos como se fôssemos romeiros, relatando uma estória conhecida por todos e repetida várias vezes, de pessoa para pessoa; histórias contadas com verdadeira significância de algo alcançado com sucesso, o que podemos chamar com certeza de “expressões de religiosidade” de um povo. A secularização tem ameaçado a tradição, ou seja, a religiosidade e o hábito igrejeiro de frequentar os templos têm entrado em crise, sendo substituído pelos espaços virtuais. A multimídia tem desafiado os templos, praças e ruas, mas as festas religiosas ainda sobrevivem no século XXI, embora enfrente desgastes gradativos. O colorido das luzes, o calor humano, o lúdico e o miraculoso, talvez corroborem para a permanência das festas religiosas. Por outro lado, a curiosidade é outro aspecto a ser considerado a exemplo do turismo religioso, cujas tradições podem adquirir uma nova configuração frente à secularização acentuada das sociedades modernas. O homem moderno talvez precise de novos caminhos para se reencontrar com o sagrado, numa prática religiosa virtual na busca de valores a serem rememorados. A festa religiosa com base na tradição ainda representa a fundação e a história de um povo ou cidade, estabelecendo elo com os Santos protetores do espaço social, cultural e religioso, reatualizado pelo mito. Em pleno século XXI, as festas ou ritualizações se transformam, passando a se adequar ao novo momento da cultura globalizada. A nossa proposta é tornar este estudo um trilhar de reflexões para futuros estudiosos da área das Ciências da Religião e áreas afins que desejem compreender o contexto, no qual está inserida a religiosidade na festa religiosa, podendo ser motivo de estudo nas escolas, nas ONGs ou espaços que tenham como finalidade formar cidadãos comprometidos com a identidade cultural e social. Este artigo sugere, a princípio, tornar-se uma fonte de reflexão para interessados em investigar o sentido da festa, a partir da identidade histórica local, tomando como base: os diferentes costumes, tradições e representações simbólicas. A religiosidade como sentimento religioso assistemático, fora do Artigos 55 texto e do contexto, pode corroborar para as transformações sociais de uma região, cidade ou comunidade. Dessa maneira, buscando a verdadeira origem da religião e da religiosidade, estamos ao mesmo tempo procurando a nossa origem humana. Referências AMARAL, Rita de Cássia Melo Peixoto. Festa à Brasileira: significados do festejo no país que “não é sério”. Tese de doutorado em Antropologia. Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. USP (SP), 2002, 403 p. BERGER, Peter. O dossel sagrado. São Paulo: Paulinas, 1984. BÍBLIA SAGRADA. Português. Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1995. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009. CASCUDO, Luís da Câmara. Notas e documentos para a História de Mossoró. (Col. Mossoroense). Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, maio de 2001. 4ed. _________. 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Partindo da compreensão de que não somos e nem chegamos a ser o que desejamos sem a relação com o outro, defendemos que o sujeito só pode afirmar-se enquanto ser de relação que marca e que se deixa marcar no contato com aquele que lhe é alteridade. Como marcamos e somos marcados nas nossas relações interpessoais, defendemos, ao longo deste trabalho, que toda subjetividade é composta de subjetividades outras, como que formando uma espécie de mosaico, o que dá dinamicidade, brilho e possibilidade de relações não estáticas, as quais reelaboram o mosaico existencial do sujeito em sua dinâmica existencial. Palavras-Chave:Subjetividade, Outro, Sujeição, Liberdade, Escolha, Insurreição. Abstract: The purpose of this study is draw a picture of where the subjectivities earn their odd ways and where up date. Starting from the understanding that we are not and we wouldn’t be what we want without the relationship with the other, we believe that the subject can only be asserted whill be of relation that brand and that leaves mark in contact with him that isalterity. As we mark and we are marked in our interpersonal relationships, we defend, in the course of this work, that subjectivity is composed of other subjectivities, as forming a sort of mosaic, which gives dynamics, brightness and possibility of relations not static, which redefined the mosaic of existential subject in its existential dynamic. Key Words: Subjectivity, Another, Entry, Freedom, Choice, Insurrection. Graduado em Filosofia pelo INSAF – Recife-PE; Mestre em Filosofia pela UFRN; Professor de Filosofia, Coordenador da CPA e Coordenador de Pesquisa e Extensão da Faculdade Dom Heitor Sales – FAHS – Natal-RN. E-mail: [email protected] 49 Artigos 57 É comum ao homem buscar desde sua mais tenra idade modelos de identificação ou de não identificação que o caracterize a um meio, a uma comunidade ou, de outro modo, que o distinga dessa comunidade ou meio em que vive. Certo é que desde que o homem desperta para a sua existência refletida ele não deixa de produzir para si mesmo, seja em conformidade com moldes já encontrados no meio em que vive ou rejeitando-os, modelos de ser e viver que marcam sua existência e desenham traços peculiares que configuram um solo de domínio “aparentemente” só seu, um domínio de responsabilidades, compromissos e atualizações que se chama subjetividade. Um espaço que se diz tão seu, tão individual ao sujeito que a possui,“despossuindo”50, que chega-se a afirmar e idealizar na contemporaneidade modos de subjetividade invioláveis, intocáveis e puramente pessoais. O eu, em sua mais profunda raiz existencial é convocado por todos os lugares e instâncias, pessoais e sociais, a constituir-se, a tomar forma dentro de domínios estabelecidos e por estabelecer-se. Há uma exigência de que o sujeito demonstre para si e para toda uma coletividade um rosto que lhe é peculiar a si e aos outros; há uma necessidade de enxergar-se e reconhecer-se, desenxergando-se e desconhecendo-se51; há o desejo imperioso que parte de si, ou do outro, de mostrar-se, de assumir um lugar, de ter um rosto só seu. Estas são necessidades, dentre tantas, impostas pelo sujeito a si mesmo ou por outros, que fazem falar e ver no domínio público e pessoal uma subjetividade ímpar ou homogênea. O eu não se torna eu sem que esteja atrelado a esta concepção de eu a necessidade de estar ou permanecer em um grupo ou instituição, sem que esteja em relação. O outro, por meio do qual o sujeito torna-se quem é, tem papel essencial na constituição interna do solo onde o sujeito constrói formas de ser. Não há produção de subjetividade que parta do isolamento. Sem a presença do outro o sujeito é incapaz de produzir para si subjetividades. A figura do outro é fundamental para o aparecimento Usamos aqui este termo para nos referirmos a ilusão que o sujeito tem frente a si mesmo de que ele totalmente se possui. Nossa crença é de que o sujeito não possui a totalidade dos domínios subjetivos que o compõe e seu controle. Há espaços e formas de ser e estar no mundo que são traços do “outro”: o outro habita e integra aquilo a que se chama subjetividade pessoal. 50 Estas duas palavras, como contraposição as que as precederam, demonstram que quando o sujeito pensa estar tendo conhecimento e formação de si está, na verdade e na maioria das vezes, internalizando em si um outro em sua totalidade. Esta internalização total do outro faz com que em momento outro, onde o sujeito reflexivo pensa sua existência, torne-se estranhamento de si. 51 58 Artigos da subjetividade individual sempre atualizada, graças ao caráter sempre novo do encontro que outro faz despertar. O outro é quem desperta no eu a necessidade de uma (não) identificação, de uma identidade no mundo; ele é – o outro – via de acesso a mim mesmo e presença que atualiza minha relação comigo e com ele, o outro. Eu-Outro é relação que garante a sobrevivência da subjetividade e da alteridade. Mas toda relação acontece com múltiplas possibilidades de nascimentos e mortes. O encontro do eu com o outro não acontece na calmaria de águas paradas que se empoçam após um temporal. A relação com o outro, por um lado, tem aspecto de calmaria e assentamento subjetivo de si, por si e por meio do outro; mas devemos afirmar, por outro lado, que a relação do eu com o outro se dá, quando o sujeito busca uma vida autêntica e uma subjetividade modelada por si, por meio do conflito. O conflito faz nascer modos ímpares de ser e estar para si e para o mundo e faz, ao mesmo tempo, morrer as possibilidades do eu ser uma total extensão do outro. Diante disso, digamos que a relação do eu com o outro não encontra um ponto calmo e desinteressado. Há um desejo do eu em encontrar-se com o outro para firmar-se enquanto individualidade, mas há, por outro lado, o desejo do outro em tornar o eu do outro em uma extensão daquilo que ele é ou que nunca foi. Nessa relação que se estabelece entre eu e ou outro, relação de conflito, um ganha e outro perde. O preço da relação euoutro é o preço de poder possuir-me a mim mesmo ou perder-me de mim mesmo frente ao desejo, imposição e interesse do outro. Há conflitos e interesses na constituição subjetiva de si. Algumas vezes abre-se mão daquilo que se é, ou pensa-se ser, em nome de interesses externos e que se afastam daquilo que o próprio sujeito pensa de si ou para si; outras vezes, para impor-se, o sujeito encontra no conflito o caminho para assegurar uma subjetividade que não se abre ao encontro do outro. Seja por um conflito onde o eu saia como vencedor, seja por meio de um interesse onde o eu abre mão de ser quem é para nele habitar o outro, não dá para dizer que diante da constituição subjetiva de si o sujeito, como eu ou como outro, é soberano e autônomo em sua constituição e relação. [...] penso efetivamente que não há um sujeito soberano, fundador, uma forma universal de sujeito que poderíamos encontrar em todos os lugares. Sou muito cético e hostil em relação a essa concepção de sujeito. Penso pelo contrário que o sujeito se constitui através da prática de sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação, Artigos 59 de liberdade, como na Antiguidade – a partir, obviamente, de um certo número de regras, de estilos, de convenções que podemos encontrar no meio cultural. (FOUCAULT, 2006, p. 291) Vemos com o filósofo que a constituição do sujeito, em aspectos internos e só seus, passa necessariamente ou pela via da sujeição ou pela via da autonomia. Assumindo uma das vias o sujeito cria para si e para o mundo em que vive um rosto, ou melhor, rostos, pois, nem sempre aquilo que ele demonstra para os outros é aquilo que ele realmente é ou vê em si. A via da subjetividade sujeitada é atrativa, garante homogeneidade de comportamento, pensamentos; ela garante a aceitação em grupos, instituições e enquadra o sujeito em moldes subjetivos pensados, hierarquizados e que geram interna e externamente o sujeito. A subjetividade que se dá por via da sujeição é uma subjetividade necessária ao homem durante parte de sua vida; faz parte do existir humano, mas não deve ser parte fundamental, ou melhor, essencial, na estrutura básica a partir de onde o sujeito constrói pontos de partida e de chegada em suas relações consigo ou com os outros. A sujeição da subjetividade é necessária durante boa parte da vida, reafirmamos, porque é graças a este dobrar-se e moldarse pelo outro que o sujeito faz parte de uma comunidade de homens, mas que, no decorrer do tempo deve descobrir-se, o sujeito sujeitado, que ele não é simples passividade no processo de constituição de si. A sujeição garante, no início, a entrada do sujeito no mundo social e institucional. Antes mesmo que a consciência de si desperte, o sujeito para encontrar o seu lugar no mundo, encontra nas instituições sociais e nos sujeitos que o precederam um ponto para se firmar, por isso, não dá para falar de subjetividade pessoal sem que se tenha passado pelo contato com modelos de subjetividade ditos e aceitáveis em grupos e em pessoas que representam interesses, desejos, crenças, etc. Digamos que a sujeição é a porta de entrada para um mundo de subjetividades existentes antes da faculdade de julgar e escolher do sujeito. A sujeição, durante a vida do sujeito, é o ponto de chegada e de partida, no sujeito, de investidas e de concretização, ou não, de modos de ser e permanecer subjetivos. A sujeição age como esforços externos e internos para que o eu seja uma extensão, uma continuidade do outro, ou, por outro lado, uma novidade que resiste, que se insurge. O mundo que o outro apresenta e no qual o eu quer ingressar é um mundo já organizado e que as novas subjetividades, os novos sujeitos, tem de se 60 Artigos adaptar, adequar. A sujeição é, assim, aceitação passiva de modelos prontos de comportamento que chegam ao sujeito e nele deve fazer todo um trabalho de homogeneização subjetiva que o faça “igual aos outros”. Em um sujeito que aceita passivamente o outro como eu, e assim deve ser no início de sua entrada no mundo social e relacional organizado, modelos prontos e inquestionáveis de subjetividade são apresentados por meio de mecanismos externos que transformam o solo subjetivo do sujeito em mera extensividade da alteridade que se deixa ver: por meio de suas investidas, por meio de um nivelamento das subjetividades. Neste ponto, após uma conscientização, por mínima que seja, de que o eu para ser aceito deve enquadra-se e assemelhar-se a subjetividades já aceitas socialmente, o eu passa a representar, fielmente, o outro. O ponto de partida de ações e pensamentos do outro é demarcação de horizonte a partir do qual o sujeito, em sua subjetividade nascente, pode ser e agir. O sujeito não parte de uma reflexão de si e por si para dar sentido à sua vida, ele tem de partir do horizonte do outro para que suas ações, pensamentos e reflexões sejam aceitos. A sujeição tem por finalidade fazer com que as diferenças despareçam e a igualdade tenha lugar.52 E isto com o interesse de manter o outro sempre em um lugar de mesmidade que o distinga como o mesmo, sempre que perguntado ou que, quando necessário for que fale de si mesmo naquilo que ele é em sua “singular-extensividade”,53 se mostre sempre dentro dos padrões da normalidade enclausuradora de ser e aparecer no mundo. Mas a sujeição não assume apenas o papel de vilã na história das subjetividades.54 A sujeição, em um sujeito que transcende a mera passividade que estiliza sua vida, tem um papel essencial naquilo que o sujeito é e que pode vir a ser. Parece contraditório que aquilo que pode levar o sujeito a permanecer naquilo que ele é ou naquilo que o fizeram ser, possa ser causa de relação ativa consigo e com os outros. Mas para que Esta tentativa, ou de fato eficiência de investidas em prol da igualdade de subjetividades, não nos agrada e não a defendemos. Não concordamos e nem tampouco defendemos a ideia de quem devam existir subjetividades elaboradas a partir de um controle de qualidade ou de perfeição que seja peculiar e exigida como forma de igualdade entre os sujeitos. A igualdade que a nós interessa é aquela que admite a pluralidade de subjetividades do sujeito em relação a ele mesmo ou em relação ao outro. 52 Entenda-se aqui uma singularidade aparente que, na realidade, é apenas extensão do outro. É um lugar aparentemente só seu, mas que na realidade é uma extensão não territorialmente visível que é abrigada por um outro e que tem o poder de determinar em domínio temporal e existencial como o sujeito deve ser e estar no mundo. 53 Por razões que deixaremos claro mais adiante, não usamos aqui a palavra subjetividade, mas, ao contrário, subjetividades. 54 Artigos 61 a sujeição passe de passividade para ação ativa é necessário que o sujeito desenvolva em si um desejo de inconformidade, de insatisfação, de querer ser o que nunca foi, um desejo de liberdade, como assim nos falou Foucault na citação acima. Mas não qualquer liberdade ou uma liberdade entendida como irresponsabilidade ou descomprometimento consigo e com o outro. A liberdade que acreditamos ser essencial é a de constituição do sujeito por ele mesmo, sem que caia na libertinagem ou no empecilho para o outro de ser ele mesmo. A liberdade entendida deste modo, como constituição, não é algo pronto ou acabado, mas algo que se (re)faz mediante o contato com o outro. Para que o sujeito deseje a liberdade de constituir-se como ele imagina, e até da forma que ele nunca foi ou imaginou, é necessário que ele esteja em contato com toda uma cultura com a qual e pela qual ele tenha relações diretas ou indiretas. Sem este tipo de relação é impossível falar de constituição de si, falar de práticas de liberdade que transformem o sujeito. Um sujeito não-relacional é um sujeito incapaz de conhecer a liberdade, portanto, para que a liberdade de constituir-se de fato aconteça, faz-se necessário que o outro, sujeitando ou não o eu, seja integrante das práticas que modelam subjetividades. A liberdade aparece quando o sujeito, questionando a sua existência e aquilo que ele é ou tornou-se, autocrítica sua existência e sua relação consigo e com o mundo. Ela se insere na dinâmica ativa da vida e da subjetividade; ela aceita ser tocada por liberdades outras que não a sua, mas, em um segundo momento, ela reclama uma forma única de aparecer e agir no sujeito. Por ser a liberdade autocrítica, nós a enquadramos também no domínio da revolta, da insurreição. As insurreições pertencem à história. Mas, de certa forma, lhe escapam. O movimento com que um só homem, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: “Não obedeço mais”, e joga na cara de um poder que ele considera injusto o risco de sua vida – esse movimento me parece irredutível... E porque o homem que se rebela é em definitivo sem explicação, é preciso um dilaceramento que interrompa o fio da história e suas longas cadeias de razões, para que um homem possa, “realmente”, preferir o risco da morte à certeza de ter de obedecer. (Ibidem, p. 77) Este movimento de colocar-se contrário a modos de produção de subjetividade homogêneo ou de até mesmo colocar-se contra os modos de 62 Artigos subjetivação elaborados por si mesmo é a coragem e o desafio de estilizar a existência, assumindo riscos que podem fazer com que ao invés de encontrar-se, o sujeito perca-se de si mesmo. Ousadia que rompe com um contínuo constituidor de si e que inaugura um novo modo de existência configurado pela liberdade que obedece não mais e nem primeiramente ao outro, mas a um si mesmo que ée passa a ser habitado principal e primeiramente por uma individualidade caracterizada pela luta e pelo esforço contínuo de estilizar-se no e pelo confronto. A criação de subjetividades não se dá na calmaria de um rio que juntou suas águas por entre as pedras e que passa a viver na tranquilidade e proteção das rochas. As subjetividades são da ordem da impermanência, do tocar e do deixar-se tocar, está situada nos limites dos caminhos existenciais que se entrecruzam no decorrer da existência. Por estar entre caminhos ela é transitada e transita por subjetividades outras e com as quais elas mantém as mais diversas relações, principalmente relações de insurreições que oferecem ao si mesmo e ao outro a oportunidade de atualizar-se. No cruzamento de caminhos subjetivos vão-se desenhando possibilidades de liberdades que fogem às investidas de manter sob um mesmo título as heterogêneas subjetividades. A liberdade é, portanto, da ordem da luta, do confronto, da insurreição. Para que cumpra a missão de estilizar o sujeito, a liberdade necessita que o próprio sujeito esteja em relação com o outro, esteja inserido em meio a comunidade dos homens e suas organizações. A liberdade não aparece e nem se efetiva no isolamento. E por requerer a presença e inserção na sociedade, ela não é conquistada ou reivindicada facilmente. Como há um desejo no homem de que o outro use de sua liberdade para fazer cumprir o que a minha liberdade deseja, parece que, como antes afirmamos, a liberdade não se enquadra em lugar outro que não seja o da luta, o da insurreição. Todas as formas de liberdade adquiridas ou reivindicadas, todos os direitos adquiridos, mesmo quando se trata das coisas menos importantes, têm ali sem dúvida um último ponto de sustentação, mais sólido e mais próximo que os “direitos naturais”. Se as sociedades se mantêm e vivem, isto é, se os seus poderes não são “absolutamente absolutos”, é porque por trás de todas as aceitações e coerções, mais além das ameaças, violências e persuasões, há a possibilidade desse momento em que nada mais se permuta na vida, em que os poderes nada mais podem e no qual, na Artigos 63 presença dos patíbulos e das metralhadoras, os homens se insurgem. (Ibidem, p. 77) Há sempre um algo além da imposição. Há possibilidades para pensar-se e constituir-se além das investidas externas de homogeneização das subjetividades. Basta que o sujeito contemple-se e, contemplando-se, descubra o ponto em si que pode escapar ao olho do poder, ou melhor, o ponto em si capaz de fazer da investida do poder externo em uma dobra que reflita o mesmo poder sendo ativado e distribuído a partir de si mesmo de forma diferente. O poder que investe na subjetividade não deixa de ser poder, ao contrário, ele continua sendo poder, mas trabalha agora em favor do sujeito e de seus interesses. Como vimos com Foucault, os poderes não são absolutos e nem tampouco encontram-se centralizados em um único sujeito ou instituição. Desde Foucault vemos que o poder está em toda parte criando, em cada tempo e sujeito, pontos ora fortes, ora fracos, de resistência e de domínio. Ninguém tem o poder absoluto, mas todos o desejam. No desejo de possuir o poder, seja de si mesmo, seja do outro, os sujeitos entram em guerra, talvez até uma guerra hobbesiana de todos contra todos. E nesta guerra, resistências, estratégias e investidas sem fim pelo poder ganham lugar e os mais fortes, os que tem a melhor estratégia de guerra, ganham o controle momentâneo. Na guerra nem todos lutam com as mesmas armas e com as mesmas oportunidades. Daí o desejo de muitos, desde cedo, de colocar-se do lado do mais forte, daquele que tem o melhor armamento, o melhor discurso. A sujeição imposta ou o deixar sujeitar-se pelo outro parece ser o único caminho possível diante daquele que “tem o poder”. Os sujeitados parecem ver apenas uma face do poder, aquela que está com o que impõe, limita, dita. O poder parece ser – aos sujeitados – algo estranho e indigno de ser possuído pelos “pobrezinhos” que desde sempre se encontram do lado daqueles incapacitados e que tem como única tarefa conformar-se ao que já está estruturalmente organizado. Na organização estrutural e institucional em que o sujeito se insere passivamente já há um lugar que lhe é próprio; já há uma posição que lhe garante a aceitação no campo social; já há um discurso pronto e que deve a todo custo ser repetido e vivido; já há uma forma de pensar que dispensa indagações além do sempre e mesmo pensado. Por mostrar-se anterior ao surgimento do sujeito, as instituições aparecem como mães que precisam gerar e instruir seus filhos dentro da dinâmica do mesmo, do já aceito. A postura do sujeito frente a isto é de, inicialmente, passividade. Ele necessita 64 Artigos aprender para criticar, criticar para intensamente poder viver. Mas a “mãeinstituição” não cria seus filhos para que eles se rebelem contra ela mesma futuramente, por isso, desde sua geração, ela instrui seus filhos a jamais se insurgir contra aquela que sempre o gerou e nutriu com o “melhor bem possível”, instrui que a crítica é para filhos ingratos e desobedientes que não reconhecem todo esforço da mãe em (des)educar seus filhos. Coagidos, ensinados e manipulados a não se colocar contra a comunidade que os gerou, os sujeitos sentem-se na obrigação de viver em um estado de menoridade que os faz ser e estarsempre dentro de limites de fora estabelecidos; sentem-se incapazes de ir além porque pensar e agir além do que os outros já agiram e pensaram é um desviar-se de um sonho que sonharam para eles. O que é próprio, dentro deste cenário já dado, ao sujeito é a sua submissão e agradecimento pelo que lhe fizeram as instituições em aspectos externos e internos. Já que tudo está organizado mesmo antes que o sujeito venha à existência, haveria necessidade de, como vimos na citação anterior, de o sujeito se insurgir? Qual seria o ganho de revoltar-se? Contra o quê ou contra quem ele se insurgiria? Como viveria um sujeito que se pôs, até certa medida, à margem das instituições e do efeito de seu poder? Estas são questões essenciais e que fazem pensar se vale à pena, como antes defendemos com Foucault, rebelar-se. Se por meio da crítica ao outro, via instituições, o sujeito coloca-se contrário ao instituído, rompe com uma lógica existente, fica a pergunta: O que ganha o sujeito quando rompe com a ordem, quando cria para si um centro de resistência e ao mesmo tempo de poder? A resposta quando pensada a curto ou médio prazo parece ser negativa. O sujeito, em sua forma precipitada e limitada de ver, ganhará apenas inimizades, solidão e uma existência marcada pelo árduo ofício de constituir-se pelo confronto e pela crítica. Realidade que o leva a (re)pensar mais nas consequências do insurgir-se do que em seus benefícios. Seja porque o insurgir-se o lançaria – sujeito – na solidão existencial, seja porque diante dos poderes que desde muito cedo modelam subjetividades homogêneas qualquer tentativa de descentralizá-lo parece ser impossível. Daí, mais uma vez perguntar: é inútil se insurgir? Mas não concordo com aquele que dissesse: “Inútil se insurgir, sempre será mesma coisa”. Não se impõe a lei a quem arrisca sua vida diante de um poder. Há ou não motivo para se revoltar? Deixemos aberta a questão. Insurge-se, é um fato; é Artigos 65 por isso que a subjetividade (não a dos grandes homens, mas a de qualquer um) se introduz na história e lhe dá seu alento (Ibidem, p. 80) Há uma aparente, e às vezes real, calmaria ou acomodação que coloca o sujeito sempre na posição de espectador, de ator de histórias que não são as suas. Posição que não contempla razões reais para insurgir-se. Insurgirse, para pessoas acostumadas às rédeas curtas de um outro, é risco de vida, é possibilidade de não existir. E aqui abrimos um parêntese para dizer que o sujeito, quase que de forma geral, não gosta muito do mundo das possibilidades55, sejam elas positivas ou negativas. E digamos que poucos são os que assumem a responsabilidade da própria vida e arriscam tudo para que não lhes escape a única possibilidade de poder ser o que se pensa e pensar o que se vive. Atitude de poucos e que carrega em si uma série de responsabilidades, riscos, perigos, etc., mas que não encontraria menos riscos se aceitasse assumir a subjetividade do outro como sua. Para onde quer que olhe, o que quer que escolha, o sujeito não foge à investida do poder. E à questão que colocamos, se vale a pena insurgirse para poder constituir-se, e aos que dizem, como vimos na última referência feita, que não vale a pena, dizemos que o insurgir-se é um ato de coragem de assumir-se, assumindo/desprezando o outro e produzindo-se a cada instante sem moldes prontos e sem modelos definitivos. Uma tarefa que é uma mistura de loucura e ousadia. Loucura porque o sujeito que se autoconstitui não sabe qual será o produto de todos os seus esforços; ousadia em assumir-se frente às investidas de poderes que faz de si um centro de convergência e de partidas de poderes que se chocam no solo da interioridade do sujeito, mas que dele não saem sem que o próprio sujeito reverta em seu próprio favor as investidas de tentar torná-lo extensão de um outro que não seja ele mesmo. Insurgir-se, visto de uma ótica assim, da loucura e ousadia, traz mais problemas que vantagens, pensa o tolo, o preguiçoso. Insurgir-se para quê se, no final das contas, muitos sentem-se fracos, impotentes e incapazes frente a um poder forte que sempre se manterá? Fechando aqui a questão de se vale ou não insurgir-se, diremos com Foucault que esta é uma questão que fica em aberto. Não é nosso intuito dizer que a existência só faz sentido A possibilidade não é bem vista por se tratar de um campo não dominado, não conhecido e que abre condições, as mais diversas, para que o novo, o fora da lei e da norma, surjam. Como a possibilidade não se encontra dentro de domínios estabelecidos e normatizadores, ela é causa de estranhamento e de não aceitação, justamente por trazer em si o gérmen do antes nunca visto, pensado ou vivido. 55 66 Artigos pelo insurgir-se. Muitos encontram sentido em suas vidas no simples fato de aceitar a imposição da forma de ser do outro; seguindo normas e modelos prontos de construir subjetividades. Mas uma consideração a mais queremos fazer em favor dos que se insurgem. A insurreição é a única possibilidade de desenhar na história individual ou coletiva, traços de peculiaridades, de vivência autêntica, de marcar a própria existência com um tom não da mesmidade, mas da diferença e da transitoriedade daquilo que se foi, que se é e que será. Insurgir-se ou não é uma questão que cabe ao próprio sujeito escolher, afinal, ninguém vive sua vida sem deixar de escolher, tudo na vida é escolha. Porém, escolhendo insurgir-se ou não, não dá para afirmar que o sujeito pode constituir-se deixando de frequentar o espaço das relações com o outro. A escolha de si é, ao mesmo tempo, escolha do outro. Quando se escolhe um tipo ou outro de vida não dá para dizer que esta escolha se limita às relações que este sujeito tem consigo mesmo. Escolher-se, antes de tudo e de todos, é princípio básico de construir o alicerce subjetivo com bases no próprio sujeito, mas não dá para dizer que o solo onde se ensaiam subjetividades pode ser ou atualizar-se sem a presença do outro. Pois como vimos afirmando, o outro é figura central nos processos de escolha ou rejeição daquilo que o sujeito é e pode chegar a ser. Por essa razão, a escolha que o sujeito faz ao longo de sua vida não é uma escolha que tem obrigações e implicações apenas em sua vida, mas na vida do outro. O outro, retomamos aqui, é razão de existência do sujeito, portanto, escolher a si é escolher o outro como coextensividade necessária daquilo que é o sujeito. Coextensividade do outro no eu que pode ser entendida, na acolhida do outro pelo eu, como passividade ou atividade que resultam em modos de ser, os mais diversos possíveis. Ninguém escapa à escolha dentro do processo de constituição de quem se é. Não dá para dizer que dentro dos domínios existenciais o eu possa deixar de escolher um ou outro modo de vida a não ser o da escolha. A vida é escolha. Escolha que não pode, em momento algum da existência do sujeito, extinguir-se. A cotidianidade e temporalidade do sujeito se faz mediante a dinâmica da escolha. Algumas escolhas podem ser evitadas, adiadas, etc., mas não dá para ser o que se é ou será deixando de frequentar a convivência com o outro. Em outras palavras, a escolha do outro é inevitável. Escolha do outro, bem entendido, não é escolher o outro antes do sujeito mesmo, mas o outro deve ser, dentro de uma escala daquilo que faz o sujeito ser quem ele é, um fator essencial e que não se deve nunca colocá-lo como algo adiável ou desnecessário. Por isso que a escolha de Artigos 67 si é escolha do outro, mesmo que a este outro o eu se insurja, critique ou passivamente o aceite. A escolha torna-se, assim, relação, ou melhor, relações. Relações que não são as mesmas nem em seu aparecimento, nem nos autores e atores que delas fazem parte. As relações são do tipo da singularidade, da unicidade. Tem-se relações dos tipos mais diversos consigo, com instituições, com o outro. Relações que muitas vezes toca a superfície do que se é de forma semelhante a uma garoa que cai sem muito alarde, mas relações que também, muitas vezes, chagam como uma forte tempestade a deslocar as estruturas do que se é, do que se pensa que possui. Os efeitos das relações, seja consigo ou com o outro tem, além de seu caráter de singularidade, diversidade e imprevisibilidade. E por serem imprevisíveis causam espanto, temor, insegurança. Mas também causam beleza, transitoriedade e enche a vida de tons e cores que tiram o sujeito da conformidade que muitas vezes o aprisiona em um desejo de ser o mesmo, imune ao tempo e aos seus efeitos. As relações marcam e são marcadas por diversos modos de ser. Na odisseia de cada existência humana o sujeito se depara com coisas e sujeitos que lhes são exteriores e com os quais ele mantém relações ao longo da vida. Por não acreditarmos que sujeito algum é imune aos efeitos do tempo e suas consequências, sustentamos que ele – o sujeito – marca e deixa-se marcar por existências outras com as quais ele escolhe (con)viver. Ninguém é o mesmo ou sai o mesmo quando de um encontro com o outro. Há um perder-se ou encontrar-se nas relações que faz com que o sujeito, pelo menos, (re)pense sua existência. As relações, por mais semelhantes que possam parecer ser em seu aparecimento no tempo, espaço e sujeitos envolvidos, são da ordem do (des)locar-se, isto é, ao mesmo tempo em que elas fazem mudar de lugar o sujeito em relação a si e ao outro, elas fazem com que o sujeito coloque-se em lugares outros e relações outras. As relações podem ser entendidas, assim, como um constante perder-se e encontrar-se. Uma pergunta pode vir a surgir diante da afirmação que por meio das relações o sujeito perde-se e encontra-se: nessas perdas e encontros, o que garantiria ao sujeito o traço que é característico à sua existência? Ou de outra forma: De que forma o sujeito se reconheceria, e os outros o reconheceriam, se ele está sempre em uma transitoriedade naquilo que é e aparenta aos outros ser? Certamente existiriam, e existem traços subjetivos que formam um solo mais ou menos fixo56 no e pelo qual o sujeito constitui 56 Este solo mais ou menos fixo não representa aqui a defesa de uma estrutura subjetiva que 68 Artigos modos de ser e de relacionar-se característicos da versatilidade que lhe é própria. Por isso, antes de perguntarmos da continuidade que garante uma mesmidade ao sujeito, deveríamos perguntar das condições que fazem com que ele queira, ao longo de sua existência, ser ou ensaiar ser aquilo que ele nunca foi. E ao desejo de espíritos que teimam em identificar, classificar identidades, esta postura de não encontrar a mesma face no mesmo sujeito parece ser algo que lhes faz perder o prumo, perder, por que não, a dominação sobre o outro. A tarefa de olhar o outro sob um ponto de vista da estranheza, uma estranheza que diz da não obrigatoriedade do sujeito em ser aquilo que não mais o satisfaz, aparece como necessidade de ver as relações como contínua descoberta. Tirar a coberta é abrir. O revelar-se das coisas implica, um modo de abertura. É na relação que os entes não dotados do modo de ser da presença se descobrem. Os entes descobertos mostram sobretudo o modo de ser da própria presença: a presença é descobridora, ou seja, realiza-se em descobrindo57. Esta contínua descoberta é um não prever relações, é um abrirse à novidade e ao mesmo tempo é um exercício de deixar o outro apresentar-se em sua novidade, de dizer como ele quer aparecer. Mas a “sagrada tentação” de querer ter o conhecimento do bem e do mal, do que foi e do que é composto o sujeito em sua singularidade, faz com que a descoberta seja vista apenas como confirmação ou não daquilo que eu previamente imaginei do outro. A imagem na qual enclausuramos o outro nos possibilita, antes mesmo da presença descobridora da qual acima nos falou Heidegger, (des)encontros que partem de preconcepções do outro que tem de ser uma afirmação do que pensamos e não do modo como o sujeito quer aparecer e dar-se à relação. Em outras palavras, perdemos, em nossos encontros relacionais, a oportunidade de ver o outro e a nós mesmos como uma novidade a ser descobertadescobrindo; perdemos a capacidade de ver nossas relações como uma abertura que vai mostrando e ocultando singularidades de nós e de quem conosco se relaciona; perdemos a beleza de (des)cobrir, isto é, parafraseando Heidegger, tirar a coberta e ao mesmo apareça sempre a mesma para o sujeito ou para quem o veja. Este solo mais ou menos sólido garante ao sujeito um rosto provisório, mas nunca um rosto definitivo. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução revisada e apresentação de Marcia Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 2º ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universidade São Francisco, 2007, p. 570. (Coleção Pensamento Humano) 57 Artigos 69 tempo pô-la, ver o sujeito como já conhecido e ao mesmo tempo como tendo algo sempre novo a revelar, a descobrir [...]. Este itinerário que leva a (des)cobrir (des)cobrindo-se na relação com o outro faz-nos chegar, provisoriamente, a um ponto de reflexão final, ponto este já delineado no decorrer da exposição de que até aqui nos preocupamos em fazer: somos, no decorrer de nossa existência, permeados, em nossa subjetividade e objetividade, de subjetividades outras que nos tocam, nos falam, nos desenham e principalmente nos atualizam. Somos como que um mosaico que vai recebendo pedaços de subjetividades outras ao longo do tempo. O esboço existencial é sempre nosso, mas o colorido, as diversas formas que podem ganhar o mosaico é sempre (in)determinado pelo tempo e pelas relações que mantemos. Somos, a cada descoberta, uma pequena peça na constituição do outro, e temos do outro uma pequena parcela. Não existe um eu sem um outro. Não existe uma constituição de mim sem uma participação do outro. É uma relação de oferecer e receber que se dá mediante a descoberta do aparentemente mesmo com o qual nos relacionamos. Nesta oferta e doação, trazemos em nós marcas do outro e deixamos no outro nossas marcas. E é nesta relação que vemos a colocação e retirada de tesselas, isto é, pequenas pedras preciosas humanas, que preenchem e estilizam a existência do sujeito. Essas tesselas não se fixam de forma definitiva no solo da subjetividade, mas são retiradas ou recolocadas mediante a dinamicidade da vida crítica do sujeito [...]. A subjetividade mosaica é uma arte decorativa pela qual, durante toda a sua existência, o sujeito vai estilizando, recriando suas relações consigo e com o outro. Ela é o reconhecimento de que não há constituição de si que escape à relação e o efeito do outro. Por fim, ela garante a necessidade do encontro, da relação, da reflexão, da crítica, da construção e da desconstrução. É graças a essas necessidades que não dá para dizer que a subjetividade mosaica repousa na mesmidade de cores existenciais, mas é ela quem confere o brilho sempre novo que renova e faz surgir sujeitos que (re)pensam e (re)criam seus modos de ser no mundo [...]. Uma conclusão inconclusa... A subjetividade mosaica, que tem sua origem nas entidades mitológicas Musas e que tinham a capacidade de inspirar a criação artística e científica, tem por finalidade oferecer ao sujeito, sob inspiração delas, as Musas, a capacidade de fazer de sua vida uma criação artística e, assim como elas, cantar seu presente, passado e futuro apresentados em sua atualidade, na atualidade do sujeito [...]. 70 Artigos Referências FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Org. e seleção de textos Manoel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e escritos; V) HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução revisada e apresentação de Marcia Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 2º ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universidade São Francisco, 2007. (Coleção Pensamento Humano) Artigos 71 Artigos A CRISTOLOGIA PRIMITIVA E O ESTRITO MONOTEÍSMO JUDAICO DO SEGUNDO TEMPLO: REPENSANDO A IDENTIDADE DIVINA DE JESUS EM RELAÇÃO AO PANO DE FUNDO CULTURAL DA ÉPOCA. Thiago dos Anjos Noleto Barros58 [email protected] Resumo: O presente artigo objetiva discutir e elucidar as principais conclusões da pesquisa histórica objetiva e da erudição acadêmica neotestamentária acerca da elevada Cristologia Primitiva, edificando, a partir de sólidas informações, um caso positivo em favorecimento da inteligibilidade da identidade divina de Cristo esposada pelos primeiros cristãos, não obstante, o fato de que as idiossincrasias culturais judaicas predisponentes – adquiridas e circundantes – faziam clara oposição a tal conceito. A metodologia empregada consistiu na análise de um conjunto relevante da literatura especializada disponível sobre o assunto, bem como da avaliação exegética de passagens bíblicas e na investigação de algumas fontes primárias extra-bíblicas, tais como o acerco literário pós-exílico intertestamental. Palavras-chave: Cristologia, Monoteísmo, Identidade, Jesus, Divindade. Abstract: This article aims to discuss and clarify the key findings of objective historical research and the new testament scholarship about Early High Christology, building from solid information, a positive case in favor of the intelligibility of the divine identity of Christ espoused by É graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Evangélico do Betel Brasileiro (STEBB/PB) e bacharel pela Escola Superior de Teologia (EST/RS), graduando em Filosofia pela Faculdade Dom Heitor Sales (FAHS/RN) e pós-graduando em Teologia do Novo Testamento e em Docência do Ensino Religioso pela Faculdade Teológica Batista do Paraná (FTBP/PR). É ministro de confissão religiosa evangélica, pastor ordenado pela Missão Evangélica Pentecostal do Brasil, e, atualmente, exerce a docência na área teológica no Centro de Treinamento Teológico Harland Graham (CTTHG/RN). 58 72 Artigos the early Christians, nevertheless, the fact that the predisposing Jewish cultural idiosyncrasies - acquired and surrounding - were clearly opposed to such a concept. The methodology consisted in the analysis of a relevant set of the available literature on the subject, as well as the exegetical analysis of biblical passages and in the investigation of some primary extra-Biblical sources, such as the intertestamental postexilic literature. Key-Words: Christology, Monotheism, Identity, Jesus, Divinity. Introdução A surpreendente história do Cristianismo é multifacetada. Acessá-la é bem mais do que folhear um simples álbum de fotografias e rememorar momentos interessantes que foram emoldurados em uma folha de papel. É, sobretudo, entender as origens e os precípuos desenvolvimentos de um movimento sem precedentes que alcançou o mundo e, peremptoriamente, influenciou o pensamento humano. Nas palavras de Earle E. Cairns em O Cristianismo Através dos Séculos: Uma história da Igreja Cristã: “O estudante consciente dos valores apreendidos no estudo da história da Igreja Cristã tem bons motivos para se interessar por este setor particular da história humana59” e, com razão, observa: “Podemos compreender melhor o presente se conhecermos as suas raízes no passado60”. Sem dúvidas e com certa dose de predileção, um dos tópicos mais instigantes para o pesquisador do movimento cristão é a “cristologia”. Desde os mais remotos contornos desta doutrina até as mais recentes conclusões que dispomos, não se pode subtrair seu valor para o entendimento do Cristianismo histórico. Não é por acaso que em nossos dias um elevado interesse pela real compreensão do lugar de Cristo na adoração cúltica e, mormente, no ideário teológico dos primeiros cristãos tem sido fortemente altercada. Questões sobre a verdadeira identidade de Jesus e o seu papel na vida da Igreja são tópicos, por demais, discutidos. Não obstante, a discussão se concentra não na evidência histórica destes dados (ponto, de certo modo, pacífico entre estudiosos de eixos acadêmicos distintos), mas no significado desta evidência para os primeiros cristãos. O presente artigo objetiva discutir e elucidar as principais conclusões da pesquisa histórica objetiva e da erudição acadêmica neotestamentária CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos Séculos: Uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1995, p.17. 59 60 Ibid., p. 17 Artigos 73 acerca deste assunto, edificando, a partir de sólidas informações, um caso positivo em favorecimento da inteligibilidade da identidade divina de Cristo esposada pelos primeiros cristãos, não obstante, o fato de que as idiossincrasias culturais judaicas predisponentes – adquiridas e circundantes – faziam clara oposição a tal conceito. A cristologia primitiva e a ambiência monoteísta judaica Em décadas recentes, o interesse pela compreensão do Monoteísmo Judaico do Segundo Templo tem sido destacado especialmente em sua intima relação com entendimento da Cristologia Primitiva. Um excelente texto que aborda esta interação é o opúsculo God Crucified: Monotheism and Christology in the New Testament do teólogo britânico e professor de Novo Testamento no St. Andrews, Richard Bauckham. Este material, infelizmente ainda não traduzido para o português, foi revolucionário desde sua primeira apresentação em 1996. O renomado acadêmico Craig L. Blomberg, professor de Novo Testamento no Denver Seminary, chegou a declarar, em sua apreciação pessoal, que “este tão curto livro é bem mais significativo do que seu tamanho poderia sugerir” e acrescenta “eu não encontro erros nos argumentos de Bauckham61”. Tal pesquisa foi tão bem acolhida pela erudição acadêmica que Bauckham ampliou seus estudos sobre o tema e publicou uma obra maior sob o título Jesus and the God of Israel: God Crucified and Other Studies on the New Testament’s Christology of Divine Identity, na qual ele inclui o trabalho retrorreferido e outras reflexões sobre a inclusão de Jesus na exclusiva identidade do Deus único de Israel, feita pelos primeiros cristãos. Neste livro, Bauckham observa duas vertentes sobressalentes no tratamento dispensado ao entendimento do Monoteísmo Judaico do Segundo Templo e a possibilidade de uma elevada Cristologia aventada pelos cristãos neste contexto. Embora o autor se coloque em uma terceira alternativa, seu resumo é importante. Por exemplo, existe uma abordagem que considera o Monoteísmo Judaico do Segundo Templo sendo de caráter absolutamente estrito, inviabilizando qualquer associação ou predicação de divindade a alguma figura que não fosse o Deus Único de Israel. Nesta visão, qualquer admissão de Jesus como uma figura divina era absurda e A curta resenha de Craig L. Blomberg sobre God Crucified: Monotheism and Christology in the New Testament, do Richard Bauckham, está disponível em <http:// www.denverseminary.edu/article/god-crucified-monotheism-and-christology-in-the-newtestament/> Acessado em 22 de agosto de 2014. 61 74 Artigos destituída de sólido contexto em um ambiente tão estritamente monoteísta. Em geral, os que propugnam este entendimento afirmam que a crença cristã da adoração a Cristo como Senhor Soberano é subproduto da incursão do paganismo e da deletéria tradição religiosa romana. Assim, a crença na divindade de Jesus se constituiria ou numa abominável idolatria ou numa prática nonsense em tal cultura62. Na segunda alternativa temos uma abordagem revisionista do Monoteísmo Judaico do Segundo Templo, a qual nega absolutamente àquele implacável caráter estrito. Segundo pensam os teóricos desta vertente, várias espécies de figuras intermediárias como anjos superiores, seres humanos exaltados, atributos e funções divinas personificadas (e.g.: A Sabedoria e a Palavra [Logos]63) eram tomadas como ocupando status A teologia liberal está seriamente inclinada nesta direção, haja vista, muitos estudiosos desta área, entenderem que a elevada Cristologia da Igreja Antiga se desenvolveu lentamente, incorporando paulatinamente traços e modelos do paganismo, chegando a sua forma final apenas em um contexto helenístico bem posterior. Esta alternativa pode ser conhecida em From Jewish Prophet to Gentile God e The Deification of Jesus, ambos do crítico P. Maurice Casey. Larry W. Hurtado, autoridade neste campo, discorda desta conclusão e acertadamente declara: “(...) a designação de Cristo como ‘Senhor’ parece ter raízes surpreendentemente primitivas, de fato nos círculos mais primitivos do movimento cristão, e não deve ser resultado de um processo gradual de assimilação a modelos pagãos de devoção a várias divindades” (HAWTHORNE, G. F.; MARTINS, R. P.; Dicionário de Paulo e suas cartas. São Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola. 2008, p. 1150). O mesmo, alhures, avaliando alguns dos principais indícios históricos disponíveis, asseverou: “Assim, as próprias cartas de Paulo, o mais antigo conjunto literário que possuímos para acessar o Cristianismo, provê forte evidencia de que o período no qual procurar o decisivo começo da veneração de Jesus não é, em absoluto, tardio, mas, extremamente antigo, facilmente dentro da primeira década do movimento cristão” (HURTADO, Larry W. One God, One Lord: Early Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism. Edinburgh: T&E Clark Ltd, 1998, p. 5). 62 Uma das tão bem conhecidas características da linguagem religiosa do Judaísmo antigo é a personificação. Em geral, esta era uma maneira adequada de falar da natureza e das ações divinas. Os exemplos da Sabedoria e da Palavra (Logos), aqui sublinhados, são interessantes. O primeiro caso é bem familiar na linguagem judaica e possui profundas raízes na história de Israel. Em Provérbios, a Sabedoria é acentuadamente destacada pelo escritor (Pv. 1.2033; 3.13-18; 8.1-9.12). No acervo literário judaico pós-exílico intertestamental, como, por exemplo, em Siraque (i.e.: Eclesiástico), Baruque e Sabedoria, ela também é fortemente discutida (Sir. 24.8; Bar. 3.29,30; Sab. 6.12-11.1; nesta última referência, a Sabedoria é descrita como o “modelador de todas as coisas” [7.22], e como “uma pura emanação da glória do Todo-Poderoso” [7.25,26]). No segundo exemplo, a Palavra (Logos; Gr. logoV) igualmente recebe atenção. Filo de Alexandria, uma das principais fontes para a discussão deste termo, em De Confusione Linguarum apresenta-o como “primeiro nascido” (Gr. Protogonon – “prwtogonon”), “arcanjo” e “Nome de Deus” (Conf. Ling. 146). No capítulo denominado Personified Divine Attributes as Divine Agents em One God, One Lord: Early Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism, Hurtado assevera: “A descrição de atributos divinos personificados como principais agentes divinos oferece, portanto, um 63 Artigos 75 semi-divino ou uma qualidade divina subordinada. De acordo com esta posição, o Monoteísmo Judaico não era estrito, mas flexível64. Como se depreende das palavras do revisionista Larry W. Hurtado, especialista em Novo Testamento e origens cristãs: Existe alguma indicação de que a crença Judaica na unidade de Deus estava apta a acomodar, surpreendentemente, tipos de reverencia e interesse em outras figuras celestiais, tais como anjos principais e patriarcas exaltados, bem como atributos ou poderes de Deus personificados. O interesse no papel destes agentes divinos era, pelo visto, difundido e provavelmente de alguma importância ao entendimento de como os antigos cristãos judaicos estavam aptos a acomodarem o Jesus exaltado sem sentirem que tinham violado a unidade de Deus65 Deste modo, a elevada Cristologia Neotestamentária deve ser entendida como um desenvolvimento lógico do judaísmo da época que permitia a emergência de figuras celestiais proeminentes, detentoras de prerrogativas divinas. Bauckham, por contraste, discorda de ambas alternativas. Ele propõe uma terceira opção que admite a permanência do caráter estrito do Monoteísmo Judaico do Segundo Templo e a real possibilidade de um elevado desenvolvimento Cristológico neste contexto. Não que os cristãos adoraram a Jesus como um segundo Deus ou demiurgo, nem que eles o tomaram como uma exaltada figura intermediária, antes, o entendiam como incluído na identidade divina do Deus de Israel. No capítulo 6, Paul’s Christology of Divine Identity, Bauckham esclarece sua opinião: Em minha visão, a alta Cristologia foi possível dentro de um contexto monoteísta judaico, não por aplicar a Jesus uma interessante paralelismo lingüístico para a descrição do Cristo Exaltado no Novo Testamento (...) A Sabedoria e o Logos, retratados na linguagem da agência divina, em parte formam o pano de fundo judaico do entendimento cristão primitivo do Jesus Exaltado, mas, também estabelecem o fundo conceitual mais fundamental do qual a linguagem era tomada. Este conceito, de que Deus tinha um agente principal no céu acima de todos os outros servos divinos, serviu aos cristãos primitivos nas suas tentativas para acomodar o Jesus Exaltado ao lado de Deus ”(HURTADO, 1998, p. 50). Para uma análise mais detalhada desta perspectiva, veja: One God, One Lord: Early Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism de Larry W. Hurtado. 64 65 Ibid., p. 8. 76 Artigos categoria judaica de status intermediário semi-divino, mas, por identificá-lo diretamente com o Deus Único de Israel, incluindo Jesus na exclusiva identidade deste Deus Único66 No entender deste especialista, o monoteísmo estrito não é quebrado desde que Jesus é incluído na identidade divina do Deus Único. Na análise das ocorrências do Shemá (principal confissão monoteísta das Escrituras judaicas) no Novo Testamento, ele concluiu: Assim, dizer que Jesus e o Pai são um é dizer que a exclusiva identidade divina compreende o relacionamento, no qual, o Pai é aquele que É apenas em relação ao Filho e vice-versa (...) pelo relacionamento filial de Jesus com Deus, este redefine a identidade divina como única, na qual, Pai e Filho estão inseparavelmente unidos, embora diferentes entre si67 Embora Bauckham relute em usar os conceitos de “natureza” ou “essência” divina68, pois, no seu entender, “o conceito de identidade é mais apropriado, como a principal categoria para o entendimento do monoteísmo judaico, que a natureza divina”; não restam dúvidas que nesta declaração o fundamento teológico da interpenetração mútua ou pericorese69 para a noção trinitária posterior70 é salvaguardado, porém, a idéia da “exclusiva BAUCKHAM, Richard. Jesus and the God of Israel: God Crucified and Other Studies on the New Testament’s Christology of Divine Identity. Grand Rapids: Eerdmans, 2008, p. 182. 66 67 Ibid., p. 106. Algo que a Patrística, em diálogo com os desdobramentos filosóficos helenísticos, vai desenvolver com grande erudição e perspicácia. 68 A expressão “pericorese” (Gr. pericoresiV) comporta o entendimento teológico de que a relação das Pessoas da Santíssima Trindade é tão intima que Elas estão mutuamente relacionadas em cada ato específico. Assim, por exemplo, na salvação, Pai, Filho e Espírito Santo estão em poderosa e equânime atuação, não nos permitindo falar da ação exclusiva de uma só Pessoa, embora seja apropriado falar, em certo sentido, de apenas uma Delas. Para maiores detalhes sobre esse assunto e a questão da linguagem de “apropriação”, veja MACGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: Uma introdução à Teologia Cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 376-380. 69 A idéia da noção trinitária posterior não desabona este dogma no tocante aos primórdios da igreja. Porém, Larry W. Hurtado em As Origens da Adoração Cristã observa que, no início, o movimento cristão tinha um “formato binitário de adoração”, onde Deus, o Pai, e Cristo eram equiparadamente tomados como alvo da devoção primitiva (Cf.: HURTADO, Larry W. As Origens da Adoração Cristã: O caráter da devoção no ambiente da Igreja primitiva. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 81-118). Entrementes, isso não é uma negação da histórica doutrina trinitária defendida pela igreja em suas efemérides, mas, apenas uma consideração da ênfase encontrada nos primórdios da adoração cristã que são acessíveis a 70 Artigos 77 identidade divina”, quanto à pesquisa histórica das origens cristãs, emerge com peso teológico elevado. Assim, a crença cristã na divindade de Cristo não é uma noção estranha culturalmente, nem, à época, impossível lógica e teologicamente. Ao inserirem Jesus na exclusiva identidade de Yahweh, os Cristãos estavam redescobrindo a verdadeira essência da Divindade. Deus É, só e tão somente, nesta relação. Não obstante a atratividade do revisionismo de Larry W. Hurtado, que advoga as origens da devoção cristã como o ponto de partida para a legítima busca do lugar de Cristo no entendimento monoteísta dos primeiros cristãos, sua adução de que a devoção no cristianismo primevo é tanto o fator causal como o caráter delineador do monoteísmo cristão pareceu-nos um pouco estreita e minimalista. A devoção é um exercício de reconhecimento, assim sendo, para tal, a anterioridade de um fundamento conceitual teológico é imediatamente pressuposto. Nesta direção, cremos que a pesquisa de Bauckham é mais lúcida e inovadora, pois, sua ilação principia por este último aspecto. Os contornos cristológicos da identidade divina de jesus no novo testamento A essa altura, faz-se oportuno considerar como os registros canônicos da igreja primeva – a saber, o Novo Testamento - considerava a Jesus. De fato, nestes escritos, abundam informações importantes sobre a figura de Cristo, contudo, nosso esforço resumiu as principais a partir das seguintes divisões: 1. As radicais auto-reivindicações de Jesus; 2. As tradições doutrinárias e cúlticas do Cristianismo nascente. 1. As radicais auto-reivindicações de Jesus. De modo insipiente, muitos críticos rechaçam a divindade de Jesus por concluírem que jamais ele disse, explicitamente, que era Deus. Bart D. Ehrman, considerado um dos mais influentes críticos liberais da atualidade, comentando os questionamentos religiosos enfrentados por Johan J. Wettstein, um controvertido pesquisador bíblico do século XVIII, sobre este assunto, afirmou: “(...) o Novo Testamento raramente chega, se é que alguma vez chega, a chamar Jesus de Deus71”. Não raro, insuflados por um orgulho ingênuo, ouvimos muitos igualmente dizerem: “Mostre-me investigação histórica atualmente. EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse? : Quem mudou a Bíblia e por quê. São Paulo: Prestígio, 2006, p. 124. 71 78 Artigos uma única passagem, em todo o Novo Testamento, em que Jesus diz: ‘Eu Sou Deus’”. Apesar de realmente Jesus não dizer àquela frase especifica, Ele, no entanto, fez profundas afirmações radicais sobre si mesmo que, suprimindo o conceito de divindade, o mínimo que poderia ser dito sobre elas é verborragia esquizofrênica. Não é por acaso que o erudito James D. G. Dunn questionou ironicamente: “Não se pode ignorar uma ultima questão: Será que Jesus era louco?72”. Como não há provas textuais e nem sequer alguma tradição ancestral que corrobore o pensamento de que Jesus sofria de algum tipo de distúrbio psicológico, somado ao fato de que as fontes informativas que dispomos apontam para o contrário, então, devemos lidar com tais afirmações de maneira seria e objetiva. Não se tem como fazer um tratamento minucioso e adequado de todas as reivindicações radicais de Jesus em um artigo como este. No entanto, muito material tem sido densamente escrito sobre este assunto73. Selecionamos, todavia, um conjunto de declarações no Evangelho de João – conhecidas como os ditos do “Eu Sou” - para um tratamento mais detalhado aqui. A importância destas declarações pode ser depreendida das palavras de Ladd: “A consciência de Jesus em relação à sua divindade é expressa nas declarações a respeito de sua unidade com o Pai, já consideradas, mas, de modo especial, nas afirmações que contêm a frase: ‘Eu Sou’74”. Os ditos do “Eu Sou” no Quarto Evangelho podem ser descritos e averiguados de duas maneiras: Uma, aparelhado a um atributo e de modo absoluto (vide, e.g.: João 6.35,48; 8.12; 10.7,11; 11.25; 14.6;15.1); Outra, pelo simples uso da expressão “egw eimi”, ou, noutros termos, pelo uso meramente absoluto (vide, e.g.: João 4.26; 6.20; 8.24,28,58; 13.19; 18.5,6,8). No primeiro conjunto, o termo atributivo anexado ao dito fornece-nos a aplicação exegética na passagem. Por exemplo, em João 11.25, quando Cristo diz: “Eu sou a Ressurreição e a Vida”, os qualificativos visam demonstrar que o dilema da morte – algo dramático na cena joanina, visto que Lázaro, amigo de Jesus, estava morto, e sua família estava profundamente entristecida – não era um imbróglio para o Cristo de Deus. Ele tem domínio e poder sobre as amarras da morte e, como Yahweh no Antigo Testamento, ele é “o que tira a vida e a dá; faz descer à 72 DUNN, James D.G. Jesus and the Spirit. London: SCM Press, 1975, p.60. Para listar algumas fontes interessantes sobre o assunto: HURTADO, Larry W. Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Paulus/Academia Cristã, 2012; LADD, George. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003; WRIGTH, N.T. A Ressurreição do Filho de Deus. São Paulo: Paulus/Academia Cristã, 2013. 73 74 LADD, George. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 369. Artigos 79 sepultura e faz tornar a subir dela.75”, e, assim, trouxe Lázaro à vida outra vez, provando, para todos, que seu poder se estende aos mais enigmáticos domínios da existência. Algo que somente alguém com prerrogativas divinas pode exercer. No segundo caso, contudo, o uso do dito é independente e absoluto, isto é, não há atributivos ligados a ele, e, em geral, sua linguagem é mais enfática nas construções frasais gregas. Por exemplo, em João 8.58, Jesus asseverou: “Em verdade, em verdade vos digo: Antes que Abraão existisse, eu sou76”. Aqui, Ladd observa que “a linguagem é muito mais enfática no grego do que no português77”, ademais, “esta é a única passagem no Novo Testamento em que se verifica o contraste entre einai e genesthai78”. A 75 I Sm 2.6 (ARC) “Amhn amhn legw umin, prin Abraam genesqai egw eimi”. O detalhe mais relevante dessa passagem consiste no contraste entre os termos “genesqai” e “eimi”. Uma breve consideração exegética sobre essa construção grega será oferecida adiante (veja nota de rodapé 21 no presente trabalho). 76 77 LADD, George. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 369. E. Stauffer, apud LADD, George. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 369. É preciso considerar, além disso, que as expressões “genesqai” e “einai” funcionam num exuberante contraste na passagem. Enquanto que Abraão foi trazido à existência historicamente, Cristo, ao contrário, já era, ou, existia desde sempre. O termo “genesqai”, infinitivo aoristo médio de “ginomai”, quando aplicado ao contexto da existência, carrega o sentido de “passar a existir, ser formado” (LOUW, Johannes; NIDA, Eugene. Léxico Grego-Português do Novo Testamento baseado em domínios semânticos. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013, p. 143.). Um exemplo desta modalidade pode ser observado em João 1.3 quando diz que “tudo passou a existir através dele” (A construção grega traz “panta di autou egeneto”), demonstrando que, por meio de Jesus, a realidade visível e invisível passou a existir. Já o termo “einai”, que é o infinitivo presente de “eimi”, denota uma existência supratemporal, eterna. No contexto, não é uma condição que se aufere historicamente – isto é, “um vir a ser” – antes diz respeito à eternidade. Por isso que LOUW & NIDA (2013, p.143), vertem João 8.58 como “antes de Abraão passar a existir, eu já era”. Hendriksen, contudo, discorda da tradução retrorreferida, embora o seu entendimento exegético sobre a passagem seja basicamente o mesmo. Para ele, o fato do verbo “ser” (gr. “eimi”) estar no presente do indicativo, denotando “eu sou”, apesar de carregar o mesmo sentido de “eternidade”, faz um dramático contraste à condição de Abraão expressa pelo infinitivo aoristo. Ele assim argumenta: “Diante da fugaz condição de vida de Abraão (veja Gen. 25:7), Jesus coloca sua própria atemporalidade. Para enfatizar este eterno presente, ele põe em contraste o infinito aoristo, indicando que Abraão nasceu no tempo, e o presente do indicativo, com referência a si mesmo; portanto, não Eu era, mas Eu sou.” (HENDRIKSEN, William. New Testament Commentary: Exposition of the Gospel According to John. Grand Rapids: Baker Academic, 2007, p.67). Por fim, a despeito das perspectivas diversas sobre o tempo verbal da construção final de João 8.58, os comentaristas acima estão de acordo com a ênfase sobre a eternidade de Jesus, condição que se opõe e se eleva à temporalidade e existência contingente de Abraão. 78 80 Artigos ideia subjacente é a da deidade de Jesus que se vê implicada em sua préexistência. A declaração foi tão fortemente reconhecida como indicativo de divindade que os judeus presentes muniram-se de pedras para lançaremnas contra Jesus, em represália tradicional aos que, para eles, cometiam o crime de blasfêmia. Portanto, o exemplo dos ditos do “Eu Sou” proferidos por Jesus no registro canônico joanino são evidências importantes para a compreensão primitiva da identidade divina de Jesus. Como resumiu Ladd, aproximando-se das conclusões de Bauckham, aqui, já observadas: ... pelo uso da expressão ego eimi em sua forma absoluta, Jesus está, em um sentido bem real, identificando-se com o Deus do Antigo Testamento. Na narrativa Joanina, esse fato adquire plena expressão após a ressurreição, por intermédio da confirmação de Tomé: ‘Senhor meu, e Deus meu’79. 2. As tradições doutrinárias e cúlticas do Cristianismo nascente. As raízes da adoração cúltica cristã, bem como suas expressões doutrinárias, revelam uma cristologia elevada já nos primeiros anos da igreja nascente. Essa alta cristologia se manifesta em várias expressões do cristianismo, tais como as declarações credais, hinos cristológicos primitivos, invocações, práticas cultuais como a Santa Ceia, o batismo e a impetração da benção80. As declarações credais antigas, por exemplo, demonstram certa orientação doutrinária formal da igreja, na qual, a pessoa de Cristo era emparelhada a Deus no campo dogmático. Em I Coríntios 15, Paulo argumenta a partir de uma tradição muito antiga da igreja. Ele assim assevera: “Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras81”. Essa tradição, que remete à convicção cristã da missão messiânica de Jesus e da realidade de sua ressurreição, traz um sólido contexto para a afirmação paulina 79 Ibid., p. 370. Nesta parte do artigo utilizarei algumas conclusões do aporte teórico, “Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo”, de Larry Hurtado. Esse texto é uma persuasiva dissertação sobre o caráter da adoração cúltica a Jesus como Deus nos círculos iniciais do cristianismo. O capítulo 2, “Cristianismo Primitivo Paulino”, traz uma série de contribuições eloquentes sobre o tema. Para maiores detalhes, consulte: HURTADO, Larry W. Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Paulus/ Academia Cristã, 2012, p. 121-213. 80 81 I Coríntios 15.3,4. Artigos 81 subsequente de que “então, virá o fim, quando ele [Jesus] entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado, bem como toda a potestade e poder. Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos pés.82”. Noutras palavras, é a certeza da ressurreição de Cristo que estabelece a convicção do reconhecimento cósmico-escatológico de sua exaltação, algo que nem mesmo as figuras dos patriarcas exaltados e dos seres angelicais reverenciados pelo judaísmo do Segundo Templo conseguiram alcançar, afinal, tal reconhecimento expressa a condição honorífica deifica que Cristo possui, assim sendo, sua divindade está implicada nesse reconhecimento. Os registros hínicos do Novo Testamento revelam que a recepção conceptual da identidade divina de Jesus já se constituía o modus vivendis litúrgico da igreja. Um exemplo simples pode ser extraído da perícope paulina de Filipenses 2.5-11, tecnicamente conhecido como Carmen Christi. Ali, Paulo descreve de forma extraordinária que, apesar da manifestação kenótica de Cristo, isso não anulou o seu status divino pré-encarnado83. Hurtado resume com lucidez: “o texto ilustra esse foco em Jesus, louvando seu status pré-histórico ‘em forma de Deus’ e sua impressionante renúncia até o ponto da crucificação, e depois proclama sua exaltação por parte de Deus a um status igual que lhe dá direito à reverência universal84”. Outro exemplo pode ser destacado do hino cristológico de Colossenses 1.15-20. Nesta porção, Cristo é a “eikwn tou qeou tou aoratou”, isto é, a “imagem do Deus invisível”, e, nele, “pan to plhrwma katoikhsai”, “toda a plenitude habita”. Se unirmos essa última expressão ao seu paralelo frasal em Colossenses 2.9, onde se diz que a plenitude que habita em Cristo é “pan to plhrwma thV qeothtoV”, ou seja, “toda a plenitude da divindade”, então, temos um forte argumento contextual de que o hino de 1.15-20 traz como pano de fundo a convicção de que Cristo era Deus e, portanto, digno de ser adorado. No Novo Testamento, as invocações a Jesus também funcionam 82 I Coríntios 15.24,25. Na cláusula “en morfh qeou” – “em forma de Deus” – Paulo sublinha a perenidade do caráter divino de Jesus, afinal, a expressão “morfh” significa, segundo Rienecker & Rogers, “a aparência exterior da realidade interior. Aqui se refere à aparência externa da substância divina, isto é, a divindade do Cristo pré-existente na exibição de Sua glória de ser a imagem do pai” (RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 407.). 83 HURTADO, Larry W. Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Paulus/Academia Cristã, 2012, p. 207. 84 82 Artigos como elementos de prova da recepção primitiva da identificação divina de Cristo. Em Romanos 10.9, por exemplo, Paulo diz que “se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação”. Logo depois o escritor atualiza cristologicamente as Escrituras do profeta Joel85, e diz, citando-as: “Pois: todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”. Ou seja, para Paulo, invocar a Cristo é o mesmo que invocar a Yahweh, afinal, Cristo é “KurioV”. Na invocação, portanto, a assimilação da identidade divina de Jesus é claramente esboçada na liturgia primitiva em um período tão cedo que a evidência é constrangedora para o rastreamento da devoção a Jesus como Deus. Outro material neotestamentário para se observar a aculturação teológica primitiva da identificação divina de Jesus são as chamadas “práticas cultuais”, como a Ceia do Senhor, o Batismo e a Impetração da Benção. Nestas, a pessoa de Cristo é firmemente associada a Deus. Na “Ceia do Senhor”, por exemplo, a adjetivação “do Senhor” funciona bem mais do que um atrelamento honorífico; é, sobretudo, uma maneira de constituir, à refeição, o seu aspecto ritual e cultual. Como acertadamente observou Hurtado: Claramente, a ceia do Senhor aqui é a refeição cristã cúltica na qual o Senhor Jesus desempenha um papel que é explicitamente assemelhado ao das divindades dos cultos pagãos e, ainda mais surpreendente, ao papel de Deus! Não se trata meramente de uma festa em homenagem a um herói morto. Jesus é percebido como o Kyrios vivo e poderoso que é o dono da refeição e preside nela, e com quem os crentes têm comunhão como com um deus86 Além da Ceia do Senhor, o Batismo também figura como uma prática cúltica na qual a figura de Jesus é tomada como Deus. Se tal prática consistia no rito de iniciação cristã – e, na condição de sacramento, era vista como uma manifestação visível da graça invisível – e incluía, como parte essencial, uma invocação do nome de Jesus87, então, é de se esperar 85 Joel 2.32 (LXX 3.5) HURTADO, Larry W. Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Paulus/Academia Cristã, 2012, p. 205. 86 87 Veja, por exemplo, Atos 2.38; 8.16 e 10.48. Artigos 83 que o contexto ritual aponte também para a divindade de Jesus88. Outra prática cúltica neotestamentária que salienta esse ponto é a “impetração da bênção”. Nela, a pessoa de Cristo é associada a do Pai e a do Espírito e, juntas, constituem a referência divina da qual fluem as bênçãos para os crentes. Esse caráter trinitário da bênção fornece uma forte evidência de que o cristianismo primevo identificava (talvez, pressupunha) a divindade de Jesus, e sua Pessoa é fonte de graça para todos os que servem ao Deus vivo. Portanto, a partir destes contornos cristológicos da identidade divina de Jesus no Novo Testamento é possível admitir, com elevado grau de probabilidade exegética e teológica, que a devoção a Cristo como Deus e o reconhecimento conceptual de sua deidade já eram parte da prática litúrgica e doutrinária da igreja primitiva. Logo, isso revela que os primeiros cristãos não tiveram problemas como uma suposta quebra das suas convicções monoteístas, originadas no judaísmo, ao identificarem a Cristo como Senhor e Deus. Conclusão Finalmente, podemos, com alta probabilidade histórica e teológica, julgar o monoteísmo cristão primitivo como legítimo a esta categoria, não violando o paradigma, entretanto, redescobrindo-lhe a real essência. É possível assumir, portanto, que não houve a imanência pagã nas práticas cristãs de devoção a Cristo como Deus, dado que tal devoção, conforme observado pelas vertentes expostas neste trabalho, não emparelhava Jesus como um segundo deus na ordem de culto (isto é, não era um tipo de “diteísmo”), nem que foi desenvolvida lentamente ao longo dos anos pela igreja, antes, sua origem remonta aos primeiros anos do cristianismo nascente. Acerca disso, Wrigth, embora tomando o contexto trinitário mais amplo, considera com razão: Quando os primeiros cristãos desenvolveram esse entendimento tríplice do Deus de Israel, eles não abandonaram suas raízes judaicas e adotaram a linguagem pagã e suas formas de pensamento. Eles desenvolveram sua teologia (...) É isso Em I Coríntios 6.11, Paulo diz que os crentes foram “lavados” em “o nome do Senhor Jesus Cristo”. Essa linguagem é claramente batismal e a confissão de Jesus como Senhor aponta para a divindade de Cristo envolvida no rito. Ele é o Deus em nome de quem o crente é “lavado”. 88 84 Artigos que os fez não só falar do único Deus verdadeiro, mas invocá-lo, orar a ele, amá-lo e servi-lo como Pai e o senhor, como o Deus que enviou o Filho e que nesse momento envia o Espírito do Filho, como o Deus unigênito que torna visível o criador, de outro modo invisível, do mundo89 Assim, a fé monoteísta esposada pelos primeiros cristãos não foi violada ao se tomar Cristo como objeto de culto e reverenciá-lo como Deus. A prática cúltica cristã aponta que, já nos primórdios e de um modo assaz especial, Cristo Jesus foi admitido, seja conceptual ou liturgicamente, à identidade divina de Yahweh, de tal maneira, que o culto a Ele prestado não poderia ser tomado como idolátrico, antes era tão solene e legitimo quanto o culto veterotestamentário a Yahweh. A alta cristologia primitiva, portanto, não anulou as perspectivas monoteístas judaicas do segundo templo, antes, conferiu-lhe um elevado significado. Referências BAUCKHAM, Richard. God Crucified: Monotheism and Christology in the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1999. ________. Jesus and the God of Israel: God Crucified and Other Studies on the New Testament’s Christology of Divine Identity. Grand Rapids: Eerdmans, 2008. CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos Séculos: Uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1995. DUNN, James D.G. Jesus and the Spirit. London: SCM Press, 1975. EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse? : Quem mudou a Bíblia e por quê. São Paulo: Prestígio, 2006. HAWTHORNE, G. F.; MARTINS, R. P. Dicionário de Paulo e suas cartas. São Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola. 2008. HENDRIKSEN, William. New Testament Commentary: Exposition of the Gospel According to John. Grand Rapids: Baker Academic, 2007. HURTADO, Larry W. As Origens da Adoração Cristã: O Caráter da Devoção no Ambiente da Igreja Primitiva. São Paulo: Vida Nova, 2011. ________. One God, One Lord: Early Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism. T&T Clark: Edinburgh, 1998. ________. Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Paulus/Academia Cristã, 2012. LADD, George. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003. WRIGTH, N.T. A Ressurreição do Filho de Deus. São Paulo: Paulus/Academia Cristã, 2013, p. 1012. 89 Artigos 85 LOUW, Johannes; NIDA, Eugene. Léxico Grego-Português do Novo Testamento baseado em domínios semânticos. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013. MACGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: Uma introdução à Teologia Cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005. RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2006. WRIGTH, N.T. A Ressurreição do Filho de Deus. São Paulo: Paulus/Academia Cristã, 2013. 86 Artigos Artigos A HISTÓRIA NA PERSPECTIVA DA FILOSOFIA KANTIANA Wanderson Luiz Freitas da Silva90* Resumo: O presente artigo tem por objetivo descrever a filosofia da história formulada por Immanuel Kant, de forma específica no opúsculo Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita, de 1784. Inicialmente tratamos de dois conceitos fundamentais para a compreensão da doutrina kantiana acerca da história: natureza e liberdade. Em sequência, descrevemos a filosofia da história kantiana propriamente dita, elucidando as ideias presentes no mencionado texto, no qual o autor expõe a teoria de uma história humana dotada de finalidade e sentido, onde a vontade livre dos seres humanos se manifesta em conformidade com um propósito racional, segundo um desígnio da natureza. Palavras-chave: História. Natureza. Liberdade. Moralidade. Finalidade. Zusammenfassung: Der gegenwärtige Beitrag sieht vor, die von Immanuel Kant formulierte Philosofie der Geschichte zu erläutern, insbesondere in der 1784 erschienenen Abhandlung „Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht“. Zuerst werden zwei grundlegende Konzepte zum Verständnis der kantischen Lehre von der Geschichte behandelt: Natur und Freiheit. Anschließend wird dann Kants Philosofie der Geschichte effektiv beschrieben, indem die Inhalte des o.g. Werkes erläutert werden. In seiner Abhandlung legt Kant die Theorie einer meschlichen Geschichte dar, die Finalität und Sinn hat und in der der freie Wille des Menschen in Übereinstimmung mit einem rationalen Zweck zum Ausdruck kommt, laut einer natürlichen Bestimmung. Stichwörter: Geschichte. Natur. Freiheit. Moralität. Finalität. 90 * Graduando em Filosofia pela Faculdade Dom Heitor Sales – Natal/RN Artigos 87 Introdução A Filosofia da História desenvolvida por Immanuel Kant está integrada no contexto maior da totalidade de seu pensamento. Como pretendemos expor aqui, em linhas gerais, a filosofia da história kantiana, é preciso que nos atenhamos inicialmente a dois conceitos básicos da filosofia de Kant: liberdade e natureza e a relação entre ambos e suas implicações internas (indivíduo) e externas (sociedade). No seu sistema filosófico, Kant desenvolveu pelo menos três concepções de natureza, correspondentes, respectivamente, a cada uma de suas críticas, a saber: 1) Crítica da Razão Pura (1781), 2) Crítica da Razão Prática (1788) e 3) Crítica da Faculdade do Juízo (1790). A primeira crítica, campo de sua filosofia teórica, diz respeito à natureza mecânico-causal (objeto da ciência) enquanto conjunto do conhecimento proporcionado pelo entendimento, que a regula mediante seus conceitos puros, as categorias. A segunda crítica, que trata de sua filosofia prática, concebe a natureza humana como suprassensível, sendo fundamento da liberdade do agir ético, enquanto fruto da razão, que cria suas próprias leis e regula a ação moral por dever. A terceira crítica compreende a natureza orgânica, enquanto causa e efeito de si mesma, como teleológica, isto é, dotada de finalidade. “Aí a natureza é definida como o ‘poder formativo’, cujos produtos são aqueles ‘no qual tudo é fim e, reciprocamente, também é meio’. (...) Com isso, Kant amplia o aspecto dinâmico da natureza (...), a fim de englobar uma concepção de natureza como poder produtivo, dinâmico ou formativo” (CAYGILL, 2000, p. 238-239) A ênfase aqui será dada a esta concepção de natureza teleológica que foi também apresentada por Kant em 1784 no opúsculo Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita91 para fundamentar sua compreensão da História como cenário do progresso da humanidade até a moralidade. A natureza teleológica deve ser concebida como um sistema de fins, enquanto natureza ativa em conformidade com uma intenção própria. Dessa forma, a causalidade da natureza mecanicista dá lugar à finalidade da natureza orgânica. Na concepção teleológica da natureza, tudo ocorre a partir de uma organização, uma harmonia, uma unidade que só pode ter sido estabelecida por um entendimento alheio ao dos seres humanos. Porém, tal ordem final é passível de ser reconhecida por nós enquanto princípio a priori regulativo e não explicativo, portanto, como essencial para a Kant. Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita. Utilizamos, para o presente artigo, a tradução brasileira realizada por Rodrigo Naves e Ricardo Terra, publicada pela editora Martins Fontes, 3ª edição, de 2011. As citações referentes a ela serão definidas pela abreviação IHU, seguida da página. 91 88 Artigos compreensão do sistema. Desta forma, a tarefa do filósofo é encontrar, “neste curso absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza que possibilite, todavia, uma história segundo um determinado plano da natureza” (IHU p. 4). A razão humana concebe a natureza como um ser, no qual os fins se realizam e no qual as “forças formadoras” originam seres organizados, segundo um decurso que tem como fim-término de toda a natureza o homem, ponto culminante desta organização. Neste sentido, a natureza teleológica deve ser compreendida como a totalidade das disposições naturais destinada a se realizar plenamente no gênero humano como um todo, visto que a finalidade última da natureza, segundo Kant, é o homem sob a lei moral. A moralidade92 se fundamenta em uma relação das ações com as leis da razão, sendo moral a ação fundamentada na boa vontade e determinada pela lei do dever. Kant compreende o dever como a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei. Esta lei na qual se fundamenta o dever deve ser dada pela própria razão, ou seja, pela faculdade humana geral de conhecimento e determinante da vontade. Vontade esta que, para ser considerada boa por si mesma e fundamentar os pressupostos da moral, não pode ser determinada por nenhum interesse particular, mas somente por respeito ao dever. Neste sentido, é moral a ação por dever e não somente conforme o dever, ou seja, a ação moral deve ser determinada por princípios interiores universais (imperativo categórico) e não por simples interesses individuais ou determinações exteriores (imperativo hipotético). Desta forma, o homem moral ao agir por dever dá a si mesmo as próprias leis (da razão), ou seja, é autônomo, dotado de liberdade. Tal liberdade, no âmbito da moralidade, deve ser considerada interior, visto que a lei é fruto dos próprios princípios racionais do homem. A moralidade consiste no fim último da razão prática e, para ser alcançada, passa por um longo percurso na história da humanidade até seu pleno desenvolvimento. A razão humana prescreve a lei moral, mas para que esta seja efetivada nas ações dos homens, estes devem abdicar de seus interesses particulares em favor do propósito universal, visto que a ação, para ser considerada moral, tem de ser desinteressada, ou seja, guiada por princípios universais (imperativo categórico). Visto que tal percurso passa por conflitos entre os arbítrios particulares dos homens, na busca pela realização de seus interesses A moralidade, para Kant, opõe-se à legalidade. A moralidade é o caráter das coisas que se conformam às leis morais, já a legalidade é a “simples concordância ou discordância de uma ação em relação à lei moral, se considerar o móvel da ação” (ABBAGNANO, 2000, p. 682). 92 Artigos 89 subjetivos, faz-se necessária uma intervenção exterior que regule as ações dos homens com vista na realização dos princípios interiores universais da razão. Tal legislação exterior consiste no direito, ou seja, no conjunto de condições que possibilitam uma conciliação entre os arbítrios particulares conforme uma lei universal. O direito tem por objetivo mediar as relações entre os homens de forma a garantir a liberdade de cada um e estabelecer regras, que visam a aproximar o agente da moral puramente racional, por meio de leis exteriores de coação das ações. Para isto, o direito se vale de regras legais (leis exteriores) para obrigar o homem a seguir a regra moral (lei interior), por meio de punições aos infratores destas leis. Portanto, enquanto a razão determina a moralidade, o direito determina a legalidade, mas este deve buscar a universalidade de suas leis nas prescrições da razão. Todavia, a realização da liberdade de todos por leis externas universais só é possível mediante uma Constituição Civil justa, enquanto representação de uma vontade pública, visto que as leis de coação externas só tem eficiência nos Estados enquanto estabelecidos conforme sua Constituição, como veremos adiante. A partir desta breve elucidação dos conceitos importantes para a compreensão da filosofia da história kantiana, podemos tratar propriamente de sua configuração. I Segundo Kant, a Filosofia da História consiste no projeto de “redigir uma história segundo uma ideia de como deveria ser o curso do mundo, se ele fosse adequado a certos fins racionais” (IHU p. 20). Kant trata da história não enquanto “ciência” empírica93, mas na medida em que é considerada filosoficamente, como a conexão que unifica as ações humanas, considerando-as em direção progressiva para a finalidade da razão, orientada segundo o fim imposto pela própria natureza. A história filosófica kantiana é concebida como história das manifestações da liberdade humana enquanto eivadas de racionalidade, como eventos unidos por uma conexão compreensível. Tal conexão pode ser entendida se concebemos o princípio de finalidade da natureza como conciliador de todos os acontecimentos ou atuações da liberdade humana. Na obra Ideia de uma História Universal de um ponto de vista Kant não considera a história, portanto, sob o aspecto tradicional de narração ou observação de fatos passados, nem tradição ou algo similar, mas como progresso que se dá sob uma ordem providencial; um “caminhar” ou fluxo contínuo com um propósito determinado. 93 90 Artigos cosmopolita, Kant fundamentou sua Filosofia da História na concepção de que a natureza, considerada teleologicamente, promove uma indicação de que a razão realizará sua finalidade, independentemente da vontade dos seres humanos. Nesta obra, o autor compreende a liberdade em um sentido exterior, enquanto manifestação das ações humanas reguladas pelo direito e finalmente submetidas às leis gerais da natureza. Desta forma, os homens singulares, ao agirem segundo seus propósitos particulares ou planos individuais, agem conforme um “determinado plano da natureza” (IHU p. 4). Cabe ao filósofo a difícil tarefa de descobrir “neste curso absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza” (IHU p. 4) e tal fio condutor deve pressupor a história enquanto filosófica e a natureza enquanto teleológica. A natureza teleológica determina que todas as criaturas terão suas disposições naturais completamente desenvolvidas. Mas as disposições racionais do homem “devem desenvolver-se completamente apenas na espécie, e não no indivíduo” (IHU p. 05), pois a razão, não conhecendo limites para sua força nem para seus projetos, promove a capacidade de superação do instinto natural por meio da tentativa, da aprendizagem e do avanço gradual do conhecimento. Portanto, dada a limitação da vida pela natureza, o pleno desenvolvimento humano só pode se dar em um progresso que leva gerações. Visto que a natureza nada faz em vão, para garantir que o homem ultrapasse sua existência animal em direção a tal desenvolvimento, a natureza o dotou de razão e liberdade, além de uma disposição natural ao antagonismo, que pode ser definido como uma “insociável sociabilidade dos homens” (IHU p. 8) constituindo, por um lado, uma tendência para entrar em sociedade (na qual se sente mais como homem em desenvolvimento de suas disposições naturais) e, por outro, uma propensão ao isolamento (pois, ao querer ter tudo, encontra resistência de todos). Como resultado desse antagonismo, reflexo do desejo de cada um de se sobressair perante os outros, o homem progride aos poucos: passa da brutalidade à cultura, desenvolvendo os talentos, os gostos e uma maneira de pensar que, com o tempo, pode mudar a grosseira disposição natural para o discernimento moral, passando primeiramente pela formação da sociedade. Tal é o maior problema do gênero humano: “alcançar uma sociedade civil que administre universalmente o direito” mediante uma “constituição civil perfeitamente justa” (IHU p. 10) que possa unir a sociedade sob leis exteriores da liberdade. Tal problema se dá porque o fim dos conflitos entre os sujeitos e a união da sociedade só é possível se cada indivíduo Artigos 91 renunciar à vontade própria em favor de uma vontade universalmente válida. Para isto, os homens necessitam de um chefe supremo (um senhor ou governante) que represente tal vontade universal e os force obedecê-la, mas que, por outro lado, “deve ser justo por si mesmo e, todavia, ser um homem” (IHU p. 12). Visto que tal solução perfeita parece impossível, deve-se conceber, com Kant, “uma relação externa legal entre os Estados [...], em que todo Estado [...] pudesse esperar sua segurança e direito [...] de um poder unificado e da decisão segundo leis da vontade unificada” (IHU p. 12-13), mediante uma confederação de nações. Desta forma, a natureza compele o homem selvagem a renunciar à sua liberdade brutal em troca de paz, tranquilidade e segurança, proporcionadas por uma constituição civil legal, que só pode chegar à perfeição mediante tal relação externa legal entre os Estados, capaz de equilibrar as liberdades externas. Segundo Kant, “[...] se deve aceitar antes que a Natureza siga aqui um curso regular para conduzir a nossa espécie aos poucos de um grau inferior de animalidade até o grau supremo da humanidade [...]” (IHU p. 14). Para isto, a Natureza impõe ao homem sua vontade, prescreve seu projeto, obriga a espécie humana a desenvolver-se plenamente, e esta obedece aos desígnios da natureza mesmo sem se dar conta. Se o homem quer o repouso, a natureza quer o trabalho; se quer a paz, a natureza quer a guerra; se quer a concórdia, “a natureza sabe o que é melhor para a espécie: ela quer a discórdia” (IHU p. 14). Mesmo as guerras, as catástrofes e a maldade, por exemplo, são imposições da natureza ao homem para que este queira o contrário: a paz, a ordem e o bem. A natureza se vale do antagonismo intrínseco ao homem, por meio da devastação, da desgraça e da crueldade das guerras, para impor a este a necessidade de sair do estado sem leis dos selvagens e ingressar numa liga de povos e, por fim, fundar uma constituição civil perfeitamente justa, como caminho alternativo para a preservação da espécie humana. Como afirma Kant, Todas as guerras são, assim, tentativas (não segundo o propósito dos homens, mas segundo o da Natureza) de estabelecer novas relações entre os Estados e, por meio da destruição ou ao menos pelo desmembramento dos velhos, formar novos corpos [...] até que finalmente, em parte por meio da melhor ordenação possível da constituição civil, internamente, em parte por meio de um acordo e de uma legislação comuns, exteriormente, seja alcançado um estado que, semelhante a uma república, se possa manter a si mesmo como um autômato. (IHU p. 14) 92 Artigos Em outras palavras, a Natureza obriga os seres humanos a passarem do estado selvagem para um Estado civil, que possa promover uma relativa tranquilidade e segurança para os indivíduos, que têm seus direitos salvaguardados pelo mesmo. Porém, os Estados civis, em suas relações interestaduais, também manifestam a insociável sociabilidade dos indivíduos, visto que cada Estado tende a repudiar leis que limitem sua soberania ao mesmo tempo em que se inclina a dominar os outros Estados. Por tal motivo, como uma forma de defesa, os Estados estão constantemente em conflito entre si por meio das inevitáveis guerras, que causam devastações, esgotamento das forças, prejuízos irreparáveis, etc. Em consequência, após inúmeras desventuras, o homem é forçado a caminhar no sentido oposto, segundo o intento da razão. Desta forma, o homem tem de provar dos males provenientes das guerras para repudiálos no futuro e almejar a paz, visto que, para Kant, a capacidade do homem de aprender com os infortúnios suscita a esperança no progresso da humanidade, que consiste na realização do fim supremo da Natureza. Assim, o homem, para preservar a si mesmo, vê-se obrigado a preservar o todo (passagem do particular ao universal) e se dá conta da necessidade de fundar uma liga de Estados, ou seja, um Estado civil mundial de pública segurança estatal capaz de intervir nos conflitos entre Estados, para que estes não se destruam entre si, mediante uma lei de equilíbrio e poder unificado que lhe dá força (IHU p. 19). Tal estado de cidadania mundial faz-se necessário, portanto, para o pleno desenvolvimento das disposições originárias do gênero humano, que é o propósito supremo da Natureza. Segundo Kant, deve-se considerar [...] a história da espécie humana, em seu conjunto, como a realização de um plano oculto da natureza, para estabelecer uma constituição política perfeita interiormente e, quanto a este fim, também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver-se plenamente, na humanidade, todas as suas disposições. (IHU p. 21, em itálico no original) Mesmo que o plano da Natureza constitua um “mecanismo secreto” impossível de ser completamente conhecido por nós, seres humanos, isto não nos impede de concebermos um princípio regulativo de teleologia da natureza, para ao menos compreendermos um fio condutor para representar como sistema pelo menos em conjunto, um acervo, aliás sem plano, das ações humanas. Segundo Kant, se observarmos a história da Grécia antiga, sob a Artigos 93 perspectiva de sua influência na política romana (passando pela absorção do Estado grego pelos romanos, pela destruição do Estado destes pelos bárbaros, etc.) e, posteriormente, pelo desenvolvimento político sucessivo até a era atual, “descobriremos um curso regular de aperfeiçoamento da constituição política” (IHU p. 21). Desta forma, se voltarmos a atenção para o desenvolvimento da constituição civil e de suas leis como fruto das relações estatais, veremos tanto qualidades (que promoviam a elevação, a dignificação e o desenvolvimento dos povos, da cultura, da ciência e das artes destes), quanto deficiências (de forma a rebaixar os povos, embora sempre promova uma preparação a um grau mais alto de melhoramento). Porém, em ambos os casos, é possível constatar o aperfeiçoamento da constituição civil, bem como um progresso da humanidade em direção a seu pleno desenvolvimento, ou seja, será possível descobrir [...] um fio condutor que pode servir não apenas para o esclarecimento do tão confuso jogo das coisas humanas, [...] mas que abre também (o que com razão não se pode esperar sem pressupor um plano da natureza) uma perspectiva consoladora para o futuro, na qual a espécie humana será representada num porvir distante em que ela se elevará finalmente por seu trabalho a um estado no qual todos os germes que a natureza nela colocou poderão desenvolver-se plenamente e sua destinação aqui na Terra ser preenchida. (IHU p. 21) Cumpre então admitir que a história do gênero humano deve ser compreendida como a parte que contém o fim de todo o grande teatro da Sabedoria suprema94, ou seja, deve-se conceber a humanidade como a finalidade última da natureza entendida sob a perspectiva teleológica, que proporcionará um sentido para a história, a saber, o progresso do homem em direção à liberdade. Deste modo, o princípio teleológico estabelece uma mediação entre o conceito da natureza e o conceito da liberdade, visto que a finalidade da natureza se harmoniza com a finalidade moral da razão, ao instituir como objetivo último a realização do fim moral do homem. A natureza teleológica proporciona a confiança de que no futuro o sentido (real ou parcial) da história se encaminha efetivamente para o fim último da razão, visto que na natureza humana há disposições que indicam que o gênero humano sempre progredirá para o melhor. Neste sentido, é possível conceber a história, em uma perspectiva filosófica, enquanto 94 Cf. IHU p. 21 94 Artigos história do progresso para o melhor no que diz respeito ao fim moral do gênero humano. II A filosofia kantiana da história, conforme apresentada acima, concebe a história humana como o progresso para a liberdade, que encerra uma passagem desta do campo da exterioridade para o da interioridade, ou seja, a efetivação da moralidade no mundo. Tal moralidade compreende a razão como reguladora das ações humanas e, visto que os princípios morais são inerentes ao homem, a capacidade humana de dar a norma a si mesmo (autonomia) promove a liberdade interior. Mas a lei moral racional está no campo do dever ser do agir ético e os indivíduos, nas suas ações, tendem aos interesses subjetivos, o que resulta nos conflitos entre vontades particulares. Porém, para mediar tais divergências, o homem deve renunciar de seu desejo particular em função de leis universais de coerção que garantam a liberdade exterior de cada um, sob a prescrição de direitos e deveres que devem ser iguais para todos. A liberdade na filosofia da história em Kant é concebida, enquanto exterior [no sentido de que a norma não é dada interiormente pela razão (moralidade) e sim exteriormente pelo direito (legalidade)] como parte do processo indispensável para o total desenvolvimento das disposições humanas. Portanto, visto que a legalidade (campo da liberdade exterior) busca a realização da moralidade, a liberdade interior não é negada pela submissão consciente dos indivíduos às normas legais exteriores, pois estas regulam as ações destes, visando atingirem a condição de universais, o que só é possível se tais normas legais possuírem como parâmetro as leis universais da razão e como meta a efetivação das mesmas. Neste sentido, faz-se necessário que o homem progrida de um estado selvagem sem leis para um Estado civil legal, que estabeleça uma constituição civil justa que possa efetivar o equilíbrio entre as liberdades. Mas a legalidade, ao constituir leis universais coercitivas, pode no máximo aproximar os seres humanos da moralidade, mas esta nunca será alcançada de tal forma, visto que o homem sob normais legais age conforme o dever, mas não por dever. Então o que “garante” a efetivação da moralidade? Para Kant, a resposta é simples: a natureza teleológica. A concepção de um princípio teleológico sugere um curso regular da história que se dirige para o fim último da razão em consonância com o objetivo supremo da natureza: o pleno desenvolvimento da espécie Artigos 95 humana até a moralidade. A história filosófica supõe a possibilidade de uma compreensão do confuso e irregular emaranhado das ações humanas que, observadas em sua totalidade, apresenta um curso regular e sugere um desenvolvimento progressivo que se encaminha para a plena realização das disposições originárias do gênero humano. Mas a questão do sentido da história só pode ser compreendida se a concebermos em consonância com a natureza teleológica: aí, a história é o palco onde a natureza conduz o progresso da espécie humana: da animalidade à humanidade95, da selvageria à cultura, do estado de natureza ao estado civil, da paz estatal à paz mundial, da liberdade exterior à liberdade interior e, com tudo isto, da legalidade à moralidade. Como meio para atingir seu fim supremo, a natureza utiliza-se do antagonismo originário dos indivíduos que repercute também posteriormente no Estado. Entre os indivíduos, aparece como sociabilidade insociável, que desperta as ocultas forças humanas, promove a necessidade do desenvolvimento das capacidades e a passagem da brutalidade à cultura. Entre os Estados, o antagonismo é fruto da ambição, da cobiça, do desejo de dominar o outro, e se mostra nas guerras. Por um lado, as guerras tem como resultado a crueldade, a destruição e a calamidade e, por outro, tornam necessárias as relações entre os Estados e, posteriormente, a fundação de uma constituição capaz de mediar tais relações interestatais e evitar as guerras. Neste sentido, as guerras são um artifício indispensável da natureza na promoção do bem, visto que, por meio dos infortúnios causados por elas, a natureza nos mostra a necessidade da paz, forçando a humanidade a realizar os fins da razão e aceitar o mandamento incondicional do dever. Em conclusão, cabe ressaltar que a concepção de uma natureza teleológica não “garante” a efetivação da moralidade, enquanto realização de sua finalidade, e sim nos proporciona uma expectativa futura, um sentido da história que aponta para o desenvolvimento moral da humanidade. A natureza não determina a liberdade humana, seja no âmbito do respeito ao dever ou às normas interiores da razão (realização da liberdade interior), seja no campo da subjugação consentida às normas exteriores do direito (realização da liberdade exterior). Tendo em vista que a liberdade é constituída pela moral enquanto móvel da ação pela vontade, a natureza teleológica, embora guie o homem ao desenvolvimento moral, não é capaz Quanto a isto, é interessante reportar-nos ao opúsculo kantiano “Começo conjectural da História Humana”, de 1786, no qual o filósofo aborda a questão da passagem do estado animal ao estado racional, da ruptura entre instinto e razão, como o início da História, baseando-se, para isto, no metafórico relato bíblico da queda de Adão. Já aí ele mostra a sua concepção de que a liberdade é o começo e a condição para o progresso moral. 95 96 Artigos de regular a vontade humana que, autônoma, dá a si mesma a própria lei: o dever da razão. Referências KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita. Trad. Rodrigo Naves, Ricardo Terra. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Tradução: Álvaro Cabral. Revisão: Valério Rohden. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. (Col. Dicionários de Filósofos) PASCAL, Georges. Compreender Kant. Trad. Raimundo Vier. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. Artigos 97 Fórum Neste 4º Fórum da Revista FAHS de Teologia e Filosofia, achamos pertinente publicar o artigo da Religiosa consagrada da Congregação Irmãs da Divina Providência (IDP), Ir. Anaelise Fleischhauer, membro e fundadora do Centro de Valorização e integração humana - Gente-regente, de Ponta Grossa/PR, que tem por lema: “Uma escola de amor mais humano e mais divino”. ENEAGRAMA E ESPIRITUALIDADE Gisela Fleischhauer (Ir. Anaelise, IDP)96 Do Gente-regente: www.genteregente.com.br Introdução No âmago do status quaestionis do tema, o Eneagrama é utilizado como ponte entre a psicologia e a espiritualidade. É ensinado como método narrativo, autoverificável e que faz a conexão entre o nível psicológico observável de vida em nível espiritual de vida e mostra como integrá-los. O resgate da cristificação do ser num método processual é como o de descascar as camadas de uma cebola e/ou a exploração do interior da pessoa, como percurso em espiral - do morrer (expirar, entregar, descarregar, desapegar) e ressuscitar - (inspirar vida, amor, unidade e paz), que faz mergulhar no coração do ser - Essência - onde se encontra a criança Divina, a criança Luz, na origem do ser. Referindo-se assim, à confiança básica, perdida na origem da formação dos tipos eneagramáticos. Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reio dos Céus97. Neste universo, o Eneagrama – uma sabedoria multi milenar - mapeia a situação de cada pessoa e aponta para a sua possibilidade de transformação. Partindo deste recurso milenar, o presente capítulo visa demonstrar Anesile é o nome religioso de Gisela Fleischauer no IDP (Irmãs da Divina Providência). É Psicoterapeuta, especialista em Psicologia das Profundezas e em Lacan e possui mestrado em Integração Psicoespiritual. 96 97 Mt. 18,1-5. 98 Fórum este processo e as possibilidades que promovem no sentido de ajudar a encontrar o lugar mais fascinante do universo: o interior da alma e do espírito humano. O Enegrama é o trabalho do autoconhecimento faz tirar as cegueiras, as paralisias, surdez e mudez psíquicas, percursos automáticos e repetitivos da pessoa, também elencados no caminho do Evangelho de Lucas na Bíblia98. Inicia-se pelo que há, como se está procurando entender como ficou desta maneira. Depois traça o rumo para o que É verdadeiramente - a essência do ser - partindo de onde está e como chegar à plenitude interior pelo fortalecimento dos atributos do SER que foram eclipsados e confundidos com a Personalidade, ou o Ego. Dentro desse contexto, o conteúdo aqui apresentado, convida o leitor a buscar o lugar mais fascinante do universo: o interior da alma e do espírito humano, através do método analítico e demonstrativo, observado em pouco mais de 36 anos de trabalho, com a psicoterapia desenvolvida em consultório, retiros, palestras e outras assessorias. Porém é preciso reconhecer a própria personalidade ou traços egóicos - as sombras, as máscaras, denunciando os mecanismos inconscientes e compulsivos da respectiva história humana, transformando-a em história sagrada, até a manifestação do Ser cristificado. Todos os caminhos levam a Deus, desde que se caminhe com uma bússola, na direção correta. Tenha-se em conta que cada pessoa tem sua singularidade, seus pontos fortes e fracos, pecados e virtudes, forças, talentos, valores, desvios e limites. Considerando estes aspectos, seguem algumas indicações, apresentadas em três itens que podem esclarecer a dinâmica do processo, para se atingir o ponto essencial. No primeiro item, em linhas gerais, uma síntese sobre a origem e o significado do dualismo como porta de entrada para o início do processo. No segundo, serão desenvolvidos, sinteticamente, alguns aspectos importantes, no exercício da superação do dualismo. O terceiro tópico pretende ser o ponto de chegada com uma demonstração, ou seja, um resultado, dentre muitas experiências positivas, devidamente comprovadas. Por fim algumas considerações conclusivas, consolidadas pelas experiências, no cultivo da espiritualidade com a ajuda do Eneagrama como caminho para se atingir uma vida equilibrada pela utilização do ponto de direção acessado. Aqui é possível encontrar o cerne para a conversão 98 Cfr Lc. 18,41; 9,11; 5,24; 9,11; 4,36; 7,22. Fórum 99 da personalidade em essência, considerando a fé, a esperança e o amor como Caminho, Verdade e Vida que aponta para o Cristo que é o modelo, o protótipo do antropos, o homem integrado, que teve uma experiência profunda da vontade e do amor do Pai na sua vida. I – Origem e significado do dualismo: Corpo e Alma O grau de domínio individual sobre as qualidades depende do nível de consciência despertado e do grau de sanidade psíquica: mais ou menos apaziguado, livre, criativo (ver figura 1). HIERARQUIA DE TOMADA DE AMOR CONSCIÊNCIA 7) Unificação da Ser apaziguado consciência Empatia 6) Compaixão incondicional e aceitação Compromisso com 5) Compreensão o crescimento 4) Aceitação / Perdão Coração VERDADE CURA saudável FORÇA INTERIOR Ser Ser apaziguado Ser apaziguado apaziguado Amor + aceitação Amor + aceitação Amor + aceitação Criatividade Decisão correta Sabedoria Perdão Perdão Perdão 3) Mente / Ego Louvor / Posse Prevenir / Experiência Educar / / Crenças Psicológicos Assertivo / Persuasivo 2) Paixão "Química" Sensações Natureza Manipulação 1) Sobrevivência Necessidades Ciência Física Força Física EU Observador EU VERDADEIRO FALSO CONSCIENTE CLARIFICADOR OBNUBILA FOCALIZA Tomar Tornar-se para Consciência Consciente SENTIMENTOS ATITUDE PÕE-SE DE FORA, CONFUNDE-SE OBSERVA NEGA-OS, ACURADAMENTE FOGE OBSERVA ACEITAÇÃO JULGADORA Precisa-se desenvolver muita acuidade e discernimento para perceber a sutileza das motivações internas inconscientes, os pensamentos automáticos (neuróticos), as atitudes reativas, os estados de ânimo, o 100 Fórum sistema de crenças arraigadas, as dificuldades ou facilidades em lidar com as pessoas - o relacional -, as feridas afetivas na fé, na esperança e no amor, que originam os nove eneatipos99 e assim entender o relacionamento com o diferente, numa esfera de compreensão de si e dos outros, até ao universo de uma verdadeira unidade em nível pessoal, comunitário, cósmico e Divino, como peregrinos a caminho do transpessoal partindo dos inconscientes100 para o verdadeiro EU SOU que me envia para a missão de comunhão, sendo Filho/a e irmão/ã da humanidade. Um dos principais desafios é a problemática do dualismo. Tudo ou quase tudo é proveniente do que ocorreu no Ocidente. Trata-se de uma evolução da compreensão do ser humano ao longo da História da Humanidade, que resultou numa dualidade de corpo e espírito, em estado fusional - confuso de 3.000 anos AC a 400 AC, na cultura clássica; divisão entre espírito e corpo nos séculos IV AC ao IV séc. DC; na época moderna - um Pró-espiritual (moralização) com desprezo do corpo, séc. IV DC a 1950; e Época atual - pós-moderna: 1950/70 até hoje, onde, no ocidente, o corporal - Pró-erótico, reduz o espiritual e entra uma mentalidade que degenera o erótico pela “pornografização” do afetivo, do amor, com as consequências de gerar no ser humano um grau permanente, maior ou menor de insatisfação afetiva101 quando a satisfação afetiva é determinante para o ser humano ser feliz. De modo semelhante há resquícios inconscientes na nossa vida afetiva advindas do inconsciente coletivo transpessoal histórico. Na análise atual, para que se cresça na Harmonia, no ser apaziguado desejado que é a integração das dimensões: corporal ou erótica, afetiva (alma), social e espiritual como homem e mulher, o desafio é o de promover uma sexualidade102, humanamente realizada e satisfatória. Para isto, é preciso reivindicar os valores naturais e inatos do espírito humano. Como pressuposto, neste tema, considero o ser humano na sua quádrupla visão antropológica: corpo, alma, espírito e transcendência: * HURLEY, Kathleen V.; DOBSON, Theodore E.. Qual é o meu Tipo? Eneagrama um estudo dos 9 tipos da personalidade humana, (trad. Júlia Bárány), editora Mercuryo, São Paulo, 1994. 99 Pessoal - self/EU verdadeiro, geracional, coletivo, cósmico, Physis, até o nada existencial que é o tudo divino. 100 3 101 Os sentimentos e as emoções. Compreenda-se que somos seres sexuados dos pés à cabeça como um todo, com todas as pulsões de vida. 102 Fórum 101 * corpo (dimensão física-biológica, erótica-motora, sentidos); * alma (psiquismo, vida afetiva (sentimentos, Pessoaemoções)); sexuada com * espírito (dimensão noológica, cognitiva, reflexão, decisão livre, pulsão de vida como sentido, fé, esperança, amor). e Divinizada ou Cristificada * Transcendência (Espírito de Amor, Reconciliação, harmonização, integração da LUZ e da SOBRA, totalidade, paz, senso de plenitude, Ser apaziguado, em COMUNHÃO com a totalidade da Humanidade e do cosmos). O que se percebe no mundo da pós-modernidade são duas forças antagônicas na realização e compreensão do mundo AFETIVO (da alma ou psíquico) da pessoa. A anulação da força erótica paralisa o sopro ou fluxo da vida, em confronto com a incongruência amorosa que interfere na sede de amor inato e natural. Estas antíteses levam à dissociação entre os elementos: - erótico (corpo); - afetivo (alma); - espiritual (noológico cognitivo, de discernimento); na experiência sexual e afetiva da pessoa. Essas oposições conduzem à perda dos valores afetivos humanos que são: o respeito, a liberdade, a fidelidade e a responsabilidade pelo crescimento adulto de autonomia. Valores esses, sem os quais as pessoas são ‘coisas’ manipuladas, sobre as quais se mantém domínio. Para experimentar o transcendente verdadeiro, o EU SOU, o EU verdadeiro, o EU maior, supõe-se viver a pulsão da vida e do amor em coerência com esses valores afetivos que integram todos os elementos da pessoa humana e lhe deixam, como consequência, a sensação de uma satisfação, a alegria interior. Aqui está o cerne da espiritualidade, que se conquista com perseverança e aprofundando o processo de superação deste histórico processo. Por isto são propostos, a seguir, alguns elementos necessários ao aprofundamento dos meios de superação do referido dualismo. 102 Fórum II – Aprofundando o Processo de Superação do Dualismo Este aprofundamento supõe um processo de vida em construção como busca, intimidade, prioridade, disciplina para uma especial sensibilidade, capaz de captar a presença e ser presença presente: amorosa, compassiva e misericordiosa. É também o deixar-se amar. Ter intimidade consigo, encontrar-se com a Palavra feito Carne, feito Vida no seu próprio templo, através dos exercícios de meditação103. Nesse processo e durante a meditação surgem dificuldades e é importante purificar as imagens distorcidas de Deus, de si mesmo e das figuras parentais e desbloquear as feridas do centro intelectual, emocional e/ou da ação (motor). O ser vivo tem a propriedade de autocura nas condições adequadas de respiração (sopro da vida) - no sentido ativo, expirando a dor da alma. E no sentido do passivo, inspirando a vida, o amor, pois um mal-estar, seja no corpo, na alma ou no espírito, revela-se no campo, afetivo que envolve todos os outros níveis na interação dos elementos: corpo, alma, espírito descritos anteriormente. Na maioria dos mal-estares são desconhecidas ao indivíduo as reais causas. Por ignorância de orientação a pessoa se perde do caminho da integração por não saber se libertar desse seu mal-estar, como insatisfação do ser, e tratar de vitalizar-se. − Nos eneatipos 5, 6 e 7 esta manifestação se dá no nível espiritual - cognitivo como clareza versus confusão e ou projeção. − Nos eneatipos 2, 3 e 4, o “mal-estar” é percebido nos componentes afetivos - nos sentimentos e emoções quando não vivido de acordo com a natureza dos valores de respeito, liberdade, fidelidade, verdade e compromisso com o crescimento adulto. − Nos eneatipos 8, 9 e 1, o “mal-estar” se manifesta de modo geral no nível sensual do corpo ou erótico como manifestação de DOR. Desta forma é necessário orientar a energia vital dos três centros: 1º)Intelectual - Espiritual - Cognitivo e perceber a realidade com Cfr. FREEMAN, Laurence, Jesus, o mestre interior,( trad. do original inglês, Jesus the Teacher Within, por Valter Lellis Siqueira), editora Martins Fontes, São Paulo, 2004. 103 Fórum 103 precisão; compreender e analisar as situações reais e buscar a realização. 2º)No afetivo, ver a motivação afetiva, a EXPERIÊNCIA afetiva dominante, o sentido afetivo dado à situação e dar uma RESPOSTA que leve a crescer em humanização. 3º)No centro motor predomina a sensação erótica (do corpo), o aspecto somático - sensação no CORPO, a experiência emocional registrada nesse corpo e que nele ressoa. Resumindo, importa no processo, a descoberta das percepções, das sensações e dos sentimentos manifestados no e pelo corpo nos seus centros. O afetivo no ser humano é englobante. É a esfera que unifica, de forma harmoniosa e vivifica as forças eróticas, físicas e espirituais. Assegura os sentimentos de amor e a harmonia no desenvolvimento sexual como homem e mulher, e na experiência humana. O espiritual oferece a segurança necessária para chegar à autonomia afetiva e à maturidade adulta. É livre das fixações infantis e armadilhas inconscientes da personalidade dos nove eneatipos. O erótico favorece a expressão sexual e a fecundidade da pessoa ao nível erótico (corporal), afetivo e espiritual, porque o CORPO possui a memória de toda história humana do indivíduo, como já citamos anteriormente. III – Resultado - o Ponto de chegada do Processo Para conferir o que se pretende demonstrar seguem dois exemplos concretos para ratificar como de fato o Eneagrama sugere caminhos para se atingir uma vida equilibrada associada à fé cristã, como Caminho, Verdade e Vida. Uma vez que aponta para o Cristo, modelo, o protótipo do antropos, o homem integrado, que teve uma experiência profunda da vontade e do amor do Pai na sua vida. Aqui é possível perceber o cerne para a conversão da personalidade em essência, desde que se consiga acessar o ponto direção, que em geral é pouco acessado e por isso a dificuldade de se ter uma consciência desperta. São, portanto, dois casos que podem elucidar e comprovar o que foi apresentado, em linhas gerais. “Fazer o retiro em Ponta Grossa com o Gente-Regente, levou-me a viver momentos profundos de libertação interior. A cada novo dia que inicia, me convida à inquietude, a ser em 104 Fórum minha essência, a entrar no ser profundo e estar em sintonia com a natureza. Dou-me conta de que os meus pensamentos passados ou presentes me desintegram, preciso viver no presente e na inquietude de ser eu mesma. Tenho consciência de estar na minha casa, isto é, em meu ser profundo: esplendor original. Sinto-me em sintonia com a totalidade da natureza. De verdade estou rezando o estar na minha casa interior e já posso dizer que fiz um processo de me sentir bem em minha própria casa. Trabalhei bastante: rezando limpando, deixando o feto de sete meses de gestação estar no colo do Deus trino e Maria e ser acariciado com ternura e amor. A cada exercício que faço, sinto a criança interior reviver em sua expressão de alegria, de esperança e cada vez com maior intensidade. Aquela sensação de estar “fora de casa”, isto é, estar fora de mim mesma, sem contacto com minha criança interior, está quase desaparecendo. Sinto-me ser eu mesma, sem me importar o que as pessoas pensem ou deixem de pensar a meu respeito. Permito-me ser eu mesma até mesmo nos limites e dificuldades. Mesmo assim sinto-me integrada na totalidade, como diferente. Bem amigas e amigos, é isso que experimento é muito gostoso e me dá muita alegria. Sinto-me uma pessoa renascida para a vida em plenitude de ser com minha criança interior ressuscitada. É esse jeito de ser que me leva a doar-me mais na missão de amar e servir. Um grande abraço e muito agradecida pela grande ajuda recebida do Gente-Regente. Ir. Clara Schlickmann. - Autorizo divulgação desse testemunho. Maringá, 04 de outubro de 2010.” “Minha experiência como um caminho de crescimento no autoconhecimento com o MAPA do ENEAGRAMA, indo ao fundo do meu EU verdadeiro. O Processo pessoal exigiu entender “QUEM SOU EU?”, “QUEM SOU EU COM?” e “ONDE ESTOU EU?” São perguntas significativas que me levaram a um despertar da consciência, identificando a minha ferida original no acolhimento de suas manifestações, dando assim voz à CRIANÇA INTERIOR. Descubro quanta raiva secreta, criativa e destrutiva eu tinha e foi o meu “desvio fundamental”, original. Dei voz a esta criança, que se sentia abandonada, numa atmosfera reverente, sem medo de rejeição ou autojulgamento e diminuição interior, e assim pude ser reverente diante Fórum 105 das pessoas. No processo tomei consciência da ansiedade, da vergonha, do medo ou da raiva básica inconscientes, expresso na busca do que me falta... e reconciliei-me com minha história. Ao enfrentar minhas fragilidades e sombras, não entendia o mistério do meu ser surdo, cego e paralítico: Um incontrolado e desconhecido medo existencial surgiu. Nas profundezas de minha escuridão e dor não posso mais esconder-me da angústia, do medo, e sou desafiada a explorar as mais remotas situações da infância: Torno-me presente a mim mesma na minha verdade. Então metáforas se modificam, imagens mudam e uma nova figura da realidade emerge. Enraízo as imagens no presente. Descubro a importância de ouvir, escutar, atender à escuta ativa aos afetos (sentimentos), ao fluir da energia, ao conteúdo e linguagem do meu corpo. Aprendi a nomear meus próprios sentimentos, imagens interiores e fazer caminho até perceber uma PRESENÇA silenciosa, inefável que me envolvia por inteira, no aqui e agora, como LUZ e esplendor: EU presente à PRESENÇA! Paraíso! Eternidade no tempo! A meditação diária, num nível contemplativo, me leva a crescer, amar, confiar, esperar e sentir-me UNA com toda Humanidade com um senso de plenitude interior em expansão, missão concreta, na paz, com entusiasmo nos meus 76 anos de vida. Um senso de gratidão brota das profundezas do meu SER e tudo ao meu redor parece estar mergulhado no Esplendor da Origem, irradiando a glória da Vida e da Luz presente em cada pessoa humana. (GCF - Anelise)” A prática, tendo em vista a espiritualidade, aplicada à informação fornecida pelo Eneagrama à experiência do dia a dia ajuda a retornar às verdades fundamentais que ele pode nos revelar. Considerações finais Pelo estudo apresentado conclui-se que se trata de um processo de vida em construção, pelo despertar da consciência para a totalidade do ser. Todo exercício supõe uma atividade essencialmente desfusional que tem como meta uma maturidade afetiva espiritual que é o ser casto, puro, original, apaziguado da essência. Aqui está o cerne da espiritualidade. O que sustenta a vida é o amor. E Deus é amor - comunhão! Logo é 106 Fórum necessário superar o dualismo. É um caminho que possibilita a conquista do Paraíso. Seu símbolo é o CRISTO, porque é o lugar desta terra em que o ser humano pode estar com Deus, isto é, pode amar e ser amado. Aqui está o ponto, o núcleo, onde se encontra a criação toda e o Criador, a História e a Eternidade; o mais dentro e o mais fora. E é na gratuidade do deixar-se amar, do deixar-se ser, de permitir-se cuidar e ser cuidado (não confundindo autonomia com orgulho, liberdade com autossuficiência, amor com afeto, razão com luz), que se caminha para um despojamento do que não é, para o que É, na humildade do ser filho/a de Deus e irmão/a da humanidade. O crime da árvore da cruz é a revelação do autêntico significado da transgressão da árvore da ciência104: a renúncia a ser os cristos de Deus e a transformar-nos em um paraíso para os outros. Em Cristo, o Ungido, contemplamos o AMOR feito realidade. Na humildade e no despojamento, exploremos nosso interior, até mergulhar no coração do que se É originalmente: verdadeiramente humano, porque verdadeiramente divino. Importa que Deus seja Deus e EU cuide do resgate de minha CRIANÇA LUZ. A criança ferida curada passa a ser LUZ, intuição profunda da verdade do ser, abandonando nossos ídolos inconscientes, contendo as paixões como rezam todas as tradições espirituais. E assim, de um lado o ser humano pode ser co-protagonista tanto do seu processo de desenvolvimento pessoal como da evolução de sua espécie. De outro, aprende sempre a entregar-se, aberto, à tarefa de olharse objetivamente, de aprender a ser testemunha se si mesmo num processo de integração dos opostos, caminhando na luz e no sopro do Espírito do Amor e da Vida. As modalidades da CONSCIÊNCIA e da ação DESPERTA são a aceitação, a alegria interior na paz e o entusiasmo105 que leva a uma criatividade compartilhada. O ser humano necessita entrar nas profundezas do SER, encontrar o seu Mestre interior106 para alcançar o manancial que daí brota, para que suas águas ou luz reguem ou iluminem e revitalizem tudo o que encontrarem em seu caminho107. 104 Gn 3,1ss. A palavra entusiasmo deriva do grego antigo - en theos, que significa “em Deus”. O termo enthousiasmo corresponde a “estar possuído por um deus”. 105 106 Para os cristãos é Jesus - o seu Espírito, O Espírito Santo. 107 Cfr. Jo 4,14; Jo 7,38 e Jo 1,1-5. Fórum 107 Este espaço sagrado é o lugar do encontro entre o novo CÉU e a nova TERRA, o EU verdadeiro, o EU SOU - O DEBIR108 - a partir do qual, na vivência do AQUI e AGORA, se vislumbra o Infinito para captar a dimensão eterna da vida inerente à própria natureza do ser humano na sua ESSÊNCIA. Referências FREEMAN, Laurence. Jesus, o mestre interior (trad. do original inglês, Jesus the Theacher Withim, por Valter Lellis Siqueira), editora Martins Fontes, São Paulo, 2004. 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Filosoficamente ele se inspirava completamente em Spinoza e nas sabedorias do Oriente; eu, em Kant e no cristianismo” (p. 315-316 O destaque é nosso). Portanto, ao longo do seu itinerário intelectual, Luc Ferry teve contato com diversas visões de mundo. Como ele mesmo diz, politicamente é um direitista republicano. Em termos filosóficos, foi formado no cristianismo e no kantismo. Também não se considera um materialista. Ferry tem uma vasta produção bibliográfica que aborda um amplo leque de assuntos. A obra tratada neste trabalho é Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos, publicada em 2006. O título original francês é Apprendre à vivre: traité de philosophie à l’usage dês jeunes générations. A tradução portuguesa mais apropriada seria Aprender a viver: Tratado de filosofia para uso das jovens gerações. Essa obra, a meu ver, tem uma importância social e acadêmica considerável. À primeira vista, parece mais uma das muitas obras de autoajuda de caráter psicológico que povoam um considerável espaço das estantes de nossas livrarias e bibliotecas. Puro engano! Trata-se, é verdade, de uma obra, como o próprio título deixa evidente, voltada a ajudar seus leitores a viver melhor. Para isso, faz um percurso pela história da filosofia ocidental, colhendo das grandes escolas e correntes filosóficas, as lições e ensinamentos que se destinam ao fim supracitado: proporcionar uma vida melhor. Aprender a viver é, portanto, uma obra de filosofia. Sua linguagem simples, acessível, fluida, prazerosa, não compromete a profundidade das idéias filosóficas abordadas. Portanto, a importância social de Aprender 110 Resenha a viver consiste em colocar à disposição dos leitores em geral os saberes legados à humanidade pelas grandes tradições filosóficas, pois estas “podem simplesmente ajudar a viver melhor e mais livremente” (pág. 16). E a relevância acadêmica? Esta reside no conceito de filosofia de que parte Ferry. Conceito ao mesmo tempo novo e antigo! Esse paradoxo se explica porque Ferry tenta recuperar o conceito originário de filosofia que predominou até a Igreja, na Idade Média, ao monopolizar os temas que até então eram tratados pela filosofia, dar a esta um papel meramente instrumental e secundário, especialmente em relação à teologia. O filósofo francês defende que a filosofia deve ser reconduzida ao seu papel original enquanto doutrina de salvação sem Deus. Salvação de quê? Senão da morte, como prometem as religiões, com destaque para o cristianismo, ao menos dos medos gerados pela consciência da finitude. Na seguinte passagem, Ferry explicita sua idéia de filosofia estabelecendo um paralelo com a religião: “A filosofia – todas as filosofias, por mais divergentes que às vezes sejam nas respostas que tentam oferecer – promete também que podemos escapar dos medos primitivos. Ela tem, pois, em comum com as religiões, pelo menos na origem, a convicção de que a angústia impede de viver bem: ela nos impede não apenas de ser felizes, mas também de ser livres. [...] Não se pode pensar ou agir livremente quando se está paralisado pela surda inquietação que gera, mesmo quando se tornou inconsciente, o temor do irreversível. Trata-se, pois, de chamar os homens à ‘salvação’” (pág 29). A filosofia promete salvação não mediante a fé, mas pela razão. Como já foi citado acima, Aprender a viver faz um percurso por toda a história do pensamento ocidental abordando as escolas filosóficas a partir de três eixos: teoria (qual visão se tem do mundo no qual se vive?), ética (qual comportamento se deve ter diante dos iguais?) e a sabedoria ou busca de salvação (como se deve viver para se viver bem?). Outras duas idéias interessantes que Ferry desenvolve e defende no livro são as de transcendências horizontais e de pensamento alargado. Segundo Luc Ferry, existem coisas que estão além da capacidade criativa e inventiva do homem. Ou seja, essas coisas o homem não cria, mas descobre, desvela. Portanto, elas lhe são transcendentes. Entretanto, elas não estão acima do, mas no homem. Trata-se, então, de uma transcendência na imanência. Em outras palavras, Aprender a viver conceitua as transcendências horizontais (com destaque para o amor) em detrimento das verticais (Deus, nação). Embora reconheça a importância do cristianismo na formação da civilização ocidental, Luc Ferry se considera não crente. Talvez contribua para essa posição o antigo e insolúvel problema do mal Resenha 111 no mundo, como ele deixa entrever em algumas passagens. Também ele considera os direitos humanos necessários, mas insuficientes para a existência humana. Isso se deve ao fato de o homem tender, por natureza, ao transcendente. Por último, o filósofo francês conceitua o que chama de pensamento alargado, visto como “antídoto” contra duas posições intelectuais extremistas e perigosas, o ceticismo e o dogmatismo. Ter um pensamento alargado é “resgatar o que uma visão de mundo diferente da sua pode ter de verdadeiro, aquilo que pode nos levar a compreendê-la, ou mesmo a assumi-la em parte” (Pág. 315). Denison Ricardo da Costa Barbosa Graduando de Filosofia da FAHS, 8º período. 112 Resenha EDITAL DE INSCRIÇÃO DE ARTIGOS – 2014/02 Apresentação A Faculdade Dom Heitor Sales informa à Comunidade Acadêmica que, de 28/05/2014 a 15/08/2014, está aberto o período de inscrição de trabalhos acadêmicos para publicação, dando prosseguimento à produção periódica semestral de seus artigos científicos e culturais no quarto número da Revista FAHS. A Revista FAHS é uma publicação impressa, oriunda do esforço comum dos Cursos de Filosofia e Teologia, contribuindo para a divulgação do pensamento da IES e interação com outras Instituições congêneres. Normasde Publicação 1 - Serão aceitos textos inéditos. Os originais devem ser gravados em Word, fonte Times New Roman tamanho 12 (rodapé tamanho 10), com entrelinhas 1,5 enviados em mídia eletrônica para: [email protected] 2 - A estrutura do artigo deverá constar de título, em maiúsculo e negrito; nome do autor abaixo do título e com nota de rodapé contendo a apresentação do autor (titulação, principal atividade, endereço eletrônico). Deve constar um resumo de 10 linhas, seguido de 5 palavras-chaves em português e outro idioma. 3 - Além da introdução e conclusão, o artigo deve conter subdivisão numerada ou não. 4 - As citações de até 3 linhas ficam nos corpo do texto entre aspas duplas (“). As citações diretas no texto com mais de três linhas, devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, em fonte 10, sem aspas. Normas de Publicação 113 5 - Todas as referências obedecerão às normas vigentes da ABNT, ressaltando que o número de páginas não deverá ultrapassar o total de 12, incluídos gráficos e/ou ilustrações. 6 - A resenha limitar-se- á, no máximo a quatro páginas, em Times New Roman, tamanho 12 e entrelinhas 1,5. No cabeçalho deve constar citação completa da obra resenhada, com o nome do resenhador ao final. 7 - Os artigos serão examinados pelo conselho editorial. 8 -A aceitação ou recusa dos textos enviados e sua consequente notificação aos autores cabe ao Conselho editorial. 9 - Os autores deverão assinar documento contendo autorização da publicação de seus textos. 10 - A Faculdade não se responsabilizará pelas ideias veiculadas nos artigos. Natal, 28 de maio de 2014. Prof. Ms. Vicente Laurindo de Araújo Editor responsável da Revista FAHS 114 Normas de Publicação Pe. José Valquimar Nogueira do Nascimento Diretor Geral da FAHS Esta obra foi impressa em processo digital na Oficina de Livros para a Letra Capital Editora. Utilizou-se o papel Offset 75g/m² e a fonte Times New Roman corpo 11 com entrelinha 14.