161 arqueologia tupiguarani no paraguai
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161 arqueologia tupiguarani no paraguai
Cuadernos del Instituto Nacional de Antropología y Pensamiento Latinoamericano - Series Especiales Nº1 VOL. 4, AÑO 2013 ISSN 2362-1958 ARQUEOLOGIA TUPIGUARANI NO PARAGUAI: A PINTURA EM CERAMICA – ESTUDO DAS COLEÇOES DOS MUSEUS DE ASSUNÇÃO André Prous1 ABSTRACT Polychroms pots are typical of Tupiguarani tradition, which spread over a large part of the lowlands of Southamerica. They probably have been made by ancestors of Guarani and Tupi speaking people. We are studying this ceramic in search of regional graphic and morphological differences between the pots of this tradition. As Paraguayan material is little known, we have studied the two most important collections in Assunción (Andres Barbero and del Barro Museums, and some pots from Itaipu Museum). They are commented in this paper and Paraguayan production is compared with Brazilian and Argentine polychrom ceramics. It appears that the studied material belongs to the “proto-guarani” graphic style we have defined in other publications, but show some differences. Some paintings are found on pots that have a morphology unknown in others regions. Drawings made with fingers are much more commons than in other parts of proto-tupiguarani territory, and thematic is rather poorest than in southern Brazil. Some influence of proto-tupi style from northern Brazil may be seen in a few drawings. RESUMEN Las vasijas tupiguaraní del Paraguay son las manifestaciones más occidentales de esta tradición arqueológica sudamericana, que se atribuye en general a poblaciones ancestrales de los indios Tupi y Guaraní históricos. Dentro de un proyecto que pretende apuntar las diferencias regionales dentro de la producción cerámica tupiguaraní, presentamos aquí las vasijas policromas y los tiestos pintados depositados en dos Museos (Andrés Barbero y del Barro) de Asunción, comparándolos con las vasijas pintadas encontradas en Brasil y Argentina. Verificamos la predominancia del estilo que denominamos “proto-guaraní” (característico del Brasil meridional y del norte argentino), pero también la existencia de algunas ollas pintadas cuya morfología parece específica del Paraguay. Se nota que las digitaciones son más numerosas que en las manifestaciones argentinas o brasileñas. Los temas dominantes en los bordes son triángulos, seguidos por olas – los mismos que predominan en la artesanía de los indios guaraníes actuales del Brasil, donde representan motivos de la piel de serpientes. En el fondo de las vasijas abiertas predominan líneas serpentiformes, o hileras de elementos geométricos repetidos. La parte externa de las ollas utilizadas para reparar la chicha y enterrar los muertos presenta digitaciones en la parte inferior, y diseños hechos con pincel en los hombros. Entre estos, los más populares son rectángulos concéntricos abiertos de un lado; hay también y dibujos romboidales y figuras escalonadas. INTRODUÇÃO Quando iniciamos, em 2000, o estudo do sítio proto-tupi de Conceição dos Ouros, no estado brasileiro de Minas Gerais, não imaginávamos que iríamos ampliar esta pesquisa ao âmbito de todo o oekumene tupiguarani. Neste sítio ficamos impressionado com a sofisticação dos complexos desenhos pintados encontrados em cerâmicas associadas a um sepultamento. Isto nos levou a pensar que a observação da decoração de um número suficiente de vasilhas poderia ajudar a determinar territórios culturais – e, quem sabe, políticos – ex- 1 Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte), Mission Archéologique Française de Minas Gerais, bolsista do CNPq. 161 CUADERNOS - SERIES ESPECIALES 1 (4) pressos através de normas gráficas; também, esperávamos poder tentar uma interpretação dos temas pintados. Propusemos então a colegas brasileiros, uruguaios e argentinos, realizarmos um trabalho coletivo de levantamento sistemático dos motivos picturais proto-tupi e proto-guarani em cerâmica. Em 2009, somente faltava levantar o material paraguaio e uruguaio, para o qual não se dispunha de publicações satisfatórias. Decidimos, portanto, visitar as coleções mais conhecidas de material tupiguarani do Paraguai, deixando os registros uruguaios a cargo de uma colega deste país. Trabalhamos em Assunção no Museo del Barro (cuja exposição inclui provisoriamente algumas peças pertencentes ao Museu Tierra Guarani de Itaipu, coletadas por G. Dias Roig). Sobretudo, levantamos as peças pintadas do Museu Andrés Barbero de Assunção, onde é conservada uma grande quantidade de material – inclusive aquele reunido por Max Schmidt e Branislava Susnik no segundo terço do século XX. Pretendíamos também estudar os vestígios cerâmicos conservados no Museo Guido Boggiani de San Lorenzo, que foram coletados durante a única excavação científica moderna de sítio tupiguarani no Paraguai, realizada por Luis Perasso e Luciana Pallestrini nos anos de 1980. Seus resultados não chegaram a ser publicados detalhadamente, em razão do falecimento do pesquisador paraguaio. Infelizmente, não tivemos acesso a esta última coleção, pois o acervo arqueológico do Museu Guido Boggiani está ainda encaixotado e não pôde ser aberto na oportunidade da nossa viagem. Nesta comunicação, apresentaremos, portanto, as coleções dos dois primeiros museus; reúnem quarenta vasilhas pintadas e os fragmentos de, pelo menos, 28 outros recipientes também decorados por pintura. Não tivemos tempo para estudar as vasilhas não pintadas, embora o reconhecimento de peculiaridades na morfologia e nas decorações plásticas pudesse também ser útil para definir eventualmente um estilo tupiguarani regional diferenciado. INFORMAÇOES ETNO-HISTÓRICAS E ARQUEOLOGICAS SOBRE VASILHAS CERÃMICAS Vários cronistas do século XVI (H. Staden, J. de Léry, A. Thevet) mencionaram as vasilhas utilizadas no cotidiano pelos Tupinambá do litoral brasileiro da região do Rio de Janeiro. Descrevem grandes jarras (igaçaba) utilizadas para fazer o cauim (bebida de milho fermentado, semelhante à chicha) e sepultar os mortos. As ilustrações mostram também vasilhas abertas pintadas, várias vezes representadas cheias de intestinos dos sacrificados durante os festins antropofágicos rituais (Fig. 1). Alguns textos mencionam os requintados desenhos pintados pelas mulheres nas vasilhas de cerâmica. Em território paraguaio, o Pe Montoya foi o primeiro a mencionar sepultamentos em urna (Montoya 1639). Mais tarde, N. del Techo e o Pe J. Sanchez Labrador acrescentam alguns detalhes: a urna era coberta por um prato (del Techo 1673), e acompanhada por outra vasilha, também tampada, contendo alimentos (Sanchez Labrador 1770, apud Schmidt 1932). Estes jesuítas, no entanto, não fornecem informações sobre uma eventual decoração destas peças. Segundo Susnik, os Chiripa-Guarani consideravam a conservação dos ossos indispensável para que os ancestrais pudessem ressuscitar. O enterramento em urna teria sido abandonado apenas no XVIII pelos Paranaes (como mencionado em carta do Pe Lorenzana). Entre os Guaranis históricos mais recentes, o sepultamento passou a ser primário, a não ser para crianças pequenas (cujos ossos eram limpos para que pudessem renascer). Uma coruja era a guardiã da “comunidade das almas” até a próxima reincarnação. Os primeiros levantamentos arqueológicos realizados em sítios tupiguarani no Paraguai foram realizados por M. Schmidt em 1931, quando visitou Ypané (hoje: Ipané), onde comprou dos moradores da localidade quatro urnas, uma tampa e outra vasilha. A seguir, escavou em Paso Malo várias urnas – uma das quais apresentava desenhos pintadas abaixo de um engobo branco. O pesquisador alemão interpretou este fato como indício da recuperação de uma vasilha já anteriormente utilizada como urna funerária, para um novo sepultamento (Schmidt 1932). Tendo também encontrado ossos humanos dentro de uma vasilha pequena, concluiu tratar-se de enterramento secundário. M. Schmidt menciona outros achados na cidade de 162 ARQUEOLOGIA TUPIGUARANI NO PARAGUAI... Figura 1. Formas documentadas pelos cronistas. 163 CUADERNOS - SERIES ESPECIALES 1 (4) Assunção, onde numerosas vasilhas teriam sido retiradas da ilha San Francisco, na beira do rio Paraguai e outras, perto de Guarambaré. B. Susnik (1976) notou a presença, em urnas funerárias, de três tipos de decoração: “impressões digitais” (corrugado?), engobo simples, e desenhos pintados. Também frisou que a pintura era aplicada às vasilhas destinadas a apresentar a chicha. Destaca finalmente a presença, dentro das urnas, de vasilhas em miniatura (medindo entre 6 e 10 cm) que continham grãos de milho, sementes de yvaú e fragmentos de quartzo que seriam destinados a facilitar a viagem do morto para o Além. AS VASILHAS TUPIGUARANI PINTADAS DESSUNÇÃO: MORFOLOGIA Não sabemos se as vasilhas preservadas nos dois Museus visitados são representativas da produção tupiguarani de tudo o Paraguai ou apenas da parte meridional deste país – onde foram achadas. Por outro lado, a ausência completa de datações faz com que ignoremos se elas correspondem a um momento cronológico restrito, ou se foram produzidas ao longo de vários séculos, durante os quais poderia ter havido modificações na forma e na decoração das vasilhas pintadas. Por falta de tempo, não pudemos compará-las sistematicamente com os recipientes simples ou decorados com fórmulas plásticas de mesma procedência – a não ser no caso de vasilhas miniaturas, sobre as quais estávamos também preparando um estudo. A maioria (15 potes inteiros e fragmentos de outros 19 – além de uma miniatura) das vasilhas pintadas que pudemos observar eram cambuchi grandes, de ombro complexo (com 2 e até 3 elementos escalonados) e borda reforçada (Fig. 2). Estes cambuchi pintados apresentam traços feitos com pincel sobre engobo claro. Em várias vasilhas, que foram muito lavadas, os traços pintados são apenas residuais. A estes cambuchi típicos se somam 3 vasilhas um pçouco menores, sem escalonamento, assim como uma forma intermediária entre cambuchi e yapepo. Todos estes cambuchi apresentam decoração exclusivamente externa. Nota-se que a pintura é apenas uma das formas de decoração possível dos cambuchi, entre os quais a modalidade decorativa predominante parece ser o corrugado – como ocorre também no Brasil e na Argentina. A segunda forma pintada mais freqüente (11 peças inteiras) é das pequenas vasilhas semi -abertas para beber o cauim (caguaba), com borda discretamente marcada por um sulco pouco perceptível (Fig. 3). Todas apresentam decoração externa; a sua parte interna mostra frequentemente vestígios de engobo vermelho e algumas apresentam desenhos toscos digitados internos. Os caguaba parecem ter na pintura sua única forma de decoração. Muito mais raras (4 peças) são as vasilhas abertas que apresentam a mesma morfologia dos caguaba, tendo, porém, maior diâmetro. Intermediária entre os caguaba típicos e os pratos da região proto-tupi do litoral brasileiro, esta forma (que chamaremos doravante “macro caguaba”) não foi encontrada no Brasil (Fig. 4). Talvez seja tipicamente paraguaia, e funcionalmente equivalente aos nhãeta (ou tenhae) da região proto-tupi do litoral médio do Brasil, que apresentam um fundo muito mais plano. O fundo interno destas peças é pintado de traços feitos por pincel, ou por digitações. Outra forma nos parece também exclusivamente paraguaia: consiste em vasilha fechada de gargalo estreito, cujo bojo é formado por um cone na parte superior e um hemisferóide na parte inferior. Estas peças cônico-globulares foram apenas pintadas com um engobo branco e uma banda vermelha na borda ou no discreto pescoço que se encontra abaixo desta (Fig. 5, 6). O único yaruquai (forma mais representada nas coleções do estado meridional do rio Grande do Sul, no Brasil) que encontramos em Assunção é proveniente da região de Itaipu, na fronteira com o Brasil. Foi externamente engobado de vermelho (Fig. 7). Algumas peças excepcionais são também muito originais no contexto tupiguarani: uma vasilha, de fundo plano e bojo inferior cilíndrico, apresenta uma parte superior cujo ombro escalonado é semelhante àquele dos cambuchi (Fig. 8); de fato, uma ilustração de La Salvia e Brochado (1989:139) mostra uma peça parecida do Rio Grande do Sul (Brasil). Outra, de bojo esferoidal pintado com digitações, apresenta uma parte superior de forma complexa (Fig. 9); finalmente, uma vasilha de fundo plano apresenta 164 ARQUEOLOGIA TUPIGUARANI NO PARAGUAI... Figuras 2 a 10. Morfologia das vasilhas pintadas. 165 CUADERNOS - SERIES ESPECIALES 1 (4) forma cônica, com desenhos feito com pincel na face interna, e digitações pouco visíveis na parte externa. Não se pode excluir a possibilidade que este recipiente tenha reproduzido a morfologia de um modelo europeu (Fig. 10). Notamos que, nas vasilhas paraguaias, apenas as bordas dos cambuchi são fortemente reforçadas. A maioria dos caguaba apresenta apenas um discreto aumento de espessura, cuja base é ressaltada por um sulco; boa parte deles, assim como alguns cambuchi menores, sequer apresentam um reforço mínimo da sua borda. As demais formas pintadas, das quais encontramos apenas um exemplar, talvez expressem uma criatividade individual e não normas costumeiras. AS PINTURAS EM CERÂMICA TUPIGUARANI DO PARAGUAI Cores e Traços O mesmo código geral de cores encontrado em outras regiões meridionais (proto-guarani) predomina no Paraguai: os traços feitos com pincel são de cor vermelha e foram aplicados sobre um engobo de cor geralmente clara (branco a marfim). A cor escura (marrom) foi utilizada apenas em uma peça excepcional - um fragmento no qual a delicadeza do desenho pontilhado evoca o extremo oeste catarinense do Brasil, que desenvolveu um estilo talvez influenciado pela pintura proto-tupi, mais setentrional. Excepcionalmente também, fragmentos provenientes de três peças diferentes (todas formas fechadas) receberam desenhos vermelhos executados sobre fundo cinza ou preto. Numa delas não há dúvida que se trate de um verdadeiro engobo, provavelmente feito com fuligem, que deixou a superfície brilhante através do procedimento de brunidura (Fig. 11). Notamos, como nas demais províncias tupiguarani, a ausência de pintura amarela - cor evitada por todos os pintores de tradição policroma no Brasil. As digitações, por sua vez, são geralmente aplicadas na pasta natural, sem engobo branco. No entanto, duas peças apresentam digitações vermelhas pouco visíveis sobre um fundo vermelho; estes desenhos aplicados com os dedos foram feitos antes (num caso) ou depois (noutro caso) do banho colorido ser aplicado (Fig. 12). Os traços são feitos seja por digitação (tem, neste cão, cerca de 1cm de largura), mais frequentemente com pincel médio (os traços apresentam então entre 1 e 2mm de largura) ou, raramente, com pincel fino (0,2 a 0,4 mm). A Separação dos Campos Decorativos O lábio das vasilhas é sempre pintado de vermelho. O limite dos volumes sobrepostos que compõem cada vasilha tupiguarani pintada é sempre marcado por um sulco inciso (no escalonamento dos ombros de cambuchi) ou por uma garganta (colo dos cambuchi), ressaltados por uma banda colorida. Esta pode ser apenas vermelha – sobretudo quando se trata de uma faixa larga, por exemplo, no pescoço, ou logo abaixo da carena. Bandas mais estreitas (cerca de 5mm), por sua vez, costumam ser formadas por uma linha vermelha bordada externamente por duas linha de cor marrom (Fig. 13). As bordas, quando reforçadas, criam um campo decorativo menor, interno ou/e externo. Os campos decorativos maiores são o fundo (nas vasilhas abertos) e o ombro (nas vasilhas fechadas). A parte inferior do bojo só raramente recebe decoração, sendo esta então exclusivamente digitada – com exceção de dois cambuchi cuja parte inferior foi inteiramente pintado de vermelho (uma característica já registrada apenas na região do Paranaguá, no litoral paranaense do Brasil). Os Elementos Básicos da Decoração Os traços pintados com pincel costumam ser largos (mais de 1 mm de largura) nos cambuchi, enquanto predominam desenhos executados por traços médios finos (cerca de 0, 3mm) ou médio (cerca de 0,5-0,8 mm) nos caguâba. Isto parece lógico, já que os cambuchi, maiores, são feitos para serem vistos de mais longe. No entanto, alguns (mas não todos) motivos desenhados com maior regularidade e maestria nos cambuchi foram realizados com traços finos. Existem também desenhos digitados em um quarto das vasilhas pintadas; encontram-se tanto na borda (interna ou externa) quanto no bojo externo ou no campo central das vasilhas abertas. Tanto podem compor a única decoração, quanto 166 ARQUEOLOGIA TUPIGUARANI NO PARAGUAI... se contraporem a desenhos traçados com pincel na face interna (Fig. 14). Uma única peça apresenta desenhos executados por pontilhado. Existem elementos “de reforço” que aumentam a visibilidade dos desenhos labirínticos, particularmente na extremidade dos motivos. Estes elementos, freqüentes e variados no domínio proto-tupi do leste brasileiro, são, no Paraguai, muito raros; tratam-se de simples duplicações do traço de fechamento final pequenos ou um espessamento da mesma (seja esta pontilhada ou contínua) (Fig. 15, 16). Organização e Temas da Decoração A decoração das bordas, quando existe, forma um friso estreito de triângulos (com quatro modalidades de execução) em 56% dos casos. Segundas em freqüência, são as linhas onduladas paralelas (25% dos casos). Muito mais raras, encontramos digitações, “aspas” (elas mesmas, uma variante do tema triangular?) ou bastonetes verticais (Fig. 17). Os dois temas principais (triângulos e ondas) ocorrem em mesma proporção nas vasilhas abertas ou fechadas. Observamos em outro trabalho (Prous & Rocha 2011) que ondulações, triângulos, traços paralelos verticais e “aspas” são, até hoje, os temas mais freqüentemente utilizados por grupos guarani, para os quais eles evocam respectivamente o couro de cobras: urutu cruzeiro (Bothrops alternatus, B. neuwidi), sucuri (Eunectes murinus) e da cobra coral - verdadeira (Micrurus sp.) ou falsa (diversos gêneros) e o peixe (cf. os desenhos guaranis atuais apresentados in Silva 2010). A decoração do campo principal das vasilhas abertas ou semi-abertas (caguâba e macrocaguâba) é mais variada. O desenho tende a ser curvilinear (seja ele feito com traço fino ou digitado). Quando a pintura é suficientemente preservada, vemos que os traços digitados serpentiformes tanto podem ser radiais quanto aparentemente erráticos. Mais rara é a disposição labiríntica de elementos ortogonais, e os alinhamentos paralelos de um mesmo elemento. Em vários fundos de vasilhas abertas se adivinham motivos parcialmente apagados, parecidos com aqueles que caracteri- zam tenhãe do litoral nordestino do Brasil. Infelizmente, poucas vasilhas abertas inteiras tiveram sua pintura suficientemente preservada para que se possa ter certeza a respeito do padrão decorativo principal, na área central. Mesmo assim, parece predominar um padrão de linhas serpentiformes (Fig. 18). Mais raramente encontramos uma decoração labiríntica que esconde alinhamentos de elementos ortogonais (Fig. 19). Uma única peça apresenta alinhamentos paralelos de um mesmo elemento repetido (Fig. 20). No nordeste do Brasil, desenhos algo parecidos e dispostos da mesma forma parecem evocar corpos humanos; talvez os módulos paraguaios tenham o mesmo sentido. Outra fórmula mostra elementos digitados dispostos radialmente a partir do fundo (Fig. 21). Nestes, pensamos reconhecer a figura da cobra primordial, que tínhamos identificado em vasilhas do estado do Rio Grande do Sul. A maioria das vasilhas abertas e dos fragmentos apresenta apenas vestígios de figuras curvilineares, cuja forma completa e disposição não podem ser reconstituídos com certeza (Fig. 22). Os ombros da maioria dos cambuchi são decorados por elementos geométricos simples, geralmente angulosos, repetidos de forma constante e monótona, que formam friso. O motivo mais freqüente (66%) é formado por retângulos concêntricos com um lado aberto, dispostos simetricamente em dois alinhamentos. Existem muitas variantes; em uma delas, o espaço intersticial cruciforme entre 4 retângulos é ocupado por uma figura em forma de “H” (Fig. 23). Vários outros motivos feitos a partir de traços que se encontram em ângulo reto parecem derivados deste mesmo elemento. Um deles forma alinhamentos de elementos escalonados, muito semelhante aqueles encontrados nos cambuchi dos estados do Paraná e de São Paulo no Brasil (Fig. 24). Acham-se também temas bem mais raros, tais alinhamentos de “colchetes” articulados (Fig. 25), “aspas” ou triângulos eventualmente opostos para formar uma rede de losangos (Fig. 26, 27). Este último é um dos temas favoritos dos índios Guarani atuais, que evoca o couro da cobra cascavel (Crotalus terrificus). Os triângulos ocorrem também, embora raramente, como tema do campo principal. 167 CUADERNOS - SERIES ESPECIALES 1 (4) Figuras 11 a 17. Decoração pintada. 168 ARQUEOLOGIA TUPIGUARANI NO PARAGUAI... Figuras 18 a 27. Temas decorativos do campo principal. 169 CUADERNOS - SERIES ESPECIALES 1 (4) O desenho que aparece num degrau de escalonamento é sempre o mesmo que foi pintado no outro degrau. Por sua vez, o tema da borda pode ser (embora raramente) diferente daquele que ocupa o ombro. Em outras publicações (Prous 2004; Prous & Lima 2010), frisamos a existência de representações figurativas na pintura tupiguarani. São particularmente evidentes (embora escondidos graficamente sob uma aparência geométrica) na pintura do domínio geográfico proto-tupi, onde as representações antropomorfas são comuns. Mesmo na região proto-guarani, deve ser aventada a possibilidade de uma decoração figurativa, particularmente nos desenhos digitados. Estes, frequentemente serpentiformes, poderiam aludir alusão a figura da cobra que, além de ser essencial como inspiradora da maioria dos desenhos guarani atuais, desempenha um papel importante nos mitos que tratam da fundação da terra. Uma vasilha do sul do Brasil conservada no MARSUL (Taquará, RS), particularmente, evoca a figura da cobra associada a uma cruz (seria esta a representação dos dois paus cruzados que sustentavam a terra primordial antes desta ser desestabilizada pela serpente). Os vestígios pintados de uma das vasilhas de Assunção são muito parecidos com aqueles da vasilha gaucha. CONCLUSÃO: A CERÂMICA PINTADA DO PARAGUAI, NO CONTETXO INTER-REGIONAL DO OEKUMENE TUPIGUARANI De forma geral, a forma e a decoração das vasilhas tupiguarani encontradas no Paraguai se parecem muito com aquelas da cerâmica protoguarani; mesmo assim, notam-se algumas formas originais de potes, e fórmulas decorativas que são raras ou ausentes no sul do Brasil ou na Argentina. Infelizmente, a amostra reduzida de que dispomos não permite saber se estas variantes são apenas exceções, traduzindo uma licença individual, ou se exprimem modas regionais caracterizadas. Como no resto do domínio proto-guarani, a pintura é normalmente aplicada aos caguaba, cambuchi (com desenhos) e yaruqai (apenas como engobo e banda). Os caguâba são sempre pintados, enquanto os cambuchi tanto podem ser pintados quanto decorados por corrugações. Todas estas formas são exatamente semelhantes àquelas do Brasil meridional. Pelo contrário, encontramos no Paraguai alguns “macro-caguâba” que parecem desempenhar o mesmo papel das bacias/tinas (tenhãe, ou nhãeta) características da região prototupi, mas que faltam no sul do Brasil. A estas formas devemos acrescentar as peças de morfologia composta cônico-esferoidal, desconhecidas tanto na região proto-tupi quanto no domínio proto-guarani brasileiros (Fig. 5). Digitações ocorrem casualmente, no domínio proto-guarani (em oposição ao domínio proto-tupi, onde estão ausentes), mas são muito mais freqüentes no Paraguai (e sobretudo, aparentemente, na região vizinha da Província argentina de Santa Fé segundo o catálogo digital que pudemos consultar (Letieri, F. & alii 2009). Nos desenhos feitos com pincel, os traços espessos são mais uma característica proto-guarani, que contrasta com os traços muito finos característicos da produção proto-tupi de qualidade. Estes desenhos mais toscos explicam a raridade dos elementos de reforço, normalmente encontrados na cerâmica do nordeste brasileiro, e que, no Paraguai, foram identificados apenas nas três vasilhas que apresentaram traços mais delicados – mostrando que esta técnica, era conhecida, embora não fosse popular. Ainda que se encontrem episodicamente os diversos temas de borda presentes nas outras regiões nota-se, no Paraguai, uma preferência quase exclusiva dos triângulos que contrasta tanto com o equilíbrio existente entre ondas e triângulos no sul do Brasil quanto com o predomínio dos traços verticais paralelos, no leste e nordeste. No campo principal dos cambuchi, a preponderância absoluta dos retângulos abertos (tema “casinha”, fig. 18) marca um empobrecimento em relação ao Brasil meridional. Inesperadamente, os macro-caguâba, por sua vez, apresentam estruturas e temas pintados que lembram os tenhãe/nhãeta do Brasil centro-leste. Desta forma, podemos dizer que os cambuchi paraguaios são semelhantes àqueles do domínio proto-guarani (particularmente do Paraná), enquanto a decoração das suas vasilhas abertas se aproxima de modelos proto-tupi. O que significaria esta “influência” proto-tupi na decoração? Talvez marque o limite geográfico da in- 170 ARQUEOLOGIA TUPIGUARANI NO PARAGUAI... trusão “proto-tupi” que notamos no sul do Brasil, na fronteira ocidental do estado de Santa Catarina com as Misiones argentinas. Por outro lado, podemos pensar que existiriam outros suportes, perecíveis e não preservados (como cabaças), aos quais pintores proto-guarani poderiam ter reservado os desenhos delicados que as pintoras proto-tupi do Brasil e da Argentina prefeririam aplicar às suas tinas e bacias. Finalmente, a utilização sistemática de uma linha vermelha bordada de marrom para ressaltar as inflexões remete a pratica semelhante que predomina no estado de Goiás, na frente ocidental da tradição tupiguarani no Brasil central. Desta forma, a amostra que temos da produção paraguaia, por mais limitada que seja, sugere que as oleiras da região tenham produzido uma fácies original, selecionando alguns traços (tanto morfológicos quanto decorativos) presentes em diversas regiões setentrionais para inseri-los num contexto formal proto-guarani e aos quais acrescentaram algumas formas específicas. Esperamos que um futuro desenvolvimento da arqueologia tupiguarani no Paraguai permita enriquecer e corrigir esta primeira tentativa de diagnóstico. AGRADECIMENTOS: Agradecemos Adelina Pusineri, Diretora do Museu Andrés Barbero que generosamente liberou o acervo para nosso estudo; Ariel Mecia que nos ajudou no levantamento e na fotografia das peças e na pesquisa bibliográfica. Lia Colombino, Diretora do Museo del Barro, que nós deu acesso às peças expostas, apesar dos inconvenientes que nossa pesquisa causou para a visitação. Agradecemos também a gentileza de Jorge Vera, Diretor do Museo Guido Boggiani, pelas informações sobre as coleções etnográficas e arqueológicas deste Museu. As pranchas foram montadas por Rosângela Bita; a revisão do resumen em espanhol foi realizada por Ana Solari. A ambas vão meus sinceros agradecimentos. O financiamento desta pesquisa foi garantido por um grant do CNPq brasileiro. Local de guarda das peças apresentadas nas ilus- trações: As figuras 6, 7, 10, 21 e 27 mostram peças que pertencem ao acervo do Museo del Barro, enquanto as figuras 2-5, 8-9, 11-13, 15-20 e 23-26 estão guardadas no Museo Andrés Barbero, ambos na cidade de Assunção. As peças representadas nas figuras 11, 14 e 22 fazem parte do acervo do Museu paraguaio de Itaipu. A figura 1, realizada por M. Brito, é reproduzida de Prous 2008. Todas as fotografias, assim como os croquis, são do autor. BIBLIOGRAFIA Escobar, T. 1982 Una interpretación de los artes visuales en el Paraguay, vol. 1, 305 p. Asunción. 2008 – “Arte indígena, zozobras, pesares y perspectivas”, in: Catálogo – Museo de Arte Indígena, Centro de Artes visuales, Museo del Barro/The Getty Foundation, pp. 9- 23. Asunción. La Salvia, F. & Brochado, J. 1989 Cerâmica tupiguarani, Posenato Arte e Cultura, Porto Alegr2ª ed. Letieri, F. & alii 2009 Catálogo digital Santa Fé La Vieja, Bienes arqueológicos del Departamento de Estudios Etnográficos y Coloniales de la Provincia de Santa Fé, Santa Fé. Pallestrini, L. & Goméz-Perasso, J. 1989 “Una visión del pasado: el Hombre prehistórico y sus manifestaciones”, Revista del Instituto Paragayo de Prehistória, 1 (1): 1-93. Prous, A. 2004 “a céramique tupiguarani”, Archeologia, Dijon, 408:53-65. Prous, A. & Lima, T. Andrade (Editores) 2008/2010 Os ceramistas Tupiguarani, 3 volumes, IPHAN, Belo Horizonte, 216 + 251 + 216 pp.. Prous, A. & Rocha, R. 2011 “Os ceramistas tupiguarani do Brasil” en Arqueologia Tupiguarani editado por D. Loponte & A. Acosta, pp. 23-109. Instituto Nacional de Antropologia y Pensamiento Latinoamericano, Bue- 171 CUADERNOS - SERIES ESPECIALES 1 (4) nos Aires. Schmidt, M. 1932 - “Nuevos hallazgos prehistóricos en e Paraguay”, Revista de la Sociedad Científica del Paraguay, Asunción, 3 (3): 81- 103. Silva, S. B. da – 2010 “Iconografia e ecología simbólica: retratando o cosmos guaraní” en Os Ceramistas Tupiguarani, editado por A. Prous, A. & T. Andrade Lima, vol. 3: 115-148. Susnik, B. 1976 - Museo Etnográfico “Andrés Barbero” – Guia del Museo, 5ª ed. 114 p. Vysokolan, O. & Escobar, T. 2008 – “Arte indígena en el Paraguay: los conflictos de la modernidad in; “Arte indígena”, en Catálogo – Museo de Arte Indígena, Centro de Artes visuales, Museo del Barro/The Getty Foundation, Asunción, pp. 25 - 47. 172