Vol. 02 n. 04 JUL/DEZ 2013 - FAHS

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Vol. 02 n. 04 JUL/DEZ 2013 - FAHS
Revista de Filosofia e Teologia
da Faculdade Dom Heitor Sales
Corpo Diretivo:
INSTITUTO DE TEOLOGIA PASTORAL DE NATAL - ITEPAN
Dom Jaime Vieira Rocha
Presidente
Marluzia Maria Pessoa
Diretora Executiva
FACULDADE DOM HEITOR SALES - FAHS
Jose Valquimar Nogueira do Nascimento
Diretor Geral
Vicente Laurindo de Araújo
Vice-Diretor
Washington Carlos de Lima
Secretário Geral
INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO
Aurélia Sotero Angelo-Ms.
Coordenadora
CURSO DE TEOLOGIA – BACHARELADO
Paulo Henrique da Silva – Ms.
Coordenador
CURSO DE FILOSOFIA – LICENCIATURA
Túlio Sales Souza Lima-Dr.
Coordenador
CONSULTOR ACADÊMICO
Prof. Dr. João Medeiros Filho
INSTITUTO DE TEOLOGIA PASTORAL DE NATAL - ITEPAN
FACULDADE DOM HEITOR SALES - FAHS
Credenciada: Portaria MEC nº 875, de 05/07/ 2010, publicada no DOU de 06/07/2010
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Site: www. fahs.edu.br
SUMÁRIO
EDITORIAL...............................................................................................5
Especial
O SUPOSTO SILÊNCIO DE PIO XII..................................................9
Profª. Drª Vilma Lúcia de Oliveira
Artigos
RELIGIOSIDADE E FESTA: O SAGRADO E O PROFANO
NA FESTA DO SANTO PADROEIRO...............................................40
Prof. Dr. Luiz Alencar Libório
Msc. José Carlos Lima Filho
SUBJETIVIDADE MOSAICA...........................................................57
Gilberto Benedito de Oliveira
A CRISTOLOGIA PRIMITIVA E O ESTRITO MONOTEÍSMO
JUDAICO DO SEGUNDO TEMPLO: REPENSANDO A
IDENTIDADE DIVINA DE JESUS EM RELAÇÃO AO PANO
DE FUNDO CULTURAL DA ÉPOCA...............................................72
Thiago dos Anjos Noleto Barros
A HISTÓRIA NA PERSPECTIVA DA FILOSOFIA KANTIANA....87
Wanderson Luiz Freitas da Silva
Fórum
ENEAGRAMA E ESPIRITUALIDADE............................................98
Gisela Fleischhauer (Ir. Anaelise, IDP)
Resenha..................................................................................................110
Denison Ricardo da Costa Barbosa
Normas de Publicação..........................................................................113
Conselho Editorial
Corpo Editorial
Prof. Ms. Vicente Laurindo de Araújo
Prof. Dr. Túlio Sales Lima
Prof. Dr. Ivanaldo Santos
Prof. Ms. José Nazareno Vieira da Nóbrega
Prof. Ms. Paulo Henrique da Silva
Prof. Ms. Ednaldo Virgílio da Cruz
Prof.ªMs. Aurélia Sotero Angelo
Conselho Científico
Prof. Dr. João Medeiros Filho
Prof. Dr. Ferdinand Röhr
Prof. Dr. Roberto Lima de Souza
Prof.ªDrª Vilma Lúcia de Oliveira
Prof. Ms. Itamar de Souza
A Revista de Filosofia e Teologia da Faculdade Dom Heitor Sales (FAHS),
Natal - RN é uma publicação semestral da produção científica da Comunidade
Acadêmica, na área do pensamento humanístico e teológico. Cada número
constará de artigos acadêmicos, fórum de discussão temática e resenhas.
Ano 02, nº 04 (jul/dez) 2013
ISSN: 2317-9805
Editoraçao e Produção
Letra Capital Editora
Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781
[email protected]
EDITORIAL
A instituição que, como a Faculdade Heitor Sales se propõe: “Educar para a cidadania, contribuindo com a construção de uma sociedade
democrática e a formação integral da pessoa humana, assumindo um compromisso com a ética, com a justiça social e a sustentabilidade socioambiental,” tem que estar atento, às razões de sua afirmação e consolidação
interna e externa, tendo em vista assumir e superar os desafios emergentes,
próprios de quem precisa crescer de forma integrada e comprometida e,
também, daquilo que ela tem que prestar contas: sua missão; objetivos,
projetos, utopias que abrirão horizontes, quais campos livres para novas e
futuras conquistas.
A Revista FAHS quer continuar prestando uma colaboração emblemática, pela qualidade acadêmico/cientifica, como é constituída, a Faculdade Heitor Sales, de que é parte, a serviço da mesma construção: uma
Filosofia e Teologia que não descurem colaborar com a promoção da vida
humana, do “homem todo e de todos os homens”... (cf. Paulo VI, PP), e,
também, ao transcendente de Deus, “Já que o homem ultrapassa infinitamente o homem.” (cf. Blaise Pascal). É a perene busca humana do Sagrado, no embate de abordagens plurais de que a lida acadêmica tem que
compartilhar e contribuir, naquilo que lhe é próprio Essa é a percepção que,
a nosso ver, demanda dos espaços de atuação da Faculdade Heitor Sales,
na expectativa de seu Recredenciamento e, no limiar de suas primeiras
turmas de formandos. Registrar eventos dessa natureza e afins é contribuir
para a cultura, a Educação, é, também, construir a História de nossa Instituição, comprometida com a formação de uma sociedade, mais livre, mais
consciente, mais ética, mais participativa, criando mais oportunidades para
todos como deseja o Mestre dos Mestres (Cf. Jo. 10,10) “ Pai, que todos
tenham vida...”
Na escolha dos artigos e demais contribuições contidas no nº4 da
FAHS, orientamo-nos por essa percepção e intenção. É o que lhe oferecemos! Essa tarefa é envolvente, porque suscita esperança, além de ser
matéria prima para a realimentação da vida acadêmica e da missão própria
da FAHS. Foi assim que se chegou ao ordenamento das matérias subsequentes.
Escolheu-se: “Pio XII e o seu suposto Silêncio, ” da Profª.Dra. Vilma
Lúcia, como artigo Especial, por reconhecer-se o inequívoco teor científiEditorial 5
co e crítico, pesquisado em fontes primárias, com metodologia específica,
apta a resgatar a verdade histórica, de que, nessas mesmas fontes pode, é
possível encontrar-se. O levantamento, a análise e interpretação de fontes
primárias é tarefa para quem se habilitou para tanto, apropriando-se de
metodologia específica, pois se trata de uma garimpagem que busca mais
que o “ouro mais fino,” busca a verdade do ser mais precioso: a Verdade do
Homem, nas motivações últimas de suas ações. É nessas regiões abissais
que o historiador, como que exuma os fatos, desvelando-os; e os apresenta
naquilo que os constituiu. O que não é tarefa para neófitos, isto porque a
polêmica referente às acusações de que Pio XII teria se omitido, ao não
utilizar-se da Diplomacia vaticana e da sua condição de Pontífice para uma
veemente condenação do Nazismo no período da II Guerra Mundial de
(1939-1945) necessitava de uma revisão que restaurasse a verdade dos fatos em substituição, fundamentados nas fontes e não em falseamentos das
mesmas. A leitura do Artigo de Ir. Vilma extirpa dúvidas de interpretações
inconsistentes e de má fé e recoloca a verdade histórica no seu lugar como
Ciência.
O artigo: “Religiosidade e Festa: o Sagrado e o Profano na Festa da
Padroeira” do Prof. Dr. Luiz A. Libório e Ms. José Carlos L. Filho descreve
a festa religiosa em sua origem e sentido manifestado pela fé e tradição, no
espaço e tempo sagrado e profano. Os autores analisam o tema articulando
dimensões essenciais do ser humano com a busca do Sagrado as manifestações de religiosidade popular, mais como culto do que como prática institucional doutrinária. Isto permite uma experiência religiosa desprovida de
preocupações fundamentalistas e, portanto, mais livres, criativas, inventivas, onde os sujeitos se deixam envolver com dimensões mais simbólicas
e mais próximas de suas origens míticas que o clima de festa reatualiza
como “religião do sujeito, ” sugerindo aos estudiosos que existe uma “teologia feita pelo povo, ” contexto que parece diluir o profano em saudosas
e utópicas experiências. Tudo é singelo, simples e sublime e manifesta
exultação!
O artigo: Subjetividade Mosaica do Prof. Gilberto Benedito de Oliveira sugere que o leitor se situe na perspectiva da “vista de um ponto: ”
O deslocamento de uma visão Teocêntrica para Antropocêntrica, através
de aproximações sincrônicas, ao longo dos tempos modernos, chegar-se à
atualidade e compreensão do artigo que desperta para a necessária reflexão: no quê consiste, em última instância, a “subjetividade, ” que relações,
nela(s) se implica(m)? O artigo remete a questões da Filosofia, da Ética da
Antropologia e, também, do Direito. A questão é: Onde, nessas Ciências,
6 Editorial
identificar-se a(s) subjetividade(s) e/ou preservá-la(s)? O de que ela (s) se
constituem?
O artigo: “A Cristologia primitiva e o Estrito Monoteísmo judaico do
Segundo Templo” do graduando de Filosofia da FAHS e, pós-graduado,
em Teologia do Novo Testamento e, em Docência do Ensino Religioso
pela Faculdade de Teologia Batista do Paraná, Thiago dos Anjos Noleto
Barros, apresenta importantes conclusões de pesquisas históricas de autores acadêmicos e pesquisadores sobre esse período neotestamentário, nas
quais já se encontram uma elevada Cristologia. Essas concepções aparecem, segundo essas pesquisas, nas práticas litúrgicas, nos cultos e rituais,
hinários, apesar de outras influências de origem grega, romana adicionadas
pelo processo de incultaração da “diáspora. ” Utilizando a metodologia
histórico crítica, aplicada à História Comparada e à Teologia Liberal, os
autores referidos chegam a reforçar suas teses, recorrendo, também, à teologia trintária constitutiva do Credo Nicenoconstantinopolitano.
Wanderson Luiz Freitas Silva, graduando de Filosofia da FAHS
nos oferece um artigo: “A História na Perspectiva da Filosofia Kantiana,
” Apresenta, na concepção de Kant uma “Ideia de História Universal de
um ponto de vista Cosmopolita. ” onde, esclarece conceitos fundamentais
para a compreensão da convivência humana como: natureza e liberdade.
Descreve a história humana, como dotada de uma teleonomia e, de um
sentido que as acepções e práticas se encarregarão de adaptá-las, racionalmente, segundo o desígnio da natureza noumênica. A tarefa da Filosofia
é encontrar, nesse curso absoluto e ininterrupto das coisas humanas, um
propósito da natureza que possibilite, todavia, uma história segundo determinado plano da natureza. Se se trata de princípios internos determinantes,
moralmente, tem-se o “imperativo categórico, ” se, de princípios externos
e livres, tem-se o “imperativo hipotético. ” O artigo desafia também, os que
estão preocupados com o “Estado de Direito” e com a Construção da paz
entre as Nações.
Apresenta-se, sob forma de FORUM, para debate nesse nº4 da FAHS:
“Eneagrama e Espiritualidade” da Ms. Gisela Fleishhauer (Irmã Anaelise,IDP) O Eneagrama é um método utilizado pela Psicologia, objetivando
superar o dualismo clássico: corpo x alma, matéria x espírito, estabelecendo uma ponte entre psicologia e espiritualidade, contribuindo, assim para
o desvelamento do autoconhecimento, tipo de incursão nas profundidades
do ser humano, como se realizasse um “mapeamento psíquico” dele, na
perspectiva de sua capacidade de transformação, enquanto suscita no ser
humano novas possibilidades e pulsões rumo à plenitude do seu vir a ser.
Editorial 7
É, como que, um encontro do homem com sua última utopia: um encontro
de amor, com a fonte do Amor que sacia toda a carne, no templo que somos
nós, com ‘Aquele que é tudo para todos’.
A Resenha, ora apresentada é uma contribuição de Denison Ricardo
da Costa Barbosa, graduando de Filosofia da FAHS. Resenha ele, de TERRY, Luc “Aprender a viver- Filosofia para o nosso tempo. ” Para o autor a
“Filosofia promete a salvação, não mediante a fé, mas pela razão. ” Através
de três Eixos: Teoria- visão de mundo; Ética- comportamento a ter perante
os iguais, -e, Sabedoria, busca de salvação: como viver para conviver bem!
Apresenta duas vias de acesso: As transcendências horizontais ou imanentes, que o homem as encontra, naturalmente; e as transcendências verticais:
Deus, Nação e Espírito, presentes nas culturas. Essas buscas conduzem a
um “pensamento alargado”, ampliando as oportunidades de uma convivência, sempre mais plena, ética e, realizadora. É um humanismo em constante
aperfeiçoamento e qualificação.
Almejamos bons momentos com leituras agradáveis, proveitosas e
enriquecedoras!
Pe. Vicente Laurindo de Araújo.
Editor-chefe
8 Editorial
Especial
O SUPOSTO SILÊNCIO DE PIO XII1
Profª. Drª Vilma Lúcia de Oliveira2
[email protected]
Resumo: Este estudo visa apresentar o empenho de Pio XII, no período que antecede a Segunda Guerra Mundial, comprovando que ele
não se omitiu para evitar a situação provocada por Hitler, bem como
elucidar os insistentes apelos de paz realizados sob a égide da discrição, conforme mostram vários documentos diplomáticos da Santa Sé
datados de setembro de 1939 a agosto de 1940. Também apresenta
fontes que mostram outra visão diante das contestações sugeridas pela
obra conhecida como O Silêncio de Pio XII (1939 – 1958). Procurase, portanto, dar uma visão geral sobre a intensa atividade da Santa
Sé junto aos Chefes de Estado para evitar a Guerra. A pesquisa destes
documentos mostra, principalmente, as prioridades da Santa Sé
durante aquele conflito.
Palavras chaves: O Silêncio de Pio XII, Segunda Guerra, Hitler, Diplomacia, Judeus, Conflito, Santa Sé, Vaticano.
Abstrakt: Bei diesem Text handelt es sich um eine Studie mit dem
Ziel, die Bemühungen des Pius XII in der Zeit vor dem Zweiten Weltkrieg ans Licht zu bringen, um zu beweisen, dass seine Stellungnahme
bezüglich der von Hitler hervorgebrachten Situation keineswegs neutral war. Es soll anhand zahlreicher diplomatischen Dokumente des
Heiligen Stuhls zwischen September 1939 und August 1940 erklärt
werden, wie er wiederholt - wenn auch zurückhaltend - um Frieden
anflehte. Hier werden Quellen vorgeführt, die die Fragen des Werks
Das Schweigen Pius XII (1939 – 1958) aus einer anderen Perspektive
betrachten lassen. Es wird versucht, also, die Tatsachen zu zeigen, die
das intensive Zusammenwirken des Heiligen Stuhls und der Staatsoberhäupter, um den Krieg zu vermeiden, darstellen. Die Recherche
1
Revisado pela jornalista e pedagoga, Nadja Lira, graduanda de Filosofia da FAHS.
Graduada em História pela Universidade Federal do RN; Mestrado e Doutorado em História Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Docente de História do
Cristianismo e titular da Cadeira na Faculdade Dom Heitor Sales – FAHS.
2
Especial 9
dieser Dokumente zeigt vor allem die Prioritäten des Heiligen Stuhls
während jenes Konfliktes.
Schlüsselwörter: Das Schweigen Pius XII, Zweiten Weltkrieg, Hitler,
Diplomatie, Stille, Juden, Konfliktes, Heiligen Stuhl.
I – Introdução
Em 1964, a Santa Sé respondeu à controvérsia em relação ao Silêncio
do Papa Pio XII com a publicação da coleção: ADSS (Actes e Documents
du Saint Siège relatifs à la seconde guerre mondiale – [Atas e Documentos da Santa Sé referentes à Segunda Guerra Mundial]). Ao autorizar esta
publicação, o Papa Paulo VI (1963 – 1968) estava mudando parcialmente
a política usual do Vaticano que era a de não liberar material de arquivo
tão recente.
Até então, o Arquivo do Vaticano só permitia abrir os acervos depois de passados 100 anos de um evento. Neste pontificado, essa política
começou a mudar, com a abertura dos arquivos de todo o governo de Pio
IX (1846-1878). Posteriormente e seguindo esse precedente, João Paulo II
abriu os referidos arquivos. Primeiro para o período de Leão XIII (18781903), depois para o de Pio X (1903-1915) e Bento XV (1915-1922).
Através da Secretaria de Estado, Paulo VI entregou a edição a estudiosos da Companhia de Jesus, conhecidos pelo método histórico, comprovado por suas publicações3. A tarefa de divulgar esses documentos fora
confiada a três jesuítas: Pe. Pierre Blet, Angelo Martini e Burkhart Schneider. Depois Robert Graham, outro jesuíta, foi agregado ao grupo. O próprio
Pe. Blet explicou, mais tarde, que a publicação dos ADSS era a resposta do
Vaticano às acusações feitas a Pio XII, no início da década de 19604.
As atividades da Santa Sé entre março de 1939 à primavera de 1945
são desenvolvidas em três direções: a primeira caracteriza-se pelos contatos com os Chefes de Estado, através de uma atividade diplomática especialmente a serviço da Paz e da Fraternidade. O volume correspondente ao
foco deste trabalho descreve o primeiro período da respectiva atividade; a
segunda é uma lição de caridade e de socorro; a terceira é marcada pelos
contatos do Papa com os bispos.
Toda a Obra – ADSS - visa tornar conhecida a documentação que a
Santa Sé possui, tanto em relação à sua atividade desenvolvida no mundo
3
BLET Pierre in L’Osservatore Romano, n.° 17, 29 de abril de 1998, pp.16-17;
Ibid. Pius XII and the Second World War, trad. Lawrence J. Johnson (New York: Paulist
Press, 1999).
4
10 Especial
confuso do conflito, como as diretivas desta mesma atividade, ou seja, os
objetivos perseguidos no decurso da Segunda Guerra Mundial, pela Diplomacia Vaticana e pelo próprio Papa Pio XII.
A documentação contida no primeiro volume da série compreende a
etapa em que o conflito vai se agravando e instalando o estado de guerra
entre a Alemanha, Polônia, França e Inglaterra, no período de setembro de
1939 a maio de 1940, o qual compreende a ofensiva alemã no Ocidente e a
entrada da Itália na guerra até a conclusão dos armistícios.
Devido à polêmica em torno das atividades de Papa Pio XII para evitar a guerra, suas consequências e pelo teor das acusações, percebeu-se que
existe um desconhecimento destas Fontes, surgindo a intenção de elaborarse este estudo visando possibilitar uma melhor compreensão das atividades da Santa Sé no período de março de 1939 a agosto de 1940. Para isto
foi utilizado como fonte principal, a introdução e alguns dos documentos
publicados, no primeiro volume5. Logo, este trabalho limita-se apenas ao
manual que abre a coleção que é composta por 12 volumes.
No plano geral e teórico têm-se como referência as Encíclicas: Mit
Brennender Sorge de 14 de março de 1937, contra o nazismo, do Papa Pio
XI e a Summi Pontificatus de 20 de outubro de 1939, a primeira encíclica
do Papa Pio XII. No plano prático, a correspondência é uma verdadeira
mina de informações, mostrando a intensidade dos trabalhos, das intervenções, as iniciativas diplomáticas empreendidas para evitar o conflito
e minimizar as agressões que já existiam antes da deflagração da guerra.
No plano mais específico, este estudo objetiva apresentar: 1- alguns
fatos que mostram o empenho da Igreja Católica e do Papa, comprovando
que este não se omitiu diante do dever de interceder para evitar a situação
provocada por Hitler; 2 - como a Igreja levou a efeito as suas intervenções
através das ações de Pio XII e seus colaboradores e como os apelos de paz
foram intensos, insistentes e realizados sob a égide da discrição; 3 - tornar
conhecidos alguns fatos extraídos dos vários documentos, o que pontuou a
atividade diplomática da Santa Sé nos meses de setembro de 1939 a agosto
de 1940.
Trata-se, portanto, de uma leitura que visa ajudar na compreensão
crítica do que alguns chamaram de o Silêncio de Pio XII (1939 – 1958).
Procura-se apresentar os fatos que, no seu conjunto, podem dar uma idéia
da intensa atividade da Santa Sé junto aos Chefes de Estado, no sentido de
evitar o conflito que culminou com a Segunda Guerra Mundial.
A Introdução é do Pe. Pierre Blet, SJ - filósofo, teólogo e historiador, pesquisador e professor da Pontifícia Universidade Gregoriana.
5
Especial 11
É uma tentativa de mostrar alguns aspectos capazes de esclarecer a
dinâmica e o envolvimento da Diplomacia Pontifícia e a atuação de Pio
XII para evitar o referido conflito. A pesquisa e o estudo destes documentos
mostram, principalmente, as prioridades da Santa Sé durante a crise.
Sinteticamente seguem alguns aspectos da problemática em torno da
atuação de Pio XII na Segunda Guerra Mundial, diversos elementos que
caracterizam o contexto histórico, as dificuldades, as crises, a ética, a política diplomática da época e as razões que impediram ao Papa de fazer
condenações públicas, além de algumas notas sobre as negociações diplomáticas e uma conclusão com algumas apreciações críticas.
Por fim, antes de qualquer posicionamento contra ou a favor de Rolf
Hochhut6, do historiador americano Robert Katz7 e também de John Cornwell, em seu livro o Papa de Hitler8, a bem da verdade histórica convém
percorrer a referida obra e tentar responder a algumas interrogações, como
Autor da peça, O Vigário. Nesta peça o Papa Pio XII é apresentado como tendo se recusado, em 1943, de fazer um pronunciamento em defesa dos judeus.
6
Em 1967 publicou, Morte em Roma, onde acusa Pio XII de não intervir para evitar o massacre das Foças Ardeatinas.
7
Adolf Hitler Presidente, Chanceler e Ditador da Alemanha nasceu em 20 de abril de 1889
em Braunau am/Inn, na Áustria, am-Inn e morreu em Berlim no dia 30 de abril de 1954.
Filho de Alois Hitler e Klara Poezl, alistou-se voluntariamente no exército bávaro no começo da Primeira Guerra Mundial. Tornou-se cabo e ganhou duas vezes a Cruz de Ferro
por bravura. Foi membro de um pequeno grupo nacionalista, o Partido dos Trabalhadores
Alemães, que mais tarde se tornou o Partido Nacional-Socialista Alemão (nazistas compostos só de- SS = Schutz – Staffeln, setor de defesa). Em 1921, tornou-se líder dos nazistas
e, dois anos mais tarde, organizou uma malograda insurreição, o “putsch” de Munique.
Durante os meses que passou na prisão com Rudolph Hess, Hitler ditou o Mein Kampf
(Minha Luta), um manifesto político no qual detalhou a necessidade alemã de se rearmar,
empenhar-se na auto-suficiência econômica, suprimir o sindicalismo e o comunismo, e exterminar a minoria judaica. Em 1929, ganhou um grande fluxo de adeptos, de forma que,
ajudado pela violência contra inimigos políticos seu partido floresceu. Após o fracasso de
sucessivos chanceleres, o presidente Hindenburg indicou Hitler como chefe do governo
(1933). Hitler criou uma ditadura uni-partidária. Com a morte de Hindenburg, ele assumiu
o título de presidente do Reich Alemão. Começou então o rearmamento, ferindo o Tratado
de Versalhes, reocupou a Renânia em 1936 e deu os primeiros passos para sua pretendida
expansão do Terceiro Reich: a anexação com a Áustria em 1938 e a tomada da antiga Tchecoslováquia. Firmou o pacto de não-agressão nazi-soviético com Stalin, a fim de invadir a
Polônia, mas o quebrou ao atacar a Rússia em 1941. A invasão à Polônia acionou a Segunda
Guerra Mundial. Em 1941, assumiu o controle direto das forças armadas. Como o curso da
guerra mostrou-se desfavorável à Alemanha, decidiu intensificar o assassinato em massa,
que culminou com o holocausto judeu que teve seu fim anunciado no dia 27 de janeiro de
1945. Ainda em 1945 quando o exército soviético entrou em Berlim, Hitler se casou com
Eva Braun. Há evidências de que os dois cometeram suicídio e tiveram seus corpos queimados em um abrigo subterrâneo em 1945. Cfr a obra de KERSHAW, Ian, Hitler, (trad do
original inglês, Hitler 2008), Companhia das Letras, São Paulo 2010, 1160 pp.
8
12 Especial
por exemplo: por que só em 1963, cinco anos depois da morte de Pio XII
e 18 anos após o fim da guerra é que o alemão Rolf Hochhut editou a sua
peça o Vigário? Por que o livro de Cornwell, O Papa de Hitler, foi anunciado como uma pesquisa séria quando a realidade dos fatos parecem não
confirmar a seriedade? Por que este livro lançado em 1999 reascendeu a
campanha anti-Pio XII?
II - O Papa PIO XII
Eugênio Pacelli nasceu em Roma, no dia 2 de março de 1876. Depois
dos estudos clássicos foi complementar a sua preparação acadêmica no
Colégio Capranica. Estudou Filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana e continuou sua formação sacerdotal no Seminário Romano. Destacando-se nos estudos, concluiu o curso de Teologia e utroque iure9.
Ordenado sacerdote no dia 2 de abril de 1899, logo começou a fazer
parte das atividades da Secretaria de Estado da Santa Sé, na Congregação
para assuntos extraordinários onde foi nomeado, por Pio X (1903-1914)10,
subsecretário em 1911 e em 1914 passou a exercer o cargo de Secretário.
Desenvolveu sua predileção pelo Direito Canônico, ensinando no
Ateneu do Seminário Romano e na Academia dos Nobres Eclesiásticos.
Ajudou ao Cardeal Pietro Gasparri11 (Secretário de Estado de Pio XI
[1922-1939])12 na preparação do Código de 1917 e publicou dentre outros
É uma expressão latina que em um e outro direito. Era utillizada nas primeiras universidades
européias para indicar os títulos conferidos aos que tinham concluido o curso de Direito
Civil e de Direito Canônico. O título é ainda conferido pela Universidade Lateranensene
e outras universidade européias. Esta espressão é frequente em diversos atos das cúrias
episcopais.
9
258º Papa, seu pontificado foi de 4 de Agosto de 1903 a 20 de Agosto de 1914, foi precedido por Leão XIII e sucedido por Bento XV. Pio X nasceu no dia 2 de Junho de 1835,
em Riese, Itália. Faleceu no dia 20 de Agosto de 1914, em Roma. Ao ser batizado recebeu
o nome de Giuseppe Melchiore Sarto. Foi Patriarca de Veneza, Itália, foi ordenado padre
em 18 de Setembro de 1858, Bispo em 16 de Novembro de 1884, Cardeal em 12 de junho
de 1893 e Papa em 4 de agosto de 1903. Foi beatificação em 1951 e canonizado no dia 3
de Setembro de 1954
10
Pietro Cardinal Gasparri, nasceu no dia 05 de 05 de 1852, foi o 1º Secretário de Estado
do Vaticano. Foi ordenado padre no dia 31de 03 de 1877. Assumiu o cargo de Secretário de
Estado do Vaticano em 13 de10 de1914 e faleceu em 18 de 11 de 1934.
11
260º Papa, seu pontificado: 6 de Fevereiro de 1922 – 10 de Fevereiro de 1939; foi precedido por Bento XV e sucedido por Pio XII. Pio XI nasceu no dia 31 de Maio de 1857, em
Desio, Itália recebendo como nome de batismo Acille Ratti e faleceu no dia 10 de Fevereiro
de 1939 no Vaticano. Foi Arcebispo de Milão, Itália. Como padre foi ordenado em 20 de
dezembro de 1879, bispo em 28 de outubro de 1919, feito Cardeal em 13 de junho de 1921
e Papa 6 de fevereiro de 1922.
12
Especial 13
o estudo histórico-jurídico: A personalidade e a territorialidade das leis,
especialmente no Direito Canônico.
Às ocupações na Cúria Pontifícia, unia estudos e o ministério sacerdotal, destacando-se como pregador. Em 1901 começou a trabalhou na Secretaria de Estado. Em 1914 participou da elaboração do Acordo com a
Sérvia13. Com a morte do Núncio da Baviera, em um dos momentos mais
difíceis da Primeira Guerra, o Papa Bento XV (1914-1922) o nomeou, em
1917, Núncio Apostólico junto ao Governo da Alemanha, que ainda não
tinha rompido as relações diplomáticas com a Santa Sé. Em 1920 assumiu
a Nunciatura em Berlim. Em 1929 tornou-se Cardeal e em 1930 foi nomeado Secretário de Estado tomando parte, portanto, em todos os eventos
notáveis da política eclesiástica da época.
Com a morte de Pio XI no dia 10 de fevereiro de 1939, o conclave que
durou apenas um dia elegeu o então Secretário de Estado, Cardeal Eugênio
Pacelli, que tomou o nome de Pio XII. Tratava-se de um homem de caráter
místico, detentor de vasta cultura, um espírito aberto e cordial.
A França, a Inglaterra, os Estados Unidos e outros países receberam
a notícia com apreço e simpatia, mas o Governo alemão recebeu a notícia
em relação ao novo Papa, com reservas.
É bom lembrar que no dia 14 de março de 1937, o Papa Pio XI publica
a Encíclica Mit Brennender Sorge contra o nazismo. Esta Encíclica foi redigida pelo Cardeal Faulhaber (1869-1952) e revisada pelo Cardeal Pacelli. Este documento foi infiltrado clandestinamente e lido nas igrejas alemãs
a 31 de março daquele ano. No dia seguinte intensificou-se a perseguição
aos católicos e judeus; era o protesto do Governo Nazista à resposta da
Secretaria de Estado. O então Secretário de Estado, Cardeal Eugênio Pacelli, experimentou de perto esta reação de Hitler diante da Encíclica, que
condenava o racismo nazista.
A estreia do Pontificado de Pio XII (1939–1958) ocorreu sob as sombras do eclodir da Segunda Guerra Mundial. Para a Secretaria de Estado
foi nomeado o Cardeal Luigi Maglione que já era Núncio em Berna e Paris.
Depois da morte do cardeal Luigi Maglione, em 1944, Pio XII não nomeou
A Sérvia é um país europeu, cuja capital é Belgrado, localizado no sudeste da Europa, na
região balcânica do Leste da Itália. Faz fronteira ao Oeste, com o recente país Montenegro,
da qual havia se separado em 2006, com a Bósnia – Herzegovina, com a Croácia; ao Sul
com a Albânia e com a Macedônia; ao Oeste com a Romênia e a Bulgária; e ao Norte com
a Hungria. É uma ex-república Iugoslava, tendo integrado, até Junho de 2006, uma união
com Montenegro conhecida como Sérvia e Montenegro. No dia 5 de junho 2006, a Sérvia
declarou sua independência, dois (2) dia após Montenegro, embora sendo o estado sucessor
da união.
13
14 Especial
outro Secretário de Estado e assim permaneceu até o próximo pontificado.
O próprio Papa governou a situação em estreita colaboração com os dois
diretores de duas sessões da Secretaria de Estado, o Cardeal Montini, mais
tarde Paulo VI e o Cardeal Tardini14.
A partir dos documentos consultados, percebe-se que Pio XII foi uma
das personalidades mais críticas em relação ao nazismo. Dos 44 discursos pronunciados pelo Cardeal Eugênio Pacelli na Alemanha entre 1917 e
1929, 40 deles denunciam os perigos iminentes da ideologia nazista. Em
março de 1935, em carta aberta ao pároco de Colônia, ele chama os nazistas de falsos profetas para o orgulho de Lúcifer. No mesmo ano, em um
discurso em Lourdes, denuncia as ideologias possuídas pela superstição
da raça e do sangue. Basta ler sua primeira encíclica como Papa, Summi
Pontificatus, e logo percebe-se sua impostação antirracista. É tanto que os
aviões aliados lançaram milhares de cópias do documento sobre a Alemanha, para fomentar o sentimento antirracista.
Há evidências de que Pio XII não confiava em Hitler, a quem considerava “um homem furioso e criminoso”. Mesmo assim, trabalhou para que
a Concordata com o regime nazista fosse assinada, embora mais tarde, o
aval dado ao Führer venha a ser usado para enganar os católicos. Essa Concordata com o governo alemão, assinada por Hitler, garantia os direitos da
Igreja na Alemanha, mas isto não foi respeitado. Não só o Cardeal Pacelli,
mas outras pessoas como Chamberlain (Neville Chamberlain, primeiroministro Britânico) e Daladier (Primeiro-Ministro Francês) acreditaram na
assinatura de Hitler neste Tratado de Munique em 1938. Mas foi exatamente este Tratado, o estopim que provocou a guerra em 1939.
É sintomático o fato de que, quando o Cardeal Innitzer, de Viena,
apoiou o Anschluss15 e gritou Heil Hitler, o Cardeal Pacelli o fez vir ao
Vaticano e o persuadiu a mudar este posicionamento. O Cardeal Innitzer
assinou um documento condenando Hitler e o Anschluss. O resultado quase lhe custou a vida. A prova é que seu palácio foi assaltado pelos nazistas
que pretendiam atingi-lo fisicamente. Inclusive o Bispo de Münster, Clemens von Galen, não se calou diante dos crimes e das ameaças de Hitler,
protestando alto contra os crimes nazistas.
Cardeal Domenico Tardini, Secretário de Estado no Pontificado de João XXIII e Presidente da Comissão Preparatória do Concílio Vaticano II.
14
Anschluss é o termo que designa a união da Áustria com a Alemanha, articulada durante
20 anos e finalmente obtida à força pelo chanceler Adolfo Hitler em Março de 1938.
15
Especial 15
2.1. O Projeto da Conferência de Maio de 1939
Havia um temor de que a guerra seria iminente. Neste clima de insegurança, o dia 12 de março de 1939 foi marcado pela coroação de Pio XII
diante de representantes de 35 nações.
O temor diante do novo Papa tinha fundamento. No dia 15 de março
as tropas alemãs entram em Praga. Alguns dias depois, a Lituânia recebe
um ultimato alemão para ceder a cidade de Memel16. A Polônia, por sua
vez, começa a se sentir ameaçada.
Em meio à eclosão da Guerra, Hitler tinha como meta a posse do que
reivindicara à Polônia: a anexação de Danzig17 à Alemanha. Trata-se de
um corredor de terra que dividia a Prússia Oriental e o território do Reich18
o qual havia sido concedido à Polônia em 1919 e que desembocava no
mar terminando então em Danzig. Esta reivindicação não foi aceita. As
ameaças foram tomando corpo e neste ínterim deu-se a denúncia do pacto
de não agressão entre a Alemanha e a URSS - pacto este que facilitara a
entrada da Alemanha para atacar primeiro a Polônia e depois a França.
Isto feria o pacto moral anglo-alemão e acionara a declaração de
garantia anglo-francesa em favor da Polônia. Por outro lado, o Pacto de
Aço19, entre Hitler e Mussolini20, Alemanha e Itália, selava uma aliança
Memel ou Memelburg é o único porto de mar da Lituânia, no mar Báltico, que faz ligação
com a Suécia, Dinamarca e Alemanha.
16
É uma grande cidade nas proximidades do Mar Báltico habitado por uma população de
prevalência alemã, que o Tratado de Versalhes a fez independente.
17
Terceiro Reich é Hitler. Segundo Reich o criado por Weimar em 1891 e o Primeiro criado
por Bismarck em 1871
18
É um acordo entre os dois paises, Alemanha e Itália, se um desses entrar em guerra o
outro aliar-se-ia, automaticamente.
19
Benito Mussolini, político italiano, é o criador do Fascismo e foi ditador da Itália, também
é conhecido por Duce, que significa chefe. Nasceu em Dovia di Predappio, na província de
Forli a 29 de julho de 1883, filho de um ferreiro socialista e de uma professora primária.
Torna-se professor primário em 1902. Envolve-se, na juventude, com movimentos esquerdistas e trabalhou como editor dos jornais de esquerda A Luta de Classes (Forlì, 1910) e
Avanti!, órgão oficial do Partido Socialista Italiano, do qual se torna secretário, em sua
cidade natal. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial adotou a posição de pacifismo do
Partido, mas depois defende ardorosamente a entrada da Itália na guerra ao lado da França
e da Inglaterra; foi, então, expulso do Partido. Funda em 1914 o jornal I Popolo d’Italia (O
Povo da Itália) e organiza os Fasci d’Azione Rivoluzionaria. A Itália entrou na guerra em
1915, Mussolini lutou nos campos de batalha e foi ferido em 1917. Em 1919, funda os Fasci
di Combattimenti em Milão e prega uma posição de cunho nacionalista e antiesquerdista.
Une-se à burguesia e aos latifundiários que temem o avanço do comunismo, recebendo
grande ajuda financeira. Em 1921 entra para o parlamento e funda o Partido Nacional Fascista. Em outubro de 1922 marcha sobre Roma e o rei Vítor Emanuel não vê alternativa
senão pedir para que ele componha um novo governo. No ano seguinte criou o Grande
20
16 Especial
militar entre si, ou seja, postulava uma intervenção de guerra, uma ao lado
da outra. Embora a Itália publicasse a sua neutralidade diante do conflito,
no dia 7 de abril bombardeia Tirana e a Albânia é ocupada. Estas e outras
situações comprovam a preocupação do Papa e o faz pensar muito, antes
de qualquer iniciativa.
A ocupação de Praga causa uma revolução na política inglesa. A opinião pública inglesa irrita-se com o crescimento do poder alemão e fica
chocada diante da violação de um acordo livremente consentido em setembro do ano anterior. Por isto, no dia 17 de maio Chamberlain constatara em
um discurso, que era impossível tratar com Hitler. Foi então nesta ocasião,
que ele fez a seguinte afirmação: “o Governo de Sua Majestade considera
como dever, apoiar a Polônia”. O mesmo apoio foi estendido à Grécia e à
Romênia.
Ao celebrar a missa de Páscoa, Pio XII colocou sua homilia a serviço
da Paz, já que como conhecedor da situação, via as convenções serem violadas. Ele, porém, sabia o quanto era difícil controlar ou impedir a corrida
bélica, visto que por toda parte reinava a desconfiança em relação a Hitler e
a Mussolini, sobretudo depois das bruscas ações contra a Tchecoslováquia.
Roosevelt interfere diretamente e faz chegar até Hitler e Mussolini
uma longa mensagem, a qual Hitler dá sua resposta em 28 de abril, num
discurso pronunciado diante do Reichstag21. O chanceler alemão lançou
um novo ataque, mais ameaçador ainda, contra a Polônia e ridicularizou a
mensagem que havia recebido dos Estados Unidos.
Conferindo as correspondências, percebe-se que a Santa Sé aparece
como via segura e pacífica diante das ameaças nazistas para a saída do
conflito. Muitos pensavam que o Santo Padre podia influenciar. Assim, são
muitas as correspondências vindas de todas as partes do mundo, sugerindo
ao Santo Padre para que ele interfira a fim de evitar o conflito bélico. Em
um dos pedidos, como exemplo, podemos citar a sugestão para a criação de
uma nova Liga das Nações. Outra correspondência sugere uma ConferênConselho Fascista e o parlamento “depurado” dá-lhe pleno poder. Em 1925 seu governo é
uma ditadura aberta, a oposição é exterminada, as eleições para cargos públicos são feitas
pelas corporações, que também ocupam o lugar dos sindicatos. Realiza o pacto Roma-Berlim com Hitler, aliança que lhe valeu uma fatia da Iugoslávia. Suas derrotas consecutivas
na Grécia em 1940 e na África em 1941 proporcionaram um golpe que o derrubou em 25
de julho de 1943, consentido pelo seu Grande Conselho Fascista; é preso e só libertado pela
ajuda dos alemães, readquirindo o poder no norte da Itália. Porém vem o colapso do nazifascismo, o Duce tenta fugir para a Suíça com sua amante Clara Petacci, mas são presos
pela resistência italiana, os partigiani. Os dois são executados em Dongo, próximo ao lago
de Como, a 28 de abril de 1945.
21
Prédio onde funciona o Parlamento Federal da Alemanha, hoje é conhecido como Bundstag.
Especial 17
cia de Paz no Vaticano e não nos Estados Unidos, enquanto outras sugerem
ajudas espirituais. Todas, porém, tem um ponto em comum: acreditam que
o Papa deveria convocar uma Conferência Mundial para estudar uma solução pacífica para o problema.
Pelas datas das correspondências, algumas datadas de 20 de abril,
verifica-se que logo após, ou seja, no dia 21 de abril, o Pe. Tacchi Venturi
SJ, que fora muitas vezes intermediário durante as negociações no Tratado
de Latrão, foi recebido pelo Papa. Deste encontro resultou a solicitação da
entrevista datada de 23 de abril de 1939 com Mussolini, a qual foi agendada para o dia 1° de maio de 1939. Foram concedidos apenas 15 minutos, os
quais foram suficientes para o Pe. Tacchi expor as intenções do Papa diante
da Paz ameaçada: convidar para a negociação, as cinco potências europeias: França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Polônia. Mussolini não quis
responder imediatamente, desculpando-se por causa da hora avançada, por
isto, não tinha como formular uma resposta diante da situação.
Isto porque, a Alemanha não poderia confiar no sucesso dos seus
intentos como acontecera com a Tchecoslováquia, pois a Polônia iria se
defender, mas diante da superioridade das forças alemães, poderia ser destruída e isto traria o início de uma guerra européia.
No dia seguinte, o Pe. Tacchi retorna ao palácio de Mussolini para
receber a resposta definitiva. O Chefe do Governo Italiano concordou com
o Papa. Apenas achava que deveria esperar pela súplica que faria a Hitler e
ao Coronel Beck da Polônia. Segundo Mussolini, a estratégia do Santo Padre deveria ter a aprovação do mundo, principalmente por causa do grande
número de católicos. Ele achava que Hitler não iria discordar. Apenas que
se poderia precisar antecipadamente o início da Conferência e o regulamento em relação aos pontos de conflito tanto da Alemanha com a Polônia
como da França com a Itália.
O Santo Padre visivelmente preocupado diante do crescente perigo de
conflagração bélica, já com uma impostação mundial, propõe-se a enviar
uma paterna mensagem às cinco potências: França, Alemanha, Inglaterra,
Itália e Polônia convidando-as a resolver numa conferência, as questões
que ameaçavam ampliar o conflito22. No dia 3 de maio partem quatro telegramas do Cardeal Maglione para os representantes da Santa Sé, na Alemanha, França, Polônia e Inglaterra. Os Núncios foram encarregados de
fazer o convite aos governos junto aos quais estão creditados.
Cfr. Correspondências in La Santa Sede e la Guerra in Europa, março de 1939 a agosto
de 1940 pp 120 ss. Trata-se da correspondência aos Núncios em Paris, Berlim, Varsóvia e
aos delegados apostólicos em Londres e suas respectivas respostas.
22
18 Especial
As tentativas de mediação encontraram intransigências por parte da
Alemanha e da Polônia. As outras Chancelarias manifestaram deferência
à Santa Sé, mas no que diz respeito à convocação para uma reunião, a
resposta, naquele momento, não pareceu suficientemente necessária e a
conferência não aconteceu.
Diante do descumprimento das negociações e dos conflitos de interesses, poderia-se até dizer que a diplomacia Pontifícia foi um fracasso.
Apesar dos pesares, o Vaticano, via que, de certa forma, fora bem acolhido
e que teria aberto os caminhos para posteriores acordos, uma vez que os
Governos reconheciam a autoridade da Santa Sé e que esta poderia ser,
num momento mais crítico, a última fonte para salvar a Paz. O fato de a
Conferência não ocorrer, apresenta característica de uma polida rejeição,
mas ainda assim restava o que se chamou de Bons Ofícios de Advertência.
2.2. Bons Ofícios de Advertência
Os documentos dos meses de junho e julho são provas das intensas e
persistentes atitudes da Santa Sé e da atuação do Papa para evitar um conflito. O relatório proveniente das conversas de 17 de maio, entre o Núncio
de Berlim e Ribbentrop23 é uma das provas que justificam o aumento das
preocupações e os cuidados que se precisa ter. O Santo Padre e seus colaboradores de posse deste relatório, não tinham como se iludir uma vez que
se configurava uma situação mais complicada.
A questão mais ardente era Danzig, o Corredor que colocava a Alemanha e a Polônia em conflito. A propaganda veiculada na imprensa nazista
desencadeava uma onda de violência contra a Polônia. O Núncio perguntou a Ribbentrop se ele não temia a guerra contra as potências Ocidentais
ao que ele respondeu: “não”- assegurando que “as defesas ocidentais da
Alemanha jamais seriam vencidas pela França e que os submarinos alemães desafiavam a frota britânica e quanto à Polônia, se ela entrar na guerra, será totalmente massacrada”.
Diante desta confidência, o Núncio colocara a questão da Rússia. Ora,
a questão da Rússia era mais o da propaganda comunista, ela renunciando
a esta propaganda nada mais impediria uma reaproximação. E agora, poderia se questionar qual seria a segurança do Núncio Orsenigo, uma vez
era que o único elemento positivo era se Hitler realizasse suas conquistas
sem “golpes”.
O ministro das relações exteriores nazista, von Ribentropp, sempre fora contrário a uma
invasão da URSS, preferindo atacar a Inglaterra.
23
Especial 19
No dia 22 de maio de 1939, Ciano24 e Ribbentrop assinavam na presença de Hitler o Pacto de Aço para reforçar o Eixo Roma–Berlim estabelecido desde 1936 e que já se estendera à Tóquio através do Pacto
Anticominter em 1937, que colocava de lado a idéia de atacar a Rússia.
Com estas negociações conclui-se o Pacto de 23 de agosto onde: Primeiro,
publicamente estabelecera um acordo de não agressão; segundo, secretamente determinara as esferas de influência de cada País: para a Alemanha
competia à Polônia e Lituânia; para a Rússia a Bessarabia, Finlândia, Estônia e Letônia. Apesar disto, sabia-se que Mussolini havia dito antes desta
assinatura que, “a Itália não estaria pronta para a guerra antes de 1943”.
O Papa começou a interferir diretamente junto a Mussolini, porque
sabia que a Itália poderia exercer uma grande influência sobre Hitler. Pio
XII pensava numa ação mediadora, persuadindo Mussolini a convencer
Hitler de levar adiante os seus objetivos, por meios pacíficos.
Resta, porém, o contato para evitar um conflito entre a Alemanha e a
Polônia, a aproximação entre a França e a Itália, notificada pela intervenção entre o Núncio de Berlim e Ribbentrop.
Sabendo da ameaça à Polônia, a Inglaterra reafirma a ela o seu apoio
incondicional no dia 24 de agosto. O Papa de posse destes relatórios tinha
o seguinte quadro: as garantias franco-inglesas asseguradas à Polônia e à
Romênia e do outro lado o eixo Roma–Berlim: dois blocos hostis. Então,
era necessário intermediar em favor da paz.
Ele, então, tentou reaproximar a França da Itália para refazer o entendimento que havia se rompido depois da guerra da Itália com a Etiópia.
Com este entendimento a Santa Sé não só evitaria que o conflito degenerasse em guerra, mas, sobretudo, poderia persuadir Mussolini a trabalhar
pela Paz geral convencendo Hitler a atingir suas metas por meios pacíficos.
Estas intenções da Santa Sé foram publicadas pela imprensa e assim o Vaticano continuou a trabalhar nesta direção. Os contatos foram feitos e, por
fim, o Papa, através do seu enviado, chega até Mussolini, que com frieza
ouviu a exposição do Pe. Tacchi Venturi: Vossa Excelência acredita na inevitabilidade da guerra? Certamente, respondeu o Duce pensando no trio:
Rússia, França e Inglaterra. Isto não acrescenta absolutamente nada, isto
que este trio faz é perfeitamente indiferente25.
Em outro documento há comprovações de que na realidade Mussolini
só faria guerra se perdesse a cabeça e quem estava pronta para a guerra era
24
Ministro dos Negócios Exteriores da Itália e genro de Mussolini.
25
ADSS, Doc. n° 58.
20 Especial
a França26. Diante disto, o Papa poderia ficar tranqüilo em relação à Itália,
mas não sobre a sorte da Europa, por causa das pretensões da Alemanha.
Por outro lado, as Potências ocidentais estavam dispostas a não ceder às
ameaças de Hitler e para isto contavam também com a Rússia.
Alguns Diplomatas achavam que a situação estava comprometendo
o prestígio das democracias e que a Santa Sé deveria permanecer na zona
dos princípios, pois a situação na Alemanha era crítica e grande parte da
população estava mal nutrida fisicamente; debilitada; logo não estava preparada para uma guerra.
No dia 13 de junho, Ciano afirmava que a Alemanha não mais tencionava atacar a Polônia. Para Ciano, o perigo agora, era a própria Polônia que
com receio de ser atacada, podia de um momento para outro se precipitar.
Antes que isto aconteça, uma vez que a Polônia escuta o Papa é, pois a ela,
que a Santa Sé deveria persuadir.
No dia 10 de Junho, o cardeal Maglione sugeriu à Inglaterra pedir
moderação à Varsóvia cabendo à Santa Sé intervir. No dia 16 de junho,
o cardeal Maglione envia um telegrama para o Núncio de Varsóvia, utilizando as seguranças dadas por Ciano sobre as intenções da Alemanha27. O
Núncio de Varsóvia contata o Ministro Beck, também de Varsóvia e este
responde que não podia ter confiança num governo que falta sempre com a
palavra, embora estivesse disposto a manter a devida prudência apesar de
todas as provocações. Então, narra para o Núncio os incidentes que ainda
estavam acontecendo em Danzig, como a tomada agressiva da alfândega
polonesa por parte dos grupos nacionais socialistas, por exemplo.
O relatório do Núncio de Varsóvia está datado de 22 de junho e no dia
seguinte o Núncio de Berlim envia a Roma algumas novidades não muito tranqüilizadoras. Na Alemanha falava-se dos excessivos maltratos dos
poloneses para com os alemães. E diante disto, o Ministro da Propaganda
anunciou que dentro de três meses Danzig seria alemã.
A Santa Sé encarregou o Primaz da Polônia para exercer alguma ação
pacificadora junto ao povo e ao clero28. O mesmo fez em relação à Alemanha. Portanto, a Santa Sé, segundo o Cardeal Maglione estava segura
de que a Alemanha conservaria a calma e a prudência neste momento tão
delicado29, embora o Cardeal Maglione permanecesse inseguro em relação
a eficácia desta exortação à calma por parte do Terceiro Reich.
26
ADSS, Doc. n° 67.
27
ADSS, Doc. n° 64
28
ADSS Doc. n° 78
29
ADSS, Doc. n° 80.
Especial 21
Mais uma vez o Vaticano vai ao encontro de Mussolini para invocar a
sua influência sobre Hitler. Falou da intervenção junto à Varsóvia e foi neste momento que a Santa Sé percebera a influência que Mussolini exercia
sobre Hitler. Pois Ciano falou que Hitler tinha dito, na sua última viagem à
Berlim, que a Alemanha tinha necessidade de um tempo de Paz. Em todo
caso, continuou Ciano, a Alemanha não se moverá sem o nosso consentimento, e nem Mussolini e nem eu queremos a guerra30.
Estas afirmações, plenas de segurança, por parte de Ciano, não estavam levando em consideração o que acontecera com a Tchecoslováquia,
logo, o Vaticano recebia esta notícia com uma relativa tranquilidade, pois
em Paris e na Inglaterra, o assunto corria um pouco diferente: achavam que
um equívoco seria fatal. Justamente no dia 30 de junho, o embaixador Britânico, na França, comunicara ao seu governo as novidades que chegavam
a Paris: Hitler preparava-se para organizar em Danzig um movimento popular para proclamar o reatamento deste lugar ao Reich. O Führer contava
que, nem a França e nem a Inglaterra se moveriam. Falava-se de um golpe
em Danzig e este pensamento do governo Alemão era uma ilusão, pois este
golpe significaria uma guerra geral.
Os contatos aumentam; são vários telegramas que comprovam a ação
da Diplomacia vaticana e à ação da Santa Sé incorpora-se a do Governo dos Estados Unidos31. As ações de Pio XII são conhecidas através dos
meios disponíveis da época, como o Jornal e a Rádio do Vaticano. Aos
esforços de sua Diplomacia secreta, ele acrescentava a autoridade de sua
palavra pública advertindo governos e povos para que meçam os horrores
das ruínas que vão se acumulando.
A documentação neste particular é vasta e pode-se entrever que Pio
XII arquitetara estratégias e diversos meios para impedir a Guerra e os
massacres.
A questão seguinte é mais um dado que reforça e esclarece a complexidade do momento, que depois do último posicionamento de Stalin, evidentemente as possibilidades de invasão à Polônia, agora, são inevitáveis.
2.3. A Crise de Danzig e o Apelo de 24 de Outubro
Em outubro a situação continuava se agravando. O Senado de Danzig suportava com dificuldades o controle dos guardas oficiais poloneses e
estabeleciam medidas para dificultar, ainda mais. O Governo polonês deu
30
ADSS, Doc n° 81.
31
ADSS Doc n° 89.
22 Especial
um prazo até o dia cinco de outubro, às 18:00h, para que fossem anuladas
as medidas32.
O governo alemão tomou conhecimento, com grande surpresa, sobre
a intervenção de Varsóvia junto ao Senado de Danzig. Do mesmo modo
comportava-se o Governo de Varsóvia em relação à Alemanha. Diante desta tensão, o Senado colocara a cidade em estado de defesa.
Coronel Beck havia informado que durante 15 dias, a Alemanha estava instalando as tropas nas Fronteiras polonesas. O cardeal Maglione, ao
tomar conhecimento disso telegrafa para o Monsenhor Cortesi pedindo-lhe
para solicitar ao Governo de Varsóvia que acredite na ação da Secretaria
de Estado. Aos 19 de outubro, o Secretário de Estado recebe o embaixador
da Polônia que colocara a situação vigente entre Berlim e Varsóvia, desde
o princípio do mês.
Estava claro que a questão de Danzig era apenas um pretexto para
justificar o ataque à Polônia, a fim de chegar à Ucrânia na área petrolífera.
A Polônia acreditava na defesa que receberia das Potências Ocidentais ao
lado do Rússia.
A Inglaterra tinha decidido defender a Polônia e salvar o status quo
da Europa e esperava do Vaticano a última chama de Paz. Isto se deduz da
concepção do Lord Halifax. Ele concebia a atuação de Pio XII por dois
meios: Fazendo uma demarcação junto às Grandes Potências, reservado
para o momento mais crítico; Persuadindo a encontrar uma solução pacífica sem ainda chegar a um apelo formal aos povos e aos governantes, como
intermediário.
Aos 11, 12 e 13 de outubro, Ciano encontra-se com Hitler e Ribbentrop, em Salzburg. Neste encontro Ciano viu que para Hitler e Ribbentrop
o ataque à Polônia já estava decidido.
Aos 19 de outubro Osborne, ministro britânico, confessa ser impossível evitar a guerra, para o qual esta crise não era apenas Danzig e o Corredor, mas tratava-se da sorte da Polônia. Nesta ocasião, em 25 de outubro,
comemorava-se o aniversário de morte de Pio X. O Papa então, no dia 24
de outubro dirige-se ao público destacando três metas principais: 1 – o
pronto restabelecimento de uma Paz justa e honrada para todos; 2 – os
limites do conflito; 3 – a ajuda às vítimas da guerra. “Nós Pontífices, pelo
encargo que ocupamos, governantes e povos, somos todos chamados a salvar a paz, a fim de que a humanidade não seja material e espiritualmente
destruída”.
Mesmo diante do discurso do Papa, as notícias que chegavam eram
32
ADSS Vol VI, Doc. n° 774 , pp. 901-902
Especial 23
de que Hitler estava repetindo o mesmo procedimento empregado com os
Sudetos33 e com a Tchecoslováquia. Logo, preparava secretamente uma
agressão contra a Polônia. Aos 21 de outubro, a agência de imprensa Deutsch Nachrichten Büro comunicava: O Governo alemão e o soviético colocaram-se de acordo concluindo conjuntamente um pacto de não agressão34. Diante disto era claro que mais uma nação católica iria ficar sob o
domínio alemão. O chefe britânico dirige um apelo a Hitler em favor da
Paz. A movimentação pelas embaixadas aumenta. E diante do pacto da
Alemanha com a Rússia, a Itália não tinha mais nada a fazer.
Daqui em diante chegam as solicitações para que o Santo Padre faça
uma condenação pública da guerra. O Santo Padre pronunciou o seu apelo
dizendo que o momento era muito grave, mas ainda havia tempo para que
todos os homens, principalmente os representantes das nações, fizessem
algo em favor da Paz.
Mesmo sem esperar que as palavras do Santo Padre produzissem algum eco, no dia 26 de outubro o ataque não aconteceu como fora previsto.
Hitler hesitou e suspendeu a ordem de marcha. Porém, tentou afastar a
Inglaterra e a França da Polônia. Por outro lado, Mussolini escrevera ao
Führer que a Itália não estava preparada para um conflito.
É importante ressaltar aqui, a mudança de estratégia de Hitler quando
procurou oferecer sua amizade à Inglaterra, à França e a explicação de
Mussolini, na qual reafirmava sua impossibilidade militar para um conflito.
Com a assinatura do pacto de não agressão com a Alemanha em 23 de
agosto de 1939, Stalin e Hitler efetivam um jogo militar ousado com seus
adversários. Hitler precisava da neutralidade da Rússia para poder atacar
a Polônia. Sabendo que a vantagem alemã no armamento não se manteria
por muito tempo e que somente uma rápida seqüência de campanhas militares poderia evitar um fracasso semelhante ao da Primeira Guerra Mundial, criou o conceito do blitzkrieg. E conseguira anexar ao Terceiro reich:
Danzig, a Prússia Ocidental e algumas regiões que sempre pertenceram à
Polônia. Os judeus poloneses foram amontoados em guetos, como o de
Varsóvia, por exemplo.
Muitos perguntam sobre os motivos pelos quais Pio XII não denunO termo Sudetos desde o início do século XX foi usado para descrever os 3,5 milhões de
alemães nas três províncias que costumavam ser chamadas de Coroa da Boêmia e estavam
etnicamente relacionados aos bávaros, franconianos, saxões e silesianos, herdeiros de elementos das principais tribos germânicas. Sudeto é o nome de uma cadeia montanhosa de
320 km de extensão e de 30 a 60 km de largura, cobrindo o Norte da Boêmia e Morávia e
parte da Silésia Sudetiana.
33
34
D.P.F.P Third, series VII, n° 153, p. 132
24 Especial
ciou publicamente as atrocidades do Nazismo, ao que o Pe. Blet responde:
Pio XII se questionou seriamente em várias ocasiões sobre a possibilidade
de condenar ou denunciar publicamente o Nazismo. Ele sabia do perigo a
que exporia mais pessoas. Já dispunha da experiência depois da publicação da Encíclica Mit Brennender Sorge, já que imediatamente após a sua
publicação, desencadeou uma séria muito maior de atrocidades e agravou
mais ainda a situação. Por isto, o Papa tinha consciência de que uma declaração desta natureza deveria ser considerada, pensada com muita seriedade
e profundidade visando, sobretudo, os que sofreriam mais ainda.
A Cruz Vermelha também chegou às mesmas conclusões. Os protestos não iriam servir mais e poderiam causar danos ainda mais as pessoas
menos favorecidas. Uma declaração pública de Pio XII iria servir apenas
para reforçar a idéia de que ele era inimigo da Alemanha. O Papa como
Pastor, não podia deixar de levar em consideração a parte do seu rebanho
que estava na Alemanha, onde havia 40 milhões de católicos. Ao mesmo
tempo, continua o Pe. Blet, o Papa não alimentava ilusões a respeito das
intenções do Terceiro Reich. A perseguição contra a Igreja já havia começado antes da guerra e durou por todo o tempo do Terceiro Reich.
2.4. Os últimos esforços da Diplomacia
É importante para o historiador investigar as causas próximas que
impulsionam a significativa atividade da Santa Sé nos dias que vão de 25
de agosto a 1º de setembro de 1939. Muitos passos foram dados naqueles
fatais sete dias, pelos Núncios Apostólicos, em Berlim e Varsóvia.
Tudo levava a crer que ainda restavam chances. Por isso a Rádio Vaticana permanece em constantes contatos telegráficos. O Núncio de Berlim,
Orsenigo, falou que o Chanceler do Reich disse ao Embaixador inglês,
Handerson, que estava decidido a tomar medidas militares não por questões territoriais de Danzig e do Corredor – pela reivindicação da Alemanha
– mas, pelos desumanos maltratos que os poloneses dispensavam à minoria
alemã. O Núncio acrescentou que acontecia o mesmo em relação aos poloneses que estavam sendo maltratados pelos alemães.
Ao lado do interesse em resolver o problema das minorias, outros
passos da Santa Sé foram dados visando o favorecimento de negociações
alternativas diretas entre a Alemanha e a Polônia. Vinham solicitações de
diversas partes, para dar uma solução efetiva de compromisso em relação
ao problema de Danzig e do Corredor. Por exemplo, não faltaram sugestões para o Núncio de Berlim, para que ele fizesse, oportunamente, uso de
uma proposta que veio de um nobre de Londres, Sir Ernet Graham Little,
Especial 25
no dia 29 de agosto, para fazer do Corredor e do território adjacente um
Estado independente, como os Principados de Mônaco e Liechtenstein,
garantidos ou administrados pelas potências interessadas, de modo a assegurar plenos direitos a todas as nacionalidades e completa liberdade para o
tráfego comercial. A Santa Sé, ao transmitir esta e outras sugestões procura
ser clara, pois não tem a intenção de entrar no mérito dos interesses tidos
como vitais para a Polônia. O que pretende mesmo é manifestar o seu afeto
pela Polônia e servir de mediadora evitando um conflito sanguinolento.
No dia 28 de agosto, o Pe. Pietro Tacchi Venturi foi encarregado de
entrar em contato com Mussolini para convidá-lo, em nome do Santo Padre, a intensificar os seus esforços diante da iminência de um perigo ainda
maior. Mussolini reafirmou que era necessário trabalhar pela Paz. Qualificou como crime o desabrochar de um conflito mundial por causa de Danzig
e deu a entender que ao declararem guerra por tal região a Itália não entraria, a fim de proteger os seus.
O Vaticano, portanto, tentou persuadir os governos de Berlim e Varsóvia para resolver os dois principais objetos da negociação: Danzig e as
minorias étnicas. Hitler, porém, dizia que o problema era a minoria alemã
que estava sendo maltratada.
Para Pignati, diante da declaração do Santo Padre através de Mons.
Tardini, dizia que a solução era a rendição da Polônia. Para o Ministro da Inglaterra, Osborne, a Santa Sé fez de tudo para evitar o conflito e estabelecer a
Paz35, como se pode concluir da correspondência com os chefes das nações,
com os componentes do corpo diplomático dos diversos países e do envolvimento das Nunciaturas, como, por exemplo, o que revela o texto seguinte:
Podemos assegurar que Sua Santidade, até as últimas horas
que precederam o início das hostilidades, dedicou-se sem
cessar para as esconjurar, não somente pela ação já conhecida publicamente, mas também pelos passos confidenciais
e de ordem prática. Ele esgotou todas as possibilidades que
ainda restavam, fez o que estava ao seu alcance na esperança de manter a paz ou pelo menos excluir o iminente perigo
de guerra36.
Como já estava se aproximando o final do ano e o Natal do Senhor é
uma ocasião muito propícia para os melhores augúrios, a próxima inves35
Doc. n° 197
36
Cfr. Doc. n° 212
26 Especial
tida seria por ocasião da mensagem natalina do Santo Padre. Aqui nasce
mais uma esperança, o projeto de trégua.
2.5. Projeto de trégua e a mensagem de Natal
A primeira declaração pública como Papa, em 3 de março de 1939, já
continha precisas alusões a um programa universal pela Paz. Estes pontos
foram desenvolvidos pelo próprio Pio XII no discurso da Páscoa de 1939 e
amplamente explicitado na primeira Encíclica Sumi Pantificatus de 20 de
outubro de 1939, onde são tratadas as cinco conclusões fundamentais para
uma paz duradoura entre os povos.
A tarefa da Santa Sé para estabelecer a Paz, pode-se dizer que fora
contínua. Apesar das urgentes solicitações para uma condenação explicita
pública, só quando começou a chegar algum sinal das partes beligerantes
é que Pio XII iniciou outros intentos em busca da conclusão do conflito
sugerindo, desta feita, a Trégua por ocasião do Natal. O Papa, nesta mensagem, reuniu em cinco artigos os pressupostos da Paz: 1 – Assegurar o
direito à vida e à independência de todas as nações pequenas e grandes;
2 – Liberar as nações da corrida armamentista; 3 – Reconstruir e criar
instituições jurídicas a fim de rever, executar e garantir as convenções estabelecidas; 4 – O reconhecimento dos direitos das minorias étnicas; 5 –
Reconhecer acima de qualquer lei e convenções humanas as normas santas
e irremovíveis do direito divino.
Esta trégua, porém, ficou apenas na teoria de sua radiomensagem natalina. Mesmo assim restava ainda a possibilidade que surgiu diante da
oferta do Presidente dos Estados Unidos que tinha decidido restabelecer
as relações oficiais entre a Santa Sé e a Casa Branca, tendo na pessoa de
Myron Taylor o seu representante pessoal. Por isto, no fim de sua mensagem, com alegria Pio XII anunciou a notícia do envio de um representante
pessoal do Presidente Roosevelt junto ao Papa, com o objetivo de colaborar no restabelecimento da Paz e para o alívio das vítimas da guerra.
Deste modo, o Papa queria dar diretivas ao pensamento político aos
que tinham fé e ao mesmo tempo influir nas decisões políticas concretas,
tanto quanto possível. O Papa pretendia intermediar e oferecer os princípios eficazes para o pronto restabelecimento da Paz. E neste particular
confiava na eficácia da parceria com o Presidente Roosevelt.
Especial 27
2.6. Pio XII e Roosevelt
À autoridade religiosa do Papa acrescente-se agora, o prestígio do
Chefe da Casa Branca, dos Estados Unidos, visto que antes, a Santa Sé
não mantinha relações diplomáticas oficiais com os Estados Unidos.
A partir da visita do Arcebispo de Nova York, Mons. Spellman a Roosevelt, foi esclarecido o interesse da autoridade americana em estabelecer
relações diplomáticas com a Santa Sé. Nestas circunstâncias é promissora
a aliança entre duas grandes forças para o bem.
A aliança foi concretizada através da visita de Myron Taylor, que foi
acolhida pelo Santo Padre, como sendo mensageira de Paz. Esta missão
logo começou a atuar através dos vários contatos com as partes em conflito, mediante viagens informativas do Secretário de Estado Summer Welles.
Depois da visita do representante de Roosevelt a Mussolini e Ciano,
ele vai ao encontro do Santo Padre. Sabe-se que o Papa não tinha possibilidade de fazer qualquer intervenção diretamente ao Chanceler do Reich,
apesar de a Alemanha ter um representante no Vaticano, embora já bastante
idoso. Com a visita da representação americana ao vaticano, um passo foi
dado nesta direção também através do governo italiano, apesar de a estreita
colaboração não permitir que se alimentasse muita esperança. Todavia, depois de renovados insucessos de um terceiro apelo de Roosevelt, ninguém
via uma possibilidade de acolhimento de alguma proposta para evitar a
expansão do conflito armado. Mesmo assim, ainda restavam esperanças
a Santa Sé, por vias indiretas, através de Mussolini, mas a guerra praticamente já estava estabelecida.
A confiança entre o Papa e Roosevelt era mútua no sentido de influenciar Mussolini a convencer Hitler na resolução dos conflitos sem a guerra.
Também os italianos eram contrários a isto, mas os aliados não tinham
confiança em Hitler e os alemães não estavam contentes com o III Reich
por causa da excessiva vigilância da Polícia Secreta.
Por outro lado, era preciso levar em consideração as controvérsias
que circulavam nos Estados Unidos, diante da proposta de se estabelecer
relações diplomáticas com a Santa Sé, o que era considerado por muitos
como inconstitucional, por causa da separação entre Igreja e Estado, o que
há muito fora estabelecido legalmente nos Estados Unidos.
Os Estados Unidos eram, agora, a única grande nação de tradição democrática, ainda não envolvida diretamente no conflito. Também por isto,
vários países neutros e alguns dos envolvidos na guerra viam a mediação
americana com alguma esperança de Paz.
Por causa das atividades que a Santa Sé vinha desenvolvendo em fa28 Especial
vor da Paz como também em benefício das vítimas da guerra, Pio XII não
hesitou em expressar a sua gratidão à iniciativa do Presidente Roosevelt
ao nomear um representante pessoal junta à Santa Sé, com a categoria de
embaixador extraordinário, mas sem título formal.
Pio XII, na alocução de 24 de Dezembro de 1939 dirigida ao Colégio
Cardinalício e à Prelatura romana, afirmou:
É um anúncio natalício, (aquele de Roosevelt) que não nos
poderia ser mais agradável, uma vez que isto representa,
por parte deste eminente Chefe, uma tão grande e potente
nação, uma válida e promissora contribuição para as nossas
solicitudes, tanto para a consecução de uma Paz justa como
para uma mais eficaz e larga obra de entendimento para
minorar os sofrimentos das vítimas da guerra. Por isto
temos de expressar também aqui, por este nobre e generoso
ato do Sr. Presidente Roosevelt as nossas felicitações e o
nosso grato ânimo37.
Um dos motivos que o tornou aceito pelo povo americano foi a
recordação da proveitosa visita aos Estados Unidos feita pelo Secretário de estado, o então Cardeal Pacelli. E assim começaram a trabalhar
em conjunto no restabelecimento da Paz. Empreenderam tentativas de
entendimento entre as partes conflitantes, para manter a neutralidade
italiana. A Itália não deveria entrar na guerra ao lado da Alemanha
como estabelecia o Tratado de Aço.
2.7. Pio XII e a neutralidade Italiana
As iniciativas da Santa Sé por meio do Pe. Tachi Venturi nos meses
de maio, junho, agosto e setembro de 1939, consistiam em evitar males
maiores, salvar a Paz e restabelecê-la onde já estava ameaçada. Aqui se
destaca a ação do Papa e da Santa Sé para evitar que a Itália entre na guerra, mantendo-se sempre em posição antibelicosa.
Constata-se certo insucesso nos esforços do Papa também por causa
da aparente neutralidade da Itália. Isto foi provocado porque a política de
Hitler não facilitava a discussão do Tratado de Versalhes38 e também de37
Doc. n° 234
O tratado de Versalhes estabelecia que a Alemanha era obrigada a: - restituir a Alsácia e
a Lorena à França; - ceder as minas de carvão do Sarre à França por um prazo de 15 anos; ceder suas colônias, submarinos e navios mercantes à Inglaterra, França e Bélgica; - pagar
aos vencedores, a título de indenização, a fabulosa quantia de 33 bilhões de dólares; - redu38
Especial 29
vido ao posicionamento da Polônia em agosto de 1939, o qual facilitou o
jogo do ditador Alemão.
De qualquer modo, no dia primeiro de setembro de 1939, a Itália
declarou que não entraria na guerra. A Santa Sé esforçou-se muito para
ancorar-se a Mussolini nesta decisão e para isto contou com o apoio de
Roosevelt, que no Natal iniciou oficialmente as relações diplomáticas com
o Vaticano.
No dia primeiro de setembro, Hitler enviara a Mussolini a seguinte
mensagem:
Duce, agradeço-lhe, cordialmente, pela ajuda diplomática
e a política que recentemente você concedeu à Alemanha e
ao bom direito. Sou persuadido a contar com o acréscimo de
forças militares para a Alemanha para o dever que assumimos. Como conseqüência, acho não preciso, nesta circunstância, da ajuda militar italiana. (o pacto de aço o prendia
através do 5° artigo como automático) Agradeço-lhe, Duce,
por tudo aquilo que você vai fazer no futuro pela causa comum do fascismo e do nacional-socialismo.
Por outro lado, Mussolini afirmara que a Itália não tomaria parte
nas iniciativas de alguma operação militar. Havia uma clara insegurança e incógnitas nas palavras de Mussolini e como poderia se traduzir a
palavra “não beligerante”, a contínua e clássica “neutralidade” não era
tão clara.
Diante disto, Pio XII encarregou outra vez, no dia 6 de setembro, o
Pe. Tacchi Venturi de ir ao chefe do governo para fazer-lhe ciente que o
Santo Padre tomou a particular iniciativa de exortá-lo e insistir em propósitos pacíficos, sobretudo a fim de manter fora do conflito o país que fora
confiado à sua responsabilidade. O Jesuíta pediu audiência, mas a resposta
que recebeu foi a de que o Chefe do Governo não poderia recebê-lo, mas
ele poderia tratar o assunto com o Ministro do Exterior.
À tardinha do mesmo dia, o Pe. Tacchi encontrou-se com Ciano ao
qual expôs o conteúdo da sua incumbência. O ministro pediu para levar ao
Santo Padre, da parte do Duce, os seguintes pontos:
A declaração feita no Conselho dos ministros equivale a uma verdadeira e própria declaração de neutralidade.
zir seu poderio bélico, ficando proibida de possuir força aérea, de fabricar armas e de ter um
exército superior a 100 mil homens.
30 Especial
1) Esta declaração permanece firme e é intenção do Chefe do Governo que assim permaneça até o término do conflito, o qual não exclui que possa terminar depois de algumas semanas, isto é, depois
de ultimada a guerra contra a Polônia.
2) Humanamente não se podem prever os eventos que obrigam a
Itália, não obstante o presente propósito de permanecer neutra a
seguir outra linha de conduta.
“O ministro me assegurou, escreveu o Pe. Tacchi Venturi, que continuaria, como fez até aqui, a manter firme a neutralidade”. Contrariamente
às previsões de Mussolini, com a conclusão da campanha alemã–polonesa,
a situação política e militar internacional não era clara diante da intervenção soviética na Polônia. Contrariando as previsões de Mussolini, com a
conclusão da campanha alemã–polonesa, a situação política e militar internacional ao invés de clarear, por causa da intervenção soviética na Polônia,
agora, ficava mais fosca.
Pio XII preocupado diante dos perigos que iam se agravando, não
obstante as garantias recebidas de Paz na Itália, via uma extensão do conflito. Dirige-se ainda ao Conde Ciano a recomendação feita há três semanas antes também fora feita ao Chefe do Governo. O Papa confiara esta
incumbência ao Núncio Mons.Borgongini – Duca, que foi recebido em
audiência no dia 27 de setembro de 1939. Depois que o Núncio falou da
situação internacional e outros assuntos, logo após falou também com o
chefe de Gabinete do Ministro para recomendar algumas práticas ligadas a
uma eventual beligerância italiana. O Funcionário respondeu: Fique tranqüilo que as operações militares não acontecerão. Digo-lhe confidencialmente que a guerra não se pode fazer porque não temos nada. O ministro
Ciano agiu de modo admirável neste sentido39.
No dia 21 de Dezembro, Pio XII recebera no Vaticano, o Rei, a Rainha e os dignitários da Corte, do governo e do Reino. A questão de não
entrar na guerra estava na Ordem do Dia. Nesta ocasião, diante dos apelos
do Papa e do reconhecimento pelos esforços para manter a Paz, o ministro
Ciano, que fazia parte do séquito, declarou: “Eu fui a Salzburg para dizer:
paz, paz; mas os outros responderam: guerra, guerra”. “Assim, eu pude
salvar a paz da Itália, mas não pude salvar a paz da Europa”40.
O Papa retribuiu a visita no dia 28 de dezembro; saiu do Vaticano, foi
ao Quirinale, residência dos reis da Itália para agradecer a visita anterior
39
Doc. n°. 211
40
Doc. n° 224
Especial 31
e reforçar os seus intentos pela Paz. Em nenhuma destas visitas Mussolini
esteve presente.
Estas breves alusões são confirmadas através dos discursos públicos,
os quais deixam transparecer bem que o Papa aproveitara as mais diversas
ocasiões para inserir seus apelos e empenhos em prol da Paz, e isto está
bem explícito no discurso ao Embaixador da França41.
III – Conclusão
3.1. O Fato
«Quando era Núncio na Alemanha (1917-1929) e secretário de
Estado (1930-1939) e, sobretudo, como Papa, Pacelli denunciou de maneira clara e forte os males de seu tempo, ou seja, o racismo, os ódios raciais
e étnicos, o nacionalismo exasperado, os crimes de guerra e as atrocidades
contra as populações civis».
Em sua primeira encíclica, Summi Pontificatus, publicada pouco antes do estouro da Segunda Guerra Mundial, Pio XII não só menciona a
palavra “judeu”, mas também o faz em um contexto de defesa da família
humana. Citando São Paulo, Pio XII diz: não há grego e judeu; circunciso
e incircunciso; bárbaro, escravo, livre, mas Cristo é tudo e em todos (Summi Pontificatus, n. 36).
Basta consultar os artigos de «L’Osservatore Romano» e as transmissões da «Rádio Vaticano» da época, para comprovar as defesas explicitas
aos judeus, mencionando-os antes, durante e depois da guerra. Recomenda-se também, ler o que escreviam sobre o Papa Pacelli nos jornais nazistas. É evidente que para os expoentes do regime nacional-socialista as
palavras de Pio XII eram sumamente claras como porta-vozes dos judeus.
Em março de 1940, durante um encontro privado com Joachim von
Ribbentrop, Ministro de Assuntos Exteriores Alemão, Pio XII condenou a
perseguição nazista aos católicos e aos judeus de maneira forte e decidida.
Respondendo à tese de Susan Zuccotti42, segundo a qual os católicos
ajudaram aos judeus, é importante ressaltar que Pio XII não sabia nada;
não tinha nada a ver com a obra de assistência. Doino43 explica a Zenit
que se trata de uma tese absurda, e, de fato, The Pius War (A Guerra Pio)
41
42
Cfr. CHARLES- ROUX, Huit ans au Vatican, 357, 358 e 367.
Historiadora Americana especialista em estudos sobre o holocausto.
DOINO, William Jr., A Guerra Pio: Respostas aos críticos de Pio XII, Lexington Books,
pp- 58-59.
43
32 Especial
documenta amplamente a ajuda direta coordenada por Pio XII a favor dos
perseguidos do nazismo em toda Europa: Entrevistei pessoalmente dom
John Patrick Caroll-Abbing, conclui Doino, membro da rede antinazista
em Roma, que me disse que recebia ordens diretamente de Pio XII para
esconder e proteger os judeus.
Passados apenas oito meses que Pio XII tinha assumido a Cátedra de
Pedro, na sua primeira Encíclica Summi Pontificatus, de outrubro de 1939,
no quinto capítulo, números 72, 73 e 74 declarou:
A ANGUSTIOSA HORA PRESENTE
Veneráveis irmãos, o momento em que vos chega às mãos
esta nossa primeira encíclica, bem pode ser qualificado, sob
vários aspectos, de uma verdadeira “hora das trevas” (Lc
22,53), na qual o espírito da violência e da discórdia verte
sobre a humanidade a sanguinolenta ânfora de dores inomináveis. Será porventura necessário assegurar-vos que o
nosso coração, repassado de compassivo amor, está nesta
hora bem próximo de todos os seus filhos, e especialmente
dos atribulados, dos oprimidos e perseguidos? Os povos arrastados para essa trágica voragem, que é a guerra, estão
ainda, por assim dizer, no “princípio das dores” (Mt 24,8),
mas reinam já, em milhares de famílias, morte e desolação,
pranto e miséria. Do sangue de inúmeros seres humanos,
mesmo de não combatentes, desprende-se lancinante brado,
especialmente nessa dileta nação como a Polônia que, pela
sua fidelidade à Igreja, pelos seus grandes méritos na defesa
da civilização cristã, gravados em caracteres indeléveis nos
fatos da história, tem direito à simpatia humana e fraterna
do mundo, e aguarda, confiante na poderosa intercessão de
Maria, “Socorro dos cristãos”, a hora de uma ressurreição
que corresponde aos princípios da justiça e da verdadeira
paz. O que aconteceu há pouco e o que ainda está acontecendo,
passara diante de nossos olhos como uma visão quando, havendo ainda alguma esperança, nada deixamos de fazer do
que nos sugeria o nosso ministério apostólico e os meios que
tínhamos à nossa disposição, para impedir que se recorresse
às armas e para conservar aberto o caminho que levaria a
um entendimento honroso para ambas as partes. Convencidos de que o uso da força por uma das partes obrigaria
Especial 33
a outra a recorrer às armas, julgamos dever imprescindível do nosso ministério apostólico e do amor cristão, fazer
tudo o que pudéssemos para poupar à humanidade toda e à
cristandade os horrores de uma guerra mundial, ainda que
as nossas intenções e as nossas vistas corressem risco de
serem mal interpretadas. Os nossos conselhos, se bem ouvidos com respeito, nem por isso foram seguidos. E enquanto
o nosso coração de pastor, cheio de amargura e preocupação, observa o que se passa, como que aparece aos nossos
olhos a figura do bom pastor, que é como se devêssemos, em
seu nome, repetir ao mundo a queixa: “ah! se conhecesses a
mensagem de paz! Agora, porém, isso está escondido a teus
olhos” (Lc 19,42).
O fato é que a guerra explodiu. Certamente nem tudo foi em vão, já
que foram feitas várias intervenções por Pio XII em favor da Paz, através
dos Núncios Apostólicos e de vários outros representantes Pontifícios e
dos Chefes de Estado. Não se sabe claramente, mas é possível deduzir que
o Papa tinha alguma ligação secreta com os alemães adversários do regime
hitleriano. Mesmo que não possa ter evitado tantos massacres, se não deteve as tragédias, de alguma forma as retardou.
São muito significativas as três importantes ações antes da explosão
da guerra. Antes de tudo, no princípio de maio de 1939, a sondagem para
uma Conferência com os cinco países Polônia, Alemanha, Inglaterra, França e Itália, para discutir e regulamentar os contrastes que provocavam o
conflito entre a Alemanha e a Polônia. Esta iniciativa não foi acolhida por
todos e foi suspensa no dia 10 de maio de 1939. Em seguida, o estreito
acordo com o governo Inglês na tarde de 24 de agosto, e o apelo oficial,
formulado de maneira contundente tendo em vista as negociações. Nada
se perde com a Paz. Tudo pode ser perdido com a guerra. No dia 30 de
agosto, realizou-se mais uma tentativa para convencer, no último momento, a Polônia a ceder às reivindicações da Alemanha. Tentativas que se
remontam a Mussolini, apoiado pela Inglaterra. No dia 31 de agosto, uma
exortação às Potências para uma solução pacífica do conflito.
No dia 13 de setembro de 1939, L’Ossevatore Romano, em uma nota
inspirada pessoalmente pelo Papa, declarava que a Santa Sé tinha tentado
todas as possibilidades que de algum modo poderia ofertar, como tutela da
Paz ou ao menos para excluir o perigo de uma guerra. Muitos eram contra a guerra e a Igreja em especial. Mas era preciso contar com os velhos
rancores que Mussolini guardava contra os aliados, com as divergências
34 Especial
ideológicas que separavam a Itália fascista das democracias ocidentais e
por fim, o Pacto de Aço.
3.2. O Problema
O que se reprovou na atitude do Papa foi o que se chamou de o Silêncio de Pio XII diante da guerra e das atrocidades cometidas pelas Potências
do Eixo nos países ocupados, como também na Alemanha. A esta situação, o próprio Papa fez referências. Ele reconhece que decidir por outra
metodologia de interferência naquelas circunstâncias era “dolorosamente
difícil”. As discussões, os apelos e posicionamentos do Papa foram responsavelmente ponderados. As alternativas não se restringiram apenas ou
simplesmente a falar ou calar. O problema era muito maior do que a clareza das palavras que a sua função exigira e ainda a complicação no que se
relacionava à sua concretização quando se calculavam as consequências.
Há um amplo reconhecimento de que ele atuou ativamente para evitar
a guerra, para minorar as suas conseqüências e para salvar os judeus ou os
perseguidos. Porém, esta atuação foi discreta, subterrânea. Era preferível
assim ao invés de às declarações públicas e uma condenação oficial não
faltou para despertar as consciências.
A atitude do Papa, tanto quanto as informações que ele possuía, explica-se através da preocupação geral por parte dos nazi-fascistas, que certamente impedira a Igreja de desenvolver com mais facilidade o seu dever
de salvar o salvável. Sobre este ponto é muito oportuna a resposta de D. Sapieha, Arcebispo de Cracóvia ao enviado de Pio XII, porque permite uma
clara compreensão da situação e da problemática que envolvia os cuidados
da Diplomacia Pontifícia:
Ninguém mais do que nós poloneses deve ser grato à Sua
Santidade pelo seu interesse. Mas se eu publicasse este documento ou se o encontrarem comigo, as cabeças de todos
os poloneses não seria suficientes para uma represália. ordenada por Franck. Não se trata só dos judeus... matariam a
todos... Que utilidade teria de dizer tudo o que já se sabe? É
natural que o Papa esteja do nosso lado. Mas não é necessário tornar pública uma condenação pronunciada pelo Papa,
se esta vem só para agravar os nossos males44.
ZOLTOWISKI, P. Memória sul cardinale Adam Stefan Sapieha, in ocasione Del 6° della
sua intronizzazione nella sede de Cracóvia, (o original é polonês), in Nasza Przeszlosc, 38
(1972), pp. 215-249. Para maiores esclarecimentos, cfr. A alocução de Páscoa de 1941; a
rádiomensagem de 29 junho de 1941; a alocução aos cardeais de 2 de junho de 1943.; A.
44
Especial 35
Portanto, diante da exposição de tantos argumentos, resta-nos questionar: É possível afirmar que faltou coragem a Pio XII? Pode-se dizer
que ele era favorável ao nazismo, uma vez que Hitler não o atendia? Ele
ignorava o que estava acontecendo?
O fato é que tais acusações provocaram a publicação dos documentos
do Arquivo do Vaticano para iluminar a referida polêmica. Falta apenas o
empenho científico dos historiadores para tornar mais conhecido o acervo
publicado e o que ainda permanece fora do alcance do grande público.
Um Diplomata, Secretário de Estado, antes de ser Papa, Pio XII, conhecia muito bem a problemática alemã e o nazismo. Portanto, preferiu
as intervenções diplomáticas discretas, às declarações solenes. Evitou as
condenações e aplicou todo empenho em defesa da vida e da paz. Por isso
não se pode dizer que se trata de alguma deformação de pensamentos e de
compromisso ideológico. Se os documentos são de natureza diplomática
são também testemunhas de uma intensa atividade e no seu conjunto revelam que nos momentos cruciais e decisivos o Papa não fora apenas um
diplomata ou um homem de Estado, mas alguém revestido de uma missão
superior.
Certamente faltou ao Papa uma tribuna adequada. O Cardeal de Munique, Julius Doepfner, num discurso em 1964 disse: O julgamento retrospectivo da história nos autoriza perfeitamente a dizer que Pio XII poderia
ter protestado com mais firmeza. Mas não temos o direito, em todo caso,
de colocar em dúvida a absoluta sinceridade de suas motivações, nem a
autenticidade de suas profundas razões.
E para o confronto com o que foi dito por John Cornwell, o Vaticano,
no dia 14 de outubro de 1999, através da Sala de Imprensa da Santa Sé
publicou uma declaração desmentindo várias calúnias escritas por John
Cornwell em seu livro sobre o Papa Pio XII. A declaração demonstrou
uma vez mais a inconsistência da investigação de Cornwell em sua obra:
O Papa de Hitler.
O que a declaração adverte, primeiramente é que Cornwell afirma
que seu livro é o primeiro juízo científico e leal sobre Pio XII. Entretanto
Ssbe-se que este autor não tem título acadêmico algum de História, de Direito ou de Teologia, critérios pelos quais os peritos famosos, reconhecidos
mundialmente, baseiam suas críticas ao livro. Da mesma forma, são eviMARTINI, La Santa Sede e la guerra secondo i documenti degli Archivi Vaticani Vol I, in
Civita Cattolica, 1965 IV, pp. 521-535; ID., La Santa Sede e i mesi più duri della seconda
guerra mondiale in Cività Cattolica 1969 II, pp. 7-21 e de Pe. BLET, introduzione del Vol
I degli Atti della Santa Sede relativi a la Seconda Guerra Mondiale.
36 Especial
denciadas algumas das inverdades expressas por Cornwell em relação ao
seu trabalho de investigação nos Arquivos Vaticanos, começando por sua
afirmação de que foi a primeira pessoa a ter acesso a estes arquivos. Isto
é completamente falso, esclarece o comunicado. A investigação do autor
britânico se limitou a pesquisar somente duas séries de documentos, ambos
anteriores ao ano 1922. Igualmente, Cornwell defende que trabalhou nos
arquivos durante vários meses. Entretanto, a autorização que lhe foi concedida cobria seu trabalho em um período de somente três semanas, durante
as quais o autor não foi visto no local todos os dias, conforme atestam os
registros rigorosamente averiguados no Arquivo. Em seu livro, Cornwell
afirma também, ter descoberto documentos secretos que permaneceram
ocultos até a sua investigação, citando em especial, uma carta escrita pelo
Papa Pacelli quando era ainda Núncio na Baviera. Entretanto, este documento secreto, indica a declaração, foi publicado em 1992, sete anos antes
da descoberta de Cornwel.
A afirmação feita por Albert Einstein nessa época é bem oportuna:
Só a Igreja Católica protestou contra o assalto hitlerista à liberdade. Até então, jamais havia me interessado pela Igreja,
mas hoje exprimo minha grande admiração e minha profunda afeição por esta Igreja que, sozinha, teve a inquebrantável coragem de lutar pelas liberdades morais e espirituais45.
Também nãopodemos deixar de considerar as palavras de Golda Meir,
uma das pioneiras do Estado de Israel, do qual era Ministra do Exterior
quando da morte de Pio XII, ocasião em que fez as seguintes declarações:
Durante o decênio do terror nazista, quando nosso povo sofreu terrível
martírio, a voz do Papa se levantou para condenar os perseguidores e
para pedir compaixão em favor de suas vítimas46. Logo, trata-se de um dos
testemunhos que anula o suposto “Silêncio de Pio XII”.
Certamente já se têm elementos suficientes para uma reflexão mais
profunda sobre os posicionamentos acerca do pensamento dos autores antiPio XII, bem como vários argumentos desenvolvidos ao longo deste trabalho, que podem nortear pesquisas e posições que levem às direções que
conduzam à verdade histórica.
Pelo que se observa em pesquisa nas fontes primárias, o silêncio de
EINSTEIN Albert, citado por Roche e St Germain, em “Pie XII devant l’Histoire”,
prefácio, ed. Laffont, p.14.
45
46
Cfr. A entrevista do jesuíta Pierre BLET a Le Figaro Magazine, Paris, 18-9-99.
Especial 37
Pio XII não foi absoluto, uma vez que os seus pronunciamentos chegaram
também aos ouvidos não só de Einstein e Golda Meir, mas de tantos outros
como se constata em vários documentos.
O acervo publicado neste primeiro volume refere-se aos primeiros
meses do Pontificado de Pio XII. No curso destes meses, a ação do Papa
da Santa Sé, se desenvolve tanto num plano geral e teórico de iluminação
doutrinal, como num plano prático cuja tônica incide nas iniciativas diplomáticas.
Até então, o Vaticano, a priori, preocupava-se com o ministério sacramental, os direitos institucionais e até com a sobrevivência da Igreja
Católica, como se pode deduzir da política das concordatas. Mas, diante da
iminência da Guerra, sua eclosão e consequências, constata-se a dramática
evolução na política diplomática do Vaticano.
No que se relaciona ao problema internacional, a iniciativa, em sua
maioria, provém da Santa Sé. Encontram-se iniciativas de cristãos isoladamente que, de certa forma, assinala uma presença de Igreja. Em todo caso,
é uma constante o que Pio XII traçara com a sua experiência diplomática e
seu profundo espírito religioso, visando à construção de caminhos efetivos
de intervenções diplomáticas para salvar a Paz.
Os Documentos contidos nos ADSS revelam a complexidade e variedade das atividades que a Santa Sé desempenhara não só para salvar a Paz
como também para socorrer as vítimas da guerra.
O processo da realidade política em prol da Paz é muito complexo. É
preciso levar em consideração certo empobrecimento por causa dos limites, tanto em relação ao acesso às fontes, como às categorias de uma síntese que muitas vezes quer explicar muito e termina explicando pouco. Por
outro lado, não se pode esquecer que a simples presença do documento,
não significa que se tem claro o como tal documento foi recebido, qual foi
a atenção devotada à sua recepção e como foi considerado ou tratado pelos
vários círculos diplomáticos. Além disso, cada um dos editores tinha o seu
foco na seleção dos Documentos. Por exemplo, encontram-se referências a
documentos que não foram editados, logo, obviamente existem documentos que não foram publicados ou não se encontram no acervo da Santa Sé.
Enfim, pelo que se consulta, a partir da correspondência entre a Santa
Sé e os Chefes de Estado, Pio XII não silenciou. Resta saber qual era, de
fato, a pretensão de tal acusação.
38 Especial
Referências
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Especial 39
Artigos
RELIGIOSIDADE E FESTA:
O SAGRADO E O PROFANO NA FESTA
DO SANTO PADROEIRO
Prof. Dr. Luiz Alencar Libório47
Msc. José Carlos Lima Filho48
Resumo: A devoção ao santo, apesar de ser uma devoção antiga nos
moldes do catolicismo de santos, consegue adequar-se ao catolicismo
clerical, mesmo mantendo as expressões do catolicismo tradicional.
Na verdade, a peregrinação, a procissão ou mesmo a romaria dedicada
ao santo protetor se identificam como um fenômeno reinterpretado
por diversas pessoas de segmentos sociais diferentes. O objetivo deste
artigo é apresentar algumas considerações sobre o santuário de Santa
Luzia (Mossoró-RN), a fé do povo e os ritos e como os peregrinos
observam o rito itinerante. A metodologia está num modo descritivo
com observação participante, seguindo um estilo jornalístico. A
devoção e a festa abrem um vasto campo de possibilidades para a área
das Ciências da Religião concernente à cultura e às demonstrações de
mitos e de cosmologias da tradição de longa duração.
Palavras-chave: Sagrado, profano, devoção, romaria, fé.
Abstract: The devotion to the Saint, despite being an ancient
devotion in the manner of the Saints of Catholicism, can fit the
clerical Catholicism, even maintaining the expressions of traditional
Catholicism. In fact, the pilgrimage, the procession or even the popular
festival (pilgrimage) dedicated to the Saint Patron are identified as a
phenomenon reinterpreted by different people from distinct social
segments. The objective of this paper is to present some considerations
on the shrine of Santa Luzia (Mossoró-RN), people’s faith and rites
and as the pilgrims observe the traveling rite. The Methodology is in
Este artigo é parte da Dissertação de Mestrado do Mestre em Ciências da Religião
(UNICAP) José Carlos Lima Filho orientado por Dr. Luiz Alencar Libório. A publicação
conjunta de artigos é uma recomendação da CAPES.
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O Mestre José Carlos Lima Filho fez sua Dissertação de Mestrado sobre a Festa de Santa
Luzia, em Mossoró (RN), caracterizada pela profundidade e estilo jornalístico.
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40 Artigos
a descriptive way with participant observation following a journalistic
style. Devotion and feast open up a vast field of possibilities for the
Religion Sciences area concerning the culture and demonstrations of
myths and cosmologies of long term tradition.
Key Words: Sacred, profane, devotion, pilgrimage, faith.
Introdução
Ao falarmos em expressão de religiosidade na festa, reportamo-nos
ao rito, ao mito e ao símbolo como partes integrantes do espaço e do tempo
sagrados. Para Rosendahl (1996, p. 30), “o espaço sagrado é um campo de
forças e de valores que eleva o homem religioso acima de si mesmo que o
transporta para o meio distinto daquele no qual transcorre sua existência.”
É por meio dos símbolos, dos mitos e dos ritos que o sagrado exerce sua
função de mediação entre o homem e a divindade.
As expressões de religiosidade adquirem forma no espaço sacralizado,
e, enquanto expressão do sagrado, possibilita ao romeiro entrar em contato
com o transcendente. Conforme aponta Berger (1984, p. 39), “o homem
enfrenta o sagrado como uma realidade imensamente poderosa...”. O
romeiro sente vontade de se movimentar no espaço sagrado, daí o desejo
de participar da construção do sagrado.
Para o romeiro, os espaços sagrado e profano interagem mesmo
sendo expressões contrárias e ao mesmo tempo se diferem e se atraem;
entretanto, jamais se misturam. “O espaço sagrado e o profano estão
sempre vinculados ao espaço social” (ROSENDAHL, 1996, p. 32).
Este artigo trata de descrever a festa religiosa em sua origem e
o sentido manifestado pela fé e tradição no espaço e tempo sagrado e
profano. O santuário referente a qualquer santo oferece um campo vasto
para a investigação do fenômeno religioso a partir do rito caminhante
como: a promessa, procissão, peregrinação ou romaria, inserida na cultura,
na qual está o mito, o rito e o simbolismo religioso, permitindo um estudo
aguçado sobre a religiosidade popular com base na tradição, bem como no
catolicismo institucional ou oficial.
Outra questão pontual diz respeito à criação da ideia de proteção
diante do rito. A intenção de pesquisar sobre religiosidade como expressão
religiosa se justifica na ausência de uma literatura que trate, de modo
acadêmico, sobre os ritos itinerantes, ou seja, os ritos processionais.
Os ritos de movimentos, tais como procissões, peregrinações e romarias
são similares nas expressões gesticulares, palavras, comprometimentos,
Artigos 41
mas diferentes de um lugar para outro, porque a religiosidade é mais
cultural do que doutrinária. A religiosidade surge com a mistura de crenças,
culturas, religiões e superstições, com muita emoção e clima festivo.
Para o povo devoto, o milagre nas imagens, está no mito de origem:
cavernas, fundo do rio, floresta, capela, etc. O maravilhamento sobrenatural,
o inexplicável; tudo é mito, ou seja, narrativas sagradas. Isso comprova
que não existe rito sem o mito, daí ocorrerem à experiência religiosa e à
intimidade do romeiro com o santo a afetividade, a afinidade, o contato e
as trocas simbólicas que confirmam as expressões de religiosidade sem a
presença de sacerdotes, geralmente no ambiente doméstico.
As expressões de religiosidade são evidentes na relação íntima das
pessoas com o santo, com o nome das cidades e dos estabelecimentos
comerciais. Nas cidades, o fervor das pessoas na preparação para a festa é
algo diferente; porém as expressões de religiosidade são iguais em termos
de ritual em qualquer lugar do mundo, em que o belo aparece para receber
o sagrado com folhagens, vasos, toalhas, areia colorida, papel brilhante,
iluminação nas ruas, andores giratórios e decorados, entre outros.
Na religiosidade popular não existe fundamentalismo, nem fanatismo,
mas muita devoção e pouca religião. Participar religiosamente de uma festa
implica a saída de duração temporal “ordinária e a reintegração no tempo
mítico, reatualização na própria festa” (ELIADE, 2006, p. 63).
Segundo Bourdieu (2009, p. 49), “religiosidade reverte-se de um
caráter intensamente pessoal, tornando parte integrante da experiência
religiosa”, enquanto que para Durkheim, a religião é um ritual, nunca uma
festa.
As festas brasileiras estão diretamente ligadas às tradições lusitana,
indígena e africana. Sob a herança da cultura europeia, herdamos o
catolicismo dos santos de devoção, como por exemplo: o culto às imagens,
as novenas, as promessas; tudo isso misturado a elementos culturais e
religiosos de povos nativos e africanos que resultaram nas rezas fortes,
“benzeduras”.
A imposição cultural total dos portugueses não foi possível em razão
da resistência dos nativos. Uma das alternativas dos colonizadores foi,
através das festas, ligada às produções agrícolas, realizar a religação entre
colheita, semeadura e homens. A festa era para agradecer e pedir a proteção
divina. Com o tempo, a festa passou a estar associada a outros elementos,
tais como: padroeiros, seres sobrenaturais, adotando santos do catolicismo.
Já existindo, as festas religiosas, de imediato, se adequam às festas
católicas de padroeiro e de santo milagreiro. Dentre as festas religiosas,
42 Artigos
também existiam as festas menores aos domingos, denominada de
domingas (DEL PRIORE, 2001, p. 13). A Igreja Católica foi-se adequando
às comemorações festivas alusivas a santos que passaram a dar nomes
às capelas, às fazendas, às cidades, às pessoas e aos estabelecimentos
comerciais. “Existe um grande número de cidades brasileiras, apadrinhadas
com nome de santos e nossas senhoras, as mais variadas invocações”
(AMARAL, 1998, p. 8).
O termo “religiosidade” é inerente ao homem desde os primórdios da
história da humanidade e sempre esteve presente antes da religião, em que
o transcendente é revelado pela ação (sentimento, devoção e confiança). A
religiosidade está nas emoções humanas, nas festas ou nas ritualizações,
unindo o sagrado ao profano; portanto, um vínculo entranhado na cultura
do povo. Vejamos o que diz Peter Berger (1999) a respeito da religiosidade:
“é um sentimento difuso de ligação com o sagrado, sem hierarquia formal,
regras de comportamento rígidas e centrando a atitude religiosa na
liberdade do indivíduo”.
A religiosidade é a religião de cada sujeito. É aquilo que entendemos
por sagrado (sentimento religioso). É, pois, uma teologia feita pelo povo,
fora do contexto e do texto. É o próprio conhecimento religioso com
características popular, histórica e antropológica. Enfim, a religiosidade
emana do conhecimento empírico e vivencial do povo, uma religião sem
amarras; assistemática, espontânea, voluntária e coletiva.
Uma festa organizada por diversos segmentos da sociedade, trazendo
um resultado com ganhos significativos no tocante à mistura de crenças,
valores e anseios. O evento festivo, que revive tradições, reconstitui a
história a partir da identidade cultural e social da cidade.
As informações que obtivemos na festa de Santa Luzia, em Mossoró
(RN), recorreram às conversas espontâneas com romeiros, registros de
imagens, coleta de dados de jornais, periódicos. Respaldamo-nos em
alguns teóricos, os quais nos forneceram argumentação para a construção
do nosso objeto, a saber: Eliade (1992), Dürkheim (1999); Del Priore
(2000), Cascudo (2011), Berger (1999); Terrin (2003), Rosendahl (1996),
Bourdieu (2009).
O sentido da festa, numa relação sacro-profana, é constituída por
ligações entre clero, moradores e devotos nos contextos histórico e cultural
da promessa ao santo. Além disso, a questão da herança cultural dos nativos
indígenas, africanos e lusitanos está inserida na religiosidade, na religião
e na festa.
Finalmente, há a análise do rito processional, ou seja, itinerante, como
Artigos 43
fenômeno sociorreligioso que enriquece a nossa sociedade, buscando
elementos que só contribuíram para a agregação de elementos culturais
e religiosos. Na vida sociocultural e nas religiões, o rito é evidenciado e
repetido todos os anos.
Por fim, a religião no Brasil eclodiu a partir da religiosidade sincrética
e híbrida, aglutinando elementos da cultura e da religião, enriquecendo
a grande diversidade religiosa brasileira, sendo motivo instigante para se
estudar na academia.
As festas nos enfoques sagrado e profano, nas relações sociais, nos
âmbitos cultural, temporal e espacial estão inseridas em todo contexto
de uma festividade, através de um ponto convergente: a imagem. Como
afirma Manguel: “As imagens tornam presentes para o analfabeto, para
aqueles que só percebem visualmente, porque nas imagens os ignorantes
veem a história que tem de seguir” (MANGUEL, 1997, p. 177). A imagem
oferece uma mensagem tanto para o instruído como para o ignorante;
enquanto para os alfabetizados, a imagem é uma opção de leitura, algo a
mais, dizendo a imagem tudo para o analfabeto..
Certamente, já se estudou a respeito da festa, tratando do aspecto do
sagrado, pelo seu valor e ressignificação nas expressões de religiosidade,
fomentando uma riqueza histórica, social e cultural.
Finalmente, as expressões de religiosidade na festa religiosa como
características sagradas e profanas, embora se apresentem unidas, não se
misturam. As expressões de religiosidade ganham visibilidade na festa,
quando remonta a história de fundação da cidade, garantindo as identidades
cultural e social como heranças lusitana, indígena e afrodescendente.
1. A origem do culto ao santo
A devoção ao santo, apesar de ser uma devoção antiga nos moldes
do catolicismo de santos, consegue adequar-se ao catolicismo clerical,
mesmo mantendo as expressões do catolicismo tradicional. Na verdade, a
peregrinação, a procissão ou mesmo a romaria dedicada ao santo protetor
se identificam como um fenômeno reinterpretado por diversas pessoas
de segmentos sociais diferentes. Neste artigo, mostraremos algumas
considerações sobre o santuário e como os peregrinos observam o rito
itinerante. A devoção e a festa abrem um vasto campo de possibilidades para
a área das Ciências da Religião concernente à cultura e às demonstrações
de mitos e de cosmologias da tradição de longa duração.
Diante do universo católico institucional, a louvação e a veneração
ao santo trazem visibilidade e autenticidade participante dos dirigentes
44 Artigos
do clero. Os depoimentos dos romeiros de forma voluntária e espontânea
foram como horizonte que se abriu na compreensão das expressões de
religiosidade na festa e na devoção.
Os ranchos e alojamentos acontecem nas escolas, nos hotéis da cidade
e nas residências de amigos, em que a conversa, quase sempre informal,
fornece ricas informações através de laços de convivência.
Na verdade, todos buscavam o contato direto com a tradição que
envolve a multidão que caminha todos os anos. Talvez a romaria possa
ser uma ferramenta pela qual os peregrinos entram em contato com sua
cultura, já ameaçada pela sociedade secularizada, reinventando a tradição.
A riqueza de conhecimento a partir das conversas e das estórias é
muito grande, pois nos romeiros estão os mitos, as lendas e as superstições,
ou seja, o pensamento mágico da religiosidade. Diversos estudos sobre
santuários, devoção e festa, apontados por outros autores em países
diferentes coincidem com as estórias contadas pelos romeiros.
A relação entre religião e mito remonta ao catolicismo dos santos e do
catolicismo clerical. Busca-se mostrar essa relação no contexto histórico e
religioso, a partir das expressões festivas e devocionais no rito que caminha.
Observando e analisando a procissão ou peregrinação, destacamos
alguns momentos e questões pontuais:
• Primeiro momento: tem-se como finalidade aproximar o leitor
deste estudo sobre ritos itinerantes.
• Segundo momento: a discussão do sagrado no contexto da
procissão: moradores, romeiros e instituição religiosa.
• Terceiro momento: as experiências junto aos romeiros, os votos ou
promessas.
• Quarto momento: pontuar os rituais e a Festa na relação entre o
profano e sagrado, construindo ligações entre clero, moradores e
devotos.
O foco está voltado para a tradição em torno da festa em homenagem
ao santo e da experiência dos devotos. A origem da devoção do povo está
relacionada com o templo, enquanto instituição, embora o fato histórico
da Contrarreforma no Brasil tenha levado muitos leigos e clérigos da
península Ibérica e da América a abandonarem a vida urbana em direção à
natureza como ponto de encontro com o sagrado.
Nesse sentido, essa tentativa de devoção do povo deu origem a muitos
santuários na América Latina e, principalmente, no Brasil.
Artigos 45
1.1. O santuário está na origem da devoção
O santuário, durante muito tempo, limitou-se às condições política,
social e religiosa local passando a fazer parte do catolicismo institucional.
O espaço sagrado está na origem da devoção e a festa na peregrinação
fundante e nas estórias dos romeiros.
Os romeiros vão à procissão em busca de um lugar sagrado, pois o
sentimento religioso está dentro do romeiro e a peregrinação é uma busca
do espaço sagrado que está dentro de cada romeiro.
Nos últimos tempos, o catolicismo romano resolveu assumir a voz
daqueles que, em um passado próximo, foram obrigados a silenciarem.
O sentimento religioso está vinculado ao romeiro e diretamente ligado
ao lugar, em que o sagrado surge de modo concreto, ao alcance dos olhos,
podendo ser tocado. A imagem e o sentimento religioso se entrelaçam nos
relatos orais e escritos. A peregrinação abre caminho, permitindo o contato
com sua própria subjetividade.
A devoção, por outro lado, chama a atenção para um olhar que
desperta, ilumina, liberta, transforma, cura, intercede e protege. Na
verdade, as coisas são as mesmas, porém o nosso olhar pode ser novo.
1.2. O sentido da festa ao santo
Na caminhada, os romeiros aglomeram-se, ajoelham-se, levam uma
rosa do andor, beijam o vidro que protege a imagem, trazem consigo a fé
e a devoção ao santo.
O sentido da festa transcende o dia rotineiro. Hoje, a festa é todo
dia, perdendo aquele encanto da esperança e da renovação. Daí, o sagrado
apresenta uma conotação de curiosidade e de novidade provisória com
efeito de turismo religioso.
A festa sempre se configurou como uma dose de esperança. Hoje,
talvez a festa remonte a um aspecto cultural originário do passado, ou seja,
uma tradição preservada com saudade e memória da cultura e da fé.
O sentido da festa, ou melhor, a ritualização na sociedade
contemporânea é fardo para alguns e festa da vida para outros.
2. Peregrinação: o povo a caminho do sagrado
devocional
A imagem do santo exprime a vontade do povo em busca de Deus
como proteção na importância e na atualidade do testemunho para os
tempos modernos.
46 Artigos
Os devotos trazem consigo a gratidão e o louvor na esperança de um
mundo mais fraterno. Os sinos, os fogos e as sirenes se misturam com as
vozes do povo que reverencia, em frente ao templo sagrado, a representação
celeste na imagem do santo padroeiro da cidade.
A autêntica expressão de fé e de devoção ao santo é um retrato real de
um catolicismo sem amarras, espontâneo, livre de normas doutrinais, mas
convicto do sentimento religioso que existe em cada fiel ao São Salvador
na figura do santo como verdadeiro representante de Deus na Terra.
Nos gestos, expressões de alegria e de choro, estampados nos rostos
dos romeiros, além do esforço envidado para poderem estar presentes na
festa, há muita convicção de fé e de devoção por acreditarem num mundo
de esperança. A expressão da própria religiosidade popular se caracteriza
pelas orações, louvores, aplausos e agradecimento. A festa é um momento
forte de contato com o divino através do lazer, da vida religiosa e dos
gestos de fé (novenas, missas, procissões e a parte festiva) e de devoção.
2.1. O caminhar manifestado pela fé e pela tradição
A imagem para o devoto não é apenas uma figura simbólica, mas
evoca uma divindade ausente. Como afirma Fernandes (1990, p.116), “é
na sua materialidade que a santidade se manifesta efetivamente, de modo
a ser visto e focado”.
No dia da procissão, forma-se uma extensa fila de devotos que passam
diante da imagem para rezar, tocar com reverência a santa protetora dos
olhos (Santa Luzia). O momento apoteótico é a procissão, quando a
imagem do santo sai em procissão pelas ruas da cidade, acompanhada pela
multidão sobre um andor extremamente ornamentado com flores, filó e
muita luz. É o momento em que o sagrado, fora do santuário, irradia uma
verdadeira epifania.
A sala dos milagres justifica a substituição da religiosidade. Para os
romeiros, o sagrado é uma realidade que se pode enxergar e deixar-se tocar
por eles, e, muito embora o culto clerical desautorize este misticismo, ele
persiste no espaço do Santo como uma forma de aproximação ao sagrado.
No espaço do santuário, mesclam-se celebrações do culto oficial com
as devoções populares, por exemplo, tocar as relíquias do Santo, mesmo
considerando uma atitude mágica, a autoridade religiosa não a reprime,
mas evita falar sobre ela nos sermões.
Grande parte dos peregrinos faz parte das classes menos abastadas,
porém podemos constatar a presença de pessoas ilustres que acompanharam
a procissão em todo seu trajeto.
Artigos 47
A procissão não faz uso de cavalo ou do somente andar a pé. Hoje,
o que se pode constatar é o uso de motocicletas, bicicletas e automóveis.
Na opinião de alguns romeiros, dizem eles: “naquele tempo, as pessoas
iam a pé pagar promessa ao Santo, com as trouxas na cabeça, quartinhas
d’água, chapéu de palhas na cabeça. Andavam muitas léguas para ir visitar
o Santo. Não tinha canseira, tinha muita fé”. Acrescenta ainda o romeiro:
“parece que a quantidade de fé daquele tempo era mais do que hoje”.
O uso de animal cargueiro levando mantimentos hoje foi substituído
por carros fretados ou mesmo pelo carro próprio.
Atualmente, os romeiros viajam de ônibus fretado, contratado por
um chefe de romaria que se responsabiliza de organizar tudo: reúne os
romeiros, faz a listagem dos interessados, acerta o preço e recolhe o
dinheiro, marcando a data de saída, além de providenciar a hospedagem.
Entre os romeiros do mesmo ônibus existe uma relação fraternal, todo
mundo é amigo.
Nos últimos tempos, com as rodovias asfaltadas e as exigências da
lei de trânsito, os caminhões passaram a ser substituídos por ônibus, apesar
de mais caros. A relação de amizade fraternal deixa de existir quando o
organizador é um político. No caso, o que se observa é o clientelismo
estabelecendo a relação entre fortes e fracos.
O tempo máximo de permanência na cidade é de três dias, incluindo
a chegada e a saída. Entre os romeiros, seus trajes são caracterizados,
simbolizando o santo padroeiro. .
Além dos romeiros devotos, temos outros visitantes atraídos pela festa
do padroeiro. Esses romeiros geralmente viajam em carros particulares
ou ônibus da linha e participam, de maneira eventual e curiosa, buscando
entretenimento.
Diante do exposto, vejamos o que diz sobre isso Sanchis (1983, p.
97): “a romaria não é uma simples reunião de pessoas que participam de
uma mesma visão de mundo.” Já Eade & Sallnow (1991, p. 15) afirmam
que a romaria é: “como uma espécie de espaço ritual capaz de acomodar
sentidos e práticas diversas”.
2.2. Espaço de trocas simbólicas
Os rituais da romaria nos santuários católicos apontam para um
sistema de trocas simbólicas, entre o romeiro e o santo, como afirmam
Eade & Sallnow (1991, p. 24), ao afirmarem que “são importantes os
santuários depósitos e dispensários de graças e bênçãos em suas variadas
formas materiais e não materiais; as doações em dinheiro, velas, missas
48 Artigos
encomendadas às almas, o sacrifício e os favores que se espera alcançar
materialmente e espiritualmente”.
As mercadorias expostas nas barracas vão desde santinhos, artesanato
e até aparelhos eletrônicos. Grande parte dos produtos é originária do
Paraguai, salvo algumas barracas ligadas à Paróquia com produtos
artesanais. Para o catolicismo oficial, o comércio é uma contravenção,
enquanto para os romeiros, o comércio integra a festa, juntamente com
as trocas simbólicas estabelecidas na celebração ao santo protetor. Muitos
romeiros matam o tempo, olhando preços e comprando lembrança do Santo
e da cidade para levar para casa, por exemplo: uma pequena estatueta em
um quadro emoldurado com sentido de dar extensão à presença do santo
milagreiro na sua vida.
O fato é que o Santo e o mercado são representados como mediadores
de bens materiais e espirituais.
É evidente que o povo é religioso, sobretudo, supersticioso. É religioso;
entretanto, não tem pertencimento a nenhuma denominação religiosa. Na
romaria, constata-se a grande ligação com Deus, por intermédio da figura
do Santo. Há uma preocupação dos dirigentes religiosos em valorizar as
práticas rituais dos romeiros e de incorporá-las ao culto oficial, a fim de
buscar uma liturgia mais popular, valorizando os sermões a partir do povo.
As promessas feitas pelos peregrinos dão origem ao rito itinerante.
Como afirma Fernandes (1990, p. 118), “ao fazer a promessa, o promesseiro
reconhece que existe um centro que está fora dele, junto ao santo”.
Para chegar até o centro, os peregrinos decidem caminhar e, como
se refere a um contato com o sagrado, a caminhada é vivenciada como
um ritual de aproximação e limpeza espiritual. O que leva o peregrino
a se tornar um devoto está no milagre alcançado no espaço doméstico.
Os milagres acontecem de fora para dentro do santuário. Na conversa que
tivemos com os romeiros, não presenciamos nenhum milagre no local
do santuário, enquanto para os dirigentes do culto, não existe nenhuma
motivação com relação às manifestações de milagres no local do culto.
A difusão dos milagres se dá boca a boca, pela experiência pessoal do
promesseiro, através de uma cadeia de conversação oral; daí estabelecer
a romaria ou a procissão como uma exibição pública e reconhecida por
todos.
Os relatos dos milagres que contribuem na tradição oral são como
documentos que ajudam a sustentar o sistema de relações entre o Santo
protetor e o devoto peregrino.
As curas fora do santuário geralmente acontecem antes da promessa
Artigos 49
ser cumprida junto ao Santo protetor; não apenas os votos e a fé nos
milagres colocam as pessoas na trilha da peregrinação, mas também o
contato coletivo de companheirismo que a procissão proporciona.
Os rituais de uma procissão e o sentimento de religiosidade se
apresentam de modo diferente, expressando um leque de práticas e símbolos
a partir do catolicismo oficial, contrapondo com os espaços alternativos,
onde o peregrino se comporta de modo espontâneo, livre, assistemático e
fora do domínio ortodoxo.
A procissão, a romaria ou a peregrinação transmitem aos devotos o
sentido que sustenta a cultura, na qual eles estão inseridos. A ligação entre
cultura e ritual leva o romeiro ao centro do culto, durante a caminhada
celebrativa.
O ritual atualiza o mito que vem das origens do culto ao Santo,
sacralizando as normas e orientando a ação dos devotos. A cultura e o
ritual andam juntos e os símbolos contribuem para compreender a visão
de mundo.
Os ritos praticados na procissão, mesmo mantidos na uniformidade
de uma celebração, apresentam formas de um universo variado de práticas
individuais, cujos devotos atuam livremente, distantes do controle
normativo dos sistemas religiosos, incorporando símbolos que articulam
pessoas de diferentes origens sociais e diferentes experiências religiosas.
Os rituais na procissão são múltiplos, comparando com as celebrações
como novenas, sermões, missas, a procissão e o culto à imagem do Santo.
Porém os romeiros usam o catolicismo tradicional popular.
Para Steil (1996), em sua obra: “O sertão das romarias, na polissemia
da linguagem ritual”, as pessoas se identificam com os seus símbolos e
sentem-se solidárias, apesar das diferenças sociais e ideológicas existentes
entre elas.
O culto católico, na maioria das vezes, tem sido usado como
ferramenta de manifestação do poder clerical no santuário, reafirmando a
mediação entre o peregrino e Santo.
O culto religioso se constitui o ponto de convergência da procissão.
Pierre Sanchis (1983, p. 98) reitera, dizendo: “o clero regula a procissão no
entorno do santuário”
Os romeiros jamais passariam sem a celebração religiosa. Eles a
consideram o momento forte da procissão. Portanto, a missa é a ponte de
ligação entre devoção e catolicismo clerical. O peregrino, quando está na
festa, assiste à missa, volta à hospedaria, descansa e torna a voltar para a
celebração religiosa.
50 Artigos
O sagrado e o profano não estão tão separados, embora no pensamento
popular esteja distante. Entretanto, a missa é central, proporcionando as
diferentes experiências religiosas se interagirem entre si na polissemia do
ritual.
Nesse sentido, acreditamos haver um entendimento mais direto entre
romeiros e dirigentes sacerdotais no processo de comunicação com o
devoto.
O culto religioso contempla emocionalmente os romeiros e seus
participantes e a imagem do Santo, sendo privilegiada como sagrada,
projeta-se para fora do santuário, sacralizando o espaço profano.
A procissão proporciona certa igualdade onde todos caminham com o
sentido de renovação espiritual. A multidão, caminhando pelas avenidas e
ruas, é como se a vida saísse da rotina e penetrasse no domínio da liberdade
utópica.
Os caminheiros se despedem da imagem, fugindo do controle clerical,
tocando-a para se revestir de santidade; a mesma representa um movimento
de interiorização com a intenção de valorizar o espaço sagrado controlado
pelo clero.
O devoto dificilmente vai à cidade-santuário sem passar em frente à
imagem, tirando fotos e tocando-a. Nos últimos dias de festa, formam-se
longas filas e aglomeração. Diante da imagem, os romeiros a reverenciam
e rezam, tornando-se diferentes e renovados espiritualmente.
“Os romeiros, os significados míticos do lugar se incorporam à
imagem ao longo do percurso histórico” (STEIL, 1996, p. 129).
A relação direta com o Santo é uma das características do ritual
itinerante, em que o Santo é uma pessoa íntima e humana, mas poderosa e
solidária para o romeiro.
A dimensão festiva do rito itinerante refere-se ao fato de o corpo
ocupar um lugar central, enquanto ligação entre a morte e a vida, dor e
prazer.
Como escreve Sanchis (1983, p.155-160), “os contrários se compõem
para homenagear o santo”.
3. A representatividade da imagem na festa em
contexto histórico
Nos textos sagrados cristãos, o segundo mandamento de Deus
a Moisés não permite o uso de imagens: “não farás para ti imagens de
escultura, nem figura alguma do que está em cima, nos céus, ou embaixo,
sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra”. (Ex. 20,4).
Artigos 51
Na religião e na arte, as imagens esculpidas pintadas e desenhadas
sempre tiveram lugar de destaque, tanto para os letrados como para os
iletrados. Com o surgimento da arte gótica no século XIII, as imagens
tomaram conta das janelas, colunas, paredes, ou seja, a iconografia do
sagrado se expandiu para a madeira, pedra e vitrais.
Por volta do século XIV, as imagens saíram das paredes para o papel
com pouco texto e muita imagem, o que se popularizou de imediato por
toda a Idade Média, tornando-se a bíblia dos pobres, embora a escrita e a
leitura fossem um privilégio de sábios e poderosos. Entretanto, o folheto e
livros com muita imagem e poucas palavras já era um grande avanço.
É bem verdade que a iconografia garantiu o imaginário do povo à
feitura das imagens para a permanência do sagrado na fé meramente visual,
projetando uma íntima relação de proximidade entre o fiel e o Santo.
A representatividade da imagem na festa religiosa garante o culto
aos santos, como foco fortalecedor do catolicismo na prática da fé, desde
o início dos séculos e tem continuado até os dias atuais. É fato que as
canonizações continuam, muito embora o processo de santificação se
limite ao controle do Vaticano, em Roma.
3.1. A cultura religiosa e a santidade
Na cultura religiosa, a dimensão da santidade é um aspecto difuso
e multifacetado que vem adquirindo forma no decorrer do tempo. Ser
santo, no início dos primeiros cristãos, era adotar regra do martírio ou ter
assumido a causa do rei confesso.
Em meados do século III, o termo “santidade” passou a ser
encarado de outra forma, porque as perseguições não mais aconteciam.
A santidade se voltou para os mosteiros e posteriormente para o clero,
por serem representantes e intermediários entre o divino e o homem, além
de portadores da concepção de sagrado. O título de Santo era acessível e
automático para os sacerdotes.
Já no século XI, somente o papa teria direito de santificar ou canonizar
alguém como Santo que merecesse ser cultuado como Santo. A questão
de Santo passava por uma formalização institucional, regido pelo direito
canônico (PETRUSKI, 2005, p. 74).
A imagem só tem valor significativo e estético quando a consciência
mítica se rompe, surgindo um modo privado reconhecido na tradição, na
arte, o que ocorre nos oratórios apresentados no período festivo.
No Brasil, no século XVI, as ritualizações ou as festas devocionais
vêm desde os primeiros anos de colonização. A função das festas religiosas
52 Artigos
teve um papel fundamental na mistura entre grupos sociais e matrizes
religiosas. Apesar das mudanças estruturais, a devoção e a promessa ao
Santo, inseridas na festa do padroeiro e milagreiro, ainda hoje é uma
evidência e motivo para festejar.
3.2. O perdurar da religiosidade popular em nossos dias
Podemos afirmar que o rito no santuário está implícito nas expressões
de religiosidade popular, ou seja, no catolicismo dos santos ainda hoje.
As expressões religiosas populares se inseriram no catolicismo
universal, frente aos símbolos, às crenças, aos mitos e aos ritos do espaço
local que resistiu ao poder ortodoxo, mas se mantendo na tradição oral.
O poder atrativo dos santuários diz respeito à diversidade do campo
religioso brasileiro, especialmente no catolicismo dos santos, constituído
por romeiros, moradores e autoridades religiosas, formando hierofanias
diversas. Estudar a procissão como parte da festa do Santo padroeiro do
lugar vai de encontro à tradição e contrapondo-se à modernidade.
O que ocorre são dois universos fechados, confrontando com a
experiência religiosa dos devotos, não diminuindo a prática da promessa,
da procissão e da devoção ao Santo protetor nos últimos anos.
O crescimento da festa permanece até os dias atuais, o que antes
se constatava com a presença de romeiros vindos da zona rural. Hoje,
grande parte dos romeiros é de origem urbana. Talvez a festa e a procissão
tenham adquirido um novo perfil de turismo religioso, em que prevalece a
curiosidade do evento religioso sem ser potencialmente institucional.
As festas religiosas são manifestações que expressam a verdadeira
religiosidade no grande mosaico religioso brasileiro, representadas pelos
gestos, palavras, atos, na busca do encontro com o sagrado, alicerçado
pelo mito, rito e o símbolo. Cultos aos santos, missas, ladainhas, novenas
e procissões são práticas celebrativas que estabelecem uma relação de
proximidade entre o romeiro e o Transcendente.
As festas acontecem nos espaços sagrados, agregando pessoas de
diferentes cores, faixa etária e classe social, promovendo um espetáculo
de luz, cores e sons. O momento religioso apresenta-se com a função de
socializar e valorizar os quesitos história e cultura.
O encantamento dos romeiros se dá pelas velas acesas, fogos de
artifício, Santos, vestimentas, ornamentos suntuosos a se aplicar na festa,
são as dificuldades cotidianas esquecidas, vivendo o “novo” durante vários
dias de festa.
Artigos 53
Na história das civilizações, a festa tem sido o viés principal de todos
os povos e religiões, levando em conta o espaço e o tempo sagrado como
referência. Os textos sagrados cristãos podem constatar inúmeras festas,
tanto no Antigo como no Novo Testamento.
Dessa forma, o espaço e o tempo sagrados coincidem com a festa, ou
seja, a ritualização destinada a cada Santo na data comemorativa.
No Brasil, o catolicismo marcou, de modo incisivo, a figura dos santos
como expressão de religiosidade, comprovada nos nomes das cidades,
ruas, estabelecimentos comerciais, empresas, nome de pessoas, além dos
feriados atinentes aos Santos protetores e padroeiros das cidades.
Por uma questão histórica e cultural, os poderes político e econômico
estão direta ou indiretamente ligados às festas religiosas, embora, de fato,
o poder final termine com a instituição religiosa.
O poder político apoia as festas religiosas, legitimando o poder
teocrático, fazendo-se presente nas novenas, missas, procissões, entre
outras práticas religiosas. Tudo gira em torno da festa do padroeiro. Desde
o período colonial que o povo e a política se uniam nas procissões num
certo nivelamento social aparente. Hoje, a presença dos políticos é prática
obrigatória nas festas.
No templo dedicado ao Santo protetor, os ritmos diversos são motivos
de atrativos para o povo no entorno da Catedral, o que podemos denominar
de parte profana, entretanto, os momentos sagrados acontecem no interior
do templo, segundo opinião dos dirigentes religiosos.
Para os romeiros, os momentos profanos fazem parte do sagrado,
porque proporcionam a confraternização entre pessoas de diversas origens
sociais. Muitas expressões de religiosidade fogem ao controle do clero.
O santuário é um espaço urbano de amplas zonas rurais e por
essa razão, ainda se preserva a identidade cultural, ou seja, a memória
de algumas comunidades que defendem a tradição, apesar das rupturas
culturais promovidas pela mídia e o bombardeamento de informações.
Considerações finais
No decorrer deste artigo, algumas questões pontuais foram-se
estabelecendo, o que levou à reflexão sobre a festa do povo e suas expressões
de religiosidade a partir dos aspectos históricos, culturais e sociais.
A festa é uma oportunidade única de se criarem possibilidades, gerando
manifestações nos seios cultural e religioso: na linguagem expressiva; na
vivência de valores de solidariedade, articulando a vida do povo em torno
dos símbolos, mitos e ritos.
54 Artigos
O lúdico se manifesta nos valores, criando utopias, sintetizando
vitórias e expressando o ethos de um povo, mesmo sendo uma sociedade
globalizada, ou seja, a cultura nivelada de modo universalizado, trazendo
em seu bojo animação agregada ao sentimento religioso, entranhado no ser
humano.
Ao terminar este artigo, sentimo-nos como se fôssemos romeiros,
relatando uma estória conhecida por todos e repetida várias vezes, de
pessoa para pessoa; histórias contadas com verdadeira significância
de algo alcançado com sucesso, o que podemos chamar com certeza de
“expressões de religiosidade” de um povo.
A secularização tem ameaçado a tradição, ou seja, a religiosidade e
o hábito igrejeiro de frequentar os templos têm entrado em crise, sendo
substituído pelos espaços virtuais. A multimídia tem desafiado os templos,
praças e ruas, mas as festas religiosas ainda sobrevivem no século XXI,
embora enfrente desgastes gradativos.
O colorido das luzes, o calor humano, o lúdico e o miraculoso, talvez
corroborem para a permanência das festas religiosas. Por outro lado,
a curiosidade é outro aspecto a ser considerado a exemplo do turismo
religioso, cujas tradições podem adquirir uma nova configuração frente à
secularização acentuada das sociedades modernas.
O homem moderno talvez precise de novos caminhos para se
reencontrar com o sagrado, numa prática religiosa virtual na busca de
valores a serem rememorados.
A festa religiosa com base na tradição ainda representa a fundação e a
história de um povo ou cidade, estabelecendo elo com os Santos protetores
do espaço social, cultural e religioso, reatualizado pelo mito.
Em pleno século XXI, as festas ou ritualizações se transformam,
passando a se adequar ao novo momento da cultura globalizada.
A nossa proposta é tornar este estudo um trilhar de reflexões para
futuros estudiosos da área das Ciências da Religião e áreas afins que
desejem compreender o contexto, no qual está inserida a religiosidade na
festa religiosa, podendo ser motivo de estudo nas escolas, nas ONGs ou
espaços que tenham como finalidade formar cidadãos comprometidos com
a identidade cultural e social.
Este artigo sugere, a princípio, tornar-se uma fonte de reflexão
para interessados em investigar o sentido da festa, a partir da identidade
histórica local, tomando como base: os diferentes costumes, tradições e
representações simbólicas.
A religiosidade como sentimento religioso assistemático, fora do
Artigos 55
texto e do contexto, pode corroborar para as transformações sociais de
uma região, cidade ou comunidade. Dessa maneira, buscando a verdadeira
origem da religião e da religiosidade, estamos ao mesmo tempo procurando
a nossa origem humana.
Referências
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que “não é sério”. Tese de doutorado em Antropologia. Departamento de Antropologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. USP (SP), 2002, 403 p.
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_________. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo: Paulus, 2004.
56 Artigos
Artigos
SUBJETIVIDADE MOSAICA
Gilberto Benedito de Oliveira49
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo desenhar um panorama
por onde as subjetividades ganham suas formas ímpares e por onde
sempre se atualizam. Partindo da compreensão de que não somos
e nem chegamos a ser o que desejamos sem a relação com o outro,
defendemos que o sujeito só pode afirmar-se enquanto ser de relação
que marca e que se deixa marcar no contato com aquele que lhe é
alteridade. Como marcamos e somos marcados nas nossas relações
interpessoais, defendemos, ao longo deste trabalho, que toda
subjetividade é composta de subjetividades outras, como que formando
uma espécie de mosaico, o que dá dinamicidade, brilho e possibilidade
de relações não estáticas, as quais reelaboram o mosaico existencial do
sujeito em sua dinâmica existencial.
Palavras-Chave:Subjetividade, Outro, Sujeição, Liberdade, Escolha,
Insurreição.
Abstract: The purpose of this study is draw a picture of where the
subjectivities earn their odd ways and where up date. Starting from
the understanding that we are not and we wouldn’t be what we want
without the relationship with the other, we believe that the subject can
only be asserted whill be of relation that brand and that leaves mark
in contact with him that isalterity. As we mark and we are marked in
our interpersonal relationships, we defend, in the course of this work,
that subjectivity is composed of other subjectivities, as forming a
sort of mosaic, which gives dynamics, brightness and possibility of
relations not static, which redefined the mosaic of existential subject in
its existential dynamic.
Key Words: Subjectivity, Another, Entry, Freedom, Choice,
Insurrection.
Graduado em Filosofia pelo INSAF – Recife-PE; Mestre em Filosofia pela UFRN;
Professor de Filosofia, Coordenador da CPA e Coordenador de Pesquisa e Extensão da
Faculdade Dom Heitor Sales – FAHS – Natal-RN. E-mail: [email protected]
49
Artigos 57
É comum ao homem buscar desde sua mais tenra idade modelos de
identificação ou de não identificação que o caracterize a um meio, a uma
comunidade ou, de outro modo, que o distinga dessa comunidade ou meio
em que vive. Certo é que desde que o homem desperta para a sua existência
refletida ele não deixa de produzir para si mesmo, seja em conformidade
com moldes já encontrados no meio em que vive ou rejeitando-os,
modelos de ser e viver que marcam sua existência e desenham traços
peculiares que configuram um solo de domínio “aparentemente” só seu,
um domínio de responsabilidades, compromissos e atualizações que se
chama subjetividade. Um espaço que se diz tão seu, tão individual ao
sujeito que a possui,“despossuindo”50, que chega-se a afirmar e idealizar
na contemporaneidade modos de subjetividade invioláveis, intocáveis e
puramente pessoais.
O eu, em sua mais profunda raiz existencial é convocado por todos
os lugares e instâncias, pessoais e sociais, a constituir-se, a tomar forma
dentro de domínios estabelecidos e por estabelecer-se. Há uma exigência
de que o sujeito demonstre para si e para toda uma coletividade um rosto
que lhe é peculiar a si e aos outros; há uma necessidade de enxergar-se
e reconhecer-se, desenxergando-se e desconhecendo-se51; há o desejo
imperioso que parte de si, ou do outro, de mostrar-se, de assumir um lugar,
de ter um rosto só seu. Estas são necessidades, dentre tantas, impostas pelo
sujeito a si mesmo ou por outros, que fazem falar e ver no domínio público
e pessoal uma subjetividade ímpar ou homogênea.
O eu não se torna eu sem que esteja atrelado a esta concepção de
eu a necessidade de estar ou permanecer em um grupo ou instituição,
sem que esteja em relação. O outro, por meio do qual o sujeito torna-se
quem é, tem papel essencial na constituição interna do solo onde o sujeito
constrói formas de ser. Não há produção de subjetividade que parta do
isolamento. Sem a presença do outro o sujeito é incapaz de produzir para
si subjetividades. A figura do outro é fundamental para o aparecimento
Usamos aqui este termo para nos referirmos a ilusão que o sujeito tem frente a si mesmo
de que ele totalmente se possui. Nossa crença é de que o sujeito não possui a totalidade
dos domínios subjetivos que o compõe e seu controle. Há espaços e formas de ser e
estar no mundo que são traços do “outro”: o outro habita e integra aquilo a que se chama
subjetividade pessoal.
50
Estas duas palavras, como contraposição as que as precederam, demonstram que quando
o sujeito pensa estar tendo conhecimento e formação de si está, na verdade e na maioria das
vezes, internalizando em si um outro em sua totalidade. Esta internalização total do outro
faz com que em momento outro, onde o sujeito reflexivo pensa sua existência, torne-se
estranhamento de si.
51
58 Artigos
da subjetividade individual sempre atualizada, graças ao caráter sempre
novo do encontro que outro faz despertar. O outro é quem desperta no eu a
necessidade de uma (não) identificação, de uma identidade no mundo; ele
é – o outro – via de acesso a mim mesmo e presença que atualiza minha
relação comigo e com ele, o outro.
Eu-Outro é relação que garante a sobrevivência da subjetividade e
da alteridade. Mas toda relação acontece com múltiplas possibilidades
de nascimentos e mortes. O encontro do eu com o outro não acontece na
calmaria de águas paradas que se empoçam após um temporal. A relação
com o outro, por um lado, tem aspecto de calmaria e assentamento subjetivo
de si, por si e por meio do outro; mas devemos afirmar, por outro lado, que a
relação do eu com o outro se dá, quando o sujeito busca uma vida autêntica
e uma subjetividade modelada por si, por meio do conflito. O conflito faz
nascer modos ímpares de ser e estar para si e para o mundo e faz, ao mesmo
tempo, morrer as possibilidades do eu ser uma total extensão do outro.
Diante disso, digamos que a relação do eu com o outro não encontra
um ponto calmo e desinteressado. Há um desejo do eu em encontrar-se
com o outro para firmar-se enquanto individualidade, mas há, por outro
lado, o desejo do outro em tornar o eu do outro em uma extensão daquilo
que ele é ou que nunca foi. Nessa relação que se estabelece entre eu e ou
outro, relação de conflito, um ganha e outro perde. O preço da relação euoutro é o preço de poder possuir-me a mim mesmo ou perder-me de mim
mesmo frente ao desejo, imposição e interesse do outro.
Há conflitos e interesses na constituição subjetiva de si. Algumas
vezes abre-se mão daquilo que se é, ou pensa-se ser, em nome de interesses
externos e que se afastam daquilo que o próprio sujeito pensa de si ou para
si; outras vezes, para impor-se, o sujeito encontra no conflito o caminho
para assegurar uma subjetividade que não se abre ao encontro do outro.
Seja por um conflito onde o eu saia como vencedor, seja por meio de um
interesse onde o eu abre mão de ser quem é para nele habitar o outro, não
dá para dizer que diante da constituição subjetiva de si o sujeito, como eu
ou como outro, é soberano e autônomo em sua constituição e relação.
[...] penso efetivamente que não há um sujeito soberano,
fundador, uma forma universal de sujeito que poderíamos
encontrar em todos os lugares. Sou muito cético e hostil em
relação a essa concepção de sujeito. Penso pelo contrário
que o sujeito se constitui através da prática de sujeição ou,
de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação,
Artigos 59
de liberdade, como na Antiguidade – a partir, obviamente,
de um certo número de regras, de estilos, de convenções
que podemos encontrar no meio cultural. (FOUCAULT,
2006, p. 291)
Vemos com o filósofo que a constituição do sujeito, em aspectos
internos e só seus, passa necessariamente ou pela via da sujeição ou pela
via da autonomia. Assumindo uma das vias o sujeito cria para si e para o
mundo em que vive um rosto, ou melhor, rostos, pois, nem sempre aquilo
que ele demonstra para os outros é aquilo que ele realmente é ou vê em si.
A via da subjetividade sujeitada é atrativa, garante homogeneidade
de comportamento, pensamentos; ela garante a aceitação em grupos,
instituições e enquadra o sujeito em moldes subjetivos pensados,
hierarquizados e que geram interna e externamente o sujeito. A subjetividade
que se dá por via da sujeição é uma subjetividade necessária ao homem
durante parte de sua vida; faz parte do existir humano, mas não deve ser
parte fundamental, ou melhor, essencial, na estrutura básica a partir de
onde o sujeito constrói pontos de partida e de chegada em suas relações
consigo ou com os outros. A sujeição da subjetividade é necessária durante
boa parte da vida, reafirmamos, porque é graças a este dobrar-se e moldarse pelo outro que o sujeito faz parte de uma comunidade de homens, mas
que, no decorrer do tempo deve descobrir-se, o sujeito sujeitado, que ele
não é simples passividade no processo de constituição de si.
A sujeição garante, no início, a entrada do sujeito no mundo social
e institucional. Antes mesmo que a consciência de si desperte, o sujeito
para encontrar o seu lugar no mundo, encontra nas instituições sociais e
nos sujeitos que o precederam um ponto para se firmar, por isso, não dá
para falar de subjetividade pessoal sem que se tenha passado pelo contato
com modelos de subjetividade ditos e aceitáveis em grupos e em pessoas
que representam interesses, desejos, crenças, etc. Digamos que a sujeição
é a porta de entrada para um mundo de subjetividades existentes antes da
faculdade de julgar e escolher do sujeito.
A sujeição, durante a vida do sujeito, é o ponto de chegada e de
partida, no sujeito, de investidas e de concretização, ou não, de modos
de ser e permanecer subjetivos. A sujeição age como esforços externos
e internos para que o eu seja uma extensão, uma continuidade do outro,
ou, por outro lado, uma novidade que resiste, que se insurge. O mundo
que o outro apresenta e no qual o eu quer ingressar é um mundo já
organizado e que as novas subjetividades, os novos sujeitos, tem de se
60 Artigos
adaptar, adequar. A sujeição é, assim, aceitação passiva de modelos
prontos de comportamento que chegam ao sujeito e nele deve fazer todo
um trabalho de homogeneização subjetiva que o faça “igual aos outros”.
Em um sujeito que aceita passivamente o outro como eu, e assim deve ser
no início de sua entrada no mundo social e relacional organizado, modelos
prontos e inquestionáveis de subjetividade são apresentados por meio de
mecanismos externos que transformam o solo subjetivo do sujeito em mera
extensividade da alteridade que se deixa ver: por meio de suas investidas,
por meio de um nivelamento das subjetividades. Neste ponto, após uma
conscientização, por mínima que seja, de que o eu para ser aceito deve
enquadra-se e assemelhar-se a subjetividades já aceitas socialmente, o
eu passa a representar, fielmente, o outro. O ponto de partida de ações
e pensamentos do outro é demarcação de horizonte a partir do qual
o sujeito, em sua subjetividade nascente, pode ser e agir. O sujeito não
parte de uma reflexão de si e por si para dar sentido à sua vida, ele tem de
partir do horizonte do outro para que suas ações, pensamentos e reflexões
sejam aceitos. A sujeição tem por finalidade fazer com que as diferenças
despareçam e a igualdade tenha lugar.52 E isto com o interesse de manter o
outro sempre em um lugar de mesmidade que o distinga como o mesmo,
sempre que perguntado ou que, quando necessário for que fale de si mesmo
naquilo que ele é em sua “singular-extensividade”,53 se mostre sempre
dentro dos padrões da normalidade enclausuradora de ser e aparecer no
mundo.
Mas a sujeição não assume apenas o papel de vilã na história das
subjetividades.54 A sujeição, em um sujeito que transcende a mera
passividade que estiliza sua vida, tem um papel essencial naquilo que o
sujeito é e que pode vir a ser. Parece contraditório que aquilo que pode
levar o sujeito a permanecer naquilo que ele é ou naquilo que o fizeram
ser, possa ser causa de relação ativa consigo e com os outros. Mas para que
Esta tentativa, ou de fato eficiência de investidas em prol da igualdade de subjetividades,
não nos agrada e não a defendemos. Não concordamos e nem tampouco defendemos a
ideia de quem devam existir subjetividades elaboradas a partir de um controle de qualidade
ou de perfeição que seja peculiar e exigida como forma de igualdade entre os sujeitos. A
igualdade que a nós interessa é aquela que admite a pluralidade de subjetividades do sujeito
em relação a ele mesmo ou em relação ao outro.
52
Entenda-se aqui uma singularidade aparente que, na realidade, é apenas extensão do outro.
É um lugar aparentemente só seu, mas que na realidade é uma extensão não territorialmente
visível que é abrigada por um outro e que tem o poder de determinar em domínio temporal
e existencial como o sujeito deve ser e estar no mundo.
53
Por razões que deixaremos claro mais adiante, não usamos aqui a palavra subjetividade,
mas, ao contrário, subjetividades.
54
Artigos 61
a sujeição passe de passividade para ação ativa é necessário que o sujeito
desenvolva em si um desejo de inconformidade, de insatisfação, de querer
ser o que nunca foi, um desejo de liberdade, como assim nos falou Foucault
na citação acima. Mas não qualquer liberdade ou uma liberdade entendida
como irresponsabilidade ou descomprometimento consigo e com o outro.
A liberdade que acreditamos ser essencial é a de constituição do sujeito por
ele mesmo, sem que caia na libertinagem ou no empecilho para o outro de
ser ele mesmo. A liberdade entendida deste modo, como constituição, não
é algo pronto ou acabado, mas algo que se (re)faz mediante o contato com
o outro.
Para que o sujeito deseje a liberdade de constituir-se como ele
imagina, e até da forma que ele nunca foi ou imaginou, é necessário que
ele esteja em contato com toda uma cultura com a qual e pela qual ele
tenha relações diretas ou indiretas. Sem este tipo de relação é impossível
falar de constituição de si, falar de práticas de liberdade que transformem
o sujeito. Um sujeito não-relacional é um sujeito incapaz de conhecer a
liberdade, portanto, para que a liberdade de constituir-se de fato aconteça,
faz-se necessário que o outro, sujeitando ou não o eu, seja integrante das
práticas que modelam subjetividades.
A liberdade aparece quando o sujeito, questionando a sua existência
e aquilo que ele é ou tornou-se, autocrítica sua existência e sua relação
consigo e com o mundo. Ela se insere na dinâmica ativa da vida e da
subjetividade; ela aceita ser tocada por liberdades outras que não a sua,
mas, em um segundo momento, ela reclama uma forma única de aparecer e
agir no sujeito. Por ser a liberdade autocrítica, nós a enquadramos também
no domínio da revolta, da insurreição.
As insurreições pertencem à história. Mas, de certa forma,
lhe escapam. O movimento com que um só homem, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: “Não obedeço mais”,
e joga na cara de um poder que ele considera injusto o risco
de sua vida – esse movimento me parece irredutível... E porque o homem que se rebela é em definitivo sem explicação,
é preciso um dilaceramento que interrompa o fio da história
e suas longas cadeias de razões, para que um homem possa,
“realmente”, preferir o risco da morte à certeza de ter de obedecer. (Ibidem, p. 77)
Este movimento de colocar-se contrário a modos de produção de
subjetividade homogêneo ou de até mesmo colocar-se contra os modos de
62 Artigos
subjetivação elaborados por si mesmo é a coragem e o desafio de estilizar
a existência, assumindo riscos que podem fazer com que ao invés de
encontrar-se, o sujeito perca-se de si mesmo. Ousadia que rompe com um
contínuo constituidor de si e que inaugura um novo modo de existência
configurado pela liberdade que obedece não mais e nem primeiramente
ao outro, mas a um si mesmo que ée passa a ser habitado principal e
primeiramente por uma individualidade caracterizada pela luta e pelo
esforço contínuo de estilizar-se no e pelo confronto.
A criação de subjetividades não se dá na calmaria de um rio que
juntou suas águas por entre as pedras e que passa a viver na tranquilidade e
proteção das rochas. As subjetividades são da ordem da impermanência, do
tocar e do deixar-se tocar, está situada nos limites dos caminhos existenciais
que se entrecruzam no decorrer da existência. Por estar entre caminhos
ela é transitada e transita por subjetividades outras e com as quais elas
mantém as mais diversas relações, principalmente relações de insurreições
que oferecem ao si mesmo e ao outro a oportunidade de atualizar-se. No
cruzamento de caminhos subjetivos vão-se desenhando possibilidades
de liberdades que fogem às investidas de manter sob um mesmo título as
heterogêneas subjetividades. A liberdade é, portanto, da ordem da luta, do
confronto, da insurreição.
Para que cumpra a missão de estilizar o sujeito, a liberdade necessita
que o próprio sujeito esteja em relação com o outro, esteja inserido em meio
a comunidade dos homens e suas organizações. A liberdade não aparece e
nem se efetiva no isolamento. E por requerer a presença e inserção na
sociedade, ela não é conquistada ou reivindicada facilmente. Como há um
desejo no homem de que o outro use de sua liberdade para fazer cumprir
o que a minha liberdade deseja, parece que, como antes afirmamos, a
liberdade não se enquadra em lugar outro que não seja o da luta, o da
insurreição.
Todas as formas de liberdade adquiridas ou reivindicadas,
todos os direitos adquiridos, mesmo quando se trata das
coisas menos importantes, têm ali sem dúvida um último
ponto de sustentação, mais sólido e mais próximo que os
“direitos naturais”. Se as sociedades se mantêm e vivem,
isto é, se os seus poderes não são “absolutamente absolutos”, é porque por trás de todas as aceitações e coerções,
mais além das ameaças, violências e persuasões, há a possibilidade desse momento em que nada mais se permuta
na vida, em que os poderes nada mais podem e no qual, na
Artigos 63
presença dos patíbulos e das metralhadoras, os homens se
insurgem. (Ibidem, p. 77)
Há sempre um algo além da imposição. Há possibilidades para
pensar-se e constituir-se além das investidas externas de homogeneização
das subjetividades. Basta que o sujeito contemple-se e, contemplando-se,
descubra o ponto em si que pode escapar ao olho do poder, ou melhor, o
ponto em si capaz de fazer da investida do poder externo em uma dobra
que reflita o mesmo poder sendo ativado e distribuído a partir de si mesmo
de forma diferente. O poder que investe na subjetividade não deixa de ser
poder, ao contrário, ele continua sendo poder, mas trabalha agora em favor
do sujeito e de seus interesses. Como vimos com Foucault, os poderes
não são absolutos e nem tampouco encontram-se centralizados em um
único sujeito ou instituição. Desde Foucault vemos que o poder está em
toda parte criando, em cada tempo e sujeito, pontos ora fortes, ora fracos,
de resistência e de domínio. Ninguém tem o poder absoluto, mas todos o
desejam. No desejo de possuir o poder, seja de si mesmo, seja do outro,
os sujeitos entram em guerra, talvez até uma guerra hobbesiana de todos
contra todos. E nesta guerra, resistências, estratégias e investidas sem fim
pelo poder ganham lugar e os mais fortes, os que tem a melhor estratégia
de guerra, ganham o controle momentâneo.
Na guerra nem todos lutam com as mesmas armas e com as mesmas
oportunidades. Daí o desejo de muitos, desde cedo, de colocar-se do lado
do mais forte, daquele que tem o melhor armamento, o melhor discurso.
A sujeição imposta ou o deixar sujeitar-se pelo outro parece ser o único
caminho possível diante daquele que “tem o poder”. Os sujeitados parecem
ver apenas uma face do poder, aquela que está com o que impõe, limita,
dita. O poder parece ser – aos sujeitados – algo estranho e indigno de ser
possuído pelos “pobrezinhos” que desde sempre se encontram do lado
daqueles incapacitados e que tem como única tarefa conformar-se ao que
já está estruturalmente organizado.
Na organização estrutural e institucional em que o sujeito se insere
passivamente já há um lugar que lhe é próprio; já há uma posição que lhe
garante a aceitação no campo social; já há um discurso pronto e que deve
a todo custo ser repetido e vivido; já há uma forma de pensar que dispensa
indagações além do sempre e mesmo pensado. Por mostrar-se anterior ao
surgimento do sujeito, as instituições aparecem como mães que precisam
gerar e instruir seus filhos dentro da dinâmica do mesmo, do já aceito. A
postura do sujeito frente a isto é de, inicialmente, passividade. Ele necessita
64 Artigos
aprender para criticar, criticar para intensamente poder viver. Mas a “mãeinstituição” não cria seus filhos para que eles se rebelem contra ela mesma
futuramente, por isso, desde sua geração, ela instrui seus filhos a jamais
se insurgir contra aquela que sempre o gerou e nutriu com o “melhor bem
possível”, instrui que a crítica é para filhos ingratos e desobedientes que
não reconhecem todo esforço da mãe em (des)educar seus filhos.
Coagidos, ensinados e manipulados a não se colocar contra a
comunidade que os gerou, os sujeitos sentem-se na obrigação de viver em
um estado de menoridade que os faz ser e estarsempre dentro de limites
de fora estabelecidos; sentem-se incapazes de ir além porque pensar e
agir além do que os outros já agiram e pensaram é um desviar-se de um
sonho que sonharam para eles. O que é próprio, dentro deste cenário já
dado, ao sujeito é a sua submissão e agradecimento pelo que lhe fizeram as
instituições em aspectos externos e internos.
Já que tudo está organizado mesmo antes que o sujeito venha à
existência, haveria necessidade de, como vimos na citação anterior, de
o sujeito se insurgir? Qual seria o ganho de revoltar-se? Contra o quê ou
contra quem ele se insurgiria? Como viveria um sujeito que se pôs, até
certa medida, à margem das instituições e do efeito de seu poder? Estas
são questões essenciais e que fazem pensar se vale à pena, como antes
defendemos com Foucault, rebelar-se. Se por meio da crítica ao outro,
via instituições, o sujeito coloca-se contrário ao instituído, rompe com
uma lógica existente, fica a pergunta: O que ganha o sujeito quando
rompe com a ordem, quando cria para si um centro de resistência e
ao mesmo tempo de poder? A resposta quando pensada a curto ou
médio prazo parece ser negativa. O sujeito, em sua forma precipitada
e limitada de ver, ganhará apenas inimizades, solidão e uma existência
marcada pelo árduo ofício de constituir-se pelo confronto e pela crítica.
Realidade que o leva a (re)pensar mais nas consequências do insurgir-se
do que em seus benefícios. Seja porque o insurgir-se o lançaria – sujeito
– na solidão existencial, seja porque diante dos poderes que desde
muito cedo modelam subjetividades homogêneas qualquer tentativa de
descentralizá-lo parece ser impossível. Daí, mais uma vez perguntar: é
inútil se insurgir?
Mas não concordo com aquele que dissesse: “Inútil se insurgir, sempre será mesma coisa”. Não se impõe a lei a quem arrisca sua vida diante de um poder. Há ou não motivo para se
revoltar? Deixemos aberta a questão. Insurge-se, é um fato; é
Artigos 65
por isso que a subjetividade (não a dos grandes homens, mas
a de qualquer um) se introduz na história e lhe dá seu alento
(Ibidem, p. 80)
Há uma aparente, e às vezes real, calmaria ou acomodação que coloca
o sujeito sempre na posição de espectador, de ator de histórias que não são
as suas. Posição que não contempla razões reais para insurgir-se. Insurgirse, para pessoas acostumadas às rédeas curtas de um outro, é risco de vida,
é possibilidade de não existir. E aqui abrimos um parêntese para dizer
que o sujeito, quase que de forma geral, não gosta muito do mundo das
possibilidades55, sejam elas positivas ou negativas. E digamos que poucos
são os que assumem a responsabilidade da própria vida e arriscam tudo
para que não lhes escape a única possibilidade de poder ser o que se pensa
e pensar o que se vive. Atitude de poucos e que carrega em si uma série
de responsabilidades, riscos, perigos, etc., mas que não encontraria menos
riscos se aceitasse assumir a subjetividade do outro como sua.
Para onde quer que olhe, o que quer que escolha, o sujeito não foge
à investida do poder. E à questão que colocamos, se vale a pena insurgirse para poder constituir-se, e aos que dizem, como vimos na última
referência feita, que não vale a pena, dizemos que o insurgir-se é um ato de
coragem de assumir-se, assumindo/desprezando o outro e produzindo-se a
cada instante sem moldes prontos e sem modelos definitivos. Uma tarefa
que é uma mistura de loucura e ousadia. Loucura porque o sujeito que
se autoconstitui não sabe qual será o produto de todos os seus esforços;
ousadia em assumir-se frente às investidas de poderes que faz de si um
centro de convergência e de partidas de poderes que se chocam no solo da
interioridade do sujeito, mas que dele não saem sem que o próprio sujeito
reverta em seu próprio favor as investidas de tentar torná-lo extensão de
um outro que não seja ele mesmo.
Insurgir-se, visto de uma ótica assim, da loucura e ousadia, traz mais
problemas que vantagens, pensa o tolo, o preguiçoso. Insurgir-se para quê
se, no final das contas, muitos sentem-se fracos, impotentes e incapazes
frente a um poder forte que sempre se manterá? Fechando aqui a questão
de se vale ou não insurgir-se, diremos com Foucault que esta é uma questão
que fica em aberto. Não é nosso intuito dizer que a existência só faz sentido
A possibilidade não é bem vista por se tratar de um campo não dominado, não conhecido
e que abre condições, as mais diversas, para que o novo, o fora da lei e da norma, surjam.
Como a possibilidade não se encontra dentro de domínios estabelecidos e normatizadores,
ela é causa de estranhamento e de não aceitação, justamente por trazer em si o gérmen do
antes nunca visto, pensado ou vivido.
55
66 Artigos
pelo insurgir-se. Muitos encontram sentido em suas vidas no simples
fato de aceitar a imposição da forma de ser do outro; seguindo normas
e modelos prontos de construir subjetividades. Mas uma consideração a
mais queremos fazer em favor dos que se insurgem. A insurreição é a única
possibilidade de desenhar na história individual ou coletiva, traços de
peculiaridades, de vivência autêntica, de marcar a própria existência com
um tom não da mesmidade, mas da diferença e da transitoriedade daquilo
que se foi, que se é e que será. Insurgir-se ou não é uma questão que cabe
ao próprio sujeito escolher, afinal, ninguém vive sua vida sem deixar de
escolher, tudo na vida é escolha. Porém, escolhendo insurgir-se ou não, não
dá para afirmar que o sujeito pode constituir-se deixando de frequentar o
espaço das relações com o outro.
A escolha de si é, ao mesmo tempo, escolha do outro. Quando se
escolhe um tipo ou outro de vida não dá para dizer que esta escolha se
limita às relações que este sujeito tem consigo mesmo. Escolher-se, antes
de tudo e de todos, é princípio básico de construir o alicerce subjetivo
com bases no próprio sujeito, mas não dá para dizer que o solo onde se
ensaiam subjetividades pode ser ou atualizar-se sem a presença do outro.
Pois como vimos afirmando, o outro é figura central nos processos de
escolha ou rejeição daquilo que o sujeito é e pode chegar a ser. Por essa
razão, a escolha que o sujeito faz ao longo de sua vida não é uma escolha
que tem obrigações e implicações apenas em sua vida, mas na vida do
outro. O outro, retomamos aqui, é razão de existência do sujeito, portanto,
escolher a si é escolher o outro como coextensividade necessária daquilo
que é o sujeito. Coextensividade do outro no eu que pode ser entendida, na
acolhida do outro pelo eu, como passividade ou atividade que resultam em
modos de ser, os mais diversos possíveis.
Ninguém escapa à escolha dentro do processo de constituição de
quem se é. Não dá para dizer que dentro dos domínios existenciais o eu
possa deixar de escolher um ou outro modo de vida a não ser o da escolha.
A vida é escolha. Escolha que não pode, em momento algum da existência
do sujeito, extinguir-se. A cotidianidade e temporalidade do sujeito se faz
mediante a dinâmica da escolha. Algumas escolhas podem ser evitadas,
adiadas, etc., mas não dá para ser o que se é ou será deixando de frequentar
a convivência com o outro. Em outras palavras, a escolha do outro é
inevitável. Escolha do outro, bem entendido, não é escolher o outro antes
do sujeito mesmo, mas o outro deve ser, dentro de uma escala daquilo que
faz o sujeito ser quem ele é, um fator essencial e que não se deve nunca
colocá-lo como algo adiável ou desnecessário. Por isso que a escolha de
Artigos 67
si é escolha do outro, mesmo que a este outro o eu se insurja, critique ou
passivamente o aceite.
A escolha torna-se, assim, relação, ou melhor, relações. Relações que
não são as mesmas nem em seu aparecimento, nem nos autores e atores que
delas fazem parte. As relações são do tipo da singularidade, da unicidade.
Tem-se relações dos tipos mais diversos consigo, com instituições, com o
outro. Relações que muitas vezes toca a superfície do que se é de forma
semelhante a uma garoa que cai sem muito alarde, mas relações que
também, muitas vezes, chagam como uma forte tempestade a deslocar as
estruturas do que se é, do que se pensa que possui. Os efeitos das relações,
seja consigo ou com o outro tem, além de seu caráter de singularidade,
diversidade e imprevisibilidade. E por serem imprevisíveis causam
espanto, temor, insegurança. Mas também causam beleza, transitoriedade
e enche a vida de tons e cores que tiram o sujeito da conformidade que
muitas vezes o aprisiona em um desejo de ser o mesmo, imune ao tempo e
aos seus efeitos.
As relações marcam e são marcadas por diversos modos de ser.
Na odisseia de cada existência humana o sujeito se depara com coisas e
sujeitos que lhes são exteriores e com os quais ele mantém relações ao
longo da vida. Por não acreditarmos que sujeito algum é imune aos efeitos
do tempo e suas consequências, sustentamos que ele – o sujeito – marca e
deixa-se marcar por existências outras com as quais ele escolhe (con)viver.
Ninguém é o mesmo ou sai o mesmo quando de um encontro com o outro.
Há um perder-se ou encontrar-se nas relações que faz com que o sujeito,
pelo menos, (re)pense sua existência. As relações, por mais semelhantes
que possam parecer ser em seu aparecimento no tempo, espaço e sujeitos
envolvidos, são da ordem do (des)locar-se, isto é, ao mesmo tempo em
que elas fazem mudar de lugar o sujeito em relação a si e ao outro, elas
fazem com que o sujeito coloque-se em lugares outros e relações outras.
As relações podem ser entendidas, assim, como um constante perder-se e
encontrar-se.
Uma pergunta pode vir a surgir diante da afirmação que por meio
das relações o sujeito perde-se e encontra-se: nessas perdas e encontros,
o que garantiria ao sujeito o traço que é característico à sua existência?
Ou de outra forma: De que forma o sujeito se reconheceria, e os outros o
reconheceriam, se ele está sempre em uma transitoriedade naquilo que é e
aparenta aos outros ser? Certamente existiriam, e existem traços subjetivos
que formam um solo mais ou menos fixo56 no e pelo qual o sujeito constitui
56
Este solo mais ou menos fixo não representa aqui a defesa de uma estrutura subjetiva que
68 Artigos
modos de ser e de relacionar-se característicos da versatilidade que lhe é
própria. Por isso, antes de perguntarmos da continuidade que garante uma
mesmidade ao sujeito, deveríamos perguntar das condições que fazem com
que ele queira, ao longo de sua existência, ser ou ensaiar ser aquilo que ele
nunca foi. E ao desejo de espíritos que teimam em identificar, classificar
identidades, esta postura de não encontrar a mesma face no mesmo
sujeito parece ser algo que lhes faz perder o prumo, perder, por que não, a
dominação sobre o outro. A tarefa de olhar o outro sob um ponto de vista
da estranheza, uma estranheza que diz da não obrigatoriedade do sujeito
em ser aquilo que não mais o satisfaz, aparece como necessidade de ver as
relações como contínua descoberta.
Tirar a coberta é abrir. O revelar-se das coisas implica, um
modo de abertura. É na relação que os entes não dotados do
modo de ser da presença se descobrem. Os entes descobertos
mostram sobretudo o modo de ser da própria presença: a presença é descobridora, ou seja, realiza-se em descobrindo57.
Esta contínua descoberta é um não prever relações, é um abrirse à novidade e ao mesmo tempo é um exercício de deixar o outro
apresentar-se em sua novidade, de dizer como ele quer aparecer. Mas a
“sagrada tentação” de querer ter o conhecimento do bem e do mal, do
que foi e do que é composto o sujeito em sua singularidade, faz com que
a descoberta seja vista apenas como confirmação ou não daquilo que eu
previamente imaginei do outro. A imagem na qual enclausuramos o outro
nos possibilita, antes mesmo da presença descobridora da qual acima nos
falou Heidegger, (des)encontros que partem de preconcepções do outro
que tem de ser uma afirmação do que pensamos e não do modo como o
sujeito quer aparecer e dar-se à relação. Em outras palavras, perdemos, em
nossos encontros relacionais, a oportunidade de ver o outro e a nós mesmos
como uma novidade a ser descobertadescobrindo; perdemos a capacidade
de ver nossas relações como uma abertura que vai mostrando e ocultando
singularidades de nós e de quem conosco se relaciona; perdemos a beleza
de (des)cobrir, isto é, parafraseando Heidegger, tirar a coberta e ao mesmo
apareça sempre a mesma para o sujeito ou para quem o veja. Este solo mais ou menos sólido
garante ao sujeito um rosto provisório, mas nunca um rosto definitivo.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução revisada e apresentação de Marcia Sá
Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 2º ed. Petrópolis: Vozes;
Bragança Paulista: Editora Universidade São Francisco, 2007, p. 570. (Coleção Pensamento
Humano)
57
Artigos 69
tempo pô-la, ver o sujeito como já conhecido e ao mesmo tempo como
tendo algo sempre novo a revelar, a descobrir [...].
Este itinerário que leva a (des)cobrir (des)cobrindo-se na relação com
o outro faz-nos chegar, provisoriamente, a um ponto de reflexão final, ponto
este já delineado no decorrer da exposição de que até aqui nos preocupamos
em fazer: somos, no decorrer de nossa existência, permeados, em nossa
subjetividade e objetividade, de subjetividades outras que nos tocam, nos
falam, nos desenham e principalmente nos atualizam. Somos como que um
mosaico que vai recebendo pedaços de subjetividades outras ao longo do
tempo. O esboço existencial é sempre nosso, mas o colorido, as diversas
formas que podem ganhar o mosaico é sempre (in)determinado pelo tempo
e pelas relações que mantemos. Somos, a cada descoberta, uma pequena
peça na constituição do outro, e temos do outro uma pequena parcela.
Não existe um eu sem um outro. Não existe uma constituição de
mim sem uma participação do outro. É uma relação de oferecer e receber
que se dá mediante a descoberta do aparentemente mesmo com o qual
nos relacionamos. Nesta oferta e doação, trazemos em nós marcas do
outro e deixamos no outro nossas marcas. E é nesta relação que vemos a
colocação e retirada de tesselas, isto é, pequenas pedras preciosas humanas,
que preenchem e estilizam a existência do sujeito. Essas tesselas não se
fixam de forma definitiva no solo da subjetividade, mas são retiradas ou
recolocadas mediante a dinamicidade da vida crítica do sujeito [...].
A subjetividade mosaica é uma arte decorativa pela qual, durante toda
a sua existência, o sujeito vai estilizando, recriando suas relações consigo
e com o outro. Ela é o reconhecimento de que não há constituição de si
que escape à relação e o efeito do outro. Por fim, ela garante a necessidade
do encontro, da relação, da reflexão, da crítica, da construção e da
desconstrução. É graças a essas necessidades que não dá para dizer que a
subjetividade mosaica repousa na mesmidade de cores existenciais, mas é
ela quem confere o brilho sempre novo que renova e faz surgir sujeitos que
(re)pensam e (re)criam seus modos de ser no mundo [...].
Uma conclusão inconclusa... A subjetividade mosaica, que tem sua
origem nas entidades mitológicas Musas e que tinham a capacidade de
inspirar a criação artística e científica, tem por finalidade oferecer ao
sujeito, sob inspiração delas, as Musas, a capacidade de fazer de sua vida
uma criação artística e, assim como elas, cantar seu presente, passado e
futuro apresentados em sua atualidade, na atualidade do sujeito [...].
70 Artigos
Referências
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Org. e seleção de textos Manoel Barros
da Motta; trad. Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006. (Ditos e escritos; V)
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução revisada e apresentação de Marcia Sá
Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 2º ed. Petrópolis: Vozes;
Bragança Paulista: Editora Universidade São Francisco, 2007. (Coleção Pensamento
Humano)
Artigos 71
Artigos
A CRISTOLOGIA PRIMITIVA E O ESTRITO
MONOTEÍSMO JUDAICO DO SEGUNDO
TEMPLO: REPENSANDO A IDENTIDADE
DIVINA DE JESUS EM RELAÇÃO AO PANO
DE FUNDO CULTURAL DA ÉPOCA.
Thiago dos Anjos Noleto Barros58
[email protected]
Resumo: O presente artigo objetiva discutir e elucidar as principais
conclusões da pesquisa histórica objetiva e da erudição acadêmica
neotestamentária acerca da elevada Cristologia Primitiva, edificando,
a partir de sólidas informações, um caso positivo em favorecimento da
inteligibilidade da identidade divina de Cristo esposada pelos primeiros
cristãos, não obstante, o fato de que as idiossincrasias culturais
judaicas predisponentes – adquiridas e circundantes – faziam clara
oposição a tal conceito. A metodologia empregada consistiu na análise
de um conjunto relevante da literatura especializada disponível sobre o
assunto, bem como da avaliação exegética de passagens bíblicas e na
investigação de algumas fontes primárias extra-bíblicas, tais como o
acerco literário pós-exílico intertestamental.
Palavras-chave: Cristologia, Monoteísmo, Identidade, Jesus,
Divindade.
Abstract: This article aims to discuss and clarify the key findings of
objective historical research and the new testament scholarship about
Early High Christology, building from solid information, a positive case
in favor of the intelligibility of the divine identity of Christ espoused by
É graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Evangélico do Betel Brasileiro
(STEBB/PB) e bacharel pela Escola Superior de Teologia (EST/RS), graduando em
Filosofia pela Faculdade Dom Heitor Sales (FAHS/RN) e pós-graduando em Teologia do
Novo Testamento e em Docência do Ensino Religioso pela Faculdade Teológica Batista
do Paraná (FTBP/PR). É ministro de confissão religiosa evangélica, pastor ordenado pela
Missão Evangélica Pentecostal do Brasil, e, atualmente, exerce a docência na área teológica
no Centro de Treinamento Teológico Harland Graham (CTTHG/RN).
58
72 Artigos
the early Christians, nevertheless, the fact that the predisposing Jewish
cultural idiosyncrasies - acquired and surrounding - were clearly
opposed to such a concept. The methodology consisted in the analysis
of a relevant set of the available literature on the subject, as well as
the exegetical analysis of biblical passages and in the investigation
of some primary extra-Biblical sources, such as the intertestamental
postexilic literature.
Key-Words: Christology, Monotheism, Identity, Jesus, Divinity.
Introdução
A surpreendente história do Cristianismo é multifacetada. Acessá-la
é bem mais do que folhear um simples álbum de fotografias e rememorar
momentos interessantes que foram emoldurados em uma folha de papel.
É, sobretudo, entender as origens e os precípuos desenvolvimentos de um
movimento sem precedentes que alcançou o mundo e, peremptoriamente,
influenciou o pensamento humano. Nas palavras de Earle E. Cairns em
O Cristianismo Através dos Séculos: Uma história da Igreja Cristã: “O
estudante consciente dos valores apreendidos no estudo da história da
Igreja Cristã tem bons motivos para se interessar por este setor particular
da história humana59” e, com razão, observa: “Podemos compreender
melhor o presente se conhecermos as suas raízes no passado60”.
Sem dúvidas e com certa dose de predileção, um dos tópicos mais
instigantes para o pesquisador do movimento cristão é a “cristologia”. Desde
os mais remotos contornos desta doutrina até as mais recentes conclusões
que dispomos, não se pode subtrair seu valor para o entendimento do
Cristianismo histórico. Não é por acaso que em nossos dias um elevado
interesse pela real compreensão do lugar de Cristo na adoração cúltica e,
mormente, no ideário teológico dos primeiros cristãos tem sido fortemente
altercada. Questões sobre a verdadeira identidade de Jesus e o seu papel
na vida da Igreja são tópicos, por demais, discutidos. Não obstante, a
discussão se concentra não na evidência histórica destes dados (ponto, de
certo modo, pacífico entre estudiosos de eixos acadêmicos distintos), mas
no significado desta evidência para os primeiros cristãos.
O presente artigo objetiva discutir e elucidar as principais conclusões
da pesquisa histórica objetiva e da erudição acadêmica neotestamentária
CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos Séculos: Uma história da igreja cristã. São
Paulo: Vida Nova, 1995, p.17.
59
60
Ibid., p. 17
Artigos 73
acerca deste assunto, edificando, a partir de sólidas informações, um
caso positivo em favorecimento da inteligibilidade da identidade divina
de Cristo esposada pelos primeiros cristãos, não obstante, o fato de
que as idiossincrasias culturais judaicas predisponentes – adquiridas e
circundantes – faziam clara oposição a tal conceito.
A cristologia primitiva e a ambiência monoteísta
judaica
Em décadas recentes, o interesse pela compreensão do Monoteísmo
Judaico do Segundo Templo tem sido destacado especialmente em sua
intima relação com entendimento da Cristologia Primitiva. Um excelente
texto que aborda esta interação é o opúsculo God Crucified: Monotheism
and Christology in the New Testament do teólogo britânico e professor
de Novo Testamento no St. Andrews, Richard Bauckham. Este material,
infelizmente ainda não traduzido para o português, foi revolucionário
desde sua primeira apresentação em 1996. O renomado acadêmico Craig
L. Blomberg, professor de Novo Testamento no Denver Seminary, chegou
a declarar, em sua apreciação pessoal, que “este tão curto livro é bem
mais significativo do que seu tamanho poderia sugerir” e acrescenta “eu
não encontro erros nos argumentos de Bauckham61”. Tal pesquisa foi
tão bem acolhida pela erudição acadêmica que Bauckham ampliou seus
estudos sobre o tema e publicou uma obra maior sob o título Jesus and the
God of Israel: God Crucified and Other Studies on the New Testament’s
Christology of Divine Identity, na qual ele inclui o trabalho retrorreferido e
outras reflexões sobre a inclusão de Jesus na exclusiva identidade do Deus
único de Israel, feita pelos primeiros cristãos.
Neste livro, Bauckham observa duas vertentes sobressalentes no
tratamento dispensado ao entendimento do Monoteísmo Judaico do
Segundo Templo e a possibilidade de uma elevada Cristologia aventada
pelos cristãos neste contexto. Embora o autor se coloque em uma terceira
alternativa, seu resumo é importante. Por exemplo, existe uma abordagem
que considera o Monoteísmo Judaico do Segundo Templo sendo de caráter
absolutamente estrito, inviabilizando qualquer associação ou predicação
de divindade a alguma figura que não fosse o Deus Único de Israel. Nesta
visão, qualquer admissão de Jesus como uma figura divina era absurda e
A curta resenha de Craig L. Blomberg sobre God Crucified: Monotheism and
Christology in the New Testament, do Richard Bauckham, está disponível em <http://
www.denverseminary.edu/article/god-crucified-monotheism-and-christology-in-the-newtestament/> Acessado em 22 de agosto de 2014.
61
74 Artigos
destituída de sólido contexto em um ambiente tão estritamente monoteísta.
Em geral, os que propugnam este entendimento afirmam que a crença cristã
da adoração a Cristo como Senhor Soberano é subproduto da incursão do
paganismo e da deletéria tradição religiosa romana. Assim, a crença na
divindade de Jesus se constituiria ou numa abominável idolatria ou numa
prática nonsense em tal cultura62.
Na segunda alternativa temos uma abordagem revisionista do
Monoteísmo Judaico do Segundo Templo, a qual nega absolutamente
àquele implacável caráter estrito. Segundo pensam os teóricos desta
vertente, várias espécies de figuras intermediárias como anjos superiores,
seres humanos exaltados, atributos e funções divinas personificadas (e.g.:
A Sabedoria e a Palavra [Logos]63) eram tomadas como ocupando status
A teologia liberal está seriamente inclinada nesta direção, haja vista, muitos estudiosos
desta área, entenderem que a elevada Cristologia da Igreja Antiga se desenvolveu
lentamente, incorporando paulatinamente traços e modelos do paganismo, chegando a
sua forma final apenas em um contexto helenístico bem posterior. Esta alternativa pode
ser conhecida em From Jewish Prophet to Gentile God e The Deification of Jesus, ambos
do crítico P. Maurice Casey. Larry W. Hurtado, autoridade neste campo, discorda desta
conclusão e acertadamente declara: “(...) a designação de Cristo como ‘Senhor’ parece ter
raízes surpreendentemente primitivas, de fato nos círculos mais primitivos do movimento
cristão, e não deve ser resultado de um processo gradual de assimilação a modelos pagãos
de devoção a várias divindades” (HAWTHORNE, G. F.; MARTINS, R. P.; Dicionário
de Paulo e suas cartas. São Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola. 2008, p. 1150). O mesmo,
alhures, avaliando alguns dos principais indícios históricos disponíveis, asseverou: “Assim,
as próprias cartas de Paulo, o mais antigo conjunto literário que possuímos para acessar o
Cristianismo, provê forte evidencia de que o período no qual procurar o decisivo começo
da veneração de Jesus não é, em absoluto, tardio, mas, extremamente antigo, facilmente
dentro da primeira década do movimento cristão” (HURTADO, Larry W. One God, One
Lord: Early Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism. Edinburgh: T&E Clark
Ltd, 1998, p. 5).
62
Uma das tão bem conhecidas características da linguagem religiosa do Judaísmo antigo é
a personificação. Em geral, esta era uma maneira adequada de falar da natureza e das ações
divinas. Os exemplos da Sabedoria e da Palavra (Logos), aqui sublinhados, são interessantes.
O primeiro caso é bem familiar na linguagem judaica e possui profundas raízes na história
de Israel. Em Provérbios, a Sabedoria é acentuadamente destacada pelo escritor (Pv. 1.2033; 3.13-18; 8.1-9.12). No acervo literário judaico pós-exílico intertestamental, como, por
exemplo, em Siraque (i.e.: Eclesiástico), Baruque e Sabedoria, ela também é fortemente
discutida (Sir. 24.8; Bar. 3.29,30; Sab. 6.12-11.1; nesta última referência, a Sabedoria é
descrita como o “modelador de todas as coisas” [7.22], e como “uma pura emanação da
glória do Todo-Poderoso” [7.25,26]). No segundo exemplo, a Palavra (Logos; Gr. logoV)
igualmente recebe atenção. Filo de Alexandria, uma das principais fontes para a discussão
deste termo, em De Confusione Linguarum apresenta-o como “primeiro nascido” (Gr.
Protogonon – “prwtogonon”), “arcanjo” e “Nome de Deus” (Conf. Ling. 146). No capítulo
denominado Personified Divine Attributes as Divine Agents em One God, One Lord: Early
Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism, Hurtado assevera: “A descrição de
atributos divinos personificados como principais agentes divinos oferece, portanto, um
63
Artigos 75
semi-divino ou uma qualidade divina subordinada. De acordo com esta
posição, o Monoteísmo Judaico não era estrito, mas flexível64. Como se
depreende das palavras do revisionista Larry W. Hurtado, especialista em
Novo Testamento e origens cristãs:
Existe alguma indicação de que a crença Judaica na unidade de Deus estava apta a acomodar, surpreendentemente,
tipos de reverencia e interesse em outras figuras celestiais,
tais como anjos principais e patriarcas exaltados, bem como
atributos ou poderes de Deus personificados. O interesse
no papel destes agentes divinos era, pelo visto, difundido e
provavelmente de alguma importância ao entendimento de
como os antigos cristãos judaicos estavam aptos a acomodarem o Jesus exaltado sem sentirem que tinham violado a
unidade de Deus65
Deste modo, a elevada Cristologia Neotestamentária deve ser
entendida como um desenvolvimento lógico do judaísmo da época que
permitia a emergência de figuras celestiais proeminentes, detentoras de
prerrogativas divinas.
Bauckham, por contraste, discorda de ambas alternativas. Ele
propõe uma terceira opção que admite a permanência do caráter estrito
do Monoteísmo Judaico do Segundo Templo e a real possibilidade de um
elevado desenvolvimento Cristológico neste contexto. Não que os cristãos
adoraram a Jesus como um segundo Deus ou demiurgo, nem que eles o
tomaram como uma exaltada figura intermediária, antes, o entendiam
como incluído na identidade divina do Deus de Israel. No capítulo 6, Paul’s
Christology of Divine Identity, Bauckham esclarece sua opinião:
Em minha visão, a alta Cristologia foi possível dentro de um
contexto monoteísta judaico, não por aplicar a Jesus uma
interessante paralelismo lingüístico para a descrição do Cristo Exaltado no Novo Testamento
(...) A Sabedoria e o Logos, retratados na linguagem da agência divina, em parte formam o
pano de fundo judaico do entendimento cristão primitivo do Jesus Exaltado, mas, também
estabelecem o fundo conceitual mais fundamental do qual a linguagem era tomada. Este
conceito, de que Deus tinha um agente principal no céu acima de todos os outros servos
divinos, serviu aos cristãos primitivos nas suas tentativas para acomodar o Jesus Exaltado
ao lado de Deus ”(HURTADO, 1998, p. 50).
Para uma análise mais detalhada desta perspectiva, veja: One God, One Lord: Early
Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism de Larry W. Hurtado.
64
65
Ibid., p. 8.
76 Artigos
categoria judaica de status intermediário semi-divino, mas,
por identificá-lo diretamente com o Deus Único de Israel,
incluindo Jesus na exclusiva identidade deste Deus Único66
No entender deste especialista, o monoteísmo estrito não é quebrado
desde que Jesus é incluído na identidade divina do Deus Único. Na análise
das ocorrências do Shemá (principal confissão monoteísta das Escrituras
judaicas) no Novo Testamento, ele concluiu:
Assim, dizer que Jesus e o Pai são um é dizer que a exclusiva
identidade divina compreende o relacionamento, no qual, o
Pai é aquele que É apenas em relação ao Filho e vice-versa
(...) pelo relacionamento filial de Jesus com Deus, este redefine a identidade divina como única, na qual, Pai e Filho
estão inseparavelmente unidos, embora diferentes entre si67
Embora Bauckham relute em usar os conceitos de “natureza” ou
“essência” divina68, pois, no seu entender, “o conceito de identidade é mais
apropriado, como a principal categoria para o entendimento do monoteísmo
judaico, que a natureza divina”; não restam dúvidas que nesta declaração
o fundamento teológico da interpenetração mútua ou pericorese69 para a
noção trinitária posterior70 é salvaguardado, porém, a idéia da “exclusiva
BAUCKHAM, Richard. Jesus and the God of Israel: God Crucified and Other Studies on
the New Testament’s Christology of Divine Identity. Grand Rapids: Eerdmans, 2008, p. 182.
66
67
Ibid., p. 106.
Algo que a Patrística, em diálogo com os desdobramentos filosóficos helenísticos, vai
desenvolver com grande erudição e perspicácia.
68
A expressão “pericorese” (Gr. pericoresiV) comporta o entendimento teológico de
que a relação das Pessoas da Santíssima Trindade é tão intima que Elas estão mutuamente
relacionadas em cada ato específico. Assim, por exemplo, na salvação, Pai, Filho e Espírito
Santo estão em poderosa e equânime atuação, não nos permitindo falar da ação exclusiva
de uma só Pessoa, embora seja apropriado falar, em certo sentido, de apenas uma Delas.
Para maiores detalhes sobre esse assunto e a questão da linguagem de “apropriação”, veja
MACGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: Uma introdução à
Teologia Cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 376-380.
69
A idéia da noção trinitária posterior não desabona este dogma no tocante aos primórdios
da igreja. Porém, Larry W. Hurtado em As Origens da Adoração Cristã observa que, no
início, o movimento cristão tinha um “formato binitário de adoração”, onde Deus, o Pai, e
Cristo eram equiparadamente tomados como alvo da devoção primitiva (Cf.: HURTADO,
Larry W. As Origens da Adoração Cristã: O caráter da devoção no ambiente da Igreja
primitiva. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 81-118). Entrementes, isso não é uma negação
da histórica doutrina trinitária defendida pela igreja em suas efemérides, mas, apenas uma
consideração da ênfase encontrada nos primórdios da adoração cristã que são acessíveis a
70
Artigos 77
identidade divina”, quanto à pesquisa histórica das origens cristãs, emerge
com peso teológico elevado.
Assim, a crença cristã na divindade de Cristo não é uma noção
estranha culturalmente, nem, à época, impossível lógica e teologicamente.
Ao inserirem Jesus na exclusiva identidade de Yahweh, os Cristãos estavam
redescobrindo a verdadeira essência da Divindade. Deus É, só e tão somente,
nesta relação. Não obstante a atratividade do revisionismo de Larry W.
Hurtado, que advoga as origens da devoção cristã como o ponto de partida
para a legítima busca do lugar de Cristo no entendimento monoteísta dos
primeiros cristãos, sua adução de que a devoção no cristianismo primevo
é tanto o fator causal como o caráter delineador do monoteísmo cristão
pareceu-nos um pouco estreita e minimalista. A devoção é um exercício de
reconhecimento, assim sendo, para tal, a anterioridade de um fundamento
conceitual teológico é imediatamente pressuposto. Nesta direção, cremos
que a pesquisa de Bauckham é mais lúcida e inovadora, pois, sua ilação
principia por este último aspecto.
Os contornos cristológicos da identidade divina de
jesus no novo testamento
A essa altura, faz-se oportuno considerar como os registros canônicos
da igreja primeva – a saber, o Novo Testamento - considerava a Jesus. De
fato, nestes escritos, abundam informações importantes sobre a figura de
Cristo, contudo, nosso esforço resumiu as principais a partir das seguintes
divisões: 1. As radicais auto-reivindicações de Jesus; 2. As tradições
doutrinárias e cúlticas do Cristianismo nascente.
1. As radicais auto-reivindicações de Jesus.
De modo insipiente, muitos críticos rechaçam a divindade de Jesus
por concluírem que jamais ele disse, explicitamente, que era Deus. Bart
D. Ehrman, considerado um dos mais influentes críticos liberais da
atualidade, comentando os questionamentos religiosos enfrentados por
Johan J. Wettstein, um controvertido pesquisador bíblico do século XVIII,
sobre este assunto, afirmou: “(...) o Novo Testamento raramente chega, se é
que alguma vez chega, a chamar Jesus de Deus71”. Não raro, insuflados por
um orgulho ingênuo, ouvimos muitos igualmente dizerem: “Mostre-me
investigação histórica atualmente.
EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse? : Quem mudou a Bíblia e
por quê. São Paulo: Prestígio, 2006, p. 124.
71
78 Artigos
uma única passagem, em todo o Novo Testamento, em que Jesus diz: ‘Eu
Sou Deus’”. Apesar de realmente Jesus não dizer àquela frase especifica,
Ele, no entanto, fez profundas afirmações radicais sobre si mesmo que,
suprimindo o conceito de divindade, o mínimo que poderia ser dito sobre
elas é verborragia esquizofrênica. Não é por acaso que o erudito James
D. G. Dunn questionou ironicamente: “Não se pode ignorar uma ultima
questão: Será que Jesus era louco?72”. Como não há provas textuais e
nem sequer alguma tradição ancestral que corrobore o pensamento de que
Jesus sofria de algum tipo de distúrbio psicológico, somado ao fato de
que as fontes informativas que dispomos apontam para o contrário, então,
devemos lidar com tais afirmações de maneira seria e objetiva.
Não se tem como fazer um tratamento minucioso e adequado de
todas as reivindicações radicais de Jesus em um artigo como este. No
entanto, muito material tem sido densamente escrito sobre este assunto73.
Selecionamos, todavia, um conjunto de declarações no Evangelho de João –
conhecidas como os ditos do “Eu Sou” - para um tratamento mais detalhado
aqui. A importância destas declarações pode ser depreendida das palavras
de Ladd: “A consciência de Jesus em relação à sua divindade é expressa
nas declarações a respeito de sua unidade com o Pai, já consideradas, mas,
de modo especial, nas afirmações que contêm a frase: ‘Eu Sou’74”.
Os ditos do “Eu Sou” no Quarto Evangelho podem ser descritos
e averiguados de duas maneiras: Uma, aparelhado a um atributo e de
modo absoluto (vide, e.g.: João 6.35,48; 8.12; 10.7,11; 11.25; 14.6;15.1);
Outra, pelo simples uso da expressão “egw eimi”, ou, noutros termos,
pelo uso meramente absoluto (vide, e.g.: João 4.26; 6.20; 8.24,28,58;
13.19; 18.5,6,8). No primeiro conjunto, o termo atributivo anexado ao
dito fornece-nos a aplicação exegética na passagem. Por exemplo, em
João 11.25, quando Cristo diz: “Eu sou a Ressurreição e a Vida”, os
qualificativos visam demonstrar que o dilema da morte – algo dramático na
cena joanina, visto que Lázaro, amigo de Jesus, estava morto, e sua família
estava profundamente entristecida – não era um imbróglio para o Cristo
de Deus. Ele tem domínio e poder sobre as amarras da morte e, como
Yahweh no Antigo Testamento, ele é “o que tira a vida e a dá; faz descer à
72
DUNN, James D.G. Jesus and the Spirit. London: SCM Press, 1975, p.60.
Para listar algumas fontes interessantes sobre o assunto: HURTADO, Larry W. Senhor
Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Paulus/Academia
Cristã, 2012; LADD, George. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003;
WRIGTH, N.T. A Ressurreição do Filho de Deus. São Paulo: Paulus/Academia Cristã,
2013.
73
74
LADD, George. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 369.
Artigos 79
sepultura e faz tornar a subir dela.75”, e, assim, trouxe Lázaro à vida outra
vez, provando, para todos, que seu poder se estende aos mais enigmáticos
domínios da existência. Algo que somente alguém com prerrogativas
divinas pode exercer.
No segundo caso, contudo, o uso do dito é independente e absoluto,
isto é, não há atributivos ligados a ele, e, em geral, sua linguagem é mais
enfática nas construções frasais gregas. Por exemplo, em João 8.58, Jesus
asseverou: “Em verdade, em verdade vos digo: Antes que Abraão existisse,
eu sou76”. Aqui, Ladd observa que “a linguagem é muito mais enfática no
grego do que no português77”, ademais, “esta é a única passagem no Novo
Testamento em que se verifica o contraste entre einai e genesthai78”. A
75
I Sm 2.6 (ARC)
“Amhn amhn legw umin, prin Abraam genesqai egw eimi”. O detalhe mais relevante
dessa passagem consiste no contraste entre os termos “genesqai” e “eimi”. Uma breve
consideração exegética sobre essa construção grega será oferecida adiante (veja nota de
rodapé 21 no presente trabalho).
76
77
LADD, George. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 369.
E. Stauffer, apud LADD, George. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos,
2003, p. 369. É preciso considerar, além disso, que as expressões “genesqai” e “einai”
funcionam num exuberante contraste na passagem. Enquanto que Abraão foi trazido à
existência historicamente, Cristo, ao contrário, já era, ou, existia desde sempre. O termo
“genesqai”, infinitivo aoristo médio de “ginomai”, quando aplicado ao contexto da
existência, carrega o sentido de “passar a existir, ser formado” (LOUW, Johannes; NIDA,
Eugene. Léxico Grego-Português do Novo Testamento baseado em domínios semânticos.
São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013, p. 143.). Um exemplo desta modalidade
pode ser observado em João 1.3 quando diz que “tudo passou a existir através dele”
(A construção grega traz “panta di autou egeneto”), demonstrando que, por meio
de Jesus, a realidade visível e invisível passou a existir. Já o termo “einai”, que é o
infinitivo presente de “eimi”, denota uma existência supratemporal, eterna. No contexto,
não é uma condição que se aufere historicamente – isto é, “um vir a ser” – antes diz
respeito à eternidade. Por isso que LOUW & NIDA (2013, p.143), vertem João 8.58
como “antes de Abraão passar a existir, eu já era”. Hendriksen, contudo, discorda da
tradução retrorreferida, embora o seu entendimento exegético sobre a passagem seja
basicamente o mesmo. Para ele, o fato do verbo “ser” (gr. “eimi”) estar no presente do
indicativo, denotando “eu sou”, apesar de carregar o mesmo sentido de “eternidade”, faz
um dramático contraste à condição de Abraão expressa pelo infinitivo aoristo. Ele assim
argumenta: “Diante da fugaz condição de vida de Abraão (veja Gen. 25:7), Jesus coloca
sua própria atemporalidade. Para enfatizar este eterno presente, ele põe em contraste o
infinito aoristo, indicando que Abraão nasceu no tempo, e o presente do indicativo, com
referência a si mesmo; portanto, não Eu era, mas Eu sou.” (HENDRIKSEN, William.
New Testament Commentary: Exposition of the Gospel According to John. Grand Rapids:
Baker Academic, 2007, p.67). Por fim, a despeito das perspectivas diversas sobre o tempo
verbal da construção final de João 8.58, os comentaristas acima estão de acordo com a
ênfase sobre a eternidade de Jesus, condição que se opõe e se eleva à temporalidade e
existência contingente de Abraão.
78
80 Artigos
ideia subjacente é a da deidade de Jesus que se vê implicada em sua préexistência. A declaração foi tão fortemente reconhecida como indicativo de
divindade que os judeus presentes muniram-se de pedras para lançaremnas contra Jesus, em represália tradicional aos que, para eles, cometiam o
crime de blasfêmia. Portanto, o exemplo dos ditos do “Eu Sou” proferidos
por Jesus no registro canônico joanino são evidências importantes para a
compreensão primitiva da identidade divina de Jesus. Como resumiu Ladd,
aproximando-se das conclusões de Bauckham, aqui, já observadas:
... pelo uso da expressão ego eimi em sua forma absoluta,
Jesus está, em um sentido bem real, identificando-se com o
Deus do Antigo Testamento. Na narrativa Joanina, esse fato
adquire plena expressão após a ressurreição, por intermédio
da confirmação de Tomé: ‘Senhor meu, e Deus meu’79.
2. As tradições doutrinárias e cúlticas do Cristianismo nascente.
As raízes da adoração cúltica cristã, bem como suas expressões
doutrinárias, revelam uma cristologia elevada já nos primeiros anos da
igreja nascente. Essa alta cristologia se manifesta em várias expressões
do cristianismo, tais como as declarações credais, hinos cristológicos
primitivos, invocações, práticas cultuais como a Santa Ceia, o batismo e a
impetração da benção80.
As declarações credais antigas, por exemplo, demonstram certa
orientação doutrinária formal da igreja, na qual, a pessoa de Cristo era
emparelhada a Deus no campo dogmático. Em I Coríntios 15, Paulo
argumenta a partir de uma tradição muito antiga da igreja. Ele assim
assevera: “Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo
morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado
e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras81”. Essa tradição, que
remete à convicção cristã da missão messiânica de Jesus e da realidade
de sua ressurreição, traz um sólido contexto para a afirmação paulina
79
Ibid., p. 370.
Nesta parte do artigo utilizarei algumas conclusões do aporte teórico, “Senhor Jesus
Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo”, de Larry Hurtado. Esse texto é uma
persuasiva dissertação sobre o caráter da adoração cúltica a Jesus como Deus nos círculos
iniciais do cristianismo. O capítulo 2, “Cristianismo Primitivo Paulino”, traz uma série de
contribuições eloquentes sobre o tema. Para maiores detalhes, consulte: HURTADO, Larry
W. Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo. São Paulo: Paulus/
Academia Cristã, 2012, p. 121-213.
80
81
I Coríntios 15.3,4.
Artigos 81
subsequente de que “então, virá o fim, quando ele [Jesus] entregar o
reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado, bem como
toda a potestade e poder. Porque convém que ele reine até que haja posto
todos os inimigos debaixo dos pés.82”. Noutras palavras, é a certeza da
ressurreição de Cristo que estabelece a convicção do reconhecimento
cósmico-escatológico de sua exaltação, algo que nem mesmo as figuras
dos patriarcas exaltados e dos seres angelicais reverenciados pelo judaísmo
do Segundo Templo conseguiram alcançar, afinal, tal reconhecimento
expressa a condição honorífica deifica que Cristo possui, assim sendo, sua
divindade está implicada nesse reconhecimento.
Os registros hínicos do Novo Testamento revelam que a recepção
conceptual da identidade divina de Jesus já se constituía o modus
vivendis litúrgico da igreja. Um exemplo simples pode ser extraído da
perícope paulina de Filipenses 2.5-11, tecnicamente conhecido como
Carmen Christi. Ali, Paulo descreve de forma extraordinária que,
apesar da manifestação kenótica de Cristo, isso não anulou o seu status
divino pré-encarnado83. Hurtado resume com lucidez: “o texto ilustra
esse foco em Jesus, louvando seu status pré-histórico ‘em forma de
Deus’ e sua impressionante renúncia até o ponto da crucificação, e
depois proclama sua exaltação por parte de Deus a um status igual
que lhe dá direito à reverência universal84”. Outro exemplo pode ser
destacado do hino cristológico de Colossenses 1.15-20. Nesta porção,
Cristo é a “eikwn tou qeou tou aoratou”, isto é, a “imagem do Deus
invisível”, e, nele, “pan to plhrwma katoikhsai”, “toda a plenitude
habita”. Se unirmos essa última expressão ao seu paralelo frasal em
Colossenses 2.9, onde se diz que a plenitude que habita em Cristo
é “pan to plhrwma thV qeothtoV”, ou seja, “toda a plenitude da
divindade”, então, temos um forte argumento contextual de que o hino
de 1.15-20 traz como pano de fundo a convicção de que Cristo era Deus
e, portanto, digno de ser adorado.
No Novo Testamento, as invocações a Jesus também funcionam
82
I Coríntios 15.24,25.
Na cláusula “en morfh qeou” – “em forma de Deus” – Paulo sublinha a perenidade
do caráter divino de Jesus, afinal, a expressão “morfh” significa, segundo Rienecker &
Rogers, “a aparência exterior da realidade interior. Aqui se refere à aparência externa da
substância divina, isto é, a divindade do Cristo pré-existente na exibição de Sua glória de
ser a imagem do pai” (RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 407.).
83
HURTADO, Larry W. Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo.
São Paulo: Paulus/Academia Cristã, 2012, p. 207.
84
82 Artigos
como elementos de prova da recepção primitiva da identificação divina
de Cristo. Em Romanos 10.9, por exemplo, Paulo diz que “se, com a tua
boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus
o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Porque com o coração se crê
para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação”. Logo depois
o escritor atualiza cristologicamente as Escrituras do profeta Joel85, e diz,
citando-as: “Pois: todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”.
Ou seja, para Paulo, invocar a Cristo é o mesmo que invocar a Yahweh,
afinal, Cristo é “KurioV”. Na invocação, portanto, a assimilação da
identidade divina de Jesus é claramente esboçada na liturgia primitiva em
um período tão cedo que a evidência é constrangedora para o rastreamento
da devoção a Jesus como Deus.
Outro material neotestamentário para se observar a aculturação
teológica primitiva da identificação divina de Jesus são as chamadas
“práticas cultuais”, como a Ceia do Senhor, o Batismo e a Impetração da
Benção. Nestas, a pessoa de Cristo é firmemente associada a Deus. Na
“Ceia do Senhor”, por exemplo, a adjetivação “do Senhor” funciona bem
mais do que um atrelamento honorífico; é, sobretudo, uma maneira de
constituir, à refeição, o seu aspecto ritual e cultual. Como acertadamente
observou Hurtado:
Claramente, a ceia do Senhor aqui é a refeição cristã cúltica
na qual o Senhor Jesus desempenha um papel que é explicitamente assemelhado ao das divindades dos cultos pagãos
e, ainda mais surpreendente, ao papel de Deus! Não se trata
meramente de uma festa em homenagem a um herói morto.
Jesus é percebido como o Kyrios vivo e poderoso que é o
dono da refeição e preside nela, e com quem os crentes têm
comunhão como com um deus86
Além da Ceia do Senhor, o Batismo também figura como uma prática
cúltica na qual a figura de Jesus é tomada como Deus. Se tal prática
consistia no rito de iniciação cristã – e, na condição de sacramento, era
vista como uma manifestação visível da graça invisível – e incluía, como
parte essencial, uma invocação do nome de Jesus87, então, é de se esperar
85
Joel 2.32 (LXX 3.5)
HURTADO, Larry W. Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo.
São Paulo: Paulus/Academia Cristã, 2012, p. 205.
86
87
Veja, por exemplo, Atos 2.38; 8.16 e 10.48.
Artigos 83
que o contexto ritual aponte também para a divindade de Jesus88. Outra
prática cúltica neotestamentária que salienta esse ponto é a “impetração
da bênção”. Nela, a pessoa de Cristo é associada a do Pai e a do Espírito
e, juntas, constituem a referência divina da qual fluem as bênçãos para os
crentes. Esse caráter trinitário da bênção fornece uma forte evidência de
que o cristianismo primevo identificava (talvez, pressupunha) a divindade
de Jesus, e sua Pessoa é fonte de graça para todos os que servem ao Deus
vivo.
Portanto, a partir destes contornos cristológicos da identidade divina
de Jesus no Novo Testamento é possível admitir, com elevado grau de
probabilidade exegética e teológica, que a devoção a Cristo como Deus
e o reconhecimento conceptual de sua deidade já eram parte da prática
litúrgica e doutrinária da igreja primitiva. Logo, isso revela que os
primeiros cristãos não tiveram problemas como uma suposta quebra das
suas convicções monoteístas, originadas no judaísmo, ao identificarem a
Cristo como Senhor e Deus.
Conclusão
Finalmente, podemos, com alta probabilidade histórica e teológica,
julgar o monoteísmo cristão primitivo como legítimo a esta categoria, não
violando o paradigma, entretanto, redescobrindo-lhe a real essência. É
possível assumir, portanto, que não houve a imanência pagã nas práticas
cristãs de devoção a Cristo como Deus, dado que tal devoção, conforme
observado pelas vertentes expostas neste trabalho, não emparelhava
Jesus como um segundo deus na ordem de culto (isto é, não era um tipo
de “diteísmo”), nem que foi desenvolvida lentamente ao longo dos anos
pela igreja, antes, sua origem remonta aos primeiros anos do cristianismo
nascente. Acerca disso, Wrigth, embora tomando o contexto trinitário mais
amplo, considera com razão:
Quando os primeiros cristãos desenvolveram esse entendimento tríplice do Deus de Israel, eles não abandonaram suas
raízes judaicas e adotaram a linguagem pagã e suas formas
de pensamento. Eles desenvolveram sua teologia (...) É isso
Em I Coríntios 6.11, Paulo diz que os crentes foram “lavados” em “o
nome do Senhor Jesus Cristo”. Essa linguagem é claramente batismal
e a confissão de Jesus como Senhor aponta para a divindade de Cristo
envolvida no rito. Ele é o Deus em nome de quem o crente é “lavado”.
88
84 Artigos
que os fez não só falar do único Deus verdadeiro, mas invocá-lo, orar a ele, amá-lo e servi-lo como Pai e o senhor,
como o Deus que enviou o Filho e que nesse momento envia
o Espírito do Filho, como o Deus unigênito que torna visível
o criador, de outro modo invisível, do mundo89
Assim, a fé monoteísta esposada pelos primeiros cristãos não foi
violada ao se tomar Cristo como objeto de culto e reverenciá-lo como Deus.
A prática cúltica cristã aponta que, já nos primórdios e de um modo assaz
especial, Cristo Jesus foi admitido, seja conceptual ou liturgicamente, à
identidade divina de Yahweh, de tal maneira, que o culto a Ele prestado
não poderia ser tomado como idolátrico, antes era tão solene e legitimo
quanto o culto veterotestamentário a Yahweh. A alta cristologia primitiva,
portanto, não anulou as perspectivas monoteístas judaicas do segundo
templo, antes, conferiu-lhe um elevado significado.
Referências
BAUCKHAM, Richard. God Crucified: Monotheism and Christology in the New
Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1999.
________. Jesus and the God of Israel: God Crucified and Other Studies on the New
Testament’s Christology of Divine Identity. Grand Rapids: Eerdmans, 2008.
CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos Séculos: Uma história da igreja cristã. São
Paulo: Vida Nova, 1995.
DUNN, James D.G. Jesus and the Spirit. London: SCM Press, 1975.
EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse? : Quem mudou a Bíblia e
por quê. São Paulo: Prestígio, 2006.
HAWTHORNE, G. F.; MARTINS, R. P. Dicionário de Paulo e suas cartas. São Paulo:
Vida Nova/Paulus/Loyola. 2008.
HENDRIKSEN, William. New Testament Commentary: Exposition of the Gospel
According to John. Grand Rapids: Baker Academic, 2007.
HURTADO, Larry W. As Origens da Adoração Cristã: O Caráter da Devoção no
Ambiente da Igreja Primitiva. São Paulo: Vida Nova, 2011.
________. One God, One Lord: Early Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism.
T&T Clark: Edinburgh, 1998.
________. Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo. São Paulo:
Paulus/Academia Cristã, 2012.
LADD, George. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003.
WRIGTH, N.T. A Ressurreição do Filho de Deus. São Paulo: Paulus/Academia Cristã,
2013, p. 1012.
89
Artigos 85
LOUW, Johannes; NIDA, Eugene. Léxico Grego-Português do Novo Testamento
baseado em domínios semânticos. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.
MACGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: Uma introdução à
Teologia Cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento. São
Paulo: Vida Nova, 2006.
WRIGTH, N.T. A Ressurreição do Filho de Deus. São Paulo: Paulus/Academia Cristã,
2013.
86 Artigos
Artigos
A HISTÓRIA NA PERSPECTIVA DA
FILOSOFIA KANTIANA
Wanderson Luiz Freitas da Silva90*
Resumo: O presente artigo tem por objetivo descrever a filosofia da
história formulada por Immanuel Kant, de forma específica no opúsculo
Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita,
de 1784. Inicialmente tratamos de dois conceitos fundamentais para
a compreensão da doutrina kantiana acerca da história: natureza e
liberdade. Em sequência, descrevemos a filosofia da história kantiana
propriamente dita, elucidando as ideias presentes no mencionado
texto, no qual o autor expõe a teoria de uma história humana dotada
de finalidade e sentido, onde a vontade livre dos seres humanos se
manifesta em conformidade com um propósito racional, segundo um
desígnio da natureza.
Palavras-chave: História. Natureza. Liberdade. Moralidade.
Finalidade.
Zusammenfassung: Der gegenwärtige Beitrag sieht vor, die von
Immanuel Kant formulierte Philosofie der Geschichte zu erläutern,
insbesondere in der 1784 erschienenen Abhandlung „Idee zu einer
allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht“. Zuerst werden
zwei grundlegende Konzepte zum Verständnis der kantischen Lehre
von der Geschichte behandelt: Natur und Freiheit. Anschließend wird
dann Kants Philosofie der Geschichte effektiv beschrieben, indem die
Inhalte des o.g. Werkes erläutert werden. In seiner Abhandlung legt
Kant die Theorie einer meschlichen Geschichte dar, die Finalität und
Sinn hat und in der der freie Wille des Menschen in Übereinstimmung
mit einem rationalen Zweck zum Ausdruck kommt, laut einer
natürlichen Bestimmung.
Stichwörter: Geschichte. Natur. Freiheit. Moralität. Finalität.
90 *
Graduando em Filosofia pela Faculdade Dom Heitor Sales – Natal/RN
Artigos 87
Introdução
A Filosofia da História desenvolvida por Immanuel Kant está integrada
no contexto maior da totalidade de seu pensamento. Como pretendemos
expor aqui, em linhas gerais, a filosofia da história kantiana, é preciso que nos
atenhamos inicialmente a dois conceitos básicos da filosofia de Kant: liberdade
e natureza e a relação entre ambos e suas implicações internas (indivíduo)
e externas (sociedade). No seu sistema filosófico, Kant desenvolveu pelo
menos três concepções de natureza, correspondentes, respectivamente,
a cada uma de suas críticas, a saber: 1) Crítica da Razão Pura (1781), 2)
Crítica da Razão Prática (1788) e 3) Crítica da Faculdade do Juízo (1790).
A primeira crítica, campo de sua filosofia teórica, diz respeito à natureza
mecânico-causal (objeto da ciência) enquanto conjunto do conhecimento
proporcionado pelo entendimento, que a regula mediante seus conceitos
puros, as categorias. A segunda crítica, que trata de sua filosofia prática,
concebe a natureza humana como suprassensível, sendo fundamento da
liberdade do agir ético, enquanto fruto da razão, que cria suas próprias leis
e regula a ação moral por dever. A terceira crítica compreende a natureza
orgânica, enquanto causa e efeito de si mesma, como teleológica, isto é,
dotada de finalidade. “Aí a natureza é definida como o ‘poder formativo’,
cujos produtos são aqueles ‘no qual tudo é fim e, reciprocamente, também é
meio’. (...) Com isso, Kant amplia o aspecto dinâmico da natureza (...), a fim
de englobar uma concepção de natureza como poder produtivo, dinâmico
ou formativo” (CAYGILL, 2000, p. 238-239) A ênfase aqui será dada a esta
concepção de natureza teleológica que foi também apresentada por Kant em
1784 no opúsculo Ideia de uma História Universal de um ponto de vista
cosmopolita91 para fundamentar sua compreensão da História como cenário
do progresso da humanidade até a moralidade.
A natureza teleológica deve ser concebida como um sistema de fins,
enquanto natureza ativa em conformidade com uma intenção própria.
Dessa forma, a causalidade da natureza mecanicista dá lugar à finalidade
da natureza orgânica. Na concepção teleológica da natureza, tudo ocorre a
partir de uma organização, uma harmonia, uma unidade que só pode ter sido
estabelecida por um entendimento alheio ao dos seres humanos. Porém,
tal ordem final é passível de ser reconhecida por nós enquanto princípio
a priori regulativo e não explicativo, portanto, como essencial para a
Kant. Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita. Utilizamos,
para o presente artigo, a tradução brasileira realizada por Rodrigo Naves e Ricardo Terra,
publicada pela editora Martins Fontes, 3ª edição, de 2011. As citações referentes a ela serão
definidas pela abreviação IHU, seguida da página.
91
88 Artigos
compreensão do sistema. Desta forma, a tarefa do filósofo é encontrar,
“neste curso absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza
que possibilite, todavia, uma história segundo um determinado plano da
natureza” (IHU p. 4). A razão humana concebe a natureza como um ser, no
qual os fins se realizam e no qual as “forças formadoras” originam seres
organizados, segundo um decurso que tem como fim-término de toda a
natureza o homem, ponto culminante desta organização. Neste sentido,
a natureza teleológica deve ser compreendida como a totalidade das
disposições naturais destinada a se realizar plenamente no gênero humano
como um todo, visto que a finalidade última da natureza, segundo Kant, é
o homem sob a lei moral.
A moralidade92 se fundamenta em uma relação das ações com as leis
da razão, sendo moral a ação fundamentada na boa vontade e determinada
pela lei do dever. Kant compreende o dever como a necessidade de
cumprir uma ação por respeito à lei. Esta lei na qual se fundamenta o dever
deve ser dada pela própria razão, ou seja, pela faculdade humana geral
de conhecimento e determinante da vontade. Vontade esta que, para ser
considerada boa por si mesma e fundamentar os pressupostos da moral,
não pode ser determinada por nenhum interesse particular, mas somente
por respeito ao dever. Neste sentido, é moral a ação por dever e não
somente conforme o dever, ou seja, a ação moral deve ser determinada por
princípios interiores universais (imperativo categórico) e não por simples
interesses individuais ou determinações exteriores (imperativo hipotético).
Desta forma, o homem moral ao agir por dever dá a si mesmo as próprias
leis (da razão), ou seja, é autônomo, dotado de liberdade. Tal liberdade,
no âmbito da moralidade, deve ser considerada interior, visto que a lei é
fruto dos próprios princípios racionais do homem. A moralidade consiste
no fim último da razão prática e, para ser alcançada, passa por um longo
percurso na história da humanidade até seu pleno desenvolvimento. A razão
humana prescreve a lei moral, mas para que esta seja efetivada nas ações
dos homens, estes devem abdicar de seus interesses particulares em favor
do propósito universal, visto que a ação, para ser considerada moral, tem
de ser desinteressada, ou seja, guiada por princípios universais (imperativo
categórico). Visto que tal percurso passa por conflitos entre os arbítrios
particulares dos homens, na busca pela realização de seus interesses
A moralidade, para Kant, opõe-se à legalidade. A moralidade é o caráter das coisas que
se conformam às leis morais, já a legalidade é a “simples concordância ou discordância de
uma ação em relação à lei moral, se considerar o móvel da ação” (ABBAGNANO, 2000,
p. 682).
92
Artigos 89
subjetivos, faz-se necessária uma intervenção exterior que regule as ações
dos homens com vista na realização dos princípios interiores universais da
razão. Tal legislação exterior consiste no direito, ou seja, no conjunto de
condições que possibilitam uma conciliação entre os arbítrios particulares
conforme uma lei universal.
O direito tem por objetivo mediar as relações entre os homens de forma
a garantir a liberdade de cada um e estabelecer regras, que visam a aproximar
o agente da moral puramente racional, por meio de leis exteriores de coação
das ações. Para isto, o direito se vale de regras legais (leis exteriores) para
obrigar o homem a seguir a regra moral (lei interior), por meio de punições
aos infratores destas leis. Portanto, enquanto a razão determina a moralidade,
o direito determina a legalidade, mas este deve buscar a universalidade de
suas leis nas prescrições da razão. Todavia, a realização da liberdade de
todos por leis externas universais só é possível mediante uma Constituição
Civil justa, enquanto representação de uma vontade pública, visto que as
leis de coação externas só tem eficiência nos Estados enquanto estabelecidos
conforme sua Constituição, como veremos adiante. A partir desta breve
elucidação dos conceitos importantes para a compreensão da filosofia da
história kantiana, podemos tratar propriamente de sua configuração.
I
Segundo Kant, a Filosofia da História consiste no projeto de “redigir
uma história segundo uma ideia de como deveria ser o curso do mundo,
se ele fosse adequado a certos fins racionais” (IHU p. 20). Kant trata
da história não enquanto “ciência” empírica93, mas na medida em que é
considerada filosoficamente, como a conexão que unifica as ações humanas,
considerando-as em direção progressiva para a finalidade da razão,
orientada segundo o fim imposto pela própria natureza. A história filosófica
kantiana é concebida como história das manifestações da liberdade humana
enquanto eivadas de racionalidade, como eventos unidos por uma conexão
compreensível. Tal conexão pode ser entendida se concebemos o princípio
de finalidade da natureza como conciliador de todos os acontecimentos ou
atuações da liberdade humana.
Na obra Ideia de uma História Universal de um ponto de vista
Kant não considera a história, portanto, sob o aspecto tradicional de narração ou
observação de fatos passados, nem tradição ou algo similar, mas como progresso que se
dá sob uma ordem providencial; um “caminhar” ou fluxo contínuo com um propósito
determinado.
93
90 Artigos
cosmopolita, Kant fundamentou sua Filosofia da História na concepção
de que a natureza, considerada teleologicamente, promove uma indicação
de que a razão realizará sua finalidade, independentemente da vontade
dos seres humanos. Nesta obra, o autor compreende a liberdade em um
sentido exterior, enquanto manifestação das ações humanas reguladas pelo
direito e finalmente submetidas às leis gerais da natureza. Desta forma,
os homens singulares, ao agirem segundo seus propósitos particulares ou
planos individuais, agem conforme um “determinado plano da natureza”
(IHU p. 4). Cabe ao filósofo a difícil tarefa de descobrir “neste curso
absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza” (IHU p. 4) e tal
fio condutor deve pressupor a história enquanto filosófica e a natureza
enquanto teleológica.
A natureza teleológica determina que todas as criaturas terão suas
disposições naturais completamente desenvolvidas. Mas as disposições
racionais do homem “devem desenvolver-se completamente apenas na
espécie, e não no indivíduo” (IHU p. 05), pois a razão, não conhecendo
limites para sua força nem para seus projetos, promove a capacidade de
superação do instinto natural por meio da tentativa, da aprendizagem e
do avanço gradual do conhecimento. Portanto, dada a limitação da vida
pela natureza, o pleno desenvolvimento humano só pode se dar em um
progresso que leva gerações. Visto que a natureza nada faz em vão, para
garantir que o homem ultrapasse sua existência animal em direção a tal
desenvolvimento, a natureza o dotou de razão e liberdade, além de uma
disposição natural ao antagonismo, que pode ser definido como uma
“insociável sociabilidade dos homens” (IHU p. 8) constituindo, por um
lado, uma tendência para entrar em sociedade (na qual se sente mais como
homem em desenvolvimento de suas disposições naturais) e, por outro, uma
propensão ao isolamento (pois, ao querer ter tudo, encontra resistência de
todos). Como resultado desse antagonismo, reflexo do desejo de cada um
de se sobressair perante os outros, o homem progride aos poucos: passa da
brutalidade à cultura, desenvolvendo os talentos, os gostos e uma maneira
de pensar que, com o tempo, pode mudar a grosseira disposição natural
para o discernimento moral, passando primeiramente pela formação da
sociedade.
Tal é o maior problema do gênero humano: “alcançar uma sociedade
civil que administre universalmente o direito” mediante uma “constituição
civil perfeitamente justa” (IHU p. 10) que possa unir a sociedade sob leis
exteriores da liberdade. Tal problema se dá porque o fim dos conflitos
entre os sujeitos e a união da sociedade só é possível se cada indivíduo
Artigos 91
renunciar à vontade própria em favor de uma vontade universalmente
válida. Para isto, os homens necessitam de um chefe supremo (um senhor
ou governante) que represente tal vontade universal e os force obedecê-la,
mas que, por outro lado, “deve ser justo por si mesmo e, todavia, ser um
homem” (IHU p. 12). Visto que tal solução perfeita parece impossível,
deve-se conceber, com Kant, “uma relação externa legal entre os Estados
[...], em que todo Estado [...] pudesse esperar sua segurança e direito [...] de
um poder unificado e da decisão segundo leis da vontade unificada” (IHU
p. 12-13), mediante uma confederação de nações. Desta forma, a natureza
compele o homem selvagem a renunciar à sua liberdade brutal em troca de
paz, tranquilidade e segurança, proporcionadas por uma constituição civil
legal, que só pode chegar à perfeição mediante tal relação externa legal
entre os Estados, capaz de equilibrar as liberdades externas.
Segundo Kant, “[...] se deve aceitar antes que a Natureza siga aqui
um curso regular para conduzir a nossa espécie aos poucos de um grau
inferior de animalidade até o grau supremo da humanidade [...]” (IHU p.
14). Para isto, a Natureza impõe ao homem sua vontade, prescreve seu
projeto, obriga a espécie humana a desenvolver-se plenamente, e esta
obedece aos desígnios da natureza mesmo sem se dar conta. Se o homem
quer o repouso, a natureza quer o trabalho; se quer a paz, a natureza quer a
guerra; se quer a concórdia, “a natureza sabe o que é melhor para a espécie:
ela quer a discórdia” (IHU p. 14). Mesmo as guerras, as catástrofes e a
maldade, por exemplo, são imposições da natureza ao homem para que
este queira o contrário: a paz, a ordem e o bem. A natureza se vale do
antagonismo intrínseco ao homem, por meio da devastação, da desgraça e
da crueldade das guerras, para impor a este a necessidade de sair do estado
sem leis dos selvagens e ingressar numa liga de povos e, por fim, fundar
uma constituição civil perfeitamente justa, como caminho alternativo para
a preservação da espécie humana. Como afirma Kant,
Todas as guerras são, assim, tentativas (não segundo o propósito dos homens, mas segundo o da Natureza) de estabelecer
novas relações entre os Estados e, por meio da destruição ou
ao menos pelo desmembramento dos velhos, formar novos
corpos [...] até que finalmente, em parte por meio da melhor
ordenação possível da constituição civil, internamente, em
parte por meio de um acordo e de uma legislação comuns,
exteriormente, seja alcançado um estado que, semelhante a
uma república, se possa manter a si mesmo como um autômato. (IHU p. 14)
92 Artigos
Em outras palavras, a Natureza obriga os seres humanos a passarem
do estado selvagem para um Estado civil, que possa promover uma
relativa tranquilidade e segurança para os indivíduos, que têm seus
direitos salvaguardados pelo mesmo. Porém, os Estados civis, em suas
relações interestaduais, também manifestam a insociável sociabilidade
dos indivíduos, visto que cada Estado tende a repudiar leis que limitem
sua soberania ao mesmo tempo em que se inclina a dominar os outros
Estados. Por tal motivo, como uma forma de defesa, os Estados estão
constantemente em conflito entre si por meio das inevitáveis guerras,
que causam devastações, esgotamento das forças, prejuízos irreparáveis,
etc. Em consequência, após inúmeras desventuras, o homem é forçado a
caminhar no sentido oposto, segundo o intento da razão. Desta forma, o
homem tem de provar dos males provenientes das guerras para repudiálos no futuro e almejar a paz, visto que, para Kant, a capacidade do
homem de aprender com os infortúnios suscita a esperança no progresso
da humanidade, que consiste na realização do fim supremo da Natureza.
Assim, o homem, para preservar a si mesmo, vê-se obrigado a preservar o
todo (passagem do particular ao universal) e se dá conta da necessidade de
fundar uma liga de Estados, ou seja, um Estado civil mundial de pública
segurança estatal capaz de intervir nos conflitos entre Estados, para que
estes não se destruam entre si, mediante uma lei de equilíbrio e poder
unificado que lhe dá força (IHU p. 19). Tal estado de cidadania mundial
faz-se necessário, portanto, para o pleno desenvolvimento das disposições
originárias do gênero humano, que é o propósito supremo da Natureza.
Segundo Kant, deve-se considerar
[...] a história da espécie humana, em seu conjunto, como a
realização de um plano oculto da natureza, para estabelecer
uma constituição política perfeita interiormente e, quanto a
este fim, também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver-se plenamente, na
humanidade, todas as suas disposições. (IHU p. 21, em itálico no original)
Mesmo que o plano da Natureza constitua um “mecanismo secreto”
impossível de ser completamente conhecido por nós, seres humanos, isto
não nos impede de concebermos um princípio regulativo de teleologia da
natureza, para ao menos compreendermos um fio condutor para representar
como sistema pelo menos em conjunto, um acervo, aliás sem plano, das ações
humanas. Segundo Kant, se observarmos a história da Grécia antiga, sob a
Artigos 93
perspectiva de sua influência na política romana (passando pela absorção
do Estado grego pelos romanos, pela destruição do Estado destes pelos
bárbaros, etc.) e, posteriormente, pelo desenvolvimento político sucessivo
até a era atual, “descobriremos um curso regular de aperfeiçoamento da
constituição política” (IHU p. 21). Desta forma, se voltarmos a atenção
para o desenvolvimento da constituição civil e de suas leis como fruto das
relações estatais, veremos tanto qualidades (que promoviam a elevação, a
dignificação e o desenvolvimento dos povos, da cultura, da ciência e das
artes destes), quanto deficiências (de forma a rebaixar os povos, embora
sempre promova uma preparação a um grau mais alto de melhoramento).
Porém, em ambos os casos, é possível constatar o aperfeiçoamento da
constituição civil, bem como um progresso da humanidade em direção a
seu pleno desenvolvimento, ou seja, será possível descobrir
[...] um fio condutor que pode servir não apenas para o esclarecimento do tão confuso jogo das coisas humanas, [...]
mas que abre também (o que com razão não se pode esperar
sem pressupor um plano da natureza) uma perspectiva consoladora para o futuro, na qual a espécie humana será representada num porvir distante em que ela se elevará finalmente
por seu trabalho a um estado no qual todos os germes que a
natureza nela colocou poderão desenvolver-se plenamente e
sua destinação aqui na Terra ser preenchida. (IHU p. 21)
Cumpre então admitir que a história do gênero humano deve ser
compreendida como a parte que contém o fim de todo o grande teatro da
Sabedoria suprema94, ou seja, deve-se conceber a humanidade como a
finalidade última da natureza entendida sob a perspectiva teleológica, que
proporcionará um sentido para a história, a saber, o progresso do homem
em direção à liberdade. Deste modo, o princípio teleológico estabelece
uma mediação entre o conceito da natureza e o conceito da liberdade,
visto que a finalidade da natureza se harmoniza com a finalidade moral
da razão, ao instituir como objetivo último a realização do fim moral do
homem. A natureza teleológica proporciona a confiança de que no futuro o
sentido (real ou parcial) da história se encaminha efetivamente para o fim
último da razão, visto que na natureza humana há disposições que indicam
que o gênero humano sempre progredirá para o melhor. Neste sentido,
é possível conceber a história, em uma perspectiva filosófica, enquanto
94
Cf. IHU p. 21
94 Artigos
história do progresso para o melhor no que diz respeito ao fim moral do
gênero humano.
II
A filosofia kantiana da história, conforme apresentada acima, concebe
a história humana como o progresso para a liberdade, que encerra uma
passagem desta do campo da exterioridade para o da interioridade, ou
seja, a efetivação da moralidade no mundo. Tal moralidade compreende
a razão como reguladora das ações humanas e, visto que os princípios
morais são inerentes ao homem, a capacidade humana de dar a norma
a si mesmo (autonomia) promove a liberdade interior. Mas a lei moral
racional está no campo do dever ser do agir ético e os indivíduos, nas suas
ações, tendem aos interesses subjetivos, o que resulta nos conflitos entre
vontades particulares. Porém, para mediar tais divergências, o homem deve
renunciar de seu desejo particular em função de leis universais de coerção
que garantam a liberdade exterior de cada um, sob a prescrição de direitos
e deveres que devem ser iguais para todos.
A liberdade na filosofia da história em Kant é concebida, enquanto
exterior [no sentido de que a norma não é dada interiormente pela razão
(moralidade) e sim exteriormente pelo direito (legalidade)] como parte
do processo indispensável para o total desenvolvimento das disposições
humanas. Portanto, visto que a legalidade (campo da liberdade exterior)
busca a realização da moralidade, a liberdade interior não é negada pela
submissão consciente dos indivíduos às normas legais exteriores, pois
estas regulam as ações destes, visando atingirem a condição de universais,
o que só é possível se tais normas legais possuírem como parâmetro as leis
universais da razão e como meta a efetivação das mesmas. Neste sentido,
faz-se necessário que o homem progrida de um estado selvagem sem leis
para um Estado civil legal, que estabeleça uma constituição civil justa
que possa efetivar o equilíbrio entre as liberdades. Mas a legalidade, ao
constituir leis universais coercitivas, pode no máximo aproximar os seres
humanos da moralidade, mas esta nunca será alcançada de tal forma, visto
que o homem sob normais legais age conforme o dever, mas não por dever.
Então o que “garante” a efetivação da moralidade? Para Kant, a resposta é
simples: a natureza teleológica.
A concepção de um princípio teleológico sugere um curso regular
da história que se dirige para o fim último da razão em consonância com
o objetivo supremo da natureza: o pleno desenvolvimento da espécie
Artigos 95
humana até a moralidade. A história filosófica supõe a possibilidade de
uma compreensão do confuso e irregular emaranhado das ações humanas
que, observadas em sua totalidade, apresenta um curso regular e sugere um
desenvolvimento progressivo que se encaminha para a plena realização
das disposições originárias do gênero humano. Mas a questão do sentido
da história só pode ser compreendida se a concebermos em consonância
com a natureza teleológica: aí, a história é o palco onde a natureza conduz
o progresso da espécie humana: da animalidade à humanidade95, da
selvageria à cultura, do estado de natureza ao estado civil, da paz estatal
à paz mundial, da liberdade exterior à liberdade interior e, com tudo isto,
da legalidade à moralidade. Como meio para atingir seu fim supremo, a
natureza utiliza-se do antagonismo originário dos indivíduos que repercute
também posteriormente no Estado. Entre os indivíduos, aparece como
sociabilidade insociável, que desperta as ocultas forças humanas, promove
a necessidade do desenvolvimento das capacidades e a passagem da
brutalidade à cultura. Entre os Estados, o antagonismo é fruto da ambição,
da cobiça, do desejo de dominar o outro, e se mostra nas guerras. Por
um lado, as guerras tem como resultado a crueldade, a destruição e a
calamidade e, por outro, tornam necessárias as relações entre os Estados
e, posteriormente, a fundação de uma constituição capaz de mediar tais
relações interestatais e evitar as guerras. Neste sentido, as guerras são
um artifício indispensável da natureza na promoção do bem, visto que,
por meio dos infortúnios causados por elas, a natureza nos mostra a
necessidade da paz, forçando a humanidade a realizar os fins da razão e
aceitar o mandamento incondicional do dever.
Em conclusão, cabe ressaltar que a concepção de uma natureza
teleológica não “garante” a efetivação da moralidade, enquanto realização
de sua finalidade, e sim nos proporciona uma expectativa futura, um sentido
da história que aponta para o desenvolvimento moral da humanidade. A
natureza não determina a liberdade humana, seja no âmbito do respeito ao
dever ou às normas interiores da razão (realização da liberdade interior),
seja no campo da subjugação consentida às normas exteriores do direito
(realização da liberdade exterior). Tendo em vista que a liberdade é
constituída pela moral enquanto móvel da ação pela vontade, a natureza
teleológica, embora guie o homem ao desenvolvimento moral, não é capaz
Quanto a isto, é interessante reportar-nos ao opúsculo kantiano “Começo conjectural da
História Humana”, de 1786, no qual o filósofo aborda a questão da passagem do estado
animal ao estado racional, da ruptura entre instinto e razão, como o início da História,
baseando-se, para isto, no metafórico relato bíblico da queda de Adão. Já aí ele mostra a sua
concepção de que a liberdade é o começo e a condição para o progresso moral.
95
96 Artigos
de regular a vontade humana que, autônoma, dá a si mesma a própria lei:
o dever da razão.
Referências
KANT, Immanuel. Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita.
Trad. Rodrigo Naves, Ricardo Terra. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Tradução: Álvaro Cabral. Revisão: Valério Rohden.
Rio de Janeiro: Zahar, 2000. (Col. Dicionários de Filósofos)
PASCAL, Georges. Compreender Kant. Trad. Raimundo Vier. 6. ed. Petrópolis: Vozes,
2011.
Artigos 97
Fórum
Neste 4º Fórum da Revista FAHS de Teologia e Filosofia, achamos
pertinente publicar o artigo da Religiosa consagrada da Congregação
Irmãs da Divina Providência (IDP), Ir. Anaelise Fleischhauer, membro
e fundadora do Centro de Valorização e integração humana - Gente-regente, de Ponta Grossa/PR, que tem por lema: “Uma escola de amor
mais humano e mais divino”.
ENEAGRAMA E ESPIRITUALIDADE
Gisela Fleischhauer (Ir. Anaelise, IDP)96
Do Gente-regente: www.genteregente.com.br
Introdução
No âmago do status quaestionis do tema, o Eneagrama é utilizado
como ponte entre a psicologia e a espiritualidade. É ensinado como método
narrativo, autoverificável e que faz a conexão entre o nível psicológico
observável de vida em nível espiritual de vida e mostra como integrá-los. O
resgate da cristificação do ser num método processual é como o de descascar
as camadas de uma cebola e/ou a exploração do interior da pessoa, como
percurso em espiral - do morrer (expirar, entregar, descarregar, desapegar)
e ressuscitar - (inspirar vida, amor, unidade e paz), que faz mergulhar no
coração do ser - Essência - onde se encontra a criança Divina, a criança
Luz, na origem do ser.
Referindo-se assim, à confiança básica, perdida na origem da
formação dos tipos eneagramáticos. Se não vos tornardes como crianças,
não entrareis no Reio dos Céus97. Neste universo, o Eneagrama – uma
sabedoria multi milenar - mapeia a situação de cada pessoa e aponta para a
sua possibilidade de transformação.
Partindo deste recurso milenar, o presente capítulo visa demonstrar
Anesile é o nome religioso de Gisela Fleischauer no IDP (Irmãs da Divina Providência).
É Psicoterapeuta, especialista em Psicologia das Profundezas e em Lacan e possui mestrado
em Integração Psicoespiritual.
96
97
Mt. 18,1-5.
98 Fórum
este processo e as possibilidades que promovem no sentido de ajudar a
encontrar o lugar mais fascinante do universo: o interior da alma e do
espírito humano.
O Enegrama é o trabalho do autoconhecimento faz tirar as cegueiras,
as paralisias, surdez e mudez psíquicas, percursos automáticos e repetitivos
da pessoa, também elencados no caminho do Evangelho de Lucas na
Bíblia98.
Inicia-se pelo que há, como se está procurando entender como
ficou desta maneira. Depois traça o rumo para o que É verdadeiramente
- a essência do ser - partindo de onde está e como chegar à plenitude
interior pelo fortalecimento dos atributos do SER que foram eclipsados e
confundidos com a Personalidade, ou o Ego.
Dentro desse contexto, o conteúdo aqui apresentado, convida o leitor
a buscar o lugar mais fascinante do universo: o interior da alma e do
espírito humano, através do método analítico e demonstrativo, observado
em pouco mais de 36 anos de trabalho, com a psicoterapia desenvolvida
em consultório, retiros, palestras e outras assessorias. Porém é preciso
reconhecer a própria personalidade ou traços egóicos - as sombras, as
máscaras, denunciando os mecanismos inconscientes e compulsivos da
respectiva história humana, transformando-a em história sagrada, até a
manifestação do Ser cristificado. Todos os caminhos levam a Deus, desde
que se caminhe com uma bússola, na direção correta.
Tenha-se em conta que cada pessoa tem sua singularidade, seus
pontos fortes e fracos, pecados e virtudes, forças, talentos, valores, desvios
e limites.
Considerando estes aspectos, seguem algumas indicações,
apresentadas em três itens que podem esclarecer a dinâmica do processo,
para se atingir o ponto essencial. No primeiro item, em linhas gerais, uma
síntese sobre a origem e o significado do dualismo como porta de entrada
para o início do processo. No segundo, serão desenvolvidos, sinteticamente,
alguns aspectos importantes, no exercício da superação do dualismo. O
terceiro tópico pretende ser o ponto de chegada com uma demonstração,
ou seja, um resultado, dentre muitas experiências positivas, devidamente
comprovadas.
Por fim algumas considerações conclusivas, consolidadas pelas
experiências, no cultivo da espiritualidade com a ajuda do Eneagrama
como caminho para se atingir uma vida equilibrada pela utilização do ponto
de direção acessado. Aqui é possível encontrar o cerne para a conversão
98
Cfr Lc. 18,41; 9,11; 5,24; 9,11; 4,36; 7,22.
Fórum 99
da personalidade em essência, considerando a fé, a esperança e o amor
como Caminho, Verdade e Vida que aponta para o Cristo que é o modelo,
o protótipo do antropos, o homem integrado, que teve uma experiência
profunda da vontade e do amor do Pai na sua vida.
I – Origem e significado do dualismo: Corpo e Alma
O grau de domínio individual sobre as qualidades depende do nível
de consciência despertado e do grau de sanidade psíquica: mais ou menos
apaziguado, livre, criativo (ver figura 1).
HIERARQUIA
DE TOMADA DE AMOR
CONSCIÊNCIA
7) Unificação da
Ser apaziguado
consciência
Empatia
6) Compaixão
incondicional e
aceitação
Compromisso com
5) Compreensão
o crescimento
4) Aceitação /
Perdão
Coração
VERDADE
CURA
saudável
FORÇA
INTERIOR
Ser
Ser apaziguado Ser apaziguado
apaziguado
Amor +
aceitação
Amor +
aceitação
Amor +
aceitação
Criatividade Decisão correta Sabedoria
Perdão
Perdão
Perdão
3) Mente / Ego
Louvor / Posse
Prevenir /
Experiência
Educar /
/ Crenças
Psicológicos
Assertivo /
Persuasivo
2) Paixão
"Química"
Sensações
Natureza
Manipulação
1) Sobrevivência
Necessidades
Ciência
Física
Força Física
EU
Observador
EU
VERDADEIRO
FALSO
CONSCIENTE
CLARIFICADOR
OBNUBILA
FOCALIZA
Tomar Tornar-se
para
Consciência Consciente
SENTIMENTOS
ATITUDE
PÕE-SE
DE FORA,
CONFUNDE-SE
OBSERVA
NEGA-OS,
ACURADAMENTE
FOGE
OBSERVA
ACEITAÇÃO
JULGADORA
Precisa-se desenvolver muita acuidade e discernimento para
perceber a sutileza das motivações internas inconscientes, os pensamentos
automáticos (neuróticos), as atitudes reativas, os estados de ânimo, o
100 Fórum
sistema de crenças arraigadas, as dificuldades ou facilidades em lidar com
as pessoas - o relacional -, as feridas afetivas na fé, na esperança e no amor,
que originam os nove eneatipos99 e assim entender o relacionamento com o
diferente, numa esfera de compreensão de si e dos outros, até ao universo de
uma verdadeira unidade em nível pessoal, comunitário, cósmico e Divino,
como peregrinos a caminho do transpessoal partindo dos inconscientes100
para o verdadeiro EU SOU que me envia para a missão de comunhão,
sendo Filho/a e irmão/ã da humanidade.
Um dos principais desafios é a problemática do dualismo. Tudo
ou quase tudo é proveniente do que ocorreu no Ocidente. Trata-se de
uma evolução da compreensão do ser humano ao longo da História da
Humanidade, que resultou numa dualidade de corpo e espírito, em estado
fusional - confuso de 3.000 anos AC a 400 AC, na cultura clássica; divisão
entre espírito e corpo nos séculos IV AC ao IV séc. DC; na época moderna
- um Pró-espiritual (moralização) com desprezo do corpo, séc. IV DC a
1950; e Época atual - pós-moderna: 1950/70 até hoje, onde, no ocidente,
o corporal - Pró-erótico, reduz o espiritual e entra uma mentalidade que
degenera o erótico pela “pornografização” do afetivo, do amor, com as
consequências de gerar no ser humano um grau permanente, maior ou menor
de insatisfação afetiva101 quando a satisfação afetiva é determinante para o
ser humano ser feliz. De modo semelhante há resquícios inconscientes na
nossa vida afetiva advindas do inconsciente coletivo transpessoal histórico.
Na análise atual, para que se cresça na Harmonia, no ser apaziguado
desejado que é a integração das dimensões: corporal ou erótica, afetiva
(alma), social e espiritual como homem e mulher, o desafio é o de promover
uma sexualidade102, humanamente realizada e satisfatória. Para isto, é
preciso reivindicar os valores naturais e inatos do espírito humano.
Como pressuposto, neste tema, considero o ser humano na sua quádrupla
visão antropológica: corpo, alma, espírito e transcendência:
* HURLEY, Kathleen V.; DOBSON, Theodore E.. Qual é o meu Tipo?
Eneagrama um estudo dos 9 tipos da personalidade humana, (trad. Júlia
Bárány), editora Mercuryo, São Paulo, 1994.
99
Pessoal - self/EU verdadeiro, geracional, coletivo, cósmico, Physis, até
o nada existencial que é o tudo divino.
100 3
101
Os sentimentos e as emoções.
Compreenda-se que somos seres sexuados dos pés à cabeça como um
todo, com todas as pulsões de vida.
102
Fórum 101
* corpo (dimensão física-biológica, erótica-motora,
sentidos);
* alma (psiquismo, vida afetiva (sentimentos,
Pessoaemoções));
sexuada com
* espírito (dimensão noológica, cognitiva, reflexão,
decisão livre, pulsão de vida como sentido, fé,
esperança, amor).
e
Divinizada ou
Cristificada
* Transcendência (Espírito de Amor, Reconciliação,
harmonização, integração da LUZ e da SOBRA,
totalidade, paz, senso de plenitude, Ser apaziguado,
em COMUNHÃO com a totalidade da Humanidade
e do cosmos).
O que se percebe no mundo da pós-modernidade são duas forças
antagônicas na realização e compreensão do mundo AFETIVO (da alma
ou psíquico) da pessoa.
A anulação da força erótica paralisa o sopro ou fluxo da vida, em
confronto com a incongruência amorosa que interfere na sede de amor
inato e natural. Estas antíteses levam à dissociação entre os elementos:
- erótico (corpo); - afetivo (alma); - espiritual (noológico cognitivo, de
discernimento); na experiência sexual e afetiva da pessoa. Essas oposições
conduzem à perda dos valores afetivos humanos que são: o respeito, a
liberdade, a fidelidade e a responsabilidade pelo crescimento adulto de
autonomia. Valores esses, sem os quais as pessoas são ‘coisas’ manipuladas,
sobre as quais se mantém domínio.
Para experimentar o transcendente verdadeiro, o EU SOU, o EU
verdadeiro, o EU maior, supõe-se viver a pulsão da vida e do amor em
coerência com esses valores afetivos que integram todos os elementos
da pessoa humana e lhe deixam, como consequência, a sensação de uma
satisfação, a alegria interior. Aqui está o cerne da espiritualidade, que se
conquista com perseverança e aprofundando o processo de superação
deste histórico processo. Por isto são propostos, a seguir, alguns elementos
necessários ao aprofundamento dos meios de superação do referido
dualismo.
102 Fórum
II – Aprofundando o Processo de Superação
do Dualismo
Este aprofundamento supõe um processo de vida em construção como
busca, intimidade, prioridade, disciplina para uma especial sensibilidade,
capaz de captar a presença e ser presença presente: amorosa, compassiva
e misericordiosa. É também o deixar-se amar. Ter intimidade consigo,
encontrar-se com a Palavra feito Carne, feito Vida no seu próprio templo,
através dos exercícios de meditação103.
Nesse processo e durante a meditação surgem dificuldades e é
importante purificar as imagens distorcidas de Deus, de si mesmo e das
figuras parentais e desbloquear as feridas do centro intelectual, emocional
e/ou da ação (motor).
O ser vivo tem a propriedade de autocura nas condições adequadas
de respiração (sopro da vida) - no sentido ativo, expirando a dor da alma.
E no sentido do passivo, inspirando a vida, o amor, pois um mal-estar, seja
no corpo, na alma ou no espírito, revela-se no campo, afetivo que envolve
todos os outros níveis na interação dos elementos: corpo, alma, espírito
descritos anteriormente. Na maioria dos mal-estares são desconhecidas ao
indivíduo as reais causas.
Por ignorância de orientação a pessoa se perde do caminho da
integração por não saber se libertar desse seu mal-estar, como insatisfação
do ser, e tratar de vitalizar-se.
− Nos eneatipos 5, 6 e 7 esta manifestação se dá no nível espiritual
- cognitivo como clareza versus confusão e ou projeção.
− Nos eneatipos 2, 3 e 4, o “mal-estar” é percebido nos componentes
afetivos - nos sentimentos e emoções quando não vivido de acordo
com a natureza dos valores de respeito, liberdade, fidelidade,
verdade e compromisso com o crescimento adulto.
− Nos eneatipos 8, 9 e 1, o “mal-estar” se manifesta de modo
geral no nível sensual do corpo ou erótico como manifestação
de DOR. Desta forma é necessário orientar a energia vital dos
três centros:
1º)Intelectual - Espiritual - Cognitivo e perceber a realidade com
Cfr. FREEMAN, Laurence, Jesus, o mestre interior,( trad. do original inglês, Jesus the
Teacher Within, por Valter Lellis Siqueira), editora Martins Fontes, São Paulo, 2004.
103
Fórum 103
precisão; compreender e analisar as situações reais e buscar a
realização.
2º)No afetivo, ver a motivação afetiva, a EXPERIÊNCIA afetiva
dominante, o sentido afetivo dado à situação e dar uma RESPOSTA
que leve a crescer em humanização.
3º)No centro motor predomina a sensação erótica (do corpo), o
aspecto somático - sensação no CORPO, a experiência emocional
registrada nesse corpo e que nele ressoa.
Resumindo, importa no processo, a descoberta das percepções, das
sensações e dos sentimentos manifestados no e pelo corpo nos seus centros.
O afetivo no ser humano é englobante. É a esfera que unifica, de
forma harmoniosa e vivifica as forças eróticas, físicas e espirituais.
Assegura os sentimentos de amor e a harmonia no desenvolvimento sexual
como homem e mulher, e na experiência humana.
O espiritual oferece a segurança necessária para chegar à autonomia
afetiva e à maturidade adulta. É livre das fixações infantis e armadilhas
inconscientes da personalidade dos nove eneatipos.
O erótico favorece a expressão sexual e a fecundidade da pessoa
ao nível erótico (corporal), afetivo e espiritual, porque o CORPO possui
a memória de toda história humana do indivíduo, como já citamos
anteriormente.
III – Resultado - o Ponto de chegada do Processo
Para conferir o que se pretende demonstrar seguem dois exemplos
concretos para ratificar como de fato o Eneagrama sugere caminhos para se
atingir uma vida equilibrada associada à fé cristã, como Caminho, Verdade
e Vida. Uma vez que aponta para o Cristo, modelo, o protótipo do antropos,
o homem integrado, que teve uma experiência profunda da vontade e do
amor do Pai na sua vida. Aqui é possível perceber o cerne para a conversão
da personalidade em essência, desde que se consiga acessar o ponto
direção, que em geral é pouco acessado e por isso a dificuldade de se ter
uma consciência desperta.
São, portanto, dois casos que podem elucidar e comprovar o que foi
apresentado, em linhas gerais.
“Fazer o retiro em Ponta Grossa com o Gente-Regente, levou-me a viver momentos profundos de libertação interior. A
cada novo dia que inicia, me convida à inquietude, a ser em
104 Fórum
minha essência, a entrar no ser profundo e estar em sintonia
com a natureza. Dou-me conta de que os meus pensamentos
passados ou presentes me desintegram, preciso viver no presente e na inquietude de ser eu mesma. Tenho consciência de
estar na minha casa, isto é, em meu ser profundo: esplendor
original. Sinto-me em sintonia com a totalidade da natureza. De verdade estou rezando o estar na minha casa interior
e já posso dizer que fiz um processo de me sentir bem em
minha própria casa. Trabalhei bastante: rezando limpando,
deixando o feto de sete meses de gestação estar no colo do
Deus trino e Maria e ser acariciado com ternura e amor. A
cada exercício que faço, sinto a criança interior reviver em
sua expressão de alegria, de esperança e cada vez com maior
intensidade. Aquela sensação de estar “fora de casa”, isto é,
estar fora de mim mesma, sem contacto com minha criança
interior, está quase desaparecendo. Sinto-me ser eu mesma,
sem me importar o que as pessoas pensem ou deixem de pensar a meu respeito. Permito-me ser eu mesma até mesmo nos
limites e dificuldades. Mesmo assim sinto-me integrada na
totalidade, como diferente.
Bem amigas e amigos, é isso que experimento é muito gostoso e me dá muita alegria. Sinto-me uma pessoa renascida
para a vida em plenitude de ser com minha criança interior
ressuscitada. É esse jeito de ser que me leva a doar-me mais
na missão de amar e servir.
Um grande abraço e muito agradecida pela grande ajuda recebida do Gente-Regente. Ir. Clara Schlickmann. - Autorizo divulgação desse testemunho. Maringá, 04 de outubro de 2010.”
“Minha experiência como um caminho de crescimento no
autoconhecimento com o MAPA do ENEAGRAMA, indo ao
fundo do meu EU verdadeiro.
O Processo pessoal exigiu entender “QUEM SOU EU?”,
“QUEM SOU EU COM?” e “ONDE ESTOU EU?” São
perguntas significativas que me levaram a um despertar da
consciência, identificando a minha ferida original no acolhimento de suas manifestações, dando assim voz à CRIANÇA INTERIOR. Descubro quanta raiva secreta, criativa e
destrutiva eu tinha e foi o meu “desvio fundamental”, original. Dei voz a esta criança, que se sentia abandonada, numa
atmosfera reverente, sem medo de rejeição ou autojulgamento e diminuição interior, e assim pude ser reverente diante
Fórum 105
das pessoas. No processo tomei consciência da ansiedade, da
vergonha, do medo ou da raiva básica inconscientes, expresso na busca do que me falta... e reconciliei-me com minha
história.
Ao enfrentar minhas fragilidades e sombras, não entendia o
mistério do meu ser surdo, cego e paralítico: Um incontrolado e desconhecido medo existencial surgiu. Nas profundezas
de minha escuridão e dor não posso mais esconder-me da
angústia, do medo, e sou desafiada a explorar as mais remotas situações da infância: Torno-me presente a mim mesma
na minha verdade. Então metáforas se modificam, imagens
mudam e uma nova figura da realidade emerge. Enraízo as
imagens no presente. Descubro a importância de ouvir, escutar, atender à escuta ativa aos afetos (sentimentos), ao fluir
da energia, ao conteúdo e linguagem do meu corpo. Aprendi a nomear meus próprios sentimentos, imagens interiores
e fazer caminho até perceber uma PRESENÇA silenciosa,
inefável que me envolvia por inteira, no aqui e agora, como
LUZ e esplendor: EU presente à PRESENÇA! Paraíso!
Eternidade no tempo!
A meditação diária, num nível contemplativo, me leva a
crescer, amar, confiar, esperar e sentir-me UNA com toda
Humanidade com um senso de plenitude interior em expansão, missão concreta, na paz, com entusiasmo nos meus 76
anos de vida.
Um senso de gratidão brota das profundezas do meu SER e
tudo ao meu redor parece estar mergulhado no Esplendor da
Origem, irradiando a glória da Vida e da Luz presente em
cada pessoa humana. (GCF - Anelise)”
A prática, tendo em vista a espiritualidade, aplicada à informação
fornecida pelo Eneagrama à experiência do dia a dia ajuda a retornar às
verdades fundamentais que ele pode nos revelar.
Considerações finais
Pelo estudo apresentado conclui-se que se trata de um processo de
vida em construção, pelo despertar da consciência para a totalidade do
ser. Todo exercício supõe uma atividade essencialmente desfusional que
tem como meta uma maturidade afetiva espiritual que é o ser casto, puro,
original, apaziguado da essência. Aqui está o cerne da espiritualidade.
O que sustenta a vida é o amor. E Deus é amor - comunhão! Logo é
106 Fórum
necessário superar o dualismo. É um caminho que possibilita a conquista
do Paraíso. Seu símbolo é o CRISTO, porque é o lugar desta terra em
que o ser humano pode estar com Deus, isto é, pode amar e ser amado.
Aqui está o ponto, o núcleo, onde se encontra a criação toda e o Criador,
a História e a Eternidade; o mais dentro e o mais fora. E é na gratuidade
do deixar-se amar, do deixar-se ser, de permitir-se cuidar e ser cuidado
(não confundindo autonomia com orgulho, liberdade com autossuficiência,
amor com afeto, razão com luz), que se caminha para um despojamento do
que não é, para o que É, na humildade do ser filho/a de Deus e irmão/a da
humanidade.
O crime da árvore da cruz é a revelação do autêntico significado
da transgressão da árvore da ciência104: a renúncia a ser os cristos de
Deus e a transformar-nos em um paraíso para os outros. Em Cristo, o
Ungido, contemplamos o AMOR feito realidade. Na humildade e no
despojamento, exploremos nosso interior, até mergulhar no coração do que
se É originalmente: verdadeiramente humano, porque verdadeiramente
divino.
Importa que Deus seja Deus e EU cuide do resgate de minha
CRIANÇA LUZ. A criança ferida curada passa a ser LUZ, intuição
profunda da verdade do ser, abandonando nossos ídolos inconscientes,
contendo as paixões como rezam todas as tradições espirituais.
E assim, de um lado o ser humano pode ser co-protagonista tanto
do seu processo de desenvolvimento pessoal como da evolução de sua
espécie. De outro, aprende sempre a entregar-se, aberto, à tarefa de olharse objetivamente, de aprender a ser testemunha se si mesmo num processo
de integração dos opostos, caminhando na luz e no sopro do Espírito do
Amor e da Vida.
As modalidades da CONSCIÊNCIA e da ação DESPERTA são
a aceitação, a alegria interior na paz e o entusiasmo105 que leva a uma
criatividade compartilhada.
O ser humano necessita entrar nas profundezas do SER, encontrar o
seu Mestre interior106 para alcançar o manancial que daí brota, para que suas
águas ou luz reguem ou iluminem e revitalizem tudo o que encontrarem em
seu caminho107.
104
Gn 3,1ss.
A palavra entusiasmo deriva do grego antigo - en theos, que significa “em Deus”. O
termo enthousiasmo corresponde a “estar possuído por um deus”.
105
106
Para os cristãos é Jesus - o seu Espírito, O Espírito Santo.
107
Cfr. Jo 4,14; Jo 7,38 e Jo 1,1-5.
Fórum 107
Este espaço sagrado é o lugar do encontro entre o novo CÉU e a
nova TERRA, o EU verdadeiro, o EU SOU - O DEBIR108 - a partir do
qual, na vivência do AQUI e AGORA, se vislumbra o Infinito para captar
a dimensão eterna da vida inerente à própria natureza do ser humano na
sua ESSÊNCIA.
Referências
FREEMAN, Laurence. Jesus, o mestre interior (trad. do original inglês, Jesus the Theacher
Withim, por Valter Lellis Siqueira), editora Martins Fontes, São Paulo, 2004.
FLEISCHHAUER, Gisela C., (I. Anelise, IDP). Hierarquia dos Níveis de Consciência,
(monografia apresentada no Curso do Institute of Spiritual Lidership), joint to Loyola
University, Chicago, 1989.
HURLEY, Kathleen V.; DOBSON, Theodore E.. Qual é o meu Tipo? Eneagrama um estudo
dos 9 tipos da personalidade humana (trad. Júlia Bárány), editora Mercuryo, São Paulo,
1994.
DANIELS, David; PRICE, Virginia. A Essência do Eneagrama - Manual de Autodescoberta
e Teste definitivo de Personalidade, editora Pensamento, 10ª ed., São Paulo, 2013.
PALMER, Helen. Eneagrama - Compreendendo-se a si mesmo e aos outros em sua vida,
editora Paulinas, 6ª ed., São Paulo, 2009.
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para liberar o poder do eu interior, editora Mercuryo, São Paulo, 1995.
MELENDO, Maite. O Eneagrama, um método de autoconhecimento, autoaceitação e
aperfeiçoamento das relações interpessoais, editora Loyola, São Paulo, 2001.
ZUERCHER, Suzanne. A Espiritualidade do eneagrama, da compreensão à contemplação,
editora Paulus, São Paulo, 2001.
EBERT, Andreas. A Espiritualidade do Eneagrama, editora Vozes, Petrópolis, Rio de
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MAITRI, Sandra. A Dimensão Espiritual do Eneagrama, as nove faces da Alma, editora
Cultrix, 11ª ed., São Paulo, 2010.
CUNHA, Domingos. Crescendo com o ENEAGRAMA na Espiritualidade, editora Paulus,
São Paulo, 2005.
RISO, Don Richard; HUDSON, Russ. A Sabedoria do Eneagrama - guia espiritual para o
crescimento psicológico e espiritual dos nove tipos de personalidade, editora Cultrix, 12ª
ed., São Paulo, 2011.
PASSOS, Alaor. O Eneagrama e os Eneatipos Humanos - guia para iniciação no mapa dos
segredos, editora Thesaurus, 2ª ed., Brasília, 2010.
FITZGERALD, Eddie; BERGIN, Éilis. A Espiritualidade do Amor em nossa Fraqueza.
(trad. do original inglês An Eneagram Gruide, A Spirituality of Love in Brokenness, por
Debir, uma fonte de energia vital que nasce do interior humano e é capaz de fecundar e
renovar a realidade.
108
108 Fórum
Clarisse Campelo e Alessandro Luccionla Molon), editora Pelicano, Brasília, 1996.
ROSS, Marie-Paul. Atravessar as Provações, como ativar nosso potencial de vida com o
Modelo de Intervenção Global em Sexologia, editora Paulinas, São Paulo, 2013.
KEATING, Thomas. Intimidade com Deus, editora Paulus, São Paulo, 1999.
TOLLE, Echhart. Um novo Mundo - o Despertar de uma nova consciência, editora
Sextante, Rio de Janeiro, 2007.
LELOUP, Jean-Yves. Carência e Plenitude - Elementos para uma memória do essencial,
editora Vozes, Petrópolis, 2008.
LELOUP, Jean-Yves; BOFF, Leonardo. Terapeutas do Deserto (de Filon de Alexandria e
Francisco de Assis a Graf Dürckheim), editora Vozes, 9ª ed., Petrópolis, 1997.
PACOT, Simone. A Evangelização das profundezas - nas dimensões psicológica e
espiritual, editora Santuário, 8ª ed., Aparecida, 2003.
POSSATTO, Lourdes. Em busca da CURA Emocional - Resgatando a harmonia e o
equilíbrio das emoções, editora Lúmen, São Paulo, 2003.
CHOPICH, Erika J.; PAUL, Margaret. O Fim da Solidão - redescobrindo o prazer de viver
com sua Criança Interior, editora Saraiva, 2ª ed., São Paulo, 1994.
MCGURN, Peggy. A CRIANÇA que ainda está EM VOCÊ - manual de instruções de como
tornar benéficas as preciosas reservas do eu, editora Paulus, São Paulo, 1997.
ABRAMS, Jeremiah. O Reencontro da Criança Interior (coletânea de vários autores),
editora Cultrix, São Paulo, 1999.
FLEISCHHAUER, Gisela C., (I. Anelise, IDP). Eneagrama como ponte entre a Psicologia
e a Espiritualidade. Curitiba, 2011.
SILVA, Kélvio Luiz Martins. Respirando o momento presente, edição do autor, Nova Lima/
MG, 2013.
GRÜN, Anselm. Mística, descobrir o espaço interior, editora Vozes, Petrópolis, 2012.
CATALÁN, Josep Otón. A Experiência mística e suas expressões, editora Loyola, São
Paulo, 2008.
FINLEY, James. Merton’s Palace of Nowhere - A Search for God through Awareness of the
True Self, editora Ave Maria, 8ª ed., Notre Dame, Indiana, USA, 1992.
Fórum 109
Resenha
FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2010.
Luc Ferry nasceu em Paris, em 1951. É um filósofo contemporâneo
que foi Ministro da Educação da França entre 2002 e 2004. Sobre as
influências que sofreu e que fizeram dele um expoente do que poderíamos
chamar humanismo secular, ele diz, ao comparar-se ao filósofo André
Comte-Sponville, com quem escreveu uma obra: “Um dia, escrevi um
livro com meu amigo André Comte-Sponville, o filósofo materialista
pelo qual tenho o maior respeito e amizade. Tudo nos opunha: tínhamos
aproximadamente a mesma idade, poderíamos ter sido competidores.
André vinha, politicamente, do comunismo; eu, da direita republicana e
do gaullismo. Filosoficamente ele se inspirava completamente em Spinoza
e nas sabedorias do Oriente; eu, em Kant e no cristianismo” (p. 315-316 O destaque é nosso).
Portanto, ao longo do seu itinerário intelectual, Luc Ferry teve contato
com diversas visões de mundo. Como ele mesmo diz, politicamente é um
direitista republicano. Em termos filosóficos, foi formado no cristianismo
e no kantismo. Também não se considera um materialista. Ferry tem uma
vasta produção bibliográfica que aborda um amplo leque de assuntos. A obra
tratada neste trabalho é Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos,
publicada em 2006. O título original francês é Apprendre à vivre: traité de
philosophie à l’usage dês jeunes générations. A tradução portuguesa mais
apropriada seria Aprender a viver: Tratado de filosofia para uso das jovens
gerações. Essa obra, a meu ver, tem uma importância social e acadêmica
considerável. À primeira vista, parece mais uma das muitas obras de autoajuda de caráter psicológico que povoam um considerável espaço das
estantes de nossas livrarias e bibliotecas. Puro engano! Trata-se, é verdade,
de uma obra, como o próprio título deixa evidente, voltada a ajudar seus
leitores a viver melhor. Para isso, faz um percurso pela história da filosofia
ocidental, colhendo das grandes escolas e correntes filosóficas, as lições e
ensinamentos que se destinam ao fim supracitado: proporcionar uma vida
melhor. Aprender a viver é, portanto, uma obra de filosofia. Sua linguagem
simples, acessível, fluida, prazerosa, não compromete a profundidade das
idéias filosóficas abordadas. Portanto, a importância social de Aprender
110 Resenha
a viver consiste em colocar à disposição dos leitores em geral os saberes
legados à humanidade pelas grandes tradições filosóficas, pois estas
“podem simplesmente ajudar a viver melhor e mais livremente” (pág. 16).
E a relevância acadêmica? Esta reside no conceito de filosofia de
que parte Ferry. Conceito ao mesmo tempo novo e antigo! Esse paradoxo
se explica porque Ferry tenta recuperar o conceito originário de filosofia
que predominou até a Igreja, na Idade Média, ao monopolizar os temas
que até então eram tratados pela filosofia, dar a esta um papel meramente
instrumental e secundário, especialmente em relação à teologia. O filósofo
francês defende que a filosofia deve ser reconduzida ao seu papel original
enquanto doutrina de salvação sem Deus. Salvação de quê? Senão da
morte, como prometem as religiões, com destaque para o cristianismo,
ao menos dos medos gerados pela consciência da finitude. Na seguinte
passagem, Ferry explicita sua idéia de filosofia estabelecendo um paralelo
com a religião: “A filosofia – todas as filosofias, por mais divergentes que
às vezes sejam nas respostas que tentam oferecer – promete também que
podemos escapar dos medos primitivos. Ela tem, pois, em comum com as
religiões, pelo menos na origem, a convicção de que a angústia impede de
viver bem: ela nos impede não apenas de ser felizes, mas também de ser
livres. [...] Não se pode pensar ou agir livremente quando se está paralisado
pela surda inquietação que gera, mesmo quando se tornou inconsciente, o
temor do irreversível. Trata-se, pois, de chamar os homens à ‘salvação’”
(pág 29). A filosofia promete salvação não mediante a fé, mas pela razão.
Como já foi citado acima, Aprender a viver faz um percurso por toda a
história do pensamento ocidental abordando as escolas filosóficas a partir
de três eixos: teoria (qual visão se tem do mundo no qual se vive?), ética
(qual comportamento se deve ter diante dos iguais?) e a sabedoria ou
busca de salvação (como se deve viver para se viver bem?).
Outras duas idéias interessantes que Ferry desenvolve e defende no
livro são as de transcendências horizontais e de pensamento alargado.
Segundo Luc Ferry, existem coisas que estão além da capacidade criativa
e inventiva do homem. Ou seja, essas coisas o homem não cria, mas
descobre, desvela. Portanto, elas lhe são transcendentes. Entretanto, elas
não estão acima do, mas no homem. Trata-se, então, de uma transcendência
na imanência. Em outras palavras, Aprender a viver conceitua as
transcendências horizontais (com destaque para o amor) em detrimento das
verticais (Deus, nação). Embora reconheça a importância do cristianismo
na formação da civilização ocidental, Luc Ferry se considera não crente.
Talvez contribua para essa posição o antigo e insolúvel problema do mal
Resenha 111
no mundo, como ele deixa entrever em algumas passagens. Também
ele considera os direitos humanos necessários, mas insuficientes para a
existência humana. Isso se deve ao fato de o homem tender, por natureza,
ao transcendente.
Por último, o filósofo francês conceitua o que chama de pensamento
alargado, visto como “antídoto” contra duas posições intelectuais
extremistas e perigosas, o ceticismo e o dogmatismo. Ter um pensamento
alargado é “resgatar o que uma visão de mundo diferente da sua pode ter
de verdadeiro, aquilo que pode nos levar a compreendê-la, ou mesmo a
assumi-la em parte” (Pág. 315).
Denison Ricardo da Costa Barbosa
Graduando de Filosofia da FAHS, 8º período.
112 Resenha
EDITAL DE INSCRIÇÃO DE ARTIGOS
– 2014/02
Apresentação
A Faculdade Dom Heitor Sales informa à Comunidade Acadêmica
que, de 28/05/2014 a 15/08/2014, está aberto o período de inscrição de
trabalhos acadêmicos para publicação, dando prosseguimento à produção
periódica semestral de seus artigos científicos e culturais no quarto número
da Revista FAHS.
A Revista FAHS é uma publicação impressa, oriunda do esforço
comum dos Cursos de Filosofia e Teologia, contribuindo para a divulgação
do pensamento da IES e interação com outras Instituições congêneres.
Normasde Publicação
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numerada ou não.
4 - As citações de até 3 linhas ficam nos corpo do texto entre aspas
duplas (“). As citações diretas no texto com mais de três linhas,
devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, em
fonte 10, sem aspas.
Normas de Publicação 113
5 - Todas as referências obedecerão às normas vigentes da ABNT,
ressaltando que o número de páginas não deverá ultrapassar o total
de 12, incluídos gráficos e/ou ilustrações.
6 - A resenha limitar-se- á, no máximo a quatro páginas, em Times New
Roman, tamanho 12 e entrelinhas 1,5. No cabeçalho deve constar
citação completa da obra resenhada, com o nome do resenhador ao
final.
7 - Os artigos serão examinados pelo conselho editorial.
8 -A aceitação ou recusa dos textos enviados e sua consequente
notificação aos autores cabe ao Conselho editorial.
9 - Os autores deverão assinar documento contendo autorização da
publicação de seus textos.
10 - A Faculdade não se responsabilizará pelas ideias veiculadas nos
artigos.
Natal, 28 de maio de 2014.
Prof. Ms. Vicente Laurindo de Araújo
Editor responsável da Revista FAHS 114 Normas de Publicação
Pe. José Valquimar
Nogueira do Nascimento
Diretor
Geral da FAHS
Esta obra foi impressa em processo digital
na Oficina de Livros para a Letra Capital Editora.
Utilizou-se o papel Offset 75g/m²
e a fonte Times New Roman corpo 11 com entrelinha 14.