Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades
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Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades
Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Organizadores: João Carlos Nogueira e Tânia Tomázia do Nascimento Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Organizadores: João Carlos Nogueira e Tânia Tomázia do Nascimento Florianópolis, 2012 Núcleo de Estudos Negros - NEN Coordenação Executiva Joana Célia dos Passos Mislene Nogueira da Silva Martins João Carlos Nogueira Conselho Diretivo Eliane Santana Dias Debus Ana Carolina Machado do Espírito Santo Paulo Roberto Freitas da Silva Karina de Araújo Dias Atilènde Editora Produção: Quorum Comunicação. www.quorumcomunicacao.com.br Projeto Gráfico: Audrey Schmitz Schveitzer Impressão: Alternativa Gráfica Tiragem: 1.000 exemplares P314 Patrimônio cultural, territórios e identidades / organizadores: João Carlos Nogueira e Tânia Tomázia do Nascimento. – Florianópolis : Atilènde, 2012. 200 p. Inclui bibliografia ISBN:978-85-89469-03-6 1. Negros – Brasil – História – Aspectos sociais. 2. Relações raciais – Brasil. 3. Negros – Cultura. 4. Literatura afro-brasileira. 5. Quilombos. 6. Políticas públicas. I. Nogueira, João Carlos. II. Nascimento, Tânia Tomázia do. CDU: 323.12(81) Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 Sumário Apresentação - Bens culturais como vetores de transformação social........5 João Carlos Nogueira e Tânia Tomázia do Nascimento Capítulo I - Patrimônio, Território e Identidade Afro-brasileira.....................13 Território e Territorialidade como Fatores Constitutivos das Identidades Comunitárias no Brasil: Caso das Comunidades Quilombolas.......................................................15 Kabengele Munanga Patrimônio Cultural Negro-Africano: Desafios Contemporâneos.......................................................21 Marcos Antônio Cardoso A Religiosidade de Matriz Africana como Patrimônio Histórico Cultural das Populações Afro-brasileiras..............................................................................41 Marcos Rodrigues da Silva Mitos e Culturas Afro-Brasileiras como Prática Pedagógica da Diferença...........................................49 Carla Fernanda da Silva e Marcos Rodrigues da Silva Literatura, Patrimônio Cultural e Relações Étnico-raciais...................................................................57 Eliane Santana Dias Debus Patrimônio Cultural e Cultura Afro-brasileira: Conflitos e Mediações................................................67 João Carlos Nogueira e Tânia Tomázia do Nascimento Capítulo 2 - Patrimônio e Direito Cultural.....................................................................83 Patrimônio, Memória, Direito Cultural e Território............................................................................85 Rossano Lopes Bastos Patrimônio Cultural: Conceituações e Questionamentos..................................................................105 Tânia Tomázia do Nascimento Sobre o Tombamento dos Quilombos.................................................................................................117 Dalmo Vieira Filho Identidade Cultural, Multiculturalismo e Patrimônio Cultural.........................................................131 José Carlos dos Santos Debus Capítulo 3 - Arqueologias, Gestão do Território e Diversidade Cultural.......141 Arqueologias Atravessando o Atlântico..............................................................................................143 Luiz Oosterbeek Museu de Arte Pré-Histórica: Continuidade, Inovação e Desenvolvimento Sustentável..................153 Luiz Oosterbeek e Sara Cura A Implantação dos Engenhos na Ilha de Santa Catarina: Exploração e Manejo dos Recursos Ambientais ..... 167 Osvaldo Paulino da Silva Do Barro e Outras Coisas....................................................................................................................175 Fabiana Kretzer Apresentação Bens culturais como vetores de transformação social João Carlos Nogueira1 e Tânia Tomázia do Nascimento2 No entanto, essa visão repetitiva do mundo confunde o que já foi realizado com as perspectivas de realização. Para exorcizar este risco, devemos considerar que o mundo é formado não apenas pelo que já existe (aqui, ali, em toda parte). O mundo datado de hoje deve ser enxergado como o que na verdade ele nos traz, isto é, um conjunto presente de possibilidades reais, concretas, todas factíveis sob determinadas condições. (SANTOS, 2008, p.160) A presente publicação surgiu de uma crença conjunta, acalentada pelos colaboradores que aqui coadunam, que em consonância com Milton Santos (2008) acreditam: é possível exorcizar os riscos de uma visão repetitiva, e acreditar, lutar e envolvessem com um conjunto de “possibilidades reais, concretas, todas factíveis” que diariamente veem ao nosso encontro. Esse é o fio condutor que agrega os trabalhos aqui apresentados, a certeza na factibilidade da mudança, enfim, a confiança de que é possível transformar e construir uma realidade melhor. Sob tal perspectiva, apresentamos o livro: Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades organizado pelo sociólogo João Carlos Nogueira e a arqueóloga Tânia Tomázia do Nascimento, colaboradores e pesquisadores do Núcleo de Estudos Negros3 (NEN), com a participação efetiva de pesquisadores, nacionais e internacionais, das mais diversas áreas de atuações, percepções e territorialidades, o que faz desta obra diferenciada, por seu lugar de partida múltiplo, porém focado: na importância dos bens patrimoniais como vetores de mudanças sociais. Embora exista uma ponderação coletiva de que a noção de patrimônio cultural ampliou-se, alargando-se além do tradicional patrimônio de pedra e cal – composto apenas por monumentos construídos – acreditamos que muito há ainda por fazer. Pois se uma sociedade é composta por um grupo de pesso- 1 Sociólogo, doutorando em Quaternário Materiais e Culturas – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Coordenador do Programa Desenvolvimento, Trabalho e Cidadania do Núcleo de Estudos Negros-NEN 2 Arqueóloga, doutoranda em Quaternário Materiais e Culturas – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Colaboradora do Núcleo de Estudos Negros-NEN 3 O NEN é uma entidade sem fins lucrativos, orgânica ao Movimento Negro de Santa Catarina e do Brasil, fundado no ano de 1986. O núcleo agrega militantes e simpatizantes no combate ao racismo e a todas as formas de preconceito e discriminação. É dedicado aos estudos e pesquisas nas áreas da educação, justiça, trabalho e patrimônio cultural afro-brasileiro. O NEN é organizado em três programas: Programa de Educação; Programa de Justiça e Direitos Humanos e Programa de Desenvolvimento Trabalho e Cidadania. www.nen.org.br Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 5 as que compartilham entre si e mantêm suas especificidades, diferentes interesses, propósitos, valores e identidades atuam nos critérios de definição e seleção do que é patrimônio cultural, sendo dessa forma, a noção de patrimônio algo dinâmico e em processo de construção e reformulação. Logo, nosso desafio é intensificar o sentido de diversidade e pluralidade das culturas, compartilhar conhecimentos no campo das pesquisas e das experiências dos sujeitos nas suas multiplicidades, vividas e apreendidas. O presente livro está organizado em três capítulos: Território e identidade afro-brasileira; Patrimônio e direito cultural e Arqueologias, gestão do território e diversidade cultural. O primeiro capítulo, intitulado Patrimônio, Território e Identidade Afro-brasileira, é composto por seis artigos que pontuam as temáticas: território e territorialidade; a cultura negra e seus desafios na contemporaneidade; as religiões de matriz africana como um bem patrimonial da cultura brasileira. Destaca-se também a literatura afro-brasileira, que marca as nossas relações raciais ao longo dos séculos de formação da “alma do povo brasileiro”. No artigo intitulado: “Território e territorialidade como fatores constitutivos das identidades comunitárias no Brasil: caso das comunidades quilombolas”, que abre o primeiro capítulo, o professor e pesquisador Kabengele Munanga, começa o seu texto com uma afirmação categórica: “Os discursos sobre a identidade negra no Brasil aparecem às vezes confusos, por causa da falta de um discernimento claro dos fatores que constituem a sua substância”. A partir desse fio condutor, o autor explora as dimensões e importância da “memória e da territorialidade na construção das identidades comunitárias”. Por essa perspectiva, o autor expõe, como a partir da perda do seu território físico, os “africanos e sua descendência se lançaram na busca de territórios próprios”, recriando espaços de territorialidade, fator substancial de resistência identitária. Munanga cita como exemplo: os territórios de resistência religiosa, os territórios coletivos adquiridos a partir das rebeliões da senzala e os clubes negros, como um “território étnico no contexto urbano”. Ao avaliar o território como fator essencial na identidade de um povo, o autor finaliza seu artigo chamando a atenção para uma questão crucial: a importância da terra e dos territórios quilombolas na atualidade. Para Munanga, “a terra e os territórios quilombolas devem ser entendidos como constitutivos identitários comuns para todas essas comunidades.” Um cerne indelével de identidade, mais um território de resistência coletiva que precisa ser assegurado. Por outra perspectiva, diferenciada, mas não divergente, o historiador e pesquisador Marcos Antônio Cardoso, com o artigo “Patrimônio cultural negro-africano: desafios contemporâneos” coloca em pauta a questão do “patrimônio cultural negro no Brasil” sua relação com a memória e a necessidade de uma “nova prática política no campo da cultura”, onde os “territórios culturais negro-africanos” possam ser 6 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades reconhecidos e valorizados. Para tal, o autor propõe a criação de “Centros de Informação e Referência da Cultura Negro-Africana como espaços e lugares de visibilidade do povo negro”. Visto pelo mesmo como espaços “aglutinadores de experiências e projetos relacionados ao patrimônio cultural negro-africano”. Ambientes de manifestações e produções de bens materiais e simbólicos, bem como espaço de articulação e produção cultural. De forma direta o autor cita diversas linhas em que tais centros poderiam operar, através de projetos e programas: Cultura e Política; Cultura e Educação; Cultura e Economia e Apoio a projetos da comunidade negra e da sociedade civil. Cardoso conclui que o patrimônio pode ser “entendido como defesa da vida: algo que reponha de alguma maneira diante e dentro das pessoas”. Já o professor e teólogo Marcos Rodrigues da Silva, no artigo intitulado “A religiosidade de matriz africana como patrimônio histórico cultural das populações afro-brasileiras”, procura discutir “caminhos possíveis para a preservação e os usos sustentáveis de territórios sagrados para as religiões de matriz africana, em África e na diáspora afro”. O autor dialoga sobre a pluralidade étnica e a diversidade religiosa das populações africanas e afro-brasileiras, e chama a atenção para a necessidade de assumirmos estas características como parte integradora da identidade brasileira. E adverte que só este processo de reconhecimento permite o “conhecimento de toda a riqueza arqueológica, simbólica e das variadas facetas religiosas que estão manifestas”, cujo resultado é o fortalecimento “da autoestima do povo negro e do seu legado na história afro a ser reconhecida em toda a América Latina”. No artigo seguinte, “Mitos e culturas afro-brasileiras como prática pedagógica da diferença” Carla Fernanda da Silva e Marcos Rodrigues da Silva, discutem a importância dos mitos de matriz africana e a cultura afro-brasileira, no espaço da sala de aula e como prática pedagógica. Sugerem a utilização dos mitos africanos em sala de aula para ir além da tradicional “história contada”, que frequentemente é abordada apenas sob a ótica da escravidão, ou seja, a partir da perspectiva de uma sociedade em que os negros estão sujeitos às decisões de outros, em que os mesmos não são protagonistas. Para os autores, “iniciar o estudo dessa cultura a partir de seus mitos torna-se uma possibilidade de entendê-la a partir da realidade africana, ou seja, contada por seus povos”. Os autores advertem para o lugar de curiosidade e exótico com que a cultura africana e afro-brasileira geralmente são apresentadas, reforçando um olhar de hierarquização cultural, cujos resultados é uma visão superior versus inferior, o que não condiz com a realidade. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 7 No texto intitulado, “Literatura, patrimônio cultural e relações étnico-raciais”, a professora e pesquisadora em literatura infanto juvenil Eliane Santana Dias Debus, tece considerações sobre “a literatura de recepção infantil e juvenil e a temática africana e afro-brasileira”. Temática sobre a qual a autora avaliou publicações destinadas a esse público, onde de um total de 2.417 publicações apenas 171 apresentam o negro e/ou a cultura africana e afro-brasileira. Segundo a autora, “estudos que remetem exclusivamente a pesquisas sobre escritores negros e ou afro-brasileiros na literatura de recepção infantil e juvenil brasileira ainda estão por serem feitos.” Embora estudos sobre a “temática da cultura africana e afro-brasileira, a partir da presença de personagens negras ou de elementos da cultura africana e afro-brasileira” tenham sido realizadas desde a “década de 1980 e se acentuado no início do século XXI.” Embora ainda se apresente um “dilema: a voz silenciada, inviabilizada, do negro nas narrativas, como produtora e como representação”. A autora coloca questões problemáticas e faz um arrazoado sobre o já produzido sobre a questão, o que torna o texto convidativo a uma reflexão. No artigo “Patrimônio cultural e cultura afro-brasileira: conflitos e mediações”, o sociólogo João Carlos Nogueira e a arqueóloga Tânia Tomázia do Nascimento, provocam reflexões e analisam algumas das razões históricas e contemporâneas que ainda dificultam o reconhecimento ampliado e concreto das culturas afro-brasileiras. Os autores discorrem sobre as políticas públicas e a cultura afro-brasileira, abordam aspectos importantes sobre o patrimônio afro-brasileiro e seus lugares de negação e permissão, sugerem reflexões sobre o patrimônio e a memória e por fim propõem a utilização da educação patrimonial como um dos principais instrumentos de participação social e de contribuição para a consciência sobre os bens patrimoniais da cultura afro-brasileira. O segundo capítulo, intitulado Patrimônio e Direito Cultural, é composto por quatro textos que pontuam reflexões críticas em torno dos conceitos de patrimônio, memória e direito cultural; os territórios quilombolas são abordados a partir dos limites constitucionais previstos e suas possibilidades enquanto direito social e cultural; e por fim, são discutidas as tensões entre identidade cultural, multiculturalismo e patrimônio cultural. O arqueólogo Rossano Lopes Bastos, em seu artigo: “Patrimônio, memória, direito cultural e território”, sustenta que “a temática do patrimônio, memória, direitos culturais e território tem em comum o sentimento de “pertença”, ou seja, qualquer que seja o viés da abordagem, este atributo estará sempre presente.” Partindo desse pressuposto, o autor tece uma análise das temáticas mencionadas, avaliando a realidade brasileira, e em especial das “populações vulneráveis”. 8 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Bastos apregoa os direitos culturais, enquanto direitos humanos, uma vez que o patrimônio cultural “ungido por todas as formas de expressão, manifestação e saber, constitui na sua matriz a força motriz do pertencimento que estabelece nossas identidades e caracteriza os bens culturais como bens de uso público, de todo o povo brasileiro.” De maneira que o “fundamento das políticas de proteção do patrimônio” deveria transcender as clivagens ideológicas e agregar todas as etnias que compõem nossa sociedade. No artigo intitulado “Patrimônio cultural: conceituações e questionamentos”, a arqueóloga Tânia Tomázia do Nascimento tece em tom indagativo considerações sobre os campos de ações do patrimônio cultural. A autora busca discutir o processo de institucionalização dos bens patrimoniais e suas confluências em um plano prático, tendo como perspectiva de análise o local atribuído às populações afro-brasileiras. De forma interrogativa, questões como: o papel do Estado, o lugar atribuído às populações afro-brasileiras, conscientização política, política pública, compartilhamento, entre outras, são abordadas de forma direta e pragmática. Como a própria autora coloca: “mais do que respostas” o artigo faz questionamentos e conjecturas sobre as mutações na noção de patrimônio cultural, seus resultados e possibilidades. O arquiteto Dalmo Vieira Filho, no artigo intitulado “Sobre o tombamento dos quilombos”, discute os marcos legislativo, a caracterização e reconhecimento histórico cultural dos quilombos. O autor pontua que de acordo com a legislação existe uma diferença evidente entre duas categorias: “os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos e as comunidades de quilombos”. O autor expõe que: “para os antigos quilombos, a Constituição preconiza o tombamento, isto é, a identificação, a proteção e o automático reconhecimento do valor cultural. Para as comunidades quilombolas (que podem eventualmente incluir os antigos quilombos), prevê a garantia da propriedade da terra”. A partir desse eixo o autor discorre sobre a conceituação entre essas duas categorias, seus desdobramentos práticos na atualidade e os procedimentos cabíveis, levando-se em consideração os preceitos legislativos. No texto “Identidade cultural, multiculturalismo e patrimônio cultural”, o professor e pesquisador José Carlos dos Santos Debus, faz uma reflexão sobre as ditas “culturas irregulares”, já que a “produção cultural ligada aos afro-brasileiros e índios tem sido tratada, muitas vezes, como produção irregular, incompleta de sentido e de valores artísticos e estéticos”. O autor discute aspectos teóricos correlacionados a temática identitária e sua negociação, e chama a atenção para a “capacidade do patrimônio cultural de reforçar uma identidade e os valores comunitários e também contribuir com o diálogo entre diferentes culturas e grupos sociais que integram uma sociedade”. E conclui debatendo sobre a necessidade de incorporação nas pedagogias educacionais dos aspectos multiculturais que formam nossa sociedade. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 9 O terceiro capítulo intitulado Arqueologias, Gestão do Território e Diversidade Cultural, é composto por quatro textos que articulam o papel da arqueologia nas várias áreas do conhecimento. A “temática transatlântica” é vista como “um conjunto de conexões, humanas, teóricas e socioculturais”; os museus são vistos enquanto processo de inovação sustentável; e o território como espaço de exploração, manejo dos recursos ambientais e expoente para realização de ofícios. O mesmo tem início com o artigo do arqueólogo português, Luiz Oosterbeek, intitulado “Arqueologias atravessando o Atlântico”, onde o autor aborda a “temática transatlântica”, vista como “um conjunto de conexões, humanas, teóricas, socioculturais”, a partir das quais pontua cinco enfoques ou “temas que podem constituir elementos de união entre arqueólogos dos dois lados do Atlântico”: Arqueologia, salvamento e valorização; Arqueologia e Patrimônio; Arqueologia e Identidade; Arqueologia e Economia e Arqueologia e Conhecimento. A partir dessas “cinco arqueologias”, são discutidas a linhas de ações, formações e possibilidades transformativas porque vem passando este campo do conhecimento. Em uma visão imbuída na vivência, o autor propõe que: “A alteração do paradigma profissional exige a alteração do paradigma formativo”, logo o diálogo intrínseco entre as cinco linhas apresentadas é proposto como essencial para a construção de “projetos concretos articulados com problemáticas históricas”. No artigo intitulado: “Museu de Arte Pré-Histórica: continuidade, inovação e desenvolvimento sustentável”, Luiz Oosterbeek e a arqueóloga Sara Cura, relatam uma experiência de caso a partir das atividades desenvolvidas no Museu de Arte Pré-Histórica de Mação, Portugal, que por uma perspectiva de gestão integrada do território busca “criar um centro de investigação de excelência”, que se articule “de forma estreita com o desenvolvimento regional”. A partir do objetivo proposto os autores exploram as linhas de ações estruturantes desenvolvidas pelo museu, tais como: “a investigação (essencial para a identificação e compreensão do patrimônio), a educação (essencial para a formação de técnicos especializados, mas, também, para a formação global de uma consciência patrimonial na sociedade), a preservação (crucial para que os bens identificados se conservem no tempo) e o usufruto do conjunto dos cidadãos (razão de ser de todos os anteriores)”. No texto a implantação dos engenhos na ilha de Santa Catarina: “Exploração e manejo dos recursos ambientais”, o arqueólogo Osvaldo Paulino da Silva, a partir de uma perspectiva advinda da arqueologia da paisagem expõe os resultados de um projeto de pesquisa que identificou “77 sítios arqueológicos provenientes de engenhos” na Ilha de Santa Catarina, dos quais apenas 3 estavam em funcionamento. 10 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades O autor coloca que no ano de 1797 havia “560 engenhos em funcionamento na ilha de Santa Catarina”, demonstrando o processo de decréscimo que os mesmo foram gradativamente passando na região. E por fim, a partir de uma avaliação empírica, o autor tece um levantamento sobre o manejo dos recursos utilizados nos engenhos, avaliando-os com as disponibilidades de recursos naturais disponíveis na ilha e as transformações apresentadas na paisagem. Já a historiadora Fabiana Kretzer, no artigo intitulado: “Do barro e outras coisas”, aborda o saber fazer dos oleiros do município de São José, Santa Catarina, como temática para discutir o patrimônio histórico cultural do município e as formas de apropriação desse bem enquanto saber fazer dos oleiros e enquanto discurso político do poder público no município. A partir de um enfoque participativo a autora busca através de entrevistas e pesquisas bibliográficas reconstituir o histórico e maneiras de ações dos oleiros frente aos desafios atuais. Como a própria autora coloca, seu trabalho procurara “expressar sentimentos cotidianos de pessoas que vivem suas rotinas de maneiras diferentes, numa mesma geografia e tendo como elo o mesmo extrato: o barro”. Como se pode perceber a presente obra se origina de um esforço coletivo, eivada por uma crença conjunta, de que é possível exorcizar os riscos de uma visão repetitiva e monótona, às vezes encoberta pelo discurso da pluralidade cultural, da diversidade e do multiculturalismo. Referências SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 15ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2008. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 11 Capítulo I Patrimônio, Território e Identidade Afro-brasileira 14 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Território e Territorialidade como Fatores Constitutivos das Identidades Comunitárias no Brasil: Caso das Comunidades Quilombolas Kabengele Munanga1 Os discursos sobre a identidade negra no Brasil aparecem às vezes confusos, por causa da falta de um discernimento claro dos fatores que constituem a sua substância. Entre o discurso ideológico do movimento negro e da classe dominante por um lado e o discurso acadêmico, por outro, perde-se de vista a identidade como é vivida pelas bases populares e as comunidades particulares negras, no exemplo das comunidades quilombolas. O pesquisador que atua às vezes nessa diversidade discursiva corre o risco de pintar um quadro identitário distante daquele que refletiria internamente os ensaios dessas comunidades (MUNANGA, 1988). 1 Professor titular do departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo. No presente texto, pretendemos fazer algumas especulações sobre certas questões de fundo, notadamente sobre a importância da memória e da territorialidade na construção das identidades comunitárias. Partimos da afirmação de que a memória e a territorialidade têm por função assegurar a preservação do sentimento de unidade, continuidade e existência do grupo. Entram na construção da memória a história de vida, as projeções do imaginário e a criação dos mitos legitimadores. De modo geral, a busca da identidade no mundo negro da diáspora se tornou um imperativo do grupo. Mas é importante questionar a natureza deste “querer” e o sentido escondido de sua razão de ser. Historicamente, o discurso sobre o tema se relaciona com a escravidão e as condições reais do negro no pós-escravismo, pois é uma resposta à dominação, um argumento político e uma relação política. Mas, o tema da identidade, frisamos, está sem contornos definidos; é maleável e manipulável à vontade segundo Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 15 as circunstâncias, as instâncias e os interesses em jogo. Sua complexidade evoca múltiplos fatores: históricos, psicológicos, linguísticos, culturais, políticos, econômicos, sociais e geográficos. Do ponto de vista histórico, é necessário enfatizar não apenas a questão das raízes, mas também e sobretudo o processo histórico no qual se desenvolveu a resistência. Uma história penosa e pesada para ser carregada e ser aprofundada, mas também uma história em construção e reconstrução, difícil de dominar e com alguns aspectos pouco interrogados. A busca da identidade parece um caminho para entrar na história até então contada apenas do ponto de vista do “outro”, o único caminho para coexistir, para se unir e construir junto com os outros (ORUNO, 1978). A identidade, repetimos, compreende um conjunto de traços: étnicos, linguísticos, históricos, socioculturais, intelectuais, míticos e religiosos. Se a noção da identidade é inseparável da noção da unidade, ela implica também a diversidade. Mas mesmo respeitando essa diversidade, podemos reter como único traço fundamental comum a todos os negros, pouco importa a classe social de cada um, a situação de exclusão. Em outros termos, a identidade do mundo negro se inscreve no real sob a forma de exclusão. Ser negro é ser excluído. Por isso, sem minimizar os outros fatores, continuo a afirmar que a identidade negra mais abrangente seria a identidade política, a de um segmento importante da sociedade brasileira excluída do exercício de plena cidadania. Quem fala e escreve sobre a identidade negra? É possível manter um discurso verbal ou escrito sobre a identidade no qual a ideologia é ausente? Perguntar-se-ia quais seriam, fora do terreno acadêmico-científico, os interesses dos que falam da identidade? Os interesses seriam, sem dúvida, políticos e ideológicos, o que significa que os discursos sobre a identidade, fora do contexto acadêmico não têm outra substância, a não ser as relações políticas e econômicas. O discurso da identidade por parte do movimento negro, assim como o da classe dominante, é sempre seletivo, isto é, cristalizado nos marcos cujos conteúdos permitem a realização dos objetivos políticos. Essa seleção pode criar conflitos sociais se não corresponder aos interesses da maioria, como também pode oferecer à classe dominante material que sua ideologia precisa para manipular a luta dos oprimidos. Para evitar tais problemas, a memória, como a identidade, deveriam ser objeto de constantes negociações entre a militância politizada e suas bases, que vivem à sua maneira sua identidade, sem discursar sobre ela mas que, como o resto da população negra, são os mais excluídos. Este breve introito me permite colocar a questão da importância do território e da territorialidade, sem entrar em contradição com o discurso da identidade enquanto busca da unidade e solidariedade entre todos os excluídos. Ter uma identidade coletiva significa ter a consciência de pertencer a uma única ancestralidade que se materializa não pelos “mortos comuns”, mas sim pela consciência de ter um território físico comum. Os escravizados foram arrancados pela força do seu território físico enquanto terra 16 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades e espaço físico de seus ancestrais fundadores; territórios e terras que constituíam um patrimônio social inalienável e não uma propriedade coletiva alienável. No Brasil, como em todas as Américas onde foram transplantados e escravizados, a memória de seus territórios étnicos foi sistematicamente destruída. Até a documentação sobre esses territórios de onde foram trazidos foi destruída sob a ordem de Rui Barbosa, para apagar definitivamente a chamada “mancha vergonhosa da memória brasileira”. Da memória territorial dos escravizados e seus descendentes sobrou apenas a África enquanto continente negro. Por isso, essa África enquanto continente que sobrou como lembrança indestrutível continua a ser recriada, reinventada e idealizada em todos os discursos identitários da diáspora. Afro-brasileiros, afrodescendentes, afro-americanos e africanos-americanos são apelações que remetem à identidade coletiva diaspórica. A África é vista como um território físico, um território habitado coletivamente pelos negros e de onde foram arrancados os antepassados de todos que hoje povoam os países da diáspora africana. Uma linha genealógica, embora longínqua, cimenta e atualiza sempre a relação com a ancestralidade territorial. É importante frisar que a atual diáspora africana das Américas é resultante de um longo e complexo processo de resistências identitárias: religiosas, artísticas (músicas, danças, culinário, arquitetura, literatura, artes plásticas ou visuais, etc.), medicinais, tecnológicas e científicas. Se não fosse assim, as expressões tais como religiões negras na Américas, músicas e danças negras, culturas negras, não teriam razão de ser. Quantos inventores negros da diáspora cujos nomes foram escondidos através dos nomes identitários lhes impostos pelos escravistas continuam desconhecidos entre nós. Os trabalhos de Paulus Gerdes, etnomatemático moçambicano, membro da Academia Africana de Ciências, são muito reveladores a respeito. Não houve apenas continuidade cultural africana nas Américas, pois surgiram novas descobertas, invenções e reinvenções acompanhadas de novas decodificações e reinterpretações, que permitiram aos africanos escravizados e a seus descendentes se adaptarem ao “estranho” território, apesar das relações assimétricas entre eles e os senhores “donos” das fazendas de cana-de-açúcar, algodão, café e das minerações. Nesse processo, os africanos acabaram culturalmente por domesticar e colonizar alguns territórios de sua diáspora, embora confinados como hoje nas condições de subalternidade política e econômica. É impossível conceber a identidade plural brasileira sem considerar as contribuições dos afrodescendentes (PEREIRA, 1984). Elas estão presentes até nas invenções ocidentais, como o carnaval e o futebol! Nessa resistência, os africanos e sua descendência se lançaram na busca de territórios próprios, onde podiam viver sem relações assimétricas de dominação e exploração. Alguns desses territórios quase clandestinos resultaram da resistência religiosa enquanto manifestação da identidade. Para cultuar seus deuses, orixás e inkissi, etc., eles precisavam de um espaço físico ou geográfico que pudesse servir de lugar de Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 17 culto e que podemos considerar como território étnico. Embora proibidos pelas leis e acompanhados de severas repressões policiais, esses territórios simbólicos, que ora são chamados de terreiros, ora de candomblé, mantiveram-se na clandestinidade por muito tempo, através de estratégias que alguns chamam de sincretismo. A palavra candomblé, embora sujeita hoje a numerosas significações, significa, em Tshiluba, minha língua materna, kandombelé, isto é, lugar da reza, do pedido, do culto, remetendo simbolicamente à noção de território e territorialidade. Outros territórios foram conquistados coletivamente, através das rebeliões da senzala (ver a respeito, Clóvis Moura e Décio Freitas), muito bem ilustradas pela existência do Quilombo dos Palmares e de centenas de comunidades quilombolas que pululam em todo o território brasileiro, do Leste ao Oeste e do Norte ao Sul. Se os nomes emblemáticos como os de Canga Zumba e Zumbi dos Palmares fossem considerados apenas como espíritos de guerra, invisíveis como todos os espíritos, sem posse num território físico onde assentaram seu poder e autoridade, seria difícil acreditar em sua verdadeira existência histórica. Daí a dimensão ontológica do território na construção da identidade coletiva. Os clubes negros, enquanto espaços de lazer, recreação e encontro entre semelhantes excluídos de outros espaços por causa da diferença somática, configuram-se também como territórios étnicos no contexto urbano brasileiro. Esses clubes, inventariados em algumas cidades e estados brasileiros, como São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Santa Catarina, entre outros, oferecem exemplos de territorialidade enquanto resistência identitária. Neste sentido, clubes negros, terreiros de candomblé, de macumba e outros espaços físicos alternativos com as mesmas finalidades carregam um pedaço notável da memória, da identidade e da história do negro brasileiro. Por isso, creio que o tombamento faz parte das políticas públicas afirmativas, na medida em que contribuem para preservar essa memória negra que faz parte da memória coletiva plural brasileira. Não fazê-lo significaria manter a ideologia depreciativa do “Negro João Bobo”, que nunca se importou com sua condição de escravizado, pois nunca resistiu aos maus tratos e à sua desumanização. Em outros termos, seria continuar, através da estratégia do “silêncio”, a negar a plena humanidade do negro e sua contribuição na construção do Brasil enquanto povo, nação e cultura. A questão do território como constitutivo fundamental da identidade de um povo faz parte da própria história da humanidade. Guerras e violências entre povos e civilizações tiveram notadamente como justificativa a ocupação dos territórios dos outros e a defesa dos mesmos. Os impérios foram construídos pela anexação violenta dos territórios de outros povos, em todos os continentes. O que foram os grandes impérios conhecidos na história do Ocidente, do Oriente, dos países asiáticos e árabes? O que foram os impérios bizantino, otomano, napoleônico? O que foram os impérios da África antiga e medieval? 18 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades A destruição da identidade de um povo começa pelo aniquilamento e ocupação do seu território, pois sem território os demais aspectos da cultura não têm suporte para se refazerem. Creio que a morte total de um povo começa com a destruição ou expropriação do seu território enquanto suporte material de todas as manifestações identitárias. Na minha cultura tem um ditado popular que diz que se a terra e o filho estão ambos ao mesmo tempo doentes, deve-se curar primeiramente a terra, correndo o risco de deixar morrer o filho. Têm-se diversos trabalhos de pesquisa acadêmica (dissertações e teses) que se debruçaram sobre nossas comunidades quilombolas e suas identidades. Todas essas comunidades têm cada uma sua história e cultivam hoje religiões diferentes. Mas todas têm um problema comum: a terra. Terra ora cobiçada pelas especulações imobiliárias e turísticas; terra ora ameaçada por falta de documentação que comprova a propriedade dos que nela moram há gerações ou porque está nas áreas de preservação ambiental. A terra e os territórios quilombolas devem ser entendidos como constitutivos identitáros comuns para todas essas comunidades. São a terra e os territórios que constroem o vínculo vital entre eles e seus antepassados que habitaram e morreram nessa terra da qual depende a sobrevivência individual e coletiva. Se perderem a terra e seus territórios, essas comunidades deixarão de existir enquanto comunidades quilombolas. Suas histórias, culturas, visões do mundo, cosmogonias e religiões fora desse patrimônio social e, portanto, inalienável, deixarão também de existir. A terra e o território são como o corpo individual e social que serve de suporte material para todas as nossas identidades, até intelectuais. Da mesma maneira que a negritude é um fator constitutivo da identidade coletiva negra por causa da história que os portadores da cor negra sofreram na história da humanidade, os territórios e as terras quilombolas constituem a “alma” de sua identidade, sem a qual eles deixarão de existir ontologicamente. Referências MUNANGA, K.. Construção da identidade negra: diversidade de contextos e problemas ideológicos. In: CONSORTE, Gomes Josildeth; COSTA, Regina Marcia da (Orgs.). Religião, Política, Identidade. Série Cadernos PUC. São Paulo: EDUC, p.143-147, 1988. ORUNO, Lara, D.. Histoire et fondement de l´identité afro-américaine. In: MICHAUD, Guy. Négritude: traditions et développement. Paris: Éditions Complexes, p.40, 1978. PEREIRA, J. B. Borges. A cultura negra: resistência da cultura à cultura da resistência. In: Dédalo, Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, 23:177-187, 1984. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 19 20 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Patrimônio Cultural Negro-Africano: Desafios Contemporâneos “A força de lembrar a própria força” Marcos Antônio Cardoso1 Refletir sobre o patrimônio cultural negro e seus desafios contemporâneos é muito importante porque precisamos imaginar um futuro mais promissor para o povo negro na sociedade brasileira. Abrir uma janela e descortinar o cenário para uma nova prática política no campo da cultura é uma possibilidade real, não apenas do ponto de vista dos estudos acadêmicos, mas, sobretudo, porque é necessário articular a vasta experiência de ações e atividades culturais e educativas espalhadas em vários pontos do território nacional, vivenciadas e produzidas por uma gama de comunidades negras tradicionais, religiosas, quilombolas, grupos e associações culturais, artistas, músicos, poetas, escritores, educadores, pesquisadores, agentes e produtores culturais, movimentos sociopolíticos, intelectuais e pensadores. 1 Filósofo, e Mestre em História pela UFMG e Membro da Coordenação Nacional de Entidades Negras - Conen Vale dizer também que, além de por algum tempo nos dedicarmos com afinco a projetos de criação de centros de referência da cultura negra em várias cidades brasileiras, os estudos e debates acerca das políticas públicas voltadas para a cultura negra e a questão racial são emergentes e invisibilizados na sociedade brasileira. Aqui me reporto ao papel que a escola exerce em relação ao povo negro, tanto pelo que ela ensina, como pelo que ela deixa de ensinar, mesmo após a sanção das Leis 10.639 e 11.645, que estabelecem a obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura Afro-brasileira, Africana e dos Povos Indígenas no sistema de ensino público e privado do país. “Para o Movimento Negro, o ‘mito da democracia racial’ e a visão preconceituosa sobre a população negra são reproduzidos pelo sistema de ensino através dos currículos escolares e livros didáticos, professores da rede pública e privada em qualquer nível de ensino, nos meios de comunicação social (rádio, televisão, imprensa escrita), na produção editorial Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 21 (livros e revistas), por artistas, intelectuais, escritores, jornalistas, editores, profissionais liberais, lideranças políticas, populares e sindicais, nas mais diversas organizações e instituições governamentais e da sociedade civil – das igrejas aos partidos políticos” (CARDOSO, 2002). Nessa perspectiva, a primeira e instigante questão que levanto com relação ao tema do patrimônio cultural negro no Brasil tem origem na palavra referência. De acordo com Lídia Avelar Estanislau, que abordou questões relativas a este assunto no seminário realizado em novembro de 1994 na Escola Sindical 7 de Outubro, por ocasião das comemorações a Zumbi na Semana da Consciência Negra, em Belo Horizonte, inicio por explicitar que referência é a relação que existe entre certas coisas. “Em sua origem latina, referência significa menção, insinuação, alusão. Uma referência conta ou relata alguma coisa através de palavras ou imagens. Todos nós temos referências, todos nós sabemos que onde há fumaça, há fogo. Adaptada do inglês, referência significa fonte de esclarecimento e, no plural, referências atestam a integridade ou idoneidade de alguém ou alguma coisa. Assim, ao mesmo tempo fonte de esclarecimento e relação existente entre coisas, referência cultural é um conceito finíssimo, porque remete à identidade e à cidadania, posto que a cultura realiza-se como um direito a partir do qual os brasileiros se diferenciam, entram em conflito, recusam ou aceitam modelos, criam alternativas, tornam-se sujeitos da história, autores de sua própria memória” (ESTANISLAU, 1994). Patrimônio tem uma profunda relação com a Memória. E, se a memória não pode ser sempre algo vivo, depende dos vivos para estar sempre atualizada. O maior patrimônio são as pessoas, conforme o velho provérbio: “os que nascem é que são sempre vivos”. O patrimônio cultural negro é algo para nós fundante da nossa própria humanidade, na medida em que ele está entretecido com o continente africano, considerando o fato de que historicamente a África nos legou não somente os primeiros humanos, mas também os saberes primordiais, os valores civilizatórios presentes nas religiões e culturas africanas e os conhecimentos, como a agricultura, como condição primeira para a reprodução da vida; um sistema de cura; a medicina; a tecnologia, o saber da forja ancestral do ferro que deu origem à metalurgia e as técnicas para a extração do ouro; a primeira universidade, a filosofia. O patrimônio cultural imaterial é uma concepção de patrimônio cultural que abrange as expressões culturais e as tradições que um grupo de indivíduos preserva em respeito à sua ancestralidade, para as gerações futuras. São exemplos de patrimônio intangível: os saberes, os modos de fazer, as formas de expressão, celebrações e os lugares, as festas e danças populares, lendas, músicas, costumes e as mais variadas tradições. Nesse sentido, cabe enfatizar a relação intrínseca entre patrimônio e memória, a partir de Muniz Sodré, que, ao significado da palavra patrimônio (herança: bem ou conjunto de bens que se recebe dos antepassados e que se lega aos descendentes), acrescenta: “O patrimônio cultural negro-africano no Brasil é também uma metáfora para legado de uma memória coletiva, de algo culturalmente comum a um grupo. (...) Na verdade, o patrimônio, qualquer patrimônio, pode mesmo ser concebido 22 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades como um território (grifo meu): 1) lugar pertinente - localização, limites - da ação do sujeito; 2) especificidade do espaço social, que o distingue do resto da sociedade ou de outros territórios; 3) zona de limites. (...) O patrimônio simbólico do negro brasileiro - a memória cultural da África - afirmou-se aqui como território político-mítico-religioso, para sua transmissão e preservação” (SODRÉ, 1988, p.50). Herdamos valores culturais fundamentais que constituem traços importantes das nossas identidades daqueles que conhecem profundamente as tradições – as mulheres e homens que vivenciam cotidianamente as religiões de matriz africana. Essas tradições nos legaram valores civilizatórios pautados por uma ética que emana da vivência comunitária e da experiência histórico cultural. Esses valores atravessam esses espaços simbólicos, aos quais, nomeamos como territórios culturais negro-africanos. Estes territórios culturais negros representam o patrimônio cultural negro. O patrimônio cultural negro inspira o nosso comportamento diante do outro, produz uma linguagem e gera história que é transmitida de geração a geração através da oralidade, ao mesmo tempo em que inventa outras escritas gravadas nos corpos, “em cada traço que compõe as tatuagens rituais e nas formas diversas que se alternam entre as cores e linhas que marcam os iniciados nas religiões de matrizes africanas, mas também o silêncio, o não dito” (JUNIOR, 2003). Portanto, a cultura, como diria Muniz Sodré, é um conceito dinâmico, que se move. E a questão torna-se muito mais complexa quando estamos tratando da cultura negra. Tal complexidade baseia-se no fato de que o povo negro brasileiro é descendente de vários grupos étnicos e povos que edificaram as civilizações, nações, reinos, cidades-estados e impérios africanos. O povo negro brasileiro traz consigo, na sua essência mais profunda, um conjunto de valores e influências civilizatórias e culturais bem diferenciadas. O povo negro recriou a cultura de base africana no Brasil e de resto em toda a diáspora no continente americano. No território brasileiro, a essência dessa cultura funda-se no seu princípio dinâmico, na sua força vital simbolizada pelo axé que, entrelaçado na força da ancestralidade, explica as origens da criação do mundo e as forças que o regem. Esta cosmovisão de mundo tem as suas próprias interpretações e percepções do ser, da vida e do comportamento humano, da natureza e dos deuses. Portanto, é absolutamente diferente da cosmovisão judaico-cristã. “Na cultura negra, a troca não é dominada pela acumulação linear de um resto (o resto de uma diferença), porque é sempre simbólica e, portanto, reversível: a obrigação (de dar) e a reciprocidade (receber e restituir) são as regras básicas”. (...) “A troca simbólica não exclui nenhuma entidade: bichos, plantas, minerais, homens, (vivos e mortos) participam ativamente, como parceiros legítimos da troca. (...) A isto a ideologia ocidental tem chamado de animismo, porque apegada a seu princípio exclusivista da realidade, separa radicalmente a vida da morte e entende a troca simbólica com outros seres ou com os mortos como uma projeção fantasiosa da vida. Na cultura negra, a ligação entre os seres é iniciática” (SODRÉ, 1988). Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 23 Nesse sentido, entre as práticas sócio-culturais em que a África é referência, a religião, enquanto forma de conceber o sagrado e com o mesmo relacionar-se é certamente a mais fundamental, na medida em que é a guardiã de um acervo simbólico que nos remete à identidade étnica - fator de coesão e de equilíbrio psíquico, afetivo e social dos homens, mulheres, crianças e velhos, tanto individual quanto coletivamente. Podemos perceber a força cultural negra na forma como as comunidades dos terreiros – enquanto espaços de expressão do sagrado no culto à tradição dos orixás, voduns e inquices, conforme a nação africana de origem – enfrentam a dura violência material e simbólica, efetuados pela polícia no passado e hoje, pelos ataques cotidianos das igrejas neo-pentencostais e eletrônicas. “(...) Os conhecimentos iniciáticos passam pelos músculos do corpo, dependem - ritualizados que são - do contato concreto dos indivíduos, através do qual o axé se transmite. (...) O axé é força vital, sem a qual, segundo a cosmogonia nagô, os seres não poderiam ter existência nem transformação. (...) O axé existe nos animais, minerais, plantas, seres humanos (vivos e mortos), mas não como algo imanente: é preciso o contato de dois seres para a sua formação. E sendo força, mantém-se, cresce, diminui, transmite-se em função da relação (ontológica) do indivíduo com os princípios cósmicos (orixás), com os irmãos de linhagem, com os ancestrais, com os descendentes. (...) O africano tradicional não é um ser social (esta é uma perspectiva moderna), mas ritualístico. A natureza só existe para o civilizado. Para as culturas tradicionais, não existe o natural, tudo é ritualisticamente simbólico. (...) As palavras estão no mesmo plano que o gesto, os deslocamentos do corpo, os sons, os objetos, os cânticos, o sopro vital (pois tudo isto pode conduzir axé) que reconstroem ritualisticamente, por feitiço, o mundo” (SODRÉ, 1983). Os terreiros nas comunidades religiosas de matriz africana, de Candomblé, Xangô, Pajelança, Jurema, Catimbó, Tambor de Mina, Umbanda, ou qualquer nome assumido pelos cultos negros em sua distribuição pelo espaço físico brasileiro, emergem como espaços litúrgicos, culturais e de organização sociopolítica, numa espécie de “continuum” africano na diáspora. Este conjunto organizado de representações litúrgicas, seja de rituais nagô, mantido em sua maior parte pela tradição Ketu, seja os rituais de outras nações, como os Jejes do culto aos voduns, seja os rituais oriundos do complexo cultural dos povos bantu do culto aos inkices da tradição do candomblé de nação angola, inspiram a vida e o fazer cultural cotidiano do nosso povo. Ou seja, é o egbé, a comunidade litúrgica, o terreiro, que constitui a mola mestra, a base do patrimônio cultural negro brasileiro. Foi através dos terreiros - associação litúrgica organizada (egbé) – que se transferiu para o Brasil grande parte do patrimônio cultural negro africano. É importante ressaltar também que as comunidades tradicionais devotas à Nossa Senhora do Rosário, onde se destacam as irmandades e os reinados do Rosário, o candombe e as congadas, com seus ternos e guardas de Congo e Moçambique, são expressões religiosas e representam fortes manifestações de resistência cultural e religiosa do povo negro. Certamente, cabe considerar que, no caso das comunidades religiosas em que possamos perceber traços “afrocatólicos”, isso ocorreu em função das estratégias 24 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades de conversão ao cristianismo impostas pelos reis de Portugal aos reis africanos, no processo de colonização de territórios e dominação de grupos étnicos bantos no centro e sul do continente africano, entre os quais nos referimos em especial ao Congo, Angola e Moçambique. De todo modo, essas manifestações simbolizam o resgate de um elo perdido, o momento “sagrado” de reencontro dos congadeiros com a África, com seus deuses e santos. Ou seja, é através dessas formas culturais negro-africanas que o povo negro resiste às seculares tentativas de esmagamento; reafirmando a sua identidade, criando e recriando referências que possibilitem o mútuo reconhecimento e a solidariedade frente a uma sociedade racista, machista e sabidamente hostil. Por isso, a cultura negra é uma fonte permanente de reação à dominação e à violência racial. “As formas culturais negro-africanas constituem-se politicamente como antítese à cosmovisão greco-romana, ao mesmo tempo em que aparece como um dos modelos possíveis para a reorganização das relações da vida no mundo dito globalizado. Ao mesmo tempo aparece como proposta universal, pois em uma perspectiva universalizante, no mesmo instante em que se diferencia por ser uma cosmovisão pautada na pluralidade e não na unidade. (...) A forma cultural é o que permite e dá condição para o tecido da ética, logo, para o terreno da política e da economia. Exu é a entidade mítico-religiosa, produto cultural da cosmovisão africana, que melhor representa a forma cultural negro-africana (...). Entendemos por forma cultural as condições que possibilitarão toda relação baseada em troca, reciprocidade, dádiva ou mesmo individualismo. Forma cultural é uma categoria que visa entender o padrão cultural no qual as diversidades se expressam; é menos conteúdo expressado e mais o “lugar” onde este conteúdo é expressado. São mais as condições de expressão que a obra propriamente dita. Se comparássemos à criação artística, diríamos que é mais a tela onde a obra vai ganhar corpo que o corpo da obra de arte. Utilizamos da categoria forma cultural para pensar tanto as condições estruturantes de um povo quanto às expressões singulares que lhes dão identidade” (OLIVEIRA, 2006 p. 108-109). Ora, no Brasil sempre se coloca em dúvida a nossa identidade étnica e racial, com o perverso argumento enviesado pelo racismo de que somos desprovidos de um patrimônio cultural africano. Os mitos da inexistência de um passado cultural e o da inferioridade racial baseado em características físicas se somam a que os negros e negras brasileiros não têm passado cultural por sermos seres inferiores. Na contramão desta idéia, é preciso reconhecer que a afirmação de uma identidade negra na sociedade brasileira é também a tessitura do patrimônio cultural negro-africano. Parece-me que para articular argumentos relacionados à identidade nacional é necessário considerar, em primeiro lugar, que aqui no território brasileiro nossa identidade se constitui a partir do momento em que os negros africanos para cá foram transplantados e, enquanto tais, são sujeitos de cultura que pavimentaram a estrada que nos conduz à idéia de nação, cimentando os caminhos que nos levam ao Brasil. A identidade brasileira foi sendo construída sobre os escombros da violência que destruiu a base das sociedades e culturas dos povos indígenas pelos invasores luso-europeus. Sobre a depredação eco- Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 25 lógica dos territórios e a desumanização dos povos africanos transplantados para cultivar as terras, plantar cana e produzir o açúcar; minerar os rios, extrair o ouro e fundi-lo em barras para a exportação; criar o gado; plantar o café, colher, armazenar e carregá-lo até os portos, de onde os navios o levariam para a Europa, os portugueses, com seus padres, missionários, nobres sem nobreza, ladrões e outros aventureiros impuseram sua dominação colonial. Foi desta base que emergiu a sociedade colonial, a qual, em 1822, obteve sua independência política, sem que isso implicasse semelhante descolonização das relações de poder na sociedade brasileira, na medida em que o povo negro também foi excluído do ideário da nacionalidade branca e republicana. A identidade negra é tecida na história do Brasil na mesma medida em que nos afirmarmos como brasileiros construtores da nação. Somos os primeiros trabalhadores do país – mesmo que sejamos subjugados como prisioneiros de guerra ou vistos apenas como seres inferiores, na condição servil de escravos na modernidade. Nós cultivamos a idéia da nação brasileira, da identidade nacional, porque regamos o território que constitui a nação com o sangue e o suor dos corpos vilipendiados dos nossos ancestrais, que nos legaram uma herança civilizatória imemorial. E é essa herança que institui o que denominamos de patrimônio cultural negro-africano. Os tambores falam Desde crianças, nós, os(as) brasileiros(as), somos induzidos a compor uma imagem de África. O imaginário social construído, incutido e internalizado por muitos de nós remete a uma África exótica, povoada por animais selvagens, sem seres humanos, sem gente, como se o continente africano fosse a extensão da própria natureza, portanto, uma África sem história e sem cultura. Outra imagem é a de uma África mítica e idílica, sem espaço para a produção de uma crítica. A imagem mais comum e mais propagandeada pelos sistemas globais de comunicação hegemonizados pelas grandes corporações midiáticas pelo mundo, especialmente no Brasil, é a de uma África afundada na pobreza e na miséria, uma África sem solução, fadada ao fracasso, sem futuro. Mas uma imagem que nós, brasileiros, temos da África, incutida no nosso inconsciente, na nossa memória coletiva, é a imagem do tambor. A musicalidade, os tambores e os ritmos africanos são a representação dessa imagem. Entretanto, o potencial musical africano é tão rico quanto a variedade de instrumentos percussivos e da percussividade dos tambores. A criatividade musical africana, a sonoridade singular das 26 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades vozes, o canto, a execução de instrumentos musicais dos mais diversos timbres, é tão diversa quanto intensa, como sentimos durante o III Festival Mundial das Artes Negras realizado em Dacar, no Senegal. Os ritmos musicais africanos são a base da musicalidade brasileira. Se pensarmos a música como um valor cultural civilizatório fundamental, poderíamos afirmar que pelo menos nos últimos 150 anos a música negra rege com sua pulsação rítmica os povos e os territórios que vão do Sul dos Estados Unidos ao Sul da linha do Equador, atravessando todo o Caribe, a América Latina e irrigando incessantemente o Brasil, amalgamando o Nordeste, a Bahia, Minas Gerais e o Rio de Janeiro como sínteses irradiadoras e de um potencial criativo inesgotável. A musicalidade africana integra em plenitude o patrimônio cultural negro brasileiro, na medida em que a memorização dos padrões rítmicos pelo africano, na condição de escravo no Brasil, fez com que essa musicalidade fosse incorporada pelo povo ao nosso cotidiano, à nossa memória coletiva. Nem a violência racial e nem a violência desumanizadora da escravidão foram capazes de suprimir a força musical dos que para cá vieram e aqui iniciaram o toque do tambor. Os tambores, com os seus timbres, tipos e formatos variados, são usados nas mais diversas manifestações e expressões religiosas e profanas, bem como, em uma profusão de atividades culturais. Os tambores são confeccionados muitas vezes em troncos únicos de árvores sagradas encontradas nas florestas ou matas remanescentes em várias partes do Brasil, como os Ilus do Maranhão ou os tambores Batas cubanos. “(...) Rum, Rumpi e Lé articula uma mensagem rítmica e melódica da comunicação com as divindades, fazendo-as movimentarem-se nas coreografias que revelam aos olhos de todos a odisséia de Orixás, Voduns, Inquices e Caboclos, reportando-se à história, ao mito, às propriedades e às virtudes dos mesmos, com a mesma finalidade de repercutir mensagens que tem os Tambores Falantes na África” (JAIME SODRÉ, 2005). O batuque e o samba: patrimônio da musicalidade brasileira No passado, as congadas, os cordões, os cucumbis, as festas de origem africana representavam possibilidades temporárias de se penetrar coletivamente em território proibido. É importante registrar que essas festas possibilitavam a certos grupos de escravos, de notáveis habilidades na execução de instrumentos musicais, surpreenderem visitantes estrangeiros que aqui aportavam armados de preconceitos. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 27 Observadores da vida carioca no século XIX falam dos escravos que tocavam pela cidade instrumentos africanos e europeus, confrontando diferentes tradições musicais. O choro é um gênero resultante dessa confluência de habilidades instrumentais, enquanto o batuque e o samba têm mais que ver com a criatividade rítmica – a dança e o canto. São atribuídos diversos significados à palavra Samba. Se antes o ritmo que chegou junto com os africanos foi chamado de BATUQUE, os africanos chamavam as suas danças de SEMBA, que significa “umbigada”, ou “união do baixo ventre”. Em consonância, a origem da palavra samba é derivada de semba. Pesquisadores atribuem à palavra samba o significado de “divindade angolana protetora dos caçadores”, ou “culto a divindade pela dança”, passando pela concepção de que samba é uma oração. É certo também que desmembrando a palavra temos prefixo SAM, que significa pagar, e BA, que significa receber, caracterizando aí uma relação dinâmica de troca. De todo modo, como samba são denominados ritmos bastante diversificados, em regiões distintas do Brasil, a exemplo do samba-lenço, do samba- rural, do jongo, do samba-de-roda, do samba-duro, do samba-reggae, do samba de partido alto, do samba-enredo, do samba-canção, do samba-choro. O fato é que o samba se consolidou no Rio de Janeiro, na Bahia e irradiou-se para o restante do Brasil. “Hoje, o samba é uma grande manifestação musical que arrasta multidões. Com a sua sedução, o samba atua na formação de base da cultura brasileira. Esse ritmo, pé no chão, que saiu dos terreiros e dos fundos dos quintais, entrou pela porta da cozinha da casa-grande, desceu as ladeiras de barro das favelas, subiu as escadarias de mármore dos teatros municipais das grandes cidades, é o retrato musical do Brasil e a nossa mais forte identificação cultural diante de todos os povos” (CARDOSO, 2000). O importante é reconhecer que a liberdade buscada pelo impulso musical negro-africano – do jazz ou do samba, semba, batuque – tem a ver com a força da alegria que resiste à opressão e à pressão degradante da vida, do cotidiano da exploração no mundo do trabalho. Trata-se de instituir um lugar forte de soberania do ser humano e de afirmação de sua identidade. É graças à alegria que aceitamos este eterno presente, o eterno retorno da vida, o que nos impele a afirmar o samba como uma das matrizes fundamentais da musicalidade e da cultura brasileiras, e mesmo a identificação musical brasileira em todo o mundo. As expressões culturais negras contemporâneas, a musicalidade e o canto, o corpo e a dança, o teatro e poesia, o samba, a capoeira, o soul, o jazz, o blues, o reggae, o ijexá, o afoxé, o bloco-afro, o carnaval, o funk, o suingue, o merengue, a rumba, a escola de samba, o pagode, o jongo, o lundu, as cantigas de roda, as cantigas de ninar, o maracatu, o caxambu e o movimento crítico e poético do hip-hop, do rap e do funk são expressões da mesma matriz de um povo que produz cultura e potencializa o Brasil de norte a sul. 28 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades No entanto, as mãos que produzem essa cultura não aparecem. Nossa cultura é apropriada por outros. Torna-se invisível e, aparentemente, mais um produto da mídia. Nossa cultura não é ensinada na escola, torna-se mais um produto descaracterizado pela indústria cultural, pela desinformação e ignorância, pela publicidade voraz por lucro fácil. “As elites racistas procuram de todas as formas impedir, distorcer e negar a visão de mundo que sustenta a cultura negra, que entra em conflito e que pode,colocar em risco os seus privilégios raciais e seu poder. Por isso é que tratam cultura de todo um povo como folclore, de cultura marginal urbana, menor, a qual se patrocina ou se assiste com a postura de superioridade. Circunscreve-se a cultura negra à culinária, ao libidinoso, ao lúdico e ao ritual religioso, às externalidades. (...) A cultura negra só é absorvida quando seus aspectos fundamentais estão desreferenciados da história de opressão e lutas do povo negro, dentro e fora da África. A adoção de alguns símbolos negros como marcas da cultura nacional cumpre um papel político importante, na medida em que encobre o racismo e previne a emergência de conflitos, oferecendo ao negro a ilusão de participar na imagem da sociedade brasileira. (...) Não se admite que ao longo da história da humanidade o povo negro contribua para a cultura universal, que transcende a todos os povos, seja apropriada pelos brancos e a sociedade, sem a revelação de suas origens.(...) Enfim, a violência racial pela via da manipulação política da cultura negra expressa-se sem máscaras, quando o “reconhecimento” da importância do negro no espaço da Cultura se dá em troca da sua subordinação e de seu alijamento das esferas de decisão da sociedade”. (MNU, 1990). O racismo não se resume meramente ao preconceito, à cor da pele. Manifesta-se na profunda negação das diferenças e do diferente, em seu contexto existencial e de visão de mundo. Os povos negros e indígenas, após mais de 500 anos de formação do país, são olhados como se ainda fossem apenas ex-escravos: brasileiros sem raízes culturais e históricas. A pesquisadora Laura de Mello e Souza, em sua análise, ressalta que “os negros forros e fugidos” configuram-se como “protagonistas da miséria” porque: “O processo de formação do capitalismo gerou, de um lado e de outro do Atlântico, multidões de desclassificados sociais. Lá, vegetavam nas fímbrias do sistema até que a inteligência do capitalismo nascente os encerrasse em estabelecimentos especiais e, logo depois, passasse a ter neles um exército de reserva para o proletariado. Aqui, criados e deixados sem razão de ser, foram sistematicamente taxados de vadios e inaptos para o trabalho, avolumando-se durante os séculos e constituindo, na época da abolição, uma massa considerável de mão de obra inaproveitada. (...) Em síntese, a camada dos homens pobres era tido como uma outra humanidade, inviável pela sua indolência, pela sua ignorância, pelos seus vícios, pela mestiçagem ou pela cor negra de sua pele. (...) A ideologia da vadiagem ganhou vida própria através dos tempos” (SOUZA et Alli, 1982). Foi assim que na historiografia juntaram-se o índio preguiçoso, o escravo negro e a mulher submissa e, apesar dos avanços na luta política das mulheres, dos negros e dos povos indígenas, são ainda insuficientes as revisões históricas capazes de reconstituir os caminhos trilhados pelos negros, povos indígenas e pelas mulheres no Brasil. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 29 Ora, o capitalismo avança com seus tentáculos em todos os campos das atividades humanas. No campo da cultura não é diferente. A voracidade do capital é tamanha que o vínculo entre a cultura e produção cultural tornou-se quase a expressão do modelo capitalista e consolidou a expressão indústria cultural, cujo fim é garantir sua hegemonia e a sua visão de monocultura do mundo. A cultura não pode se apresentar como um campo neutro e distante dos conflitos sociais. Na contramão deste poderoso instrumento hegemônico do capital que é a indústria cultural, a cultura emerge como lugar de valorização da diversidade étnico-racial e cultural, de afirmação e fortalecimento das identidades, de impulsionadora dos conflitos para a transformação dos valores éticos e morais da sociedade e, sobretudo, como arena de disputa de hegemonia e de formulação de concepções de mundo contra-hegemônicas. A crítica à indústria cultural faz-se necessária para a tarefa de construção e afirmação de projetos societários que se definam como antirracistas e anticapitalistas. De todo modo, a crítica não deve se limitar a uma negação da indústria cultural, mas deve formular alternativas ao modelo único de concepção cultural apresentado pela hegemonia do capital. E hoje, entre os territórios culturais negros de onde é possível pensar construções culturais contra-hegemônicas, esse território, esse lugar, é a periferia, é a favela. Favela: território de poesia e de criminalização da pobreza A história do funk tem origem na junção de tradições musicais afrodescendentes brasileiras e estadunidenses. Não se trata, portanto, de uma importação de um ritmo estrangeiro, mas sim de uma releitura de um tipo de música ligado à diáspora africana. Desde seu início, mesmo cantado em inglês, o funk foi lido entre nós como música negra, mais próxima ao samba e aos batuques nacionais do que a um fenômeno musical alienígena. O funk veio diretamente do chão dos bailes. Em cima das batidas vindas dos EUA, juntando melodias de samba, cantigas de roda ou outras oriundas da música pop nacional ou internacional, os raps valorizam as favelas e também denunciam os problemas sociais e políticos do Brasil. “Das artes que hoje emergem das periferias brasileiras, existe um fenômeno de massas que já deixou de ser somente carioca e se tornou nacional. Grito da favela, voz do morro cantando a liberdade, som da massa, o funk é um dos ritmos mais malditos da cultura popular brasileira. Seus detratores afirmam que o funk não é música, que seus cantores são desafinados, suas letras e melodias são pobres e simples cópias mal feitas de canções pop ou mesmo de cantigas tradicionais populares. Há ainda os que demonizam o batidão, associando-o à criminalidade, à violência urbana ou à dissolução 30 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades moral. Ao criminalizarem o funk, e o estilo de vida daqueles que se identificam como funkeiros, os que hoje defendem sua proibição são os herdeiros históricos daqueles que perseguiam os batuques nas senzalas, nos fazendo ver, de modo contraditório, as potencialidades rebeldes do ritmo que vem das favelas” (FACINA et MC LEONARDO). A cultura, como memória, constitui-se na criação de direitos sempre renovados que emergem do processo democrático: o direito das mulheres, dos negros, dos meninos e meninas de rua, dos sem terra, dos sem teto, dos índios, dos homossexuais, dos trabalhadores, dos aposentados. Uma listagem que se amplia na correlação direta com a democracia, cuja característica é a produção incessante dos novos sujeitos políticos em luta pela cidadania. Historicamente, o conceito de cidadania se constrói pela superação do papel de súdito. Enquanto o súdito é objeto das decisões do poder, o cidadão é sujeito das ações do poder. O Poder de Estado no Brasil tem se apropriado, de forma explícita, do patrimônio histórico e artístico nacional e, de forma difusa, dos meios de comunicação, dos livros didáticos, do mercado da memória brasileira. As festas nacionais, as comemorações solenes, o tombamento de monumentos, pretenderam ritualizar o passado, ocultando aspectos não oficiais dos acontecimentos. A ocultação é um dos procedimentos mais correntes nesse dispositivo de controle. Os conflitos - escravidão, guerras coloniais e imperialistas - estão entre os temas favoritos dessas operações redutoras. A memória popular quase sempre é expropriada, porque não dispõe de marcos físicos que lhe respaldem o testemunho. Para os negros e os povos indígenas no Brasil, o direito a um passado próprio se confunde com o direito de existir hoje. A identificação, documentação, proteção e promoção do patrimônio cultural são reivindicações dos movimentos sociais, como aconteceu com a Serra da Barriga, nas Alagoas, capital do Quilombo dos Palmares, e com o Ilê Ya Nassô Oka - o Terreiro da Casa Branca, na Bahia - o mais antigo templo afro-brasileiro, inscritos no Livro do Tombo histórico, ao lado das inúmeras igrejas, palácios e fortalezas inscritos no Livro do Tombo das Belas Artes, símbolos incontestes do poder religioso, político e militar. “Se até os anos 60 a política de patrimônio cultural considerava os cidadãos apenas como alvo de uma ação civilizatória, capaz de educá-los nos valores artísticos e históricos nacionais representados pelos monumentos protegidos e preservados, a partir dos anos 70 o espaço de interlocução entre os cidadãos e os poderes públicos ganhou moldura pluralista e democrática. Este espaço, antes delimitado pelos monumentos e seu entorno, passou a abranger a diversidade cultural no cotidiano de grupos e classes sociais. Os anos 80 contribuíram para esclarecer que o artístico, o histórico e o nacional escondem zonas de sombra e silêncio sobre o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. Nos anos 90, não se trata apenas de cuidar deste ou daquele monumento, nem deste ou daquele bem cultural em sua pluralidade. Trata-se, agora, de uma política institucional voltada para a qualidade de vida nos territórios ocupados” (ESTANISLAU, 1993). Foi assim também com o Projeto Tricentenário de Zumbi dos Palmares, da Prefeitura de Belo Horizonte, realizado em 1995 através do Departamento de Memória e Patrimônio da Secretaria Municipal de Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 31 Cultura de Belo Horizonte, que o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município realizou os tombamentos do Ilê Wopo Olojukan - o terreiro de candomblé mais antigo de Belo Horizonte; da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá - mais antiga que a própria capital das Minas; bem como, do Monumento Liberdade e Resistência, escultura de aço do artista plástico Jorge Luiz dos Anjos - em homenagem a memória da imortalidade de Zumbi dos Palmares. Territórios quilombolas: nosso patrimônio histórico Os homens e mulheres africanos originários dos povos Bantos e seus descendentes legaram um patrimônio inestimável, que foi a forma de trabalhar a terra, e inventaram o Quilombo dos Palmares, uma sociedade real que conseguiu reunir brancos, negros e povos indígenas em torno de um sonho, a liberdade. Através da experiência palmarina, o Brasil conheceu a possibilidade de uma sociedade plural baseada na posse coletiva da terra. Herdeiros históricos diretos da experiência palmarina, as comunidades quilombolas de hoje, ao longo da sua trajetória no Brasil, resistem de várias formas a um processo constante de retirada dos seus direitos de cidadania. O principal deles é o direito aos territórios em que efetivamente moram e trabalham. Nessas terras, ocupadas há séculos, ainda hoje sofrem graves ameaças de desapossamento levadas a efeito por latifundiários, grileiros, grandes empresas agrícolas e pela construção de hidrelétricas, barragens e complexos turísticos e hoteleiros que, apesar de formalmente reconhecidos pelo Estado brasileiro, efetivamente não detêm a posse das terras. A atuação do Estado brasileiro é muito tímida no sentido de garantir a norma constitucional e assegurar o direito a terra dessas comunidades - uma dívida que a nação brasileira tem para com os afro-brasileiros em função do regime de escravização. A solução dos problemas de regularização fundiária, a demarcação topográfica, a realização de laudos antropológicos, quando necessários, e a legalização das terras das comunidades quilombolas e das comunidades negras rurais, através da titulação, conforme o disposto no Artigo 68 das Disposições Gerais e Transitórias da Constituição Federal e no Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, coloca-se imediatamente como um dos principais desafios da contemporaneidade, na exata medida em que os territórios das comunidades quilombolas constituem a materialidade do patrimônio histórico do povo negro no Brasil. 32 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades “(...) Para os membros de uma civilização desprovida de território físico ficou a possibilidade de se reterritorializar na diáspora através de um patrimônio simbólico. (...) Essa visão qualitativa e sagrada do espaço gera uma consciência ecológica, no sentido de que o indivíduo se faz, simbolicamente, parceiro da paisagem. O espaço como algo que indica a própria identidade do grupo, e o que dá identidade a um grupo são as marcas que ele imprime na terra, nas árvores, nos rios. (...) A história de uma cidade é a maneira como os habitantes ordenaram suas relações com a terra, o céu, a água e os outros homens. A história se dá num território, que é o espaço exclusivo e ordenado das trocas que a comunidade realiza na direção de uma identidade grupal. A idéia de território coloca de fato a questão da identidade, por referir-se à demarcação de um espaço na diferença com outros. Conhecer a exclusividade ou a pertinência das ações relativas a um determinado grupo implica, também, localizá-lo territorialmente” (SODRÉ, 1988). O patrimônio cultural negro constitui-se, então, nestes espaços-lugares de vivência da tradição cultural negro-africana, compreendido como memória que articula ao mesmo tempo a relação entre o passado, o presente e o futuro. O patrimônio cultural negro e a questão da identidade nacional No fundo, o que atravessa a questão da identidade em uma sociedade tão heterogênea como a sociedade brasileira, me parece, é uma questão de natureza política, isto é, são ainda as relações coloniais entre os descendentes de europeus e os negro-africanos no Brasil, ou seja, a desigualdade no poder em favor dos brancos de origem europeia. E se trata, sim, de diferenças físicas, como raça e cor, e de orientações culturais, como etnicidade e modernidade. Em primeiro lugar, é a noção de raça, objetiva e subjetivamente, que orienta as relações interpessoais cotidianas de hoje. Em segundo, imbricada à categoria de raça, existe uma idéia de pertencimento a uma cultura superior a outra, e isto nos permite mais uma vez afirmar que essas relações coloniais de hoje estão conectadas historicamente a uma mentalidade escravocrata. Isso implica, desde seu princípio, que as diferenças entre os brancos europeus e os negro-africanos são equivalentes às desigualdades no poder. Tais desigualdades são alimentadas pela orientação cultural eurocêntrica que atua nas relações sociais. Essa orientação constitui uma hegemonia política, em especial, nas classes dominantes e médias, contaminando as relações raciais da sociedade brasileira. O eurocentrismo é intrínseco às relações coloniais de poder porque atribui ao europeu à qualidade de medida e de referência privilegiadas da experi- Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 33 ência de toda a espécie; leva a olhar tudo a partir dessa posição; tende a organizar a percepção do mundo segundo as categorias de procedência europeia, consideradas como únicas legitimamente válidas. Desse modo condiciona o dominado a olhar-se com os olhos do dominador. No Brasil, o eurocentrismo ainda mantém sua hegemonia na orientação cultural das classes dominantes e de seus dirigentes nas instituições educacionais, vocacionais e religiosas; nas agências culturais, nas organizações corporativas do mundo do trabalho, nas corporações midiáticas; nos grupos intelectuais; bem como, nas classes médias. Mas não menos entre significativa parte dos segmentos mais oprimidos da sociedade, com implicações trágicas em nossa história. O eurocentrismo impede o reconhecimento da riqueza espiritual da diversidade, porque só a admite como justificativa da desigualdade. Desse modo, bloqueia a capacidade de reconhecer as especificidades de diferentes experiências históricas e de suas implicações para o conhecimento e para a ação. Mais de quinhentos anos depois do “descobrimento do Brasil”, parece-me que o pensamento hegemônico que cristalizou um arremedo de uma identidade histórico cultural nacional a partir da Europa começa a desmanchar no ar, na medida em que ganha corpo a valorização política da diversidade étnico-racial e cultural. Isso provoca rachaduras profundas na estrutura do edifício da identidade nacional. As reflexões acerca da originalidade da nossa identidade histórica, do nosso processo histórico cultural, muitas vezes são silenciadas, porque isso tem implicações seriíssimas sobre o poder, a sociedade e a cultura. O Movimento Negro contemporâneo e o conjunto de organizações que desenvolvem ações focadas no campo da cultura negra e da educação são também fortes movimentos de afirmação identitária, responsáveis pela atualização crítica do debate acerca da identidade nacional. De modo que a ideologia, o projeto político cultural de imposição pelo Estado de uma única etnia, de uma única categoria racial sobre as outras, de uma única cultura, como se tratasse de uma condição nacional, vem sendo profundamente questionado. O Brasil é ainda uma identidade inacabada. Por essa razão, nosso desafio é o de estabelecer em que bases críticas o patrimônio cultural negro africano pode ser incorporado ao processo de reconstrução e atualização da identidade nacional, da identidade brasileira. Isso implica, sem dúvida, na questão de autonomia, a qual tem a ver com a necessidade de aprofundamento radical da democracia na sociedade brasileira. Nessa perspectiva, a descolonização das relações de poder me parece ser o caminho da construção e fortalecimento de identidade histórica autônoma. E isso só será possível se o patrimônio cultural, material e imaterial do povo negro brasileiro for efetivamente reconhecido e incorporado ao Brasil, constituindo de fato parte integrante da nação. 34 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Uma proposta de patrimônio material: os Centros de Informações e Referência da Cultura Negro-Africana Diante da herança cultural africana legada por nossos ancestrais e do valor inestimável do patrimônio cultural do negro brasileiro, que com a sua rica plasticidade envolve o fazer cultural dos nossos músicos, artistas, poetas, lideranças e militantes negros, sacerdotes das religiões de matriz africana, legítimos arautos e griôs da tradição cultural mais autêntica do nosso povo, seremos impelidos para o mais nobre dos desafios: pensar um projeto que aponte para um virtuoso intercâmbio cultural, educacional, político-social, econômico, e científico-tecnológico com a África. A convergência política e cultural que articula a reterritorialização negro-africana aqui no Brasil e a reconstrução nacional vivida pelos povos negros no continente africano é o desafio intelectual para este novo momento. Neste contexto, é estratégico tecer com carinho uma rede mundial de solidariedade, fundada em identidades e interesses comuns, de modo a possibilitar um sistema permanente de intercâmbio cultural, educativo, de conhecimentos, multilateral, virtual e presencial. Precisamos consolidar no futuro próximo o contato permanente entre artistas, escritores, pensadores, produtores culturais, militantes dos movimentos sociais negros brasileiros e africanos e os guardiães de saberes tradicionais. Sem isso, será impossível afinar as nossas percepções e a nossa sensibilidade, de forma que possamos agregar a essa rede uma perspectiva pan-africanista, contra o colonialismo, contra o racismo e todas as formas de colonização, reais e simbólicas. As experiências existentes apontam para um projeto voltado para o desenvolvimento, em todos os níveis, da comunidade negra e da sociedade. Projeto que reconheça as estratégias de reterritorialização do povo negro na diáspora, afirmando a relação entre ancestralidade e modernidade em seus múltiplos desenhos, sons, gestos, falas, cantos, danças, em suma, na pluralidade de linguagens. Com essa perspectiva indico a criação dos Centros de Informação e Referência da Cultura Negro-Africana como espaços e lugares de visibilidade do povo negro. Esses espaços se constituirão como aglutinadores de experiências e projetos relacionados ao patrimônio cultural negro-africano. Trata-se do reconhecimento de homens e mulheres negras como sujeitos históricos, responsáveis pela produção de bens materiais e simbólicos. Os Centros poderão ser espaços de excelência para sínteses da produção material e simbólica, para subsidiar políticas públicas e de apoio à produção cultural da população negra, criar conhecimento, Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 35 formar recursos humanos públicos e privados e, conseqüentemente, ampliar o diálogo democrático. Além disso, poderão: •• viabilizar o intercâmbio cultural com o continente africano e as diversas organizações negras em suas atuações diferenciadas; •• documentar e registrar a produção do conhecimento relativo às matrizes culturais negro-africanas e afro-brasileiras; •• priorizar a pesquisa, a reflexão e a difusão de programas e projetos nas linhas de: a) Cultura e Política: preservação do sentido vital/existencial, memória e patrimônio cultural; formação de acervos documentais e bibliográficos, preservação, difusão e valorização das religiões de matriz africana para a difusão, fomento, promoção e apoio à arte negra e a outras expressões e manifestações culturais negras; apoio aos territórios culturais negros existentes em todo o país. b) Cultura e Educação: aperfeiçoamento dos currículos escolares e do processo educacional com base na pluralidade cultural e na diversidade humana; linhas auxiliares na formação de educadores: produção de material didático-pedagógico, implementação de novas tecnologias no processo educativo e implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Reeducação das Relações Étnico–Raciais, conforme preconiza a Lei 10.639. c) Cultura e Economia: alimentação alternativa, saúde, ecologia, auto-sustentação comunitária, pequena e média empresa; organização de cooperativas de produção cultural com o sentido de pensar e operar a cultura como estratégia de promoção do desenvolvimento da população negra. d) Apoio a projetos da comunidade negra e da sociedade civil que possibilitem aos Centros de Referência e Informação da Cultura Negro-Africana cumprir um papel de intervenção política na sociedade e contribuir para o exercício pleno da cidadania. É preciso sempre lembrar que a presença do povo negro e os problemas enfrentados na luta política contra o racismo estão sempre presentes na política cultural, na defesa da cidadania, na política educacional. Nosso objetivo é o de desenvolver projetos que assegurem igualdade de oportunidade e tratamento nas políticas culturais do Estado, tanto no que diz respeito ao fomento à produção cultural quanto à preservação da memória coletiva, do patrimônio cultural do negro brasileiro. 36 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Conclusão: “a força de lembrar da própria força” A memória e o patrimônio cultural do Brasil não podem mais desconsiderar o modo como percebemos, estruturamos e usamos o espaço urbano. Nossa herança cultural está diretamente ligada à construção da cidadania, porque a noção de território compreende tanto o espaço particular, o corpo próprio, como o espaço coletivo da casa, do trabalho, da diversão e da devoção. Território na dimensão coletiva é o espaço da cidade, com suas ruas, praças, meios de transporte e demais equipamentos urbanos, como teatros, cinemas, bares, restaurantes, casas de baile, hospitais, escolas, centros culturais, áreas verdes, parques e lugares do sagrado. Território, na dimensão individual, é o espaço pessoal que acompanha todo e qualquer ser humano, caracterizado pela capacidade do corpo próprio expandir-se e contrair-se, conforme o contexto. A ocupação do território, nas dimensões coletiva e individual, pode dar-se como espaço de interação ou como espaço de segregação para os diferentes povos, grupos e classes sociais em luta por direitos, em especial, os direitos humanos. E todos nós, cuja cor nos tornou socialmente invisíveis no Brasil, já experimentamos na pele o desconforto causado pela contração do espaço pessoal e social. Sempre produzimos, portanto, existimos. O destino está aqui mesmo, no instante em que se vive, no aqui, no agora. Passado e presente são partes ativas de uma mesma realidade. Por que diferente da noção ocidental, para nós, homens e mulheres negras, a noção de tempo e espaço configura-se no movimento. Movimento este que implica simultaneidade, confraternização, troca simbólica que inclui pedras, plantas, animais, seres humanos vivos e mortos. É claro que espaço-tempo não está isento de conflitos e lutas, muitas lutas, porque não há como esquecer que a miséria e a pobreza atingem muita gente, mas particular e sistematicamente, aos negros brasileiros. A invisibilidade da expressiva população negra ainda permanece, mesmo depois das lutas dos movimentos sociais e mesmo depois de nos afirmamos pelo substantivo negro. E se o adjetivo nos desclassificava, é bom lembrar o belíssimo conceito da ciência óptica: negra é a cor que absorve toda a radiação luminosa que sobre ela incide. Nunca é demais reafirmar a universalidade das culturas negras no Brasil. Nosso desafio é o de produzir o reconhecimento de todos aqueles que se propõem a trabalhar com afinco para consolidar uma cultura Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 37 fundada no respeito às diferenças e na valorização da diversidade étnico-racial. Isso é necessário para potencializar a inesgotável explosão criativa que sustenta a vida e a sobrevivência do povo negro brasileiro: “a busca de referências culturais coloca-se, portanto, na base da metamorfose do negro em cidadão”. (IANNI, 1988). Mais do que nunca, colocamo-nos diante de uma conclusão inescapável: toda política cultural que, no Brasil, pretenda ser um instrumento de expansão da vida, tem que ser também e fortemente uma política em busca da memória, uma política de patrimônio cultural. O patrimônio entendido como defesa da vida: algo que reponha de alguma maneira diante e dentro das pessoas “a força de lembrar a própria força” (CANÇADO, 1993). Com a proteção de Oxóssi e Ogum. Referências BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem nunca: histórias do Clube da Esquina. São Paulo, Geração, 1996. CANÇADO, José Maria. A experiência cultural como exigência de cidadania e aventura da liberdade. Belo Horizonte, Secretaria Municipal de Cultura, mimeo, 1993. CARDOSO, Marcos Antonio. O Movimento Negro em Belo Horizonte. Mazza Edições. 2002. CARDOSO, Marcos Antonio; FERREIRA, Ednéia Lopes; SANTOS, Elzelina Dóris dos. Contando a História do Samba. Belo Horizonte, Mazza Edições, 2ª edição, 2003. ESTANISLAU, Lídia Avelar. Memória brasileira: este insaciável objeto do desejo. Brasília, Cadernos ENAP, volume 1, nº 2, 1993 ___________________. O espaço do Centro de Cultura Negra: Patrimônio e Memória? Belo Horizonte, mimeo, 1994. FACINA, Adriana et MC LEONARDO. O funk no contexto da criminalização da pobreza. Brasília. Revista Palmares. Cultura Afro-brasileira, Ano 1, Número 2, Ano 2003. IANNI, Octávio. As metamorfoses do escravo. São Paulo, Hucitec, 1988. JUNIOR, Vilson Caetano de Souza. Patrimônio Cultural Afro-brasileiro. Brasília. Revista Palmares. Cultura Afrobrasileira, Ano 1, Número 2, Ano 2003, p. 47-49. 38 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades MNU – Movimento Negro Unificado. Programa de Ação. Belo Horizonte, IX Congresso Nacional do MNU, mimeo, 1990. OLIVEIRA, Eduardo David de. Cosmovisão Africana no Brasil: Elementos para uma filosofia afrodescendente. Curitiba. Editora Gráfica Popular, 2006. 2ª ed. SODRÉ, Jaime. A todos que tocaram e tocam o Tambor na esperança de harmonizar e humanizar as divindades. Brasília. Revista Palmares. Cultura Afro-brasileira, Ano, 1, Numero 2, Ano 2003, p. 44-46. SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro. Francisco Alves, 1983. 2ª ed. _____________. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 1988. SOUZA, Laura de Mello et alli. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro, Graal, 1982. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 39 40 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades A Religiosidade de Matriz Africana como Patrimônio Histórico Cultural das Populações Afro-brasileiras Marcos Rodrigues da Silva1 O objetivo deste ensaio temático é discutir caminhos possíveis para a preservação e os usos sustentáveis de territórios sagrados para as religiões de matriz africana, em África e na diáspora afro. E, ainda, discutir que caminhos de desenvolvimento oferecem as relações sociais que assegurem as tradições hereditárias enraizadas nos símbolos e sinais presentes no cotidiano do povo afro-brasileiro. 1 Doutorando PUC-SP (bolsista CAPES). Nosso entendimento da religiosidade de matriz africana como patrimônio histórico cultural das populações afro-brasileiras está fundado na síntese dos principais elementos teórico-metodológicos do desenvolvimento territorial. Ou seja, é importante que afirmemos nosso entendimento de que o espaço-território tem diferenças epistemológicas com relação ao que compreendemos por espaço-lugar. O território, reconhecido como patrimônio histórico cultural das populações afro-brasileiras, é o resultado da confrontação dos espaços individuais dos atores afro-brasileiros nas suas dimensões econômicas, socioculturais, ambientais e religiosas tradicionais. É a partir desta afirmação que podemos verificar que “o jogo dos atores adquire localmente uma dimensão espacial que provoca efeitos externos e pode permitir a criação de um meio favorável para o desenvolvimento do potencial produtivo de certo local” (PECQUER, 1987). O reconhecimento da religiosidade de matriz africana como patrimônio histórico cultural das populações afro é fruto da criação coletiva e institucional de um povo africano na diáspora. O território-dado acontece a partir das transformações das propriedades inerentes aos legados dos povos africanos na diáspora afro-brasileira. E, ainda, a partir da densidade institucional que os afro mais velhos e mais velhas asseguram como características identitárias de povo-comunidade e fé. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 41 Esses processos de reconhecimento e afirmação acontecem como resultado de dois movimentos que sobressaem: a) é uma realidade em evolução (podemos verificar nos relatos da história do povo africano na diáspora; b) é o resultado simultâneo dos “jogos de poder” e dos “compromissos estáveis” estabelecidos entre os principais atores sociais desde a chegada dos afro nas terras brasileiras. Estes “jogos” e “compromissos” serão as formas mediáticas de estabelecer “relações possíveis de convivência”. O dinamismo das populações afro, na diáspora afro-brasileira, é reconhecidamente um exercício de habilidades e conhecimentos estratégicos de uma grandeza significativa. Mesmo sob a violência que sempre foi aplicada a este povo, suas capacidades de afirmação e organização (resistência e identidade) são a afirmação de patrimônio material e imaterial da máxima importância para a história dos povos no Brasil. Entre os africanos, o sobrenatural tem uma grande importância. Todas as decisões da vida são tomadas depois que os ancestrais são consultados, através de rituais. Quando eles foram trazidos à força ao Brasil, trouxeram esta tradição. Alguns grupos mantiveram-se mais fechados e preservaram com maior rigor os aspectos culturais africanos. Outros reconstruíram sua cultura com a influência de elementos indígenas e portugueses. As religiões são da ordem da cultura, portanto, conhecimento adquirido, aprendido, transmitido e, assim, são condicionadas pelas relações existentes entre os homens em seus grupos sociais, de acordo com interesses dominantes, políticos, econômicos e biológicos. A Tradição Oral é a grande escola da maioria dos povos africanos. As culturas africanas não são isoladas da vida. Aprende-se observando a natureza, aprende-se ouvindo e contando histórias. Nas culturas africanas, tudo é “História”. No Brasil, tais nações africanas enfrentaram o desafio do pluralismo cultural, em um processo de empréstimos e de transculturação. A investigação histórica comprova a construção de uma identidade afro-brasileira, resgatada através da memória e da valorização do povo africano. As migrações em território brasileiro, na época Colonial e Imperial, propiciaram às culturas africanas estreitas relações, que formaram elos identitários de onde se originaram as mobilizações e as resistências: os quilombos, as irmandades e as confrarias, as religiões de cultos africanos e também as revoltas, insurreições e confrontos, que contribuíram para o inventário das mudanças e transformações, pela persistência na alteração das estruturas sociais até os dias de hoje. 42 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Fundamentos da identidade religiosa afro na diáspora africana As diversas nações de escravos trazidos para as colônias portuguesas mantiveram seus modos próprios de elevar as preces às divindades supremas: o bantu, a fon, a iorubá e, já no final do tráfico negreiro, os negros islâmicos provenientes do Norte da África. A África negra que aqui nos interessa é, no século XVI, tão desconhecida dos europeus quanto a América e, será um território fértil para a imaginação e as ambições dos conquistadores brancos. O homem branco considerará lucrativo e glorioso instalar-se no Brasil, nas vastidões quase desertas que se mostrarão fáceis de conquistar e prometedoras de riquezas, enquanto a África dos reinos e tribos negras, território “repleto” que ninguém pensa ainda em conquistar e colonizar, aparenta ser relativamente pobre em metais nobres e será dessangrada em sua força de trabalho, sua grande reserva, o homem preto, mercadoria diferente das outras, e tornada, após o eclipse de outras riquezas naturais – ouro, especiarias, marfim – a fortuna essencial do continente negro. É a estranha aventura que enxerta a África negra na América branca e vermelha. Os primeiros escravos, das tribos fulas e mandingas, vieram da Guiné portuguesa e eram chamados “peças da Guiné”. São identidades e sujeitos que formam os fundamentos da identidade afro na diáspora africana, e promovem, no contexto das relações étnico-raciais, o marco epistemológico para este estudo. Quem são essas identidades e sujeitos, a partir do dado religioso, é o que passamos a descrever. O bantu A religião bantu é o culto dos ancestrais, ou seja, dos mortos que a escravidão, com seu processo de extermínio, realizou com muita violência e eficácia genocida. A manifestação dos espíritos bantus provém das forças ligadas aos rios, florestas, montanhas, que remontam ao mundo africano. No Brasil, sofre uma adaptação e reinterpretação, a partir do culto aos mortos do catolicismo popular e, ainda, dos ancestrais indígenas. A fon e a ioruba Na África, os orixás, o espírito, congregam em torno de si a liderança de uma linguagem, concluindo na formação de uma confraria que presta reverência e entoa cânticos ao criador supremo. Já no espaço Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 43 da escravidão no Brasil, essa característica desaparece, reafirmando-se o caráter das confrarias. Estas são centradas no sacerdote, que organiza o culto numa ordem predeterminada, chamada xiru. O modo de organizar as confrarias está baseado no modelo monástico, em que todos convivem numa comunidade, sob as ordens de um chefe religioso, estilo profundamente patriarcal. Negros islâmicos 2 Hoornaert. E. afirma que: “A postura tradicional do catolicismo diante das religiões africanas tem sido a de não tomá-las a sério e de tentar englobar sumariamente os negros no seu bojo. (...) Os cientistas, do inicio do século para cá, alertam diante da inoperância dos esforços tradicionalmente católicos de “conversão” dos africanos. Nina Rodrigues, já mencionado aqui, falou da “ilusão da catequese”. Pierre Verger, autor do primeiro livro exaustivo sobre o tráfico negreiro entre o Golfo de Benin e a Bahia, assim se expressa: [O sincretismo entre santos católicos e orixás africanos] “é uma máscara que cria um lugar ao abrigo onde os cultos aos deuses africanos possam continuar de forma clandestina” (VERGER, 1968), enquanto Roger Bastide considera as religiões africanas no Brasil “religiões em exílio” (BASTIDE, 1971). In: HOONAERT, 1990. 44 Nessa sociedade negra de diversas expressões religiosas bem definidas chegam os negros islamizados, que procuram alternativas de convivência, evitando a possibilidade da própria autodestruição e, principalmente, dos seus costumes e fé religiosa. Será importante manter a distinção entre essas práticas religiosas do povo negro dentro das tradições originadas no continente africano e dos modelos propostos aos escravos, já aqui no Brasil, pela sociedade branca. Neste contexto, podemos citar as irmandades, que tinham o desejo de regular, de controlar os comportamentos e as relações sociais do povo negro, além da carregada mensagem doutrinal que era exigida dos negros para a plena compreensão da mensagem cristã. Também é característica das irmandades a ênfase na organização de celebrações, procissões e missas, confissões e comunhões. Todos esses conteúdos celebrativos tinham a exigência ideológica de manutenção da ordem da sociedade e a preocupação da mentalidade cristã da época de anunciar a “verdadeira fé” àqueles negros, até então considerados “pagãos”.2 Neste universo de mobilização das populações africanas para as terras a serem ocupadas no futuro Brasil, seguiram as demais tribos: • Nigéria: egbás ou iorubanos (chamados de nagôs no Brasil), eram eles haussás, fulas e kanures; • Guiné: mandingas (ou malês), biafadas, manjacos, balantas, brames, felupes, banhuns, baiotes, bijagós, papeis, nalus; • Angola: benguelas, caçanjes, rebolos; • Congo: cambindas e muxicongos; • Moçambique: macuas e anjicos; • Costa do Ouro (Gana): fantis e shantis; • Costa da Mina (englobava Costa do Guiné, Costa do Marfim e dos Escravos): êues, fons, gás, txis, tapas, gruncis e mandingas. Um legado de identidade na matriz étnica Bantu Neste contexto, daremos maior atenção ao povo afro de origem Bantu. As razões remetem ao número expressivo de descendentes que podemos constatar e às relações de parentesco verificadas quando Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades observamos o gráfico de uma árvore genealógica. No elenco dos valores do legado deste povo Bantu, na diáspora africana brasileira, registramos as seguintes formas literárias orais africanas: •• fórmulas rituais: orações, invocações, juramentos, bênçãos, maldições, formulas mágicas, títulos, divisas; •• textos didáticos: provérbios, adivinhas, fórmulas didáticas, cantos e poesias para crianças; •• histórias etiológicas: explicações populares do porquê das coisas, evolução das coisas até o estado atual; •• cantos populares: histórias só para divertir; •• mitos: todas as fórmulas literárias que utilizam símbolos. Melhor, são mitos certas histórias transmissoras de tradições arcaicas, de tipos religiosos ou cosmológico, relacionadas com Deus ou com a criação; •• récitas: heroico-épicas, didáticas, estéticas, pessoais, mitos etiológicos, oração; •• poesia oficial: histórica, privada, religiosa, individual, comemorativa, panegírica; poesia culta, ligada às castas aristocráticas e senhoriais; poesia sagrada, cantada nos ritos religiosas e mágicos, em cerimônias de sociedades secretas, em ritos fúnebres, poesia que interpreta a filosofia e os mistérios da vida e da morte; poesia popular, cantada nos jogos à volta do fogo, transmissora de ensinamentos morais e históricos. •• narrativas históricas: listas de pessoas e lugares, genealogias, históricas universais, locais e familiares, comentários jurídicos, explicativos, esporádicos, ocasionais (ALTUNA, 1974). Os Bantos trouxeram para o Brasil características etnográficas, folclóricas, como instrumentos de sopro, cantos, jogos de luta (a capoeira) e o samba. Trouxeram também aspectos da cultura árabe, como as lendas, mitos e tradições orientais. Os Nagôs, assim chamados por serem mais desenvolvidos intelectualmente, trouxeram características religiosas, como o culto aos orixás, divindades do candomblé. Influenciaram-nos também na culinária, na indumentária, com o traje de baiana e com novos instrumentos, hoje incorporados à música brasileira. Os primeiros escravos chegaram para a edificação da cidade de Salvador, na Bahia, em 1549, e depois, em 1551, foram para os engenhos de Pernambuco. Os africanos não eram primitivos, sua cultura já influenciara várias outras sociedades, visto que formam uma civilização antiga, anterior aos gregos. Eles trouxeram conhecimentos em diversas áreas como, por exemplo, a fundição de metal. Com isso, o papel do negro escravo torna-se essencial na construção das primeiras metalúrgicas no Brasil. O destaque destes dois grupos na cultura brasileira se deu devido à grande expressividade de suas culturas em relação aos demais grupos de diferentes regiões africanas que chegaram à colônia brasileira. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 45 A globalidade da concepção de religião tradicional ancestral ou africana na diáspora afro-brasileira Na diáspora dos povos africanos, devemos acreditar em um Deus supremo, Olodumarê, que é inacessível e indiferente às preces e ao destino dos homens. Olorum (nagô) ou Zaniapombo (Angola, Congo) é erroneamente confundido pela maioria dos pesquisadores com Olodumarê, traduzido por Senhor do Céu. Orum geralmente é traduzido por céu, mas há algumas tradições que o traduzem como além, infinito, e estaria situado na terra. Por isso, todas as oferendas aos orixás, sangue de animais sacrificados, são derramadas em um buraco feito na terra. Quando as pessoas morrem, são enterradas embaixo da terra, ou seja, sua alma vai para o Orum. 3 No Colóquio de Abidjan, em 1991, decidiu-se chamar-lhes “Religiões Tradicionais”, ou “Religião Tradicional Ancestral”, ou “Africana”, ou simplesmente “Religião Africana”. É importante que tenhamos a compreensão histórica de que o Encontro Internacional de Bouaké, em 1964, que abriu com o tema “As Religiões Africanas Tradicionais”, e o Colóquio de Cotounou, em 1970, repeliram “o emprego de termos depreciativos e sem fundamento, tais como animisno, paganismo, feiticismo, ancestrismo, manismo, superstição, etc., que serviram para identificar a religião africana. In: Colloque de Cotounou, 1970: Les Religions Africaines comme source de valeurs de civilisation, o. c. 401. 46 Os nagôs, por influência dos muçulmanos, têm uma idéia de Deus mais próxima da filosofia cristã. Os orixás (nagô), voduns (gegê) ou inkices (Angola) são divindades africanas, intermediárias entre os devotos e a suprema divindade. Eles estão atentos aos devotos e possuem poderes relacionados à natureza. São ancestrais divinizados que encarnam para dar conselhos, conceder graças, resolver desavenças, dar remédios para dores. O tipo de relacionamento entre o devoto e o seu orixá é familiar e informal. A descendência do orixá é transmitida pela família paterna. Os orixás querem voltar à vida, por isso encarnam nos corpos dos seus filhos, descendentes, “cavalos”, médiuns preparados para essa atividade. Na África, cada orixá estava originalmente ligado a uma cidade ou a uma nação inteira. Há regiões que cultuam um orixá e o culto a outros é oficialmente inexistente. Como, por exemplo, o culto de Oxum, marcante na região de Ijexá e ausente em Egbá. E Iemanjá é soberana em Egbá e ausente em Ijexá. Por estas divergências, muitas vezes essas regiões ou nações guerreavam. Os cultos são nacionais ou regionais. A realização da cerimônia é assegurada pelos sacerdotes, designados para tal. Os membros da família não têm deveres, somente da contribuição material aos custos do culto. Logo, o culto toma um caráter coletivo. No Brasil, chegando em grupos de diferentes nações, prevalecem as crenças das nações mais desenvolvidas. As demais tendem a aderir aos cultos destas. Cada orixá toma caráter individual, já que o devoto cultua seu orixá trazido da região que habitava na África. Eles são orientados pela mãe ou pai-de-santo, no terreiro. Existem, então, no mesmo terreiro, vários orixás, reunidos em torno do orixá do terreiro, representando a união dos negros africanos, antes dispersados pelo tráfico negreiro.3 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades A presença da doutrina e da práxis cristã do jeito afro na diáspora Os primeiros africanos foram trazidos para o Brasil em barcos que homenageavam santos católicos, que tinham o objetivo de converter os “infiéis”. Para isto, a Igreja Católica se utilizava de todas as artimanhas para “salvar as almas”. Foi através do sincretismo religioso que os negros encontraram a solução para manter a sua religião de origem. Eles cultuavam e se organizavam em grupos, cantando para seu orixá, porém, com a imagem de santos católicos. Assim, puderam manter vivas as suas crenças até hoje, com a correlação que faziam entre seus orixás e os santos católicos. Quando seus senhores questionavam o ritual, diziam que São Jerônimo em sua língua era Xangô, São Lázaro era Omolu, Santa Bárbara era Iansã. Não ficava claro então para quem ou o quê se dirigia o “batuque”. E seus senhores acreditavam e os chamavam de divertimentos nostálgicos, que lhes faziam renascer lembranças em relação às suas origens, não os fazendo esquecer os sentimentos que os levaram a guerrear em terras africanas. Hoje, os terreiros mais tradicionais lutam para o fim do sincretismo religioso entre os orixás africanos e os santos católicos embora, com o passar do tempo, os descendentes de africanos tenham sido educados num igual respeito a ambas as tradições religiões. São tão sinceramente católicos quando vão à igreja, como ligados às tradições africanas, nas cerimônias das Religiões Tradicionais Africanas. Os orixás desenhados para a família Orixás são aqueles de culto mais representativo no Brasil. O desenho dos orixás foi feito tendo como base os movimentos e gestos característicos de cada um, além da indumentária. As ferramentas estão associadas a cada um deles e são símbolos dos orixás e de seus poderes naturais. Ao introduzir este ensaio o objetivo temático proposto foi discutir caminhos possíveis para a preservação e os usos sustentáveis de territórios sagrados para as religiões de matriz africana, em África e na diáspora afro. E, ainda, discutir que caminhos de desenvolvimento oferecem as relações sociais que assegurem as tradições hereditárias enraizadas nos símbolos e sinais presentes no cotidiano do povo afro-brasileiro. Muito se tem realizado no sentido de assegurar as matrizes históricas desta população afro na diáspora latino-americana. Dar continuidade neste processo de reconhecimento, registro e possibilitar o conhecimento de todos da riqueza arqueológica, simbólica e das variadas facetas religiosas que estão manifestas nesses espaços, tem como resultado, o fortalecimento da autoestima do povo negro e do seu legado na história afro a ser reconhecida em toda a América Latina. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 47 Referências ALTUNA, P. Raul R. de Asúa. Cultura Tradicional Banto. Editora Âncora, Luanda, 1974. VERGER, P. Flux et Reflux de La Traite dês Nègres entre Le Golfe de Bénin et Bahia de Todos os Santos, Du 17me au 19me siècle. Paris, Mouton, 1968. Existe uma tradução brasileira. BENJAMIN, Walter. Teses sobre a filosofia da história. Org. Flavio Kohte. SP: Ática, 1991. CESAR, Chico. Respeitem meus cabelos, brancos. 2003 COUTO, Mia. Terra sonâmbula. RJ: Nova Fronteira, 1995. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: A Essência das Religiões. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, 1960. _______. Tratado de história das religiões. Lisboa: Ed. Cosmos, 1990. HOONAERT, E. O cristianismo moreno do Brasil. Vozes, Petrópolis-RJ, 1990, LOPES, Nei. Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004. PARDO, José Luis. El sujeto inevitable, in CRUZ, Manuel (org.) Tiempo de subjetividad. Barcelona: Paidós, 1996. PECQUER, B. De l’espace fonctionnel à l’space-territoire: essai sur Le développement local. Grenoble, Thèse (doctorat) – Université des Sciencies Sociales, 1987. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. SP: Cia. das Letras, 2001. SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes. 2000. 48 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Mitos e Culturas Afro-Brasileiras como Prática Pedagógica da Diferença Carla Fernanda da Silva e Marcos Rodrigues da Silva1 Nesta primeira década do século XXI, diferente dos séculos anteriores, o Sagrado e o Mito recuperam lugar nas discussões teológicas e filosóficas, ganhando destaque também em novos movimentos de conhecimento, como a filosofia e a psicologia, que surgiram e se fortaleceram com a intenção de ampliar a compreensão do humano. Quando observamos o homem em atitude de veneração a um objeto natural, enquanto objeto sagrado, não significa que adore o objeto como tal, mas a manifestação sagrada contida neste objeto. Uma pedra sagrada, um espaço, um rio, por exemplo, quando venerados, não deixam de ser identificados como tal. Mas, não é ao seu estado real que se atribui a contemplação, e sim ao que é manifestado. Nas sociedades primitivas, o homem vivia mergulhado nas hierofanias, a tendência era predominantemente viver o mais próximo possível dos objetos consagrados, a natureza em si era sagrada, o tempo, o espaço, a moradia, o próprio corpo humano era algo consagrado, embora, ainda hoje, nas sociedades “modernas”, seja possível encontrar alguns povos com suas culturas que vivem profundamente mergulhados no mundo da sacralidade. O homem moderno, ao entrar num shopping center, assume uma postura de reverência ao sagrado mercado, da mesma forma que o homem primitivo assumia postura de reverência quando se aproximava de uma árvore ou de outro referencial considerado como vinculado à adoração. 1 Carla Fernanda da Silva, Mestra em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, e docente do Departamento de História e Geografia da Universidade Regional de Blumenau – FURB; Marcos Rodrigues da Silva, doutorando – PUCSP, membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento – GPEAD/FURB. As constantes mudanças, tanto do homem moderno quanto do primitivo, na busca de locais e templos de reverência, provocam rupturas e quebras que se devem às manifestações do sagrado, portanto, às hierofanias. Assim, há espaços sagrados e espaços não sagrados. Para o homem não religioso, o espaço é homogêneo e neutro, uma vez que não associa seus espaços às experiências religiosas, que para o homem religioso têm “forte” e intensa dimensão do sagrado. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 49 Uma motivação para você que se aproxima desta reflexão sobre o mito e a diversidade cultural africana na diáspora: é preciso ter presente a dimensão dos povos afro-americanos na América Latina e Caribe, que se desenvolveram em Confrarias e Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, São Benedito (San Benito), São João e outros. Em La Havana, as crônicas históricas referem-se às Confrarias e aos Reinados Congos em procissão pelas ruas da cidade. Na Venezuela, a expressão desse tipo de irmandade se desenvolveu em múltiplas formas. Os Chimbángueles, no sul do Lago Maracaibo, são formados por uma hierarquia de capitães e vassalos de São Benedito, em torno de uma orquestra formada por sete tambores, realizando cortejos e procissões na rua, e, no leste na região de Barlovento, os três tambores culo e I puya ou o curbeta. Na costa do Caribe, Puerto Cabello à La Sabana, as festas religiosas são animadas pelos cumacos, grandes tambores de tronco sobre o chão, e as pipas, construídas de grandes tonéis. Os tambores ngoma, que cronistas como Cavazzi reportaram no Congo no século XVI, apresentam semelhanças com os tambores “redondos”, do Barlovento; com o “tambor de crioula”, em São Luis do Maranhão, no Brasil; com os tambores de yuka, em Cuba; e com os “atabales”, em Santo Domingo, tocados de pé e amarrados à cintura. Os grandes ngoma têm semelhança com os “cumacos” do litoral venezuelano, assim como com os tambores dos cultos Cumina, na Jamaica e outras ilhas do Caribe. As organizações para rituais e procissões festivas, como os Chimbángueles, na Venezuela, encontram paralelos na América Latina toda e, no Brasil, na forma de Congados, Catupés, Moçambiques e Reisados, tanto nas formas devocionais africanizadas, como nas formas de organização política alternativas às dominantes. A história das populações africanas e afro-brasileiras, que é a de aproximadamente 60% das pessoas no território brasileiro, é reconhecida por muita luta, resistência e pela autodeterminação. Na diáspora africana, esse povo se afirma como cultura marcada pela pluralidade étnica e diversidade religiosa, numa sociedade neoliberal onde apenas consegue se reconhecer na sua realidade multicultural. O desafio está em dar um passo adiante na afirmação da pluralidade étnica e na valorização da diversidade cultural, como parte integradora da identidade brasileira. Podemos compreender que, entre outras possibilidades sobre uma reflexão teológica a partir e com a dimensão desse povo afro, a diáspora é um lugar onde logos e mytos podem se justapor. Isso pode encaixar-se no âmbito dos estudos acadêmicos, através da categoria fundamental do “sentido”. Considerando, numa perspectiva de africanidade, que o mito surge como uma narrativa imagética e dramática de instauração de sentido, podemos também considerá-lo como fundamental para a compreensão de um modo de ser que nossa limitada capacidade de conceituação poderia chamar de “inefável”. Este “inefá- 50 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades vel” é algo que se manifesta sobre aspectos que nossas também limitadas categorias tentam apreender – a de “sagrado”. O “sagrado”, no contexto da africanidade, na diáspora, pode ser compreendido como a totalidade da vida do homem e da mulher negra e, ainda, tudo que os envolve como ser em relação, contribuindo na interação da identidade deste povo. O mito pode ser uma ponte entre ambos, entre a experiência religiosa e as formulações teológicas a respeito: o mito pode ser entendido como fundamento das práticas religiosas e como expressão de sua religiosidade. O mito, neste sentido, funciona como espécie de “condensador” de significado religioso, portador e verificador da verdade religiosa, como guardião da ação do sagrado e como expressão narrada desta ação. Uma abordagem da religiosidade no mito, a nosso ver, não pode prescindir da noção de “sagrado”. Esta noção, fundamental no campo de estudos das religiões, remete a uma especificidade inegável do fenômeno religioso. Ainda que, de um ponto de vista crítico, o conceito de “sagrado” possa ser relativizado, para o homo religiosus ocorre o que tão bem expressa Mircea Eliade: Um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro de sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa. Querer delimitar esse fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia e pela economia, pela lingüística e pela arte, etc., é traí-lo, deixar escapar precisamente o que existe nele de único e irredutível, ou seja, seu caráter sagrado. (ELIADE, 1990, p. 16) Chamamos aqui, a exemplo de Mircea Eliade (1960, p.25), de “hierofania” essa manifestação do sagrado, que exprime uma modalidade e um momento de sua história. Temos, pois, para nosso objetivo, que estabelecer uma distinção de duas ordens, ou seja, a do numinoso e a do sagrado, que é mais propriamente sua expressão e que se manifesta sempre numa certa situação histórica, através de suas modalidades. Uma modalidade é um modo de ser, e os modos de ser do sagrado são estrutural e historicamente diferenciados. O sagrado se manifesta na forma de mitos, ritos, formas divinas, objetos sagrados e venerados, símbolos, cosmologias, homens, animais, plantas e lugares consagrados. Cabe, pois, ressaltar outros problemas terminológicos que envolvem a questão. Se enveredarmos pela história de personagens e famílias importantes, pelo aspecto não racional, ou a-racional, fenômeno religioso, qualquer aproximação ao numem escorrega e se perde nos labirintos da linguagem que a delimita, mas não a apreende em sua totalidade. Na África, o sagrado está na voz do griot, termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial, para designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes, para as quais, em geral, está a serviço. Presente, sobretudo na África Ocidental, notadamente onde se desenvolveram os impérios medievais africanos (Gana, Mali e Songai), recebe denominações variadas: dyéli ou diali, entre os Bambaras e Mandigas; guésséré, entre os Saracolês, wambabé, ente os Peúles, auoloubé, entre os Uolofés (LOPES, 2004, p. 310). O griot, responsável pela Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 51 memória dos povos africanos, permite que os mitos cheguem até nós. Mas, como pensá-los na contemporaneidade? No passado, o espaço do mito foi as aldeias africanas e, para além do território africano, a ágora, o teatro grego, presente no canto dos aedos ou em conversas em torno de fogueiras, no ensinamento de pais para filhos, ou seja, o mito era parte do cotidiano de todos. Hoje, o mito é estudado, dissecado, analisado nas universidades, mas como eco distante do cotidiano do grande público. Se na academia o mito encontra o seu lugar, o mesmo não ocorre no espaço escolar. Ao pensar na possibilidade do uso dos mitos na prática pedagógica, percebe-se que o mesmo também pode ser um bom princípio para estudar e compreender a multiplicidade cultural. Neste artigo, em particular, pensamos os mitos africanos como meio de abordar essa cultura em sala de aula, ou seja, ir além do conteúdo continuamente abordado sobre a história africana e afro-americana no Brasil, que por vezes limita-se ao processo de escravidão e à submissão do negro ao trabalho escravo. Ou seja, estuda-se a história africana e afro-americana a partir da perspectiva de uma sociedade em que os negros estão sujeitos às decisões de outros, em que os mesmos não são protagonistas. Assim, compreendemos que iniciar o estudo dessa cultura a partir de seus mitos torna-se uma possibilidade de entendê-la a partir da realidade africana, ou seja, contada por seus povos. Pretende-se, assim, refletir sobre a identidade atribuída ao povo africano, identidade esta naturalizada, cristalizada e essencializada (SILVA, 2000, p. 73) pelo modo como é conduzido o estudo de outras culturas em sala de aula. A distância em que as culturas são apresentadas destaca o curioso, o exótico, reforçando a ideia de identidade em que o outro é aquele que não sou. Segundo Tomaz Tadeu: “Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos” (SILVA, 2000, p. 76). Imbricado nessa afirmação da identidade e da enunciação da diferença está o desejo dos diferentes grupos sociais em garantir acesso privilegiado aos bens culturais e sociais (SILVA, 2000, p. 81), ou seja, estabelecer relações de poder e, por vezes, hierarquização das diversas culturas. Ao pensar as outras culturas pela perspectiva do exótico, busca-se afirmar a nossa cultura como normal, como referência, e, assim, inferiorizar as demais culturas. Fato que se percebe destacado ao estudarmos a relação das demais culturas com o sagrado, em que, por vezes, pretende-se reforçar a concepção de verdade, de normalidade, em confronto com o exótico. É preciso refletir que “a normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença” (SILVA, 2000, p. 81). Ao classificarem-se culturas como “normais”, atribui-se a elas valores positivos, transformando-as em referências de positividades, desejáveis e, por vezes, pensadas como naturais (SILVA, 2000, p. 83). Por- 52 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades tanto, torna-se necessário repensar a prática pedagógica, de forma que as identidades não sejam fixadas (nós X eles), hierarquizadas, naturalizadas, mas, sim, de maneira que seja possível questionar a forma de perpetuação dessas representações. Em um ponto específico, é preciso questionar a forma como as culturas africanas e afro-americana vêm sendo representadas em sala de aula e nos livros didáticos. É preciso conceber uma prática pedagógica em que o aluno possa explorar novas possibilidades de pensar o outro como diferente e, mais ainda: possibilitar a ele esta diferença, sem querer conformar e entender a sua cultura a partir dos parâmetros da minha cultura, ou seja, compreender a outra cultura pela sua multiplicidade. Para tanto, é possível pensar a prática pedagógica a partir do mito e da literatura africana contemporânea, de forma que se possa conhecer a tradição oral mitológica dos povos africanos presentes nas comunidades negras do Brasil, refletindo sobre estes povos africanos antes da diáspora. Provocar o impensado em nossos alunos, pensar os povos africanos para além da escravidão, para uma existência além da presença branca, ou seja, desconstruir a identidade naturalizada da cultura negra. Assim, pensar a África a partir dos mitos de seus povos é pensá-la antes da presença europeia em seu território, é estimular a compreensão da vivência desses povos como livres em seus territórios, e não mais como povos escravizados, cuja existência é meneada pelo outro. Para melhor analisar essa prática, a partir de uma pedagogia da diferença (SILVA, 2000, p. 101), destacamos o mito: Ogum dá aos homens o segredo do ferro, reunido em livro por Reginaldo Prandi (2001): Na Terra criada por Obatalá, em Ifé, os orixás e os seres humanos trabalhavam e viviam em igualdade. Todos caçavam e plantavam, usando frágeis instrumentos feitos de madeira, pedra ou metal mole. Por isso o trabalho exigia grande esforço. Com o aumento da população em Ifé, a comida andava escassa. Era necessário plantar em uma área maior. Os orixás então se reuniram para decidir como fariam para remover as árvores do terreno e aumentar a área da lavoura. Ossaim, o orixá da medicina, dispôs-se a ir primeiro e limpar o terreno. Mas seu facão era de metal mole e ele não foi bem sucedido. Do mesmo modo que Ossaim, todos os outros orixás tentaram, um por um, e fracassaram na tarefa de limpar o terreno para o plantio. Ogum, que conhecia o segredo do ferro, não tinha dito nada até então. Quando todos os outros orixás já tinham fracassado. Ogum pegou o seu facão, de ferro, foi até a mata e limpou o terreno. Os orixás, admiradores, perguntaram a Ogum de que material era feito tão resistente facão. Ogum respondeu que era ferro, um segredo de Orunmilá. Os orixás invejaram Ogum pelos benefícios que o ferro trazia, não só à agricultura, como à caça e até mesmo à guerra. Por muito tempo, os orixás importunaram Ogum para saber o segredo do ferro, mas ele mantinha o segredo só para si. Os orixás decidiram oferecer-lhe o reinado em troca de que ele lhes ensinasse tudo sobre aquele metal tão resistente. Ogum aceitou a proposta. Os humanos também vieram a Ogum pedir-lhe o conhecimento do ferro. E Ogum lhes deu o conhecimento da forja, até o dia em que todo caçador e todo guerreiro tiveram sua lança de ferro. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 53 Esse mito nos permite questionar: que tempo foi esse? Qual o significado de viver em igualdade? A partir de qual momento esse tempo termina? Quem eram os orixás? Primeiramente, destacamos que o mito nos transporta para o continente africano, Ifé, num tempo em que viviam em igualdade, um tempo antes da diáspora, antes da colonização, ou seja, uma África pouco estudada em nossas escolas. Assim, primeiramente, é preciso entender o continente, sua história, geografia e a diversidade de povos que ali vivem. A compreensão dessa narrativa necessita de uma pesquisa deslocando o estudo comumente existente em sala de aula. Assim, por meio do estudo da arte e dos mitos desses povos é possível refletir este tempo de igualdade da vivência em tribos e, após, o surgimento dos reinos africanos. A pesquisa, bem orientada e diversificada em termos de fontes, possibilita um novo olhar, para além do que os livros didáticos têm oferecido. Ao deslocar o estudo para além dos livros e do mundo virtual, e trazer para a sala de aula pessoas que estejam vinculadas ao movimento negro, à musica, à capoeira e às religiões de matriz africana, permite-se ao aluno o convívio e a troca de experiência com outras pessoas, estudando a história a partir da vivência, percebendo essa história africana e afro-americana na contemporaneidade, a partir de seu passado. Portanto, ao propor a leitura do mito em que Ogum dá aos homens o segredo do ferro pretende-se assinalar o momento de mudança, em que diversos povos africanos abandonam o nomadismo e tornam-se sedentários, como outros povos nos demais continentes. Porem, remeter-nos ao tempo em que os Orixás e homens conviviam em Ifé e refletir sobre a origem mítica é pensar também num mundo muito remoto, em que o tempo não se nomeia em datas. Remeter o estudo do continente africano para seus primórdios é uma possibilidade de “estimular, em matéria de identidade, o impensado e o arriscado, o inexplorado e o ambíguo, em vez do consensual e do assegurado, do conhecido e do assentado. Favorecer, enfim, toda experimentação que torne difícil o retorno do eu e do nós ao idêntico” (SILVIA, 2000, p. 100). Na atualidade, as imagens do continente africano são de miséria, fome, doença e guerras, que perpetuam um preconceito, mas não explicam as causas da miséria africana, apenas reforçam um estigma. Um estudo a partir dos mitos e da literatura pode nos mostrar um continente africano anterior à miséria infligida à sua população. Estudar a história africana a partir da voz dos africanos é estudar essa história a contrapelo (BENJAMIN, 1991), é romper com a identidade africana e afro-americana essencializada e naturalizada, para nos deslocar até uma pedagogia da diferença, em que a multiplicidade é valorizada e disseminada. Multiplicidade que é possível analisar em cada mito em que os “orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos quais descendem” (PRANDI, 2001, p. 24). Estudar a mitologia e a literatura africana também nos 54 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades ajuda a compreender as relações humanas, compreender o outro como convívio, possibilita que o “outro seja como eu posso ser, que não pode ser um (outro) eu; significa deixar ser uma diferença que não seja, em absoluto, diferença entre duas identidades, mas diferença da identidade” (PARDO, p. 154). Assim, o aluno, ao perceber um munido africano anterior à invasão européia, pode compreender melhor a contemporaneidade, como Mia Couto inicia seu livro Terra Sonâmbula: “Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristeza desses povos” (COUTO, 1995, p.27). A literatura, de modo simples, para além dos estereótipos disseminados nos meios de comunicação, permite-nos ler aqueles que vivem em solo africano. Explorar a literatura africana da contemporaneidade é importante para comparar à sua mitologia, perceber, por meio dessas narrativas, dois momentos distintos da história desse continente: um tempo anterior à invasão européia, e um tempo posterior, em que: A guerra crescia e tirava dali a maior parte dos habitantes. Mesmo na vila, sede do distrito, as casas de cimento estavam agora vazias. As paredes, cheias de buracos de balas, semelhavam a pele de um leproso. Os bandos disparavam contra as casas como se elas lhes trouxessem raiva. Quem sabe alvejassem não as casas, mas o tempo, esse tempo que trouxera o cimento e as residências que duravam mais que a vida dos homens. (Idem) O mito e a literatura, portanto, mostram uma possibilidade de questionar as identidades que são impostas, e iniciar um trabalho a partir de uma pedagogia da diferença, que nos possibilita o impensado, e, acima de tudo, ouvir o outro, permitindo ir além das identidade naturalizadas. Referências ALTUNA, P. Raul R. de Asúa. Cultura Tradicional Banto. Editora Âncora, Luanda, 1974. VERGER, P. Flux et Reflux de La Traite dês Nègres entre Le Golfe de Bénin et Bahia de Todos os Santos, Du 17me au 19me siècle. Paris, Mouton, 1968. Existe uma tradução brasileira. BENJAMIN, Walter. Teses sobre a filosofia da história. Org. Flavio Kohte. SP: Ática, 1991 CESAR, Chico. Respeitem meus cabelos, brancos. 2003 COUTO, Mia. Terra sonâmbula. RJ: Nova Fronteira, 1995. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: A Essência das Religiões. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, 1960. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 55 _______. Tratado de história das religiões. Lisboa: Ed. Cosmos, 1990. HOONAERT, E. O cristianismo moreno do Brasil. Vozes, Petrópolis-RJ, 1990, LOPES, Nei. Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004. PARDO, José Luis. El sujeto inevitable, in CRUZ, Manuel (org.) Tiempo de subjetividad. Barcelona: Paidós, 1996. PECQUER, B. De l’espace fonctionnel à l’space-territoire: essai sur Le développement local. Grenoble, Thèse (doctorat) – Université des Sciencies Sociales, 1987. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. SP: Cia. das Letras, 2001. SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes. 2000. 56 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Literatura, Patrimônio Cultural e Relações Étnico-raciais Eliane Santana Dias Debus1 O Primeiro Menino escreve na ravina. Sua escrita muda como as estações. De uma notícia de chuvas para um retrato com flores. O vento, seu melhor leitor, apaga os pontos finais. Prefere as reticências para alongar os pensamentos. Depois, com sua mala sem trincos, voa pelo mundo levando as perguntas que fazem o coração da gente mover-se com rumor. (PEREIRA, 2003) Convidada a escrever sobre literatura e patrimônio cultural, ou melhor, a literatura como patrimônio cultural, de imediato me veio à mente a dificuldade da tarefa. Dificuldade que reside em trazer à tona tema instigante e, ao mesmo tempo, complexo, pois, na maioria das vezes, o termo patrimônio remete àquilo que é concreto, ao que é marcado pela materialidade. Provavelmente, muitos dos leitores já ouviram a expressão “devemos cuidar do patrimônio coletivo” ou ainda “tal ato constitui uma depredação do patrimônio público”, entre outras. Essas expressões, quase sempre, estão vinculadas a prédios históricos, objetos antigos, monumentos. Como escrever algo sobre um bem imaterial como a literatura que, mesmo palpável pela sua materialidade em livros (em alguns casos) – como destaca Eco (2003) “os objetos literários são imateriais apenas pela metade, pois encarnam-se em veículos que, de hábito, são de papel” (p. 9) - constitui-se da subjetividade e dos protocolos individuais estabelecidos pela sua leitura? 1 Professora do Departamento de Metodologia do Ensino. Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. De outro modo, adicionado ao convite da escrita, veio o recorte: a produção literária realizada por escritores negros. Ora, se no primeiro caso uma visão tradicional e elitista colaborou para inserir no corpus dos bens pertencentes ao patrimônio cultural material aqueles vinculados a uma elite (produzido e consumido por ela), no caso da literatura não foi diferente. Qual texto literário pertenceria ao rol da produção que constituiria o patrimônio cultural? Seriam considerados somente aqueles textos pertencentes ao cânone estabelecido, de certo modo, por uma elite? Qual a função do texto literário? São questões pertinentes e, ao mesmo tempo, difíceis de responder, resultando em respostas-perguntas. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 57 Ao refletir sobre a produção literária produzida por escritores negros e inseri-la como patrimônio cultural, é necessário destacar que, contemporaneamente, vários estudiosos têm se detido em pesquisas desse recorte. Levando em conta essa perspectiva, a reflexão deve se centrar sobre literatura afro-brasileira, literatura negra ou literatura com a temática negra e/ou afro-brasileira? Caminhos diversos a seguir, unidos num único dilema: a voz silenciada, inviabilizada, do negro nas narrativas, como produtora e como representação. No movediço chão que me foi apresentado, impossível não adentrar no meu foco pontual de reflexão: a literatura de recepção infantil e juvenil e a temática africana e afro-brasileira. Desse modo, a provocação da escrita me leva por um itinerário que me desobriga da bagagem convencional, levo a mala sem trinco de empréstimo do Primeiro Menino, que me acompanha no seu pensar. Levo algumas palavras inquilinas, que auxiliarão o meu dizer e, depois do tudo já dito, esgarçadamente, pode ser que fique escrita de ravina assoprada ao vento... no meio de tantas indagações. De palavras inquilinas: eis as primeiras respostas-perguntas Quando as respostas são perguntas, o menino se entrega aos enigmas. Então descansa de escrever para escutar as conversas da boca do rio. [...] Mas, dizem, outras mãos podem escrever na ravina, enquanto o menino toma lições com as águas. Aí estão as pedras-lápis, acesas. Que palavras se pode gravar com elas... (PEREIRA, 2003) Primeiro é necessário destacar que, contemporaneamente, entende-se como patrimônio cultural o conjunto de bens materiais e imateriais, e que fazem parte desses subgrupos aqueles bens considerados de importância para a memória e permanência da identidade de determinada população. Entendido isso, pode-se perguntar: quem estabelece o que deve ou não ser preservado? Qual bem cultural é digno para tal? No caso da produção literária, poderíamos afirmar que pertencem ao patrimônio cultural aqueles textos produzidos ontem e que, dados a ler hoje, ainda respondem às expectativas dos leitores e que, possivelmente, interessarão ao leitor num futuro remoto? Que tipo de leitor determina o que permanece e o que fenece? Nas últimas décadas, ampliou-se o grupo de indivíduos que determina o que é considerado importante para manter a memória-história da população, construindo, assim, um leque também ampliado do acervo que compõe o patrimônio cultural, resultando no que se pode denominar, grosso modo, de diversidade patrimonial. 58 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades A tradição literária, como destaca Eco (2003), refere-se ao conjunto de textos construídos pela humanidade, que não têm uma função prática e são lidos para o entretenimento, sem fins que não o de deleite, consumidos gratia sui, pelo prazer da leitura. No entanto, para não se fazer compreendido erroneamente e que o texto literário não seja entendido como um mero passatempo, o estudioso italiano aponta as funções que a literatura desempenha tanto na vida individual como social do sujeito. Uma das funções elencadas por Eco (2003) é o papel que a literatura tem de manter, em exercício, a língua como patrimônio cultural, trazendo como exemplo a unificação da língua italiana pela obra de Dante, de modo que, ao contribuir para formar a língua, a literatura “cria identidade e comunidade” (ECO, 2003, p. 11). Por seu caráter polissêmico e singular “As obras literárias nos convidam à liberdade da interpretação, pois propõem um discurso com muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades e da linguagem e da vida” (ECO, 2003, p. 12). O texto literário, na sua feitura por meio da linguagem, carrega consigo uma força humanizadora, considerando que, como observa Candido (1995), “satisfazem necessidades básicas do ser humano, sobretudo através dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa visão do mundo” (p.240). Explicitando o seu entendimento de humanização, Antonio Candido afirma: Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor (1995, p. 249). A palavra ficcional arrebata o leitor para um tempo e espaço que não são os seus. Desse modo, ele experiência um viver distante do seu, ao mesmo tempo tão próximo, e, ao voltar desse encontro ficcional, já não é o mesmo; ele é capaz de reconfigurar o seu viver. Se ler o outro e sobre o outro tem importância fundamental na formação leitora do indivíduo, o contato com textos literários, que apresentam personagens em diferentes contextos, ou a existência de escritores oriundos de diferentes contextos, permitem uma visão ampliada de mundo. Desse modo, a literatura negra ou afro-brasileira e/ou a temática da cultura africana e afro-brasileira se faz imprescindível, sabendo, de antemão, que não é uma tarefa fácil, pois, como destaca Duarte (2011): Desde o período colonial, o trabalho dos afro-brasileiros se faz presente em praticamente todos os campos da atividade artística, mas nem sempre obtendo o reconhecimento devido. No caso da literatura, essa produção sofre, ao longo do tempo, impedimentos vários à sua divulgação, a começar pela própria materialização em livro. Quando não ficou inédita ou se perdeu nas prateleiras dos arquivos, circulou muitas vezes de forma restrita, em pequenas edições ou suportes alternativos. Em outros casos, existe o apagamento Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 59 deliberado dos vínculos autorais e, mesmo, textuais, com a etnicidade africana ou com os modos e condições de existência dos afro-brasileiros, em função do processo de miscigenação branqueadora que perpassa a trajetória desta população (p.73). Não é consenso a denominação do conjunto da produção de escritores negros como Literatura Negra ou Literatura Afro-brasileira, ou, como afirma Pereira, “a origem étnica e o conteúdo não são suficientes para estabelecer a especificidade da Literatura Afro-brasileira” (2011, s.p.). No entanto, a temática da cultura africana e afro-brasileira, bem como, a escrita de escritores afro-brasileiros, ficou silenciada. Contemporaneamente, encontramos vários trabalhos que evidenciam esse fato; alguns de caráter cartográfico, ao apresentar um mapa quantitativo, e outros, trabalhos pontuais. Vejamos aqueles que podem servir de referência, para este momento, para adentrarmos no conhecimento da produção literária de escritores afro-brasileiros. Zilá Berndem, na Introdução à literatura negra (1988), apresenta um eu enunciador que se quer negro, ampliando a definição de literatura negra, que segundo ela requer: [...] a presença de uma articulação entre textos, determinada por um certo modo negro de ver e de sentir o mundo, e a utilização de uma linguagem marcada, tanto no nível do vocabulário quanto no dos símbolos, pelo empenho em resgatar uma memória negra esquecida, legitimam uma escritura negra, vocacionada a proceder à desconstrução do mundo, nomeada pelo branco, e a erigir sua própria cosmogonia (1988, p. 22). A partir de denominadores comuns em textos de língua francesa das Antilhas, a autora busca os mesmos elementos na literatura negra brasileira, apresentando a produção de Luís Gama, Castro Alves, Jorge de lima e Lino Guedes. Domício Proença Filho, ao se debruçar sobre “A trajetória do negro na literatura brasileira” (2004), focaliza a literatura sobre o negro e a literatura do negro, marcada por dois posicionamentos: “a condição negra como objeto, numa visão distanciada, e o negro como sujeito, numa atitude compromissada” (p. 161). No artigo “Panorama da Literatura afro-brasileira” (2012), publicizado no Literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira, Edimilson de Almeida Pereira apresenta um levantamento sobre os autores afro-brasileiros dos séculos XVIII, XIX e da primeira metade do século XX. Nessa apresentação, são evidenciadas a biografia e a produção de escritores, muitos desconhecidos do grande público, outros esquecidos da identidade étnico-racial, Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), Antonio Gonçalves Dias (1823-1864), Laurindo José da Silva Rabelo (18261864), Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), Tobias Barreto de Menezes (1839-1889), Antônio Gonçalves Crespo (1846-1883), José do Patrocínio (1853-1905), João da Cruz e Sousa (1861-1898), Afonso Henrique de Lima Barreto (1891-1922), Lino 60 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Guedes (1906-1951), Solano Trindade (1908-1974), Maria Firmina dos Reis (1825 – 1917), Auta de Souza (1876-1901) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Investido numa tarefa hercúlea, depois de 10 anos de pesquisas, o professor Eduardo Assis Duarte, juntamente com Maria Nazareth Soares Fonseca, organizou e trouxe a público a Literatura e afrodescendência no Brasil: Antologia Crítica2 (2011), obra composta de quatro volumes (totalizando 2008 páginas), que apresenta 100 escritores afro-brasileiros - do século XVIII aos contemporâneos - a partir de ensaios críticos, desenvolvidos por 61 pesquisadores, vinculados a instituições brasileiras e estrangeiras. Por certo, o maior mapeamento produzido até agora em terra brasilis e que nos dá um panorama da produção de escritores afro, muitos desconhecidos dos currículos escolares de ensino médio e até mesmo universitário. Essa produção, sem sombra de dúvidas, será referência para os pesquisadores da área, bem como, para a introdução do tema no currículo das escolas brasileiras, agora com o apoio de consulta, tão necessário para a formação dos educadores. Além do amplo painel da produção literária, o volume 4 reúne depoimentos de escritores e ensaios de estudiosos com diferentes pontos de vista, ora até destoantes, mas empenhados em construir o projeto de uma literatura negra ou afro-brasileira. 2 O livro, publicado no segundo semestre de 2011, foi selecionado pelo júri de O Globo para figurar entre os 10 livros mais importantes de 2011. http://oglobo. globo.com/cultura/osmelhores-livros-de-20113534627#ixzz1iDA7yHea O pequeno recorte aqui feito dos trabalhos citados demonstra o empenho de pesquisadores em produzir um referencial que amplie a discussão sobre a literatura produzida por escritores afro-brasileiros. E, no que diz respeito à produção literária de recepção infantil e juvenil, o que se tem proposto para seus estudos em relação à reflexão étnico-racial? A produção literária para crianças e jovens: outras respostas-perguntas O menino voltou das águas. Trouxe os verbos-peixes para escrever novas imagens. Agora procura outras palavras no jogo de esconde-esconde. Palavras-frutos. Palavras-nome. Onde? Onde a chave das palavras que falam arcas, arcos e orcas? Quando o vento se assenta nas árvores, o menino lhe mostra um quintal de palavras. (PEREIRA, 2003) Estudos que remetem exclusivamente a pesquisas sobre escritores negros e ou afro-brasileiros na literatura de recepção infantil e juvenil brasileira ainda estão por serem feitos. No que diz respeito à temática da cultura africana e afro-brasileira, a partir da presença de personagens negras ou de elementos da cultura africana e afro-brasileira nesse tipo de narrativa, as pesquisas têm se efetivado a partir já da década de 1980 e se acentuado no início do século XXI. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 61 Anteriormente à década de 1980, os estudos sobre a literatura de recepção infantil e juvenil ainda eram embrionários, e a produção literária abordando a temática também. Dois estudos realizados no século XXI, mas que usaram como referência textos literários produzidos no início do século XX, demarcam esse espaço restrito das personagens negras. Maria Cristina Gouvêa (2000) analisa as representações sociais sobre o negro nas três primeiras décadas do século passado, destacando o que ela denomina de uma suposta integração racial nessa produção, marcada por uma visão etnocêntrica, na qual as personagens são identificadas pelo desejo de embranquecimento. O mesmo foi constatado por Luis Fernando França (2006), que verificou, por meio da leitura de títulos de Olavo Bilac, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Maria José Duprè e Viriato Correa, que, na primeira metade do século XX, a literatura infantil nacional conserva uma visão estereotipada em relação ao negro. A década de 1970, para a literatura infantil brasileira, é representativa de um período de efervescência, denominado, por alguns estudiosos, como o “boom” dessa produção (CADERMATORI, 2006; SANDRONI, 1985), promovido pelo crescente aumento do número de instituições e programas de incentivo à leitura e pela expansão do mercado editorial, casada com a exigência legal (Lei 5.692/71) da leitura de uma literatura nacional (LAJOLO; ZILBERMAN, 1987). No caudal de produções que surgem nesse período, a temática social ganha novos contornos, e assuntos polêmicos, até então ausentes da literatura para a infância, são apresentados, em particular, pela editora Comunicação, e, como destacam Lajolo e Zilberman, “parece ter cabido a ela a consolidação (mesmo que a preço de escândalo) de uma literatura infantil comprometida com a representação realista e, às vezes, violenta, da vida social brasileira” (1987, p.126). As mesmas estudiosas destacam que a imersão em temas problematizadores “fez submergir a velha prática de privilegiar nos livros infantis apenas situações não problemáticas” e, por sua vez, “o compromisso do livro infantil com valores autoritários, conservadores e maniqueístas” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1987, p.126). Algumas pesquisas, realizadas quase em sua grande maioria a partir da década de 1990, embora apontem para uma introdução de personagens negras como protagonistas a partir da década de 1970 e 1980, constatam que, em muitas produções, encontra-se, ainda, um discurso contraditório e, por vezes, preconceituoso. Rosemberg (1985) apresenta uma análise de títulos para a infância, publicados entre os anos de 1955 e 1975; Bazzili (1999), uma análise de títulos publicados entre os anos de 1976 a 1996; Oliveira (2003), uma análise de títulos publicados entre os anos de 1979 e 1989. A partir de 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em particular com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) apontando os Temas Transversais, o mercado editorial se reorganiza, buscando cumprir a demanda, de modo que os catálogos das editoras começam a apresentar títulos e cole62 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades ções contemplando esses temas, e assim, juntamente com as informações básicas sobre o livro, aparece o tema transversal com o qual ele dialoga. O tema Pluralidade Cultural, especificamente, traz como norte o respeito aos diferentes grupos e culturas que convivem na sociedade brasileira. Embora não tenha os temas transversais como foco, a pesquisa de Gládis Kaercher (2005) trabalha com o conjunto de 110 títulos que compõem o acervo do Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE), referente ao ano de 1999, a partir da representação de negritude, branquidade, masculinidade e feminilidade. Entre as suas conclusões, destaca-se aquela relacionada à constatação de estratégias de extinção do fenótipo, culminando com uma estética branca em que “As representações de negritude, presentes no acervo do PNBE 99, operam de modo a promover um clareamento de negros e negras, de tal sorte que os matizes mais escuros (de marrom ou cinza) não são usados para representá-los/las”. (KAERCHER, 2005, p.192). Um conjunto de estudos abarca o período pós Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino da cultura africana e afro-brasileira nas escolas do Brasil, como as pesquisas sobre a representação da temática étnico-racial no acervo do PNBE, que tem se acentuado: Ferreira (2008), análise dos títulos do acervo do PNBE/2005; Venâncio (2009), análise a partir dos títulos do acervo do PNBE/2008; ainda sobre o mesmo acervo de 2008, Oliveira (2011) se detém nos títulos específicos para a Educação Infantil. Nessa última linha, vale ressaltar três artigos. No primeiro, “Representação e identidade: política e estética étnico-racial na literatura infantil e juvenil” (MARTINS; COSSON, 2008), os autores analisam a temática nos títulos inscritos para o acervo do Ensino Fundamental do PNBE/2008, focalizando, por final, uma leitura crítica do livro O cabelo de Lelê, de Valéria Barros Belém. Os dois seguintes são resultantes dos estudos realizados junto ao projeto de pesquisa, coordenado por Rosa Maria Hessel Silveira, “Narrativas, diferenças e infância contemporânea”. “Literatura infantil e pedagogia: reflexões sobre a abordagem da diferença” (SILVEIRA; BONIN; KIRCHOF, 2010) apresenta a análise de quatro títulos contemporaneíssimos (de 2007 a 2009), que lidam com a temática da diferença, tendo como ponto comum o cabelo; e “A diferença ligada à etnia em livros brasileiros para crianças: análise de três tendências contemporâneas” (SILVEIRA; BONIN; KIRCHOF, 2011) apresenta a leitura de 22 títulos contemporâneos, elencando três tendências composicionais: 1) a diferença é apresentada por meio “de situações de racismo ficcionalizadas”, que são ultrapassadas “apontando-se ao leitor uma clara lição de fraternidade e/ou aceitação”; 2) personagens negros representados em situações não discriminatórias, na maioria das vezes pela ilustração “numa proposta que se poderia descrever como de representação naturalizada da diversidade étnica brasileira”; e 3) a diversidade é representada na forma de diferenças em geral: tom celebratório e exortativo (SILVEIRA; BONIN; KIRCHOF, 2011). Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 63 3 Ambos os projetos foram desenvolvidos no âmbito do Programa de Incentivo à Pesquisa Docente, promovido pela Universidade do Sul de Santa Catarina (PUIP), que teve seu primeiro edital em dezembro de 2005. 4 Trabalho desenvolvido com a parceria imprescindível da aluna de graduação do Curso de Pedagogia (Unisul) Cristina Margarida Vasques, por meio de uma bolsa PIBIC (2008.2009), com o apoio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Devo também apontar os trabalhos que venho realizando, desde fevereiro de 2006, que procuram mapear a produção literária para criança e a temática étnico-racial. O primeiro projeto “A representação do negro na literatura brasileira para crianças e jovens: negação ou construção de uma identidade?” (DEBUS, 2006), analisou sete catálogos editoriais referentes ao ano de 2005/2006. Do levantamento, constatei que, de um total de 1.785 títulos, 79 traziam personagens negras, destacando-se, nestes, uma recorrência aos recontos africanos por escritores brasileiros. Das informações oriundas desse primeiro projeto resultaram “As histórias de lá para leitores daqui: os (re)contos africanos para crianças pelas mãos de escritores brasileiros3” (DEBUS, 2007), tendo como foco de análise os títulos de Rogério Andrade Barbosa, Joel Rufino dos Santos e Júlio Emílio Braz, autores que (re)contam narrativas da literatura oral africana e das literaturas afro-brasileiras, analisando a importância dessas narrativas para a construção de uma identidade étnica (DEBUS, 2010). Em 2008/2009 retomei o primeiro mapeamento com o projeto: “A cultura africana e afro-brasileira na literatura de recepção infantil e juvenil: um diálogo singular em pluralidades”4, com a ampliação de três catálogos não visitados anteriormente, totalizando oito editoras, das quais foram elencados um total 2.417 publicações, sendo que 171 apresentam o negro e/ou a cultura africana e afro-brasileira. O trabalho culminou com a resenha de 60 títulos. E temos aí mais respostas-perguntas. A ampliação dos estudos sobre a temática étnico-racial nos livros de recepção infantil guarda em si o diálogo com a ampliação dos títulos? As políticas afirmativas em relação à leitura de títulos que colaboram para uma formação antirracista têm resultado na ampliação do mercado editorial? Uma mala sem trinco, cheia de pertences: perguntas-respostas para outros caminhares? O vento galopa pela ravina onde o menino escreve a ternura dos cactos. Entre as viagens da relva e a casa do fogo. O menino também se põe a ler o livro que escreveu e que agora se escreve sozinho. São largas páginas, umas com palavras, outras em branco. O menino diz que isso é um convite para visitar as ilhas e colecionar assuntos. Diante de tantas palavras, o menino sorri curioso. Seus olhos procuram nas coisas outras coisas, como se nada estivesse pronto. (PEREIRA, 2003) Permiti-me, neste texto, divagar e, devagar, adentrar em veredas e atalhos sem medo, sem censura, com olhar aberto para revisitar minhas palavras e visitar a de outros na tentativa de refletir sobre 64 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades a literatura (bem tão (i)material) como patrimônio cultural e o diálogo com a temática da cultura africana e afro-brasileira. Trazer o outro com a sua escrita ou pela escrita talvez seja a tarefa mais premente para a formação de leitores-cidadãos e uma sociedade antirracista, pois a linguagem literária, como já destacado em texto anterior, “tecida pelos fios da imaginação, confecciona um enredo de visibilidades, de encontros e diferenças. A palavra alçada ao plano do ficcional (re)desenha, (re)significa papéis e (re)configura espaços; o Outro não é mais sempre o mesmo, porque o mesmo assim o deixou de ser” (DEBUS,2010, p.121). Deixo a mala aberta e sempre pronta para incluir novos pertences, afinal, o itinerário, incompleto, é convite de retorno. Referências BAZILLI, Chirley. Discriminação contra personagens negros na literatura infanto-juvenil brasileira contemporânea. 1999. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. PUC/SP, São Paulo, 1999. BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988. CADERMATORI, Lígia. O que é Literatura Infantil. 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Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. 66 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Patrimônio Cultural e Cultura Afro-brasileira: Conflitos e Mediações João Carlos Nogueira1 e Tânia Tomázia do Nascimento2 Ideologia e racismo na origem As elites e o pretendido ideal de branqueamento da sociedade brasileira, e seu entendimento sobre a democracia racial, definem o que passa a ser conhecido como racismo à brasileira, cujo “modelo” de relações raciais e sociais impõem uma lógica autoritária de desenvolvimento econômico, político, social e cultural, onde a hierarquia nas relações de poder sustentam um princípio de violência e dominação. Ao perseguir esse propósito, definem também legislações que passam a considerar no plano legal e institucional, o que é patrimônio cultural sujeito a acautelamento, tombamento e preservação. O Decreto/Lei 25 de 30 de Novembro de 19373 é exemplo ímpar, assinado pelo Presidente Getúlio Vargas e o Ministro Gustavo Capanema, expressa a política de Estado no que se refere à proteção do patrimônio cultural e artístico nacional em curso no início do século XX. 1 Sociólogo, doutorando em Quaternário Materiais e Culturas – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Coordenador do Programa Desenvolvimento, Trabalho e Cidadania do Núcleo de Estudos Negros-NEN. 2 Arqueóloga, doutoranda em Quaternário Materiais e Culturas – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Colaboradora do Núcleo de Estudos Negros-NEN. Os debates contemporâneos sobre o patrimônio e a cultura afro-brasileira foram carregados por uma ideologia baseada em modelos raciais presentes nos finais do século XIX e início do século XX, cujo ambiente intelectual e acadêmico assimilavam as teorias darwinistas evolucionistas e o positivismo de Auguste Comte e Herbert Spencer (MUNANGA, 2004; SCHWARCZ, 2000), lastreadas nos trópicos brasileiros por Conde de Gobineau4, cujas posições acerca das “raças miscigenadas” eram radicais quanto a sua suposta inferioridade. 3 O decreto versa sobre a “Organização e proteção do patrimônio histórico e artístico nacional” e consagra no plano institucional o reconhecimento de bens vinculados “a fatos memoráveis da história do Brasil” ou que possuíssem “valor excepcional”. Não há como desconsiderar os debates em torno dos conceitos de raça e miscigenação provocadas pelos “homens de sciencia”, e a irrelevância atribuída ao patrimônio e à cultura afro-brasileira, embora, mesmo antes do Brasil criar suas primeiras instituições científicas5 o País já fosse considerado “local pri- 4 Para Schwarcz, Conde de Gobineau representava na época, uma espécie de “sacerdote do racismo” (2000). Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 67 5 O Museu Nacional, em julho de 1808, em seguida as Faculdades de Direito em Pernambuco e em São Paulo, em 1827. vilegiado para a obtenção de coleções e matéria-prima necessária aos museus europeus” (SCHWARCZ, 2000), com foco nas ciências naturais, botânica e zoologia. Portanto, nesse momento da nascente história das ciências no Brasil, povos indígenas e populações negras, aos olhos desses cientistas, não eram portadores de memória, cultura e patrimônio cultural. Como posteriormente vai comentar Sílvio Romero: “É uma vergonha para a ciência do Brasil que nada tenhamos consagrado de nossos trabalhos ao estudo das línguas e das religiões africanas, nós que temos o material em casa, que temos a África nas nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, e a Europa em nossos salões, nada havemos produzido neste sentido! É uma desgraça”. E prossegue: “O negro não é só uma máquina econômica; ele é, antes de tudo, (...) um objeto de ciência. Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiques, benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçangas... vão morrendo. O melhor ensejo, pode-se dizer, está passado com a benéfica extinção do tráfico. Apressem-se, porém, senão terão de perdê-lo de todo” (ROMERO,1933). No contexto revelado por Sílvio Romero, escravidão, raça, racismo e miscigenação, parecem não estarem ligados aos indivíduos, aos sujeitos que sofrem as implicações negativas destas categorias e conceitos, traduzidos como marcas sociais decorrentes das práticas da escravidão que estava submetida a população negra. Negando o outro como inexistente, enquanto sujeito de cultura, de memória e patrimônio. Não há, evidentemente, preocupações sobre o patrimônio e a cultura afro-brasileira ao longo período de que se estende ao longo do século XIX e início do século XX. Diante esse contexto histórico, podemos compreender as dimensões dos processos de negações que decorrem no futuro imediato, uma vez que, para considerar-se a relevância de um bem patrimonial, temos que necessariamente elevar seu significado no passado, remetendo-o para o futuro. Nesse caldeirão de efervescência social, os debates acerca dos conceitos de raça e dos destinos da população negra ex-escrava são centrais. Avaliando o contexto histórico apresentado, o presente artigo pretende abordar a importância e o significado da cultura afro-brasileira na formação da cultura brasileira, as razões que levaram à exclusão histórica da população negra nas políticas do patrimônio cultural e os desafios das políticas públicas frente ao quadro delineado. 68 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Política e cultura afro-brasileira A cultura afro-brasileira carrega consigo, na origem, a diversidade das principais nações dos povos africanos que formaram a população negra no Brasil: Bantos, Jejes, Hauças, Malés e Nagôs6 portadores de uma tradição rica, derivada das culturas particulares dos diferentes reinos africanos de onde provieram, ganhando novas formas e adaptações estético-culturais ou mesmo se desenvolvendo de forma “original” nas Américas e no Brasil. Os conhecimentos históricos, tradições, costumes, valores, saberes e fazeres dos povos e nações de origem africanas, com suas características próprias, contribuíram de forma decisiva com o que denominamos patrimônio nacional, portanto, para além de manifestações culturais, consideradas como exemplos clássicos, como a capoeira e as religiões de matriz africana, houveram outras contribuições: nas ciências, nas letras, nas artes plásticas, na música, no teatro, no cinema, nos desportos, entre outros. 6 Nome genérico de todos os grupos originários do Sul e Centro de Daomé e do Sudoeste da Nigéria. A cultura como processo dinâmico ressignifica-se e adapta-se às circunstâncias territoriais e ambientais. As manifestações religiosas, os hábitos alimentares, costumes e tradições (bens imateriais), são praticados em suas essências corporais e de memória, nos movimentos lúdicos, aspectos que indicam as formas de resistência ao sistema escravista. Nestes movimentos de resistência cultural e recriações simbólicas, as culturas negras vão sendo amalgamadas nas almas do “povo brasileiro” (RIBEIRO, 1995). Como afirma Renato Ortiz ao refletir sobre formação cultural no Brasil e a cultura afro-brasileira: “Apesar dos efeitos destrutivos que o tráfico e o sistema escravista imprimiram nos costumes africanos, a memória coletiva negra conseguiu encarnar-se no solo brasileiro. Preserva-se desta forma o culto de grande parte dos deuses africanos, ao mesmo tempo em que reinterpretam práticas e costumes através de danças como o Iundu, ou das embaixadas dos reis do congo. Pouco a pouco a herança africana se transforma assim em elementos culturais afrobrasileiros” (ORTIZ, 1991). Neste mundo real e simbólico de longa duração, polarizado pela cultura de origem judaico-cristão que serviu à ideologia do colonizador e ao estabelecimento do Estado brasileiro, a cultura afro-brasileira, numa outra perspectiva, na sua diversidade constitui unidades: nas religiões, nos seus territórios materializados, nos terreiros de candomblé, nas casas de umbanda, na culinária, na capoeira, nos clubes negros (concentrados nas regiões Sul e Sudeste), no samba, no maracatu, e em tantas outras manifestações que se espalharam por todos os cantos do País. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 69 É nesse contexto, eivado de mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais, que foi se formando a nação brasileira, envolvida em profundas contradições, levantes, rebeliões, insurreições, conflitos armados e negociações (REIS; SILVA, 1989; REIS 2003) promovidas pelos escravos no cativeiro, trabalhadores livres, setores da elite oitocentista e os abolicionistas, este conjunto de atores sociais, conduziram as principais transformações nos períodos da Colônia, do Império e da República. Nesses períodos, destacamos a longa República de Palmares, em Alagoas, a Revolta do Malês, na Bahia, a Guerra do Paraguai e a Abolição da Escravatura como acontecimentos marcantes que forçam, nos seus momentos respectivos, o início do período republicano, em 1889. 7 Em 1890, a população brasileira era composta de 6.302.198 de brancos, que correspondia a 44%; 4.638.495 de mestiços , ou 32% (pardos, segundo o IBGE); e 2.097.426, ou 24,32%, de pretos,. Sendo assim, a população negra representava 56,32% do total, e formava a absoluta maioria da população pobre brasileira. 8 Mediação é uma categoria central da dialética, figura central na epistemologia e, como tal, na teoria do conhecimento. No embate entre monarquistas e republicanos, na busca do estabelecimento do Estado-Nação, explicitavam-se ainda mais os modelos de exclusão da maioria da população brasileira7. As duas concepções comungavam do liberalismo positivista como orientação social, econômica e política, embora os positivistas condenassem a monarquia enquanto sistema de governo. Mas é a doutrina positivista que vai assegurar, por intermédio de uma pseudociência, a concepção de inferioridade entre as “raças”, inspiradas nas teorias de Goubineau e Spencer (MUNANGA, 2004). O Brasil conduzido por suas elites pretendia ser um país branco, “civilizado” e europeu. Vivia a contradição de negar mais da metade de sua população, negra, ex-escrava e indígena, queria industrializar-se, mas vivia a barbárie de uma escravidão tardia, um capitalismo dependente, baseado numa economia agroexportadora e enredada no debate sobre raça, para excluir e negar o caráter positivo da miscigenação na identidade brasileira, com isso comprometendo o desenvolvimento da Nação. Entretanto não poderia desconsiderar, no seu modo de produção, os seus quase 400 anos de trabalho escravo e suas consequências no desenvolvimento do projeto nacional. O final do século XIX e o início do século XX são marcados por efervescências sociais. A exclusão da população negra, numa combinação entre racismo, discriminação, preconceito e pobreza, torna-se o centro dos debates sobre o destino da Nação. A solução encontrada foi o ideal de branqueamento, com base improvável numa ciência infundada. Num segundo momento, pretendia-se estabelecer a cordialidade do “homem” brasileiro, como fruto e resultado da miscigenação, elementos esses que vão servir de fundamento à teoria da democracia racial, no início do século XX. Neste ambiente de exclusão, conflitos e mediação dialética8 estavam colocados os debates sobre cultura e identidade, Estado e Nação, sociedade e os direitos de cidadania. Em última análise, são os eixos que, no campo da Sociologia, da Antropologia, do Direito, da Arquitetura e da História, constituíram o ambiente para pensar a formação do patrimônio cultural do País, no início do século XX, no campo institucional e político. 70 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades No entanto, nos movimentos culturais, como o Centro Popular de Cultura da UNE, em que intelectuais e cineastas tiveram participação ativa, qual foi o lugar da cultura afro-brasileira? Para Lúcia Lippi Oliveira, “o pensamento nacional-popular guiava-se pelas manifestações culturais das classes populares, consideradas expressão da nação” (OLIVEIRA, 2008). Nessa perspectiva, as manifestações da cultura negra são essencialmente populares e portanto deveriam ser também expressão do projeto de nação. Mas não foi este o caminho perseguido. As principais organizações da época, como a Frente Negra, Teatro Experimental do Negro e os diversos jornais que formaram a chamada Imprensa Negra em diversos momentos, denunciavam as práticas racistas, sejam elas de iniciativa do Estado ou das organizações da sociedade civil. Estas, sobretudo pela omissão e pelo não-reconhecimento da “questão racial” como relevante para o desenvolvimento do projeto nacional. Patrimônio cultural afro-brasileiro: lugares de negações e permissões Neste contexto, não causa estranhamento que os mecanismos de salvaguarda e acautelamento dos bens patrimoniais brasileiros se guiassem por uma postura reservada a assegurar o poder vigente da elite instituída, ação velada no campo patrimonial pela predileção do patrimônio de “pedra e cal”, onde apenas monumentos imponentes, como casarões coloniais, fortes e igrejas, eram dignos de preservação, justificados pela sua excepcionalidade. Nesse contexto de valorização de nossa herança colonial, outros símbolos e manifestações culturais, das outras parcelas da população brasileira, foram oficialmente negadas em prol de nossa unidade maior, miscigenada, em um país supostamente sem contradições, que vivia em harmonia com sua diversidade. Tal prerrogativa de subjugação cultural, onde apenas os bens patrimoniais de uma parcela da população representavam a memória coletiva de todos, embora não fosse veladamente assumida como um fator de controle, no plano simbólico reforçou o sistema de dominação presente na estrutura social de nosso País, no que se poderia caracterizar, em uma transposição de conceito, ao que foi denominado por Bourdieu de “capital cultural”9 (BOURDIEU, 1997). Em sua essência, foi a partir de uma valorização, ou sacralização dos bens patrimoniais a serem preservados, que a elite reforçou o seu lugar de preponderância, subjugando as minorias e impondo seus 9 Bourdieu utiliza o termo capital cultural para explicar a desigualdade do desempenho escolar entre alunos oriundos de realidades sociais diferenciadas, uma vez que alunos oriundos de classes sociais favorecidas possuem em seu cotidiano um rol de experiências e assimilações, ou capital cultural (estruturas simbólicas), que facilita o aprendizado, uma vez que a escola acaba por valorizar, em maior grau, o conjunto de informações “institucionalizadas”, facilmente acessíveis e reconhecidas pela classe dominante. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 71 bens patrimoniais como modelos a serem velados. Ou seja, o patrimônio de “pedra e cal” foi o um dos passaportes da classe dominante para acentuar as diferenças e garantir sua dominação. Tal exercício corroborou para a criação de uma “realidade invisível que não se pode mostrar nem tocar com os dedos” (BOURDIEU, 1997), mas que na prática justificou a construção de um cabedal ideal a ser valorizado, e favoreceu o uso do patrimônio cultural como instrumento de preponderância de uma elite dominante, de origem europeia, sobre a esmagadora maioria da população brasileira, formada por afro-brasileiros e povos indígenas. Nesse cenário, foi negado às populações afro-brasileiras o direito oficial de valorização de seus bens patrimoniais, pois, de acordo com as prerrogativas vigentes, seus bens não possuíam valor excepcional. De maneira que terreiros, territórios quilombolas, clubes negros, bairros e vilas operárias, entre outros, nunca foram reconhecidos enquanto tal, embora quando do período de institucionalização dos bens patrimoniais brasileiros, nas primeiras décadas do século XX, já fossem espaços de representatividade religiosa, ação política, resistência cultural e étnica, ou seja, verdadeiros núcleos de sociabilidade. Vejamos como exemplo, os vários clubes sociais negros, que foram e são, além de espaços de representatividade social, espaços de valores arquitetônicos, por sua imponência estrutural e estética, que mesmo possuindo o critério da excepcionalidade, não foram tombados, pois não era de interesse a “sacralização”, através da institucionalização enquanto patrimônio, de outros espaços de ações e representações, que não a do poder vigente. Não pretendemos aqui fazer uma análise crítica anacrônica. Bem sabemos que o conceito de patrimônio cultural é dinâmico, e muda no tempo e no espaço, sendo, na atualidade, a concepção tradicional, a “pedra e cal”, teoricamente superada, com a dilatação de conceituação, ação e institucionalização de um novo conceito de patrimônio cultural, que tem no Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, que estabelece o registro de bens culturais de natureza imaterial no Brasil, sua maior afirmação. Um movimento anterior, a partir dos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 – em que o Estado se comprometeu em garantir “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”, bem como, apoiar, proteger, incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais, em especial das populações indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional - já fornecia indícios de uma nova era, de reconhecimento dessa parcela da população que foi esquecida. As prerrogativas pautadas na Constituição só vinham reforçar uma mudança que no plano prático já se encontrava em andamento, como se pode observar através do relato em 1984, e tombamento pelo 72 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades IPHAN em 1986 - dois anos antes da promulgação da Constituição de 1988 - do Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, considerado um dos mais antigos do Brasil. O tombamento do Terreiro Casa Branca foi um marco, já que pela primeira vez o Estado reconheceu um bem patrimonial afro-brasileiro como digno de preservação, através da sacralização, enquanto um bem tombado. Entretanto, tal processo não foi consensual, uma vez que “o Conselho encontrava-se bastante dividido. Vários de seus membros consideravam desproposital e equivocado tombar um pedaço de terra desprovido de construções que justificassem, por sua monumentalidade ou valor artístico, tal iniciativa” (VELHO, 2006). Segundo VELHO (2006), para a concretização do tombamento foi fundamental a atuação do movimento social, que reunindo artistas, intelectuais, jornalistas, políticos e lideranças religiosas se mobilizaram em uma campanha em prol do reconhecimento do terreiro enquanto bem patrimonial, em um movimento de tensão, onde a oposição era declarada. Tal ação segue-se, em 1986, com o tombamento da Serra da Barriga, local onde outrora existiu o Quilombo dos Palmares. E, em 22 de agosto de 1988, através da Lei nº 7.668, com a criação da Fundação Cultural Palmares. De acordo com o artigo 1º Lei nº 7.668, a finalidade da Fundação Cultural Palmares é “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”. Embora sua área de atuação seja ampla, se reconhece que a sua finalidade de “promover a preservação dos valores culturais” é mais um comprometimento institucional do poder público federal brasileiro com a salvaguarda dos bens patrimoniais da população afro-brasileira. Pauta que se mantém atual, pois a Portaria nº 22, de 29 de janeiro de 2010, que versa sobre o planejamento anual da Fundação Cultural Palmares, entre os anos de 2010 e 2011 prevê, no seu artigo 2, como objetivos estratégicos: “proteger e preservar o patrimônio cultural da população negra; promover o patrimônio cultural da população negra; estabelecer políticas de informação e comunicação para a disseminação da cultura negra”. Percebemos, através desses empenhos institucionais, uma declaração da necessidade de reconhecimento da importância e comprometimento de valoração dos bens culturais da população afro-brasileira, em um movimento que ganhou reforço institucional através da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que, em seu art. 26, estabeleceu como obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira nos estabelecimentos oficiais de ensino fundamental e médio. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 73 Bem como, através da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, que Institui o Estatuto da Igualdade Racial, que em sua seção III - que reforça os artigos 215 e 216 da Constituição Federal e o Decreto 3.551- assegura: Art. 17. O poder público garantirá o reconhecimento das sociedades negras, clubes e outras formas de manifestação coletiva da população negra, com trajetória histórica comprovada, como patrimônio histórico e cultural, nos termos dos arts. 215 e 216 da Constituição Federal. Art. 18. É assegurado aos remanescentes das comunidades dos quilombos o direito à preservação de seus usos, costumes, tradições e manifestos religiosos, sob a proteção do Estado. Parágrafo único. A preservação dos documentos e dos sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, tombados nos termos do § 5o do art. 216 da Constituição Federal, receberá especial atenção do poder público. Art. 19. O poder público incentivará a celebração das personalidades e das datas comemorativas relacionadas à trajetória do samba e de outras manifestações culturais de matriz africana, bem como, sua comemoração nas instituições de ensino públicas e privadas. Art. 20. O poder público garantirá o registro e a proteção da capoeira, em todas as suas modalidades, como bem de natureza imaterial e de formação da identidade cultural brasileira, nos termos do art. 216 da Constituição Federal. Parágrafo único. O poder público buscará garantir, por meio dos atos normativos necessários, a preservação dos elementos formadores tradicionais da capoeira nas suas relações internacionais. De forma análoga, em consonância com a realização da II Conferência Nacional de Cultura, em 2010, promovida pelo Ministério da Cultura, foi organizada pela Fundação Cultural Palmares a Pré-Conferência Nacional de Cultura Afro-brasileira, no mês de fevereiro, em Brasília. Acontecimento relevante, onde a sociedade e o estado pactuaram políticas e diretrizes para as diversas áreas da cultura brasileira. A Pré-Conferência Nacional de Cultura Afro-brasileira contou com a participação de 200 delegados representando todos os estados da Federação, definiu os delegados à II Conferência, sendo dois indicados para o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). Definiram-se estratégias que pretendem orientar uma política nacional para a cultura afro-brasileira, a partir de cinco grandes eixos: 1) 2) 3) 4) 5) produção simbólica e diversidade da cultura afro-brasileira: cultura, cidade e cidadania afro-brasileira; desenvolvimento sustentável e cultura afro-brasileira; economia criativa e cultura afro-brasileira; gestão e institucionalidade da cultura afro-brasileira. A partir de cada eixo foi definida uma proposta prioritária para ser defendida na II Conferência pelos(as) delegado(as) eleitos(as), com destaque para a definição de um percentual do Fundo de Cultura para a política afro-brasileira. Não houve indicação de percentual ou de mecanismos para este fim, o que fragiliza o debate. O acesso aos recursos públicos e privados para o fomento da cultura afro-brasileira é 74 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades um dos principais entraves para a sua efetiva visibilidade pública. Por essa razão, o Fundo de Cultura e o Sistema Nacional de Cultura são decisivos para institucionalizar uma política cultural afro-brasileira. No universo das 32 propostas prioritárias e das 95 estratégias setoriais, resultantes da II Conferência Nacional para a continuidade da política e cultura afro-brasileira, podemos destacar a necessidade de intensificar a educação nos campos da cultura e do patrimônio cultural, não somente no ambiente do ensino regular em todos os níveis, mas junto à sociedade, a partir dos meios de comunicações disponíveis. Foi explicitado nas propostas prioritárias sobre Produção Simbólica e Diversidade Cultural o “caráter criminoso da discriminação racial” contra as culturas populares, as religiões de matriz africana, comunidades remanescentes de quilombos, de maneira geral, ao patrimônio afro-brasileiro, evidenciando que o século XXI, nesse tema, ainda se parece com os finais do século XIX e todo o século XX. Se por um lado isso é um reflexo das mentalidades que ainda resistem à diversidade cultural de origem africana e afro-brasileira, por outro, deve-se à necessidade de a cultura nacional ser cada vez mais, também, a cultura afro-brasileira. A Conferência indicou também a necessidade de construir redes colaborativas em âmbito nacional, com a participação do Estado e da sociedade, com o objetivo de “promover a formação, articulação e intervenção política para favorecer a execução de políticas públicas” junto à diversidade da cultural afro-brasileira, para melhor resguardar o universo variado de sua produção simbólica. As políticas públicas no campo da cultura, da memória e do patrimônio, na sua formulação institucional, ficam fortalecidas com a participação efetiva da sociedade civil, que pode assegurar maior equidade nos processos de seleção dos bens culturais que servirão como referências patrimoniais. É necessário também debelar o racismo institucional existente, formar gestores públicos para uma melhor compreensão das políticas de promoção da igualdade racial e incentivar e fortalecer as áreas já existentes no campo dos estudos e pesquisas das relações raciais. Diante o apresentado, podemos avaliar que institucionalmente não só existe um reconhecimento, mas um comprometimento do poder público em superar a lacuna causada pela ausência de apreço com a população afro-brasileira, também no seu campo patrimonial. Sendo assim, ficam evidentes as conquistas alcançadas10, ente outros, com o aumento do número de terreiros tombados e o reconhecimento como bens patrimoniais de manifestações culturais associadas à população afro-brasileira, como o samba e a capoeira. Entretanto perguntamos: será que levando-se em consideração o tamanho continental de nosso país, e a diversidade de bens patrimoniais da população afro-brasileira, estamos reconhecendo e institucionalizando suficientemente os bens associados a mesma? Podemos afirmar que não, basta olharmos as demandas locais e nacionais. 10 Sobretudo com uma maior participação da sociedade e dos movimentos organizados, como o movimento negro. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 75 Educação patrimonial como estratégia de participação social No contexto analisado fica evidente que as dimensões materiais e imateriais do patrimônio afro-brasileiro foram por larga escala de tempo negadas em sua representatividade, da mesma forma que em épocas recentes esta passa a ser aceita e até estimulada pelo poder público. Mas, como efetivamente podemos promover a valorização e reconhecimento dos bens patrimoniais da população afro-brasileira? Embora essa não seja uma resposta simples, algumas prerrogativas podem ser levantadas. A valorização patrimonial, embora passe pela esfera privada, efetiva-se enquanto representatividade afirmativa, com poder político e ideológico, na esfera coletiva. Um bem cultural, para ser sacralizado enquanto patrimônio, necessita da aceitação do sujeito, enquanto elemento de ação e mentor, ou seja, a pessoa que pensa, produz, mantém, se identifica, se relaciona e reconhece o patrimônio, mas extrapola o espaço pessoal, e carece da aceitação dos seus congêneres de que aquele patrimônio é algo coletivo. 11 E aqui não falamos no tamanho em seu sentido categórico, mas na representatividade do grupo perante a coletividade. 12 Embora seja aceito que 51,06% da população brasileira seja de origem africana, por muitos anos de nossa História isto foi negado. Essa transposição de posicionamento entre um bem cultural, reconhecido enquanto manifestação, objeto ou espaço de representatividade privada ou de pequenos grupos11, para um “bem coletivo”, aceito como “bem de todos”, institucionalizado no plano político e atuante no plano simbólico, passa por um processo de reconstrução (em maior grau, ideológica), envolvimento, vinculação e valorização. Embora um bem patrimonial por natureza possa ser um bem coletivo, o seu reconhecimento enquanto tal, em muitos casos, mesmo enquanto espaço de representatividade coletiva, pode ser visto como algo privado. Vejamos, como exemplo, as religiões de matriz africana. Embora sejam praticadas no Brasil desde a chegada dos primeiros negros africanos, logo, “bens coletivos”, ainda hoje são perseguidas, discriminadas e marginalizadas, porque são vistas e aceitas como “bens privados”, a cuja esfera de pertencimento associam-se os negros. Mesmo sabendo que pertencem e são praticadas por negros, brancos ou mestiços, independentes de suas associações étnicas. Por outro lado, mesmo quando o bem cultural de um “grupo privado” é aceito na “esfera coletiva”, ele pode ser destituído de seu poder privado na esfera ideológica, quando os agentes de seu surgimento não são vistos como constituintes12 do coletivo. Vejamos, como exemplo, o samba. Embora seja consenso que o samba é um gênero musical utilizado como símbolo do Brasil, enquanto derivado de matriz africana, é esvaziado de representatividade. 76 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades O samba aceito como um bem patrimonial brasileiro, produto de consumo de massa, é até coligado aos negros, mas, popularmente, a ideologia de associação passa pelo viés da felicidade, dos negros que riem da vida, que são otimistas, que gostam de festa, das mulatas de corpos esculturais, sensuais, da alegria de viver e todos os espaços de permissividades dadas aos negros desde o fim da escravatura. Não dizemos, com isso, que parte desse imaginário não seja real, mas que, para além dessa esfera festiva, existe toda uma construção simbólica e de resistência cultural que é esquecida e constantemente negada. As festas de coroações dos “reis do congo”, autoridades simbólicas referenciadas nas congadas, as escolas de sambas que até a década de 1970 obedeciam a um regimento semelhante aos dos barracões do candomblé, os afoxés e blocos afro de matriz iorubá (LOPES, 2005), são esvaziados de representatividade identitária e popularizados enquanto bens nacionais que surgiram no “vácuo da felicidade.” Em um processo a-histórico, sem raízes identitárias. Qual a real origem do samba? Quais os seus significados de resistência e expressividade das populações afro-brasileiras? Como lidamos com as religiões de matriz africana na atualidade? Quais os processos de resistência e assimilação da mesma em nosso sistema cultural? Essas são algumas entre tantas outras perguntas que podem ser feitas enquanto vetor de reconhecimento patrimonial. O que pensamos com isso: a verdadeira aceitação dos bens patrimoniais deve e pode ser utilizada como elemento de transformação. Mais do que reconhecer ficticiamente o patrimônio do outro, é necessário aceitá-lo como diverso, mas tão importante quanto o meu. A valorização dos bens patrimoniais de um grupo deve desenvolver-se com a consciência de seu valor histórico, político, artístico, social, religioso, etc. É preciso, mais do que apenas reconhecer o samba como espaço de festa e sensualidade, ou as religiões de matriz africanas como integrantes de nossa população, tratá-los como elementos identitários carregados de positividade no plano simbólico e prático. Nesse ponto, estabelecemos como fator crucial a educação patrimonial, vista como um trabalho educacional centrado no patrimônio cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo (HORTA et al., 1999). O processo de reconstrução ideológica, envolvimento e vinculação dos bens patrimoniais das populações afro-brasileiras, como constituinte do que hoje chamamos nação brasileira, passa antes de tudo pela reeducação e lugares atribuídos a essas populações em nosso processo histórico de formação. Nesta esfera, os bens patrimoniais desenvolvem um papel crucial. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 77 Concordamos com HORTA et al., (1999), o processo de educação patrimonial pode ser um instrumento: [...] que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao reforço da autoestima dos indivíduos e comunidades e à valorização da cultura brasileira, compreendida como múltipla e plural (HORTA et al., 1999, p. 6). Reiteremos, embora os bens patrimoniais brasileiros de origem afro-brasileira sejam reconhecidos como partícipes de nossa constituição nacional, seu processo de valorização, apropriação e preservação precisa ser ancorado em uma esfera histórica e contextual, onde um povo com história, voz ativa, relações sociais particulares, cosmologias próprias, religiosidade intensa, entre tantos, seja reconhecido enquanto tal. Por outro lado, é necessário assumir que a ampliação ou dilatação do conceito de bens patrimoniais abre espaços para esferas anteriormente negadas, possibilitando, com isso, uma maior compreensão acerca dos territórios quilombolas, clubes negros, vilas operárias, entre outros, enquanto bens patrimoniais, já é um ganho, embora no plano prático esse reconhecimento seja envolto em conflitos e realizado muito mais como ato de resistência13 ou cobrança do que como ato de reconhecimento. 13 Das minorias que lutam por sua preservação e pressionam o poder público a se posicionar. 14 Especialmente os registros pictóricos, deixados pelos viajantes. Entretanto, existem campos ainda por explorar, aceitar e valorizar, enquanto patrimônios coletivos da população afro-brasileira. Como, por exemplo, o domínio e trato com a natureza, conduzidos pelas práticas religiosas de matriz afro-brasileira, que compreendem o espaço sagrado e sua relação com o universo de maneira diferenciada, seja pelos significados atribuídos à natureza, seja pela utilização dos elementos e espaços naturais na ritualística, especialmente nas oferendas e sacrifícios (SANTOS; GONÇALVES, 2011). O reconhecimento da dimensão tecnológica, ou saber fazer, dominado pelas populações africanas e cuja influência direta no Brasil foi sentida pelas tecnologias realizadas pelos escravos e seus descendentes, que foi esvaziado de sua ligação identitária no processo de construção histórica do Brasil. Nesses casos situam-se as funções dos ferreiros, oleiros, parteiras, artistas, carpinteiros, professores e tantas outras profissões. Que embora reconhecidas e amplamente retratadas nas documentações14 não são reconhecidas e trabalhadas em território nacional como uma herança originária da África ou desenvolvida em solo nacional pelas populações afro-brasileiras. Como aponta JUNIOR (2010, p. 22), até os ciclos da economia brasileira têm íntima ligação com os saberes e fazeres africanos. Como a plantação das culturas da cana-de-açúcar e do café, cujas “diversas etapas e diversos conhecimentos, quanto à escolha do solo, ao plantio, tratamento da planta, colheita e processamento do produto foram importados da África, através da mão de obra africana.” Outro campo patrimonial a ser valorizado é a oralidade: se pensarmos o patrimônio cultural como o saber fazer, modo de vida e memória dos grupos sociais, enxergaremos a oralidade como um patrimônio 78 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades das populações afro-brasileiras, herança direta dos griôs, mestres e mestras da tradição oral, guardiões responsáveis pela transmissão dos conhecimentos, em um processo de interação que envolve, além da transmissão do conhecimento em si, uma: Interação face a face com o ouvinte, da sua performance, seus gestos, seu olhar, sua expressão corporal que são características da tradição oral que a cultura escrita apaga. Os griôs assumem o papel de figuras como “memória viva”, sendo os interlocutores de uma cosmovisão negroa-fricana, dedicando à oralidade o seu aspecto principal (BARZANO, 2009). Neste sentido, os bens patrimoniais podem ser vistos como produto de um processo cultural cujo reconhecimento, consciência e valorização, quando imbuídos em uma esfera de representatividade histórica, pode ser utilizado como vetor de transformação, fortalecimento identitário, estimulador de memórias e espaços de pertencimentos. Já que, os bens culturais quando reconhecido na sua dimensão social abrangente, portanto, para além da comunidade que o valoriza e referencia, tornam-se instrumentos potenciais de mudanças de mentalidades e valores sociais, neste turno, a educação patrimonial, pode ser colocada como um dos grandes desafios para o efetivo reconhecimento da cultura afro-brasileira pelo conjunto da sociedade, à medida que representa um dos acicerces da formação da cultura nacional. 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Aborda suas novas formas e entendimentos atualizados para os tempos pós-modernos, procurando cotejar com sua base legal, contida nas legislações ordinárias e infraconstitucionais, por um caminho que possibilite uma interpretação mais arrojada e comprometida com os grupos vulneráveis. FLORES (2000, p. 23) afirma: “os direitos humanos, como em geral todo o fenômeno jurídico e político, estão penetrados por interesses ideológicos e não podem ser entendidos à margem de seu contexto cultural”. No entanto, como ocorre quando um fenômeno se reconhece juridicamente, começa-se a negar seu caráter ideológico, sua estreita vinculação com os interesses concretos, e seu caráter cultural. Se retirarmos os direitos humanos do contexto como fenômeno jurídico, universaliza-se e, por isso, subtrai-se dele sua capacidade e sua possibilidade de transformar-se e de transformar o mundo a partir de uma posição que não seja a hegemônica. Esta tendência é a que permite que o direito possa ser exclusivamente objeto de análise lógico-formal e submetido a limites epistemológicos, como se as normas jurídicas estivessem separadas e isoladas dos contextos e dos interesses que necessariamente que estão subjacentes em toda produção normativa. 1 Arqueólogo do IPHAN. Livre docente em Arqueologia Brasileira pelo MAE/USP. Professor convidado do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, professor do mestrado Erasmus Mundus em Arqueologia Pré-histórica e Arte Rupestre/IPT/UTAD/ Comissão Européia. Os direitos culturais, enquanto direitos humanos, segundo BASTOS (2009) não são apenas um entendimento teórico, são o único meio de trazer efetividade ao exercício dos direitos culturais. No Brasil, podemos dizer, sem medo de cometer injustiças, que os direitos culturais e humanos enfrentam grande dificuldade de assimilação por parte da sociedade, políticos e também por parte do Judiciário, visto no conjunto, bastante conservador. Infelizmente, essa conduta não é exceção, é regra. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 85 Por outro lado, explicita a formação de um conjunto de registros arqueológicos históricos até bem pouco tempo desdenhado pela arqueologia brasileira. A matriz transversal utilizada como abordagem traz elementos essenciais ao debate para a arqueologia pública no Brasil, no momento em que a arqueologia preventiva alcança significativa ampliação em todo território nacional. Por fim, apregoa, com base na Constituição Federal de 1988, que os direitos culturais são direitos humanos fundamentais, uma vez que o patrimônio cultural base essencial desses direitos, ungido por todas as formas de expressão, manifestação e saber, constitui na sua matriz a força motriz do pertencimento que estabelece nossas identidades e caracteriza os bens culturais com bens de uso público, de todo o povo brasileiro. BASTOS (op. cit.) ilustra que podemos entender o Patrimônio Histórico como mais que um testemunho do passado, é um retrato do presente, uma expressão das possibilidades políticas dos diversos segmentos sociais, expressas em grande parte pela herança cultural, dos bens que materializam e documentam sua presença, sua marca no fazer histórico da sociedade. BASTOS (op. cit.), abordando as novas formas do registro arqueológico hoje, define-o como uma assinatura material das ações resultantes da atividade humana que resistiram no tempo e no espaço. Ressalte-se que, com o avanço da compreensão sobre a construção do passado e sua natureza identitária perante a humanidade, a sociedade vai em busca de símbolos de pertencimento e memória. A considerar como assinatura material para fins de registro arqueológico as paisagens especiais, lugares e espaços que foram utilizados pela humanidade, assim como, para atividades que não deixaram transformações visíveis ou significativas no ambiente físico, a ponto de serem imediatamente identificadas em termos de volume e dinâmica espacial pelos arqueólogos. BERGSON (2006, p. 48), em sua construção acerca da natureza da memória, argumenta que nossa duração não é um instante que substitui o outro instante: nesse caso, haveria sempre apenas o presente, não o prolongamento do passado atual, não a evolução, não a transformação, não haveria duração concreta. A duração e o progresso contínuo do passado que rói o porvir e incha na medida em que avança. Uma vez que o passado cresce incessantemente, também se conserva indefinidamente. A memória não é uma faculdade de classificar recordações numa gaveta e inscrevê-las num registro pura e simplesmente. Não há registro, não há gaveta, não há aqui, propriamente falando, sequer faculdade, pois uma faculdade se exerce de forma intermitente, quando quer ou quando pode, ao passo que a acumulação do passado sobre o passado prossegue sem trégua. Na verdade, o passado se conserva por si mesmo, automaticamente. O que nos cabe é exorcizá-lo, depurá-lo, para que ele não retorne enquanto tragédia. 86 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Aqui, os enfoques que o patrimônio tem encontram com a memória e lhe dão sentido, na medida em que expõe no território o conflito das identidades que lutam para se firmar enquanto mecanismos ideológicos, que objetivam a disputa do poder e têm nos direitos culturais um amparo legal. Não se trata de recuperar uma lembrança, de evocar um período de nossa história. A verdade é que jamais atingiremos o passado se não nos colocarmos nele de saída. Entre as doenças da memória, a que é mais danosa à sociedade é aquela que insiste em ser esquecida. O exemplo mais caro está em sumir com pessoas e subtrair das gerações futuras sua memória ancestral. Se elas desaparecem da memória é porque os elementos antagônicos em que repousava a ação foram alterados ou destruídos. O dano intergeracional encontra-se conceituado como lesão, redução patrimonial sofrida pelo ofendido em seus valores protegidos pelo que se configura perda, diminuição total ou parcial de elemento, de expressão, componente da estrutura e bens psíquicos, físicos, morais ou materiais (BITTAR, 1990, apud LEMOS, 2008, p. 17). O problema da construção da memória encontra similitudes com a construção da identidade, na medida em que tanto a memória como a identidade acusa a patologia dessas categorias formadas em função da delimitação do território por suas elites. TIBURI (2009, p. 39) lembra que Alberto Mussa restaurou uma tradução de Meu destino é ser onça, (RECORD, 2009), um mito do lendário povo tupinambá que ficou famoso desde o apavorante relato de Hans Staden acerca da devoração da qual conseguiu escapar ileso no século XVI. A tradução, por si só, em princípio encerra dois problemas: a interpretação do mundo por Hans Staden e a própria tradução. Assim, podemos considerar que a tradução foi um rearranjo literário da cosmografia universal do padre Thevet, que relata histórias dos tupinambás. O mito explica a origem do mundo do ponto de vista tupinambá e que o autor recontou – sendo que não há texto em tupi, pelo menos como concebemos, apenas o texto em francês – com a autorização de quem recebe uma herança ancestral e a liberdade do escritor em se apropriar das narrativas épicas. Diante de ressurgimentos de documentos de várias épocas, sendo eles de qualquer natureza (ósseos, iconográficos, materiais, orais, arquitetônicos, arqueológicos, humanos), cabe uma investigação transdisciplinar que busque não um ressurgimento do passado, mas a memória, sua identidade, sua correlação de forças que possibilitou os acontecimentos que marcaram os territórios enquanto paisagens e enquanto mundo simbólico e vivido. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 87 O fundamento das políticas de proteção do patrimônio seria o consenso que transcende as clivagens ideológicas e a distância cultural. É evidente que este fundamento estaria mais próximo do sucesso se as práticas de eleição daquilo que seria o patrimônio pudessem não só contemplar a diversidade das etnias, das classes, através dos saberes e fazeres urbanos, mas também criar mecanismos de democratização do fazer patrimonial. Entretanto, basta um olhar atento aos livros de proteção cultural, aos livros onde se inserem os bens tombados, registrados, inventariados nas diversas instâncias da Federação, para entender como o patrimônio tem servido como instrumento de aparelhamento ideológico do Estado. Ou seja, a possibilidade concreta de poder escolher aqueles elementos que lhe são próprios e que representam verdadeiramente as referências que deverão ser objeto da sua memória, do seu patrimônio a ser repassado e vivido enquanto cultura aos seus descendentes. Caso contrário e certamente comum é que, sob o consenso, as políticas do patrimônio podem, assim, esconder um projeto urbano conformado a interesses particulares. Desta forma, elas são um meio ideal de legitimação de uma intervenção no espaço público, instrumento eficaz de adesão a um projeto. Se hoje mais de 70% da população mundial vive a menos de 50 quilômetros do mar, podemos dizer, sem medo de exageros, que o futuro das cidades está ancorado nas soluções dos conflitos que perpassam nessas cidades. Até bem pouco tempo, a abordagem da cidade, tanto no plano prático das intervenções urbanas, quanto no âmbito do discurso teórico específico, se dava prioritariamente em termos de racionalidade, funcionalidade, salubridade, eficiência, ordenação das funções, como se a cidade fosse um ser amorfo, sem vida, ou melhor, de vida vegetativa. A conjuntura das mudanças espaciais, culturais e sociais (ZUKIN, 2000, p.205), que tanto estimulam aqueles que têm escrito sobre cidades nos últimos anos, está imprecisamente comprimida no termo “paisagem urbana pós-moderna”. De um modo geral, afirma ZUKIN (op. Cit.), a pós-modernidade ocorre não apenas como um processo social de dissolução e rediferenciação, mas também como uma metáfora cultural desta experiência. Consequentemente, o processo social de construção de uma paisagem pós-moderna depende de uma fragmentação econômica das antigas solidariedades urbanas e de uma reintegração que está fortemente alterada pelos novos modos de apropriação cultural. A genialidade dos investidores imobiliários, nesse 88 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades contexto, consiste em converter a narrativa da cidade moderna em um nexo fictício, uma imagem que é um grande embrulho daquilo que a população pode comprar, um sonho de consumo visual. Paisagem é o conceito chave para nos apoderarmos da transformação espacial. Assim, uma paisagem urbana pós-moderna não apenas mapeia cultura e poder; mapeia também a oposição entre mercado – as forças econômicas que desvinculam as pessoas de instituições sociais estabelecidas – e lugar – as forças espaciais que ancoram ao mundo social, dando a base para uma identidade estável. À medida que novas categorias de moradores ocupam as cidades, os lugares da cidadania insurgente são encontrados na intercessão desses processos de expansão e erosão. Esses lugares variam no espaço e no tempo e incluem: •• o universo dos sem-teto; •• as redes de imigração; •• as periferias autoconstruídas; •• os territórios das gangues; •• os condomínios fortificados; •• as invasões urbanas; •• os acampamentos de mão de obra migrante; •• e as zonas do chamado novo racismo, só para citar os mais evidentes. Sendo assim, os residentes de grande poder econômico decidirão com frequência pelo mais democrático dos meios, segregar suas comunidades do “mal externo”, fechando, fortificando e privatizando seus espaços em relação aos considerados indesejáveis. A lição é que o planejamento de uma cidade que se pretende sustentável precisa envolver não só o desenvolvimento das formas insurgentes do social, mas também os recursos do Estado para definir, e ocasionalmente impor, uma concepção mais abrangente de direito do que às vezes é possível encontrar em nível local. HOLSTON (1993, p. 252) indica que planejadores, arquitetos, geógrafos e demais pensadores da cidade devem abarcar um novo reino em sua prática profissional. Um tipo de prática diferente ao mesmo tempo em objetivo e método, e essa diferença implica numa reconceitualização. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 89 Em termos de prática, de método, dou ênfase aos do etnógrafo urbano. Nesta proposta não estou sugerindo que planejadores, arquitetos, geógrafos, administradores se tornem antropólogos, pois a antropologia não é redutível à etnografia. Sugiro, sim, que aprendam os métodos da detecção etnográfica e também trabalhem com antropólogos e arqueólogos. A formação do Brasil e o processo de exclusão da população afro-brasileira Conforme BASTOS (2007, p. 289), ao abordarmos o problema da inclusão social no Brasil de hoje, podemos partir de organizações reconhecidas pelo status quo, como a Organização das Nações Unidas (ONU). Ainda são muito reveladoras da nossa inércia notícias como as que foram publicadas no boletim Estampa, do Sindicato dos Servidores no Serviço Público Federal no Estado de Santa Catarina (Sintrafesc): Etnias: Brasil não combate racismo, diz ONU A Organização das Nações Unidas (ONU) criticou em 17 de março de 2007, por meio de um documento, as políticas nacionais de combate ao racismo e a demora na demarcação das terras indígenas. Ao atacar o racismo, a ONU alerta que o problema ainda está profundamente enraizado no Brasil e denuncia o fato de que partes do aparelho do Estado, Judiciário, e mesmo a sociedade civil resistem a medidas de combate ao racismo2. 2 Boletim Estampa do Sintrafesc, 2006, p.6. Como falar em inclusão social diante de um abismo que se afirma cada vez maior devido ao racismo e suas formas mais perversas de exclusão? Portanto, refletir sobre a inclusão nos leva necessariamente a entender os aspectos relacionados com a exclusão, pois é neste campo, e a partir da sua compreensão, que poderemos lançar propostas que venham contribuir para a democracia racial. Escolho valores éticos quando aceito a reciprocidade e quando garanto ao outro o direito que tenho, ou seja, tenho esse direito e o reconheço no outro, aceito que o outro seja diferente. Então, ser ético é fazer coisas que são consideradas “positivas” pelos meus “iguais”. O problema ético hoje é se isentar das suas responsabilidades e das suas escolhas. Vejamos os fatos narrados no relatório da ONU sobre a inclusão social no Brasil: viajar pelo Brasil é como se mover entre dois planetas: um das ruas com cores vivas e raças misturadas e outro 90 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades dos corredores brancos dos poderes político, social, econômico e da mídia.3 Tal afirmação, que consta do relatório sobre inclusão social, é de autoria do senegalês Doudou Diène, que esteve no Brasil em outubro de 2005 para investigar o racismo. Para ele, é chocante a presença ainda tímida de negros em cargos administrativos: Nos bancos, 10,8% dos funcionários são negros... Democracia racial é a máscara ideológica da elite brasileira para não dizer que há racismo”4. Segundo Diène, enquanto persistir a ideia de que a discriminação é só econômica, a implementação de leis de combate ficará difícil. Lembra ainda que 47% dos negros vivem abaixo da linha de pobreza, contra uma taxa de 22% dos brancos: Toda a sociedade está organizada a partir de uma perspectiva racista: os negros são excluídos de todos os setores da sociedade e confinados aos trabalhos difíceis, com baixos salários e direitos básicos, incluindo a vida, sendo violados5. 3 Relatório da ONU sobre inclusão social escrito por Doudou Diène, 2007. 4 Idem. 5 Idem. 6 Idem. Um dos pontos que mais chamam atenção da ONU é a violência contra os negros. O autor do relatório aponta que 631 negros foram assassinados em Salvador nos primeiros oito meses de 2005, um aumento de 19% em relação a 2004. “Uma política de extermínio ainda existe”6. Movendo-se nesse cenário, não será difícil apontar as mesmas anomalias nas ciências, nas universidades e nos órgãos de políticas públicas que, de uma forma ou de outra, operam com a disciplina da arqueologia e sua realização no Brasil. No último Congresso Nacional da Sociedade de Arqueologia Brasileira, realizado em 2005 na cidade de Campo Grande (MS), com a participação de aproximadamente 800 congressistas, dentre os sócios efetivos da sociedade podemos destacar apenas dois que são negros, em um universo de 300 associados, ou seja, menos de 1%. É ilustrativo na literatura norte-americana o livro de COBEN (2004), quando indaga sobre as questões essenciais da existência humana, apontando dilemas como a nossa natureza e indicando que: A verdade é que não passamos de animais, até mesmo de organismos um pouquinho mais complexos do que um paramécio básico. A gente morre e tudo acaba. Parece-nos pura megalomania pensar que nós, humanos, estamos de alguma forma acima da morte, que nós, ao contrário de qualquer outra criatura, temos a habilidade de transcendê-la. Na vida, é claro, somos especiais, dominantes, porque somos os mais fortes e mais impiedosos. Nós mandamos. Mas na morte, acreditar que somos de alguma forma especiais aos de olhos de Deus, ou de quem quer que seja, que podemos encontrar o caminho para as graças divinas, e não ficar parecendo comunista é o tipo de raciocínio que os ricos costumam ter para manter os pobres, e por que não dizer os negros, no seu lugar desde o começo do império do homem (COBEN, 2004). Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 91 Ciência e exclusão: breve histórico BASTOS (2007) cita SCHWARZ (2001), que nos coloca frente a frente com a problemática dos mecanismos de exclusão elaborados a partir da “intelligentsia” brasileira. A história das instituições científicas brasileiras data da família real, vide Museu Nacional, hoje da UFRJ, no Rio de Janeiro, quando revelou urgente a instalação de uma série de centros de saber e de pesquisa, a fim de lidar com os impasses (HAECHEL, 1884 e THOMAS, 1845) que a nova situação gerada com a vinda da família real para o Brasil provocou. No entanto, se a fundação é antiga, a maior parte desses estabelecimentos viveu momentos de maturidade e de aparelhamento institucional a partir dos anos 1970, quando se percebe não só uma maior autonomia como também um papel destacado de diferentes instituições brasileiras, entre elas: as faculdades de Medicina e de Direito, os institutos históricos e geográficos e os museus de etnografia. Nesses locais, se os interesses e os debates não foram por certo unívocos, a questão racial esteve presente, ora como tema de análise, ora como objeto de preocupação. Ao uni-los, havia a certeza de que os destinos da nação passavam por suas mãos e a confiança de que era necessário transformar seus conceitos em instrumentos de ação e de modificação da própria realidade. Com efeito, para esses homens, na maioria das vezes, se a realidade não casava com as suas idéias, era ela que estava errada e deveria ser modificada, e não a teoria, a qual, supunham, estava acima e além do contexto imediato. “Um bando de ideias novas”, era assim que Silvio Romero definia o seu momento intelectual e era dessa maneira que marcava a cisão que aqueles procuravam representar diante da geração romântica que lhe antecedera. SCHWARZ (1993) nos apresenta de forma ilustrada, simples e resumida, a questão científica do ponto de vista histórico. Aponta segmentos sobre os quais vale a pena refletir para entender o papel da arqueologia que será desempenhado mais tarde no cenário nacional. Ela começa pelas faculdades de Direito, cuja matriz e lógica está atrelada à própria emancipação política de 1822. Criadas em 1827, as duas escolas de Direito – uma em Recife, outra em São Paulo – visavam atender às diferentes regiões do país e criar uma intelligentsia nacional capaz de responder às demandas de autonomia da nova nação. Tendo vivido, cada uma à sua maneira, momentos de difícil afirmação, a partir dos anos 70 essas escolas encontram-se mais aptas a intervir no panorama nacional. No entanto, a fachada institucional encobria diversidades significativas, as quais diziam respeito à orientação teórica, assim como ao perfil profissional característico de cada uma dessas instituições. Enquanto 92 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades a faculdade de São Paulo foi mais influenciada por um modelo de política liberal, a de Recife, mais atenta ao problema racial, teve nas escolas darwinista social e evolucionista seus grandes modelos de análise. Tudo isso sem falar do caráter mais doutrinário dos intelectuais da faculdade do Recife, perfil que se destaca principalmente quando contrastado com o grande número de políticos que partiam majoritariamente para São Paulo (SCHWARZ, 1993). SCHWARZ (1993) não deixa de reconhecer que, se partiram de Pernambuco as grandes teorias sobre a “mestiçagem”, foi em São Paulo, como veremos, que houve preocupação em implementá-las, a partir dos projetos de importação de mão-de-obra europeia. Entretanto, vale destacar a figura de Silvio Romero para entender a relevância do Recife no cenário nacional, o qual foi o primeiro a afirmar que éramos “uma sociedade de raças cruzadas” (ROMERO, 1895) “mestiços, se não no sangue, ao menos na alma” (ROMERO, 1888). Para esse intelectual, a novidade estava não só na argumentação, tão distante dos modelos românticos e europeizantes até então adotados, como no critério etnográfico, que surgia como chave para abrir e desvendar problemas nacionais. Nele, o principio biológico da raça aparecia com denominador comum para todo conhecimento. O encadeamento das três raças formadoras transformava-se, dessa maneira, em uma espécie de arianismo de conveniência, “afinal, servia para a eleição de uma raça mais forte”, sem que, no entanto, se incorresse nos pressupostos dessa postura que se preocupava em denunciar o caráter letal do cruzamento. Com afirmações do tipo “somos mestiços e isso é um fato e basta”, ROMERO (1888) não só radiografava nossa posição como acreditava ver em um “branqueamento evolutivo e darwinianio”, motivado via imigração europeia branca, nosso futuro e solução. Defensor da ideia darwinista social de que os homens são de fato diferentes, Sílvio Romero preocupou-se em lidar com a mestiçagem com os instrumentos que possuía, ou seja, afirmá-la para então negá-la e combatê-la: A uma desigualdade original, brotada do laboratório da natureza, aonde a distinção e a diferença entre as raças aparecem como fatos primordiais, frente ao apelo da avançada etnografia não há como deixar de concluir que os homens nascem e são diferentes (ROMERO, 1895) Muitas são as contribuições que poderíamos elencar para traçar o perfil da evolução, da transformação e da construção das sociedades científicas e seu papel formador excludente, em especial, o papel das faculdades de Medicina, que, junto com as faculdades de Direito, desenvolveram, cada uma em seu campo, as condições objetivas para a elaboração técnico-científica que justificasse a exclusão de negros e índios. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 93 O livre-arbítrio transformava-se, portanto, em um “pressuposto espiritualista” (CORREA, 1983), em uma falsa questão, como se a igualdade fosse criação própria dos “homens de lei”, sem nenhum embasamento científico. A partir do início do século XX, são os estudos de alienação e a defesa dos manicômios judiciários que passam a fazer parte da agenda local, aliando a certeza do caráter negativo da miscigenação à incidência de casos de loucura nessas populações. Esse é um câncer social em pleno século XXI, que pode ser medido pelo intenso movimento que hoje, no Brasil, por intermédio de muitas ONGs, luta para ver extirpada esta prática, na perspectiva antimanicomial. Essa condição nos mostra o quanto foram bem elaboradas certas políticas de exclusão, na sua esmagadora maioria amparadas nos aparelhos ideológicos do Estado. No livro Mestiçagem, crime e degenerescência, RODRIGUES (1899) analisava casos de alienação estabelecendo uma correlação quase mecânica entre raça e loucura. Era a fase pessimista do racismo brasileiro, que diagnosticava no cruzamento a falência nacional e a primazia dos médicos sobre os demais profissionais. A partir daí, o passo para a eugenia e para o combate à miscigenação foi quase imediato. É nesse ambiente que os médicos cariocas passam a fazer elogios rasgados à política da África do Sul: que só aceita indivíduos física e moralmente sãos, exigindo deles exames médicos minuciosos (...) para que se forme uma raça sadia e vigorosa (...) e se fechem as portas às escórias, aos medíocres de corpo e de inteligência (KHEL, 1921). Ao aperfeiçoar o foco, vamos então examinar o papel dos Institutos Históricos e Geográficos que, apesar do predomínio dos espaços institucionais do Direito e da Medicina, não deixaram de dar a sua contribuição na formação desta tragédia Brasil. Os Institutos Históricos e Geográficos primaram por um saber evolucionista, positivo e católico e se firmaram, como se fosse possível adotar modelos raciais de análise sem prever, contudo, um futuro branco e isento de conflitos. SCHWARZ (2001) comenta um emblemático concurso organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que é exemplar sobre a atuação desses organismos. O tema do concurso, “Como escrever a História do Brasil”, revelava a “missão” da instituição. O cientista bávaro, Martius, ganhador do concurso, dava o primeiro pontapé na famosa “lenda das três raças”, ou seja, em uma interpretação consensual que entende a particularidade da história brasileira a partir de sua formação étnica singular. 94 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Mesmo revelando um verdadeiro horror aos indígenas e às suas práticas canibais e um profundo desconhecimento sobre a situação dos negros, Martius não deixava de concluir seu ensaio reafirmando a posição que o IHGB deveria guardar: a construção de uma história branca, patriótica e oficial, na qual as contradições internas apareciam amenizadas diante de uma naturalização das questões sociais mais contundentes (LISBOA, 1995). Ainda segundo SCHWARZ (2001, p. 33), os museus etnográficos brasileiros mais importantes com uma produção paralela desenvolviam-se com questões locais. Entretanto, tornaram-se locais de debate com uma produção com as questões que vinham “de fora”. Como se observa ainda hoje, boa parte dessas instituições pouco dialogou com as questões internas do país. Na verdade, os três grandes museus brasileiros – Museu Nacional (Rio de Janeiro), Museu Ypiranga (São Paulo) e Museu Goeldi (Pará) – detiveram-se mais sobre os grandes enigmas do pensamento evolucionista europeu e americano do que se imiscuíram no debate sobre critérios de cidadania ou acerca do Estado brasileiro. Sede de um saber classificatório, os museus nacionais se esmeram em oferecer materiais como o estágio infantil dos botocudos, sobre a arqueologia com ênfase nas ossaturas de populações extintas e crânios de grupos atrasados. Revelador foi o momento em que o diretor do museu paulista veio a público explanar suas concepções sobre o destino das populações não brancas residentes no Brasil. Ficou famosa a polêmica na qual se envolveu H. Von Ihering, em 1911, por causa do problema criado pela construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil, que deveria passar exatamente nas terras dos índios caingangue. Nessa ocasião, o zoólogo teria utilizado as páginas do jornal O Estado de S. Paulo para pedir o extermínio desse grupo, o qual, por habitar no caminho da estrada, impedia o “desenrolar do progresso e da civilização”. Nesses momentos selecionados é que se percebe como o saber, distante da ciência, ao se encontrar com as questões mais imediatas e mundanas pode ser impiedoso em sua condenação ao não hegemônico e à diferença. Mas Von Ihering não estava só. Também João Batista Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, quando convidado a participar do I Congresso Internacional de Raças, realizado em julho de 1911, defendeu a tese clara e direta com relação ao futuro do país. Em Sur lês métis au Brésil, Lacerda afirmava que: “o Brasil de hoje tem solução no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução”, em uma evidente afirmação de que o presente negro de hoje seria substituído por um futuro cada vez mais branco7. 7 Nessa ocasião,Batista Lacerda apresentava um quadro de M. Brocos, artista da escola de belas artes do Rio de janeiro, acompanhado da seguinte legenda: “Lê Nègre paussant au Blanc, à troisièime generation,par L` effet du croisement dês races”. Essa pintura representa uma avò negra, com sua filha mulata casada com um Português, trazia ao centro uma criança branca, numa clara alusão ao processo de branqueamento defendido por Lacerda. Essa obra encontra-se no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. João Batista Lacerda. Sur lês Brèsil. Paris: Imprimierie,1911. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 95 Patrimônio arqueológico e etnicidade O patrimônio tem uma diversidade de definições. Lembraremos aqui a de CANCLINI (1998, p.160), na qual o patrimônio é interpretado como repertório fixo de tradições condensadas em objetos, que precisam de um palco-depósito que os contenha e os proteja, um palco-vitrine para exibi-los. O museu é a sede cerimonial do patrimônio, o lugar em que é guardada e celebrada a memória, onde se reproduz o regime semiótico com que os grupos hegemônicos o organizaram. Entrar em um museu não é simplesmente adentrar um edifício e olhar obras, mas também penetrar em um sistema ritualizado de ação social. O patrimônio arqueológico se expressa nos sítios arqueológicos e nos objetos nele contidos, nos seus restos biológicos e até mesmo nos locais selecionados para sua instalação. O patrimônio arqueológico no Brasil privilegiou a sua vertente pré-histórica e, consequentemente, abstraiu toda e qualquer possibilidade de tornar a disciplina arqueológica uma trincheira de combate ao racismo, à intolerância e à pobreza, exatamente pelo viés já discutido anteriormente da sua formação como disciplina no Brasil. A questão da etnicidade surgiu da crítica das concepções substancialistas dos grupos e das identidades étnicas. Tal questão encontra uma gama expressiva de teorizações e abre perspectivas de pesquisa diversas e divergentes. O debate sobre etnicidade, segundo Poutignat & Streiff-Fenart, foi alimentado desde a década de 1970 por uma abundante bibliografia que enriqueceu, de modo considerável, o conhecimento empírico das situações interétnicas atuais em todas as partes do mundo. Os confrontos teóricos entre pesquisadores são, no essencial, consagrados a esforços para fundar uma concepção particular da etnicidade. Dentre os autores que merecem destaque poderíamos citar CONNOR (1978), que denuncia os efeitos nefastos da prática que assimila tipos de identidades diferentes sob o termo englobante etnicidade. Por outro lado, COHEN (1974) indaga o que há de comum entre a consciência étnica simbólica e romântica das terceiras gerações de imigrantes americanos e as manifestações do tribalismo nos novos estados africanos. GUMPERZ (1989) admite que existam, atualmente, duas categorias de etnicidade: etnicidade tradicional e nova etnicidade; HECHTER (1976) afirma a existência de etnicidade interacional e reativa; GANS (1979) e MCKAY (1982) afirmam a etnicidade real e simbólica. Assim temos um aporte teórico para todos os gostos e interesses. Se por um lado a noção de etnicidade permitiu de modo inconteste um avanço teórico importante na conceptualização dos 96 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades grupos étnicos, deixa também aparecer uma determinada confusão que perpassa a diversidade dos fenômenos que tende a abarcar. Nessa problemática, o conceito de etnicidade não pode ser definido como consenso. É, ao contrário, uma complexidade de definições que tem como fator principal sua construção multifacetada. Talvez o conceito de etnicidade seja realmente um mutante mutantis, que transita na transversalidade própria exigida pela pós-modernidade. Para este artigo, elegeremos o conceito de etnicidade segundo BURGESS (1978), que tentou conciliar todos os aspectos numa única definição que concentraria os seguintes critérios: 1) pertença de grupo; 2) identidade étnica; 3) consciência da pertença e/ou das diferenças de grupo; 4) ligações afetivas ou vínculos baseados num passado comum e nos objetivos ou interesses étnicos reconhecidos; 5) vínculos elaborados ou simbolicamente diferenciados por “marcadores” (uma tradição, emblemas, crenças culturais, territoriais ou biológicos). O conceito revela a própria variedade de entendimentos que podem perpassar a questão da etnicidade, demonstrando assim o seu dissenso e imprecisão. A relação da etnicidade com patrimônio arqueológico e com a arqueologia ainda é pedestre e deve ser buscada principalmente na arqueologia histórica e suas categorizações. Para tamanha tarefa, será necessário ampliar as pesquisas arqueológicas históricas para além das elites, das casas-grandes, das igrejas barrocas, das fortificações construídas, sobretudo, para demarcação dos espaços a serem colonizados e dominados. Se, por um lado, a arqueologia histórica necessita ser valorizada e respeitada, podemos destacar alguns trabalhos como: “A arqueologia de Palmares: sua contribuição para o conhecimento da história da cultura afro-americana” (FUNARI, 1996a); “A cultura material de Palmares: O estudo das relações sociais de um quilombo pela arqueologia” (FUNARI, 1996b); “A arqueologia e a cultura africana nas Américas” (FUNARI, 1991); “A ‘República de Palmares’ e a arqueologia da Serra da Barriga” (FUNARI, 1996c); “Heterogeneidade e Conflito na interpretação do quilombo dos Palmares” (FUNARI, 2001); “Esclavage; Quilombo et archéologie” (GUIMARÃES, 1992); Arqueologia de Quilombos em Minas Gerais (GUIMARÃES & LANNA, 1980); “O Quilombo do Ambrósio” (GUIMARÃES et al., 1990); “Sintomas do modo de vida burguês no Vale do Paraíba, século XIX: Fazenda São Fernando, Vassouras, RJ” (LIMA, BRUNO & FONSECA, 1993); “Por uma arqueologia de Canudos e dos brasileiros iletrados” (ZANETTINI, 1996); A arqueologia dos Erasmos (MORAIS, 2003), dentre outros. O Brasil deve ir em busca de uma identidade que comporte as diferentes formas, as diferentes culturas, diferentes normas e as diferentes etnias que forjam a nossa trajetória cultural. TIBURI (2009), em Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 97 seu exemplar artigo intitulado “O Brasil recalcado”, coloca com bastante propriedade que o outro é uma questão de hermenêutica, e diz: “Para dizer quem é o outro, preciso relacionar-me a ele e tentar expressar, com desconto de uma distância que jamais será apagada, algo sobre ele. Descontados os senões, qualquer coisa que possa ser dita sobre o outro é sempre precária, motivada por aspectos socioculturais, como moral e religião, compreensão de classe e desejos nem sempre conhecidos” (TIBURI, 2009, p.38). O registro arqueológico sempre terá dificuldades em expressar a realidade passada. Estamos mais interessados em compor um cenário em que todos os atores estejam contemplados com diferentes formas de entender o mundo ou, pelo menos, tentar exercitar uma arqueologia, uma história, uma antropologia, um direito que saia do pragmatismo das narrativas dos conquistadores. Para isso, é preciso se colocar no lugar do outro, TIBURI (2009, p.38) busca em Tzvvetan Todorov, na obra “A Conquista da América”, a questão do outro: onde procura fazer uma análise dos conquistadores como Colombo e Cortez, que, chegando ao mundo que era seu desconhecido, o interpretaram segundo os limites próprios a toda perspectiva. Tais limites são os próprios conhecimentos daquilo que se já viu. Esse outro exterior, segundo TIBURI (op.cit., 38), poderá nos constituir, ou seja, explicar algo de nós mesmos, quando estamos posicionados no lugar do mesmo. Podemos, nós mesmos, ocupar o lugar do outro. Tendemos a ter uma relação de exotismo com este outro que está em nossa compreensão, ou seja, no espaço onde elaboramos nossas interpretações, do lado de fora. O exótico é sempre o estrangeiro e que nosso hábito mental-cultural, para não dizer senso comum, tenta sempre trazer para dentro daquilo que já conhecemos. Eis o malefício que o princípio de identidade, essa mania de redução do estranho ao comum, causa em nosso próprio processo de conhecimento. Seu resultado é a traição: ele nos afasta do outro, quando promete aproximar. Eis a mentira do conhecimento que poderá ser controlada à medida que pressupomos a distância, o entre nós, o intervalo no qual nenhuma compreensão frutifica senão aquela que nos ensina a respirar o que não conhecemos e o que podemos conhecer alvo do nosso pensamento. Identificar, ou seja, trazer o de fora para dentro, é um fato mental ineliminável, mas ele pode ser freado em seu impulso devorador e render um conhecimento mais ético que envolve o respeito pelas coisas que existem, e pelo conhecimento das comunidades tradicionais, quilombos, ciganos e imigrantes. Para pensar a nossa identidade, teremos necessariamente que romper com os dogmas que até hoje perduram nas ciências humanas. O conquistador encontrou os americanos e deles fez sua interpretação à luz da sua fé cristã. Em furor nominativo, nomeou-os índios, oprimiu e escravizou os negros que trouxe do outro 98 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades lado do Atlântico. Como disse Todorov, Colombo nunca pretendeu esclarecer já que, sem encontrar as Índias esperadas, fê-las por consolo, segundo sua hierarquia governamental e a fantasia do exótico que trazia consigo. O desafio que está ainda diante de nós é como ressignificar nossa identidade, se 500 anos depois do genocídio indígena e da escravidão negra, que não cessa até o presente, padecemos da mesma mania de identificação, como nos diz TIBURI. Tal mania, conforme TIBURI (2009, p. 39), é, na verdade, a paranoia de autorreferencialidade que constitui o padrão básico da base aristocrática do conhecimento que não se percebe estrangeiro de nosso modo de entender o mundo. Em outras palavras, a inevitabilidade do que somos é o que nos faz interpretar o mundo de um jeito ou outro, mas não guardamos espaço para entender que o estranho também habita em nós, nos tornamos janelas fechadas para a diversidade da vida na qual está implicada a possibilidade de conhecer. O ideal da identidade que se usa até hoje em certos discursos e pesquisas em ciências humanas – o que dizer de quem não é especialista – tornou-se uma verdadeira arma contra a compreensão da diferença, enquanto, ao mesmo tempo, promete a explicação de toda diferença. CASTRO (2002) amplia o problema da identidade, na medida em que assegura que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. TIBURI acentua que essa frase é estética e política, ainda que tenha lastro científico demonstrado nas pesquisas sobre o aporte genético ameríndio da população brasileira. O problema da identidade deve ser resolvido com um novo pacto identitário que busque contemplar a formação da população brasileira naquilo em que ela se assemelha e naquilo em que se diferencia. A identidade não necessita de modelos ou padrões; precisa, sobretudo, do sentimento de pertença. Não há como estabelecer um arquétipo comum a todos, elaborado pelas leis, mas sim levando em consideração que nossa característica principal é a diferença. Entretanto, essa busca deve procurar ancoragens nas ações do presente, procurando considerar as populações mais desassistidas. Não será possível que a nação se reconcilie sem antes passar a limpo a sua história. E sua história é a história da devastação ambiental em todos os sentidos que nossa humanidade pode perceber. Entendemos que passando a limpo a sua história poderemos estabelecer sem medo os critérios que deverão nortear a reparação devida aos povos indígenas remanescentes, populações negras e afro-descendentes que, ao longo da nossa trajetória enquanto nação viveram sem os direitos básicos da cidadania. As novas formas de atuar e entender o patrimônio e o registro arqueológico histórico de contato serão instrumentos eficazes na formação e no fomento de uma nova identidade e de uma nova memória. Caberá aos agentes públicos e privados ocupados com os estudos e os interesses da preservação dos bens de alcance social e usufruto do povo, seja na vertente material e/ou imaterial, instrumentalizar os mais Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 99 diversos e variados segmentos da sociedade a conhecer, usufruir e, sobretudo, escolher os elementos que deverão compor os marcos efetivos que indicarão quais serão os bens que marcarão enquanto memória a nossa trajetória cultural de povo. Dentro da nossa construção de identidade e memória será fundamental redirecionar as políticas públicas de preservação do patrimônio histórico cultural, onde esteja contemplado o nosso patrimônio genético e nossa biodiversidade. Importante segmento de intelectuais conhecido como o Círculo de Viena traz uma contribuição importante no início do século 20. Seus integrantes acreditavam que a imaginação era um corpo estranho à ciência, um parasita que devia ser eliminado por aqueles que pretendem fazer uma pesquisa séria, numa época em que a ciência era a única forma aceita de explicar o mundo, e isso equivaleria à violência de desqualificar qualquer interpretação que estivesse em sintonia com a criatividade e a imaginação. Numa perspectiva coletiva de fundar nova identidade, de escolher nova memória, não existirá espaço para o preconceito e o esquecimento das bases de formação das primeiras ocupações aqui vividas e mortas. Inventaremos outra memória social, uma cultura, um novo patrimônio. Iremos inventariar o nosso patrimônio genético, nossa biodiversidade e com os cientistas realizaremos a repartição de benefícios com o nosso conhecimento tradicional. Certos de que o projeto político de pintar as casas velhas das elites eclesiásticas, aristocráticas e militares já terá passado. O novo espaço político será para a construção e usufruto dos novos saberes, sabores, quereres e fazeres. Será preciso uma ação vigorosa impulsionada pelas forças da coletividade, que reconheça em nós a sabedoria de ser quem somos. Bens culturais: princípio da reparação Dentro do princípio que deve ser observado para o exercício da democracia e para o exercício dos direitos culturais está o direito à informação. MACHADO (2006, p. 83), citando a declaração do Rio de Janeiro/92, diz no seu princípio 13 que: os Estados deverão desenvolver legislação nacional relativa à responsabilidade e à indenização das vítimas da poluição e de outros danos ambientais. O princípio aqui em sua extensão compreende os danos morais, materiais e físicos ocasionados pelo Estado ou por terceiros à pessoa humana. Por conseguinte, o dano ocasionado aos bens de alcance social e de usufruto da sociedade encontra semelhante necessidade de reparação. Nesse universo, o patrimônio cultural arqueológico é 100 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades elemento ímpar, pois se caracteriza por uma matriz finita, na maioria das vezes não passível de restauro, o que lhe confere um estatuto especial na forma de reparação. Essas práticas são bastante recentes e, até pouco tempo, o entendimento de reparação do patrimônio cultural arqueológico inexistia, enquanto somente a opção existente era o caminho judicial, e todos nós sabemos o alcance e as dificuldades inerentes do processo. A dificuldade que começa a ser superada aos poucos, que exige espera e acúmulo, é exatamente a ausência de pensadores vanguardistas do patrimônio cultural arqueológico, em especial na discussão da normalização e de novos paradigmas, onde encontramos maior carência. Se, por um lado, temos arqueólogos já preocupados com isso, no campo das ciências jurídicas, dentro do patrimônio os estudos são inexistentes, sem massa crítica. Entretanto, a literatura internacional supre algumas lacunas de referência teórica com destacados pensadores, como Kiss, entre outros. Por outro lado, os profissionais do Ministério Público têm destacado papel na proteção do patrimônio cultural arqueológico, em grande parte responsáveis pelas reparações existentes hoje e no passado recente dos impactos negativos que atingiram os bens arqueológicos. VOLFI (2009, p. 6) considerava que Freud, em sua defesa do esquecimento, cujo trabalho girou em torno de memórias reprimidas, não repudiou o esquecimento de sofrimentos passados. Ele ponderava que a memória se mantinha viva pela energia emocional. Quando a energia emocional deixa de existir, a memória vai pouco a pouco desaparecendo. Dessa forma, o sofrimento pode ser aliviado também com o esquecimento e, em alguns casos, será necessária essa purgação. Entretanto, VOLFI (op. cit.) continua nos dizendo que hoje construímos e interpretamos nossa identidade em termos narrativos: somos aquilo que nos aconteceu, o que fizemos e o que outros fizeram a nós, etc. Se isso é o que somos, então a memória é essencial. A memória nesse caso é nossa identidade. Se você perde sua memória, perde seu eu. O importante no pensamento deste influente intelectual cristão croata é que o perdão não é o oposto de justiça, porque é afirmar que, se existem abusos contra a pessoa humana, deve haver castigo, deve haver punição, deve haver reparação. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 101 Referências BASTOS, Rossano Lopes. O papel da arqueologia na inclusão social. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio Arqueológico: O desafio da preservação. Nº 33. Organizadora: Tania Andrade Lima. Editora IPHAN. 2007 BASTOS, Rossano Lopes. Arqueologia Nômade. Tese de Livre docência. Museu de Arqueologia e Etnologia. 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Paisagens Urbanas Pós-Modernas: Mapeando Cultura e Poder. In Arantes, Antônio Augusto (org.). O espaço da diferença. Campinas, Papirus, 2000. pp 80-103. 104 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Patrimônio Cultural: Conceituações e Questionamentos Tânia Tomázia do Nascimento1 Todas as histórias que meu pai inventava sobre os motivos de abandonar o mundo, todas aquelas fantasiosas versões tinham um único propósito: empoeirar-nos o juízo, afastando-nos das memórias do passado (MIA COUTO, 2009). Um dos adventos da contemporaneidade no campo acadêmico foram as cisões e ampliações de conceitos, o que já foi chamado de “novas abundâncias” (SANTOS, 2002). O conceito e o campo de ação do patrimônio cultural não ficaram ilesos a tal mudança. Entretanto, como já pautado por BASTOS (2010), será que os instrumentos de acautelamento e proteção dos bens patrimoniais acompanharam estes “novos entendimentos” ou modificações conceituais, e as introjetaram em suas ações cotidianas? E nós, acadêmicos, em que medida absorvemos o debate e compactuamos com uma “nova conduta ética”, consciente de nossas responsabilidades enquanto cidadãos e pesquisadores, não nos omitindo ante os flagrantes esquecimentos consentidos pelos que temem a instauração de um conhecimento emancipatório? 1 Arqueóloga, doutoranda em Quaternário Materiais e Culturas – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Colaboradora do Núcleo de Estudos Negros - NEN. Pensando nisto, a presente proposta reflexiva busca discutir as confluências entre os campos de ações do patrimônio cultural - aqui entendido como o conjunto de bens, materiais e imateriais, ou propriedade cultural, composto pela memória e modo de vida de diferentes grupos que formam uma sociedade - e o lugar atribuído às populações afro-brasileiras. Para tal, avaliaremos o processo de modificação histórica do termo patrimônio cultural e os espaços de ausências e transferências de responsabilidades no que toca ao patrimônio cultural e às populações afro-brasileiras. Mais do que respostas, fazemos questionamentos e conjecturamos sobre as mutações, seus resultados e possibilidades. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 105 Patrimônio cultural: sua nuance moderna 2 FUNARI e PELLEGRINI, 2006, debatem detalhadamente a modificação do conceito de patrimônio cultural ao longo do tempo (Idade Antiga, Idade Média, Renascimento e surgimento dos Estados nacionais). 3 Apregoada por HOBBES já no século XVII. Em um processo dinâmico e em nada novo, ao longo do tempo o conceito de patrimônio cultural e suas áreas de ações foram se transformando, desde a Antiguidade2. Nesta, o patrimônio era um valor aristocrático e privado, referente à transmissão de bens no seio da elite patriarcal romana. Já no fim da Antiguidade tardia e da Idade Média, acrescenta-se ao caráter aristocrático do patrimônio o simbolismo coletivo e o religioso. Monumentos, relíquias e cultos aos santos passam a ser operacionalizados como patrimônio coletivo, embora sob a tutela de uma instituição privada, a igreja (FUNARI & PELLEGRINI, 2006). No Renascimento, os humanistas, na sua valorização da Antiguidade (gregos e romanos), acabam instigando o colecionismo, por consequência, os antiquários (entidades privadas), de onde para muitos deriva a nuance dada ao conceito e aplicabilidade de patrimônio cultural moderno. Entretanto, é à formação dos Estados Nacionais que atribui-se a noção moderna de patrimônio: O Estado Nacional surgiu, portanto, a partir da invenção de um conjunto de cidadãos que deveriam compartilhar uma língua e uma cultura, uma origem e um território. Para isso, foram necessárias políticas educacionais que difundissem, já entre as crianças, a ideia de pertencimento a uma nação (FUNARI & PELLEGRINI, 2006, p.16). No cenário internacional, com a formação dos Estados Nacionais, por volta do fim do século XVIII e início do século XIX, ocorreu um exercício de autoafirmações que regularam a pauta de pesquisas e bens patrimoniais elegidos como dignos de preservação, com o intuito de gerar a consolidação de um sentimento nacionalista, uma identificação e pertencimento entre os cidadãos e seus Estados, o que colaboraria com a soberania desses Estados emergentes. A partir disso, funcionários ligados ao poder governamental, que se consideravam porta-vozes dos Estados Nacionais e dos cidadãos, escolhiam o que era digno de preservação pela sua representatividade. Tal prerrogativa baseava-se na perspectiva3 de que: O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os poderes na dependência de sua vontade: é o caso do poder de um Estado (HOBBES, 1979, p.55). Ou seja, o poder do Estado constituía-se como superior ao poder de qualquer cidadão, subentenda-se grupos vulneráveis, ou grupos invisibilizados, sendo representando por ideologias e ações conservadoras que visavam manter o poder dominante, em seu lugar de destaque e dominação. Assim, o Estado funcionaria como uma intromissão regulatória sempre apta a manter a ordem e favorecer o poder vigente. 106 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades No Brasil, a política de proteção ao patrimônio nacional começa a ganhar visibilidade por volta de 1920, quando se iniciou um movimento estadual que operacionalizou a criação de inspetorias estaduais, com o intuito de preservar os patrimônios culturais em Minas Gerais (1926), Bahia (1927) e Pernambuco (1928) (OLIVEIRA, 2008, p.115). Esse movimento surgiu em grande medida como reação e mecanismo de proteção aos bens patrimoniais materiais, em decorrência do crescimento das cidades, no final do século XIX e primeiras décadas do século XX4. Em sua maior força, este movimento foi desencadeado pelos modernistas e neocoloniais5, de forma que o primeiro órgão federal institucionalizado para preservação dos bens patrimoniais brasileiro – a Inspetoria de Monumentos Nacionais (IPM), criada em 1934 (OLIVEIRA, 2008, p.114) – tinha como meta atuar na restauração de monumentos da cidade de Ouro Preto. Em sequência, a Lei nº 378, de janeiro de 1937, junto com o Decreto-lei nº 25, de novembro do mesmo ano, cria o SPHAN6 – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que substitui o IPM. Segundo a Lei nº 378, em seu art. 46º, o SPHAN, tinha como finalidade: “...promover em todo país e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional”. E, em conformidade com o Decreto-lei nº 25, em seu art. 1: Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (grifo nosso). Essa visão impregna os primeiros bens elencados como dignos de preservação em cenário nacional, em uma áurea saudosista, de revalorização das heranças coloniais, onde igrejas, fortes e casarões foram elencados como representação de uma nacionalidade emergente, em um movimento que foi denominado de patrimônio de “pedra e cal”, por priorizar apenas monumentos arquitetônicos pertencentes à elite brasileira. Enquanto isso, grande parte da população foi alijada do processo de valorização patrimonial, seja por não serem representadas nos bens escolhidos, seja por não possuírem uma ligação de pertencimento com os mesmos. 4 Na época, houve a alta do preço internacional do café, que favoreceu o desenvolvimento econômico, especialmente na região Sudeste. 5 Embora fossem correntes rivais, detalhes em OLIVEIRA (2008). 6 Mais tarde, 1946, o SPHAN foi substituído pelo Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN) e, em 1970, o DPHAN é transformado em Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Os bens patrimoniais nomeados como dignos de preservação, logo, socialmente ativados como representantes de uma realidade nacional, forjaram um quadro de supremacia e legitimação da elite nacional brasileira, que tinha em suas premissas, não inocuamente, o germe de desigualdade reinante nas outras esferas: sociais, econômicas e políticas. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 107 No período abordado, concebiam-se as desigualdades geradas pelo preconceito racial no País como inexistentes ou amenas já que, devido às particularidades de seu processo de formação histórica, o Brasil era visto como um país de intensa miscigenação, logo, não preconceituoso. 7 Embora os índios brasileiros sempre estivessem na pauta, sua imagem sempre foi distorcida e sua valorização restringiu-se ao nível museológico, onde peças arqueológicas e etnográficas eram guardadas como resquícios de um Brasil em vias de extinção. Salvo raríssimas exceções, era uma valorização alegórica, uma vez que o índio brasileiro sempre foi visto e tratado como um ser tutelado e dissociado de sua representatividade potencial. 8 Aqui entendido como um conjunto de movimentos culturais (música, arte, literatura, pintura, etc.) cujo foco de ação quebra os padrões estéticos vigentes no Brasil em meados do século XX. 9 Embora seja latente nas prerrogativas e ações do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), desde 1838, o objetivo de “preservar a cultura nacional”, cujo resultado foi marcado por um dogmatismo e preconceitos velados, conforme BASTOS (2007). 108 Seria apressado aqui afirmar que, ao escolherem igrejas, fortes e casarões, os órgãos responsáveis pelo acautelamento e proteção dos bens patrimoniais estivessem cônscios de sua contribuição com o mito da democracia racial. Mas, no momento em que a elite intelectual brasileira definia “que cara tinha o país”, negros, índios7, asiáticos, ciganos, entre outros, foram invisibilizados, sucumbidos pela áurea de diversidade e igualdade, onde diversas etnias, religiões, costumes e hábitos conviviam em harmonia, de preferência sob a tutela de um tipo benevolente, representante legítimo da hierarquia decadente nacional. “Macunaíma: o herói sem nenhum caráter”, livro escrito por Mário de Andrade, em 1928, numa tentativa de retratar o povo brasileiro, recria um herói imaturo, cuja característica mais forte era a preguiça. O herói nasce negro, de mãe índia e depois vira branco. O ideário reinante à época aparece na cena em que Macunaíma embranquece, ao tomar banho com mais dois manos, tornando-se “branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele” (representante europeu). O segundo, ao perceber “o milagre”, atirou-se, “porém a água já estava muito suja da negrura do herói” e, por mais que ele “esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo” (representante indígena). “Macunaíma teve dó e consolou: - Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz”. O terceiro foi se lavar, mas o segundo já tinha esborrifado toda a “água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo” e ele (representante negro): ...conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou: - Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não, mais sofreu nosso tio Judas! (ANDRADE, 1985, p. 30). Ora, Mário de Andrade, foi um dos mais importantes representantes modernistas8, considerado um dos intelectuais responsáveis pela consolidação da ideia de patrimônio cultural no Brasil na época9, defensor da diversidade artística e pensador de uma identidade nacional. Sua obra chama a atenção para a ideologia vigente à época. Na construção da identidade nacional, começa-se a conceber o Brasil como formado por três raças, mas só a miscigenação, como dito acima, a “água santa”, produziria um tipo genuinamente brasileiro, popularmente denominado “moreno”, “caboclo”, “mestiço”. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Não se pretende aqui avaliar o exercício de positivar a mistura de raças dos modernistas. “A miscigenação sempre teve um papel central no pensamento social brasileiro. É fato histórico incontestável, mas sua interpretação variou consideravelmente ao logo do tempo.” Especialmente quando o racismo científico começou a ser majoritariamente malvisto (ÓSORIO, 2009, p. 73). Entretanto, o processo de miscigenação não possuiu meio termo, e o objetivo de misturar a população brasileira, que em fins do século XIX instituiu a política nacional de embranquecimento, contribuiu para um saldo de injustiças e desigualdades que só recentemente, com uma política clara e aberta de ações afirmativas, começam a ser reparadas. Visto isso, podemos afirmar que na gênese dos primeiros bens patrimoniais brasileiros selecionados como dignos de preservação, as comunidades vulneráveis e, em especial, as populações afro-brasileiras, foram invisibilizadas e excluídas, em nome de um pretenso bem maior, uma nação supostamente igualitária, um país de “democracia racial”. Porém, a democracia racial é um mito ainda hoje vigente, apesar das insistentes ações de combate e conscientização, e propagou a ideia de que vivemos em um país onde a discriminação racial e suas consequências inexistem, devido ao nosso processo de formação histórica e seus mecanismos de miscigenação populacional. De forma que, se perante a lei não possuímos estorvos legais de separação racial e nosso povo é essencialmente uma mistura de raças, somos iguais, logo, não somos racistas. Tais afirmações são recorrentes, mesmo que 124 anos após a abolição da escravatura os dados estatísticos e censitários, para não falar da realidade latente, ainda apontem para níveis alarmantes de desigualdades sociais, econômicas, educacionais, entre outras, cujo fator comum de exclusão é a cor da pele dos envolvidos. Logo, podemos afirmar, em consonância com FONSECA (2009, p. 59), que a imagem construída pela política de patrimônio produzida no Brasil está longe de representar a diversidade, “assim como as tensões e os conflitos que caracterizaram a produção cultural do Brasil, sobretudo a atual, mas também a do passado”. A autora cita, entre outros exemplos, a Praça XV, no centro do Rio de janeiro, um dos ícones do patrimônio histórico nacional que, com os prédios e monumentos, suscitam o poder de um Brasil imperial e colonial, mas que pouco fala da “sociedade da época e a vida que se desenvolvia naquele espaço” e que poucos foram os registros, como os deixados por Debret, Hildebrandt e outros, que captaram “a presença, nesses espaços, de mercadores, escravos domésticos, negros de serviço e alforriados, enfim, da sociedade complexa e multifacetada que por ali circulava” (FONSECA, 2009, p. 59). Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 109 Nesse sentido, a preservação apenas de prédios, monumentos e centros históricos ligados a uma elite nacional, dissociados das vivências, representatividades e participação dos diversos grupos sociais que com eles se identificam, fizeram parte e os construíram, coaduna com o ideário potencializado pelo patrimônio de pedra e cal, que veio apenas consolidar no plano simbólico, artístico e cultural, aquilo que politicamente, economicamente e socialmente já estava estabelecido. Patrimônio cultural: a dilatação de um conceito A dilatação da perspectiva tradicional de patrimônio cultural, enquanto monumentos arquitetônicos de valor excepcional, representante de uma elite dominante, amplia-se efetivamente, em plano nacional, com a instauração do Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, que institucionaliza o inventário e registro do patrimônio cultural imaterial. Embora já na Constituição de 1988 essa mudança fosse latente, ou mesmo nas ideias iniciais apregoadas no anteprojeto criado por Mario de Andrade para a criação do SPHAN10, bem como, no movimento pela preservação dos centros urbanos instaurado na década de 70. 10 O Ministro da Educação e Saúde, Mário Capanema, pede um anteprojeto para criação do SPHAN a Mário de Andrade. Entretanto, o anteprojeto concebido por Mário de Andrade não é usado na integra quando da instauração do SPHAN. Em nível internacional, a UNESCO institucionaliza a Lista do Patrimônio Mundial, na Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural, realizada entre outubro e novembro de 1972, que cria um Comitê Intergovernamental de Proteção do Patrimônio Mundial, responsável por estabelecer, atualizar e divulgar a Lista do Patrimônio Mundial. Com tais mudanças, novas abordagens, campos de ações e temáticas aparecem no Brasil. Paisagens culturais, saberes e fazeres como: Ofício das Paneleiras de Goiabeiras; Círio de Nossa Senhora de Nazaré; Samba de Roda do Recôncavo Baiano; Ofício das Baianas de Acarajé; Tambor de Crioula do Maranhão; Cachoeira de Iauaretê – lugar sagrado dos povos indígenas dos Rios Uaupés e Papuri; Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo; Ofício de Sineiro; Ofício dos mestres de capoeira; Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão, e tantos outros que são “sacralizados” como patrimônio cultural. Vivemos em um momento onde as palavras-chaves para definição dos bens patrimoniais migram da excepcionalidade da pedra e cal para a corresponsabilidade, paisagens culturais, diversidade, multiplicidade de saberes e fazeres. Prerrogativa sinalizada pela própria Constituição brasileira de 1988, nos artigos 215 e 216, ao afirmar: 110 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1.º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2.º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1.º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2.º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3.º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4.º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5.º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos (Grifos nosso). Diante disso, percebemos e nos colocamos em uma época de transição. Mas, ao mesmo tempo em que apregoamos um abandono do conceito tradicional de patrimônio cultural, nos perguntamos: em que medida os instrumentos de acautelamento e proteção dos bens patrimoniais têm atuado em consonância com essas mudanças (BASTOS, 2010) e se articulado no cumprimento da legislação, assegurando a essas comunidades, por tanto tempo excluídas, um lugar de pertencimento por direito e de direito? Uma vez que a própria Constituição nacional, como visto acima, assegura o “pleno exercício”, “acesso às fontes”, bem como, se compromete a apoiar, incentivar, promover e proteger ações de reconhecimento, salvaguarda e tutela de bens patrimoniais, em especial desta parcela da população que foi preterida em um primeiro momento. Por outro lado, não podemos deixar de indagar: se no conceito de patrimônio cultural já são palpáveis e identificáveis as transformações, em que medida os instrumentos de acautelamento e os Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 111 órgãos responsáveis pela tutela e salvaguarda dos bens patrimoniais também mudaram? E quais são suas atuais prerrogativas? Se no ideário reinante no final do século XIX e primeiras décadas do século XX cabia ao Estado a proteção, através da “preservação” dos bens patrimoniais, atualmente vivemos em uma era de transmutação, onde os limites das políticas setoriais são expostos e aceitos e, ao falarmos de salvaguarda e preservação dos bens patrimoniais, não mais falamos da exclusiva tutela governamental, no seu sentido de manutenção de casarios edificados, tombados. Falamos em sustentabilidade, compartilhamento e envolvimento mútuo. Por outro lado, se antes preservar possuía o significado de “mumificação” dos bens patrimoniais, no sentido de interdição ou restrição de uso e modificações, hoje falamos em diálogo, uso mediado e aceitabilidade de mutação. Ninguém questiona o caráter dinâmico a que está interligado os bens patrimoniais e os sujeitos que deles se apropriam, embora a premissa basilar seja sua preservação, através da manutenção. Daí a veemência com que se busca a aplicação de ações de envolvimento e fortalecimento de pertencimento das comunidades com “seus” bens patrimoniais, ferramenta hábil de gestão e aplicabilidade de ações de preservação. O patrimônio cultural, mais que um bem material ou imaterial a ser mantido, passa a ser apropriado e usado enquanto vetor de qualidade de vida, fator de modificação social e, o mais importante, busca uma sustentabilidade, não apenas financeira, mas também de transmissão e perpetuação, embora com uma nova roupagem, releitura ou apropriação. Pelo visto, nos apercebemos que, se antes o Estado era o responsável pela preservação dos bens patrimoniais, atualmente cabe a todos, ao poder público e aos cidadãos, tal responsabilidade, já que as demandas são muitas diante do “patrimônio frágil” e do crescimento - por alguns visto como vilão da destruição patrimonial - o que legitima uma transmissão ou compartilhamento de poderes e responsabilidades, da esfera pública para a esfera privada. Prólogos para uma discussão Diante do exposto, se a concepção de política cultural atual migra os critérios de escolha e preservação dos bens patrimoniais para uma perspectiva coletiva, que leva em consideração as preocupações de diferentes grupos que formam uma sociedade, vem à mente uma pergunta basilar: que 112 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades voz estamos dando para os grupos sociais que em um primeiro momento foram excluídos por não possuírem bens de excepcionalidade? Será que, diante deste processo de mudança paradigmática, as populações que por tanto tempo foram invisibilizadas no processo de conformação histórica deste País possuem espaço de ação, atuação e consciência do lugar a ela atribuído? De elencar seus bens patrimoniais como dignos de preservação e junto aos poderes públicos lutarem por espaço em uma agenda de representatividade? Não é cabível que apenas os “estrangeiros”, especialmente do campo universitário, sejam ainda os maiores instigadores de tais processos de reivindicações. A título de exemplificação, será que as comunidades ribeirinhas, comunidades quilombolas, comunidades negras rurais, entre tantas, por si só, estão conscientes e aptas a exigirem do Estado este espaço que lhes é apresentado? No mesmo sentido, levantamos outra proposição: será que não transformamos as aceitabilidades de acesso e dirimimos as responsabilidades? O que queremos dizer com isto, nos primórdios da valorização patrimonial no Brasil, os bens patrimoniais pautaram uma beleza estética ou caráter excepcional associado aos colonizadores europeus, e o Estado estava apto a operacionalizar e centralizar a preservação desses bens patrimoniais (casarios, igrejas, fortes, etc.). Entretanto, atualmente assistimos a uma proliferação de campos de ações e responsabilidades, pois as instituições públicas, responsáveis pela tutela, proteção e instrumentos de acautelamento dos bens patrimoniais, já não conseguem abarcar a nova estrutura por si só, e a centralização é substituída pelo compartilhamento. Ao visualizarmos tal realidade, nos questionamos: onde estão as fronteiras da obrigação pública diante o compartilhamento? Em que medida tal compartilhamento tem sido efetivo, e não uma forma de “calmante” paliativo? Pois as portas se abrem, aparentemente sem restrições, aliviando as tensões e aniquilando os processos de reivindicações. Mas, de fato, que mecanismos garantem que o reconhecimento seja efetivo? Da mesma forma que, se por um lado entendemos a limitação do Estado em centralizar as ações de salvaguarda desses bens patrimoniais, por outro, não podemos eximi-lo de suas responsabilidades constitucionais e institucionais previstas legalmente, em leis, decretos e portarias. Cabe ao Estado promover não apenas o reconhecimento, mas também instrumentalizar tais comunidades diante as portas que ante elas se abrem. Caso contrário, refletimos sobre a dimensão política da famosa metáfora exposta na alegoria da caverna, de Platão, onde, em uma caverna, homens acorrentados enxergam apenas as sombras que se projetam no fundo da mesma. Ou seja, pouco adianta criar mecanismos de acesso, disponibilizá-los e não instrumentalizar e preparar tais cidadãos para acessá-los. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 113 Embora muitas comunidades tenham demandado iniciativas de reconhecimento de seus bens patrimoniais, se considerarmos o tamanho do País e a diversidade de grupos e bens que nele abundam, perceberemos a necessidade de continuação, ainda há muito por fazer. Não é nosso objetivo encontrar respostas, mas antes refletir sobre o processo de conformação política com que vemos nossos bens patrimoniais na atualidade e iniciarmos um debate: se o patrimônio cultural é imbuído em uma esfera social e política de construção, modificação e manutenção, a contextualização deste processo é essencial para entendermos suas aplicabilidades, possibilidades e limitações atuais. Da mesma maneira, acreditamos que o trabalho em conjunto, entre o poder privado e o poder público, no processo de reconhecimento e preservação dos bens patrimoniais ante a realidade, é a melhor alternativa. Entretanto, temos consciência de que o Estado não pode se eximir de suas responsabilidades. Caso contrário, reviveremos circunstâncias em que uma hora se exclui por não ser excepcional e por vivermos em uma democracia racial, em outra, se abre as portas e se admite as diferenças, mas se transfere as responsabilidades de acesso. Ou seja, se em um primeiro momento os bens patrimoniais das comunidades ditas vulneráveis foram deixados de fora do rol de sacralização patrimonial, por não serem considerados excepcionais, que mecanismos garantem atualmente que as ações do Estado sejam efetivas e suficientes para garantir a inclusão desses bens no rol do patrimônio institucionalmente reconhecido? Referências ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 21ª Ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1985. BASTOS, Rossano Lopes. Uma Arqueologia dos desaparecidos: identidades vulneráveis e memórias partidas. São Paulo: IPHAN, 2010. BASTOS, Rossano Lopes. 2007. O papel da arqueologia na inclusão social. In: LIMA, Tânia Andrade (Org.). Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio Arqueológico: o desafio da preservação. Nº 33. Brasília: IPHAN, 2007 COUTO, Mia. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de Patrimônio Cultural. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Memórias e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de janeiro: Lamparina, 2009. 114 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades FUNARI, Pedro Paulo; PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Patrimônio histórico e cultural. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2006. HOBBES, Thomas. Leviatã, ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Col. Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1979. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura é patrimônio: um guia. Rio de janeiro: Editora FGV, 2008. OSÓRIO, Rafael Guerreiro. Desigualdade racial e mobilidade social no Brasil: um balanço das teorias. In.: THEODORO, Mário (org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil; 120 anos após a abolição. 2ª Ed., Brasília: Ipea, 2008. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 13ª Ed., Porto: Edições Afrontamento, 2002. http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=284 acesso em: 20 de março de 2012. http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/109250/decreto-lei-25-37 acesso em: 20 de março de 2012. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 115 116 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Sobre o Tombamento dos Quilombos Dalmo Vieira Filho1 A Constituição Federal afirma, em seu artigo 216, que “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”. No Ato das Disposições Transitórias, no artigo 78, lê-se: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Ressalte-se a diferença evidente das duas categorias citadas pela Carta Magna, considerando que os dois aspectos, sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos e comunidades de quilombos dizem respeito a diferentes formas de caracterizar e reconhecer a significação histórico cultural dos quilombos e também as implicações atuais, inclusive as formas de ocorrência, o conceito implícito de reparação e suas decorrências sociais. 1 Arquiteto e Urbanista. Superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Santa Catarina. Para os antigos quilombos, a Constituição preconiza o tombamento, isto é, a identificação, a proteção e o automático reconhecimento do valor cultural. Para as comunidades quilombolas (que podem eventualmente incluir os antigos quilombos), prevê a garantia da propriedade da terra. Pelo exposto, existem caracterizações e providências diferentes nos dois artigos da Constituição que tratam do assunto. Cabe ao Iphan definir o que são os antigos quilombos e onde estão, com a finalidade de cumprir o que determina a Constituição: inscrevê-los nos Livros do Tombo. Enquanto o disposto acerca das comunidades quilombolas determina a imissão de posse da terra, que só pode ser efetivada pelos órgãos com competência para tal. Em um campo repleto de entendimentos e interesses os mais diversos, e tendo em vista o alcance das medidas constitucionais, deve o Iphan conter-se em seu campo de competência técnica e instrumental. Essa contenção pressupõe não sobrepor-se às entidades públicas diretamente relacionadas com a questão das comunidades de quilombos, já estruturadas para enfrentar os desdobramentos e os procedimentos decorrentes da aplicação da legislação. O Iphan agirá bem concentrando-se no que lhe compete: tombando os bens que a Constituição determina que sejam tombados. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 117 Portanto, os bens caracterizados como antigos quilombos devem obrigatoriamente ser identificados e tombados. Os bens relacionados com as comunidades quilombolas não serão obrigatoriamente tombados, podendo, entretanto, vir a sê-los (como todo bem que se revista de valor cultural existente no País), mediante a aplicação dos procedimentos previstos no Decreto-Lei 25. Resta conceituar com precisão o que sejam os antigos quilombos. Com o intuito de estabelecer os entendimentos necessários à caracterização dos bens que devem ser obrigatoriamente tombados, o antigo Deprot/Iphan – atual Depam – produziu o Parecer 47/98. O documento assim considera os bens protegidos pelo artigo 216, parágrafo 5: “os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, como sendo áreas onde existem vestígios materiais da ocupação quilombola”. “Por ocupação quilombola se entende as comunidades autoexcluídas da comunidade nacional durante o período colonial até a Abolição da escravatura, formadas originalmente por negros e escravos fugidos das áreas urbanas ou rurais onde existiam práticas de exploração escravista”. Este entendimento foi aprovado no Conselho Consultivo do Iphan, recomendando conclusivamente considerar como antigos quilombos cuja proteção está prevista na Constituição aqueles detentores dos seguintes critérios: a) que estes documentos e sítios apresentem vestígios materiais; b) que tais vestígios estejam ligados às comunidades autoexcluídas da sociedade nacional; c) que essas comunidades tenham sido formadas por escravos negros fugidos; d) que os documentos e sítios sejam datados de antes da abolição da escravatura (13/05/1888). Segundo estudo produzido anteriormente no Iphan, após a Abolição da Escravatura houve o término institucional da escravidão. Assim, a figura jurídica do termo Quilombo, segundo este entendimento, deixaria de existir após esta data. O estudo divide os sítios atualmente intitulados quilombos em três categorias: 1 - As comunidades remanescentes de antigos quilombos ou quilombos históricos são aquelas formadas por escravos negros fugidos até 13 de maio de 1888, como forma de resistência ao regime escravista. São os quilombos no sentido stricto. 2 - Comunidades remanescentes de senzalas seriam aquelas comunidades oriundas de escravos negros que habitavam as senzalas na época de escravidão e que com a Abolição foram beneficiários com a doação das terras ou que permaneceram nelas, ou ainda, aquelas comunidades criadas por negros libertos. 3 - Os novos, contemporâneos ou modernos quilombos são aquelas comunidades formadas após a Abolição e que se autorreconhecem como quilombos no sentido ressemantizado do termo. 118 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Pelo entendimento anteriormente produzido, enquadram-se, portanto, nos parâmetros previstos pela Constituição quando se refere aos antigos quilombos apenas os constituídos antes da Abolição e desde que apresentem vestígios materiais. Essa fronteira proposta apresenta limitações que precisam ser consideradas. A tradição consagrou o nome de “quilombos” aos agrupamentos de negros, independentemente de sua origem remontar ao período anterior à Lei Áurea e em especial no tocante às comunidades remanescentes de senzalas. O próprio documento do Deprot fala em “modernos quilombos”. A Fundação Palmares, através da Portaria no 40, de 13 de julho de 2000, em seu artigo 1o, estabelece “as normas que regerão os trabalhos para identificação, reconhecimento, delimitação e demarcação, levantamento cartorial e titulação das terras ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos, de um modo geral, também autodenominadas “Terras de Pretos”, “Comunidades Negras”, “Mocambos”, “Quilombos”, dentre outras denominações congêneres...”, evidenciando o entendimento amplo do que se pode entender por reminiscências históricas de quilombos antigos. Também a Constituição, quando fala, em seu artigo 78, de remanescentes de comunidades quilombolas, não parece restringir-se aos antigos quilombos, para os quais preconiza o tombamento. Parece claro que ela admite o uso do termo quilombo para além da data da Abolição. Como não admitir a classificação de antigo quilombo a um grupamento que se tenha formado, por exemplo, logo depois de maio de 1888 e que se tenha mantido, como forma de resistência às novas condições em que se viram imersos os antigos escravos – desde aquela época até então? Portanto, a delimitação, balizando o que se quis dizer com histórico por uma data fatal, a da promulgação da lei Áurea, parece-nos ser absolutamente questionável, posicionando o Iphan de maneira isolada entre seus parceiros institucionais, científicos e dentre as organizações sociais que interagem com a questão. Diz Ilka Boaventura Leite (antropóloga, doutora, professora da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas – NUER), no artigo intitulado “Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas”: O quilombo constitui questão relevante desde os primeiros focos de resistência dos africanos ao escravismo colonial, reaparece no Brasil/República com a Frente Negra Brasileira (1930/40) e retorna à cena política no final dos anos 70, durante a redemocratização do país. Trata-se, portanto, de uma questão persistente, tendo na atualidade importante dimensão na luta dos afrodescendentes. Falar dos quilombos e dos quilombolas no cenário político atual é, portanto, falar de uma luta política e, consequentemente, de uma reflexão científica em processo de construção. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 119 Na sequência do texto: A expressão quilombo vem sendo sistematicamente usada desde o período colonial. Ney Lopes afirma que quilombo é um conceito próprio dos africanos bantos que vem sendo modificado através dos séculos (...) Quer dizer acampamento guerreiro na floresta, sendo entendido ainda em Angola como divisão administrativa. (...). O Conselho Ultramarino Português de 1740 definiu quilombo como toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles. Indica, também, uma reação guerreira a uma situação opressiva. David Birmigham (1974) sugere que o quilombo se origina na tradição Mbunda, através de organizações clânicas, e que suas linhagens chegam até o Brasil através dos portugueses. Kabengele Munanga (1994), ao recuperar a relação do quilombo com a África, afirma que o quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo africano reconstituído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implantação de uma outra estrutura política na qual se encontravam todos os oprimidos. Para este autor, a matriz de inspiração adveio de um longo processo de amadurecimento ocorrido na área cultural bantu nos séculos XVI e XVII, de instituições políticas e militares transétnicas, centralizadas, formadas por homens guerreiros cujos rituais iniciáticos tinham a função de unificar diferentes linhagens. Na tradição popular, no Brasil, há muitas variações no significado da palavra quilombo, ora associado a um lugar - quilombo era um estabelecimento singular; ora a um povo que vive neste lugar - as várias etnias que o compõe; ou a manifestações populares - festas de rua; ou ao local de uma prática condenada pela sociedade - lugar público onde se instala uma casa de prostitutas; ou a um conflito - uma grande confusão; ou a uma relação social - uma união; ou ainda a um sistema econômico - localização fronteiriça, com relevo e condições climáticas comuns na maioria dos casos (Lopes, 1987:15). A vastidão de significados, como concluem vários estudiosos da questão, favorece o seu uso para expressar uma grande quantidade de experiências, um verdadeiro aparato simbólico a representar tudo o que diz respeito à história das Américas. [...] Fazendo um levantamento das abordagens feitas pela historiografia brasileira, Ney Lopes chama a atenção para os dois extremos em que o quilombo é enfocado: a partir do ideário liberal, proveniente dos princípios de igualdade e liberdade da Revolução Francesa, em que é romanticamente idealizado; ou, sob o viés marxista-leninista, no qual é associado à luta armada, como embriões revolucionários em busca de uma mudança social. A própria generalização do termo teria sido um produto da dificuldade dos historiadores em ver o fenômeno enquanto dimensão política de uma formação social diversa. O termo irá persistir principalmente para indicar as variadas manifestações de resistência. Décio Freitas, considerando as condições da época e a própria tradição agrícola dos africanos, faz uma tipologia dos quilombos a partir de sua base de sustentação econômica, indicando sete tipos principais: os agrícolas, os extrativistas, os mercantis, os mineradores, os pastoris, os de serviços, os predatórios (que viviam de saques). A agricultura não está totalmente ausente dos demais, mas não é propriamente o que viabiliza e define cada um deles. A partir da década de 70, as abordagens sócioantropológicas procuram enfatizar os aspectos organizativos e políticos dos quilombos. O quilombo como uma forma de organização, tal como enfocado por Clóvis Moura (1981), irá acontecer em todos os lugares onde ocorreu a escravidão. Este autor utiliza o conceito de resistência, enfatizando-o como uma forma de organização política. 120 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Essas comunidades de ex-escravos organizavam-se de diversas formas e tinham proporções e durações muito diferentes. Havia pequenos quilombos, compostos de oito homens ou pouco mais; eram praticamente grupos armados. No recesso das matas, fugindo do cativeiro, muitas vezes eram recapturados pelos profissionais de caça aos fugitivos. Criou-se para isso uma profissão específica. Em Cuba, chamavam-se rancheadores; capitães do mato, no Brasil; coromangee ranger, nas Guianas, todos usando táticas desumanas de captura e repressão. Em Cuba, por exemplo, os rancheadores tinham costume o uso de cães amestrados na caça aos escravos negros fugidos. Como podemos ver, a marronagem nos outros países ou a quilombagem no Brasil eram frutos das contradições estruturais do sistema escravista e refletiam, na sua dinâmica, em nível de conflito social, a negação desse sistema por parte dos oprimidos. A característica que torna singular o quilombo do período colonial e o atual, para este autor, decorre do fato de que todas as experiências já conhecidas revelam uma certa capacidade organizativa dos grupos. Destruídos dezenas de vezes, reaparecem em novos lugares, como verdadeiros focos de defesa contra um inimigo sempre ao lado. Ter uma base econômica que permitia a sobrevivência de um grande grupo significou, desde o seu início, uma organização sociopolítica com posições e estrutura de poder bem definida, até porque o inimigo externo, caracterizado pelas invasões frequentes, vem impondo, ao longo da história, a necessidade de uma defesa competente da área ocupada. Este caráter defensivo começa a mudar, em parte, com a Abolição, quando mudam-se os nomes e as táticas de expropriação, e a partir de então a situação dos grupos corresponde a outra dinâmica, a da territorialização étnica como modelo de convivência com os outros grupos na sociedade nacional. Por outro lado, inicia-se a longa etapa de construção da identidade desses grupos, seja pela formalização da diferenciação étnico-cultural no âmbito local, regional e nacional, e na consolidação de um tipo específico de segregação social e residencial dos negros, chegando até os dias atuais. Por isto mesmo, Clóvis Moura chega à conclusão de que o quilombo vira fato normal na sociedade escravista e desta até os dias atuais. Esse fato normal levantado por Moura é elucidativo da operacionalidade do termo para descrever o fenômeno na atualidade, já que há evidências de que um processo de segregação residencial dos grupos de fato ocorreu, bem como o deslocamento, o realocamento, a expulsão e a reocupação do espaço. Isto vem reafirmar que, mais do que uma exclusiva dependência da terra, o quilombo, neste sentido, faz da terra a metáfora para pensar o grupo e não o contrário. Discutiremos este aspecto na segunda parte deste artigo. Recentemente, o antropólogo Alfredo W. B. de Almeida (1998) chama a atenção para a importância de um aspecto a ser enfatizado em sua gênese: o da unidade familiar, que suporta um certo processo produtivo singular, que vai conduzir ao acamponesamento, com o processo de desagregação das fazendas de algodão e cana-de-açúcar e com a diminuição do poder de coerção dos grandes proprietários territoriais. Todo o esforço de Almeida conduz à demonstração de que a questão das chamadas terras de quilombos deve ser remetida à formalização jurídica das terras de uso comum, ou seja, domínios doados, entregues ou adquiridos, concessões feitas pelo Estado, áreas de apossamento ou doadas em retribuição aos serviços prestados. As chamadas terras de preto compreendem, portanto, as diversas situações decorrentes da reorganização da economia brasileira no período pós-escravista, onde, inclusive, não apenas os afrodescendentes estão envolvidos (LEITE, 2000). Também na referência à materialidade, a proposta desenvolvida anteriormente pelo Iphan, através do antigo Deprot, parece buscar uma relação conservadora do entendimento do texto constitucional – restringindo o alcance do tombamento como instrumento de proteção ao modo com que este instrumen- Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 121 to vem sendo praticado pelo Iphan na maioria dos processos já instaurados. O entendimento deveria ser o contrário. Não cabe ao Iphan, sob pena de inconstitucionalidade, diminuir o termo proposto pela Lei Maior, quando se refere às reminiscências históricas de antigos quilombos. Parece-nos que a normatização não pode, nem deve, amputar parte da abrangência da lei. Mais aconselhável será perceber que a determinação expressa pela Constituição coloca o Iphan diante de um novo paradigma, uma nova categoria de ação – e um novo e instigante desafio institucional. Entrincheirar a instituição em posições tradicionais, que não identifiquem a dimensão deste desafio, parece-nos inaceitável. Segundo o Aurélio: reminiscência “[Do lat. reminiscentia.]. S. f. 1. Aquilo que se conserva na memória; lembrança, memória, recordação. 2. A faculdade da memória (1). 3. Lembrança vaga: & 4. Hist. Filos. Segundo Platão (v. platonismo), lembrança do que a alma contemplou em uma vida anterior, quando, ao lado dos deuses, tinha a visão direta das idéias; anamnese.” O termo reminiscência, parece-nos que não deva ser restringido pela exigência da materialidade, pois esta restrição choca-se com a amplidão maior que pode ser percebida como motivadora do texto constitucional. No campo prático, esta redução conceitual acarretaria problemas de diversas naturezas. Basta para isto citar o mais eloquente dos exemplos, qual seja, o próprio Quilombo de Palmares, cujo sítio, verdadeiro símbolo da luta contra a segregação racial no Brasil, como não poderia deixar de ser, foi tombado pelo Iphan. O tombamento referiu-se principalmente ao sítio onde, segundo a tradição, teriam se instalado os quilombolas de Zumbi e onde estaria localizado o último reduto de resistência do quilombo atacado. Todos os anos é este o local que acolhe as manifestações alusivas a Palmares e as datas celebrativas da presença e da resistência negra no Brasil. Estes eventos são comandados pela Fundação Palmares, congregam entidades e lideranças ligadas aos mais variados assuntos relacionados com os afrodescendentes no Brasil. Estes acontecimentos várias vezes contaram com a participação da Presidência da República. Apesar da consagração do sítio, é fato conhecido que as pesquisas arqueológicas até hoje efetuadas evidenciaram principalmente material indígena – não estando atestada materialmente – até o momento – a autenticidade do sítio histórico. Apesar deste aspecto, parece-nos que a caracterização do lugar como cenário das celebrações alusivas a Palmares é irreversível. 122 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Figura 1 – Visão panorâmica do Quilombo dos Palmares/AL Foto: Dalmo Vieira Filho Pode-se concluir que mesmo nos casos em que pesquisas históricas e arqueológicas sejam processadas, apenas a exaustão destas pesquisas pode produzir (talvez) elementos conclusivos sobre a caracterização material. Esta condição frustra o que pretende a Constituição, tornando o tombamento, que se pretendeu amplo e reparador, dependente de um critério especificamente técnico - no sentido restritivo - em uma questão de enorme amplitude social e política. Trata-se de assunto que a própria Lei Maior prioriza e sobre o qual deveria o Iphan oportunizar aumento do seu horizonte institucional e uma atualização de seus processos de reconhecimento de valor - na dimensão que a questão, sem dúvida, encerra. A escravidão no Brasil, suas mazelas e as consequências ainda evidentes na sociedade, entre elas a do racismo e Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 123 da segregação racial, tão tenazmente combatidos pela legislação brasileira, evidenciam o patamar em que este assunto necessariamente precisa ser tratado. Ainda segundo a Dra. Ilka Boaventura Leite: A expressão remanescente das comunidades de quilombos que emerge na Assembléia Constituinte de 1988 é tributária não somente dos pleitos por títulos fundiários, mas de uma discussão mais ampla travada nos movimentos negros e entre parlamentares envolvidos com a luta antirracista. O quilombo é trazido novamente ao debate para fazer frente a um tipo de reivindicação que, à época, alude a uma dívida que a nação brasileira teria para com os afrobrasileiros em consequência da escravidão, não exclusivamente para falar em propriedade fundiária. Uma primeira questão que se impõe diz respeito à política de ação afirmativa e como ela vem sendo feita (ou não) no Brasil. Desde os anos 30, algumas vozes militantes defendem fortemente a idéia de reparação, da abolição como um processo inacabado e da dívida, em dois planos: a herdada dos antigos senhores e a marca que ficou em forma de estigma, seus efeitos simbólicos, geradores de novas situações de exclusão. A exclusão como fato e como símbolo. Os militantes procuram ver o conceito de quilombo como um elemento aglutinador, capaz de expressar, de nortear aquelas pautas consideradas cruciais à mudança, de dar sustentação à afirmação da identidade negra ainda fragmentada pelo modelo de desenvolvimento do Brasil após a Abolição da escravatura (LEITE, 2000). Um entendimento historicista, baseado em uma data que, por mais simbólica que possa ter sido (e o foi), não colocou um fim na chaga da servidão, e a exigência de materialidade, precisam ser urgentemente revisadas e relativizadas, sob pena de deixar o Iphan na contramão dos anseios sociais e dos próprios avanços políticos e legais sobre o assunto. Os processos preconizados pela Constituição passariam a depender de procedimentos técnico-administrativos, dependentes de pesquisas em muitos casos impossíveis de se realizar, exaustivas e talvez inconclusivas. Existem e devem ser consideradas demandas sociais pela necessidade de reconhecimento institucional da contribuição dos mais diversos componentes na formação da nacionalidade brasileira – em especial dos indígenas e dos afrodescendentes. Acreditamos que há que considerar, em especial no caso dos quilombos e de sítios indígenas, a dimensão histórico cultural de tradições longamente estabelecidas e que consagram – a nosso ver, definitivamente – determinados sítios e locais com ocorrências histórico culturais relacionadas, por exemplo, com quilombos. Essas tradições, espalhadas por todo o país, devem ser ignoradas pelo Iphan? Parece-nos sensato adicionar à materialidade tanto provas documentais quanto a aceitação (como elemento que confere valor de diferente natureza a um determinado sítio) da consagração já tradicional de áreas socialmente apropriadas como tendo servido de refúgio de escravos – até 1888, ou como forma de organização social, predominantemente formada por negros, muito depois disto. 124 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades A Fundação Palmares, na já citada Portaria 40, agora no Art.5º, menciona que: Os estudos para a elaboração do relatório técnico serão realizados em campo, observando-se os seguintes procedimentos (entre os parágrafos 2º e 7º estabelece contatos sempre que necessário com o IBAMA, Iphan, SPU, INCRA e demais órgãos do Executivo federal e estadual e do Judiciário.): Os pesquisadores serão acompanhados por representantes da comunidade envolvida. Os estudos deverão conter histórico de ocupação da terra segundo memória do grupo, deverão conter documentos, indicar locais sagrados. Estão previstos levantamentos demográfico e distribuição espacial da comunidade, e identificação das terras imprescindíveis às suas manifestações culturais. Parece-nos que raciocínios desta natureza se coadunam muito mais com o espírito de amplidão e totalidade que a Constituição quis dar, referindo-se aos antigos quilombos e não a quilombos e muito menos a quilombos existentes até a decretação da Lei Áurea, como poderia ter dito – e não disse. Por este entendimento, o termo quilombo não estaria restrito ao fim da escravidão oficial, mas sim à apropriação que se fez do termo, usando-o para designar lugares onde predominam habitantes negros, normalmente relacionados com os quilombos do período escravocrata, mas também com os desdobramentos e os rearranjos sociais subsequentes a 1888. Resta ainda a determinação do que sejam, no espírito da lei, os antigos quilombos – se quisermos avançar do limite relacionado com a data da promulgação da Lei Áurea. Transfere-se o entendimento baseado na data limite de 13/05/1888 para um ponto indeterminado, onde a questão passa a ser sobre o significado do que seja o termo antigo. Antigo, segundo o Aurélio, é o que é ou existe há muito tempo, o que existiu no passado. Por este entendimento, no mínimo os agrupamentos diretamente decorrentes do processo de Abolição devem ser compreendidos como antigos quilombos e, portanto, devem ser tombados. É evidente também que, ao falar em antigos quilombos, a Constituição não quis que todos os agrupamentos que possam ter herdado a denominação de quilombos, inclusive os chamados quilombos modernos, fossem automaticamente tombados: apenas os antigos quilombos devem ser tombados. Como defini-los? Por outro lado, parece-nos que deva ser estabelecida uma restrição importante: o termo quilombo se refere a um núcleo, remete “aos sertões”, segundo o Aurélio, e não pode ser aplicado a qualquer situação de predominância de população negra, em especial no que se refere aos atuais núcleos urbanos. Aqui, configura-se uma outra forma de defesa e de resistência, já agora relacionada com a vida urbana e com um fato jurídico civil diferenciado, posterior à Lei Áurea. A denominação de modernos quilombos parece-nos plenamente aplicável a estas situações. Sabe-se que após a Abolição oficial, muitos dos antigos quilombos mantiveram-se quase que como tal, outros dissolveram-se e outros, ainda, foram formados como consequência direta da Abolição, in- Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 125 cluindo-se aí os casos em que fazendas inteiras foram abandonadas pelos antigos senhores, caracterizando núcleos de afrodescendentes diretamente provocados pela Abolição. Não nos parece razoável desvinculá-los da caracterização de antigos quilombos. Propomos que na caracterização dos antigos quilombos sejam incorporados os núcleos e ajuntamentos diretamente relacionados com a Lei Áurea e dela decorrentes. Imediatamente após a decretação da lei, um novo arranjo social foi necessário. Os antigos escravos agora precisavam cuidar de si e das suas famílias. Como fazê-lo em um sistema ruralista, até então baseado no braço escravo, onde as alternativas de trabalho, inclusive nas pequenas cidades da época, eram mínimas e onde a posse da terra esteve sempre dependente dos sistemas cartorários de compras e concessões? Como reconhecimento das mais diversas formas de defesa comunitária que foi necessário adotar pelos ex-escravos, e que ainda se ajustam ao termo quilombo com que foram tradicionalmente conhecidas, as organizações em sítios geográficos específicos, largamente adotadas na época, devem ser reconhecidas como antigos quilombos – desde que relacionados aos rearranjos sociais decorrentes do fim da escravidão oficial no Brasil. Os desdobramentos desse contexto político-socioeconômico e – por que não? – racial, estenderam-se largamente na sociedade brasileira, e sua presença pode ser facilmente constatada, pelo menos pelo longo período em que o País se tornou República, firmou as bases da modernização com o fim da chamada Velha República e ingressou, a partir dos anos 50, em um enorme processo de crescimento e transformação. Não seria até este momento, os meados do século XX, alcançando talvez, os anos 60, que antecederam o “milagre” do crescimento a todo custo e a opressão militar, um período que hoje já poderíamos considerar antigo? Até esse momento, subsistia um Brasil quase radicalmente diferente do atual, com enorme gama de componentes (inclusive emocionais) derivados dos períodos históricos anteriores e relacionados ainda com um País predominantemente agrário, de democracia frágil, onde as cidades apenas iniciavam as desvairadas transformações que sofreram, onde as comunicações eram precárias e a massa de informações globalizadas pela televisão ainda não era onipresente. Essa hipótese de delimitação considera um momento histórico onde as consequências e rearranjos das leis do Ventre-Livre, dos Sexagenários, do tráfico formalmente ilegal e a Lei Áurea haviam tomado forma quase que naturalmente, decorridos pouco mais de meio século do fim oficial da escravidão, época em que alguns ex-escravos e muitos de seus filhos ainda viviam. Poderia ser esse um período antigo, no sentido de que o contexto atualmente é outro, muito diferente. 126 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Antigo: [Do lat. antiquu.]. Adj. 1. Do tempo remoto: 2 2. Que existiu no passado: 2 3. Que sucedeu outrora: 2 4. Que é, ou existe, desde muito tempo; velho: 2 5. Que já não está em exercício (de cargo, função, profissão, etc.): 2 6. E. Ling. Arcaico (5). [Superl. abs. sint.: antiqüíssimo e antiguíssimo.] É evidente que se entra em campo difuso, inerente à subjetividade de conceitos tão amplos, mas é igualmente claro que se trata de um período – o meados do século XX – onde informações, tradições e consagrações podem mais facilmente ser reconhecidas e legitimadas, incorporando a ação do Iphan ao que nos parece ser a indesmentível aspiração das deliberações constitucionais. Como conclusão, sugere-se que sejam consideradas reminiscências históricas dos antigos quilombos: 1 - as comunidades remanescentes de quilombos formadas por escravos negros fugidos até 13 de maio de 1888, como forma de resistência ao regime escravista; 2 - comunidades remanescentes de senzalas, oriundas de escravos negros que habitavam as senzalas na época de escravidão e que com a Abolição foram beneficiários de doação das terras ou que permaneceram nelas, ou ainda, aquelas comunidades criadas por negros libertos como forma de reestruturação sociocultural decorrentes da Lei Áurea. 3 - os núcleos formados até meados do século XX, predominantemente por descendentes de escravos, como decorrência dos rearranjos sócio-econômico-culturais diretamente decorrentes da abolição da escravidão no Brasil. Pelo arrazoado proposto, não se restringe o termo reminiscências históricas à comprovação de evidências materiais, valendo as provas documentais e a consagração social que identifica, em todo o país, sítios ocupados em decorrência da organização de núcleos de antigos escravos; também não se considera o termo antigo como vinculado à Lei Áurea, passando a abranger, no mínimo, os rearranjos dela decorrentes. Como maneira de fugir da generalização, que poderia sugerir o emprego do termo antigo até data muito próxima do presente e abarcando fenômenos muito posteriores de desenvolvimento e acomoda- Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 127 ção urbana ocorridos principalmente já no século XX e, portanto, apenas remotamente ligados aos antigos quilombos, propõe-se que sejam reconhecidos os sítios identificados como tal até 1888 e os diretamente decorrentes dos rearranjos posteriores à lei, compostos majoritariamente por ex-escravos e seus filhos, reconhecidos livres pela lei. Os comprovadamente existentes e reconhecidos em data até meados do século XX, momento proposto como emblemático, relacionado com o incremento da industrialização e urbanização do país, responsável pelas enormes transformações da segunda metade do século XX. Parece-nos mais do que razoável que qualquer comprovação de existência de quilombos, no mínimo até esse período, deva merecer a consideração de antigos quilombos. Partindo-se do entendimento acima proposto, sugere-se adotar os seguintes procedimentos relacionados ao tombamento das reminiscências históricas dos antigos quilombos: •• recebimento de demandas. As demandas poderão ter motivações próprias do Iphan (tais como as produzidas pelos conhecimentos resultantes da realização de inventários ou de pesquisas) ou ser provocadas por terceiros, solicitando o tombamento de área identificada como reminiscências históricas de antigos quilombos; •• recebida a demanda, será realizado estudo técnico destinado a comprovar o enquadramento do bem no que prevê a legislação em vigor. Os estudos serão fundamentados em informações históricas, documentais e em tradições estabelecidas nos mais diversos recantos do país. Quando esses estudos forem insuficientes, pode-se recorrer à pesquisas arqueológicas que atestem a ocupação do sítios por população relacionada com os quilombos; •• os Estudos Técnicos formarão processos que reconhecerão ou não os fundamentos da condição de antigos quilombos e delimitarão as áreas indicadas para enquadramento na lei e suas respectivas justificativas; •• os processos serão submetidos à aprovação do Conselho Consultivo do Iphan para fins de inscrição no Livro de Tombo Histórico, Etnográfico e Paisagístico, ou de Belas Artes. Para fins de informação nos processos, entende-se que o tombamento de quilombos não pressupõe necessariamente a extensão do tombamento aos imóveis porventura existentes sobre a área protegida. As razões do tombamento não se relacionam, como pressuposto, aos imóveis existentes sobre os sítios. Está tombado o solo, o local de vivência dos antigos quilombolas e não seus sucedâneos arquitetônicos de qualquer natureza. Parece-nos indiscutível que o espírito da Lei Magna é reparador, sacramenta os cenários brasileiros desta que é a uma das maiores máculas da história da humanidade, a escravidão. Acrescentada do estigma racial, a escravidão foi praticada no Brasil por séculos, a ponto de ter sido trazida quase até o século XX. Entendeu-se de excepcionalizar os sítios em que os antigos 128 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades escravos e seus descendentes conseguiram estruturar núcleos de resistência à opressão. Acima de tudo, como referência à esperança de que a Nação, reconhecidos seus equívocos, possa proporcionar dias melhores e mais justos ao conjunto de seus cidadãos. A questão dos imóveis atualmente existentes sobre esses sítios nem de longe se enquadra nesse patamar de entendimento, que é de reconhecimento, reparação e chancela de valor. Trata-se de um aspecto diferente, apenas justaposto ao solo consagrado – este sim o verdadeiro desafio trazido ao Iphan pela Constituição. Não são eles, os edifícios, as matas, as estradas ou os logradouros porventura existentes sobre os antigos quilombos que se quis destacar, incluindo-os no rol das coisas notáveis da Nação. Ali não houve distinção: a natureza igualitária e sem identidade dos bens sobrepostos é fruto de uma integração que desconheceu, via de regra, qualidade, e estes, sim, estão plenamente integrados na massa difusa em que tristemente vem mergulhando a arquitetura no Brasil, seja na expansão urbana ou no esvaziamento rural. Já são reflexos da globalização contemporânea, alheia e indiferente ao espírito que norteou os legisladores da Constituinte. Não pode ser considerada como parte integrante da natureza do bem que se quer reconhecer e exaltar. Referências Ilka Boaventura Leite. Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Etnográfica, Vol. IV (2), 2000. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 129 130 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Identidade Cultural, Multiculturalismo e Patrimônio Cultural José Carlos dos Santos Debus1 O termo multiculturalismo pode ser definido a partir de vários enfoques, que variam de acordo com o contexto histórico, social e econômico. Em sua linha geral, podemos dizer que o multiculturalismo pode ser entendido como um movimento de ideias que busca um tipo de consciência coletiva para a pluralidade das experiências culturais. Essa pluralidade (diversidade) cultural é sempre o centro das preocupações das propostas multiculturalistas que projetam novas estratégias políticas, no sentido de tornar visíveis os grupos marginalizados social e culturalmente. Stuart Hall observa que o multiculturalismo é um termo que se expandiu e modifica-se em todo o mundo. Para Hall, 1 Mestre em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Professor da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis - SC. O termo ‘multiculturalismo’ é hoje utilizado universalmente. Contudo, sua proliferação não contribuiu para estabilizar ou esclarecer seu significado. Assim como outros termos relacionados – por exemplo, ‘raça’, etnicidade, identidade, diáspora – o multiculturalismo se encontra tão discursivamente enredado que só pode ser utilizado ‘sob rasura’. Contudo, na falta de conceitos menos complexos que nos possibilitem refletir sobre o problema, não resta alternativa senão continuar utilizando e interrogando esse termo (2006a, p. 49). O autor da Diáspora afirma que assim como existem diferentes sociedades multiculturais, também existem multiculturalismos diversos (HALL, 2006a). Nesse sentido, o autor divide o multiculturalismo em: multiculturalismo conservador, aquele que prega a assimilação das diferenças pelas tradições e costumes da maioria; multiculturalismo liberal, baseado em uma cidadania individual e universal, tolera algumas práticas culturais apenas no domínio privado; multiculturalismo pluralista, apoia as diferenças dos grupos dentro de uma ordem político-comunitária; multiculturalismo comercial, acredita que os problemas de diferença cultural serão resolvidos no consumo privado, sem necessidade de redistribuir o poder e os recursos; multiculturalismo corporativo, administra as diferenças culturais da minoria, visando aos interesses do centro; multiculturalismo crítico, enfoca o poder, o privilégio e a hierarquia das opressões e projeta os movimentos de resistência (HALL, 2006a). Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 131 A discussão sobre multiculturalidade e a necessidade de se garantir representação das identidades culturais nos vários campos sociais tem se intensificado e se mostra presente nos discursos curriculares de formação de professores e na orientação de projetos de pesquisas que envolvem os espaços de manifestações culturais. No entanto, estamos muito longe daquilo que seria o ideal para compreender essas manifestações sociais e culturais. Ao mesmo tempo, necessitamos de uma práxis que permita às gerações futuras um diálogo aberto a novos valores no universo da diversidade cultural e aos desafios a preconceitos ligados a gênero, etnias (cor da pele), religião, padrões culturais e minorias. Podemos entender patrimônio cultural como as coisas, lugares e práticas que mostram quem somos enquanto indivíduos e comunidade. Ao longo da história, o conceito de patrimônio cultural sempre esteve articulado com os valores artísticos e estéticos, criados e sustentados através de séculos pelo discurso colonialista europeu. O seu senso de beleza e harmonia determinou a construção de monumentos e esculturas e definiu o que deveria ser preservado como patrimônio cultural. Com isso, as produções artísticas e culturais que poderiam evocar a história e a identidade das classes populares ficavam excluídas na representação social. Desta forma, a capacidade do patrimônio cultural de reforçar uma identidade e os valores comunitários e também contribuir com o diálogo entre diferentes culturas e grupos sociais que integram uma sociedade tornou-se superada pelas regras impostas pela autoridade cultural. Vários estereótipos foram construídos para reforçar uma idéia de dominação racial e estabelecer a função do controle social e, por isso, toda a produção cultural ligada aos afro-brasileiros e índios tem sido tratada, muitas vezes, como produção irregular, incompleta de sentido e de valores artísticos e estéticos. São estes estereótipos que justificam as vantagens daqueles que detêm o poder social. 2 O tema da multiculturalidade faz parte da minha dissertação de mestrado O Cinema que pensa a pedagogia: autonomia e emancipação das práticas pedagógicas nos filmes o Contador de Histórias e Entre os Muros da Escola (DEBUS, 2011). 132 Neste artigo2 buscaremos algumas bases para refletir e compreender essa “cultura irregular” e os estereótipos forjados pelo discurso colonial. Para tanto, vamos nos apoiar nas reflexões de Homi Bhabha e Stuart Hall. Vale lembrar que nossa intenção é também contribuir neste debate e somar esforços para a construção de novos caminhos. Pensar novas experiências para a educação e pesquisa e enriquecer este debate pode ser um caminho possível. Um conjunto de estudos tem mostrado o aparecimento de uma nova consciência dentro do pensamento humanista. Dentro desse conjunto, destacamos Homi Bhabha (2005) e Stuart Hall (2006, 2006a), que trazem e indicam novos olhares, novas configurações voltadas ao reconhecimento e à valorização de identidades até então invisíveis ou negadas através de estruturas educacionais monoculturais. Esses estudos evidenciam-se nos meios educacionais, refletindo e questionando práticas e discursos curriculares e buscando alternativas para compreender o multiculturalismo no ensino e na pesquisa. Dessa forma, Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades cria-se uma linguagem que permite a educadores, pesquisadores e trabalhadores culturais criticar e transformar as práticas sociais e culturais. Análises, concepções e experiências pedagógicas baseadas no pensamento multicultural no ensino e na pesquisa, se difundiram, em meados do século XX, pelo mundo ocidental, como forma de enfrentamento dos conflitos gerados pela globalização do capital e na tentativa de combater discriminações e preconceitos, que dificultam aos indivíduos e grupos acolherem e conviverem com a pluralidade e as diferenças culturais. Assim, autores como Homi Bhabha e Stuart Hall formularam várias teorias que, propondo outro olhar para a compreensão do mundo multiculturalizado, nos permite entender a relação entre sistemas e sujeitos dentro de um universo conflitivo, que envolve o espaço da pesquisa e do ensino. No mundo atual as questões que envolvem o termo cultura têm ganhado diferentes abordagens e são constantemente redimensionadas em várias esferas. As tentativas de compreender e responder esses questionamentos, que envolvem a cultura e sua produção, têm permitido diálogos com perspectivas que problematizam o multiculturalismo, como é o caso da teoria proposta por Homi Bhabha. Em seu livro O Local da Cultura (2005), Bhabha propõe pensar o limite da cultura como um problema de enunciação e atenta para a abertura da “possibilidade de outros tempos de significado cultural e outros espaços narrativos” (BHABHA, 2005, p. 45). A partir da análise da teorização, Bhabha defende o lugar híbrido da cultura na compreensão desta como enunciação, e busca operar com os conceitos de tradução, negociação, lugar e diferença. O autor articula um modo de pensar a nação como uma pluralidade e coloca o lugar de enunciação como rejeição às categorias puras e elege o híbrido como fio condutor. Para Bhabha (2005) o conceito de diferença cultural concentra-se no problema da ambivalência da autoridade cultural e na tentativa de dominar em nome da supremacia cultural. Conforme Bhabha, o hibridismo é uma ameaça à autoridade cultural, subvertendo o conceito de lugar e identidade pura da autoridade dominante por meio da ambivalência criada pela negação, variação, repetição e deslocamento. Esses traços do hibridismo fazem com que este transgrida todo o projeto do discurso dominante e exija o reconhecimento da diferença, questionando e deslocando o valor simbólico do discurso. Assim, Bhabha propõe o deslocamento da discussão da diversidade para a diferença cultural. A diversidade cultural é o reconhecimento de conteúdos e costumes culturais pré-dados. Mantida em um enquadramento temporal relativista, ela dá origem a noções liberais de multiculturalismo, de intercâmbio cultural ou da cultura da humanidade. Cada pessoa traz uma herança cultural significativa, experiências e práticas, valores, características e formação específica para o exercício de suas funções e para o viver de sua própria existência, e isso de- Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 133 termina a comunicação que trava no seu cotidiano, em todos os níveis e dimensões. E é em meio a esse cotidiano que a nação constrói sua narrativa. Como destaca Bhabha: “Das margens da modernidade, nos extremos insuperáveis do contar histórias, encontramos a questão da diferença cultural como a perplexidade de viver, e escrever, a nação” (2005, p. 227). Todo o pensamento de Homi K. Bhabha desenvolve-se no sentido de entender as fronteiras da cultura como uma problemática relativa à manifestação da diferença cultural. Isso implica ir além do reconhecimento e do acolhimento das diversidades, da crítica ao racismo, às discriminações e às exclusões. Para Bhabha, o conceito de diversidade nos leva somente a uma discussão filosófica, enquanto a ideia de diferença cultural nos leva à enunciação da cultura, onde estão as diferenças e discriminações que formam a base da trama de relações de poder e de práticas sociais (2005). No entanto, a diferença cultural não pode ser compreendida somente como um jogo de polaridades e pluralidades. Segundo Bhabha: a diferença cultural, como uma forma de intervenção, participa de uma lógica de subversão suplementar semelhante às estratégias do discurso minoritário. A questão da diferença cultural nos confronta com uma disposição de saber ou com uma distribuição de práticas que existem lado a lado, abseits, designando uma forma de contradição ou antagonismo social que tem que ser negociado em vez de ser negado (2005, p.228). Em O Local da Cultura, Homi Bhabha faz um questionamento sobre os conceitos de identidade e suas prerrogativas pós-coloniais. Para Bhabha, a questão da identificação nunca é a afirmação de uma identidade pré-dada, nunca é uma profecia autocumpridora - é sempre a produção de uma imagem de identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela imagem. A demanda da identificação implica a representação do sujeito na ordem diferenciadora da alteridade. A identificação é sempre o retorno de uma imagem de identidade que traz a marca da fissura no lugar do Outro. Bhabha afirma que a imagem é sempre um acessório da autoridade e da identidade; a imagem não deve ser nunca lida mimeticamente como a aparência de uma realidade. Para o autor, o acesso à imagem da identidade só é possível na negação de qualquer ideia de originalidade ou plenitude. Bhabha afirma ainda que a imagem, a um só tempo, é uma substituição metafórica, uma ilusão de presença e uma metonímia, um signo de sua ausência e perda (2005, p.86). Homi Bhabha afirma que o discurso colonial está preso a sua narrativa ideológica como signo da diferença cultural, histórica e racial. Esse discurso, conforme Bhabha, é um modo de representação paradoxal: “conota rigidez e ordem imutável, como também desordem, degeneração e repetição demoníaca” (2005, p.105). É esse processo de ambivalência que dá ao estereótipo colonial sua validade, ele garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes; embasa suas estratégias de individuação e marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística e predictabilidade que, para o estereótipo, deve sempre estar em excesso do que pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente (2005, p.106). 134 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Para Bhabha, a ambivalência funciona como estratégia discursiva mais significativa do poder tanto na periferia como na metrópole. Por isso, é importante reconhecer o estereótipo como um modo ambivalente de poder e conhecimento e questionar seu significado, que estabelece posições dogmáticas e moralistas que oprimem e discriminam. Conforme observa o autor, o objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. [...] o discurso colonial produz o colonizado como uma realidade social que é ao mesmo tempo um ‘outro’ e ainda assim inteiramente apreensível e visível. [...] ele emprega um sistema de representação, um regime de verdade, que é estruturalmente similar ao realismo (BHABHA, 2005, p.110). A população colonizada é tomada como causa e efeito do sistema e depende do círculo de interpretação e da demanda do discurso colonial. A cadeia de significação estereotipada é misturada, dividida, perversa e se apresenta de várias formas. Conforme observou Bhabha, O negro é ao mesmo tempo selvagem (canibal) e ainda o mais obediente e digno dos servos (o que serve a comida); ele é a encarnação da sexualidade desenfreada e, todavia, inocente como uma criança; ele é o místico, primitivo, simplório e, todavia, o mais escolado e acabado dos mentirosos e manipulador de forças sociais. Em cada caso, o que está sendo dramatizado é uma separação – entre raças, culturas, histórias, no interior de histórias [...](2005, p.126). Esses exemplos de crença contraditória, justo e injusto, moderado e ávido, vigoroso e escolado, estão colocados no conjunto simbólico do discurso colonial e levantam questões sobre o espaço simbólico da autoridade colonial. Para Bhabha, essas questões devem mostrar que o sujeito do discurso colonial, “no momento de projetar-se e se dividir, duplicar, de tornar-se o seu contrário, é um sujeito de tal ambivalência afetiva e perturbação discursiva que a narrativa da história só pode dar como provada a questão colonial” (2005, p.144). Em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall (2006) faz uma viagem pelas sociedades, desde o Iluminismo até os dias atuais, aprofundando as questões de identidades que envolvem o sujeito. Para o autor, três concepções muito diferentes de identidade do sujeito necessitam ser distinguidas em nossas sociedades: o sujeito do Iluminismo, o sociológico e o pós-moderno. O sujeito do Iluminismo apresenta-se como um indivíduo totalmente centrado, dotado da capacidade de raciocinar, cujo centro consiste num núcleo interior, que aparecia quando o sujeito nascia e permanecia basicamente o mesmo ao longo da vida. O sujeito sociológico reflete a complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do indivíduo não é autônomo, e sim construído nas relações sociais, onde as identidades são formadas. Por último, o sujeito pós-moderno, o qual é formado por várias identidades, muitas vezes contraditórias ou não resolvidas. Aqui, conforme observou Hall, “a identidade é definida Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 135 historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor do ‘eu’ coerente” (HALL, 2006, p.10-12). Sendo assim, o processo de identificação tornou-se mais provisório, variável e problemático. Segundo Hall, ocorre uma concepção de identidade mutável, transitória, contraditória e resultante das relações sociais entre os sujeitos. Para Hall: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. Assim, a chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (HALL, 2006, p. 11). Uma mudança estrutural está fragmentando as diversas identidades culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia e de nacionalidade, e determinando, assim, fronteiras menos definidas, provocando uma crise de identidade. Para Hall, as representações culturais do sujeito pós-moderno e fragmentado, formado por identidades temporárias, que pode ser identificado e se identificar com várias posições diferentes e contraditórias, podem ser denominadas de “jogo de identidades” (HALL, 2005, p. 18). O autor cita como exemplo o caso do presidente Bush que, em 1991, indicou um juiz negro de posição política conservadora à Suprema Corte dos EUA. Desta forma, o presidente, “jogando o jogo das identidades”, conquistava o apoio tanto dos negros quanto dos brancos. Destaca Hall: No julgamento de Bush, os eleitores brancos (que podiam ter preconceitos em relação a um juiz negro) provavelmente apoiaram o juiz porque ele era conservador em termos da legislação de igualdade de direitos, e os eleitores negros (que apoiam políticas liberais em questões de raça) apoiaram o juiz porque ele era negro. Em síntese, o presidente estava ‘jogando o jogo das identidades’ (2006, p. 19). Outro aspecto fundamental dessa questão da identidade está relacionado às características de mudança na modernidade tardia. Conforme Hall (2006), as sociedades modernas não contam com um centro articulador e organizador. Sendo assim, o conceito de identidade passa a ter caráter diferenciado em relação à forma iluminista e à sociológica. Hall cita Marx, Freud, Lacan, Saussure e Foucault como grandes desarticuladores desse sujeito que, com suas ideias, colocam as variadas possibilidades de identidades (HALL, 2006). O descentramento principal, segundo Hall, ocorre no trabalho do filósofo e historiador francês Michel Foucault, que produziu uma espécie de “genealogia do sujeito moderno”. Foucault destaca outro tipo de poder, que ele chama de ‘poder disciplinar’ [...]. O poder disciplinar está preocupado, em primeiro lugar, com a regulação, a vigilância é o governo da espécie humana ou de populações inteiras e, em segundo 136 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades lugar, do indivíduo e do corpo. Seus locais são aquelas novas instituições que se desenvolveram ao longo do século XIX e que ‘policiam’ e disciplinam as populações modernas – oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais, clínicas e assim por diante (HALL, 2006, p.42). Para Hall, o caráter abrangente dos regimes disciplinares do moderno poder administrativo coloca o paradoxo de que, quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito (2006). Dessa forma, é possível ver como Stuart Hall propõe os conceitos de sujeito e identidade da modernidade e da pós-modernidade e seus efeitos desestabilizadores sobre as ideias dessas modernidades. Por outro lado, questiona-se ainda como este sujeito fragmentado é colocado em termos de representação de suas identidades culturais. Para Hall, uma cultura nacional é um discurso, um modo de construir sentidos que influenciam e organizam nossas ações e nosso modo de nos ver. Hall cita o argumento de Benedict Anderson de que a identidade nacional é uma “comunidade imaginada” (apud HALL, 2006, p. 51). Questiona-se, assim, que estratégias de representação são acionadas para construir essa comunidade? Quais são as representações que dominam as identificações e definem a identidade de um povo? Hall responde a partir da seleção de cinco elementos principais. O primeiro deles é a narrativa de nação, tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Conforme Hall, essas fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação. Como membros de tal ‘comunidade imaginada’, nos vemos, no olho de nossa mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte (2006, p. 52). O segundo elemento selecionado por Hall dá ênfase às origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade. “Os elementos do caráter nacional permanecem imutáveis, apesar de todas as vicissitudes da história. Está lá desde o nascimento, unificado e contínuo, imutável ao longo de todas as mudanças, eterno” (2006, p. 53). O terceiro elemento apontado por Hall é a invenção da tradição. “Tradição inventada significa um conjunto de práticas, de natureza real ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado” (2006, p. 54). Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 137 O quarto elemento de narrativa da cultura nacional é o mito fundacional, que Hall explica como aquele que localiza “a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo ‘real’, mas do tempo ‘mítico’. Tradições inventadas tornam as confusões e os desastres da história inteligíveis, transformando a desordem em ‘comunidade’ e desastres em triunfos” (2006, p. 55). Por fim, como quinto elemento, Hall afirma que a identidade nacional é também baseada na ideia de um povo puro, original. Hall realça as sutilezas desse processo, mostrando suas ambiguidades e contradições, pois uma cultura nacional vive entre o passado e o futuro, num dado momento se dirigindo ao passado e suas glórias, e em outro momento tentando seguir em direção ao futuro. O espaço escolar e suas instituições de ensino formal, em seus diversos graus, têm sido o local de semeadura do pensamento multiculturalista. No entanto, esse espaço e suas instituições são organizados segundo uma perspectiva homogeneizadora que não contempla, na sua grande totalidade, a diversidade e suas implicações. Preconceito, discriminação, raça, gênero, exclusão são temas silenciados dentro dos estereótipos de padrões culturais sustentados, ao longo dos anos, por cientistas e instituições de ensino. Assim, a sensibilização para a diversidade cultural e a contraposição a estereótipos e preconceitos relacionados a gênero, raça, classe social, constituem-se no ponto de partida para o pensamento multicultural no ambiente da pesquisa e do ensino. A filosofia multiculturalista nos sistemas de ensino se coloca como uma oportunidade de reconhecer e valorizar a importância da diversidade étnica e cultural na configuração de novos estilos de vida, experiências sociais, identidades e oportunidades educativas acessíveis a pessoas, grupos, nações, etc. A multiculturalidade deve ser incorporada nas pedagogias educacionais para que diferentes falas e textos, dos mais diferentes grupos humanos, possam se fazer presentes. Para que esse espaço se desenvolva dentro da educação, faz-se necessário que haja uma ressignificação das estruturas curriculares que dão sustentação ao modelo atual de ensino e estimule novas reflexões e pesquisas sobre a formação de professores e pesquisadores, bem como, sobre as políticas educacionais. A partir de todo este contexto, para finalizar, deixamos os seguintes questionamentos: qual o papel da diferença cultural no ambiente do ensino e da pesquisa? Até que ponto os grupos afro-brasileiros têm conseguido representar a si mesmos no conjunto do patrimônio histórico cultural? 138 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Referências BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2005 DEBUS, José Carlos S. O cinema que pensa a Pedagogia: autonomia e emancipação das práticas pedagógicas nos filmes O Contador de Histórias e Entre os Muros da Escola. 2011. 103 f. Dissertação (Mestrado). Programa de pós-graduação em Ciências da Linguagem, UNISUL. Tubarão-SC, 2011. HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. _____. Da Diáspora. Trad. Adelaine La Guardiã, Ana C. Escosteguy, Cláudia Álvares, Francisco Rudiger, Sayonara Amaral. Belo Horizonte: UFMG, 2006a. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 139 Capítulo 3 Arqueologias, Gestão do Território e Diversidade Cultural 142 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Arqueologias Atravessando o Atlântico 1 Luiz Oosterbeek2 ...fazes povoado o mar, que leva naves, e as terras frutíferas fecundas… Lucrécio, De rerum natura Quando falamos de arqueologia transatlântica, não estamos a falar essencialmente de uma realidade material (sem dúvida existente, nas embarcações naufragadas em ambos os lados desse imenso mar salgado, ou nas mal conhecidas estruturas de habitat onde antes correram as lágrimas, mas também os sorrisos, dos escravos que alimentaram o chamado comércio triangular ou tricontinental). Estamos a falar mais de um conjunto de conexões, humanas, teóricas, socioculturais, que hoje se impõem porque a temática transatlântica é, estrategicamente, central nesse mundo em acelerada globalização. Um forma fácil de fugir pela tangente a esse difícil desafio seria a de reduzi-lo a um discurso essencialmente político, apoiado no fato de que a arqueologia, como qualquer ramo do saber aplicado, tem uma função crucial na construção das redes de relações interculturais, ou seja, não é, não poderia ser, uma área de conhecimento inocente. Concordando com esta perspectiva, discordo porém de pugnar por uma arqueologia directamente engajada, já que creio que a construção do saber de base racional é muito mais complexa e que, se é certo que o conhecimento é sempre relacional, as relações que cada um de nós carecemos de estabelecer para cada fito podem ser diversas, e muitas vezes contraditórias. Assim, creio que a sociedade beneficia-se mais com uma arqueologia que, enquanto arqueologia, não se preocupe com o engajamento, sendo no entanto desejável que os arqueólogos, enquanto cidadãos, saibam engajar-se e enxergar para além dos fragmentos de cultura material, que são os parcos documentos que conferem especificidade profissional ao nosso saber. 1 Texto preparando em decorrência do I Congresso Internacional da SAB, XIV Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira, Florianópolis, setembro de 2007. Originalmente publicado em: Oosterbeek, L. Arqueologias atravessando o Atlântico, IN: ARKEOS, vol. 28, pp. 9-16, 2010. 2 Instituto Politécnico de Tomar, Grupo “Quaternário e Pré-História” do Centro de Geociências (uID73 – FCT). Email: [email protected] Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 143 Este creio ser um dos primeiros contributos radicais para uma arqueologia transatlântica, uma arqueologia que tenderá a olhar para os vestígios das inter-relações que historicamente se foram estabelecendo entre a Europa, a África e as Américas, sem esquecer que, do ponto de vista da história da Humanidade, e não apenas da história recente, o primeiro desses continentes se chama, de fato, Eurásia. Por razões geológicas, mas também culturais: a Europa de quinhentos é construída sobre uma tradição civilizacional mediterrânica, fruto do cruzamento cultural de influências que incorporavam o Próximo Oriente Asiático, berço dessa civilização. E, se quisermos remontar à problemática das origens do povoamento humano das Américas, e quaisquer que sejam as perspectivas que alguns possamos ter sobre eventuais conexões transatlânticas, é consensual que elas não podem ser estudadas ignorando o quadro teórico que se construiu a partir das evidências de migração a partir da Ásia. Falar de arqueologia transatlântica é, então, em certa medida, abarcar o conjunto das grandes problemáticas da humanidade, e das representações e mitos que ela foi construindo para lhes responder, e é apenas uma opção de abordagem de olhares cruzados baseados em tradições de pesquisa que, creio, são complementares. Esta é, portanto, uma arqueologia que se não distinguirá essencialmente pelo objeto, e sim pelo enfoque. É nesse enfoque, pois, que vou me ater um pouco, levantando alguns temas que podem constituir elementos de união entre arqueólogos dos dois lados do Atlântico, num combate que creio ser decisivo para o futuro deste campo de saber racional. Um combate feito de várias frentes, várias arqueologias, e não isento de contradições internas e problemas éticos que temos de encarar. Destas, sem querer ser exaustivo, destacarei cinco. E a primeira dessas arqueologias é a mais recente mas, também, a que hoje suporta a progressão geométrica da nossa comunidade profissional: a arqueologia no salvamento e valorização de vestígios. Arqueologia, salvamento e valorização A arqueologia conheceu uma alteração brutal na sua praxis nos últimos 15 anos. De uma área de saber muito marginalizada, secundarizada, praticada por um número reduzido de pessoas (umas de muito elevada elaboração acadêmica, mas outras oferecendo, sobretudo, especulações sem fundamento racional), a arqueologia cresceu demograficamente, com a imposição, em grande parte dos países, e também no Brasil, de legislação protetora do patrimônio. Esta arqueologia, chamada de salvamento, ou profissional, ou pública, é no entanto muito diferente da arqueologia que nossos mestres praticavam e 144 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades nos ensinaram. Ela não é uma arqueologia orientada para a construção de passados a partir do exaustivo e rigoroso escrutínio de todos os documentos disponíveis, e sim uma arqueologia que, para esta sociedade em aceleração, deve fornecer respostas rápidas, curtas e de fácil digestão. O crescimento da arqueologia, que todos saudamos, comporta pois o perigo de dissolvê-la em uma cadeia de produção de pequenas histórias, de breves efabulações, onde o espaço para a única coisa que realmente interessa, o tempo da reflexão, tende a ser destruído. Este é um processo solidário das tendências da actual sociedade da comunicação massiva, onde o acesso a toda a informação é tão pleno que quase ninguém consegue se entender no caos de dados em que é mergulhada. Por isso, paradoxalmente, a alienação, no sentido althusseriano do termo, nunca foi tão forte na Humanidade. É nossa obrigação evitar que essa deriva alienante se imponha. Certamente, é preciso responder às demandas da sociedade, e a vida acelerada nos obriga a algum pragmatismo. Mas não se pode comprometer o essencial, e o essencial é a construção de discursos plurais, mas racionalmente coerentes e fundamentados, sobre o passado. A defesa da razão é, talvez, a causa mais importante deste início de milênio. O grande confronto que hoje se instala nas nossas sociedades não é um choque de civilizações, mas é o perigo de curto-circuito no modo racional e, por que não dizer, evolutivo, do pensamento científico. E aqui o eixo Atlântico tem, de fato, maior tradição, e, por isso, maiores responsabilidades perante o coletivo humano. A cisão cartesiana, que fundou as ciências na racionalidade e afastou a emoção, teve os seus efeitos perversos, como explica Antônio Damásio, mas sem ela não teria havido o extraordinário progresso científico e tecnológico dos últimos 400 anos. Esse progresso construiu-se, sobretudo, no eixo Atlântico, enquanto outras longitudes preservavam vertentes que por cá se reprimiam e que hoje sabemos serem, também, essenciais. Temos, nesse domínio, muitos entraves, mas também alguns apoios essenciais. Em primeiro lugar, o interesse que hoje foi gerado pela arqueologia se deve à crise das macroestruturas identitárias, como os Estados-Nação, em prol dos localismos, que necessitam de âncoras que lhes confiram um “sentido de si”, o que a arqueologia, melhor que outros campos da memória, pode oferecer de forma mais universal. Em grande parte do planeta, importantes culturas não deixaram vestígios escritos ou monumentais, e a arqueologia as resgata e lhes confere dignidade. Isso é particularmente evidente em África e em grande parte da América Latina, mas é igualmente verdade na expressão das identidades regionais e locais na Europa ou na Ásia. Não por acaso, em recente pesquisa se demonstrou que 51% dos postos de trabalho gerados no amplo campo do patrimônio cultural se destinam, nos Estados Unidos da América, a arqueólogos, contra apenas 10% de arquitetos especializados neste campo. Esta viragem do mercado laboral, que se assiste na Europa e seguramente fará seu caminho no Brasil e outros países, é, pois, um primeiro aliado fundamental para a nossa causa. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 145 Mais importante, no entanto, é o fato de que a natureza do saber arqueológico é, em grande parte, socialmente participada. Todos neste congresso sabemos que não há arqueologia sem trabalho de campo e de laboratório, e que nesses trabalhos existe sempre uma componente de escolha dos elementos a registar, ou seja, uma componente de destruição dos vestígios materiais, que exige uma permanente reflexão por parte dos atores dessa destruição. Sabemos, também, que nesse trabalho participam, em maioria, estudantes, voluntários, operários e muitos outros que não são os especialistas, e que por isso os arqueólogos cedo se habituaram a construir discursos pragmáticos que orientassem esses atores por forma a que o seu trabalho se apoiasse num discernimento orientado. As conclusões finais, que lemos e escrevemos em livros que aprendemos a citar, têm na base uma participação da sociedade que é, por estas razões, bem mais ampla do que em outros domínios, como a história, a arquitetura, a geografia ou a antropologia. E esse é nosso segundo, e mais fundamental, aliado. Uma arqueologia rigorosa, no entanto, apoia-se na preocupação social que a determina hoje (e que é chamada de “patrimônio”) mas dá as respostas que lhe são específicas: a caracterização tecnomorfológica dos artefatos e estruturas, a compreensão da sua diagênese, a interpretação dos contextos no espaço em que se inserem e a abordagem dos processos de transformação no tempo. Qualquer programa de arqueologia tem de ter estas como primeiras questões, mesmo que a pergunta que justifica os projetos seja bem mais simples: “tem alguma coisa aí?”. Isto nos leva a uma segunda frente de combate, a da arqueologia e patrimônio. Arqueologia e patrimônio A arqueologia não é uma área de saber que se ocupa do patrimônio. O patrimônio é um conceito de propriedade e de apropriação de certos vestígios, materiais e imateriais, do passado mais ou menos remoto. A arqueologia é um enfoque interdisciplinar cuja especificidade é o de estudar com rigor as expressões materiais dos comportamentos adaptativos humanos, procedendo sobretudo do cruzamento das ciências do Homem com as ciências da terra e da vida. O olhar arqueológico se importa com os contextos e, seguindo várias especialidades, ele visa à construção mental de paleopaisagens. O arqueólogo é alguém que, quando olha por uma janela, tenta perceber que paisagem estaria lá 100.000 anos antes, ou 10.000, ou 10 dias, ou apenas ontem. Para isso, ele aborda a realidade de forma total, absoluta e integradora, ele visa à abstração, pois só esta permite um processo de compreensão rigorosa, ele não exclui à partida nenhuma evidência, e não se deixa iludir pela aparência de um ou outro artefato, desconectado do seu contexto. 146 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades O patrimônio é outra coisa. Ele é uma coleção de objetos, mitos, monumentos, palavras que, em função de processos históricos particulares, ganharam a capacidade de federar interesses distintos em torno de um mesmo sentimento identitário. Por isso, não poderia haver patrimônio da Humanidade antes do século da máxima globalização; é que sem essa globalização não haveria Humanidade, mas apenas guaranis, portugueses ou inuit. O patrimônio é algo de plástico, é um terreno de disputa, de conflito, é um território menos inocente do que o da arqueologia (não que esta o seja, obviamente). É significativo que a União Europeia, no seu esforço nem sempre confessado de construir uma identidade europeia, esteja agora a discutir a criação de uma Lista do Patrimônio Cultural Europeu. A arqueologia do patrimônio, ou seja, a arqueologia socialmente promovida por causa da expansão da noção de patrimônio, vive assim numa contradição, entre o interesse particular da maioria dos cidadãos e a natureza radicalmente global dos vestígios que só podemos estudar como contextos. Também aqui, o eixo Atlântico está mais avançado no quadro de uma reflexão mundial sobre como proceder. A resposta a esta contradição se chama “educação patrimonial”, e o Brasil possui a melhor legislação no planeta, pois fez dela uma exigência e não apenas um adereço. Como refere o historiador José Mattoso, “(a noção de patrimônio) só poderá ter o efeito de ligar pessoas e comunidades desde que tenha alguma influência sobre comportamentos e modos de viver. Devem criar-se vínculos entre os vestígios preservados do passado e as pessoas. Transformar a memória monumental em memória social”. Nos projetos que é desejável que venhamos a partilhar em concreto, com equipas transdisciplinares e transatlânticas, a educação patrimonial deverá ser um eixo privilegiado para contribuir para a elevação da cultura racional, científica e tecnológica dos cidadãos. Também aqui se trata de combater a alienação, promovendo um patrimônio que seja fundador de identidades descentradas e não de identidades xenófobas. O que nos leva a uma terceira plataforma, a da arqueologia e identidades. Arqueologia e identidade Sabemos hoje que o passado é uma construção ideológica produzida pela sociedade e em permanente reelaboração. Os arqueólogos são técnicos especializados nesse processo, e essa é a sua função social, mas não devem esquecer que o passado “verdadeiro” é aquele que a sociedade percepciona, e que o ato de percepcionar é uma relação, e não uma mera assimilação. Os arqueólogos têm, assim, uma função insubsPatrimônio Cultural, Territórios e Identidades 147 tituível, mas que só é útil na medida em que convocam toda a sociedade a participar no processo; se não o fizerem, a sociedade terá do passado uma percepção divorciada do saber arqueológico, e esse é o drama da torre de marfim. Pelo contrário, se se construírem mecanismos de participação social na produção do saber arqueológico, então este último será mais assumido pela sociedade no seu conjunto e, dessa forma, se tornará mais útil e mais eficiente. Será um saber de raiz científica, racionalista, e que tomará a investigação dos arqueólogos como unidade nuclear, mas será, também, um saber temperado pelos pontos de vista locais, com uma dimensão emocional recuperada. Como refere o já citado José Mattoso, “A História é uma forma prática de mostrar como uma identidade, individual ou comunitária, se forma. Como o momento passado tem alguma coisa a ver com o momento presente e o momento seguinte. A relação entre essas três etapas não é evidente. A História é uma resposta prática à pergunta ‘como se processa a identidade?’ (Mattoso, 1998). De fato, uma arqueologia assim orientada participa diretamente da construção das identidades das comunidades humanas, o que hoje significa criar planos de gestão integrada, que as leis de planeamento preveem. São três os principais atores do processo. Por um lado, os arqueólogos e outros especialistas da memória, junto com as associações de defesa do patrimônio; eles se preocupam sobretudo com a investigação e conservação. Por outro lado, os empresários e gestores do território, que se preocupam sobretudo com a valorização para o uso. Mas o terceiro ator são os usufrutuários, que normalmente não são escutados pelo primeiro grupo (que deles desconfia) e que, em consequência, são apenas condicionados pelo segundo. Criar mecanismos de participação dos usufrutuários na definição do processo (e não apenas no consumo dos produtos finais) é positivo para os interesses da investigação e conservação, pois eles são naturais aliados de uma estratégia compatível; mas é igualmente positivo para o mundo empresarial, pois o maior envolvimento da população neste processo aumentará os níveis de frequentação, permitindo assegurar estratégias de crescimento sustentável. Finalmente, esta é única forma de os cidadãos poderem, de fato, assumir a relevância dos vestígios arqueológicos. Um dos eixos em que as arqueologias transatlânticas devem refletir é, precisamente, o das conexões entre cultura, identidade e economia. Em rigor, poderemos dizer que a cultura é o conjunto de formalizações e ritualizações dos mecanismos de interação e adaptação das sociedades humanas, sendo que tais mecanismos são a economia. As duas, pois, não são dissociáveis, e a arqueologia, ao se basear na materialidade para se acercar do imaterial histórico, é um campo privilegiado de reflexão. Os entendimentos sobre esses mecanismos são diversos: na Europa, tende-se a desistir de uma ambição de caracterização cultural plena, em prol do rigor arqueométrico, enquanto na América Latina é bem mais 148 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades forte o enfoque antropológico de tradição etnológica. Na Europa, a economia vista pela arqueologia tende a se restringir à descrição das forças produtivas, enquanto que na América Latina o interesse se direccionou mais para as relações de produção. Isto nos conduz a uma quarta arqueologia transatlântica, a das relações entre Arqueologia e Economia. Arqueologia e economia Como se disse, o crescimento da arqueologia como profissão tem sido feito segundo uma lógica diversa da arqueologia tradicional, de “projeto”. E com esta nova lógica nasceu a arqueologia empresarial e, de uma forma geral, a atual dinâmica de expansão da arqueologia na sociedade (que ultrapassa a História da Arte ou a Conservação, por exemplo). A arqueologia faz, hoje, parte da economia, e participa na criação, ou delapidação, de recursos. Não só vetores como a identidade e a memória, mas também o crescimento econômico (por via da associação da arqueologia ao turismo), são os principais pilares do crescimento da profissão. A alteração do paradigma profissional exige a alteração do paradigma formativo. A sociedade precisará, cada vez mais, de “técnicos da memória”, mas, em contextos recessivos, irá procurá-los sobretudo nas vertentes de animação e turismo. Se o Ensino Superior da Arqueologia não souber incorporar essas competências no perfil dos graduados e na definição da profissão, o futuro poderá ser muito difícil. É recomendável que na graduação se possam formar arqueólogos com uma matriz associada a uma das principais áreas do saber: História, ou Antropologia, ou Ciências da Terra ou Ciências Naturais. Na Europa, formam-se arqueólogos em qualquer destas áreas, e seria “perder por falta de comparência” excluir qualquer delas por princípio. Quanto às pós-graduações, elas deverão desenvolver competências mais específicas, e acolher graduados de primeiros ciclos diferenciados. Neste domínio, a sociedade será exigente na qualidade, e as empresas poderão ajudar a identificar especialidades, temáticas ou técnicas, que seja vantajoso desenvolver em nível de Mestrado. A capacidade de resolver questões concretas (prospecção, escavação, cartografia, conservação, didática, etc.), e sobretudo a flexibilidade, são requisitos que me parecem cruciais. Aos quais haverá que asso- Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 149 ciar a capacidade de reportar hierarquicamente e, em menor quantidade, a capacidade de liderar. Note-se que o ensino tradicional, pelo menos em teoria, está orientado sobretudo para esta última vertente, essencial mas, em termos numéricos, menos relevante no quadro da massificação. A sociedade olha para a arqueologia com o olhar romântico da memória, mas cada vez mais com o olhar pragmático do turismo e da visibilidade. A arqueologia, na medida em que abraçou todas as materialidades do território, é hoje o principal instrumento da sociedade para se perspectivar a si mesma. E certos sítios, museus ou eventos são oportunidade de projeção de imagem, factor essencial no mercado. A sociedade precisa, pois, de arqueólogos atentos a este fenômeno, capazes de nele intervirem na ótica da preservação dos bens arqueológicos e do não abastardamento do discurso interpretativo. As oportunidades estão cercadas de opositores, com os quais é preciso negociar com firmeza, afirmando uma comunidade profissional plural, flexível e rigorosa (porque assim será mais forte e crível). Mas este é um campo em que, mais uma vez, plataformas transatlânticas estarão melhor apetrechadas para contribuir para uma reflexão mais rica e eficiente. É neste diálogo com os interesses da sociedade, nesta plena imersão da arqueologia na vida real que é a economia, que se joga o futuro de nossa disciplina, que se joga o seu estatuto epistemológico, o que nos conduz à quinta e principal dimensão deste diálogo: a da relação entre Arqueologia e Conhecimento. Arqueologia e conhecimento Talvez a primeira área de saber “pós-moderno” tenha sido a arqueologia, que desde a sua formação como disciplina autônoma, no século XIX, conviveu mal com o espartilho disciplinar de uma modernidade racionalista que, em meados desse século afirmara já a plenitude das suas potencialidades e se preparava para, até ao final do século, se esgotar enquanto via de saber “positivo”. A “inquietação” inerente à investigação nos mais diferentes campos do saber, acelerada depois da década de 70 no século passado, faz parte da matriz fundadora da arqueologia. Uma área do saber que se alimentava do classicismo, da geologia e da etnografia ao mesmo tempo; um campo de estudo que se reconhecia simultaneamente nas ciências do Homem, da Terra e da Natureza. Uma disciplina tem um objeto, um corpus metodológico e uma matriz teórica explicativa, dizem os manuais. Mas, qual o objecto da arqueologia? A que perguntas fundamentais procura responder? É certo que 150 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades lhe reconhecemos alguns métodos, sobretudo na abordagem dos vestígios materiais do passado, mas essa perspectiva “metodologizante” foi a que lhe recusou, por tanto tempo, um estatuto para além do de mera auxiliar da história. Em que se distingue o seu objeto do desta última? Ou do da antropologia, quando falamos em arqueologia social? Ou do da geografia, quando falamos de arqueologia espacial? Ou do da paleontologia humana, quando tratamos de estabelecer a nossa origem? Onde estão as “fronteiras” da arqueologia? A arqueologia não existe fora de cada uma destas suas “irmãs-rivais”. É por isso que não é uma disciplina; é por isso que é, antes de mais, uma forma de entender o Ser humano no mundo e, nessa medida, uma área de saber pós-moderna, como o viriam a ser a ecologia ou as ciências da informação e da comunicação. A crise da fé positivista, no plano epistemológico, associada à emergência do discurso cultural humanístico, tendente a resgatar a dignidade das expressões culturais menos monumentais (com evidentes conotações políticas), alargou de forma insuspeitável o território da arqueologia. A arqueologia, sobretudo a partir da década de 70, foi-se assumindo como instrumento de recuperação de paisagens fósseis, feitas de um sem número de indícios, de sombras, entre as quais se começou a ver pluralidades culturais onde antes se viam apenas culturas discretas ou processos evolutivos. Esta nova forma de encarar o olhar arqueológico sobre o território, que em rigor coexistia com outras desde o século XIX mas que só agora se torna dominante, levou a associar a arqueologia à ecologia, conferindo-lhe por essa via uma nova influência social no quadro dos estudos e minimizações de impactos ambientais. É difícil não ver neste processo o ressurgir da arqueologia como variante da biologia, que agora procura conservar vestígios como quem conserva ninhos de cegonhas ou elefantes em perigo de extinção. É, também, uma arqueologia cada vez mais antropológica, ou seja, mais preocupada com a variabilidade da espécie do que com a sua historicidade evolutiva. E é uma arqueologia assumidamente geográfica, que recusa a visão do patrimônio como um conjunto de peças que se podem recortar e que afirma a unidade indissolúvel do todo. Concluindo Estas cinco arqueologias, do salvamento e valorização, do patrimônio, da identidade, da economia e do conhecimento não esgotam as abordagens possíveis. Poderíamos falar de arqueologia e etnicidade, ou de arqueologia e gênero, ou ainda de arqueologia e globalização. Mas nestas últimas palavras gostaria de sublinhar que nenhuma delas é um fim em si mesma, todas são apenas caminhos para buscar respostas, e novas perguntas, sobre os problemas que desde o início justificaram a especificidade do nosso saber. E, Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 151 nesse plano, só há arqueologia quando há projetos concretos articulados com problemáticas históricas. O caminho da arqueologia transatlântica é, pois, o de aprofundar as complementaridades teóricas nas cinco arqueologias que referimos, e outras, mas fazê-lo da única forma que a arqueologia sabe progredir: aplicando o seu saber em territórios concretos, confrontando metodologias de estudo da cultura material. Teremos aí um terreno tão imenso como o oceano que nos une e separa. Desde os temas diretos, como o estudo dos sítios relacionados com o comércio de escravos ou com a construção naval, até à constituição de equipes que, trabalhando na Europa, em África ou na América, sejam não apenas transdisciplinares, mas transcontinentais. Este congresso, em diversas sessões, apresentará passos, ainda tímidos, nesta direção. Poderemos ir muito mais longe, se soubermos construir redes de formação, pesquisa e conhecimento que saibam questionar a arqueologia sem se transformarem em meras especulações politicamente corretas e para-filosóficas. Espaços de discussão e intervenção, como a UISPP para a Arqueologia, ou o Herity para a Gestão de Qualidade do Patrimônio, são exemplos dessas redes, para novos caminhos. Pois o caminho que, creio, deverá ser trilhado, é o de sermos cada vez mais especializados e não o de nos dissolvermos noutras formas de olhar o mundo que nos rodeia, perdendo a diferença que nos confere alguma, eventual, utilidade. Referências MATTOSO, José. A Identidade Nacional. Lisboa: Gradiva/Fundação Mário Soares, 1998. 152 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Museu de Arte Pré-Histórica: Continuidade, Inovação e Desenvolvimento Sustentável Luiz Oosterbeek e Sara Cura1 Pontos de partida Em 2005, o Museu Municipal Dr. João Calado Rodrigues, inaugurado em 1986, reabriu após uma profunda reestruturação que resultou essencialmente da parceria entre a Câmara Municipal de Mação e o Instituto Politécnico de Tomar (IPT). O projeto do IPT, desde o início da década de 1990, era conseguir articular quatro dimensões que estão, no ordenamento jurídico-institucional, separadas, com grave prejuízo para o patrimônio e para os cidadãos: a investigação (essencial para a identificação e compreensão do patrimônio), a educação (essencial para a formação de técnicos especializados mas, também, para a formação global de uma consciência patrimonial na sociedade), a preservação (crucial para que os bens identificados se conservem no tempo) e o usufruto do conjunto dos cidadãos (razão de ser de todos os anteriores). Nesta base, o objetivo era criar um centro de investigação de excelência, que se articulasse de forma estreita com o desenvolvimento regional. Em 6 de setembro de 2000, a escassos dias do congresso da Associação Europeia de Arqueólogos, era descoberta uma gravura paleolítica no vale do Ocreza, em Mação, no âmbito de uma colaboração entre o CEIPHAR2 e o ex-CNART3. Ao pedido de colaboração, que então foi feito pela equipe do CEIPHAR à Câmara Municipal de Mação, no sentido de preservar os vestígios rupestres, respondeu aquela com uma proposta de colaboração do Centro na reorganização do Museu de Mação. A lógica da reestruturação foi, desde o início, paralela às preocupações dominantes na esfera do patrimônio: o eixo não foi nem a conservação das coleções e sítios, nem a investigação, e sim a criação de uma dinâmica de construção de conhecimento difusa, catalisada pelo patrimônio arqueológico. Neste quadro, as necessidades de conservação e de investigação surgiram como instrumentos para uma apropriação so- 1 Instituto Politécnico de Tomar. Museu de Arte Pré-Histórica de Mação. Instituto Terra e Memória. Grupo “Quaternário e Pré-História” do Centro de Geociências (uID73 – Fundação para a Ciência e Tecnologia). 2 Centro Europeu de Investigação da Pré-História do Alto Ribatejo, instituição de pesquisa científica criada em 1994. 3 Centro Nacional de Arte Rupestre, organismo criado na dependência do Ministério da Cultura após um balanço negativo da capacidade do Estado em atuar de forma eficiente na defesa do património rupestre. Foi extinto cerca de uma década depois. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 153 cial de qualidade do patrimônio arqueológico, que em última análise era, e é, considerada por sua vez como um instrumento de cidadania, num quadro do que viríamos a designar por Gestão Integrada do Território, ou seja, de uma intervenção na cultura e patrimônio que visava ir para além dessas dimensões, contribuindo para combater a alienação e fomentar a consciência crítica dos cidadãos na articulação das dinâmicas sociais, ambientais e econômicas. O Museu reabriu em 2005 com um novo eixo temático para a “casa-mãe” (a arte rupestre associada aos primórdios da agricultura) e projetando extensões museográficas em diversos pontos do Concelho. A nova exposição permanente, reduziu-se na amplitude temática e artefactual (Neolítico e Calcolítico), possibilitando um discurso sobre a relação entre o comportamento humano e o seu contexto ambiental e climático, que consente uma conexão direta com as preocupações da sociedade atual e o ocaso do “mundo rural”, que ainda é o alicerce de muitas identidades. Sobre este eixo, que valoriza essencialmente a didática da importância da tecnologia e da racionalidade na sociedade, foram organizados os serviços educativos e todos os projetos didáticos. Subsequentemente, as exposições tátil (2008) e virtual (PACAD, ou Programa de Animação Científica e Artística Digital – 2009) consolidaram esta estratégia: o Museu, nas suas várias exposições, desenvolve uma cadência conceitual que retoma sempre as mesmas temáticas, a partir de pontos de vista e de suportes sensoriais distintos: tempo (origens da agricultura, mudanças climáticas e ambientais, inovações culturais a artísticas), espaço (o Tejo, os recursos naturais e sociais) e causalidade (a liberdade de escolha e as suas condicionantes, a inovação e o papel central da tecnologia e da educação para a espécie humana). Em 2011, uma nova exposição, emergindo das coleções dos espaços de memória que se foram constituindo com as populações das oito freguesias de Mação, assinala a partir de agosto um encontro conceitual e tecnológico entre o saber acadêmico e o conhecimento secular e a identidade plural da sociedade. A arqueologia e a pré-história são afirmados como instrumentos úteis para a sociedade atual, na construção de novas estratégias adaptativas e novas soluções de governança. Linhas estruturais e fundamentos A primeira linha estruturante do Museu é a Investigação, sobre as suas coleções e sobre todo o território. A Conservação e a Formação são, indissociavelmente, a segunda. A terceira linha de ação é a Comunicação, não apenas no meio acadêmico, mas num quadro social global. A quarta linha corresponde 154 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades aos Serviços que o Museu tenta prestar à comunidade, para além das dimensões do estudo, conservação e disseminação cultural. Estas linhas estruturais assentam em vários fundamentos de continuidade (três primeiros) e de inovação (não estamos a dizer nada de novo, a inovação diz sobretudo respeito à sua implementação de forma sequenciada e permanente). Também por essa via se procura afirmar uma lógica de gestão do território e do conhecimento que assume como nuclear a inovação, mas não se dispersa nela, isto é, não ignora que só a continuidade e o “trabalho de fundo” a permitem de forma efetiva. Rigor, exigência, dificuldade, aversão a uma lógica de “museu-espectáculo” em prol de um “museu de proximidade e de debate” são opções que reforçam este caminho, que desde 2009 se começou a construir, em rede, com diversos pólos no Brasil, e se alargará futuramente a outros municípios em Portugal, mas também a outros países na América do Sul e em África (usando em particular o sistema PACAD). Prioridade à conservação/investigação Esta é feita desde o plano local, não apenas estudando os vestígios arqueológicos diretamente ligados aos temas de investigação dominantes no Museu (Arte Rupestre, Quaternário e indústria lítica, Tecnologia cerâmica, Povoamento, Ambiente e Cronologia, Patrimônio, Teoria) mas também o conjunto do patrimônio cultural do Concelho. O Museu e o IPT, no âmbito do Grupo de Quartenário e Pré-História do Centro de Geociências (unidade 73 da FCT), coordenam projetos não apenas em Mação e no vale do Tejo, mas também noutros países Europeus (Espanha, Itália, Grécia), na América Latina (Brasil, Chile e Colômbia) e em África (Senegal, Namíbia e Angola). Esta diversidade de projetos reforça o caráter global do Museu e mais uma vez contribui para uma dimensão nova de Mação, radicada na convicção de que no quadro atual é possível, e mesmo desejável, que projetos de grandes dimensões possam ser coordenados e centralizados fora dos grandes centros urbanos. Inserção estratégica no território e na população local e regional O programa do Museu de Arte Pré-Histórica de Mação assume a população local como sua primeira prioridade, numa ótica que intervém na reorganização social. O papel do Museu é de promover espaços de encontro, de reflexão, de construções de conhecimento e de novos conceitos, e de elaboração de juízos críticos. Por isso, quando se iniciou o processo de reorganização do Museu, em 2002, começou-se por elaborar um extenso inquérito à população, tendo a sua estratégia sido apresentada e Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 155 discutida diversas vezes, incluindo na Assembleia Municipal, no Executivo Municipal e em diversas freguesias, nos anos seguintes. As iniciativas do Museu são orientadas por critérios acadêmicos, mas sempre em diálogo com a população, e no pressuposto de que o Museu deve servir ao conjunto da população e não apenas aos seus visitantes e utilizadores. Intervenção social A preocupação de atrair a população para o Museu reveste-se essencialmente de duas formas: por um lado, o Museu passou a ser um espaço de debate estratégico sobre as questões centrais que afetam a população, em todos os níveis (a desertificação, a floresta, a violência doméstica, etc); por outro lado, o Museu e a Câmara Municipal promoveram atividades que trouxeram a grande maioria dos habitantes do município para dentro do espaço museográfico (desde logo, convidando toda a população para os momentos mais simbólicos, como inaugurações, mas também promovendo convívios lúdicos e interculturais no seu interior). Exigência de qualidade acreditada e permanentemente avaliada em nível nacional e internacional O Museu de Mação viu aprovados todos os elementos de avaliação solicitados pela Rede Portuguesa de Museus, de que faz parte desde 2010. Foi alvo de um processo de avaliação e certificação internacional pela organização HERITY e é sede dos Cursos/Seminários de Gestão de Qualidade do Patrimônio Cultural e de Arte Rupestre, apoiados pela Comissão Europeia, que em 2008 lhes atribuiu o Prêmio Ouro do Programa Erasmus. A certificação Erasmus Mundus (2004-2013) e a integração na Rede Portuguesa de Museus (2010) são outros registros de qualidade e acreditação do projeto do Museu, em especial na sua parceria estratégica com o Instituto Politécnico de Tomar e outras instituições acadêmicas. Subordinação da didática aos conteúdos decorrentes da investigação Todas as visitas são guiadas (exceto se os visitantes pedem para circular sem acompanhamento) e orientadas na perspectiva da problematização, sendo que esta varia de acordo com os interesses e formação de quem guia e de quem visita, visando transformar as visitas em momentos de reflexão e de debate, e não mero “consumo de informações”. O mesmo princípio norteia o Projeto Andakatu, de ensino da arqueologia pelas artes e ciências. Neste caso, um personagem que se veste com «roupas» do Paleolítico 156 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Superior ou do Neolítico envolve os visitantes em ateliers de experimentação (talhe de sílex e quartzito, cerâmica, pintura, culinária…), não de forma meramente lúdica, mas inscrevendo essas experimentações no âmbito dos programas de investigação sobre tecnologias pré-históricas, que o Museu e o IPT desenvolvem. Privilegiamos a construção de juízo crítico e não reduzimos a didática a uma popularização simplista dos resultados da investigação, procurando envolver os utilizadores do museu (jovens e adultos), sem formação específica em arqueologia, nos problemas da investigação científica. Compreensão da dimensão global e identitária do patrimônio O Projeto do Museu procura levar os seus visitantes e utilizadores a olhar para o passado em retrospectiva e à distância, para que estes vejam que há muita convergência para além das diferenças que estudamos. O comportamento humano sempre se tratou de um jogo social e intelectual de interação com o meio ambiente. A arqueologia e o patrimônio reforçam a noção de unidade da espécie humana, servindo sobretudo para a compreensão da relevância das materialidades na construção cultural, possibilitando a cada cidadão uma relação mediada, refletida, com o passado e, através dessa reflexão, a compreensão dos mecanismos de convergência e diversidade culturais. Estratégias de ação Os mencionados fundamentos têm diversas estratégicas de ação, cuja implementação foi cronologicamente faseada, de acordo com as prioridades programáticas do Museu e das respectivas capacidades humanas e financeiras. Conservação e formação Todos estes projetos funcionam graças à concentração em Mação, através do Mestrado em Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre (IPT/UTAD), do Mestrado em Técnicas de Arqueologia (IPT) e do Doutoramento em Quaternário, Materiais e Culturas (UTAD), de mais de uma centena de investigadores, mais de 25% dos quais beneficiários de diversas bolsas de investigação (cerca de cinco dezenas de mestrandos, quatro dezenas de doutorandos e outras três dezenas de investigadores). Ao concreti- Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 157 zar projetos aparentemente longe de Mação, em diversos continentes, o Museu reforça a realidade local, promovendo designadamente uma inserção de estudantes e professores provenientes de mais de duas dezenas de países, no espaço sociocultural de Mação; nesta medida, tem-se conseguido uma adesão crescente da população (naturalmente mais cética num primeiro momento) à dinâmica que se vai criando. Essa é a base mais relevante para uma efetiva estratégia de conservação do patrimônio, que não dispensa naturalmente os recursos laboratoriais orientados para as coleções e os sítios diretamente protegidos pelo Museu (incluindo um percurso de 14 quilômetros com arte rupestre e o seu contexto), mas se apoia na compreensão da população sobre a importância de tal conservação. Investigação multidisciplinar e internacional 4 Em diversas freguesias, incluindo a sede do Concelho, o Museu apoia a organização de espaços que reúnem elementos de cultura material locais, associados a memórias de vida de cidadãos que vivem nessas localidades. Intitulados “Espaços de Memória”, têm o triplo objetivo de destacar a importância do saber acumulado pelos mais idosos, que é sistematicamente negligenciado na sociedade atual, promover o seu contato com os mais novos e, finalmente, construir conceitos como o de cultura material, essenciais para a apropriação social do próprio Museu. 158 Em virtude dos programas de formação e investigação estruturados em diversas parcerias, o Museu desenvolve e colabora, atualmente, em projetos de intervenção no Alto Ribatejo, em Portugal (no domínio do Quaternário, do Megalitismo e da Arte Rupestre), em cinco Estados do Brasil (projetos de arqueologia da paisagem, gestão do patrimônio e gestão do território em Santa Catarina, São Paulo, Piauí, Maranhão, Minas Gerais e Rio de Janeiro, na base de parcerias com universidades daquele País, e com apoio da Comissão Europeia e de autoridades e empresas brasileiras), na Colômbia (em parceria com o GIPRI, grupo de investigação em arte rupestre), no Senegal (estudo de formações quaternárias, em colaboração com o Instituto Fundamental da África Negra e com a Universidade de Dakar) e em Angola (Arte Rupestre da Região do Ebo). Estes projetos têm apoios diversos, nacionais (como a Fundação para a Ciência e Tecnologia) e internacionais (os respectivos Países e a União Europeia), e permitem afirmar Mação/IPT como o único centro de investigação e gestão do Patrimônio em Portugal com uma dimensão efetivamente internacional. Comunicação diferenciada No plano comunicacional, a principal preocupação é a diferenciação de discursos, de forma a adaptá-lo aos diferentes interlocutores, sem nunca prescindir de um conjunto de eixos centrais, que configuram as temáticas da exposição permanente (paisagem, tecnologia, caça-recoleção, clima, mundo rural, agro-pastoralismo, complexificação social, arte rupestre, história, identidades, inovação, desenvolvimento), os circuitos arqueológicos e os Espaços de Memória4. O objetivo do Museu é o de construir conhecimento, não apenas no meio acadêmico, mas no quadro social global. Este desiderato implica a elaboração de planos de comunicação e didática, que incorporam os serviços educativos já mencionados, mas se prolongam na discussão dos critérios de Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades legendagem das exposições, na elaboração dos diálogos que estruturam as visitas guiadas (mais de 90% do total de visitas) ou a relação com a comunicação social, que tem um papel crucial na afirmação do Museu com pólo de diálogo e inovação cultural e social. Relação com a comunidade A estratégia de instalar em Mação um pólo de investigação (apoiado por uma biblioteca especializada, com mais de 50 mil títulos), estimulando a residência de mestrandos e doutorandos, tem um grande impacto na vila. O Museu tem actualmente cerca de 15 mil utilizadores anuais, atingindo a equipe várias dezenas de pessoas, muitas das quais com bolsas de investigação atribuídas por diversas entidades, e residindo na vila. Desde meados de 2007 que se esgotou a capacidade hoteleira, abrindo espaço para novos investimentos privados, já em curso (embora atrasados pela crise atual), neste domínio. A inscrição do Museu na vida econômica, isto é, na teia das relações sociais de produção do Concelho e da região, passou essencialmente por uma estratégia articulada com o turismo cultural. Na verdade, na medida em que o Museu seja capaz de, com um discurso científico de rigor e “dificuldade” (por forma a cumprir a sua responsabilidade, na investigação e conservação), atrair um número significativo de visitantes, estes contribuem para animar o sector terciário e, por essa via, o conjunto da economia. Sabemos que o custo médio de um utilizador é em torno aos 10 euros, mas que o gasto médio de um visitante é de cerca de 30 euros. Este é um fator de crescimento para a Vila, mas o projeto do Museu não é um projeto de crescimento turístico, é de proximidade, de inserção local e regional. Estamos também a constituir o Conselho Empresarial, aprofundando a relação com o tecido empresarial de Mação e da região, e explorando os contributos que a imagem do Museu e as redes de parcerias podem dar para a promoção e comercialização dos produtos dos diversos setores. Gestão por objetivos (parceria público-privada) A implementação da gestão por objetivos foi concretizada no caso do Museu de Arte Pré-Histórica de Mação, com uma consultoria da empresa Benefits & Profits. O balanço deste modelo de gestão é extremamente positivo, pois permitiu reduzir custos de funcionamento de forma drástica e monitorizar com rigor todos os setores de funcionamento, interno e externo, do Museu. Temos mecanismos que nos permitem saber o que cada pessoa faz e quanto custa o museu em termos de pessoal, energia ou serviços. Todavia, isso não explica o crescimento sustentável do museu. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 159 Este modelo de parceria não passa pela mera contratação do serviços de uma empresa: a empresa está com o museu, não tem poder decisório mas coordena atividades e projetos, numa lógica de parceria em que o estado diminui o investimento financeiro, mas controla a dinâmica, não privatizando a decisão. Acreditação Num quadro de crescimento progressivo, a qualidade é algo que permite regular a performance das instituições, cuja dinâmica será sempre tendente a afastar-se no cotidiano dos planos formais. A qualidade como mecanismo de controle externo é fundamental. Os projetos internacionais são auditados, e entendemos que a avaliação externa, que já ocorre individualmente no nível dos projetos que o Museu desenvolve, é um instrumento de gestão e de transparência essencial, que por essa razão deve ser implementado em nível global. Para além de mecanismos oficiais de acreditação, a avaliação é permanente, através de questionários feitos aos utilizadores. Inovação tecnológica (parceria público-privada) Também no âmbito da parceria público–privada, foi implementado o projecto PACAD – WEBTV, começando a criar uma rede internacional que una os produtores de conhecimento e o cidadão comum, num único sistema de comunicação, de qualidade mas muito acessível e de baixo custo. O PACAD é um conceito simples e inovador para realizar exposições com a participação ativa dos visitantes, partilhando conteúdos entre os parceiros da rede em tempo real. O sistema ajuda a estruturar os conceitos de espaço (geografia), de tempo (história) e de causalidade (tecnologia, inovação, economia), a partir do patrimônio cultural e dos já mencionados conjuntos de conceitos. Balanço Entre 2001, ano do início deste projecto, e 2009, o Museu passou de menos de 500 utentes para cerca de 15 mil; o número de residentes permanentes associados a projetos do Museu passou de dois para mais de três dezenas; a taxa de ocupação de camas no setor hoteleiro passou de menos de mil para mais de cinco mil (esgotando a capacidade do Concelho e estimulando investimentos privados em novos equipamentos). Esta realidade, de expressão essencialmente econômica, é correlata do reforço dos programas de investigação, com mais de sete dezenas de investigadores e dezenas de publicações. 160 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Com as dificuldades criadas pela conjuntura atual, houve uma quebra no crescimento, mas as perspectivas são não apenas de continuidade, nos fundamentos e nas estratégias, mas de crescimento a partir de 2012, com um novo leque de programas educativos e uma relação renovada com empresas, escolas e municípios, e com a expansão da rede internacional PACAD. A criação, pelo Conselho da Europa, do novo Itinerário Cultural “Caminhos da Arte Rupestre Pré-Histórica”, apresentado oficialmente em 2011 e de que Mação assumiu a Vice-Presidência, é um sinal desse crescimento, que no plano institucional se corporiza na instalação do novo “Instituto Terra e Memória” (www.institutoterramemoria.org), organização de estudos superiores criada pelo IPT e pela Câmara Municipal de Mação com duas ONGs, e que oferece uma dimensão mais sólida e sustentável para os diversos projetos já iniciados. P.S. Pretendemos sublinhar o carácter coletivo das ações do Museu em que, além dos signatários, assumem responsabilidades muitos colegas, vários dos quais voluntários, e em especial Anabela Borralheiro Pereira, Andreia Lopes, Davide Delfino, Fernanda Torquato, Isabel Afonso, Isabel Lóio, Ivo Oosterbeek, Jedson Cerezer, Margarida Morais, Margarida Pacheco, Mila Simões de Abreu, Pedro Cura, Pierluigi Rosina, Rosa Fernandes, Rui Fernandes, Sara Garcês e Vítor Teixeira. Os autores exprimem igualmente os seus agradecimentos à Câmara Municipal de Mação, ao Instituto Politécnico de Tomar, à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e à Comissão Europeia. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 161 Figura 1 – Evolução do Museu Fotos: L. Oosterbeek 162 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Figura 2 – Exemplos de interação social e socialização do conhecimento: concerto de percussão na Anta da Foz do Rio Frio (imagem de fundo), réplicas de pinturas rupestres do mundo nas paredes de Mação (em baixo à esquerda) e reportagem na imprensa sobre o contributo do Museu para o combate ao despovoamento Fotos: Sara Cura Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 163 Figura 3 – Indicadores de impacto econômico crescente do Museu Foto: L. Oosterbeek 164 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Referências CURA S.; OOSTERBEEK, L.; CURA P. A Educação Patrimonial no Museu de Arte Pré-Histórica de Mação. In: Actas do Encontro Arqueologia e Autarquias, Câmara Municipal de Cascais, 2011, pp.611-619 OOSTERBEEK, L. A arqueologia de um ponto de vista social: recursos, identidades e riscos num contexto de mudança. In: S. Figueiredo (ed.), Actas das Jornadas de Arqueologia do Vale do Tejo, em território português, Lisboa, Centro Português de Pré-História e Geo-História, 2009, pp.49-63 OOSTERBEEK, L.; CURA, S.; CURA, P. Educação, criatividade e cidadania no Museu de Arte Pré-Histórica de Mação, In: Revista de Arqueologia, Sociedade de Arqueologia Brasileira, vol. 19, pp. 103-110, 2007 OOSTERBEEK, L.; CURA, S.; CURA, P.; ALMEIDA, N. The Andakatu Project: A New Praxis in Archaeology. IN: Popular Archaeology, vol. 2., 2011, 5 p OOSTERBEEK, L.; CURA, S.; BASTOS, R. L. Pensar Local, Agir Global - O Museu de Arte Pré-Histórica de Mação: memória, intuição e expectativa. In: Actas do Encontro Arqueologia e Autarquias, Câmara Municipal de Cascais, 2011, pp.487-499 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 165 166 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades A Implantação dos Engenhos na Ilha de Santa Catarina: Exploração e Manejo dos Recursos Ambientais Osvaldo Paulino da Silva1 A economia das populações construtoras de engenhos na Ilha de Santa Catarina estruturou-se ao longo de sua existência na exploração dos recursos naturais, a maioria deles renováveis. Assim, a transformação ambiental foi uma característica inerente à dinâmica de sobrevivência do próprio sistema produtivo. A paisagem adquire, aos olhos do arqueólogo, não somente um quadro de fenômenos naturais, mas uma variedade de sentidos sociais e econômicos (BERTRAND, 1977). O espaço tem de ser visto, portanto, como o resultado de um processo de transformação ocasionado pela intensa atividade humana naquele local. Não pode ser abordado como um contexto distante, secundário ou intermediário. Para David Clarke (1977), a arqueologia espacial define-se como a recuperação das atividades humanas presentes num contexto ambiental. A paisagem encerra em si, testemunhos das realizações humanas na busca incessante de meios para a maximização de recursos naturais. 1 Arqueólogo, doutorando em Quaternário Materiais e Culturas – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). A metodologia para o estudo da paisagem dos engenhos foi dimensionada em duas áreas distintas. Uma delas denominou-se micro-área como sendo a menor unidade de estudo, representada pela superfície de um sítio ou pela área ocupada ou abandonada de uma roça. A outra, denominada macro-área, compreendeu a área de captação de recursos, ou seja, o sítio e o seu contexto espacial, incluindo-se as áreas de roças abandonadas. A área de exploração de recursos, fora dos limites do engenho, de uso comum, convencionou-se denominá-las áreas de reservas, por se situarem na maioria das vezes, muito longe dos sítios e possuírem um potencial de recursos algumas vezes não mais existentes na área de captação de recursos dos engenhos. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 167 A pesquisa, realizada entre os anos de 1994 e 1995, concentrou-se na porção sul da Ilha de Santa Catarina, da localidade de Rio Tavares até a praia dos Naufragados, totalizando 131 km². A metodologia baseou-se na busca de vestígios de engenhos, na identificação de engenhos ainda em funcionamento e na coleta de informações orais. Os dados utilizados a partir de informações orais foram coletados com ex - proprietários de engenhos, em alguns casos, do próprio engenho pesquisado ou com trabalhadores de engenhos aposentados ou ainda em atividades. No total, foram identificados 77 sítios arqueológicos provenientes de engenhos, dos quais 3 ainda estavam em funcionamento. 74 sítios se constituíram apenas de vestígios materiais. Na área alvo da pesquisa foram identificadas 3 áreas ecológicas distintas: área constituída por morros, formadas por terrenos cristalinos antigos; área de planícies quaternárias, formada por solos arenosos de sedimentação recente e áreas alagadiças de mangue. Esta última área foi incluída neste zoneamento por se tratar de um ecossistema participante da área total da porção sul, mas definida como local pouco atrativo para assentamentos humanos à época da colonização da Ilha de Santa Catarina. Todavia, esta definição vem sendo invertida atualmente, à medida que a ocupação humana moderna vem se efetivando na área, através de aterros, comprometendo inclusive aquele ecossistema. As duas áreas restantes, ao contrário, tiveram sua ocupação efetivada desde meados do século XVIII, com os primeiros assentamentos de colonos portugueses vindos do Arquipélago dos Açores e Ilha da Madeira. Antes disto, as informações dos navegantes estrangeiros, cujos navios aportaram na Ilha, descreveram o território ilhéu quase totalmente coberto pela vegetação nativa, com alguns pontos desmatados para práticas agrícolas e habitações (ANSON, 1984; FRÉZIER, 1984; SHELVOCKE, 1984). Essa situação se inverte, à medida que os assentamentos eram precedidos de desmatamentos para obtenção da área residencial, da área agrícola, de lenha, de madeiras para a construção de casas, engenhos, móveis, embarcações e maquinários. A construção de engenhos e maquinários exigia o corte seletivo de árvores. As espécies eram escolhidas segundo sua utilização após o beneficiamento. Assim, para a construção da roda grande dentada, escolhia-se Ipê, Canela-preta e Peroba-vermelha; para a moenda, Ipê-amarelo, Ipê-roxo, Cabreúna e Guaraparim; para a almanjarra utilizava-se a Peroba-vermelha.. A prensa de mandioca era construída com Ipê-amarelo, Ipê-roxo, Peroba-vermelha e Cabreúna. Os cochos construíam-se com Canela-preta e Canela-sassafrás. Para a construção dos engenhos, utilizava-se a Socurujuva e Tajuva nos esteios; Socurujuva, Peroba-vermelha e Capororoca nas cumeeiras, terças e frechais e Capororoca e Peroba-vermelha para os caibros As peças dos maquinários e os acessórios descritos acima são os maiores e mais conhecidos num engenho. Peças e acessórios menores como dentes, rodetes, cabos, cunhas, eram também construídos 168 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades com as madeiras relacionadas. Algumas peças como a cangalha e o canzil, emprestavam seus nomes às madeiras: Pau-cangalha e Pau-canzil. Há ainda, árvores cuja denominação sugere um uso bem diversificado nos engenhos, como o Pau-paratudo. O Pau-óleo, o Jacarandá, o Louro e o Pau-ferro, também tinham uso generalizado nos engenhos da Ilha de Santa Catarina (PEREIRA, 1993). Para a cobertura e paredes de pau-a-pique utilizavam-se principalmente ripas de troncos de palmiteiro. Nos sítios onde ainda havia vestígios materiais de paredes e cobertura, apareceu com bastante freqüência o uso desta madeira, não obstante a presença, em menor número, de ripas roliças. O uso do palmiteiro, tanto na construção quanto na alimentação, foi responsável pelo seu quase desaparecimento das matas da Ilha de Santa Catarina, aonde chegou a povoar com cerca de 920 exemplares um único hectare de Mata Atlântica (KLEIN, 1969). Esta lista de madeiras traz as que foram mais usadas pelos mestres artífices e construtores de engenhos. Outras madeiras, porém com menos freqüência, eram também utilizadas. Os critérios de escolha obedeciam, em alguns casos, a disponibilidade de determinadas árvores na região, mas a dureza do tronco era um fator fundamental. Para a construção de peças com curvaturas, as almanjarras, por exemplo, a escolha recaía sobre madeiras que além de duras, apresentassem a forma mais parecida com a peça pretendida. Para caibros, eram utilizados os troncos de pequenas árvores, sem necessidade de beneficiamento. Algumas destas madeiras já eram utilizadas em 1797, quando o governador Miranda Ribeiro relacionava seus usos e aplicações (LAYTANO, 1959). Dentre elas, a Socurujuva, também relacionada para uso em esteios e a Peroba-vermelha, Canela-preta e Pau-óleo, ambas relacionadas para obras de marceneiros. Miranda Ribeiro não especificava a construção de maquinários para engenhos, mas apenas “obras de marceneiro”. Estas obras eram possivelmente destinadas aos engenhos, levando-se em conta o grande número destes estabelecimentos em toda a Ilha de Santa Catarina naquele mesmo ano. Tabela 1 – Engenhos em produção na Ilha de Santa Catarina no ano de 1797 FREGUESIAS Desterro Ribeirão Lagoa Necessidades TOTAL Engenhos de Açúcar -01 --01 Fábricas de Açúcar 12 11 10 05 38 Engenhocas de Aguardente 23 29 28 22 102 Engenhos de Pilar Arroz -02 --02 Atafonas de Moer Trigo 17 07 32 11 67 Engenhos de Mandioca 87 51 101 111 350 Fonte: LAYTANO, Dante. Corografia da Capitania de Santa Catarina. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Florianópolis, v. 245, p. 1-187, out/dez, 1959. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 169 No ano de 1797 observa-se, portanto, 560 engenhos em funcionamento na ilha de Santa Catarina e todos os tipos de engenhos relacionados acima eram aparelhados com maquinários construídos com madeira da própria região. Considerando-se que a superfície total da ilha é de 425 km ², obtém-se uma densidade de 1,3 engenhos por km², causando muitíssimos pontos de desmatamentos, sobretudo para a construção dos maquinários, embora mais seletivo. Os desmatamentos, ocorridos para a instalação de áreas agrícolas, criam macro-zonas ecológicas, com flora e fauna diferenciadas. Nos morros cristalinos, esta diferenciação é mais acentuada, em virtude do relevo e da vegetação apresentar características igualmente diversificadas. Neste sentido, a característica ambiental menos diversificada, verificada nas planícies arenosas, tende a apresentar uma rigidez na instalação de núcleos produtivos baseados em engenhos. A distribuição dos sítios arqueológicos nas duas zonas ecológicas em questão demonstrou uma preferência quase absoluta pela instalação de engenhos de açúcar nas áreas de morros ou nos limites desta. Dos 35 sítios provenientes de engenhos de açúcar e de engenhos que compartilhavam a produção deste produto com a farinha de mandioca, 34 foram localizados em terrenos cristalinos. Já dos 39 sítios de engenhos com produção de farinha tão somente, 17 foram registrados nos morros, contra 22 deles na planície arenosa. A larga incidência de engenhos de açúcar em terras situados nas encostas, ocorre em virtude de as terras arenosas não possuírem características físico-químicas que propiciassem uma boa colheita da cana de açúcar. A opção viável passou a ser então, a prática da lavoura da cana nos morros. Entretanto, segundo a classificação de solos aptos à agricultura, apresentado por Mariléia M. L. Caruso (1990), estas terras também não possuem características próprias para o uso de práticas agrícolas, a menos que em algumas áreas sejam implantados métodos intensivos de manejo. Todavia, a cultura da cana de açúcar nas encostas apresenta melhores resultados em relação às planícies arenosas, mesmo sem a utilização de técnicas corretivas do solo. Em 1797, o governador da Capitania de Santa Catarina, João Alberto de Miranda Ribeiro, classificava as terras ilhoas e seus respectivos usos agrícolas: “Esendo ella como hé quasi toda montuosa, epoucos os Terrenos planos, aesperiencia tem mostrado, q. sendo osditos Terrenos ariddos, são mais proprios p.ª mandioca (...) Os Montes produzem bem a Cana, o Milho e o Feijão.” A plantação de cana de açúcar em terras arenosas apresenta pouco rendimento, com touceiras pobres, ao contrário das terras argilosas, cujas canas desenvolvem-se mais viçosas. Vê-se, portanto, que a preferência pelas áreas de relevo acidentado, torna-se uma opção economicamente mais viável. Por outro lado, a planta tradicional de engenhos de açúcar, evidenciada também na maioria absoluta dos sítios prospectados, apresentou duas seções internas. Estas seções dividiam o espaço interno sem a necessidade 170 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades de paredes. Como a seção mais alta abrigava a moenda, o caldo era transportado á seção inferior através da gravidade, dispensando as funções de transportar o caldo manualmente. Neste caso, a construção dos engenhos aproveitando-se da topografia acidentada, transformava-se numa vantagem a mais na instalação destes estabelecimentos nas áreas de encostas. Os engenhos de farinha de mandioca, ao contrário, eram construídos em seção única. Nos dados acima citados, há uma leve inclinação à instalação destes engenhos nas planícies arenosas. A mandioca se desenvolvia bem nos terrenos de encostas, mas era nas planícies arenosas onde o seu plantio alcançava melhores resultados. Entretanto, muitos engenhos de açúcar atraíam a produção de farinha em direção aos morros, solidarizando-se com ela, ou para aquelas pessoas que não dispunham de terras baixas não restava alternativa senão construir seus engenhos de farinha nas encostas. Isto não quer dizer que suas lavouras de mandioca ocorriam unicamente nos morros. Porções de terras poderiam ser tomadas emprestadas ou alugadas em troca de uma parte no produto final, a farinha de mandioca. O mesmo poderia ocorrer com as lavouras de cana. Havia ainda, a opção de uso das terras comunais, existentes em toda a Ilha de Santa Catarina (CAMPOS, 1991). A implantação de um engenho articula-se em áreas definidas de captação de recursos naturais, onde ocorria um processo de ecotransformação progressivo. O centro irradiador destas áreas estava localizado no engenho, o local onde a paisagem recebia a sua primeira transformação, porém não se configurando como um local de exploração permanente. A cobertura vegetal tinha de ser totalmente retirada. A topografia sofria modificações, uma vez que o terreno devia ser organizado para dar lugar à edificação. Se o engenho fosse de farinha de mandioca construído em terrenos acidentados, a transformação era maior, pois a inclinação natural não seria aproveitada. No engenho de açúcar, as duas seções de piso moldavam-se no terreno, exigindo uma modificação menor no relevo. Nas planícies arenosas, a transformação tendia a ser menor, naturalmente pela planura do terreno se adequar aos engenhos de farinha que nesta área ocorriam. Na área do engenho cessava a obtenção de recursos, quando o rancho era concluído. Neste momento tinha início um processo de expansão das atividades de exploração de recursos, cuja intensidade ia aumentando progressivamente à medida que as áreas operantes distanciavam-se do engenho, até um determinado limite, que podia ser o limite da propriedade. No entorno do engenho, havia uma exploração acentuada em alguns pontos fixos, cujo espaço era ocupado por hortas e locais de guarda de animais. Em outros, a transformação ambiental se caracterizava pela substituição de espécies vegetais nativas por árvores frutíferas, as chácaras. Em pouco tempo, um micro-ambiente duradouro se formava, cujas árvores mesmo sendo algumas delas exóticas, como a laranjeira e a limeira, por exemplo, participariam da cadeia alimentar da fauna da região. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 171 As áreas agrícolas transformavam o meio ambiente de maneira intensiva, atingindo sensivelmente a camada vegetal. A topografia não se alterava com a mesma intensidade porque técnicas de correção de terrenos muito acidentados não eram aplicadas. A roça concentrava grande atividade humana. Porém, o registro arqueológico é quase inexistente. Apenas pequenos sulcos de drenagem são eventualmente preservados sob campos de pastagens construídos sobre roças abandonadas. Nos campos de pastagens, imprescindíveis nos engenhos movidos por tração animal, a transformação ambiental limitava-se inicialmente à retirada da vegetação, mas com maior tempo de uso, os animais descreviam muitíssimos caminhos impressos no relevo, principalmente em áreas muito acidentadas. Já nas áreas de obtenção de lenha e de comida para os animais, havia uma exploração mais seletiva e menos intensiva. Fora dos limites da área de captação de recursos, havia outras áreas de exploração ambiental, normalmente de uso comum, com disponibilidade de caça, de madeiras e de outros recursos não mais existentes nas áreas próximas aos engenhos. Normalmente, a transformação ecológica nestas áreas era mínima, pois os recursos eram explorados de forma atenuada. Definiam-se também como áreas inacessíveis para as atividades agrícolas, por se situarem na maioria das vezes, em picos de morros ou em encostas muito íngremes. A não utilização destes locais como áreas agrícolas fornecia recursos inexistentes em outras áreas, naturalmente pela exploração não intensiva de seus recursos naturais. O uso das terras dentro da propriedade transformava a paisagem sensivelmente. A cobertura vegetal era alterada, se transformando num novo macro-ambiente. Segundo Mateus (1990) as hortas, campos de pastagens e de cultivos adquirem o sentido de “entidades” ecológicas de caráter temporário, cujo contexto compõe a paisagem econômica rural de uma comunidade. Embora os métodos de uso da terra tivessem um caráter predatório, sobretudo pela utilização das queimadas antes do plantio, havia uma harmonia entre as formas de obtenção de recursos e as técnicas de manejo do solo. O abandono das áreas agrícolas com cerca de 10 anos de uso, demonstrava formas de manejo adequadas. À medida que novas terras eram ocupadas e novos recursos eram obtidos, nas antigas roças iniciava-se um processo de regeneração espontânea, cujos estágios compõem uma cadeia natural, culminando com a instalação de grandes árvores, formando os capoeirões (CARUSO, 1990). Em conseqüência, novos micro-ambientes se formavam, com novas espécies de vegetais e novas espécies de animais mantendo a cadeia de renovação ambiental. Este processo ocorria sem a necessidade de introdução de sistemas artificiais de correção do solo ou outros meios alheios à recuperação natural. A capacidade de suporte da área mantinha-se em equilíbrio. Para Mi- 172 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades randa (1986) as comunidades matizam e estabelecem suas formas de exploração particulares de acordo com sua tradição e experiência cultural adquirida. A delimitação das áreas de captação de recursos nem sempre é possível de ser alcançada. Os limites de antigos engenhos, normalmente não são os limites atuais. Propriedades foram divididas através de heranças, agricultores endividados obrigavam-se a hipotecar ou vender suas terras. A desagregação da propriedade rural foi uma forma de transpor as circunstancias adversas, ocorrida em determinados períodos, no ciclo produtivo dos engenhos. A partir da década de 1960 ocorre um declínio vertiginoso na produção em engenhos. A crescente industrialização da região da Grande Florianópolis passa a fazer concorrência direta com os engenhos. Os produtos antes oferecidos nos engenhos passam a ser comercializados com menor preço pelas indústrias. Simultaneamente, há um processo de exploração imobiliária jamais visto na região, privilegiando as áreas justamente ocupadas pelas comunidades tradicionais. Por outro lado, o aumento significativo do turismo não encontra uma estrutura de produção artesanal voltada aos lucros que a atividade turística trás consigo, pelo contrário, incentiva o desmonte dos engenhos à medida que cria-se uma procura desordenada por peças de maquinários como antigüidades. O abandono das áreas de roças possibilitou uma recuperação excepcional da cobertura vegetal da Ilha de Santa Catarina naquelas áreas onde não houve reocupação. Áreas completamente desmatadas há 30 anos possuem cobertura vegetal exuberante, dando a impressão de nunca terem sido utilizadas para fins agrícolas. A rotatividade do uso do solo pelas comunidades tradicionais da Ilha de Santa Catarina foi uma medida crucial para a sobrevivência da agricultura. Não obstante o despreparo do governo colonial e imperial em relação à agricultura em Santa Catarina (BRITO, 1829; COELHO, 1854; CABRAL, 1950), os agricultores implantaram um sistema de exploração do meio ambiente que possibilitou a manutenção e o sucesso da colonização a partir da obtenção de recursos naturais limitados. O manejo desses recursos, implícito no conhecimento adquirido da natureza, transformou-se no critério essencial para a manutenção da economia agrícola por mais de 200 anos. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 173 Referências ANSON, George. A voyage round the world in the years MDCCXL, I, II, III, IV. In: ILHA DE SANTA CATARINA: Relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX, 2. ed. Florianópolis : Editora da UFSC, 1984, p. 57-74. BERTRAND, Georges. L’archeologie du paysage dans la perspective de l’ecologie historique. In: Actes du Colloque Archeologie du Paysage. Paris : Universite de Tours, 1977. p. 132-138 BRITO, Paulo Jozé Miguel de. Memória política sobre a capitania de Santa Catarina. Florianópolis: Sociedade Literária Biblioteca Catarinense, 1932. CABRAL, Oswaldo R. Os açorianos. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950. CAMPOS, Nazareno José de. Terras comunais na Ilha de Santa catarina. Florianópolis: FCC, 1991. CARUSO, Mariléa Martins Leal. O desmatamento da ilha de Santa Catarina de 1500 aos dias atuais. 2. ed. Florianópolis : UFSC, 1990. CLARKE, David L. Spatial information in archaeology. In: (Ed.). Spatial Archaeology. London : Academic Press, 1977. p. 1-32. COELHO, Manoel J. D’Almeida. Memória histórica da província de Santa Catharina. Santa Catharina: Typ. J. J. Lopes, 1877. FREZIER, Amédée F. Relation du voyage de la mer du sud aux côtes du Chily et du Perou. In: ILHA DE SANTA CATARINA: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVII e XIX. 2. ed. Florianópolis: UFSC, 1984, p. 15-28 KLEIN, Roberto M. Árvores nativas da Ilha de Santa Catarina. Ínsula - Boletim do Horto Botânico da UFSC, Florianópolis, n. 3, p. 1-93, out. 1969. LAYTANO, Dante. Corografia da Capitania de Santa Catarina. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Florianópolis, v. 245, p. 1-187, out/dez, 1959. MATEUS, José eduardo. A teoria da zonação do ecossistema territorial. In: GAMITO,Teresa J. Arqueologia hoje. Faro: Universidade do Algarve, 1990. p. 196-219. MIRANDA, J. M. et al. Bases para el estudio de las relaciones entre el medio geográfico y los asentamientos humanos. In: Arqueología espacial. Teruel: Colegio Universitario, 1986. p. 199-211. PEREIRA, Nereu do Vale. Os engenhos de farinha de mandioca da Ilha de Santa Catarina: etnografia catarinense. Florianópolis : Fundação Cultural Açorianista, 1993. SHELVOCKE, George. A voyage round the world by the way of the great south sea. In: ILHA DE SANTA CATARINA: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Florianópolis : UFSC, 1984, p. 29-48. 174 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Do barro e outras coisas Fabiana Kretzer1 Uma breve contextualização histórica sobre oleiros em São José/SC Oswaldo Rodrigues Cabral é um pesquisador da história e da cultura catarinenses e, dentre tantos textos seus, escreve sobre a possibilidade de um certo Bartolomeu Furtado, natural da ilha de São Miguel, “ser o mestre que ensinou na nossa terra a fabricação da louça de barro”.2 A busca por esse esclarecimento tem motivado estudos e discussões de muitos pesquisadores ao longo de várias décadas. Ao certo, não se sabe precisar a data e o nome correto desse (ou desses mestres). Tem-se algumas informações históricas, como relato de Cabral, que menciona os açorianos como conhecedores também de práticas oleiras: 1 Doutoranda em Antropologia (Universidade de Salamanca). Historiadora da Fundação Municipal de Cultura e Turismo de São José - Setor de Projetos. “(...) por gentileza de um nobre amigo, o sr. Desembargador Silveira Nunes, que encerrado na sua tebaida não esquece nem as letras nem os amigos, venho de conhecer um interessante livro sobre os Açores – “As ilhas Desconhecidas”, de Raul Brandão. 2 CABRAL. Oswaldo Rodrigues. Assuntos Insulanos. Florianópolis: IOESC, 1948, p. 22-23. E lá encontrei, sobre uma delas, esta descrição que poderia ter sido inspirada ali na Ponta de Baixo, nos arredores de São José, onde eu vi a mesmíssima coisa: 3 Idem. “É aqui que os barcos de três velas vêm buscar o barro em bolas, para S. Miguel fabricar grandes talhas, canecas porosas, vasilhas de todas as formas e feitios. Santa Maria não só fornece os oleiros dos Açores mas fabrica também cântaros, púcaros, caboucos, numa ruazinha escondida da Vila. Processos primitivos: o homem numa oficina escura prepara e amassa o barro, a que outros vão lentamente dando feitio no engenho. Trabalha a mão e o pé: - o pé na grande roda que faz girar o prato com o barro ainda informe, e mão dando-lhe forma”.3 4 MONIZ, Manuel Carvalho. As Olarias de S. Pedro do Corval. p. 7. Também podemos nos basear em informações históricas de Portugal Continental, O Alto Alentejo é, no seu conjunto, a região mais rica na arte tradicional da olaria portuguesa. Aqui encontramos e se fabricam as mais belas peças de barro desde o remoto tempo da ocupação romana, visigoda e até árabe.4 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 175 A influência dos artefatos de barro em Santa Catarina não fica restrita a Portugal, pois os estudos arqueológicos nos indicam que povos como os tupi-guarani produziam objetos cerâmicos, sem a utilização da roda, desenvolvendo outras técnicas de decoração (como por exemplo, pinturas, corrugado, unglado, ponteado, escovado) e de fabricação desses utensílios. É possível mencionar que a prática de transformar o barro em utensílios acompanha-nos há muito tempo. Segundo as entrevistas que venho realizando desde maio de 2010, há pelo menos três grupos de oleiros hoje em São José: 1) Um grupo que mantêm as práticas da olaria tradicional, que em linhas gerais consiste na fabricação de peças utilitárias. A sua queima é feita no forno a lenha. Nesse grupo, também é característico a não separação entre trabalho e vida particular, há a divisão sexual do trabalho. Esse oleiro recebe pela venda das suas peças; 2) Outro grupo que a pesquisa evidenciou é composto pelos artistas, que geralmente têm forno a gás ou elétrico. Sua casa, por vezes, é o seu ambiente de trabalho (studio, ateliê) e seus objetos seguem outros paradigmas, como o da criatividade, tendências, mercado, e também vivem da venda dos seus objetos; 3) Por último, os professores de cerâmica, que ensinam esse ofício e têm à sua disposição fornos elétricos, a gás e a lenha para fazerem a queima. Vivem de seus salários, pagos pela Prefeitura Municipal de São José. Há no município duas escolas que trabalham com essa arte-ofício, a Escola de Oleiros Joaquim Antônio de Medeiros e a Olaria Beiramar. 5 BRAUDILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973. Pensando especificamente nesses três grupos de oleiros que moram em São José, podemos dizer que a racionalidade dos objetos produzidos por essas pessoas se depara ao longo das temporalidades com a irracionalidade das suas próprias necessidades5, ora funcionais, ora estéticos, ora utilitários, ora decorativos. E, por isso, entender os objetos dentro de um sistema de significações auxilia no entendimento da sobrevivência do ofício, com seus desdobramentos funcionais, ou submissos à estética, ou ainda empreendedores no mercado de consumo, ou tudo isso ao mesmo tempo. O recorte desse texto busca analisar, por meio de entrevistas, um representante de cada grupo descrito anteriormente, como José Geraldo Germano – professor da escola Olaria Beiramar, Valdir Correa da Silva, Valdo Santeiro – artista plástico, e Moacir de Souza, o Ci – oleiro tradicional; além disso, a pesquisa utilizou auxílio de fontes históricas e referências bibliográficas pertinentes ao comportamento dos oleiros de São José nesse início do século XXI. 176 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Esses oleiros, constituídos profissionalmente, estão presentes na sociedade josefense há muito tempo. Há documentos que registram, já em 1818, uma indústria de louça de barro, pertencente a Manoel Furtado, natural da Ilha de São Miguel. Provavelmente, o primeiro mestre oleiro, vindo dos Açores para São José.6 Isso não significa dizer que afirmamos que o conhecimento do fabrico de louças de barro é açoriano, mesmo porque muitos que colonizaram ilhas como Santa Maria e São Miguel eram famílias provenientes do Alto Alentejo e Algarve. Ou ainda, como já foi mencionado, os estudos da arqueologia pré-histórica já indicam que há muito esses artefatos eram produzidos, tanto para armazenamento, como para transporte de alimentos, água, etc. Em outras palavras, nesse artigo nosso propósito não é precisar a origem, ou origens, desse conhecimento, historicamente, e sim identificar modos de vida que utilizam a produção cerâmica como trabalho. Voltando à discussão da produção da louça de barro em São José, é possível observar, por meio de pesquisas documentais coletadas nos livros de Tributação, de 1903 a 1950, no acervo do Arquivo Histórico Municipal de São José, aproximadamente, 13 olarias de louças, entre os anos de 1903 e 1906. Sendo que muitas registravam seus tributos para a Prefeitura ano a ano, e outras não faziam sistematicamente esse registro. Continuando nessa fonte de pesquisa, essa profissão aumenta sua atuação no município, chegando a seu ápice na década de 1940. 6 GERLACH, Gilberto. MACHADO, Osni. São José da Terra Firme. São José: Clube do Cinema Nossa Senhora do desterro, 2007. p. 21. 7 MONIZ, Manuel Carvalho. As Olarias de S. Pedro do Corval, p. 17. 8 José Geraldo Germano, professor de cerâmica e oleiro. Trabalha na Olaria Beiramar, uma das escolas de cerâmica do município de São José. A outra escola chama-se Joaquim Antônio de Medeiros. Para essas pessoas, a vida era um conjunto, não separavam vida profissional de vida pessoal, uma era prolongamento da outra. Essa característica também pode ser encontrada no Alto Alentejo: Aqui em S. Pedro do Corval as olarias estavam instaladas nas residências dos mestres oleiros, nas suas habitações familiares, persistindo e continuando através das várias gerações de oleiros a exercerem o seu ofício no mesmo local.7 Se os oleiros entendiam a vida profissional e familiar interligada, os espaços, doméstico e profissional não se separavam, eram imbricados, casa e quintal, olaria e cozinha, comida e horta, pai e oleiro, eram atividades feitas ao mesmo tempo e junto com a família. Essa não separação também pode ser interpretada como se o barro fosse parte da fisionomia dos oleiros, e, por extensão, da família. Em uma primeira conversa que tivemos na Olaria Beiramar, no bairro Campinas, em 14 de julho de 2010, Geraldo afirma: A cerâmica está impregnada em mim. Não consigo separá-la da minha vida. Ela é minha vida. Lá em casa arrumei uma mesa pra ter onde fazer as refeições, colocar os alimentos, mas não consegui. Quando percebi, a mesa virou estúdio, e já estava cheia de peças de barro. Tenho que providenciar outra mesa8. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 177 É possível, no início do século XXI, encontrar pessoas ligadas às atividades da cerâmica exatamente com essa perspectiva de vida, ou seja, o manuseio com o barro é uma atividade fisiológica, e nesses termos, imprescindível para sua vida. Podemos citar alguns moradores de São José que dedicam a vida, de diferentes maneiras, à cerâmica, como o seu Moacir (oleiro tradicional), Geraldo (professor de cerâmica na Olaria Beiramar), Valdo Santeiro (escultor/artista plástico). Além disso, outra especificidade que se encontra nessa área, sobretudo nas olarias tradicionais, que é o caso de seu Moacir, são as relações de parentesco, laços essenciais de característica do ofício, ou seja, é comum falar da época em que São José tinha as olarias tradicionais, consequentemente familiares. Seu Moacir é um remanescente, pois ainda hoje ele mora e trabalha no mesmo local que foi a olaria de seu pai, José de Souza, o conhecido seu Zequinha. Geraldo é um dos cicerones por essa minha percepção. Tive oportunidade de encontrar e conviver com ele. Nosso encontro se deu em março de 2009, num pedido para que se fizesse uma exposição de cerâmica dos professores e alunos da Olaria Beiramar, no Museu Histórico de São José, instituição pela qual eu era responsável na época. A Olaria Beiramar é uma escola de cerâmica criada em 2005. Desde então, desenvolve atividades voltadas à tradição oleira de São José da Terra Firme, ensinando técnicas de cerâmica figurativa regional e utilitária. Foi a partir desse momento que eu e Geraldo nos aproximamos com mais intimidade. Afinal, falávamos com muita freqüência, em função da montagem da exposição. A ousadia e profissionalismo de Geraldo me encantaram desde o primeiro dia naquela reunião, que começou formal. Aprendi muito com ele durante esses meses. A fala de Geraldo sempre vinha motivada pelos sentidos. Ora o tato gesticulava peças, ora os olhos transbordavam cenas, ora o cheiro da queima do barro tonalizava a peça conforme o movimento das lenhas. O oleiro é fruto da sua linguagem, do sotaque, da entonação, do uso de palavras específicas, das roupas, do jeito de se comportar. Uma linguagem que ele cria e de que ele é criado, de forma dialógica, imbricada. Mãos e pés dos oleiros parecem fazer parte do barro, é uma espécie de prolongamento, hibridismo de barro, pés e mãos. Mãos que ajustam o escorregadio, seguindo o que determina os pés, através do torno. Barro que se transforma, que se deixa tornar outra coisa. Nos dizeres de Cabral, 9 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Assuntos Insulanos. Florianópolis: IOESC, 1948, p.22/23. 178 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades É o que se vê ainda hoje. O oleiro senta-se, apoiando os pés sobre a roda grande. Imprime-lhe o movimento rápido. O prato, sobre o eixo, com o barro informe em cima, gira vertiginosamente. E o artista, com as mãos molhadas, o espreme e o suspende. A gente vê o barro subir e abaixar, afinar e engordar, tomar forma sob os dedos no seu interior. A cavidade vai sendo aberta, o vaso cresce e vai ficando fino. A mão de dentro e a mão de fora regulam-lhe a espessura. E, nem cinco minutos passados, aquele caboclinho humilde e encabulado realizou com uma habilidade de pasmar aquele vaso que parece uma ânfora!9 Figura 1 - Geraldo na roda de oleiro tradicional Fotos: Claudia Regina Pereira de Souza Sincronia num primeiro momento mas, se ficarmos olhando o movimento do oleiro por mais algum tempo, podemos notar que os movimentos vão se tonificando à medida que sua imaginação vai ganhando forma. Depois, há um retardamento dos movimentos, como se precisasse de um silêncio entre um movimento e outro, de uma pausa entre pés e mãos, para que, por fim, a sua imaginação possa batizar sua criatura. Essa não separação das esferas, pessoal e profissional, é interessante para se pensar sobre o estilo de vida dessas pessoas sob o foco do debate urbano, contemporâneo. Para contribuir com essa perspectiva de vida, Geraldo conta uma passagem bastante importante sobre como as olarias funcionavam: A olaria do seu Zequinha era assim, não tinha separação da casa. Ela ficava no fundo do quintal, era extensão da casa, era tudo ali, a gente tomava café tudo ali. Eu me lembro, ainda peguei essa época, que ele tinha no meio do quintal, entre a casa e a olaria, existia uma almanjarra, que era movida a cavalo. Porque o oleiro, depois que a gente passou a estudar essas coisas, era detentor de todas as técnicas, desde a extração, que ele vinha em Barreiros10, por isso o nome Barreiros. Levava esse material todo pra casa, colocava numa vasilha de madeira, socava o barro, e depois ele colocava essa vasilha dentro de uma haste, é uma espécie de haste de madeira que dava numa cangalha. Essa cangalha rodava, tipo um engenho. Esse tipo de mecanismo tinha na olaria do Seu Zequinha, que era onde ele triturava o barro, misturava água, e ia misturando o barro com aquela tração animal. Hoje isso não acontece mais. Hoje existe um local onde a gente vai comprar a argila. Que hoje é separado da olaria, porque antigamente se usava esse tipo de processo por causa da energia. Hoje o processo diminuiu. 10 Barreiros: nome de um dos bairros da cidade de São José. Nome relativo à retirada do barro, segundo o entrevistado. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 179 Em outras palavras, esse debate traz à tona algumas reflexões, dentre elas a constatação da constante reinvenção dos modos de vida, o investimento de novos significados para o consumo, a readequação de geografias, a associação comércio com cultura, etc. Por mais que Geraldo precise sair de casa para trabalhar, a Olaria Beiramar é uma espécie de casa, de abrigo, de ofício, de vida. Podemos inferir que é uma separação apenas geográfica, pois simbolicamente a vida e ofício estão impregnados nele, na casa e na Olaria Beiramar. Na perspectiva do pensamento de Baudrillard, podemos considerar a possibilidade de ruptura da ligação casa-olaria, quando há a saída dos objetos de dentro desse contexto. O objeto, que era até então criatura do oleiro, recebe, através da comercialização, seu rito de passagem. E a peça, que foi feita com fins utilitários, por exemplo, pode assumir um destino decorativo. Geraldo aborda a questão da comercialização das peças e a readequação da cerâmica utilitária, Quando estudava no Francisco Tolentino, sempre ia visitar as olarias da cidade. Ficava alucinado ao ver aquele barro, como aquilo podia se transformar. E por isso, passei a frequentar as olarias existentes na época. Isso era por volta de 1962, 1963. Havia uma olaria, lá perto da ponte dos arcos, era perto do mar, e ele, não me lembro mais o nome dele, tinha um barco, era um transporte para a venda das peças. Nessa olaria, eu ficava encantado com as loucinhas. As miniaturas saíam muito na época das festas, principalmente no Natal, porque eram brinquedos, e se dava de presente. E também porque era mais fácil de transportar. E as panelas, nessa época, também continuavam, que era a olaria do Zequinha, mestre Zequinha, José de Souza. E eu ficava ali olhando, muito atento mesmo no moldar na roda de oleiros, ficava enfeitiçado. E aprendi a roda de oleiro tradicional com ele. Como se pode notar, era habitual aprender observando, fazendo, errando. Também é considerada cerâmica tradicional, além das peças utilitárias, a cerâmica figurativa, que trabalha com a miniaturização das brincadeiras de infância e com a redução do tamanho das louças utilitárias. Além disso, esses artefatos ganharam pintura, “nas miniaturas tinha o tal do mergulhado”. E, continua Geraldo, “as outras peças não tinham nada de cor, nem de detalhe”. Com essas mudanças na fabricação das louças, os objetos fabricados assumem outro status, e por isso as relações que as pessoas irão travar com eles serão outras. Com a introdução do plástico e do alumínio, por exemplo, as louças de barro perdem espaço dentro da vida doméstica. As miniaturas, os brinquedos, a folclorização das peças, podem ser um mecanismo de sobrevivência frente aos novos tempos. 180 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Figura 2 – Vaso feito com a técnica do mergulhado e cerâmica figurativa com representações folclóricas. Peças feitas por alunos da Olaria Beiramar Fotos: Fabiana Kretzer Numa passagem do Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, de 1990, é possível ler: Os ceramistas localizados na Ponta de Baixo, município de São José, são os principais produtores das cerâmicas “decorativas” de motivos folclóricos (...), todos ricamente pintados com certo esmero pelos artesãos produtores11. Num pequeno histórico do município feito na administração do prefeito Geci Thives, em 1977, material encontrado no Arquivo Histórico de São José, a leitura, dentre tantas coisas escritas nesse documento, aborda: 11 Boletim da Comissão Catarinense, 1990. p. 117. Artesanato - Presentemente apenas um é digno de nota nesta cidade: a fabricação de barro, cujo principal comércio é feito no Mercado Público da Capital. 12 BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 21/43. Em outra página do mesmo documento, o tema é retomado: Artesanato louça de barro, tão bem executado por exímios artesãos, que sabem fabricar com invulgar perícia, objetos da mais difícil confecção. Tomemos como exemplo a miniaturização das louças utilitárias. A partir do momento da sua diminuição, as condições de lúdico e decoração configuram as peças em outras, em novas, e em coloridas. Estamos, então, diante de um empilhamento de significantes simbólicos, que se apropriam do barro e da ideia de louça. Podemos pontuar, a partir de Baudrillard12, que as peças utilitárias estavam presas a sua função, daí sua nomenclatura. Quando há uma reestruturação na produção das peças, a louça de barro Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 181 ocupa-se de uma autonomia produzida pelo mercado consumidor. O consumidor escolhe o que fazer da peça, pois ela está desprovida de “instruções”. A cor natural do barro fica sendo propriedade das louças utilitárias, e a pintura nas novas peças rompe a lógica atrelada ao fabrico dos objetos nas olarias. Hoje, esse raciocínio já está se modificando, em função da provocação conceitual entre arte e artesanato. Não é objetivo desse artigo entrar nessa discussão, mas apenas aponto esse debate como um dos tons contemporâneos que envolvem essa atividade. Com o passar dos anos, principalmente no final do século XX e início do XXI, esse grupo profissional (formado por indivíduos isolados, cada qual exercendo seu ofício na sua olaria, ou no seu âmbito de trabalho), segundo os parâmetros de pesquisa desse texto, passa a integrar um novo conceito profissional: o ofício passa a ser considerado agora elemento cultural e turístico. Consequentemente o consumo também é alterado. Pensar historicamente como se deu essa passagem ainda é um pouco prematuro, mas podemos elaborar um roteiro conexo a partir do final da década de 1940. Nessa época, havia um projeto nacionalista no governo de Getúlio Vargas, que em Santa Catarina era apoiado pelo interventor Nereu Ramos, que tinha como uma de suas características focar na cultura material como valorização das coisas nacionais. Em 1947, há a constituição da Comissão Nacional de Folclore e, em 1948, em Santa Catarina, o I Congresso de História Catarinense – em comemoração ao bicentenário de imigração açoriana. Esses dois pontos, político e intelectual, podem ter contribuído para uma construção de valorização da cultura local, dentre elas, os oleiros, as olarias, as peças de barro. A pesquisadora Maria Aparecida Lima, aborda que: Os intelectuais do I Congresso tornaram-se o grupo que, ao coletar e utilizar os elementos da cultura local na construção de uma “brasilidade” catarinense, produziram uma gama substancial de informações relativas aos ofícios e aos objetos artesanais, influenciando posteriormente outros grupos, no sentido de se dar um tratamento positivo aos temas da colonização açoriana, através da produção intelectual.13 13 LIMA, Maria Aparecida. A Plasticidade dos Artefatos de Barro: Olarias e Oleiros de São José. Florianópolis: Dissertação de Mestrado, UFSC, 1998, p. 72. 182 Os oleiros de hoje são pessoas remanescentes de um saber fazer considerado agora pela comunidade como patrimônio imaterial. Eis aí algumas novidades, entre elas o deslocamento de uma atividade profissional de cunho simplesmente econômico para uma atividade profissional, agora, de cunho cultural. Essa alteração no status da produção é responsável também por recolocar os oleiros na sociedade. Será que a folclorização da cultura material, proposta pelo plano de governo de Vargas, e legitimado pelos intelectuais catarinenses, também é responsável por essas modificações no estilo de vida oleiro? Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Mas essa modificação, como todo processo que envolve o comportamento, não foi homogênea, compacta. Hoje é possível encontrar, na Ponta de Baixo, a olaria de seu Moacir vivendo da venda das suas panelas e de outras peças, todas utilitárias. E eis que a placa indica o seu ofício. Figura 3 – Foto da antiga placa da Olaria do Moacir Foto: Fabiana Kretzer Acompanhando o sentido dessa flecha, nos deparamos com a única olaria tradicional existente ainda hoje no bairro Ponta de Baixo, pelo menos segundo essa pesquisa. Bairro esse que já foi reduto das olarias, dos oleiros e dos artefatos de barro. Tive a oportunidade de seguir a indicação da placa, pois Geraldo me levou até lá. Geraldo e Ci, como muitos o chamam, são amigos de muito tempo. Geraldo aprendeu a roda de oleiros com o pai do seu Moacir, o seu Zequinha, na década de 1960. Era uma tarde de agosto, o frio havia se recolhido aquele dia, o sol manifestava seu aconchego, espalhando luz por toda a olaria, e eu e Geraldo adentrávamos a olaria do seu Moacir. De construção simples, o chão batido mostrava aos nossos passos que estávamos diante de um tipo de edificação que não tinha janelas, portas, chaves, alarme, grades, tampouco campainhas ou interfones. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 183 Sua caracterização espacial também é diferente: há prateleiras de madeiras por toda parte que servem de suporte para as peças. Há dois fornos, de tamanhos distintos, duas rodas de oleiro. Muitas louças enfileiradas em prateleiras mais baixas, e outras cuidadosamente acomodadas pelo chão. Os fornos da olaria são à lenha, “tem o maior, pega mais peças, e o menor, que é pra menos peças. O forno maior é da época do pai, tem uns 40 anos”. Esses fornos são personagens importantíssimos na rotina oleira. Seu Moacir nos fala do tempo da queima: Depende do esquente, né? Se quiser ficar o dia todo esquentando é até melhor, pra eliminar a água, pra não estourar nenhuma peça. O esquente é que manda muito, não pode apurar muito, tem que ter a manha do fogo, não é só colocar a lenha. E acrescenta Geraldo, Por exemplo, tu pões um pau de lenha bem grosso, né?, num foguinho pra dar mais brasa, até depois ela se espalhar. Aí tu pões, por exemplo, às 7 da manhã até ao meio-dia, e depois tu vais colocando as lenhas gradativamente, pra que o fogo vá se espalhando no arco, onde passa ali embaixo, pra ir aquecendo todo o forno. E essa conversa continua entre Geraldo e seu Moacir, e eu ali registrando cada vírgula desse relato sobre o forno, o esquente, as peças. Diz seu Moacir: O dia que a gente faz a queima, não se fabrica as peças, não se trabalha nisso. É só na queimada, tem que cuidar do forno, ontem apurei demais e estourei peças, não pode deixar pegar fogo demais. Tem que saber do fogo, e também tem que colocar as peças mais firmes embaixo, as mais pesadas têm que ficar embaixo. Antes de as peças irem para o forno, elas têm que ficar expostas para secagem. Aqui, nessa olaria tradicional, a secagem é feita nos tendais, desde a época de seu Zequinha. Os tendais são tábuas de madeira colocadas abaixo do telhado para que o vento e a luz auxiliem na secagem. E Geraldo, encantado com a utilização desse processo remanescente, afirma: A produção é tão grande, que é colocada a peça na tábua, e eles pegam nas costas e já colocam no tendal, pra facilitar quando o vento bate, já vai secando as peças; só depois que vai pro forno. Seu Moacir completa, “fica uma semana nos tendais, pra secagem, depois coloco no forno, pra queima”. 184 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Figura 4 – Maior forno a lenha da olaria do seu Moacir de Souza Fotos: Fabiana Kretzer Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 185 A foto abaixo mostra como são os tendais da olaria do seu Moacir. Figura 5 – Tendal da olaria de Moacir de Souza Foto: Fabiana Kretzer Nos dizeres do seu Moacir: “Aqui na Ponta de Baixo ou se era pescador, como meu avô, ou se era oleiro, como o meu pai. Eu puxei o meu pai”. Geraldo completa: “A única olaria que hoje ainda perdura é a olaria do Zequinha, que é o Ci que comanda, junto com a mulher, Rose”. A conversa nessa tarde de agosto invadiu o relógio e atravessamos várias horas por lá. Vários questionamentos vieram à tona, assim como outros esclarecimentos e muitos conhecimentos novos sobre o ofício. Essas reflexões a cerca do tema proposto nesse artigo se tornam inerentes, pois estamos diante de estilos de vida diferentes, que possuem temporalidades diferentes, mas compõem o mesmo tempo histórico, numa comunidade urbana, cidade de São José. 186 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Barro adentro: um estudo etnográfico pelos três espaços de trabalho Geraldo e a Olaria Beiramar Antes de entrar no ambiente de trabalho de Geraldo, que é a Olaria Beiramar, os visitantes se deparam com um nativo que exige saudações. Vento Sul é seu nome, vento de pipas, de ondulações, de frio. Vento esse que os habitantes do litoral catarinense conhecem muito bem. Depois, então, das devidas saudações, podemos abrir as portas dessa olaria que fica localizada numa ampla avenida chamada Beira Mar. Essa avenida, inaugurada em 2002, foi construída com projeções para vários prédios públicos, além de infraestrutura de lazer, como vias de caminhada, ciclovias, área de ginástica e praça que leva uma escultura do santo protetor da cidade, São José. Figura 6 – Olaria Beiramar Foto: Fabiana Kretzer No início, ao longo dessa via havia as seguintes edificações: Centro Multiuso, Fundação de Municipal de Esportes, Centro de Atendimento da Terceira Idade – CATI, e banheiros públicos. Esses banheiros eram subutilizados e foi aí que, em 2005, essa construção foi devidamente reformada e ampliada e hoje abriga a sede da Olaria Beiramar. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 187 Geraldo, um dos coordenadores da Escola, narra que: A gente deu nessa casinha abandonada, que antes era um mictório público, os primeiros passos para uma escola de cerâmica que trabalha técnicas como utilitária e figurativa regional, e hoje contamos com aproximadamente 700 alunos. Na parte de dentro da escola há espaços para exposição dos alunos, a roda tradicional de oleiros, forno elétrico e sala de aula. Figura 7 – Foto interna da Olaria Beiramar e do professor Newton de Souza na queima Fotos: Fabiana Kretzer O forno é elétrico, quem faz a queima das peças é sempre Newton de Souza, professor e administrador da olaria. Ele foi aluno de Geraldo há mais de 20 anos e, desde então, trabalham juntos, desenvolvendo vários projetos. 188 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Casa de Valdo Santeiro: uma casa-arte Vamos agora para outro bairro da cidade, chamado Ponta de Baixo. É lá que vamos adentrar a casa de Valdo, onde também funciona seu espaço de trabalho. Não se trata de uma escola, nem de uma olaria tradicional, é outro espaço. Podemos dizer que esse escultor também assimila vida profissional e vida particular de forma dialógica, como se uma dependesse da outra, inspirando e oxigenando seu estilo, seu comportamento em relação à vida. Sem uma parte, a outra não existiria, e o todo só teria sua dimensão a partir da imbricação dessas partes. Conforme fotos abaixo, podemos nos aproximar do ambiente de trabalho de Valdo, dentro da sua casa: Figura 8 – Esculturas do artista plástico e ceramista Valdo Santeiro Fotos: Fabiana Kretzer Casa muito aconchegante, com detalhes em arte e cheiro de música. Assim fui recepcionada na casa desse escultor que entende a vida na complexidade de se apreender dela o simples. Aqui não há hierarquia de trabalho, nem ajudante, tampouco registro de horas ou salários. Fui até o ambiente onde exercita sua arte, e lá pude me deparar com duas esculturas ainda não terminadas, ambas de argila. A encomenda vem de longe, de uma das cidades de Santa Catarina chamada Nova Trento. Os demais ambientes também têm trabalhos seus, mas já acabados. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 189 Nossa conversa iniciou numa farta mesa de café, com doces, pães, tudo para uma perfeita degustação vesperal. E assuntos cafeinados surgiram quentinhos, fazendo contraponto ao tempo gris e frio lá de fora. A propósito, seu codinome é fruto dos vários santos que já produziu. Sem trocadilhos, mas, morando em São José, colou o nome do santo em muitos de seus trabalhos. Valdo tem sua personalidade alicerçada em alguns princípios, dentre eles, sua relação com as dúvidas, com os questionamentos, que, segundo ele, é o que o impulsiona para a liberdade: Não acredito em santos, acredito em homens santos, acredito em homens sábios. Já que sou santeiro, eu vejo a possibilidade de criar santos, mas não pra pedir milagres, e sim aqueles santos pra se espelhar na liderança deles, na filosofia deles. Se eu falar pra ti que sou ateu, estaria cometendo o mesmo pecado daquele que tem fé, porque, se eu não acreditar, também coloco um ponto. Quando tu passas a questionar Deus da forma como foi colocado, começas a criar, porque aí tu tens liberdade. Irrequieto com as dimensões da cultura na cidade de São José, queria algo mais. E essa característica de Valdo, como já foi dito, é seu alimento desde tempos outros. Na sua narrativa por passagens de infância, aborda que: sempre com muita dificuldade pra expressar o que eu sentia e pensava para as pessoas, eu escrevia, desenhava ou esculpia... Mas isso começou com a cisma, com a necessidade de pensar, de duvidar sempre. No início de 2010, soube através de um amigo que Valdo queria fazer uma espécie de identificação na frente das casas dos oleiros ainda existentes na cidade. Essa vontade foi motivada, além de sua inquietude, também pela mudança de endereço. Valdo passou a residir no bairro Ponta de Baixo, e lá moram alguns dos poucos oleiros da cidade. Diz ele: Na verdade, a minha idéia é muito simples, pensei comigo, a gente tem quantas olarias? Temos duas olarias na Ponta de Baixo, sendo que uma sobrevive do ofício, e a outra olaria é de oleiros que são professores, esses professores se dizem oleiros, mas não sobrevivem da olaria. A ideia tomou forma institucional. Foi aceita por algumas autoridades, tanto do Executivo municipal, quanto do Legislativo municipal e, no primeiro semestre de 2010, São José viveu um momento conceitual em relação aos oleiros, às olarias e ao ofício do barro. Estamos diante de uma implantação na política pública, no que se refere a uma sinalização para esse grupo. Naquele momento havia dois projetos concomitantes. Um, do Legislativo, cria a “Rota dos Oleiros, uma rota turística que abrange a Rua Assis Brasil, na Ponta de Baixo, desde a Igreja Nosso Senhor dos Pas- 190 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades sos até a cabeceira da nova ponte do rio Maruim”14. Por outro lado, a Prefeitura, via Fundação de Cultura e Turismo, lançou um projeto chamado “Circuito dos Oleiros, que consiste na colocação de dois portais, execução da recuperação da arquitetura das oficinas dos oleiros e instalação de placas de identificação”15. Durante conversa realizada em 9 de julho de 2010, o diretor de Turismo da atual administração de São José (2009/2012), João Alfredo Freitas Gomes, explicou o projeto Circuito dos Oleiros, enfocando que a ideia 14 Jornal de Barreiros – ano 19 – n. 216 – maio de 2010. 15 Idem. é que se melhore a apresentação da Rua onde está situada a Escola de Oleiros, desde a sua entrada (inclusive com a colocação de um pórtico), indo até o seu final e contornando à esquerda (no final dela, próximo ao Pier do Imaruim) e entrando na Rua Assis Brasil, indo até a casa do último oleiro, onde também será colocado um pórtico (...). A partir disso, as casas onde existem ou existiram (estas diferentes) oficinas de oleiros terão colocadas na frente placas indicativas, com informações sobre a obra e vida do oleiro, para identificação. A proposta do Executivo tomou corpo. No segundo semestre de 2010, foram colocadas as placas indicando as olarias que estão espalhadas pela cidade. A foto abaixo exemplifica o modelo das placas que podem ser observadas hoje na cidade: Figura 9 – Placa do Circuito de Oleiros Foto: Fabiana Kretzer Voltando à conversa com Valdo Santeiro, já estávamos em sua sala, ele numa rede e eu numa confortável cadeira de balanço. Nosso acompanhante era um gravador, que ficou entre nós, parado em um banquinho, ali só registrando aquela conversa ligeira de sotaque litorâneo. Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 191 Figura 10 – Valdo Santeiro em sua casa Foto: Fabiana Kretzer Entre uma pergunta e outra, vinha uma resposta com gosto de cigarro. De fumaça em fumaça, e sempre com aquele olhar compenetrado, com gestos poucos, mas com expressão facial tamanho grande, conversamos horas sobre muitas coisas. Olaria do seu Moacir: entre luz e lenha Assim é a olaria de seu Moacir: a natureza bordadeira enfeita o chão batido, ornamenta paredes e corre travessa em forma de vento por todos os cantos. Simbiose entre homem e natureza, assim é a minha impressão de uma olaria tradicional. Uma mescla que não permite a dicotomia sublinhada por muitos. Homem calmo, que recebe a quem chega com a delicadeza dos grandes anfitriões. Do ocre espalhado por sua olaria, o jeito oleiro contagia o visitante. São vasos, panelas, pratos, objetos e mais objetos que também nos dão as boas vindas. Como já foi dito, é a única olaria que resistiu ao tempo, e por isso é considerada o exemplo da olaria tradicional no bairro da Ponta de Baixo. Nesse ambiente livre do tempo cronológico, seu Moacir fala do seu trabalho como oleiro: Sempre trabalhei na olaria, sempre aqui, nesse mesmo lugar. Aprendi com o meu pai, né? Éramos em sete ou oito irmãos, mas ninguém quis aprender, só eu. Mas eles trabalharam comigo, quando a gente era pequeno, era amassando barro, botando louça pra rua, mas depois desistiram, só eu fiquei. 192 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Amassar o barro era ruim, era na almanjarra, que o cavalo puxava. No verão, era no sol quente, e no inverno a gente passava frio. Hoje o barro chega amassado, vem no cilindro, mas antes eu amassava o barro pro pai, e o pai é que fazia a louça. A olaria tradicional é sempre envolvida com a família. As relações de parentesco são fundamentais para que o ofício se perpetue, assim foi com o seu Moacir. E hoje é ele e sua esposa Rose que desenvolvem essa atividade. Como ele diz, “Trabalho eu e minha esposa, né? Eu faço as peças, e ela passa a pedrinha, pra ficar lisinho, faz o acabamento”. A lide na olaria obedece às peças, o que significa dizer que a jornada de trabalho não é fragmentada em horas, em salários, em carteira assinada, etc. Ontem ainda foi um dia que fiquei até duas horas da manhã queimando os dois fornos. O oleiro é assim, não tem parada, daí a gente queima hoje, apura o forno, pra entregar a louça no outro dia. Na foto abaixo, podemos perceber como é o empilhamento das peças num forno a lenha. Esse tipo de comportamento acompanha a tradição do barro há muito tempo. Hoje, quando há uma readaptação da vida com a cerâmica, é possível ter uma ideia da diferença entre a rotina de uma olaria tradicional e a da Olaria Beiramar, por exemplo, só através da análise do processo da queima. Figura 11 – Seu Moacir na queima, forno a lenha Foto: Fabiana Kretzer Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 193 É nesse ambiente em que a natureza se transforma em utilitário, onde Rose e Moacir se entregam aos afazeres do barro, que a vida se reproduz em reminiscências, em contrapontos com a cronologia linear asfixiante das ditaduras culturais homogêneas, compactas, sem ressonâncias. Escola de Oleiros Joaquim Antônio de Medeiros: como e quando surgiu? A partir do início da década de 1990, as administrações municipais de São José (Executivo e Legislativo), em seus diferentes mandatos, incluem o turismo como uma atividade presente na cidade. Em outubro de 1991, é criado um logotipo turístico para o município, oficializado através da Lei Municipal nº 2.322. A frase “Conheça São José” fica como slogan do símbolo. Figura 12 – Slogan do município: símbolo turístico/1991 Fonte: Arquivo Histórico Municipal de São José O ofício dos oleiros compõe a gama de atrativos turísticos do município a partir de 1992, quando é então fundada a Escola de Oleiros Joaquim Antônio de Medeiros, que tem por finalidade, segundo folder institucional de divulgação do município, de 2010, “recuperar, valorizar e repassar técnicas de uma das 194 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades atividades mais tradicionais e representativas da cultura catarinense, encontrada no município de São José, a arte-ofício da olaria”. Através de pesquisa no material de divulgação do município, disponível no Arquivo Histórico de São José, é comum observar panfletos, folders, entre outros tipos de folheteria, com espaços reservados para a divulgação dos atrativos turísticos. Destaca-se, dentre tantos, a capa desse folder que utilizou a logomarca criada em 1991, Lei Municipal 2.322. Figura 13 – Folder municipal Fonte: Arquivo Histórico Municipal de São José Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 195 Ainda nessa mesma administração, de 1989/92, outro folder é divulgado. Neste, a capa são louças de barro utilitárias, não pintadas, fotografadas na sua forma mais original. Figura 14 – Folder municipal Fonte: Arquivo Histórico Municipal de São José Como uma das características da atual administração municipal (2009/2012), houve a reinauguração da Escola de Oleiros Joaquim Antônio de Medeiros. 196 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades Escola de Oleiros reabre com nova proposta turística e pedagógica Símbolo de valorização da cultura e do ensino de transformar arte em barro, a Escola de Oleiros Joaquim Antônio de Medeiros, em São José, foi reinaugurada na semana passada, após reforma total do prédio. Única pública municipal do gênero no país, a Escola reabriu com proposta turística e pedagógica. A partir desse semestre as aulas serão ministradas de segunda a quinta-feira, reservando a sexta para visitação de turistas com exposição permanente das peças em argila. Miniaturas do folclore regional, a exemplo do pau de fita, cortejo do Divino e Procissão do Nosso Senhor dos Passos, vasos e cerâmicas utilitárias são alguns dos produtos que podem ser apreciados.16 16 Jornal São José em Foco – 04/08/2010 17 Foto encontrada no banco digital do Arquivo Histórico de São José. Figura 15 – Convite de reinauguração da Escola de Oleiros Fonte: Arquivo Histórico Municipal de São José , Figura 16 – Antiga Olaria Medeiros17 Figura 17 – Atual fachada da Escola de Oleiros Foto: Fabiana Kretzer Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 197 A reforma da escola é parte integrante de um projeto maior, como já foi dito, que recebe o nome de Circuito dos Oleiros. Essa nomenclatura é utilizada pelo Executivo Municipal. Já o escultor Valdo se refere ao projeto como sendo inclusive de sua autoria, e o nomina: Rota dos Oleiros. A reinauguração da Escola de Oleiros significa reconduzir o debate do legado histórico em relação ao saber oleiro, que é um conhecimento enraizado nas práticas cotidianas (de várias temporalidades), nas motivações da sua transferência oral, nos fortes diálogos com o seu reconhecimento e pertencimento na comunidade atual. Encerrando... Essas palavras, muitas reflexivas, outras observadoras, outras narrativas, buscaram recolher superficialidades de discursos políticos, e procuraram expressar sentimentos cotidianos de pessoas que vivem suas rotinas de maneiras diferentes, numa mesma geografia e tendo como elo o mesmo extrato: o barro. Esse texto foi elaborado a partir de entrevistas e, por isso, está escrito de modo informal, em primeira pessoa, trazendo considerações inacabadas. O que ressalto são os modos de vida contemporâneos desses trabalhadores do barro, que de maneiras diferentes preservam esse saber e nos legam a magia do barro em transformação. Referências BARRIO, Angel-B. Espina. Manual de Antropologia Cultural. Recife: Ed. Massangana, 2005. BRAUDRILLARD, Jean. O sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973. BOITEUX, Lucas Alexandre. Notas para a História Catarinense. Florianópolis: Livraria Moderna, 1912. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Assuntos Insulanos. Florianópolis: IOESC, 1948. _______. História de Santa Catarina. Florianópolis/Rio de Janeiro: Ed. Sec/Laudes, 1970. COMISSÃO CATARINENSE DE FOLCLORE. Boletim Trimestral. Florianópolis: CCF, 1990. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Ed. LTC, 1989. GERLACH, Gilberto. MACHADO, Osni. São José da Terra Firme. São José: Clube do Cinema Nossa Senhora do desterro, 2007, p. 21. 198 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades LAGO, Mara Coelho de Souza. Modos de Vida e Identidade: sujeitos no processo de urbanização da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: UFSC, 1996. LIMA, Maria Aparecida de. A plasticidade dos artefatos de barro. Olaria e oleiros de São José. Florianópolis: Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal de Santa Catarina, 1998. MARTINS. Rui de Souza. O barro, a técnica e a arte: A cerâmica dos Açores e as olarias de Vila Franca do Campo. Museu Municipal de Vila Franca do Campo, 1988. MONIZ, Manuel Carvalho. As olarias de S. Pedro do Corval. PIAZZA, Walter F.; HUBENER, Laura Machado. Santa Catarina História da Gente. Florianópolis: Ed. Lunardelli, 1987. PIAZZA, Walter Fernando. Santa Catarina: Sua História. Florianópolis: UFSC/Lunardelli, 1983. SANTANA TALAVERA, Agustín. Antropología y turismo ¿nuevas hordas, viejas culturas?. Barcelona: Ariel, 1997. Referências Bibliográficas 1) Periódicos: Acervo do Arquivo Histórico Municipal de São José 1.1) Jornais Jornal Notícias do Dia – São José, 14 e 15 de agosto 2010 Jornal Barreiros – São José, maio de 2010 Jornal Notícias do Dia - São José, 3 de agosto de 2010 Jornal São José em Foco - São José, 4 de agosto de 2010 1.2) Folheteria Folders de divulgação: 1987 a 2010 1.3) Documentação Administração Geci Thives – 1977 Fundo Coletoria/Série Tributação: 1903/1040 2) Entrevistas 2.1) Valdir Correa da Silva, em 15 de julho de 2010 (conhecido como Valdo Santeiro) 2.2) José Geraldo Germano, em 13 de julho e 29 de julho de 2010 2.3) Moacir de Souza, em 18 de agosto de 2010 2.4) João Alfredo Freitas Gomes, em 9 de julho de 2010 Patrimônio Cultural, Territórios e Identidades 199 ISBN 858946903-6 Patrocínio: 9 788589 469036