O SENTIDO PEDAGÓGICO DO MST: A FORMAÇÃO DE SUJEITOS
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O SENTIDO PEDAGÓGICO DO MST: A FORMAÇÃO DE SUJEITOS
1 O SENTIDO PEDAGÓGICO DO MST: A FORMAÇÃO DE SUJEITOS HISTÓRICOS Sandra Luciana Dalmagro1 Ponencia presentada no Congresso Lifelong Citizenship Learning, Participatory Democracy and Social Change. Transformative Learning Centre, University of Toronto, Nov. 2003 Resumo Neste artigo procuramos analisar alguns aspectos da luta de um dos movimentos sociais populares de maior relevância hoje no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST. Inicialmente traçamos um perfil dessa luta, focalizando sua dimensão e seu sentido pedagógico. Em seguida, descrevemos, em linhas gerais, a educação escolar desenvolvida pelo Movimento tendo por base seus pressupostos pedagógicos. Evidencia-se então que o MST objetiva a transformação social, voltando sua ação para a superação da sociedade burguesa e a construção do socialismo. Assim, em seu papel de sujeito educador, o MST busca, não só por intermédio da escola mas também através da própria luta empreendida pelo Movimento e pela dinâmica criada em seu interior a participação ativa do sujeito na construção da história. Palavras-chaves: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Pedagogia do MST; Transformação Social. Introdução 1 Do Setor de Educação do MST e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. 2 Os Movimentos Sociais Populares vêm constituindo-se, no mundo todo e especialmente no Brasil, em importantes espaços de humanização e luta por condições dignas de vida. Nos países do chamado “terceiro mundo”, onde predominam altos índices de pobreza, exploração do trabalho e exclusão social, contrastando com os indicadores de concentração de riqueza e poder em mãos de uma minoria, esses movimentos adquirem forte conotação de classe, aglutinando milhares de pessoas na busca da sobrevivência e condições melhores de vida. Neste processo, os movimentos sociais populares cumprem um papel efetivamente educativo. Observando a cultura política brasileira, evidenciam-se as marcas do colonialismo, coronelismo, paternalismo e repressão, as quais funcionam como verdadeiras barreiras da participação popular. Os movimentos sociais têm se apresentado, assim, como fecundos espaços de politização, participação social e empoderamento2 popular, formando sujeitos. Na história da luta pela terra no Brasil destacaram-se diversos movimentos tendo por objetivo a democratização do acesso à terra, a qual atinge nesse país um dos maiores índices de concentração do mundo. Na atualidade, essa luta ganha maior radicalidade e reacende o debate em torno da Reforma Agrária e de uma nação justa, com a atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Este se apresenta como importante movimento de luta pela terra, articulada à defesa da cidadania, da soberania, de valores humanistas, da participação popular, da ecologia, da educação, da saúde, de relações igualitárias de gênero, vinculando-os à luta por uma sociedade nova. Fundado em 1984, o MST está organizado em praticamente todo o território nacional, e nesses vinte anos a luta pela terra possibilitou o assentamento3 de cerca de 300 mil famílias em mais de 16 milhões de hectares. Em sua trajetória, o MST conseguiu consolidar-se como movimento fortemente organizado, conquistando importante espaço político na sociedade brasileira, apoio e simpatia popular. Esta organicidade permitiu ao 2 O termo aqui indica um processo pelo qual o povo vai adquirindo poder por meio de lutas sociais. A ocupação de latifúndios constitui a principal forma de luta do MST. Da ocupação decorrem os acampamentos, quando a posse da terra encontra-se em disputa. Esses têm como marca as barracas de lona preta que indicam a provisoriedade daquela situação – que pode perdurar alguns anos, uma vez que as famílias ainda não podem plantar e organizam aquele espaço de forma improvisada enquanto lutam pela desapropriação da área. Os assentamentos se caracterizam pela posse definitiva da terra por parte das famílias que estiveram acampadas, as quais extraem dali sua subsistência, organizando a moradia, o trabalho e o conjunto de suas vidas. 3 3 Movimento edificar uma dinâmica própria no que se refere à vida das famílias assentadas e acampadas, propiciando a formulação e a concretização de políticas que dizem respeito à produção agrícola, à educação, à saúde, entre outras. Este texto pretende analisar, de forma breve, alguns aspectos da educação e do caráter pedagógico do MST, inseridos no contexto das lutas por ele empreendidas em sua trajetória. Para tanto, buscaremos subsídios basicamente em Caldart (2000) que se debruçou especificamente sobre o caráter pedagógico do MST. Para esta autora, é no seio da própria luta empreendida pelo Movimento que devemos analisar sua dimensão e seu sentido pedagógico. O MST é educador dos sem-terra ao colocá-los em ação, em luta, tornado-os sujeitos históricos. Há também no Movimento uma preocupação específica com a dimensão da educação política e técnica, além da escolar que diretamente nos interessa. Neste aspecto, esse movimento social desenvolve uma concepção e uma prática de escola inovadora e profundamente vinculada à sua própria dinâmica e aos seus objetivos. 1) A luta do Movimento Sem Terra A política desenvolvida no Brasil durante os séculos de colonização portuguesa, assim como as políticas posteriores dos governos republicanos até os da “moderna democracia” produziram uma alta concentração fundiária e um imenso contigente de excluídos da terra: os sem-terra. Isso condicionou o surgimento de diversos movimentos e conflitos desencadeados pelos pobres do campo no decorrer dos quinhentos anos de história do país.4 Todos esses movimentos, porém, foram duramente reprimidos e, em razão de fatores diversos, como sua natureza e amplitude, não tiveram êxito em desencadear uma distribuição de terras que viesse alterar a estrutura fundiária brasileira. Assim, um problema econômico e social que se delineava há mais de duas centenas de anos e se apresentou explicitamente há algumas décadas em toda sua complexidade, não foi, em nenhum momento, merecedor de políticas que encaminhassem sua solução. É interessante observar na história brasileira a passagem do predomínio econômico da agricultura para a supremacia industrial ocorrer 4 sem grandes conflitos. Isso decorre especialmente da Podemos citar os conflitos de terras indígenas; a organização dos negros nos quilombos; os movimentos de Canudos; Contestado; as Ligas Camponesas, dentre vários outros mais localizados e menos conhecidos. 4 metamorfose que transformou os donos de terra em donos da indústria, isto é, a mudança na base econômica não alterou a elite dominante. O capital industrial e financeiro, no Brasil, é atrelado ao latifúndio. De modo geral, isso indica também porque nosso país não realizou a Reforma Agrária, marco de diversas nações capitalistas durante o período de sua industrialização. Assim, a problemática agrária nacional5 se perpetuou e suas conseqüências para a população rural, em vez de serem amenizadas com o passar dos anos ou décadas, adquirem características novas e reaparecem com força maior. Fruto desse processo histórico é o Movimento Sem Terra, decorrente da atualidade da questão agrária brasileira e da consciência política adquirida pelos pobres do campo. Para muitos seria inimaginável um movimento de camponeses assumir as proporções que tomou o MST, considerado por vários estudiosos o maior movimento de enfrentamento ao capital no Brasil e mesmo na América Latina. Este é o sentido da luta do MST que nos interessa captar, isto é, seu direcionamento contra o capital e a concentração da terra, e não simplesmente de enfrentamento ao latifúndio. A Reforma Agrária defendida pelo MST não se faz pela inclusão do sem-terra na sociedade capitalista, mas pela própria edificação de uma sociedade sem exploração e desigualdade social. Analisando a trajetória do Movimento Sem Terra, é possível identificar que ele nasce com caráter de classe, de luta contra o capital, buscando edificar uma sociedade “nova”, mas na gênese do MST essas lutas não adquiriam a centralidade que ora assumem. Para explicá-las, é preciso ampliar o foco de análise, tendo como pano de fundo o modelo econômico brasileiro. Evidencia-se então, nos últimos anos, o atrelamento da economia nacional aos interesses do grande capital internacional e a imposição de um modelo agrícola que inviabiliza a pequena produção. Soma-se a isso a incompatibilidade de realizar a Reforma Agrária com o padrão de (sub)desenvolvimento adotado. Dessa forma, o eixo das lutas passa a se dirigir ao modelo econômico e agrícola e suas implicações no conjunto 5 O último Censo Agropecuário realizado pelo IBGE (1995/96), indica que o Brasil possui mais de 4,5 milhões de famílias sem-terra. O índice de Gine - que mede a concentração da terra - é de 0,856, considerado muito elevado e se mantém estável há vinte anos. Isso significa que a estrutura da propriedade da terra no Brasil não foi alterada em todo esse período. A análise de dados durante o governo Fernando Henrique Cardoso demonstrou a continuidade da concentração da terra. Nos últimos dez anos, 21,2% das pequenas 5 da sociedade. O MST percebe que a falta de interesse das elites na realização da Reforma Agrária, a negação dos direitos básicos dos sem-terra e da população brasileira, de modo geral, decorre de um projeto que não é apenas das elites nacionais – estas ao mesmo tempo que o assumem a ele se submetem -, mas um projeto comandado pelos organismos internacionais a serviço do grande capital internacional que leva à concentração das riquezas (de toda espécie) de forma jamais vista.6 Dessa conjuntura (estrutura) deriva a compreensão de que a Reforma Agrária somente poderá ser realizada em outro contexto/modelo político e econômico. Para o modelo neoliberal, a Reforma Agrária não se faz necessária. Assim, a luta do MST, sem perder o caráter de luta pela terra e contra o latifúndio, dirige-se centralmente para a derrota do modelo neoliberal e para a construção de um “projeto popular para o Brasil”. O Movimento passa a se posicionar na política nacional também em relação a aspectos não estritamente vinculados à agricultura. Toma partido contra as privatizações, solidariza-se de forma atuante com a luta de outras categorias de trabalhadores, assume candidaturas aproximadas com seu projeto, realiza ações combinadas com outras entidades e juntamente com outras organizações desencadeia a discussão e formação de um novo modelo de desenvolvimento nacional. Este deve ter como base a distribuição da terra e da riqueza, a recuperação da soberania nacional, o controle sobre os bancos e o capital financeiro e a reorganização da produção industrial e agrícola. O Estado deve estar colocado a serviço da população, efetivando-se a democracia popular. A comunicação, a educação, a saúde e a cultura devem ser humanizadas, atualizadas e democratizadas. Estes seriam, dentre outros, os pilares necessários à construção de um modelo justo e sustentável (Consulta Popular, Cartilha n. 11, 2001). unidades produtivas (menores de 20 hectares) deixaram de existir. Em números absolutos, isso significa o desaparecimento de 705 mil pequenas propriedades agrícolas (Christoffoli, 2000). 6 Para ter uma idéia da concentração de renda na atualidade, pode-se comparar a fortuna das 225 pessoas mais ricas do mundo (cerca de 1 trilhão de dólares), com a renda dos 47% mais pobres da população mundial (2,5 bilhões de pessoas) (Sader, 2000). Ainda segundo esse autor, “para ter uma idéia desses recursos concentrados nas mãos de tão poucas pessoas é bom compará-los com as carências do mundo na virada do século. A estimativa necessária para garantir e manter o acesso universal ao ensino básico, a atenção básica de saúde para todos, a atenção de saúde reprodutiva de todas as mulheres, a alimentação suficiente para todos e água limpa e saneamento para todos é de cerca de 44 bilhões de dólares ao ano. Isto é, cerca de 4% da riqueza conjunta das 225 pessoas mais ricas do mundo” (Sader, 2000 :82). 6 A luta pela superação do modo de produção capitalista busca a construção de outra sociedade. Não basta negar o capital, é necessário afirmar/indicar outros parâmetros de organização social em seu lugar. Esse desafio aparece para o MST quando da implantação dos assentamentos. A conquista da terra não desvincula o sem-terra da Organização, os assentados continuam parte do Movimento7. Isso gera uma demanda nova além da luta pela terra. É preciso organizar a produção, a comercialização, a moradia, a escola, a saúde, as relações humanas e o conjunto da vida nos assentamentos. E isso tudo sob dois aspectos: o primeiro tem relação com o fato segundo o qual diversas dessas condições não se encontram disponibilizadas no meio rural de forma decente, principalmente para a população pobre. O segundo aspecto é o jeito de ser/natureza do MST que se sobressai e orienta os assentamentos, ou seja, os sem-terra não pretendem qualquer forma de organização ao chegarem na terra, mas desejam organizar a vida de forma nova, buscando o desenvolvimento integral do ser humano. Assim, no campo econômico, busca-se consolidar a produção ecológica, com aproveitamento racional dos recursos naturais, privilegiando mercados populares, preservando a qualidade dos produtos, etc. No que diz respeito à educação, esta deve levar em conta as necessidades concretas dos assentados e da população do campo articuladamente com os avanços científicos e a complexidade da vida humana. É preciso ainda desenvolver um projeto diferenciado de saúde, engajar-se na luta pela participação feminina, promover um maior intercâmbio entre as pessoas que vivem no meio rural, evitando o típico isolamento de quem reside no campo, entre outros aspectos. Enfim, a vida nos assentamentos deve ser organizada de forma que potencialize a capacidade de humanização e de relações equilibradas entre homem – natureza. Busca-se elevar o nível de consciência social dos assentados, construindo alternativas de convivência entre os seres humanos e novos parâmetros de desenvolvimento para o meio rural. Em razão da necessidade de organizar a vida das famílias criam-se os setores do MST: educação, saúde, produção, relações de gênero, formação política, comunicação, 7 Para Fernandes (2000), a incorporação dos assentamentos na luta do MST decorre da própria lógica de desenvolvimento do Movimento. “A conquista da terra não é o fim da luta, é sempre um ponto de partida. Os sem-terra foram aprendendo na caminhada que quem só luta pela terra tem na terra o seu fim. Perder o vínculo com a organização dos trabalhadores é cair no isolamento. É justamente a organização que abre caminho para o avanço da luta. Somente por meio de um forte movimento, os sem-terra transformarão a luta pela terra em uma luta pela reforma agrária” (:85). 7 entre outros. Segundo Caldart, é propriamente após a conquista da terra que “emerge” a identidade Sem Terra, uma vez que, mesmo com a terra (ou também por causa dela), os assentados continuam se identificando como Sem Terra, isto é, não como sujeitos que apenas sentem a falta da terra, mas que, no embate por ela, fazem-se sujeitos históricos, adquirem identidade de luta, recolocam a questão ética e, com perspectiva de futuro, seguem em marcha. Sem Terra é uma identidade que, enraizada nas suas próprias tradições culturais de trabalhador da terra, recriou sua identidade porque a vinculou com uma luta social, com uma classe, e com projeto de futuro (Caldart, 2000 :25) Por isso, Sem Terra no Brasil hoje, é mais do que uma condição social a ser superada (a de não ter a terra); é uma identidade construída como acúmulo histórico de muitas lutas sociais, é uma identidade a ser cultivada e deixada como herança (idem :258). A articulação destas dimensões da luta do MST, ou seja, a luta pela terra, pela Reforma Agrária, pela superação do capitalismo e aliada à necessidade concreta de organizar a vida de milhares de famílias nos assentamentos indica a expansão dos aspectos com os quais o MST se relaciona e a complexidade das implicações de sua luta. O Programa de Reforma Agrária do Movimento reflete esta dinâmica. Trazemos aqui alguns de seus eixos fundamentais: modificar a estrutura da propriedade da terra; subordinar a propriedade da terra às necessidades do povo; garantir a segurança alimentar e a eliminação da fome; desenvolver uma política justa de preços, crédito e seguro agrícola; industrializar o interior do país, gerando empregos e desenvolvendo as regiões; desenvolver a agricultura de forma auto-sustentável; desenvolver o meio rural de forma a garantir vida digna, educação, cultura e lazer para todos; desenvolver uma política pública de preservação e controle das águas; produzir alimentos saudáveis; lutar contra os transgênicos e o patenteamento das espécies vivas; delimitar o tamanho da propriedade agropecuária e desapropriar os latifúndios; legalizar e demarcar as terras indígenas, dos remanescentes dos quilombos e dos trabalhadores rurais; extinguir as políticas de colonização; apurar os crimes cometidos contra os trabalhadores rurais em conflitos por terra, entre outros (MST, Normas Gerais do MST, 2001). 8 Em síntese, podemos dizer que a luta pela terra e sua conquista imediata é o que move o sem-terra. Mas a experiência desta coletividade organizada no MST identifica que apenas a distribuição da terra não é capaz de resolver os problemas dos pobres do campo. É necessária a realização de uma Reforma Agrária ampla. A eleição de Lula presidente da república foi um claro sinal de que a população brasileira está ansiosa por mudanças profundas nos rumos do país. Isto criou um quadro favorável à realização da Reforma Agrária e à elaboração de um Plano Nacional significativo, que aponta melhorias importantes nessa área. Porém, como já mencionamos, a realização de uma efetiva Reforma Agrária pode provocar fortes rupturas na estrutura de poder do país e no conjunto da economia. Por isso, o governo tem enfrentado muita resistência para poder concretizá-la. Sua implementação, articulada com a diminuição das desigualdades sociais e o resgate da soberania nacional, entretanto, é condição fundamental para que o governo Lula corresponda aos anseios do povo que o elegeu. 2) O sentido educativo do MST Compreendemos por educação, de uma maneira geral e ampla, o processo de formação dos seres humanos, por intermédio do qual as pessoas aprendem a conviver (inserir-se) numa determinada sociedade, incorporando e modificando suas regras, ao mesmo tempo em que conformam e transformam a si mesmas. “O supremo ideal do processo educativo como um todo é fazer do indivíduo um membro da sociedade” (Figueira, 1985 :15). Há para cada época histórica, portanto, “aquilo que é mais apropriado para se aprender e para se ensinar. Uma época determinada não ensina uma qualquer coisa, um corpo qualquer de saber. Ensina aquilo que pode e deve ensinar” (Figueira, 1985 :13). O ensinar nasce, portanto, “com as relações reais dos indivíduos”. Cada período histórico precisa formar o homem necessário para sua época. Ao capitalismo interessa que os homens aprendam a viver sob condições determinadas: as relações sociais burguesas. Todavia, as relações humanas, e a educação como parte destas, não são um campo imóvel ou homogêneo. Compreendida no seio das relações sociais, a educação é espaço de disputa política entre as distintas classes que compõem determinada sociedade. É espaço de conflito de interesses diversos e antagônicos: a manutenção da ordem ou a transformação / 9 superação da sociedade vigente e a consolidação de novas relações sociais. A formação humana ocorre nesse embate entre forças distintas. A luta de classes, os interesses diversos, os conflitos alteram a sociedade, modificam as formas de viver. O ser humano precisa adaptar-se às formas que vão surgindo, isto é, formas que coletivamente vão sendo criadas. Precisa aprender a viver de “novo” jeito. Deste modo, a educação se processa fundamentalmente na mudança, nas contradições, nos embates e não apenas no estável, seguro ou no que se difunde como “correto” e perfeito. O próprio ato de educar-se pressupõe mudança, alteração, incorporação de elementos e ações novos. O Movimento Sem Terra é um importante movimento, na atualidade, de enfrentamento ao capitalismo e de construção de novas formas de organização e convívio social, como indicamos anteriormente. É o cenário onde novas relações entre as pessoas vêm sendo construídas e exercitadas e, portanto, onde um processo de educação / formação humana vem se desenvolvendo na contramão do capital, decorrente do embate com este. O MST volta sua ação para a transformação social: a superação da sociedade burguesa e a construção do socialismo. É do caráter do MST a luta pela terra, pela Reforma Agrária e contra o capital. Por isso, “ser Sem Terra é não aceitar ser esmagado”8, é estar alerta e permanentemente em luta. A ação e a educação decorrentes da participação no MST dirigem-se para a transformação social, cujos sujeitos aprendem estando presentes e participando de sua história.9 Esse processo educativo é exercitado no presente e não algo que se dirige apenas para o futuro. A vivência de novos valores, de novas bases nas relações humanas já vêm sendo construída no cotidiano dos assentamentos e acampamentos, nas cooperativas10 organizadas pelo MST. A coletividade Sem Terra vive (ainda que na forma de ensaio, turbulento, conflituoso) novas relações. O Movimento não apenas projeta relações humanas diferentes das burguesas, forja-as. Não apenas quer 8 Fala de uma Sem Terra, refletindo sobre o papel educativo do MST, novembro de 2001. A idéia de que o MST constitui-se em sujeito educador, isto é, de que ele possui uma pedagogia é originalmente desenvolvida por Caldart, 2000. 10 Referimo-nos às cooperativas de produção agropecuária, as quais se destacam pela geração de processos profundamente participativos e educativos em seu interior. Caracterizam-se pela posse coletiva da terra; pela organização cooperada do trabalho; pela direção política coletiva; pela preocupação com a escolaridade, saúde, lazer, cultura, ética; pelo envolvimento participativo de todos os seus membros desde as crianças, mulheres, jovens e idosos; pela busca de atualização e novas tecnologias, entre outros aspectos. Sobre o papel educativo destas cooperativas ver: Dalmagro (2002) e Vendramini (2002). 9 10 construir novas mulheres e homens, mas os forma com valores humanistas e socialistas no dia a dia, em sua dinâmica. Para o MST, a sociedade do futuro deve ser construída desde já. Nos princípios da educação no MST, que se referem mais diretamente às escolas, aos cursos de formação e encontros, é explicito o direcionamento da “educação para a transformação social”. A educação no MST é “um processo pedagógico que se assume como político, ou seja, que se vincula organicamente com os processos sociais que visam à transformação da sociedade atual, e à construção, desde já, de uma nova ordem social, cujos pilares principais sejam a justiça social, a radicalidade democrática e os valores humanistas e socialistas” (MST, Caderno de Educação n. 8, 1997 :6). É uma proposta educacional com clara postura “de classe”, visando à formação crítica dos trabalhadores em relação à sociedade vigente. Uma formação voltada à capacidade de organização dos assentados e à construção do projeto nacional popular. Propondo-se fortalecer a consciência de classe, o projeto educacional prevê que todos devem ter acesso à educação e à escolarização nos diversos níveis, capacitando-se técnica e politicamente. Como sujeito pedagógico ou agente educador dos sem-terra, o MST “atua intencionalmente no processo de formação das pessoas que o constituem” (Caldart, 2000 :199). Essa intencionalidade pedagógica está no “caráter do MST” e se expressa em seus “objetivos, princípios, valores e jeito de ser”. Na reflexão dessa autora, os Sem Terra se educam enquanto tal sendo do MST, ou seja, fazendo parte de uma coletividade, da qual, ao mesmo tempo em que são por ela formados, dela também são construtores. Possuindo uma dinâmica própria, um movimento dentro do Movimento, que é construtor da identidade e da coletividade Sem Terra, o MST caracteriza-se como sujeito educador, ao mesmo tempo em que essa dinâmica caracteriza o jeito de ser do Movimento. Caldart delineia cinco “matrizes educativas” que, ao constituírem o jeito de ser do Movimento, atuam na formação do sem-terra: a Pedagogia da Luta Social, a Pedagogia da Organização Coletiva, a Pedagogia da Terra, do Trabalho e da Produção, a Pedagogia da Cultura e a Pedagogia da História. Essas pedagogias constituem-se como matrizes educativas uma vez que o MST as utiliza largamente em sua dinâmica, em seu cotidiano. 11 São ingredientes que marcam o modo de ser do Movimento. Alguns desses elementos definem sua própria existência, como por exemplo a luta social, outros aparecem mais fortemente com o amadurecimento do MST, por exemplo o cuidado com a dimensão cultural e o cultivo da história, apesar de esses aspectos estarem presentes de forma latente desde a origem do Movimento. É no decorrer da existência de sua organização que os Sem Terra percebem o potencial educativo das ações que desenvolvem. Foi por meio delas que foram educados, que se puseram em movimento, que se tornaram indivíduos mais participativos, que se humanizaram. Essa auto-consciência permite ao Movimento prestar mais atenção nas práticas que cria e desenvolve, lapidar sua atuação e intencionalmente cuidar dos processos que são gerados internamente. Possibilita que, ao identificar-se como sujeito educador, tenha o cuidado pedagógico necessário com os seres que cativa, com as ações que gera. É necessário tornar sua auto-crítica permanente. “O educador precisa ser educado”.11 A educação no MST se dá de forma participativa, atuante e não passiva do sujeito sem-terra. Isso significa dizer que este se educa através de sua própria ação dentro da coletividade Sem Terra, lutando, convivendo, estudando, produzindo, se organizando. O MST só pode se realizar como educador se o sem-terra participar, agir, se puser em movimento. É um aprendizado que pressupõe a ação do aprendiz. De outro lado, essa ação também forma seu próprio educador, o MST. Por isso esse Movimento tem em Paulo Freire uma referência pedagógica fundamental. As reflexões pedagógicas desse autor traduzem em grande medida, o modo de pensar do Movimento12. Refletindo acerca de seus próprios desafios como sujeito educador, o Movimento chama a si a tarefa de “ajudar as famílias sem-terra a romper com o processo de desumanização ou de degradação humana a que foram submetidas em sua história de vida”, “assumindo a identidade Sem Terra” e os valores e jeito de ser dos lutadores sociais (MST, Boletim de Educação n. 8, 2001 :21). Romper com a degradação humana decorrente do capitalismo é criar uma dinâmica social nova, ou socialista, como pretende o MST. Os “novos” valores e o jeito de ser devem ser coerentes com essa forma social que buscam 11 Marx e Engels, 1989. Sobre este assunto ver, dentre outras obras de Paulo Freire: Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974 e Professora Sim tia não. Cartas a quem ousa ensinar. 10ª ed.. São Paulo :Olho D’Água, 2000. 12 12 construir. O pano de fundo do processo educativo do MST, que podemos considerar como sua grande obra/herança para a humanidade, é o resgate da dignidade humana, da autoestima e da recuperação daquilo que a caracteriza como espécie: a capacidade de pensar, de emocionar-se, de agir conscientemente e assim fazer a história. A ordem do capital, para se perpetuar, nega/impede que as características fundamentais da humanidade se desenvolvam. Para o MST é fundamental recuperarmos o humanismo e seu contínuo e amplo desenvolvimento. Por isso, é imprescindível a transformação das estruturas sociais. O MST educa para a vida, educa no sentido da liberdade, no sentido do exercício da cidadania, das pessoas serem sujeitos da história e não objetos, educa no sentido da cooperação, da solidariedade, do senso de justiça, pra esses valores que apontam para um novo tipo de sociedade, novas formas de convivência social. Educa pra que a gente assuma o comando um dia nesse país, educa pra isso também. A maioria que é o povo, trabalhadores, explorados, algum dia sejam o comando do país (Vilson Santim – Liderança do MST)13. Só haverá esse futuro desejado se as pessoas desde já começarem a construí-lo. O mundo se faz como nós o fazemos Os sem-terra se educam para o que desejam ser e, portanto, começam a sê-lo desde já. A história humana não está pré-determinada, agir conscientemente é imprescindível. O ser humano é fruto da história na mesma medida em que a constrói. A mudança do mundo, deste modo, deixa de ser impossível, sobrenatural, inexplicável ou decorrente de criações humanas que, ao dominarem seu criador, tornam-no objeto, um ser passivo. Recolocar o ser humano como sujeito histórico consciente está na base das ações do MST. É o sentido das ações do Movimento. 3) A Pedagogia do Movimento Sem Terra e a Escola A preocupação do MST com a escola não decorre de artificialismos ou de abstrações. Ela surge dentro da dinâmica do Movimento, das condições concretas em que se desenvolve a luta pela terra. Em outras palavras, a forma de luta desenvolvida no MST – a ocupação da terra – ocorre com a participação de toda a família. Para os acampamentos dirigem-se mulheres, homens, crianças, idosos, jovens... Todos se constituem sujeitos da luta pela terra. Por isso, um conjunto de demandas próprias da vida humana vão juntas para 13 os acampamentos, uma delas é a escolaridade das crianças. Com o passar do tempo e o acúmulo de experiências, a escola vai sendo tomada como importante espaço também para os jovens e adultos, já que a condição de excluído da terra traz consigo a baixa escolaridade ou o analfabetismo para grande parte do público acampado. Mas não é qualquer escola que importa ao MST. Não caberia reproduzir aquele modelo que para muitos, fora espaço de exclusão e de “educação” para o imobilismo, conformidade e submissão. É necessário refazer a escola como importante instrumento que auxilie na recuperação da dignidade do povo sem-terra, comprometida com o desenvolvimento integral dos assentamentos, vinculada à realidade do meio rural, resgatando capacidades humanas sufocadas naquele povo oprimido, contribuindo para que, ao levantarem a cabeça, possam vislumbrar o futuro, enxergando-se como construtores do amanhã. Se as elites vêem na escola um espaço de opressão, de manutenção da ordem e de diminuição do ser humano, o Movimento Sem Terra vê ali um espaço para reconstrução da vida, uma ferramenta na formação de sujeitos. Essa é a ocupação da escola que o MST promove. Tanto mais a escola poderá contribuir com o povo sem-terra, quanto mais ela estiver aberta ao Movimento, comprometida com os sujeitos sociais que a compõem (Caldart, 2000). Por isso o MST desenvolve uma luta pela criação de escolas públicas nos assentamentos e acampamentos, mas sem prescindir de uma pedagogia e metodologia comprometidas com o sentido do Movimento. Devido à grande demanda educacional nos vários níveis e modalidades, o MST tem pressionado o poder público para a criação de escolas e políticas públicas para a educação do campo. Decorrente dessa luta, constituiu-se no interior do Movimento uma “rede” educacional, cujos dados apresentam relativa oscilação em virtude da descontinuidade das políticas educacionais do Estado e da pressão das lutas e demandas geradas pelo MST. Dados14 referentes ao ano de 2003 dão conta de que existem 1500 escolas de ensino fundamental com mais de 4.500 educadores em áreas 13 Entrevista realizada por Dalmagro (2002). Estes dados foram organizados pela Associação Nacional de Cooperação Agrícola e Setor de Educação do Movimento Sem Terra, 2003. 14 14 de assentamentos. Calcula-se 160.000 estudantes em escolas de educação fundamental e média localizadas dentro ou fora de assentamentos. No campo da educação de jovens e adultos, contabilizam-se aproximadamente 28 mil alfabetizandos com mais de 1800 educadores. O Movimento também tem atuado na formação de educadores em cursos de nível médio e terceiro grau em parceria com universidades. Cerca de 600 pessoas estão freqüentando estes cursos.Podemos registrar ainda os estudantes de outros cursos técnicos em nível médio e superior, a educação infantil de 0 a 6 anos, além dos cursos de formação política que na maioria dos casos realizam-se de maneira informal. Como indicamos anteriormente, a criação de escolas não encerra toda a luta educacional do MST. A educação escolar deve ser “organicamente vinculada” ao movimento social, colada a seus princípios, lutas, trajetória. Deve ser parte e instrumento do movimento a que se vincula, refletindo sua dinâmica no processo pedagógico. Deve partir de problemas concretos, cujas respostas devem ser atualizadas com seu tempo histórico, contemplando os diversos saberes e culturas produzidos pela humanidade. Por isso ela parte da realidade, está “aberta para o mundo”. Relaciona o imediato com o histórico, o particular com o geral. Está aberta para as mudanças e as provoca, partindo do real existente. A escola precisa ajudar a construir “valores humanistas e socialistas”, formando o ser humano integral, contrapondo-se à mutilação que o capital opera nas pessoas. Contrariamente à lógica burguesa, objetiva potencializar e desenvolver outras dimensões humanas além da capacidade de trabalho, mas fundamentalmente a capacidade de pensar e agir do sujeito como protagonista de sua história (MST, Caderno de Educação n. 8, 1997). Por isso o MST vai promovendo um alargamento na concepção de escola e no papel a ela atribuído. O espaço de sala de aula, de aprendizado da ciência, característica primeira (e muitas vezes exclusiva) da escola tradicional, é importante, mas não é o único. Compreende-se que a escola precisa atuar sobre as várias dimensões do ser humano, e que essas dimensões, em permanente educação, estão imbricadas e formam-se mutuamente. Assim, as relações interpessoais, o lúdico, o trabalho, a técnica, a ciência, a espiritualidade, a arte, a cultura, devem se fazer presentes na escola e sobre elas é necessário ter intencionalidade pedagógica. A vida humana deve se fazer presente no espaço institucional 15 escolar, privilegiado por seu papel específico de refletir sobre a cultura humanamente produzida e de sistematizá-la. Assim, se é correto que “o mundo” precisa entrar na escola, esta não pode apenas reproduzi-lo. É seu papel específico refletir sobre ele a partir dos diversos conhecimentos acumulados. Porém, a reflexão efetiva deve traduzir-se em ação. O conhecimento profundo da realidade existente é capaz de nela intervir, modificá-la. Deste modo, a escola no exercício de seu real sentido, pesquisa, elabora o mundo e nele intervém. É espaço privilegiado para realização da práxis. Ainda há para considerar como aspecto importante na experiência de escola do MST a articulação dos sujeitos envolvidos em sua construção. Longe de ser uma forma idealizada e fechada de organização, a participação da “comunidade escolar” é conseqüência desse modo de ver a escola e em si mesma constitui-se profundamente educativa. O MST entende que comunidade / assentamento, educadores e educandos devem envolver-se no conjunto dos processos políticos, pedagógicos e administrativos da instituição escolar. As decisões políticas, os conteúdos estudados, o jeito de a escola organizar-se, a gestão do processo, entre outros, não podem ser decisões individuais, aleatórias ou de alguém que concentra o poder. Precisam, é claro, estar respaldadas no conhecimento da realidade, no saber acumulado, no compromisso com esse modo de conceber a educação. Mas o objetivo mesmo é que toda a comunidade envolvida na escola vá se apropriando desse conjunto de saberes e interesses. As funções específicas, por exemplo da direção, dos educadores ou dos estudantes, não são desconsideradas, elas adquirem dimensão nova. Deste modo, se a comunidade precisa “entrar” na escola, apropriar-se dela, também é verdade que esta se apropria dos processos desenvolvidos na comunidade. A escola precisa retornar de forma refletida e elaborada à comunidade o que dela extraiu. A isso o MST denomina “relação comunidade – escola – comunidade”. Esta escola exige a interdisciplinaridade e não a fragmentação; a reflexão e não apenas a fixação; a pesquisa e não a imposição; educadores e não professores. Precisa dar sentido e vincular entre si os diversos espaços da escola. Precisa, enfim, criar um “ambiente educativo”. O educador não pode trabalhar isolado se o processo educativo é integrado. A dimensão da coletividade deve fazer-se presente entre os educadores, os quais devem buscar sintonia no conjunto do 16 processo educativo escolar. Em seu turno, os estudantes não são compreendidos como meros destinatários desse processo. Eles também são seus construtores e devem participar e auxiliar nas decisões dos diversos aspectos da vida escolar. Comunidade, educandos e educadores devem possuir espaços de auto-organização, desenvolvendo autonomia, ao mesmo tempo em que coletivamente constroem a escola. O MST considera que esse processo é desde já a construção de sujeitos. A escola não pode apenas formar as pessoas para o futuro. Seu espaço mesmo deve ser a experimentação do que se propõe a formar. A educação só se dirige para o amanhã se for capaz de formar pessoas que fazem história, que intervêm na realidade e não indivíduos que repetem como máquinas ordens e leis pré-estabelecidas. É próprio do ser humano pensar e agir conscientemente no mundo, capacidades que a atual sociedade nega cotidiana e progressivamente. Por isso, compreendemos que a atuação do MST tem sido humanizadora, tem formado sujeitos, porque põe os Sem Terra em movimento, em ação, os faz agentes da luta, da história. Coletivamente refazem suas vidas, tomam a história em suas próprias mãos e recuperam a possibilidade de intervir no mundo, refazer o mundo sob novas bases. Este tem sido o sentido do MST: resgatar o ser humano – o Sem Terra – construtor de sua própria emancipação. Bibliografia ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1999. CALDART, Roseli S. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola. Petrópolis: Vozes, 2000. CONSULTA POPULAR. O Brasil precisa de um projeto popular. Cartilha n. 11. São Paulo, 2001. CHRISTOFFOLI, Pedro Ivan. O desenvolvimento de cooperativas de produção coletiva de trabalhadores rurais no capitalismo: limites e possibilidades. Curitiba, UFPR, Dissertação (Mestrado em Administração), 2000. 17 DALMAGRO, Sandra. Trabalho, coletividade, conflitos e sonhos: a formação humana no assentamento Conquista na Fronteira. 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