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ISSN 1517-2422 cadernos metrópole Subjetividade e cultura na metrópole contemporânea Cadernos Metrópole v. 13, n. 26, pp. 331-576 jul/dez 2011 Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–, Semestral ISSN 1517-2422 A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22 1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles CDD 300.5 Periódico indexado na Library of Congress – Washington Cadernos Metrópole Profa. Dra. Lucia Bógus Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes 05015-001 – São Paulo – SP – Brasil Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão 21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 São Paulo – SP – Brasil Telefax: (55-11) 3368.3755 [email protected] http://web.observatoriodasmetropoles.net Secretária Raquel Cerqueira ssubjetividade ubjetividade e c cultura u ltt u r a na n a metrópole m e t ró p o l e c contemporânea ontemporânea PUC-SP Reitor Dirceu de Mello EDUC – Editora da PUC-SP Direção Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Ana Maria Rapassi, Cibele Isaac Saad Rodrigues, Dino Preti, Dirceu de Mello (Presidente), Marcelo da Rocha, Marcelo Figueiredo, Maria do Carmo Guedes, Maria Eliza Mazzilli Pereira, Maura Pardini Bicudo Véras, Onésimo de Oliveira Cardoso Coordenação Editorial Sonia Montone Revisão de português Sonia Rangel Tradução de francês Elaine Philipe Revisão de inglês Márcia Costa Bonamin Revisão de espanhol Vivian Motta Pires Projeto gráfico, editoração e capa Raquel Cerqueira Rua Monte Alegre, 984, sala S-16 05014-901 São Paulo - SP - Brasil Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ cadernos metrópole EDITORES Lucia Bógus (PUC-SP) Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ) COMISSÃO EDITORIAL Eustógio Wanderley Correia Dantas (UFC, Ceará, Brasil) Luciana Teixeira Andrade (PUC-MG, Minas Gerais, Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) Sérgio de Azevedo (UENF, Rio de Janeiro, Brasil) Suzana Pasternak (USP, São Paulo, Brasil) CONSELHO EDITORIAL Adauto Lucio Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) Aldo Paviani (UnB, Brasília, Brasil) José Antônio F. Alonso (FEE, Rio Grande do Sul, Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, México) José Machado Pais (UL, Lisboa, Portugal) Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) José Marcos Pinto da Cunha (Unicamp, São Paulo, Brasil) Ana Fani Alessandri Carlos (USP, São Paulo, Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (UTL, Lisboa, Portugal) Ana Lucia Nogueira de P. 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Cavalcan Scocuglia Territorial prac ces of urban middle class: 419 Prá cas territoriais da classe média urbana: o Jardim Icaraí em Niterói/RJ Jardim Icarai (Icaraí Garden) in Niterói/RJ Brasilmar Ferreira Nunes Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 331-576, jul/dez 2011 337 From Simmel to everyday life 439 De Simmel ao co diano na metrópole pós-urbana in post-urban metropolis Silke Kapp The metropolis as a space-a kind 451 A metrópole como espaço- po de uma experiência of sensory experience sensível Julieta M. de Vasconcelos Leite The city of Simmel, the city of men 461 A cidade de Simmel, a cidade dos homens Lúcia Leitão City postmodern gentrifica on 473 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção and the social produc on of fragmented space social do espaço fragmentado Luís Mendes The phenomenon of counterurbaniza on 497 El fenómeno de contraurbanización y el protagonismo de ciudades menores and the prominence of smaller ci es y de espacios rururbanos metropolitanos and rururban metropolitan areas María Mercedes Cardoso Homeless families and families without 523 Família sem casa e casas sem família: o caso homes: the case of the Metropolitan da Região Metropolitana de Belo Horizonte Region of Belo Horizonte Ana Paula Maciel Ana Paula Baltazar Poor housing and tenements 549 Habitação precária e os cor ços da área in downtown Santos central de Santos André da Rocha Santos 338 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 331-576, jul/dez 2011 Apresentação Imbuída de intento em inovar no lançamento de cada um dos números dos Cadernos Metrópole, a Comissão Editorial implementa conjunto de estratégias voltadas ao aprimoramento do veículo comentado, cuja essência é a de lidar com a problemática urbana contemporânea. De estratégia pautada no lançamento de números temáticos, migramos para um formato mais aberto e que não rompe completamente com essa tradição, peculiar de nosso periódico. Guarda-se a ideia inicial do temático, preservando em sua estrutura espaço de reunião de papers no formato de dossiê, ao mesmo tempo em que se dispõe a publicar conjunto de trabalhos submetidos livremente pelo autores em sua plataforma. O Cadernos Metrópole 26 se apresenta, portanto, como um divisor de águas em nossa política de editoração. Seu foco é a sociabilidade metropolitana, inspirado em intento inicial de ter como ponto de partida a contribuição de estudo clássico do sociólogo e filósofo alemão George Simmel: A metrópole e a vida mental. Como diz Jeffrey Alexander, clássica é uma obra que possui um status privilegiado em face da exploração contemporânea do tema. Além disso, há também nos clássicos, ou pelo menos em alguns deles, a possibilidade de antecipação do porvir. Essa é a sensação deixada na leitura do ensaio em foco: estavam todas aquelas condições já plenamente desenvolvidas na Berlim do início do século XX, ou algumas delas só se fariam sentir mais contemporaneamente? Passado mais de um século da sua publicação, o estudo citado continua a instigar os pesquisadores, suscitando novas interrogações e desdobramentos. Por isso é considerado, nas ciências sociais, um dos artigos cuja leitura se torna obrigatória, não por sua importância histórica, mas justamente pela atualidade das questões apresentadas e pela possibilidade de estabelecimento de link com o que contemporaneamente já se produziu. Por essa razão, e como se verá nas leituras dos artigos deste número dos Cadernos Metrópole, os clássicos lidos e interpretados com liberdade e ante os desafios do contexto contemporâneo, são um convite constante à nossa imaginação e inventividade no campo da reflexão acadêmica, principalmente se considerarmos as transformações observadas nas metrópoles contemporâneas, distantes mais de um século da Berlim de Simmel. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 339-340, jul/dez 2011 339 Apresentação Espelhando-se nesse clássico, o Cadernos Metrópole disponibiliza conjunto de artigos cujo foco é a sociabilidade metropolitana. Para isso, contou com a participação de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, assim como de diferentes contextos nacionais e internacionais, guardando o caráter cosmopolita do Cadernos Metrópole, como o são a vida e a sociabilidade metropolitana. Na estruturação do número 26 do Cadernos Metrópole reunimos papers distribuídos: – Primeiro, no tratamento da subjetividade metropolitana a partir do olhar europeu, com apresentação de trabalhos escritos por dois pesquisadores: “Cidadania, inclusão e voz”, de Manuel Villaverde Cabral e “Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea”, de Claudine Haroche. – Segundo, com conjunto significativo de artigos inspirados na obra de Simmel, filtrado a partir dos contextos atuais e incluídos neste número dos Cadernos como dossiê. Em se tratando de artigos associados à racionalidade das metrópoles periféricas, apresentam-se como contribuições instigantes, posto possibilitarem, a partir desse diálogo, apresentação de novos modos de subjetivação nas metrópoles da atualidade. Os textos apresentados são o seguinte: “Narrativas sobre a metrópole centenária: Simmel, Hessel e Seabrook”, de Carlos Fortuna; “Cultura e urbanidade: da metrópole de Simmel à cidade fragmentada e desterritorializada”, de Jovanka B. Cavalcanti Scocuglia; “Práticas territoriais da classe média urbana: o Jardim Icaraí em Niterói/RJ”, de Brasilmar Ferreira Nunes; “De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana”, de Silke Kapp; “A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível’, de Julieta M. de Vasconcelos Leite; “A cidade de Simmel, a cidade dos homens”, de Lúcia Leitão e “Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado”, de Luís Mendes. – Terceiro, a contemplar artigos submetidos livremente na plataforma da revista. Da demanda induzida, com lançamento de edital temático para o número 26, apresenta-se espaço voltado à recepção de contribuições cuja natureza possibilita apreensão das temática de estudo desenvolvidas na área de planejamento urbano e correlatas. Foram incluídos, nessa perspectiva, os trabalhos: “El fenómeno de contraurbanización y el protagonismo de ciudades menores y de espacios rururbanos metropolitanos” de María Mercedes Cardoso; “Família sem casa e casas sem família: o caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte”, de Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar e “Habitação precária e os cortiços da área central de Santos”, de André da Rocha Santos. A nossa expectativa é que este número represente uma real contribuição, a partir dos novos desafios colocados pela vida metropolitana contemporânea, às pesquisas que se fazem hoje no Brasil sobre a sociabilidade e os modos de vida urbanos. Eustógio Wanderley Correia Dantas Luciana Teixeira Andrade Comissão Editorial Cadernos Metrópole 340 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 339-340, jul/dez 2011 Cidadania, inclusão e voz* Citizenship, inclusion and voice Manuel Villaverde Cabral Resumo Em primeiro lugar, são propostas as referências que presidem a uma teoria conjunta da cidadania e da sociedade civil; em segundo lugar, é apresentada sinteticamente a reflexão produzida na última década e meia acerca da exclusão e inclusão sociais, bem como as suas manifestações concretas mais importantes, que continuam a se desenvolver sob os nossos olhos; em terceiro lugar, usaremos algumas investigações acerca da sociedade portuguesa para tentar identificar a natureza da relação entre cidadania e inclusão, bem como os défices de ordem cívica e política, ou seja, os défices de “voz”, que se observam a este nível; a concluir, são apresentados alguns desenvolvimentos recentes das modalidades de exercício da “voz” por parte dos cidadãos portugueses numa perspectiva comparada. Abstract Firstly, the references which underlie a joint theory of citizenship and civil society are proposed. Secondly, we present a brief reflection on what has been produced over the last fifteen years about social exclusion and inclusion as well as their more concrete manifestations that keep on taking place right under our eyes. Thirdly, we use some investigations of the Portuguese society to try to identify the nature of the relationship between citizenship and inclusion. We also examine the deficits in civic and political order, that is, deficits of “voice”, which are observed at this level. As a conclusion we show some recent developments of the modality of exercising "voice" by Portuguese citizens in a comparative perspective. Palavras-chave: cidadania; inclusão; saída; voz. Keywords: citizenship; inclusion; output; voice. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 Manuel Villaverde Cabral Trata-se aqui de uma breve reflexão in- Dividi então o texto em três momentos formativa e despretensiosa sobre os temas da distintos. Em primeiro lugar, procurarei ofere- cidadania e da inclusão, aos quais acrescentei cer rapidamente as referências que presidem a o conceito de “voz”, que pedi emprestado ao tudo aquilo que se poderia chamar uma teoria pequeno grande livro do economista político conjunta da cidadania e da sociedade civil; em norte-americano Albert Hirschman, cujo título segundo lugar, debruçar-me-ei sinteticamente cito em inglês por ser difícil de traduzir: Exit, sobre a reflexão produzida na última década Voice and Loyalty (Hirschman, 1970). Exit quer e meia acerca da exclusão e inclusão sociais, dizer saída, mas nesse livro significa muito mais bem como as suas manifestações concretas do que isso. Pode designar o ato de deixar de mais importantes que continuam a desenvol- comprar uma determinada marca ou deixar ver-se sob os nossos olhos; em terceiro lugar, de fazer compras numa determinada loja, mas usarei algumas investigações acerca da socie- pode também significar o abandono de uma dade portuguesa para tentar identificar, generi- organização à qual se pertence, por exemplo, camente, a natureza da relação entre cidadania um partido ou um sindicato, e pode ainda sig- e inclusão, bem como os défices de ordem cívi- nificar, no nível dos Estados, qualquer coisa co- ca e política, ou seja, os défices de voz, que se mo “votar com os pés”, por exemplo, emigrar. observam a este nível, concluindo com a apre- Exit é uma forma de exprimir silenciosamente sentação de alguns desenvolvimentos recentes o descontentamento, seja com uma firma, com das modalidades de exercício da voz por parte uma organização ou com um sistema político. dos cidadãos. Voice, voz, significa a expressão não silenciosa desse mesmo descontentamento. Por seu turno, Loyalty, lealdade, significa a permanência passiva nos respectivos grupos de pertença, o assen- Cidadania e sociedade civil timento com o statu quo ou a ordem vigente. O argumento de Hirschman é que as Sociedade civil e cidadania remetem, de algum respostas positivas ou negativas das firmas, modo, uma para a outra, sendo difícil dizer qual organizações ou Estados às ameaças de declí- precede ou qual pressupõe a outra. Em todo nio, que sempre os confrontam, reside numa caso, pode dizer-se que sociedade civil – isto é, feliz ou infeliz combinatória entre as três atitu- a organização de redes e grupos autônomos de des referidas, sendo a “voz”, previsivelmente, defesa de valores e interesses distintos ou con- aquela que faz a diferença. Se a “saída” for corrrentes entre si e, sobretudo, distintos das esmagadora ou se prevalecer uma “lealdade” esferas de interesse do Estado e das Igrejas – passiva, a resultante será o declínio; inversa- constitui a materialização efetiva do exercício mente, uma resposta positiva e eficiente ao da cidadania. Contudo, se a noção de socieda- declínio resultará daquilo que o autor designa de civil só faz sentido com a formação do Esta- como the elusive optimal mix of exit and voice, do moderno no século XVII, ela pode emergir ou seja, a fugidia combinação optimal entre antes mesmo do reconhecimento dos direitos “saída” e “voz”. políticos e da sua institucionalização sob os 342 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 Cidadania, inclusão e voz regimes liberais, ao longo de um processo lento a nacionalidade garantida pelos Estados e tudo menos linear, cheio de avanços e recuos absolutistas, originariamente no século XVII e da franquia eleitoral individual, percurso este prolongando-se pelo XVIII e em boa parte do que, em Portugal, apenas se universalizou de XIX, reabsorveu a sociedade civil embrionária forma genuína com o 25 de Abril de 74, fazen- das cidades medievais e renascentistas. Já a do então coincidir cidadania e sociedade civil nacionalidade enquanto cidadania – conjunto num mesmo espaço estadual nacional. de direitos civis, políticos e sociais – é algo de A noção de cidadania parece, no entan- muito mais tardio, identificado apenas a se- to, ser anterior à de sociedade civil e remeter guir à 2ª Guerra Mundial por Thomas Herbert para a emergência dos direitos pessoais e Marshall, num ensaio luminoso de 1950 so- corporativos que os habitantes de algumas bre cidadania e classes sociais, que desde en- cidades medievais, os chamados “burgueses”, tão tem constituído, de algum modo, a bíblia incluindo em países como Portugal, foram ad- da inclusão social. Marshall (1992) estava, na quirindo através de determinados tipos de fo- realidade, a teorizar o início do contrato social rais, como na Lisboa do final do século XIV. O Keynesiano – devido, como sabemos, ao futu- ponto é que a cidadania nasce territorializada, ro Lord Beveridge – que configurava para as circunscrita primeiro às cidades e suas áreas próximas décadas o modelo do Welfare State, de influência, tipicamente na Itália renas- adotado mutatis mutandis nas democracias centista, e ainda hoje é possível observar um europeias, com muitas diferenças já também efeito metropolitano positivo sobre o exercício teorizadas (Esping-Andersen, 1990), enquanto ativo da participação cívica e da mobilização contrapartida material ou, se preferirmos, como política (Cabral, 2008), como se, para usar substanciação dos direitos conferidos à cidada- uma expressão recuperada por Weber, o ar da nia cívica e política pela democracia. cidade trouxesse, efetivamente, um espírito Estes novos direitos sociais, aos quais a de liberdade (Weber, 1958/1921). Só depois sociedade portuguesa ascenderia, à sua ma- a cidadania se foi estendendo, mitigadamen- neira, com o 25 de Abril e de então para cá, te, aos chamados Estados-Nação, sob a forma correspondem, keynesianamente, à necessida- daquilo a que damos, correntemente, o nome de de sustentar a procura solvável das famílias de nacionalidade, mas que os anglo-saxônicos nas três situações em que, identificadamente, designam por citizenship, mantendo assim a os membros da população ativa, os trabalha- ligação entre cidadania e território. dores, não estão em condições de trabalhar e, A nacionalidade, nos poucos territórios portanto, de angariar recursos próprios: o de- onde de início ela se vai manifestando, Por- semprego, a velhice e a doença. Com a evolu- tugal é um deles, começa na realidade por ção do impropriamente chamado “estado-pro- ser o direito de proteção interna e externa de vidência” – já que o Estado nada providencia, pessoas e bens, correlativo da entrega, por as- nós é que providenciamos os nossos impostos sim dizer, da soberania ao Estado, segundo o ao Estado, – a inclusão econômica e a coesão esquema hobbesiano de troca, digamos assim, social foram sendo assumidas pelos seus dois de soberania por segurança. Neste sentido, pilares estatais: a Segurança Social e o Sistema Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 343 Manuel Villaverde Cabral Nacional de Saúde. Eis o ponto em que o de- burgo, conferindo assim à noção de sociedade senvolvimento histórico da noção de cidadania civil o significado de uma esfera de interesses nos faz chegar ao domínio da inclusão e da ex- econômicos privados, autônomos e, no limite, clusão, que abordarei daqui a um instante. em competição com o Estado-Nação em nas- Em compensação, a educação pública, cimento, se não mesmo opostos às suas insti- frequentemente acrescentada ao “Estado- tuições. Para Hegel, enquanto cidadão alemão providência”, em rigor não pertence ao Welfare que ambicionava a formação de um Estado- State, e só é considerada, na teoria, como uma -Nação ainda muito atrasado na Alemanha, despesa social na medida em que visa igualizar a vigilância reguladora do Estado sobre essa as condições de partida e não as de chegada – sociedade civil era absolutamente necessária como o desemprego, a doença ou a reforma – para corrigir, por assim dizer, a livre atuação a fim de garantir a uma sociedade moderna o desta última. capital humano de que esta, em princípio, carece Mais tarde, inspirado pela sua visão da e pretende portanto dotar-se. Inversamente, as democracia norte-americana, Tocqueville foi políticas de habitação, a chamada habitação praticamente o último grande defensor da social, sendo raramente convocada, faz parte ideia de sociedade civil enquanto contrape- integrante do welfare state (Wilensky, 1973). so, simultâneo, ao individualismo liberal e ao Entretanto, sem pretender fazer a narrati- centralismo estatal. Contudo, numa espécie va de um longo e complexo processo, convém de síntese atualizada desta controvérsia polí- recordar que o conceito propriamente dito de tica, o filósofo americano John Rawls acabaria sociedade civil emerge, como havia dito, no sé- por designá-la como “sociedade organizada”, culo XVIII, na Escócia, mais exatamente do que organized society, na sua grande teoria sobre na Inglaterra, com o filósofo Adam Ferguson, a equidade social no século XX. Na mesma li- que vai escrever em 1767 o primeiro “ensaio nha que Hegel, também Rawls considera que sobre história da sociedade civil” enquanto a função do Estado é, precisamente, a de de- manifestação dos novos interesses mercantis e fender o interesse público contra as eventuais industriais, mas também de secessão religiosa vantagens adquiridas pelos interesses melhor e intelectual, por diferenciação relativamente organizados e porventura mais influentes poli- à ordem estatal aristocrática e fundiária en- ticamente (Rawls, 1972). tão vigente. Ao amadurecer, o conceito evoluiu Essa dimensão realista, para não dizer cí- no sentido de uma esfera cívica diferenciada, nica, da chamada sociedade civil, implícita na embora nunca radicalmente autônoma do Es- teoria de Rawls e retomada por outros “des- tado, do mercado e das igrejas, assim como contentes da sociedade civil”, como lhes cha- da própria esfera familiar e privada no sentido mam Arato e Cohen na sua magnífica síntese pessoal do termo. crítica de 1992, voltará a surgir com força na Na Alemanha, contudo, com Hegel so- última década do século XX, quando os temas bretudo, o conceito é sintomaticamente de- articulados da sociedade civil e do exercício da signado por Bürgerliche Gesellschaft , ou seja, cidadania reemergem, após um longo período a “sociedade burguesa”, as “forças vivas” do de silêncio, com o início da globalização e o 344 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 Cidadania, inclusão e voz retorno ao liberalismo econômico na década de Calouste Gulbenkian (Cabral, 2008) e com o 70 do século passado. colóquio que estou neste momento a planear A partir do momento em que estas ten- para a Fundação da Casa de Mateus. O livro dências se conjugam, na década de 90, com a de Putnam não faz mais, de fato, do que re- implosão do chamado socialismo real, abre-se descobrir a teoria do capital social de James o espaço à emergência daquilo a que Alexander Coleman, que era na realidade uma teoria (1998) chamou as “sociedades civis reais”. Si- econômica aplicada a microcomportamentos multaneamente, generalizam-se os apelos à “li- sociais; porém, ao aplicá-la à escala societal, bertação da sociedade civil”, como já acontece- Putnam abriu o campo a uma reconciliação ra em Portugal no início da década de 80 com o extremamente fértil, embora complexa e se- apelo premonitório do então primeiro-ministro meada de contradições e paradoxos, entre as Francisco Pinto Balsemão, que introduziu pela noções de cidadania e sociedade civil. primeira vez o conceito no imaginário político A sofisticação e a diferenciação crescen- nacional, com toda a significação adversa ao tes do modelo do capital social permitiram, Estado, em todo o caso, ao Estado centralista e inclusivamente, articulá-lo com a problemática burocrático, que tal “libertação” continha. da exclusão e inclusão sociais, assim como com Foi, pois, nesse contexto que, de forma a nova temática que está a reorientar, na minha mais concreta e mais próxima das nossas rea- opinião, a ciência política mais criativa, a saber, lidades políticas e sociais, estes conceitos ga- a emergência do paradigma da qualidade da nharam atualidade e impacto na renovação democracia. Paradoxalmente, mas de forma da teoria democrática, nomeadamente com a que se compreende bem a um nível superior de investigação do cientista político norte-ameri- inteligibilidade, a emergência do novo paradig- cano Robert Putnam sobre a implementação ma da auditoria e da qualidade democráticas da descentralização político-administrativa em fica a dever-se, de forma determinante, à que- Itália. Com efeito, a forma diferenciada como da do muro de Berlim e à implosão do sistema o processo ocorreu permitiu a Putnam dar- soviético. Com efeito, como tive oportunidade -se conta de que o potencial democratizante de referir desde cedo, na medida em que a da devolução de direitos e deveres às regiões democracia representativa passou a estar, por italianas era tanto melhor utilizado por estas assim dizer, sozinha no mercado da represen- quanto mais profundas eram as raízes históri- tação política, ficou sujeita a maior escrutínio e cas do exercício do associativismo profissional exigência por parte dos representados e, corre- e empresarial, em suma, quanto mais preco- lativamente, dos cientistas e analistas políticos ces e fortes eram as sociedades civis regionais (Cabral, 2000). (Putnam, 1993). O retorno da sociedade civil e o seu des- A prolongada pesquisa de Putnam, pu- dobramento em capitais sociais de diversa na- blicada apenas em 1993, gerou uma controvér- tureza – uns mais inclusivos, outros mais exclu- sia que dura até hoje e promete continuar. Eu dentes – geraram, entretanto, como é conheci- próprio estou envolvido nela com um volume do, um revival do associativismo e, sobretudo que tive o gosto de organizar para a Fundação no chamado Terceiro Setor, um prodigioso surto Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 345 Manuel Villaverde Cabral de organizações não-governamentais – essas publicado em 2005 com o apoio, não à toa, da ONGs tipicamente situadas entre o Estado e Fundação Gulbenkian, da FLAD, da Fundação o mercado, numa fronteira entre o público e Ilídio Pinho e da Fundação Aga Khan (Franco, o privado que nem sempre está traçada com 2005). Ora, segundo este levantamento, o 3º clareza (Salamon et al., 1999-2004). Esta falta Setor português representaria cerca de 4% do de demarcação clara entre Estado, mercado e PIB nacional e “envolveria as energias de qua- sociedade deu inclusivamente origem àquilo se um quarto de milhão de trabalhadores ETI”, que no mundo anglo-saxônico se dá o nome dos quais 50.000 em regime de voluntariado. de QUANGOs, isto é, quasi-non governmental No entanto, esta dimensão seria “consi- organizations , ou seja ainda, quase-ONGs, deravelmente inferior à média da maioria dos onde todavia a mão do Estado e a do próprio países da Europa ocidental [embora] quase mercado estão muito próximas. Esta é uma equivalente à de Espanha e Itália e significa- ilustração recente daquilo que sempre foi visto, tivamente superior à dos países em transição por muitos observadores, como the dark side of da Europa Central e de Leste”. Perto de meta- social capital (Wacquant, 1998). de dos recursos humanos do 3º setor nacional Inversamente, nada ilustra melhor o pro- dedica-se ao fornecimento de serviços sociais blema da rigorosa independência a manter pe- e uma proporção considerável aos serviços de las organizações da sociedade civil em relação saúde e de educação. Aqui, têm particular re- aos poderes públicos, às organizações político- levo as IPSSs, cuja inclusão no 3º setor é inter- -partidárias, às igrejas e até aos próprios mo- nacionalmente aceite, mas permanece contro- vimentos sociais, do que a atividade desen- versa, dado o comando hierárquico a que elas volvida pelas Fundações e outras instituições estão em geral sujeitas relativamente a institui- filantrópicas e mecenáticas. Por sua vez, João ções consideradas, por seu turno, exteriores pa- Freire tem um trabalho muito importante onde ra não dizer estranhas à sociedade civil, como resume a evolução – à escala internacional, as igrejas. mas também em Portugal – do associativismo clássico, participativo e cooperativo, para um associativismo de prestação de serviços e de delegação de poderes (Freire in Cabral, 2008), Exclusão e inclusão sociais como aliás assinalado pelo próprio Putnam noutro famoso livro (Putnam, 2008). Chegamos, por assim dizer naturalmente, ao Existe por outro lado um estudo mui- domínio do social, que preside a este Encontro to completo sobre o chamado terceiro-setor Nacional das Fundações. Procurarei, então, fa- português onde operam as organizações da zer muito sucintamente o arco das exclusões, sociedade civil sem fins lucrativos. O estudo como me foi sugerido, incluindo e para além da está integrado no projeto internacional da dimensão dos rendimentos econômicos, à qual Johns Hopkins University e foi realizado pela voltarei no entanto no fim desta seção. Para co- Universidade Católica Portuguesa (Porto) em meçar, focar-me-ei nas múltiplas ambiguidades 2002, sob a direção de Raquel Franco, sendo da noção de exclusão social, reconhecidas aliás 346 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 Cidadania, inclusão e voz pelo próprio fundador deste paradigma desde simplesmente, quando esta penetra pelo cam- o momento em que o lançou. Estou a pensar, po fora e acaba com as atividades agrícolas, evidentemente, no psicanalista e sociólogo destruindo do mesmo passo as qualificações francês Robert Castel, cujas “metamorfoses da profissionais dos habitantes dos territórios questão social” lançaram, a partir de 1995, es- peri-urbanos das grandes cidades, como foi te novo paradigma dos direitos sociais na era recentemente estudado aqui perto, em Vila pós-keneysiana (Castel, 1995), paradigma este Nova de Gaia, a propósito da implementação que não cessou de se alargar desde essa altu- do RMI, numa tese de doutoramemto (Eduardo ra até adquirir novos aprofundamentos com a Rodrigues, Departamento de Sociologia, Uni- presente crise. versidade do Porto). Como Castel teve oportunidade de cla- Esse conjunto de causas de algum mo- rificar posteriormente, uma coisa é a discrimi- do avulsas, distintas entre si e não estrutura- nação negativa, em particular em torno dos das, estende-se até ao isolamento extremo dos imigrantes e dos jovens da segunda geração sem-abrigos e dos vagabundos, associado por de imigrantes, mas que também poderia ser, vezes ao alcoolismo ou à toxicodependência, tipicamente, a discriminação contra as pessoas para recordar uma vez mais o elenco estabe- de etnia cigana, em suma, uma exclusão social lecido por Robert Castel. O mais relevante em explícita de grupos que, de alguma maneira, tudo isto é que foram tais situações que acaba- são identificados como “não-nós”, como “ou- ram por legitimar, no contexto da globalização tros”, especialmente nos países da chamada e das políticas neoliberais, o retorno das políti- “velha Europa”, confrontados que são há dé- cas sociais ao assistencialismo e ao casuísmo, cadas com as sequelas pós-coloniais dos seus para não dizer à arbitrariedade, dos chamados impérios. Uma coisa é, pois, essa discriminação means tests, agora levados ao absurdo da in- negativa, trágica, mas por assim dizer trivial; vasão da privacidade dos beneficiários, como outra coisa, que constitui aquilo que mais nos acontece com a atribuição do chamado “rendi- interessa neste contexto, é a perda do laço so- mento garantido”. cial, ou seja, o que Castel chama de desfiliação, désaffiliation (Castel, 1996).1 Por seu turno, esta verificação dos meios de subsistência dos assistidos acarreta toda Com essa noção de desfiliação, Cas- sorte de disfunções potenciais, desde o clien- tel refere-se pois a pessoas e, só em segunda telismo ao paternalismo, abrindo um espaço instância, a grupos que não são, à partida, de negociação totalmente assimétrica, em si objeto de discriminação étnica ou religiosa e mesmo altamente criticável do ponto de vista cuja exclusão se deveria menos a causas eco- ético, e totalmente oposta ao caráter abstrato nômicas, como o rendimento, do que sociais, e universal dos direitos sociais que o contrato num sentido restrito do social, vizinho do psi- keneysiano e beveridgiano supunha. Castel foi cossocial. Por exemplo, em caso de deficiên- o primeiro a assinalar a profunda ambiguidade cias físicas ou mentais, de ruptura familiar, ou destas falsas discriminações positivas através ainda da quebra das redes sociais quando as das quais os direitos sociais têm vindo a ser pessoas migram do campo para a cidade ou, descontratualizados (Castel, 1995, p. 472). Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 347 Manuel Villaverde Cabral O próprio prolongamento da esperança como a dos “intermitentes”, um regime criado de vida, com o crescente envelhecimento so- em França para certas profissões artísticas sem ciodemográfico das populações, pode e tem in- atividade regular; em Portugal, a abusiva ge- felizmente contribuído para o alastramento de neralização dos chamados “recibos verdes” é formas de pobreza oculta ou mal-disfarçada, paradigmática desta evolução precarizante do devidas às baixas reformas, como acontece mercado de trabalho. tipicamente com as pensões do regime não Na realidade, o chamado precariado, fre- contributivo, mas não só. Mais recentemente, quentemente disfarçado de trabalho indepen- surgiu o desemprego maciço, algo de que a dente sob a ominosa forma do “recibo verde”, sociedade portuguesa se tinha mantido tenaz- tornou-se uma nova categoria laboral, para mente afastada, pagando por isso até aqui um não dizer socioeconômica, por distinção relati- elevado preço em termos de ineficiência econô- vamente ao salariato. Castel tem razão quando mica generalizada. se eleva contra o fato de os precários serem le- Com a atual crise, tornou-se mais difícil galmente separados do salariato e dos direitos de sustentar esse trade-off a que me referi num históricos a este associados, para serem trata- artigo sobre a economia política do mercado dos como trabalhadores pseudoindependentes, de trabalho português (Cabral, 1999). Com em suma, uma espécie de gestores do seu capi- efeito, em Portugal tem-se historicamente sub- tal humano, com regime jurídico próprio (ibid.). vencionado o subemprego a fim de manter as A nova questão social seria, então, esta: pessoas ativas e minimamente integradas, em- uma nova ordem econômica onde o fosso en- bora com rendimentos muitas vezes abaixo do tre incluídos e excluídos ameaçaria a coesão da chamado nível de pobreza, cujo caráter relativo sociedade, com isto se regressando ao fantas- já foi criticado por autores insuspeitos como ma bem real da dissolução da substância dos Amartya Sen (1983). Agora, com a crise, surgiu elos sociais que Karl Polanyi (1994/1980) havia o desemprego maciço e duradouro, bem como levantado durante a 2ª Guerra Mundial na sua a precarização generalizada do vínculo salarial, famosa Grande Transformação. Seria caso para conforme Castel assinalara, produzindo rendi- perguntar se não é este o momento de evocar mentos muito baixos, que podem levar, por sua o problema da “voz”, da palavra que os cida- vez, ao abuso do álcool e de outras drogas, fla- dãos têm a dizer a este respeito. Antes, porém, gelo ao qual a sociedade portuguesa tem sido vale a pena registar que, depois de tudo o que particularmente sujeita. temos dito, o fenômeno mais grave que asso- Para descrever este estado de vulnerabili- la a sociedade portuguesa continua a ser o da dades e de exclusões, mais ou menos violentas, crescente desigualdade de rendimentos econô- profundas e irreversíveis, Castel fala da “mul- micos, acerca da qual dispomos de uma tese tiplicação de pessoas que ocupam na socieda- exemplar de Carlos Farinha Rodrigues (2007a), de uma posição de supranumerários” (Castel, feita em 2005 com base em dados de 2000; 1995). Hoje falaríamos, generalizadamente, desde então, a situação não tem deixado de se como ele aliás já antecipara, do “precariado” e agravar, como o mesmo autor tem demonstra- até de singulares categorias econômicas novas do em várias ocasiões (2007b).2 348 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 Cidadania, inclusão e voz Assim, em 2000, com um índice de Gini garantido”. Existe aliás um trade-off entre po- de 35% e uma taxa de pobreza relativa supe- breza e desigualdade quando se comparam as rior a 19%, Portugal era o país mais desigual zonas rurais e as urbanas. A pobreza prevalece da União Europeia a 15, com um nível de no campo e as desigualdades de rendimento desigualdade 25% superior à média europeia são mais gritantes nas cidades.3 Com a crise, ri- e uma incidência da pobreza relativa 14% su- gidificaram-se dois universos: o mundo urbano perior à media dos 15. Em 1989, o índice de da atividade, onde as desigualdades são muito Gini tinha baixado a 32%, bastante melhor en- grandes, mas persiste um certo dinanismo, e o tão do que nos Estados Unidos, por exemplo, e mundo das pequenas vilas e das aldeias, onde neste momento, segundo estimativas de Carlos em contrapartida prevalece uma espécie de Farinha para 2005, teria atingido 41% contra igualdade por baixo, mas ao qual falta dinamis- 31% na UE-25 e menos de 30% na UE-15; nos mo para resistir. últimos anos, o índice de Gini teria voltado a Em segundo lugar, a clivagem geracional, descer em Portugal mercê de prestações so- que em larga medida se sobrepõe à clivagem ciais pontuais junto de grupos particularmente urbano-rural. Com o envelhecimento acelerado empobrecidos. da população, a percentagem de pessoas com Ainda segundo este autor, a desigualda- 65 anos ou mais passou, na última década do de e a pobreza possuem, em Portugal, um ca- século XX, de 15% para 22%. Ora, a incidên- ráter estrutural – distinguindo-se, neste sentido, cia da pobreza relativa é sempre superior a da noção avulsa de exclusões sociais – associa- 35%, contra uma média nacional em torno de do a um determinado modelo de crescimento 19%, entre os agregados familiares compostos econômico, que melhorou indiscutivelmente o exclusivamente por idosos; dito de outro modo, bem-estar da generalidade da população, ao em 2000, 42,5% dos pobres – com rendimen- longo das últimas décadas do século XX, mas tos abaixo de 60% do rendimento mediano – que não só não impediu o aumento das desi- eram idosos. gualdades, como foi gerador de novos fatores de desigualdade e pobreza (Rodrigues, 2007). Em terceiro lugar, a clivagem educacional. Segundo Carlos Farinha, é esta a principal E quais são, então, os mecanismos ge- variável explicativa dos níveis de rendimento e radores dessa desigualdade e dessa pobreza? de pobreza em Portugal. Este efeito discrimi- Em primeiro lugar, a clivagem urbano-rural, à nante aumentou na década de referência, ao qual aludi qualitativamente e agora podemos, mesmo tempo que o Estado, as Fundações e as de algum modo, quantificar. Assim, o rendimen- instituições da sociedade civil faziam esforços to médio nas áreas rurais passou de 72% da financeiros indiscutíveis no sentido da escolari- rendimento nos centros urbanos em 1989 para zação das nossas crianças e dos nossos jovens 61% em 2000, sofrendo pois uma perda consi- (Candeias, 2008). No entanto, tudo leva a crer derável. Na primeira metade da década de ‘90, que o efeito discriminante do fator educativo o rendimento rural médio diminuiu em valor tenha continuado a aumentar na primeira dé- absoluto e esta queda só terá sido sustida gra- cada do século XXI, já que, pela primeira vez, ças a paliativos como o “rendimento mínimo nesta década, o aumento das desigualdades Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 349 Manuel Villaverde Cabral entre o primeiro e último decil se fez à custa não só do aumento do rendimento dos primei- Saída, voz e lealdade ros, como também da diminuição absoluta do Veremos, para concluir, aquilo que se pode rendimento dos últimos. Em todo o caso, entre esperar do funcionamento da democracia e 1989 e 2000, o valor explicativo do fator edu- do exercício da voz da cidadania neste vasto cacional, numa regressão linear sobre a variân- domínio da inclusão e exclusão sociais. No pri- cia das desigualdades de rendimento, passou meiro inquérito sociológico que tive oportuni- de 25% para 40%. Assim, a prevalência da po- dade de realizar na minha carreira, há quase 20 breza entre os agregados cujo chefe de família anos, graças à iniciativa da Dra. Teresa Gouveia possui um nível de instrução inferior ao básico, através da FLAD, encontramos, como era aliás é próxima de 50%. de prever, uma correlação significativa mas ne- Em quarto lugar, a exclusão total da ati- gativa entre o exercício ativo da cidadania por vidade produtiva, portanto do mundo do tra- parte da população portuguesa e a percepção balho e da sua sociabilidade, algo que iremos que esta tinha da equidade social reinante na estudar agora no Instituto do Envelhecimento, nossa sociedade, estimada através da percep- criado na Universidade de Lisboa graças à Fun- ção subjetiva daquilo que na época designei dação Calouste Gulbenkian, aumentou em 5 por equidade do sistema de oportunidades e pontos a percentagem dos agregados familia- recompensas socioeconómicas (Cabral, 1997). res totalmente excluídos da atividade laboral, Na altura, os inquiridos consideravam que para atingir mais de 22% da população em o sistema de oportunidades era relativamente 2000, apresentando estes agregados taxas de aberto; em contrapartida, o sistema de recom- pobreza superiores a 40%. Finalmente, para os pensas era considerado muito iníquo. Não sei ativos, a desigualdade salarial constituiu, na úl- como é que os portugueses responderiam hoje. tima década, o principal fator de aumento das Desde então, mais do que na mediação socio- desigualdades de rendimento. econômica da cidadania, tenho-me concentra- Ainda no mesmo estudo, o autor mos- do nas mediações socioculturais subjacentes tra que a capacidade redistributiva do sistema ao exercício ativo da cidadania e à satisfação fiscal português fica muito aquém daquilo que com a democracia. Num estudo internacional corresponderia à nossa carga fiscal (Amaral, de 2004, cujos resultados tratei da forma que 2010, p. 60). Tudo isto para dizer, com base nos se pode ver no Quadro 1, pretendi averiguar de dados impressivos do Professor Farinha Ro- que maneira se posicionavam a classe média- drigues, que os principais fatores de exclusão -alta e a classe trabalhadora perante os atri- social na sociedade portuguesa continuam, afi- butos e atitudes tipificadores da participação nal, a estar estreitamente ligados ao fator ren- política e da adesão à democracia. Comparei, dimento – salários e pensões sobretudo – e aos assim, o conjunto das duas camadas superiores seus determinantes sociodemográficos: a cliva- da sociedade europeia – empresários, proprie- gem cidade-campo, a idade, a inatividade pro- tários, profissionais liberais, técnicos superiores, fissional e, acima de tudo, o nível de instrução! etc., que designei por elites – com o operariado, 350 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 Cidadania, inclusão e voz Quadro 1 – Elites e Operariado ante a política, segundo o país e UE (médias) Portugal Espanha República Checa Suécia União Europeia (18) EL OP MN EL OP MN EL OP MN EL OP MN EL OP MUE-18 Confiança inter-pessoal 4,40 4,39 4,45 5,21 4,71 4,84 4,89 4,05 4,42 6,57 5,76 6,25 5,29 4,52 4,86 Confiança nas instituições 5,00 4,61 4,82 5,05 4,61 4,84 4,80 4,21 4,42 6,21 5,36 5,90 5,46 4,83 5,18 Confança na classe política 3,16 2,51 2,82 3,84 3,09 3,37 3,60 2,99 3,22 5,15 4,19 4,72 3,96 3,17 3,60 Interesse pela política 2,58 1,89 2,12 2,27 1,76 1,88 2,47 2,03 2,20 2,86 2,45 2,60 2,76 2,19 2,38 Compreensão do fenômeno político 3,26 2,47 2,71 3,17 2,48 2,64 3,03 2,53 2,74 3,41 2,84 3,04 3,17 2,66 2,83 Iniciativa e resposta (responsiveness) 1,52 1,37 1,40 1,59 1,43 1,53 1,63 1,87 1,64 1,47 1,52 1,53 1,48 1,60 1,53 Proximidade dos partidos 2,81 2,71 2,74 2,85 2,70 2,75 2,85 2,75 2,78 2,95 2,86 2,89 2,85 2,79 2,84 Satisfação com a democracia 4,52 4,49 4,56 5,86 5,62 5,70 5,26 4,62 4,85 6,39 5,91 6,12 5,50 4,89 5,20 Escala Esquerda-Direita 5,18 4,89 5,08 4,45 4,13 4,41 6,01 4,90 5,45 5,28 4,41 4,88 4,92 4,78 4,93 Associativismo 0,17 0,07 0,09 0,23 0,09 0,13 – – – 0,49 0,33 0,39 0,32 0,14 0,21 Auto-Mobilização 0,81 0,30 0,41 1,64 0,72 0,99 1,22 0,62 0,90 2,20 1,34 1,81 1,55 0,67 1,02 Escalas 0-9 EL = Elite; OP = Operariado; MN = Média Nacional; MUE-18 = Média na União Europeia-18 que não é, como se sabe, a classe mais pobre da a classe política e as instituições dos respecti- sociedade nem a menos organizada da nossa vos países; consequentemente, a sua satisfa- sociedade (Cabral, 2006). ção com a democracia é muito maior do que Em linha, temos alguns dos mais impor- a da classe operária. Por outras palavras, estes tantes fatores habitualmente associados, na resultados configuram uma autêntica confis- teo ria da democracia, ao exercício ativo da cação dos sistemas partidários e da própria cidadania e à satisfação com o regime repre- democracia pelas elites da União Europeia em sentativo; em coluna, temos – para Portugal e detrimento das respectivas classes subalternas. quatro países com os quais nos quisemos com- A única exceção relevante é o índice de- parar, bem como para o conjunto da União Eu- signado por responsiveness, que mede a capa- ropeia (18 países disponíveis na base de dados cidade de iniciativa dos indivíduos e a resposta do ESS) – os valores apresentados pela elites, do sistema à ação coletiva ou individual dos ci- pelo operariado e pela média da população. dadãos. Por aqui nos aproximamos dessa “voz” Ora bem, só há uma conclusão a tirar, a nível teorizada por Hirschman. São dois indicadores de cada país ou a nível europeu: com raríssi- simples: primeiro, perguntava-se que probabi- mas exceções à escala nacional e europeia, se- lidade haveria de os inquiridos se envolverem ja qual for o indicador em causa, as elites não num protesto contra alguma legislação da qual só recorrem muito mais às oportunidades de discordassem; e depois perguntava-se qual participação política do que o operariado, co- seria, segundo os inquiridos, a resposta do sis- mo se identificam muito mais com os partidos, tema no caso de as pessoas tomarem alguma Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 351 Manuel Villaverde Cabral iniciativa. Normalmente, a probabilidade de Em Portugal, efetivamente, os índices de tomar alguma iniciativa não é muito grande, associativismo e de automobilização das eli- mas o que faz, por assim dizer, baixar o índice tes estão abaixo dos da classe operária sueca. é o efeito de feedback negativo que tem, para Comparativamente, Portugal sofre de um défice mobilização dos cidadãos, a expectativa de que societal de mobilização, podendo dizer-se que eles têm de que as suas iniciativas “não servem a capacidade de se automobilizar é definidora para nada”. de uma elite, porventura uma elite alternativa, Ora, se em Portugal e Espanha, as elites como veremos a seguir. Do lado das classes su- tendem a tomar mais iniciativas de protesto do balternas, também as lideranças sindicais são que o operariado, não é esse o caso nos outros elites, alvo potencial de contestações gerado- países nem no conjunto da União Europeia. ras, por seu turno, de elites alternativas, como Comprova-se, assim, que prevalece na Penín- aconteceu recentemente com o movimento dos sula Ibérica uma relação política muito pouco professores em Portugal. construtiva, pouco dialogante e pouco frutuo- É isso que se apercebe neste outro qua- sa, entre uma elite que procura sistematica- dro produzido no contexto de uma nova pes- mente dissuadir o protesto e, por outro lado, quisa sobre as modalidades de exercício da uma classe operária que, perante as estratégias cidadania (Cabral e Carreira da Silva, 2007). Pe- dissuasórias das elites, renuncia por antecipa- rante estes resultados, é lícito perguntar se não ção a fazer ouvir a sua voz, interiorizando por estaremos diante de uma mudança cultural, um assim dizer a dissuasão e criando, portanto, shift correlativo daquela outra mudança, iden- uma espécie de círculo vicioso. Inversamente, a tificada há duas décadas por Ronald Inglehart, verificação de que a iniciativa serve para algu- dos valores e atitudes materialistas em direção ma coisa pode gerar um círculo virtuoso. àquilo a que ele champou pós-materialismo Finalmente, se é certo que na generali- (Inglehart, 1990). Agora, porém, tratar-se-ia de dade dos países da União Europeia as elites, um shift, não tanto ao nível dos conteúdos co- devido à abundância dos seus capitais humano mo, sobretudo, ao nível das formas de exercer e social, exercitam muito mais plenamente os a cidadania e de desafiar as elites instaladas, direitos constitucionais do que o resto da popu- seja no poder, seja nos próprias instâncias de lação, estes resultados mostram que só em Por- contrapoder (Cabral, 2005). tugal é que as próprias elites tendem a exercer Identificamos, assim, duas modalidades esses direitos menos do que o operariado de distintas de exercício cidadão: por um lado, o países como a Suécia, por exemplo, e por vezes associativismo clássico, ou seja, a pertença menos também do que a média europeia. Exis- a associações cívicas, culturais, desportivas, te, portanto, um efeito societal, segundo o qual partidos, sindicatos, ordens profissionais, etc., a sociedade portuguesa sofre, no seu conjunto, em suma, o associativismo clássico associado, de um défice tal ao nível do exercício da cida- passe a redundância, ao típico capital social dania que as próprias elites revelam, frequen- identificado por Putnam, em qualquer das temente, possuir menos capital social do que o suas vertentes, aberta (bridging) ou fecha- conjunto da população europeia. da (bonding); por outro lado, formas novas 352 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 Cidadania, inclusão e voz Quadro 2 – Associativismo e Auto-mobilização – Portugal (2004) (Regressão Linear Múltipla) Associativismo Auto-mobilização Interesse pela política – – Mobilização cognitiva – 0.141*** Iniciativa e resposta política 0.144*** 0.112*** Exposição aos media noticiosos 0.155*** 0.132*** Confiança interpessoal Classe social – 0.078* – 0.110*** Classe social subjetiva – – Escolaridade – – Rendimento 0.135** 0.082* Sexo -0.065* 0.055* Idade 0.111** -0.083* Prática religiosa 0.182*** – Socialização primária Socialização secundária Efeito-metropolitano – 0.220*** – – 0.217*** 0.081** Posição política (esquerda vs. direita) -0.103*** Variância explicada (Adjusted R2) 21,4% 48,5% N (Minimum) 1152 1152 – Nota: Os valores são coeficientes de regressão estandardizados (betas) estatisticamente significativos: * p < 0,05; ** p < 0,01; *** p <0,001. As células vazias correspondem a coeficientes de regressão estandardizados estatisticamente não significativos (p> 0,01). daquilo a que tenho chamado a automobiliza- Ora bem, há indicadores sociodemográ- ção, tipicamente, o cidadão é membro de um ficos de sinal estatístico contrário. Dois são partido; figura portanto na coluna do asso- particularmente interessantes, pois apontam ciativismo; quando esse partido convoca uma para alguma mudança sociocultural. Trata-se manifestação ou um comício, o cidadão é livre do gênero e da idade. As mulheres estão menos de responder ou não à convocatória, isto é, tem presentes no associativismo e mais ligadas a de fazer um esforço suplementar no sentido novas formas da automobilização, porventura de estar presente, de fazer ouvir a sua voz; é mais soltas e até erráticas, com menos com- este último passo pessoal que designo por promissos no tempo, mas mais empenhamento automobilização. no momento, digamos assim. Os homens, em Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 353 Manuel Villaverde Cabral contrapartida, estão mais associados ao capi- modelo do exercício ativo da cidadania política tal social convencional e distinguem-se menos, (em Portugal como noutros países europeus não é que haja menos homens, naturalmente, e no Canadá, a “variân cia explicada” pelo mas têm menor saliência neste novo tipo de associativismo é menos de metade: 21,4%; no mobilização. Quanto à idade, passa-se algo de Brasil, a diferença entre as duas modalidades análogo: o associativismo convencional é uma é menor: 27,5% para a automobilização e forma de exercício cidadão de pessoas mais 20,8% para o associativismo). velhas, enquanto os jovens se salientam entre A concluir, descortina-se pois um princí- quem se orienta preferencialmente para as pio de mudança cultural e cognitiva que parece modalidades de automobilização. O sentido da ir, lentamente que seja, no sentido da emergên- mudança em favor destas últimas modalidade cia de jovens lideranças de tipo novo: menos é indicado, precisamente, pela juventude dos implicadas com os sistemas político-partidários seus aderentes. instalados, desafiando-os mesmo, não só em Vale a pena acrescentar que não há ne- Portugal como também na maior parte dos paí- cessariamente contradição entre as duas mo- ses europeus que analisamos e no Canadá. O dalidades; elas não se excluem mutuamente, caráter inovador desta evolução decorre, pre- antes pelo contrário, reforçam-se até uma à cisamente, do fato de essas lideranças serem outra. Contudo, se fizermos uma análise esta- jovens e femininas. Estas novas elites são, pois, tística simples, verificamos que, havendo sobre- menos dependentes das modalidades conven- posição entre elas, como acontece em 40% a cionais do capital social clássico, como o asso- 50% dos casos, a automobilização é mais ge- ciativismo, e mais ligadas – por isso falamos, a radora de associativismo do que este é gerador propósito delas, de linking social capital, capi- de mobilização. tal social de ligação – a formas de expressão Por outras palavras, é mais plausível de uma sociedade civil em rede, menos cor- que o envolvimento numa rede aberta de porativa e menos mercantil do que tem sido protesto leve à criação de uma associação no passado, em especial nas velhas e não tão ou à adesão a uma organização previamente velhas democracias ocidentais. Em suma, para constituída do que a pertença a uma destas retomar os termos iniciais de Hirschman, jo- associações – hierarquizadas e com objetivos vens elites emergentes que não abandonaram já estabelecidos – leve à participação ativa. a liça (exit) e que, ao exercício mais ou menos Acresce, por último, que a modalidade da passivo da lealdade às instituições e interesses automobilização é de longe aquela que melhor estabelecidos (loyalty), preferem fazer ouvir a adere (48,5% de “variân cia explicada”) ao sua voz (voice). Manuel Villaverde Cabral Investigador Coordenador Jubilado do Instituto de Ciências Sociais e Diretor do Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa. Lisboa, Portugal. [email protected] 354 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 341-357, jul/dez 2011 Cidadania, inclusão e voz Notas (*) Este texto foi inicialmente apresentado no XI Encontro Nacional das Fundações Portuguesas, realizado na cidade do Porto em maio de 2010, a convite do Dr. Rui Vilar, Presidente do Centro das Fundações Portuguesas e da Fundação Calouste Gulbenkian, a quem agradeço a oportunidade desta reflexão. (1) Fitoussi e Rosanvallon falam também de «déliaison» social, desligação social, especialmente em relação à delinquência e à toxicomania. (2) Segundo comunicação do Mestre Daniel Carolo, que agradeço, os dados da EU-SILC 2008 e valores provisórios para 2009, publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, mostram um ligeiro decréscimo no rácio S80/S20, embora com um agravamento no S10/S90, mas oficialmente é aceite como válida uma diminuição ligeira da desigualdade em Portugal. Fonte: h p://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_ boui=83376167&DESTAQUESmodo=2 (3) Possivelmente devido ao aumento rela vo dos rendimentos mais altos nas cidades, sobretudo Lisboa (comunicação de Daniel Carolo, que igualmente agradeço). Referências ALEXANDER, J. (ed.) (1998). Real Civil Socie es: dilemmas of ins tu onaliza on. Londres, Interna onal Sociological Associa on. AMARAL, L. (2010). Economia portuguesa – as úl mas décadas. Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos. ARATO, A. e COHEN, J. (1992). Civil society and poli cal theory. Cambridge, Mass., The MIT Press. CABRAL, M. V. (1997). Cidadania Polí ca e Equidade Social. Oeiras, Celta. ______ (1999). Unemployment and the poli cal economy of the Portuguese labour market. South European Society and Poli cs, v. 4, n. 3, pp. 222-239. ______ (2000). “O exercício da cidadania polí ca em Portugal”. In: CABRAL, M. V.; VALA, J. e FREIRE, J. (orgs.). Trabalho e Cidadania. 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Lembra que as reviravoltas sociais, políticas e antropológicas, devidas em particular à presença contínua de imagens e monitores, à existência de fluxos contínuos, às solicitações visuais incessantes, afetam o olhar do indivíduo, evidenciando processos paradoxais de individualização e massificação. Retomando e desdobrando aspectos do debate já proposto por autores como Walter Benjamin, Adorno, Horkhaimer, Elias, Mauss, Simmel e Le Goff, aborda, de uma perspectiva histórica, a questão da privação do olhar nas evoluções da democracia, da desigualdade de atenção e, depois, do individualismo narcisista e das tecnologias contemporâneas. O texto traz uma rica reflexão acerca da condição do homem moderno e a importância de repensar algumas das categorias de análise na interpretação das sociedades contemporâneas. Palavras-chave: olhar; genealogia; fluxos; individualização; massificação. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Abstract This study aims at discussing the question of looking in contemporary societies, highlighting the increasingly marked presence of forms of individualism and narcissism. It is based on a genealogical perspective to clarify the contemporary, trying to tell apart developments, transformations and commotions. It remarks that the social, political and anthropological upheavals, in particular due to the presence of images and monitors, the existence of continuous strea ms and incessant visual requests affect the look of the individual, showing paradoxical processes of individualization and massification. Revisiting and unfolding aspects of the debate already proposed by authors such as Benjamin, Adorno, Horkheimer, Elias, Mauss, Simmel and Le Goff, the article addresses, from a historical perspective, the issue of look deprivation throughout the evolvement of democracy, of the inequality of attention and later the narcissistic individualism of contemporary technologies. Finally, a deep reflection on the condition of modern man is provided together with a discussion on the importance of rethinking some of the categories of analysis in the interpretation of contemporary societies K e y w o r d s : clook; genealogy; streams; individualisation; massification. Claudine Haroche É possível perceber e pensar em meio à a condição do homem moderno e a oportuni- aceleração, ao imediatismo, à instantaneidade? dade de repensar algumas das categorias da A que modos de subjetivação somos hoje con- descrição. frontados? As reviravoltas sociais, políticas e mais Se eu tivesse de resumir meu propósito fundamentais, antropológicas, devidas em hoje, diria que vou discorrer sobre a questão particular à presença contínua de imagens e do olhar nas sociedades democráticas contem- monitores, à existência de fluxos contínuos, de porâneas: o não ser alvo de atenção, o evoluir solicitações visuais incessantes afetam o olhar na indiferença, o não ser olhado pode levar a do indivíduo. uma negação da pessoa, à humilhação. Trata- Lembremos, rapidamente, que em 1935, -se de uma condição cada vez mais propalada Walter Benjamin havia sublinhado a natureza nas formas de individualismo e de narcisismo histórica das maneiras de sentir, perceber e contemporâneos: a injunção à visibilidade olhar. Ele observou a evolução profunda com contínua de si mesma é contrária ao olhar, ela o surgimento da reprodução mecânica da obra evidencia processos paradoxais de individua- de arte nas sociedades de massa. lização e de massificação: é empobrecedora e subjugadora. Adorno e Horkheimer vislumbraram os efeitos políticos provocados sobre a subjetivi- Interessei-me, ante a pressão cotidiana dade pelo movimento contínuo, engendrando de exigências burocráticas, pela mudança per- determinadas formas de cegueira. Esses efeitos manente, pela questão do assédio, do assédio podem suprimir progressivamente a capacida- moral, insidioso, repetido, pelas feridas narcí- de do indivíduo de ver, desapropriá-lo de seu sicas cotidianas, pelas pequenas humilhações, olhar e seu sentido crítico. que levam ao esgotamento, à exaustão. Esse movimento se amplificou ainda Foi a partir da sensação de um controle e mais nas sociedades contemporâneas: o surgi- de uma continuidade imposta a ritmos que es- mento de uma atividade constante induz uma capam completamente ao indivíduo, que che- ausência de reflexão que impõe – e é imposta guei à maneira pela qual a sensorialidade hoje por – rapidez, instantaneidade e imediatismo, não pode mais preservar, assegurar as condi- contrários à alternância entre estacionário ções para o exercício da sensibilidade. e movimento exigida pela percepção e pela Inscrevo-me em uma perspectiva genea- reflexão. lógica para esclarecer o contemporâneo, cujas Incitado e compelido a consumir de ma- evoluções, transformações e comoções tento neira contínua, excedido pela acumulação e discernir. o excesso de solicitações – possa o indivíduo Partirei hoje da questão do olhar. Re- aproveitar da abundância e consumir ou, na traçarei um histórico e falarei, em seguida, da penúria mais completa, ver-se privado de tu- privação do olhar, com as evoluções da demo- do –, o indivíduo, convertido em espectador, cracia, da desigualdade de atenção e, depois, cuja imaginação e capacidade de represen- do individualismo narcisista e das tecnologias tação são entravadas, ou até suprimidas, por contemporâneas, concluindo, finalmente, com conseguinte, vê sem enxergar: ele vê sem ter a 360 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea capacidade de fixar sua atenção, de parar, ana- Elias discerne na vida social das socieda- lisar, entender, assimilar e a fortiori de discernir, des do passado, bem como na vida social do criticar e rejeitar com toda a liberdade. presente, mudanças que atingem a percepção As maneiras de olhar levam a questões sensorial e afetam a visão, o toque: “todas as sociais e políticas preponderantes nas socie- crianças vivenciam essa evolução ao crescer – dades democráticas individualistas: as ligadas um número cada vez maior de atividades que aos olhares, a amabilidade, o respeito, a consi- faziam intervir originalmente o indivíduo como deração, o reconhecimento e a dignidade. São um todo, com todos os seu membros, limitam- tantas maneiras de nomear e designar a neces- -se aos olhos [...]. À proporção que os movi- sidade de atenção que sente uma pessoa. mentos do corpo se restringem, a importância (Uma breve digressão para lembrar que da visão aumenta: a criança passa a ouvir: “po- ao suprimir as atenções não igualitárias, a de- de olhar, mas não mexa”; é imperativo que não mocracia, que ignora de certa maneira essa “levante a mão” para as pessoas” (Elias, 1991). necessidade de atenção, teria imposto de fato Logo de entrada, Elias estabelece nos uma igualdade de desatenção a todos os in- mecanismos da observação uma relação en- divíduos nas sociedades democráticas. O fato tre o pensamento e o corpo, em particular no de ser “igualmente olhado” leva ao fato de controle do movimento. Assim, ele retraça a ser olhado “com desatenção e indiferença” e genealogia do processo de reflexão, de repre- privaria, portanto, o indivíduo da necessidade sentação que está em pé de igualdade com profunda de atenção e de olhar. A ausência de um sentimento de desapego, condição da olhar, a desatenção, pode surgir como uma in- emergência concomitante da consciência e do diferença protetora; pode também revelar uma olhar individual, da representação da pessoa e indiferença que ignora, esquece a pessoa no da observação dos outros e de si.1 Elias insiste indivíduo). no fato de que o progresso da visão irá limi- Haveria nas sociedades contemporâneas tar, e até restringir, o movimento espontâneo, um processo de transformação quase impalpá- incontrolado, impor o domínio, o controle de vel que tende a ignorar, a fazer regredir e até a si, às vezes a imobilidade, o que produziria um dissipar as dimensões não visíveis da pessoa, efeito cada vez maior de afastar o contato, de privilegiando apenas as dimensões visíveis? prevenir de maneira mais geral os contatos, as Antes de abordar esta última questão, proximidades dos corpos. gostaria de lembrar que Elias, no decorrer dos Ele observa uma redistribuição, e mesmo anos 1940, abordou e sintetizou o papel do um desequilíbrio na divisão do trabalho dos olhar nas sociedades democráticas. De fato, sentidos imposta pela civilização, chegando à ele destacou fragmentos de uma história do conclusão de que “os prazeres dos olhos e dos olhar, do Século das Luzes à modernidade e às ouvidos se tornam cada vez mais intensos, mais formas extremas de individualismo: explicitou ricos, mais sutis e mais difundidos, que os pra- as condições de possibilidade do olhar, que zeres dos membros são cada vez mais limitados supõem uma parada no fluxo das sensações por preceitos e proibições”. Acrescenta que, em visuais. consequência, “percebemos mais coisas sem Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 361 Claudine Haroche nos movermos. Pensamos e nos observamos, sobre alguém ou de desviá-lo por educação, sem nos tocar” (ibid., pp. 163 e 165). Sendo a respeito, compaixão ou ainda de ignorá-lo visão considerada menos perigosa para a or- por desprezo ou por medo –, a direção de um dem social que o toque, convém agora evitar olhar (olhar para os pés, para o chão, de cima, o contato, e tocar apenas com os olhos. O fato para outro lugar, de esguelha, por baixo), sua de se estabelecer um contato, de deixar entre- qualidade (direto, franco, dissimulado, pesado, ver a amabilidade, ou até mais, o calor, o fato equívoco, libidinoso), sua intensidade (atraen- de sentir-se tocado, emocionado por outrem, o te, cordial, caloroso, frio, convidativo, glacial, semelhante, sua condição, se inclinará, por ra- neutro), ou ainda a sua ausência (um olhar zões diferentes, a declinar diante de um distan- inexpressivo, impávido, indecifrável, impene- ciamento, um afastamento, a frieza, a dureza, a trável, fechado), as maneiras de olhar a outra insensibilidade, uma atitude de observação, de pessoa, de observá-la, de fixá-la, resultam ao avaliação, de cálculo, que leva à intercambiali- mesmo tempo de usos, aprendizagens e códi- dade e à indiferença ante o semelhante. gos de comportamentos. Elas são invariavel- Através desse texto, Elias lembra tam- mente acompanhadas de interpretações e, em bém um certo número de funcionamentos so- determinada medida – difícil de definir –, de ciológicos, psicológicos e antropológicos – que constantes antropológicas. dão abertura a um conjunto de observações Mauss distingue o fato de olhar fixamen- fundamentais. Revelando, por um lado, a quali- te no exército e na vida cotidiana: a fixação do dade, a própria capacidade de ser uma pessoa, olhar no exército representa a obrigação de o olhar constitui, assim, desde o século XVIII, obediência, a subordinação, a submissão, en- um atributo, um dever e um direito reconhe- quanto a fixação do olhar na vida cotidiana é cido de um sujeito considerado como proprie- considerada inoportuna, abusada, e até gros- tário de si mesmo (Castel e Haroche, 2001). O seira. Lembra, assim, que “atribuiremos valores olhar supõe e permite o exercício, tanto de um diferentes ao fato de olhar fixamente: símbo- olhar de si mesmo como dos outros: o olhar é lo de cortesia no exército, e de descortesia na um elemento, e até mesmo a condição da au- vida cotidiana” (Mauss, 1936). A origem, a toestima, da dignidade de qualquer indivíduo, razão dessas diferenças, continua Mauss, pro- o que faz dele uma das condições e dos alvos cedem de tradições e modelos de educação da democracia. que impõem certos princípios aos movimentos. Ele evoca, assim, a educação da marcha e da visão, o aprendizado de maneiras, que corres- Educação do olhar e domínio dos movimentos ponde mais amplamente a uma “educação do sangue-frio”. Veja-se aí uma observação análoga à de Elias no que diz respeito à moderação, uma certa contenção, um domínio geral do mo- Salientando o papel decisivo do olhar, Mauss vimento, exigidos pela vida em sociedade, mas, afirma que não há maneira natural de se olhar. além disso, um “mecanismo de inibição de mo- As maneiras de olhar – o fato de pousar o olhar vimentos desordenados”, de distanciamento: 362 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea um mecanismo que visa a instaurar formas e olhar do outro, de fugir do olhar, de evitá-lo, de mediações. Mauss nota, então, que “esta resis- desviar o olhar, pode indicar um humor, reve- tência à comoção invasiva é algo fundamental lar a natureza dos sentimentos, e mais ainda, na vida social e mental...”, que ela é acom- revelar uma personalidade ou um caráter. Além panhada por um domínio do movimento que disso, ainda permite captar a natureza dos me- emana da pessoa (ibid, p. 385). Mauss obser- canismos de dominação e também de defesa va, por fim, que a pessoa originalmente enten- do ego. dida como máscara, é “um fato fundamental Simmel toma, então, um exemplo pro- de direito”, na medida em que separa o espa- fundamente esclarecedor, o da vergonha: “po- ço interior do exterior, que induz as regras que demos entender por que a vergonha – escre- protegem a intimidade: ela dissimula e subtrai ve – nos obriga a baixar os olhos, evitando o o espaço do íntimo, do mais profundo da cons- olhar do outro”, e explica que “com efeito, ao ciência de cada um à vista de todos e, em con- olhar para o chão, privo um pouco a outra pes- sequência, é capaz de protegê-lo, preservá-lo soa das possibilidades de me discernir” (ibid., da natureza inquisitiva que pode comportar o pp. 631 e 670). olhar alheio. É na questão dos sentidos que se dese- Onde Mauss se interessa pelo caráter nha uma das contribuições cruciais de Simmel: aprendido das maneiras de ver, Simmel tende, são os sentidos, tanto na relação com o outro quanto a ele, à maneira como o olhar contri- como na relação consigo mesmo, que permi- bui para dar um sentido às interações sociais, tem a elaboração, a construção do sentido, oferecendo desenvolvimentos próximos aos de mais que a relação com o conhecimento. Sim- Mauss. mel sublinha que “a vida moderna remete, em Simmel observa de início a ausência de um grau cada vez maior, a grande maioria das mediação na troca de olhares “é talvez a ação relações sensoriais entre humanos para o senti- recíproca [...] mais direta que possa existir” do da visão unicamente” (ibid., p. 633).2 (Simmel, 1908, p. 630). Ele sublinha, assim, Ele observa uma consequência política que o olhar é difícil de apreender, de definir, de importante sobre a gênese e o desenvolvimento qualificar: inscrito no mais profundo do vínculo das sociedades contemporâneas de massas, “o social, o olhar de uma certa maneira entrava, estabelecimento... de estruturas sociais muito impede por seu caráter fugaz e até inconscien- abstratas e não específicas será favorecido so- te. O olhar instaura e exige um espaço comum, bretudo pela proximidade visual e uma ausên- no entanto, instável e transitório. Simmel su- cia de proximidade verbal” (ibid., pp. 636-637). blinha que o olhar supõe o contato imediato, Toda a sensorialidade terá, assim, sido porém efêmero. modificada, desequilibrada pela extensão da O caráter, profundamente imbricado, ex- vista que impõe um imediatismo, porém, dis- pressivo ou inexpressivo de um olhar, caloroso tante, longínquo: o recuo do contato leva com ou frio, convidativo ou distante, dominador ou ele o esquecimento de uma ligação profunda temeroso, conquistador ou submisso, arrogante original entre o olhar e o toque que contribui ou humilde é difícil de discernir. A maneira de para o silêncio das massas. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 363 Claudine Haroche A desatenção civil: a cegueira por delicadeza olhares: estas são ordenadas, sustentadas por uma certa concepção da pessoa, o que ela deve proteger, guardar, preservar, salvar, ganhar ou pelo menos não perder nas interações sociais: Em prolongamento aos trabalhos de Simmel, Goffman oferece uma visão de conjunto do papel do olhar nas interações face a face. Fundamentando-se no papel das observações de Mauss sobre os modelos de comportamentos, as aprendizagens nas maneiras de olhar, Goffman observa que nas interações, de modo geral, e nos encontros entre sexos, em particular, os códigos de interações sociais ordenam a direção do olhar, os avizinhamentos, as proximidades e distâncias e os afastamentos.3 A atenção ao outro, os cuidados, bem como a desatenção respeitosa, o fato de saber não ver seriam objeto de aprendizagens de regras e princípios que visam a proteger, respeitar o outro, a proteger-se, defender-se, pela observância de formas, de maneiras. Goffman observa que “entre pessoas que não conhecem umas às outras” existe um arranjo “regido pela desatenção civil”, sequência de comportamentos codificados, ritualizados, [...] que consistem em dirigir um olhar para o outro para sinalizar que não se tem má intenção e que não se tem apreensão em relação à outra pessoa, e depois, desviar o olhar, em um misto de confiança, respeito e indiferença aparente. (Goffman, 1977) a face social é uma certa imagem de si, fundamentalmente ligada à integridade, à dignidade. “A própria face e a dos outros”, escreve, “são construções da mesma ordem; são as regras do grupo e a definição da situação que as determinam” (Goffman, 1967, p. 10).4 Essas propriedades rituais têm por função a afirmação e a proteção de bens e atributos como a dignidade, o sentimento do valor próprio que definem “o modelo de sujeito capaz de confrontar em uma interação” (ibid., p. 9). Assim, Goffman sustenta que “quando uma pessoa consegue manter as aparências”, ela se sente confiante, reconfortada, sua postura corporal revelaria seu estado de espírito interior. Nos anos 1960, Günther Anders, prosseguindo as intuições e as análises de Benjamin e de Adorno, realizou um conjunto de observações sobre os efeitos acentuados, e até provocados, pela técnica: a incapacidade de imaginar, de ver e de sentir. De fato, ele atribui a falta de imaginação, a insuficiência existente na percepção, no sentir (que se trate do mercado ou das sociedades totalitárias, e em particular do nazismo) à existência de um descompasso imputável à divisão do trabalho – ao “fracionamento das tarefas”. Anders sublinha, por fim, que nas socie- Essa desatenção resulta, por um lado, de uma dades contemporâneas, o trabalhador “apa- educação, “de uma capacidade de avaliar ra- rece como o detentor de uma capacidade de pidamente uma situação social do ponto de produção infinitamente superior à sua capaci- vista de seu conteúdo expressivo”, de manei- dade de sentir”, o que produz consequências ras mais gerais de usos que comportem estra- importantes sobre a subjetividade. Anders opõe tégias de encontro, de contato, de trocas de o caráter ilimitado de nossa “capacidade de 364 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea fabricação” e o caráter ilimitado de nossa “ca- modelada pela maneira como os imaginamos”, pacidade de representação”, observando, en- Scarry pesquisou sobre os efeitos da falta de tão, os efeitos do processo de alienação no fato imaginação nos comportamentos face aos ou- que, ao renunciar, “nem sabemos que estamos tros (Scarry, 2002, p. 98).7 Ela insistiu no fato de renunciando, e que seria dever nosso imaginar que o infligir crueldade resulta da “incapacida- 5 de de perceber, representar e imaginar o outro aquilo que fazemos” (Anders, 1988, pp. 50-51). como semelhante”, o que faz com que “não consigamos acreditar na realidade dos outros” O descompasso entre maneiras de ver e maneiras de sentir (ibid., pp. 101-103). Teria ela conhecido evoluções e regressões na história? É esse desapego, essa frieza, essa crueldade que se descobre na obra de Primo Lévi, Lasch, no contexto um pouco diferente dos que observa e detalha o papel do olhar na ne- anos 1980, abordou o papel do olhar na emer- gação da condição humana. gência da personalidade narcisista das socie- Primo Lévi descreve uma cena em que dades contemporâneas, “o êxito profissional as pessoas se encontram paralisadas pela al- dependeria menos agora das aptidões [...] do tivez dos SS, pela inexpressividade, a impavi- que da ‘visibilidade’ que exige ‘o gerenciamen- dez de seus rostos, a lentidão e o desapego de to da própria imagem’” (Lasch, 1979, p. 296). seus gestos, a maneira como perscrutam em Lasch atribuiu a responsabilidade em parte à silêncio os prisioneiros, de maneira meticulo- burocracia moderna, provocando e encorajan- sa, sem a menor emoção. O Alemão não se do uma grande inquietude quanto à impressão dá ao trabalho de falar (o que poderia signi- que os indivíduos produziam uns aos outros, ao ficar uma expressão de um respeito mínimo), desenvolvimento dessas preocupações concer- ele continua a fumar enquanto o intérprete nindo o eu, discernindo “traços de personalida- lhe faz uma pergunta, “atravessando-o com 6 de de tipo narcisista...” (ibid.). o olhar, como se fosse transparente, como se É essa análise das formas de superficia- ninguém tivesse falado”, realizando banais ta- lidade contemporânea que Elaine Scarry dedi- refas cotidianas (Lévi, 1958, p. 21). Nada po- cou-se a aprofundar, esforçando-se para escla- deria expressar com tanta força a intensidade recer algumas das causas e alguns dos efeitos da negação da pessoa, do outro. A recusa de políticos da cegueira: assim, ela centrou sua olhar, de falar e de escutar é concomitante. atenção na ligação entre olhar e imaginação, Ele distingue, então, claramente a escuta da inferindo a insuficiência em matéria de sentir, possibilidade de compreensão, de inteligência uma insensibilidade ao sofrimento do outro. do outro “mesmo se nos ouvissem, não nos Lembrando que os sofrimentos infligidos ao entenderiam”(ibid., p. 26). corpo são “uma das razões profundas do con- O olhar está no centro da condição hu- trato social de Locke e dos contratos mais an- mana: impassível, glacial, reificante, preten- tigos das cidades”, e sublinhando que “a ma- dendo provocar medo, vergonha e humilhação. neira como nos conduzimos face aos outros é A negação do olhar também ou pelo menos Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 365 Claudine Haroche tende a desapropriar a pessoa de seus atribu- ou, pelo contrário, acreditando em sua potên- tos mais fundamentais. cia suprema). O homem não é mais tão su- O declínio e mesmo a eliminação dos bordinado ao outro, excluído como homem da limites provocam sobre a subjetividade, a per- sociedade contemporânea de mercado: os indi- sonalidade contemporânea, efeitos maiores víduos estariam agora isolados em seu eu, um ligados aos fluxos sensoriais e informacionais, eu privado de suporte, de apoio, de proteção, suscetíveis de nos desviar do vínculo e do tanto externa quanto interna. Pode-se, então, sentido, de provocar a angústia, o pavor: eles entender que a questão da dignidade e da hu- incitam a questionar-se novamente sobre os milhação passa a ser central. sentidos e os comportamentos mais elemen- O indivíduo nas sociedades democráticas tares. Sendo a capacidade psíquica do olhar contemporâneas está “isolado” no trabalho e atingida pela eliminação dos limites da pessoa, fora do trabalho, e é esse isolamento que faci- dos limites e da pessoa, eles levam a meditar lita e até encoraja o caráter repetido e intenso sobre a questão profunda de Mauss referente à da humilhação. A flexibilidade e a fluidez im- permanência da categoria do eu: “quem sabe – põem um ritmo, uma aceleração, uma veloci- se perguntava Mauss – se esta ‘categoria’ que dade que atingiriam as capacidades psíquicas todos aqui acreditamos fundamentada será re- e afetariam o eu, a identidade, a subjetividade. conhecida como tal? Ela é unicamente formada O interesse dos trabalhos de Elias e de por nós, em nós” (Mauss, 1938, p. 362). Arendt é destacar os processos psicológicos e sociais de humilhação entre grupos e no interior dos grupos, por meio de mecanismos de O empobrecimento interior do indivíduo no individualismo contemporâneo exclusão, de estigmatização e de marginalização. Arendt ofereceu uma explicação global da exclusão e da estigmatização, bem como dos sentimentos de desvalorização e de humilhação, chegando aos atuais processos de hu- Marx trouxe à luz a obrigação de vender-se: a milhação por uma genealogia da história dos parte de nós que vendemos, que somos obri- judeus na Alemanha, através de suas relações gados a vender, não diminuiu: ela mudou de com a aristocracia e a burguesia. Para tanto, ela natureza. Ela concerne agora cada indivíduo, se ateve a um tipo de marginalidade particular: atinge, hoje como no passado, o corpo, e mais a do pária na minoria judia. Recordamos que a ainda, por intermédio deste último, o homem representação era central nos comportamentos interior, a esfera psíquica. Ela será então feita da aristocracia, enquanto na burguesia eram os pela injunção à exibição de si próprio: trata-se bens que contavam mais, Arendt sublinha que de oferecer não mais a força unicamente, mas se passou lenta e insensivelmente dos valores a própria pessoa psíquica. e comportamentos de representação aos dos Os indivíduos não estão mais tão ape- bens materiais; da valorização da visibilidade à quenados em seus corpos indefinidos, sem li- da invisibilidade” (Arendt, 1987, 1986). Na so- mites (reconhecendo sua impotência profunda ciedade da representação, o homem era visível. 366 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea Na burguesia, em que se deve renunciar ao condição do homem na modernidade, ela colo- espaço da “representação”, após a dissolução ca uma questão importante: “o que se possui dos estados, nasce a angústia de não mais ser quando não se tem nada além de si mesmo?” visível, de não mais ter qualquer garantia de Acreditamos que Arendt levanta um problema sua própria realidade (Arendt, 1987). maior na tentativa de compreender as formas Ao retraçar a história da condição do de humilhação nas sociedades individualistas burguês no século XVIII, Arendt discerniu as centradas no ego: o ser e o ter tendem à in- origens da humilhação que se desenvolverá distinção, “mostrar o que se tem” é, portanto, mais tarde nas sociedades individualistas. Ela mostrar “o que se é”, mostrar o eu, a redução prefigurou, acreditamos, um vínculo profundo a um ego exibido e, nessa perspectiva, diminuí- entre a exigência da visibilidade de si, o encer- do, fragmentado (ibid., pp. 82-83). ramento, a redução a si próprio – a obrigação Pode-se entender de que maneira a fi- de mostrar-se para existir e o reforço do isola- gura do pária, como sublinha Arendt, encerra mento de cada indivíduo. uma nova ideia do homem para a humanidade Arendt detalhou os efeitos desse iso- moderna que analisamos agora, bem como os lamento como sendo indissociáveis de senti- efeitos do individualismo contemporâneo sobre mentos de desvalorização e de humilhação, as formas de fragmentação, de divisão do eu. colocando que, de fato, “ver-se forçado a representar o tempo todo e solitariamente algo em particular, apenas para justificar o fato bruto de sua existência, é uma fadiga que chega a ex- As tiranias da visibilidade tenuar todas as forças do indivíduo” (Arendt, 1986, p. 264). Ela incita a pensar que a justifica- Gostaríamos de ressaltar aqui uma dimensão ção contínua do direito de existir provoca não específica e inédita que diz respeito à visibili- apenas fadiga, mas uma humilhação profunda, dade – a visibilidade de si próprio: um tipo de que deixa supor que não se trate mais que de visibilidade que, ignorando as fronteiras do um direito inalienável. Acreditamos que é nesse íntimo, do privado e do público, tende a en- aspecto que o pária constitui uma figura deci- cerrar o indivíduo pela exposição contínua de siva da modernidade, das formas extremas do si, encorajando e reforçando o voyeurismo, o individualismo contemporâneo: o isolamento, exibicionismo. longe de significar uma eventual retirada, um Reforçado pelas tecnologias contemporâ- momento de introspecção, longe de proteger o neas, o indivíduo seria compelido a representar indivíduo, constituiria uma condição pesada de não uma parte de si, mas uma exposição total, ameaças para o mesmo. uma revelação contínua de si, a mostrar-se pa- Observando, então, de maneira admira- ra ser valorizado, e além disso, mais fundamen- velmente precisa os mecanismos sociais e psi- talmente, para existir. A visibilidade seria sinô- cológicos de isolamento do pária, cujo eu sem nimo de legitimidade, de utilidade, de garantia defesa é de uma grande vulnerabilidade; prefi- de qualidade: a frequência, a quantidade, e gurando nisso certos traços característicos da até a continuidade da visibilidade valorizam o Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 367 Claudine Haroche indivíduo. A invisibilidade, quanto a ela, seria É uma visão de conjunto dos efeitos de sinônimo de inutilidade, de insignificância, e alienação e humilhação produzidos pelo mer- até de inexistência. cado sobre a subjetividade dos indivíduos, se- Essa visibilidade, pela qual o indivíduo é jam pobres ou ricos, que Dany-Robert Dufour valorizado, traduziria novas formas de poder, de oferece na superficialidade das relações, dominação econômica, social e política: ela seria reforçadas pela fluidez das sociedades de mer- acompanhada por transformações profundas do cado contemporâneas: de fato, o mercado en- tipo de personalidade, como ressaltam em parti- coraja “menos de tudo o que possa entravar a cular os trabalhos de Sennett e de Bauman. circulação da mercadoria”, o que provoca efei- Sennett lembra que o fluxo contínuo pro- tos psicológicos desestruturantes sobre o indi- voca efeitos de alienação profunda, e até de víduo, mudanças profundas na subjetividade. supressão do eu, insistindo na necessidade de Pensamos que Dufour prosseguiu e aprofundou “salvar o sentimento de si do fluxo sensorial” as conclusões dos trabalhos de Lasch de 1978 (Sennett, 1998). O tipo de personalidade flexí- sobre as sociedades narcísicas: com efeito, ele vel se define paradoxalmente pela visibilidade sublinha que ao incitar o consumo permanen- máxima e pelo movimento, e mais ainda pela te – em particular ao consumo permanente de mudança incessante. si –, levando o indivíduo a preocupar-se funda- Foram esses traços de personalidade mentalmente apenas consigo mesmo, o merca- que interessaram Bauman, o qual discerniu do procura “suprimir os laços, os vínculos, os um estado, um momento específico da socie- sentimentos que não são conversíveis em valo- dade, que chamou de “modernidade líquida”: res mercantis”(Dufour e Berthier, 2003). esse estado caracteriza-se pela “desaparição do que é contínuo, estável e sólido”, pelo declínio da individualidade em sua singularidade, com aspirações de durabilidade, pelo declínio Nada ter além de si mesmo dos “compromissos duráveis, vinculantes, onde a individualidade é valorizada pela exigência, Portanto, a humilhação nas sociedades de con- (os quais) foram substituídos por encontros sumo do ego não é idêntica à humilhação das breves, ordinários e intercambiáveis” (Bauman, sociedades de produção. A privação específica 1998). Ele conclui que o desapego, e mais ain- do olhar, do ego, a questão do sentimento, ain- da, o descompromisso descrevem perfeitamen- da mais que a consciência da humilhação está te a atmosfera das sociedades individualistas no âmago da humilhação nas sociedades de contemporâneas. consumo. O descompromisso aparece como um Analisemos novamente o que Arendt es- traço fundamental do clima, da atmosfera das tabeleceu: a existência de um vínculo profundo sociedades individualistas, mais precisamente, entre a injunção à visibilidade de si – a obriga- da personalidade flexível como um elemento ção de mostrar-se para existir –, o indissociável essencial dos novos modos de poder e domínio, isolamento e os sentimentos de desvalorização dos mecanismos de alienação e humilhação. e de humilhação envolvidos. 368 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea Teríamos, assim, superado uma etapa su- fica. Simmel evoca esse momento, como vimos, plementar da angústia do burguês evocada por que anuncia em particular as interrogações de Arendt: a incerteza quanto a si próprio, seria Mauss e de Benjamin, Adorno e Horkheimer. então decuplicada. “O que se possui quando Não tenho tempo hábil para abordar os recen- não se tem nada além de si mesmo?”, interro- tes trabalhos consagrados à história, à teoria gava-se Arendt. e à evolução das mídias, em particular, os de A humilhação deve-se ao fato de se es- Gitlin (Gitlin, 2003). Por isso, quero retornar tar reduzido a si mesmo e, por conseguinte, muito brevemente ao século XVIII, a Hume, em ao corpo. Lévinas, ao discorrer sobre o homem particular. que “acorrentado ao próprio corpo, vê-se re- A passagem de Hume nos parece par- cusado o poder de escapar de si mesmo”, pre- ticular mente interessante para elucidar os figurou o clima contemporâneo, os valores, as modos de percepção dos indivíduos na moder- maneiras de ser e de sentir superficiais, des- nidade – seu caráter fragmentar, instável, mu- comprometidos: “o pensamento se torna um tável, impalpável – e os modos de existência jogo, o homem se compraz em sua liberdade dos objetos, seu funcionamento intermitente, e não se compromete definitivamente com imaterial, intangível, virtual nas sociedades nenhuma verdade”, escreveu em Algumas re- pós-modernas, hipermodernas, supermodernas. flexões sobre a filosofia do hitlerismo (Lévinas, 1934, pp. 20-21). O espaço de intimidade, do corpo, é o local dos sentimentos mais profundos: lugar que abriga e protege o sentimento de existência, o sentimento de si, pode ser também um lugar ameaçador para o eu, um espaço de encerramento, de redução ao corpo, o espaço do sentimento de vulnerabilidade e impotência, o território onde a humilhação pode se exercer de maneira constante e inelutável. Quero agora, antes de concluir, abordar Um objeto pode existir e, no entanto, não estar em lugar algum. Afirmo não apenas que é possível, mas que a maioria dos seres existem dessa maneira e nenhuma outra – assevera Hume. […] Uma reflexão moral não pode ser posicionada à direita ou à esquerda de uma paixão, e um odor ou um som não pode ter uma forma circular ou quadrada. Muito longe de necessitar um lugar particular, esses objetos e percepções são absolutamente incompatíveis com qualquer lugar. (Hume, 2004, p. 324) rapidamente a condição sensível de hoje: a continuidade das sensações, o declínio das faculdades de perceber e experimentar sentimentos. Partiremos dos escritos de Hume, e, depois, analisaremos, no contexto do século XIX e do início do século XX, as questões e reflexões compartilhadas por Janet, Valéry e Bergson A maneira como opera a percepção – o meio no qual ela se efetua – não depende unicamente da natureza humana, mas também da história. Durante longos períodos da história, vemos transformar-se o modo de existência das comunidades humanas, sua forma de perceber, em um período de efervescência intelectual, de audácia e de imaginação criadora e cientí- Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 escreve Benjamin (2000, p. 74). 369 Claudine Haroche Dois séculos separam os textos de Hu- consequência: os fenômenos psicológicos não me e de Benjamin: o primeiro foi redigido em são mais sintetizados em uma mesma percep- 1739, o segundo data de 1935. Hume pressen- ção pessoal” (Janet, 1898, p. 16). te o papel decisivo do difuso, do impalpável, do intangível, enquanto Benjamin, interessando-se pelo modo de existência das comunidades humanas, por sua vez, trata de questões que estão no centro da sociologia alemã. Formula- Uma genealogia dos sentimentos da em termos diferentes, a interrogação, surpreendentemente persistente, estranhamente Em termos diferentes, Janet prolonga as análi- próxima, prefigura as preocupações que serão ses de Hume, desenvolvendo-as em uma abor- os fundamentos da abordagem fenomenológi- dagem psicológica nova, 8 ca (Merleau-Ponty, 1945). Os modos de funcionamentos da sensorialidade, as impressões, as sensações experimentadas, os modos de percepção, as maneiras de sentir – suas origens, seus suportes, sua intensidade – evoluíram historicamente com a modernidade no individualismo contemporâneo: será que “sentir” equivaleria aqui a [...] se nos posicionarmos do ponto de vista exclusivamente psicológico, se considerarmos o eu, não mais tanto como um ser e uma causa, mas como uma ideia que acompanha a maioria dos fenômenos psicológicos, seremos forçados a pensar que existam sensações sem o eu, que possam haver fenômenos de visão, ainda que ninguém diga “estou vendo” (ibid., p. 58). provar unicamente sensações efêmeras e, ao mesmo tempo, contínuas? A elaboração de Simmel concebe, em uma linha de uma dimensão pessoal, subjetiva na percep- raciocí nio próxima à de Janet, certos senti- ção é fácil, e até possível nos fluxos sensoriais mentos – como efeitos de modos de vida, de contínuos? maneiras mais como elementos originários, Formularemos aqui a hipótese de que inefáveis e indizíveis: são os comportamentos eles afetam a capacidade de experimentar que induziriam os sentimentos. Ligando, assim, sentimentos, fundamentalmente o sentimento a emergência do sentimento moderno de deso- de existência de si próprio e do outro. O sen- rientação aos modos de existência das grandes timento de si próprio supõe, com efeito, uma cidades – que ele estenderá à vida moderna certa forma de continuidade, de duração, re- em seu conjunto – Simmel destacará, assim, os quer um limite entre interioridade e exterio- traços essenciais do homem moderno, sua sub- ridade. Este limite é hoje questionado pelas jetividade, seus modos de ser, suas maneiras formas de tecnologias contemporâneas, o que de sentir, definindo-as por “uma impressão de traz consequências – por um lado conhecidas, tensão e de vaga melancólica, uma insatisfação por outro inéditas – sobre o funcionamento da secreta, um sentimento de urgência que nasce subjetividade, e além da própria existência do no frenesi da vida moderna”. Essas disposições, eu. Janet observou, assim, que “o estreitamen- prossegue Simmel, “nos levam a procurar uma to do campo da consciência tem uma grave satisfação passageira, momentânea, estímulos 370 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea sempre novos, sensações e atividades exter- percepção”, escreveu Illich ao vislumbrar a nas” (Simmel, 1908). eventualidade de uma perda dos sentidos. É aí que devemos – rapidamente – evo- O que pode, então, se passar, que tipos car a questão das mídias e das telas. As mídias de problemas surgem quando a percepção e a procuram um prazer imediato, deixam entrever reflexão são substituídas pela sensação ilimi- a promessa de sentir “mesmo se não sabemos tada? A imersão nas imagens e sons, o prazer realmente como e o que sentimos em uma da sensação, a individualização nos tornaram profusão de imagens” e até mais, se tivermos menos sociáveis? Menos democratas? Menos conservado a capacidade de sentir: de fato, não civilizados, como diria Balandier? (2003). existe nada além da sensação, do prazer que A conclusão de Arendt é clara, “o eu conduz, necessariamente, a interrogar-se sobre e o mundo, a faculdade de pensar e de sentir a parte de passividade e atividade no eu. As são perdidos ao mesmo tempo”, conduzindo, mídias permitem, com efeito, ver sem interrup- então, a homens sem profundidade, sem inte- ção, ouvir sem envolvimento psíquico, afetivo, rioridade, sem consciência, ao “surgimento de estar ligado sem contato. homens cuja psicologia não se pode mais com- Essas observações conduzem a inter- preender” (Arendt, 1955). rogações que dizem respeito ao humano e Como evoluir e como se definem as ma- aos fundamentos da civilização, suscitam a neiras de sentir quando os fluxos sensoriais angústia ante as formas eventuais e inéditas contínuos em uma sociedade fluida penetram de barbárie por meio de possibilidades tecno- o espaço interior de cada um? As mídias per- lógicas. “O que posso fazer para sobreviver mitiriam experimentar, por intermédio das no meio do show ?”, se questionava Illich, telas como um prolongamento de si próprio que lembrava que a questão apresentou-se para fora de si: a constância da sensação, a nós “quando percebemos a necessidade de progressivamente privada de sentido, teria defender a integridade e a clareza de nossos se tornado primeira, confrontando-nos por sentidos – nossa experiência sensorial – con- conseguinte a novas experiências de vida e de tra as invasões incessantes da multimídia a pensamento. partir do ciberespaço” (Illich, 1995, p. 288). Somos, assim, confrontados a uma trans- Sobreviver: não apenas mover-se, mexer-se, formação maior das formas da percepção? deslocar-se – livremente ou obrigado –, mas A imagem de síntese é uma produção de um ter a possibilidade de refletir, não se apres- tipo inédito “suscetível de instituir uma nova sar, ser ativo no pensamento; experimentar prática de percepção, ampliando os critérios certamente sensações difusas, passageiras, pelos quais vinculamos essa atividade ao nos- intensas, porém ainda poder experimentar so corpo” (Belting, 2001, p. 28): não entende- sentimentos – duráveis, profundos – que mos mais, ou, o que é ainda mais terrível para permitam pensar, perceber e reconhecer o o exercício da sensibilidade de si e dos outros, outro, e respeitá-lo. Os fluxos sensoriais con- não conseguimos mais saber o que faz parte de tínuos das mídias provocam “uma mudan- nosso corpo – o que nos mergulha em um esta- ça de papel atribuído ao espírito no ato da do de ilimitação e de indiferenciação. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 371 Claudine Haroche Experimentaríamos outras maneiras de Os trabalhos sobre os funcionamentos sentir? Estaríamos antes confrontados a um sensoriais até hoje abordaram mais frequen- recuo, um declínio das qualidades sensíveis, temente a visão e a audição, negligenciando a uma evolução das formas elementares da um pouco o sentido do tato. No entanto, é es- percepção em primeiro plano, sobre as quais sencial que se interesse novamente pelo papel será necessário, em razão da onipresença das original do tato nas origens do pensamento, imagens, do virtual, interrogar-se sobre o de- lembrar que o tato garante e permite o vínculo clínio do toque, do tátil? E, em consequência e o afeto no pensamento, contra o desapego, a perceber modos inéditos de estruturação, de indiferença e a insensibilidade. divisão e de fragmentação do eu, temer, por fim, formas radicais de surdez, de cegueira, de insensibilidade? A percepção é ainda possível na mudança permanente? Os fluxos sensoriais contínuos Em conclusão: experimentar maneira inéditas de sentir? que previnem a percepção das diferenças culminam, assim, na indiferenciação. Interrogan- O exercício do pensamento é ainda possível do-se sobre o fato de saber “se uma antropo- quando a duração, a profundidade faltam? logia é ainda possível”, Balandier lembra que Quando os enquadramentos e as referências se “a antropologia, como modo de conhecimento tornam obscuros, fazem falta os momentos de das culturas e das sociedades, foi primeiro ex- parada, de pausa? O exercício da sensibilidade, ploradora do diverso”. Ele sublinha, por fim, do pensamento pode subsistir em um eu sem que “o homem se encontra comprometido em limites? uma história toda distinta, mudando continua- Voltamos aqui aos escritos de Bergson – mente o mundo e mudando a si próprio” e se Mas ainda temos tempo? – para discernir as questiona sobre o fato de ser “ainda possível condições da percepção nos fluxos sensoriais: recorrer ao saber constituído antes para com- se perceber é tender a imobilizar por momen- preender, interpretar, definir as formas inéditas tos, como perceber quando a sensação do da realização do humano hoje?”(Balandier, movente é permanente? Pode-se, enquanto 2003, p. 252). sujeito, expressar um desejo, uma escolha, Em Le Grand Dérangement , Balandier chama a atenção para a necessidade de uma hesitação, uma recusa, em outras palavras, agir em um movimento ininterrupto, fluido? Envolvidos em um movimento cons- [...] prevenir os efeitos desastrosos de uma ameaça ao que foi originalmente um comércio sensível entretido com o mundo: a espacialidade, a temporalidade, a materialidade e o vivo em... sua diversidade. (Balandier, 2005, pp. 63-64) 372 tante, tenderíamos a experimentar apenas impressões difusas e voláteis, mergulhadas em uma sensação de mudança incessante? O ritmo das mudanças econômicas, tecnológicas, sociais entrava a parte da intenção e Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea do projeto, reduzindo-nos ao papel de atores amplamente à obra que Ravaisson consagra ao passivos de nossa própria existência? Adorno hábito em 1838 (Ravaisson, 1838). e Horkheimer observaram que a imaginação e Ele atualizará uma tendência à perma- a espontaneidade dos indivíduos são atrofia- nência que concerne tanto o movimento, a das através das mídias, que impedem qualquer mudança, como a imobilidade, “a tendência a atividade mental ao espectador, se ele não persistir em sua maneira de ser”, perdurar no quiser perder nada dos fatos que desfilam a tempo. Em seguida, ele trata da questão do toda velocidade diante de seus olhos” (Adorno tempo, observa seu caráter ininterrupto, e infe- e Horkheimer, 1944, p. 135). re assim o eu como um imperativo funcional, Essas interrogações são hoje decuplica- uma necessidade. Porém, é quando examina das pela intensificação dos fluxos sensoriais, as condições de redução da sensibilidade, ob- informacionais de mídias onipresentes. O mo- serva o exercício da vontade, que Ravaisson vimento contínuo leva a um estreitamento da lança luz em particular sobre os mecanismos consciência, uma exteriorização da esfera inte- contemporâneos da percepção. “A excitação rior, concomitantes com uma fragmentação do sensorial contínua” – explica ele – “reduz a eu e uma espacialização da experiência: uma sensibilidade”, a capacidade de desejo, de dis- relação com o tempo que parece esvair-se, uma cernimento, observando que “na sensibilidade, relação com o espaço ilimitado, porém virtual, na atividade se desenvolve [...] pela continui- acompanhadas pelo sentimento de um empo- dade ou pela repetição uma classe de atividade brecimento interior e da extensão ilimitada da obscura, que previne cada vez mais o querer sensorialidade. e, em consequência, a impressão dos objetos Existem hoje outras maneiras de sentir, externos” (ibid., p. 71). Ravaisson se fixa, en- perceber, pensar, ser que não dependam mais tão, nesse conhecimento indistinto, e detalha da existência de um eu – que o eu seja uma os mecanismos empregados, as condições, os ideia, uma representação, uma concepção, caminhos para chegar a ele. Ele insiste sobre uma necessidade prática ou uma necessidade uma dimensão crucial dos funcionamentos psíquica? contemporâneos ao destacar o papel da repe- A releitura dos escritos de Ravaisson e tição, e, mais ainda, de uma repetição contínua, de Bergson oferece um aporte decisivo para da existência de uma sensação permanente e a compreensão do contemporâneo: ambos se de seus efeitos sobre os sentimentos: essa sen- interessaram, de fato, ao estudo dos fluxos, sação os atenua, os debilita, provocando-lhes a examinam seus funcionamentos, suscetíveis de mobilidade. É o que Ravaisson resume em uma esclarecer as evoluções psíquicas mais recen- fórmula extremamente concisa: “a continuida- tes. Bergson atua, de certa maneira, como um de ou a repetição diminui a sensibilidade; ela pensador fundamental: dedicou-se a elucidar exalta a mobilidade” (ibid., pp. 74-75). os funcionamentos fundamentais da moder- Longe de emanar do eu, essa atividade nidade, interessando-se às categorias elemen- incessante impõe-se a ele, o ativa, consome, ex- tares de tempo e espaço na obra da percep- tingue de certa maneira, enquanto o decuplica, ção e no pensamento individual, referindo-se amplia pela hiperatividade. Ravaisson permite Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 373 Claudine Haroche discernir a importância do corpo, do movimen- Bergson levanta, então, uma questão que se to, do hábito, do automatismo, o caráter mino- coloca de maneira aguda e inédita na extensão rado da personalidade: “é cada vez mais fora dos funcionamentos automáticos contemporâ- da esfera da personalidade […] nos órgãos neos, afetando por conseguinte o papel do su- imediatos dos movimentos que se formam as jeito no exercício do pensamento: sublinhando propensões que formam o hábito” (ibid., p. 79). que a afeição está “intimamente ligada à mi- Ponto crucial na proporção em que a nha existência pessoal”, Bergson se pergunta ilimitação – no âmago dos funcionamentos “o que, com efeito, seria uma dor destacada das sociedades contemporâneas – entrava a do sujeito que a sente?” (ibid., pp. 53-54). Ele percepção. chega a concluir que a dor não poderia existir É então que se deve deter sobre a necessidade prática, e mais além, sobre a necessi- independentemente de um sujeito que a sinta: a dor sem sujeito não existe, é inconcebível. dade psíquica e afetiva de imobilidade “temos Essas questões não cessarão de ser re- necessidade de imobilidade”, diz ele em 1911 petidas, e são surpreendentemente atuais durante a conferência de Oxford (Bergson, para compreender a fluidez sem limite das 1938, p. 159). socieda des contemporâneas. “Façamos um Ele chega, assim, à questão do eu sensí- esforço – escreveu Bergson – para perceber vel, da sensibilidade, através de uma genealo- a mudança como é, em sua indivisibilidade gia da dor: para que haja dor, é preciso que ha- natural” (Bergson, 1938, p. 174). Essa indivi- ja um sujeito capaz de sentir. Ser sensível signi- sibilidade não coloca em causa a própria pos- fica ter a capacidade de sofrer ou sentir prazer, sibilidade de categorização, de classificação? alegria; é também a capacidade de imaginar, Pode-se limitar a dizer que o eu nasce de uma perceber o prazer e o sofrimento do outro. É necessidade prática, funcional de organização quando ele aborda a questão da capacidade externa? De percepção da realidade? Ou de sensível, da sensibilidade do ser humano ao uma necessidade psíquica? Não se pode na- outro que Bergson formula questões compor- quilo que diz Bergson discernir além da neces- tando um desafio civilizacional considerável. sidade sensorial, uma necessidade fundamen- Ele recorda que tal de estabilidade psicológica, de continuidade subjetiva? [...] quase não existe percepção que possa, por um acréscimo da ação de seu objeto sobre o nosso corpo, tornar-se afeição, e mais particularmente, dor. Assim, se passa insensivelmente do contato da agulha à picada. Inversamente, a dor decrescente coincide pouco a pouco com a percepção de sua causa e se exterioriza praticamente em representação. Portanto, parece bom que haja uma diferença de grau, e não de natureza, entre a afeição e a percepção. (Bergson, 1939, p. 53) 374 Prosseguindo as interrogações de Ravaisson e de Bergson, um certo número de trabalhos importantes se interessaram recentemente pelas reviravoltas psíquicas induzidas pela flexibilidade e a fluidez no mundo contemporâneo. Sennett observa, quanto a ele, uma necessidade de fixação e de referências análoga à que Bergson elucidou: as enquetes que Sennett realizou durante os dez últimos Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea anos levaram-no a observar a incerteza dos indivíduos quanto ao futuro e a enfatizar que “o que mais necessitam é de uma ancoragem mental e emocional” (Sennett, 2004, p. 148). Isso o leva a pesquisar sobre os efeitos das or- em uma atividade mais moderna, como um laboratório científico. Porém, é também o caso em uma empresa bem administrada: longe de querer evitar dos problemas, presta-se atenção a eles. (Ibid., p. 138) ganizações flexíveis e, a curto prazo, estudando as consequências sobre os afetos: a necessi- Por fim, dentre os autores de trabalhos dade de inscrever-se no tempo, a necessidade aos quais nos referimos longamente na aná- de continuidade, de contar para os outros, de lise como “a transformação das maneiras de ter um lugar, de ser reconhecidos não podem sentir”, Balandier é, sem dúvida, um dos que mais ser satisfeitas. Sennett resume, então, o foi mais longe no exame das consequências estado em que se encontra hoje o sujeito nas de tais efeitos: tendo entrevisto o declínio e a duas fórmulas que destacam sua passividade eliminação das categorias antigas, das classi- ou, inversamente, seu caráter ativo: os indiví- ficações tradicionais, ele evocou muito recen- duos perderam a iniciativa motora, psicológica, temente o caráter crucial de tais questões em privados de uma necessidade fundamental que diversos escritos e, há pouco, em um texto de- decorre do “sentimento de ser um agente” ou dicado à “desaparição”. Balandier se interroga, do fato de “pensar como artesão” (ibid.). Ele assim, sobre as categorias, os âmbitos em que se interessará, então, por entender o efeito do nos percebemos, concluindo que nos encontra- consumo sobre as próprias condições do pen- mos hoje confrontados menos à “passagem a samento. Ele distingue e opõe as atividades um novo período de uma história continuada automáticas, as operações mecânicas exercidas que (à) passagem a outros tempos, supermo- no consumo das que requerem reflexão, pen- dernos, que engendram o inédito e constituem samento, autonomia, uma certa relação com o a mudança contínua em um novo estado das objeto, o interesse que se dedica ao trabalho, o coisas” (Balandier, 1985). Ele recorda que se a trabalho bem feito, o prazer que se poder obter mobilidade é uma dimensão intrínseca às mí- desse trabalho, em suma, o que ele designa co- dias, no entanto, sublinha que “por sua multi- mo o fato de pensar como artesão. O consumo plicação e a extensão de seu domínio, os efei- não poderá coexistir com o fato de pensar co- tos de realidade tendem a se tornar a realidade mo artesão como um todo, em um estado de indistinção [...] ou seja, de procurar a compreender o que se faz [...] No que diz respeito ao trabalho, o bom artesão é mais que um mecânico. Ele quer entender por que um pedaço de madeira ou um processo informático não basta; com isso, o problema se torna abarcador e suscita um procedimento objetivo. Esse ideal se realiza em um ofício tradicional, como a fabricação de instrumentos de música, mas também Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 crescente” (ibid., p. 240). Ele observa que o aumento do virtual, contribuindo ao indistinto, conduz ao questionamento das categorias pelas quais percebemos e pensamos o mundo. Podem-se experimentar sensações, mas se pode perceber, sentir, pensar no movimento contínuo e na ilimitação, na instantaneidade e no imediatismo? Não seria necessário repensar o papel da sensorialidade e da percepção, criar 375 Claudine Haroche um novo lugar à corporeidade, ao movimento, tendem cada vez mais a faltar, a necessidade à mobilidade, à mudança no processo de pen- de tentar levá-las em consideração, protegê- samento? Podem eles ter um sentido? -las, garantir sua existência, na proporção em Se admitirmos que existem necessida- que constituem nossa humanidade, tornou-se des psíquicas fundamentais, como a duração, a hoje uma questão política, antropológica e ci- estabilidade, a confiança, a profundidade que vilizacional crucial. Claudine Haroche Diretora de Pesquisa do Le Centre National de la Recherche Scientifique–CNRS. Centro Edgar Morin/ Institut interdisciplinaire d’Anthropologie du Contemporain–IIAC da L’École des Hautes Études en Sciences Sociales–EHESS. Paris, França. [email protected] Notas (*) Este texto foi extraído de uma conferência realizada no IPPUR em 11 de novembro de 2009: ele retoma os argumentos desenvolvidos em Haroche, C. L’avenir du sensible. Les sens et les sen ments en ques on Paris, PUF, 2008 (Versão remanejada: A Condição Sensível (2009), Rio de Janeiro, Contracapa. (1) Elias remete a Descartes quanto à “necessidade de observar e de pensar antes de agir” (“Conscience de soi et image de l’homme”, 1991, p. 152). (2) Simmel observa que “antes da criação de ônibus, ferrovias e trâmueis no século XIX, os homens simplesmente não podiam viver uma situação em que as pessoas pudessem ou devessem se fitar mutuamente durante minutos ou horas sem se dirigir a palavra” (Ibid.) Goffman e Senne farão, mais tarde, observações análogas. (3) Ver L’Avenir du sensible (Haroche, 2008, capítulos 1 e 5). Rousseau foi um dos primeiros a se mostrar particularmente sensível à necessidade fundamental de ser visto, de ser olhado, condição para a autoes ma, a dignidade e a integridade. Os sen mentos nascidos do olhar são o próprio fundamento do sen mento de existência: a invisibilidade não desejada poderia suscitar um sen mento de abandono, de inexistência. Rousseau atualizou, assim, os mecanismos inerentes ao olhar: não apenas ser olhado, mas, inevitavelmente, de maneira voluntária ou não, ser olhado mais que os outros. Condensando opinião, consideração, aparência e olhar, Rousseau conclui que “é, portanto, certo que é menos em nós mesmos e mais na opinião de outrem que buscamos nossa felicidade. Todos os nossos esforços convergem apenas para o parecer ser feliz. Não fazemos quase nada para sê-lo de fato, e se os melhores de nós deixassem por um momento de se sen rem olhados, nem sua felicidade, nem suas virtudes seriam mais nada” (Rousseau, 1964, p. 324). 376 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Maneiras de ser e de sentir na aceleração e a ilimitação contemporânea (4) Ele nota que “a ‘desatenção civil’ permite ao homem e à mulher trocarem um rápido olhar recíproco... o segundo breve olhar que ele lhe dirige pode ser um sinal de encorajamento (p. 62). (5) Arendt tomou consciência, com estupor, durante o processo Eichmann, da superficialidade deste úl mo, de sua incapacidade de refle r, de sua ausência tanto de reflexão como de olhar (ver Eichmann à Jérusalem, op. cit.). (6) Lasch sublinhava que esses traços consistem em “uma certa superficialidade protetora”. (7) Lembra que um certo número de escritos polí cos tem como ponto de par da a questão da crueldade contra os estrangeiros. (8) Versamos aqui sobre as maneiras de sentir, os modos de percepção com uma abordagem transdisciplinar de sociologia, antropologia e psicologia, procurando reformular as questões sobre os fundamentos do eu, da pessoa, da subje vidade, do sen r, do sen mento. Não entramos aqui em debates internos à filosofia que tratam dessas questões. Referências ADORNO,T. e HORKHEIMER, M. (1944). “La produc on industrielle de biens culturels. Raison et mys fica on des masses”. In: La dialec que de la raison. Paris, Gallimard, 1974 ANDERS, G. (1988). 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Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 359-378, jul/dez 2011 Narrativas sobre a metrópole centenária: Simmel, Hessel e Seabrook Narratives about a centennial metropolis: Simmel, Hessel and Seabrook Carlos Fortuna Resumo A metrópole e a vida do espírito, de Georg Simmel, é abordado como texto seminal da sociologia urbana e da análise dos comportamentos humanos em contextos metropolitanos. Estabelece-se uma relação entre a atitude blasé e o surgimento da figura do flâneur. Esta é tratada a partir dos contributos de Franz Hessel de finais da década de 1920 que retrata com algum romantismo o universo metropolitano europeu anterior à Segunda Guerra Mundial. A terminar, o texto interroga a existência da flânerie nas megacidades do sul global de hoje. O autor usa o recente relato de J. Seabrook para ilustrar como, passados cem anos, a metrópole de Simmel passou por profundíssimas transformações. Se se puder ainda falar de flânerie, certamente ela sofreu uma alteração radical da sua natureza. De tal modo que essa mudança implica a revisão epistémica da sociologia urbana. Abstract Georg Simmel’s The Metropolis and Mental Life is treated as a seminal study of urban sociology and of the analysis of human behavior in metropolitan contexts. A relationship between the blasé attitude and the appearance of the flâneur is established. The latter is seen through Franz Hessel’s writings, in the late 1920s, which present a somewhat romantic view of the pre World War II in Europe. The article ends up by questioning whether flânerie still exists in today’s global South megacities. The author makes use of J. Seabrook’s recent writings to show the deep transformation Simmel’s metropolis went through in the past hundred years. If we can still talk of flânerie, it has certainly undergone a very radical change in nature which leads to an epistemic revision of the canon in urban sociology. Palavras-chave: Simmel; metrópole; flânerie ; cânone urbano. Keywords: Simmel; metropolis; flânerie; urban canon. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 Carlos Fortuna Introdução: Simmel e o cânone urbano metrópole europeia de finais do século XIX, em torno da qual produziu um dos seus mais influentes escritos – A metrópole e a vida do espírito (Simmel, 1997 [1903]). Georg Simmel é um daqueles intelectuais cujo Pode dizer-se que A metrópole … de nome reaparece a cada instante nas reflexões Simmel contribuiu decisivamente para a cons- sobre inúmeros temas da atualidade. Ou por- tituição do cânone urbano ao longo do século que as suas incursões se tornaram incontor- XX. Entre os que puderam assistir à conferência náveis e dificilmente descartáveis nos nossos em que pela primeira vez Simmel expôs suas dias, ou porque o entendimento da mudança ideias sobre a condição urbana metropolitana,2 societal de hoje aconselha o recuo temporal às poucos terão admitido estar perante um estudo linhas originárias de seu questionamento, co- seminal que alcançaria esse estatuto de obra mo modo de fundamentar arqueologicamente clássica, constitutiva, no sentido kuhniano, de o saber contemporâneo. São esses atributos um novo cânone ou paradigma em formação. que conferem a Simmel o estatuto de um dos O estudo, associado a muitas outras conside- fundadores da sociologia e atribuem ao seu rações de Simmel dispersas por textos de na- trabalho a condição de obra clássica. Num e tureza não imediatamente acadêmica, passou noutro caso, enquanto legado intelectual sem- rapidamente a ser comentado e glosado no pre atual e sempre atualizável , Simmel e a sua efervescente meio acadêmico e jornalístico obra permanecem entre as marcas inspiradoras alemão de princípios do século. As ideias ali mais profundas do pensamento sociológico expostas depressa atravessaram a fronteira contemporâneo. atlântica pela mão de Robert Park, discípulo de São várias as razões que fazem de Simmel, e viriam a constituir parte importante Simmel esse pensador atual. A primeira des- de património intelectual da chamada “Escola sas razões decorre de partilhar com outros de Chicago”. Traduzido e retraduzido de modo contemporâneos seus uma inquietação sobre incessante em todo o mundo, A metrópole… é o que representa efetivamente a modernida- na verdade uma referência incontornável e um de no curso da civilização. A escala macro de marco do conhecimento disponível sobre a ci- tal objeto, contudo, foi abordada por Simmel dade e a questão urbana.3 segundo uma metodologia que privilegiava a Por essas razões, parece indispensável análise de fragmentos (snapshots sub species que regressemos ao estudo original de Simmel aeternitatis), de novas formas e configurações para contribuir para esse desafio que, em boa societais muito específicas, conjugadas com hora, os Cadernos Metrópole lançam, de equa- abordagens filosóficas e estéticas que, umas cionar o lugar de Simmel na interpretação do e outras, colocaram Simmel paradoxalmente mundo das metrópoles dos dias de hoje. Antes, fora do mainstream acadêmico do seu tempo.1 porém, permito-me desenvolver brevemente A preocupação de Simmel com o que é mo- uma das facetas derivadas do fato de um es- derno se encontra essencialmente assinalada tudo como A metrópole… de Simmel poder ser pela sua aturada reflexão sobre Berlim como considerado como parte integrante do cânone 380 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 Narrativas sobre a metrópole centenária acadêmico urbano. A faceta a que me refiro é população humana. No plano da teoria, esse a da fixação ou delimitação teórica-metodoló- universo das pequenas e médias cidades es- gica do objeto de estudo que a obra canônica tá limitado a ensaiar sucessivas tentativas de constitui. O estudo de Simmel, reconhecida- adequação das políticas desenhadas para os mente centrado na evolução urbana de Berlim contextos das megacidades ou, em alterna- da viragem do século, dada a sua originalidade tiva, têm de forçar a teoria a reconhecer que e a pertinência heurística das suas hipóteses a pequena dimensão de umas cidades não é no tempo em que surgiu, ajudou a “fixar” a um efeito perverso da desmedida grandeza de abordagem sociológica urbana no contexto das outras. grandes cidades. Como sustento noutro lugar Na política científica, sabemos interpre- (Fortuna, 2011), tal opção teve como primeiro tar o lugar dos efeitos não intencionais resul- efeito derivado a estabilização da sociologia ur- tantes da investigação. Um deles é, por certo, bana no universo geocultural do ocidente euro- o de não atribuirmos responsabilidades diretas peu e norte-americano. Os efeitos epistêmicos ao autor pelos “desvios” que a sua “teoria” resultantes dessa “norte-ocidentalização” da pode ter sofrido na mão dos seus seguidores. sociologia urbana traduziram-se, fundamental- Daqui retiro que o clássico ensaio de Simmel, mente, na duradoura “desclassificação” de uni- contribuindo embora para a constituição do câ- versos urbanos alternativos da América Latina, none sociológico urbano em torno às grandes de África e da Ásia, no conjunto dos territórios cidades, não restringiu a esse universo a ima- empíricos e de investigação urbana pertinente. ginação sociológica urbana posterior. Simmel, Admito que a recente reflexão em redor das aliás, escreveu sobre Berlim, a grande cidade chamadas “outras” cidades ou cidades “ordi- que tinha pela frente, e as suas considerações nárias” possa constituir um contributo de rele- foram sucessivamente comentadas e testadas vo para a descanonização da sociologia urbana em outros lugares, com predominância para as e a reorientação dos seus princípios filosófi- grandes cidades da Europa, que assim foram cos e teórico-metodológicos (Amin e Graham, sendo tornadas contextos naturais de investi- 1997; Mendieta, 2001; Robinson, 2006). gação urbana. Supostamente porque era nes- Um segundo efeito derivado do canônico sas concentrações urbanas que se impunham estudo de Simmel, e derivado do anterior, res- os fenômenos sociopolíticos inusitados e mo- peita à negligência do universo das “pequenas dernos que, irrepetíveis em contextos de menor e médias” cidades. Cerca de 60% da popula- escala, reclamavam interpretações inovadoras. ção urbana mundial de hoje vive em aglomerados de menos de 750 mil habitantes (United Nations, 2010) e, entre estes, a grande maioria reside em cidades de menos de 100 mil (Clark, A metrópole e a atitude blasé 2003). O que resulta daqui é que a insistência no estudo das megacidades risca deixar na pe- Berlim, por volta de 1900, era um desses uni- numbra um universo riquíssimo de experiên- versos intrigantes de acelerada mudança po- cia urbana de uma parcela não desprezível da lítica e cultural. Com um pouco menos de 2 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 381 Carlos Fortuna milhões de habitantes, Berlim não era propria- Seabrook, um irreverente repórter do mundo mente uma cidade de grande escala. Em mea- urbano dos países pobres. Se admitirmos que dos do século, com os seus 3.3 milhões, inte- a metrópole seja metonimicamente associada grava ainda o grupo das 20 maiores cidades do à figura do flâneur, nas novas metrópoles do globo, mas cedo perdeu esse estatuto, como de Sul o que mais se pode aproximar da flânerie resto sucedeu com as restantes cidades euro- desenrola-se agora não na condição blasé de peias (Soja e Kanai, 2007, p. 60). Quer isto dizer Simmel, mas na mais alienada e sub-humana que, exceção feita ao caso de Nova Iorque e Los condição de vida, de quem luta a cada instante Angeles, o peso demográfico urbano do mundo pela sobrevivência, nas condições mais adver- se tem vindo a deslocar para “outras” cidades sas. De Simmel a Seabrook decorreram pouco fora do contexto europeu e norte-americano. mais de cem anos, um lapso de tempo sufi- Essa profunda alteração da geografia da ciente para assinalar profundíssimas mudanças urbanização metropolitana é importante para ocorridas nas metrópoles, com destaque para o argumento deste texto que passo a sumariar. os atores sociais que melhor podem ilustrar a Tudo começa com Simmel e Berlim. A metrópo- condição de vida que elas enunciam. O percur- le da viragem do século foi identificada como so argumentativo faço-o discorrendo em traços geradora de novas configurações societais, breves sobre as narrativas que Simmel, Hessel e mas também de novos atores, crescentemente Seabrook oferecem sobre a vida urbana. individualizados e em confronto com também A capacidade da metrópole de gerar no- novos desafios à sua condição cidadã. Para vas mentalidades e estilos de vida é um traço poder conservar o seu equilíbrio mental, segun- sociológico da vida moderna, repetidamente do Simmel, o frágil urbanita busca refúgio na assinalado pela sociologia urbana desde os atitude blasé de desprendimento e indiferença. seus primeiros passos. Na linguagem simme- Do eventual aprofundamento dessa condição liana, é a “atitude blasé” a que melhor ilustra resulta a possibilidade de uma total desafilia- a moderna configuração psicossociológica do ção dos sujeitos com o coletivo urbano. No li- indivíduo. Essa atitude blasé, que Simmel faz mite, o desprendimento do sujeito blasé pode derivar do imoderado desafio sensorial que a dar origem à figura do flâneur, quiçá o sujeito metrópole suscita, é um dispositivo psíquico urbano que melhor tipifica a moderna condição essencial para que os indivíduos possam rea- metropolitana. Quem é e como se manifesta es- gir aos efeitos da generalizada monetarização se flâneur? Recorro ao relativamente margina- da moderna economia urbana. No limite, ela lizado contributo de Franz Hessel – ele próprio se constitui na atitude reiterada de indiferen- um assumido flâneur – e à descrição que faz da ça perante a diferença que distingue os obje- Berlim da década de 1920. Na segunda metade tos e mercadorias uns dos outros e separa as do século XX, a intensa e rápida urbanização pessoas entre si (Simmel, 1997/1903, p. 35), do Sul global, por efeito da descolonização, ge- convertendo-se em mecanismo de autodefesa ra também ela novos atores. Que traços corres- dos sujeitos modernos no quadro da grande pondem à flâneurie nesses novos territórios ur- cidade. É um traço comportamental carregado banos, se ainda existe? Recorro aqui a Jeremy de negatividade, que fomenta a distância e o 382 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 Narrativas sobre a metrópole centenária afastamento em face dos outros com quem nos literatura sociourbanística e das belles lettres cruzamos nos espaços abertos da cidade. do século passado, a origem do flâneur está No entanto, Simmel admite que o invólu- identificada com um espaço específico (a cida- cro de reserva mental e distanciação a que o in- de de Paris) e um tempo determinado (segunda divíduo se entrega na metrópole, constituindo metade do século XIX).4 Não obstante, as con- embora uma autodefesa, não é tão sólido co- siderações tecidas por Simmel sobre a atitude mo parece. Contra a sua permanente mobiliza- blasé permitem, a meu ver, estabelecer uma li- ção jogam as virtudes da ação interpessoal que gação de proximidade temática com a flânerie. forçam os sujeitos a uma estrutura variada de Enquanto forma moderna de deambulação nos sentimentos que, ao lado da atitude blasé, do espaços abertos das grandes cidades, o flâneur estranhamento e da aversão, encerra também refugia-se no domínio pessoal e privado a par- simpatias e afinidades, mesmo que efêmeras e tir do qual estabelece os termos da sua rela- transitórias, e também um sentido de autono- ção com a multidão. Essa relação, portanto, mia pessoal, ainda que indefinido. Nem tudo constitui-se como relação marcada por uma na relação urbana é, portanto, feito de reação paradoxal íntima exterioridade, a partir da qual negativa. A cidade moderna contém mesmo, o indivíduo flâneur estabelece um vínculo tão segundo Simmel, o potencial para pensarmos egoísta como apaixonado com a multidão da o lugar das relações de civilidade e interação grande cidade. Proximidade e distância, en- urbana nos espaços públicos da cidade. A regra quanto estratégia de vida, são justamente a sá- parece portanto ser a da conflitualidade vivida bia combinação que preside ao comportamen- de sentimentos contraditórios que interpelam to público dos sujeitos urbanos racionais de A os indivíduos a cada instante e exigem dele metrópole... Aquilo que o blasé de Simmel pro- uma decisão racional e objetiva. cura com a racionalização da sua interação em As várias personagens que passam a po- contexto urbano não é a busca do deleite pes- voar a paisagem metropolitana moderna – o soal que tipifica o flâneur de Baudelaire.5 É, ao estrangeiro, a prostituta, o pobre, o aventurei- contrário e como vimos antes, uma modalidade ro, etc. – experienciam essa conflitualidade de de autodefesa e quase emancipação dos indi- sentimentos. O mesmo se diga do flâneur, essa víduos perante a multiplicação de estímulos e figura destacada da sociedade de massas que, desafios que a condição urbana metropolitana mesmo não pertencendo ao léxico urbano e lhes impõe e perante a qual estes se protegem cultural simmeliano, representa a materializa- de riscos e desequilíbrios psicomentais, como ção dos constrangimentos psicossociais e emo- os que Sartre trataria como náusea. cionais enunciados em A metrópole… Para além de fazer ressaltar a condição Trata-se de um ator social intimamente blasé como expressão individual de relação so- associado aos modos de observação e à espe- cial urbana dos sujeitos modernos, a incursão tacularidade da urbanização e da metrópole de Simmel, sem nunca mencionar a flânerie europeia tal como esta se desenvolve sob a baudelairdiana, permite-nos ir ao encontro da égide do capitalismo e do consumo a partir de ideia que a noção de flâneur é algo indetermi- meados do século XIX. Motivo recorrente da nada e sujeita a diversas interpretações. Com Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 383 Carlos Fortuna efeito, em anos mais recentes, encontramos a Berlim sobre que Simmel se detivera no seu A flânerie sendo considerada como prática de Metrópole…. Por fim, quero considerar que a observação urbana associada ao método do visão de Hessel sobre o flâneur, exposta como fragmento etnográfico da realidade6 ou sendo conjunto de relatos de viagens e deambulações tomada como posição privilegiada para enten- ocasionais pelas ruas e ambientes públicos de der o lugar da cultura visual e os modos de per- Berlim, organizam um modo particular de ler a cepção típicos do século XX. metrópole europeia da época e permitem-nos interpelar a sua evolução ao longo dos últimos cem anos. Franz Hessel, o flâneur Franz Hessel, nascido em 1880 no seio de uma família judia de renda alta, manteve uma longa relação de amizade e profissional com Menos de três décadas passaram desde o sur- Benjamin. Admirado como intelectual e escri- gimento de A metrópole… para que o flâneur tor, entusiasta assumido da experiência política berlinense surgisse com fulgor por entre as dis- e cultural de Weimar, Franz Hessel pode ser ti- cussões intelectuais locais. Até onde essa dis- do, ao lado de Simmel, como um dos que pri- cussão nos esclarece sobre a evolução da vida meiro se aperceberam da importância da cida- urbana metropolitana, é uma questão em aber- de como complexa encruzilhada de signos por to que não pretendo abordar neste texto. Li- decifrar. Frequentador de círculos intelectuais, mito-me somente a enunciar em traços breves artísticos e boêmios da Alemanha de entre- a incursão na flânerie, enquanto a um tempo guerras (o Circulo do poeta Stefan George em prática de vida e narrativa intelectual, de Franz Munique era o seu preferido), estabeleceu um Hessel, uma figura grada, porém algo margina- contato próximo com a elite cultural europeia lizada, da cena intelectual berlinense. Pretendo da época, sobretudo berlinense e parisiense. deter-me por uns instantes na visão de Franz Os escritos de Hessel constituíam já um Hessel, precisamente por considerar que repre- gênero literário antes mesmo de W. Benjamin senta uma atitude assumida de flânerie que ou S. Kracauer se deixarem “apaixonar” por vem atualizar em meados da década de 1920 este enigma cultural que é a captação da vi- a relação que admito existir entre o flâneur de da urbana da modernidade.8 Era um cultor da Baudelaire e a atitude blasé de Simmel. Por escrita fragmentada e do relato de situações outro lado, o estilo e algumas das temáticas ocasionais e furtuitas da realidade urbana, que tratadas por Hessel antecedem os termos e as revela ressonâncias claras com os snapshots considerações de Benjamin sobre o tema, pelo sub specie aeternitatis simmelianos. Em mui- que, no conjunto, a sua obra pode ser conside- tas circunstâncias, Walter Benjamin revela em rada como uma leitura pioneira da metrópole Rua de Sentido Único, por exemplo, uma franca de entreguerras, ainda que marginalizada dada simpatia pelo estilo de Hessel (Benjamin, 1992) 7 a sua limitada difusão. Outra virtude do tra- e chega mesmo a declarar admiração pelo tra- balho de Hessel que desejo sublinhar é o fato balho de seu amigo Hessel.9 De acordo com o de tratar precisamente da mesma cidade de comentário de Anke Glebber, Hessel oferece 384 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 Narrativas sobre a metrópole centenária um modo singular de captar a flânerie, basea- deixando transparecer certa obsessão e nostal- da na construção literária da cidade como se gia pelas ruínas e a destruição provocada pela esta fosse um estudo de caso sociológico. Tal guerra. leitura torna possível “traçar a genealogia das Hessel reconhece a grande dificulda- formas de perceção que antecedem a condição de em interpretar e habitar uma cidade co- da flânerie” ao permitirem considerar a própria mo Berlim, que se transforma rapidamente e errância literária como um metatexto da urba- se encontra “sempre em vias de se converter nidade (Glebber, 1999, pp. 85 e 110). em algo diferente sem nunca descansar sobre Hessel, tão familiarizado com Berlim co- o seu passado” (Hessel, 1997/1929, p. 212) e mo com Paris, onde passava regulares tempo- que, diga-se de passagem, tomaram de novo radas anuais, é na verdade um amante român- conta da cidade nos anos da sua reconstrução tico da cidade, no sentido que Pierre Sansot pós-Segunda Guerra Mundial, a que Hessel fala de como amar uma cidade (Sansot, 1994, já não assistiu, e novamente na sequência da pp. 358-374). Escreve de acordo com um sen- queda do muro e da reunificação alemã. Trata- tido dialético próprio que, ao mesmo tempo -se aqui de uma referência às contínuas trans- que desvenda uma Berlim secreta cujos traços formações materiais e arquitetônicas por que vão sendo descritos como potentes elementos Berlim passou nas primeiras décadas do século de atração, trata a cidade como um estranho XX (Frisby, 2001). Acima de tudo, acomodar-se espelho através do qual cada um se vai poder à contínua mudança da grande cidade requer descobrir a si próprio. A relação de proximidade a mobilização permanente de energias e sen- de Hessel com os surrealistas é clara, já que os timentos como condição de a saber perscrutar seus passeios por Berlim, alguns compartilha- e apreciar nos seus mais recônditos detalhes. dos com o próprio Walter Benjamin, assinalam Requer, sobretudo, uma atitude de inocente um método particular da montagem de frag- tolerância e reserva, ao mesmo tempo de pro- mentos, em tudo semelhantes ao que Benjamin ximidade e distância calculadas de onde brota usaria na escrita das suas famosas Passagens a apreciação estética da paisagem: (Benjamin, 2009), ou que Guy Debord e os situacionistas iriam mais tarde promover com o exercício da deriva (Coverley, 2006). Quando passeia por Berlim e nos conduz pelas suas artérias, praças e bairros, ou quando se dirige diretamente aos seus concidadãos berlinenses, Franz Hessel dá mostras de uma sensibilidade extrema para com a materialidade da cidade (por exemplo, nos detalhes minuciosos das ruas e das lojas ou nas descrições de indivíduos), oferecendo uma visão intimista e naturalista da metrópole e do seu passado, Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 Se a rua é de verdade uma espécie de leitura, então leiam-na, mas não a critiquem demasiado. Não sejam demasiado apressados em julgá-la bela ou feia. Não podemos confiar nestes conceitos. Deixem-se enganar ou seduzir um pouco pela luminosidade, pelo decorrer do dia e pelo ritmo das vossas passadas… Por estar enclausurado de forma amistosa, também aquilo que é feio revela a sua própria beleza. Os esteticistas não sabem disso… mas o flâneur conhece bem esta realidade. (Hessel, 1981, pp. 59-60, citado em Reeh, 2009) 385 Carlos Fortuna Hessel assume essa atitude de reserva outra que os seus semelhantes? Hessel não e ponderação perante a grande cidade. Nada hesitaria em responder afirmativamente, com de juízos avaliativos precipitados, antes se certeza influenciado pela forte relação empáti- aconselha reserva perante o objeto que, mes- ca que estabeleceu com as duas metrópoles da mo se de duvidosa beleza, terá sempre outros sua vida: Berlim e Paris. O flâneur cultiva com recursos para nos atrair. A mesma cautela que elas e as suas “florestas de signos” uma rela- proclamara Simmel para prevenir os habitan- ção que faz ressoar o entendimento que Gilles tes da metrópole de uma atitude resguardada, Deleuze faz do amor, em que a pessoa amada capaz de controlar os ímpetos psicossenso- surge perante o amante como uma pluralidade riais perante o bombardeamento a que ficam de signos e impenetráveis e misteriosos, logo, expostos os nossos sentidos, serve agora a por isso mesmo, desafiadores objetos de desejo Hessel para decifrar com competência emo- (Machado, 2009, p. 196). cional e reserva avaliativa os sinais contradi- Desconcertante, a grande cidade parece tórios da estética urbana. Berlim que, lamenta poder ser tanto mais admirada e amada quan- Hessel, “não tem sido suficientemente amada” to mais severa e difícil de decifrar. Repleta de (Hessel, 1997, p. 212), está disponível para se indecifráveis hieróglifos, a grande cidade “não deixar conquistar pelos seus residentes, bas- se deixa ler!” (“Er lasst sich nicht lesen!”) co- tando para isso que estes se entreguem à sua mo enunciara Alan Poe no seu Homem da Mul- devoção plena e dos seus secretos recantos. tidão. A metrópole não tem a clareza espetral, Tal pode ser tanto mais reconfortante, insiste nem o princípio ou o fim dos outros espaços Hessel, quanto “caminhar devagar pelas ruas urbanos. Tornou-se excessiva na medida em cheias de gente proporciona um prazer invul- que deixou de poder ser percecionada em sua gar”. Por isso declara: “Todos nós, berlinen- plenitude pelos seus habitantes. Divorciada ses, temos que habitar mais a nossa cidade… da relação espacial que a definia e definia as Concedei à cidade um pouco mais do vosso suas fronteiras como no tempo da metrópole amor…” (ibid., p. 212). de Simmel, a metrópole já centenária de hoje Walter Benjamin vê as investidas de mostra-se indomável e caótica. Assim sendo, Hessel na descoberta da cidade como uma poderá ela continuar a ser objeto de desejo? redefinição do flâneur parisiense, cuja arte su- Nesta metrópole centenária tudo pode acon- prema é saber habitá-la até ao ponto de saber tecer, a todo o momento e em qualquer lugar. perder-se nela. Para ele, a cidade, a grande ci- Tanto pode esmagar o romântico flâneur hesse- dade modernista europeia pode ser alvo dessa liano e submetê-lo à condição inerte de quem simpatia e paixão, tudo dependendo afinal da não consegue decifrar o texto à sua frente e nossa capacidade de a “descobrir” nas suas se desorienta, como pode renovar a flânerie e mais recônditas paragens. Isso é uma compe- torná-la uma condição universal, não mais uma tência ou uma epistemologia urbana que po- condição personalista singular, porquanto num de ser alcançada pela flânerie. Mas poderão mundo dominado pelo "espírito" das metrópo- afinal os seres humanos amar qualquer coisa les todos seremos flâneurs. 386 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 Narrativas sobre a metrópole centenária A metrópole do irreverente Jeremy Seabrook em outros registos sobre as "outras" cidades, também Seabrook produz uma leitura crítica do modelo de crescimento econômico e urbano do mundo, num relato entrecortado de si- Esta metrópole de hoje, arquetipicamente re- tuações que, pela sua veemência, estabelecem presentada pelas megacidades da Ásia, Áfri- um contraste manifesto com as metrópoles dos ca e América Latina, não permite alimentar a primórdios da modernidade industrial. narrativa romântica da vida urbana que Hessel Cities levanta a questão dos limiares da oferece a partir do universo berlinense dos dignidade da vida urbana nos contextos mais inícios do século passado. É nessas condições pobres de megacidades das Sul global. Na que pretendo fazer o contraponto com Hessel, viagem que fazemos com Seabrook por algu- deslocando a análise para o mal contido gri- mas metrópoles da Índia ao Bangladesh, da to de revolta do jornalista e ensaísta britâni- África do Sul às Filipinas, do Sudeste asiático co Jeremy Seabrook, num pequeno livrinho à América Latina, os protagonistas são dis- de 2007, intitulado Cities: small guides to big tintos – profundamente distintos – do sujeito issues (Seabrook, 2007). central da narrativa metropolitana de inícios do De modo muito sensível, Seabrook des- século passado. O relato é pungente e impie- taca os impactos sofridos na vida das pessoas doso na denúncia da incapacidade de ação das que um pouco por todas as megacidades do agências internacionais e, principalmente, do Sul global de hoje, continuam a migrar de al- conhecimento social e político para encontrar deias pobres para aglomerados urbanos colos- solução para a dramática realidade descrita. sais, desestruturados e violentos. Estamos nos São também fragmentos de vidas de cidade, antípodas, no duplo sentido político e geográfi- numa colagem narrativa de que, vale a pena co, da narrativa dos inícios do século XX sobre assinalar, alguns retratos fílmicos brasileiros a metrópole. O que Seabrook traz de novidade poderiam ser eloquentes descritores. é a dimensão política da vida metropolitana, Seabrook mostra ser um fervoroso adep- mesmo se se limita à descrição de situações to da urgente necessidade de refazer as bases pontuais, num registo por vezes impressionista, e os princípios da nossa reflexão sociológica à boa maneira da reportagem, ou, se se prefe- sobre as cidades. De modo muito específico, rir, no bom estilo dos snapshpots simmelianos o livro de Seabrook, embora sem pretensões e hesselianos. acadêmicas, levanta a questão dos limites da Os ensaios de Seabrook revelam um sociologia urbana para responder às novas rea- cotidiano metropolitano que implica, antes lidades metropolitanas emergentes. Será que de tudo, o reconhecimento de uma profunda chegamos ao fim da cidade, enquanto catego- alteração do significado político do viver nes- ria pertinente mas ainda presa a paradigmas ses espaços desestruturados e violentos. Da do passado?10 Nessa linha de questionamento, démarche seguida pelo autor retira-se o re- interroga-se, por exemplo, acerca do que julga conhecimento da transição rápida e profunda ser o paradoxo das cidades dos países em de- ocorrida na condição da metrópole. Tal como senvolvimento, muitas das quais, apesar do seu Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 387 Carlos Fortuna estatuto de “cidades globais”, permanecem redes de sobrevivência, porém todos acabam desprovidas dos recursos que tipificam as suas em condição infra-humana limite de catadores 11 congêneres do ocidente. O seu impressionan- de lixo, de vendedores de órgãos humanos ou te ritmo de crescimento, principalmente desde de escravizados sexuais.12 O chamado setor o período pós-colonial, faz ressaltar a multipli- informal cresce desmesuradamente com eles cação e a extensão da favela, ou do slum, com e à custa deles e da sua estratégia de sobre- essas ou outras designações, um pouco por to- vivência. “Informal” é, em muitos casos, um do o mundo. O estatuto de muitas dessas gran- mero eufemismo, já que a linguagem nos pode des cidades na escala dos poderes e nas gre- prender o raciocínio. Será “informal” a situação lhas classificatórias convencionais oscila muito do condutor de riquexó que, com uma perna só, em função de sua inserção em redes internacio- pedala nas ruas de Daca para conseguir a sua nais tecidas pelo capital industrial e financeiro, renda diária? Será “informal” o jovem casal pelo comércio e pela produção tecnológica da que propõe a venda do seu filho de dias aos era da globalização. Em função dessas hierar- ocidentais que passam nas ruas de Jacarta? quias, algumas metrópoles parecem estar mais Serão “informais” os traficantes de cabelo de próximas do “norte” (por exemplo, São Paulo, jovens mulheres mortas ou as crianças que em Singapura ou Mumbai) e outras mais próximas Calcutá revendem as garrafinhas de água que do “sul” (por exemplo, Bengalore, Dhaka, ou trataram de encher com água contaminada? Lagos). Outras parecem estar no que o próprio Como Mike Davis diria, são estas e outras for- Jeremy Seabrook designa de "situação de fron- mas de “sobrevivencialismo informal” (ele in- teira” em que se articulam, a um tempo, “to- siste no qualificativo) que sinalizam o modo de dos” os traços de todos os “suis” e de todos os vida de gigantescas massas populacionais nas “nortes” (Tijuana, Ciudad Juarez ou Durban). megacidades do mundo pobre de hoje (Davis, O "direito à cidade" que reclamam os 2007). migrantes que insistem em demandar estas Separada das outras cidades que formam metrópoles não passa de uma quimera, impos- a megacidade do Sul global, essa gigantes- sível de alcançar. E assim vivem… e morrem, ca massa de pobres urbanos foi destituída de em ritmo obsceno, reclamando uma promessa qualquer estatuto social pelo apartheid eco- de cidadania sem concretização homens, mu- nômico, não já étnico ou racial, que fratura o lheres, crianças, velhos, doentes, todos pobres mundo das “cidades do medo”, sem apoios tornados incontornáveis perdedores da mo- nem serviços básicos, de salubridade e segu- dernidade. Ofendidos, expoliados, excluídos, rança, sem fornecimento nem de água nem de encontram-se na contramão do curso da histó- cidadania. Tudo isso acontece num mundo de ria dos pobres “respeitáveis” “envergonhados” metrópoles que há apenas algumas décadas do tempo da metrópole de Georg Simmel e atrás dava os seus primeiros passos para exal- Franz Hessel a quem o Estado providência es- tar o seu amor à cidade, mesmo que o amor tava prestes a acudir. Aqui, do Estado não se típico e ambíguo da flânerie, que tanto se faz conhece o paradeiro e das políticas sociais não de proximidade, presença e afinidade, como se vê rasto. Muitos procuram solução nas suas dos seus contrários. Tudo isso sucede neste 388 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 Narrativas sobre a metrópole centenária tempo singular e sem paralelo no seu acúmulo urbana desta metrópole centenária. Desde os de conhecimento sobre as cidades e as mega- seus primórdios, esta metrópole passou por lópoles. Parece que sabemos hoje tudo sobre uma rápida e profunda mudança na sua natu- as questões urbanas e os desafios ambientais, reza. De tal monta que não se dá conta que o as necessidades de segurança, os sistemas de reconhecimento urgente do seu próprio lugar transporte ou de proteção sanitária, como dos implica também a construção de um renovado conflitos sociais e étnicos até às virtudes da go- cânone urbano. vernação democrática e participada.13 O relato irreverente de Jeremy Seabrook é uma das vias para tornar visível e audível a “humanidade excedentária” das “outras" ci- Conclusão: uma nova flânerie? dades que o poder político e as multinacionais insistem em tornar invisível e silenciar. Como o próprio flâneur, estas metrópoles invisíveis Esta “outra” cidade, todavia, vive na penum- e silenciadas são as mesmas que, todavia, in- bra do nosso conhecimento e reclama a nossa sistem em se mostrar e fazer ouvir com a bru- indignação política. Seabrook indigna-se. Mas talidade da sua condição de cidades excessi- remete-se a uma contida condição de jorna- vas. Será que alguém as vê? Alguém as está a lista e clama por uma nova visão sociológica escutar? Será que elas permitem ainda buscar para esta macrocidade. Quem poderá ajudar? refúgio na atitude blasé? Ou cancelaram-na parece ser o seu principal questionamento. A definitivamente? Esmagaram o flâneur? Ou sociologia? perguntamos nós... Sim, se souber simplesmente alteraram sem remédio a sua fi- rever e refazer os seus princípios norteadores, sionomia? Ou estarão essas metrópoles a con- os seus métodos e os objetos que estiveram tribuir para a universalização da sua própria na sua origem como disciplina e no desenvol- condição? O que isso poderá significar é que vimento das suas especializações. Ou seja, a num mundo de metrópoles como o que está a sociologia sim, se souber recolher, reler e rea- ser construído, a condição do flâneur deixará tualizar os contributos dos seus fundadores. de ser particularística e atributo de uns poucos E se, ao seu lado, conseguir colocar todos os apenas e pode converter a todos nós – resi- relatos, uns de tonalidade mais amorosa e ro- dentes urbanos de toda a espécie, analistas e mântica, outros de maior indignação e politi- comentadores, acadêmicos ou não – em novos camente mais empenhados e dar-lhes sentido. praticantes de uma flânerie globalizada. Como No fundo, fabricando uma junção virtuosa de Simmel aconselha, devemos mobilizar os nos- todos os Simmel, Hessel e Seabrook do mundo sos recursos mentais e saber reagir a mais esta e com eles tentar contribuir para o reconheci- investida à nossa frágil condição de habitantes mento urgente e o resgate da nova condição deste excessivo mundo de macrocidades. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 389 Carlos Fortuna Carlos Fortuna Professor de sociologia e coordenador dos Programas de Mestrado e de Doutoramento em Cidades e Culturas Urbanas na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal. [email protected] Notas (1) Uma dessas configurações societais é a metrópole, como passaria a ser convenção designar a grande cidade posteriormente ao seu consagrado estudo de 1903 sobre a Grossstadt (A metrópole e a vida do espírito). (2) Efe vamente, A metrópole e a vida do espírito foi apresentado pela primeira vez em conferência organizada pela Fundação Gehe em Dresden, em 1903, como o intuito de celebrar a Primeira Exposição Municipal Alemã. Como outras exposições semelhantes (por exemplo, a Exposição Comercial de Berlim de 1896), também a Exposição de Dresden reconheceria Berlim como moderna “cidade mundial”, aberta às grandes inovações tecnológicas da época (transportes e comunicações) e capaz de cul var um espírito de modernidade (Stewart, 2009, p. 2). (3) A metrópole… centrado fundamentalmente sobre as novas tendências da vida urbana, trata da racionalização das relações sociais em contextos urbanos em expansão e da crescente obje vação da cultura como resultado da monetarização da economia. O texto tem sido cri cado por ser desprovido de qualquer contextualização histórica substan va e por não apresentar qualquer confirmação empírica e esta s ca que lhe confira um sen do compara sta. Comprovadamente, como sustenta David Frisby, um dos mais destacados especialistas na obra de Simmel, não era esse o intuito do autor ao discu r os traços psicossociais que pautavam a nova vida nas grandes cidades europeias da viragem do século dezanove (Frisby, 2001). Além disso, encontram-se claramente ausentes do texto problemá cas importantes da reflexão sociológica de hoje que Simmel explorou noutros textos dispersos (por exemplo, a questão da governação polí ca da cidade, ou os domínios específicos da produção, ou a própria estrutura social, ou as relações sociais de gênero, ou a questão espacial e da esté ca urbana, entre outras). Assim, por exemplo, os ensaios que Simmel escreveu sobre Roma (1898), Florença (1906) e Veneza (1907) cons tuem reflexões histórico-filosóficas de grande per nência para o reconhecimento da importância que o autor atribui à dimensão esté ca da cidade no seu todo (Fortuna, 2010). Tratando-se de uma das “ausências” de A metrópole..., a questão da esté ca urbana em Simmel tem portanto de ser captada num conjunto de textos e fragmentos dispersos. (4) Os escritos de Charles Baudelaire (1821-1867), em par cular o seu ensaio sobre O Pintor da Vida Moderna (Baudelaire 2010) e, acima de tudo, a interpretação que Walter Benjamin lhes dedicou (Benjamin, 1983) foram os principais pilares da visão sociológica sobre esse ator social que não deixou nunca de atrair outras numerosas reflexões posteriores (Frisby, 1992; Tester, 1994; Waizbort, 2000). (5) “O homem que adora perder-se no meio da multidão alcança fervorosos prazeres de que aquele que se isola e fecha numa caixa e preguiçoso, qual molusco me do na sua concha, está eternamente afastado” (Baudelaire, 1970, p. 20, citado em Tester, 1994, p. 2). 390 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 Narrativas sobre a metrópole centenária (6) Segundo David Frisby, este método “jornalístico” da reportagem, com grande afinidade à a tude metodológica tão u lizado por Simmel, foi aplicado por Robert Park, no seu trabalho de etnografia urbana. Por outro lado, Sigmunt Kracauer rejeita a “reportagem” na análise da realidade cultural urbana e adota, em alterna va, uma perspe va “constru vista” na observação dessa mesma realidade (Frisby, 1994, pp. 104-105). (7) Esta opção por Hessel é deliberada, precisamente para dar atenção ao seu pioneirismo no tratamento da flânerie berlinense. Não dedico atenção aqui ao estudo consagrado de Walter Benjamin sobre o flâneur (Benjamin, 2009, pp. 461-498) centrado em Paris e na relação econômico-espacial traduzida pela presença da mercadoria e do consumo no espaço público das arcadas. (8) Da obra pessoal de Franz Hessel merecem destaque os Paseos por Berlín, de 1929 – disponível em castelhano –, uma recompilação de ensaios de 1933 – disponível em francês com o tulo Encouragements au plaisir – e um texto sobre Marlene Dietrich, de 1931. Além da sua obra pessoal, Franz Hessel foi também um tradutor admirado de obras de Stendhal, Baudelaire e Proust, entre outros. A tradução para a língua alemã de A la Recherche du Temps Perdu, de Marcel Proust, feita em colaboração com Walter Benjamin, foi um acontecimento muito celebrado em que, todavia, o contributo de Hessel terá sido menorizado pela imprensa, que o apresentou como tradutor secundário e atribuiu erradamente a W. Benjamin a primazia do trabalho (Palmier 1997). (9) Refiro-me ao epílogo significa vamente tulado “O regresso do flâneur” que Benjamin assina na edição dos ensaios de Hessel “Passeios por Berlim” de 1929 (Benjamin, 1997). (10) Tenho designado de “pós-cidade” essa con nua alteração das condições estruturais da vida urbana e a crescente inadequação da retórica acadêmica para captar o essencial dessa mudança. (11) Veja-se a esse propósito a reflexão incisiva de João Se e Whitaker Ferreira sobre a “globalidade” de São Paulo (Ferreira, 2007). (12) As descrições pontuais da vida de pessoas singulares das metrópoles do Sul surge recorrentemente entre os escritos de Seabrook. Assim, pode ver-se também a sua acu lante descrição do mundo urbano em desenvolvimento nas cidades do Sul (Seabrook, 1996). (13) Num tempo e num mundo em que sabemos até (nós acadêmicos e as autoridades), com fina exa dão, a que horas do dia (de todos os dias do ano) as mulheres da cidade indiana de Pune são estupradas. Agradeço esta informação a Sujata Patel. Referências AMIN, A. e GRAHAM, S. (1997). The ordinary city. Transac ons of the Ins tute of Bri sh Geographers. Londres, v. 22, n. 4, pp. 411-429. BAUDELAIRE, C. (1970). 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Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 379-393, jul/dez 2011 393 Cultura e urbanidade: da metrópole de Simmel à cidade fragmentada e desterritorializada Culture and urbanity: from Simmel’s metropolis to the fragmented and deterritorialized city Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia Resumo Este texto destaca conceitos centrais da obra de Simmel sobre cultura urbana, metrópole e modernidade, bem como aspectos epistemológicos de suas análises, articulando-os às teorias recentes sobre as transformações nas cidades contemporâneas. Ressalta a mercantilização, a “tragédia da cultura” e seus efeitos sobre a mentalidade dos citadinos. A metrópole vista como local de conflitos, trocas, consumo, colisão de corpos, mobilidades, passagens de fronteiras e as metáforas das pontes e portas, a moda, a coquetterie nos confrontam com as posições filosóficas e sociológicas de Simmel na busca por compreender em que elas nos ajudam a pensar sobre a urbanidade contemporânea, considerando-se os novos espaços de comunicação, fragmentação, (des)territorialização e outras dimensões socioculturais. Abstract This paper outlines the central concepts of Simmel’s work on urban culture, metropolis and modernity, as well as the epistemological aspects of his analysis, linking them to current thinking on the transformations of the contemporary city. It highlights the money economy, the “tragedy of culture” and its effects on the individual’s mental life. The metropolis is seen as place for conflicts, exchanges, consumption, collision of bodies, mobilities, border crossings and the metaphors of the bridges and the doors, the fashion and the coquetterie. This view confronts us with Simmel’s philosophical and sociological positions in our quest to understand how they can help us to think about contemporary urbanity, considering the new spaces of communication, fragmentation, (de) territorialization and other socio-cultural dimensions. Palavras-chave: cultura; urbanidade; território; metrópole contemporânea; desterritorialização. Keywords : culture; urbanity; territoriality; contemporary metropolis; deterritorialization. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia Introdução que discutem cultura e urbanidade apontan- O tema da metrópole ocupa um espaço cen- vas formas de organização socioespaciais, as tral nos escritos de teóricos importantes na imagens e os conceitos de cidade que exigem virada do século XIX para o XX, com ênfase novas posições de análise, intervenção e ges- nas transformações que aconteceram na Eu- tão dos espaços urbanos. Finalizo este tex- ropa Ocidental. A passagem da pequena para to ressaltando as contribuições de Simmel, a a grande cidade, a concentração de pessoas e força analítica das abordagens centradas na de riquezas, o desenvolvimento da indústria e questão da copresença no espaço público, na da economia monetária, a modernização tec- própria análise da condição de habitantes das nológica do meio ambiente, em particular a metrópoles e nas dinâmicas relacionais para a instalação de uma rede de transportes cole- compreensão dos sentidos e dos desafios da tivos e de eletricidade, o surgimento do lazer urbanidade contemporânea. do as transformações nas metrópoles, as no- de massa, a agitação nas ruas, os movimen- Simmel deu uma contribuição inédita tos estéticos (impressionismo, expressionismo, ao sentido da modernidade e à compreensão naturalismo, etc.) e as tensões socioespaciais da cidade de um ponto de vista especial, que múltiplas representam para Georg Simmel a pode ser qualificado de “sensível”. A despeito emergência de uma cultura metropolitana vivi- das teorias socioeconômicas e sócio-históricas da de forma intensa cuja sensação se asseme- da modernização desenvolvidas pelos precur- lha, nas palavras de Füzesséry e Simay (2008), sores da sociologia alemã, esse autor definiu a um “choque das metrópoles”. a modernidade pelo prisma das transforma- Neste texto, busco traços da obra de ções fisiológicas e psicológicas da experiência Simmel (1858-1918), em especial suas percep- subjetiva dos habitantes das grandes cidades. ção e concepção da metrópole e da vida urba- Mostrou que as mudanças do ambiente ur- na moderna enquanto contribuições epistemo- bano tinham transformado radicalmente as lógicas fundamentais para a compreensão da condições da experiência sensível e, por meio urbanidade contemporânea, considerando-se dela, modificado o aparelho sensitivo humano. o contexto atual e os novos espaços de comu- Ao fazê-lo, colocou as bases de uma teoria da nicação, fragmentação, (des)territorialização modernidade que Vandenbergue chama de e outras dimensões socioculturais. Em outras “relacionista e vitalista” (2005, p. 130). palavras, procuro compreender em que ainda Nas análises de Simmel, as implicações nos servem suas metáforas e suas posições espaciais do desenvolvimento da modernida- filosóficas e sociológicas no esforço para en- de estão presentes nas metrópoles segundo o tender o que não é mais como na época de sua mesmo paradoxo que ele identifica entre cul- formulação. tura objetiva e cultura subjetiva. Para Simmel, Na sequência, ainda nesta introdução, a fronteira, assim como a cidade, “não é uma apresento aspectos gerais de seu pensamento entidade espacial com consequências socioló- e nos itens seguintes procuro articulá-los às gicas, mas uma entidade sociológica formada ideias de diferentes teóricos contemporâneos espacialmente” (Simmel, 2000a, p. 143). 396 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Cultura e urbanidade Convém esclarecer o que Simmel enten- formas de interação social, Simmel aborda de por cultura e como ele define o que seria a questões espaciais como dimensões cruciais crise da cultura ou a “tragédia da cultura” co- da interação social e das formações culturais. mo será referida ao longo deste texto. O con- A maneira como explora essas dimensões é ceito de cultura está posto em Simmel funda- singular por fazê-lo segundo perspectivas mentalmente na relação entre sujeito e objeto. variadas, relacionando questões econômicas, Relação esta de mútua determinação, dialética filosóficas, sociológicas e observações da e flutuando entre o dualismo de vida (fluxo vida cotidiana. contínuo) e forma (sua cristalização) e a supe- O fato de Simmel estar presente com ração desse dualismo. Simmel considera ainda especial relevo nas obras de alguns dos que os objetos sejam espíritos objetivados dos principais sociólogos que pensam sobre a quais ele procura apreender os significados cidade contemporânea corrobora, por si decorrentes desse processo de objetivação. O mesmo, a atualidade e a pertinência do seu jogo é explorar a relação sujeito e objeto, ana- pensamento. Nesse sentido, destaco conceitos lisando e interpretando este último para fazer e ideias apresentadas por Simmel em seus emergir o espírito cristalizado que permanece próprios livros publicados mais recentemente nele, considerando-se que o próprio objeto é o em inglês e em francês, além dos trechos de resultado do sujeito e ao mesmo tempo difere sua obra e ensaios organizados em coletâneas 1 por diversos autores contemporâneos. 3 Em dele. A tragédia assume um sentido que re- especial Filosofia do Dinheiro (Philosophie monta à tragédia grega clássica, apontando des Geldes, 1900) e Sociologia. Estudo sobre para a peculiaridade de que as forças que des- as formas de socialização ( Soziologie, 1908) troem e desmobilizam um ser foram produzi- e ensaios e trechos de suas obras como: O das pelas próprias criações e tendências desse conceito e a tragédia da cultura ( Der Begriff mesmo ser. É na vida moderna regida pela eco- und die Tragodie der Kultur, 1911/12), O nomia monetária que acontece a transforma- conflito da cultura moderna (Der Konflikt ção descontrolada dos meios em fins e dos fins der Modernen Kultur, 1918 ), O futuro da em meios, dos sujeitos em meios e dos objetos cultura (Die Zukunft unserer Kultur, 1909), A em fins, ao ponto de afetar a própria subjetivi- sociologia dos sentidos (Soziologie der Sinne, dade dos sujeitos que passam a ser dominados 1907), A sociologia dos espaços (Soziologie por eles ao invés de dominá-los segundo seu des Raumes, 1903), Pontes e portas (Brüke und desejo. 2 Simmel (2000b) atribui um caráter Tür, 1909), A filosofia da moda (Philosophie universal ao fetichismo da mercadoria e afirma der Mode, 1905), A metrópole e a vida mental ser essa uma situação problemática típica da (Die Grossstädte und das Geistesleben, 1903), vida moderna com uma capacidade de cresci- A exposição de comércio em Berlim (Berliner mento ilimitada e por vastos territórios. Gewerbeausstellung , 1896), As ruí nas (Die Preocupado em desdobrar a ideia de Ruinen , 1908) e O indivíduo e a liberdade uma “cultura filosófica” (Waizbort, 2000) (Das Individuum und die Freiheit, 1909), entre e com a possibilidade de existência das outros. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 397 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia Dentre as coletâneas, acima menciona- organização da vida social. Como afirma For- das, ressalto neste artigo: Simmel on Culture. tuna (2002), amplia-se a necessidade de uma Selected writings, de Frisby e Featherstone reforma epistêmica dos instrumentos analí- (2000) e Simmel e a modernidade, organiza- ticos e conceituais sobre a cidade e a “rein- do por Souza e Öelze (1998), bem como dois venção do urbano” assinalada, em parte, pelo ensaios publicados no livro L’École de Chica- movimento de afastamento gradual e pela não go. Naissance de l’écologie urbaine por Yves coincidência entre o território urbanizado da Grafmeyer e Isaac Joseph (1990).4 A discussão cidade e o modo como se estruturam as práti- aqui apresentada se inspira ainda nas leituras cas, mentalidades e relações sociais que ali se e interpretações realizadas por outros estudio- desenvolvem e que podemos chamar de cultu- sos da obra simmeliana, em especial Vanden- ra urbana. bergue (2005), Füzesséry e Simay (2008), Pa- Argan (1998) reforça esse debate ao quot (2008), Jonas (2008) e Waizbort (2000). colocar a necessidade de uma reforma epis- Ademais, complemento estas reflexões com temológica dos instrumentos analíticos e outros autores que atualizam o tema da me- conceituais sobre a cidade e o urbano, bem co- trópole e da urbanidade contemporânea do mo de se apontarem os limites da técnica. Nas ponto de vista das transformações socioespa- palavras do autor: ciais recentes, em suas dimensões territoriais e nas representações sobre a cidade articulando campos disciplinares diversos, em especial, o planejamento urbano, a sociologia e a antropologia do urbano. [...] como disciplina que visa interpretar, estabelecer, reorganizar e finalmente programar para o futuro a conformação da cidade, o urbanismo está se separando cada vez mais de seu objeto, dir-se-ia até que aspira a destruí-lo. (Ibid., p. 15) Bresciani (2008), por seu turno, nessa O território urbanizado e como se estruturam as práticas, mentalidades e relações Reconhece-se hoje a emergência de uma cultura urbana renovada, de formas de afirmação de expressões culturais diversas, algumas consideradas “extremas” (Canevacci, 2005), outras localizadas, globalizadas e diferentes modos de (des)localização, (des)territorialização e (re)resignificação em metrópoles mundiais. Há também uma necessidade de avaliação rigorosa dos vários parâmetros socioculturais que condicionam os modos de 398 mesma crítica ao urbanismo e à cidade moderna, sobretudo quanto aos seus ideais de progresso e à crença nas possibilidades infinitas da técnica, refere-se aos primeiros críticos dessa forma de estabelecer a relação entre homem e cidade, citando como exemplos: Camille Sitte, Georg Simmel, Walter Benjamim, entre outros, que [...] denunciavam a fatuidade de idealizar-se uma razão única, despojada da tradição e da história, uma razão obediente à sua própria lógica, construtora de formas belas e logicamente irrepreensíveis – constituições, governos, raciocínios, edifícios, cidades. (Ibid., p. 17) Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Cultura e urbanidade Os ensaios de Simmel e a própria forma racionalização das relações sociais que ana- de construção de sua teoria social apontam lisa como uma “proteção subjetiva contra as também para a necessidade de uma nova pos- ameaças constantes e as discrepâncias do am- tura do urbanista/pesquisador ante a cidade: biente externo” na metrópole (Ibid., p. 176). 5 se desterritorializar, rizomatizar (Deleuze e As condições de vida moderna criaram Guattari, 1995) para, em uma multiplicidade as situações, formas e necessidades especí- de sentidos, interrogar a cidade do ponto de ficas de comportamento e sensibilidade, um vista das subjetividades, reciprocidades e prá- modo de vida que exerce influência sobre a ticas cotidianas e avançar para identificar e consciência dos homens. O verdadeiro bom- avaliar a relação entre os “dispositivos técni- bardeio de imagens a que são submetidos ao cos” e as “disposições sociais” (Joseph, 2002), saírem às ruas não pode ser acompanhado a fabricação e os seus praticantes. pela consciência, nem sua capacidade de lhes Certamente que sua abordagem me- atribuir sentidos. Diante do fluxo intenso de todológica e epistemológica do fenômeno imagens e sua variedade nas metrópoles, o in- metropolitano é essencialmente sociológica, divíduo reage como o faz no interior dos trans- entretanto, Simmel realiza uma aproximação portes públicos ou em outros locais quando se com a metrópole enquanto lugar específico de vê colocado em uma situação de proximidade socialização e espaço de emergência de novas excessiva, variável e relativamente demorada formas espaciais e estéticas, como indicam ante os outros: impossibilitado de reagir com seus ensaios sobre Roma, Florença e Veneza a energia apropriada ou de manter contato (Jonas, 2008), entre outros. Mas é em seu en- com elas, ele apenas deixa fluir, se distancia saio sobre As grandes cidades e a vida do espí- do que está próximo demais, transformando o rito (Simmel, 2000c), no qual retoma o essen- contato com o estranho suportável e corriquei- cial de uma conferência intitulada Metrópole ro. O anonimato e a impessoalidade, quando e mentalidades (Grafmeyer e Joseph, 1979), o indivíduo se esconde por trás do grupo, são que desenvolve uma análise especialmente também parte da objetividade característica fecunda da condição urbana moderna. da vida nas metrópoles. Diferente da vida nas pequenas cida- Essa atenção às transformações dos re- des, a experiência metropolitana se caracteri- gistros da experiência subjetiva conduz Simmel za, segundo ele, por uma “intensificação dos a estudar a aparição de novas condutas urba- estímulos nervosos que resultam das trans- nas – a reserva, a atitude blasé, a coquetterie, formações ininterruptas de stimuli externos o conflito, o estrangeiro – como os pontos de e internos” gerados pelo ambiente urbano partida de uma sociologia da cultura e uma (Simmel, 2000c, p.175). O citadino é subme- sociologia dos sentidos, próprias à grande ci- tido a múltiplos choques dos quais ele tenta dade, destinadas a analisar os fatos provenien- se proteger, embora modifiquem profunda- tes da constituição sensorial do homem, os mente seu psiquismo e seu aparelho sensitivo. modos de percepção mútuos e as influências Segue-se uma propensão à individualização, à recíprocas que daí derivam para a significação intelectualização, ao cálculo, à indiferença e à da vida coletiva. Para Simmel, os conflitos, a Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 399 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia definição de fronteiras simbólicas e o choque metropolitano são também determinantes na compreensão da experiência de modernidade. É possível, então, identificar duas grandes direções das reflexões de Simmel imbricadas em suas obras e que incluem a metrópole: as formas sociais que derivam da grande cidade do capital e da modernidade e o “espírito” das metrópoles. Na primeira, esclarece conceitos e seu método de análise da morfologia social numa abordagem centrada em religá-los por uma ponte. E o ser humano é também um ser de fronteiras que não tem fronteiras. O fechamento de sua vida doméstica através de uma porta significa que ele separa assim uma parcela da unidade ininterrupta do ser natural. Mas mesmo se a limitação disforme tomar forma, sua limitação encontra seu significado e dignidade apenas no que a mobilidade da porta representa: na possibilidade de romper esta limitação a todo instante para ganhar a liberdade. (Simmel, 2000d, p. 174) estabelecer tipos-ideais. Na segunda direção, apresenta uma filosofia da vida e suas figuras Pode-se, então, refletir sobre os muros, urbanas são apreendidas como fragmentos do reais e simbólicos, erguidos nas cidades con- cotidiano. Simmel preocupa-se com os fato- temporâneas e que não param de se multipli- res estruturais do mundo moderno, a econo- car ao nosso redor, encerrando não apenas mia monetária e a divisão social do trabalho bairros de uma cidade, favelas em bairros de e com os fenômenos cotidianos mais fugidios camadas médias, mas também entre cidades, e fragmentários (que chama de conteúdos as gated communities que se impõem atual- das formas sociais: pulsões, interesses, ten- mente como produtos imobiliários de valor e dências, desejos, etc., que se expressam nos o crescimento da demanda por esses enclaves indivíduos). Como afirmam Souza e Öelzer: residenciais, supostamente “seguros”. Tais empreendimentos imobiliários não nos dão Simmel possui o talento de perceber o eterno, invariável e essencial nos fenômenos aparentemente mais casuais e superficiais da vida cotidiana. (1998, p. 17) qualquer evidência de que aumentem assim as relações comunitárias, as trocas entre vizinhos. Ao contrário, apenas banalizam o isolamento, revelando uma fragilidade afetiva de Nesse sentido e na busca de compre- seus moradores sempre à espera de uma cha- ender a cidade contemporânea, parece-me mada telefônica, de uma mensagem de e-mail, essencial destacar a força metafórica das pon- de um chamado distante que possa manifestar tes e portas a partir da qual Simmel analisa a certa proximidade, familiaridade, alguma liga- capacidade do ser humano de associação e de ção que justifique por ela mesma o desliga- atravessar fronteiras. Ele afirma: mento que esse tipo de moradia exige. Assim também a cidade virtual, dentro [...] porque o ser humano é um ser de conexão que deve sempre separar e que não pode conectar sem separar – precisa primeiro conceber, intelectualmente, como uma separação, a existência indiferente dos dois lados de um rio, para 400 da qual se tem um lugar (um portal, um endereço, um site, um blog, um twiter, etc.) para o jogo das trocas de informações, facilita os contatos e os afastamentos sem, entretanto, assegurar o encontro e a integração. A troca Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Cultura e urbanidade eletrônica não requer essa disponibilidade, esferas da troca, do consumo e da circulação essa presença, essa responsabilidade com o de mercadorias e de indivíduos. Embora a me- outro que o encontro, a conversa telefônica, trópole fosse o lugar da dominação da cultura a carta propiciam. No entanto, essa forma de objetiva e da “cultura das coisas”, a problema- comunicação apresenta hoje múltiplas facetas tização do desenvolvimento da identidade e a serem analisadas considerando-se seu po- da subjetividade do citadino permaneceu uma tencial transgressor e agregador evidenciado preocupação central das “sociologias de Sim- de forma muito clara no caso do recente con- mel” (Vandenbergue, 2005). flito político no Egito (fev. 2011), divulgado pe- Diversos autores indicam que é da con- la mídia nacional e internacional, no qual um frontação de Simmel com a metropolização ditador foi derrubado com a ajuda de cone- da sociedade alemã, em especial de Berlim, xões via internet, de pontes construídas para que surge sua convicção de que a metrópole romper as tentativas do poder estatal de im- representa a imagem fragmentada, mas gené- pedir a comunicação para a organização dos rica da modernidade. É a partir de sua vivência protestos nas ruas da cidade do Cairo. E mais, em Berlim que se interessa pela forma como as conexões cortadas foram viabilizadas por as mudanças no ambiente urbano modificam meio das redes internacionais disponibilizadas a sensibilidade humana e, ao fazê-lo, afetam a por sistemas alternativos em outros países. natureza da experiência moderna. Assim como Walter Benjamin, Simmel também se refere às mudanças profundas no Uma teoria relacional e vitalista da modernidade aparelho perceptivo observando os pedestres nas ruas da grande cidade. Observa que o deslocamento do indivíduo se encontra condicionado por uma série de choques e conflitos, Se a modernidade é concebida e vivenciada sobretudo visuais. Afirma que a superabun- por Simmel como um fluxo de um mundo inte- dância de imagens e impressões nas grandes rior cujos conteúdos substanciais são constan- cidades arranca do sistema nervoso, pela ra- temente dissolvidos pelo movimento, numa vi- pidez e intensidade de sua alternância, respos- são muito próxima do sentido que Baudelaire tas violentas, submetendo-o a choques tais a entendia, ou seja, como o transitório, o fugi- que o homem usa suas últimas forças e não dio, o contingente (Frisby, 2008), a reflexão de consegue se reconstituir. Simmel sobre a metrópole representa o ponto É importante relembrar que Simmel de intensificação crucial da modernidade junto explica esses novos registros da experiência com a economia monetária. No contexto de subjetiva não por meio de conceitos totalizan- sua teoria social, é muito mais a vida urbana tes, mas a partir de uma atenção aos detalhes do que a indústria ou a produção ou a organi- concretos, aos fenômenos de superfície, acessí- zação racional a chave para a compreensão da veis à experiência sensível da vida nas cidades: modernidade. Sua análise se concentrou nas o lugar característico das grandes cidades (as consequências pessoais do envolvimento nas ruas, os cafés, os cinemas, as salas de espera, Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 401 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia os parques, as calçadas), os objetos do coti- metropolitana na Alemanha antes e depois da diano (relógios, guarda-chuvas, máquinas de Primeira Guerra Mundial. Muito embora ela escrever, redes de montagem) ou ainda os ti- deva muito à forma particular como esse au- picamente citadinos (a indiferença, a reserva, tor apreendeu o caráter, sobretudo, visual da a propensão ao conflito, a moda, o lazer, as urbanização berlinense. exposições). De fato, o contexto no qual se consti- Esses objetos e lugares hoje seriam tui o pensamento de Simmel e sua teoria da outros, manter-se-iam as ruas, os bares, os modernidade está dominado pelo processo de parques, praças e calçadas, salas de espera, metropolização, que atingiu a Alemanha de acrescentar-se-iam as praças de alimentação maneira particular. Pela sua extensão e rapi- dos shoppings, os pontos de ônibus, os diver- dez, o crescimento urbano alemão não afetou sos espaços de encontro dos jovens, a inter- apenas o quadro material de vida de numero- net, sites, blogs, enquanto os objetos seriam sos citadinos,6 mas produziu igualmente uma os celulares, notebooks, palmtops, ipods e experiência singular da época, dominada por aspectos exacerbados do medo, da violência, uma sensação de crise. Uma sensação que se da desigualdade social, da estigmatização, estende até a atualidade, tomando formas a formação de tribos urbanas, a arquitetura diversas e ampliadas, pelo caráter de confli- da vigilância com suas grades, muros altos, tividade, heterogeneidade e diversidade de câmeras de segurança privadas e públicas. experiências do espaço metropolitano. Além Elementos presentes na experiência subjetiva de estar constantemente em estado de es- das metrópoles contemporâneas que indicam truturação e reestruturação, de elaboração e as novas formas desse jogo e a complexidade reelaboração de suas definições e proprieda- e o aguçamento de algumas das reações sub- des, cada vez mais ampliado, mundializado e jetivas identificadas nas metrópoles do início desterritorializado. do século XX, compatíveis com a alienação e Observando o ritmo do crescimento ur- a reificação, a ampliação do desequilíbrio trá- bano alemão, Füzesséry e Simay (2008) dis- gico entre cultura objetiva e cultura sujetiva tinguem duas gerações: a primeira, nascida e outras dimensões inexistentes na época da entre meados dos anos 1850 e meados de formulação das ideias de Simmel. 1870, contemporânea da explosão urbana e a De uma série de observações empíricas, segunda nascida entre meados dos anos 1880 Simmel extrai uma teoria geral da modernida- e o fim dos anos 1890, posterior à explosão de que atribui um lugar central às experiências urbana. Entre esses dois grupos está a Gran- vivenciadas na grande cidade. Essa forma de de Guerra, pela profundidade de seu impacto pensar a modernidade está associada a um cultural sobre a sociedade alemã, marcando contexto material e intelectual estruturado um tipo de fronteira. pelo crescimento explosivo das grandes ci- Nascido em 1858, Simmel pertence à dades na Alemanha na virada do século XIX primeira geração confrontada à metropoliza- para o XX e articula-se também ao modo co- ção. É um testemunho do explosivo crescimen- mo se constrói o debate sobre a modernidade to urbano alemão. Dentro de um país ainda 402 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Cultura e urbanidade dominado pelas estruturas do mundo rural, a um entendimento sobre o modo como foi urbanização intervém com uma rapidez sem sentida, compreendida e rejeitada. Revela comparação na Europa. Perto dos anos 1850, que a experiência da grande cidade é, antes 15% dos alemães viviam em aglomerações de de tudo, uma experiência traumática da mo- mais de 5.000 hab. e apenas mais de 3% em dernização, dominada pela hiperestimulação cidades de mais de 100.000 hab. Em 1890, sensorial e pelo estado de choque. Ademais, 51% dos alemães viviam em cidades, contra essa experiência é a origem de um abatimen- 41% quinze anos antes. Em 1910, seriam apro- to psíquico, de uma perda de orientação es- ximadamente 49% de citadinos vivendo nas paço-temporal, de certa dissolução das expe- grandes cidades, sendo que um entre dois ale- riências de transmissão intergeracionais, mas mães vivendo e trabalhando na cidade, e cerca pode, por outro lado, ser compreendida como de um dentre cinco em uma das 48 metrópoles uma tentativa ambígua de superação dessas do Reich (ibid., p. 18). mesmas críticas. Em Simmel, a hiperestimula- A partir desse contexto, Simmel capta ção sensorial continha também um potencial e nos apresenta um estilo de vida metropoli- libertador. Nesse sentido, o novo modo de vi- tano paradigmático, onde o indivíduo precisa da urbano poderia ser lido como uma reação circular por um mundo cada vez mais objetivo, do citadino às novas condições de percepção onde a sensibilidade deve se refugiar nos in- geradas pela metropolização. Dessa forma, a terstícios da vida urbana cada vez mais socie- experiência de modernidade metropolitana tária e menos comunitária. É um mundo obje- não geraria apenas alienação e reificação, in- tivo individualista, dominado pelo intelectua- dicaria ainda a possibilidade de uma liberdade lismo, pelo cálculo e pela economia monetária. individual. Mas, ao mesmo tempo, Simmel não renuncia à Assim, o transeunte e o flâneur interes- ideia de que a metrópole da modernidade tam- sam a Simmel, em primeiro lugar, porque as bém seja capaz de criar as condições psicológi- práticas urbanas cotidianas de quem passa cas para a sensibilidade da alma do citadino pela rua e da flânerie são consideradas como (Simmel, 2000c, 2005). Como afirmam Jonas fatores de socialização para os citadinos sub- e Weidmann (2006), foi um dos primeiros so- metidos aos múltiplos estímulos do espaço da ciólogos e filósofos da cultura a perceber que rua e colocam seu equilíbrio psicológico à pro- o questionamento sobre a estética da cidade va. E, em segundo, porque a observação e o e o lazer de massa associa-se a uma reflexão estudo dessas figuras parecem indispensáveis sobre a sociedade e as novas formas sociais e para a elaboração de uma microssociologia da espaciais que ela mesma criou. vida cotidiana (Simmel, 2000e). Assim, a contribuição de Simmel à O transeunte é o indivíduo apressado discussão sobre a metrópole e a moderni- que se desloca de maneira racional e objeti- dade aponta, de um lado, para uma crítica va, mecânica e quase automática por espaços da modernização ou a reforça, mesmo que urbanos estreitos sempre apertados, densos e involuntariamente, uma vez que uma abor- hipertrofiados. O flâneur é aquele que percor- dagem sensitiva da modernidade possibilita re quase sempre o mesmo espaço, mas com Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 403 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia descontração, sem objetivo preciso. Entretanto, os pedestres são alternativamente, segundo seus tempos, transeuntes ou flâneurs na vida urbana. Seus estudos indicaram que o pedestre desenvolve uma atitude blasé, de reserva, aparentemente insensível à proximi- relações infindáveis. E quando temos uma configuração de uma constelação qualquer, que ele cuidadosamente arma para nós, é somente para nos mostrar que, no mesmo momento, ela já se foi, e é preciso escavar e escavar novamente. (2000, p. 589) dade e aos olhares dos outros. Porém, essa reserva é interpretada como uma reação de A leitura de Simmel traz para a discussão insegurança, um sentimento de estar sendo da metrópole dimensões epistemológicas sig- ameaçado e uma reação à sugestibilidade nificativas para a interpretação dos problemas indiscriminada pela proximidade e aglomera- contemporâneos que apontam para uma abor- ção dos corpos, mas também a própria forma dagem interacionista e fenomenológica. Trata- que assume a urbanidade moderna e torna -se de relacionar os espaços com os compor- possível a vida nas grandes cidades (Simmel, tamentos corporais e formas de sociabilidade 2000c, 2005). que indicam as maneiras como os indivíduos Apesar de Simmel considerar excessiva territorializam, desterritorializam e reterrito- a preocupação com métodos (certo fetichis- rializam os lugares, para usar o vocabulário mo entre seus contemporâneos) e indicar a de Deleuze e Guattari (1995), se servem de impossibilidade de leis sociológicas, diversos seus corpos em ritmos específicos, de técni- autores buscaram identificar os elementos re- cas corporais repetidas nos espaços de modo ferentes a uma forma própria de abordagem cíclico ou linear e que envolvem processos tais dos seus principais temas. Para Frisby (1992), como: deslocamentos, passagens, permanên- há na abordagem simmeliana uma “autono- cias ou interações, velocidades, aberturas e mia estética” que se pode dizer antipositivista, fechamentos, aproximações e afastamentos, antissistemática e antiacadêmica, ou seja, não agrupamentos e dispersões de indivíduos de busca um método causal-analítico ortodoxo. modo regular, esporádicos ou excepcional. E a natureza dos seus trabalhos caracteriza- Essas práticas urbanas remetem à movimen- -se por um ensaísmo consciente. Mesmo suas tação física de tipos urbanos variados como: duas grandes obras Filosofia do dinheiro transeuntes, moradores, turistas, ambulantes, (1900) e Sociologias (1908) foram construídas mendigos que vivem diariamente nesses luga- a partir de ensaios caracterizados, por David res. Trata-se de “uma relação dialógica que se Frisby, como “fragmentos que ele destaca pa- instaura entre um espaço urbano e aquele que ra construir uma ciência da sociedade” (1992, o atravessa, o percorre ou o explora” (Joseph, p. 70). Por sua vez, Waizborg destaca sua ca- 1999, p. 35). pacidade para [...] apontar para as variadas faces de seus infinitos objetos, para sua como que pulsão a desenrolar infatigavelmente os fios das relações, fios sem fim de 404 Outros autores precursores dessa abordagem da cidade “sensível” são Lefebvre (1992), quando propôs uma reinterpretação da cidade por meio da heurística da rua e dos ritmos da vida cotidiana, além de Certeau Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Cultura e urbanidade (1994). Ressalta-se uma cidade praticada que As mudanças na esfera da produção afe- se insinua no texto/conceito da cidade plane- tam e modificam profundamente os sistemas e jada e visível. Práticas do espaço que reme- as formas de produzir bens de consumo, bem tem às “maneiras de fazer” (ibid., 1994), aos como de organizar o trabalho. Nas últimas três “usos” dos espaços que evocam a coexistên- décadas do século XX e início do século XXI as cia física e social dos pedestres nos lugares transformações se estenderam ao tipo de ter- públicos. ritório ou a processos de desterritorialização Nesse sentido, convém ressaltar que associados às mudanças tecnológicas e eco- a experiência sensível do indivíduo na cida- nômicas. A própria expansão física do espaço de contemporânea se liga às práticas e inte- construído torna cada vez mais fácil encontrar rações, aos lugares, às histórias vividas e às características próprias da cidade em lugares imagens coletivas presentes nos discursos tradicionalmente à margem dos processos de partilhados. Essas experiências e as trocas urbanização. As fronteiras ficam cada vez mais ampliam-se na metrópole contemporânea as- difíceis de serem definidas em termos estrita- sim como também as tensões apontadas por mente espaciais. Simmel. Amplia-se, sobretudo, a tensão entre Entretanto, esses fenômenos de descon- a ruptura com o passado que está sob ameaça centração que fizeram da periferia um territó- de perda, um presente que está em estado de rio mais flexível pela difusão e melhoria das crises constantes e um futuro que oferece pos- redes de comunicação e telecomunicação, que sibilidades incertas, com riscos mundialmente ampliaram a importância das cidades de tama- compartilhados. Lembrando que hoje a mobi- nho médio como centros urbanos importantes lidade e velocidade das novas tecnologias de no marco da economia global, parecem não re- informação e de telecomunicação distinguem presentar uma ruptura absoluta com o modelo de modo mais intenso o espaço urbano atual de concentração historicamente característi- daquele do início do século XX. co do sistema fordista7 (Roncayolo e Paquot, 1992). Soja considera que, apesar das tendências centrífugas, a nodalidade centrípeta não As cidades e as culturas contemporâneas: teorias, conceitos e imagens desaparece (2000, p. 263). O binômio centralidade-difusão passa a marcar as cidades do mundo ocidental definido fundamentalmente em termos de redes (Castells, 1999). Fala-se de uma centralidade dependente dos níveis de As cidades e as culturas urbanas constituem- competência, competitividade e coo peração -se como espaços em que as transformações dentro de um conjunto de redes urbanas. das últimas décadas mais se fizeram sentir, Acrescentam-se também as novas for- impulsionadas pelas inovações tecnológicas e mas de mobilidade e de construção cultural pelo desenvolvimento de novas formas de go- da velocidade que ampliam os territórios de vernança, gerando novas urbanidades e alte- fluxos configurando um cenário de mobilidade rando as existentes. intensiva e uso extensivo do território próximo Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 405 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia ao que Harvey (1992) definiu como compres- em integrar de forma crescente a mobilidade são espaço-temporal, ou seja, compressão do espacial na vida cotidiana ao ponto desta ser espaço e aceleração do tempo. estruturada por aquela” (1992, p. 14) conver- Além da metáfora da “mancha de azei- tendo a instabilidade em instrumento parado- te” evocada para simbolizar as fases de con- xal de estruturação que determina um con- centração urbana das cidades, da ideia de re- junto de usos e representações de um espaço des e de fluxos para explicar os modelos de or- nunca plenamente territorializado. ganização do território urbano regional, temos 8 Esse quadro geral de renovação teórica o conceito de rizoma de Deleuze e Guattari vem sendo desenvolvido a partir da consta- (1995, 1997) como um dos exemplos dessas tação das transformações econômicas, tec- aproximações que se pode chamar de forma- nológicas, sociais e culturais que afetam as listas aos diferentes tipos de crescimento que metrópoles e que expressam, sobretudo, uma a cidade vem desenhando sobre o território reestruturação econômica pós-fordista 9 ou ao longo dos últimos séculos. A cidade-rizoma pós-industrial com ênfase nas consequências seria a metáfora de um sistema urbano consti- da concentração tecnológica no território ur- tuído por territórios que crescem por desterri- banizado, nas imagens de cidades emergentes torialização e reterritorialização, que conjuga que indicam processos de desterritorialização: fluxos desterritorializados com características a cidade global (Sassen, 1998), a metrópo- diferenciadas e relações que se situariam além le dos indivíduos (Bourdin, 2005), a cidade dos critérios dicotômicos binários. Seriam rela- conquistada (Borja, 2005), a cidade super ex- ções mais complexas do que as definidas pelas posta (Virilio, 1984), a cidade informacional, típicas dicotomias centro-periferia ou campo- a tecnopólis ou o espaço de fluxos (Castells, -cidade. 1999), a telepólis ou cidade à distância (Eche- Nesse ponto, convém mencionar a dis- veria, 2000), a cidade virtual de bits (Mitchell, tinção conceitual entre cidade e urbano apon- 2000), a metápolis (Ascher, 1995) ou a pós- tada por Delgado (2008). Ele afirma que: metrópole (Soja, 2000; Cacciari, 2008). Esses conceitos de cidade expressam al- A cidade não é o urbano. A cidade é uma composição espacial definida pela alta densidade populacional e de instalação de um amplo conjunto de construções estáveis, uma colônia humana densa e heterogênea constituída essencialmente por estranhos entre si (…) o urbano, ao contrário, é outra coisa: um estilo de vida marcado pela proliferação de teias relacionais deslocalizadas e precárias. (Ibid., p. 23) guns dos resultados concretos, a exemplo da fragmentação da estrutura social urbana e da própria cidade como espaço físico habitável, uma excessiva valorização da imagem, a espetacularização10 e a mercantilização da cidade enquanto objeto cultural (Debord, 1997; Jeudy e Jacques, 2006; Scocuglia, 2010). E, nesse sentido, a hegemonia de um conceito de cidade reificado que se expressa na celebração do privado, na patrimonialização e na criação de Por seu turno, Remy e Voye descrevem a cenários (Fernandes, 2006; Scocuglia, 2010) urbanização como “um processo que consiste paradoxalmente legitimados por meio de um 406 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Cultura e urbanidade discurso generalizado de valorização e de intervenção sobre o espaço público. Dessa forma, aquilo que Simmel chamava de tragédia da cultura e os processos que A vida urbana fica cada vez mais mar- ele apresenta de forma paradigmática para cada pela reapropriação capitalista da cida- explicar os fundamentos das mudanças no de, segundo uma dinâmica cujos elementos estilo de vida tipicamente metropolitano se fundamentais e recorrentes são a conversão exacerbaram a tal ponto que afetam de uma do espaço urbano em um parque temático, a maneira ainda mais intensa a mentalidade do “gentrificação”11 de centros urbanos (Zukin, citadino, em especial dos jovens, e as diversas 2000; Scocuglia, 2010), a terceirização que formas de expressão cultural influenciadas pe- implica a reconversão de bairros industriais la mercantilização, por uma lógica de consumo inteiros, a dispersão de uma miséria crescente e de espetacularização da vida em diversos que não se consegue ocultar e o controle sobre sentidos. Em Philosophie de l’argent (1999), o espaço público cada vez menos público. no capítulo sobre estilo de vida, Simmel mos- Esses processos metropolitanos de al- tra a preponderância da cultura objetiva sobre cance planetário são apontados como reque- a cultura subjetiva como característica central rimentos da renúncia dos agentes públicos da vida moderna, da divisão do trabalho e do da suposta missão de garantir direitos demo- consumo exacerbado. Essas são questões fun- cráticos fundamentais – o usufruto das ruas damentais de sua análise da alienação essen- e praças em liberdade, de uma habitação cialmente associada a uma crítica da maneira digna e para todos, etc. – e a desarticulação como a técnica e o meio predominaram sobre do que resta do que um dia foi o Estado do os fins. 12 bem-estar-social. Essa renúncia ou abando- Esse abismo entre a cultura das coisas e no das responsabilidades do Estado em maté- a cultura dos homens, sempre maior nas socie- ria do bem comum tem sido compatível com dades movidas pelo dinheiro – que aliena, ho- autoritarismos em outros âmbitos. As autori- mogeneíza e retira “a coloração subjetiva do dades e técnicos se submetem ao liberalismo produto”, tornando-o impessoal, padronizado urbanístico que converte a cidade em produto e neutro –, é característico da modernidade de marketing e ao mesmo tempo ampliam o (Simmel, 2000b, p. 245). Hoje, encontra-se controle e a vigilância sobre o espaço público exacerbado dentro da lógica capitalista apro- assegurando as operações imobiliárias e des- fundada, estendida e globalizada, descendo fazendo a imagem que se poderia pretender fundo até a intimidade da vida cotidiana. Três oferecer de um espaço público expurgado de razões são apontadas por Simmel: a plurali- qualquer elemento de conflitividade. Outra dade dos objetos colocados à disposição no expressão dessas ações de “pacificação” dos mercado, uma diferenciação na ordem de con- espaços públicos são a “limpeza” dos exterio- tiguidade e a multiplicação dos estilos, sinta- res urbanos das presenças e condutas incon- xes particulares acentuando o sentimento de venientes, a repressão e controle da pobreza alienação dos seres diante das coisas. e dos seus locais de concentração (Joseph, 2002; Bauman, 2009; Delgado, 2010). Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Entretanto, Vandenbergue (2005) afirma que Simmel aponta para uma ambivalência 407 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia da modernidade que liga a dialética da reificação da vida e da alienação do individuo à reificação das relações sociais e a libertação do indivíduo. De certa forma contrabalançan- Mercantilização, espetacularização, fragmentação e desterritorialização das cidades do a reificação com a personalização, ele indica não saber quem levará a vantagem nessas tendências coexistentes na sociedade mercantil. Contudo, alerta para os riscos da rejeição da forma, em nome da experiência imediata, quando o indivíduo tenta se proteger de sua própria alienação por meio da subjetivação excessiva e do culto da personalidade, fortemente presentes na sociedade contemporânea. Seriam, tanto quanto a alienação e a reificação, desvios do equilíbrio entre cultura objetiva e subjetiva. Milton Santos, em outra chave de análise, fala de algo parecido quando alerta para uma urgência de reflexão sobre a cidade contemporânea enquanto “sistema de objetos e de ações”, tendentes a uma artificialidade, a fins estranhos, ao lugar e a seus habitantes (Santos, 2008) e diante de uma “práxis invertida” que tem o discurso como base da ação e dos objetos, impelindo os homens a cada dia aprenderem tudo de novo estimulados pelas “novíssimas inovações”, pelas novas dinâmicas e diferenciações. Seriam essas tarefas de um planejamento urbano regional que 408 Se, por um lado, os processos contemporâneos de urbanização são cada vez mais marcados pela mercantilização da cidade e da vida urbana, por outro, a “modernização da sociedade” aprofundou e generalizou a lógica capitalista da cidade moderna produzida enquanto valor de troca e modificou a sua estrutura espacial e social no sentido da espetacularização (Debord, 1997), da “homogeneização” (Sassen, 1998) ou da “urbanalização” (Muñoz, 2008) 13 das paisagens urbanas. Alimentada em grande parte pelas economias de serviços, desde os serviços profissionais ao turismo global e a uma redescoberta do setor cultural, essa tendência, observada nas metrópoles, é igualmente constatada nas cidades médias, nas quais os efeitos “negativos” da mercantilização da cultura e de uma espécie de culturalização generalizada e indiferenciada da cidade, dos seus espaços e de seus processos se fazem sentir de forma intensa nas propostas hegemônicas de intervenção nos espaços públicos (Fernandes, 2006). Essa crítica ao processo atual de mercantilização e de espetacularização urbana se [...] já não comporta fórmulas pré-fabricadas, nem pode admitir a utilização de teorias historicamente superadas. É na própria história contemporânea, história conjunta do mundo e dos lugares, que nos devemos inspirar, tanto para entender os problemas como para tentar resol- tornou recorrente no meio acadêmico diante vê-los. (Ibid., p. 91) “hipertrofia da dimensão material e visual na da forma cada vez mais explícita pela qual se expressa no cotidiano da vida contemporânea. Discute-se, em especial, a existência de uma ruptura na relação da sociedade com seu passado e com seu futuro (ibid., pp. 53-59) e uma Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Cultura e urbanidade compreensão do conceito de cidade” descon- de grupos dominantes, e a um longo caminho siderando indivíduos ou grupos e a diversida- ainda a ser percorrido com relação aos direitos de de suas histórias, memórias e experiências sociais e à cidadania (Carvalho, 2003; Leitão, (Brito e Jacques, 2009). 2009), o que resultou na constituição de cida- Torna-se explícito o problema contem- des excludentes nas quais os trabalhadores de porâneo que Richard Sennet, em Carne e Pe- baixa renda não têm acesso garantido a mora- dra (2008, p. 15), descreve como “a privação dia, nem aos serviços e equipamentos públicos sensorial (…) a passividade, a monotonia e o de qualidade. Segundo Maricato (2001), essa cerceamento tátil que aflige o ambiente urba- situação se agravou após a crise econômica no”, cujas raízes o autor procura compreender das décadas de 1980 e 1990, aprofundando o por meio da investigação da história da rela- óbice da “não cidade”, definida por se encon- ção entre corpo e cidade na civilização ociden- trar fora da esfera dos direitos, do acesso aos tal. Remonta à Roma Antiga, ao Medievo, ao referidos serviços e equipamentos públicos. Renascimento, ao século XIX até chegar aos Conforme ressalta Caldeira ( 20 0 0, tempos modernos e atuais, em que se privile- p. 212) , certos valores estão ameaçados em giam as sensações do corpo e a liberdade de diversas cidades de âmbito nacional e interna- movimento e, entretanto, essa carência dos cional. O espaço público não promove mais o sentidos tornou-se notável, demonstrando a ideal moderno de universalidade, ao contrário, influência que os novos conhecimentos cientí- promove a separação, a exclusão e a ideia de ficos exerceram sobre corpos e a vida urbana, que os grupos sociais precisam viver em en- sinalizando para o problema dos projetos em claves homogêneos, “enclaves fortificados”, que “urbanistas e arquitetos modernos tinham isolados daqueles considerados diferentes. de alguma maneira perdido a conexão com o Delineia-se um novo padrão de segregação corpo humano” (ibid., p. 15). espacial que serve de base a uma nova esfera Os primeiros indícios dessa desconexão, segundo esses críticos acima mencionados, pública acentuando as desigualdades sociais e as estratégias de exclusão. são perceptíveis a partir das mudanças de ca- Deleuze e Guattari (1997) reforçam essa ráter das populações das cidades. A massa de ideia ao afirmarem que as cidades modernas corpos que antes se reunia nos centros urba- sempre foram marcadas pelo signo do confi- nos em experiências de diferenciação, comple- namento, “aparelhos de captura” as cidades xidade e estranheza (aspectos que sustentam nasceram com muros, fortalezas renascentis- a resistência à dominação), hoje parece se dis- tas ou herdadas do mundo medieval. Poste- persar em polos comerciais, se preocupa mais riormente, a “maquinaria territorial” é cons- em consumir do que em outro propósito mais truída para controlar os diversos fluxos que complexo, político ou comunitário. as atravessam, incluindo o controle do olhar. No Brasil, esses problemas estão asso- Andrade (2008, p. 100) identifica a emergên- ciados ainda à formação do espaço urbano cia de um padrão de privacidade associado marcada pelo patrimonialismo e fisiologismo ao conforto e a um bem-estar cujos meios de Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 409 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia produção e os efeitos possam ser controlados. Pelo que foi visto até aqui, mesmo que Refere-se, assim, tanto aos “modernos banhei- ainda existam atividades que possam ser de- ros assépticos quanto os shoppings centers finidas como centrais e que orientem a partir com suas praças de alimentação como máqui- delas as formas de conexões, as mobilidades nas de conforto” que regulam parte das vidas etc., essas polaridades podem se organizar íntimas e públicas. hoje em qualquer lugar. Os acontecimentos Por outro lado, Borja (2005), analisando produzidos por decisões de investimentos pro- o que chama de “cidade conquistada” que se dutivos, comerciais, administrativos, etc., po- irradia a partir de seus centros, destruindo as dem ser localizados sem contar com os eixos persistências antigas, tornando-se acidentes tradicionais de expansão da cidade. O papel nesse sistema irradiante, considera que essa do centro e da periferia pode mudar conti- expansão é cada vez mais fortuita, menos pro- nuamente sob a lógica da especulação e do gramada e governada. Quanto mais a “rede mercado. nervosa” da metrópole se dilata, mais ela de- No entanto, o paradoxo ou a tragédia, vora o território ao redor, mais seu “espírito” no sentido simmeliano, se coloca nos seguin- parece desaparecer; quanto mais poderosa ela tes termos: a mesma energia que libera a me- se torna, menos ela parece conseguir ordenar trópole nas últimas décadas, essencialmente racionalmente sua vida. Um tipo de “crise es- desterritorializante é a que tem o potencial pacial” análoga àquela do Estado moderno na para resistir ao processo de desterritorializa- sua soberania territorial. Os poderes que de- ção. Refiro-me a uma abordagem topológi- terminam o crescimento metropolitano conse- ca dos espaços, pela relação entre espaço e guem cada vez menos territorializá-la, ordenar corpo, por construir lugares adequados aos as formas de “viver juntos”, visíveis e observá- indivíduos, suas histórias e memórias, pela veis sobre o território. observação e análise das práticas urbanas co- Na mesma direção, Cacciari, no artigo tidianas, pelas formas de arte e de expressão Nomades en prison. Réflexions sur la post- corporal, bem como pelas mobilidades que es- -métropole (2008), chega a afirmar que a ci- timulem a desaceleração, a deriva e a aprecia- dade está por todo lugar. Não habitamos mais ção lenta dos percursos. cidades, mas territórios desterritorializados. A Paola Berenstein Jacques, numa visão possibilidade de fixar os limites da metrópole especulativa e menos pessimista, aponta a parece inconcebível ou é uma possibilidade desterritorialização como uma solução para reduzida a uma tarefa puramente técnico- o distanciamento do urbanista da experiência -administrativa. As fronteiras espaciais são urbana, da própria vivência da cidade pratica- estabelecidas, sobretudo pelas conexões, pela da. Concentra-se no que chama de “postura geografia dos acontecimentos, pelas redes de do urbanista errante”: comunicação. À medida que essa rede se expande, expandem-se as fronteiras e ela não é feita senão para ser ultrapassada. 410 [...] aquele que (…) se preocupa mais com as práticas, ações e percursos do que com as representações gráficas, Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Cultura e urbanidade planificações ou projeções, ou seja, com os mapas e planos, com o culto do desenho e da imagem (…) que não vê a cidade somente de cima, em uma representação do tipo mapa, mas a experimenta de dentro, sem necessariamente produzir uma representação qualquer desta experiência. (2006, p. 118) Para essa autora, há três temporalidades distintas desse processo: orientação, desorientação e reorientação, também presentes no pensamento rizomático de Deleuze e Guattari (1997), nas noções de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, já mencionadas. O momento central seria a desterritorialização, quando são aguçados os sentidos e tem-se outra percepção sensorial, além da visão, instada também pela “lentidão do errante que não se refere a uma temporalidade absoluta e objetiva, mas sim relativa e subjetiva, ou seja, que vai além da representação meramente visual” (ibid. 2006, p. 123). Nessa mesma direção, considera ainda que um possível “antídoto” à espetacularização, homogeneização seria a experiência corporal das cidades, que traz em si a possibilidade tanto de crítica da atual espetacularização quanto de outros caminhos de pesquisa. As formas seriam as “errâncias”, a “lentidão” e a “relação corporal” com a cidade. e metodológicas que mais se aproximam ou dialogam com a forma como Simmel analisa a cidade e a modernidade, como considera ser possível identificar o “espírito” da metrópole, são aquelas que trabalham nos cruzamentos dos campos disciplinares buscando os próprios pesquisadores se desterritorializarem e reterritorializarem em suas práticas e também valorizarem a experiência e a vivência cotidiana ordinária da cidade. Portanto, a atualidade do pensamento de Simmel sobre as metrópoles e a modernidade está em procurar relacionar os fenômenos estruturais de constituição das culturas urbanas aos aspectos cotidianos dos indivíduos que vivem essa experiência. Perceber as possibilidades de extrair o invariável e o essencial dos fenômenos mais casuais e cotidianos. O desafio é imenso. Hoje, as megalópoles abrigam populações desmesuradas enquanto o isolamento em condomínios, o consumo e o lazer realizados em shopping centers privam o habitante da acessibilidade, do encontro com o outro, da diversidade e da gratuidade que eram, em tese, as condições da cidade da modernidade democrática. O turismo em grande escala, a televisão e a internet homogeneízam as atividades humanas, o espaço e o tempo são cada vez mais separados um do outro pelas novas tecnologias e sua velocidade. As representações Observações finais do real chegam a nós defasadas com relação às nossas vidas, às nossas práticas e vivências. A urbanidade e nossas relações interpessoais Em um jogo de aproximação e afastamento, tornam-se bem mais fragmentadas e seletivas. todos os aspectos discutidos ao longo deste As transformações tecnológicas e cultu- texto tiveram como fio condutor o pensamento rais nas cidades contemporâneas são profun- de Georg Simmel e as teorias contemporâneas das, irreversíveis, antropológicas e afetam o sobre as metrópoles. As abordagens teóricas ser urbano na sua identidade e na noção de Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 411 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia fronteira e territorialidade. O confronto com di- E, dessa forma, a produção e a refle- versas formas identitárias e culturais leva o ci- xão sobre a cidade não podem prescindir dos tadino a admitir sua condição de ser limitado, conhecimentos gestados em outros campos mas sem fronteiras. A dialética da metáfora da disciplinares, em especial, da sociologia, da ponte e da porta, apontada por Simmel, reve- antropologia e das artes. Há uma necessi- la, em parte, o futuro do urbano, indicado pela dade crescente de aproximação entre áreas urbanização planetária e pelas tecnologias de sensíveis desses campos de conhecimentos, comunicação que nos convidar a combinar, in- no sentido da valorização das subjetividades, cessantemente, a lógica dos lugares e a lógica das práticas cotidianas, das experiências de dos fluxos com o objetivo de delimitar, real e copresença nos espaços urbanos e dos ins- virtualmente, nosso lugar. A possibilidade de trumentos analíticos e conceituais que podem libertação dessa dialética de um esquema bi- fundamentar uma compreensão da experiên- nário, de rizomatizá-la, de admitir uma saída cia de vida nas cidades contemporâneas a desse paradoxo passa, então, por atravessar ser rebatida na prática de intervenção e na sem cessar as fronteiras dos territórios mutan- concepção de novos espaços e cidades mais tes existenciais. humanitários. Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia Arquiteta e urbanista, mestrado em ciências sociais, doutorado em sociologia, pós-doutorado em sociologia e antropologia. Docente e pesquisadora do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba (João Pessoa, Paraíba, Brasil). [email protected] Notas (1) A cultura é uma síntese do espírito objetivo e do espírito subjetivo e somente nela há essa possibilidade. Funciona em um duplo caminho: subjetivação do objeto e objetivação do sujeito. O processo cultural de aperfeiçoamento do sujeito (o cul vo) é uma forma resultante da obje vação do espírito. É como um ciclo sujeito-objeto, objeto-sujeito, no qual este úl mo sujeito, dis nto do inicial, imergiria como um sujeito mais completo, cul vado. 412 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 Cultura e urbanidade (2) Nessa teia de relações, os objetos têm sempre função mediadora e o fim é sempre o sujeito. Porém, na modernidade, acontece algo que rompe essa corrente, o objeto sai da sua posição mediadora e ganha autonomia. Isso se consolida na alienação do objeto em relação ao sujeito, na transformação dos meios em fins iden ficável no exemplo do dinheiro de forma fundamental e mais acabada. Em sua “Filosofia do dinheiro” (1999), Simmel afirma que o objeto se torna independente e se aliena do sujeito. A origem dessa alienação é a divisão do trabalho que desprende o produto do trabalho daqueles que o fabricam, transformando-o em um fim em si mesmo. O paradoxo ou a “tragédia da cultura” seria uma espécie de fenda nessa síntese sujeito e objeto que mesmo estando na significação meta sica do conceito de cultura precisa ser compreendida no processo histórico, relacionada com a teoria do moderno e a análise do presente. (3) As citações das obras de Simmel re radas das traduções publicadas em francês e inglês, a par r dos originais em alemão, foram traduzidas para o português pela autora deste ar go. (4) Os ensaios e trechos de livros mencionados neste ar go podem ser consultados nestes três livros. (5) Seria proceder por meio da “variação, expansão, captura, picada, expansão, conquista” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 19). Trabalhar com uma multiplicidade de entradas e de relações entre elementos não dispostos de forma hierárquica, pela heterogeneidade dos seus componentes e pelas conexões organizadas entre linhas chamadas de direções em movimento. Seria experimentar, deambular, vivenciar em direções movediças. (6) U lizo citadino, diferentemente de quando u lizo transeunte, pedestre e cidadão porque, como coloca Isaac Joseph (1984), ele não se confunde com a figura do transeunte, nem com a do cidadão. É também u lizado pelos diversos tradutores das obras de Simmel para inglês e francês (inclusive trabalhados neste ar go) indicando aquele que ocupa os espaços urbanos, circula por territórios diversos e interage, em relações de aproximação e distanciamento que nem sempre produzem ações poli zadas ou conduzem ao exercício da cidadania. É assim também que Isaac Joseph concebe o conceito de urbanidade. (7) O sistema fordista é um modelo de regulação econômica iniciada no período entre guerras, com origem nos anos 1930 e apogeu na década de 1960 até a primeira metade da década de 1970, no qual a produção de massa significava consumo em massa e um novo sistema de reprodução da força de trabalho, bem como uma nova polí ca de controle e gestão deste (Harvey, 1992). (8) O rizoma é uma crítica ao pensamento moderno ocidental, articulado sobre estruturas hierárquicas e arvorecentes, caracterizadas por terem um começo e um fim, um passado e um futuro com sen do evolucionista, uma hierarquia de circulação das informações entre pontos e posições e por crescerem e se desenvolverem sobre a base dos raciocínios dicotômicos e da lógica binária. Ao contrário, o rizoma é definido pela circulação de estados, se caracteriza pela mul plicidade de entradas e de relações entre elementos não dispostos de forma hierárquica, pela heterogeneidade dos seus componentes e pelas conexões organizadas entre linhas chamadas de direções em movimento. “Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda” (Deleuze e Gua ari, 1995, p. 32). Seria ainda uma estrutura sem um centro, caracterizada pela circulação de elementos heterogêneos, organizada em forma de plateaux, “uma memória curta ou uma an memória” (ibid., p. 19). (9) Pós-fordista seria a fase posterior à longa etapa de expansão do capitalismo, posterior ao modelo de regulação econômica fordista e teria começado a par r da primeira metade da década de 1970. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 413 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia (10) A introdução do ”espetáculo” como palavra-chave da teoria social contemporânea começou com Guy Debord e sua obra A sociedade do espetáculo, 1967. A obra contém 221 teses sobre a sociedade capitalista do pós-guerra. Debord postulou que o aumento do nível de vida engendrado pelo monopólio capitalista implicaria a erosão da riqueza e da diversidade do cotidiano. O desenvolvimento da sociedade de consumo representando a ampliação da alienação capitalista desde a esfera econômica (a alienação do trabalho) até a ngir todas as esferas da vida. Espetáculo refere-se, portanto, à maneira como as imagens são mobilizadas para assegurar a influência da forma produ va sobre o tempo do lazer, a fim de legi mar as relações sociais existentes e de colocar o indivíduo em uma situação passiva e contempla va em relação a sua própria dominação. (11) Gentrificação é o aportuguesamento do termo de língua inglesa gentrifica on, que designa, de um lado, um processo de deslocamento e de mudança de população dentro dos setores urbanos centrais por categorias sociais mais abastadas e, de outro, a reabilitação sica dos mesmos setores (Ruth Glass, 1964). Estudos mais recentes indicam que o conceito se transformou para incluir outros processos, atores sociais e espaços. Ver: Jovanka B. C. Scocuglia. “Imagens da cidade: cenários, patrimonialização e prá cas sociais”, 2010, e ar gos diversos da revista Espaces et societés. La gentrifica on urbaine, n. 132-133, 2008. (12) Segundo Claus Offe (2005), o Welfare State ou Estado do bem-estar keynesiano, teve sua origem nos EUA, década de 1930, fundamentado em três princípios básicos: seguridade social, proteção ao emprego e polí ca redistribu va. (13) Saskia Sassen defende a tese de que a urbanização contemporânea se caracteriza cada vez mais por uma homogeneização da paisagem urbana, alimentada em parte pelo fato de as cidades estarem passando a ser economias de serviços avançados, desde o crescimento dos serviços profissionais ao turismo global e o redescobrimento do espaço econômico do setor cultural (1998). Francesc Muñoz (2008), por sua vez, observa um po banal de urbanização do território que se pode repe r em lugares diferentes, a “urbanalizacão”: a produção de uma paisagem comum em escala global que conduz ao uso, à manipulação e à reavaliação de alguns elementos da esfera local em suas múltiplas dimensões: social, cultural ou em relação ao entorno construído. Referências ANDRADE, C. R. M. de (2008). “Confinamento e deriva: sobre o eclipse do lugar público na cidade moderna”. In: SOUZA, C. e PESAVENTO, S. J. (orgs.). Imagens urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano. Porto Alegre, Editora da UFRGS. ARGAN, G. C. (1998). História da arte como história da cidade. São Paulo, Mar ns Fontes. ASCHER, F. (1995). Métapolis ou l'avenir des villes. Paris, Edi ons Odile Jacob. BAUMAN, Z. (2009). Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro, Zahar. BORJA, J. (2005). La ciudad conquistada. Madrid, Alianza Editorial. 414 Cad. 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Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 395-417, jul/dez 2011 417 Práticas territoriais da classe média urbana: o Jardim Icaraí em Niterói/RJ Territorial practices of urban middle class: Jardim Icarai (Icaraí Garden) in Niterói/RJ Brasilmar Ferreira Nunes* Resumo Discutimos, no presente artigo, a partir do pensamento de Georg Simmel, algumas hipóteses sobre o sentido que o espaço residencial nas metrópoles contemporâneas representa para seus ocupantes, particularmente como mecanismo de classificação social. Privilegiamos autores da ciência social, procurando articular diferentes abordagens que, na nossa leitura, se complementam e ajudam na compreensão da lógica social urbana. Tomamos como referência para ilustrar nossas reflexões uma área de classe média na cidade de Niterói-RJ que pelas suas características nos oferece o pano de fundo para elaborarmos algumas considerações. Abstract In this paper we discuss, from the thought of Georg Simmel’s , some assumptions about the meaning of the residential space in the contemporary modern metropolis for its occupants, particularly as a mechanism of social classification. Favoring authors of social science, we have tried to articulate different approaches that, in our interpretation, are self-complementary and that would help us to understand urban social logic. In order to illustrate our reflections we took as a reference a middle class area in Niteroi, RJ whose characteristics provided us with the necessary background to elaborate some considerations. Palavras-chave: metrópole; classe média; habitação; estética urbana; sociabilidades urbanas. Keywords: metropolis; middle class; housing; urban aesthetics; urban sociability. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 Brasilmar Ferreira Nunes Situando a questão seja nas metrópoles, em Simmel se trata de um aglomerado de pessoas com interesses divergentes, divergências essas que oferecem Georg Simmel tem inúmeros textos, a maioria a sinergia para que cada um seja estimulado ensaios, que tratam de questões que podem ser a realizar as mais elevadas performances, ali- úteis para uma análise sociológica da metrópo- mentando a dinâmica da troca. le em sociedades de mercado. Entretanto, sem A diferença entre os dois modelos de ci- dúvida, dois deles, com inúmeras edições, são dade em Simmel não é numérica: se sustenta referências obrigatórias: A metrópole e a vida em razão do potencial de centralidade que a mental e O Estrangeiro. São textos clássicos aglomeração apresenta. De maneira dialética, da sociologia urbana que alimentaram o pen- Simmel vai insistir que a centralidade se mani- samento social sobre a cidade, seja na Europa, festa na medida em que a cidade expande sua seja nas Américas, desde suas publicações em influência externa. Entre maior concorrência fins do século XIX. e mais complexa divisão do trabalho há um Há ali a síntese de um pensamento com- contexto que leva ao enriquecimento geral. plexo e sofisticado, que ultrapassa leituras tra- Estabelece-se assim um círculo que se autoali- dicionais do social. São atuais mais de um sé- menta, fazendo da metrópole um “centro” eco- culo depois de escritos, apesar de todas as mu- nômico com capacidade de expandir e ampliar danças que a vida social nas metrópoles vem sua área de influência. Assim, um aglomerado experimentando ininterruptamente. Antes de de população pode ser denso, heterogêneo, Freud, ele já apontava para os efeitos psíqui- de grande dimensão e não possuir o potencial cos que a multidão produz nas mentalidades de centralidade evocado por Simmel. A metró- individuais, e encontra Weber, por caminhos pole, por outro lado, adquire uma autonomia diferentes, quando argumenta que a grande que historicamente faz dela uma forma e um cidade, na medida em que instaura um padrão conteúdo, sede da economia monetária, mes- de sociabilidade específico, é um operador que mo antes do aparecimento do capitalismo mo- institui a racionalidade na vida cotidiana. De derno.1 E aí talvez fosse útil insistir que quando fato, Simmel dá lugar de destaque à cidade em Simmel, a todo o momento, afirma que a gran- seus escritos, tanto quanto Karl Marx o fez com de cidade é sede da economia monetária, não o mundo do trabalho e Max Weber com o pro- se refere a uma dimensão estatística, mas sim cesso de racionalização na era moderna. à função de centralidade. Enquanto Weber prioriza suas análises A pequena cidade aparece em suas aná- sobre a cidade até o século XVIII, Simmel, pa- lises como se fosse para compreendermos por ra quem Berlim era o protótipo da metrópole contraste a originalidade da metrópole. Há nas moderna, se debruça sobre a grande cidade da entrelinhas de seu pensamento a possibilidade modernidade. Suas reflexões sobre a cidade se de uma metropolização do conjunto da socie- constroem a partir de uma oposição entre a pe- dade, o que terminaria com a distinção entre quena cidade e a grande cidade, ou a metrópo- os dois modelos de cidade. Isso poderia ser le na modernidade. Seja nas pequenas cidades, decorrência da generalização da moeda nas 420 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 Práticas territoriais da classe média urbana interações da vida cotidiana que daria primazia podemos considerar que ninguém escapa da ao intelecto sobre as demais dimensões da vida sociedade e terminamos por nos adequar às re- subjetiva. É nessa dinâmica contraditória entre gras sociais definidas exteriormente a nós. o mundo exterior, materialista, monetarizado, São diferentes as esferas nas quais os racional e o mundo interior, onde predominaria sistemas classificatórios se constroem e po- a subjetividade, que Simmel vai elaborar o seu demos considerar a proposta weberiana das argumento sobre a “tragédia da cultura”, fe- esferas econômica, social e política, cada qual nômeno típico da modernidade urbana, metro- com suas regras e seus conceitos peculiares. A 2 politana. De certa maneira, aqui também ele esfera econômica tem no conceito de “classe” se antecede ao “O mal-estar na civilização” de a sua unidade de análise principal. Estamos, Freud, para quem a vida em sociedade pressu- portanto, considerando, como o autor, que clas- põe uma dose de sofrimento à qual estaríamos ses seriam aqui tratadas como uma dimensão todos submetidos. O individuo blasé, a atitude da esfera econômica e vão estar condicionadas de reserva, são duas categorias de análise que às leis do mercado, da oferta e demanda por nos ajudam a compreender a predominância trabalho e seus níveis de remuneração monetá- do intelecto, ou da racionalização, nos vínculos rios. Como é incisivo em Weber, “classe é uma sociais. Para Simmel, a reação do psiquismo situação de mercado” (1981, p. 65). nas interações que se passam nas metrópoles No entanto, não é possível permanecer seria uma apropriação ativa do contexto com apenas nesse nível analítico para explicar os vistas a exercer uma individuação e a liberdade fenômenos sociais, pois é um enorme redu- garantidas pelo anonimato (Remy, 1997, p. 64). cionismo restringir, por exemplo, a sociedade Pois bem, essas reflexões gerais nos aos muros de uma fábrica ou às relações de servem de referência para tratarmos de nos- trabalho. Nesse sentido, a esfera social surge so interesse neste artigo. Consideramos que a em Weber como um elemento adicional na relação indivíduo e sociedade é complexa, no compreensão do espaço social. Sabemos, por sentido em que dimensões particulares se en- exemplo, que indivíduos na mesma faixa de trecruzam com dimensões maiores, num ema- renda têm muitas vezes padrões de consumo ranhado de significados que, em última instân- ou estilos de vida completamente diferentes. cia, estão na base dos sistemas classificatórios Assim, se na esfera econômica os sistemas em sociedade. De fato, a vida em sociedade é classificatórios são basicamente quantitativos construída por trajetórias individuais que se – quanto? – eles esbarram na esfera social, definem dentro de parâmetros grupais, de tal onde as dimensões qualitativas da vida se ma- maneira que as exceções são consideradas ex- nifestam – como?. centricidades, e todos terminam por se adaptar Na ordem social, a unidade de análise é a estilos mais ou menos aceitos pelo grupo ao o status que é percebido por outros critérios qual pertencem. Temos sim um grau de auto- diferentes dos quantitativos. Weber insiste que nomia relativo que é estreito, porém raramen- ao fim e ao termo o econômico e o social ter- te estamos dispostos a romper radicalmente minam por se autocondicionar. Entretanto, pa- com os padrões vigentes. Em outros termos, ra efeito de análise, é importante analisá-los Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 421 Brasilmar Ferreira Nunes separadamente, tendo em vista que guardam maior autonomia de escolha da moradia, ou- uma autonomia relativa em face dos demais e tras dimensões entram em cena para fazer só iremos compreender as lógicas implícitas se valer seus critérios classificatórios. Isso nos conseguirmos focar no específico de cada um leva a considerar que o espaço construído da deles. Em outros termos, os sistemas classifica- cidade se guia, na sua produção, por valores de tórios em sociedade são tanto de natureza eco- classe e de status. Vejamos mais de perto esse 3 nômica como social. argumento. Essa lógica é comum às metrópoles contemporâneas, cada qual fazendo valer seus A lógica social e estética do espaço construído critérios de renda, além, é claro, de valores culturais. Entretanto, essa separação das moradias por renda no território não reduz o espaço social da cidade a lógicas homogêneas. Conti- Para entendermos a lógica social do espaço nuam valendo regras de classificação, porém construído, teremos que utilizar ambas as es- imóveis nos melhores endereços não somente feras que se guiam por princípios passíveis de são os mais caros, mas geralmente também decodificação. Sabemos que, por exemplo, o são os maiores e de melhor qualidade. Imóveis mercado imobiliário organiza o território da ci- mais usados, que não atendem ao padrão mé- dade por faixas de renda, e um olhar apressado dio do comprador (por qualidade ou área, por vai apontar algo que aparentemente obedece exemplo) são adquiridos por grupos e famílias às regras do bom senso: altas rendas preferem de menor renda, garantindo o caráter social- residir próximas aos seus semelhantes, da mes- mente misto do bairro urbano. Queremos insis- ma forma que baixas rendas também têm essa tir que esses critérios de escolha do imóvel não preferência. No entanto, essa “coincidência” de se aplicam apenas às metrópoles europeias ou gostos de lugar de moradia ou de lugar para norte-americanas; na América Latina e no Bra- habitar por faixas de renda tem componentes sil, com a rápida industrialização e a formação que escapam ao observador desavisado. Há de uma classe média urbana com recursos ali- uma conjunção de aspectos que levam a que menta essa regra, que pode ser aplicada, como determinados grupos procurem certas áreas e veremos adiante. Assim, o contexto ambiental, não outras. Sem dúvida, a valorização mone- seja do imóvel, seja da área em que ele se situa tária do imóvel é importante, pois através dos contribui para a determinação dos moradores preços a seleção é feita com base nas rendas que optam, como vemos, por ambientes onde das famílias, via mercado. Porém somam-se a práticas simbólicas do grupo possam ser exer- esse dado, fortalecendo naquilo que lhe é pe- cidas. Isso explica, por exemplo, por que se op- culiar, outras unidades de medida, tais como ta por certo imóvel mesmo não tendo o padrão acessibilidade, oferta de serviços e equipamen- de renda médio da área, ou seja, se endividan- tos urbanos, padrões urbanos das construções, do para garantir um estilo de morar e de viver, etc., que pesam na decisão da escolha. Em uma estratégia peculiar a grupos que valorizam outras palavras, por mais que a renda garanta o status. 422 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 Práticas territoriais da classe média urbana Não se pode negar que nossas grandes charme de um bairro privilegiado. Residir em cidades são unidades urbanas heterogêneas, tais endereços significa um privilégio que se com uma importante parcela de seu espaço procura e pelo qual quem pode pagar está dis- construído escapando às características qua- posto a desembolsar valores elevados.5 litativas dos imóveis. São áreas pauperizadas, Retomando Simmel e considerando os pobres, muitas vezes clandestinas, que surgem elementos acima, não é fora de propósito con- como espaços construídos sem critério ne- cordar com o autor, para quem se a cidade gera nhum, apenas a necessidade. Poderia, portanto, formas de sociabilidade, ela pode também ser ser colocada a questão sobre a manifestação lida como o lugar de emergência de formas es- da ordem social também nessas áreas. De fa- téticas. Os dois aspectos devem ser colocados to, basta se embrenhar ali, dialogar com seus em relação, aliás, como Simmel os enxerga. É morador(a)es para se perceber que há uma esse mecanismo que faz das metrópoles con- valorização do imóvel e do lugar que não é temporâneas, especialmente nas economias de monetária. industrialização tardia, e com elevados níveis São essas condições de sentido que o de desigualdade econômica, um mundo de di- espaço adquire para seus usuários que faz da fícil domínio. Sobretudo porque a cidade como cidade, mesmo nos tempos atuais, capaz de paisagem pressupõe uma troca que significa agir à maneira de uma grande personagem na ver e sentir, que não se deixa apreender num acumulação de experiências novas, ao mesmo primeiro olhar: a descoberta é progressiva, ja- tempo em que as integra ao passado. O abrigo mais imediata. Temos o sentimento de que as contra as intempéries da natureza, a proteção coisas são ligadas somente depois de as ter que um imóvel oferece tem significados para percebido isoladamente: primeiro, é “preci- cada um de seus moradores independentemen- so separá-las para depois reuni-las” (Simmel, te do nível de renda.4 Por outro lado, tampouco 2007, p. 46) tal como nos aparecerem nos am- as áreas de altas rendas têm padrões estéticos bientes com elevada dose de heterogeneidade homogêneos, numa clara evidência de que ou- física e social. tros aspectos entram em questão no momen- O que muitas vezes gera dificuldades de to da escolha da moradia. Mais ainda, há, nas percepção é que essa segregação urbana rara- diferentes áreas, sistemas classificatórios dos mente é absoluta. Faz parte da característica imóveis que fazem com que o mosaico urba- das cidades a mistura, porém sabemos per- no tenha lógicas próprias de valoração e de feitamente quando estamos circulando numa sentido que se traduz muitas vezes num ape- área “nobre” comparada a uma “popular” ou go afetivo ao imóvel e ao lugar. Se assim o é, de classe média. Além do mais, dependendo habitar num determinado endereço no bairro é da natureza do espaço físico da cidade, podem um indicador de um status social: pode estar ocorrer extremas variações e dispersões dos indicando grandes apartamentos, preços eleva- preços dos imóveis no interior de uma mesma dos, qualidade da construção superior, aliado área da cidade, tanto quanto entre as diferen- a um valor-de-uso do imóvel, na medida em tes áreas. O fato é que a segregação social que aponta para uma certa “arte de viver” no de uma dada sociedade pode ser percebida Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 423 Brasilmar Ferreira Nunes através da análise da organização de seu ter- as altas rendas em relação às médias e peque- ritório, especialmente o residencial: diferentes nas é enorme, porém não há déficits estrutu- bairros, muitas vezes opostos em qualidade de rais de serviços.6 Em contextos similares, as vida urbana, até mesmo a atmosfera que se valorações sociais são menos evidentes: forte sente nas ruas quando nelas se circula, padrão hegemonia da esfera econômica e a esfera de lojas e magazines, tudo aponta para uma di- simbólica, via consumo, tem forte presença na versidade social. montagem de sistemas classificatórios. Assim, frequentar certos ambientes culturais, cursar determinadas escolas, exercer certas profissões, Retomando a discussão sobre as práticas de classe no espaço urbano morar em determinadas áreas da cidade são maneiras de se diferenciar dentro do grupo. Em contextos similares e tendo já equacionada a questão econômica, a esfera social assume posição de destaque nos sistemas classificatórios Temos então elementos analíticos que nos aju- (se diferenciar, diferentemente!). dam a compreender parte do sentido que o es- Em sociedades emergentes, de urbaniza- paço construído apresenta aos seus ocupantes: ção e industrialização relativamente recentes não se podem abstrair as classes sociais nem temos contextos distintos. Primeiro o gap entre tampouco o estilo de vida dos grupos. Ambas as classes de renda chega a ser assustador. Há as dimensões se completam na explicação e níveis generalizados de pobreza urbana, convi- aparecem como elementos de classificação. vendo com grupos de renda média e alta numa Assim, não seria apressada a incorporação do situação tensa e problemática. Isso porque a conceito de habitus para auxiliar nessa explica- dificuldade de acesso à renda, à educação de ção, pois temos que considerar tanto os valores qualidade para o mercado de trabalho, o siste- de classe como os de status a fim de darmos ma de saúde precário, e principalmente um se- conta da análise material e estética do espaço tor habitacional popular que beira ao absurdo, construído. O conceito de habitus, pois, pode ferindo o bom senso: precariedade das constru- ser entendido como um sistema de disposições ções, completa inobservância de regras simples duráveis interiorizadas pelos indivíduos a par- de construção, ausência de serviços coletivos tir de suas condições objetivas de existência urbanos, etc., fazem de nossas metrópoles am- (situação de classe) e que funciona como es- bientes que se pode afirmar se guiam à “dupla quemas conscientes de ação, de percepção e de velocidade”. Áreas com padrões urbanísticos reflexão (posição social) (Bourdieu, 1980). corretos e adequados, ao lado de uma cidade Os elementos de classificação social em sociedades historicamente consolidadas se fa- clandestina que sobrevive às bordas da área integrada. zem por critérios rígidos, porém dissimulados. Se retomarmos nosso argumento sobre No geral se tem acesso à renda monetária, à os sistemas classificatórios em sociedade, po- educação, saúde, e a habitação é regra geral, deríamos argumentar que para enormes parce- motivo de políticas universalistas. O gap entre las dos moradores urbanos o que os guia nas 424 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 Práticas territoriais da classe média urbana decisões são as necessidades imediatas, não humanização da arte, isto é, o aparecimento havendo muito lugar para a manifestação da do conceito de estética, que pode ser enten- esfera simbólica em boa parte de nossas áreas dido como uma teoria dos efeitos produzidos metropolitanas. Isso é um equívoco que preci- por certas realidades sobre nossa sensibilidade. sa ser enfrentado academicamente. Para tanto, Em se tratando de um efeito geral que alcan- optamos por discutir a noção do “belo” que se ça a todos, independentemente da posição na manifestaria em diferentes dimensões da vida estrutura social, podemos supor que todos te- social e individual. Seja na forma de vestir, de mos nossos critérios estéticos que refletem a morar ou a partir de outros aspectos, temos dimensão econômica (mercado), mas, sobretu- sempre critérios para optarmos. Ou seja, se a do, valores subjetivos de indivíduos e grupos, dimensão econômica é ditada pelo mercado, a afirmando a natureza política da estética, ou dimensão social, mais simbólica, se utiliza de da arte (ou do belo). 7 valores abstratos tais como a estética. Pois bem, essa individuação da forma A noção de “belo” guarda relação com estética é vista por Simmel em conivência com dimensões variadas da vida individual e social uma individuação das formas de sociabilidade, e muitas vezes surpreende. Trata-se de uma a qual tem na metrópole o lugar de convergên- noção subjetiva e tem relação no essencial cia e amplificação de diversos processos de àquilo que agrada ao nosso gosto, à nossa transformação nos tempos atuais. Se somar- sensibilidade. Podemos considerar de início mos os diferentes sistemas classificatórios, ve- o caráter histórico dessa noção. Ferry (2005) remos que estamos todos inseridos em proces- argumenta sobre a emergência de um univer- sos que nos posicionam dentro do social, numa so laico no qual os seres humanos vão se pre- incessante passagem da dimensão social para tender, enfim se pensar como os autores, os a individual e vice-versa. Ocupar um lugar no criadores de sua história, mas também de sua social será, portanto, o resultado de nossas cultura. Argumenta o autor que na Antiguida- ações, que já seriam também produto de po- de a verdade na arte era, primeiro, expressar sições já existentes (agimos de acordo com o a harmonia do cosmos; nas religiões mono- que nos foi ensinado seja pela família, círculo teístas é a grandeza e o sublime do divino; de relações, sistema educacional, etc.). Signi- nas democracias humanistas atuais, a arte é fica assim que a adoção de um determinado a expressão da profundidade e da riqueza do valor ou estilo de vida indica a adequação aos gênio humano (ibid., p. 16). Em síntese, o que valores de certo círculo social, compartilhando se pode argumentar é que em lugar de refletir de suas convenções. Sem dúvida, na cidade, uma ordem exterior aos homens (cósmica ou a moradia é um dos elementos principais na religiosa), a obra de arte vai se transformar, explicitação de um sistema de valores estéti- nas sociedades modernas, na expressão da cos individuais e de classe. E onde ela é uma personalidade de um indivíduo.8 evidência maior é nas preferências estéticas da Vivemos, portanto, um fenômeno peculiar e original na modernidade, que é justamente a Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 classe média urbana, argumento que iremos tentar demonstrar aqui. 425 Brasilmar Ferreira Nunes A individualidade expressa na moradia estrutura física possa ser efeito de uma lógica de exploração. Portanto, há situações em que a dominação não é necessariamente exercida tendo em vista a exploração. Isso poderia Refletir sobre a realidade social a partir do ser o caso de sistemas socioculturais em que conceito de classes, desde que adequada- a dominação, por exemplo, propicia aos seus mente entendido, constitui efetivamente um beneficiários vantagens outras que não a ex- construto teórico de valor incomparável. Po- ploração de mais-valia (por exemplo, no pa- rém, evitaremos aqui o debate sobre a “luta triarcalismo). Poderia também ser o caso de de classes”, no qual invariavelmente se cai práticas da vida cotidiana quando certos valo- quando o recorte analítico considera a estrutu- res sociais válidos para determinados grupos ra social como uma estrutura de classes e que são impostos como legítimos para o conjun- a mudança se dá como resultado de uma luta to dos grupos da sociedade. Aqui, na esfera entre as classes. Nessa concepção, poderíamos simbólica é que se daria a verdadeira luta por explicar os processos de mudança, porém tería- hegemonia: quando valores de uma classe são mos dificuldades para justificar a estabilidade transpostos como senso comum para todas as ou o equilíbrio social, mesmo quando se tem classes. Ao mesmo tempo, lembrando as refle- grandes desníveis econômicos. Tentaremos sim xões simmelianas, o espaço da cidade, extra- decodificar na existência cotidiana – fora dos fábrica, é o lugar da “produção de relações” “muros da fábrica” –, estratégias que refletem mais do que das “relações de produção”, on- essencialmente uma disfarçada luta de classes, de, de forma original, de fato, há a interação mas que se mostram como ações individuais. interclasses.9 Seria aqui então que se criariam, Parte de uma engrenagem complexa, de forma permanente, novos modos de sub- as ações individuais devem ser lidas como jetivação, dando à vida social na metrópole o estando firmemente assentadas na realidade verdadeiro sentido de “sociedade” nos moldes histórica e são o elemento que expressa a re- goffmanianos, para quem também “sociedade lação entre indivíduo e sociedade. Em outras é interação” (Goffman, 1989). palavras, o indivíduo, em suas ações, detém Os elementos da discussão acima nos um grau de autonomia que é determinada auxiliam para retomarmos a temática sobre pelo contexto social, cultural e histórico que o “valores estéticos”, já esboçada nos parágra- limita em suas decisões e sua autonomia será fos anteriores e introduzirmos um exemplo sempre relativa. O sentido de seus atos é da- concreto de subjetivação nos processos de so- do então pelo contexto no qual eles se mani- ciabilidade. O significado que Simmel nos dá festam e jamais é ditado exclusivamente pelo de sociabilidade como “uma forma lúdica de próprio sujeito da ação. Nesse movimento, sociação, e algo cuja concretude determinada uma sutil dialética entre exploração e domina- se comporta da mesma maneira como a obra ção deve ser a base da reflexão. de arte se relaciona com a realidade” (Simmel, No território da cidade, o que está 2006, p. 65) nos é útil. Para Simmel, o impul- em questão é a dominação, mesmo que a so artístico retira as formas da totalidade de 426 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 Práticas territoriais da classe média urbana coisas que lhe aparecem, configurando-as em identitária, uma linguagem que aproxima indi- uma imagem específica e correspondente a víduos com padrões estéticos comuns. esse impulso, “o impulso de sociabilidade em sua efetividade se desvencilha das realidades da vida social e do mero processo de sociação como valor e constitui assim o que chamamos de sociabilidade”. Vimos que há valores de classe e certa Um agrupamento urbano de classe média: Jardim Icaraí/Niterói dose de autonomia individual na opção por um estilo de vida que se combina para a definição Tomando como referência um bairro de classe de gostos e de percepção de mundo. Essa au- média na cidade de Niterói, na Região Metro- tonomia permite aos indivíduos expressarem politana do Rio de Janeiro, fizemos algumas in- suas subjetividades sempre tendo limites de ferências a fim de testarmos elementos teóricos liberdade nessa empreitada, ditados pelo con- presentes nas páginas acima. Trata-se do Jar- texto social. Essa possibilidade potencial de ex- dim Icaraí, região de expansão de um mercado pressar a subjetividade faz da vida em socieda- imobiliário para um público de rendas médias de um cenário múltiplo e diverso que retrata a elevadas, e que vem atravessando um forte diversidade presente, seja dentro de um grupo, processo de expansão de sua área construída seja entre diferentes grupos sociais. A expres- ou mesmo a reconstrução de novos imóveis em são de valores estéticos em toda e qualquer áreas já ocupadas anteriormente em função da dimensão da vida passa assim a ser dimensão valorização que a área apresenta. constitutiva da sociedade, mesmo que haja Perguntávamo-nos, inicialmente, quais certos padrões que possam ser considerados seriam as razões da recente definição da área em algum momento e por determinados gru- como um “bairro”, bem como quais os limites pos como legítimos. Talvez seja ali, nesse tea- físicos que o delimitavam na geografia da cida- tro social, que as identidades se apresentam de. Supomos que a dimensão econômica estaria e se firmam. A esfera do consumo é onde se aqui equacionada e haveria outras motivações têm margens de manobra para a inventividade, que favoreceram a escolha da área como mora- portanto, para expressar valores estéticos e por dia pelos grupos ali residentes. Em outras pala- consequência, subjetividades. E o cenário da vras, dado o nível de renda das famílias, haveria metrópole é sem dúvida o que oferece maior um leque amplo de possibilidades de escolha potencial de diversificação e de expressão de do local de moradia. Nesse sentido, orienta- 10 individualidades. Seja no vestuário, no consu- mos nosso levantamento qualitativo nos per- mo cultural ou de bens materiais e imateriais guntando “por que as pessoas almejam morar e até mesmo na moradia existem diversas no bairro?” e “por que essas mesmas pessoas possibilidades de escolha, o que faz dessa es- preferem em um tipo específico de prédio, com fera uma das mais importantes na definição características arquitetônicas peculiares?” Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 427 Brasilmar Ferreira Nunes A vida social do bairro e seus moradores de um bairro cuja mudança nos padrões habitacionais se fez com base numa publicidade de empresas imobiliárias, e tem sua abrangência delimitada no território segundo uma repre- Nosso intuito foi, portanto, o de analisar a in- sentação peculiar. Vendem-se os imóveis a par- fluência dos valores de status (ordem social), tir de uma aproximação do seu padrão com o que seria a dimensão classificatória utilizada bairro vizinho de Icaraí, que goza de uma tradi- pelo grupo ali residente. Por detrás desse en- cional valorização junto à classe média alta. As foque, estaria uma hipótese subjacente, qual dificuldades classificatórias surgiam o tempo seja, a de que a localização de um grupo em todo quando se tratava da indefinição de suas determinada porção do território da cidade se regiões fronteiriças. Observamos que todas as relaciona com o desenvolvimento de um estilo ruas que delimitam o território do bairro são de vida específico por parte daqueles que dese- alvos de constantes questionamentos quanto jam pertencer ao círculo social e compartilhar ao seu pertencimento: sendo contígua a outro de suas convenções, assim, o lugar de moradia bairro (Santa Rosa) há ambiguidades quanto seria um forte indicador do lugar social. Portan- às ruas que pertencem ao “Recanto Icaraí” ou to, nos orienta o pressuposto de que a estratifi- ao “Recanto Santa Rosa”, numa alusão a no- cação por status caminha de mãos dadas com vas formas classificatórias que se originam na uma monopolização de bens ou oportunidades região e que marcam a mesma oposição Icaraí materiais e ideais (Weber, 1981, p. 76). versus Santa Rosa. Assim, a proximidade com o Uma primeira constatação surgia logo bairro de Icaraí é tida como positiva, enquan- de início: o bairro passava por um processo to que com Santa Rosa acontece o contrário. O de modificação dos padrões habitacionais que próprio nome “Jardim Icaraí” já permite tornar preexistiam à atual expansão imobiliária. Com esse aspecto mais evidente: Icaraí sempre é ci- grande rapidez, antigas casas, geralmente tér- tado como bairro mais nobre, mais bem servido reas e pequenos prédios de até cinco andares, por serviços e equipamentos urbanos e como cediam lugar a prédios com mais de dez anda- símbolo de prosperidade. Em oposição, quando res, inclusive com coberturas, abrigando cada se referem ao Santa Rosa, nomeações como um em torno de cem famílias. Esses lançamen- “favela”, além da escassez de serviços são res- tos imobiliários se espalham por todas as ruas saltados. O Jardim Icaraí toma a posição, por- do bairro, dando sinais de um mercado em forte tanto, de um bairro intermediário entre esses expansão. A substituição de antigas residências dois universos, sendo renegados aspectos que por essas novas, com características peculiares, o aproximam de Santa Rosa, ao mesmo tempo significa muito mais do que substituir os abri- em que são ressaltados aqueles que definem gos preexistentes: é de fato derrubar um modo Icaraí como nobre, além das características que de vida, pois a chegada de um grande número Icaraí já teria deixado de possuir por conta da de famílias altera o cotidiano do bairro. expansão anterior.11 Nessa trama de consoli- A delimitação física do bairro Jardim Ica- dação de uma representação do bairro não se raí é outra dimensão que vale destaque. Trata-se pode considerar que se trata de uma cópia de 428 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 Práticas territoriais da classe média urbana Icaraí, nem tampouco se distancia simplesmen- que o bairro apresenta. Como expressa um de te de Santa Rosa. De fato, a área vai se forman- nossos entrevistados “aqui as pessoas não be- do a partir de uma lógica que lhe é própria e bem em bar, bebem em restaurante”. Os que seria reducionismo tratá-lo como cópia de um mudaram para lá oriundos de Icaraí lamentam ou de outro. a mudança, apesar de se sentirem bem no lo- Essas dificuldades classificatórias são cal: “sinto falta da confusão de Icaraí, pois já corroboradas pela inexistência de uma norma estava acostumado com isso”. A oposição en- administrativa, visto que a própria Secretaria tre essas duas falas, quando vista pelos que as de Urbanismo do município não confere legiti- expressam, mostra com justeza a dinâmica de midade ao bairro. Tudo indica que há uma de- consolidação da identidade do lugar, muitas fasagem entre o que é vivido pelos moradores vezes contraditória, pois composta por eleva- e aquilo que está estabelecido pelos órgãos da dose de heterogeneidade social. que regem o espaço urbano. Por exemplo, ruas O fato é que pudemos perceber a di- são como definidores dos limites de um deter- versidade e a vitalidade que caracterizam o minado território; são também unidades de bairro. Isso se constata inclusive nos padrões alto significado para saber reconhecê-las. Elas habitacionais bastante variáveis: casas cons- estruturam um continente, mapeiam e organi- truídas em diferentes períodos vão perdendo zam o seu conteúdo, sustentam uma tradição espaço para novos edifícios, muitos abrigan- ao evocarem um modo de vida para o qual do comércio variado no nível das ruas. Esta- funcionam como emblema e rótulo (Santos e belecimentos escolares públicos e privados, Voguel, 1981). Os habitantes da área confe- lojas de vestuá rio, salões de beleza, farmá- rem às ruas um papel de referência de bons cias inclusive de manipulação, cursos de lín- ou maus lugares ou de serem emblemas de um guas estrangeiras, clínicas, apontando uma modo de vida.12 certa sofisticação. Um desenho urbanístico Os mais recentes moradores do bairro que organiza pequenos quarteirões permite falam de algo como uma “mudança de ares” a circulação a pé e a possibilidade de se for- ou da “qualidade de vida”. Entretanto, não se mar um circuito de vizinhança que pode aos pode considerar que a área seja socialmente poucos consolidar uma zona moral, típica de homogênea, sobretudo vista através da ori- área de classe média. Além do mais, estão gem de seus moradores recentes e suas dife- presentes aí os quatro fatores ressaltados por rentes configurações socioculturais. São indi- Jane Jacobs como sendo indispensáveis para a víduos e famílias de diferentes origens dentro geração da diversidade urbana, quais sejam: da própria cidade, muitos com recente inser- a multiplicidade de usos primários garantindo ção na classe média, guardando, portanto, va- que diferentes pessoas sejam capazes de utili- lores variados no que se refere à estética do zar boa parte da infraestrutura em diferentes lugar. Justamente aqueles oriundos de áreas horários; a necessidade de quadras pequenas; de menor prestígio são os que insistem nessa a mistura de edifícios de idades e estados de mudança no estilo de vida, seja pela proximi- conservação variados e certa densidade resi- dade da praia, seja pelas vantagens comerciais dencial (Jacobs, 2003). Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 429 Brasilmar Ferreira Nunes Entretanto, mesmo com tais condições de do anonimato, mas aquele onde dispomos vida urbana, não se pode desconsiderar o fato facilmente do direito de ser anônimo, de não de que a rápida e excessiva valorização do so- atrair as atenções ou os olhares. Temos aqui, lo no bairro pode vir a se configurar como um portanto, a possibilidade de “redefinir a situa- fator de risco para tal diversidade. As leis de ção”, ou seja, de negociar permanentemente mercado têm potencial de redefinir o perfil mé- seus territórios. Haveria assim uma lógica entre dio dos moradores, bem como alterar o próprio a segregação do espaço e a segregação das si- comércio local. Porém, essa dinâmica é sempre tuações, que segundo Joseph (2007) nos leva acompanhada pela diversificação, sobretudo à microssociologia interacionista, ou a uma das atividades de comércio e serviços. Esse mo- dramaturgia do social baseada nas técnicas de vimento é de médio prazo e está relacionado representação do eu (arte das fachadas e pala- com outras variáveis, das quais a estabilidade vras das circunstâncias). econômica geral é importante. A classe média Nesse jogo de representações, há dimen- se expande através da expansão das atividades sões que marcam territórios identitários. Pode- do terciário e tudo indica que o caminho será mos avançar afirmando que a moradia termina esse, caso os ganhos salariais de seus assala- desempenhando esse papel de defitichazador, riados estejam num círculo ascendente. pois o lugar de moradia na cidade termina sendo um indicador do lugar social do indivíduo: define um padrão e um modo de vida ou pelo As características dos imóveis residenciais menos o representa. Assim, circulando em diferentes zonas da cidade, a opção pelo anonimato é um dado de realidade, porém o endereço restringe essa possibilidade. Já assinalamos, Sociologicamente, o que é questão nas análi- anteriormente, que os grupos, pela moradia, ses da vida urbana é a natureza dos espaços tendem a se aproximar, agindo via mecanismos públicos e a sua relação com o mundo privado, de atração (de iguais) e repulsa (do diferente) ou seja, o lugar da moradia. Se a cidade é hoje através inclusive da mediação de mercado. um laboratório social atravessado pela questão Essa dinâmica produz áreas homogêneas do território, por suas fronteiras, as divisões dentro da heterogeneidade das construções que caracterizam as sociedades urbanas não urbanas. Entretanto, é nas particularidades dos podem ser compreendidas apenas com a utili- projetos que a homogeneidade se apresen- zação de abordagens clássicas do espaço. É a ta. Para o Jardim Icaraí que estamos tomando natureza do vínculo social que se apresenta co- como ilustração, e tomando os lançamentos mo problemática nos discursos atuais, sobretu- imobiliários recentes na área, são recorrentes do quando se reflete sobre se o espaço público certas características, que se repetem: salão da metrópole de hoje tem um ambiente onde é de festas, piscina, sauna, salão de jogos, lan possível tolerar o intruso, um indivíduo a mais. house, spa/hidromassagem, churrasqueira, es- Mas é importante deixar claro que esse espa- paço fitness. Os apartamentos oferecidos por ço público não é, necessariamente, o espaço esses novos empreendimentos, assim como 430 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 Práticas territoriais da classe média urbana as áreas de lazer comum, partilham de carac- tchan! Eles usam aqueles vidros verdes”. Ou- terísticas que se mostram constantes: todos tra interlocutora fala ainda com orgulho da sua possuem varanda, pelo menos uma suíte e “portaria climatizada e da mesa redonda com pelo menos uma vaga na garagem. Vendidos um lustre acima igualzinho ao projeto...”. na planta, a maioria permite que o proprietá- As áreas comuns de lazer são muito mar- rio proponha alguma mudança do espaço no cadas pela presença de diversos objetos de- período da compra, agindo enquanto elemento corativos como vasos, quadros, flores, etc. Da de diferenciação e de expressão de subjetivida- mesma forma, é repleta de móveis e aparelhos de. Além do mais, como são entregues limpos, como cadeiras tipo espreguiçadeiras, pufes, até mesmo sem lâmpadas, há maior liberdade televisões, videogames e brinquedos para os para deixá-lo do jeito que preferir. pequenos. Parece haver uma expectativa de A planta do apartamento é constante- transformá-las em uma extensão da casa, num mente citada como elemento influenciador na ambiente acolhedor e propício às interações escolha do prédio: “o que mais me chamou sociais, pois “não há necessidade de sair daqui atenção aqui foi a planta do apartamento, gos- para nada, você recebe seus amigos aqui mes- to do tamanho da minha cozinha, é o mesmo mo...”. Porém, Simmel (1979, p. 12) nos fala da de um apartamento antigo, dá até para colocar impessoalidade das metrópoles, da raridade de uma mesa”. Ou ainda é a área de lazer comum contatos íntimos entre moradores em compa- dos prédios que divide com a planta a prefe- ração com os contatos externos. Muitos dos rência dos compradores. Jovens e crianças são moradores mais antigos dos prédios conheciam sempre mencionados como os que mais se be- seus vizinhos “apenas de vista” ou então afir- neficiam desses espaços, mesmo por aqueles mam que “aqui as pessoas são mais distantes, que ainda não têm filhos: “área de lazer era al- mais frias”. Assim, se essas áreas de lazer se go que eu prezava até mesmo porque pretendo propõem de fato a atuar como extensões da ter filhos e não queria morar num prédio que própria casa são, da mesma forma, utilizadas não tivesse isso”. A questão do status apare- muito mais para consolidar círculos de amiza- ce mais uma vez na fala de uma moradora que des preexistentes do que com vizinhos. diz: “aqui atendeu ao que eu queria em termos O que é digno de ressaltar é que tais de investimento e também tem coisas que as características funcionam como um mecanis- pessoas valorizam”. mo de atração e de seleção dos compradores, Finalmente, o estilo arquitetônico e os gerando um espaço social com características componentes dos ambientes externos dos pré- comuns. A atração de novos moradores, sele- dios (materiais utilizados na construção, obje- cionados por um padrão econômico e estético tos presentes na decoração da portaria, etc.), peculiar que oferece um estilo de vida adequa- remetendo a um estilo moderno, também são do, age como um filtro que seleciona os “se- valorizados pelos moradores. Demonstram or- melhantes”, funcionando como mecanismo gulho ao se referirem à fachada ou ao “visual” classificatório. do prédio: “olha que bonito, não é para ficar de A aquisição de um apartamento em um peito estufado?”, ou ainda: “o visual tem um imóvel com características que correspondem a Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 431 Brasilmar Ferreira Nunes um padrão específico de vida só se torna possível uma vez que os indivíduos que almejam comprá-lo se ponham em disputa no mercado Esboço para uma conclusão geral e disponham de recursos econômicos para obter o bem desejado.13 É comum o argumento Os aspectos diversos que contêm a decisão de justificando a compra do apartamento como morar em determinada área da cidade e não uma valorização do patrimônio ou como um em outra guardam uma lógica peculiar que investimento seguro. Falam ainda na aquisição procuramos decodificar. Estamos longe da afir- de “um bem que ninguém vai te tirar!”. Po- mativa weberiana, para quem o que caracteri- rém, estamos nos perguntando se seria cabível za sociologicamente a cidade são as relações a definição desses indivíduos como sendo um de vizinhança (Weber, 1979). Se essa assertiva grupo de status. De fato, muitos dos atributos pode se aplicar para as cidades da pré-moder- definidores dessa categoria conceitual, confor- nidade, Simmel vai insistir que agora há outro me tratados por Weber em texto anteriormente fator importante na cidade, que é justamente a citado, podem ser encontrados no caso que es- possibilidade do anonimato. Estamos em dife- tamos tomando como exemplo; até mesmo nos rentes níveis de análise: a divisão do trabalho anúncios publicitários dos lançamentos podem social leva à especialização de ofícios e ativida- ser observadas essas proximidades. des que, por sua vez, se baseia nas trocas mo- 14 Entretanto, a advertência feita por Becker netárias para se manter e reproduzir. Assim, é a quanto à escolha que o pesquisador deve fazer aglomeração no território que sustenta e ofere- entre deixar a categoria conceitual definir o caso ce as condições gerais para a divisão do traba- e deixar o caso definir a categoria (Becker, 2008) lho; sem dúvida, temos aí uma das explicações não deve ser esquecida. Ao se optar pela primei- para a atração que a cidade oferece. Sendo lu- ra alternativa, perdemos parcela significativa da gar de mercado, produz fatos sociológicos pe- complexidade própria da realidade e deixamos culiares que, segundo Weber (ibid.), seriam as de investigar aspectos do nosso caso apenas relações de vizinhança. por não fazerem parte da descrição da categoria Entretanto, na medida em que estamos com a qual trabalhamos. Faz sentido, portanto, considerando as trocas monetárias via merca- incluir todos os aspectos do caso em nossa aná- do, temos que levar em conta que a concorrên- lise, mesmo que a categoria conceitual não dê cia é parte constitutiva da relação. Isso produz espaço para eles. Assim, tomando nosso caso co- mecanismos de diferenciação de produtos e mo referência, a honra de status está diretamen- preços caracterizando uma oferta geral de te ligada a uma situação de classe envolvendo bens e serviços profundamente diversificada, proprietários em competição no mercado por variada. O jogo de mercado é então um pro- bens altamente valorizados. De maneira alguma cesso contínuo de inovações, onde o que se o “ter” se opõe ao “ser”. As distinções pessoais oferece varia quantitativamente e, sobretudo, não entram em contradição com as pretensões qualitativamente. Na medida em que a própria de aquisição puramente econômicas, que segun- mercadoria trabalho entra nessa lógica, há nas do Weber é próprio das “classes”. esferas individuais a permanente expectativa 432 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 Práticas territoriais da classe média urbana de diferenciação para obter melhores resulta- considerar, portanto, que a necessidade de dos na concorrência. Submetido a estímulos reconhecimento é o que move as tentativas permanentes, o indivíduo tem seu psiquismo de interação entre as pessoas e garante certa envolto numa série ininterrupta de sensações identidade social mantendo-as partes de um cotidianas. O fenômeno é tanto na esfera da grupo. É na metrópole onde essas possibilida- qualificação profissional, na procura de méritos des são mais disponíveis, pois o ambiente so- de distinção, até na dimensão física, corporal cial é de profunda heterogeneidade, permitindo e no estilo de vida que se pode praticar. O ar- escolhas eletivas. gumento de Simmel é que se desenvolvem aí Seria, assim, através de processos de in- estratégias de “sobrevivência” psíquica com teração social que se produz a sociedade, seja o aparecimento do instinto de reserva ou até mercantil ou não. Marcel Mauss, estudando o mesmo da atitude blasé (Simmel, 2007). Assim, regime das trocas em sociedades arcaicas, nos aquilo que para Weber caracterizava sociologi- lembra que a interação ali presente não se re- camente a cidade pré-moderna, e poderia ser sumia a uma simples troca de bens, de riquezas lido como algo positivo, em Simmel passa a ser ou de produtos num mercado estabelecido en- visto como fonte de perturbação: a inexorabili- tre os indivíduos. Insiste o autor: dade do fenômeno é que daria o substrato para seus argumentos sobre a “tragédia da cultura”. Fizemos referência, ao longo do texto, ao fato de que no capitalismo não há relações de classe e sim relações de dominação e um grupo se sobressai ante os demais. Ao mesmo tempo, lembramos que há sim produção de relações e que essas se dão nas esferas da circulação e do consumo e onde o espaço urbano é privilegiado para suas manifestações. Simmel insiste sobre a placidez da vida em pequenas cidades ou no campo, comparada ao que se passa na metrópole, onde a racionalidade da vida é levada ao extremo. Entretanto, o ser humano é um ser social e tem mecanismos de sociação que [...] em primeiro lugar não são indivíduos, são coletividades que se obrigam mutua mente, trocam e contratam as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos famílias (grifo nosso) que se enfrentam e se opõem seja em grupos frente a frente num terreno,.... Ademais o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de tudo, habilidades, banquetes, riquezas, serviços... dos quais o mercado é apenas um dos momentos, e nos quais a circulação de riquezas não é senão um dos termos de um contrato bem mais geral e bem mais permanente. (Mauss, 2007, p. 190) garantem um mínimo de interação, ao risco de acabar com o que se entende por sociedade. Percebemos assim que a troca é um fenôme- Discutindo o caráter abstrato da sociologia, no pré-mercado capitalista, o substrato mesmo Simmel procura entender o que acontece com da sociedade. Lévi-Strauss, em sua célebre in- os seres humanos e segundo que regras eles trodução à obra de Marcel Mauss, adverte ser se movimentam quando, em virtude de seus da natureza da sociedade que ela se exprima efeitos mútuos, formam grupos e são determi- simbolicamente em seus costumes e em suas nados por essa existência em grupo. Podemos instituições: Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 433 Brasilmar Ferreira Nunes [...] ao contrário, as condutas individuais normais jamais são simbólicas por elas mesmas (grifo no original), elas são os elementos a partir dos quais um sistema simbólico, que só pode ser coletivo, se constrói. (Lévy-Strauss, 2007, p. 17) A teoria social ainda não consegue definir claramente o estatuto desse grupo, dada a indefinição, seja na natureza do mercado de trabalho, seja nos próprios valores morais. Seria suficiente talvez reafirmar a definição de “classes médias” corrente no debate sobre as socie- São essas reflexões que nos ajudam a concor- dades pós-industriais da segunda metade do dar com a assertiva maussiana segundo a qual século XX. É possível situá-las a partir de três “sociedade é símbolo”, nos valermos do pen- grandes referências complementares, próximas samento de Simmel para quem de uma descrição do que propriamente de uma [...] a sociologia extrai dos fenômenos uma série ou uma parte da totalidade e a subsume a um conceito específico através de processos de abstração e estudar, por exemplo... os resultados da luta de classe sem entrar nos detalhes do curso de uma greve ou das negociações em torno de uma taxa salarial. (2006) definição: 1) as classes médias seriam aquelas cujo nível de remuneração se aproxima da média; 2) seriam definidas pela posição intermediária de seus membros nas hierarquias sociais e profissionais, assim como na escala das qualificações, marcados por uma competência e um poder de organização; e 3) se definiriam em função de um sentimento de pertencimen- Aquilo que Mauss observa para as socie- to, menos estático que dinâmico, notadamen- dades que ele estuda é significativo para nos- te pelo fato de identificar seu destino – ou o sas reflexões. As trocas mercantis, hoje ainda, de seus filhos àquele do grupo intermediário guardam a sua essência de “atos coletivos” (Tourraine, 2007, p. 17). abstratos, mesmo quando aparecem como sen- O fato é que seu universo privilegiado do resultado de decisões individuais. A aquisi- são as metrópoles, onde gozam das possi- ção de um imóvel para moradia tem elementos bilidades de um anonimato onde podem se que contribuem para a formação de sistemas apresentar segundo critérios racionais, meri- simbólicos que só podem ser coletivos, como tocráticos, escapando dos códigos tradicionais afirma Lévi-Strauss. Talvez tivéssemos que in- de aquisição de prestígio, dos quais a origem corporar na análise a natureza das sociedades familiar é uma das principais características. modernas com seus sistemas de classes e seus Entretanto, suas estratégias de reprodução regimes de criação de esferas de prestígio so- e de manutenção de prestígio vão sendo aos cial. No caso que exemplificamos no presente poucos consolidadas à medida que se firmam artigo, trata-se de um grupo de classe média no cenário do mercado de trabalho (terciário) urbana, com história relativamente recente na e se beneficiam das vantagens que o sistema sociedade brasileira, mas que pelas facilidades garante a segmentos sociais específicos. Não de consumo que detém consegue gerar um sis- há dúvidas de que a moradia é um dos ele- tema de valores peculiar, envolvendo um estilo mentos mais visíveis de uma posição social, de vida próprio.15 cuidadosamente cultivada por esse segmento. 434 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 Práticas territoriais da classe média urbana Giddens é enfático quando afirma que “o mais a particularidade nos ajuda a entender a tota- importante dos fatores que promovem uma lidade. Isso justifica a nossa ênfase na noção diferenciação geral entre trabalhadores white- de “belo”, em que a estética passa a ser um -collar e blue-collar são os agrupamentos dis- instrumento de diferenciação que identifica tributivos formados pela “aglomeração” de um grupo social através de padrões estéticos vizinhança e por certos tipos de formação de comuns ou similares. Esse recorte nos é útil 16 grupos de status. inclusive para analisar as formas estéticas em Nossa opção em exemplificar a análise a áreas populares, guiadas por princípios idênti- partir de um caso foi no sentido de obedecer cos, porém com parâmetros próprios. Mas isso a uma orientação simmeliana, segundo a qual é assunto para outro artigo. Brasilmar Ferreira Nunes Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq e da Faperj. Rio de Janeiro, Brasil. [email protected] Notas (*) O autor agradece o trabalho de Natalia Carneiro Campagnani, estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense e bolsista PIBIC, na pesquisa empírica e nas discussões que deram origem ao texto. (1) Simmel se interrogando sobre a maneira como quantidade induz à qualidade (da pequena cidade à metrópole), argumenta que a par r de certo ponto as conexões se mul plicam ao mesmo tempo em que o individuo ganha em liberdade de movimento e a grande cidade ganha autonomia de personalidades únicas. Por exemplo, o estatuto de metrópole de Weimar se ligava a figuras eminentes e desaparece com elas, enquanto a grande cidade [é] precisamente caracterizada pela sua independência fundamental em relação a personalidades ilustres (Simmel apud Rémy, 1997, p. 66). (2) Ver a respeito: Simmel, G. (1998). (3) A terceira esfera tratada por Weber é a “polí ca”, cuja análise é feita a par r da noção de poder. Não iremos tratar dessa esfera nos quadros deste ar go. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 435 Brasilmar Ferreira Nunes (4) Uma ilustração desse fato é, por exemplo, durante catástrofes naturais, quando áreas precárias das cidades são atingidas e destruídas. Nesse momento, a comoção da perda do abrigo é reveladora do apego que o imóvel tem para seus moradores, independentemente de suas qualidades materiais. (5) A análise sobre o mercado imobiliário de alta renda na Região Parisiense é exemplar a este respeito. Ver Pinçon e Pinçon-Charlot (1989). (6) Claro que estamos considerando estabilidade de emprego e renda. Em momentos de crise, essa situação pode se alterar, porém raramente chega ao nível das sociedades emergentes. (7) A sociologia discute com parcimônia a dimensão esté ca, que de maneira diferenciada tem, de fato, sen do profundo a todos os indivíduos e grupos. Na medida em que ela é confundida com a dimensão econômica (“o belo é de alto custo”), se perde de vista que todos se submetem a padrões esté cos nessa aventura que é a vida em sociedade.”Eis o que foi sem dúvida, depois de sempre, a vocação essencial da arte: evidenciar... em um material sensível (cor, som, material...) uma verdade considerada como superior” (Ferry, 1990, p. 16). (8) “Secularização e humanização são duas palavras-chave destas variações às quais conviria prestar um instante de atenção para se inserir com mais segurança nas discussões atuais” (Ferry, 2005, p. 16). (9) Na esfera das “relações de produção”, não se pode dizer que haja relações de classe. O que há é a exploração de uma classe sobre outra e a imposição de seus interesses como legí mos. (10) Vamos deixar claro que a esfera do consumo é acessível a todos, desde que detenham recursos materiais/monetários. Assim, da mais baixa à mais elevada renda, todos par cipam segundo suas possibilidades do consumo, sobretudo na vida urbana e metropolitana, onde a moeda é o instrumento privilegiado de interação social. (11) Por exemplo, ruas mais tranquilas, trânsito menos intenso. (12) As alusões à rua da praia de Icaraí e à Cel. Moreira César, ambas em Icaraí, são constantes e servem de referencial para a reprodução de um es lo de vida no bairro vizinho. Comparam o comércio de seu bairro com o do vizinho: “aqui é bem servido das necessidades básicas como padaria, farmácia, mas ainda não tem tantas lojas de roupas e presentes como a Moreira César que é um shopping a céu aberto”. (13) No momento de realização da pesquisa, no segundo semestre de 2010, os preços dos apartamentos de dois quartos oscilavam em torno de R$250.000,00, enquanto os de três quartos custavam em média R$350.000,00. Porém, é importante ressaltar que o aumento nos preços desses imóveis se dá de forma extremamente rápida, vide a valorização da área em questão e em poucos meses, até mesmo durante o período das obras, os preços podiam chegar a R$400.000,00 e R$600.000,00, respec vamente. (14) Os preços dos apartamentos variam segundo o pres gio da rua onde se localizam. Apartamentos adquiridos na planta têm um imediato aumento de seu valor logo na entrega das chaves ou mesmo no período das obras, caracterizando um inves mento financeiro pra camente sem riscos. (15) O estatuto teórico da “classe média” não é contemplado pela teoria marxista, sendo estudada principalmente pela sociologia anglo-saxônica (Stuart Mills, Giddens, etc.). A denominação de “White collars” é a que mais se popularizou para caracterizá-la (Giddens, 1975). 436 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 Práticas territoriais da classe média urbana (16) Mais ainda: “a força da tendência à separação de vizinhança é inegável em especial nas sociedades capitalistas... a maior segurança de emprego, caracterís ca do trabalho white-collar, geralmente leva a uma disponibilidade maior de emprés mos para habitação e hipotecas”(Giddens, 1975, p. 225). Referências BECKER, H. (2008). Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro, Zahar. BOURDIEU, P. (1980). Le sens pra que. Paris, Minuit. FERRY, L. (2005). Le sens du beau: aux origines de la culture contemporaine. Paris, Librairie Générale Française. GIDDENS, A. (1975). A estrutura de classes das sociedades avançadas. Rio de Janeiro, Zahar. GOFFMAN, E. (1989). A representação do eu na vida co diana. Petrópolis, Vozes. JACOBS, J. (2003). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Mar ns Fontes. JOSEPH, I. (2007). L´athlète moral et l´enqueteur modeste. Paris, Econômica. LÉVI-STRAUSS, C. 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Texto recebido em 15/jan/2011 Texto aprovado em 9/maio/2011 438 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 419-438, jul/dez 2011 De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana From Simmel to everyday life in post-urban metropolis Silke Kapp Resumo O presente artigo discute o ensaio de Georg Simmel, “As grandes cidades e a vida do espírito” com ênfase na contraposição entre metrópole e cidade pequena, sociedade capitalista e précapitalista. Inicialmente, delinea-se a perspectiva social e espacial de Simmel: a de um intelectual burguês em Berlim por volta de 1900. A segunda parte analisa a relação entre os fenômenos psíquicos evidenciados por Simmel e o contexto mais amplo em que ele os insere, retomando elementos da Filosofia do Dinheiro e mostrando que a metrópole a que Simmel se refere equivale ao que Lefebvre chamará de “espaço abstrato”. A parte final procura compreender o que resulta da dissolução dessa metrópole ou de seu espraiamento ao espaço em geral. Abstract This paper discusses Georg Simmel’s essay “The Metropolis and Mental Life” focusing on the opposition between metropolis and small town, pre-capitalist and capitalist society. First, it outlines Simmel’s social and spatial perspective as a bourgeois intellectual living in Berlin around 1900. The second part analyses the relationship between the mental phenomena pointed out by Simmel and the broader context in which he situates them, exploring elements of his Philosophy of Money and showing that the metropolis that Simmel has in mind is equivalent to Lefebvre’s later concept of “abstract space”. The paper concludes with an attempt to understand what results from the dissolution of such a metropolis or from its spread into space in general. Palavras-chave: Simmel; indivíduo; espaço abstrato; cultura urbana; cotidiano. Keywords: Simmel; individual; abstract space; urban culture; everyday life. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 Silke Kapp A cidade da vida de Simmel admiração –, Berlim é um caldeirão de experimentações urbanas pouco resistente à perda de tradições e à modernização acelerada, que O ensaio do sociólogo alemão Georg Simmel se expressa, por exemplo, na massiva demoli- “Die Großstädte und das Geistesleben” – lite- ção das edificações mais antigas. E à diferença ralmente, “As grandes cidades e a vida do espí- de Londres ou Paris, que em meados do século rito” – foi concebido no mesmo ambiente das já eram metrópoles, o crescimento de Berlim lembranças de Walter Benjamin em Infância em coincide justamente com o período vivido por Berlim por Volta de 1900: a região berlinense Simmel: primeiro ela se transforma em “gran- de Westende-Charlottenburg. A leitura do texto de cidade” (Großstadt), depois, em metrópole de Benjamin evoca a atmosfera quase pacata (Metropole). Esse último atributo – o metro- de uma vizinhança de famílias abastadas, onde politano – cabe a “uma cidade que fornece ao dificilmente se manifestam o tumulto de outros mundo inteiro a matéria do seu trabalho e que contextos e a pobreza de outros habitantes o conforma em todas as formas essenciais que urbanos (Benjamin, 1987, p. 92). O texto de aparecem em algum lugar do mundo da cultura Simmel, pelo contrário, interpreta essa cidade contemporâneo” (Simmel, 1990, pp. 170-171),2 como um ambiente avassalador, que exacerba isto é, a uma cidade cosmopolita. a “vida nervosa” com o bombardeamento in- As novidades berlinenses abrangem da cessante de estímulos (Simmel, 1995, p. 116). produção artística e intelectual legitimada A diferença decorre – ao menos em parte – do pelas instituições burguesas a grupos margi- fato de Benjamin não ter presenciado as trans- nais e subculturas que ali, na grande cidade, formações de Berlim na segunda metade do encontram pela primeira vez quantidade sufi- século XIX, decisivas para o pensamento de ciente de adeptos para se transformarem em Simmel. fenômenos qualitativamente novos (Bab, 1904; Entre 1858, ano de nascimento deste úl- Fischer, 1975). A Berliner Moderne (modernida- timo, e 1903, ano de publicação do dito ensaio, de berlinense) é uma inovação literária que faz Berlim se transforma de capital da Prússia, com de fábricas, moradias de aluguel, trabalhadores 400 mil habitantes, muita pobreza e alguma e prostitutas cenários e protagonistas de suas mecanização, em capital política, econômica e obras. Ao mesmo tempo, a cidade dá origem cultural do império alemão, com três milhões a contraposições ou compensações do “caos” de habitantes, industrialização, comércio e ex- urbano: movimentos em prol da cidade jardim posições mundiais, uma linha de metrô recém- ou do nudismo, a Naturheilkunde (doutrina de -inaugurada, iluminação pública, bondes elé- cura pela natureza, inspirada em Jean-Jaques tricos e automóveis, museus e cinemas, jornais Rousseau e Paracelso), o Wandervogel (pássaro e revistas ilustradas, lojas de departamento e migrante ou pássaro caminhante, uma associa- cafés, e um milhão de Mietskasernen, isto é, ção de jovens, em sua maioria de origem bur- precárias moradias de aluguel de um ou dois guesa, ancorada nos ideais do Romantismo e, cômodos.1 À diferença de Viena, Munique ou ao mesmo tempo, uma espécie de precursora o Roma – cidade pela qual Simmel tem enorme movimento hippie). 440 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana Figura 1 – Paul Hoeniger, Spittelmarkt (1912) Fonte: http://de.wikipedia.org/wiki/Geschichte_Berlins (domínio público) A conturbada cidade de Berlim da virada feminista e a miséria habitacional, até as do século se torna também objeto de um dos “existências marginais”, como é o caso de mais significativos projetos de pesquisa urbana: Berlins drittes Geschlecht (o terceiro gênero trata-se dos chamados Großstadt-Dokumente de Berlim) de Magnus Hirschfeld, Uneheliche organizados pelo escritor Hans Ostwald, com 50 Mütter (mães solteiras) de Max Marcuse ou volumes e 40 autores participantes. Os volumes Gefährdete und verwahrloste Jugend (juventude são publicados entre 1904 e 1908 em fascículos vulnerável e negligenciada) de Alfred Lasson. relativamente baratos, de grande tiragem e, ao Esse imenso projeto é, de fato, um “precursor contrário do ensaio de Simmel, têm enorme esquecido da Escola de Chicago” (Jazbinsek, repercussão entre os contemporâneos. Seus Joerges e Thies, 2001). Vários de seus autores temas abrangem os mais variados aspectos da o citam, e Louis Wirth (1925) lista a relação vida na metrópole, desde a polícia, os bancos, completa dos volumes e comenta cada um a justiça, funcionalismo público, o movimento deles no clássico The City. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 441 Silke Kapp Apesar de Simmel ter tido relações pes- atribui à nova experiência urbana para esse soais com pelo menos um dos colaboradores estrato social estão sempre tensionadas e dos Großstadt-Dokumente, o seu aluno Julius ameaçadas. Como tentarei argumentar em se- Bab, trata-se de uma temática que o sociólo- guida, tais vantagens equivalem à potencializa- go rejeita. Não apenas lhe é estranha a pes- ção do ideal cosmopolita da burguesia cultural, quisa social empírica da qual, com todas as ao passo que a ameaça equivale à dissolução eventuais deficiências teórico-metodológicas, desse mesmo grupo na sociedade de massa. os Dokumente decorrem, como também ele evita o convívio com a cidade ali representada (Jazbinsek, Joerges e Thies, 2001). Simmel sente aversão à pobreza, aos bairros proletários, às já citadas Mietskasernen. Em Soziologie der Distanciamento mental e distanciamento espacial Sinne (Sociologia dos sentidos), de 1907, ele escreve que “a aproximação entre intelectuais Como já mencionado no ínicio, o dito ensaio e trabalhadores [...] fracassa simplesmente de Simmel parte de uma elucidação da “vida pela insuperabilidade da percepção olfativa” nervosa” do habitante da grande cidade: mul- (Simmel, 1993, p. 290). Aversão semelhante tiplicidade e variedade de estímulos (hoje diría- vale para a cultura urbana do entretenimento mos “informações”) são tão maiores do que a de massa e sua respectiva indústria, repletas capacidade de apreensão e diferenciação do in- de exageros e superficialidades apreciados divíduo, que esse se “atomizaria” caso tentas- especialmente pelos novos ricos e por assala- se reagir plenamente a cada um deles. Por isso, riados com algum poder aquisitivo, isto é, por ele desenvolve um “caráter intelectualista”: o um público ao qual falta capital cultural e gos- “orgão psíquico” menos frágil ou “as camadas to “legítimo”, no sentido que Bourdieu (2007) mais conscientes e mais superficiais da alma” atribui a esses termos. (que a tradição filosófica chama de entendi- Simmel, portanto, escreve o ensaio sobre mento) lhe servem de escudo para proteger “As grandes cidades e a vida do espírito” na as “camadas mais inconscientes da alma” e, perspectiva de um intelectual que vivenciou ao mesmo tempo, anular sua ação no cotidia- diretamente o choque da transformação de no (Simmel, 1995). Na relação com o mundo à uma cidade tradicional em metrópole moderna sua volta, essa racionalização desemboca na e que, pessoalmente, rejeita a maioria de suas atitude blasé de quem já não se impressiona consequências para a vida cotidiana, embora com quase nada e é capaz de se orientar por também seja sensível às possibilidades que ela esquemas abstratos. Na relação com os outros oferece para alguém em posição social relati- indivíduos, desemboca na reserva que leva a vamente privilegiada. Quando Simmel se refere ignorar pessoas fisicamente próximas – como a “indivíduos” trata-se sobretudo de membros os vizinhos – e estabelecer relações puramente da burguesia cultural (Bildungs-bürgertum) ou formais, nas quais afetos e desafetos não têm da burguesia industrial. As vantagens que ele lugar. 442 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana Observações em vários aspectos seme- domésticos (synoikos). Na grande cidade, esse lhantes às de Simmel comparecem em A Situa- caráter constitutivo do grupo doméstico de- ção da Classe Trabalhadora na Inglaterra, es- saparece: “o ser humano se torna ser urbano crito por Engels entre 1844 e 1845, que inclui sem realmente fazer a cidade em que vive e um capítulo intitulado “As grandes cidades”. mora” (Behrens, 2010, s. p.). A grande cidade, Engels não apenas descreve com admiração a pelo contrário, é produzida por “uma organiza- grandiosidade e o vigor de uma cidade como ção monstruosa de coisas e poderes” (Simmel, Londres, como também a repulsa que causa 1995) diante da qual o indivíduo é impotente. o comportamento da multidão nas ruas. Ele O contraste fica mais evidente quando observa que “centenas de milhares de pessoas Simmel descreve “o primeiro estágio de uma de todas as classes e estamentos [...] passam formação social”: “um círculo relativamen- umas pelas outras como se não tivessem nada te pequeno, com um forte fechamento contra em comum” e “sem que ninguém considere círculos vizinhos, estrangeiros ou de alguma os outros dignos de um olhar sequer”; preva- maneira antagônicos, e uma estreita coesão lecem “a indiferença brutal”, “o egoísmo tor- interna, que permite a cada membro individual pe”, “o isolamento insensível de cada um nos apenas um espaço muito pequeno para o de- seus interesses privados”; a humanidade se senvolvimento de qualidades peculiares e dissolve em “mônadas” ou “átomos” (Engels, movimentos livres, autônomos”. Simmel argu- 1972, p. 257). Engels também constata que es- menta que todos os agrupamentos passam por ses são os “princípios fundamentais da nossa esse estágio, incluindo as religiões e os estados sociedade atual”, mas que nunca encontram nacionais, as guildas e os partidos políticos, e, expressão tão direta e sem pudor como nas finalmente, a própria cidade. grande cidades. O que torna possível a miséria urbana – tema central desse texto – é justamente a frieza. Do ponto de vista da sociologia urbana, o aspecto verdadeiramente interessante dessas descrições não está nos fenômenos da vida psíquica em si mesmos, mas no contexto mais amplo em que eles se inserem e nos dilemas que suscitam. A interpretação de Simmel para A vida em cidades pequenas, na Antiguidade como na Idade Média, impunha ao indivíduo singular barreiras de movimento e de relações em direção ao exterior e barreiras de autossuficiência e de diferenciação no interior entre as quais o ser humano moderno não conseguiria respirar. Ainda hoje o habitante da grande cidade sente um constrangimento dessa espécie quando está na cidade pequena. a vida na grande cidade ou na metrópole se faz por contraste com o campo, a pequena cidade À medida que um agrupamento cresce, ou as cidades de outros tempos. A diferença essas barreiras se desfazem paulatinamente. não está somente nos números, mas na própria Assim, a metrópole, fenômeno da formação lógica de coesão. Como observa Behrens, a ca- social moderna por excelência, tem pouca coe- sa (oikos) e suas regras (nomos) formam a base são interna e limites indefinidos, abrindo-se a da oikonomia da cidade pequena ou mais anti- infinitas conexões com o espaço exterior. O in- ga, que se constitui como conjunto de grupos divíduo pode habitar fisicamente a cidade – ou Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 443 Silke Kapp uma pequena porção dela – e, ao mesmo tem- torna-se evidente que seu fundamento, para po, estar presente numa geografia que em mui- Simmel, é a objetivação ou coisificação das re- to a ultrapassa. Isso não apenas pela facilidade lações interpessoais pela economia. “O ponto de viajar, mas sobretudo porque, dependendo de partida de Simmel não é a cidade, mas o da posição social que ocupa, as consequên- dinheiro, e sua perspectiva não está focada na cias de suas ações podem alcançar um espaço sociedade urbana, mas na moderna sociedade muito mais vasto do que aquele que percorre capitalista” (Schöller-Schwedes, 2008, p. 654). com o próprio corpo. Na Filosofia do Dinheiro, a A ampliação do raio de ação de cada indivíduo obra principal de Simmel, essa nova geografia corresponde, também, à ampliação geográfi- do indivíduo comparece com mais ênfase: ca das relações econômicas. O “interesse pelo remoto” não provém simplesmente de uma As relações do homem moderno com seu ambiente [Umgebung] se desenvolvem geralmente de modo que ele se afasta de seus círculos mais próximos e se aproxima dos mais afastados. O crescente afrouxamento das relações familiares, o sentimento de insuportável constrangimento pelo compromisso com os círculos mais próximos [...], a crescente ênfase na individualidade, que se destaca justamente do contexto mais imediato – todo esse distanciamento anda de mãos dadas com o estabelecimento de relações com o mais distante, com o interesse pelo remoto, com a comunidade de pensamento, com círculos cujos laços substituem toda proximidade espacial. (Simmel, 2001, p. 541) união entre “grandes espíritos”, mas é característica do colonialismo e do mercado mundial. Lido dessa forma, o contraste entre a metrópole e a cidade pequena ou o campo, tal como comparece no ensaio de Simmel, é um contraste entre relações socioespaciais capitalistas e pré-capitalistas. É a socialização mediada pelo capital que, por volta de 1900, caracteriza as metrópoles, mas ainda não domina o campo ou as cidades pequenas da mesma maneira. Que Simmel se concentre no dinheiro e não nas relações de produção criadas por seu emprego como capital, apesar de ter sido um dos poucos intelectuais de sua época e seu meio a ler Marx, se deve, por um lado, à sua posição política en- Schöller-Schwedes (2008) chama a aten- tão mais próxima da social-democracia, e, por ção para o fato de que, no âmbito da sociologia outro, ao seu interesse maior pelas chamadas urbana, a recepção da obra de Simmel se con- “história da cultura” e “crítica da cultura” do centrou no ensaio sobre a vida mental nas me- que pela economia política (Waizbort, 2000, pp. trópoles, sem dar a devida atenção à Filosofia 157 e 184). O conceito de “cultura” não figura do Dinheiro, embora o próprio Simmel remeta aí como mera discussão da cultura erudita, mas a ela numa nota final. No entanto, quando se como “o campo de batalha no qual se tenta ex- interpretam temas como o distanciamento, a plicar o [...] momento histórico” (ibid., p. 338) reserva ou a atitude blasé apenas a partir des- com pretensão de abrangência para além da se ensaio, surge facilmente a impressão de que economia política e de sua crítica. sejam condicionados pelo simples dado físico Castells (2000) questiona a ideia (e a da densidade demográfica. Já quando se anali- ideologia) da “cultura urbana” da qual se de- sam esses temas à luz da Filosofia do Dinheiro, riva a sociologia urbana e seu principal objeto, 444 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana a chamada “sociedade urbana”. Tal questiona- de outro modo, se todas as relações se regem mento visa principalmente à cadeia causal que pela ordem abstrata do capital, a ameaça de esse ideário tem por pressuposto, isto é, que nivelamento e massificação está em toda parte. um certo “quadro ambiental” ou uma certa Existem, então, fundamentalmente, duas “forma ecológica” produzem uma nova moda- possibilidades para o indivíduo. Quando me- lidade de indivíduos, de sociedade, de cultura, lhor provido de capital econômico ou cultural, de civilização: a sociedade contemporânea pas- poderá dar origem a ações de longo alcance sa a ser “explicada” como um fenômeno pseu- e, paralelamente, organizar sua vida privada donatural. O “mito da cultura urbana” é, na conforme lhe convém. Eventualmente, esse opinião de Castells, uma ideologia que deixa indivíduo tem influência política pessoal, im- em segundo plano ou ignora inteiramente a es- pulsiona o comércio interior e exterior, obtém trutura produtiva que subjaz a essa sociedade. informações amplas, tem a oportunidade de Para Castells, Simmel veria a formação de uma se comparar com seus pares no mundo intei- economia de mercado e o desenvolvimento das ro. A especialização decorrente da divisão do grandes organizações burocráticas como con- trabalho resulta, para esse indivíduo, não na sequencias do processo psicossocial originado simples alienação e na repetição infinita dos pela aglomeração demográfica (ibid., p. 128). mesmos gestos simplórios numa fábrica ou Penso que Simmel não raciocina nessa forma num escritório, mas na dedicação a um tema causal. Mas Castells tem razão em apontar o ou setor específico. Nesse contexto, importam quanto o simples pressuposto de uma contra- a vida privada e a “vida mundial”, enquanto a posição urbano-rural, mais do que esclarecer, vida da vizinhança, a atuação na própria rua, torna nebulosas as relações sociais que aí se no próprio bairro ou, enfim, numa produção do tenta abarcar. Se Simmel é o primeiro a falar espaço local ou microlocal, é quase nula. Essa em “estilo de vida” (em A Filosofia do Dinhei- produção resulta quase exclusivamente de de- ro), é fato que ele “estiliza” o urbano, tanto terminações ou esquemas abstratos. quanto o rural ou tradicional. E é fato também Se, por outro lado, o indivíduo não dis- que essa estilização persiste todas as vezes põe de capital econômico ou cultural, suas em que o contraponto rural-urbano é repetido possibilidades de ação se restringem, no mais inadvertidamente. das vezes, ao espaço privado. Assim como um O dilema que não apenas a cidade, mas intelectual burguês, o morador pobre de uma toda a sociedade moderna põe para o indiví- Mietskaserne na Berlim de 1900 tem poucas duo está no fato de abrir infinitas possibilida- possibilidades de agir sobre o espaço de sua des para o desenvolvimento singular e, ao mes- vizinhança, pois esse é determinado supralo- mo tempo, dificultar imensamente a percepção calmente. Mas, ao contrário do intelectual, sua dessa singularidade, seja no espaço mais pró- participação na “cultura mundial” também é ximo, seja no mais distante. Se todos os outros sempre heterônoma. Ele participa do cosmopo- indivíduos assumem a mesma atitude blasé e a litismo da metrópole apenas como admirador e, mesma reserva, não resta quem possa reconhe- eventualmente, quando sua situação financeira cer o valor da individualidade alheia. Ou, dito não é inteiramente precária, como consumidor. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 445 Silke Kapp A investigação que Kracauer realiza em Berlim de planejamento, ou então se restringe à esfera na década de 1920 a respeito dos Angestellten privada e se comporta no espaço público ape- (empregados ou funcionários que trabalham nas como consumidor ou “usuário”. Lido desse em lojas, escritórios, etc.) evidencia como esse modo, Simmel já aborda o que Lefebvre cha- estrato se esforça em participar dos hábitos da mará mais tarde de “espaço abstrato” e que burguesia e se submete inteiramente a regras gera usuários que “não conseguem reconhecer dadas de antemão. a si mesmos” (Lefebvre, 1991, p. 93) nesse espaço, mas tampouco conseguem confrontá-lo O vício marcante na Alemanha burguesa de se destacar da multidão por alguma distinção, mesmo que seja apenas imaginária, dificulta a coesão entre os empregados mesmos. Eles dependem uns dos outros e querem se distinguir uns dos outros. (Kracauer, 1971, p. 83) criticamente porque o naturalizam. O esfacelamento da cidade Segundo o contraste que Simmel estabelece Grande parte dessa população urbana entre a grande cidade e o resto do território não identifica a si mesma como classe domi- (campo, cidade pequena), subsistem, lado a nada e, por isso, tem ainda menos força política lado, uma produção abstrata do espaço que do que o operariado. A ameaça que assombra a avança contiuamente para além de seus limi- burguesia cultural nesse contexto é sua queda tes e uma produção mais antiga, que tenta no estado heterônomo da “massa”. O esforço manter suas delimitações e sua autonomia in- que ela pode fazer contra isso é, justamente, terna (que, no caso, é coletiva, não individual). o desenvolvimento da personalidade ou da in- Não existe equilíbrio possível entre essas duas dividualidade pelo reconhecimento no círculo formas, isto é, entre cidade e campo ou, con- geograficamente muito amplo de seus pares.3 siderando a crítica de Castells, entre produção Tudo isso significa, em síntese, que o que capitalista do espaço e um território ainda não Simmel discute como um distanciamento men- inteiramente determinado por ela. O contraste tal em relação ao espaço (social e público) mais tende a desaparecer, assim como cada um de próximo vale tanto para os cidadãos melhor seus termos. De fato, Lefebvre constata esse posicionados (que podem desenvolver proxi- desaparecimento. midade mental com o que está espacialmente distante e engendrar ações de longo alcance geográfico), quanto para a massa de operários e empregados (que não tem esse alcance senão como consumidora). Ele implica, concretamente, a alienação da produção do espaço cotidiano da cidade. Ou o indivíduo se engaja nas esferas que geram os esquemas determinantes dessa produção, tais como os orgão públicos 446 Capitalismo e neocapitalismo produziram espaço abstrato, que inclui o “mundo das mercadorias”, sua “lógica” e suas estratégias mundiais, bem como o poder do dinheiro e o do estado político. Esse espaço é fundado na vasta rede de bancos, centros de negócios e grandes entidades produtivas, assim como em estradas, aeroportos e redes de informação. Dentro desse espaço, a cidade – outrora a estufa Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana da acumulação, fonte da riqueza e centro do espaço histórico – se desintegrou. (Ibid., p. 53) Metropolitana de Belo Horizonte. Uma pri- O esgarçamento total dos limites da me- da maioria dessa população” (ibid., p. 17), ou trópole que Simmel ainda percebe como enti- seja, trata-se de pessoas que experimentaram dade relativamente diferenciada, torna-se mais a lógica da grande cidade, seus múltiplos es- evidente nas atuais regiões metropolitanas em tímulos e seus mecanismos de alienação e todo o mundo. Elas se tornaram estruturas que massificação, e que não retornam às atividades afetam e determinam todo o território e todos rurais como se nunca tivessem saído do cam- os processos sociais. Seus fenômenos incluem po. A vida cotidiana dessa população não é um as conurbações, a suburbanização e a periferi- simples retorno a um estágio rural anterior. Na zação, mas, o que me parece ainda mais sig- maioria das famílias, há um ou mais membros nificativo, incluem também uma fusão entre com ocupações tipicamente urbanas (estudo áreas urbanas e áreas tradicionalmente rurais e ou trabalho), agregando renda e viabilizando entre atividades urbanas e atividades tradicio- sua permanência nos assentamentos. Uma se- nalmente rurais. Na medida em que isso torna gunda constatação importante é que a opção a distinção urbano-rural desprovida de senti- de retorno aos ofícios rurais teve, a julgar pelos do, caberia a noção de uma metrópole “pós- depoimentos dos próprios assentados, moti- -urbana”.4 vações diretamente relacionadas ao desejo de meira constatação importante é que o “vai-e-vem rural-urbano-rural [...] marcou o caminho Não é nova a argumentação de que o autonomia, tanto no trabalho e no controle do êxodo rural massivo e a ampliação da agro-in- tempo quanto na produção do espaço cotidia- dústria vêm gerando novas articulações entre no. Além da evidente possibilidade de “traba- o rural e urbano, que impedem a classificação lhar por contra própria”, são razões para a mi- de determinados municípios em uma ou outra gração: “correr do aluguel”, “cuidar dos filhos categoria e dá origem à categoria do rurubano da gente”, “ter uma vida mais lenta” ou deixar (Veiga, 2001; Graziano da Silva, 1999). Cabe, de se submeter a uma ordem abstrata; “se fô no entanto, perceber também o reverso dessa prás pessoa me dá um apartamento desses de situação. Além da extensão da lógica econô- luxo na cidade, Deus que me perdoa, eu não mica de que, nas palavras de Lefebvre, a cida- quero não” (ibid., pp. 18-19). de foi “estufa”, há possibilidades de fusão de Nesse tipo de situação, parece surgir modos de vida que partem dos indivíduos. Um uma modalidade de cotidiano que ultrapassa exemplo concreto nesse sentido permite algu- a submissão aos “mecanismos sociotécnicos” mas inferências sobre como a “rurubanidade” (no sentido de Simmel) ou ao “espaço abstra- ou “pós-urbanidade” pode incidir na produ- to” (no sentido de Lefebvre), fazendo mais jus ção do espaço cotidiano nesse caso. Mazzetto ao fato de que autonomia no espaço cotidiano (2008) realizou uma pesquisa nessa direção em é um elemento constitutivo de sujeitos politica- assentamentos da reforma agrária na Região mente autônomos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 447 Silke Kapp Enquanto a vida cotidiana permanecer subjugada ao espaço abstrato, com seus constrangimentos muito concretos, enquanto as únicas melhorias forem melhorias técnicas de detalhes (por exemplo, a frequência e a velocidade do transporte ou amenidades relativamente melhores), enquanto, em suma, a única conexão entre espaços de trabalho, espaços de lazer e espaços de vida for fornecida por agenciamentos do poder político e pelos seus mecanismos de controle – enquanto isso, o projeto de “mudar a vida” continua sendo não mais do que um grito de torcida político a ser acatado ou abandonado conforme o humor do momento. (Lefebvre, 1991, pp. 59-60) inteiramente abstrato do subúrbio abastado seria o padrão pós-urbano por excelência, contraposto a quaisquer imagens idealizadas da cidade europeia pré-industrial. Por outro lado, também se pode imaginar que pós-urbana seria uma situação em que o contraste entre engajamento ou não engajamento em espaços geograficamente próximos, a constituição de grupos locais com certa coesão interna e força política, deixa de ser equivalente ao contraste entre campo e cidade, pré-moderno e moderno, tal como Simmel ainda o vê, e passa a ser um contraste entre grupos populacionais no interior do espaço urbano ou, de modo mais abrangente, do espaço rururba- Como nota o já citado Schöller-Schwedes no. Assim como os assentamentos agrários, os (2008), a sociologia urbana sempre operou espaços autoproduzidos (vilas, favelas, slums) predominantemente com referência a uma vi- são lugares em que relações de vizinhança zinhança idealizada, cujo caráter compulsório (amistosas ou hostis) continuam sendo decisi- é pouco tematizado. A abordagem de Simmel vas e o potencial de uma identificação com in- contraria essa ideia de que a solução para a mi- teresses coletivos espacialmente definidos sub- séria urbana estaria nas relações de vizinhança. siste. Restaria então perguntar se a “proximi- Talvez sua perspectiva esteja mais próxima de dade mental do espacialmente próximo” exclui um Estado de bem-estar social, tal como de fa- necessariamente a proximidade mental com o to predominou nas cidades de “primeiro mun- espacialmente distante, como Simmel supõe. do” durante algum tempo, tornando os indiví- Os movimentos sociais das últimas décadas – duos muito independentes uns dos outros, mas incluindo o MST que deu origem aos supracita- tanto mais dependentes dos “agenciamentos dos assentamentos, bem como os movimentos do poder político”. Nesse sentido, o espaço pela reforma urbana – indicam o contrário. Silke Kapp Arquiteta e doutora em filosofia. Professora adjunta da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Minas Gerais, Brasil. [email protected] 448 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 De Simmel ao cotidiano na metrópole pós-urbana Notas (1) É inteiramente distorcida, nesse sen do, a narra va de Theodor Lessing (1914), aluno de Simmel e o primeiro a tentar relacionar sua teoria com sua própria experiência de vida na grande cidade. Lessing supõe, por exemplo, que o local de nascimento de Simmel, esquina de Leipzigerstraße e Friedrichstraße, já seria, em 1858, um conturbado e barulhento ambiente urbano, quando, na verdade, tratava-se de um local que pareceria bastante pacato aos nossos olhos (Jazbinsek, Joerges e Thies, 2001). (2) A citação provém de um texto que Simmel escreve por ocasião da Exposição Industrial de Berlim, em 1896. U lizo aqui a tradução de Waizbort (2000, p. 345). (3) Entra aqui também a posição das vanguardas ar s cas que, como bem nota Waizbort (2000), cons tuem dissidências da alta burguesia, opondo-se aos seus valores e, ao mesmo tempo, dependendo se suas estruturas. Essa contradição – que pode ser resumida na contradição entre um ideário an capitalista e a impossibilidade de existência sem o capitalismo – desemboca na concentração no aperfeiçoamento esté co da personalidade. (4) Teaford (2006) aborda a suburbanização com o termo “pós-urbano”, mas, como já dito, esse aspecto não está em foco aqui. Referências BAB, J. (1904). Die Berliner Bohème. Großstadt-Dokumente Band 2. Berlin/Leipzig, Hermann Seemann Nachfolger. BEHRENS, R. (2010). Schöner wohnen nach der Stadt. Drei Reflexionen über das rich ge Leben im falschen. Florida. Hamburg, v. 1, n. 1, s. p. BENJAMIN, W. (1987). Berliner Kindheit um neunzehnhundert. Frankfurt/M., Suhrkamp. BOURDIEU, P. (2007). A Dis nção: crí ca social do julgamento. São Paulo/Porto Alegre, Edusp/Zouk. 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Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 439-450, jul/dez 2011 A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível* The metropolis as a space-a kind of sensory experience Julieta M. de Vasconcelos Leite Resumo A experiência sensível da metrópole nos finais do século XIX constitui, na obra de Georg Simmel, uma via de caracterização da cultura moderna. Ao descrever as diversas facetas da cidade grande, ele funda uma teoria sensível da modernidade, construída a partir da tomada de consciência de uma reconfiguração espacial que corresponde às novas formas de relações sociais e de existência coletiva. Abre-se assim uma perspectiva para os estudos urbanos com base na sensibilidade e na subjetividade. Este artigo propõe revisitar as análises da metrópole de Simmel enquanto proposta de uma abordagem estética das manifestações socioespaciais urbanas, a partir da qual podemos pensar as transformações das metrópoles contemporâneas. Abstract The sensory experience of the metropolis analyzed by Georg Simmel in the late nineteenth century represents a way to characterize the modern culture. Describing the various facets of the city, he founded a sensible theory of modernity, constructed from the awareness of a spatial reconfiguration that corresponds to new forms of social relations and collective existence. This point of view opens a perspective for urban studies based on the sensitivity and subjectivity. The aim of this paper is to revisit Simmel’s analysis of metropolis as a proposition for an aesthetic approach of socio-spatial manifestations in urban space, from which we could envision contemporary metropolis transformations. Palavras-chave: Georg Simmel; metrópole; experiência estética. Keywords: Georg Simmel; metropolis; aesthetical experience. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011 Julieta M. de Vasconcelos Leite Introdução que se desenvolveu nos finais do século XIX em torno de esquemas de organização da experiência vivida. Tal postura filosófica é res- A metropolização da cidade europeia nos finais saltada, por exemplo, no pensamento vitalista do século XIX é um fenômeno que origina uma (Bergson, 1927), que procura integrar dados nova forma de experiência urbana. A imagem sensoriais da percepção baseada na experiên- da cidade, sua fisionomia, muda consideravel- cia direta do corpo, e pela emergência de uma mente sob efeito dos novos ritmos de vida, de corrente de pensamento fundada no princípio circulação e de concentração de pessoas, da de Einfühlung, expressão de origem alemã que diversificação de atividades, materiais e tipos pode ser traduzida por empatia. Esses termos de construções. Esses fatores contribuíram para descrevem o ato de projeção dos sujeitos em a dinamização das faculdades perceptivas dos algo exterior estabelecendo uma espécie de fu- espaços de vida metropolitano e servem de fio são entre eles, que decorre da experiência sen- condutor das análises sociológicas de Georg sorial ou da emoção vividas em comum. Uma Simmel sobre a cidade, mais especificamente fusão que nasce, portanto, do contato com o Berlim, verdadeiro genius loci do pensamento ambiente, um espaço, um objeto. desse autor. Observa-se, assim, uma retomada do O desenvolvimento tecnológico que valor da experiência segundo as perspectivas acompanha a revolução industrial é observado estética e fenomenológica dos finais do século do ponto de vista das transformações sensí- XVIII quando, progressivamente, questões co- veis na experiência espacial da Großstadt, do mo a beleza, por exemplo, passam a ser tra- alemão, a “cidade grande”. Tais mutações na tadas em torno da relação entre o sujeito da vida da sociedade urbana dão origem a um percepção e o objeto percebido, e não mais de novo panorama cultural, o da modernidade. maneira objetiva, independente das capaci- É nesse contexto que Simmel privilegia as for- dades perceptivas dos sujeitos. Desse modo, é mas de expressão individuais e coletivas como possível identificar, na contracorrente do pen- objetos centrais da sua análise, elas permitem- samento mecanicista e cartesiano, as bases que -lhe aprofundar diversos eixos de investigação orientaram o reconhecimento e a valorização que se estendem de modo geral às formas de de uma “ambiência estética” (Maffesoli, 2007) percepção e de interação no espaço e definem metropolitana, fundamentada na partilha da uma abordagem compreensiva da subjetivida- experiência vivida. É sob tal concepção estéti- de social da época. ca, tomada em seu sentido etimológico, daqui- A atenção dada por Simmel aos fenôme- lo que remete à sensibilidade, ao sentimento, nos que se produzem nas “grandes cidades” à afetividade e às emoções, que Georg Simmel contribui com uma corrente de pensamento elabora um olhar sobre a metrópole. voltada para a experiência perceptiva e psí- Sua originalidade reside assim na cons- quica nos estudos sociológicos. É importante trução desse ponto de vista da cidade como contextualizá-la num movimento de revalo- forma de expressão cultural que vai além da vi- rização de sensível no pensamento científico são funcionalista em voga dentre os primeiros 452 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011 A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível estudos ditos “urbanos”1 e que toma em consideração fenômenos socioespaciais em mutação. Segundo Gilbert Durand (1994, p. 37), a análise sociológica de Simmel da vida moderna tem um grande mérito por alimentar um campo de pesquisa até então negligenciado. Este artigo procura trazer à luz questões elaboradas Esse me parece ser o motivo mais profundo pela qual a grande cidade sugere uma tendência à pulsão rumo à existência pessoal a mais individual (...) o desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se pela preponderância daquilo que se pode denominar espírito objetivo sobre o espírito subjetivo. (1989 [1903], p. 238)2 na teoria de Georg Simmel sobre a metrópole como uma contribuição atual e necessá- Desse modo, Simmel demonstra ver na ria à compreensão dos fenômenos urbanos metrópole vários aspectos favoráveis ao desen- contemporâneos. volvimento da razão e do intelecto, mas também um lugar de estímulo a novas formas de sensibilidade. Apesar de colocar claramente a A metrópole como espaço sensível da experiência urbana ideia de intensificação da nervosidade no modo de vida urbano, diante de sua experiência concreta, ele atribui uma causa aos comportamentos sociais na metrópole, atribuindo-lhes uma De modo geral, o estudo de Simmel sobre a cidade moderna consiste mais numa interpretação do que um conjunto de conhecimentos. Ele reconhece que, dada a complexidade do fenômeno urbano, é mais adequado interpretá-lo por fragmentos. O conhecimento desse objeto está essencialmente na construção de uma imagem intelectualmente coerente que se constrói a partir de impressões sensíveis e fragmentárias de seus componentes (físicos sociais e imaginários). Sua teoria inaugura assim uma série de novas e complexas abordagens: o estrangeiro, o dinheiro, a moda, a rua e a flânerie que abrem uma via de integração dos signos justificativa e até mesmo certa importância: Mediante a acumulação de tantos homens, com interesses tão diferenciados, suas relações e atividades engrenam um organismo tão complexo que, sem a mais exata pontualidade nas promessas e rea lizações, o todo se esfacelaria em um caos inextricável. (...) Se o contato exterior constante com incontáveis seres humanos devesse ser respondido com tantas quantas reações interiores – assim como na cidade pequena (...) – então os habitantes da cidade grande estariam completamente atomizados interiormente e cairiam em um estado anímico completamente inimaginável. (Ibid., p. 241) da cultura urbana no discurso sobre a cidade moderna. Simmel não exclui da sua análise o as- A dimensão psicossocial ocupa um lu- pecto funcionalista da metrópole, vista tam- gar considerável na análise da metrópole de bém com sede da economia monetária, centro Simmel. O problema da objetivação e da alie- de trocas e de produção, como rede que ab- nação do indivíduo perpassa vários dos seus sorve as interações sociais, físicas e psíquicas textos sobre a sociabilidade urbana, e é assim e como espaço de atividades operacionais. É colocado: precisamente tal generalização das relações de Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011 453 Julieta M. de Vasconcelos Leite produção que, segundo ele, cria um processo vem a ilustrar um novo fenômeno veiculado de racionalização das relações sociais. No en- nos espaços públicos onde os indivíduos ou tanto, teria esse autor uma visão pessimista do “tipos urbanos” passam a ser um elemento a sujeito na metrópole? Nas suas considerações, mais de apreensão através do olhar. De manei- o “espírito objetivo”, o “caráter blasé” e até ra dinâmica, tal fenômeno associa-se ao desen- mesmo a competição fazem parte de uma “di- volvimento da flânerie, guiada pela fantasia nâmica conflitual” da sociedade onde, apesar e pelo prazer em observar tais personagens e de tudo, é possível identificar certos valores objetos e em percorrer os espaços da cidade (Jonas, 2008, p. 69). moderna. Do ponto de vista físico dos espaços da Desse modo, Simmel apresenta uma lei- metrópole, o desenvolvimento da indústria, o tura da experiência metropolitana guiada pelas aparecimento do automóvel, a utilização do sinalizações e interações que nascem das situa- ferro e do vidro correspondem a uma estética ções e dos contatos constantemente vividos no própria aos novos modos de produção meca- cotidiano dos recintos da cidade onde os sen- nicista e padronizada. No entanto, aos olhos tidos são cada vez mais solicitados. Vale res- de Simmel, os espaços resultantes dessas ino- saltar que, segundo essa análise, não se trata vações tecnológicas não são, de modo algum, simplesmente de uma proliferação de imagens pobres nem em estímulos sensoriais, nem em nas grandes cidades, mas de uma maneira de formas imaginativas. A metrópole é considera- integração dos sujeitos enquanto observado- da como espaço de acentuada sensibilidade, res e como elementos dinâmicos associados em face dos estímulos provenientes da veloci- uns aos outros e ao tecido urbano. Por detrás dade, do movimento, da multiplicação de sím- desses elementos surge um modo de vida e bolos e de códigos socioculturais que solicitam uma maneira de pensar o mundo, mas também incessantemente a atenção dos cidadãos. Des- uma hierarquia social e territorial, uma concep- se modo, ela é tida como lugar específico de ção de espaço e uma atitude diante da cidade emergência de determinadas formas estéticas, moderna. associadas a uma sociabilidade e uma expressão cultural próprias. Desse modo, a acuidade da visão torna-se indispensável à experiência dos espaços metro- Do ponto de vista social, a atomização politanos e ao estabelecimento das relações dos comportamentos e a indiferença que se sociais, onde o olhar permite instaurar uma estabelece diante da massificação de símbolos comunicação baseada em símbolos e códigos nos espaços de vida metropolitanos estimula como a moda. Segundo a análise simmeliana, um convite a exteriorizar os traços de singula- o olho tem um sentido particularmente espe- ridade e de distinção, possível de ser conside- cial em relação aos demais órgãos de percep- rado como um estímulo positivo na metrópole. ção, responsável não somente por uma forma Na análise de Simmel, as roupas e a aparência de experiência espacial sensível, mas também das pessoas agem como códigos de comunica- por um papel sociológico. As situações de face ção, de interação e de interiorização individual, a face e as trocas de olhares decorrentes que que atraem a atenção dos cidadãos. A moda se produzem nos recintos e espaços públicos 454 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011 A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível da metrópole – como o ônibus, o metrô, o café Tal citação corresponde à introdução do e a rua – são consideradas como meios a par- ensaio Roma, uma análise estética, de Georg tir dos quais se estabelece um contato, muitas Simmel (2006 [1898]), onde ele coloca em li- vezes próximo da percepção tátil: “as relações nhas gerais a essência da sua análise dessa entre os homens das grandes cidades, se com- cidade, a partir de um posicionamento episte- paradas às das pequenas cidades, são caracte- mológico que se constrói em torno da forma. A rizadas por uma predominância acentuada da forma urbana é o atributo principal através do atividade da visão sobre aquela da audição” qual ele descreve tanto a espacialidade como a (Simmel, 1981, p. 230). “vida mental” de Roma. Nesse texto, apresen- Simmel destaca, assim, como, no espaço tado como parte de um conjunto de ensaios, da metrópole, as propriedades dos sentidos, e Roma, Florença e Veneza (2006), Simmel faz em particular a possibilidade de se relacionar considerações aos aspectos psicológicos do es- simultaneamente com um grande número de tilo de vida dessas cidades, assim como fez com pessoas dentro de um mesmo processo de per- as metrópoles do século XIX (1989, [1903]). No cepção seria um fato de coesão social. Segun- entanto, a análise estética de Roma e Florença, do ele, a “unidade de impressão” que nasce feita a partir da analogia entre essas cidades e da “comunhão de emoções” permite, pela sua as obras de arte, apresenta um traço particular intimidade, uma união qualitativa entre os indi- na teoria de Simmel, na medida em que seus víduos (ibid., p. 233). Tais considerações reme- textos sobre Veneza e Berlim revelam outros tem assim a uma concepção estética tanto dos aspectos físicos (do espaço urbano) e psíqui- modos de interação social como de experiência cos (dos seus habitantes). Em todos os casos, a urbana, tomando o espaço da metrópole como abordagem estética expressa o “toque” vitalis- matriz relacional da vida coletiva e como sua ta e uma orientação fenomenológica nos seus forma de expressão. textos sobre a cidade. A forma, fio condutor da análise dessas cidades, é interpretada como resultado da or- Da estética da forma urbana à metrópole como modelo cultural ganização de diversos elementos que a compõem, reunidos por justaposição. Tal princípio sugere uma concepção estético-espacial da cidade enquanto unidade orgânica, que permite captar a transitoriedade de seus elementos reunidos ao longo do tempo e em único lugar. O maior encanto da beleza se deve, talvez, ao fato de que ela encarna a forma de elementos que lhe são indiferentes e dissociados, mas adquirirem um valor estético apenas por meio de sua justaposição. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011 Segundo esse princípio, a forma encontra sua “razão” nela mesma: é partir do interior que ela extrai seu dinamismo, emite uma ideia de vitalidade. A forma orgânica reúne e estabelece a conjunção de elementos distintos, ela 455 Julieta M. de Vasconcelos Leite é resultado da sinergia entre seus componen- perspectiva, ela representa o espaço de uma tes, num estado de possível reversibilidade e sociabilidade própria, cujos conteúdos são mais de coexistência entre elementos estáticos e ou menos explícitos, constantemente em movi- dinâmicos. Tal princípio pode ser aplicado às mento e transformação. A cidade grande define cidades contemporâneas, cuja complexidade assim um estilo de vida e uma cultura intima- e fragmentação espacial são cada vez mais mente relacionados ao progresso tecnológico e expressivas. econômico, mas também a uma determinada Dotada de um valor estético, a forma remete à experiência sensível da cidade que se experiência sensorial intensa em estímulos físicos e psicológicos. constrói pela percepção de sua configuração, fruto da reunião de elementos complexos, cuja unidade se encontra na justaposição desses elementos, mas também naquele que os observa. Nesse sentido, a noção de forma permite uma apreensão da realidade social enquanto pro- Contribuição do pensamento simmeliano ao estudo das metrópoles contemporâneas duto de relações que remetem a processos de empatia tal como a ideia de Einfühlung, ou seja, Segundo a análise de Georg Simmel, é possí- de partilha de sensações e emoções que fazem vel tomar a metrópole como um espaço-tipo de parte da experiência vivida. Ao levar em consi- experiências sensoriais associado ao desenvol- deração os fatos e as formas da cidade, pode- vimento tecnológico da época, a uma forma de mos constatar na metrópole de Simmel um tipo sociabilidade e uma expressão cultural especí- de sensibilidade social e cultural per se, cujo ficas. Seus estudos terminam por elaborar uma modelo é a cidade “idealtípica” de Berlim. teoria sensível da modernidade marcada pela Mesmo que a análise estética de Simmel tomada de consciência de uma espacialidade procure definir a "tonalidade emocional” de própria, a da metrópole, e das relações que es- cada cidade, ele não se propõe a apreendê-la sa espacialidade estabelece com as formas de inteiramente em sua totalidade. Isso se deve, existência modernas. Desse modo, acredita-se provavelmente, ao emprego de uma aborda- que essa teoria possa constituir uma via para gem fenomenológica, renunciando conceber o os estudos sobre a sensibilidade e a subjetivi- mundo como uma totalidade, e sim como orga- dade urbanas contemporâneas; mais que isso, nicidade. Simmel prioriza uma elaboração teó- que o pensamento simmeliano merece ser re- rica compreensiva, sob forma de vários ensaios visitado e atualizado enquanto fundamento que transmitem, por fragmentos, a complexi- teórico e metodológico para a compreensão do dade da vida urbana, impossível de ser apre- estado atual das cidades. Afinal, a cidade con- endida por meio de categorias globalizantes. tinua sendo um campo de experiências senso- Portanto, é como modelo cultural específico – e riais, que se redefine segundo os valores cultu- não como lugar de produção e circulação de rais que lhe são próprios. bens e valores típicos da era industrial – que Faz-se necessário, assim, retomar deter- a metrópole é concebida por Simmel. Nessa minados elementos e estruturas presentes nas 456 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011 A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível reflexões sobre a metrópole de Simmel en- Simmel caracteriza um processo de distinção quanto pistas de reflexão sobre a experiência socioespacial bastante difundido nos dias hoje urbana contemporânea. Por exemplo, as cons- e que está associado à formação de identida- truções subjetivas, os imaginários cidadãos e des múltiplas e de diversas comunidades fun- suas modalidades de partilha e de interação dadas dentro de um processo interativo da em- que continuam a fazer parte do repertório de patia. Os símbolos e códigos de comunicação modelos, ou arquétipos, que determinam a re- regem tanto os processos de individualização lação com o outro e com o espaço e somente como os de relação com o outro. Tal fenômeno, são apreendidos a partir de uma perspectiva observado em torno de manifestações estéticas estética (Maffesoli, 1986). Enquanto constru- como a moda, expressa a ambivalência dos de- ção intelectual, esse tipo de sensibilidade é sejos da e na cidade, como o de tentar alcançar particularmente voltado para as manifestações uma autonomia a partir da afirmação da dife- individuais e coletivas e oferece uma compre- rença. Se as considerações de Simmel sobre a ensão do espaço urbano enquanto campo de moda encontram hoje uma atualização, esta se experiências sensoriais. É preciso também le- deve às múltiplas formas de distinção observa- var em consideração uma concepção orgânica das nos espaços urbanos, por meio das quais os dos espaços urbanos, definida pela reunião de lugares, assim como os cidadãos, buscam uma vários componentes, cujo caráter, o Stimmung, possível singularidade, sem necessariamente corresponde a uma atmosfera vivida e sentida. romper com sua dimensão universalizante. É nessa perspectiva, diferente da visão funcio- Essa ambivalência nos territórios urbanos nalista, que os espaços adquirem e transmitem contemporâneos pode ser reinterpretada a par- significados. tir das considerações sobre a organicidade da A abordagem estética de Simmel pode forma urbana. Enquanto categoria ou “molde então servir de ferramenta para a compreen- cognitivo”, ela dá ordem às situações e aos são dos espaços de vida da atualidade, onde particularismos, colocando em relação as mo- os símbolos e códigos se difundem por meio tivações e as maneiras de ser que não são nem da moda, das pichações, das manifestações exclusivamente racionais, nem exclusivamente das tribos urbanas; onde numerosas imagens sensíveis. Ao permitir pensar o constante e o e informações proliferam através dos écrans e inconstante, ela serve como meio de compreen- painéis digitais presentes nos espaços públicos. são do princípio interno de organização dos Tal abordagem dá valor e importância aos estí- espaços urbanos enquanto expressão sensível mulos sensoriais que participam da experiência de uma realidade que se fundamenta na coe- subjetiva da cidade, onde a arte e a arquitetu- xistência e na interação entre elementos de na- ra buscam uma visibilidade cada vez maior e turezas diversas. cujas formas de expressão refletem o humor, os sentimentos e os ritmos da vida cotidiana. Nosso discurso se insere numa visão geral do estado atual da cidade e da socie- Ao levar em consideração a comunicação dade ocidentais, seguindo a lógica simme- simbólica como fator de socialização, isto é, liana, a partir da qual os questionamentos de construção da interação no espaço urbano, sobre a cidade emanam uma necessidade de Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011 457 Julieta M. de Vasconcelos Leite compreensão da sociedade e de sua organi- construção e da partilha de experiência vivi- zação espacial. Retomamos assim alguns dos da. Quase um século mais tarde, esses temas valores que regem uma corrente sensível no ressurgem de maneira atualizada, eles servem pensamento da cidade moderna, tal como a de categorias metodológicas ou como um ti- percepção sensível do espaço, a perspectiva po de ferramenta para analisar e descrever a estética da forma, as práticas de socializa- sensibilidade intelectualmente construída nos ção por meio da comunicação simbólica, da dias de hoje. Julieta M. de Vasconcelos Leite Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Sociologia pela Université Paris Descartes, Sorbonne. Pesquisadora do CeaQ/Sorbonne. [email protected] Notas (*) Este artigo foi elaborado a partir da tese intitulada Mediações tecnológicas na cidade: da experiência do espaço à construção de interações sociais híbridas, apresentada por esta autora em outubro de 2010 para obtenção do grau de doutor em sociologia na Université Paris Descartes, Sorbonne. Este estudo foi desenvolvido com apoio do Alban (Programa de bolsas de alto nível da União Europeia para a América La na, 2006-2009) e da Fundação Capes (20092010). (1) O termo Urbanismo passa a ser empregado entre 1850 e 1870, época das primeiras grandes reformas urbanas empreendidas pelo Barão Haussmann, em Paris, e por Idelfonso Cerdá, em Barcelona. Segundo Françoise Choay (1965), seu texto fundador data de 1867, quando Cerdá publica a “Teoría General de la Urbanización”. É a par r desse período em que se enunciam as pretensões cien ficas de tornar o Urbanismo uma disciplina do conhecimento. (2) As citações presentes no texto foram traduzidas pela autora. 458 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 451-459, jul/dez 2011 A metrópole como espaço-tipo de uma experiência sensível Referências BERGSON, H. (1927). L'Evolu on créatrice [1907]. Paris, Rombaldi. CHOAY, F. (1965). L’Urbanisme, utopies et réalités: une anthologie. Paris, Seuil. DURAND, G. (1994). L’Imaginaire. Essai sur les sciences et la philosophie de l’image. Paris, Ha er. FÜZESSÉRY, S. e SIMAY, P. (org) (2008). Le choc de Métropoles. Simmel, Kracauer, Benjamin. Paris, Eclat. JONAS, S. (2008). “Simmel et Berlin: de la Grande Ville à la Métropole”. In : FÜZESSERY, S. e SIMAY, P. (org). Le choc de Métropoles. Simmel, Kracauer, Benjamin. Paris, Eclat. MAFFESOLI, M. (1986). “Le paradigme esthé que (la sociologie comme art)”. In: WATIER, P. (org.). Georg Simmel, la sociologie et l’expérience du monde moderne. Paris, Méridiens Klincksiek. ______ (2007). Au creux des apparences: pour une éthique de l’esthé que. Paris, La table ronde. SIMMEL, G. (1981). “La différencia on sociale” [1894]. 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O ponto central dessa leitura é a extraordinária intuição de Simmel quanto à relação entre cidade e psiquismo. Considera-se que essa relação permite associar o sentimento de (des) enraizamento (Simmel) à noção freudiana de desamparo. Trabalha-se com a hipótese de que a cidade desempenha uma função psíquica de natureza substitutiva, da qual derivam os modos de subjetivação na cidade. Conclui-se o texto argumentando que a cidade, inclusive em sua materialidade, não é algo apartado do sujeito, mas, antes, um fenômeno marcado pela subjetividade que caracteriza tudo que é humano. The following text presents an interpretation of The Metropolis and Mental Life in light of the theory of psychoanalysis. The central point of this interpretation is the Simmel’s extraordinary intuition regarding the interrelation between city and psychic. The text considers that this relation allows the association of Simmel’s feeling of (un) rooting to the Freudian notion of abandonment. It is assumed that the city works as a psychic function of substitutive nature, from where the subjective ways of the city derive. The conclusion states that the city, even in its material sense, is not apart from the subject, but is rather a phenomenon that is marked by the subjectivity which characterizes everything that is human. Palavras-chave: cidade; (des)enraizamento; psiquismo; subjetividade; desamparo. Keywords: city; (un)rooting; psychism; subjectivity; abandonment. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 Lúcia Leitão Le vieux Paris n´est plus (la forme d´une ville Change plus vite, hélas ! que le coeur d´un mortel) Baudelaire, no poema Le Cygne, parênteses do poeta Introdução A chamada de trabalhos para este número dos Cadernos Metrópole me chegou às mãos no momento mesmo em que acabava de ler Le monde diplomatique, edição 114, cujo tema foi A urbanização do mundo. Em destaque, na primeira parte da edição, a questão da insuficiência da reflexão teórica no que diz respeito às cidades: “Desde o século XIX [escreveram os editores], quando se deu o grande êxodo para as cidades, o pensamento humano não o seguiu: conservou suas raízes e o mesmo qua- (1908-1982), dentre outros. Em um texto-manifesto publicado em 1970 pela Gallimard, Mitscherlich chama a atenção para a dimensão subjetiva da vida urbana e, consequentemente, para os equívocos dos princípios norteadores da arquitetura moderna quando aplicados à cidade. Em tempos contemporâneos, são internacionalmente conhecidos os escritos de Isaac Joseph, François Ascher, Manuel Castells, Marc Augé, Saskia Sassen, Richard Sennett, dentre muitos outros, todos atraídos justamente pela cidade e sua complexidade, inclusive como objeto de investigação teórica. dro de referências”.1 Uma afirmativa surpreen- Com essas referências em mente, sem dente, à primeira vista, se se considera que esquecer a filosofia e a literatura, chamou-me “desde o século XIX” a cidade tem sido objeto a atenção a inquietação presente no jornal pa- privilegiado de estudo nos mais diversos cam- risiense, bem como na chamada de trabalhos pos disciplinares. referida, no que diz respeito à cidade dos ho- No âmbito das ciências sociais, a socio- mens.2 Se o Le monde diplomatique abria sua logia urbana, por exemplo, com expoentes edição perplexo com A era das megalópoles e como Max Weber e Georg Simmel, bem como o despreparo teórico para compreendê-las, a os teóricos que a eles se seguiram reunidos na revista brasileira, não menos inquieta, convi- Escola de Chicago (1920-30), inaugurou um dava a comunidade acadêmica “a voltar o seu modo de pensar a cidade que se mantém vivo olhar para as metrópoles contemporâneas” – ao longo do tempo, como indica, precisamen- à luz de Simmel e de suas ideias seminais – e te, a chamada dos Cadernos Metrópole. Na a refletir sobre elas, ratificando, desse modo, arquitetura, a Bauhaus (1919-1932) ofereceu a percepção de insuficiência teórica que o Le uma proposta concreta para a construção das monde diplomatique assinalara. Foi, portanto, cidades do pós-guerra, refutada, é bem verda- nesse contexto de inquietude intelectual que de, por seus equívocos, hoje evidentes, pelo me dediquei à tarefa de reler Simmel e sua psicanalista alemão Alexander Mitscherlich obra inspiradora. 462 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 A cidade de Simmel, a cidade dos homens Como é próprio de obras seminais, o que se dedicam a compreender a cidade à luz texto que nós, brasileiros, conhecemos princi- da subjetividade – no sentido psicanalítico do palmente como A metrópole e a vida mental termo – que define o humano. Em outras pa- (Velho, 1976), oferece múltiplas possibilida- lavras, não sabemos ainda, suficientemente, des de leitura. Escolhi a noção de desamparo, como acontecem os modos de subjetivação tal como o define a teoria psicanalítica, como nas metrópoles, como indica a proposta de re- chave de leitura para refletir sobre os “modos flexão feita pela revista paulistana. de subjetivação nas metrópoles”, conforme demanda explícita dos Cadernos Metrópole. Essa escolha justifica-se por duas razões, Uma outra razão da escolha dessa minha chave particular de leitura tem origem na própria escrita simmeliana. A metrópole e em especial. A primeira deriva da lacuna exis- a vida mental apresenta uma desconcertan- tente no que diz respeito a pensar a cidade em te preocupação com as questões próprias da sua expressão subjetiva, isto é, como produto subjetividade, oferecendo, desse modo, um e medida da experiência humana. Com efeito, mote preciso para as reflexões aqui apresen- Lefebvre (2010), na edição já mencionada do tadas. Quando digo desconcertante, refiro-me Le monde diplomatique, assinala justamente principalmente ao momento em que o texto esse ponto. veio a público (1903), assim como ao tema ao qual se dedicou o autor, a metrópole, ou a A cidade era para os gregos um instrumento de organização política e militar. Na Idade Média ela se torna um ambiente religioso para, em seguida, aceder ao estatuto de reprodução da força de trabalho, com a chegada da burguesia industrial. Até aqui, apenas os poetas compreenderam a cidade como a morada do homem. (p. 20, tradução livre, destaques meus) cidade (grande), tidas como sinônimos nestas minhas notas breves. No que diz respeito ao momento, é relevante considerar – dada a chave de leitura escolhida – que a psicanálise estava apenas nascendo. A obra basilar da escrita freudiana, A interpretação dos sonhos, havia sido publicada em 1900 e não fora muito bem recebida à época, como indicam os biógrafos de Freud. No que diz respeito, portanto, à dimen- Assim, parece estranho, desconcertante mes- são subjetiva do ambiente construído, talvez mo, que o sociólogo alemão apontasse para o Le monde diplomatique tenha razão quando a relevância da subjetividade, isto é, para a lamenta a insuficiência da reflexão teórica so- repercussão do modo como se organiza o psi- bre a cidade ou, melhor dizendo, quando suge- quismo humano na vida na cidade, num con- re que as lentes de análise empregadas para texto sócio-histórico hostil a essa ideia. compreendê-la mantêm “o mesmo quadro de Quanto ao tema tratado, a cidade gran- referências” utilizado desde “o século XIX”. de, o desconcerto não me parece menor, ou, Com efeito, mais de um século após o surgi- dito de outro modo, a abordagem simmeliana mento da teoria com a qual Sigmund Freud re- não me parece menos surpreendente. Afinal, volucionaria o pensamento ocidental ao longo a cidade, como se sabe, é algo coletivo por do século XX, são poucos, ainda, os autores definição e, aparentemente, não propicia a Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 463 Lúcia Leitão reflexão sobre a subjetividade, cujo objeto Caso essa hipótese se confirme, repito, há é o sujeito em sua singularidade. Nesse sen- que se refletir sobre o modo como edifica- tido, cabe perguntar do que falava Simmel mos a cidade dos homens – e como dela nos quando, pensando a cidade, apontava para as apropriamos. consequências da “preponderância do espírito objetivo em relação ao espírito subjetivo”? Como compreender a ideia de que para viver a cidade é preciso criar um “órgão protetor”? Por que a cidade, que tem funcionado como A cidade de Simmel: estranhamento e desamparo um ímã (Mumford, 1982) para gerações sucessivas de pessoas, em todos os recantos da A cidade de Simmel é a cidade do estranha- terra, seria tão ameaçadora? mento. Não é para menos. Afinal, Georg Como se vê, decorrido mais de um sé- Simmel (1858-1918) vive o momento sócio-his- culo de sua publicação, o texto de Simmel tórico em que o mundo ocidental se organiza ainda não se esgotou, como, aliás, é próprio nas cidades em consequência das transforma- dos clássicos. Questões relevantes quanto à di- ções socioespaciais geradas pela Revolução mensão subjetiva da cidade permanecem pou- Industrial, como se sabe. É esse o tempo em co exploradas. Eis, portanto, a segunda razão que o planeta se torna cidade,3 conforme a ex- para a chave de leitura por mim escolhida para pressão do Le monde diplomatique na edição reler Simmel, de um modo muito particular, na citada. O tempo em que a Europa, por exem- era das megalópoles. plo, em aproximadamente um século, multipli- O ponto central dessa leitura é a intui- ca várias vezes a sua população urbana, como ção, isto é, aquilo que é próprio dos grandes registra Bardet (1990). O tempo, ainda, em pensadores, de Simmel quanto à relação entre que Paris se torna metrópole, no sentido sim- cidade e psiquismo. É essa relação que me pos- meliano do termo, com a anexação dos seus sibilita associar o sentimento de (des)enraiza- arredores à cidade-núcleo, em 1860, durante a mento presente no texto simmeliano à noção intervenção de Haussmann. freudiana de desamparo. Penso que em torno Para Simmel, portanto, a cidade grande, dessa ideia é possível refletir sobre os modos não por acaso quantitativamente indefinida ao de subjetivação na cidade, algo que ainda nos longo do texto, é a expressão da perplexidade, surpreende, mesmo na era das megalópoles. do desconhecido, da velocidade das mudanças Para tanto, trabalho com a hipótese de – das imagens mutantes, do inesperado das que a cidade desempenha uma função psíqui- impressões (2004, p. 62) –, do surpreendente, ca de natureza substitutiva e, como tal, é parte enfim, assinalado ao longo do texto. Imagens importante na constituição da subjetividade. mutantes, impressões inesperadas que fizeram Caso essa hipótese se confirme, poderemos o poeta, igualmente perplexo, anotar que a compreender melhor um dos motivos do des- forma de uma cidade muda mais rápido que o conforto que a cidade tem gerado em muitos, coração de um mortal, de acordo com o poe- Nietzsche à frente, como escreveu Simmel. ma registrado em epígrafe neste texto. 464 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 A cidade de Simmel, a cidade dos homens Nesse contexto, a cidade surge como o do autor, surge como o lugar do desamparo, ambiente do (des)enraizamento, da perda de o equivalente psíquico à ideia de (des)enrai- referências que marcam a experiência huma- zamento, de estranhamento, de perdas, que o na. Um espaço-tempo no qual “a individuali- texto ora em foco traz à tona, ainda que o au- dade [sofre] uma intensa estimulação nervosa tor nele também registre aspectos positivos da resultante da mudança rápida e ininterrupta vida metropolitana. de estímulos externos e internos” (2004, p. Embora não seja possível discutir em 62). São mudanças que afetam o corpo (escala profundidade a noção freudiana de desampa- espacial), que ameaçam os valores locais (cos- ro nestas minhas notas breves, nem o meu ob- mopolitismo) e que põem em risco as relações jetivo aqui – essa é uma tarefa para os teóri- humanas mais caras (afeto). cos da psicanálise –, é preciso indicar ao leitor, Em termos psíquicos, a cidade de mesmo que de maneira sucinta, notadamente Simmel é, pois, um ambiente socioespacial àquele menos familiarizado com a teoria psi- onde o sujeito parece não se reconhecer, onde canalítica, como e por que o desamparo marca o sentimento de origem, de pertencimento, a condição humana a fim de tornar plausíveis se esvai desorganizando o indivíduo, tanto e as ideias ora compartilhadas. em tal medida que “ninguém se sente tão só Em termos freudianos, o desamparo, e abandonado como na multidão da grande circunstância psíquica a partir da qual se es- cidade” (ibid., p. 71). Nesse ambiente de de- trutura a subjetividade, está associado à apar- samparo, cada um vive sua própria experiên- tação da mãe e, consequentemente, à ameaça cia de exílio, essa “fratura incurável entre um quanto à própria sobrevivência vivida pelo be- ser humano e seu lugar natal”, como escreveu bê humano por ocasião do nascimento. Uma Said (2003, p. 46). Um exílio que não se refere experiência de desamparo, conforme anota a um tempo, a exemplo dos quarenta anos do Rocha (1999), ou um estado de desamparo, povo hebreu no Egito em tempos imemoriais, como preferem Laplanche e Pontalis (2007), mas, sim, a um espaço – talvez a uma circuns- decorrente da incapacidade do recém-nascido tância – para sempre perdido. Um exílio do humano de valer-se a si mesmo em relação às qual não há volta. Um espaço para o qual não suas necessidades vitais, a exemplo da fome, é possível o retorno. da sede, etc. Trata-se, pois, num primeiro mo- Para Simmel, esse lugar paradisíaco ha- mento da vida humana, de uma experiência via sido a aldeia, ou a cidade pequena, apre- biológica assinalada pela perda, pela aparta- sentada subliminarmente ao longo do texto ção do espaço uterino onde as condições de como um ambiente acolhedor, como o espaço vida estavam asseguradas. Um estado de pro- das relações afetivas, pautadas pela sensibili- funda carência, portanto, do recém-nascido dade, diz Simmel (2004, p. 62), do reconheci- em relação ao cuidado e à proteção de um mento mútuo – entre produtor e comprador outro ser humano a fim de que a vida lhe seja (ibid., p. 64) – dos valores compartilhados. É preservada. Essa experiência de perda mani- nesse contexto que a cidade, centro da vena- festa-se no “primeiro grito” dado pelo bebê lidade das coisas (ibid., p. 67), nas palavras humano. Um “primeiro grito de desamparo”, Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 465 Lúcia Leitão anota André (2010, p. 38), que anuncia o proteção? Não seria a cidade uma expressão estado de desamparo como marca definitiva de maturidade da civilização? Um modo de da condição humana. sobreviver – e de bem viver – a momentos Para Freud (1926), esse estado de desamparo derivaria do fato de que “comparada ameaçadores da vida, tal como ocorre com o ser humano uma vez adulto? à da maioria dos animais, a vida intrauterina São questões pertinentes, na medida em do homem é relativamente curta e quando é que a experiência de desamparo vai bem além lançado ao mundo [o bebê humano está] me- do biológico – e é precisamente esse ir além nos acabado do que eles” (destaques meus). do biológico que me interessa aqui, uma vez Despreparado, o mundo externo se mostra oferece a chave para a leitura que ora faço da terrivelmente ameaçador a ponto de suscitar o escrita simmeliana. Pereira (1997) anota justa- grito de que fala André, um grito que vai bem mente esse ponto quando apoiado em Jacques além das motivações biológicas também nele Lacan lembra que, manifestas. Freud utiliza a palavra Hilflosigkeit para expressar essa circunstância, biológica num primeiro momento, repito, mas, sobretudo psíquica, no que se refere à constituição do sujeito humano. Zeferino Rocha, ao discutir esse ponto fundamental da teoria freudiana, anota-lhe o sentido preciso: [...] o fundo essencial da questão [do desamparo] não deve ser situado na perspectiva biológica enquanto tal [...], mas a partir do fato que essa situação deixa transparecer uma falta fundamental – cujo sentido subjetivo é o de uma perda ou de uma separação – à qual cuidado algum [ou coisa alguma] pode suprir. (p. 31, destaques meus) A palavra Hilflosigkeit [...é] composta do substantivo Hilfe que quer dizer auxílio, ajuda, proteção, amparo, do sufixo adverbial modal losig , que indica carência, ausência, falta de, e ainda da terminação keit , que forma substantivos do gênero feminino, cujo correspondente em português é a terminação “dade”. A palavra Hilflosigkeit significa, portanto, uma experiência na qual o sujeito humano se encontra sem ajuda – hilflos – sem recursos, sem proteção, sem amparo. Uma situação, portanto, de desamparo. (1999, p. 334) é, um espaço substitutivo por excelência? Teria Seria essa situação de desamparo que lembrar que a palavra metrópole deriva do caracteriza o humano a razão de a cidade se grego métra “matriz, útero, ventre”, metró- mostrar tão ameaçadora? Seria contra esse polis é “cidade mãe”, conforme registra o desamparo inconsciente, arquetípico, que se- Houaiss. Para além de uma definição técnica, ria preciso criar um órgão protetor? Mas não convém acompanhar o testemunho de Sara- seria a cidade justamente um elemento de mago quando, escrevendo sobre a terra onde 466 Seria a cidade, tida e vivida como o ambiente construído, um elemento substitutivo dessa falta fundamental de que fala a psicanálise? Seria ela um sucedâneo do útero,4 isto sido a percepção dessa função psíquica do espaço edificado que levou Bachelard (1978) a anotar que “só mora com intensidade aquele que já soube encolher-se”? Para os que podem considerar essa ideia demasiadamente psicanalítica, convém Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 A cidade de Simmel, a cidade dos homens nasceu, Azinhaga, associa precisamente esses recém-nascido em relação à figura materna, dois espaços fundamentais na vida humana. principalmente, aponta para a onipotência Diz ele: do outro na constituição do sujeito humano, [...] essa pobre e rústica aldeia, com sua fronteira rumorosa de água e de verdes, com suas casas baixas rodeadas pelo cinzento prateado dos olivais [...] foi o berço onde se completou a minha gestação, a bolsa [útero] onde o pequeno marsupial se recolheu para fazer a sua pessoa, em bem e talvez em mal, o que por ela própria, calada, secreta, solitária, poderia ter sido feita. (2006, p. 11, destaques meus) conforme assinalam Laplanche e Pontalis no texto citado. Esse ponto é essencial porque é em decorrência dessa dependência subjetiva em relação a um outro sujeito que a experiência de desamparo deixa de ser circunstancial por ocasião do nascimento, “uma experiência singular de abandono”, como anota André (2010, p. 38), para se mostrar como elemento estruturante do sujeito humano. Em outras palavras, para além do biológico, das necessidades básicas de sobrevivência, o sujeito Sob essa perspectiva, a cidade desem- humano está destinado a se constituir inteira- penharia uma função psíquica de natureza mente dependente de um outro sujeito, uma substitutiva, ainda por melhor investigar. Seria ideia que a filosofia já anunciara, como se esse caráter substitutivo o centro do mal-estar, sabe, ainda que com enquadramento episte- vivenciado por tantos, em relação à cidade? mológico distinto. Construída para dar ao homem segurança e fe- Nesse sentido, diz Freud (1926), “o fator licidade, como queria Aristóteles (apud, Sitte, biológico [que] está na origem das primeiras 1996, p. 2) – à semelhança, precisamente, do situações de perigo [...] cria a necessidade de ventre materno, um espaço “onde estávamos ser amado, que não abandonará jamais o ser em segurança e nos sentíamos tão bem”, co- humano” (apud Rocha, 1999, p. 335). A ex- mo escreveu Freud – teria ela falhado ao tra- periência de desamparo assinala, pois, para o zer à tona o desamparo que nos faz humanos? sujeito humano, sua condição de refém, para Quem sabe, talvez busquemos na cidade mui- sempre, do amor – da atenção, do reconheci- to mais do que ela tem a oferecer. Buscamos mento do outro – sobre o qual se sustentam as segurança e felicidade quando a condição hu- relações humanas. É, portanto, essa circuns- mana implica falta, incompletude, desamparo. tância psíquica que faz do estado de desamparo uma experiência própria da condição humana, repito, e, do outro, um elemento essencial A cidade dos homens: afeto e reconhecimento na construção da subjetividade. Assim, anota Rocha, essa experiência originária de desamparo, em termos estritamente psicanalíticos, transforma-se em “mo- Um outro ponto a destacar na noção de delo de inúmeras outras situações de desam- Hilflosigkeit diz respeito ao fato de que, em paro com as quais necessariamente o homem termos psíquicos, o desamparo inicial do se confronta no decorrer da existência” (ibid., Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 467 Lúcia Leitão p. 336). Uma vez marcado por esse selo (ibid., (ibid.), arriscando, ele próprio, uma resposta p. 335), o sujeito humano vivenciará o desam- à questão formulada quanto à frequente paro, ainda que de modo inconsciente, em nostalgia da vida no campo vivenciada por outras situações existenciais, como um padrão quem habita a cidade. Em outras palavras, a 5 que se repete ad infinitum. É precisamente cidade traria à tona o risco do não reconhe- nesse ponto que a noção de desamparo pode cimento, uma ameaça tão assustadora para o ser útil para melhor entender os modos de sub- psiquismo quanto a não satisfação, para o be- jetivação na cidade. Agora, à dor da perda – de bê humano das suas necessidades biológicas. um ambiente onde as relações são “pautadas Reduzidos a um grão de areia , como pela sensibilidade”, onde “produtor e compra- anotou Simmel (2004, p. 75), a cidade nos dor se conhecem” –, associa-se a necessida- desespera, nos atemoriza. Vale dizer, nos faz de de reconhecimento do outro, circunstância reviver, inconscientemente, mais uma vez, a própria da experiência de desamparo. ameaça de não sobrevivência, desta feita psí- Nesse sentido, talvez menos a cidade quica, presente na situação originária de de- grande em si mesma e mais riscos de natureza samparo. Atordoados por essa dor psíquica, psíquica estejam no centro do sentimento de atribuímos ao campo, aqui sinônimo da aldeia, (des)enraizamento, de perda, de ameaça de de cidade pequena ou de qualquer espaço não reconhecimento, que o texto simmeliano idealizado, o poder de “amenizar o peso da registra. E isso menos pela cidade grande em convivência social”, como anota Caligaris no si do que pela idealização de um espaço-tem- texto citado, um peso contra o qual a antipa- po-circunstância para sempre perdido repre- tia própria de quem vive na cidade grande nos sentado pela vida na aldeia, uma ideia ilusória protege, como escreve Simmel. que encanta ainda, como o canto da sereia, o habitante da era das megalópoles. Nesse sentido, a cidade mostra-se como um fenômeno que vai muito além do que Caligaris (1974) assinala precisamente é perceptível à luz do quadro de referências esse ponto quando chama a atenção para um próprio do século XIX, como anotou o jornal pretenso desejo de vida no campo que parece parisiense. Lançado ao mundo e despreparado atrair a muitos, mas que, na realidade, é um pro- em relação às outras espécies, o ser humano jeto de vida que poucos querem efetivamente vivencia a cidade como uma construção socio- viver –, como, aliás, indica o crescente aumento espacial, sim, mas, também e, quiçá principal- de população nas cidades e não no campo. “Por mente, como uma experiência subjetiva, como que será, pergunta Caligaris, que o campo apa- um modo de habitar o mundo. Talvez por isso rece tão frequentemente como o lugar de uma só os poetas tenham conseguido compreen- verdade perdida para quem se aventurou na ci- dê-la adequadamente como a morada huma- dade?” (ibid., p. 84, destaques meu). na, tida aqui muito mais como uma busca do Talvez porque, em termos psicanalí- que um objeto em sua materialidade. Sob es- ticos, a cidade nos faz viver “o imperativo se modo de ver, a cidade seria uma resposta de se fazer valer”, como afirma Caligaris possível, humana – a coisa humana por exce- 468 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 A cidade de Simmel, a cidade dos homens lência, como escreveu Levi-Strauss em Tristes Sob essa perspectiva, penso que o Trópicos –, ao estado de desamparo de que se “órgão protetor” para viver a cidade seria falou aqui. precisamente a compreensão das funções Talvez seja a não compreensão, ainda, psíquicas que inconscientemente lhe atribuí- das circunstâncias psíquicas presentes na cons- mos. A compreensão, por exemplo, de que o trução e na apropriação da cidade dos homens (des)enraizamento de que fala Simmel, o sen- que nos faz tão inquietos, mesmo na era das timento que a vida urbana explicita, é parte megalópoles. Talvez ainda não tenhamos com- da experiência humana e não uma condição preendido que a função substitutiva que lhe específica da cidade grande. Nesse sentido, a atribuímos é impossível de ser desempenhada. maturidade, pessoal e histórica, nos protege Um espaço de acolhimento não apenas para o à semelhança do que ocorre com o desenvol- corpo e suas necessidades objetivas, mas, so- vimento psíquico que faz do bebê humano bretudo, para a alma (Rykwert, 1997). Talvez inteiramente vulnerável, um adulto capaz de queiramos dela mais do que ela pode dar. Tal- lidar com as diversas situações que o estado vez queiramos dela a segurança e o bem-estar de desamparo o faz viver. que a condição humana não permite obter. É esse o fio condutor por mim persegui- Em outras palavras, se do ponto de vista do a partir da relação entre cidade e psiquismo do “espírito objetivo“ a cidade se constrói pa- extraordinariamente intuída pelo sociólogo ra oferecer o espaço do abrigo às muitas ativi- alemão. “Uma relação eterna, indissolúvel”, dades humanas, para exercer o papel de sede como a ela se referiu Thomas Bernhard (2006), da atividade econômica, dentre tantas outras ao escrever sobre Salzburg. funções, do ponto de vista do “espírito subje- Um segundo ponto a anotar à guisa de tivo”, seria outro o tipo de reclamo humano ao conclusão é que, uma vez tida como válida a qual ela deveria atender. hipótese levantada ao longo do texto, a cida- Por fim, importa chamar a atenção do de, inclusive em sua materialidade, não é algo leitor para dois pontos, em particular. O pri- apartado do sujeito. Não é apenas um invólu- meiro diz respeito ao fato de que a experiên- cro, não é um mero palco para as muitas ativi- cia de desamparo deve ser vista não como dades, tampouco a sua arquitetura é redutível uma fatalidade, mas como um desafio, como à simples construção de equipamentos. Com- anota Rocha na obra já mencionada aqui. preender a cidade como coisa humana impli- Nesse sentido, diz ele, o desamparo é uma ca reconhecê-la também como um fenômeno experiência positiva porque, diferentemente marcado pela subjetividade que caracteriza de outras organizações psíquicas, abre para a tudo que é humano. alteridade. Assim, diferentemente do desespe- É evidente que isso não significa de ro, consequência de um grito que fica sem res- modo algum desconsiderar ou minimizar as posta, ainda seguindo Rocha, a experiência de demais dimensões da cidade, seu “espírito desamparo nos move na direção de encontrar objetivo”, mas antes inquirir sobre sua alma saídas para as muitas situações de profunda precisamente como fez Simmel nos idos de carência que a vida nos faz viver. 1903. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 469 Lúcia Leitão A cidade dos homens sempre nos fará inquietos. Não há paz a esperar, diz Caligaris existencial que nela se expressa de modo pleno e irrenunciável. no texto já citado, mas será também sempre e Sob esse modo de ver, como bem anotou necessariamente a morada humana por exce- Simmel, não nos cabe acusar nem perdoar, ape- lência. Um espaço privilegiado para a aventura nas, à semelhança de nós mesmos, compreender. Lúcia Leitão Doutora em arquitetura. Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, Pernambuco, Brasil. [email protected] Notas (1) Manière de Voir. L´urbanisa on du monde. Le Monde diploma que. Paris, décembre 2010 - Janvier 2011, p. 5. (2) Cidade dos homens é o tulo de um livro da professora emérita da UnB, Barbara Freitag, publicado no Rio de Janeiro pela editora Tempo Brasileiro em 2002. (3) Et la planète devint ville é uma das matérias publicadas no n. 114 do Le Monde Diploma que e refere-se ao período que vai de 1800 a 2000. (4) A ideia de ambiente construído como um subs tuto do espaço uterino foi indicada por Freud (2010 [1929-30], p. 451) “A casa, [é] um sucedâneo do ventre materno, a primeira morada [espaço que] ainda desejamos, onde estávamos em segurança e nos sen amos tão bem”. Tradução livre da autora a par r da edição francesa: “la maison d´habita on um subs tut du ventre maternel, ce premier habitacle qui vraisemblablement est toujours resté objet de désirance, où l´on était en sécurité et où l´on se sentait si bien”. (5) O desconforto próprio dessa experiência originária surge na vida co diana em momentos de perdas importantes a exemplo das situações de luto, de separações, de falta de, portanto, em relação a um objeto ou a uma circunstância em que o amor, a presença, o cuidado do outro apazigua, ainda que momentânea e ilusoriamente, o estado de desamparo que nos faz humanos. Referências ANDRÈ, J. (2010). Les 100 mots de la psychanalyse. Que sais-je? Paris, PUF. BACHELARD, G. (1978). A poé ca do espaço. São Paulo, Abril Cultural (Col. Os Pensadores). 470 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 A cidade de Simmel, a cidade dos homens BARDET, G. (1990). O urbanismo. Campinas, Papirus. BAUDELAIRE, C. (1999) [1857]. 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NOTA: Parte das referências bibliográficas está indicada em francês, inclusive o texto de Simmel (Métropoles et mentalité), porque estou em Paris realizando estágio pós-doutoral (Universidade Paris-Descartes, Sorbonne). Por essa razão, não tenho à mão, em português, os textos aqui indicados em francês. Aproveito a oportunidade para registrar oficialmente os meus agradecimentos à Capes, cuja bolsa de estudos me permite realizar o estágio referido. Texto recebido em 4/nov/2010 Texto aprovado em 15/dez/2010 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 461-471, jul/dez 2011 471 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado City postmodern gentrification and the social production of fragmented space Luís Mendes Resumo É indubitável que as últimas décadas têm assistido à formação de um novo tipo de cidade a que, por comodidade e na falta de melhor expressão, se designa de pós-moderna. A cidade compacta, de zonamento social estanque e de limites precisos, cujo centro evidencia uma relativa homogeneidade social, estilhaça-se num conjunto de fragmentos distintos onde os efeitos de coesão, de continuidade e de legibilidade urbanística dão lugar a formações territoriais mais complexas, territorialmente descontínuas e sócio e espacialmente enclavadas. Daremos particular atenção às formulações teóricas que defendem que essa tendência de gentrificação, enquanto processo específico de recentralização socialmente seletiva nas áreas centrais da cidade, tem contribuído para a fragmentação social e residencial do espaço urbano contemporâneo. Abstract A new type of city has undoubtedly been taken shape in latest decades which, by convenience and lack of better wording, we call postmodern city. The compact city, of sealed social zoning and precise limits, whose centre shows a relative social homogeneity is torn in a group of distinct fragments where the effects of cohesion, continuity and urban readability give way to more complex and discontinuous territorial formations, which are socially and spatially enclaved. We will focus on theoretical formulations whose claims are that the gentrification tendency, as a specific process of socially selective recentring in the city’s central areas, has contributed to a social and residential fragmentation of contemporary urban space. Palavras-chave: gentrificação; fragmentação urbana; cidade pós-moderna; cultura de consumo; esteticização da vida social. Keywords: gentrification; urban fragmentation; postmodern city; culture of consumption; aestheticisation of social life. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Luís Mendes Introdução de aspectos que se encontram em relação de descontinuidade com o passado, não significar forçosamente que entre as diferenças não per- Ao longo do último quarto de século, têm sur- maneçam vestígios familiares e sinais de con- gido reflexões pertinentes de que as cidades tinuidade com a Modernidade. Um tipo de res- do mundo ocidental ingressaram numa nova posta às diversas transformações que se têm Era da sua história. Essas ideias sugerem que, vindo a processar no nível da condição urbana conquanto ainda sejam cidades produzidas consistiu na defesa do ponto de vista de que por uma sociedade moderna, elas passaram as mesmas representam variações de um tema por mudanças de tal alcance que não podem contínuo, manifestações da crise recorrente da ser mais aceites pelas velhas designações, nem cidade moderna. As mudanças são frequente- estudadas no contexto das teorias urbanas mente conceptualizadas apenas como sinto- convencionais. Em resultado de todo um con- mas passageiros no seio de uma modernida- junto de transformações relacionadas com a de urbana basicamente contínua e não como reestruturação econômica global e a compres- vestígios da emergência de uma forma de vida são espacio-temporal propiciada pelas melho- social urbana potencialmente nova. rias significativas nos transportes e pelas no- É indubitável que as últimas décadas vas tecnologias da comunicação, as cidades de têm assistido à formação de um novo tipo de maior dimensão das sociedades capitalistas do cidade a que, por comodidade e na falta de mundo desenvolvido têm registrado alterações melhor expressão, se designa de pós-moderna. profundas em vários domínios fundamentais A cidade compacta, de zonamento social es- da vida urbana: na base econômica, na com- tanque e de limites precisos, cujo centro evi- posição sociocultural, na estrutura urbana, na dencia uma relativa homogeneidade social, política e gestão, entre outros. É já seguramen- estilhaça-se num conjunto de fragmentos dis- te consensual para um número crescente de tintos onde os efeitos de coesão, de continui- autores que se assiste, nas últimas décadas, à dade e de legibilidade urbanística dão lugar formação de um novo tipo de cidade que, por a formações territoriais mais complexas, ter- comodidade e na falta de melhor expressão, se ritorialmente descontínuas e sócio e espacial- designa de “pós-moderna”, “pós-industrial” mente enclavadas. Esse processo deve-se, em ou “pós-fordista”. parte, ao fato de, desde finais dos anos 60, o Porém, de fato, existem aspectos incon- mercado de habitação das cidades do capita- tornáveis na dinâmica urbana relativamente lismo avançado, respondendo a uma crescen- aos quais se poderá dizer, de há umas décadas te fragmentação e complexidade sociais, ter para o presente, que se está a experimentar vindo a sofrer transformações significativas, um período de transição de paradigma, sendo através da emergência de novos produtos imo- embora muitas as cautelas teóricas que cha- biliários e de novos formatos de alojamento, mam a atenção para o fato de a incidência influenciando a organização espacial urbana 474 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado no sentido de uma maior segregação a microescala (Smith, 1996). Nesse contexto, o processo de gentrificação pode ser encarado como Da condição urbana pós-moderna um dos processos espaciais mais visíveis dessa ampla mutação socioeconômica, como mate- O conceito de pós-modernidade tem sido in- rialização no espaço urbano desse profundo vocado para descrever os desenvolvimentos processo de reestruturação que experimentam ocorridos num certo número de áreas, tais as sociedades ocidentais de capitalismo avan- como a arquitetura, a arte, a literatura, o ci- çado, sob o signo de afirmação de uma condi- nema, a música, a moda, as comunicações, as ção pós-moderna. experiências do espaço e do tempo, os aspec- Daremos particular atenção às formula- tos da identidade, assim como as respectivas ções teóricas que defendem que essa tendên- reflexões sobre essas e outras questões mais cia de gentrificação, enquanto processo espe- vastas da vida social empreendidas no âmbito cífico de recentralização socialmente seletiva da filosofia, da política e da sociologia e, tam- nas áreas centrais da cidade, tem contribuído bém, na geografia. para a fragmentação social e residencial do É vasta a literatura científica que acumu- espaço urbano contemporâneo. A chegada de la contribuições válidas em considerar a ques- novos moradores à cidade centro, portadores tão da pós-modernidade uma problemática re- de um estilo de vida muito próprio, introduz levante no discurso social, econômico, cultural profundas alterações no tecido social e produz político e epistemológico.1 A pós-modernidade, uma apropriação social pontual e reticular do não só como uma condição social, econômica espaço da cidade. É da recentralização seleti- e política contemporânea, mas também, e so- va e da substituição social que a gentrificação bretudo, como forma de reflexão e de resposta enquanto processo de recomposição urbana à acumulação de indícios sobre os limites e as envolve, que devemos reter o tributo para a limitações da modernidade. A pós-modernida- construção de uma cidade crescentemente de como condição indispensável de discussão fragmentada. Assim, o presente texto trata- das dúvidas, das incertezas e das ansiedades -se de um ensaio teórico e exploratório dessa que parecem cada vez mais ser o corolário de problemática, desprovido de fundamentação uma modernidade inacabada. A obra lapidar de empírica direta, seguindo uma metodologia Boaventura de Sousa Santos (1989) demonstra hipotético-dedutiva, pelo que a sua constru- que a ciência moderna se encontra mergulha- ção parte de postulados ou conceitos já esta- da numa profunda crise e que experimentamos belecidos na literatura consultada, através de uma época de transição paradigmática entre o um trabalho lógico de relação de hipóteses, paradigma da modernidade e um novo para- que configura, a nosso ver, uma possível pers- digma, de cuja emergência se vão acumulando pectiva de interpretação dos fenômenos em sinais evidentes, e a que, na falta de melhor de- estudo. signação, apelamos de pós-modernidade. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 475 Luís Mendes Um dos primeiros pontos, senão o pri- -moderna interceptou com frequência o da meiro, que importa discutir a respeito da pós- cidade (Cachinho, 2006). E existem análises -modernidade é o de saber não só “o que da modernidade do espaço urbano e das suas significa”, mas também, e sobretudo, em caso consequências que sugerem que é agora ne- de significar algo, “qual o sentido daquilo que cessário conceber e utilizar a noção de pós- significa” (o que se pressupõe ser diferente -modernidade para se conseguir compreender daquilo que é designado por outros concei- devidamente a condição urbana atual da gen- tos e/ou paradigmas). O prefixo “pós-”, se é trificação. Na verdade, a aplicação do adjetivo certo que pretende expressar, antes de mais, “pós-moderno” sugere que o fenômeno urba- uma resposta à modernidade, quer como uma no se acha hoje numa fase de transição, em oposição/ruptura, quer como sua continuidade que estão menos presentes as características diferenciada, também remete, numa primeira e os princípios que se lhe atribuíam no “perío- abordagem, para um certo esgotamento das do moderno”, senão mesmo correspondendo taxinomias. Assim sendo, importa investigar à ideia geral de um esgotamento da experiên- se se pode mesmo falar da pós-modernidade cia urbana que representou. Sugere-se implici- como um novo paradigma (ou não paradigma) tamente que os novos caracteres que se têm e, em caso afirmativo, em que consiste e como vindo a delinear ainda não configuram um conceber os seus princípios teóricos. Não é esse modelo coerente ao ponto de garantir uma o objetivo do presente trabalho. definição efetiva e uma aplicação completa- Não obstante as críticas aos excessos do discurso pós-moderno, o estudo do seu pensa- mente descomplexada do adjetivo “pós-moderno” à cidade e ao espaço urbano. mento afigura-se indispensável, pois se ainda De acordo com uma aproximação em que o debate teórico que originou repercutiu termos de ciclos, podemos então pôr a hipó- um escasso eco na geografia enquanto ciência tese de que entramos num novo ciclo da vi- espacial, a verdade é que as suas perspectivas da da cidade, qualificado frequentemente de de compreender o mundo e a ciência modifica- pós-fordista. Essa denominação é também ram as coordenadas de orientação da cultura um pouco ambígua, pois supõe a superação ocidental. Interessa-nos, todavia, e acima de completa do fordismo e do paradigma do ciclo tudo, produzir uma breve reflexão em torno precedente, o que não é exatamente o caso. É, do enfoque incontestável de interesse com que todavia, já seguramente consensual para um a pós-modernidade tem vindo a presentear a número crescente de autores, que se assiste, política da diferença, das “margens”, do con- nas últimas décadas, à formação de um novo sumo cultural e dos novos estilos de vida ur- tipo de cidade que, por comodidade e na reco- banos que marcam a paisagem da cidade con- nhecida falta de melhor expressão, se designa temporânea, a identidade “descentrada” do de “pós-moderna”, “pós-industrial” ou “pós- gentrifier e uma produção do espaço urbano -fordista”. fragmentado. De um ponto de vista econômico, o novo Nas últimas três décadas, o debate ciclo que se inicia é marcado pela globalização epistemológico e social sobre a condição pós- (internacionalização), pela procura de novos 476 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado tipos de produtividade, de flexibilidade, de poli- constituído por diversos polos de emprego, de valência, de procura sistemática da velocidade, comércio, de serviços e de lazer, paralelamen- da experimentação de novos modos de orga- te a uma desconcentração das atividades e à nização econômica, do desenvolvimento dos redução da proeminência do centro tradicional transportes e das telecomunicações. Em conse- (Ascher, 1998). quência disso, enquanto que a época fordista Edward Soja (1994), ao apreciar o impac- se mostrava dominada por uma tendência ge- to da reestruturação urbana na estrutura socio- ral para a concentração das atividades produti- econômica dos espaços urbanos metropolita- vas em grandes polos urbanos, o período mais nos, nas relações de classe e na estratificação recente assiste a uma presença simultânea de dos rendimentos, na organização do trabalho e impulsos centrífugos e centrípetos. Os primei- no mercado imobiliário, bem como na própria ros dizem respeito às atividades industriais e, natureza da produção social e do consumo de sobretudo, às que produzem bens de largo con- bens e serviços, conclui que sumo. Os impulsos centrípetos, em contrapartida, referem-se sobretudo às atividades terciárias mais qualificadas, da finança aos centros de consultadoria e de marketing, da pesquisa às atividades ligadas à cultura e à informação. Essa transição para o novo regime de acumulação flexível de capital, lê-se no território através do aumento da fragmentação urbana e de um mapeamento mais complexo das atividades e das funções urbanas. Nas teorias da condição urbana pós-moderna, a cidade é hoje apreendida como um “sistema complexo”, irredutível à separação em funções elementares e em zonas [...] paralelamente à estrutura espacial da metrópole pós-moderna, o sistema socioeconômico vem se tornando ao mesmo tempo crescentemente segmentado e repolarizado, de um modo bem diferente da “cidade dupla” convencional do capital e trabalho, burguesia urbana e proletariado urbano. Velhas e sólidas hierarquias estão ruindo ou, pelo menos, tornando-se instáveis e desorganizados o suficiente para que nossas antigas teorias sociais sobre a cidade se apresentem tão anacrônicas quanto nossas teorias espaciais. (Ibid., pp. 162-163) estanques. Ela deve ser concebida como uma A cidade pós-moderna já não evidencia realidade flexível que se pode adaptar e modi- distinções sociais bem demarcadas no sentido ficar ao longo do tempo, ao contrário da pro- de se conseguir distinguir com clareza onde dução massificada dos grandes conjuntos ha- começa uma classe e onde acaba outra. Pas- bitacionais, ilustração dramática da rigidez do sa, na verdade, a possuir uma estrutura social período moderno. O urbanismo deve ser “ágil” mais desestabilizada e desorganizada, cuja e realizar-se mais a partir de projetos urbanos dualidade consiste, cada vez mais, numa “sub- estratégicos do que de planos diretores. O pla- classe” amorfa e heterogênea de novos po- nejamento urbano deve ser mais pragmático, bres urbanos e numa “superclasse” amorfa e participado e elástico, promovendo a miscige- heterogênea de executivos, empresários, entre nação funcional e a polivalência. Todas essas outros níveis profissionais mais qualificados e características empurram a evolução da cidade elevados socialmente. Essa estrutura social tí- para um espaço crescentemente policêntrico, pica da cidade pós-moderna deu origem a uma Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 477 Luís Mendes nova tipologia e vocabulário social, de que é nível dos padrões de escolha, de (p)referência exemplo o constante emprego de termos como ao habitat (Ley, 1996). os yuppies (young urban profissional people) Como já foi referido anteriormente, o e os dinks (famílias com double income, no processo de gentrificação contextualiza-se no kids). Ao fim ao cabo, a reestruturação urbana, seio de uma ampla recomposição sociodemo- na qual se insere o processo de gentrificação, gráfica, traduzindo-se na constituição de uma contribui para produzir uma cidade extraordi- suposta “nova classe média” que se diferencia nariamente volátil, segmentada, fragmentada, da classe média tradicional (Ley, 1994, 1996; descentralizada, amorfa e impressionantemen- Butler, 1997). Os seus membros ocupam luga- te heterogênea nas práticas socioculturais, nos res em profissões tradicionais que tendem a modos e estilos de vida e na organização espa- crescer e em novas profissões no nível de ativi- cial e na gestão de como o território é afetado dades ligadas ao que Bourdieu (1989) apelidou para cumprir uma diversidade funcional cada de “produção simbólica”. São os intermediá- vez maior. rios culturais, ligados às indústrias culturais, às A reestruturação da base econômica es- artes, à publicidade, ao design, à moda, à cultu- tá associada a uma progressiva desindustria- ra, imagem e marketing, arquitetura e decora- lização dos espaços urbanos e ao incremento ção, entre outras. da presença de atividades terciárias, fatores que influenciam decisivamente a estrutura funcional das cidades e que redefinem a sua funcionalidade interna, já que se acelera o processo de substituição dos espaços de produção pelos de serviços e de lazer. De fato, assiste-se a uma profunda transformação da funcionalidade da cidade moderna, a qual assentava na componente da produção. A transição da sociedade moderna para a sociedade pós-moder- A gentrificação enquanto estratégia urbana global e os novos eufemismos da regeneração urbana: preliminares a uma fragmentação socioespacial na é caracterizada, entre muitos outros aspectos, por importantes alterações nos domínios Voltando aos paradoxos inerentes à condição demográfico e sociocultural – alterações na urbana pós-moderna. O princípio da incerteza estrutura e composição da família (crescimen- revê-se na cidade pós-moderna, composta por to do número de isolados, aumento das uniões movimentos simultâneos antagônicos de des- de fato e de casais sem filhos), crescente parti- concentração e de recentralização, evidentes cipação da mulher na esfera produtiva, acesso também na mobilidade residencial intrametro- ao ensino, democratização da educação, entre politana, com os processos de suburbanização outros. Todos esses fatores vêm igualmente e de gentrificação, respectivamente. Existem contribuir para a profunda alteração da estru- áreas urbanas, entretanto, que atraem os in- tura social e dos padrões, condutas e estilos teresses dos grupos de estatuto socioeconô- de vida a estas associados, nomeadamente, ao mico mais elevado e se encontram em regiões 478 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado também periféricas, em processo semelhante urbano. Em diferentes graus e a partir sensivel- ao dos subúrbios ricos norte-americanos, mas mente dos anos 90, a gentrificação evoluiu em com peculiaridades locais. Tais regiões normal- muitos casos no sentido de uma estratégia ur- mente são caracterizadas, principalmente, pela bana crucial, ao serviço da ofensiva neoliberal forte presença de condomínios fechados, en- levada a cabo pelo setor privado, pelo mercado quanto enclaves urbanos e fortificados de uma em geral e pelos governos urbanos. nova ordem privada. Exemplos típicos dessas Segundo Savage e Warde (1993), para áreas periféricas ricas no Brasil são a Barra da que haja gentrificação no espaço urbano, tem Tijuca, no Rio de Janeiro; Interlagos e os con- de se dar uma coincidência de quatro proces- domínios da Serra da Cantareira em São Pau- sos: 1) uma reorganização da geografia social lo e Mairiporã. Alguns condomínios existentes da cidade, com substituição, nas áreas centrais em cidades das regiões metropolitanas, como da cidade, de um grupo social por outro, de acontece com Alphaville e a Granja Viana, am- estatuto mais elevado; 2) um reagrupamento bos na Grande São Paulo. Assim, são também, espacial de indivíduos com estilos de vida e às vezes, considerados subúrbios ricos. Isso características culturais similares; 3) uma trans- ocorre, pois a conurbação entre as cidades faz formação do ambiente construído e da paisa- com que as áreas em redor da cidade central se gem urbana, com a criação de novos serviços tornem subúrbios devido aos crescentes movi- e uma requalificação residencial que prevê mentos pendulares de interdependência. Pode- importantes melhorias arquitetônicas; 4) por -se, falar, em alguns desses casos identificados último, uma mudança da ordem fundiária, que, e estudados por Flávio Villaça (1998) e Teresa na maioria dos casos, determina a elevação dos Caldeira (2008), em gentrificação dos espaços valores fundiários e um aumento da quota das periféricos, correspondendo àquilo que Neil habitações em propriedade. Smith (2002) caracterizou relativamente à difu- Se bem que a definição clássica de gen- são do fenômeno para além do característico trificação lançada nos anos 70 diga respeito, perímetro central (cidade centro, inner city). De sobretudo, aos três primeiros aspectos, é de anomalia local e esporádica, limitada à cidade consenso geral que novas formas de gentrifica- centro, a gentrificação passou a constituir-se ção têm surgido – sobretudo no fim dos anos como estratégia global ao serviço dos urbanis- 90 – e que uma renovada definição de gentri- mo neoliberal e dos interesses da reprodução ficação deverá se alargar, sobretudo ao último capitalista e social, tendo-se generalizado por aspecto, aquele que caracteriza o que de mais todo o mundo urbano. É certo que, na reali- específico existe no processo, à luz da evolução dade, essa evolução evidencia-se de diferen- das transformações significativas que o mer- tes formas, em diferentes bairros e cidades, e cado de habitação das cidades do capitalismo segundo ritmos temporais diferentes. Por ser avançado tem sofrido. A gentrificação trata-se uma expressão da formação socioeconômica de uma recentralização urbana e social seleti- capitalista subjacente e mais ampla, a gentri- va, alimentada por novas procuras, promotora ficação numa cidade específica irá exprimir as de uma crescente revalorização e reutilização particularidades da constituição do seu espaço física e social dos bairros de centro histórico, Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 479 Luís Mendes indiciando, por conseguinte, novos processos urbanas, verificadas ao longo dos anos 80 e 90 de recomposição da sua textura socioespacial. em muitas cidades e por vezes favorecidas ou Essa tendência encontra-se associada à recom- mesmo incentivadas pelas intenções políticas posição do sistema produtivo, cuja evolução se neoliberais dos governos urbanos. A gentrifi- pauta por uma crescente terciarização e pela cação, nesses casos, sofre mutações, pois dei- emergência de um novo modelo de acumula- xa de estar única e exclusivamente associada ção capitalista mais flexível, que reconhece à reabilitação urbana e passa a estar cada vez no (re)investimento no centro histórico – de mais ligada à regeneração ou mesmo à reno- capital imobiliário, e na sua circulação – uma vação de inteiros bairros de habitação, situa- mais-valia. Atualmente, uma nova conjuntura dos no centro ou nas suas proximidades e na econômica revela a constituição de uma nova sua substituição por conjuntos de construções forma de gentrificação permeada por processos de luxo, integrados, com serviços qualificados, de promoção e marketing imobiliário submeti- ou outras modalidades de residências de alta dos à mediação do mercado e que, mais do que qualidade, novos produtos imobiliários destina- nunca, contribuem para transformar o espaço dos a camadas de rendimentos elevados (Lees, residencial da cidade centro em mercadoria. Slater e Wyly, 2008). Isso significa dizer que o momento atual Já a meados dos anos 90, Neil Smith do redesenvolvimento urbano sinaliza uma (1996, p. 39) chamava a atenção de que transformação no modo como o capital finan- “ gentrification is no longer about a narrow ceiro se realiza no espaço metropolitano de ho- and quixotic oddity in the housing market but je, contemplando a passagem da aplicação do has become the leading residential edge of a dinheiro do setor produtivo industrial ao setor much larger endeavour: the class remake of imobiliário, revelando que o espaço-mercadoria the central urban landscape”. O que de mais mudou de sentido com a mudança de orienta- característico o processo de nova gentrificação ção das aplicações financeiras dos promotores salienta resulta, em parte, do desenvolvimento imobiliários (Carlos, 2007). Essas tendências irregular e flexível do mercado do solo são muito evidentes numa extensão do con- urbano, integrando-se no processo geral de ceito de gentrificação a casos de renovação acumulação flexível de capital, ao serviço dos e regeneração urbanas. A gentrificação não é interesses do mercado imobiliário neoliberal e um fenômeno novo, contudo, as suas atuais do desmantelamento do Estado-Providência formas distinguem-se dos primeiros episódios em matérias de habitação. pontuais que se restringiam à cidade centro. Como estudamos já noutros contex- As principais diferenças entre as novas formas tos (Mendes, 2008, 2010), a propósito da de gentrificação dos anos 90 e a forma clássi- gentrificação enquanto estratégia global ao ca do fenômeno do início dos anos 70 são a serviço do urbanismo neoliberal, Smith (1996, escala e a extensão. Diversos estudos urba- 2001, 2002, 2005) deixa claro que os proje- nos nos últimos quinze anos têm relacionado tos de regeneração urbana, que suportam a o processo de gentrificação com as numero- promoção ideológica da gentrificação, alimen- sas intervenções de renovação e regeneração tam equívocos vários no que diz respeito às 480 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado supostas intenções iniciais de reabilitação ha- classes dominantes, em termos sociais e eco- bitacional e integração/fixação da população nômicos) e existe para servir os interesses do de menor estatuto socioeconômico já anterior- capital e não da maioria social. O mesmo pode mente residente nos bairros da cidade centro ser dito do Estado que, mesmo sob o disfarce alvo de intervenção. De resto, nesses contextos, liberal e formalmente voltado (no sentido de o filtering up que a gentrificação pressupõe – discurso teórico) para o interesse de toda a pelo processo de substituição social que impli- sociedade, representa particularmente sob es- ca, de classes de menor estatuto socioeconômi- te modo de produção a dominação da “classe co pelas de maior – faz antever o acentuar dos burguesa”, isto é, dos grupos de maior estatuto traços de segregação socioespacial nas áreas social e econômico e dos interesses do capital. onde o fenômeno tem lugar. Nesses termos, ao As intervenções públicas que provocam valo- mesmo tempo que produto social e meio, o es- rização da cidade desencadeiam mecanismos paço é também instrumento da ação, meio de contraditórios de expulsão e de reapropria- controle, logo, de dominação e de poder, que ção. As novas políticas urbanas traduzem uma produz simultaneamente uma hierarquia dos maior orientação para o mercado e para os lugares centrada no processo de acumulação, consumidores, em detrimento das classes mais uma (re)centralização do poder. Imbuído de desfavorecidas. O autor reconhece que, em um papel de intervenção e crítica social, Neil larga medida, o desenvolvimento de parcerias Smith tem denunciado já há algumas décadas, público-privado que nesse quadro é frequente mas sobretudo recentemente, que o discurso se desenhar, constitui um verdadeiro subsídio “regenerativo” da gentrificação no âmbito de aos mais ricos, ao tecido empresarial mais po- políticas urbanas de valorização da imagem da deroso e às funções e relações estratégicas de cidade ainda que vise a fixação da população controle, poder e dominação do espaço urba- já existente, a modernização do tecido econô- no, condição fundamental na perpetuação da mico, o aumento do emprego e o crescimento reprodução do capital, premissa essencial para econômico; a verdade é que não deixa também o suporte do sistema de produção e consumo de funcionar como mecanismo de legitimação capitalista. Tudo isso à custa dos investimentos do poder instituído e da mobilização de grande em serviços locais de consumo coletivo. É que investimento público que, em última análise, é se, em última análise, a atração e o crescimento desviado do auxílio aos mais carenciados, fun- propiciados pela gentrificação a todos benefi- cionando como subsídio aos mais ricos (Banca, ciam, em primeiro lugar ganham os promoto- instituições financeiras, grandes grupos econô- res imobiliários, as empresas e as instituições micos e de construção civil, empreendedores, financeiras, muito frequentemente à custa da governantes, etc.). expulsão dos residentes e das empresas mais Como dedução preliminar dessas inten- débeis dos lugares requalificados, lançados ções, poderá dizer-se que Smith insiste nos por via dessa (des)valorização, num processo princípios que estabelecem que na socieda- de exclusão. A seletividade dos investimentos de capitalista o conjunto de leis que a regem favorável à reprodução do capital implica o é necessariamente burguês (sob domínio das abandono, o esquecimento e a menor atenção Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 481 Luís Mendes à “cidade da maioria”, com particular gravi- tudo é adaptado aos movimentos históricos e dade para as áreas mais carenciadas onde se cíclicos de investimento e desinvestimento de concentram os mais desfavorecidos. É a emer- capital no ambiente construído em meio urba- gência da cidade revanchista produzida pela no. Importando a tese de rent gap desse autor ofensiva neoliberal e que Smith tem explorado ao raciocínio de expansão da gentrificação na mais recentemente (1996, 2001, 2002, 2005). periferia urbana, quanto menores tiverem sido O autor desvendou, dessa forma, a máscara so- os investimentos na periferia, menores serão cial de compreensão e “bondade institucional” os desinvestimentos nos bairros abandonados inerentes a estes recentes produtos imobiliários da cidade centro, e menor terá sido a difusão da nova gestão urbana, argumentando como da gentrificação. Por isso mesmo, nas cidades eles promovem uma lógica de controle social em que a maior parte da extensão espacial é favorável à reprodução do capital e às classes mais recente, e nas quais as oportunidades de dominantes. desinvestimentos prolongados foram mais cir- Do ponto de vista da emergência de novos produtos imobiliários e de novos formatos cunscritas, do mesmo modo a difusão da gentrificação será limitada. de alojamento no nível da gentrificação, com À semelhança de outras formas socioes- consequências na organização espacial urbana, paciais como os centros comerciais regionais, teremos de destacar os condomínios fechados parques de escritórios, outlets, parques temá- (Barata Salgueiro, 1994; Raposo, 2002; Caldei- ticos, entre outros, os condomínios fechados ra, 2008). A generalização dos condomínios devem ser percebidos como um dos produtos privados sob a forma de enclaves urbanos, es- imobiliários que melhor preenche e caracteriza pecialmente nos espaços periféricos, compro- de modo distintivo a produção social do espa- vam a mudança de escala de produção social ço urbano da atualidade, estando associados do espaço e de definição da gentrificação nas a uma nova organização territorial da cidade, últimas décadas. Estamos longe dos primórdios frequentemente descrita como pós-moderna e da gentrificação enquanto fenômeno urbano fragmentada. anômalo, ligeiro e banal, circunscrito à cidade centro. Presencia-se, na atualidade, a uma fronteira da gentrificação que transbordou os limites do perímetro central da cidade e se estendeu a espaços e dinâmicas imobiliárias mais amplas, incluindo as construções antigas e ainda intatas, nos distritos mais afastados Fragmentação, apropriação pontual e reticular do espaço urbano e descentração do gentrifier que foram atingidos pelo fenômeno. Segundo Smith (2002), o modelo de difusão varia bas- A gentrificação é sempre, por definição, um tante e é influenciado por elementos relacio- processo de “filtragem social” da cidade. Vem nados com a arquitetura, com condições/ame- despoletar um processo de recomposição so- nidades ambientais únicas, tais como parques cial importante em bairros antigos das cidades, verdes ou espelhos de água, mas acima de indiciando um processo que opera no mercado 482 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado de habitação, de forma mais vincada e concre- cidade, quer na natureza cada vez mais polié- ta nas habitações em estado de degradação drica e camaleônica da sua identidade, inerente dos bairros tradicionalmente populares. Cor- à sua condição de indivíduo na cidade pós- respondendo à recomposição (e substituição) -moderna, como desenvolve Cachinho (2006) a social desses espaços e à sua transformação propósito do consumidor. em bairros de classes média, média-alta, não se Por fragmentação do território deve pode deixar de referir, por conhecimento des- entender-se “uma organização territorial mar- te processo de “substituição social”, o reforço cada pela existência de enclaves territoriais da segregação socioespacial na sua sequência, distintos e sem continuidade com a estrutura aprofundando a divisão social do espaço urba- socioespacial que os cerca” (Barata Salgueiro, no. A verdade é que a apropriação pontual do 1998, p. 225). A autora faz notar que o que de- espaço, característica da gentrificação, introduz fine o enclave não é tanto a sua dimensão (que mudanças na escala da segregação sociorre- se podia pressupor reduzida), mas o tipo de re- sidencial produzida. Esta far-se-á, doravante, lação (ou melhor a não relação) com as áreas e contrariamente ao que acontecia na cidade envolventes que lhe são contíguas em termos moderna, a uma escala micro de maior com- territoriais, porém, desprovidas de continui- plexidade, baralhando o primórdio da divisão dade social e funcional. O processo de gentri- social da cidade em manchas homogêneas, ficação que ocorre na cidade centro de várias inerente ao princípio de zonamento funcional metrópoles do mundo de capitalismo avançado associado à cidade industrial. aparenta, assim, corroborar a tese, advogada Assim, quando se assiste à emergência por Barata Salgueiro (1997, 1998, 1999, 2001), de empreendimentos destinados à habitação da cidade pós-moderna, enquanto espaço frag- de grupos de estatuto socioeconômico mais mentado. A cidade compacta, de limites preci- elevado em bairros históricos de características sos, cujo centro evidencia uma relativa homo- essencialmente populares, verdadeiros encla- geneidade social, estilhaça-se num conjunto de ves de luxo no seio de áreas de residência de fragmentos distintos onde os efeitos de coesão, classes baixas, facilmente se conclui que a gen- de continuidade e de legibilidade urbanística trificação é um exemplo de uma nova organiza- dão lugar a formações territoriais mais com- ção do espaço urbano, reforçando uma estrutu- plexas, territorialmente descontínuas e sócio e ra fragmentada, típica da cidade pós-moderna. espacialmente enclavadas (Graham e Marvin, Queremos, todavia, realçar que uma caracte- 2001). É, igualmente, nesse sentido que Sposito rística central das geografias pós-modernas da (2011) defende que se devem ler as geografias gentrificação é a fragmentação urbana, e que das áreas, dos eixos, das redes e dos fluxos não deriva da recentralização seletiva inerente ao apenas como continuidades, mas também co- processo. Essa fragmentação encontra-se pre- mo rupturas, não apenas como partes de uma sente quer na implantação pontual dos novos totalidade, mas como fragmentos que podem produtos imobiliários dirigidos aos potenciais não compor uma unidade coesa. gentrifiers, quer na apropriação socioespacial As implantações dos projetos imobiliá- descontínua que o gentrifier faz do bairro e da rios dirigidos aos gentrifiers apresentam um Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 483 Luís Mendes caráter pontual, introduzindo uma diferença relação à ordem próxima e à ordem distante, brusca em relação ao tecido social envolvente. num período em que as tecnologias da infor- A estrutura urbana que promovem caracteriza- mação e da comunicação se combinam com as -se pela emergência de enclaves que são dis- formas de deslocamento material de pessoas e sonantes no seio de um tecido com uma certa mercadorias (Sposito, 2011). homogeneidade socioespacial. Digamos que O território urbano apresenta, atualmen- existe contiguidade espacial, mas não continui- te, novos moldes de organização espacial, uma dade social e funcional, pelo que preodomina nova construção e funcionamento do espa- a dessolidarização do entorno próximo, pois os ço, através daquilo a que Santos (1988, 1994, novos moradores e as atividades em que par- 2006) designou por uma diferenciação entre o ticipam produzem-se cada vez mais em redes peso das horizontalidades e verticalidades. En- de relações. Cada gentrifier constrói assim uma quanto as horinzontalidades são os domínios rede de ligações sociais transversal aos vários da contiguidade, dos lugares vizinhos reunidos espaços de residência, pelo que os laços fortes por uma continuidade territorial, uma mesma de solidariedade e de amizade tendem a ultra- realidade socioespacial – modo preferencial passar a geografia do bairro. e dominante de organização do espaço na ci- Na cidade pós-industrial assiste-se a dade dita industrial; as verticalidades são for- uma gradual perda de importância do fator madas por pontos distantes uns dos outros, “proximidade territorial” na estruturação das que apenas as práticas sociais unificam, isto é, relações sociais. De fato, o “próximo” deixa de ligados por formas e processos sociais desen- ser o “mesmo”. As relações sociais dos novos volvidos num espaço-rede. É a noção de rede moradores estão cada vez menos focalizadas que constitui a realidade da nova organização no espaço do bairro e nos vizinhos. Cada indi- espacial e na qual Santos constrói o conceito víduo pode combinar à sua maneira a relação de verticalidades. Esse autor contraria, contu- de proximidade e a relação de distância, numa do, a ideia de substituição simples do chamado diversificação profusa de relações com os mais “espaço banal” pelo espaço em rede: diversos círculos sociais (Remy, 2002; Navez-Bouchanine, 2002; Miguel do Carmo, 2006). Isso graças, entre outros fatores, às melhorias nos transportes e comunicações, que reestruturam o padrão das acessibilidades individuais, libertando muitas localizações dos constrangimentos da proximidade (Barata Salgueiro, 1998; Poche, 1998). Não é possível ver a cidade atual como unidade, pois não parece haver o dentro e o fora, até porque não é possível mais delimitá-la, já que mesmo que se procure delimitar, as interações espaciais colocam em 484 Mas além das redes, antes das redes, apesar das redes, depois das redes, com as redes, há o espaço banal, o espaço de todos, todo o espaço, porque as redes constituem apenas uma parte do espaço e espaço de alguns. O território, hoje, pode ser formado de lugares contíguos e de lugares em rede. São, todavia, os mesmos lugares que formam redes e que formam o espaço banal. São os mesmos lugares, os mesmos pontos, mas contendo simultaneamente funcionalizações diferentes, quiçá divergentes ou opostas. (Santos, 1994, p. 16). Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado É recuperando esse raciocínio de Santos que se poderá deduzir que os lugares da gentrificação tanto podem participar nas ditas verticalidades como nas horizontalidades. Se a população autóctone nos bairros gentrificados privilegia uma apropriação social do espaço típica das horizontalidades, na população gentrifier, por ser dotada de maior capacidade de mobilidade, predominará uma redução das possibilidades de afirmação das formas de viver cujas práticas de sociabilidade sejam A nova metrópole é crescentemente “descentralizada” e cada vez mais um mosaico de desenvolvimento geograficamente desigual sobreposto às lentas concentricidades e cunhas setoriais da clássica cidade capitalista industrial. A mistura das novas e velhas formas (visto que as velhas certamente não desapareceram) está hoje desafiando nossas definições convencionais de urbano, suburbano, exurbano e rural, obrigando-nos a repensar as premissas básicas da teoria e da análise urbanas. baseadas numa espacialidade contígua, na vizinhança do bairro. As práticas culturais e so- Para Carlos (1994, 2007, 2008), a frag- ciais dos gentrifiers reproduzem, em princípio, mentação do espaço urbano encontra-se inti- formas de apropriação do espaço que são con- mamente associada com o processo de globa- comitantes com a fragmentação das formações lização econômica e cultural que produz mo- territoriais. A gentrificação insere-se, por conse- delos éticos-estéticos, gostos, valores, modas, guinte, no contexto contemporâneo de desen- comportamentos, representações, e se cons- volvimento das relações sociais, caracterizado titui, por via da fragmentação do espaço, um pela fragmentação que faz explodir os terri- elemento fundamental a ter em conta na repro- tórios anteriormente encerrados em moldes dução das relações sociais, no quotidiano, em rígidos de zonamento social e funcionalmente que a apropriação social do espaço é maiorita- homogêneo. A estrutura social e funcional dos riamente mediada pelo valor signo/mercadoria. lugares, anteriormente homogênea e relativamente uniforme (característica da cidade industrial), apresenta-se, atualmente, retalhada por uma espacialidade fragmentada, claramente mais heterogênea típica da chamada cidade pós-moderna, comparativamente à anterior. As dinâmicas territoriais do desenvolvimento das metrópoles ditas pós-modernas deixam de Esta fragmentação que se aprofunda divide o espaço em parcelas cada vez menores, que são compradas e vendidas no mercado, como produtos de atividades cada vez mais parceladas. Mundializado, o espaço fragmenta-se por meio de formas de apropriação para o trabalho, para o lazer, para o morar, para o consumo, etc. (Carlos, 1994, p. 193) apresentar uma estrutura decisivamente monocêntrica, tão determinadas por um modelo de O problema da identidade moderna era organização espacial tão singularmente pola- o de como se construía uma identidade, man- rizado por forças centrífugas e centrípetas. No tendo-a sólida e estável. O problema da iden- dizer de Soja (1994, p. 154) tidade pós-moderna é, em primeiro lugar, o de Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 485 Luís Mendes como evitar a fixação e manter as opções em pode ser entendida como o projeto de tornar aberto. No contexto da cidade pós-industrial, a vida uma obra de arte, enquadra-se neste as diferentes apropriações do espaço derivam contexto e empresta as figuras do dandy, do da agregação temporária e fluída, estabelecida flâneur, personificações do estilo de vida boê- entre as várias ligações sociais (Bauman, 1995, mio e blasé, que privilegia as sensações e as 2000, 2004) ou, dito de outro modo, decorrem experiências de vida na produção do entendi- da agregação das várias escolhas e vontades mento da realidade social, ao perfil social do interindividuais. As “velhas” identidades, que gentrifier (Bowler e Mcburney, 1991), bem co- por tanto tempo estabilizaram o mundo social, mo, em geral, à vida mental das grandes me- estão em declínio. Novas identidades surgiram, trópoles, tal como teorizado por Georg Simmel entretanto, deixando o indivíduo moderno frag- (2009 [1903]). mentado, subscrevendo trajetórias múltiplas e O discurso simmeliano foi profícuo e vi- fluentes. A “crise de identidade” faz parte de sionário em analisar o papel da grande cidade um processo amplo de mudanças que, segun- no decurso da fase madura da civilização indus- do Hall (2005), está a deslocar as estruturas e trial de finais do século XIX e início do século os processos centrais das sociedades moder- XX. Juntamente com o dinheiro e favorecendo nas e a abalar os quadros de referência que um modo de vida mais heterogêneo, multipli- davam aos indivíduos uma ancoragem estável cando e misturando as diferenças, fomentan- no mundo social. A apropriação do espaço do a tolerância, acelera-se o tempo histórico, particulariza-se em função das diferentes rami- cultiva-se a originalidade mesmo se expressa ficações que estruturam a vivência quotidiana no exagero, alarga-se o espaço de ação, da do indivíduo, doravante, cada vez mais frag- iniciativa e da concorrência, fazendo emergir mentada (Miguel do Carmo, 2006). o comportamento blasé. Paradoxalmente, este, Esses são os elementos centrais da ce- que vive em plena ebulição das diferenças e da lebração pós-moderna das dimensões frag- novidade, arrastado pela crescente mobilidade mentadas e multidimensionais da experiência social e pela multiplicação dos vínculos ocasio- socioespacial do gentrifier, indo de encontro nais ou meramente formais, submerge cada vez à obra de Deleuze e Guattari, e também à de mais na indiferença do meio urbano, assolado Lyotard, onde se sublinha o fato de a experiên- pela racionalidade objetivante e instrumental. cia contemporânea ser uma de fragmentação, Simmel (2009 [1903], pp. 84-87) escreve: desordem e polivalência. Ora, esses atributos estendem-se da identidade social ao território urbano. As geografias pós-modernas da gentrificação atacam a ontologia unidimensional imposta pelo estruturalismo, nomeadamente o ímpeto de controlo e de certeza que tenta categorizar o sujeito gentrifier como unificado e o seu perfil como perfeitamente tipificado. A tendência de estetização da vida social, que 486 Os mesmo fatores que, assim, na exatidão e na precisão de minutos da forma de vida, convergem para uma formação da mais alta impessoalidade, atuam, por outro lado, de um modo altamente pessoal. Talvez não haja nenhum fenômeno anímico, que esteja reservado de modo tão incondicional à grande cidade, como o caráter blasé. [...] Nela culmina de certo modo aquele resultado da concentração Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado de homens e coisas que estimula o indivíduo à sua máxima atuação nervosa: através da simples intensificação quantitativa das mesmas condições, este resultado inverte-se no seu contrário, no fenômeno peculiar de adaptação que é o caráter blasé, em que os nervos descobrem a sua derradeira possibilidade de se ajustar aos conteúdos e à forma da vida na grande cidade, renunciando a reagir a ela [...]. Simmel conclui, contudo, que o que pode aparentar ao cientista do social e urbano como uma dissociação na configuração da vida na grande cidade, é, na realidade, apenas uma das suas formas elementares de socialização. referências, mutável, além do mais, em função dos ciclos de vida, confere uma componente camaleônica ao modo de vida urbano típico do gentrifier, donde advém uma aparência caótica e uma dificuldade acrescida de operacionalização de categorias metodológicas capazes de detectar as práticas (Beauregard, 1986). Nos trabalhos de Deleuze e Guattari (1995, 2004) essa permeabilidade e contingência espaciais são expressas pela metáfora do rizoma, uma concepção pós-estruturalista de estrutura, em que as ligações são sempre (des)construídas em níveis diferentes e dentro de múltiplas ordens de escalas territoriais. A tradicional e bem definida correspon- É nesse sentido que se afigura com bastante dência entre dado estatuto socioeconômico e dificuldade construir um modelo genérico da consumo e práticas sociais, com disposição ter- apropriação social do espaço segundo a con- ritorial em mancha homogênea contínua (típica dição urbana pós-moderna, visto ser grande a da cidade industrial moderna), desmembrou-se, heterogeneidade das formas de apropriação do na medida em que a maior parte dos estatu- espaço e do tempo em diferentes e justapostos tos culturais atuais se encontram localizados contextos societários (Barata Salgueiro, 2002). em redes difusas, cuja pertença deriva menos O desenvolvimento da sociedade de con- do local de residência, das relações familiares sumo disponibiliza um tal número de alternati- ou do meio socioeconômico. Nesse contexto, vas identitárias que torna impossível de dedu- Sposito (2011) frisa que não existe unidade zir ou relacionar determinado tipo de práticas espacial na cidade atual, pois a ação sobre o culturais à espacialidade a que está implicita- espaço e a sua apropriação são sempre par- mente associado determinado estatuto socioe- celares. Diferentes pessoas movimentam-se e conômico do gentrifier. Pode-se dizer, no segui- apropriam-se do espaço urbano de acordo com mento da proposta de Barata Salgueiro (1997), diferentes modos que lhe são peculiares, se- que se tende para uma apropriação pontual do gundo condições, interesses e escolhas que são território urbano, em detrimento da tradicional individuais, mas que são, simultaneamente, de- apropriação extensiva e em mancha de uma terminados historicamente, segundo diversas determinada zona. O território continua a par- formas de segmentação: idade, perfil cultural, ticipar na identificação dos indivíduos, contu- condições socioeconômicas, categoria socio- do, a apropriação é agora mais seletiva e feita profissional, preferências de consumo de bens em um nível micro, quando interdependências e serviços, bem como configuração dos estilos funcionais ou de interesses se sobrepõem à de vida, etc. A multipertença simultânea de ca- solidariedade de vizinhança e às dependências da indivíduo a diversos grupos com diferentes de proximidade, na base das relações sociais. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 487 Luís Mendes Assume relevância o aumento da diversidade simultâneo por vários grupos sociais, segundo social associada a novos padrões de consumo, apropriações sincrônicas, em que cada uma de- à pluralidade de estilos de vida que produzem las lhe imprime uma lógica correspondente ao novas e diversificadas procuras culturais. A seu modelo societário, mas em descontinuida- gentrificação assiste, enquanto fenômeno de de com a presente na realidade socioespacial reestruturação urbana, a um aprofundamento do grupo vizinho. de especificidades e particularismos sociais, As novas formas territoriais nas quais se que se refletem numa crescente diferenciação podem reconhecer fragmentação e diminuição das práticas sociais e culturais. Estas, por sua ou mesmo desaparecimento da contiguidade vez, espelham-se em espacialidades em rede, não podem ser lidas apenas como um mero formando um tecido social complexo e difícil processo decorrente das novas tecnologias de decifrar. O movimento teórico no sentido da comunicação, informação e mobilidade. da teorização das questões de pequena esca- Deverão também ser percebidas como tradu- la num contexto de forças mais amplas tem zindo um padrão espacial de organização do desviado o movimento de estudo das forças território pelo indivíduo que é mais complexo maiores produtoras da gentrificação. São os in- e heterogêneo, mas também camaleônico, cor- dícios de um espaço urbano mais diferenciado, roborando a representação que aquele projeta fragmentado e poliédrico, que anunciam uma de si através da adesão mais fugaz, efêmera e condição pós-moderna da vida social. segmentada a hábitos, valores, comportamen- Para Nicolas (1994), a fragmentação na tos e estilos de vida, de acordo com os gostos apropriação social do espaço e do território ou preferências do momento. Essa vontade de decorre em larga medida das transformações hiperescolha acarreta diversas consequências recentes no nível da economia e das inovações que levam a uma reorganização importante tecnológicas, das quais resulta um novo modo das relações sociais e do próprio território. Em de articulação entre o espaço e o tempo, que o primeiro lugar, provocam uma rejeição, por par- autor identifica como a “simultaneidade espa- te do novo morador, de tudo quanto é visto co- ço-tempo”, isto é, a possibilidade de que em mo entrave ou simplesmente risco de entrave à diferentes setores territoriais ocorram fenôme- liberdade de escolha e de comportamento pes- nos interligados. A nova apropriação social do soal. Desse modo, verifica-se com frequência espaço pelos vários grupos sociais passa a ser uma desvalorização das relações de vizinhan- mediada pelo individualismo contemporâneo, ça, na medida em que o vizinho é considerado o que a torna menos susceptível a tipologias como susceptível de interferir a qualquer mo- de classificação e a correspondências socio- mento em todos os aspectos da vida quotidia- espaciais. A fragmentação do espaço urbano na. A partir daí, manifesta-se uma vontade de implica modificações nas leituras possíveis de distanciamento tanto mais forte quanto mais uso do território. Este deixa de poder ser en- espacialmente próximo for o vizinho e quanto tendido segundo uma leitura unidireccional e alguns espaços forem de uso comum. linear, no sentindo de continuidade, para passar a ser entendido como susceptível de uso 488 Novamente recorrendo aos escritos de Simmel (2009 [1903], pp. 88 e 89): Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado O estádio mais antigo das formações sociais, que se encontra tanto nas formações históricas como naquelas que hoje se instituem, é este: um círculo relativamente pequeno, com um fechamento forte perante círculos vizinhos, estranhos ou de algum modo antagônicos, mas com uma união tanto mais estreita em si mesmo, que faculta ao membro singular apenas um espaço restrito para o desdobramento das suas qualidade peculiares e de movimentos mais livres, de que ele próprio é responsável. [...] Na medida em que o grupo cresce, numérica e espacialmente, em significado e em conteúdos de vida [...], o indivíduo ganha liberdade de movimento, muito para lá da circunscrição inicial, ciumenta, e uma peculiaridade a que a divisão do trabalho proporciona oportunidade e urgência. pp. 89 e 94) defende ainda, a este propósito: “a brevidade e a raridade dos encontros com os outros, dispensados a cada indivíduo” conduzem à definição da [...] tentação de se apresentar de modo mais notório, concentrado e, quanto possível, característico [...] que parece ser o motivo mais profundo pelo qual justamente a grande cidade sugere o impulso para uma existência pessoal mais individualizada [...] que faz explodir o enquadramento do todo. Sem dúvida que o espaço social urbano da gentrificação se encontra, atualmente, integrado em forma reticular, não dependendo tanto dos espaço vizinhos imediatos quanto de lógicas extraterritoriais e não raramente extranacionais, sendo que estas últimas represen- Essa desvalorização das relações de vizi- tam justamente o avanço da integração da ci- nhança é compensada por diversas tendências dade no movimento da globalização econômi- que vêm, de algum modo, preencher as perdas ca e cultural (Butler e Robson, 2001a, 2001b). que esse comportamento implica. Lembremos A sincronia na retícula não obriga, contudo, à que nos colocamos aqui na perspectiva de uma uniformidade com outras redes, pelo que cada classe média em trajetória social ascendente gentrifier poderá estabelecer ou reforçar a seu em sociedades contemporâneas e que as ca- belo prazer as redes de sociabilidade que bem racterísticas que evocamos são susceptíveis entender, independentemente da existência ou de articulação, ou mesmo de contradição, para não de contiguidade territorial. outras posições. Assim, em face dessa desvalo- Seria pouco consistente afirmar que a rização das relações de vizinhança, essa classe lógica da apropriação social do espaço típica média tende a desenvolver redes de relações da cidade fordista é uma etapa totalmente ul- funcionais, isto é, relações que não implicam de trapassada e, por isso mesmo, que a sua lógi- forma definitiva e global e que são escolhidas ca espaço-temporal baseada na contiguidade em função da utilidade que se reconhece ne- territorial e na unidade funcional e social de las. O projeto individual tornou-se a condição cada setor urbano houvesse desaparecido por primeira da eficácia coletiva, na medida em completo. Pouco consistente parecem também que permite valorizar a lógica das escolhas e as as perspectivas teóricas que negam a fragmen- modalidades novas de sociabilidade, tendo-se tação espacial da cidade pós-fordista e a apre- tornado, igualmente, no princípio máximo de sentação de novas articulações espaciais, em fragmentação social e territorial. Simmel (ibid., que a apropriação social do espaço se processa Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 489 Luís Mendes por via de complexas redes de sociabilida- pontos distantes uns dos outros, ligados por de parciais que permitem a integração, num práticas culturais e padrões de vida social. Essa mesmo espaço, de um movimento sincrônico situação é a responsável pelo padrão espacial de diversos modelos societais de acordo com difuso da rede de práticas e apropriação social o diferencial de grupos sociais que daquele do espaço, deixando estas de assumir qualquer usufruem. Esse reconhecimento da existência tipo de continuidade territorial. e do funcionamento complexo e sincrônico de Aceita-se hoje que nas situações sociais diferentes lógicas socioespaciais, mesmo em do seu quotidiano, os sujeitos atuam de acordo espaços reduzidos no interior das áreas metro- com as suas competências identitárias que, ao politanas, como seja o espaço-bairro coloca a contrário do que sucedia na modernidade, não necessidade ao geógrafo de rever o conceito de são mais estáveis e rígidas, mas tornaram-se espaço social e requer, necessariamente, o pri- transitórias, efêmeras e plurais. São objeto da vilégio de estudos de escala micro. multiplicidade de escolhas e de possibilidades e, como tal, não permitem o delimitar de um padrão espacial bem definido. Eminentemente Considerações finais relacional e interativa, a identidade mostra-se contingente e remete para uma estrutura pessoal, afetiva, subjetiva que é progressiva e O aumento da mobilidade pelo acesso gene- continuamente (re)construída pelos próprios ralizado ao automóvel, a quantidade de infor- sujeitos (Fortuna, 1994). mação recebida (importância dos mass media), A variedade, a justaposição e sobreposi- o desenvolvimento das novas tecnologias de ção de narrativas e parâmetros interpretativos comunicação, permitem uma maior diversida- sobre o mundo e a vida, sobre as identidades de de contatos entre os indivíduos que se seg- sociais, revelam como estas últimas vão sendo mentam e desmultiplicam em diversos papéis hoje destruídas de modo acelerado, cedendo e identidades, mas também pertencem a diver- lugar a identidades mais ou menos momen- sas redes de práticas socioculturais (algumas tâneas e desordenadas. Aquilo a que Fortuna virtuais como a Internet) que se traduzem em (ibid.) designou por a “destruição criadora” espacialidades de consistência territorial frag- das identidades. Esse contínuo reajustamento mentada e difusa, em práticas culturais parti- das matrizes identitárias dos sujeitos impõe a lhadas por diversos lugares afastados entre si necessidade de revisão do significado atribuí- e sem continuidade territorial. Para muitos in- do aos eixos primordiais em que assentam as divíduos, a espacialidade de determinada prá- identidade típicas da modernidade: a classe tica sociocultural já não é mais definida pela socioeconômica, o gênero, a condição labo- continuidade territorial, mas pelo frequentar ral, o estatuto educativo e familiar. Assiste- de uma série de lugares, pontos que apenas -se atual mente ao descentramento dos su- as práticas de cada um unificam e dão sentido jeitos e à problematização das identidades. como conjunto. De fato, cada vez mais os espa- A tendência parece ser a da busca narcisista ços de ação dos indivíduos são formados por da autossatisfação que se faz acompanhar da 490 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado construção de personalidades errantes, desti- É a partir do princípio do processo de tuídas de vínculos e compromissos duradouros personalização que o coletivo social se organi- e sim mais aptos a adesões fugazes a novos za e orienta. Novo modo de comportamentos “centros” em emergência. O hedonismo pós- e que no nível das práticas, vivências, valores -moderno anda a par com tendências profun- e representações da cidade implica uma con- das de avanço do individualismo (por meio da figuração das práticas e estilos de vida da autonomia individual e especificidade pessoal, urbanidade segundo um contexto de distinção nas palavras de Simmel), ambos alimentados social da individualidade (a necessidade da di- pelas relações quantitativas, objetivas e fun- ferença em Simmel, alimentada paradoxalmen- cionais da grande cidade, ambos ancorados na te pela tendência de esmagadora igualização noção de liberdade que o ambiente social ur- em meio urbano), que permita o mínimo pos- bano confere e permite desde tempos imemo- sível de coação, austeridade, constrangimento riais, configurando o protótipo da vida mental e o máximo possível de opções, desejo e prazer. na metrópole (pós)moderna já estudado pela Esse processo de personalização que se esten- análise simmeliana. de aos mais variados quadrantes da vida e da Ley (1986, 1994, 1996) deixa também atividade humana está na origem de uma in- muito claro que muito do que se reflete no tensa diferenciação social da estrutura urbana, processo de gentrificação resulta de mudanças contribuindo para aquilo que alguns autores no domínio social e cultural que não só reper- designam por fragmentação territorial e que cutem implicações pontuais nas práticas e vi- se tem vindo a aprofundar ao longo do último vências quotidianas ou nos modelos de repre- século, com maior intensidade nas últimas qua- sentação e valores desses setores sociais mais tro décadas de capitalismo avançado e tardio. específicos, mas como também se têm vindo É em grande medida a fragmentação/diferen- a reforçar no conjunto da estrutura social das ciação social que estrutura uma fragmentação sociedades ocidentais contemporâneas. É o territorial. caso da emergência do que Lipovetsky (1983) Esse processo de personalização orienta definiu como o individualismo contemporâneo. toda a configuração da estrutura motivacional O universo contemporâneo, dominado pelos do gentrifier e aplica-se no âmbito das práticas objetos, pelas imagens, pela informação e pe- inerentes ao processo de gentrificação, na me- los valores hedonistas e permissivos, pela re- dida em que o sucesso das áreas centrais da volução do consumo, pelo culto da libertação cidade e a eficácia do seu eixo de atratividade pessoal e da descontração gerou uma nova territorial variam em razão direta do grau de forma de controle dos comportamentos, uma satisfação daquele processo de personalização. diversificação e transformação dos estilos de Este domina profundamente todos os aspec- vida, uma oscilação constante das crenças e tos subjacentes ao fenômeno da gentrificação dos papéis sociais assumidos. Melhor dizen- (possibilidade de apropriação dos aspectos his- do, trata-se de uma nova fase na história do tóricos, patrimoniais e arquitetônicos das áreas individualismo ocidental, a do processo de antigas da cidade), uma vez que, doravante e personalização. na esfera da oferta por parte dos promotores Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 491 Luís Mendes imobiliários e no campo da produção em geral, espaço-bairro histórico enquanto meio cons- todos estes se fixam na prioridade de maximi- trutivo da identidade do gentrifier não se coa- zar a satisfação das motivações e desejos do duna com a aplicação de uma teoria classista, gentrifier, entendido como indivíduo único na uma vez que contrariaria a própria essência sua expressão singular. da identidade que, por natureza, se afirma e Por outro lado, para se entender a im- define na diferença e no particular, nunca atra- portância do espaço na construção da iden- vés de práticas culturais e sociais homogêneas tidade social terá que se partir do princípio induzidas e condicionadas pelo meio da clas- de que a identidade se define e se afirma na se socioeconômica. Essa perspectiva analítica diferença (Bourdieu, 1979). Assim, a identi- tem gozado de vantagens evidentes nos últi- dade não pode representar uma contínua ho- mos escritos sobre a gentrificação, contudo, mogeneidade de práticas, valores e represen- não resolve as dificuldades de explicação da tações nos diversos domínios culturais, dada pluralidade discrepante de práticas, estraté- a poliforma de contextos situacionais que em gias e motivações de consumo no interior da si mesmos determinam a produção de expres- mesma classe. Porém, e ainda assim, dá con- sões identitárias particulares. É necessário ta das transformações inerentes à geografia entender-se que o efeito de convergência de da apropriação social do espaço urbano na práticas sociais e culturais na condição do que sociedade e economia tardiomodernas e, si- é ser gentrifier é suscitado pela própria con- multaneamente, da incapacidade dos modelos dição e não à partilha conjunta das mesmas teóricos tradicionais adotados com o objetivo situações socioeconômicas. A compreensão do da sua explicação. Luís Mendes Mestre em Estudos Urbanos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É Investigador Permanente no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa. Lisboa, Portugal. [email protected] Nota (1) Ver referências fundamentais da literatura científica dedicada à pós-modernidade e com influência na Geografia: Harvey (1989, 1996); Dear, (2000); Dear e Flusty (2002); Soja (1989, 2001); Benko e Strohmayer (1997); entre outros. 492 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado Referências ASCHER, F. (1998). Metapolis. Acerca do Futuro da Cidade. Oeiras, Celta. BARATA SALGUEIRO, T. (1994). Novos produtos imobiliários e reestruturação urbana. Finisterra, v. 29, n. 57, pp. 79-101. ______ (1997). Lisboa: metrópole policêntrica e fragmentada. 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Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 473-495, jul/dez 2011 495 El fenómeno de contraurbanización y el protagonismo de ciudades menores y de espacios rururbanos metropolitanos The phenomenon of counterurbanization and the prominence of smaller cities and rururban metropolitan areas María Mercedes Cardoso Resumen El modelo clásico de ciudad se ve transformado por una serie de procesos que responden a las características de esta Era Informacional: desconcentración poblacional y económica, descentralización funcional, movimientos pendulares de trabajadores, difusión urbana, repoblación rural, crisis de las grandes aglomeraciones y dinamismo de las pequeñas y medianas ciudades. La dinámica demográfica inter e intraurbana del Área Metropolitana de Santa Fe pone en evidencia el nuevo protagonismo de las ciudades menores y de los suburbios (constituidos tanto por espacios ganadores – barrios cerrados –, como los perdedores – de villa miseria) y espacios rururbanos (anteriormente rurales); queda demostrado el fenómeno de la contraurbanización en Argentina, brindando herramientas para comprender los complejos procesos que en América Latina se suscitan y actuar sobre ellos. Abstract The classical model of city is transformed by a series of processes that respond to the characteristics of this Informational Era: population and economic deconcentration, functional decentralization, pendular movements of workers , urban spread, rural repopulation, crisis of large agglomerations and dynamism of small and medium-sized cities. The inter- and intra-urban demographic dynamics of the metropolitan area of Santa Fe, shows the new leading role of the smaller cities and the suburbs constituted both by winning spaces (fenced condominiums), loser ones (slums) and rururbans spaces (previously called rural). Thereby we observed the phenomenon of counterurbanization in Argentina, which offered us the tools to understand the complex processes that happen in Latin America and make it possible to act on them. Palabras claves: contraurbanización; crisi urbana; pequeñas ciudades; suburbios metropolitanos; espacio rururbano. Keywords: counterurbanization; urban crisis; minor cities; metropolitan suburbs; rururbans spaces. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 María Mercedes Cardoso Introducción a la vez que en una mejora en los niveles de escolarización rural. Su paralelo en Europa Occidental se sitúa una década más tarde, pero En la transición de la Era Industrial a la Post- con ciertas similitudes, al igual que en Canadá industrial o Informacional el elemento que y Australia. Coinciden, también en que en los cambia más vertiginosamente es la ciudad. Ya 80 se evidencia el resurgimiento de las grandes poco queda del modelo tradicional conforme ciudades, para luego experimentar un nuevo la sociedad evoluciona. Nuevos procesos crecimiento de las pequeñas ciudades y zonas productivos tienen su expresión en el espacio, rurales, en los años 90. la estructura social emergente refleja relaciones La contraurbanización no se restringe, sociales diferentes a las imperantes en la entonces, a espacios del mundo desarrollado. Modernidad, los estilos de vida y los gustos En América Latina se observa con algunas de la población, así como las necesidades, repercusiones diferentes, propias del contexto también han variado. económico, político y socio-cultural. En esta En el ámbito internacional, alrededor región del mundo, si bien no se han hecho de 1970 comienza a observarse (algunos estudios explícitos de contraurbanización, autores ya lo ubican en 1960, como Hall, si de nuevos patrones de redistribución de 1981, 1983), en algunas áreas metropolitanas población y flujos migratorios, es dable pensar estadounidenses ciertos cambios en los que alrededor de los 90 se dan indicios de modelos de asentamientos propios de los contraurbanización en aquellas metrópolis países industrializados. Esto es, los centros millonarias asociadas a la industrialización. metropolitanos más antiguos, relacionados Argentina, en este contexto, tras haber estrechamente a la industria tradicional constituido su sistema urbano macrocéfalo empiezan a perder atractivo demográfico y reforzado en el período de industrialización por lo tanto dejan de crecer, mientras que las sustitutiva, experimenta una transformación periferias residenciales continúan haciéndolo. en las tendencias de crecimiento poblacional Al mismo tiempo, espacios no metropolitanos, y económico en los últimos censos, viéndose localidades menores y áreas rurales alejadas como Capital Federal pierde población entre inician un incremento demográfico nunca antes 1991 y 2001, mientras que los municipios visto a costa de aquellos que abandonaban más alejados y el espacio rural circundante dichas áreas centrales. reciben esos elementos. Una de las principales En 1979, Bradshaw y Blakely descubren novedades de este trabajo radica en presentar un proceso de cambio en el medio rural de el caso de un área metropolitana menor, como California, iniciado en los años 50´ y basado en Santa Fe, poco asociada a la industrialización, el desarrollo de una sociedad rural avanzada en la que se evidencian los procesos estudiados en la que el sector servicios crecía fuertemente a través del mayor dinamismo de los pueblos en detrimento del industrial, traduciéndose grandes y del espacio rururbano y rural en un incremento demográfico y económico, circundante. 498 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... El diagnóstico de los procesos de económica y demográfica de los espacios contraurbanización en el Área Metropolitana de rurales provocada por la Revolución Agrícola Santa Fe fue realizado a partir del análisis de los e Industrial. La Revolución informacional de censos poblacionales y económicos y del tráfico los años 70 del siglo pasado, con el desarrollo medio diario en las rutas que lo estructuran, de las innovaciones tecnológicas y de las indicativo de las relaciones y movimientos de comunicaciones favorece al éxodo urbano: trabajadores, bienes y servicios. Ésta, como una movimientos centrífugos de población desde de las metrópolis regionales argentinas, una el centro de las grandes ciudades hacia de las ciudades de tamaño intermedio, resulta las zonas suburbanas o ciudades menores, de significativo interés por cuanto concentra la provocando el fenómeno del Declive Urbano dinámica más relevante que define esta nueva y el Renacimiento Rural. Se habla de Declive tendencia urbana. Urbano en el sentido de la reducción del A nivel intraurbano, se pone el acento en dinamismo económico y demográfico de las el nuevo espacio suburbano y rururbano, pues grandes ciudades, fenómeno detectado a partir allí “conviven” poblaciones de altos recursos, de los años ´60, pero intensificado en los ’70 y quienes procuran autosegregarse privatizando ’80. Dicho dinamismo se traslada ahora a las el espacio público, y los llamados marginales, ciudades pequeñas o áreas rurales. sectores cada vez más densos y extensos, La crisis se distribuye selectivamente separados del anterior por una valla, un río, según tamaños urbanos, afectando más una vía de tren; otro claro ejemplo de dualidad intensamente a las ciudades mayores y a urbana. regiones de más antigua urbanización, en especial cuando han experimentado una urbanización temprana, caso de Europa. Un Nuevos procesos urbanos: el fenómeno de contraurbanización mismo país o región puede presentar cuadros críticos muy contrastados, que requieran tratamientos diferenciados (Valenzuela, 1988, p. 122). Para el caso de las ciudades latinoamericanas, el declive urbano también La crisis urbana por la que se está atravesando se evidencia principalmente en las ciudades hace unas décadas reviste gran complejidad; mayores, las cuales reducen considerablemente en ella se incluyen los siguientes fenómenos su crecimiento y hasta comienzan a perder de interés para los estudiosos del urbanismo: población y actividades en los municipios d e c l i v e u r b a n o, r e n a c i m i e n t o r u r a l , centrales. En Buenos Aires, ciudad que contraurbanización. encabeza la primacía urbana nacional, la La Era Industrial se caracterizó por pérdida de población del municipio nuclear una urbanización concentrada, por un (Capital Federal), la disminución de la crecimiento de la población urbana gracias densidad de población en el centro comercial y a los flujos de población rural, es decir, que financiero, y el desplazamiento de la actividad estuvo relacionada estrechamente a la crisis industrial desde el centro de la metrópoli Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 499 María Mercedes Cardoso hacia la periferia seguido de un proceso Las tasas de concentración urbana, de terciarización de dicho centro (Gómez reflejo de la proporción de población del país Insausti, 1992, p. 457) está representando que vive en la primera ciudad de la jerarquía la contraurbanización a nivel intraurbano. urbana nacional, tienen una tendencia a Cotejando los datos de los censos, entre descender (entre 1991 y 2001) y a aumentar 1991 y 2001 Capital Federal pierde 189.265 levemente para 2010, indicativo de una mejor habitantes, es decir el 6,4% de su población; redistribución de la población en localidades de entre 2001 y 2010 gana 114.950 o sea el menor tamaño. 4,14%, representando una leve recuperación, R o s a r i o, t e r c e r a c i u d a d d e l a pero que aún no revierte la tendencia. Es jerarquía urbana argentina, registra una notorio, además, la mayor variación intercensal desconcentración relativa, que probablemente de la corona metropolitana: los 24 partidos del muy pronto será absoluta al igual que la Ciudad Gran Buenos Aires, en comparación con Ciudad de Buenos Aires, puesto que la población del Autónoma. municipio nuclear en 1991 era de 907.718 Cuadro 1 – Población y variación intercensal del Área Metropolitana de Buenos Aires y sus componentes en las 3 últimas décadas 1991 Ciudad Autónoma de Buenos Aires 24 partidos del Gran Buenos Aires Área Metropolitana de Buenos Aires 2.965.403 2001 2010 2.776.138 Variación intercensal ’91-’01 2.891.082 Variación intercensal ‘09-’10 -6,4% 4,14% 7.952.624 8.684.437 9.910.282 9,2% 12,37% 10.918.027 11.460.575 12.801.364 4,97% 10,47% Fuente: INDEC. Censo Nacional de Población y Vivienda, 2001 y 2010. Cuadro 2 – Evolución de las tasas de concentración urbana en Argentina Año Población total (PT) Ciudad de mayor tamaño (CM) Tasa de concentración urbana (CM/PT) 1991 32.615.528 10.918.027 33,47 2001 36.260.130 11.460.575 31,61 2010 40.091.359 12.801.364 31,93 Fuente: INDEC. Censo Nacional de Población y Vivienda, 2001 y 2010. 500 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... habitantes y para 2001, 908.163 habitantes, a la universalidad de la teoría de la por lo que su variación intercensal es de Contraurbanización, extendiendo este 0,05%, muy inferior a la de Santa Fe (4,4%), fenómeno a países en vías de desarrollo caso que en el siguiente apartado analizaremos como Argentina (Cardoso, 2008). puntualmente. Este proceso de cambio que viene a Estos nuevos procesos urbanos son alimentados por 3 factores principales: transformar tan radicalmente la realidad 1) Auge de un nuevo modelo de urbana generó, en la literatura científica desarrollo endógeno, botton-up o desde numerosas y variadas explicaciones y teorías. abajo, que favorece el protagonismo de las Para algunos se incorpora como una fase más regiones y localidades, teniendo a las PyMEs en el desarrollo de una metrópoli: llamada (pequeñas y medianas empresas) y a su fuerza desurbanización, en la que luego de la de trabajo como actores centrales y otorgando suburbanización, “la población de la ciudad al estado (o municipio) su rol de facilitador de central comienza a descender a un nivel tal oportunidades, más que un mero redistribuidor que de ello resulta un descenso absoluto de la de recursos públicos. En este contexto, población de toda la región urbana funcional” [...] el territorio, como condensación y expresión cultural-espacial de las múltiples relaciones de sus actores históricamente desarrollados, ha sido presentado como “el ámbito” para la generación de estas formas de desarrollo flexibles a que dan lugar las redes locales. (Fernández, 1999, p. 135). (Estebanez, 1988, p. 454). Luego sobreviene la fase de reurbanización provocada por el éxito de los programas de renovación. Para otros, en cambio, es una tendencia de peso que no tiene vuelta atrás. Una definición genérica de contraurbanización1 es la de Ferrás Sexto: [...] contraurbanización es el proceso de movimiento desconcentrado de personas y actividades económicas desde las áreas urbanas hacia las rurales. Implica la aceleración de la desconcentración en las áreas urbanas y el consiguiente crecimiento en determinadas áreas rurales de los países desarrollados. (1998, p. 607). 2) Nuevas vías de circulación rápidas que comunican la ciudad con los suburbios y un mayor acceso, de la población en general, al coche. 3) N u e va s p r e f e r e n c i a s s o c i a l e s de residir en espacios más verdes, menos congestionados (la llamada ideología clorofila, cada vez más extendida en la población), acompañado de unos precios de los predios El diagnóstico realizado en el Área Metropolitana de Santa Fe contribuye Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 comparativamente más bajos que en la ciudad o en sus zonas céntricas. 501 María Mercedes Cardoso Contraurbanización en el Área Metropolitana de Santa Fe: el dinamismo de ciudades menores metropolitano por la gran importancia y extensión del fenómeno, considera la expansión física, los procesos económico, demográficos y las dinámicas espaciales generadas entre ciudades vecinas en la conformación de zonas metropolitanas. Ellas tienen que reunir los siguientes requisitos: Definición y delimitación del área de estudio que el municipio central cuente al menos con 50.000 habitantes, que de la población ocupada de los municipios conurbados, el La aglomeración Gran Santa Fe, capital de la 15% o más trabaje en el municipio central, provincia homónima, es considerada una “ATI que el porcentaje de la población empleada mayor” (aglomeración de tamaño intermedio); en los municipios conurbados, el 10% o más se ubica en el octavo lugar en la jerarquía provenga del municipio central, que el 75% o urbana nacional con 454.238 habitantes en mas de la población económicamente activa 2001. de los municipios conurbados esté ocupada El término área metropolitana surge por en actividades no agrícolas, que los municipios primera vez en Estados Unidos para dar nombre conurbados cuenten con una densidad al nuevo proceso urbano emergente. Se utiliza media urbana de por lo menos 20 habitantes oficialmente en 1910 por el United States por hectárea y que la localidad conurbada Census Bureau. En 1950 se define Stándard funcionalmente se encuentre ubicada a Metropolitan Area a un condado o grupo de menos de 10 kilómetros por carretera de condados contiguos que contiene, cuando la conurbación que da origen a la zona menos, una ciudad de 50.000 habitantes. metropolitana (Inegi, Conapo, Sedesol, 2004). Se incluyen los condados contiguos siempre El área metropolitana, en la actualidad, que sean esencialmente metropolitanos por se basa en unas relaciones de interdependencia su carácter y estén social y económicamente entre una serie de núcleos generalmente integrados a la ciudad central siguiendo más pequeños (en términos de habitantes) algunos criterios: que ese condado sea lugar y con un menor grado de especialización de trabajo o vivienda para trabajadores no funcional y una ciudad central en la que agrícolas al menos en un 75% y que la densidad se localizan ciertas funciones dominantes. de población no sea inferior a 150 personas En síntesis, se define por la existencia de por milla cuadrada. En 1960 se actualiza el una ciudad central y un hinterland , por término agregándole la palabra “stadistical”, las relaciones de interdependencia mutua quedando “Stándard Metropolitan Stadistical entre ambos componentes, dándose una Area” (SMSA), incluyéndose nuevos aspectos. diferenciación funcional jerarquizada, con Cada país toma y redefine dicho un sistema de transportes y comunicaciones concepto estableciendo sus propios criterios lo suficientemente desarrollado como para de delimitación. Por ejemplo, México, país estructurar dichas relaciones. 502 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... Dado que el área de influencia de las encuentran en una interdependencia funcional funciones de Santa Fe es más amplia que la muy estrecha, debido a la especialización, que que considera INDEC (Instituto Nacional de se dio espontáneamente, de las actividades. Por Estadísticas y Censo de la República Argentina) ejemplo, la ciudad principal, Santa Fe, es capital bajo el criterio de población, integrarían el de provincia, por lo que desempeña funciones Gran Santa Fe las siguientes: Santa Fe: ciudad político – administrativas, y consecuentemente, principal del área metropolitana, incluye Alto desarrolló una gama de servicios bastante Verde, Colastiné Norte y Sur y La Guardia; especializados, al punto de que las demás Santo Tomé, Sauce Viejo, comprende Sauce localidades acuden a ella. Viejo – que incluye Villa Angelita – y Villa Las localidades del norte de Santa Adelina – incluye Villa Adelina este y oeste Fe (Monte Vera, Recreo, Ángel Gallardo, y Parque Industrial; San Agustín, al sur; Santa Rosa) representan el “cinturón fruti- Recreo, al norte, incluye Loteo Ituzaingó y hortícola”, se especializan en producción de San Cayetano; Monte Vera; Ángel Gallardo; frutas, verduras y flores que suministran a Arroyo Aguiar; Santa Rosa de Calchines; toda la zona. Esperanza, Franck, San Carlos, Gobernador Candioti; Campo Andino (hasta San Jerónimo Norte y del Sauce, Humboldt y 1991 denominado San Pedro); Laguna Paiva; Empalme San Carlos constituyen la cuenca Nelson; San José del Rincón, al este de Santa lechera, un área de trascendencia nacional. A Fe; Arroyo Leyes, comprende Arroyo Leyes su vez, la industrialización de la leche abastece y Rincón Norte; hacia el oeste de Santa Fe, a la región, y se comercializa a nivel nacional incluimos: Esperanza (según el censo de e internacional (en ciertos productos). Estas 2001 incluye Barrio Alborada y Barrio Anahí); ciudades, antiguas colonias agrícolas de Franck; Empalme San Carlos; San Carlos inmigrantes alemanes, suizos, franceses – Centro – San Carlos Sur; San Carlos Norte; preferentemente –, por su vocación artesanal, San Jerónimo Norte; San Jerónimo del Sauce; desarrollaron industrias destacadas como las Humboldt; Las Tunas. mueblerías, fábricas de arados, de calderas, Todos estos municipios y comunas, en Esperanza, o vidriería en San Carlos, etc. que reúnen para 2001 un total de 558.352 Las relaciones comerciales y laborales entre 2 habitantes en 4.957 km , con una densidad 2 media poblacional de 86,45 hab/km , se Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 ellas dan el dinamismo que define este tipo de aglomeración. 503 María Mercedes Cardoso Figura 1 – Localidades del área metropolitana de Santa Fé 504 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... población de las 25 localidades del área, desde Diagnosis de los procesos de contraurbanización en el Área Metropolitana de Santa Fe 1960 hasta 2001 permite extraer algunos indicios. Entre 1980 y 2001 el Gran Santa Fe Los procesos de contraurbanización se disminuye su variación intercensal a la mitad manifiestan en los aspectos tanto demográficos (de 21,3 a 11,8%), a pesar de incorporar a Villa como económicos. El análisis de los censos de Angelita, Arroyo Leyes y Rincón Norte. Cuadro 3 – Evolución de la población y variación intercensal en el Área Metropolitana de Santa Fe, por localidad Año 1960 Año 1970 Período ‘60-’70 (%) Año 1980 Período ‘70-’80 (%) Año 1991 Período ‘80-’90 (%) Año 2001 208.350 244.655 17,4 295.350 20,7 353.063 19,5 368.668 4,4 Recreo 1.097 2.046 86,5 3.535 72,8 7.626 115,7 10.714 40,5 San José del Rincón 1.310 2.367 80,7 3.193 34,9 4.738 48,4 8.480 79 276 - - 618 - 870 40,8 6.505 647,7 Localidad Santa Fe Sauce Viejo Arroyo Leyes Período ‘91-’01 (%) - - - - - 35 - 1.594 4.454,3 Esperanza 14.572 17.636 21 23.277 32 28.605 22,9 33.672 17,7 Humboldt 1.229 1.569 27,7 2.063 31,4 2.642 28,1 3.269 23,7 San Carlos Centro 4.786 5.973 24,8 7.612 27,4 8.868 16,5 10.068 13,5 San Jerónimo Norte 2.928 3.686 25,9 4.435 20,3 4.891 10,3 5.449 11,4 Empalme San Carlos 79 - - - - 52 - 101 94,2 Campo Andino 252 - - - - 186 - 302 62,4 Angel Gallardo 95 - - - - 271 - 519 91,5 Fuente: Elaboración propia a partir de los datos de los censos del INDEC. Se presentan valores de localidades seleccionadas para demostrar los indicios de contraurbanización que conducen a las siguientes conclusiones. La ciudad principal, Santa Fe siempre tuvo crecimiento poblacional, alcanzando su ápice entre 1970-1980 con 20,7%, para luego caer a 4,4% (entre ´91-´01), obteniendo el segundo valor más bajo de toda el área metropolitana. Estimamos que en las próximas décadas su crecimiento será negativo, de continuar con las mismas tendencias. ● Las localidades que mayor variación intercensal presentan (´91-´01) son Sauce Viejo y Arroyo Leyes; la primera una localidad de 6.505 hab. y la segunda de 1.594, ubicada junto al río, zona de pescadores y viviendas de segunda residencia. Sauce Viejo pasó de ser población rural a la categoría de pueblo grande (de 2.000 a 19.999 habitantes) y Arroyo Leyes sigue siendo espacio rural, pero con un crecimiento tal que pronto dejará de serlo. ● Son las localidades menos pobladas las que tienen mayor crecimiento. Por ejemplo: las dos anteriores, Sauce Viejo y Arroyo Leyes, Ángel Gallardo, Campo Andino, San José del Rincón, Empalme San Carlos, todas con tasas altas de variación intercensal, más del 40%. ● Las que ostentan mayor crecimiento son las localidades que tienen viviendas de segunda residencia: San José del Rincón, Sauce Viejo, Arroyo Leyes, asociado al auge del turismo de río e islas y al cambio en las preferencias sociales. ● ● Las localidades de la cuenca lechera, de tamaño medio, crecen en todos los períodos, pero moderadamente, en su mayoría. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 505 María Mercedes Cardoso Desde 1960 hasta la actualidad se está era campo o población dispersa (35 hab.) y en produciendo una desconcentración relativa, 2001 registra 1.594 hab., con una variación muy marcada en el último período ´91-´01, intercensal de 4.454,3%), contribuyen de caracterizado por el crecimiento de casi todas las manera positiva a la redistribución demográfica localidades, especialmente las más pequeñas, y económica en el espacio. del área y por el menor crecimiento de la ciudad En cuanto a los aspectos económicos, principal Santa Fe (y cada vez menor década Santa Fe se terciariza cada vez más y se tras década). Estos movimientos centrífugos de especializa en los servicios. Este factor provoca población y actividades desde grandes ciudades el aumento de la afluencia de población desde hacia pequeños asentamientos urbanos (por las demás localidades, con todos los trastornos ejemplo Rincón, Ángel Gallardo, Sauce Viejo) y que ello conlleva (en términos de impacto rurales (es el caso de Arroyo Leyes que en 1991 ambiental). Cuadro 4 – Puestos de trabajo ocupados en total ramas de actividad. Localidades el AMSF, 2004 Santa Fe Total del puestos de trabajo ocupados Asalariados Nº asalariados 37,852 26,159 11,693 Santo Tomé 3,197 1,909 1,288 Sauce Viejo 801 720 81 Laguna Paiva 712 316 396 1,071 747 324 Monte Vera 419 225 194 Nelson 181 69 112 San Jose del Rincón 143 57 86 35 11 24 5,538 3,960 1,578 510 332 178 Recreo Arroyo Aguiar Esperanza Franck Humboldt San Carlos Centro San Carlos Sur San Jerónimo Norte 470 242 228 1,880 1,303 577 51 9 42 544 267 277 Fuente: Elaboración propia a partir de los datos del Censo Nacional Económico 2004/05 del INDEC. 506 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... La ciudad de Santa Fe registra más puestos de trabajo ocupados en servicios, de establecimientos y puestos de trabajo en los sectores industria, comercio y servicios. en primer lugar, y en comercio, en segundo En el ámbito económico, los factores y con bastante diferencia cuantitativa en involucrados en los procesos dados en las industria (menos de la mitad) en último últimas décadas en Argentina tienen una lugar. Santo Tomé emplea más personas en gran complejidad que no nos permiten comercio y servicios, siendo la industria el concluir simplemente diciendo que ocurrió sector que menos trabajadores demanda. una desconcentración y descentralización de Otras localidades ocupan más trabajadores en actividades y funciones. Las crisis económicas industria, destacándose Esperanza, Franck, San sucesivas, la desindustrialización afectaron a Jerónimo Norte, Sauce Viejo, dándose así la casi todas las localidades, sin embargo, (y este complementariedad que caracteriza a las áreas punto es de interés para esta investigación) la metropolitanas. localidad de Santa Fe pierde establecimientos y Datos que demuestran el proceso de puestos de trabajo en la industria y el comercio, contraurbanización en los aspectos económicos pero no ocurre lo mismo en servicios, mientras son los referentes a la evolución en la cantidad que otras localidades los ganan. En las tablas 5, 6 y 7 presentamos algunos ejemplos. Cuadro 5 – Evolución de la industria en las localidades del AMSF desde 1974 a 2004 Cantidad de establecimientos Cantidad de puestos de trabajo Localidad Santa Fe Santo Tomé Recreo San José del Rincón Sauce Viejo Laguna Paiva 1974 1985 1994 2004 1974 1985 1994 2004 1.188 1.003 1.057 143 129 108 702 8.812 7.813 6.332 4.767 107 1.091 964 815 858 19 50 16 34 83 763 396 592 9 - 5 6 119 - 19 37 15 16 23 29 2.572 652 530 681 7 42 21 17 27 110 225 165 277 222 223 254 2.470 2.578 2.438 2.651 Franck 6 25 31 27 83 386 588 251 Humboldt 7 26 22 30 88 205 247 107 Esperanza Fuente: Elaboración propia a partir de los datos de los Censos Nacionales Económicos 1974, 1985, 1994 y 2004/05 del INDEC. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 507 María Mercedes Cardoso Cuadro 6 – Evolución del comercio en las localidades del AMSF desde 1974 a 2004 Cantidad de establecimientos Cantidad de puestos de trabajo Localidad 1974 1985 1994 2004 1974 1985 1994 2004 6.186 6.805 5.991 5.309 17.602 18.478 15.041 16.099 576 803 764 646 1.116 1.623 1.551 1.545 62 120 86 153 118 295 142 379 San José del Rincón 50 SD 47 43 77 SD 78 82 Sauce Viejo 33 36 30 30 99 94 50 66 Santa Fe Santo Tomé Recreo Fuente: Elaboración propia a partir de los datos de los Censos Nacionales Económicos 1974, 1985, 1994 y 2004/05 del INDEC. Cuadro 7 – Evolución de los servicios en las localidades del AMSF desde 1974 a 2004 Cantidad de establecimientos Cantidad de puestos de trabajo Localidad 1974 1985 1994 2004 1974 1985 1994 2004 1.715 2.498 4.214 4.056 10.295 9.353 17.196 17.392 148 282 347 363 289 554 1.228 804 Recreo 18 53 29 60 24 89 197 135 San José del Rincón 11 SD 15 12 15 SD 43 19 6 11 13 15 34 23 25 3 Santa Fe Santo Tomé Sauce Viejo Fuente: Elaboración propia a partir de los datos de los Censos Nacionales Económicos 1974, 1985, 1994 y 2004/05 del INDEC. Para los datos del Censo 2004 / 05, Dentro del AMSF se da el fenómeno de en sector servicios se sumaron los valores las migraciones pendulares: personas que correspondientes a hoteles y restaurantes, residen en diferentes puntos de la corona servicios de transportes y anexos al mismo, metropolitana y acuden diariamente a Santa comunicaciones, financieros, educativos, Fe a trabajar en la Administración Pública, inmobiliarios, de salud y personales, no servicios u otras actividades, o a realizar pudiendo integrar se de obras sociales compras, trámites o estudios, y por la noche y medicina prepaga que no están regresan a sus hogares. especificados por localidad, sino que INDEC Una forma de medir o cuantificar este los contabiliza para el total de la provincia: fenómeno es analizando el TMD (tráfico total de establecimientos=158; puestos de medio diario) de las rutas que comunican las trabajo=4.878. localidades y que estructuran el espacio. 508 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... El AMSF está comunicado tanto por rutas de 271 metros cada una, que comunica con nacionales como provinciales. La RN 11 que va la ciudad de Paraná. Desde los tiempos de desde Rosario a Clorinda (Formosa) con destino la conquista española, el río Paraná fue un a Paraguay es la principal vía de circulación eje de organización del espacio, en torno a de la provincia; comunica todo el AMSF con él se asentaban las ciudades más pobladas y Rosario y luego con Buenos Aires (a través de la dinámicas que luego llegarían a ser capitales RN 21). Gracias a la construcción de la autopista de provincia: Santa Fe, Paraná y Corrientes. Santa Fe – Rosario – Arroyo del Medio se puede También el río significó un obstáculo para la transitar rápidamente y de modo más seguro comunicación entre las provincias del litoral, entre estas ciudades del frente fluvial. principalmente debido al amplio lecho de La RN 19, desde la RN 11 en Santo inundación del Paraná, con sus lagunas, islas, Tomé se dirige a Córdoba, pasando por San arroyos y riachos que representan un verdadero Francisco. Ambas rutas nacionales son las que obstáculo. Es así como la RN 168 comunica hoy presentan una mayor densidad de TMD, tal y desde 1960 Santa Fe con Paraná a través del como se analizará a continuación, señalando lecho del Paraná gracias a una serie de puentes la importancia de Santa Fe como centro y el túnel. estratégico en la provincia y el país. La RP 1 llamada “camino de la costa” va La RN 168 comunica Santa Fe con el desde la RN168 hasta Reconquista (en el norte atracadero de balsas del Paraná y el acceso al provincial) comunicando Colastiné, La Guardia Túnel Subfluvial, obra de ingeniería de 2449 y San José del Rincón. La RP 4 enlaza Laguna metros de largo, con 2397 metros de sección Paiva y Nelson con San Cristóbal (noroeste entubada (36 tubos) y dos rampas de acceso provincial). Cuadro 8 – Tráfico Medio Diario por ruta nacional en los tramos comprendidos entre localidades del AMSF según clasificación vehicular. Año 2002. Ruta Limite del tramo 11 RN 19 - Santa Fe (entrada) 11 Santa Fe (entrada) Santa Fe (salida) 11 Santa Fe (salida) RP 70 11 RP 70 - RP 4 Vehículos livianos Vehículos pesados Bus Sin acoplado Con acoplado Con semiacoplado Total TMD Autos Camionetas 460,65 464,6 3,95 SD 21.500 20.650 43.079,2 464,6 476,65 2,05 urbanos urbanos urbanos 943,3 476,65 483,16 6,18 SD 9.100 8750 18.815,99 483,16 507,82 24,72 SD 3.500 3350 7.865,7 19 RN 11 - RP 6 SD 28,92 28,97 SD 4.850 4600 9.507,89 168 RN 11 - RP 1 468,08 477,54 9,28 SD 15.300 14.500 30.754,2 477,54 487,68 10,86 8984 8869 8289 27.118,08 168 RP 1 - Acceso al túnel subfluvial Fuente: Elaboración propia a partir de datos de Vialidad Nacional, distrito Santa Fe, 2002. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 509 María Mercedes Cardoso Observando el cuadro del TMD en las del AMSF, cumplen la función de transporte de rutas nacionales del AMSF, datos del 2002, se mercancías a la región y al país, son nudos de evidencia un mayor tráfico en la RN 11, en el cambio de modos de transporte (fluvial, por tramo RN 19 y entrada a Santa Fe, es decir, carretera, por ferrocarril), también son rutas de entre Santo Tomé y Santa Fe. Este fenómeno paso hacia diversas direcciones (entre Paraná y se explica por lo siguiente: 1) principalmente el norte del país, desde Buenos Aires al norte esta vía es transitada por vehículos que vienen y oeste, etc.), y forman parte del llamado desde Rosario, la ciudad más grande y dinámica corredor Bioceánico de comunicación entre los de la provincia y la tercera del país, y a su vez países integrantes del Mercosur y asociados. desde Buenos Aires pasando por Rosario a Otra ruta de tráfico considerable es la través de la RN 21; 2) este tramo comunica las RN 11 entre la salida de Santa Fe y la RP 70, localidades más pobladas del AMSF: Santa Fe es decir, hasta Recreo, con 18.815,99 unidades y Santo Tomé. Muchas personas que radican vehiculares a través de ella se comunica Santa en Santo Tomé viajan a diario a trabajar, por Fe y el sur provincial con el Norte provincial y el compras, por servicios, diversión, etc. a Santa oeste (por la RP 70). En el cuadro se evidencia Fe, dicha localidad es percibida como un barrio el reparto del tráfico en estos dos rumbos, más de Santa Fe, puesto que solo las separa el puesto que la cantidad de vehículos de la RN puente carretero y no existe intersticio urbano 11 entre la RP 70 y la RP 4 se reduce a 7.865,7 entre ellas. Pese a ello, la existencia de una sola diarios. vía de comunicación entre las dos ciudades representa un problema de comunicación. En la RN 11 dentro de Santa Fe se contabilizan solo 943,3 vehículos livianos y En segundo lugar, teniendo en cuenta el 2,05 buses. Por la RN 19, en el tramo RN 11 – tráfico total del año 2002 en rutas nacionales, RP 6 rumbo a San Jerónimo Norte y San Carlos se observan elevadas cantidades de vehículos Centro el tráfico es de 9.507,89 vehículos/día. por día en la RN 168 entre la RN 11 y RN 1 con Entre los vehículos livianos predomina el uso 30.754,2 vehículos por día, principalmente del de las camionetas, para transporte de bienes tipo pesados con acoplados y semiacoplados; y servicios, y los coches para transporte de este tramo comunica Santa Fe con la RN 1 que personas. El uso de autobuses es más frecuente conduce hacia el norte a Colastiné, Rincón, en la RN 19 rumbo a San Jerónimo Norte y San Santa Rosa y hacia el este a Paraná. Este último Carlos Centro y en la RN 11, entre la RP 70 y tramo de la RN 168 (entre RP 1 y acceso al túnel) RP 4, por más que la cantidad de vehículos no también presenta elevados valores vehiculares: supere las 3 decenas, es necesario considerar 27.118,08 por día con una mayor participación que en cada autobús entran alrededor de 50 en ese total de los vehículos pesados sin personas, por lo tanto representa un medio acoplados, con acoplados y semiacoplados. de transporte en el AMSF muy importante, Este factor responde al hecho de que las rutas mientras que un coche puede transportar de 1 nacionales, además de comunicar localidades a 5 personas como máximo. 510 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... Cuadro 9 – Tráfico Medio Diario por ruta provincial en los tramos comprendidos entre localidades del AMSF según clasificación vehicular. Año 2004. Vehículos livianos Ruta Limite del tramo Automóviles y camionetas Vehículos pesados Autobuses Camión mediano Camión pesado Total TMD 70 RN 11 – RP 6 3348 (86%) 93 (2%) 235 (6%) 218 (6%) 3894 (100%) 6 San Carlos Sur – RN 19 1552 (85%) 34 (2%) 120 (7%) 130 (7%) 1836 (100%) 6 RP 250s – RP 70 2028 (77,7%) 34 (1,3%) 171 (6,55%) 377 (14,44%) 2610 (100%) 2 Santa Fe – RP 5 5416 (88%) 110 (2%) 337 (5%) 324 (5%) 6187 (100%) 2 RP 5 – Arroyo Aguiar 2017 (90%) 60 (3%) 109 (5%) 55 (2%) 2241 (100%) 2 Arroyo Aguiar – Laguna Paiva 1424 (90%) 51 (3%) 76 (5%) 26 (2%) 1577 (100%) 1 RN 168 – Acceso San José del Rincón 11172 (88%) 307 (2%) 661 (5%) 596 (5%) 12736 (100%) 1 Acceso San José del Rincón – Santa Rosa 1614 (83%) 44 (2%) 145 (7%) 145 (7%) 1948 (100%) Fuente: Elaboración propia a partir de datos de Vialidad Provincial de Santa Fe, 2004. En las rutas provinciales destaca el RP 70, entre la RN 11 y la RP 6, es decir, rumbo tráfico de la RP 1 entre la RN 168 y el acceso a a Esperanza, con 3.894 vehículos por día (86% Rincón con un total de 12.736 vehículos diarios son camionetas y autos). en 2004, lo notorio es que el 88% de ese tráfico En síntesis, podemos afirmar que a son automóviles y camionetas, indicativo de diferencia de las rutas nacionales que tienen que el tráfico lo realizan residentes de la zona; como función principal la comunicación y el además este tramo no es de gran relevancia en transporte de productos de la región y el país, la circulación regional o nacional. en las rutas provinciales predomina el tráfico En el tramo que sigue hacia el norte de vehículos livianos (coches y camionetas) de la RP 1, hasta Santa Rosa se reduce de transporte de personas en toda el AMSF. considerablemente el tráfico a 1.948, En este último, los autobuses tienen un papel también con un elevado porcentaje de preponderante, por más que su cantidad no autos y camionetas: 83%. Esto señala que el sea elevada, si lo es el volumen de población abundante tráfico del tramo anterior se dirige que transporta, por ejemplo, en la RP 1, a Rincón, Colastiné, La Guardia. tramo RN 168 y Rincón son 307 buses por En segundo lugar de tráfico en rutas día con capacidad para 50 personas, pueden provinciales se ubica la RP 2 entre Santa Fe y transportar hasta 15.350 personas por día (el la RP 5, con 6.187 vehículos y en tercer lugar la doble de la población de Rincón para 2001). Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 511 María Mercedes Cardoso Otro factor desencadenante de la 1) El centro urbano se densifica y se contraurbanización incipiente son las especializa cada vez más en ciertas funciones viviendas de segunda residencia: al ser un generales: comerciales y de servicios, medio dominado por ríos y lagunas, la gente desplazando la de residencia e industrial y construye sus “quintas” o casas de fines de dejando atrás la mezcla de funciones en el semana, en lugares de naturaleza inigualable espacio que caracterizó etapas anteriores. Santa como San José del Rincón, Arroyo Leyes, Santa Fe, como otras ciudades latinoamericanas, Rosa, Sauce Viejo y las localidades aledañas, posee un centro histórico, donde se ubican aprovechando el precio comparativamente más dependencias del Gobierno Provincial y bajo de los terrenos. El caso de San José del un centro comercial, donde se concentran Rincón, es destacable por su crecimiento. Nació las funciones político-administrativas del como lugar de “quintas” de los santafesinos; municipio, los comercios y los servicios, los creció y lo sigue haciendo de manera cuales atraen población de toda la ciudad y de asombrosa. localidades del área metropolitana. “El centro se convierte en ámbito de decisión” (Castells, 1988, p. 274); recibe el nombre de centro de Contraurbanización en el municipio nuclear Santa Fe: el dinamismo de los suburbios negocios, incluyendo la gestión pública, política y administrativa, considerando que el papel simbólico y la función comercial del viejo centro urbano tienden a difuminarse paulatinamente en el espacio. 2) La ciudad se expande hacia las afueras, La ciudad de Santa Fe ha tenido un significativo en un sentido centrífugo: surgen nuevos crecimiento desde mediados del siglo XIX barrios, principalmente al norte del ejido hasta mitad del XX, alcanzando unos valores urbano, puesto que al sur, al este y al oeste exorbitantes entre 1887 y 1895 con un 134,6%, su espacio se encuentra acotado por el río período en el cual se multiplicaron las vías Salado y el Sistema Lagunar Setúbal-Leyes. El ferroviarias en la provincia, enlazándose con las sentido de la expansión espacial se estructura de Buenos Aires, factor que facilitó la movilidad por los grandes ejes viarios, que corriendo de en toda la pampa y promovió el ingreso de norte a sur, abren nuevas urbanizaciones a los inmigrantes europeos llegados a la capital sus alrededores: Av. Gral. Paz, Av. Aristóbulo argentina hasta esta ciudad. Sin embargo, este del Valles, Av. Facundo Zuviría, Av. López y gran crecimiento se fue reduciendo década tras Planes (al sur), luego se transforma en Av. Gral. década hasta llegar a una variación intercensal Peñalosa y finalmente Av. Blas Parera. de 4,4% en el último período (1991-2001). 3) En las zonas aledañas al centro Los efectos del gran crecimiento histórico, asociadas a actividades que poblacional en la estructura de la ciudad fueron históricamente tuvieron gran dinamismo variados: como el puerto y el ferrocarril, pero que hoy 512 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... ya no desempeñan esas funciones, así como Fe, sino de una desconcentración absoluta, en amplias zonas del entorno suburbano, se la pérdida de población residente en el localizan espacios territorialmente deteriorados centro urbano. Si bien en el centro y su área y socialmente marginales. En los últimos años, circundante (vecinales Zona Sur, República del tanto el área del antiguo Puerto de Santa Fe, Oeste, Plaza España, Candioti Sur y Candioti como del Ferrocarril General Belgrano, Molino Norte) aun se construyen edificios de viviendas Marconetti, han sido objeto de rehabilitación habitación, la población decrece debido a que urbana (Zárate, 1992) pasando a desempeñar las funciones de servicios y comercio desplazan funciones culturales, de esparcimiento y la función de residencia casi completamente. entretenimiento (públicos y privados), cuyo Gran parte de las construcciones son hinterland excede el territorio del municipio destinadas a oficinas. En contraposición, las central. vecinales de las afueras de la ciudad tienen 4) En las últimas 4 décadas surgen los barrios en los suburbios de Santa Fe como mayor crecimiento, como por ejemplo destacan Colastiné Norte y Altos Noguera. lugares de viviendas de segunda residencia, Tal como se observa en el cuadro, las asociados al ocio, descanso y vacaciones. Sin vecinales aledañas al centro pierden población, embargo, es en las últimas 2 décadas que los a pesar de que entre 1991 y 2001 el INDEC mismos tienen un crecimiento poblacional sin ha modificado los límites de estas divisiones precedentes. administrativas y ha creado en esta zona Es evidencia de una desconcentración una nueva vecinal: Centro. Mientras que las ya no relativa, como la que se da a nivel vecinales de los suburbios tienen una variación interurbano en el área metropolitana de Santa intercensal exponencial. Cuadro 10 – Evolución de la población en algunas vecinales céntricas y de los suburbios de Santa Fe, 1991 a 2001 Vecinal Colastiné Norte Altos Nogueras 1991 2001 Variación intercensal 1991 - 2001 (%) 1.873 3.220 71,9 963 1.523 158,2 Zona Sur (Pedro Candioti) 17.918 11.090 -38,1 República del Oeste 11.434 10.046 -12,1 Plaza España 13.352 9.248 -30,7 Candioti Sur 7.203 6.236 -13,4 11.821 11.118 -5,9 Candioti Norte Fuente: IPEC, 1991, 2001. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 513 María Mercedes Cardoso Figura 2 – La contraurbanización en la ciudad de Santa Fe Los suburbios de las ciudades que los comunican con el resto de la ciudad; latinoamericanas constituyen paisajes y espacios perdedores: las villas miseria, antrópicos duales; se componen, desde sectores urbanos densos, no planificados, la perspectiva urbanística, de espacios ni loteados, carentes de servicios, de plano ganadores (Svampa, 2005): los barrios irregular, caótico, donde su población no tiene cerrados, delimitados con muros, de viviendas la propiedad del terreno y autoconstruye su unifamiliares, con amplios jardines y espacios vivienda con materiales de recuperación. comunes de ocio y deportes, dotados de La ubicación de los barrios cerrados, mal seguridad y sistemas de vigilancia privada que llamados privados, así como de las viviendas dan “sensación de seguridad” a sus usuarios, de segunda residencia de los santafesinos, poseedores de servicios y buenas vialidades generalmente provistas de amplio jardín 514 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... o parque, piscinas y hasta instalaciones Las vecinales de villa miseria santafesina deportivas, es a gran distancia del centro se ubican tanto en los suburbios, junto a los urbano, preferentemente en el ambiente de espacios ganadores (caso de Altos de Noguera, islas o en la ribera de los riachos o junto a ubicada al norte, Alto Verde, al este y La Guardia importantes vías de comunicación como la Colastiné, en la zona de la costa, donde residen autopista Santa Fe-Rosario. En los últimos pescadores), como en zonas aledañas al centro años, así como ocurrió con los clubes de urbano, caso de Villa del Parque, un barrio que campo, las viviendas de segunda residencia nació de cirujas2, gracias a la presencia de un pasaron a ser de residencia permanente gran basural, y de empleadas domésticas y gracias a la gran movilidad de la población, a acarreadores que trabajan en el centro, pero las vías rápidas de circulación y mejoras en los que en las últimas décadas se transformó en accesos a los barrios costeros (Colastiné Norte, un sitio donde imperan la venta de drogas, San José del Rincón, Arroyo Leyes, etc.), a las la prostitución, y demás delitos que tienen preferencias de la gente por vivir en lugares por actores centrales a las bandas urbanas, más tranquilos, en contacto con la naturaleza, instaurando un ambiente de inseguridad, vicio más seguros, menos contaminados, etc. y pobreza en el amplio sentido de la palabra. Cuadro 11 – Características socio-demográficas de la población en 2001 de algunas vecinales de clases bajas y altas en Santa Fe Vecinales de clase baja Indicador Vecinales de clase alta y media-alta La GuardiaColastiné Villa del Parque Altos de Noguera Alto Verde Colastiné Norte Redisencial Guadalupe Villa Setúbal Población 1991 1.190 3.990 963 5.983 1.873 – – Población 2001 4.573 3.066 1.523 7.351 3.220 4.584 2.297 Crecimiento intercensal ‘91-’01 284,3 -22,4 58,2 22,9 71,9 – – Población con NBI (1) (%). Media Ciudad: 13,9% 32,4 18,7 31,3 32,3 15 1,1 0,9 Promedio de hijos por mujer (2). Media Ciudad: 2 2,6 2,5 2,5 3 2 1,6 1,6 Desocupación (%). Media Ciudad: 25,9% 28,5 36,6 32,2 40 17,5 21 19,4 Población sin nivel de instrucción o primario incompleto (%). Media Ciudad: 12,4% 24,0 22,1 23,5 26,5 11,5 4,3 4,2 Hogares con deficiente calidad de materiales de la vivenda (3). (%) Media Ciudad: 2,49% 17 5,43 10,3 6,3 5,4 0,07 0 Fuente: IPEC 1991 y 2001. (1) NBI: Necesidades Básicas Insatisfechas. (2) Cociente entre la cantidad de hijos e hijas nacidos vivos y la cantidad de mujeres, de 14 años o más. (3) Viviendas que presentan materiales no resistentes ni sólidos o de desecho al menos en uno de parámetro considerados. Categoría CALMAT IV. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 515 María Mercedes Cardoso El grupo de variables seleccionadas Reglamento de Zonificación de usos del suelo permiten caracterizar la situación habitacional, urbano de 1984 y el actualizado en 2009 aún demográfica, educativa y económica de las no los incluye por su localización rururbana, personas, pudiendo observarse que las vecinales alejada de la ciudad. Constituyen un grupo de con el rótulo de clase baja se encuentran en emprendimientos surgidos en las dos últimas una posición de desventaja respecto de la décadas, en distintas etapas de avance: media de la ciudad y con grandes diferencias • Aires del llano, country club. Obra finalizada, respecto de las tres vecinales de clase alta y ubicada sobre la Autopista Santa Fe–Rosario, media alta estudiadas. La vecinal Colastiné km 5,5. Norte presenta valores intermedios puesto que • El Paso, country club. Obra finalizada (cuenta allí se identifican situaciones contrastadas, de con 204 viviendas construidas, 540 lotes de población de altos recursos y otros sectores en 165 ha en total y club de golf), ubicada sobre la transición a La Guardia-Colastiné en los que los Autopista Santa Fe–Rosario, km 7. indicadores corresponden a personas de bajos • La Tatenguita, barrio cerrado. Obra finalizada, recursos. ubicada sobre la Autopista Santa Fe–Rosario, Un indicador fiel de la segregación km 4. urbana son los altos porcentajes de población • El Pinar , barrio cerrado. Obra finalizada, con NBI, pues mide la pobreza estructural y ubicada sobre la Autopista Santa Fe–Rosario, es menos sensible a los cambios coyunturales km 4. de la economía. Los hogares con Necesidades • Altos de la Ribera, country club. Obra en Básicas Insatisfechas (NBI) son los que construcción, ubicada sobre la Autopista Santa presentan al menos una de las siguientes Fe–Rosario, km 7, frente a El Paso. Las Alamedas , barrio privado. Obra situaciones: hacinamiento (hogares que • tuvieran más de tres personas por cuarto), finalizada, ubicado sobre la Autopista Santa vivienda precaria o pieza de inquilinato, Fe–Rosario. condiciones sanitarias deficientes (sin retrete), • Dos Lagunas , barrio cerrado. Obra en asistencia escolar (algún niño en edad construcción, ubicado sobre la Autopista Santa escolar –de 6 a 12 años- que no asistiera a la Fe–Rosario, km 7, frente a El Paso. escuela) y capacidad de subsistencia (hogares • Los Molinos, club de golf. Obra finalizada, que tuvieran 4 o más personas por miembro ubicada en Recreo Sur, ruta 11, km 11. Área ocupado y cuyo jefe no haya completado tercer Metropolitana de Santa Fe. grado de escolaridad primaria). • Ubajay, country club. Obra finalizada, Los barrios cerrados de Santa Fe no se encuentran incluidos en el ejido urbano de ubicada en San José del Rincón, ruta 1, km 9. Área Metropolitana de Santa Fe. Portal del Leyes , country club. Obra la ciudad, ni integran alguna vecinal, por lo • que no se cuentan con datos demográficos finalizada, ubicada en Arroyo Leyes, ruta 1, km comparables a los de la tabla anterior. El 11,7. Área Metropolitana de Santa Fe. 516 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... Santa Fe vive el fenómeno de la dualidad urbana: Tanto los barrios “ricos” como los “pobres” contribuyen a la difusión urbana, Nos encontramos, en definitiva, con dos ciudades frente a frente: la ciudad rica y la ciudad pobre, o la ciudad blanca y la ciudad de color, con una separación constituida por las clases medias. El paso de una a otra es tanto más brusco cuanto más débiles son las clases medias. (Santos, 1973, p. 228) al obligar a Santa Fe a crecer en forma de “mancha de aceite”; los barrios cerrados, al impedir el ingreso y circulación de cualquier persona en su interior, hacen los recorridos urbanos más largo, puesto que hay que rodearlos, no se puede penetrarlos, ocasionando una fragmentación de la ciudad; además, especulando con el valor de la tierra, Se trata de dos ciudades en una sola: [...] la de los que pueden consumir – y lo hacen en exceso – y la de los que no pueden consumir sino lo mínimo; la ciudad legal y la ciudad ilegal (desde el punto de vista de la ocupación del suelo); la ciudad formal y la ciudad informal – considerando la economía–; la ciudad limpia y la ciudad sucia; la ciudad con áreas verdes y la ciudad sin áreas verdes. Estas dos ciudades no viven en contraposición, al contrario, una se sirve de la otra, una necesita a la otra. (Geraiges de Lemos, 1990, p. 99) Esta dualidad urbana lejos de debilitarse con la difusión urbana y la tendencia reciente generalmente se ubican en espacios netamente rurales, provocando intersticios urbanos, que hacen de la ciudad una “máquina” devoradora de todo tipo de recursos (suelo fértil, infraestructura, materiales, etc). Por otro lado, los barrios de villa miseria, también se vuelven impermeables, intransitables, ya no por un elemento físico como es el muro, sino por la inseguridad que provocan las bandas de delincuentes, quienes realmente se apropian del espacio público y lo “privatizan” de una manera muy singular. Conclusiones al reequilibrio incipiente en las jerarquías urbanas latinoamericanas, se acentúa cada Entrando en el nuevo siglo, las ciudades medias vez más, agravando la crisis social y la pobreza albergan la mayoría de la población urbana del extrema. Es expresión de la situación en la que planeta; sus habitantes y los que habitan el se encuentra la ciudad respecto al proceso espacio rural circundante acceden a servicios, globalizador: parte de la ciudad se encuentra bienes, infraestructura y fuentes de empleo. conectada globalmente, pero desconectada Tradicionalmente, los estudios urbanos ponían localmente. su mirada especialmente en las megaciudades La dualidad urbana es considerada y grandes metrópolis, encontrándose escasos un mal de la gran ciudad latinoamericana, análisis sobre ciudades medias y los procesos que se evidencia en el espacio a través de la que allí ocurren. segregación territorial (de aquellas personas Hoy, es allí, en las ciudades medias y que son relegadas a vivir en terrenos no aptos pequeñas de las jerarquías urbanas nacionales y sin servicios) y la marginalidad social. donde se produce la mayor dinámica de Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 517 María Mercedes Cardoso cambio; es preciso conocer los procesos para porque tienden a reequilibrar la población, encauzar los esfuerzos de gestión y trabajar a reducir las densidades demográficas, pero de manera integrada, atendiendo a la realidad en verdad, contribuyen a la radicación, metropolitana. cada vez con más peso de la ciudad difusa, La contraurbanización representa modelo de gran impacto (muy negativo, un riesgo y a la vez una oportunidad, se entiende) ambiental y social. Espacios principalmente para las ciudades medias rurales tradicionales que pasan a desempeñar argentinas, de saber explotar sus ventajas funciones residenciales ven, en poco tiempo, comparativas, de realzar sus virtudes y cómo se transforma radicalmente el paisaje y fortalezas, ya sea por medio de sus elementos se deteriora el sistema natural en su totalidad. heredados, o de los recientemente creados en En los aspectos sociales, el choque brusco entre el contexto del desarrollo endógeno y de la población rural y los nuevos habitantes urbanos globalización. (o rururbanos) a esos medios, con pautas En el Área Metropolitana de Santa Fe culturales distintas, genera conflictos que los se están dando procesos de desconcentración alejan de la buena convivencia e integración. poblacional porque crecen más las ciudades Así, se exageran los contrastes sociales y se de la corona metropolitana que el municipio acrecienta la segregación. principal; además la ciudad de Santa Fe D e s d e l a p e r s p e c t i va a m b i e n t a l , disminuye su dinámica económica en las resulta imperativo controlar la difusión actividades secundarias y en comercio, pero se urbana desencadenada por el surgimiento terciariza, especializándose en servicios, con el de barrios cerrados suburbanos o la perjuicio de generar movimientos pendulares. densificación de vecinales de bajos recursos, de La incorporación de suelo rural al ejido autoconstrucción, que fragmenta la ciudad, que urbano responde a la necesidad de la ciudad margina grupos sociales, que crea verdaderos de contar con mas y mejores espacios, a precios muros interiores y que atenta, en definitiva, con más accesibles; parecería tener repercusiones la verdadera y tradicional función de la ciudad: positivas en la calidad de vida de los habitantes la convivencia de sus habitantes. María Mercedes Cardoso Doctora y Profesora en Geografía en la Facultad de Humanidades y Ciencias da Universidad Nacional del Litoral. Santa Fe, Argentina, [email protected] 518 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 497-521, jul/dez 2011 El fenómeno de contraurbanización... Notas (1) El primer autor en referirse a contraurbanización fue B. Berry, quien se refiere a movimientos centrífugos desde las grandes ciudades hacia los pequeños asentamientos urbanos y rurales. BERRY, B. J. (1976). Urbaniza on and Contraurbaniza on. Nova York, Arnold. (2) Personas que recorren las calles recogiendo basura para luego seleccionarla y venderla. Generalmente cuentan con un carro rado por caballos. Referencias ACEBO IBÁÑEZ, E. (dir.). (2000). El habitar urbano: pensamiento, imaginación y límites. La ciudad como encrucijada. Buenos Aires, Ciudad Argen na. ARROYO, M. (2001). La contraurbanización: un debate metodológico y conceptual sobre la dinámica de las áreas metropolitanas. Scripta Nova. 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Primeiramente, delineia-se a relação entre vacância residencial e produção capitalista de moradias, visando precisar o cenário que propicia o desencontro entre déficit e vacância. Posteriormente, são listados conceitos relevantes para a definição do fenômeno estudado, partindo-se para uma análise do (pseudo) equilíbrio do mercado de moradias e da divisão econômico-social do espaço residencial e suas relações com a existência do estoque de domicílios ociosos na RMBH. Abstract Data on housing shortage and housing vacancy of homes in the Metropolitan Region of Belo Horizonte (MRBH) show that while there is a lack of properties for social housing, some buildings remain empty. This paper presents a critical diagnosis of property vacancies in that region aiming to support the characterization of vacant properties and their possible mobilization for social housing. It first outlines the relationship between vacant housing and capitalist production, to clarify the scenario that provides the mismatch between housing shortage and current vacancy. Subsequently relevant concepts for the definition of the phenomenon are listed, moving to an analysis of the (pseudo) equilibrium of the housing market and economic and social division of the residential space and its relations to the existing stock of empty homes in the MRBH. Palavras-chave: vacância imobiliária; habitação de interesse social; Região Metropolitana de Belo Horizonte; produção capitalista de moradia. Keywords: real state vacancy; social housing; Metropolitan Region of Belo Horizonte; capitalist housing production. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar Introdução Habitação, Vida Cotidiana e Qualidade de Vida A crise da habitação no Brasil é marcada por do Ministério das Cidades (MCidades) de que a uma grande contradição. Em 2005, a Fundação [...] informação municipal, mesmo quando baseada em estimativas, costuma representar uma maior aproximação da realidade do que a informação obtida em bases de dados muito abrangentes e atua lizadas em períodos relativamente longos. (PDDI-HVQ-4, 2010, p. 194) (HVQ).3 Tal pressuposto reforça o entendimento João Pinheiro (FJP)1 já apontava que 5.890.139 famílias moravam em estruturas improvisadas, compartilhavam a mesma habitação ou viviam em moradias rústicas, impróprias ao uso. Em contrapartida, 6.029.756 domicílios permaneciam vazios, apesar de apresentarem condições de ocupação. Se todos eles fossem ocupados A pesquisa bibliográfica revelou a exis- pelas famílias que compõem o déficit habita- tência de uma série de estudos internacionais cional, ainda teríamos um saldo de 139.617 sobre o assunto em contraposição a um relati- domicílios vagos. Os cálculos evidenciam que vo silêncio na literatura nacional. É necessário, sobram condições materiais para responder à portanto, que o fenômeno da vacância imobi- demanda por habitação no país. Na maioria liária seja também estudado na realidade bra- dos casos, entretanto, as moradias ociosas não sileira, em face das altas taxas de ociosidade são acessíveis às famílias que delas necessitam. encontradas. Diante da existência simultânea e Pretende-se aqui entender a simultanei- contraditória de imóveis vagos e carência ha- dade entre déficit e ociosidade de habitações bitacional, entende-se que seja crucial uma in- na Região Metropolitana de Belo Horizonte vestigação para começar a discutir mecanismos (RMBH), tomada como objeto de estudo. Tam- capazes, tanto de coibir o aumento contínuo bém para 2005, a FJP indicou a existência na de imóveis vagos na região e em todo o país região de 163.554 domicílios vagos e 104.048 quanto de remover os obstáculos para a dispo- famílias morando em condições características nibilização de domicílios ociosos para famílias 2 do déficit habitacional. Para o presente estudo, com carência de moradia. além da compreensão dos números fornecidos A investigação objetiva identificar os pela FJP, buscou-se informações qualitativas aspectos teóricos que circundam o fenômeno nas prefeituras de cada um dos 34 municípios estudado. Num primeiro momento, busca-se que compõem a RMBH. O “conhecimento vivi- estabelecer as bases para a compreensão da do” dos técnicos entrevistados somado aos da- relação entre vacância residencial e produ- dos estatísticos conferiu-lhes maior densidade. ção capitalista de moradias. Num segundo, A obtenção de esclarecimento junto a agentes apresenta-se um panorama das necessidades mais próximos da realidade dos espaços coti- habitacionais e do quantitativo de domicílios dianos foi uma das premissas dessa pesquisa, vagos na RMBH. No terceiro momento, listam- desenvolvida no âmbito do Plano Diretor de -se alguns conceitos importantes para a defi- Desenvolvimento Integrado da RMBH (PDDI- nição do fenômeno da vacância imobiliária, -RMBH) como parte dos trabalhos da equipe de fundamentados em pesquisa bibliográfica. Na 524 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família quarta parte, explicita-se como a crença em Diferentemente do que acontece sob a coor- um (pseudo) equilíbrio do mercado de mora- denação do Estado, o acesso ao solo urbano dias está relacionada à formação do estoque via mercado é definido essencialmente pelo vago, com destaque para o papel desempe- acúmulo de capital monetário. Quando a distri- nhado pelo Estado na definição dos rumos buição da riqueza é determinada estritamente da economia. Por fim, encerra-se com uma por relações de troca, capitais dos tipos políti- discussão sobre a divisão econômico social do co, simbólico e institucional perdem em ordem espaço residencial e sua ligação com o deslo- de importância. Também cabe observar que as camento de famílias e com a permanência de trocas podem ocorrer legal ou ilegalmente, ca- domicílios ociosos na RMBH. racterizando o que convencionalmente conhecemos como mercados formal e informal. As lógicas do Estado e do mercado são Imóveis vagos, lógicas de produção e consumo da habitação largamente exploradas em trabalhos acadêmicos e preponderam na literatura sobre o solo urbano. Abramo, entretanto, chama a atenção para uma terceira forma de coordenação social ainda pouco estudada, por ele denominada A análise do fenômeno da vacância imobiliá- “lógica da necessidade”. Diferentemente das ria passa por uma problematização conceitual demais, ela dos processos sociais de acesso e utilização do espaço urbano. Muitos autores propõem uma organização da estrutura socioespacial das grandes cidades segundo duas lógicas distintas de coordenação das ações individuais e coletivas: lógica do Estado e lógica do mercado. Na [...] não exige um capital político, institucional ou monetário acumulado; a princípio, a necessidade absoluta de dispor de um lugar para instaurar-se na cidade seria o elemento para acionar essa lógica de acesso à terra urbana. (Ibid., p. 2) primeira delas, o Estado, como coordenador social, tem poder de definição sobre as formas de distribuição da riqueza da sociedade. Nesse caso, para o acesso ao solo urbano, um indivíduo ou grupo de indivíduos deve ter [...] algum acúmulo de capital que pode ser político, institucional, simbólico ou de outra natureza de tal forma que permita o seu reconhecimento como parte integrante da sociedade e do seu jogo de distribuição das riquezas sociais. (Abramo, 2005, p. 2) Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 A lógica da necessidade é baseada, simultaneamente, na motivação e instrumentalização social, sendo seus principais exemplos as favelas e as ocupações de terras e de edificações ociosas.4 As três formas de acesso ao solo urbano coexistem nas cidades brasileiras sob o manto econômico-social capitalista e podem interagir de forma harmoniosa ou conflitante. Importa entendermos que a existência simultânea de concordâncias e desequilíbrios não é mera disfunção, mas sim uma condição inerente à 525 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar essência contraditória e incoerente das rela- demonstram as autoras, tal correspondência ções capitalistas de produção. A permanência entre termos (capitalista/de mercado/comer- de domicílios ociosos em áreas consolidadas cial, não capitalista/não comercial) incorre no das cidades em números superiores aos do dé- equívoco de se equiparar forma de produção a ficit habitacional é apenas um dos resultados forma de circulação: dessa contradição. As lógicas do Estado e da necessidade são, em princípio, formas não capitalistas de produção de moradia, uma vez que o agente que investe na produção não tem como meta a valorização de um capital, mas sim o uso do imóvel, criando desse modo o chamado “valor de uso”, que é independente do “valor de troca”5 (Kapp, Baltazar e Velloso, 2005). Inversamente, na lógica do mercado, a produção de um valor de uso só se justifica para obtenção de mais-valia, ou seja, para alcançar um valor de troca superior ao capital inicialmente investido no processo de produção. O fenômeno da Enquanto a mercadoria produzida no processo de valorização de capital precisa ser comercializada para atingir seus objetivos, isto é, dar fim ao ciclo produtivo, realizar o lucro e reiniciar um novo ciclo, o bem produzido por outros processos atinge seus objetivos com a obtenção do valor de uso sem que a comercialização seja necessária. Mas isso não impede que o objeto produzido seja comercializado como mercadoria em algum momento de sua vida útil. Mercado imobiliário e produção capitalista de imóveis não são a mesma coisa. (Kapp, Baltazar e Velloso, 2006, p. 8, grifos nossos) vacância imobiliária segue a lógica de mercado, uma vez que a reserva de imóveis para os Outro equívoco recorrente é a genera- capitais, independentemente das necessida- lização da noção de especulação imobiliária des sociais de uso, é uma ação voltada funda- nos debates. Na verdade, a emergência desse mentalmente para o valor de troca. Isso não tema nas discussões funciona mais como cor- impede, contudo, que esse fenômeno também tina de fumaça, relegando as reflexões sobre esteja relacionado às lógicas do Estado e da a distribuição dos produtos imobiliários (mer- necessidade, seja pela omissão do poder pú- cado) e a produção dos imóveis (capitalista blico na produção do espaço, 6 seja pela visi- ou não) a um segundo plano. É importante ter bilidade conferida aos imóveis vagos após a em mente que mercado imobiliário não é um ocupação de edificações e lotes urbanos pelos sinônimo de produção capitalista de imóveis movimentos de luta por moradia. e nem, tampouco, de especulação imobiliária. O uso do termo “mercado”, entretanto, Além disso, a noção de especulação é apenas apresenta algumas limitações para a abor- um terceiro aspecto do debate que, em geral, dagem pretendida. Segundo Kapp, Baltazar e “serve mais para confundir do que para expli- Velloso (2006), o emprego de termos como “de car, pois remete a relação a uma indetermi- mercado” ou “comercial” para designar produ- nação econômica, sobretudo quando se quer ção capitalista é corriqueiro, do mesmo modo estabelecer relações entre ganhos ‘lícitos’ e que para produção não capitalista é usada a ‘ilícitos’” (Ribeiro, 1982, p. 32). Kapp, Baltazar expressão “não comercial”. No entanto, como e Velloso esclarecem a esse respeito que 526 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família [...] embora os discursos neoliberais tenham nos habituado a identificar esses termos, cabe lembrar que mercado é uma instância de compra e venda, capitalismo é um modo de produção, e especulação é um expediente improdutivo de apropriação circunstancial de valor. (2009, p. 11) o estoque de domicílios vagos computados pelas estatísticas oficiais. Em síntese, pode-se dizer que a falta de correspondência entre moradias vagas e carência habitacional se deve, em grande parte, ao fato de que a produção de moradias é fundamentalmente capitalista, atendendo a Conforme mencionado, há um desco- uma demanda solvável que cresce em função nhecimento generalizado sobre o fenômeno da renda e que, por isso, negligencia as neces- da vacância de edificações no país. Apesar da sidades habitacionais de famílias com menor existência de pesquisas quantitativas em âm- poder aquisitivo. Na verdade, é importante ob- bito nacional,7 veremos a seguir que os dados servar que essas necessidades nem sequer se carecem de uma abordagem qualitativa e de configuram como demandas no contexto da um trabalho empírico que confira peso ade- produção capitalista de moradias. Tais consi- quado aos números coletados. Atualmente, derações preliminares serão ilustradas no item a falta de informações produz algo como um seguinte, que traz um panorama das necessida- “senso comum” sobre o fenômeno da vacân- des habitacionais e domicílios vagos na RMBH. cia residencial. Esse senso comum, somado O objetivo é evidenciar a contradição existente aos equívocos que podem ser gerados pelo entre o número de famílias sem casa e de casas uso genérico dos termos “especulação imobi- sem família no contexto específico da região, liária” e “mercado imobiliário” pode conduzir além de apontar alguns aspectos sobre a meto- ao entendimento de que o fenômeno estudado dologia de cálculo de domicílios vagos adotada ocorre somente no âmbito da circulação dos pela FJP. imóveis (mercado) quando na verdade suas raízes estão na forma de produção capitalista de moradias. Como visto, essa produção é pautada pelo valor de troca, tendo como enfoque aspectos como a geração de empregos Famílias sem casa e casas sem família na RMBH e o aquecimento da economia. Vários são os obstáculos para a reprodução desse capital, Os dados referentes às necessidades habita- como a alta durabilidade das habitações e a cionais têm passado por um notável processo falta de solvabilidade da demanda, mas, por de qualificação desde a década de 1990. Hoje ora, importa observar que a produção capita- já é possível distinguir, dentre várias catego- lista, seja de carros, habitações ou bolas de fu- rias,8 aquelas unidades rústicas que precisam tebol, trabalha sempre com o conceito de so- ser repostas ou as unidades carentes de servi- bra ou acumulação. No contexto específico da ços de infraestrutura que necessitam somente produção capitalista de moradias, a contínua de melhorias, por exemplo. Uma rápida análi- acumulação tem como resultado um enorme se quantitativa das categorias propostas pela excedente de imóveis. Tais imóveis compõem FJP na realidade específica da RMBH aponta Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 527 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar claramente que a solução do problema habi- para suprir as necessidades de reposição e tacional não deve se restringir ao provimento incremento do estoque, ainda assim, resta- de novas unidades habitacionais. Conforme ria um saldo de 9.474 domicílios vazios. Ca- indicam os Gráficos 1 e 2 a seguir, a aborda- be destacar que esse número pode tornar-se gem também deve levar em conta a melhoria ainda maior. A categoria “ônus excessivo com do estoque existente, o maior provimento de aluguel”, incluída como necessidade de incre- infraestrutura e a redistribuição dos imóveis mento de estoque em 2006,10 representa cer- ociosos. Os dados sobre domicílios vagos, por ca de 47% do déficit habitacional da região e sua vez (Gráfico 3), evidenciam a existência se sobrepõe às demais categorias. Desse mo- de um número de unidades ociosas e em cons- do, caso todas as moradias que se encontram trução na RMBH (108.474+30.404 = 138.878 nessa condição fossem desocupadas, cerca de domicílios) superior ao déficit habitacional, 60 mil unidades seriam somadas ao estoque correspondente, em 2007, a 129.404 unida- ocioso já existente. A inserção desse compo- 9 des. Isso quer dizer que se todas as unidades nente no cálculo do déficit habitacional torna- vagas ou em construção fossem mobilizadas -se, portanto, questionável. Gráficos 1 e 2 – Déficit e inadequação habitacional RMBH Fonte: FJP, 2009 – dados trabalhados. 528 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família Gráfico 3 – Domicílios vagos RMBH Fonte: FJP, 2009 – dados trabalhados. Diferentemente dos dados utilizados O estudo de um percentual residencial para o cálculo de necessidades habitacionais, médio necessário para o funcionamento natu- as informações sobre domicílios vagos não ral do mercado imobiliário será contemplado são coletadas observando critérios qualitati- no item seguinte, quando alguns fenômenos vos, apesar de revelarem números expressivos pertinentes aos imóveis vagos serão concei- que não devem ser desconsiderados. Por essa tuados. Como veremos, tal percentual, usual- razão, os pesquisadores da FJP consideram as mente chamado “taxa de vacância natural” estatísticas fornecidas insuficientes como único tem sido objeto de várias pesquisas inter- respaldo para a formulação de políticas públi- nacionais, enquanto que, em âmbito nacio- cas que contemplem a vacância residencial e nal, ainda é encontrado um relativo silêncio. chamam a atenção para a importância de uma Seria interessante que uma pesquisa similar caracterização qualitativa do estoque existente. fosse realizada para os padrões brasileiros. A Segundo a instituição de pesquisa (FJP, 2009), identificação do público a que se direcionam devem ser considerados quatro pontos princi- e dos motivos que os deixam vagos também pais com relação aos imóveis vagos: serão discutidos com o objetivo de investigar (1) estudo de um percentual médio do estoque as raízes do fenômeno da vacância residencial habitacional necessário para o funcionamento e os fatores que mantêm os imóveis vagos e natural do mercado imobiliário; inacessíveis para a população de renda baixa. (2) identificação dos motivos que os deixam Para isso, é importante que a compatibilidade vagos; entre os perfis dos domicílios ociosos e das (3) famílias que compõem o déficit habitacional identificação do público a que se direcionam; seja verificada, tendo como horizonte a atua- (4) obtenção de detalhamentos mais precisos ção das políticas públicas de habitação de sobre suas condições, localização, situação de interesse social11 (HIS). Ante o cenário contra- propriedade e padrão de construção. ditório que se apresenta entre imóveis vagos Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 529 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar e déficit habitacional, busca-se entender as de moradias e não na sua distribuição. Esta se- possibilidades e limites da mobilização do es- rá a discussão proposta nos dois itens seguin- toque ocioso para a promoção de moradias de tes. Por ora, serão listados alguns conceitos interesse social em áreas consolidadas, tendo relevantes para uma melhor compreensão do como contraponto a lógica preponderante de fenômeno estudado. produção de habitações destinadas às famílias socialmente vulneráveis em regiões periféricas com o consequente crescimento excessivo do perímetro urbano e esvaziamento dos centros adensados dos municípios. Imóveis vagos e seus fenômenos típicos Com relação ao quarto ponto colocado pela FJP – detalhamento dos imóveis vagos –, Os termos empregados para caracterizar os não há dúvidas da importância de que ca- fenômenos típicos que podem ocorrer quando racterísticas como o grau de conservação e a lotes existentes em áreas consolidadas não compartimentação interna dos imóveis sejam são ocupados ou quando edificações ficam conhecidas para que, por exemplo, as possibi- desocupadas carecem de um esclarecimento lidades de ocupação imediata sejam discutidas. conceitual. Tal esclarecimento pretende tornar Também devem ser identificadas a localização, claros alguns aspectos teóricos que circundam a existência de pendências jurídicas e a situa- o objeto de estudo, fundamentados em pesqui- ção patrimonial do imóvel. Sua posição na sa bibliográfica, ainda que sejam escassas as cidade se relaciona às possibilidades de aten- referências nacionais sobre o tema. dimento ao público-alvo dos programas ha- A obsolescência designa o momento em bitacionais. Uma identificação preliminar dos que a função original de um edifício deixa de imóveis de propriedade do poder público ou existir. A partir de então, a estrutura pode ser daqueles cujas condições patrimoniais sejam demolida, adequada a outra função ou até menos complexas, facilitaria todo o processo. mesmo desmontada, transformada e arma- No entanto, uma microcaracterização nesse ní- da em outro local, se sua constituição assim vel só seria possível mediante a realização de permitir. A alternativa adotada dependerá do uma pesquisa em larga escala, que ultrapassa grau de flexibilidade da edificação: estruturas o objetivo deste trabalho, mas que deve ser que oferecem poucas possibilidades de muta- considerada como ponto de partida para a ela- ção e adequação a novos usos acabam tendo boração de qualquer política pública que tenha que ser demolidas. Em contrapartida, em um como mote a mobilização do estoque vago. edifício cuja obsolescência é programada (ou Como já destacado, para conferir maior prevista), menos problemáticas são as adapta- densidade aos dados coletados é proposta uma ções. Edificações coordenadas modularmente, abordagem qualitativa da vacância residencial. por exemplo, permitem alterações de espa- Pretende-se com isso ir além das considerações ço e de uso com mais facilidade, ampliando feitas pela FJP, partindo do pressuposto de que as possibilidades de utilização das estruturas a raiz do problema está na produção capitalista quando a configuração espacial original se 530 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família torna obsoleta. Alternativas como essa são espaços (vazios e ocupados), é estratificado de potentes por pensarem o edifício no tempo, acordo com os distintos usos e funções. Assim, programando sua obsolescência. Se bem utili- espaços não edificados, domicílios e unidades zadas, podem contribuir para evitar que o es- comerciais, por exemplo, nunca entram na mes- toque de edificações obsoleto se torne ocioso, ma conta. Convencionalmente, a ociosidade ou seja, paralisado no tempo e sem exercer comercial e fundiária é medida por área, en- sua função social. A obsolescência progra- quanto a residencial é calculada por unidades mada é uma estratégia que pode ser adotada domiciliares (Santiago, 2005, p. 17). Assim, na como forma de prevenção ao acúmulo de edi- RMBH teríamos em 200512 uma taxa de vacân- ficações ociosas ao longo do tempo, em áreas cia correspondente a 13,94% (163.554 domi- consolidadas. cílios vagos/1.173.032 domicílios particulares A ociosidade é gerada quando um lo- permanentes). te ou um edifício permanece vazio apesar de Discussões sobre o percentual de vacân- apresentar condições de ocupação. No caso cia de edificações são corriqueiras na literatura das edificações, a ociosidade pode vir após a internacional que há tempos debate a perti- obsolescência, quando a estrutura não apre- nência de se estabelecerem taxas típicas para senta condições de adequação para novos usos medir a ociosidade do espaço construído, con- e também não é demolida. Jud e Frew (1990) vencionalmente chamadas “taxas de vacância vinculam a ociosidade de moradias à sua “ati- natural”. Segundo Amy, Ming e Yuam (2000) picidade”, ou seja, quanto mais diferente dos essas taxas correspondem a um nível ideal de padrões convencionais de construção e arran- “equilíbrio” do estoque imobiliário (comércio, jos internos for a unidade, maior probabilidade serviços e domicílios), necessário tanto como terá de tornar-se obsoleta (mesmo não ocor- estoque regulador para atender às contingên- rendo modificação de uso) e futuramente ocio- cias futuras quanto como facilitador das tran- sa. Algumas edificações, no entanto, tornam-se sações de venda e aluguel no mercado. Caso ociosas mesmo nunca tendo sido obsoletas, não existissem edificações vagas à disposição, muitas vezes pelo simples abandono. Esse ca- a atividade imobiliária se traduziria numa so ocorre com muitas habitações, sendo um “dança de cadeiras”: a cada desejo ou necessi- dos fatores responsáveis pelo grande estoque dade de mudança, famílias deveriam trocar de de domicílios ociosos, como demonstra a FJP. casa entre si ao invés de adquirirem novas ha- Estima-se que esse tipo de ociosidade resulte bitações ou de alugarem domicílios com confi- de um fenômeno típico da produção capitalista gurações espaciais e/ou localizações diferentes. de moradias: a superprodução. Em outras palavras, sem um percentual mínimo Ao percentual de lotes e edificações que de unidades vagas, não haveria mercado imo- permanece ocioso em uma determinada área biliário. Daí o intenso debate internacional em (um bairro, um município, uma região ou um torno das taxas de vacância naturais. No Bra- país) é dado o nome taxa de vacância. Esse sil, o foco das discussões acerca da tipicidade percentual, que corresponde à relação en- e atipicidade desse percentual é o tempo que tre todos os espaços vazios e o total geral de o imóvel permanece vago, embora profissionais Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 531 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar da área já se posicionem em favor de ampliar o tratando-se dessa produção, como bem coloca debate no sentido de buscar as razões da ocio- Gorender (1996, p. 32): “o equilíbrio não po- 13 sidade dos imóveis. de ser mais do que uma tendência que pres- Algumas pesquisas internacionais con- siona em meio aos fatores desequilibrantes e sideram que o percentual médio do estoque se manifesta enquanto média de inumeráveis habitacional necessário para o funcionamento flutuações, jamais suscetível de fixação”. Nes- “natural” do mercado de moradias estaria em se sentido, o estoque de edificações vagas é, torno de 5 (Belskya, 1992) a 6,5% (Jud e Frew, com razão, um regulador, mas jamais pode ser 1990). Ao ultrapassar esse limite, a ociosidade considerado um estoque “de equilíbrio”. A re- já se tornaria atípica e, portanto, um problema. lação entre imóveis vagos e pseudoequilíbrio Seguindo esse raciocínio, Amy, Ming e Yuam do mercado de moradias será aprofundada no (2000) consideram que a relação entre a ta- item seguinte. xa de vacância natural e a existente (e não o Outro conceito relacionado aos domi- seu percentual existente total) determinaria o cílios vagos é a cadeia de vacância, definida “equilíbrio” ou “desequilíbrio” das transações pela sucessão de deslocamentos espaciais ao imobiliárias. A fixação de percentuais “natu- longo da estrutura urbana. O deslocamen- rais” seria, portanto, importante para monito- to de famílias para novos empreendimentos rar as condições de mercado (ibid., 2000). Se imobiliários é considerado seu ponto inicial, a considerarmos hipoteticamente o percentual partir do qual uma reação em cadeia de tran- médio proposto por Belskya (1992) para a RM- sações com imóveis mais antigos é gerada. BH, a taxa de vacância residencial teria 8,94% Quanto maior a abrangência da cadeia, menor de atipicidade (vacância encontrada menos a será a atipicidade da taxa de vacância, ou seja, vacância típica ou natural), atestando o “de- mais próxima ela estará do índice considera- sequilíbrio” do mercado de habitações na re- do “natural” para seu ambiente. O movimento gião. Isso também significaria que, dos 163.554 que torna o estoque de habitações gerado por domicílios vagos existentes em 2005, cerca de famílias que trocaram de residência acessível a 105.000 poderiam ser ocupados sem prejudicar outros grupos com uma renda inferior é conhe- as transações de moradias na região. cido como filtragem. O grande estoque de edi- No entanto, cabe contrapor que a fun- ficações ociosas existente na RMBH é resultan- ção reguladora do estoque imobiliário não te de uma filtragem pouco efetiva, caracterís- pode ser verdadeiramente caracterizada como tica de cadeias de vacância curtas. Movimen- “de equilíbrio”, como suposto por Jud e Frew. tos de filtragem ineficientes e cadeias pouco De fato, o conjunto de edificações vagas con- abrangentes na cidade são características de siderado típico exerce uma função importante realidades como a brasileira, onde é grande a no ajuste dos desequilíbrios sucessivos ineren- desigualdade de distribuição de riquezas (San- tes à produção capitalista do espaço. Contudo, tiago, 2005). 532 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família Imóveis vagos e pseudoequilíbrio do mercado de moradias do que controlar as atividades econômicas, busca a regulação de mecanismos inerentes ao mercado, no sentido de estabelecer um equilíbrio, ainda que fictício. Isso demonstra que mesmo no país-símbolo do mercado livre capi- Cabe chamar a atenção para o fato de que os talista, justifica-se a ação do Estado na política fenômenos listados no item anterior só são vá- urbana. Harvey (2010) chama a atenção para o lidos e “típicos” de uma formação econômico- fato de que Adam Smith, além de aconselhar os -social capitalista. Em Cuba, país que adota um chefes de Estado a cultivar a riqueza em seus sistema político-econômico socialista, a pro- países por intermédio do sistema de livre mer- priedade privada foi confiscada em 1959 por cado, também considerava a intervenção do Es- Fidel Castro e não existe mercado imobiliário. tado como regulador e garantidor da distribui- Sem mercado e sem produção capitalista de ção das riquezas, algo que é sistematicamente moradias, também inexistem unidades vagas omitido dos discursos que citam o teórico do à disposição e a atividade imobiliária de fato liberalismo econômico. Em outras palavras, a se resume à mencionada “dança de cadeiras”. mão invisível do mercado de Smith não signi- Nos Estados Unidos, a cidade de Nova Iorque fica, segundo Harvey, a saída completa de cena tem, desde a década de 1960, uma espécie de da ação estatal. Tal pressuposto foi amplamen- monitoramento de imóveis vagos regulamen- te divulgado por Keynes. Desacreditado de que tado em lei. Ao contrário de Cuba, entretanto, o egoísmo dos produtores individuais seria o a política da cidade é manter um estoque per- instrumento da riqueza das nações, “Keynes manente de domicílios vagos como estratégia incumbiu a mão visível do Estado de intervir de controle dos preços de aluguel no mercado. no mercado, pôr as coisas em ordem e estabe- Desse modo, uma taxa de vacância inferior a lecer o equilíbrio do pleno emprego desejável 5% é considerada um problema, sendo inclu- à segurança da organização social burguesa” sive classificada como “estado de emergência (Gorender, 1996, p. 32). habitacional”. Tal parâmetro é fixado por leis Entretanto, o que se percebe em muitos que regem o valor do aluguel no estado e o casos, em especial no Brasil, é que a interven- controle periódico é feito por encomenda ao ção do Estado tem ocorrido prioritariamen- US Census Bureau, pelo Departamento de Pre- te no sentido de manter o funcionamento do servação e Desenvolvimento de Moradias da mercado de oferta e procura de classes que já cidade.14 ocupam os mais altos patamares de renda do Os dois exemplos ilustram níveis dife- país, em detrimento dos grupos com baixos rentes de participação do Estado na regulação rendimentos. A existência paralela do déficit do mercado de moradias. Em Cuba, país onde habitacional e de um estoque de domicílios não há economia de mercado, quase todas as ociosos cujo quantitativo supera o das neces- atividades econômicas são, por premissa, sub- sidades habitacionais demonstra o quão con- metidas ao controle estatal. No caso norte- traditória pode ser a ação estatal. Isso eviden- -americano, contudo, há um Estado que mais cia que a política urbana e habitacional tem Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 533 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar assumido um papel funcional na desobstrução de forma conjunta na cidade para evitar incer- sistemática de quaisquer fatores que se colo- tezas e risco nos empreendimentos, até os con- quem como obstáculos para as estruturas tra- sumidores, “que não desejam outra coisa se- dicionais de produção capitalista, sempre com não a convergência espacial de famílias de um a bandeira de crescimento econômico e rever- mesmo tipo” (ibid., p. 126). Para Keynes, esses são de problemas sociais. Nesse contexto, cabe comportamentos atestam a existência de uma ressaltar que o quadro contraditório da coexis- convenção, que nada mais é do que uma certa tência entre déficit e ociosidade habitacional regularidade das relações de mercado. Contu- não se configura, no sistema de produção ca- do, tal regularidade é continuamente abalada pitalista, como exceção, mas sim como regra. pela inserção de inovações. A convenção como Já foi visto que parte do montante de princípio regulador opera, desse modo, através edificações vagas é considerada um tipo de de contradições e desequilíbrios sempre reno- estoque regulador, necessário para atender às vados que, de acordo com a teoria econômica contingências futuras e facilitar as transações marxista seriam “inerentes à essência das re- de venda e aluguel. A necessidade de um per- lações de produção capitalistas e não meras centual “natural” de imóveis vagos é, entre- disfunções [...] como as conceberia o funcio- tanto, apenas um dos aspectos da questão. Na nalismo” (Gorender, 1996, p. 33, grifos nossos). verdade, a existência de domicílios ociosos não Assim, a existência de vacância residen- é funcional somente para que não haja “dança cial atesta o que podemos denominar “pseu- de cadeiras”, mas também, e principalmente, doequilíbrio” do mercado de moradias. Uma para garantir a produção de moradias de mo- espécie de estabilidade momentânea que, do global, uma vez que a retirada dos imóveis bem distante do conceito de equilibração ideal mais velhos de circulação é a única forma de proposto pela tradição econômica ortodoxa, garantir um fluxo de vendas contínuo para a jamais consegue se ver livre de oscilações e indústria imobiliária. Abramo (2007) considera desvios. A inserção contínua de inovações pela a depreciação fictícia dos estoques existentes indústria imobiliária, desestabilizando as con- uma estratégia de inovação adotada por essa venções, atesta o papel de desequilibrador da indústria para reduzir a concorrência que esses ordem urbana assumido pelo empresário capi- imóveis poderiam fazer ante a oferta capitalis- talista. O imenso estoque de domicílios vagos ta de novos produtos. existente nas cidades brasileiras torna eviden- A inovação espacial, entretanto, só é pos- te que tal regulação pelo mercado se afasta sível em função da existência do que Keynes muito dos pressupostos de eficiência urbana. denomina convenção. Segundo ele, no mercado Ao contrário, o que ocorre é a depreciação de residencial, há uma confluência de ações des- mercadorias (habitações) e uma contínua su- centralizadas dos indivíduos (atores do mer- cessão de deseconomias. É evidente, portanto, cado residencial), geralmente lançando mão a necessidade premente da introdução de for- de comportamentos característicos de massa. mas de mediação não mercantilistas. Em ou- Todos procuram antecipar as escolhas alheias, tras palavras, isso significa que o Estado deve desde os produtores de habitação, que atuam começar a se ocupar em identificar os rastros 534 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família de vacância e garantir que as famílias de baixa renda tenham acesso (direto e indireto) aos imóveis vagos. Imóveis vagos e mobilidade residencial residenciais pode ser estendida à cidade como um todo, dando lugar a uma transformação generalizada dos bairros residenciais. (Ibid., p. 58) Cabe contrapor, entretanto, que a descrição da cadeia de vacância ideal proposta por Abramo não corresponde à realidade dos deslocamentos intrametropolitanos realizados na Apesar da convergência entre os conceitos RMBH. Como será visto, as mudanças de famí- “mobilidade residencial” e “cadeia de vacân- lias na região dificilmente são capazes de gerar cia” (ou, em outras palavras, entre o desloca- um encadeamento de deslocamentos que atin- mento de famílias e o estoque de imóveis de- ja a ordem urbana global e motive mudanças le decorrente), as muitas pesquisas nacionais residenciais de grupos com renda inferior. Esse relacionadas ao primeiro tema dificilmente é, inclusive, um dos principais motivos para a tocam na questão do estoque imobiliário va- existência do grande estoque de domicílios va- go gerado pelo deslocamento, permanecendo gos na RMBH. o estudo sobre as cadeias de vacância uma Mendonça estabelece uma relação entre lacuna nos trabalhos nacionais. A pesquisa de mobilidade residencial e disputas pela apro- Abramo (2007) pode ser considerada, contudo, priação dos recursos urbanos: “dado que a uma exceção a essa regra. O autor propõe um apropriação dos recursos urbanos é, no capita- estudo da mobilidade residencial com foco nas lismo, intrinsecamente desigual, a consequente estratégias adotadas pela indústria imobiliária divisão social do espaço faz com que a mobi- para manter um fluxo de produção contínuo de lidade residencial surja como fruto dessa divi- moradias. Todavia, a redistribuição do estoque são social e expresse, ao mesmo tempo, uma de domicílios desencadeada pelo avanço do mobilidade social” (2002, p. 15). Ainda segun- capital é um tema também abordado em seu do a autora, tais disputas resultam em um es- trabalho, que mesmo sem utilizar a expressão paço urbano hierarquizado e segregado, onde “cadeia de vacância”, acaba nos fornecendo não há mistura entre os diferentes estratos de uma definição precisa do termo: renda. A Figura 1 mostra como as famílias de [...] as famílias (oportunistas) que se mudam para zonas de renda superior deixam para trás lugares que serão (potencialmente) ocupados por famílias de renda inferior, gerando assim um processo de transformação de sua antiga zona residencial [...]. E prosseguindo com esse raciocínio até o nível mais baixo da escala dos rendimentos familiares, vemos que a alteração da composição das zonas Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 diferentes rendimentos se distribuem no território da RMBH. A imagem retrata um espaço geograficamente segmentado, onde os grupos mais ricos permanecem concentrados no centro da metrópole (espaço mais bem provido de amenidades urbanas) enquanto a periferia abriga predominantemente pessoas com renda inferior. Merece destaque o alto percentual de áreas ocupadas por famílias cujo chefe possui 535 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar Figura 1 – Divisão econômico social do espaço residencial RMBH Fonte: FJP, 2005 – dados trabalhados pelo grupo de pesquisa MOM-UFMG. 536 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família Figura 2 – Domicílios vagos segundo a renda dos chefes de família RMBH Fonte: FJP, 2005 – dados trabalhados pelo grupo de pesquisa MOM-UFMG. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 537 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar renda igual ou menor que 3 salários mínimos: De acordo com a FJP (2009), cerca de 90% do 72% do território metropolitano. O restante déficit habitacional da região metropolitana do território (28% da área ocupada da RMBH) (Gráfico 4) se concentra em áreas cuja renda abriga famílias em que o chefe recebe entre da população é igual ou inferior a 3 salários 3-6, 6-10 e 10 ou mais salários mínimos, esta mínimos, ao passo que, como vimos, um gran- última faixa contando com apenas 4% dos gru- de número de unidades vazias se localiza em pos familiares da região. áreas ocupadas por famílias com rendimentos A relação existente entre a desigualda- acima dessa faixa salarial (Figura 2). Em nú- de de distribuição de riquezas e a mobilidade meros absolutos, isso significa dizer que de residencial também deve ser pensada para 104.048 famílias carentes de moradia na RM- o estoque de domicílios vagos, decorrente do BH, cerca de 94.000 têm rendimento igual ou deslocamento das famílias. A Figura 2 mostra menor a três salários mínimos. Entretanto, 58% a combinação de domicílios vagos com renda (Figura2) dos imóveis vagos da RMBH não es- dos chefes de família na RMBH (dados forneci- tão localizados em áreas habitadas por essas 15 dos pelo Censo Demográfico de 2000). Como famílias. Do total de 163.554 domicílios ocio- era de se esperar, há uma clara relação entre sos, cerca de 95.000 situam-se em áreas cujos renda e vacância: o percentual de domicílios chefes de família possuem rendimento médio vagos nas áreas ocupadas por famílias de alta mensal superior a três salários mínimos.16 renda (18% – Figura 2) é 4,5 vezes maior do Como pode ser visto, mesmo que sobrem que a participação desses grupos na área total moradias, elas não são acessíveis para as famí- da RMBH (4% – Figura 1). A ocupação do es- lias que delas precisam. A simultaneidade entre paço pelos grupos com maiores rendimentos é, domicílios vagos e déficit habitacional é, por- portanto, importante para o estudo do fenôme- tanto, um problema que não se resolve por in- no da vacância imobiliária na RMBH. termédio de uma simples equação matemática A distribuição do déficit habitacional entre estoque positivo e negativo, subtraindo- por faixa salarial também é útil para uma com- -se do montante ocioso o déficit habitacional. paração entre a concentração das moradias Em outras palavras, a mobilização do estoque desocupadas e a distribuição dos grupos ca- vago para a promoção de HIS não se efetiva- rentes de abitação no território metropolitano. rá pela ocupação dos imóveis mais caros pela Gráfico 4 – Déficit habitacional RMBH - divisão por faixa de renda Fonte: FJP, 2009 – dados trabalhados. 538 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família população de baixa renda. De outro modo, o por uma distância dada pela natureza, mas, que deve ser proposto é que o comprimento sobretudo, pela localização intraurbana dos das cadeias de vacância, ativadas pela mudan- diversos tipos de famílias” (ibid., p. 39). Desse ça de grupos de renda superior, seja alongado modo, os grupos com maior renda não só de- de maneira a atingir, na outra ponta, as famí- finem sua própria localização no espaço como lias que compõem o déficit habitacional. Assim, acabam condicionando, ou mesmo escolhendo é crucial que os fatores que contribuem para a efetivamente, a localização dos demais grupos pequena abrangência das cadeias de vacância sociais. A possibilidade de escolha da localiza- ativadas na RMBH, especialmente em áreas ção residencial, diretamente proporcional ao ocupadas pela população de alta renda, sejam acúmulo de capital (monetário, político, insti- elucidados. tucional e simbólico), reflete assim, a divisão De acordo com Mendonça (2002), a divisão econômico-social do espaço residencial econômico-social do espaço residencial19 e a hierarquia dos preços do solo. tem sido uma marca da morfologia espacial Essa divisão dificulta o funcionamen- da RMBH desde sua formação, inaugurada to das cadeias de vacância na RMBH. A cada pelo projeto higienista de Aarão Reis. O pla- mudança das famílias de renda superior, os an- no do engenheiro não previa moradias para tigos domicílios ou são mantidos vazios como os trabalhadores, que passaram a ocupar as formas de entesouramento, ou retornam ao áreas periféricas da nova capital. Segundo a mercado com preços inacessíveis para as fa- autora, ao contrário do que ocorre em outras mílias que não possuem nível de renda similar 17 metrópoles brasileiras, esse padrão de dinâ- ao da antiga ocupante. Desse modo, quebra-se mica de estruturação urbana se manteve na o elo da cadeia de vacância e a sucessão de RMBH, acentuando a separação entre grupos deslocamentos espaciais ao longo da estrutura populacionais com rendas distintas. Também urbana não ocorre, pois o estoque de habita- de acordo com Mendonça, os grupos de renda ções gerado por famílias que trocaram de resi- superior são os que mais se concentram no es- dência não se torna acessível a outros grupos paço, caracterizando um movimento voluntário com uma renda inferior. O exame de Mendonça de autoexclusão. Tal concentração é fruto das (2002) sobre os fluxos migratórios na RMBH 18 disputas coletivas pela apropriação dos recur- durante a década de 1980 revela que as áreas sos urbanos e também das escolhas individuais ocupadas por famílias com renda acima de 10 de localização com base em “externalidades salários mínimos sofreram, simultaneamen- de vizinhança”, termo empregado por Abramo te, perdas populacionais e mudanças sociais (2007) para definir a opção residencial de de- ascendentes (cadeia de vacância comum), ao terminados grupos, baseada na localização de passo que o crescimento populacional e as outras famílias. Segundo o autor, “basta intro- mudanças sociais descendentes são típicas duzir nas preferências individuais uma dimen- das áreas ocupadas por famílias de baixa ren- são de repulsa a tipos de famílias de menor da nas periferias da metrópole, onde ocorre o renda (externalidade de vizinhança) para que o que pode ser considerado uma cadeia de va- espaço, daí em diante, já não seja representado cância invertida. Contraditoriamente, as áreas Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 539 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar de maior renda, apesar de apresentarem perda grandes obras e regulamentação de legislações populacional, registram transbordamento terri- urbanísticas. Todavia, como visto, tais ações de torial e um crescimento substancial no número intervenção do Estado têm se dado prioritaria- de domicílios. mente no sentido de garantir a expansão de A predominância de um movimento de capitais, sem necessariamente resguardar uma mobilidade residencial descendente contribui divisão igual de riquezas. Desse modo, as ações para que as habitações deixadas vagas pelos estatais, que têm impacto direto nas disputas grupos de maior renda não motivem o encadea- pelo território urbano, acabam por contribuir mento de deslocamentos de outras famílias de também na definição da divisão do espaço resi- renda menor (movimento ascendente). Dessa dencial da RMBH, impedindo que as cadeias de forma, habitações com preços acessíveis para vacância atinjam a ordem urbana global. Com esses grupos não são disponibilizadas na outra relação à execução de grandes obras, cabe di- ponta. Essa cadeia de vacância incompleta, in- zer que, em décadas passadas, houve um cla- capaz de abranger a ordem urbana global, tem ro privilégio das áreas de moradia dos grupos como resultado o enorme estoque de domicí- de renda superior. Hoje tais obras se voltam à lios vagos registrado pelas estatísticas oficiais. promoção de novas áreas de expansão para a Como vimos, disputas coletivas pela apropria- indústria imobiliária, como o Centro Adminis- ção dos recursos urbanos e escolhas individuais trativo de Minas Gerais (CAMG) implantado de localização levam a um movimento de auto- em uma área tradicionalmente ocupada por exclusão dos grupos de renda superior que, de grupos de renda baixa no vetor norte da re- um lado, realizam mudanças de moradia sem- gião. Contudo, fatores como a alta dos preços pre ascendentes e, de outro, ao interditarem o de terrenos nas áreas circundantes, em especial prolongamento das cadeias de vacância que no município de Santa Luzia, indicam que, ao seriam ativadas por seu deslocamento, acabam invés de uma melhoria dos espaços com a per- por influenciar o padrão descendente de mobi- manência de suas populações, o que ocorrerá lidade residencial, realizado pelas famílias com será um enobrecimento das áreas e a posterior menores rendimentos. Entretanto, os grupos de expulsão dos moradores originais, certamente renda superior não estão sozinhos na definição para espaços de renda inferior, confirmando o da divisão econômico-social do espaço residen- padrão de mobilidade residencial descendente cial esboçada. Há outros agentes importantes dos grupos mais pobres. no jogo, destacando-se o papel do Estado e da industria imobiliária. A legislação edilícia também é um fator crucial para a divisão econômico-social do es- Como visto, o início da ocupação da no- paço residencial. A Lei de Uso e Ocupação do va capital de Minas Gerais esteve nas mãos Solo (LUOS) é o instrumento que regulamenta do poder público, por intermédio do plano de a produção do espaço nas cidades e, depen- Aarão Reis. Desde então, a intervenção es- dendo do critério utilizado (como o zoneamen- tatal tem orientado a ocupação do espaço to de usos, por exemplo), pode tornar-se “com- metropolitano, especialmente por intermé- provadamente segregacionista e excessiva- dio de políticas habitacionais, realização de mente determinista das relações cotidianas na 540 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família cidade” (PDDI-HVQ-4, 2010, p. 248). Atualmen- grupos sociais na cidade, mas é a inovação, te, a LUOS de Belo Horizonte adota o critério entretanto, a estratégia responsável por elevar do adensamento com quota de terreno por uni- em seu grau máximo a divisão econômico- dade, uma atualização da antiga lei antes ba- -social do espaço residencial. A indústria imo- seada no zoneamento por usos. Entretanto, por biliária depende da exacerbação de diferenças estar definido segundo o número de domicílios na ocupação urbana para que possa manter por hectare, o tipo de adensamento proposto um fluxo de vendas continuo de seus produtos tende a ampliar o tom segregacionista da lei (residências). Tendo em vista que sua cartela de anterior, definindo de antemão onde cada gru- clientes se restringe a famílias que já possuem po socioeconômico deve se localizar na cidade. casas, somente a diferenciação real ou simbó- As quotas de terreno por unidade habitacional lica dos novos espaços, paralela à depreciação associadas ao potencial construtivo “induzem também simbólica das antigas habitações, irá a ocupação dos terrenos com unidades de mes- garantir a manutenção desse fluxo de vendas. ma metragem quadrada e, consequentemente, Em outras palavras, as pessoas que já possuem para uma mesma faixa de renda, levando à casas só irão adquirir novas habitações me- homogeneidade e à segregação por zoneamen- diante o oferecimento de algum “diferencial”, tos” (ibid., p. 250). seja ele de localização ou de produto (novos Legislações urbanísticas desse tipo ambientes no programa arquitetônico como também geram condições favoráveis para a varanda gourmet, pet care, etc.). As desigual- indústria imobiliária. De modo geral, sua atua- dades espaciais são, portanto, funcionais para ção se dá por intermédio de duas estratégias a indústria imobiliária que, mais do que seguir distintas: expansão e inovação, esta última já os movimentos populacionais, os antecede.20 abordada. A estratégia de expansão tem como Mais uma vez, temos uma realidade que nada objetivo absorver uma maior parte da renda contribui para que as cadeias de vacância se fundiária. Desse modo, a indústria imobiliária tornem mais abrangentes no território. Ao con- busca antecipar oportunidades através da ex- trário, a falha da cadeia é ela mesma o sucesso pansão do perímetro urbano dos municípios, da convenção criada, uma vez que a autoexclu- seja para a produção de lotes periféricos para são dos grupos de renda superior é utilizada baixa renda, seja para a promoção de novas como estratégia de marketing das campanhas localidades com seu posterior enobrecimento dos novos empreendimentos. e valorização dos empreendimentos. Outra forma de antecipar oportunidades ocorre por intermédio de pressão junto ao poder público Post Scriptum para o aumento dos coeficientes de aproveitamento em determinadas regiões visando a A análise aqui apresentada integra a dis- verticalização com moradias para as classes sertação de mestrado da autora, orientada média e alta. pela coautora, que objetivou reunir informa- A expansão já seria por si só um me- ções para alimentar uma discussão qualita- canismo eficiente de seleção e localização de tiva sobre a vacância residencial na RMBH Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 541 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar e, consequentemente, em âmbito nacional. fim, que contribuam para sua difusão estimu- Partiu-se da constatação de que esse fenômeno lando novos arranjos produtivos que remune- tem sido tratado de modo superficial até então, rem o trabalho e não os capitais. Essas medidas seja por parte das instituições de pesquisa que são consideradas cruciais para a redução da divulgam dados sem profundidade, seja por in- vacância residencial em todo o país. Espera-se, termédio das políticas públicas nacionais, que além disso, que elas também estimulem uma tratam da vacância residencial de modo pou- redução do controle dos capitais sobre os espa- co articulado e com foco restrito às ações de ços cotidianos. Não se pode perder de vista que melhoria de edificações degradadas e/ou aban- a forma de atuação da indústria imobiliária é donadas, desconsiderando medidas mais estru- decisiva para a formação do imenso estoque de turais voltadas à mobilização do estoque vago domicílios vagos existente. Assim, a produção existente. Buscou-se discutir formas que facili- capitalista de moradias pode ser considerada tem o acesso das famílias carentes ao estoque um dos principais contribuintes para a que- de domicílios vagos, que interditem a ociosida- bra de elos das cadeias de vacância não só na de desse estoque forçando sua liquidez e, por RMBH como em todo o país. Ana Paula Maciel Mestre em Arquitetura e Urbanismo, professora voluntária da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do grupo MOM-UFMG (Morar de Outras Maneiras-UFMG). [email protected] Ana Paula Baltazar Mestre em Arquitetura e Urbanismo, professora adjunta da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do grupo MOM, UFMG. [email protected] 542 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família Notas (1) Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro (2005). Apesar de já existirem informações mais atualizadas sobre déficit e vacância domiciliar, divulgadas pela ins tuição de pesquisa em 2006 e 2007, os dados sobre domicílios ociosos desagregados por setor censitário são provenientes da pesquisa realizada em 2005. Desse modo, para garantir a equivalência de informações optou-se por u lizar todos os dados do mesmo ano, ainda que isso implique uma defasagem de dois anos. Cabe ressaltar que sendo esta uma pesquisa qualita va, os dados esta s cos serão interpretados apenas como tendências, o que minimiza o problema da defasagem de dois anos dos dados existentes, e, principalmente, da defasagem de cinco anos da vacância atual. (2) Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro (2005). (3) A elaboração do PDDI foi coordenada pelo Prof. Roberto Luis Monte-Mór (Cedeplar/UFMG) em atendimento à solicitação da Secretaria de Estado de Desenvolvimento e Polí ca Urbana de Minas Gerais (SEDRU-MG) e a equipe HVQ foi coordenada pela Profa. Silke Kapp (MOM/UFMG). (4) Apesar de corresponderem à lógica da necessidade, é comum ver ocupações de terras ociosas repe ndo padrões de ocupação pra cados em empreendimentos da indústria da construção (lógica do mercado): “Ao contrário da favela ou de outros aglomerados consolidados, as ocupações por movimentos sociais organizados têm reproduzido a lógica de parcelamentos adotada pelo poder público ou por loteadores privados: as decisões são tomadas em um único momento e segundo um plano geral, que define lotes individuais de propriedade privada. Nas favelas, pelo contrário, a fluidez espacial e as possibilidades de negociação são maiores; pedaços do terreno de um vizinho podem ser usados como passagem, ven lação ou depósito, assim como eventualmente comprados ou alugados. O lote privado tem seus limites rigorosamente definidos apenas com a ação externa de regularização. Já nas ocupações organizadas, o parcelamento se faz nos moldes da cidade formal, inclusive com a perspec va de formalização superior; apenas os lotes são menores (na ocupação Dandara, 128 m2)” (PDDIHVQ-4, 2010, p. 213). (5) Ribeiro, diferente de Kapp, Baltazar e Velloso e de Abramo, considera a produção estatal de moradias, via companhias estaduais de habitação , um submercado do segmento capitalista, correspondente, portanto, à lógica de mercado. Segundo o autor, trata-se de “uma produção capitalista cujo produto não circula necessariamente como capital. Com efeito, como o promotor neste caso é um organismo público (CEHAB) ou os próprios compradores (cooperativas), em princípio, não é a apropriação de um lucro de incorporação que orienta a produção. Isto é possível pela função direta ou indiretamente exercida pelo Estado que, financiando com subsídios a produção e a comercialização, fornece um capital que circula de maneira desvalorizada” (Ribeiro, 1997, p. 124). Para Ribeiro, o segmento não capitalista de produção de moradias restringe-se às formas de autoprodução “que têm como traço comum o fato de não ser a acumulação de capital o que orienta a produção, mas a produção de valores de uso. Assim sendo, quando estas moradias são colocadas no mercado, seus preços são fixados por condições totalmente alheias à sua produção. Cons tuem-se, portanto, em moradias-mercadorias, mas não capital” (ibid., p. 124). (6) A produção do espaço, na verdade, não tem ocorrido sem algum po de intervenção estatal. Como será visto adiante, o Estado tem atuado no sen do de garan r o privilégio das classes mais abastadas em detrimento dos mais pobres. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 543 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar (7) Censo Demográfico 2000 e pesquisas FJP, “Déficit Habitacional no Brasil” 2005 e 2007, realizadas pela FJP (vide referências). (8) O conceito de necessidades habitacionais proposto pela FJP incorpora duas condições: o déficit habitacional propriamente dito e a inadequação de moradias. A primeira categoria está ligada à necessidade de reposição (domicílios rús cos) ou incremento de estoque (domicílios improvisados), coabitação familiar não voluntária, ônus excessivo com aluguel e domicílios alugados com adensamento excessivo. Todas as categorias do déficit são mutuamente excludentes. A inadequação, por sua vez, possui cinco componentes (que podem se sobrepor): domicílios próprios com densidade excessiva de moradores por dormitório, carência de serviços de infraestrutura (energia elétrica, abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo), inadequação fundiária urbana, inexistência de unidade sanitária domiciliar exclusiva e cobertura inadequada. (9) Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro (2009). Como nesse momento interessa mais discu r os componentes da metodologia atual do que entender as relações microlocais nos setores censitários, optou-se por u lizar os dados mais recentes, fornecidos pela ins tuição em 2009 (ano de referência 2007), em razão das revisões metodológicas no cálculo dos componentes da inadequação e déficit habitacional que, respec vamente, passaram a contemplar os itens “cobertura inadequada” e “ônus excessivo com aluguel”. Como tais componentes aparecem de forma discriminada nos gráficos, julga-se mais coerente que sejam u lizados dados menos defasados e divididos segundo os acertos metodológicos mais recentes, implementados pela FJP. Para todo o restante do trabalho, serão u lizados os dados da pesquisa de 2005 (FJP, 2005), desagregados por setor censitário. (10) Segundo a FJP, o ônus excessivo com aluguel “corresponde ao número de famílias urbanas, com renda familiar de até três salários mínimos, que moram em casa ou apartamento (domicílios urbanos duráveis) e que despendem mais de 30% de sua renda com aluguel” (FJP, 2007, p. 16). Ainda de acordo com a ins tuição, na metodologia original, esse componente era considerado como um dos critérios da inadequação de domicílios e não como déficit habitacional. (11) O termo “interesse social” será u lizado para qualificar a habitação produzida com subsídio público para famílias com renda mensal de 0 a 3 salários mínimos (conforme literatura nacional das polí cas públicas), ainda que o termo venha sendo ques onado em alguns debates que consideram toda habitação como sendo de interesse social, independentemente da renda do público-alvo ao qual se des na. (12) Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro (2005). (13) Segundo a arquiteta Iracema Generoso de Abreu Bhering, coordenadora da equipe contratada pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional e Polí ca Urbana (SEDRU) em 2010 para a elaboração de quatro Planos de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais em municípios da RMBH (Lagoa Santa, Santa Luzia, Sabará e Confins), os estudos nacionais se baseiam usualmente no fator tempo para medir a a picidade de taxas de vacância encontradas. De acordo com a arquiteta: “sempre são feitas pesquisas com profissionais ligados ao mercado imobiliário (corretores, etc.) e para o período atual, um momento em que o mercado está aquecido – temos a informação de que 3 meses de vacância é um período considerado normal. Acima disso, temos que buscar outras razões para jus ficar a ociosidade dos imóveis” (entrevista realizada em set/ 2010). (14) Maiores informações disponíveis em: <http://www.census.gov/hhes/www/housing/nychvs/ nychvs.html>. Acesso em: jul/ 2010. 544 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 Famílias sem casa e casas sem família (15) Como já falado, as esta s cas sobre domicílios vagos divulgadas pelas ins tuições de pesquisa consistem em dados totalmente desqualificados, cuja única informação possível de ser ob da é o nível de renda do setor censitário onde os imóveis estão localizados. Desse modo, para uma maior qualificação das informações fornecidas, procedeu-se a um cruzamento entre os dados de domicílios vagos e renda dos chefes de família em cada setor censitário. As informações cruzadas têm como resultado a Figura 2, que classifica os domicílios vagos segundo a renda dos chefes de família. O gráfico com dados percentuais na parte superior da imagem, consiste em um somatório dos domicílios vagos. O percentual expresso pela faixa cinza escura, por exemplo, significa que 18% dos domicílios vagos estão concentrados em áreas habitadas por famílias cujo chefe tem rendimento superior a 10 salários mínimos.. (16) Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro (2005). (17) Segundo Mendonça (2002), muitos autores que estudam mudanças na estruturação urbana das demais metrópoles brasileiras constataram, nos úl mos anos, que famílias com padrões de renda dis ntos voltaram a coabitar o espaço urbano, mesmo que separados por enclaves for ficados. Esse novo padrão seria diferente, portanto, do modelo centro-periferia que, de acordo com a autora, ainda permanece como padrão predominante na RMBH. (18) Ao passo que as disputas cole vas pela apropriação dos recursos urbanos correspondem a uma abordagem marxista do espaço, que enfa za as chances desiguais de acesso aos bens ofertados pela cidade, as escolhas individuais correspondem à análise das correntes heterodoxas do pensamento econômico, que conferem um peso maior às escolhas individuais e distâncias sociais entre grupos. Tendo em vista que, para o trabalho aqui apresentado, mais do que a corrente ideológica, importa o fato de exis rem agentes heterogêneos interagindo no mercado de moradias, e que essa premissa é também adotada pelas duas abordagens (heterogeneidade de agentes para as correntes heterodoxas e luta de classes para os marxistas), optou-se por colocá-las lado a lado na defesa do argumento, segundo o entendimento de que ambas se reforçam mutuamente. (19) A expressão “divisão econômico-social do espaço residencial” ou DESER é picamente empregada pela tradição marxista. De acordo com Abramo, “Segundo os termos neoclássicos, seria preciso falar de uma análise da cidade segregada” (2007, p. 42), conforme adotado por Mendonça (2002). Optou-se pela tradição marxista, pelo entendimento de que mesmo que a expressão não faça originalmente menção às escolhas individuais (ou microeconomia) analisadas pelas correntes heterodoxas, ela permite uma abordagem mais condizente com a pretendida pelo trabalho, se comparada à expressão “segregação espacial”, mais restri va. (20) Por saberem que sua opinião idividual não tem valor, as pessoas acabam se voltando para as decisões dos que consideram mais bem informados, no caso do mercado de moradias os agentes da indústria imobiliária são os maiores detentores de conhecimentos: “No meu enfoque espacial, é possível fazer a figura do empresário schumpeteriano intervir numa dinâmica de antecipação especular e as famílias procurarem indícios nas pessoas que consideram mais bem informadas sobre o futuro da estrutura urbana. Nesse caso, é de imaginar que elas vão se voltar para os empresários urbanos, na suposição de que eles teriam indicações sobre a localização dos diversos pos de família que compõem o mercado residencial. A crença de que os empresários estão mais bem informados, apesar de ninguém saber de antemão qual será a futura configuração residencial, não é desprovida de sen do. De fato, se todos os par cipantes desse mercado precisam especular sobre a ordem residencial futura, para eles os empresários devem agir como verdadeiros profissionais da antecipação. Como a decisão de produzir moradias é tomada em uma temporalidade cronológica (histórica), elas serão oferecidas em Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 523-547, jul/dez 2011 545 Ana Paula Maciel e Ana Paula Baltazar momento posterior à decisão, o que obriga os decididores a antever as antecipações de todo mundo. Por outro lado, tratando-se de um bem que implica imobilidade espacial, e como as convenções referentes à localização domiciliar das famílias são precárias (como todas as convenções), o exercício especula vo dos empresários é mais crí co que o das famílias. De modo que elas são propensas a acreditar que os empresários dispõem dos indícios mais seguros sobre a configuração futura das externalidades de vizinhança. Em seu isolamento mercan l, as famílias podem até ter a ilusão (cogni va) de que a oferta con nua soberana no mercado residencial – o que algumas proposições da sociologia marxista deram a entender –, como se fosse insensível aos problemas da coordenação mercan l” (Abramo, 2007, p. 131). Referências ABRAMO, P. (2005). O Mercado de solo informal em favelas e a mobilidade residencial dos pobres nas grandes metrópoles. ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO. Salvador. np. ______(2007). A cidade caleidoscópica. 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O objeto de análise são as habitações precárias de aluguel e o objetivo é fazer um histórico do processo de sua constituição até os dias atuais. A primeira parte situa a importância das áreas centrais, sua degradação física e as recentes discussões envolvendo sua revitalização. A segunda seção enfoca aspectos relevantes sobre os cortiços enquanto modalidade de habitação operária mais antiga de Santos e sua contextualização histórica. A terceira parte traça um panorama socioeconômico dessas habitações e sua precariedade. A quarta parte trata das legislações e dos projetos desenvolvidos pelo poder público na área. Por fim, as considerações finais fazem uma avaliação dessas ações destacando avanços e problemas a serem enfrentados. Abstract This article discusses the tenements located downtown Santos. The object of analysis is the precarious rented houses and the goal is to make a historical record of their settlement process until today. The first part places the importance of the central areas, their physical deterioration and recent discussions involving their revitalization. The second section focuses on relevant aspects of the tenements as the oldest housing modality of Santos’ working class, placing them in a historical context. The third part presents a socio-economic overview of this type of housing and its precariousness. The fourth part deals with the laws and the projects developed by public authorities in the area. Finally, concluding remarks are an evaluation of those actions highlighting the progress achieved and the problems to be faced. Palavras-chave: cortiços; habitação precária; vulnerabilidade social; precariedade urbana; política habitacional. Keywords: tenement; precarious housing; social vulnerability; urban precariousness; housing policy. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 André da Rocha Santos A importância desse debate década de 1950, tem se intensificado em grandes cidades mundiais, possuindo relação direta com as formas de produção e consumo. Carac- Cidades brasileiras que serviam como elo de ligação do país com o exterior, como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e o binômio Santos-São Paulo, espantavam investimentos e imigrantes no final do século XIX. Isso ocorria porque cidades como estas constituíam motivos de repulsa a qualquer um que estivesse habituado aos padrões arquitetônicos e sanitários das grandes capitais europeias, como Londres, Viena, Paris terísticas como o forte crescimento populacional e a expansão física da malha urbana, além da inserção da cidade em um contexto econômico industrial, estabeleceram novas formas de apropriação e valorização do solo urbano com reflexos no mercado imobiliário, se manifestando mais intensamente nas áreas centrais dessas cidades (cf. Simões Jr., 1994, p. 11). Segundo Vargas e Castilho: e São Petersburgo. Assim, era preciso tirar as antigas cidades coloniais brasileiras, sobretudo as que se reanimavam com a economia cafeeira, dos limites de suas estruturas arcaicas em face das novas exigências econômicas (cf. Marins, 1998, pp. 131-214; Andrade,1992, pp. 206-233). Cidades que estivessem na rota do capital, como Rio de Janeiro e Santos, entre outras cidades brasileiras, foram reformadas sanitariamente, tanto do ponto de vista de sua circulação viária, como do embelezamento e remodelação, adquirindo assim uma nova imagem. Além de sanear as cidades tomadas pelas epidemias, o urbanismo dará a elas um padrão Ao mesmo tempo em que os centros congestionam-se pela intensidade de suas atividades, amplia-se a concorrência de outros locais mais interessantes para morar e viver. Assiste-se ao êxodo de atividades ditas nobres e à saída de outras grandes geradoras de fluxos, como as implementadas pelas instituições públicas. A substituição faz-se por atividades de menor rentabilidade, informais e, por vezes, ilegais e praticadas por usuários e moradores com menor ou quase nenhum poder aquisitivo. Consequentemente, a arrecadação de impostos diminui e o poder público reduz a sua atuação nos serviços de limpeza e segurança públicas. (2006, p. 6) estético moderno, formas urbanas próprias que acompanham a tecnologia de saneamento. Du- Conforme vai acontecendo a expansão, rante toda a República Velha, a implantação os padrões de uso e ocupação daquelas áreas desse projeto urbanístico se tornou um dos urbanas consolidadas vão sofrendo alterações principais objetivos do Estado brasileiro (cf. An- e modificações e, nesse sentido, vai se tor- drade, 1992, pp. 208-233). nando necessária sua readequação aos novos Entretanto, muitas dessas áreas que num condicionantes decorrentes do crescimento da primeiro momento foram objeto de interven- cidade. Ocorre que nem sempre se dá essa rea- ção passaram, em alguns casos, por processos daptação e é esse fator que faz com que certas de declínio e/ou degradação com o passar do áreas de degradem ou se deteriorem. tempo. A deterioração de certas áreas urbanas Quando a estrutura econômica, física, é um fenômeno mundial que, desde meados da social e ambiental existente no local não está 550 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 Habitação precária e os cortiços da área central de Santos mais satisfazendo o papel funcional que lhe é novas denominações, geralmente com o pre- exigido pela cidade, isto é, não está mais aten- fixo re, como, por exemplo, revitalização, re- dendo às expectativas definidas pela atividade qualificação ou revalorização (Vaz e Jacques, imobiliária,ocorre a degradação (Simões Jr., 2003, pp. 129-140 ; Vasconcellos e Mello, 1994, p. 12). 2006, pp. 53-66). Os anos de 1970 e 1980 marcaram a Vargas e Castilho (2006) identificam os época de crise da ideia de plano ou de plane- anos 1980-2000 como a Era da Reinvenção jamento no sentido modernista. Por oposição Urbana, na qual esse período seria o reflexo à prática do planejamento urbano, as práticas de um novo modelo de produção, ou seja, o pós-modernistas passaram a se pautar por pro- intervalo de tempo em que vem ocorrendo jetos urbanos abandonando a visão do espaço a transição do regime de acumulação de ca- como algo a ser moldado para propósitos so- pital fordista-keynesiano para um regime de ciais, ou seja, sempre subordinada a um proje- acumulação flexível (Harvey, 1992; Vargas e to abrangente e macroestrutural e passando a Castilho, 2006). ver as intervenções nos espaços urbanos mais Neste momento, a discussão em torno de parciais ou pontuais como coisa “independente políticas públicas visando à revitalização das e autônoma a ser moldada segundo objetivos áreas urbanas centrais que se encontram em e princípios estéticos que não têm necessaria- processo de deterioração passou a representar mente nenhuma relação com algum objetivo uma resposta possível à crise instaurada por social abrangente” (Harvey, 1992, p. 69). tais alterações. A partir de determinado mo- Esse processo ocasionou várias mudan- mento, grandes investimentos em megaproje- ças em muitas cidades que, diante de inúmeros tos, que até recentemente estavam concentra- fatores como a desindustrialização, o enxuga- dos em áreas periféricas ou em áreas de expan- mento da produção e precarização do trabalho são imobiliária, passaram a dirigir seus esfor- (com declínio das profissões formais, aumento ços e atenções para áreas situadas em pontos da subcontratação e do desemprego estrutu- centrais, históricos e de grande valor simbólicos ral), a perda da capacidade de investimentos nas cidades. do setor público e o aumento do setor de serviços, financeiro, de consumo e de entretenimento, vêm induzindo a certa mudança de visão nas práticas tradicionais, não só do Estado, mas de outros agentes interventores sobre o espaço urbano (Simões Jr., 1994; Frúgoli Jr., 2000). Os cortiços enquanto modalidade habitacional na área central de Santos Nesse sentido, surgiu um novo momento no processo de intervenção nos centros urba- O novo modelo de urbanismo iniciado no final nos. Por serem ações voltadas a tecidos do século XIX em certas cidades brasileiras urbanos já existentes, no sentido de adequá- passou a ser o espaço privilegiado das inte- -los outra vez, ou readaptá-los, essas realiza- rações e dos conflitos entre os grupos sociais ções vêm recebendo, a cada novo contexto, mais poderosos interessados ou beneficiados Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 551 André da Rocha Santos pelas intervenções urbanas. A partir dessa épo- casa do largo dos Gusmões que não deveria ca, as negociações desses grupos sociais com acomodar sequer a quarta parte disso” (Gam- o poder público e o papel subalterno que foi beta, 1984, p. 19). dado às camadas populares – em geral excluí- Os proprietários dos cortiços geralmente das das decisões que afetam a cidade – se con- se aproveitavam dos quintais das residências figuraram na regra dos processos sociais que e casas de comércio onde construíam em ma- resultaram nas intervenções urbanas (Frúgoli deira e zinco diversos barracos enfileirados, Jr., 2000, p. 20). assemelhando-se bastante aos descritos, em Entretanto, é também nesse mesmo 1890, por Aluízio Azevedo em sua obra rea- processo, que está ligado ao sistema expor- lista O Cortiço. O terreno não era cimentado, tador de café e aos primórdios da industriali- não havia água corrente e uma única latrina zação que se iniciou nas últimas décadas do servia a todas as famílias. Certas vezes, nem século XIX, que o cortiço, como modalidade mesmo latrina existia e os dejetos recolhidos de habitação operária mais antiga em cidades eram lançados em fossas permeáveis abertas como São Paulo e Santos, aumentou vertigi- no solo. Lugares como os armazéns, o espa- nosamente sua quantidade em decorrência ço entre o forro e o telhado, os corredores, do grande fluxo de imigrantes (Kowarick e os vãos das escadas, os porões subterrâneos, Ant, 1994, pp. 73-91). Entre 1886 e 1900, es- ou seja, qualquer local onde se possa colocar sas duas cidades cresceram, respectivamente, uma cama ou esteira era usado como moradia 223% e 403%, dividindo entre si as maiores ou dormitório. Em 1890, foram contados, pe- responsabilidades do setor urbano da econo- la municipalidade, 771 cortiços numa cidade mia cafeeira. que não tinha mais de 3.000 prédios no total, Dessa forma, para milhares de trabalha- ou seja, pode-se estimar que pouco menos da dores ocupados com as obras do cais, com o metade de toda população morava em corti- embarque do café e com os trabalhos na estra- ços (ibid., p. 20). da de ferro, a proximidade ao Centro era im- Foi nessa situação de total degradação prescindível. Tal situação, somada ao incessan- que, em 1892, as obras da rede de esgotos da te aumento da população, esgotou a oferta de cidade foram encampadas pelo Governo do moradias próximas ao local de trabalho, dando Estado através da Comissão Sanitária instala- origem a uma desenfreada especulação imobi- da em fevereiro de 1893. Em 1897, a Sanitária liária, em que muitas das casas deixadas pelos como era chamada, foi fortalecida pelo Códi- que fugiam da febre amarela, inicialmente nos go de Posturas Santista que, junto com o Có- bairros Centro e Valongo, foram transformadas digo Sanitário do Estado, promoveu grandes em habitações coletivas repartidas em peque- transformações nas construções e no meio nos cubículos e subalugadas a dezenas de fa- urbano. A extinção dos cortiços e das cochei- mílias imigrantes. Essas “casas de cômodos” ras era um dos principais pontos do programa eram subalugadas às famílias que pagassem e eles foram, de forma violenta e autoritária, o maior preço possível. “A fiscalização muni- sendo demolidos do meio urbano entre 1896 cipal contou, certa feita, 186 moradores numa e 1900. 552 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 Habitação precária e os cortiços da área central de Santos Ao se definir pela demolição ou desocupação das habitações dos trabalhadores não se pensava onde os alojar. Isso não era órbita da Comissão Sanitária. Em geral, num movimento de expansão das fronteiras urbanas os despossuídos foram recolocar os mesmos padrões de habitação e precariedade, mas longe dos olhares civilizados. (Lanna, 1996, p. 113) Após a demolição dos cortiços e a trans- Como mostrou Lanna: [...] essa dualidade permanece até hoje quando existem quase duas cidades. A ligada à praia e a do centro. Uma mais moderna, turística, mais rica. A outra, chamada centro, concentra as atividades comerciais, de abastecimento, a zona cerealista, atacadista, os cortiços, a população mais pobre muitas vezes ligada aos trabalhos do porto. (1996) ferência das cocheiras para longe das áreas de É preciso observar também que, até os adensamento, os trabalhadores sem ter aonde anos 1930, a acumulação produtiva estava ba- ir começaram a construir nos arredores barracos seada em torno de poucos lugares, nas proximi- iguais aos que alugavam nos quintais das casas. dades do cais, estruturando a cidade de modo Entretanto, todo o processo histórico, a concentrar os trabalhadores nos locais próxi- econômico e espacial ocorrido até então será mos ao trabalho, pois, além das longas jorna- o momento de ruptura a partir do qual a região das de trabalho, os gastos com o transporte em central da cidade consolidará sua tradição por- bondes, se as distâncias fossem longas, seriam tuária e comercial e se tornará, com todas as extremamente elevados e, portanto, incompatí- transformações do final do século XIX e come- veis com a compensação salarial. ço do XX, em uma cidade civilizada, saneada e Quando Santos ultrapassa 220 mil habi- moderna. Porém, esse será também o momen- tantes, entre as décadas de 40 e 50, tem início to em que o Centro começará a perder uma de a ocupação nos morros, mangues e restingas suas principais características – qual seja –, o e os terrenos que ladeavam a velha linha 1 de lugar de moradia das camadas de alta renda. bondes, área pantanosa e pouco povoada que, As espaçosas casas térreas e os sobrados do por isso mesmo abrigava, desde fins do século Paquetá e do Valongo são em pouco tempo XIX, o Matadouro Municipal. Essa população transformados em habitações coletivas de esti- instala-se também em áreas de pior infraes- vadores, portuários e empregados do pequeno trutura dos municípios de Cubatão (Jardim comércio. Casqueiro), São Vicente (Humaitá e Samaritá), As famílias de maior poder aquisitivo tomam o “caminho da Barra”, isto é, das praias, Guarujá (Vicente de Carvalho) e Praia Grande (Carvalho, 1999; Pimenta, 2002). que tiveram seu acesso facilitado pelo sistema Durante as décadas de 60 e 70, com o de bondes puxados a burro, pela orientação crescimento do polo industrial de Cubatão, das novas Avenidas Ana Costa e Conselheiro bem como com a expansão do comércio e do Nébias e pelos canais de Saturnino de Brito. turismo ligados à orla nas outras cidades da A partir desse período, foi relegada ao Centro região metropolitana como São Vicente, Gua- outra “função” na estruturação econômica e rujá e Praia Grande, o Centro tradicional foi espacial da cidade. sendo gradativamente preterido por atividades Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 553 André da Rocha Santos geradoras de fluxos e substituído por outras mesma direção, o emprego assalariado formal “de menor rentabilidade, informais e, por ve- decresce ao longo das décadas de 1990 e iní- zes, ilegais e praticadas por usuários e morado- cio do século XXI. res com menor ou quase nenhum poder aquisitivo” (Vargas e Castilho, 2006, p. 4). Na Tabela 1, podemos ver como, num período de apenas quatro anos, apesar das oscilações, a porcentagem de pessoas na informalidade aumentou de 29,2% para 33,0%. Com uma participação muito grande de pes- O panorama socioeconômico da área central soas na informalidade em razão do desemprego, o trabalhador, quando consegue se integrar à cadeia produtiva, o faz de forma O período dos anos 1980 traz, segundo precária, além de não garantir acesso aos Kowarick (2002), a configuração de um fato direitos sociais básicos e de ter uma renda inédito em nossa história republicana, isto é, muito baixa. Nessa direção, a parcela de pes- o bloqueio na mobilidade social ascendente. soas desempregadas também é muito alta. A O resultado de tal situação foi o considerável Tabela 2 mostra uma parcela considerável de aumento do contingente de trabalhadores 22,1% da população economicamente ativa desempregados ou que desenvolviam tarefas desempregada em fins da década de 1990 na assalariadas marcadas pela informalidade. Na cidade de Santos: Tabela 1 – Participação do mercado de trabalho formal e informal em Santos/SP jun/99 mar/00 set/00 mar/01 set/01 mar/02 set/02 % formal 70,8 80,9 77,8 69,8 70,0 65,0 67,0 % informal 29,2 19,1 22,2 30,2 30,0 35,0 33,0 Total 100 100 100 100 100 100 100 Fonte: Núcleo de Estudos Socioeconômicos (setembro/2002). Tabela 2 - População economicamente ativa Habitantes Total 257.033 Empregados 200.144 Desempregados 56.889 Índice de desemprego 22,1% Fonte: Núcleo de Estudos Socioeconômicos (dezembro/1998). 554 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 Habitação precária e os cortiços da área central de Santos Tabela 3 – Emprego e desemprego em Santos Faixa etária Desempregados Empregados Abaixo de 15 anos 3,1 0,7 De 15 a 17 anos 10,7 2,0 De 18 a 24 anos 34,4 22,3 De 25 a 29 anos 9,9 12,1 De 30 a 38 anos 19,1 16,5 De 40 a 49 anos 13,7 25,6 De 50 a 59 anos 7,6 13,2 Acima de 60 anos 1,5 7,6 Total 100 100 Fonte: Núcleo de Estudos Socioeconômicos, dezembro/1998. Dentre os desempregados, destaca-se o básicos da sociedade. Esses indivíduos esta- elevado número de jovens nessa situação, co- riam desenraizados social e economicamente mo mostrado na Tabela 3, em que se somando com o enfraquecimento de certas relações so- a porcentagem de jovens entre 15 e 17 anos ciais referentes à família, ao bairro, à vida as- mais as porcentagens de jovens entre 18 e 24 sociativa e ao próprio mundo do trabalho, com e entre 25 e 29, chega-se à enorme porcenta- o desemprego de longa duração ou o trabalho gem de 55% dos jovens entre 15 e 24 anos irregular, informal ou ocasional que o faz estar desempregados. excluído do sistema produtivo (Kowarick, 2002 Essa parcela da população, que repre- apud Castell, 1998). senta um número bastante alto em meados É nesse quadro de subcidadania e au- dos anos 1980 e 1990, caracteriza, segundo mento do desemprego nos anos de 1980 e Kowarick (2002), nossa questão social, onde 1990, que foi feito o primeiro levantamento essas recentes situações precárias de trabalho sobre a situação socioeconômica precária dos e, por conseguinte, de moradia caminham no cortiços em Santos. Apesar do processo de pe- sentido teórico de problematizar o conceito de riferização que ocorreu na Baixada Santista a desfiliação que, conforme proposto pelo autor, partir dos anos 50, o cortiço nunca deixou de baseado em Castell (1998), denota perda de existir e, em certos momentos, alcançou den- raízes e remete àqueles que foram desliga- sidades populacionais bastante altas. Sobre os dos, desatados, desabilitados para os círculos cortiços Kowarick e Ant (1994), afirmam que: Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 555 André da Rocha Santos Nas áreas mais centrais da cidade, de implantação mais antiga, em zonas que jamais alcançaram altos valores imobiliários e mesmo em áreas extremamente valorizadas, estão os cortiços que, pela proximidade dos serviços, pela disponibilidade de infraestrutura e principalmente pela facilidade de transportes, abrigam aquela parcela de trabalhadores que, por opção ou por obrigação, recusa o padrão periférico. Comprar um terreno, construir uma casa, por mínima que seja, exige um arranjo familiar e econômico que nem todos podem enfrentar. Por outro lado, estar próximo ao trabalho, ter um transporte de fácil acesso aos diversos pontos da cidade, gastar menos tempo e dinheiro para se locomover, usufruir dos serviços e até mesmo da diversão são fatores que, contrapostos ao isolamento e precariedade da periferia, pesam significativamente. 1990, existiam 840 habitações coletivas precá- Segundo estimativas realizadas pela dentes, o número foi de 253 e o total de indiví- Prefeitura, através da Secretaria de Desenvol- duos residentes foi de 622. O período da coleta vimento Urbano e Meio Ambiente, no ano de de dados foi em setembro e outubro de 2001. rias de aluguel na cidade (Sedam, 1992). Os levantamentos posteriores, de 2001, feitos pela Fundação Seade para o Programa de Atuação em Cortiços (PAC) da CDHU do Governo do Estado, mais a pesquisa de 2002, feita pela Secretaria de Planejamento da Prefeitura, apontam para 14.500 moradores encortiçados nos bairros Vila Nova, Paquetá e parte da Vila Mathias. A seguir, apresentamos os dados mais relevantes, segundo as diferentes pesquisas, começando pelo PAC, que teve como base territorial de amostra a Rua Amador Bueno e Avenida São Francisco no Paquetá. Nessa pesquisa, o total de imóveis pesquisados foi de 40. O total de domicílios e de domicílios ocupados foi de 352 e 239 respectivamente. Dentre as famílias resi- Gráfico 1 – Distribuição dos indivíduos segundo faixa etária 3% 6% 20% 9% Até 9 anos 10 a 19 anos 20 a 29 anos 30 a 39 anos 14% 40 a 49 anos 16% 50 a 59 anos 60 a 69 anos 70 anos e mais 13% 19% Fonte: Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, 2002. 556 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 Habitação precária e os cortiços da área central de Santos Gráfico 2 – Inserção no mercado de trabalho e renda 22% Trabalha Não trabalha porque não encontra trabalho 10% Outros motivos 68% Fonte: Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, 2002. O perfil da população pesquisada é O rendimento per capita, entre as famí- predominantemente jovem. Mais da metade lias encortiçadas, concentra-se nas classes de possui até 29 anos (55,9%), com significa- meio até um salário mínimo (32,5%) e mais de tiva concentração de crianças (21,3%). Do um até dois salários mínimos (31,6%) sendo outro lado da pirâmide etária encontramos 18,4% sem rendimentos ou que dispõem de poucos indivíduos com mais de 60 anos, ape- até meio salário mínimo per capita, como mos- nas 9%. trado no Gráfico 3. É elevada a proporção de chefes de A maioria dos domicílios tem apenas um família fora do mercado de trabalho. Cerca cômodo e esse espaço interno é bastante re- de 70% dos chefes de família estão ocupa- duzido. Lembrando que se considera cômodo dos, contudo, 10,4% encontram-se desem- todo compartimento contido no domicílio que pregados e 21,5% não trabalham por outros é separado por paredes fixas de alvenaria ou motivos. de madeira: Gráfico 3 – Distribuição das famílias segundo renda per capita 1% Sem rendimento 2% Até 0,5 salário mínimo 5% 9% 15% Mais de 0,5 até 1 salário mínimo Mais de 1 até 2 salários mínimos Mais de 2 até 3 salários mínimos 32% 33% Mais de 3 até 4 salários mínimos Mais de 4 até 5 salários mínimos Mais de 5 salários mínimos Fonte: Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, 2002. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 557 André da Rocha Santos Gráfico 4 – Distribuição dos domicílios segundo presença de divisórias 100 80 60 Sequência 1 40 20 0 Possuem divisórias Não possuem divisórias Fonte: Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, 2002 Como podemos ver no Gráfico 4, na até três pessoas (68%) e estas são naturais do grande maioria dos domicílios (83,3%), os dife- estado de São Paulo. Foi constatado que 23% rentes espaços internos não possuem divisórias das famílias têm apenas um filho e as que pos- móveis ou improvisadas. “Apenas 16,7% das suem um número acima de quatro filhos com- unidades habitacionais contêm cortinas, armá- põem a minoria, com apenas 8%. rios e outros tipos de paredes removíveis para A baixa renda familiar predominante po- separar funções como, por exemplo, o quarto e de ser explicada pela baixa escolaridade. Dos a cozinha (ou a cama e o fogão)” (CDHU, 2002, chefes de família, 10% são analfabetos e 67% p. 33). possuem apenas o curso fundamental incom- O resultado do censo dos moradores dos pleto. Já nos aspectos econômicos, conclui-se cortiços foi realizado pela Seplan, entre outu- que 93% dos chefes de família estão econo- bro e dezembro de 2002, e divulgado em agos- micamente ativos, porém apenas 47% têm to de 2003. O universo da pesquisa consistiu atividade profissional formal com comprovação em 14.500 moradores encortiçados e a amos- de renda. A maioria dessas pessoas recebe até tra feita corresponde a 1.238 moradores inte- R$400, representando 73% da amostra, e 40% grantes de 412 famílias pesquisadas. recebe menos de R$200. Os principais dados são bastante pare- No que se refere às questões físicas, a cidos com a pesquisa realizada pela Fundação maior parte das famílias (86%) ocupa apenas SEADE. Assim como na pesquisa encomendada um cômodo nas residências e foram verifica- pela CDHU, a população é predominantemente dos, em alguns casos, que essas famílias têm jovem: 41% possuem de zero até 19 anos, 60% um número alto de componentes habitan- de zero até 29 anos e somente 15% estão aci- do esse local sem condições físicas para essa ma de 50 anos. A maioria das famílias possui demanda. 558 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 Habitação precária e os cortiços da área central de Santos Gráfico 5 – Distribuição das famílias segundo número de cômodos 1% 3% 10% 1 Cômodo 2 Cômodos 3 Cômodos 6 Cômodos ou mais 86% Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento, 2003. A distribuição das famílias nos cortiços e quatro famílias se somarmos as porcentagens mostra que 51% dessas habitações compor- dos cortiços com treze a quinze famílias, mais ta de uma a seis famílias em cada um. E em a porcentagem com dezesseis a vinte e quatro 15% desses cortiços coabitam de treze a vinte famílias, como mostrado no Gráfico 6. Gráfico 6 – Distribuição dos cortiços segundo número de famílias De 1 a 3 famílias De 4 a 6 famílias 6% 9% 17% De 7 a 9 famílias 15% De 10 a 12 famílias 19% 34% De 13 a 15 famílias De 16 a 24 famílias Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento, 2003. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 559 André da Rocha Santos Gráfico 7 – Distribuição dos domicílios segundo utilização do banheiro 9% Privado Coletivo 91% Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento, 2003. Gráfico 8 – Distribuição dos domicílios segundo utilização do tanque 6% Privado Coletivo 94% Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento, 2003. Outros dados que mostram o alto nível A Fundação SEADE criou, em 2000, o Ín- de precariedade e promiscuidade das habita- dice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), ções são os relativos ao uso do banheiro e do com o intuito de construir indicadores que ex- tanque de lavar roupa, onde 91% dos domicí- pressassem o grau de desenvolvimento social lios utilizam banheiros coletivos e em 94% os e econômico dos 645 municípios do estado tanques são de uso comum. de São Paulo, além de identificar os espaços Quanto aos vínculos urbanos da popula- e as dimensões da pobreza a partir do censo ção encortiçada – permanência na cidade –, o demográfico de 2000. Esse índice classifica os censo revela que grande parte dos moradores municípios paulistas referentes às questões de dos cortiços vive no município há mais de 15 equidade e condições de vida no interior dessas anos (46%), sendo que 26% do total perma- localidades. Para os objetivos de nosso trabalho, necem no mesmo bairro há mais de 15 anos. reproduzimos a classificação do IPVS dos três 560 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 Habitação precária e os cortiços da área central de Santos grupos de vulnerabilidade social que se situam nos bairros da área central: Grupo 4 – Vulnerabilidade média: setores que apresentam níveis médios na dimensão socioeconômica; encontrando-se em quarto lugar na escala em termos de renda e escolaridade do responsável pelo domicílio. Nesses setores concentram-se famílias jovens, isto é, com forte presença de chefes jovens (com menos de 30 anos) e de crianças pequenas. Grupo 5 – Vulnerabilidade alta: setores censitários que possuem as piores condições na dimensão socioeconômica (baixa), situando-se entre os dois grupos em que os chefes de domicílios apresentam, em média, os níveis mais baixos de renda e escolaridade. Concentra famílias mais velhas, com menor presença de crianças pequenas. Grupo 6 – Vulnerabilidade muito alta: o segundo dos dois piores grupos em termos de dimensão socioeconômica (baixa) com grande concentração de famílias jovens. A combinação entre chefes jovens, com baixos níveis de renda e de escolaridade e presença significativa de crianças pequenas, permite inferir ser este o grupo de maior vulnerabilidade à pobreza (Seade, 2003). Para o município de Santos, temos o seguinte mapa do IPVS: Figura 1 – Índice Paulista de Vulnerabilidade Social Município de Santos – 2000 Setores censitários Município de Santos Hidrografia Logradouros Fonte: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 2003. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 561 André da Rocha Santos Os bairros Centro, Valongo, Paquetá, Vila Nova e parte da Vila Mathias estão totalmente situados entre os grupos de vulnerabilidade média (grupo 4), alta (grupo 5) e muito alta (grupo 6). Segundo a Fundação Seade, esses dados são analisados para Santos da seguinte forma: Grupo 4 (vulnerabilidade média): 13.425 pessoas (3, 2% do total). No espaço ocupado por esses setores censitários, o rendimento nominal médio dos responsáveis pelo domicílio era de R$450 e 61,9% deles auferiam renda de até três salários mínimos. Em termos de escolaridade, os chefes de domicílios apresentavam, em média, 5,3 anos de estudo, 88,9% deles eram alfabetizados e 30,1% completaram o ensino fundamental. Com relação aos indicadores demográficos, a idade média dos responsáveis pelos domicílios era de 40 anos e aqueles com menos de 30 anos representavam 24,7%. As mulheres chefes de domicílios correspondiam a 30,4% e a parcela de crianças de 0 a 4 anos equivalia a 12,3% do total da população desse grupo. Grupo 5 (vulnerabilidade alta): 31.389 pessoas (7,5% do total). No espaço ocupado por esses setores censitários, o rendimento nominal médio dos responsáveis pelo domicílio era de R$493 e 57,8% deles auferiam renda de até três salários mínimos. Em termos de escolaridade, os chefes de domicílios apresentavam, em média, 5,0 anos de estudo, 84,7% deles eram alfabetizados e 28,3% completaram o ensino fundamental. Com relação aos indicadores demográficos, a idade média dos responsáveis pelos domicílios era de 46 anos e aqueles com menos de 30 anos representavam 13,8%. As mulheres chefes de domicílios correspondiam a 32,9% e a parcela de crianças de 0 a 4 anos equivalia a 9,4% do total da população desse grupo. 562 Grupo 6 (vulnerabilidade muito alta): 21.378 pessoas (5,1% do total). No espaço ocupado por esses setores censitários, o rendimento nominal médio dos responsáveis pelo domicílio era de R$345 e 74,3% deles auferiam renda de até três salários mínimos. Em termos de escolaridade, os chefes de domicílios apresentavam, em média, 4,6 anos de estudo, 82,4% deles eram alfabetizados e 21,9% completaram o ensino fundamental. Com relação aos indicadores demográficos, a idade média dos responsáveis pelos domicílios era de 40 anos e aqueles com menos de 30 anos representavam 24,4%. As mulheres chefes de domicílios correspondiam a 33,7% e a parcela de crianças de 0 a 4 anos equivalia a 12,3% do total da população desse grupo. (Seade, 2003) As estimativas com relação à população moradora em cortiços na cidade de Santos não são precisas, sendo, em alguns pontos, bastante frágeis. Como afirmam Moreira, Leme, Naruto e Pasternak (2006), desde sua conceituação até sua mensuração, as pesquisas envolvendo esse tipo de objeto são uma realidade bastante difícil de captar de forma precisa apenas por pesquisas de caráter quantitativo. Contudo, as repetições de alguns dados em diferentes pesquisas realizadas na área mostram inúmeros traços em comum e “apontam para situações em que a vulnerabilidade social acontece em um quadro de precariedade urbana” (Moreira, Leme, Naruto e Pasternak, ibid., p. 23). Essas condições de precariedade se transformam, mas é a relação entre a vulnerabilidade social e a precariedade urbana, características de cortiços como os de Santos, que explicam sua existência e constância há mais de um século e as dificuldades do Poder Público em erradicá-las (ibid.). Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 Habitação precária e os cortiços da área central de Santos Planos, programas e projetos envolvendo a questão habitacional Construção de Habitação Popular e do Conselho Municipal de Habitação, bem como foram desenvolvidas as estratégias de intervenção dos programas em favelas e de novos assentamentos habitacionais, em ação conjunta do Em 1968, foi aprovado o primeiro plano diretor Executivo e segmentos populares (Carvalho, da cidade. É a primeira legislação a prever zonas 1999, p. 152). com diferentes adensamentos urbanos, ou seja, A política de planejamento urbano foi com limites de construção de prédios diferencia- efetivada na prática com a implantação da dos por bairros e regiões. O projeto vislumbrava parte do plano diretor relativo ao Zoneamen- o uso da orla como zona turística e proibia a to Especial de Interesse Social, através de uma construção de habitações no Centro que deve- política municipal de habitação executada no ria ser planejado para ser uma zona comercial. governo David Capistrano (1993-1996). Com a Além disso, criava zonas mistas, com a possi- definição da habitação como uma das priorida- bilidade de exploração comercial e residencial. des de agenda, esta administração desenvol- Os limites de adensamento foram relativamente veu a política de habitação sobre as bases das respeitados, embora a lei tenha sido várias ve- condições criadas no governo anterior (Martins, zes alterada para acomodar interesses imobiliá- 1998, pp. 17-18). rios e comerciais, além das habitações no Cen- O ponto de partida para a intervenção tro continuarem a existir, na forma dos cortiços. no setor habitacional foram os novos regula- No final da década de 1970, esse plano mentos instituídos com a lei de ZEIS, especí- já não atendia às necessidades reais da cidade ficos para o parcelamento, uso e ocupação em vista das transformações urbanas ocorridas dos lotes urbanos destinados à habitação de e o resultado foi a contínua decadência do co- interesse social. As perspectivas da sua con- mércio no Centro e Paquetá, tornando-se, cada tinuidade como política participativa assenta- vez mais, bairros de habitações precárias (Sil- ram-se nos instrumentos legais que, em 1992, vares, 1980). criaram o CMH e as Comissões de Urbanização Dessa forma, a cidade chegou ao final da e Legalização e estabeleceram a diretriz de década de 1980 sem uma política habitacio- atendimento da demanda organizada (Carva- nal efetiva para o perímetro urbano das áreas lho, 1999, p. 153). central e portuária, onde o problema dos cor- A lei de ZEIS compunha o capítulo do zo- tiços não era tratado ou o era de forma isola- neamento especial, delimitando áreas do terri- da e separada do conjunto. Apenas na gestão tório insular do município com funções especí- Telma de Souza (1989-1992) essa questão foi ficas, objeto de regulação urbana diferenciada, debatida de forma direta e especifica na pro- e incluía ainda as propostas de Zonas Especiais posta do novo plano diretor (PMS, 1995). Nessa de Interesse Cultural, Ambiental e Urbanís- gestão, foram aprovadas as leis de instituição tico e de criação de Corredores de Atividades das ZEIS e de criação do Fundo de Incentivo à Econômicas. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 563 André da Rocha Santos Essas ZEIS correspondem a áreas ocupadas por favelas, loteamentos irregulares ou clandestinos, cortiços e terrenos vazios ou mal utilizados, nas quais o poder público se propõe a intervir com base no reconhecimento da necessidade da população de ocupar ordenadamente os espaços urbanos. Identificadas e delimitadas espacialmente, foram criadas três categorias de ZEIS: ZEIS 1, que correspondem a [...] renovação urbana e produção de unidades habitacionais de caráter popular através da intervenção em área com concentração de habitação coletiva precária de aluguel (cortiços), onde haja interesse de se promoverem programas e projetos habitacionais destinados prioritariamente à população de baixa renda familiar moradora da área. A delimitação desta área corresponde ao tipo de zoneamento denominado ZEIS 3. (1999, p. 105) áreas já ocupadas, de forma irregular ou clandestina, nas quais se propõe a regularização ju- Contudo, tal mecanismo não conseguiu rídica e urbanística; ZEIS 2, que correspondem se efetivar na prática. Esse instrumento teve a áreas não ocupadas, nas quais se propõe a a sua inclusão na lei complementar n. 53/92 implantar empreendimentos habitacionais ocorrendo de forma distinta dos demais tipos, segundo critérios especiais de parcelamento, não se apoiando em nenhum programa público uso e ocupação do solo; e ZEIS 3, que corres- de intervenção em andamento. De forma dis- pondem a áreas de concentração de cortiços, tinta das ZEIS 1 e 2, que poucas resistências so- localizados em bairros centrais deteriorados, freram, a proposta de intervenção nos cortiços nos quais o poder público propõe recuperar as localizados na área central da cidade foi critica- condições de habitabilidade (ibid., p. 75). da pelo setor da construção civil. A Lei Complementar que criou as ZEIS foi Nesse sentido, a política de intervenção promulgada em 15 de maio de 1992. Ela estru- nos cortiços – e, por decorrência, na área cen- tura a intervenção visando solucionar o proble- tral da cidade, onde foi delimitado o perímetro ma de moradia de interesse social através de de ZEIS 3 – teve de ser redefinida, passando a legislação que regulamenta as zonas de ocupa- se estruturar como programa de locação social. ção especial para esse uso específico, indican- Enquanto programa de locação social, os resul- do os mecanismos jurídicos para o tratamento tados quantitativos alcançados foram baixos da questão fundiária, os mecanismos especí- e, ao final da segunda administração petista, ficos relacionados à partilha do solo urbano e apenas dois empreendimentos haviam sido às exigências para edificação e os mecanismos concluídos. Ambos os empreendimentos con- financeiros próprios para o acesso à moradia sistiam na reforma de imóveis localizados na popular (Carvalho, 2001, p. 104). área central da cidade e visavam o direito de A abrangência do problema habitacional moradia e não de propriedade à população. O objeto de intervenção dessa modalidade de zo- primeiro atendeu 14 idosos e o segundo, 8 fa- neamento especial destinou-se ao atendimento mílias. Além destes, em 1996, um terceiro em- da necessidade da população de baixa renda. preendimento encontrava-se em andamento e Segundo Carvalho, no caso da ZEIS 3, a inter- outros três em fase de estudos (Carvalho, 1999, venção é feita através da ação pública de: pp. 152-155). 564 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 Habitação precária e os cortiços da área central de Santos Segundo a diretora da COHAB-ST, o pro- a construção de moradias com verbas dos pro- jeto de ZEIS 3 não foi formulado a partir da gramas habitacionais, promovidos pelo Gover- demanda expressa por qualquer segmento da no do Estado. O Município ficou responsável população, tal como ocorreu com as ZEIS 1 e 2. pela promoção do ordenamento territorial, Além disso, tal mecanismo foi incorporado ao mediante planejamento e controle de uso. projeto de lei de criação das ZEIS “de última O CMDU já havia aprovado também a hora”, posto que se concluiu que era “interes- proposta de alteração da Lei de ZEIS, incluindo sante” (Carvalho, 2001, p. 106): algumas das sugestões encaminhadas por conselheiros, que visavam melhorar a redação da A ZEIS 3 não aconteceu na prática. Tivemos levantamento, pesquisas em cortiços. Chegamos a fazer projeto, no governo do David mais ainda. (...) A ZEIS 3 mesmo não dá pra falar que foi uma experiência bem-sucedida... (Ibid.)1 proposta, evitando dúvidas de interpretação. Além das ZEIS, outro instrumento de das pelos componentes do CMDU, foi a melho- política urbana visando à questão da moradia ra da redação, deixando clara a nomenclatura na área central foi amplamente debatido na de locais especificados pela Lei de ZEIS, além cidade nos últimos anos. Trata-se do Progra- de explicar – no próprio texto da lei – alguns ma de Atuação em Cortiços da Companhia de termos específicos da matéria. A minuta que Desenvolvimento Habitacional e Urbano do foi confrontada com a Lei atual (cuja alteração Governo do Estado. Em 1999, houve o primei- estava sendo sugerida) foi elaborada por meio ro anúncio e, em 2001, o primeiro estudo de do trabalho coordenado pela Seplan, do qual ocupação e a proposta de convênio, para dar participaram técnicos da Cohab Santista, CET início ao programa criado em junho de 1998. e Seosp. Com a aprovação do projeto, o mu- A iniciativa do PAC visava extinguir esse tipo nicípio passou a contar com 46 áreas de ZEIS de locação habitacional, além da revitaliza- e, entre as novas, está a ZEIS-3 no bairro Pa- ção urbana das áreas em que se concentram, quetá no perímetro que compreende as ruas permitindo que as famílias permaneçam na Amador Bueno, Doutor Cóchrane, João Pessoa mesma região onde moram e possam usufruir e Conselheiro Nébias (D. O., 28/5/2002). Encaminhadas pelos membros ao conselho, as sugestões foram alvo de debates e avaliações que resultaram na aprovação do texto da minuta do projeto. O objetivo principal das alterações, vota- a infraestrutura disponível. O Programa con- Tendo como foco a ação nas áreas cen- centra o seu foco de ação nas Áreas Centrais, trais encortiçadas das grandes cidades do es- cumprindo o papel de revitalizar o centro tado, a equipe do PAC demonstrou grande deteriorado das maiores cidades do Estado. interesse em Santos, por conta de algumas (CDHU, 2003). características que deram ao município priori- Em 2002, foi aprovada a sanção da Lei dade na implantação do projeto. Dentre essas Complementar n. 457 que alterou o anexo características, o fato de a área ser bem menor I da Lei que criou as ZEIS. Com essas altera- do que em outras cidades e estar concentra- ções ficaram estabelecidas as condições para da espacialmente, além de os imóveis terem Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 565 André da Rocha Santos Figura 2 – Ruas dos bairros Valongo, Centro, Paquetá, Vila Nova e parte da Vila Matias Fonte: Google Maps, 2007. particularidades arquitetônicas de relevo histó- Em março de 2004, houve o ato simbóli- rico que deverão ser reabilitadas, reurbanizadas co de acionamento do bate-estaca no terreno e requalificadas urbanisticamente, visando ex- da Rua João Pessoa, 400, no Centro, onde seria tinguir esse tipo de concentração habitacional. construído um conjunto habitacional com 600 De acordo com o levantamento da Pre- unidades, sendo que as 60 primeiras deveriam feitura entregue ao órgão estadual, a área de ser entregues em julho de 2005 pela CDHU. atuação do PAC seria a região do Mercado Na mesma solenidade foi anunciado que o Municipal e do Cemitério do Paquetá, on- governo estadual estava investindo R$1,4 mi- de as intervenções abrangeriam cerca de 10 lhão no projeto que teria três prédios, de cinco quarteirões. Segundo o convênio, o programa pavimentos cada. Nesse caso, o município não seria implantado por meio da parceria entre a entraria com nenhum encargo, que seriam sub- Prefeitura, o Governo Estadual e Banco Intera- sidiados, meio a meio, pelo BID e CDHU. mericano de Desenvolvimento (BID) – órgão fi- Ainda no mesmo ano de 2004, em no- nanciador –, que estaria empregando em torno vembro, o secretário de Estado da Habitação e de US$100 milhões para o projeto em todo o o gerente regional da CDHU, em visita ao Pa- 2 Estado (D.O., 5/10/2001). 566 ço Municipal, reafirmaram as parcerias entre Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 Habitação precária e os cortiços da área central de Santos Prefeitura e Governo do Estado nas políticas foi analisada pela Caixa Econômica Federal, públicas para moradia popular e anunciaram agente financiador do programa ( A Tribuna, que até o final de 2006 seriam totalizadas 339 21/6/2006) e empreende desde o início de moradias habitacionais dentro do PAC. O in- 2009 a construção de 181 unidades habitacio- vestimento seria da ordem R$10 milhões e as nais – sendo 113 apartamentos pelo Programa construções teriam o cuidado de ser adequada Crédito Solidário, e 68 pelo Programa Minha com os objetivos propostos pela revitalização Casa, Minha Vida – Entidades, ambos do Go- do Centro Histórico (D. O., 29/11/2004). verno Federal – em terreno recebido pela Se- O programa funcionaria na cidade em cretaria do Patrimônio da União (SPU), ligada três frentes. A primeira delas, a Santos F, con- ao Ministério do Planejamento, Orçamento e templaria 60 apartamentos que estavam sendo Gestão, através de Concessão de Uso, instru- construídos na Rua João Pessoa, número 400. mento jurídico do Estatuto da Cidade. A pri- Depois de dois anos de atrasos, a previsão meira etapa, que prevê a construção dos 113 era de que a obra estaria pronta até março de apartamentos, recebeu também recursos do 2007, mas esse prazo não foi cumprido. governo do estado de São Paulo. Na segunda frente do programa, a San- Essa ação proveniente essencialmente da tos H, na Rua Amador Bueno números 387/397, organização popular dos moradores de cortiços a situação não foi diferente. A previsão mais é hoje (2011) a maior intervenção na área cen- otimista era que as obras seriam entregues tral de Santos e, segundo a previsão, irão retirar somente em novembro de 2008. Na Santos I, dos cortiços, até o final de 2012, aproximada- localizada na Avenida São Francisco números mente 800 pessoas. Contudo, segundo a ACC, 409/415, as obras para a construção dos 81 tal iniciativa não tem recebido da prefeitura a apartamentos sequer saíram do papel. Ao todo, devida atenção, pois desde o início do proces- as áreas abrigariam 311 famílias. so tem sido buscada uma parceria, através da Diante dos constantes atrasos nas obras, COHAB Santista, para complementação de re- foram realizadas Audiências Públicas no primei- cursos para que os apartamentos sejam entre- ro semestre de 2007, com várias manifestações gues com todos os seus acabamentos previstos de cobrança em relação aos programas habi- em projeto, o que não ocorre atualmente. Isso tacionais em andamento e os que estavam em ocorre porque os recursos disponíveis para a processo de execução (A Tribuna, 17/6/2006). construção são menores do que os recursos Sem uma solução de curto prazo, a enti- necessários e, por conta disso, além de os aca- dade Associação de Cortiços do Centro (ACC) bamentos internos dos apartamentos ficarem a recorreu ao Crédito Solidário do Ministério das cargo de cada morador, os mesmos ainda estão Cidades, um programa de habitação destina- tendo que pagar uma parcela da construção do a associações e cooperativas de morado- através de trabalho por mutirão, ou seja, mem- res que atendem famílias com renda de um bros das famílias participam da construção au- a cinco salários mínimos. A proposta da ACC xiliando na realização dos trabalhos técnicos para a construção das unidades habitacionais da mão de obra contratada. Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 567 André da Rocha Santos Considerações finais as razões que têm impedido que a proposta de edificação de prédios de apartamentos seja executada na área. Ainda segundo tal discurso, Muitas das ações e dos acontecimentos relacio- dentre as dificuldades que dificultariam a ope- nados à região central estão ocorrendo junto racionalização do programa encontram-se as com a realização desta pesquisa e, dessa forma, próprias condições do solo santista, que invia- procuramos dar uma contribuição à discussão e bilizariam financeiramente esse tipo de solução ao debate mais amplo sobre os caminhos e o para segmentos de baixa renda. futuro dessa região. Entretanto, podemos obser- Finalmente, podemos acrescentar que a var que o Centro de Santos vem recebendo nos região central permanece como uma área de últimos anos diversas intervenções do poder alto nível de exclusão social em que os “subci- público que vem dotando a área com uma signi- dadãos”, principalmente na região do mercado ficativa infraestrutura urbana e um conjunto de municipal e no Paquetá, lá permanecem sem propostas específicas e articuladas. Todas essas uma política efetiva de promoção da inclusão. ações têm procurado dinamizar a região com o A fragilidade da cidadania nessas áreas, en- incentivo à geração de empregos, à instalação tendida como as inúmeras formas de vulnera- de atividades econômicas públicas e privadas e bilidade quanto ao emprego, aos serviços de o reforço da identidade cultural. proteção social e à violência criminal, além da O projeto urbano contemporâneo tem perda ou ausência de direitos e a precarização colocado na pauta de ações do poder público de serviços coletivos que garantiriam uma ga- a importância do Centro como uma localização ma mínima de proteção pública para grupos que, apesar de não estar mais satisfazendo o carentes de recursos privados, tem permaneci- papel imobiliário que lhe é exigido pela cidade, do sem modificações como um componente da possui dentro da rede intraurbana toda uma in- vida urbana na região. fraestrutura de transportes, serviços e equipa- Dessa forma, podemos dizer que dentre mentos já implantada, e investimentos nesses os objetivos pretendidos pelo discurso das ad- locais tem a possibilidade de produzir uma no- ministrações locais nas últimas duas décadas, va adequação funcional atraindo capital e pes- alguns foram cumpridos e outros ainda não, soas, tornando a região convidativa do ponto ou seja, apesar dos inúmeros avanços, o pro- de vista turístico e comercial. jeto ainda não foi capaz de reverter o processo Entretanto, podemos afirmar que, apesar mais amplo de declínio econômico e nem de de o poder público ter uma ação destacada melhorar as condições de vida da população no que tange às intervenções de cunho cul- residente, pois as principais ações prometidas tural e de entretenimento, não tem tido uma na área habitacional como as relativas à ZEIS 3 ação eficaz no que se refere às ações ligadas e ao PAC praticamente não saíram do papel, e a questões sociais, notadamente as relaciona- a situação social e habitacional na área perma- das à habitação. Segundo o discurso oficial, di- nece sem nenhuma alteração significativa há ficuldades técnicas, financeiras e políticas são mais de três décadas. 568 Cad. Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 Habitação precária e os cortiços da área central de Santos Assim, palavras como frustração e decepção acreditaram que o processo de revitalização do ilustram o pensamento de grande parte dos mora- Centro pudesse, na mesma velocidade, também dores dessa região que em determinado momento melhorar suas precárias condições de vida. André da Rocha Santos Sociólogo pela Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil. [email protected] Notas (1) Entrevista concedida a Carvalho (2001) por Márcia Cristol Luz, em 6/8/98. (2) O inves mento seria de R$20 milhões, numa média de R$22 a 25 mil para cada uma das unidades que terão em torno de 40m² com um ou dois quartos. A prestação do financiamento para as moradias seria de 15% do salário mínimo, em torno de R$40,00. Segundo a CDHU, as famílias dos cor ços da Rua Amador Bueno e da Avenida São Francisco seriam cadastradas e iden ficadas pela empresa e pela Prefeitura (D. O., 8/3/2004). Referências A TRIBUNA (2006). “Moradores de cor ços buscam financiamento para projetos”. Santos, 21/6/2006. ______ (2006). “Erradicação de cor ços con nua atrasada”. Santos, 11/7/2006. ANDRADE, C. R. M. de (1992). “De Viena a Santos: Camillo Si e e Saturnino de Brito”. In: SITTE, C. A construção das cidades segundo seus princípios ar s cos. São Paulo, Á ca. ANDRADE, W. T. F. de. (1989). O discurso do progresso: a evolução urbana de Santos 1870-1930. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. CARVALHO, S. N. (1999). Planejamento urbano e democracia: a experiência de Santos. Tese de Doutorado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas. ______ (2001). Plano diretor em Santos: polí ca negociada. 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Metrop., São Paulo, v. 13, n. 26, pp. 549-571, jul/dez 2011 571 Instruções aos autores ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL A revista Cadernos Metrópole, de periodicidade semestral, tem como enfoque o debate de questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assume na realidade contemporânea. Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral, especialmente, às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Demografia e Ciências Sociais. A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão baseados na governança urbana. CHAMADA DE TRABALHOS A revista Cadernos Metrópole é temática, com chamadas de trabalho específicas para cada número. Os textos deverão ser encaminhados dentro do prazo estabelecido e deverão atender aos requisitos exigidos na chamada. AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos autores quanto dos pareceristas. Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema. COMUNICAÇÃO COM OS AUTORES Os autores serão comunicados por email da decisão final, sendo que a revista não se compromete a devolver os originais não publicados. OS DIREITOS DO AUTOR A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. 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Os artigos devem ser enviados em Word, digitados em espaço 1,5, fonte Arial tamanho 11, margem 2,5 cm; tabelas e gráficos em Excel; imagens em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm, sendo que os gráficos e imagens devem ser em tons de cinza. Os artigos devem ter um resumo de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português ou na língua em que o artigo foi escrito e seu correspondente em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave, nas duas línguas. Os trabalhos devem ser enviados para: Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 – São Paulo, SP, Brasil, respeitando-se a data-limite de postagem estabelecida na chamada de trabalho. Após seu recebimento, os trabalhos serão enviados aos pareceristas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS As referências bibliográficas, que seguem as normas da Educ, adaptadas da ABNT, deverão ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções: Livros AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Capítulos de livros AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar. Artigos de periódicos AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo. Exemplo: TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28. Trabalhos apresentados em eventos científicos AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número, ano, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final. Exemplo: SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/SAS, pp. 193-207. Teses, dissertações e monografias AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição. Exemplo: FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH. Textos retirados de Internet AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso. Exemplo: FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em 8 set. 2005. Rede Observatório das Metrópoles Estado Instituição Coordenador Belém Universidade Federal do Pará Simaia Mercês [email protected] Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Luciana Andrade [email protected] Brasília Universidade de Brasília Rômulo Ribeiro [email protected] Curitiba Ipardes Rosa Moura [email protected] Fortaleza Universidade Federal do Ceará Clélia Lustosa [email protected] Goiânia Universidade Católica de Goiás Aristides Moysés [email protected] Maringá Universidade Estadual de Maringá Ana Lucia Rodrigues [email protected] Natal Universidade Federal do Rio Grande do Norte Maria do Livramento M. 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