fazer - Núcleo estudos de gênero
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ DANIELE SHORNE DE SOUZA O CONHECIMENTO NÃO CORROMPE: O PENSAMENTO UTÓPICO DE CRISTINA DE PIZÁN NO ALVORECER DA MODERNIDADE CURITIBA 2008 DANIELE SHORNE DE SOUZA O CONHECIMENTO NÃO CORROMPE: O PENSAMENTO UTÓPICO DE CRISTINA DE PIZÁN NO ALVORECER DA MODERNIDADE Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em História como requisito parcial à conclusão do curso de História da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profa. Paula Vosne Martins CURITIBA 2008 Dra. Ana À Luiz Rodrigo, meu marido e Levi Emanuel, meu filho Às mulheres que têm me ensinado a viver e a lutar pelos meus sonhos: Tereza Lucy Mary Suzi Mara (in memorian) Ana Carla Dayani Grace Kelly Amanda Bárbara Bianca AGRADECIMENTOS: A Deus, pela vida, benção e proteção. À Professora Dra. Ana Paula Vosne Martins, pela orientação apoio, incentivo, confiança e principalmente pela amizade. Ao colega Leandro Francisco de Paula, pela colaboração no início do meu trabalho. Aos meus amigos Juliana, Stefani, Elen, Leonardo e André pelo companheirismo, carinho e apoio durante todo o curso e pela colaboração para a realização deste trabalho. E aos demais colegas que de alguma forma contribuíram com sugestões e críticas. Ao meu marido Luiz Rodrigo e ao meu filho Levi, pelo precioso silêncio em nossa casa quando eu precisava trabalhar. Aos meus sogros Lucy Mary e Luiz Carlos que me adotaram como filha e me deram todo tipo de apoio e auxílio durante minha pesquisa. RESUMO Palavras-chave: gênero; educação; escrita de mulheres Meu interesse por este tema foi despertado durante a participação na disciplina de História Moderna I onde fizemos algumas análises de fontes de pensadores do início Idade Moderna e a professora ministrante da disciplina, Dra.Ana Paula Vosne Martins comentou que algumas mulheres também escreveram durante este período e que eram pouco estudadas. Quando precisei definir meu tema de monografia conversei com a professora, já com meu interesse voltado aos estudos de gênero. A professora me apresentou esta autora apaixonante chamada Cristina de Pizán, que embora tenha vivido no final da Idade Média, revela um pensamento à frente de seu tempo, demonstrando as influências de sua educação humanista, já anunciando com suas idéias o alvorecer da Idade Moderna. A fonte escolhida foi o livro “A Cidade das Damas”que foi publicado por Cristina de Pizán na França em 1405. Essa obra foi elaborada como uma compilatio, que consistia em fazer de vários textos um novo texto e que encontra no século XV seu momento de maior expressão. Desta maneira Cristina reformulou o discurso de autores clássicos como Boccaccio, dando-lhe nova forma, propondo-se a reescrever e reconstruir uma história das mulheres até a sua época. Ao longo dos 138 capítulos de seu livro Cristina dialoga com três Damas, Razão, Retidão e Justiça e exalta as qualidades femininas, citando a vida e a obra de mais de cem mulheres. Argumentando contra a misoginia1 de seu tempo, ela constrói sua Cidadela, que em forma de Utopia Moral servirá de abrigo para as mulheres de várias épocas, etnias e religiões. Utilizando o gênero como categoria de análise histórica2, esta pesquisa está inserida no debate historiográfico a respeito das mulheres e das relações de gênero no final do Medievo e início da Modernidade. Desde o advento do feminismo e de seu impacto na historiografia muitas investigações foram realizadas sobre as realidades sociais e as representações culturais das mulheres. Nesse sentido ressaltam-se as contribuições da História Social e da História das Mentalidades, articuladas às outras disciplinas das ciências humanas decisivas nesse processo no qual as mulheres são alçadas à condição de sujeitos da história.3 1 Segundo R. Howard Bloch “misoginia é um modo de falar sobre as mulheres, o que é diferente de fazer algo a elas, embora o discurso possa ser uma forma de ação e mesmo de prática social, ou pelo menos seu componente ideológico.” (BLOCH, R. Howard, A misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental Tradução: Claudia Moraes, Rio de Janeiro, Editora 34, 1995 p. 12) 2 Gênero se torna uma maneira de indicar as “construções sociais”: a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres, colocando ênfase sobre todo o sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que não diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. (on line) http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/generodh/gen_categoria.html acessado em 23/10/2008 3 SOIHET, Rachel História das mulheres e relações de gênero: algumas reflexões (on line) http://www.historia.uff.br/nec/textos/text33.PDF acessado em 25/04/2008 Entender que a realidade histórica é social e culturalmente constituída é um pressuposto central para o caso dos estudos de gênero no Medievo. A visão que aquela sociedade produziu em relação aos sexos constrói-se de acordo com seu próprio entendimento do que é ser homem e mulher, fundamentando-se, para isso, em uma série de fatores determinados por seu ambiente cultural específico, no qual ainda há muito o que ser explorado, tanto em termos temáticos, quanto em formas de abordagem, documentos a serem analisados e na referenciação de diferentes teorias, métodos e técnicas de pesquisa, incluindo aí o uso da categoria gênero. A análise da obra A Cidade das damas de Cristina de Pizán recorrendo ao conceito de gênero para a época tardo medieval apresenta uma inovação tendo em vista que os medievalistas em sua grande maioria, apresentam abordagens generalizantes e descritivas que constam nas “palavras dos homens” acerca das mulheres presentes principalmente nas fontes clericais4– já que ao homem, e ao homem do clero, prioritariamente, cabia a escrita na sociedade medieval - Assim, a análise do discurso proferido por Cristina de Pizán ao elaborar sua Utopia moral teve em vista a compreensão de seu pensamento, procurando contribuir para os estudos de gênero deste período. Uma vez que tanto a racionalidade quanto o saber eram atributos do sexo masculino, Cristina de Pizán surge nesse cenário como alguém que vem advogar em favor do seu próprio sexo contra esse discurso, provando a capacidade intelectual feminina e construindo seu livro como a cidade que beneficiará as mulheres enquanto um espaço moral para sua própria produção intelectual. Com uma idéia de Utopia5 moral, ela cria um mundo alternativo, e faz mais do que refletir sobre outro lugar, pois sua utopia é transhistórica já que mulheres de várias épocas estão ali com um propósito comum, que é a construção de um refúgio para elas. Essa utopia não é apenas um projeto de sociedade ideal ou perfeita, mas também um outro tempo6, onde o presente limitador da feminilidade é negado e o futuro passa a ser uma promessa de realização no qual as mulheres podem se expressar, ter voz e oportunidade de aprender tanto quanto os homens. Cristina de Pizán elabora uma dupla arquitetura, crítica social e projeto de transformação social, ela cristaliza a partir da sua obra de visionária um esquema de interpretação e unificação das experiências sociais femininas e do horizonte de expectativas, recusas, temores e esperanças7 que estão a rodear o “ser mulher” no século XV. Assim, a partir de autores clássicos como Boccacio e Ovídio, ela abre caminho para uma interlocução através do tempo entre as mulheres que se destacaram em diferentes épocas como um meio de compartilhar experiências. Essas experiências que são semelhantes e que se repetem, tanto nas situações de dificuldade, quanto nas situações de ousadia entre elas, criam um vínculo, um traço identitário, laço fundamental para a criação 4 Para tal afirmação me baseio no levantamento presente no texto : SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) (on line) http://www.abrem.org.br/categoriagenero.pdf 5 O termo Utopia só será cunhado no século em 1516 por Thomas More com referência á sua obra significando literalmente “lugar nenhum”. JAPIASSU Hilton MARCONDES, Danilo Dicionário Básico de Filosofia , 4ªEdição Atualizada, Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed.,2006 p.274 6 SONTAG, Susan apud RAMOS, Maria Bernadete O Brasil dos meus sonhos (on line) <http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11627.pdf> (acessado em 28/04/2008) 7 BRONISLAW, Bazcko, “Utopía” in: Enciclopédia ENAUDI. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985 V.5 p. 333-396 de uma linhagem, de uma ancestralidade onde as mulheres poderão ser modelos afirmativos e importantes para outras mulheres. A associação das mulheres com a imoralidade e com o pecado constitui algo que é um topos cultural em sua época e que ela ousa transpor. Apesar dos homens atribuírem às mulheres a ausência de capacidades intelectuais, Cristina demonstra que a sua inteligência é viva e penetrante. Em nossa análise pudemos nos deparar com o pensamento inovador dessa autora no que se refere ao acesso das meninas a mesma educação que era ofertada aos meninos, sendo essa uma bandeira levantada pela autora quando ela reivindica que ambos os sexos tenham o mesmo acesso ao conhecimento8. A autora acreditava que desta maneira elas estariam tão bem preparadas quanto eles para enfrentar qualquer adversidade que a vida pudesse apresentar (a elas) , revelando através disso a igualdade da capacidade intelectual. Cristina de Pizán também foi a primeira mulher a se envolver na Querelle des Femmes, que foi um debate acerca da condição feminina tendo como aporte os quadros sociais característicos do humanismo, Reforma e Contra- Reforma e passou a ser simultaneamente agente e fruto das mudanças do período”9. Tal debate é considerado pela historiadora Joan Kelly10 como um tipo de feminismo germinal, no sentido original do termo e que tem como principais características a oposição dialética, a misoginia com base na idéia de gênero – de forma muito semelhante ao conceito atual – e a possibilidade de universalização da questão que se baseia numa concepção geral da humanidade, questionando a idéia universal de humanitas que não incluía o sexo feminino Cristina de Pizán defende a moral feminina, ela quer ressuscitar o respeito pelas mulheres “que foram desrespeitadas em obras como A arte de amar, de Ovídio, o Roman de la rose e outras mais, que faziam parte de uma literatura, que era considerada como um tipo de manual de conselhos para enganar e seduzir mulheres”11. Defendendo também o direito das mulheres à palavra, a autora procurou assim restabelecer o sentimento de confiança no sexo feminino e combater idéias correntes na época. 8 Cf. PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.11 SANTOS, Giovanna Aparecida Schittini dos. Humanismo, Direito e Gênero: pontos de intersecção num discurso do século XVI. (on line)< http://ler.letras.up.pt.uploads/ficheiros/artigos9671.pdf> (acessado em 10/10/2008) 10 KELLY, Joan. Early feminist theory and Querelle des Femmes, 1400-1789 in:Signs: Journal of Women in Culture and Society (Chicago: University of Chicago Press, 1975-). 8:1 (1982): 3-28. 11 LEITE, Lucimara. Christine de Pisan: uma visão da mulher medieval Mestrado em Comunicação e Semiótica PUC/São Paulo – 1999 - tese não pubicada 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................................09 1 A vida de uma pioneira no campo das letras.............................................................12 1.1 Cristina de Pizán: A primeira autora profissional da história e sua conjuntura............13 1.2 A Cidade das Damas....................................................................................................20 2 O conhecimento não corrompe: O pensamento de Cristina de Pizán e sua alegoria..............................................................................................................................28 2.1 O Exemplum “A Cidade das Damas”............................................................................30 2.2 A importância da educação para as mulheres no pensamento de Cristina de Pizán...39 3 Cristina de Pizán , a “Querelle des femmes” e a defesa da moralidade feminina...44 3.1 A “Querelle des Femmes”.............................................................................................45 3.2 A Cidade das Damas e a defesa da moral feminina.................................................... 52 CONCLUSÃO.....................................................................................................................62 REFERÊNCIAS..................................................................................................................64 INTRODUÇÃO: Meu interesse por este tema foi despertado durante a participação na disciplina de História Moderna I onde fizemos algumas análises de fontes de pensadores do início Idade Moderna e a professora ministrante da disciplina, Dra.Ana Paula Vosne Martins comentou que algumas mulheres também escreveram durante este período e que eram pouco estudadas. Quando precisei definir meu tema de monografia conversei com a professora, já com meu interesse voltado aos estudos de gênero. A professora me apresentou esta autora apaixonante chamada Cristina de Pizán, que embora tenha vivido no final da Idade Média, revela um pensamento à frente de seu tempo, demonstrando as influências de sua educação humanista, já anunciando com suas idéias o alvorecer da Idade Moderna. Cristina de Pizán escreveu e publicou um livro intitulado “A cidade das damas”12. Isso é um fato muito inusitado não apenas por ser um livro escrito por uma mulher no ano de 1405, mas também pelo teor dessa publicação que teve suas bases em pleno “outono” da Idade Média, no início de um movimento que objetivava voltar às fontes do pensamento e da beleza clássicas denominado Renascimento13. Esta pesquisa está inserida no debate historiográfico a respeito das mulheres e das relações de gênero no final do Medievo e início da Modernidade. Desde o advento do feminismo e das transformações da historiografia ocorridas a partir da década de 1960 muitas investigações foram realizadas sobre as realidades sociais e as representações culturais sobre as mulheres. Nesse sentido ressaltam-se as contribuições da História Social e da História das Mentalidades, 12 13 “La ciudad de las damas” por uma questão idiomática usarei a tradução livre do título do referido livro. DELUMEAU, Jean A civilização do Renascimento. Nova História 17 ,Lisboa:Stampa,1989 p.85 articuladas às outras disciplinas das ciências humanas decisivas nesse processo no qual as mulheres são alçadas a condição de sujeito da história.14 O conceito “gênero” começa a ser usado à partir da década de 1970 como uma categoria de análise histórica, não apenas para salientar a diferença de sexo, mas como uma maneira de referir-se à organização social das relações entre homens e mulheres. Assim, “gênero” passa introduzir uma noção relacional no nosso vocabulário analítico tendo como objetivo descobrir a amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual nas várias sociedades e épocas, achar qual o seu sentido e como funcionavam para manter a ordem social e para mudá-la”. 15 Entender que a realidade histórica é social e culturalmente constituída é um pressuposto central para o caso dos estudos de gênero no Medievo. A visão que aquela sociedade produziu em relação aos sexos constrói-se de acordo com seu próprio entendimento do que é ser homem e mulher, fundamentando-se, para isso, em uma série de fatores determinados por seu ambiente cultural específico, no qual ainda há muito o que ser explorado, tanto em termos temáticos, quanto em formas de abordagem, documentos a serem analisados e na aplicação de diferentes teorias, métodos e técnicas de pesquisa, incluindo aí o uso da categoria gênero. Para fundamentar este direcionamento, encontramos respaldo na obra referencial, História das mulheres no Ocidente, especificamente em seu segundo volume, que trata do período medieval. Na introdução, escrita por Christiane Kaplisch-Zuber16, esta autora utiliza o conceito gênero para aplicá-lo ao período Medieval, mas não justifica sua escolha, disso podemos depreender que para a autora não é necessária uma justificativa para a utilização de tal conceito, pois se trata, para ela, de algo incontestável. 14 SOIHET, Rachel História das mulheres e relações de gênero: algumas reflexões (on line) http://www.historia.uff.br/nec/textos/text33.PDF acessado em 25/04/2008 15 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. (on line) <http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/generodh/gen_categoria.html> acessado em 12/05/2008 16 DUBY, Georges (org.) ; PERROT, Michelle (org.) ; KLAPISCH-ZUBER, Christiane (dir.). História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Coimbra: Afrontamento, 1990 v. 2 p. 22 A análise da obra A Cidade das damas de Cristina de Pizán, foi inovadora do que já foi produzido no Brasil em termos de estudos de gênero na Idade Média pelo fato destes estudos, em sua grande maioria, apresentarem abordagens generalizantes e descritivas que constam nas “palavras dos homens” acerca das mulheres presentes principalmente nas fontes clericais17– já que ao homem, e ao homem do clero, prioritariamente, cabia a escrita na sociedade medieval - Assim, a análise do discurso proferido por Cristina de Pizán ao elaborar sua Utopia Moral visou compreender seu pensamento, procurando contribuir para os estudos de gênero durante este período. Esta monografia está dividida em três capítulos, o primeiro apresenta a autora Cristina de Pizán e sua obra “A Cidade das Damas” que foi nosso objeto de estudo nesta pesquisa. O segundo capítulo apresenta sua obra como parte de uma categoria literária denominada exemplum e está focado na principal tese da autora que se refere a educação feminina, e fianalmente no terceiro capítulo apresentamos esta autora envolvida na chamada “Querelle des femmes” e analisamoso livro “A Cidade das Damas”como uma obra que serviu de resposta a este debate. A análise do pensamento humanista de Cristina de Pizán, dentro do debate sobre a feminilidade entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna fazse necessária uma vez que ela a transforma a moral feminina numa causa a ser defendida em seu livro “A Cidade das Damas”. Cristina de Pizán afirma: “Dificilmente pude achar um livro de moral em que mesmo antes de tê-lo lido inteiro, eu não encontrasse vários capítulos ou determinadas seções atacando mulheres, não importa quem fosse o autor” 18 A associação das mulheres com a imoralidade e com o pecado, constitui algo que é um topos cultural em sua época e que ela ousa transpor. Apesar dos homens atribuírem às mulheres a ausência de capacidades intelectuais, Cristina demonstra que a sua inteligência é viva e penetrante não se limitando às obras de 17 Para tal afirmação me baseio no levantamento presente no texto : SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003) (on line) <http://www.abrem.org.br/categoriagenero.pdf> (acessado em 25/06/2008) 18 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.64-65 outrem, ao contrário, elaborando ela mesma uma obra que fará ouvir não apenas a sua voz, mas as de suas “irmãs de condição” através dos tempos. 1. A VIDA DE UMA PIONEIRA NO CAMPO DAS LETRAS. Os objetivos deste capítulo são a apresentação da autora Cristina de Pizán, com um breve resumo de sua vida e obra, uma vez que essa autora é pouco conhecida do público brasileiro. Tratamos do contexto em que ela viveu e escreveu, uma vez que sua obra é muito influenciada por suas experiências pessoais, e principalmente por sua educação privilegiada, pois seu pai a iniciou nos estudos das letras e das ciências, aguçando sua curiosidade e inteligência. Graças a esta educação privilegiada Cristina de Pizán foi capaz de repensar a condição feminina bem como o papel das mulheres na sociedade do início do século XV. Todos os questionamentos levantados por ela levaram-na a escrever a obra “A Cidade das Damas” publicada em 1405, que foi objeto de nossa pesquisa para essa monografia, por isso também apresentamos neste capítulo um resumo desta obra e de sua estrutura que é muito peculiar pela defesa das mulheres na construção de uma utopia moral que é transhistórica. 1.1– CRISTINA DE PIZÁN : A PRIMEIRA AUTORA PROFISSIONAL DA HISTÓRIA E SUA CONJUNTURA. Cristina de Pizán nasceu em Veneza no ano de 1365 e mudou-se para França ainda muito jovem. Tinha cerca de cinco anos quando seu pai Tommaso di Bevenuto da Pizzano foi convidado à corte de Carlos V como astrólogo e médico pessoal do rei. Segundo Marie José Lemarchand, na corte. Cristina de Pizán foi educada como uma verdadeira princesa, uma vez que Carlos V ordenou que a filha de seu físico participasse de todas as festas e divertimentos da corte compatíveis com sua idade1.Seu pai incentivou seus estudos, algo extremamente incomum para a época uma vez que Cristina como mulher não teria acesso aos conhecimentos palavra escrita em sua educação elementar. Com incentivo de seu pai, ela teve uma educação humanista, ou seja, profundamente antiintelectualista , mais fideísta do que racionalista, mais literária do que científica e que encontra em Platão seu “supremo filósofo”, guardando como princípios as letras clássicas e a retórica.2 Essa formação baseada no ensino das humanidades visava a formação do indivíduo como um ser livre, autônomo e liberado das servidões da natureza e da ignorância, permitindo que ele fosse construtor de si mesmo, isto é tendo não só a capacidade de decidir segundo padrões morais elevados, mas também fosse pessoalmente livre ao fazer essas escolhas3. Desde a infância Cristina esteve cercada de livros e acostumou-se a ler sobre as questões mais diversas, uma vez que podia desfrutar da biblioteca real, considerada uma das melhores bibliotecas da época devido ao seu excelente conteúdo em termos de livros e manuscritos. A autora refletiu este conhecimento dando exemplos de autores clássicos, com os quais tivera contato, revelando 1 LEMARCHAND- Marie José Introducción in: PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.11 2 LE GOFF, Jaques Os intelectuais da Idade Média. Lisboa: Studio Cor, _________ p.166 3 Ibid. p. 164-175 grande familiaridade com os mesmos. Provavelmente a partir desta aproximação com os livros é que Cristina iniciou suas reflexões sobre a necessidade de as meninas terem acesso ao conhecimento e acesso aos estudos como os meninos tinham.4 A mãe de Cristina, que embora fosse filha de um homem instruído, o anatomista Mondino de Luzzi, se opunha duramente à instrução da filha em matérias que não se referissem as tarefas domésticas. Ela refletiu o pensamento da grande maioria das pessoas de sua época, de que os estudos corrompiam as mulheres, sendo então impróprio esse tipo de educação “masculina” á uma jovem. Cristina referiu-se em uma passagem de seu livro ‘A Cidade das Damas’5 a este momento da sua vida: “Teu pai [diz uma dama a Cristina], grande sábio e filósofo, não pensava que por se dedicarem à ciência, as mulheres seriam menos valorosas. Ao contrário, como bem sabes, lhe causou grande alegria tua inclinação ao estudo. Foram os julgamentos femininos de sua mãe que te impediram de durante a juventude aprofundar e estender teus conhecimentos, porque ela só queria que te entretivesses em fiar e outras miudezas que são ocupações habituais das mulheres.(...) E tua mãe não pode arrancar-te este gosto pela ciência, esta tendência natural te permitiu ir construindo o saber, ainda que fosse recolhendo migalhas.”6 Assim, Cristina muito cedo entrou em contato com a realidade de que nascer mulher é algo determinante na sociedade e seu papel “honrado” seria o de cumprir seus deveres de esposa fiel, mãe carinhosa e servil, cujas únicas tarefas bem vistas eram aquelas relacionadas ao âmbito doméstico7. É contra este tipo de pensamento misógino8 que Cristina de Pizán levantou-se mais tarde. 4 LEITE, Lucimara. Christine de Pisan: uma visão da mulher medieval Mestrado em Comunicação e Semiótica PUC/São Paulo – 1999 - tese não pubicada p. 21-22 5 “La ciudad de las damas” por uma questão idiomática usarei a tradução livre do título do referido livro. 6 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.199-200 (tradução nossa) 7 VASQUEZ, Maria Gabriela Algunas reflexiones sobre Cristina de Pizán y su obra ‘La Ciudad de las damas´ (on line) <http://agendadelasmujeres.com.ar/pdf/reflexiones_cristina_de_pizan.pdf> (acessado em 25/08/2008) 8 Segundo Howard R. Bloch, qualquer definição essencialista da mulher, seja ela positiva ou negativa , feita por um homem ou uma mulher , é a definição fundamental da misoginia. (BLOCH, R. Howard, A misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental Tradução: Claudia Moraes, Rio de Janeiro, Editora 34, 1995 p. 13) Cristina casou-se jovem, aos 15 anos, o que não era incomum em sua época, já que se devia evitar que as mulheres, “inclinadas ao vício por natureza” segundo ditava a tradição misógina, se corrompessem em uma prolongada espera por um marido. Seu casamento com Estienne de Castel, um nobre francês dez anos mais velho que ela não foi arranjado como era a maioria das uniões neste contexto. Ela estava muito apaixonada e com isso teve um casamento feliz “já desde a primeira noite” como escreveu em uma de suas baladas. Após um ano de casamento, em 1380, Estienne é nomeado secretário do rei9. A década de 80 foi conturbada para a França. Com a morte do rei deu início a um período de incertezas, tanto na política interna quanto na política externa deste país. O filho de Carlos V, já era órfão de mãe e estava com apenas onze anos na ocasião da morte de seu pai. Embora Carlos VI tenha sido coroado rei no ano seguinte à morte de seu pai, quem governava de fato eram seus tios paternos, devido a sua menoridade. A luta pelo poder na corte entre os tios de Carlos VI desencadeu outra crise, também pela liderança da Universidade de Paris Desde o momento do funeral, aliás, já se instalara uma disputa de poder entre o prévôt10 de Paris e os universitários comandados pelo reitor. Com o afastamento de Hugues Aubriot do cargo de prévôt e o fortalecimento do poder do reitor, a própria universidade, agora, impunha-se como a ‘única detentora de todo o saber’. Esse fato teve conseqüências na vida de Christine alguns anos mais tarde, por ocasião de seu envolvimento na Querelle des Femmes11. Toda esta tensão também desencadeará uma crise econômica e política entre a população que protestava contra os aumentos constantes nos impostos. Momento conturbado também para a família de Cristina que perde o prestígio que tinha junto a corte. Seu pai morre em 1386 e três anos depois seu marido também faleceu, deixando-a viúva após uma década de felicidade conjugal12. 9 LEITE, Lucimara. Christine de Pisan: uma visão da mulher medieval Mestrado em Comunicação e Semiótica PUC/São Paulo – 1999 - tese não pubicada p. 12 10 Segundo Lucimara Leite, A palavra prévôt refere-se ao nome dado a diversos oficiais e magistrados, de ordem civil ou judiciária, a partir do século XII. 11 Cf. supra nota 9. p.23-24 12 LEMARCHAND- Marie José Introducción in: PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.15 Cristina, então com 25 anos, a mercê da própria sorte, com seus três filhos e sua mãe (algumas fontes citam também uma ou até mesmo duas sobrinhas prestes a casar)13a quem deveria prover pois seu pai não tinha economias para a família. Com a morte de Estienne muitos falsos credores aproveitaram-se e tomaram os bens da viúva, algo que era muito comum na época, uma vez que normalmente a esposa não tinha conhecimento dos negócios em que o marido falecido estava envolvido14. Cristina com sabedoria, astúcia e o conhecimento que tinha no campo do direito foi em busca do que lhe era devido e embora tenha tido que lutar nos tribunais, anos mais tarde conseguiu reaver os bens que legalmente pertenciam a ela e a seus filhos. Para prover sua casa passou a fazer aquilo que melhor sabia, ou seja, escrever para poder cuidar da família.15 Assim, recolhida em seu scriptorium – lugar em que se exercia, em alguma medida a atividade intelectual - Cristina dedicou-se à literatura sob a forma de romances encomendados pelas esposas dos príncipes que necessitavam de algo para entreter-lhes a tão enfadonha vida palaciana.16 Por esse motivo Cristina de Pizán foi intitulada como a primeira escritora profissional da literatura francesa que reivindica tanto o “estudo" como o espaço íntimo (e isto constitui uma novidade no século XV, já que a partir deste momento haverá uma câmara separada do resto das dependências das residências aristocráticas para poder retirar-se) como lugar de criação literária e instrução pessoal 17 . Assim, Cristina de Pizán iniciou a reivindicação do "EU" literário de um ponto de vista feminino em um momento em que a palavra "autoria" só se referia ao autor masculino.18 Toda a sua dedicação aos estudos e às letras fizeram-na muito respeitada em sua época, pois além de ser a biógrafa de Carlos V, fez traduções de várias 13 LEITE, Lucimara Christine de Pizan : uma resistência na aprendizagem da moral de resignação Doutorado - em Língua e Literatura Francesa e Estudos Medievais. USP. Maio 2008 (tese não publicada) p. 13 14 Cf. supra nota 12 . pp.24-25 15 ibid. , p.14-16 16 WUENSCH, Ana Miriam Mundos Reflexionados: Filósofas através da história (on line) http://www.crearmundos.net/primeros/Revista/Edicao01/Cuestiones/Cuest_Mulheres_Filo.htm acessado em 15/11/2007 17 Algo reivindicado ainda no século XX por Virgínia Woolf em seu livro “Um teto todo seu”. 18 LÓPEZ, Beatriz (2004), “Cristina de Pizán. La ciudad de las damas", Letra de Dona in Centre Dona i Literatura, Barcelona, Centre Dona i Literatura / Universitat de Barcelona. (on line) <http://www.ub.edu/cdona/lletra_de_dona/fitxautora/pizan.htm> (acessado em 02/11/2007) obras e escreveu manuais didáticos, sendo muito apreciada pelos críticos. Participou da “Querela do Romance da Rosa”, a discussão sobre a obra de Guillaume de Lorris, que em sua primeira parte exaltava a mulher, com poemas românticos que louvavam o amor. A segunda parte foi escrita cinqüenta anos depois por Jean de Meung, que ironizou a primeira parte e utilizou os ideais que nela existiam para parodiar e com isso ridicularizar as mulheres. A obra logo se tornou clássica e todos os escritores notáveis do final da Idade Média de alguma forma se referiram a ela, suscitando as primeiras formas da crítica literária19 e sustentada nos círculos humanistas da época que haviam chegado à corte e à Universidade. Mais tarde essa discussão em torno do Romance da Rosa passou a ser vista como a primeira manifestação da Querelle de Femmes,20 debate que seguirá séculos depois até a Revolução Francesa. Cristina aceitou a qualidade literária dos poemas de Meung, mas criticou a atitude que ele tinha diante das mulheres: “Que não me acusem de desatino, de arrogância ou presunção, de ousar eu mulher, opor-me e replicar a um autor tão sutil, nem de reduzir o elogio devido à sua obra, quando ele, único homem, ousou difamar e censurar sem exceção todo o sexo feminino21”. Esse debate se encontra no “L’Epistre au dieu d’Amours” (Carta ao Deus de Amor, 1399), a primeira obra de Cristina. Nas obras seguintes ela continuou esse pensamento de enaltecimento das mulheres e de suas virtudes. Esse pensamento é encontrado em diversas obras de Christine22. 19 DUBY, Georges O Roman de la Rose in: Duby, Georges Idade Média Idade dos Homens:do amor e outros ensaios. São Paulo, Companhia das letras, 2001. p.66-93 20 Segundo Joan Scott a “Querelle de femmes”no século XV, era um debate predominantemente literário e filosófico- dentro dos círculos masculinos- sobre as capacidades intelectuais das mulheres . (Conf. SCOTT, Joan W. “La querelle des femmes" no final do século XX (on line) <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200004> ( acessado em 15/11/2007) 21 PIZÁN, Cristina Apud: DUBY, Georges (org.) ; PERROT, Michelle (org.) ; KLAPISCH-ZUBER, Christiane (dir.). História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Coimbra: Afrontamento, 1990 v. 2 p. 530 22 Entre as principais obras de Cristina de Pizán encontram-se: “Le dit de la Rose” (Os contos da Rosa, 1402); “Epistres du debat sur le Roman de la Rose” (Cartas sobre o Debate de O Romance da Rosa, 1401-1403); “Le Livre de la Cite des Dames” (O Livro da cidade das damas, 1405); “Livre de Trois Vertus or Le Tresor de la Escreveu também sob encomenda e em homenagem a rainha Isabeau da França, sobre outro tema muito comum na época, a vida bucólica. Na França do início do século XV, as transformações na vida estavam chegando de forma muito rápida, as urbes estavam se sobrepondo à vida no campo e o apego às coisas mais simples era uma maneira de se garantir um mínimo de segurança, tão ansiada naqueles anos. As disputas entre França e Inglaterra passavam por alguns momentos de trégua, o casamento entre o Rei inglês Richard II com a filha de Carlos VI Valois, selou um acordo de paz entre os dois países que estavam alternando momentos de guerra e paz desde 1337, momento historiograficamente denominado de “Guerra dos cem anos”. Esta aliança entre os dois países foi favorável a família de Cristina de Pizán, pois possibilitou a ida do filho mais velho da escritora, Jean, para a Inglaterra a fim de que fosse educado juntamente com o filho do conde de Salisbury. Outra vantagem foi a possibilidade de que algumas obras de Cristina fossem traduzida para o inglês, o que lhe rendeu um convite para que vivesse na Inglaterra. Este convite não foi aceito pela autora, pois com a morte do rei em 1400 houve uma mudança de poder e as relações políticas entre França e Inglaterra voltam a se conturbar23. Com isso Cristina preocupa-se com seu filho que continuava seus estudos na Inglaterra. Ele regressou a França após três anos, sob a proteção do duque de Orleans, mais tarde Jean exerceu a mesma profissão de seu pai como secretário do rei. Enquanto esperava o filho mais velho voltar, Cristina sofria com o falecimento de seu filho mais novo e sua filha decide contra a sua vontade entrar no convento de Saint- Louis de Possy24, é neste mesmo retiro que Cristina de Pizán encontrou-se em ocasião de sua falecimento em 1430. Cristina de Pizán saiu do lugar que lhe era destinado dentro da sociedade para mover-se em um meio masculino, primeiro quando pleiteou seus direitos e Cite des Dames” (O Livro das Três Virtudes ou O Livro do Tesouro das damas, 1405) – sequência do “ O Livro da cidade das damas” – e “Le Ditie de Jehanne d'Arc” (Canção em honra de Joana d’arc, 1429). 23 LEITE, Lucimara. Christine de Pisan: uma visão da mulher medieval Mestrado em Comunicação e Semiótica PUC/São Paulo – 1999 - tese não pubicada pp 29-30 24 Ibid. pp 31-32 tentou recuperar seus bens, enquanto aguardava respostas, decidiu escrever como forma de sustentar sua família. Continuou assim entre homens, devido ao fato das letras bem como o direito serem domínios masculinos por excelência no Medievo. A vida e os feitos de Cristina de Pizán explicam-se mutuamente, pois suas experiências pessoais, a dificuldade enfrentada quando ficou viúva bem como o feito de enfrentar o mundo masculino e trabalhar nesse meio, a levaram a refletir sobre a situação de inferioridade e subordinação das mulheres na sociedade levando-a a questionar o por quê dos constantes ataques de homens renomados como Ovídio e Boccaccio. Usando sua pena como arma, ousou defender suas “irmãs de condição”, fazendo dessa defesa tema de sua obra.25 Cristina de Pizán conseguiu reconhecimento no meio literário, pois foi referenciada por autores contemporâneos a sua obra. É no ano de 1405, ou seja, já em sua maturidade, que Cristina escreveu o seu livro mais conhecido e reconhecido, A Cidade das damas, obra que analisamos nesta monografia, Nela questiona a autoridade masculina dos grandes pensadores e poetas que contribuíram para formar a tradição misógina sob a decisão de fazer frente às acusações e insultos contra as mulheres. Vislumbra com firmeza e segurança uma utopia, um espaço próprio para as mulheres e reivindica uma genealogia de mulheres valorosas e de qualidades excelentes ao longo da história. 25 Cf. supra, nota 7 1.2 – “A CIDADE DAS DAMAS” “A Cidade das Damas” teve o seu título inspirado na obra “A Cidade de Deus”de Santo Agostinho e foi construído tendo como principais referências o “De Claris Mulieribus” (mulheres célebres) e o Decamerão, ambos escritos por Giovanni Boccaccio (1313-1375), sendo o primeiro uma coletânea de 104 biografias de mulheres famosas por seus vícios e virtudes26. Entretanto, ela não poderia utilizar Boccaccio por completo em “A Cidade das Damas” porque seu objetivo era exaltar as mulheres que serviriam como modelo para todas as outras. Portanto, teve de adaptar as obras do florentino para que as narrativas dele fossem adequadas ao ideal de moralidade da autora.De forma muito inteligente, ela escolheu as biografias das mulheres mais virtuosas do “De Claris Mulieribus” e destacou bem as virtudes delas, omitindo as informações que não interessavam para os ideais de sua obra. Quanto ao “Decamerão”, ela adaptou algumas histórias para “A Cidade das Damas”, utilizando-se da mesma estratégia; ela reconta a nona novela do segundo dia do “Decamerão”, na qual Barnabé, de Gênova, é ludibriado por Ambrosinho – este afirma que dormiu com a esposa de Barnabé – e perde a aposta; ordena que sua esposa, inocente, seja morta. Ela foge e em trajes de homem serve um grande sultão. Encontra o ludibriador e atrai Barnabé a Alexandria. Ali, o enganador é castigado. A esposa volta aos trajes femininos e regressa com o marido, ambos ricos, para Gênova. Neste conto, Cristina esconde o detalhe de que a esposa de Barnabé despe-se na frente de várias pessoas, mostrando os seios e revelando a identidade feminina. Esta atitude seria considerada imoral para uma dama, portanto, Cristina omite esta informação. Da mesma forma, modifica o conto do quarto dia, a primeira novela, em que Tancredo, príncipe de Salerno, mata o amante da filha e envia o coração dele para ela numa taça de ouro. A filha coloca sobre o coração, na taça, água envenenada, bebe e desse modo morre. Neste conto Cristina exclui o romance 26 OS IMORTAIS da Literatura Universal, Boccaccio. São Paulo: Abril Cultural, 1971. 20 p. p. 5-20 erótico dos amantes, que se entregavam aos prazeres27. Da mesma maneira que omite que Lisabetta, a personagem da quinta novela do segundo dia do “Decamerão”, entrega-se aos prazeres carnais de seu amante. Ou seja, Cristina consegue adaptar Boccaccio de uma forma muito peculiar e favorável à moralidade cristã da qual foi defensora, e quando esta adaptação parece muito complicada de se fazer, ela opta por trocar por versões similares da obra “Metamorfoses” de Ovídio. Cristina fez essas adaptações reescrevendo as histórias desses autores utilizando-se de algumas personagens, descartando outros e ainda alterando algumas das biografias, não apenas porque ela queria apagar a imagem de imoralidade que alguns homens utilizavam para argumentar contra o sexo feminino, mas principalmente ela alterou suas fontes a fim de que obtivesse sua própria autoridade sobre elas. Além disto, Cristina acrescentou as biografias de mulheres santas que não constam nas obras que ela leu e se baseou. Este procedimento é chamado pela poética medieval de compilatio, que consistia em fazer de vários textos um novo texto e que encontra no século XV seu auge. Desta maneira Cristina reformulou o discurso dos homens dando-lhe novas formas, propondo-se a reescrever e reconstruir uma história das mulheres até a sua época , reformulou e descontextualizou os autores clássicos. Outro recurso interessante que Cristina de Pizán recorreu é o que Marie José Lemarchand chamou de “construção em aspiral” que se trata de interromper a história para retoma-la mais adiante, ou de voltar a recordar a história de uma mesma mulher em vários capítulos como em um jogo de espelhos ou de pontos de vistas diferentes sobre um mesmo assunto.28 Assim, dentre as operações realizadas pela autora podemos citar a supressão de dados históricos , a exclusão de epítetos, a simplificação de 27 BOCCACCIO. Decamerão. São Paulo: Abril Cultural, 1971. 582 p. (Os imortais da literatura universal, 5) p. 126-135, 212-219, 236-239 28 LEMARCHAND- Marie José Introducción in: PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.28-30 situações fora do comum, a supressão de situações que envolvem assassinatos, luxúria, incesto, principalmente se as heroínas participassem delas de forma que fossem contra a moral cristã. Todas essas alterações fazem parte da passagem da obra de Boccaccio escrita sob a ótica masculina para a ótica feminina de Cristina dentro do contexto que buscou a moral cristã como ideal.29 A obra “A Cidade das Damas” é dividida em três livros com um total de 138 capítulos, construído como um catálogo biográfico e estruturado através do uso de uma alegoria principal que é a construção de uma cidadela na qual figuram como moradoras e também como pedras angulares mulheres virtuosas e célebres de diferentes épocas, nacionalidades e religiões. Adotando uma forma alegórica e dialógica com a presença de três personagens femininas, A Razão, a Retidão e a Justiça, que aparecem para Cristina e propõem a construção de uma cidade para as mulheres. Os materiais e as defesas desta cidade imaginária são as próprias mulheres excelentes. Trata-se de uma verdadeira alegoria da autoridade feminina, que permite a Cristina de Pizán revisar a história e ir incorporando todas as figuras femininas, desde as amazonas e outras personagens mitológicas até princesas e grandes damas da França, suas contemporâneas, passando pelas Sibilas, as mulheres ilustres e fortes da antigüidade, as mártires, entre outras.30 No começo do livro I Cristina diz-se cabisbaixa, triste e desolada diante das afirmações dos homens tão sábios e competentes. Ela estava lendo o livro “Lamentações de Mateolo”, pois ouvira dizer que ali havia considerações acerca das mulheres, mas ficou extremamente decepcionada com o que encontrou e cita pela primeira vez sua indignação pela maneira como os homens referiam-se às mulheres. “ Considero que este livro não tem autoridade nenhuma, sua leitura [refere-se as Lamentações de Mateolo] me deixou sem dúvida pertubada e em completa perplexidade. Me perguntava quais poderiam ser as razões que levam a tantos 29 JULIANI, Talita Janine; A construção do livro Cite des Dames de (1405) de Christine de Pizan. (on line)< http://www.historia.uff.br/nec/textos/text36.PDF> ( acessado em 25/04/2007). 30 Cf. supra, nota 9 homens, clérigos ou laicos a mal dizer as mulheres criticando-as tanto em palavras como em escritos e tratados (...) filósofos, poetas, moralistas, todos – e a lista seria demasiado longa – parecem falar com a mesma voz para chegar a conclusão de que a mulher, má por essência e natureza, sempre se inclina ao vício. Trazendo todas essas coisas a minha mente , eu, que tendo nascido mulher, me coloquei a examinar meu caráter e minha conduta e de muitas outras mulheres que pude conhecer , tanto princesas e grandes damas como mulheres de mediana e modesta condição que tiveram por bem confiar-me seus pensamentos mais íntimos. Me Propus decidir em plena consciência , se o testemunho reunido por tantos homens ilustres poderia estar equivocado.”31 Ainda no capítulo 1 do Livro I, a autora descreve um momento de profunda dor e indignação, em que ‘questiona’ Deus por tê-la feito nascer num corpo de mulher: “[...] Ai de mim! Deus meu! Por que não me fez nascer homem para servirte melhor com todas as minhas inclinações, para que não me equivoque em nada e que tenha esta grande perfeição que os homens dizem ter.[...]”32 A partir daqui ela recorreu a diversos simbolismos como o da visita das “Três Damas”, Razão, Retidão e Justiça, que a convocam para um grande feito que é a construção de um refúgio para as mulheres, uma cidadela que tem como função proteger as mulheres dos ataques misóginos. Essa grande fortaleza teria muros tão altos e de estrutura tão rígida que nunca seria conquistada, apesar de em alguns momentos poderia vir a ser tomada por assaltos. Teria os alicerces tão profundos, e seria tão bem estruturada, que poderia existir eternamente, pois os sistemas de defesa assegurariam a paz e a ordem. Cristina estaria então, encarregada de construir esta cidade, povoada pelas mulheres mais maravilhosas que já existiram e, no governo desta, adornada pelos mais magnificentes louvores, estaria Maria, a mãe de Jesus, a Rainha da “Cidade das Damas”. Claro que aqui temos um grande simbolismo alentado por uma linguagem figurativa. A cidade seria a nova visão que surgiria a partir da obra de Cristina, e que viria fundamentada na escrita: “Partamos para o campo das letras; é neste país rico e fértil que será fundada a Cidade das Damas, aí 31 32 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.64 (tradução nossa) Ibid. p.65 onde se encontram tantos frutos e doces rios, aí onde a terra abunda em todas as coisas boas”33. O espaço da Cidade seria assim com efeito o espaço das palavras, “um campo que seria cavado pela enxada da interrogação, onde trabalhar a terra é usar a palavra do questionamento, e ousar dizer pela ponta da pena.”34Nesta Cidade as mulheres ocuparam uma posição forte no domínio jurídico e as guerreiras são letradas. Zenóbia rainha de Palmira é citada como perfeita no combate e dedicada ao estudo, sabia grego, latim e escreveu nessas línguas um compêndio sobre história . Virgínia Woolf nos esclarece a respeito das mulheres escritoras, de maneira brilhante que se é verdade que as mulheres sempre quiseram escrever, também é verdade que nunca puderam fazê-lo, e que tiveram menos ainda oportunidades de publicar, simplesmente por não possuírem condições materiais favoráveis para exercer o ofício intelectual em meio as urgentes e intermináveis demandas domésticas.35 Cristina de Pizán abre caminho, sendo uma teimosíssima senhora, iluminando com suas chamas tênues as devastadoras noites das almas femininas que mereciam mais do que lhes era permitido viver. Ela foi exemplo para as mulheres, com argumentos jurídicos e filosóficos para que estas tivessem o direito de pensar e criar, partindo do conhecimento literário. Sua obra foi elaborada como um catálogo biográfico, que resgatou mulheres de diferentes épocas permitindo um diálogo que possibilitou o compartilhar de experiências semelhantes entre elas. Essas experiências repetem, tanto nas situações de dificuldades, como nas situações de ousadias. Assim foi criado um vínculo, um traço identitário comum, que possibilitou a 33 Ibid. p. 68 KLAPISCH-ZUBER, Christiane (dir.). História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Coimbra: Afrontamento, 1990 v. 2 p.533 35 ALMEIDA, Lélia Mulheres que escrevem sobre mulheres que escrevem (on <www.unisc.br/cursos/pos_graduacao/mestrado/letras/anais_2coloquio/mulheres_que_escrevem.pdf> acessado em 28/04/2008 34 line) criação de uma linhagem feminina, de uma ancestralidade onde as mulheres podiam ser modelos afirmativos e exemplos importantes para outras mulheres. A união dessas mulheres tem um eixo comum, o reconhecimento da violência contra o corpo feminino, que pode ser evidenciada de forma mais ou menos central na violência ancestral quase atávica sobre o corpo feminino. Cristina de Pizán se posiciona contra toda sorte e toda espécie de violência: doméstica, sexual, moral entre outras.Num movimento que torna claro que somente o conhecimento do passado, de nossas antecessoras, suas expressões artísticas, suas lutas, dúvidas, individuais e coletivas, é capaz de construir uma memória que nos sirva de modelo. Essa possibilidade de procedimentos genealógicos , tanto da recuperação de personagens históricos, como da reconstrução de uma voz do passado no tempo presente, Ciplijauskaité chamou de novelas de conscienciación, em que a busca da identidade se dá através de uma viagem a memória e suas origens. A recuperação de personagens femininas históricas , presente na obra de muitas autoras se dá por que elas escolhem como protagonista uma figura que de algum modo tenha contribuído para a emancipação da mulher.36 Sob este ponto de vista o interesse pela história e o conhecimento clássico fez com que Cristina reelaborasse o significado de algumas figuras clássicas. Resgatou a história de vida de algumas mulheres37 , estabelecendo um diálogo ininterrupto entre mulheres de diferentes gerações e etnias. Cada uma das Damas com quem Cristina dialogou trazia consigo um instrumento na mão direita, o qual caracterizaria a principal função da cada uma delas. O fio argumentativo de Cristina consiste nas indagações que ela elabora a cada Dama ao expor suas dúvidas e aflições acerca do sexo feminino. Estas por sua vez respondem a Cristina com exemplos que contradizem o discurso misógino, fazendo com que desta maneira as personagens sejam distribuídas 36 Ibid. p.4 Segundo Lélia Almeida, esta é uma das tendências mais marcantes e singulares da literatura de autoria feminina no mundo inteiro. (ALMEIDA, Lélia Mulheres que escrevem sobre mulheres que escrevem (on line)<www.unisc.br/cursos/pos_graduacao/mestrado/letras/anais_2coloquio/mulheres_que_escrevem.pdf> acessado em 28/04/2008 p.4-5) 37 ao longo da obra através de um critério temático discutido entre a autora e a dama correspondente a cada parte do diálogo. A Dama Razão, se apresentou como uma “fiel guia para que Cristina acabasse a obra sem equivocar-se.”38 Correspondia à própria consciência dela e de todas as pessoas que passariam a rever seus conceitos e pensamentos. Razão carregava um espelho na mão direita, ou seja, as pessoas passariam a agir guiadas pela racionalidade; olhariam para o reflexo a se formar no espelho que Razão carregava consigo e fariam uma leitura de si mesmos. Inclusive os homens que agrediam as mulheres em seus discursos misóginos seriam capazes de julgar se suas atitudes estavam certas ou erradas. É o auto-conhecimento, capaz de levar ao autocontrole, um dos instrumentos presentes no processo civilizador do Renascimento. O homem tomou consciência de sua própria existência e controla intencionalmente seus atos a fim de provocar reações em outrem, desta maneira dominando sua própria natureza é capaz denominar tudo que o cerca. Essa é a idéia presente no pensamento enunciado por Cristina já no final da Idade Média, anunciando o alvorecer da modernidade. Norbert Elias, especialmente na obra “A Sociedade de Corte”, ressalta a importância de se controlar as emoções e afetos no interior de uma sociedade distinta e refinada como a sociedade cortesã. Segundo Elias, uma das regras de sobrevivência previa que os homens deveriam “conhecer a fundo suas próprias paixões para poder na verdade encobri-las.”39. Embora Elias esteja se referindo à sociedade de corte na França de Luis XIV, podemos identificar o pensamento de Cristina de Pizán como o de alguém que percebeu o processo de mudança que estava se engendrando em seus dias e que prosseguiria a tornar o homem, que antes era educado para a arte da Guerra num indivíduo “civilizado”, educado para a arte da política, capaz de disputar poder por meio da retórica e persuasão. A autora propõe que 38 39 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.71 (tradução nossa) ELIAS, Norbert A Sociedade de Corte. Lisboa: Difel, 1990 p.143 as mulheres tomassem consciência de seus papéis nesse processo civilizador incluindo-as nele. A Retidão ajudaria nesse processo de tomada de consciência. Ela diz ser o escudo que protege os servos de Deus e também aquele que resplandece a bondade divina de quem seria a mensageira40. Com a ajuda dela os seres humanos saberiam o que é certo e errado. Na sua mão direita ela carregava uma régua brilhante, para adequar as atitudes das pessoas. Ou seja, a Retidão é o pensamento cristão que deve erguer-se na mente dos seres humanos, capaz de ajuda-los a viver de acordo com as regras de Deus. Saber estabelecer a diferença entre o Bem e o Mal e assim, junto com a tomada de consciência, agir inclinando-se para a bondade, e com isso voltar-se para os preceitos divinos. A Justiça ajudaria a manter a ordem na cidade. Essa Justiça não é a dos homens, mas a justiça divina. Ela se anuncia como filha predileta de Deus, de cuja essência ela precedia e cuja única obrigação era dar a cada um segundo seu próprio mérito.41 Carregava na sua mão direita um vaso de ouro, que simboliza o julgamento das ações. Mesmo os homens tendo sua justiça na Terra esta poderia ser falha. A Dama Justiça dialogo com Cristina, ela diz que vive no céu para glorificar os santos, na terra para apontar o Bem e o Mal, e no inferno para a punição dos pecadores, tendo como função julgar e decidir o que deve ser feito nos três mundos. As três damas completam uma tríade de perfeição. Assim como formam uma trindade o Pai, o Filho e o Espírito Santo, estas três compõem o “corpo” divino. Uma não consegue existir sem a outra, são interdependentes; elas dizem que estão em Deus e Deus está nelas. Cristina consegue, dessa forma, revelar um “lado feminino” de Deus, utilizando-se de alegorias e linguagem figurativa. “Estou em Deus e Deus está em mim, porque somos por assim dizer uma só coisa. (...) Nós três somos por assim dizer uma só: o que propõe a primeira 40 41 Ibid.,p.72 PIZÁN, op cit., p.72-73 [Razão], a segunda [Retidão] dispõe e aplica, e eu a terceira [Justiça] levo ao perfeito término (...)”42 Dentre os assuntos tratados pela autora ao longo da construção deste refúgio para as mulheres encontramos princesas que se opuseram em sabedoria com renomados reis, mulheres guerreiras, mulheres com capacidade científica, damas prudentes, sibilas e profetisas, filhas amorosas, esposas que amaram seus maridos imensamente, mulheres que salvaram seus maridos da execução graças à astúcia, mulheres que foram boas confidentes e conselheiras, algumas mulheres bíblicas.Com essas histórias Cristina buscou construir ao longo de sua obra uma teia de antecedentes favoráveis as mulheres reivindicando o reconhecimento sobre a capacidade feminina para o Bem. Provavelmente isso se deveu em parte ao contato que a autora teve com o direito após a morte de seu marido, embora este também fosse um campo masculino por excelência. Ela precisou enveredar por ele para buscar resgatar seus bens, estudando desta maneira leis e tratados de direito que acabaram por ajudar a fundamentar suas argumentações. O objetivo de Cristina de Pizán era fazer com que os homens saíssem da sua ignorância sobre as mulheres e que os exemplos e conselhos por ela apresentados pudessem servir de espelho para outras mulheres, ela colocou sua visão feminina sobre a posição e sentimentos das mulheres, já que sempre quem já havia escrito a este respeito haviam sido sempre homens.43 42 43 Ibid., p.73 Cf. supra nota 17 pp. 38-42 CAPÍTULO 2 : “O CONHECIMENTO NÃO CORROMPE” O PENSAMENTO DE CRISTINA DE PIZÁN E SUA ALEGORIA. O objetivo deste capítulo é a apresentação do nosso objeto de estudo a obra “A Cidade das Damas” publicada em 1405, como parte de uma categoria literária denominada exemplum. Analisando as escolhas de Cristina de Pizán ao fundamentar suas discussões no campo das letras, tendo como principal instrumento a crítica, ela apresenta para as damas Razão, Retidão e Justiça argumentos e exemplos para fundamentar sua afirmação de igualdade das capacidades intelectuais entre homens e mulheres. A proposta de nossa autora para a regeneração da imagem das mulheres diante da sociedade era o acesso à educação e ao conhecimento, pois para ela o que determinava a exclusão da mulher da esfera pública , era o fato de elas terem esse acesso negado , o que originava a desigualdade entre homens e mulheres. O texto de “A Cidade das Damas” construído com argumentos a favor do sexo feminino e exemplos para as mulheres, mantivemos nosso foco na reivindicação de Cristina à moral feminina, afirmando que “o conhecimento não corrompe os bons costumes.” 2.1- O EXEMPLUM “A CIDADE DAS DAMAS”. Ao dedicar-se à sua obra “A cidade das damas” no ano de 1405, Cristina de Pizán já estava com cerca de 40 anos, ou seja, já era uma mulher madura, que tinha passado por dificuldades com a morte do pai e do marido. Ela teve que sustentar sua família e sofreu com a perda de seu filho mais novo, mas, tinha suas idéias claras e também era uma escritora reconhecida. Graças a sua formação privilegiada, as suas leituras e as suas experiências pessoais, reconheceu a situação de inferioridade e subordinação em que se encontravam as mulheres e decidiu lutar escrevendo a este respeito. Ao começar a escrever sua obra, primeiro Cristina se dedicou a “limpeza do terreno” no campo das letras. Para isso ela começou “varrendo” o pensamento de toda uma época de ataques misóginos para depois, juntamente com as Damas Retidão, Razão e Justiça, se empenhar na construção dos muros e habitações da cidadela. Dentro desses muros se refugiariam apenas as mulheres virtuosas, com qualidades e méritos, entre elas foram incluídas mulheres mitológicas, bíblicas, santas e personagens históricas e muitas outras ultrapassando barreiras históricas e étnicas. Todas juntas ali viveriam tendo como senhora suprema a Virgem Maria mãe de Cristo, exemplo supremo de virtude. O livro “inspirador” que Cristina cita estar lendo antes da visita das três Damas que lhe pediram para que construísse a Cidade das Damas é “Lamentações de Mateolo” escrito no século XIII que assim como “O Romance da Rosa” serviu e atuou como influência para a necessidade de uma construção de defesa ao seu sexo. Cristina de Pizán elaborou seu compilatio formando uma teia de antecedentes jurídicos para as mulheres, valorizando a inteligência e as virtudes delas atravessando barreiras temporais, históricas e religiosas. Cristina de Pizán trabalha com o questionamento, contemplando também as possibilidades que eram negadas às mulheres, que estavam presas aos discursos misóginos e generalizantes de sua época, assim ela imagina sua utopia1e como uma pensadora medieval via que no ato de trilhar um caminho para imaginar uma um lugar melhor residia uma das formas mais completas de reflexão. A utopia medieval fornecia um caminho para a perfeição.2 Com uma idéia de utopia moral, a autora cria um mundo alternativo, que faz mais do que refletir sobre outro lugar, serve também para pensar o presente além do tempo, já que mulheres de várias épocas estão ali com um propósito comum, que é a construção de um refúgio para elas. Essa idéia de utopia não é apenas um projeto de sociedade ideal ou perfeita, mas também um outro tempo3, onde o presente limitador da feminilidade é negado e o futuro passa a ser uma promessa de realização, no qual as mulheres podem se expressar, ter voz e sobretudo ter oportunidade de aprender tanto quanto os homens. Com essa representação de uma sociedade futura e imaginada, a autora se opõe à sociedade do seu tempo com suas mazelas, vícios, possibilidades, intrigas, e realidades. Dupla arquitetura, crítica social e projeto de transformação social, cristalizando a partir da sua obra visionária um esquema de interpretação e unificação das experiências sociais e do horizonte de expectativas, recusas, temores e esperanças4 que estão a rodear o “ser mulher” no século XV. Sob esta ótica Cristina trabalha em sua construção evocando exemplos de mulheres que além de habitantes de sua cidadela são também as pedras utilizadas na construção desta cidade. Mulheres guerreiras como Semiramis5 são invocadas para serem as pedras de fundação, já que primeiramente teriam que lutar para se posicionarem nesse campo masculino que é o da palavra. Mulheres sábias e fundadoras do saber seriam os muros da Cidade, podendo dar a segurança que se alcança com o conhecimento e as sibilas e profetisas são convidadas para traçar as primeiras construções, por serem aquelas que têm a 1 Apesar de os medievais não terem pensado o conceito de utopia, que foi cunhado por Tomas More no ano de 1516 para designar uma ilha imaginária cujo nome remete a “nenhum lugar” tomo como base a definição do medievalista Hilário Franco Jr. (“...toda sociedade idealizada, concebida como evasão do concreto ou como proposta de mudanças nele.”) FRANCO JR., Hilário. As Utopias medievais. São Paulo: Brasiliense, 1992 p.11. 2 COSTA, Ricardo (on line) www.miniweb.com.br/historia/artigos/i_media/novela _idad.media6.html (acessado em 16/09/08) 3 SONTAG, Susan apud RAMOS, Maria Bernadete O Brasil dos meus sonhos (on line) http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11627.pdf (acessado em 28/04/2008) 4 BRONISLAW, Bazcko, “Utopía” in: Enciclopédia ENAUDI. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985 V.5 p. 333-396 5 Mulher do Rei Nuno que acompanhava o marido no campo de batalha. capacidade de se ligarem com o divino, trazendo esse caráter intrínseco para as construções. Agrupando as mulheres que foram convocadas para a tarefa de construir e serem as primeiras habitantes da Cidade das Damas além das que já foram citadas a autora inclui: • Mulheres que possuíram discernimento mesmo sendo submissas aos homens, atuando como boas administradoras das tarefas domésticas; • Mulheres que se destacaram no exercício da política; • Mulheres que foram fiéis e amorosas aos pais; • Mulheres que foram fiéis em seus casamentos; • Mulheres que foram boas confidentes e boas conselheiras para ajudar seus maridos; • Mulheres bíblicas que contribuíram tanto no plano do cotidiano quanto no espiritual; • Mulheres, que refutando a crença da época, foram instruídas e não se corromperam por isso; • Mulheres belas e castas; • Mulheres que resistiram à violência sexual, refutando o argumento misógino de que as mulheres gostavam de ser violentadas; • Mulheres que foram caluniadas e permaneceram virtuosas; • Mulheres que foram constantes em seu amor, como argumento contra aqueles que insistiam em apregoar a frivolidade feminina; • Outras mulheres que se tornaram célebre s pelos mais diversos motivos. Casadas, Viúvas e Virgens são aconselhadas cada qual segundo sua condição e em todos os estados sociais, pois Cristina vai além do filtro medieval de categorizar as mulheres apenas segundo seu estado conjugal, mas as orientou segundo suas condições sociais também alertou a todas as mulheres quanto as armadilhas sedutoras. Assim, a partir de autores clássicos como Boccacio e Ovídio, ela abre caminho para uma interlocução através do tempo com as mulheres que se destacaram em diferentes épocas, com uma verdadeira conversa possibilitada pelas três Damas (Razão, Justiça e Retidão) como um meio de compartilhar experiências. Essas experiências que são de temática universal, ou seja são semelhantes e se repetem, tanto nas situações de dificuldade, como nas situações de ousadias entre elas, criam um vínculo, um traço identitário, laço fundamental para a constituição de uma linhagem onde as mulheres poderão ser modelos afirmativos e importantes para outras mulheres. Ao criar sua teia de argumentações em defesa das mulheres por meio da palavra escrita, Cristina enfrenta o preconceito de uma época. Como mulher ela não deveria se posicionar com palavras, pois pela tagarelice de Eva o pecado entrou no mundo e por isso a pregação feminina deveria ser sem verbalização, feita apenas pela mortificação corporal.6 Ela trabalha reunindo um catálogo biográfico que fosse capaz de servir como manual de exemplos para as mulheres serem capazes de combater os discursos misóginos tão arraigados na sociedade de sua época. Por isso “A cidade das damas” se insere em uma categoria literária denominada exemplum, que tem como característica ser a reunião de uma série de histórias, fictícias ou não, geralmente curtas, que servem para induzir aqueles que têm contato com elas a seguir o modelo apresentado. Esse tipo de literatura era muito usada nos mosteiros e nos sermões, buscando orientar o comportamento dos fiéis com modelos que mereciam ser imitados, sendo assim, um recurso retórico que objetivava convencer e persuadir. De um fato passado, a pessoa que pregava o sermão ou fazia o discurso, era capaz de deduzir pelo raciocínio uma lei geral ou uma regra de conduta moral capaz de ser aplicado na vida dos ouvintes.7 Dentro desta categoria literária pode-se distinguir quatro tipos de exemplum: 6 L’ERMITE LECLERCQ, Paulete A Ordem Feudal(séc. XI-XIII) in: DUBY, George e PERROT, Michelle (dir.) História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Coimbra: Afrontamento, 1990 v. 2 7 LEITE, Lucimara Christine de Pizan : uma resistência na aprendizagem da moral de resignação Doutorado em Língua e Literatura Francesa e Estudos Medievais. USP. Maio 2008 (tese não publicada) p. 22 1. Exempla tirados de histórias ou lendas, principalmente de histórias da antiguidade, de crônicas, da vida de santos e da bíblia. 2. Exempla tirados de acontecimentos contemporâneos de anedotas de domínio público, ou de lembranças do autor ( de modo a formar um registro de comportamentos com revelações curiosas). 3. Exempla-fables tomados da tradição popular . 4. Exempla tirados dos bestiários como descrições morais.8 Esses Exemplum têm várias características comuns, entre elas podemos encontrar na obra de Cristina de Pizán a univocidade, já que não permite interpretações múltiplas; a breviedade, as histórias são concisas; autenticidade, mesmo quando se trata de lendas a autora tem como base os autores antigos de quem faz a compilatio; a verossimilhança, uma vez que o acontecimento é possível; o prazer, o texto precisa agradar aqueles que têm contato com ele; a metáfora, com sentido figurado por efeito de comparação ou analogia; a facilidade de memorização para ser facilmente lembrado e aplicado no cotidiano9. No livro “A cidade das damas” podemos contar mais de 100 exemplos de mulheres que figuram ali para serem imitados, desta maneira a autora forneceu meios para que as mulheres pudessem desarmar seus adversários e conseguissem triunfar sobre eles. O texto de Cristina é todo permeado por argumentos e exemplos capazes de mostrar o quanto as mulheres podem deixar de ser sujeitos passivos em suas vidas, atribuindo a elas poder de decisão e de iniciativa tendo como propósito eliminar a ignorância dos homens em relação às mulheres. A autora encaminha a discussão e o ensinamento no título de cada capítulo, como por exemplo : Capítulo XXXIII “Cristina pergunta a Razão se alguma vez uma mulher descobriu uma ciência desconhecida”10, usando na discussão o método socrático inspirado na maiêutica11 como forma de ensinar os indivíduos a 8 Ibid. pp.22-26 Ibid. 10 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.127 11 A Maiêutica consiste em um procedimento dialético no qual Sócrates, partindo das opiniões que seu interlocutor tem sobre algo, busca fazê-lo cair em contradição ao buscar defender seu ponto de vista, vindo assim a reconhecer sua ignorância acerca daquilo que julgava saber. (JAPIASSU Hilton MARCONDES, 9 aprenderem por eles mesmos. O leitor já sabe o que buscar em cada capítulo e com que intenção a autora escreveu cada um deles. Argumentando com cada uma das damas em cada capítulo, Cristina apresenta em seus argumentos um posicionamento feminino acerca de temas que eram discutidos apenas entre os homens. Defendendo o direito das mulheres à palavra, procurou estabelecer a confiança no sexo feminino e combateu com isso a idéia, corrente na época, de que Cristo apareceu a Maria Madalena com o único intuito de usá-la como propagadora da notícia da ressurreição.12Desta maneira, o texto de “A Cidade das Damas”serviu como um manual a ser seguido pelas mulheres e também para ser lido pelos homens, dando-lhes informações menos preconceituosas em relação ao sexo feminino. Usando exemplos para persuadir as mulheres e também mudar a visão dos homens quanto as prerrogativas que determinavam sua então superioridade em relação as mulheres, Cristina de Pizán reivindica a dignidade feminina como o seu ideal maior. A nova cidade se fundou em pleno território do saber androcêntrico – dentro do perímetro do campo das letras – o qual significa reconhecer que a construção dos muros é contingente e momentânea porque nada escapa da cultura, nem mesmo uma utopia medievalista. Admitimos que todo pensamento crítico se produz, ao menos em parte, com as ferramentas conceituais disponíveis e dentro dos limites de um contexto histórico, por mais incômodo que se apresentem para os sujeitos em questão. Nas pedras metafóricas de Cristina de Pizán, que eram as vidas dessas mulheres exemplares ou comuns que representam o valor concedido ao vivido e a importância que a autora coloca na experiência. Essa experiência é entendida como prática e funciona como refúgio, memória e impulso ético e político13. Danilo Dicionário Básico de Filosofia , 4ªEdição Atualizada, Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed.,2006) pp.175176. 12 A idéia de que as mulheres são mexeriqueiras remonta a Aristóteles e ao Apóstolo Paulo, para quem os homens devem falar e falar bem, enquanto as mulheres devem permanecer taciturnas (LEITE, Lucimara. Christine de Pisan: uma visão da mulher medieval Mestrado em Comunicação e Semiótica PUC/São Paulo – 1999 - tese não pubicada p. 47) 13 CHANETON, July Edith., “LA ciudad de las damas teorias y práticas feministas” Nueva Sociedad, numero 155. mayo – junio 1998 pp.37-53. Quando Cristina questiona a Dama Razão acerca da superioridade e inferioridade dos sexos, esta lhe responde que a superioridade ou inferioridade de uma pessoa não deriva se seu sexo e sim da perfeição de seus modos e virtudes. “Pelo que me diz Dama minha, a mulher é uma criação muito nobre. Porém, Cícero disse que um homem não deve nunca servir a uma mulher porque se colocaria a serviço de alguém menos nobre e que o mesmo seria inferiorizar-se. Ela me respondeu com essas palavras: -Maior é aquele ou aquela que mais méritos tem, a superioridade ou inferioridade das pessoas não reside em seu corpo atendendo ao seu sexo, e sim na perfeição de seus hábitos e qualidades.”14 Cristina luta usando como arma o questionamento, fazendo papel de advogada de seu sexo, argumentando com as damas sobre os preconceitos, alegando e buscando nelas respaldo, citando exemplos que refutassem a misoginia. Podemos perceber ao longo da obra alguns juízos vigentes na época, segundo os quais as mulheres por incapacidade de inteligência deveriam ser excluídas de funções mais importantes dentro da sociedade. É contra estes juízos que a autora argumenta. Cristina defende que meninos e meninas deveriam ser instruídos e educados da mesma maneira15; que a fragilidade do corpo feminino é compensada pela natureza com uma inteligência mais viva e aguda16que os homens são mais sábios porque têm oportunidade de se depararem com mais problemas do mundo fora do lar, diferentemente das mulheres; que eles são os responsáveis pelas tarefas mais importantes17. A autora fundamentou seu argumento sobre as funções de homens e mulheres dentro da sociedade enquanto uma construção cultural e não uma predisposição determinada pela natureza de cada um dos sexos: “(...) se o costume fosse mandar as meninas para a escola e ensinassem-lhes as ciências com método, como se faz com os meninos, aprenderiam e entenderiam as dificuldades e sutilezas de toda as artes e ciências tão bem quanto eles.”18 14 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.81 (tradução nossa) Cf. PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.119 (tradução nossa) 16 Cf. ibid. p.92 17 Cf. supra nota 13. p.120-121 18 Ibid. p.119 (tradução livre) 15 Cristina de Pizán se empenhou na reflexão a partir de sua própria experiência e das mulheres que ela conhecia quando questionou as palavras dos homens ilustres, como pudemos observar nessa passagem: “(...) filósofos, poetas, moralistas, todos – e a lista seria demasiado grande – parecem falar com a mesma voz para chegar a conclusão de que a mulher, má por essência e natureza, sempre se inclina para o vício. Trazendo todas essas coisas para minha mente, eu, que tendo nascido mulher, me coloquei a examinar meu caráter e minha conduta e também a de outras mulheres que tenho tido a oportunidade de visitar tanto princesas e grandes damas como mulheres de média e modesta condição que tiveram por bem confiar-me seus pensamentos mais íntimos. Me propus a decisão de que a opinião de tantos homens ilustres pudessem estar equivocadas.”19 Ela se negou a aceitar a inferioridade feminina que era proclamada e aceita em sua época e imersa em suas reflexões escreveu a partir de uma alegoria que começa com a visita das três Damas Razão, Retidão e Justiça que a convocaram para se levantar em defesa do sexo feminino com a construção de uma cidadela que serviria de refúgio naqueles tempos de misoginia elevada. Ao ser convocada pelas Damas, Cristina responde: “Eu sei que para Deus nada é impossível, e que vou crer que tudo acontecerá com vossa ajuda e conselho, será feito. Com todas as minhas forças, rindo a Deus e a vós, Damas minhas, que me honrais com tão nobre cargo . Aceito gozosamente, eis-me aqui disposta a servir-vos. Faça-se em mim segundo as suas palavras.”20 Analisamos aqui uma semelhança entre a resposta que Cristina da às Damas após ser convocada para a tarefa de construir a cidade, com a fala de Maria que ao receber o anjo da anunciação e saber que ficaria grávida mesmo sendo virgem, sujeita a todo julgamento da época e às conseqüências que isto poderia implicar,21respondeu ao anjo: “Eu sei que para Deus não haverá 19 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.64 (tradução nossa) Ibid. p.74 (tradução nossa) 21 Segundo o livro de levíticos, a morte era o castigo para aqueles que se relacionavam sexualmente antes do casamento.Cf. Levíticos 20:10 20 impossíveis em todas as suas promessas,(...)Aqui está a serva do Senhor que se cumpra em mim conforme a sua palavra.”22 A resposta de Cristina as Damas parafraseando o texto bíblico, revelou um sentimento da autora, o de ser uma eleita de Deus, que através das Damas deu para a autora a missão de levar adiante a construção de uma cidade de mulheres. Cidade esta que quando pronta teria como rainha a própria Virgem Maria, o que remeteu a vontade da autora em retomar o culto mariano que teve seu auge nos séculos XII e XIII, e também como uma forma de valorizar e homenagear aquela que havia sido a primeira mulher a ter seus feitos reconhecidos pelos cristãos.23 22 Lucas 6:37-38 LEITE, Lucimara. Christine de Pisan: uma visão da mulher medieval Mestrado em Comunicação e Semiótica PUC/São Paulo – 1999 - tese não pubicada p.66-67 23 2.2- A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO PARA AS MULHERES NO PENSAMENTO DE CRISTINA DE PIZÁN. O desmensurado apreço pelo conhecimento que Cristina de Pizán revela ao longo de sua obra é observado muito claramente em “A Cidade das Damas” quando ela defendeu a educação como um elemento indispensável à formação humana. Com um sentido que vai além do saber adquirido pela ciência, que implica também no saber empírico baseado na experiência que guia o indivíduo, a partir de um estado inicial julgado insuficiente em direção a um outro considerado superior. No final da Idade Média as categorias escolares que conhecemos já estavam definida. Na base encontravam-se as escolas paroquiais, “as pequenas escolas”. As paróquias estavam muitas vezes na dependência dos senhores feudais que eram os responsáveis pela contratação dos mestres. Poderia ocorrer também que os habitantes de uma aldeia se associassem para contratar um mestre, a imagem tradicional da escola “laica e obrigatória” na França data de pelo menos mil anos atrás. O ensino era ministrado contiguamente ao espaço da igreja ou mesmo na própria igreja. O mestre era geralmente um leigo que exercia simultaneamente as profissões de sacristão, de participante do coro, entre outras funções. Recebia ordinariamente dos alunos uma modesta remuneração em espécie: favas, peixe, vinho e algumas vezes algum soldo.24 As moças se beneficiavam também do ensino, menos apurado e sem dúvida muito mais vigiado. A educação feminina começava cedo, aos três anos de idade, as meninas eram separadas dos quartos dos meninos, mas ainda poderiam sair para brincar com os meninos. Aos doze anos sua liberdade chegava ao fim e eram enclausuradas em suas casas sendo constantemente vigiadas pelos seus pais e irmãos. As voltas pela cidade, passeios e tagarelices particulares eram proibidas. Acreditava-se que só o trabalho doméstico, o silêncio e a oração seriam capazes de vencer os sonhos alimentados por elas. A chegada do casamento 24 DIAS, Ivone Aparecida Mulheres e Educação na Idade Média: Damas e Religiosas (on line) acessado em 30/09/2008) suavizaria esse confinamento , mas as esposas encontravam-se subjugadas às vontades do marido e aos cuidados com as crianças.25 “A uma mulher não se deve ensinar as letras nem a escrever.”26 Dar às mulheres o domínio da escrita era considerado algo perigoso, mesmo se certos moralistas são menos afirmativos que Felipe de Novara: “As palavras das mulheres letradas deixaram durante muito tempo aflorar o temor das audácias e o medo das impotências”.27 Para nossa autora a educação era um meio das mulheres não serem mais consideradas indiferentes em relação a determinados assuntos, sobretudo aqueles que envolviam responsabilidades políticas ou sociais. Na medida em que a educação proporciona o conhecimento para a mulher sobre diversos domínios de interesse, possibilitando a experiência que fosse além do ambiente doméstico lugar onde o saber feminino estava historicamente predestinado pela sociedade patriarcal.28 Na nossa análise pudemos nos deparar com o pensamento inovador dessa autora no que se refere ao acesso à educação, sendo essa uma bandeira levantada por Cristina. Quando ela reivindica que meninos e meninas tenham o mesmo acesso ao conhecimento29. Ela argumenta que estariam tão bem preparadas quanto os meninos para enfrentar qualquer adversidade que a vida pudesse apresentar, revelando através disso a igualdade da capacidade intelectual entre homens e mulheres como a autora resgatou nessa passagem: “[As mulheres sabem menos] sem dúvida porque não têm, como os homens, a experiência de tantas coisas diferentes, elas são limitadas ao cuidado do lar, se fecham em casa. Porém, não há nada tão instrutivo como um ser dotado de razão como exercitar-se e experimentar coisas variadas.”30 25 SILVA, Paulo Thiago S. Gonçalves Idade média, Idade das “trevas”? Uma análise da historiografia das mulheres medievais (on line) in: http;//unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/paulo1.html (acessado em 30/09/2008) 26 NOVARA, Felipe Apud. BOHLER, Danielle Régnier Vozes literárias, Vozes místicas in: DUBY, Georges (org.) ; PERROT, Michelle (org.) ; KLAPISCH-ZUBER, Christiane (dir.). História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Coimbra: Afrontamento, 1990 v. 2 p. 536 27 DUBY, Georges (org.) ; PERROT, Michelle (org.) ; KLAPISCH-ZUBER, Christiane (dir.). História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Coimbra: Afrontamento, 1990 v. 2 p. 536 28 CALADO, Luciana. Saboreando o saber; a aventura intelectual de Christine de Pisan no seu “caminho de longo estudo” (on line) in: <www.uesc.br/seminariomulher/anais/luciana%20eleonora%20de%20freitas%20calado.pdf >(acessado em 19/09/2008) 29 Cf. PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.119 30 Ibid. Pudemos perceber quanto Cristina considerava as mulheres como seres racionais iguais aos homens e que se sabiam menos era justamente porque sua educação era deficitária e limitada quando comparada com a educação que era dada aos homens. Outra idéia que a autora se empenhou em combater com determinação ao longo de sua obra foi a crença profundamente arraigada de que o conhecimento além de corromper as mulheres também arruinava os costumes. “Isto demonstra (...), que as opiniões dos homens não se fundamentam todas sobre a razão, porque está bem claro que aí andam equivocados. Não se pode admitir que o conhecimento das ciências morais, que ensinam precisamente a virtude, corrompa os costumes. Ao contrário, é certo que as melhora e enobrece. Como crer que fomenta a corrupção? É algo que não se pode pensar nem dizer.”31 Não era comum durante a Idade Média dar a mesma educação aos meninos e meninas, uma vez que elas eram consideradas intelectualmente inferiores a eles, e uma vez não tendo a mesma capacidade eram condicionados a métodos e ciências diferentes para cada um. Mas, Cristina de Pizán estava convencida do contrário e por sua própria experiência de vida tinha muito claro de que o conhecimento não corrompia, ao contrário, era capaz de enobrecer os seres humanos por igual. Muito interessante também é fazer uma referência ao raciocínio de Cristina sobre as acusações misóginas de que as mulheres eram frívolas, inconstantes, volúveis e sem caráter. Apesar da exposição das idéias da autora sobre estes aspectos ser extensa, achamos interessante transcrever suas palavras para que nenhum detalhe da argumentação se perca. “[disse Retidão a Cristina] (...) como todos dizem que a natureza feminina é instável, se poderia supor que eles [os homens] sempre têm o ânimo bem temperado, ou ao menos são mais constantes que as mulheres, porém o resultado é que exigem muito mais das mulheres do que eles mesmos demonstram. Os homens que sempre proclamam sua força e coragem, caem em tamanhas falhas e crimes não por ignorância, mas, sabendo que estão errados, sempre buscam desculpas, dizendo que o erro é humano. Agora bem, se uma mulher apresente a menor falha – provocada em geral pelo abuso do poder por parte do homem – já estão prontos para acusá-las de inconstância e superficialidade (...) não existe lei nem tratado que lhes outorgue o direito de pecar mais que as mulheres nem que estipule que os defeitos masculinos são mais desculpáveis. Na realidade eles vão 31 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.118 (tradução nossa) se carregando de tanta autoridade moral que se atribuem o direito de acusar as mulheres dos piores defeitos e crimes, sem saber nunca compreender ou desculpá-las. (...) Assim, o homem sempre tem o direito a seu favor porque pleiteia representando ambas as partes.32 A autora foi capaz de condensar algumas de suas idéias mais inovadoras para o alvorecer da modernidade sobretudo por ser mulher. Quando ela escreveu que os homens sempre têm o direito a seu favor, porque era sempre uma figura masculina que representava ambas as partes perante um tribunal, ela remete à sua experiência quando teve que pleitear juridicamente para reaver seus bens após a morte de seu marido, trazendo novamente sua vivência para dentro da sua obra, refletindo a partir daí seu pensamento. Embora a introdução do direito comum tenha representado um impacto sobre a posição legal da mulher, os códigos medievais tradicionais da Europa reservavam à mulher um status legal secundário, baseados geralmente na sua falta de habilidade para o serviço militar feudal. Essa relação de tutela baseada no gênero gradualmente se extinguiu no final da Idade Média na medida em que as mulheres solteiras e viúvas puderam servir como testemunhas para testamentos. Mesmo tendo alguns benefícios, estes eram muitas vezes encarados como favorecimento em relação ao seu sexo inapto às tarefas masculinas e frágil. Juntamente com os camponeses e dementes as mulheres eram consideradas como irresponsáveis legalmente por seus próprios atos e não poderiam ser compelidas a comparecer diante de uma corte, sendo que sempre, em todos os casos, seu testemunhos eram menos dignos de confiança do que o dos homens. Essas idéias levaram muitos juristas na Europa a recomendar e implantar a reintrodução da guarda baseada no gênero; mulheres adultas, solteiras, casadas ou viúvas deveriam estar novamente tuteladas sob a autoridade masculina e com isso proibidas de tomar qualquer decisão financeira, até mesmo no que se referisse a doações para instituições religiosas, sem uma aprovação masculina.33 32 Ibid. p.208 (tradução nossa) SANTOS, Giovanna Aparecida Schittini dos. Humanismo, Direito e Gênero: Pontos de Intersecção num discurso do século XVI. In: Anais do VII Seminário Fazendo Gênero (On line) <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigos9671.pdf> (acessado em 19/09/2008 33 A autora começou a perceber que com o passar do tempo os homens estavam adquirindo cada vez mais autoridade sobre as mulheres o que resultava em um papel de cada vez maior subordinação para elas. Cristina ousou impor suas idéias através da pena escrevendo em defesa da moral feminina, o que resultou no seu envolvimento na “Querelle des femmes” como veremos no próximo capítulo. Capítulo 3 : CRISTINA DE PIZÁN, A “QUERELLE DES FEMMES” E A DEFESA DA MORALIDADE FEMININA. A defesa da moral feminina fez com que Cristina de Pizán se envolvesse na “Querelle des femmes” ao opor-se aos ataques às mulheres que Jean de Meun fez na segunda parte do Roman de la Rose. A autora ilumina as mentes daqueles q quem ela quer responder neste debate ao longo da sua exposição de exemplos. No seu livro ela exaltou o valor, a inteligência e as virtudes femininas atravessando barreiras temporais, históricas e religiosas. O objetivo deste último capítulo é apresentar Cristina de Pizán como uma defensora da moral feminina. Analisamos como ela elaborou um tratado moral em defesa do sexo feminino a partir da compilação da obra de Boccaccio, ressaltando que seu texto tem a inclusão de personagens, como as santas mártires, que não figuraram na obra do autor toscano. Percebemos como os capítulos foram construídos com exemplos e contraexemplos e que a autora teve uma preocupação principal que era a de converter o discurso misógino, colocando as mulheres em uma posição não de igualdade perante os homens, pois ela reconhece que as diferenças deviam ser respeitadas.O que ela elabora é uma valorização da mulher diante do discurso misógino presente em sua época. 3.1: A “QUERELLE DES FEMMES”. A obra de Cristina de Pizán esteve centrada na mulher por mais de 30 anos, de 1398 a 1429. A primeira obra que trata do tema é a “Epístola ao Deus do Amor”, em seguida ela se dedica às “Cartas da Querella do Roman de la Rose”(1398-1402), depois escreve sua obra chave que é “A Cidade das Damas” (1405) que é seguida pelo “Tesouro da Cidade das Damas”, onde ela propõe um modelo pedagógico para as mulheres que habitariam a Cidade das Damas, portanto é a continuidade da sua obra mais importante. Toda este empenho que Cristina de Pizán revela na defesa da moralidade feminina, faz com ela se envolva na chamada “Querelle des Femmes”, que inicia o debate acerca do Roman de la Rose. Sua entrada no cenário filosófico e intelectual parisiense é marcado por este envolvimento reafirmando assim seu papel de escritora, sua voz e autoridade como uma campeã do sexo feminino.1 A Querelle des Femmes é como um intenso debate literário e filosófico sobre as condições das mulheres, seus vícios e virtudes, permitindo que apareçam as diversas contradições existentes a respeito deste tema. Percebemos claramente as marcas deixadas nesse debate durante cada época, pois na Idade Média os exemplos a serem seguidos eram os religiosos e com o advento da modernidade passa a haver uma ênfase em temas diferentes, a mudança de perspectiva deixa de ser puramente cristã para entrar em outras questões que vão além do casamento ou da virgindade para incluir outras questões referentes até mesmo ao Estado. A Querelle atingiu diversos países, como Inglaterra, França e Espanha. Pode-se dizer que este foi um ensaio para balizar o início do feminismo, de suas correntes e de um esforço em sentido contrário à possibilidade aberta para as lutas das mulheres em defesa de igualdade de direitos e em reconhecimento de seus papéis. Porém, um dos problemas deste debate está relacionado à utilização de sua estrutura, que era muito usado para que os estudantes universitários 1 LEMARCHAND- Marie José Introducción in: PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.24 exercitassem habilidades de metodologia e retórica desde a Idade Média e especialmente no século XVIII. Desta maneira, muitas críticas misóginas podem ter sido escritas pelos mesmos autores que defenderam a igualdade entre os sexos em textos com as mesmas características e estilos de escrita, porém em sentidos contrários, podendo ser em algumas circunstâncias mais um exercício do que efetivamente um debate entre indivíduos que divergiam sobre o tema. O cuidado para analisar as discussões da Querelle deve ser redobrado para diferenciar o que faz parte da Querelle e o que foi realizado com o fim de praticar método e retórica, já que este era um tema recorrente dos exercícios devido a riqueza de possibilidades de argumentos e contra-argumentos.2 Inicialmente chamada de “Querela do Romance da Rosa”, a discussão foi em torno da obra de Guillaume de Lorris, “Romance da Rosa”, escrita no século XII que em sua primeira parte exaltava a mulher, com poemas românticos que louvavam o amor, cujo enredo se baseava na história de um jovem que penetrava num jardim onde uma Rosa que estava para desabrochar e que se tornou objeto de seu desejo. Para chegar perto da Rosa ele contou com a ajuda de Bel Accueil que o defendeu contra os inimigos (Danger, Jalousie e Malebouche)3 que representavam sentimentos personificados, algo que era comum, neste tipo de literatura. Representante da lírica trovadoresca, a primeira parte do poema conta com cerca de quatro mil versos e não foi terminado. A segunda parte com cerca de dezoito mil versos foi escrita cinqüenta anos depois por Jean de Meun, que ironizou a primeira parte, mudando o tema e satirizando a sociedade humana. Misturando razão e fantasia ele pretendia fazer um retrato do período histórico, acrescentou outras personagens, Raison, Nature e Genius. Esta última era um padre que como homem, representava a intelectualidade. A conquista passa por estratégias racionais, desprezando as mulheres, dando espaço ao amor instintivo e não mais dando importância aos sentimentos e à imaginação. 2 MILOSCI, R. Os processos revolucionários das mulheres: experiências preparatórias da primeira e segunda onda do feminismo no Ocidente (on line) <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/cgibin/PRG_0599.EXE/11173_4.PDF?NrOcoSis=36063&CdLinPrg=pt> (Acessado em 11/10/2008) 3 Perigo, Ciúme e Maldição A obra logo se tornou clássica e todos os escritores notáveis do final da Idade Média de alguma forma se referiram a ela, suscitando as primeiras formas da crítica literária4, e sustentada nos círculos humanistas da época que haviam chegado à corte e à Universidade. Mais tarde essa discussão em torno do Romance da Rosa passa a ser vista como a primeira manifestação da Querelle de Femmes,5 debate que seguirá séculos depois até a Revolução Francesa. O cristianismo medieval colocou a diferença dos sexos como centro de suas reflexões antropológicas, por isso o debate sobre o Romance da Rosa acabou sendo tão relevante. Cristina aceitou a qualidade literária dos poemas de Meun, mas criticou a atitude que ele tinha diante das mulheres: “Que não me acusem de desatino, de arrogância ou presunção, de ousar eu mulher, opor-me e replicar a um autor tão sutil, nem de reduzir o elogio devido à sua obra, quando ele, único homem, ousou difamar e censurar sem exceção todo o sexo feminino6”. Esse debate se encontra no “L’Epistre au dieu d’Amours” (Carta ao Deus de Amor, 1399), a primeira obra de Cristina. A segunda parte do Romance da Rosa foi muito apreciada pelos universitários da época. Jean de Meun ao traçar o perfil feminino foi incisivo colocando as mulheres numa posição de fragilidade e inferioridade, fato que colaborou para que a misoginia fosse ainda maior na esfera do conhecimento, da qual as mulheres eram excluídas por serem consideradas menos capazes. O texto também foi inovador ao atribuir uma aura de superioridade para aqueles que freqüentaram a universidade, que passaram a ser vistos como detentores do conhecimento e por isso também do poder. Isso fortaleceu ainda mais a idéia do saber masculino, pois as mulheres foram excluídas deste campo. 4 DUBY, Georges O Roman de la Rose in: Duby, Georges Idade Média Idade dos Homens:do amor e outros ensaios. São Paulo, Companhia das letras, 2001. p.66-93 5 Segundo Joan Scott a querelle no século XV era um debate predominantemente literário e filosófico- dentro dos círculos masculinos- sobre as capacidades intelectuais das mulheres . (Conf. SCOTT, Joan W. “La querelle des femmes" no final do século XX (on line) <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200004> (acessado em 15/11/2007) 6 PIZÁN, Cristina Apud: DUBY, Georges (org.) ; PERROT, Michelle (org.) ; KLAPISCH-ZUBER, Christiane (dir.). História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Coimbra: Afrontamento, 1990 v. 2 p. 530 A Querelle des Femmes foi então um debate acerca da condição feminina que passou a ter lugar entre os debates da sociedade européia, tendo como “aporte os quadros sociais característicos do humanismo, Reforma e ContraReforma e passou a ser simultaneamente agente e fruto das mudanças do período”7. Tal debate é considerado pela historiadora Joan Kelly8 como um tipo de feminismo germinal, no sentido original do termo e que tem como principais características a oposição da dialética, a misoginia com base na idéia de Gênero – de forma muito semelhante ao conceito atual – e a possibilidade de universalização da questão que se baseia numa concepção geral da humanidade, questionando a idéia universal de humanitas que não incluía o sexo feminino. Alguns historiadores atribuem a Cristina de Pizán o início da Querelle, com sua obra “A Cidade das Damas”, em 1405. Em nossa pesquisa não reconhecemos Cristina de Pizán como “detonadora” da Querelle des Femmes, uma vez que o debate já fora iniciado. O que confere destaque a Cristina foi o fato de ela ter sido a primeira mulher a se envolver na Querelle e em sua obra “A Cidade das Damas” reivindicar a igualdade de capacidade intelectual para homens e mulheres e no que diz respeito à educação, tratou a diferença dos sexos como uma questão social. Figurando uma das mulheres que Virgínia Wolff chamou de “filhas de homens cultos”, Cristina de Pizán foi também educada por humanistas e se rebelou contra a sociedade que proibia a entrada das mulheres no terreno do saber. Ela intervém no debate sobre a Querelle não por questões literárias, morais ou filosóficas, mas pelo conjunto de argumentos condenatórios e insultantes para as mulheres que o Romance da Rosa continha. Reagiu contra a literatura misógina que havia desde a antiguidade e que alcança uma expressão generalizada em sua época. Não apenas denuncia este desprezo em relação às 7 SANTOS, Giovanna Aparecida Schittini dos. Humanismo, Direito e Gênero: pontos de intersecção num discurso do século XVI. (on line) http://ler.letras.up.pt.uploads/ficheiros/artigos9671.pdf (acessado em 10/10/2008) 8 KELLY, Joan. Early feminist theory and Querelle des Femmes, 1400-1789 in:Signs: Journal of Women in Culture and Society (Chicago: University of Chicago Press, 1975-). 8:1 (1982): 3-28. mulheres como também a situação de desamparo que as mulheres se encontravam perante este empreendimento por não terem acesso à cultura.9 Com o aparecimento das Três Damas no início do seu primeiro livro, ela declara sua insatisfação em ter nascido mulher, questiona Deus ter dado esse castigo de nascer em um corpo feminino e ela interpela com as três Damas Razão, Retidão e Justiça, sobre a condição feminina. “(...) Assim me desfazia em lamentações para Deus , aflita em minha tristeza e chegando em minha loucura a sentir-me desesperada, porque Ele me havia feito nascer dentro de um corpo de mulher”10. A Razão contribui para que Cristina desconfiasse de tudo o que os filósofos já haviam sentenciado até então sobre a inferioridade da mulher. Graças a sua formação cristã, ela conclui que se Deus é perfeito, ele não pode criar seres imperfeitos, inferiores e assim ela atinge uma igualdade primeira entre homem e mulher. A mulher não pode ser um homem imperfeito, incompleto, ela é igual, caso contrário, Deus não seria perfeito. “- Senhor como pode ser, como crer sem cair no horror de que tua sabedoria infinita e tua perfeita bondade poderiam criar algo que não fosse perfeito? Acaso não criou a mulher deliberadamente, dando-lhes todas as qualidades que lhes agradassem? Como poderia ser possível que se equivocasse? Sem dúvida aqui estão acusações juízos e condenações contra as mulheres”11. Segundo Cristina de Pizán Maria, a mãe de Cristo, foi quem redimiu os pecados de Eva por isso ela é a regente de sua cidade. Para Cristina há uma ligação direta entre o feminino e o plano divino e por isso ela defendia que os homens deveriam tratá-las bem e com respeito, a autora reconhecia a violência física e moral sofrida pela maior parte das mulheres de sua época e o fato das mulheres em sua maioria não terem acesso à educação da mesma forma que os homens por serem obrigadas a ficar em casa. O seu esforço em defender e demonstrar as virtudes feminina e a inovação em perceber a mulher, abriu caminho para uma discussão que ao mesmo tempo 9 WUENSCH, Ana Miriam Mundos Reflexionados: Filósofas através da história (on line) <http://www.crearmundos.net/primeros/Revista/Edicao01/Cuestiones/Cuest_Mulheres_Filo.html> (acessado em 11/10/2008) 10 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.65 (tradução livre) 11 Ibid. que defende uma mulher preparada para sobreviver sem a figura masculina de um pai ou marido, também defende que cada um dos sexos tem papéis específicos e complementares segundo a criação divina . “(...) Quis Deus que o homem e a mulher lhes sirvam de forma distinta, que se prestem mútua ajuda, cada um a sua maneira. Porque ele dotou aos dois sexos com a natureza e as qualidades necessárias para cumprir com seus deveres (...)”12 Em sua obra ela questiona a autoridade masculina dos grandes pensadores e filósofos que contribuíram para formar a tradição misógina e de como as mulheres além de serem a origem do mal eram tratadas como as possuidoras dos piores vícios da humanidade. Propôs com firmeza e segurança que o seu conhecimento podia lhe dar uma utopia um espaço próprio para as mulheres e reivindica uma genealogia de mulheres de capacidade e qualidades excelentes ao longo da história.13 A disposição funcional da Cidade das Damas foi uma invenção de Cristina que logo no início de sua obra preocupa-se em edificar um lugar onde as mulheres ficassem tranqüilas e sem inquietações cotidianas, sem dificuldades econômicas e principalmente onde as mulheres pudessem estar seguras, longe dos ataques misóginos. Ela introduz em seu texto exemplos de mulheres famosas como prova das qualidades especiais das mulheres e de sua importante contribuição para a humanidade14. A autora encontra um meio de repetir com insistência em seu texto as palavras “homem”, “varão” e “sexo feminino” e Cristina encontra novos meios de usar os referidos termos. Ela evitou utilizar a palavra homem em sentido abstrato e universal. Quando ela se refere aos dois sexos faz questão de frisar “o homem e a 12 Ibid. p.87 (tradução livre) WUENSCH, Ana Miriam Mundos Reflexionados: Filósofas através da história (on line) <http://www.crearmundos.net/primeros/Revista/Edicao01/Cuestiones/Cuest_Mulheres_Filo.html> (acessado em 11/10/2008) 14 LEITE, Lucimara. Christine de Pisan: uma visão da mulher medieval Mestrado em Comunicação e Semiótica PUC/São Paulo – 1999 - tese não pubicada p.58 13 mulher”ou vice e versa, “os homens e as mulheres” fazendo questão de introduzir o gênero feminino como parte integrante da humanidade.15 Cristina de Pizán defendia a moral feminina, ela queria ressuscitar o respeito pelas mulheres “que foram desrespeitadas em obras como A arte de amar, de Ovídio, o Romance da rosa e outras mais, que faziam parte da configuração de uma literatura suspeita, espécie de manual de conselhos para enganar e seduzir mulheres”16. Cristina de Pizán defendia o direito das mulheres à palavra, procurando, assim, restabelecer o sentimento de confiança no sexo feminino e combatendo as idéias correntes na época sobre a incapacidade feminina. 15 LEMARCHAND- Marie José Introducción in: PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.23-24 16 LEITE, Lucimara. Christine de Pisan: uma visão da mulher medieval Mestrado em Comunicação e Semiótica PUC/São Paulo – 1999 - tese não pubicada 3.2: A CIDADE DAS DAMAS E A DEFESA DA MORAL FEMININA. Cristina de Pizán elaborou seu ato de defesa da moralidade feminina como uma resposta à “Querelle des femmes”. Na cidades das damas ela se propôs a construir uma cidade que fosse povoada pelas mulheres mais virtuosas e sábias que já haviam existido e no governo desta cidade, adornada pelos mais magnificentes louvores, estava Maria, a mãe de Jesus, a rainha da Cidade das Damas. A cidade era uma nova visão que surgiria a partir da obra de Cristina, e que viria fundamentada no campo das letras: “Partamos para o campo das letras; é neste país rico e fértil que será fundada a Cidade das Damas, aí onde se encontram tantos frutos e doces rios, aí onde a terra abunda em todas as coisas boas”.17 Esta cidade fundada no campo literário, eternizava as vidas daquelas mulheres que fizeram parte de sua construção. O livro de Cristina de Pizán é a cidade das damas e as mulheres são pedras metafóricas que estão ali para configurar a construção desta cidade em uma defesa moral para as mulheres com suas histórias de vidas exemplares para qualquer época no passado, presente e futuro. As três Damas tiveram seus papéis definidos já no início do Livro: Razão seria a responsável por fazer as fundações e os muros, demonstrando claramente que a principal defesa desta cidade seriam os argumentos racionais. Retidão construiria as casas, palácios e templos, usando como material para essas construções as vidas exemplares de mulheres de diferentes épocas. Justiça terminaria a nova cidade, faria o acabamento e iniciaria o povoamento ao convocar as primeiras moradoras. Essas seriam mulheres que foram constantes em seu amor, refutando a corrente anti-matrimonial presente em sua época.18Assim, baseadas em vários exemplos que serviriam de modelo para a conduta moral das mulheres, elas dialogam elaborando um plano para 17 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.65 (tradução nossa) LEITE, Lucimara Christine de Pizan : uma resistência na aprendizagem da moral de resignação Doutorado em Língua e Literatura Francesa e Estudos Medievais. USP. Maio 2008 (tese não publicada) p.125 18 alcançarem seu objetivo que era a defesa da mulher e das capacidades femininas. Traçado o plano, Cristina começou a primeira parte de seu livro dedicandose a construção sob o comando de Razão, que a ajudou a marcar o terreno. Este terreno que como já vimos está no campo literário precisa ser limpo com respostas às argumentações misóginas. É o que ela fez dialogando com Razão defendendo as mulheres e demonstrando com exemplos porque elas merecem ser defendidas. E mais, em seu primeiro livro ao defender uma cultura intelectual refinada às mulheres e grandes senhoras, indica sua pretensão audaciosa em relação ao sexo feminino. Nesta primeira parte do livro, Cristina começou sua defesa do sexo feminino e a sua argumentação à “Querelle des Femes”. Foram destacadas mulheres instruídas, com habilidades e mulheres prudentes. Entre as que executaram atividades políticas e militares, destacamos a Imperatriz Nicaula da Etiópia, que foi muito poderosa; Fredegunda da França, que por astúcia, tirou seu filho dos braços dos inimigos; e a rainha Blanche, que governou a França na menoridade do filho e depois ocupou um lugar principal no conselho. Nestes exemplos, Cristina demonstrou que as mulheres têm capacidade de governar tão bem quanto qualquer homem. Ela afirmou que existem mulheres com prudência e com mentes esclarecidas para a política e para a justiça. Quando Cristina disse que alguns afirmavam que as mulheres têm corpos fracos e que eram covardes por natureza, Razão deu o exemplo de Aristóteles, que era feio e tinha um olho menor que o outro, porém foi um grande filósofo; e Alexandre, “O Grande” era muito baixo de estatura, mas isso não o impediu de conquistar boa parte do mundo conhecido na época dele. Além disso, as mulheres, por seus corpos serem mais delicados, são impedidas de fazer grandes atrocidades. Razão afirmou também – expondo sempre o humanismo - que as mulheres tinham o poder de amar a Deus e de adquirir conhecimento. Cristina de Pizán enfocou muito neste aspecto afirmando sempre que esse conhecimento não seria capaz de corromper os bons costumes. Segundo ela, algumas mulheres tinham menos conhecimento somente pelo motivo de que não se envolviam com algumas atividades mais comuns aos homens. Elas se dedicam exclusivamente aos afazeres domésticos. Para Cristina, estas mulheres conheciam tanto de justiça quanto um homem que vivia nas montanhas ou nas fazendas, ou seja, não por ignorância, mas por falta da experiência com o mundo externo ao lar e suas variadas ocupações. Razão segue com a construção dos muros apresentando para Cristina alguns exemplos de damas que foram instruídas e que chegaram a ultrapassar os homens na sabedoria. Como Cornificia, que foi mandada aos estudos e que se tornou uma excelente poeta e filósofa, chegando a ultrapassar o próprio irmão, Cornificius. Do mesmo modo, Proba, a romana, que se tornou mestre nas artes e escreveu poesia, dedicando-se à leitura de grandes poetas como Virgílio; adaptou-o, escrevendo uma grande obra intitulada "Cento”, composta por cem versos. Cristina também relembra Safo, cujos escritos são apreciados por diversos autores. Nossa autora chegou a comentar que Horácio relatou que quando Platão morreu, um livro dela foi encontrado debaixo do travesseiro dele. Cristina escreve que os homens gabam-se por terem feito inúmeras descobertas, mas estes esquecem que as mulheres também desvendaram muitos segredos da natureza e realizaram grandes feitos. É o caso de Nicóstrata, que fundou uma fortaleza num lugar onde os homens eram selvagens. Por esse motivo teve de criar leis e empregar a justiça. Ela estabeleceu o alfabeto latino e a introdução para a gramática. Cristina disse que alguns tolos crêem que essas mulheres extraordinárias são divindades, mas ela entende que elas viveram na terra e foram humanas. Destaca Minerva, considerada deusa pelos gregos e romanos; adquiriu muito conhecimento, de modo que contribuiu para a escrita grega. Também inventou os números. Além disso, ela foi a primeira a empregar recursos para se fazer roupas de lã, e, posteriormente, armaduras feitas com fios de aço. Minerva também foi a responsável pela técnica de extração de óleos de diferentes frutas, como a oliva e com seus conhecimentos elaborou instrumentos musicais. Ela conservou-se virgem a vida inteira e devido as grandes habilidades adquiridas, inclusive melhoramentos para o campo bélico, ela foi considerada a deusa da guerra pelos gregos. Cristina também relatou a importância de Ceres, que descobriu a arte de cultivar a terra. Isis, deusa dos egípcios, também é lembrada. Estes exemplos de mulheres extraordinárias serviram para Cristina mostrar que indivíduos do sexo feminino são muito capazes. Ela acreditava que os homens consideraram deusas essas damas somente pelo fato de elas serem especiais, como se mulheres normais não tivessem a competência para realizar grandes feitos. Cristina achava uma ingratidão os ataques dos homens as mulheres. Nessa primeira parte do livro, Cristina continua a relatar as “mulheres célebres” que compõem a obra de Boccaccio, as quais, segundo ela, devem também ser exaltadas. Para terminar a primeira parte de seu livro Cristina lembra as damas prudentes. Ela deu grande importância para a epístola de Salomão, que foi dedicada à prudência feminina. Ela menciona algumas rainhas importantes e prudentes da história, como Gaia Cirilla, a rainha Dido e a rainha Ops de Creta. Na segunda parte Cristina se deixou conduzir pela Retidão que a convocou; “ (...) agora venha comigo, pegue suas ferramentas e siga em frente. Misture a argamassa no seu pote de tinta, e então você poderá fortificar a cidade com sua caneta”.19 Iniciou a construção das torres, dos palácios reais e das nobres habitações. As mulheres que foram convocadas para traçar essas primeiras edificações foram as sibilas e profetisas, que com sua linguagem irão construir o mundo. Cristina começa relatando sobre as 10 sibilas que viveram em diferentes épocas, mas segundo ela, todas têm algo em comum: são mensageiras de Deus. Elas profetizavam a vinda de Cristo para os pagãos, e os criticavam por 19 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.155 (tradução nossa) adorarem os deuses, dizendo que só havia um Deus supremo. Erythrea é ressaltada porque teria escrito sobre Jesus. Profetizou a vida, a morte e a ressurreição de Cristo e a descida do Espírito Santo entre os apóstolos. Também escreveu sobre o Juízo Final dos cristãos. Evidenciamos que novamente Cristina oferece destaque a uma mulher que além de ser importante, conservou sua virgindade, pois a pureza corporal é muito apreciada por Cristina. Contudo, ela especifica que estas damas não eram as únicas a profetizar: Débora, no tempo dos juízes; Elizabeth, a virgem, e inúmeras outras, recebiam visões diretamente de Deus, segundo Cristina. Outro tópico referente à “Querelle des femmes” na segunda parte é o diálogo entre Cristina e Retidão a respeito dos homens que preferem ter filhos ao invés de filhas. Retidão afirma que isso aconteceu devido à simplicidade e ignorância dessas pessoas. Ela citou que os pais têm medo do custo que pagarão no casamento das filhas, ou seja, preferiam os filhos por motivo de vantagens financeiras. Ela ainda ressaltou que geralmente os filhos homens, quando ficavam ricos, desprezavam os pais pobres, e se os pais fossem ricos, eles esperavam a morte destes para que adquirissem a herança. Cristina segue exemplificando com mulheres que amaram seus pais e cuidaram deles. Nesta segunda parte outro ponto importante que encontramos é a importância do casamento. Refutando a corrente antimatrimonial presente na época. Como uma cristã, Cristina acreditava que a união entre um homem e uma mulher pelo casamento era apreciada por Deus. Através de Retidão, passou a mostrar exemplos de amor conjugal apresentados por mulheres ilustres. Estas amavam tanto seus maridos que os seguiam a vida inteira. Algumas, como Artemísia, chegaram a construir imensos túmulos para que sepultassem seus companheiros. Outras, como Argia, foram até os campos de batalha para procurarem pelos corpos de seus amados; cuidaram dos maridos quando estes estavam doentes. Cristina cita mulheres que fizeram de tudo por amor aos seus cônjuges, até morrer. Percebemos que houve o emprego de uma linguagem ”romântica” com que ela retratou essas histórias de amor. Cristina não pretendia que as mulheres tomassem o lugar dos homens, ela queria reabilita-las moral e intelectualmente. A mulher ideal de Cristina era cristã, bondosa, amorosa, delicada, casta ou virgem, entre outras qualidades. Não é uma guerra diretamente contra a masculinidade, mas é um reconhecimento, a retomada da honra e da moral feminina. Neste ponto nossa autora retoma a defesa da educação e do ensino para as mulheres, partindo do seu próprio exemplo, uma mulher que adquiriu tanto conhecimento e sabedoria e chegou a igualar-se aos homens.Como já vimos, ela acreditava na capacidade feminina provou isso à sociedade que reprimia as mulheres, negando-lhes oportunidade que Deus deu a todos os seres humanos, o direito de adquirir o Saber. Dando continuidade à questão das virtudes femininas, o diálogo entre Retidão e Cristina trata das mulheres que conservam a castidade e também homenageava as que guardavam a virgindade, dando suma importância para esse bem corporal e simbólico. Nossa autora citou diversos exemplos de mulheres que se mantiveram castas e puras, mesmo após a morte de seus companheiros. Assim, faz referência a Sara, esposa de Abraão; Rebeca, esposa de Isaac e Rute, a hebréia. Estas mulheres ilustram o Antigo Testamento, e foram modelos femininos de boa conduta. Diante da defesa da moral feminina Cristina tinha um estilo próprio quando argumentava a favor da castidade, diferente de seus opositores que colocam a castidade como única qualidade pertinente a uma mulher. "Al hombre muchas cosas le son necesarias; verbigracia: la prudencia, el bien hablar, la ciencia politica, la memoria, el talento, el arte de vivir, la justicia, la liberalidad, la magnanimidad y otras cosas que sería prolijo enumerar. Si le falta alguna de éstas parece menos de culpar, con que tenga algunas. Empero en la mujer nadie busca la elocuencia, ni el talento, ni la prudencia, ni el arte de vivir, ni la administración de la República, ni la justicia, ni la benignidad; en suma: nadie reclama de ella sino la castidad, la cual, si fuere echada de menos, es igual que si al hombre le faltaren todas. La castidad en la mujer hace las veces de todas las virtudes"20 . 20 L. VIVES, Formación(1010) apud. ______________________, A educação feminina. Entre as funções conjugais, o governo da casa e as práticas espirituais. (on line) <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo9671.PDF >(Acessado em 10/10/2008) L. Vives foi um escritor e redigiu estas palavras em 1322 refletindo o pensamento contemporâneo ao de Cristina de Pizán quando escreveu “A Cidade das Damas”. A castidade era a base de todas as virtudes femininas e esta virtude básica ligavam-se outras duas virtudes “femininas”como a honestidade e a vergonha, por sua vez. Estas virtudes estavam intimamente dependentes da piedade, já que "es en el sexo feminino preferente virtud la de la piedad, y por su propia naturaleza más inclinado a la devoción que el sexo masculino..."21 Cristina tem outra visão da castidade. Manter-se virgem ou casta, fechando-se em seu próprio corpo sem ter relações sexuais com seu marido ou amante era um estilo de vida capaz de trazer para as mulheres um encontro consigo mesmas, um único modo de libertar as mulheres das amarras dos deveres conjugais e de tudo que a vida tinha para lhes oferecer em forma de prisão, como os sofrimentos recorrentes das gravidezes e dos partos, além da submissão que se esperava de uma mulher mesmo quando o marido fosse violento, algo que era muito comum nesta época em que os homens tinham autoridade e plenos poderes sobre as mulheres. Ela também recomenda que as mulheres casadas não se sintam menos dignas que as virgens, por estarem submetidas aos seus maridos, “porque o interesse próprio nem sempre reside em ser livre”22 Para Cristina de Pizán, a castidade é uma virtude feminina soberana, por isso ela citou em sua obra muitas mulheres que preferiram a morte a renunciar a pureza citando exemplos bíblicos. Quanto ao tema da possível inconstância feminina, que Cristina declarou ser mais um ponto utilizado como argumentação por aqueles que atacavam as mulheres, Retidão responde relembrando a inconstância de diversos imperadores romanos, como Nero, que praticaram todos os tipos de vícios, inclinando-se a loucura e crueldade. Nossa autora chegou a fazer uma pequena menção à conduta eclesiástica, num tom crítico. 21 L. VIVES, Formación (1089) apud. ______________________, A educação feminina. Entre as funções conjugais, o governo da casa e as práticas espirituais. (on line) <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo9671.PDF >(Acessado em 10/10/2008) 22 PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.273 (tradução nossa) Cristina alegou que muitos atacavam as mulheres dizendo que eram inconstantes, no entanto, eles não lembravam que eram poucas as mulheres perversas encontradas nos escritos, sendo que os exemplos masculinos de crueldade abundavam na história mais do que os femininos. Ao final da segunda parte do livro Cristina deteve-se em descrever o imenso amor que as mulheres carregam consigo23. Menciona o amor de Dido, de Medea, Thisbe, Hero, Ghismonda, Lisabetta; mulheres que sofreram, choraram e morreram por amor; mais modelos de boa conduta feminina. Ela confirmou também a generosidade nata como mais uma virtude feminina, mulheres que deram suas riquezas para ajudar os necessitados. Na seqüência de seu texto, Cristina convocou as damas de seu tempo para que povoassem a mais nova cidade recém fundada, a Cidade das Damas: convidou Isabela da Bavaria, a rainha da França; a Duquesa de Berry; Valentina Visconti, a duquesa de Órleans; a Condessa de Clermont, entre outras personalidades de suas época. Cristina pretendia confirmar o sucesso de seu trabalho de construção de um novo pensamento sobre a mulher e para isso ela pedia auxilio das personagens femininas mais importantes de seu tempo. Ao fim da segunda parte do livro, Cristina declara que a Cidade das Damas está finalizada e pronta para ser povoada. Dirigindo-se às mulheres de todas as condições, que amaram, amam ou amarão a virtude e a sabedoria, sua cidade não se situou em um tempo ou um lugar, ela era eterna, existiria enquanto houvessem pessoas que tivessem acesso ao seu livro, à escrita Finalmente, na última parte de seu livro Justiça, que iria fortificar a cidade guiou Cristina. Maria, Mãe de Jesus Cristo foi coroada como rainha e as escolhidas para figurarem como imperatrizes foram Maria Madalena e as irmãs de Maria. Neste momento também foram escolhidas as intercessoras que seriam as santas mártires. 23 Ibid. p.225-240 Dedicada a vida contemplativa, nesta última parte do livro Cristina apresenta as santas como mulheres independentes e auto-suficientes, mulheres que só se casaram com Deus rejeitando a submissão ao sexo masculino. A ela não interessava o travestismo, ela não queria que as mulheres de sua Cidade se vestissem ou se portassem como homens e sim que elas aparentassem o que eram realmente, mulheres. “A mulher deveria se apropriar deste mundo sem deixar de ser mulher, só assim teria mérito. Essa é uma das extraordinárias lições de nossa autora”.24 Embora ela também faça referências às mulheres que amavam e auxiliavam seus maridos é a castidade que significava para as habitantes da Cidade das Damas tanto força quanto independência. A virgindade era uma marca de fama e auto-realização das mulheres que fora do jugo matrimonial renunciaram aos papéis tradicionais de esposas e mães para que vivessem segundo suas próprias vontades e julgamentos. Balizadas pelo pensamento cristão não seriam conduzidas ao mau caminho em suas escolhas. Nossa autora convoca a todos que encarem sua cidade como um refúgio, uma fortaleza e principalmente como um exemplo de virtudes. Em seguida ela se dirige a todas as mulheres segundo seu estado civil, casadas, solteira e viúvas, e vai além desta categorização ela estendeu seu discurso a todos os estamentos sociais, pedindo-lhes que tomassem cuidado com as armadilhas que pudessem vir a seduzi-las. Cristina de Pizán ofereceu seus manuscritos ao duque de Borgonha Juan Sem Medo e o dedicou ao Duque de Berry, considerando que os primeiros destinatários, que ajudariam no processo dessa mudança de mentalidade acerca do papel feminino, seriam os homens. Como explica Razão no princípio do livro, “O homem é duplamente ingrato: não reconhece a contribuição da mulher ao progresso da humanidade nem tão pouco o agradece.”25 Reconhecemos que a obra “A Cidade das Damas” tem um grande significado histórico devido ao contexto em que foi escrito. Cristina foi uma mulher 24 LEMARCHAND- Marie José Introducción in: PIZÁN, Cristina La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001 p.48-50 25 Ibid.p.41-44 douta que escreveu, falou e descreveu, enfrentando o tabu de que “as mulheres não devem falar, porque seus lábios levam os estigmas de Eva cujas palavras selaram o destino do homem”, como proclamou o Papa Honório III quando ordenou que os bispos de Valência e Burgos proibíssem a palavra do púlpito às abadessas.26 Cristina enfrentou o desafio de promover, elevar e levantar como uma verdadeira fortificação a imagem do corpo feminino saudável e harmonioso, como fonte inesgotável de confiança. Ela fez com que as mulheres percebessem as experiências a partir delas mesmas e de seus próprios corpos para que pudessem argumentar contra as acusações e os estereótipos da incapacidade e da inferioridade feminina. 26 Ibid. p.51 CONCLUSÃO Cristina de Pizán foi uma mulher incomum para sua época. Ela se autointitulou a primeira escritora profissional, uma vez que se sustentava, graças à venda de suas obras, mas Cristina é mais do que isso. Podemos declará-la como uma pioneira e ainda como uma lutadora, pois ao escrever o livro “A Cidade das Damas” ela mesma usou sua pena como arma; e arma de defesa. Ela defendeu o sexo feminino das acusações que vinha sofrendo ao longo de centenas de anos e apontou as causas culturais para as diferenças de papéis de homens e mulheres na sociedade. Cristina vislumbrou com firmeza e segurança uma utopia, um espaço próprio para as mulheres e reivindicou uma genealogia de mulheres valorosas e de qualidades excelentes ao longo da história. Seu livro adotou uma forma alegórica e dialógica, com a presença de três personagens femininas, a Razão, a Retidão e a Justiça, que aparecem para Cristina e lhe propõem a construção de uma cidade para as mulheres. Os materiais e as defesas desta cidade imaginária são as próprias mulheres excelentes. Como diz Maureen Quilligan, trata-se de uma verdadeira alegoria da autoridade feminina, que permitiu a Cristina de Pizán revisar a história e ir incorporando todas as figuras femininas, desde as amazonas e outras personagens mitológicas até princesas e grandes damas da França, suas contemporâneas, passando pelas Sibilas, as mulheres ilustres e fortes da Antigüidade, as mártires, entre tantas outras. Cristina de Pizán saiu do lugar que lhe era destinado dentro da sociedade para mover-se em um meio masculino. Primeiro quando pleiteou seus direitos e tentou recuperar seus bens, sem sucesso, decidiu escrever como forma de sustentar sua família. Continuou assim entre homens, devido ao fato das letras, assim como o direito, serem domínios masculinos por excelência no Medievo. A vida e a obra dessa mulher explicam-se mutuamente, pois suas experiências pessoais, a dificuldade enfrentada quando ficou viúva, bem como o feito de enfrentar o mundo masculino e trabalhar nesse meio, a levaram a refletir sobre a situação de inferioridade e subordinação das mulheres na sociedade levando-a a questionar o porquê dos constantes ataques de homens renomados como Ovídio e Boccaccio. Usando sua pena como arma, ousou defender suas “irmãs de condição”, fazendo dessa defesa tema de sua obra. Sua cidade-refúgio é seu próprio livro que faz com que mulheres de diferentes religiões, épocas e etnias possam comungar seu pensamento transhistórico. Ele não está no passado ou no futuro longínquo. A realidade de sua utopia consiste na grande verdade de que enquanto houver pessoas com acesso ao seu livro a cidade das damas servirá novamente de abrigo, pois ela contém os exemplos perfeitos para que todos tenham como modelo a conduta daquelas que serviram como pedras de construção e das suas nobres habitantes. Cristina de Pizán soube mover-se entre os limites que foram impostos a seu sexo.Graças a sua educação privilegiada ela conseguiu tornar-se uma escritora prestigiada e mais do que isso ela conseguiu fazer com que ouvissem sua voz no domínio literário, este que era um reduto exclusivamente masculino em sua época. Cristina de Pizán não apenas escreveu, mas precisava escrever, uma vez que foi da venda de seus livros que dependeu o sustento de sua família, já que ela perdeu sua herança quando o marido morreu, fazendo assim de sua capacidade intelectual, sua ferramenta profissional. Ela precisou se “aventurar” neste mundo de dominação masculina, legitimando a experiência das mulheres, suas expressões artísticas e intelectuais através do seu livro “A Cidade das Damas”. Mesmo quando ela propôs a obediência feminina como uma virtude, ela também pregou uma ruptura dentro dessa relação de submissão quando ao insistir no direito da mulher ter o mesmo nível de educação dos homens. Ela não defendia homens e mulheres fossem iguais, reconhecendo que Deus os fez para diferentes funções, mas defender a honra feminina, pois nada que Deus pudesse ter feito poderia ser assim tão mal como diziam os detratores das mulheres. Defendendo o direito das mulheres à palavra, a autora procurou restabelecer o sentimento de confiança no sexo feminino e combater idéias correntes na época. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Lélia. Mulheres que escrevem sobre mulheres que escrevem. 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