A PERENIDADE DA RETÓRICA GRECO

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A PERENIDADE DA RETÓRICA GRECO
A PERENIDADE DA RETÓRICA GRECO-LATINA E A HERMENÊUTICA DO
DIREITO COMO INSTRUMENTOS DA PERSUASÃO ARGUMENTATIVA
Eleusa de Carvalho Furquim
RESUMO
Levando-se em conta que a linguagem jurídica, afora sua manifestação oral, se traduz em
textos jurídicos, sejam legais, doutrinários ou jurisprudenciais, o presente trabalho tem por
fim imediato, demonstrar o processo de criação desta linguagem jurídica, principalmente a
partir da retórica e da dialética, elementos imprescindíveis à essência da linguagem textual do
Direito, que objetiva uma persuasão discursiva que intenciona o convencimento. De maneira
mediata, procuraremos nos valer da retórica do discurso argumentativo, como meio
hermenêutico do Direito, e, para tanto, tomaremos emprestadas aos gregos e romanos da
Antiguidade, as valiosas lições sobre a matéria, desde o caráter mais intelectual da jusfilosofia
helênica (as nomoi de sua polis, tinham mais um poder moral e função educativa e cívica), até
a fusão desta filosofia à um plano associado à positivação das leis; daí o florescimento do
Direito como entidade epistêmica autônoma. Procuraremos também demonstrar, que o
clássico método hermenêutico do Direito Romano, conserva-se sempre atual, independente e
sem valorarmos, os legados retóricos de Hegel e tantos outros filósofos e sofistas da
contemporaneidade. Nossa intenção, é demonstrar que a retórica, principalmente no âmbito
jurídico é a essência que alimenta a alma da argumentação jurídica e seu caráter persuasivo, a
fim de que esta delineie o corpo epistemológico do Direito, o ius redigere in artem.
Palavras-Chave: Linguagem Jurídica. Retórica. Hermenêutica. Persuasão Argumentativa.
ABSTRACT
Taking into account that the juridical language, except for its oral manifestation, translates
itself in juridical texts, being legal, doctrinary or jurisprudent, the present work has as its
immediate objective, to demonstrate the process of creation of this juridical language,
beginning mainly with the rhetoric and the dialectic, essential elements to the essence of the
textual language of the law, that has as objective the discursive persuasion that intends to get
the conviction. In an immediate way, we are going to make use of the rhetoric of the
argumentative speech, as a hermeneutic means of the law, and for that, we are going to
borrow from the Greeks and Romans of Antiquity, the valuable lessons about the subject,
since the most intellectual character of the Hellenic jusphilosophy (as nomoi of its polis =
rules of conduct, that had one more moral power and civil and educative function), until the
fusion of this philosophy to an associated plan to the positivism of the law, thence, the
blooming of the law as an autonomous epistemic entity. We are also trying to demonstrate,
that the classical hermeneutic method of the Roman laws always maintains, updated,
independent, and without giving value to the rhetoric legate of Hegel and so many other
philosophers and sophists of the contemporary. Our intention is to demonstrate that the
rhetoric, mainly in the juridical scope, is the essence that feeds the soul of the juridical
argumentation and its persuasive character, so that this one, outlines the epistemological
entity of the right, the us redegere in artem.
Keywords: Juridical Language. Rhetoric. Hermeneutic. Argumentative Persuasion.

Especialista em Direito Civil e Processual Civil; Especialista em Direito Empresarial; Mestre em Direito das
Relações Privadas; Mestranda em Comunicação; Professora do Curso de Direito da Faculdade de Alta Floresta
(FADAF); Advogada. [email protected]
INTRODUÇÃO
Os termos retórica, retórico, têm sido usados com significados pejorativos por quem
não tem conhecimento do que sejam ditos termos. O estudo da Retórica volta a interessar as
universidades europeias, e já, com muito atraso, entre nós, começam a ser esboçados alguns
esforços, no intuito de inseri-la em nossos cursos superiores, nem que seja de forma indireta.
A retórica por definição é a arte da eloquência (HOUAISS, 2001. p.2447). Como
eloquência no foro visa a persuasão, é evidente que, particularizando o termo nos âmbitos da
linguagem forense, deva ser entendida como a arte de apresentar uma ideia ou uma tese de
forma persuasiva.
Classicamente a Retórica Jurídica apresenta-se em três fases: à busca de argumentos,
provas e exemplos, deve-se seguir a ordem pela qual devem estes argumentos e provas ser
encadeados, a fim de que, de maneira clara e precisa, possa-se expor estes argumentos e
provas, já encontrados e postos em ordem, redigidos com todos os requisitos que exige uma
linguagem jurídica lógica e persuasiva.
Ocorre que não estamos na Ágora grega, nem no Senado romano. Os magistrados nem
sempre dão muita importância a memoriais e razões, por isso, o uso da linguagem de um
jurisconsulto deve, ao invés de levar o espírito do julgador sistematicamente a uma conclusão,
surpreendê-lo com o melhor argumento.
1 A RETÓRICA COMO TÉCNICA DE PERSUASÃO
Hoje, conforme já mencionado, comumente, o termo retórica está ligado a conotações
negativas. Principalmente no que se refere às questões de Estado, vinculadas aos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário. Não há crítica mais demolidora, se não mesmo um
insulto, do que dizer que um estadista tem um discurso retórico, visto que a retórica significa,
correntemente, um discurso sem significado, um discurso bonito na forma, mas sem sentido,
ou seja, um falar muito e bonito para não dizer nada. Assim, tem-se remetido a retórica para a
noção de ornamento do discurso.
O que está subjacente, portanto, é uma idéia de retórica reduzida a uma simples teoria
dos ornamentos em linguagem, quando ela originariamente era e, apesar de tudo, continua a
ser, uma teoria da argumentação, teoria onde as figuras ornamentais têm lugar, enquanto
essencialmente tenham valor argumentativo.
Efetivamente, nos dias atuais, a teoria da argumentação tem retomado a velha retórica
grega. Na verdade, a retórica passou a ser um estudo e uma prática de todo discurso que tenha
uma intenção persuasiva, isto é, pode-se falar de retórica sempre que alguém procura
convencer outrem de alguma coisa.
No entanto, nem todo discurso é retórica. Um discurso puramente constatativo, uma
descrição de um acontecimento, não são necessariamente retóricos, como por exemplo,
algumas reportagens jornalísticas, ou certas teorias científicas.
Para se falar em retórica, é preciso uma situação em que haja pelo menos dois
interlocutores, uma situação dialógica. E para que haja um discurso persuasivo ou
argumentativo, é preciso que haja uma situação em que os interlocutores se reconheçam como
passíveis de serem convencidos de alguma coisa. Estas são as condições imprescindíveis à
hermenêutica do Direito, objetivando uma justa e adequada aplicação dos textos jurídicos à
realidade fática.
2 SENTIDOS DA RETÓRICA JURÍDICA
A retórica jurídica, como, aliás, todas as realidades do mundo mental, pode ser
encarada de múltiplas formas. Cremos que as distinções podem ser muitas vezes formais, e
por isso pouco prestáveis, ou antes decorrer de diferenças reais e importantes, e por isso se
revelarem úteis. Uma das distinções que se nos afiguram efetivas, decorrerem de realidades, e,
por conseqüência com utilidade, será a distinção entre Retórica jurídica em sentido estrito e
Retórica jurídica em sentido lato.
Com efeito, tem-se entendido por Retórica Jurídica quer a disciplina (ou o quid sobre
que se debruça) atinente a um vasto conjunto de elementos discursivos, argumentativos,
ponderadores, que se manifestam pelo pensamento problemático (e não dogmático,
sistemático, axiomático, etc.) com presença nas diversas formas por que se manifesta e vive o
Direito. Nesta visão muito lata, Retórica jurídica engloba, na verdade, não só a tópica1 como a
própria dialética. E como nem a tópica é uma só, nem a dialética singular, na Retórica
jurídica, ao menos enquanto estudo de perspectivas e teorias, caberiam várias tópicas e várias
dialéticas.
Mais ainda: vista a questão por outro lado, não há dúvida que nesta lata acepção
cabem retóricas de todas as fontes de Direito, pelo menos de todas as fontes voluntárias. Não
1
Tópica Jurídica– arsenal de ideias e de argumentos com que, por um lado, pensamos e organizamos o nosso
pensamento, e, por outro, nos preparamos para as batalhas de convencer um público (retórica), ou vencer um
adversário (dialética).
sendo para nós claro afirmar-se que os usos ou até o costume, por exemplo, se afirmem com
uma retórica (tal não poderá ser dito a não ser de forma muito metafórica). Por outro lado, já é
evidente que a Lei está impregnada de retórica (desde as discussões políticas, parlamentares,
trabalhos de comissão, até se plasmar tal retórica em exposições de motivos, preâmbulos, e
até campanhas públicas de divulgação e promoção de certa legislação, ou planos políticos).
O mesmo se diga, ou quase, para a jurisprudência: os tribunais assumem uma retórica
desde logo denotada pela arquitetura dos lugares de administração da justiça, que se adensa,
em círculos concêntricos, desde os espaços exteriores e dos símbolos que os palácios da
justiça, fóruns ou repartições públicas judiciárias, ostentam nas entradas e corredores, até à
decoração e disposição das salas de audiências, passando depois às vestes forenses, e
finalmente desembocando na linguagem verbal ritualizada do Direito.
Linguagem que, como sabemos e devemos proclamar sempre, tem uma função e uma
realidade técnica, e cujo hermetismo não terá sido fruto de uma vontade de ocultar, mas
apenas o resultado da décalage natural entre a evolução semântica corrente da linguagem
comum e a cristalização semântica do léxico dos velhos juristas, a começar pelos romanos.
Linguagem que ainda guardamos hoje em muitos casos, e desde logo, e principalmente, no
Direito Civil. Linguagem comum tornada linguagem técnica e cristalizada. Mas linguagem
que, independentemente do seu sentido denotativo, adquire conotações e funções não só
metalingüísticas relevantes, como até funções em grande medida mágicas.
O ritual judiciário é, em grande medida, pois, uma questão retórica, nesta perspectiva
lata do entendimento da Retórica e da Retórica Jurídica.
De outra parte, a Literatura, o Teatro, o Cinema dão-nos interessantes exemplos do
efeito tantas vezes acabrunhador, niilizador do ritual forense, mesmo apenas na sua dimensão
ainda não discursiva.
Mas no seio do drama ou da encenação da justiça, o que sempre apesar de tudo ganha
mais relevo, é a retórica propriamente forense, a retórica dos causídicos, e sobretudo, deve
dizer-se, o pleitear oral, na barra do tribunal, e especialmente nas causas penais.
Pode ser que no futuro as coisas venham ser diferentes. Encontramo-nos já num tempo
em que o Direito Administrativo abarca mais da metade de todo o Direito, e o Direito
Constitucional efetivamente se assenhoreou das têtes de chapitre de todos os ramos do
Direito. Por isso, pode ser que a relevância retórica possa se deslocar para novos terrenos.
Mas para isso terá também de haver alterações processuais de tomo. Para que tal ocorresse,
seria preciso que a palavra dos advogados, e sobretudo a palavra proferida em juízo e perante
juízes e público, tivesse mais lugar nessas jurisdições.
No momento, e embora o Direito Civil continue a ser o mais eficaz com a sua singela
retórica de evidência e de adesão ao senso comum que passa sutilmente por bom senso, ao
ponto de ser considerado como o único direito eficiente, pela sua tecnicidade e aparente nãoideologia, e apesar da crescente importância do Direito Público político, é ainda no domínio
do crime que a Retórica em sentido estrito se espraia e brilha.
As defesas penais (mais as defesas que as acusações) são ainda, tradicionalmente,
classicamente, o lugar de eleição do exercício oratório, persuasivo, do discurso que visa
convencer, e que para tal se orna de ademanes de beleza, flechas de sentimento, argumentos
de razão. As causas penais são comumente consideradas como as grandes causas jurídicas; há
também retórica nisso.
Eis que chegamos à ideia de uma Retórica Jurídica em sentido estrito. Obviamente não
apenas para as defesas penais, mas para o trabalho sobretudo oral das alegações dos
advogados em todo e qualquer ramo do Direito.
Há tópica em momentos não argumentativos ou persuasórios: tópica de construção das
idéias, que talvez não seja ainda retórica. Por exemplo, na pura e simples construção de uma
teoria jurídica doutrinal, ou na elaboração, ainda sem especiais preocupações de legitimação,
de um normativo. Essa tópica não será Retórica Jurídica em sentido estrito.
Há dialética nos debates parlamentares em que se esgrime por uma lei, e haverá
evidentemente nos discursos e intervenções forenses dos causídicos em diálogo. Aqui é mais
complicado negar que nesta dialética geral não haja retórica particular de cada interveniente,
especialmente da acusação e da defesa.
3 A RETÓRICA E A HERMENÊUTICA DO DIREITO
3.1 A Retórica como Teoria da Argumentação
A palavra retórica, originária do grego rhetoriké (HOUAISS, 2001, p.2447), tem sido
entendida historicamente em acepções muito diversas. Em sentido lato, a retórica se mistura
com a poética, constituindo na arte da eloqüência em qualquer tipo de discurso. Além dessa
acepção, outro sentido que nos interessa no presente estudo, é a concepção mais restrita que
identifica a retórica como faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz
de gerar a persuasão. É o que se denota da definição de Aristóteles em seus estudos sobre a
Retórica:
É evidente que a retórica não pertence a um gênero definido, mas acontece-lhe
como à dialética, pois é útil: sua tarefa não consiste em persuadir, mas em
reconhecer os meios de persuasão mais pertinentes para cada caso, como também
ocorre em todas as outras artes (pois não é próprio do médico fazer alguém sadio e
sim dirigir-se para esse fim até onde seja possível [...], o próprio dessa arte é
reconhecer o convincente e o que parece ser convincente, do mesmo modo que
corresponde à dialética reconhecer o silogismo e o silogismo aparente.
(ARISTÓTELES apud CHAUÍ, MARILENA, 2002. p. 480)
A arte retórica, portanto, não é ação de persuadir, mas de conhecer os meios
adequados para persuadir e distingui-los dos que são aparentemente persuasivos (CHAUÍ,
2002. p. 479-480). Em primeira ordem, a retórica exerce a persuasão por meio de um
discurso. Não se recorre a um experimento empírico e nem à violência, mas procura-se ganhar
a adesão intelectual do ouvinte (auditório), apenas com o uso da argumentação. Em segundo
lugar, a retórica se preocupa mais com a adesão do que com a verdade. O objetivo daquele
que a exerce é obter o assentimento do ouvinte à tese que apresenta. A verdade ou falsidade
da mesma é uma questão secundária.
Em terceiro plano, a retórica não se limita a transmitir noções neutras e assépticas, mas
tem sempre em vista um determinado comportamento concreto resultante da persuasão por ela
exercida, já que se propõe a modificar não só as convicções, mas também as atitudes delas
provenientes. De outra parte, frisamos a necessidade de entender a retórica, a partir do
processo histórico de sua formação e evolução.
3.2 Origens Históricas da Retórica do Direito
A ideia do nascimento epistemológico do Direito, do ius redigere in artem, começa no
mundo grego da antiguidade, e surge precisamente ligado à Retórica. Apesar das
investigações sociológicas, históricas e até antropológicas, dar-nos conhecimento de que a
normatividade se exprime de múltiplas formas, e se mescla com diversas manifestações do
mágico, do sagrado e do poder, é na Grécia, especialmente através de Aristóteles, sobretudo
em seus estudos sobre Retórica, que o Direito, no sentido de juridicidade, ganha autonomia.
Quem desejar avaliar até que ponto o Direito Romano se tornou uma arte, no
sentido muito especial em que Cícero entende esta palavra, quer dizer, uma
doutrina coerente, que simplesmente dê uma vista de olhos sobre as Institutas
romanas de Direito [...] Porque, o clássico manual de ensino romano realiza os
votos de Cícero. Toda a ciência do Direito se organiza numa pirâmide de noções
tanto quanto possível definidas. No vértice da pirâmide, o Direito em si mesmo,
objeto da nova disciplina. Para definir, ou para o situar em relação a outras
disciplinas, os romanos utilizaram o contributo da filosofia grega. Eles exploraram
sobretudo, segundo cremos, a filosofia de Aristóteles, transmitida na retórica
judiciária: porque Aristóteles nas suas Éticas, na sua Política e na sua Retórica,
tinha especialmente feito a análise da experiência jurídica das cidades gregas, muito
próximas das romanas. (VILLEY apud Cunha 2003, s/p)
Já Roland Barthes assinalava a ligação da retórica com as questões jurídicas da
propriedade:
Dá gosto verificar que a arte da palavra está originalmente ligada a uma
reivindicação de propriedade, como se a linguagem, na sua qualidade de objeto de
uma transformação e condição de uma prática, se tivesse determinado, não a partir
de uma mediação ideológica (como certamente acontece a tantas outras formas de
arte), mas a partir da socialidade (sic) mais nua, afirmada na sua brutalidade
fundamental, a da possessão de terras: começamos a refletir sobre a linguagem para
defendermos os nossos bens. (BARTHES apud CUNHA, 2003, s/p)
Sob este aspecto, relevante assinalarmos a importância de uma retórica que busque a
verdade, rectius. Este alerta pode ver-se no diálogo de Platão, Górgias, cujo tema central é,
precisamente a Retórica, assumindo Górgias a defesa de uma retórica sofismática. (PLATÃO,
1986)
O Direito, enquanto disciplina autônoma, curiosamente nasce como uma espécie de
resgate da boa contra a má retórica. Não como poderia pensar-se, como triunfo da retórica
tout court2, nem como poderia estar na mente de outros mais letrados, como uma luta dos
fatos contra as palavras, ou da ciência contra a eloqüência.
Aristóteles parte das críticas de seu mestre Platão à retórica sofística, claramente
presentes no diálogo citado, para propor uma retórica de outra natureza. Para a compreensão
deste trânsito da sofística grega ao ius redigere in artem, eloqüentes se revelam os símbolos
grego e romano da Justiça e do Direito, aliás, acompanhados pelas respectivas palavras.
Deixemos de lado, até pela impertinência do assunto no presente trabalho, o fato, hoje
cada vez mais plausível, de que a venda da Justiça romana pode nunca ter existido. Assim
mesmo, é fato incontroverso que uma deusa da Justiça, como as gregas Themis ou Diké, sem
fiel da balança, mas armadas de espada, representam uma realidade epistomológico-normativa
anterior e menos desenvolvida que a deusa romana Iustitia, com fiel da balança e a espada
punitiva, e exprimindo-se lingüisticamente, mesmo em termos populares, pelo que é reto, de
(di)-rectum.
Assim, o direito grego pode posar para a História como ainda não direito, como
normatividade ainda sincrética, fase que só o Direito Romano e sua deusa mais rigorosamente
mediadora, viria a superar.
Dos gregos passemos aos romanos. Foi em Roma que, sob a inspiração helenística,
prática e historicamente floresceu o Direito como entidade epistêmica autônoma. No plano
puramente historiográfico, deve assinalar-se que este surgimento está para alguns associados à
2
Sobre Retórica tout court, deve-se levar em conta, a medida em que a Retórica Jurídica também é Retórica
Geral ou tout court, aplicada ao âmbito jurídico.
positivação em leis (sobretudo na Lei das Doze Tábuas), do direito anteriormente oral e por
isso tido por incerto, campo fértil para as interpretações pro domo por parte dos magistrados.
Parece, porém, que a criação da autonomia do Direito vem de antes da positivação
normativa, e que tal positivação é apenas um momento mais visível e de amadurecimento. O
trabalho da sociologia e da axiologia por parte dos primeiros legisladores, não é ainda de
positivação escrita, mas de real importância às finalidades do Justo, do Direito. Todavia, para
o presente trabalho, não importa muito discutir esta questão.
Com efeito, interessa-nos, sobretudo, a dimensão conceitual, e até simbólica e mítica,
da disciplina do Direito, que verdadeiramente cunhou o imaginário ocidental. Recordemos,
pois, antes de mais nada, as bases conceituais desse instituto (Direito), para melhor
compreendermos o lugar da Retórica nesse novo campo do saber, a scientia iuridica, a ars
iuridica.
Sabemos, segundo uma velha e afortunada fórmula de Ulpiano, que o Direito tem
como conteúdo, como princípio, como fim, a Justiça, uma constante e perpétua vontade de
atribuir à cada um o que é seu (constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi).
Na verdade, o Direito deriva da Justiça (...unde nomen iuris descendat...est autem a
Justitia appelatum...), e a arte jurídica, a jurisprudência, tendo como pressuposto o
conhecimento de certas coisas humanas e de certas coisas divinas (divinarum atque
humanarum rerum notitia), dedica-se ao bom e ao eqüitativo ( ars bona et aequi), procurando
o conhecimento do justo e do injusto (iusti et iniusti scientia). Daí, a consideração de juristas
como sacerdotes da justiça.
Porém, esta busca do justo, do équo, sendo perseguida por homens falíveis, apenas
pode aspirar à probabilidade. O objeto da arte jurídica não é uma verdade absoluta, nem uma
verdade formalmente pressuposta ou postulada, axiomática. É, pelo contrário, uma questão
aporética e não apodítica.3
Trata-se de uma investigação a ser levada a cabo por forma dialética, procurando-se
que a luz nasça da discussão entre as versões adversas, pela intervenção decisória de um juiz,
um terceiro, independente das partes e conhecedor dos respectivos argumentos.
Afirma Aristóteles na Metafísica, como que alargando este processo a todo o tipo de
julgamento, como um bom método para formar um juízo: “[...] aquele que ouviu todos os
argumentos em conflito, tal como se fossem as partes de uma causa, tem de se encontrar em
3
Sobre definições: aporético – juízos que exprimem impasse, incerteza, falta de solução e apodítico – juízo que
exprime uma necessidade lógica. In: MARCONDES, HELTON J.D. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Zahar, 1996. p.14
melhor posição para julgar” (ARISTÓTELES,1969, p.23).
Ainda Aristóteles, nos Tópicos do Organum, dá-nos os exemplos extremos de matérias
sobre que a disputa dialética deve ser excluída: questões de excessiva proximidade ou de
exagerada distância. Assim considera:
Quem proponha a questão de saber, por exemplo, se é preciso ou não louvar os
deuses e amar os pais, não pede mais que uma boa correção, e quem pergunta se a
neve é branca ou não, só tem que abrir os olhos. A controvérsia nunca se deve criar
nem acerca de assuntos cuja demonstração é próxima, nem acerca de assuntos cuja
demonstração é longínqua. No primeiro caso, não há qualquer dificuldade e, no
segundo, as aporias são muito grandes para um simples exercício disputativo.
(ARISTÓTELES, 2002, p. 19)
O método dialético fica, assim, especialmente vocacionado para essas questões
humanas, por vezes demasiadamente humanas, que têm nas disputas forenses precisamente o
seu grande exemplo, o seu paradigma. A meta do Direito, ou seja, o seu caminhar para a
Justiça, ainda que seja um caminho imperfeito, não pode deixar de ser fundamentalmente o
dialético.
Há nesta metodologia, importantes intersecções interdisciplinares ou afins. Por
exemplo, uma das questões relevantes, é o problema de reconstruir a verdade histórica, até
para corroborar efeitos probatórios. E a História clama, também, pelos seus documentos, pelas
suas provas, assim como a Ciência, reclama poder provar a veracidade do que diz.
Mas, enquanto a Ciência pura, natural ou lógica, como a biologia, a física ou a
matemática, pode, pelo menos em princípio reencenar como que fora do tempo os fatos, já as
Ciências Sociais e Humanas, e desde logo a História e o Direito, se vêm forçados a uma prova
em grande medida retórica: o passado passa a ser uma estória, um texto, a que se dá o valor de
História e de verdade, ao menos formalmente jurídica. Esta incapacidade de reverter o tempo
é um limite fundamental à indagação heurística do Direito e das Ciências Sociais e Humanas,
e determina-lhes o caráter e a profunda dependência discursiva.
3.3 O Método Hermenêutico do Direito a Partir da Episteme Romana
A fim de termos uma visão da interpretação e aplicação do Direito, a partir dos
elementos da dialética, da retórica e da argumentação, imprescindível um retorno às valiosas
lições do Direito Romano.
Assim, vejamos segundo a ótica da autonomia epistêmica do Direito, legado de raízes
romanas, quais as principais funções dos juristas, quanto ao ius redigere in artem. Tudo pode
resumir-se em três verbos, densos de significado: Cavere – Agere – Respondere.4
A primeira função, o Cavere, é a de profilaxia. Sobretudo, ela se dirige hoje, às
incumbências dos notários, dos cartorários, dos procuradores públicos, dos advogados, enfim,
dos juristas-conselheiros em geral, e se traduz no ato de aconselhar, precisamente. Aqui, a
dialética exerce-se surdamente, sobretudo antecipando argumentos e posições contrárias, e
recordando casos em que a controvérsia tenha surgido; digamos que a dialética se exerce na
memória.
A retórica só tem lugar no convencimento do cliente, e normalmente, convencimento
para que não descure a questão, para que cumpra as formalidades ou siga um caminho de
defesa (ou ataque), ou uma linha de comportamento de sua vida jurídica. Em linhas gerais, o
Cavere liga-se mais a virtude da Prudentia.
A segunda função, o Agere, é a mais claramente retórica. É no atuar no foro que está a
parte mais nobre do argumentar para persuadir. Trata-se da função por excelência do
advogado e dos procuradores públicos, podendo em casos extremos, ser alargada à parte
representada no processo.
A terceira função, o Respondere, começa por ser constituída pelas responsa, as
respostas que são as sentenças proferidas pelos juízes, ou os pareceres emitidos por quaisquer
magistrados. É no respondere que se testa na prática, que se afirma e que se consagra a
Scientia Iuridica.
O respondere não exclui, de modo algum, a dialética e a própria retórica. Sobretudo,
porque o saber jurídico assume uma dimensão problemática, e não apenas dogmática. Mas o
seu estilo será sempre, pelo menos aparentemente, inferior em retórica ao agere. Entretanto,
não podemos esquecer do alto valor persuasivo do argumento de autoridade ínsito na própria
metodologia expositiva dogmática.
Por outro lado, não podemos esquecer que esta tríade de funções jurídicas se insere no
universo jurídico-cultural romano, em que avulta em todo o Direito a função da
jurisprudência, não como atividade jurisdicional simples, mas como doutrina provida de uma
intrínseca autoridade, derivada da competência e sabedoria de seus autores, os iuris consulti,
os jurisconsultos (hoje, encarna a figura do advogado). Ousaríamos dizer que esta
iurisprudentia foi, nas suas diferentes fases, a mais importante fonte do Direito.
Ora, a Iurisprudentia, assim, acaba por identificar-se, ou melhor, desde os primórdios
4
O contexto histórico-juríco desenvolvido a partir deste ponto, tem como base as referências bibliográficas:
CRUZ, Sebastião. Ius. Derectum, Relectio. Coimbra: Editora do Autor. 1971. p. 291 e seguintes; ALVES, José
Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 29 e seguintes; THOMAS, Marky. Curso
Elementar de Direito Romano. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 17 e seguintes.
se identificou com a própria Arte do Direito. Por isso, não é de se estranhar que a atualidade
da velha máxima jurídica romana:“sine scripto in sole interpretatione prudentium consistit” 5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O método (meta – odos, caminho para) do Direito, encontra-se irrefutavelmente
ligado aos textos. Por isso a metodologia jurídica é por um lado, uma Hermenêutica, e, por
outro, uma Retórica. O jurista lê textos e cria textos e em ambos os casos, interpreta.
Poderíamos ser tentados a afirmar a prevalência de uma dessas faces sobre a outra,
mas qualquer discussão teórica a este respeito, pelo menos até o momento restaram
infrutíferas, até porque sempre há uma marca retórica na hermenêutica, e não pode deixar de
haver uma base hermenêutica na ação retórica.
Todavia, esta ideia de redução da metodologia à sua expressão mais simples e mais
verdadeira é fecunda, e, poderíamos dizer que a Metodologia do Direito é sobretudo um
trabalho de Interpretatio.
Na própria feitura das normas, interpreta-se o real e criam-se textos que são também
seus instrumentos de interpretação. No pleitear, de novo se interpreta, como vimos, o que
acontece também no julgar. Ao fazer as leis, com base nelas ir à juízo, ou sentenciar, em
todos os casos, há uma retórica ao menos latente.
Todo o preâmbulo legislativo, toda a peroração forense, toda a motivação da sentença
pretende convencer um auditório. Mesmo a fundamentação do ato administrativo tem essa
função.
A retórica manifesta-se, assim, na necessidade de persuasão, nos casos imediatos de
natureza forense, ou, imediatamente, nos de legitimação, no domínio legislativo ou
jurisprudencial; mas em todos os casos, está sempre presente.
Por isso, podemos afirmar que a metodologia do Direito é uma Hermenêutica ou uma
Retórica ou ambas as coisas. Ou a mesma coisa que sob essas duas faces se manifesta. A
expressão Interpretatio parece, pelo menos em certo sentido, ser capaz de difundir os dois
vetores, as duas racionalidades, as duas preocupações.
REFERÊNCIAS
5
O jurista tem, antes de mais nada, que observar e compreender o real, a natureza.
ALVES, J.C.M. Direito Romano. 10.ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996. v. 1
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969. (Livro
1)
______. A Ética. Tradução Paulo Cássio M. Fonseca. Bauru-SP: Edipro, 1995. (Série
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______. Ética a Nicômano. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Claret, 2002. (Coleção a
obra prima de cada autor)
BITTAR, E.C.B. Linguagem jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001.
CHAUÍ, M. Introdução a história da filosofia. Dos pré-socráticos à Aristóteles. 2.ed., São
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CÍCERO, M.T. Da república. Tradução Amador Cisneiros. Bauru-SP: Edipro, 1995. (Série
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