Simone Silva - Água, Mulheres e Desenvolvimento
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Simone Silva - Água, Mulheres e Desenvolvimento
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO – UAB Especialização em Políticas Públicas com ênfase em gênero e raça Pólo Sete Lagoas ABORTO INSEGURO, SAÚDE DA MULHER E POLÍTICAS PÚBLICAS: Impasses e Perspectivas Simone Sany Silva INTRODUÇÃO A prática do aborto reflete uma questão bastante polêmica e que exige uma adequada discussão acerca das dificuldades e perspectivas a ela inerentes. O aborto é previsto como crime na legislação penal brasileira, no entanto, há evidências empíricas em vasta literatura de que o aborto seja amplamente praticado. Em virtude de seu caráter ilícito, o aborto frequentemente ocorre em condições de saúde inapropriadas e com consequências muitas vezes catastróficas à saúde da mulher: numerosas internações hospitalares, sequelas e alta mortalidade materna. (SANTIAGO, 2008) Na literatura, estudiosos da temática apontam que a proibição da prática de aborto através de lei não tem contribuído para reversão das estatísticas, levando, sobretudo à sua realização de forma clandestina e insegura. Com a ilegalidade é dificultada a prestação de uma assistência integral à mulher, inviabilizando suas possibilidades de pensar e fazer escolhas. (CAVALCANTE & BUGLIONE, 2008) O aborto retrata uma realidade onde muitas mulheres sofrem pela falta de amparo nos serviços públicos, especialmente no campo da saúde, além do desrespeito à sua autonomia reprodutiva. Tal contexto revela a demanda por políticas públicas relacionadas à questão e pela implementação de programas e serviços de assistência e de saúde da mulher mais adequados. Desta forma, delimita-se de forma geral o objeto de estudo desenvolvido neste trabalho, qual seja, discutir a prática do aborto inseguro vislumbrando não somente os impasses, mas também as perspectivas para atenuar o impacto na saúde da mulher. De maneira mais específica, deseja-se refletir acerca das alternativas que viabilizem a diminuição da ocorrência do aborto inseguro através de políticas públicas inovadoras e da efetivação do planejamento familiar. Dito isto, também se pretende intensificar o debate acerca das formas de afirmação e reconhecimento dos direitos reprodutivos da mulher. Estimativas de organizações internacionais comprovam que o abortamento é um dos grandes vilões da morte materna em nosso país, provocando ainda várias sequelas. A maior proporção de complicações é verificada entre mulheres de nível socioeconômico baixo, que recorrem aos hospitais públicos para tratamento das complicações. As mortes por aborto atingem de forma preponderante as mulheres jovens e as negras, de estratos sociais desfavorecidos, residentes em áreas periféricas das cidades. (MENEZES & AQUINO, 2009) Há que se considerar ainda que o atendimento e as complicações causadas pela prática do aborto representam o terceiro item nos gastos da Previdência Social com hospitais (BARTILOTTI, 2002). Recursos públicos que poderiam ser investidos na prevenção e na promoção de forma universal do acesso a todos os meios de proteção à saúde, de concepção e anticoncepção com respeito. Falar sobre o aborto remete, sobretudo, a questões cruciais das relações de gênero problematizadas na luta pela autonomia do corpo e pelo direito de decidir e ainda na luta pela garantia de um Estado laico com aparatos legais que reconheçam a autonomia sexual e reprodutiva das mulheres. O debate sobre o aborto encontra-se correlacionado ainda a uma discussão política acerca da garantia da dignidade e cidadania de todas as mulheres. A proposta deste trabalho é a de realizar discussão sobre o aborto vislumbrando seus desdobramentos clínicos, políticos, sociais e jurídicos. A metodologia utilizada abarcou a realização de pesquisa bibliográfica e documental através do acesso ao conhecimento já produzido sobre o tema em informações questão. Buscou-se pesquisadas, bibliografia consultada. realizar propiciando uma um sistematização debate conceitual das da Para tanto, foram utilizadas bibliografias de grande relevância sobre o tema efetuando-se uma discussão teórica e reflexão crítica do assunto pesquisado. Este trabalho está organizado em dois capítulos que ilustram a discussão teórica sobre o aborto e políticas públicas correlatas. No primeiro capítulo é aponta-se a discussão política sobre o aborto demonstrando a influência de referenciais religiosos, morais e culturais que engendram a sua prática. Ainda neste capítulo há uma exposição acerca do debate conceitual em torno das controvérsias e polissemias do conceito de vida. Por fim é apresentada uma retrospectiva histórica acerca do debate político brasileiro sobre o aborto em especial nas esferas do legislativo, judiciário, executivo além do âmbito da sociedade civil. No segundo capítulo, realiza estudo explanatório acerca do impacto da ilegalidade do aborto na saúde e na vida da mulher, para tanto é apresentada um panorama dos embates jurisdicionais ocorridos em outros países. Foram descritos também os aspectos psicossociais associados à pratica do aborto finalizando com uma discussão acerca da urgência pela implementação de políticas públicas relacionados a garantia dos direitos reprodutivos. Por meio deste trabalho espera-se contribuir para o debate sobre o aborto vislumbrando não só os impasses postos ao enfrentamento da problemática, mas, também, buscando-se fomentar as políticas públicas já existentes e despertando também para alternativas possíveis. CAPÍTULO 1: A DISCUSSÃO POLÍTICA SOBRE ABORTO NO BRASIL: IMPASSES RELIGIOSOS, MORAIS E CULTURAIS. A discussão sobre o aborto implica em uma apreciação acerca do contexto sócio-histórico, isto porque o tema reflete as normas e costumes de determinada sociedade e época. Trata-se de tema controverso que envolve sentimentos diretamente vinculados a convicções religiosas, filosóficas e morais, sendo, portanto, objeto de forte sanção social. O debate na literatura a respeito do aborto denota a interferência de vivências religiosas e filosóficas nos julgamentos pessoais e coletivos tendo em vista sua influência na conduta humana. É marcante a tendência por parte da sociedade de utilizar padrões morais advindos da religião, considerando o aborto como pecado. Conceitualmente, o aborto é definido pela “terminação da gravidez antes de completar 20 semanas e pode ser espontâneo ou induzido”, conforme descrito por Santiago (P. 33). Já na concepção de Bartilotti, o aborto é compreendido como: “a expulsão ou a extração de toda e qualquer parte da placenta ou das membranas, sem um feto identificável, ou um recém-nascido vivo ou morto que pese menos de quinhentos gramas. Na ausência do conhecimento do peso, uma estimativa da duração da gestação de menos de vinte semanas completas, contando desde o primeiro dia do último período menstrual normal, pode ser utilizada.” (BARCHIFONTAIN apud BARTILOTTI, 2002, p. 99) Associado a tabus e preconceitos, a prática do aborto tem sido realizada ao longo dos séculos, conforme descrito em vasta literatura acadêmica. Historicamente, há referências sobre o aborto como ato criminoso contra os interesses do pai e do marido descritas no Código de Hamurabi, 1700 A.C., conforme demonstra Bartilotti (2002). De acordo com Scavone (2008), outro aspecto que marca a polêmica em torno do tema diz respeito à multiplicidade de significados acerca da interrupção de uma gravidez indesejada frente às expectativas sociais em torno da realização da maternidade, “marca relevante da identidade histórico cultural feminina brasileira” e também do contexto mundial. Observamos aqui a tradição paternalista de sociedade que limita o papel social da mulher exclusivamente ao âmbito do cuidado, disseminando-o como parte da natureza da mulher. Tal paradigma encontra nas teorias biológicas e deterministas fundamentação teórica para tanto, estabelecendo assim uma ligação entre o papel do cuidado à capacidade física da mulher de dar a vida. O conceito e o significado de maternidade aparecem, portanto, associado a uma obrigação decorrente da condição de ser mulher desvalorizando o caráter de escolha ou de projeto pessoal em relação à reprodução. Leal (2012) salienta, em seu texto, a “riqueza da própria definição de aborto e as nuances de seus significados”. Segundo esta autora, a vivência e a interpretação da prática do aborto acontecem de forma múltipla e a partir de um processo eminentemente social. Nesta perspectiva, o aborto está relacionado a uma discussão social que envolve negociações de gênero que perpassam um conjunto de representações e noções de concepção, corpos e reprodução. Sendo assim, a culpabilização da mulher que pratica o aborto estaria vinculada, segundo Leal (2012), a uma “espécie de postulado público, parte de um repertório de crenças, ideias e princípios implicitamente tomados como naturais (...).” Compreender a multiplicidade em torno do conceito aborto assim como avaliar a predominância de uma cultura legitimada através de preceitos marcadamente religiosos, fornece valiosos elementos para uma análise do contexto de ilegalidade que esta situação contribui para reproduzir. Contrariando o pensamento hegemônico das hierarquias religiosas e a crença generalizada da inscrição da maternidade na natureza feminina, Badinter (1989) teoriza que o tão aclamado instinto materno não passaria de um mito. Argumenta não haver uma conduta universal da figura materna, antes, sim, uma extrema variabilidade de sentimentos, segundo a cultura, ambições ou frustrações da mulher. Através de uma extensa pesquisa histórica, a autora demonstra que o amor materno não configura como determinismo1, mas antes disso como um produto da evolução social marcada por flutuações socioeconômicas do contexto cultural. 1 Aqui a autora se refere ao determinismo como uma corrente filosófica que crê que os eventos possuem uma causa natural, ou seja, que tem seu funcionamento ditado por regras da natureza. Faz menção ainda, à ideia generalizada acerca da existência de um instinto próprio da mulher em relação ao exercício da maternidade, “como se uma atividade pré-formada, automática e necessária esperasse apenas a ocasião de se exercer”. Nesta perspectiva, o amor materno estaria profundamente inscrito na natureza feminina, determinando a maternidade como uma conduta Tecendo uma crítica às teorias naturalistas, Badinter (1989) faz um alerta acerca da tendência em confundir-se determinismo social e imperativo biológico. De maneira audaciosa, defende a ampla predominância dos conteúdos inconscientes da mulher sobre os seus processos hormonais, compreendendo aqueles como uma das formas de exprimir sua liberdade. Parafraseando a autora, “o desejo de ter um filho é complexo, difícil de precisar e de isolar de toda uma rede de fatores psicológicos e sociais.” Há aqui uma contraposição entre a ideia de “natureza feminina” e a consideração de uma multiplicidade de experiências femininas ainda que submetida aos valores sociais de sua época. Badinter nos propõe abrir os olhos para as “perturbações que contradizem as normas” buscando com isto uma melhor compreensão da maternidade através da conscientização das contingências sociais e psicológicas em detrimento de princípios advindos do determinismo natural. 1.1 - A Controvérsia do conceito de vida Conforme sublinham Cavalcante & Buglione (2008), a ilegalidade da prática do aborto no Brasil fundamenta-se nos ideais de supremacia da vida e na vida humana em que esta é tida como direito absoluto com início na concepção. Na perspectiva dos referidos autores, os argumentos utilizados e defendidos nos debates públicos que sustentam a criminalização do aborto tem seu alicerce em um determinado paradigma de concepção sobre a vida humana e a partir da imposição deste sobre a coletividade. Nesta lógica, ocorre um desrespeito à diversidade de universal e necessária à mulher. Segundo Schultz & Schultz, o determinismo é a crença de que todo ato é determinado por eventos passados. Assim, o princípio do determinismo influenciou correntes de pensamento da psicologia resultando no pressuposto de que o comportamento humano seria determinado, sendo o resultado das nossas ações influenciado pelas experiências passadas. (SCHULTZ, D. P. & SCHULTZ, S. E. História da Psicologia moderna. Cultrix: São Paulo, 2001, 14ª edição) pensamento e crença “em face de uma impossibilidade de consenso tanto na ciência da Biologia quanto na Medicina e na ética” para demarcar o início da vida humana. (Cavalcante & Buglione, 2008, p. 108) É controverso o debate acerca dos limites do Estado no que concerne à proteção do processo de desenvolvimento da vida humana e as restrições impostas à autonomia e dignidade das mulheres. Consultando a legislação vigente no Brasil, observa-se que o art. 2º do Código Civil de 2002 define que a personalidade civil começa com o nascimento. A lei também resguarda desde a concepção, os direitos do nascituro. No entanto, a efetivação destes direitos carece do nascimento com vida conforme o parágrafo 3º do art. 1.800. Desta forma, o nascituro tem garantidos os seus direitos assim como também os possui a mulher grávida. A vida do nascituro está penalmente protegida a partir do momento em que se dá a chamada nidação, que acontece mais ou menos no décimo quarto dia após a fecundação. Até então, não existe vida a ser juridicamente protegida. Percebemos, portanto que a perspectiva de defesa do feto tem respaldo nas análises legais a partir de uma definição de vida em termos biológicos e abstratos. Evidencia-se uma contraposição entre a vida da mulher e a vida do feto, esvaziando-se com isto o papel da mulher na reprodução e ignorando-se de seus direitos sobre o próprio corpo. (ALDANA, 2008) Estudos apontam para a influência do discurso religioso que identifica a “defesa da vida” com o momento da fertilização do óvulo pelo espermatozoide, buscando ainda amparo na genética para concepção absoluta e intangível do feto. Com isto, ocorre uma invocação da entrada do Estado na defesa da vida do nascituro em detrimento da liberdade e diversidade de credo religioso ou mesmo ausência deste. Segundo Cavalcante & Buglione (2008): O fato é que o único aporte possível e não arbitrário, logo de respeito à diversidade de pensamento e crença, para demarcar o início da vida humana, em face de uma impossibilidade de consenso tanto na ciência da Biologia quanto na Medicina e na ética, é falar em uma regressão infinita, em uma vida que começou a milhares de anos. Nessa perspectiva, o feto é apenas um estágio de um processo evolutivo da vida humana, e uma potencialidade de vir a ser. Pensá-lo como sujeito de direito e com direitos que devem ser preservados à revelia da autonomia das mulheres á admitir uma única concepção moral válida. (CAVALCANTE & BUGLIONE, 2008, p. 108) Definir o início da vida reporta à busca de uma certeza inexistente. Desta maneira, afirmar que a vida humana começa na concepção implica na imposição de determinada crença ou concepção moral. O conceito “vida” é carregado de subjetividade e não guarda valor absoluto do ponto vista científico e nem mesmo religioso, conforme indicam cientistas e teólogos. Ainda segundo tais autores, do ponto de vista católico, por exemplo, a ideia de concepção está atrelada a uma extensa e controversa discussão teológica sobre o momento em que a alma se instala no corpo. A despeito de um consenso e unificação do conceito de vida, há que se buscar a garantia da liberdade, da imparcialidade e do igual reconhecimento dos interesses e crenças, evitando-se com isto a imposição de um ou outro interesse em detrimento das deliberações sociais. Consolidar o caráter laico do Estado consiste antes de tudo na substituição da verdade religiosa pelos direitos fundamentais, tendo os últimos como parâmetro de organização social. 1.2 - Panorama histórico da discussão política sobre o aborto no Brasil Conforme referencia Bartilotti (2002), a prática do aborto no Brasil é prevista como criminosa desde o final do século XIX a partir do Código Criminal do Império datado de 1830. Segundo a autora, o aborto é aludido neste aparato legal no capítulo referente aos crimes contra a segurança das pessoas e das vidas. Desta forma, o aborto realizado pela própria gestante era passível de punição. O tema reaparece com reformulações no Código Criminal da República de 1890, onde a punição apenas estava previsto em casos em que era praticado por terceiros e dele resultasse a morte da mulher. No caso de autoindução do aborto em benefício da própria honra era concedida redução da pena. Em conformidade com Bartilotti, Domingues (2008),assinala que as normas legais envolvendo a questão do aborto vigoram expressamente no Brasil desde a promulgação do Código Penal de 1890. No entanto, ressalta o autor, o repúdio moral à prática do aborto acontecia antes da referida data. Todavia, até então não existia consenso acerca da existência do crime propriamente dito. Por conseguinte, na edição do Código Penal Brasileiro de 1940, período ditatorial do Estado Novo, fica estabelecida a distinção entre o crime do aborto e o homicídio e que permanece em vigor nos dias atuais. Desta forma, a interrupção voluntária da gravidez encontra-se tipificada no Código Penal Brasileiro e inserida no “Título I – Dos crimes contra a pessoa, Capítulo I - Dos crimes contra a vida”. Este diploma legal prevê a punição com pena de detenção de um a três anos para a mulher que “provocar aborto em sim mesma ou consentir que outrem lho provoque” (art.124, CP), com pena de reclusão de três a dez anos quem “provocar aborto, sem consentimento da gestante” (art.125, CP) e pena de reclusão de um a quatro anos para quem “provocar aborto com o consentimento da gestante” (art. 126, CP). A legislação penal brasileira só autoriza a prática do aborto em casos de estupro ou nos casos que não há outro meio para salvar a vida da mãe. O artigo 128 dispõe expressamente que não se punirá o aborto praticado por médico “se não houver outro meio de salvar a vida da gestante” (art. 128, I, CP) ou “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal” (art. 128, II, CP). Segundo Domingues (2008) o primeiro caso de aborto permitido pelo artigo 128 é denominado “aborto necessário ou terapêutico”, enquanto o segundo, “aborto sentimental”. O “aborto necessário” tem por característica o iminente risco de morte da gestante associado à inexistência de qualquer outro meio que possibilite salvar sua vida. Domingues (2008) salienta uma tendência à diminuição de casos frente ao crescente avanço da ciência biomédica que oferece mais alternativas que compatibilizem a gestação e a vida da mulher. Já a hipótese do “aborto sentimental” prevê o aborto em caso de estupro e fundamenta-se no direito à honra, à integridade física e psíquica da mulher e à segurança social, posto que estupro é também previsto como delito. Temos assim, uma legislação editada no século passado, marcada por ideais machistas e patriarcais característicos da época (SARMENTO, 2012). A despeito do contexto sociopolítico absolutamente diverso em relação ao período de edição de tal norma - em que se evidencia o crescente o reconhecimento da igualdade de gênero e a mudança de paradigma acerca da sexualidade feminina - não há alterações relevantes no tocante às normas legais que regem a questão do aborto no Brasil. Dentro desta ótica, Rocha (2006) contextualiza em seu estudo, a discussão política sobre o aborto nas esferas do legislativo, judiciário, executivo além do âmbito da sociedade civil no processo histórico do país, dividindo-o em períodos. Seu estudo baseou-se em pesquisa da legislação pertinente, documentos do governo e da sociedade civil (mídia escrita) além de literatura especializada. A partir destes instrumentos a autora tece uma análise referente às conquistas e retrocessos das decisões políticas nas esferas da sociedade e do Estado acerca do aborto. Neste estudo, a autora delineia um panorama da discussão sobre o aborto dividindo-o em dois períodos da história política do país: a do Estado autoritário, de 1964 a 1985, e a do Estado democrático, a partir de 1985 até os dias atuais. Antes deste período, em especial no período ditatorial do Estado Novo, a divulgação e a prática do aborto eram punidas por diferentes instrumentos legais. Segundo Rocha (2006), o primeiro período, referente ao governo autoritário, subdivide-se em dois momentos específicos, sendo que o primeiro abrange os anos de 1964 a 1979. Neste período, as discussões sobre aborto eram escassas. Em 1969 houve a decretação de novo Código Penal que mantinha a incriminação do aborto, mas alterava as respectivas punições. No legislativo, treze projetos de lei foram apresentados, no entanto, a questão do aborto não figurava o centro do debate. Rocha (2006) ressalta quatro projetos pioneiros neste período: um em relação à descriminalização do aborto e outros três referentes à ampliação das possibilidades da prática do abortamento. No âmbito da sociedade civil, a discussão sobre o tema ainda era bastante restrita. Ainda segunda aquela autora, no período correspondente à fase da abertura política – 1979 até 1985 – não há registros de nenhuma medida específica na esfera do Executivo relacionada ao aborto. Com exceção de algumas breves referências acerca da questão na formulação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM)2 que apresentou um diagnóstico sobre a saúde da população feminina. O PAISM abarcava políticas de planejamento familiar e controle de natalidade no país. No Legislativo, foram apresentadas sete propostas: cinco ligadas diretamente ao aborto e duas nas quais o tema aparecia vinculado a projetos de lei sobre anticoncepção. Já no âmbito da sociedade civil a discussão sobre a questão estava menos restrita, com destaque para a atuação pública do movimento feminista. Configurava-se um posicionamento político por parte deste movimento, fundamentado no princípio do direito individual. 2 Segundo Costa (1999), “o PAISM constitui-se de um conjunto de diretrizes e princípios destinados a orientar toda a assistência oferecida às mulheres das distintas faixas etárias, etnias ou classes sociais, nas suas necessidades epidemiologicamente detectáveis – incluindo as demandas específicas do processo reprodutivo. Compreende, ainda, todo o conjunto de patologias e situações que envolvam o controle do risco à saúde e ao bem-estar da população feminina.” Este período ainda foi marcado por publicações e eventos relacionados ao tema. Destaque para encontro de cunho nacional realizado no Rio de Janeiro, em 1983, sobre saúde, sexualidade, contracepção e aborto que foi um marco no debate público da questão e contou com representatividade marcante de mulheres de todo o país. A partir daí começava-se a falar sobre políticas públicas nessa área. No período citado pela autora como o da “transição demográfica” que corresponde ao fim da ditadura militar ocorrida entre os anos de 1985 e 1989, ocorrem diferentes momentos políticos com avanços tanto nas discussões quanto nas decisões sobre a questão do aborto se comparadas com a etapa do Estado Autoritário. Ocorreu uma intensificação da atuação da sociedade civil com novos direitos assegurados na Constituição de 1988. O debate sobre o aborto passou a refletir enfrentamentos mais acentuados entre feministas e as entidades religiosas com repercussões no Congresso Nacional. Na fase entre 1985 e 1989, iniciou-se uma transformação na configuração do Estado brasileiro e intensificação do debate sobre o aborto. O enfrentamento entre o movimento feminista e as entidades religiosas tornou-se mais acirrado. No âmbito do Legislativo, há destaque neste período para a iniciativa de representantes da Igreja Católica na criação de projetos de lei que proibiam o aborto em todas as circunstâncias, obtendo o apoio de parlamentares evangélicos. Entre 1986 e 1988 foram apresentados quatro projetos que representavam uma visão restritiva do aborto assim como uma reação conservadora em oposição aos dois projetos mais liberais apresentados no período anterior. Também foi marcante a participação direta e indireta do movimento feminista assim como de representantes da Igreja Católica na preparação da Constituinte. A partir de 1989 iniciou-se uma nova fase política inaugurada pelo conjunto de transformações aprovadas na Constituinte. Ocorreram significativas mudanças no rumo das discussões e decisões acerca da questão do aborto. Uma importante referência deste período foi a participação do Brasil na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento no Cairo (1994), na Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim (1995)3. Na esfera do executivo, há destaque para a estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS) com repercussões na ampliação de serviços de saúde que atendem o aborto legal, principalmente entre os anos de 1988 e 2005. Em 1999 ocorre a Conferência Nacional de Direitos Humanos onde se propôs a ampliação dos permissivos para a prática do aborto legal, em consonância com os compromissos assumidos pelo Estado na Conferência realizada em Pequim. Em 2005, foi organizada a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres de onde partiu a decisão acerca da criação de uma Comissão Tripartite4 - com representação dos Poderes Executivo e Legislativo, além da Sociedade Civil - para discussão, elaboração e encaminhamento de proposta de revisão da legislação referente à interrupção voluntária da gravidez vigente. A comissão apresentou um anteprojeto à Câmara de lei que autorizaria o aborto até 12 semanas de gestação e ampliava situações permissivas em relação às previstas na legislação em vigor. O projeto foi arquivado em virtude do término da legislatura conforme os termos do 3 Conferências promovidas pela ONU na década de 90 que tiveram como alvo a propagação dos conceitos de saúde reprodutiva e de Direitos Sexuais e Reprodutivos, inclusive acerca do controle da própria fecundidade (Carvalho et al). A realização das conferências são o resultado da luta do movimento feminista e simbolizam ainda compromissos assumidos por várias nações a partir da consolidação dos direitos reprodutivos no plano internacional. Em tais plataformas foi recomendado o tratamento da questão do aborto ilegal de forma prioritária entendendo-o como um problema de saúde pública e não pela ótica criminal. Em decorrência das Conferências emergiram documentos que recomendavam a oferta de programas de saúde sexual e reprodutiva aos homens e mulheres de forma a amparar os avanços conceituais propostos. (COSTA, 1999; SARMENTO, 2012; CARVALHO et al, 2012). 4 Sarmento salienta em seu estudo que a instituição da Comissão Tripartide pelo Governo brasileiro estava “destinada a repensar o posicionamento do nosso Estado sobre o aborto, visando eventual elaboração de nova legislação sobre a matéria”. Da formação desta Comissão foi elaborada uma proposta de projeto de lei que buscava garantir o direito de decisão das mulheres sobre a maternidade, e ainda estabelecer prazo de ocorrência do procedimento da interrupção voluntária da gravidez, bem como fortalecer o planejamento reprodutivo. De acordo com CAVALCANTE & BUGLIONE, o projeto foi engavetado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, “devido às pressões de hierarquias religiosas e seus signatários leigos”. (CAVALCANTE & BUGLIONE, 2008, p. 131). artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados no dia 31/01/2011. 5 Após a aprovação da Constituinte, seis projetos de lei foram apresentados e em sua maioria vislumbravam a ampliação dos permissivos legais ou a descriminalização do aborto. Foram apresentadas várias proposições favoráveis à permissão da prática do aborto, acentuando com isto a reação conservadora. No âmbito do Legislativo, observou-se neste período um aumento da participação de atores políticos e sociais em busca de mudanças liberalizantes na legislação, assim como intensificou a reação contrária e de retrocesso em relação à lei. Apesar disto, nenhuma proposta substantiva foi aprovada. Ao longo da trajetória política de discussão do aborto, ganhou destaque a atuação de dois movimentos sociais: o feminista e de ativistas religiosos, em especial da Igreja Católica, que representam visões divergentes de mundo, de relações de gênero, de sexualidade e reprodução. Ainda tenha ocorrido avanços proporcionados pela redemocratização do país com maior visibilidade do tema e ampliação do debate, as modificações na legislação não foram significativas. Rocha (2006) ressalta a correlação de forças no parlamento que delineia uma queda de braço entre representantes do movimento feminista e ativistas religiosos gerando uma tensão que paralisa decisões, impedindo avanços na legislação. Esta colocação do autor vem de encontro às de Scavone (2008), que ressalta que o êxito das negociações propiciada pela redemocratização foram mais relevantes em nível político do que social, já que não alcançou uma sensibilização de camadas mais amplas da população. 5 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=16299, acesso em 03/06/12 O debate na literatura aponta que os argumentos religiosos contra a legalização do aborto são essencialmente de ordem ética e moral, de defesa dos direitos do feto, considerando sua prática um crime contra a vida. São enfatizadas proposições baseadas na “lei natural”, na verdade da fé católica e/ou religiosa que professam que a vida é dom de Deus. (ROCHA, 2006; DOMINGUES, 2008; ALDANA, 2008; SCAVONE, 2008) Na percepção de Aldana (2008), o movimento feminista propõe a defesa de questões de direitos reprodutivos, enfatizando, sobretudo, o grau de domínio que a mulher pode ter sobre o seu próprio corpo. Neste contexto, o aborto é considerado como um último recurso diante de uma gravidez indesejada. E como direito, reivindicam a possibilidade de realizar a interrupção voluntária da gravidez em condições humanas e seguras assegurando a saúde das mulheres. Contudo, observa-se que tratar de assuntos relacionados à sexualidade e reprodução, como o aborto, há uma visível influência de preceitos morais e religiosos que impregnam a vida política-social do país. Em face à situação descrita, Cavalcante & Buglione (2008) demonstram que esta realidade reflete a dificuldade de “consolidação da laicidade do Estado, numa perspectiva pluralista e democrática, e as conquistas de direitos das mulheres” (p. 111). Além disso, há o cerceamento da liberdade de crença e de pensamento a partir da hegemonia da moral cristã e da crença religiosa dominante fragilizando com isto a democracia brasileira. O debate sobre o aborto no âmbito político permanece na agenda do Congresso até os dias atuais. Muito recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu6, com ampla maioria, pelo direito ao aborto de fetos encefálicos o que gerou grande descontentamento entre entidades religiosas, acirrando também a polêmica em torno do tema na sociedade civil. 6 Decisão proferida em 11/04/2012 na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) de n° 54 proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Disponível em www.stf.jus.br. CAPÍTULO 2: A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS ACERCA DOS DIREITOS REPRODUTIVOS 2.1 - O impacto da ilegalidade do aborto na saúde e na vida da mulher Segundo estimativas publicadas em estudo da Organização Mundial de Saúde em 2012 e citado por LEAL (2012), o número de mulheres que se submetem a abortos inseguros anualmente no mundo é de aproximadamente 22 milhões. Grande parte deste montante acontece em países em desenvolvimento. O referido estudo traz ainda evidências de que quanto menos restritiva for a legislação em um país no que tange ao aborto, menor será sua prevalência. Da mesma forma, quanto maiores forem as restrições legais existentes, maior será o percentual de abortos provocados e realizados em condições inseguras. SILVA (1993) também constata uma inversão no panorama mundial da liberação do aborto com significativo incremento nas legislações permissivas em detrimento das restritivas no período entre 1971 e 1982. Sendo assim, hoje em dia vigora na grande maioria das nações uma legislação permissiva em relação a pratica do aborto. Essa situação reflete a mesma encontrada por COSTA (1999) ao salientar a tendência observada nas últimas décadas na maioria dos países do mundo em liberalizar as leis do aborto. Em contrapartida, a situação na América Latina seria exceção segundo SILVA (1993), já que foram poucos os países alteraram as leis implementadas. Confirmando as proposições de SILVA (1993) e COSTA (1999), SARMENTO (2012) destaca que desde a década de 60 do século passado, se assiste um fenômeno global de liberalização da legislação sobre o aborto. Neste contexto países como Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Espanha, Canadá, dentre tantos outros promoveram significativas alterações em suas proposições jurídicas, legalizando a interrupção voluntária da gravidez, balizada por determinados prazos ou indicações específicas. O autor salienta que tal alteração da ordem legal conferida ao aborto constitui também o cumprimento de compromissos internacionais estabelecidos nas Conferências promovidas pela ONU em 1994 e 1995. Em seu trabalho, SARMENTO (2012) traça um breve panorama dos embates jurisdicionais relevantes sobre a questão do aborto que simplificaremos à título de ilustração. De acordo com o autor, nos Estados Unidos, a questão do aborto não está diretamente regulada pela Constituição norte-americana. No entanto, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Texas que criminalizava a prática do aborto, definindo os parâmetros que os Estados deveriam seguir ao legislarem sobre o tema. Na França foi aprovada, em 1975, lei que permitia a realização do aborto por médico nas dez primeiras semanas de gestação, a pedido da gestante, quando alegue que a gravidez lhe cause angústia ou, em qualquer época, quando haja risco à sua vida ou saúde. Em 2001 foi promulgada nova lei que ampliou o prazo geral de possibilidade de interrupção de gravidez de dez para doze semanas e tornou ainda facultativa a consulta prévia em instituições de aconselhamento e informação, que antes era obrigatória. Já legislação italiana regulamentou detalhadamente em 1978 o aborto, conferindo à gestante o direito de solicitar sua realização nos primeiros noventa dias de gravidez nos casos de: risco à sua saúde física ou psíquica; comprometimento das suas condições econômicas, sociais ou familiares; em razão das circunstâncias em que ocorreu a concepção; ou em casos de má formação fetal. Também autorizou a realização do aborto em qualquer tempo quando a gravidez ou o parto representem grave risco de vida para a gestante ou se for verificado processos patológicos, anomalias fetais que gerem perigo à saúde física ou psíquica da mulher. No caso da Alemanha, foi editada lei em 1974 descriminalizando o aborto praticado por médico, a pedido da mulher, nas primeiras doze semanas de gestação. Em 1976 ocorreu um retrocesso na legislação proibindo o aborto em regra, contemplando exceções ligadas ao risco à saúde e vida da mãe e casos de patologia fetal, violação ou incesto e razões sociais e econômicas. Em 1992 foi promulgada nova lei que permitia a prática do aborto nos primeiros três meses de gravidez, desde que a gestante se submetesse a um serviço de aconselhamento. Em 1995, nova lei foi editada descriminalizando as interrupções de gravidez ocorridas nas primeiras doze semanas, estabelecendo procedimento pelo qual a mulher deve recorrer a um serviço de aconselhamento que tentará convencê-la a levar a termo a gravidez. Em Portugal ocorreu, em 1998, referendo que versava sobre a despenalização geral do abortamento, por vontade da gestante, realizado nas primeiras semanas dez semanas de gestação em estabelecimento oficial de saúde. No entanto, tal proposta foi derrotada apesar de um elevadíssimo índice de abstenção. Atualmente o aborto só é legal nesta nação em casos específicos, de risco de vida ou saúde materna, má formação ou doença incurável do feto e gravidez decorrente de violência sexual. Em 1985, foi aprovado na Espanha projeto de lei que permitia às gestantes a realização do aborto, por médico, em casos de risco grave à saúde física ou psíquica em qualquer momento; em caso de gestação decorrente de estupro, nas primeiras 12 semanas de gravidez; e em hipótese de má formação fetal nas primeiras 22 semanas. Prevalece na Espanha um conceito amplo de risco à saúde psíquica da mulher. Por fim, SARMENTO (2012) cita o caso do Canadá onde a Suprema Corte proferiu em 1988 o direito fundamental das mulheres à realização da interrupção voluntária de gravidez. O autor ressalta que nos países em que o aborto foi legalizado, não se constatou qualquer aumento significativo de tal prática, averiguando que “os efeitos dissuasórios da legislação repressiva são mínimos: quase nenhuma mulher deixa de praticar o aborto voluntário em razão de proibição legal”. Outros autores corroboram com esta ideia e destacam que a legalização do aborto não levou, segundo estudos já realizados, a um aumento da demanda pelo procedimento, mas sim a uma diminuição da morbi-mortalidade, assim como dos gastos públicos. (SANTIAGO, 2008) SARMENTO (2012) ainda acrescenta que a taxa de condenação criminal é absolutamente desprezível e conclui que, do ponto de vista prático, a criminalização do aborto tem produzido como principal consequência a exposição da saúde e da vida das mulheres, sobretudo as mais pobres, a riscos gravíssimos. Riscos estes que poderiam ser evitados através da implementação de políticas públicas mais eficientes. Ainda na percepção de SARMENTO (2012), na discussão contemporânea sobre o aborto não é admissível negligenciar o direito à autonomia reprodutiva da mulher assim como o reconhecimento de igualdade de gênero e a mudança de paradigma em relação à sexualidade feminina, que supera ideais machistas e patriarcais. Além disso, a legislação penal vigente impõe como consequência inexorável a exposição a riscos graves e desnecessários da vida das mulheres. Neste contexto, SARMENTO (2012) assevera que a revisão da legislação sobre o aborto torna-se um verdadeiro imperativo constitucional. Esta colocação do autor vem de encontro à proposição referenciada por LEAL (2012), quando afirma que ocorre no Brasil uma invisibilidade crônica do aborto ilegal assim como de suas implicações para a saúde da mulher. Esta autora ainda ressalta a urgência de políticas públicas no sentido de buscar soluções para a questão. Nesse âmbito, reforça que o aborto inseguro reflete um problema antigo de saúde pública que permanece sem soluções, a despeito das profundas transformações e do processo de consolidação da democracia nas últimas duas décadas no país. Analisando as definições fornecidas é possível inferir que o caráter de ilegalidade da prática do aborto favorece a sua clandestinidade, o que pode ser constatado pelo número elevado, apesar de subnotificado, de abortos provocados e realizados em condições inseguras. No que se refere ao abortamento inseguro, SANTIAGO (2008) além de citar como um problema de saúde pública, salienta que os dados sugerem uma pandemia de importância máxima na saúde da mulher. Este autor cita estimativas de que 68.000 mulheres morrem por ano em todo o mundo em decorrência do aborto inseguro, o que equivale a oito mil mulheres por hora. Nesse sentido, conclui que o aborto inseguro permanece como um dos grandes desafios globais mais negligenciados da saúde pública. O autor vai além ao apontar a apatia e desdenho para com a saúde das mulheres como causas subjacentes dessa pandemia global. 2.2 - Aspectos psicossociais do aborto: dificuldades e sutilezas de seu estudo De maneira geral, pode-se dizer que uma das escolhas mais importantes na vida da mulher diz respeito a ter ou não um filho tendo em vista que pode modificar radicalmente os projetos de vida da mulher. Em nossa cultura, o exercício da maternidade é ainda permeado de tabus e expectativa, muitas vezes associados a funções ou papéis sociais cristalizados e determinados pelas relações de gênero pré-estabelecidas. Sendo assim, compreender os motivos que levam uma mulher a cogitar a realização do aborto refletem frequentemente sua situação psicossocial em consonância com o sistema de valores e costumes da sociedade em que vive. Esse aspecto foi observado no estudo de COSTA (1999) ao afirmar que tais motivos têm sido objeto de muito interesse e especulação. Segundo a autora, pesquisas já realizadas enfatizam desde os fatores individuais – estado emocional ou características da personalidade – até variantes situacionais e sociais. BARTILOTTI (2002) sublinha que “o abortamento é uma situação de grande conflito, o qual não se faz sem deixar marcas e repercussões no equilíbrio emocional”. Na perspectiva desta autora, a gravidez traduz uma experiência que pode ser motivo de desespero pelo fato de que estão relacionados a um conjunto de fatores econômicos e sociais que, muitas vezes acabam gerando conflitos. A realização de um aborto implica num contraste de sentimentos que oscilam entre ‘pensar em abortar’ e ‘culpar-se por tal decisão’ que indica o quão profundamente sensibiliza a mulher e gera sofrimento físico e emocional (OSIS et al, 1996). Os sentimentos de arrependimento e remorso também são frequentemente encontrados como reações emocionais em consequência do aborto. (COSTA et al, 1995) A decisão pela interrupção de uma gestação implica frequentemente na necessidade de enfrentar o preconceito da própria família e de pessoas de sua rede de apoio, assim como da sociedade. Contribuem para a exasperação da dificuldade desta decisão as interferências da educação cristã hegemônica em nosso país, independentemente da vertente religiosa a que se pertença. (VIANA, 2008). Levando-se em consideração o contexto social, podemos inferir ainda que alguns processos gestacionais são considerados indesejáveis. Isto acontece, por exemplo, no caso das mulheres solteiras, das gestações resultantes de um estupro, incesto ou adultério e das mulheres que já tem filhos adultos. Sob esta perspectiva, a proposta analítica de LEAL (2012) versa sobre a existência de um imperativo moral no nível das relações sociais em que, diante de uma gravidez, deve-se assumir o filho, ou seja, há uma premissa moral que indica a proibição do aborto. No entanto, na perspectiva desta autora, tal premissa é, na prática, relativizada por situações concretas que coloca o aborto em níveis toleráveis. Neste sentido, a autora identifica, para fins de análise, a prática do aborto a partir de três categorias: os abortos toleráveis, os condenáveis e os recomendáveis. Nestas categorias, o que está “sub judice” não é a vida ou morte do embrião, mas a postura da mãe em assumir ou não a gravidez. Aqui a legitimidade social é dada pela capacidade aparente de desempenhar o papel de mãe e não pelo ato abortivo em si. Analisando os diversos níveis de legitimidade das práticas abortivas, LEAL (2012) faz algumas distinções que facilitam a compreensão dos arcabouços conceituais por ela apresentados. Os abortos provocados em momentos liminares (onde a condição pública de “grávida” ainda não foi estabelecida), e praticados a partir de uma interrupção “natural” ou “não cirúrgica” podem ser pensados como diferencialmente legítimos em face daqueles praticados de forma autoinfligida, ou seja, com utilização de sonda ou chás. Na primeira situação, não terá havido sequer a concepção, mas apenas uma “desordem” biológica. Já os abortos cometidos por um não “especialista”, ou seja, praticados por uma parteira ou aborteira são condenáveis, possivelmente pela associação a uma condição implícita de reconhecimento público da gravidez da mulher. Conforme disserta LEAL (2012), enquanto a primeira situação indica uma alteração ambígua e indefinida no corpo da mulher (às vezes até mesmo entendida como a menstruação que não desce), a segunda implica um caráter mutilador onde a conotação de gravidez do estado corporal está nítida. Em face dessa contingência, “estar grávida” ou “assumir um filho” reflete um processo de negociação social a partir da realidade da mulher onde recursos abortivos podem servir para corrigir uma desordem biológica, estrategicamente não reconhecida como gravidez. Outro aspecto apontado por LEAL (2012) em seu estudo, diz respeito a uma escala valorativa em relação ao aborto, sendo esta prática considerada mais grave quando praticada por mulheres que já tem filhos. Aqui o imperativo moral seria: “quem cria um, cria outro”, ou seja, se a mulher apresentou condições de “criar” um filho, não haveria impedimento social e pessoal de fazê-lo com outro. Assim, as provas de legitimidade e consecução do projeto reprodutivo já realizado pela mulher agravaria um aborto. Em face à situação descrita, a autora pondera: “Há uma reconhecimento de uma maior responsabilização do ato da concepção ou do controle sobre a reprodução para as mulheres que já passaram pelo aprendizado da maternidade. O fato de já ter um filho indica um estado irreversível de identidade da mulher, com fortes conotações morais, o que agravaria um aborto.”7 A partir desta reflexão, a autora atenta para a legitimação da gravidez biológica através do reconhecimento da gravidez social, avalizadas por uma série de condições morais e materiais que respaldam a decisão do “assumir”. Nesta lógica há uma divisão analítica da identificação da gravidez a partir de indicadores biológicos: sinais de alteração corporais, interrupção do fluxo menstrual e, por outro lado de indicadores sociais, relacionados aos aspectos de identidade social; se está casada ou não, se o parceiro vai assumir, o apoio da família, as condições financeiras e morais de criar a criança, o estágio do ciclo de reprodução da mulher entre outros. Assim, o julgamento moral e a criminalização do aborto “não dependeria de um fundamento biológico, mas antes das expectativas coletivas e dos acordos traçados em torno da gravidez”. Só após o reconhecimento público da gravidez através das negociações sociais e avaliações estratégicas há o reconhecimento do feto e, por conseguinte, de uma “criança que não tem culpa”. Ocorre então uma valorização cultural, positiva ou negativa, do processo gestacional que traz implicações para o julgamento social do aborto. 7 LEAL, O. F. “Levante a mão aqui quem nunca tirou criança!”: Revisitando dados etnográficos sobre a disseminação de práticas abortivas em populações de baixa-renda no Brasil. Revista Ciência e Saúde Coletiva, Nº 0042/2012. Disponível em <http:// www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/artigoint.php?id_artigo=9446>acesso em 15/03/12 Por conseguinte, LEAL (2012) conclui que o contexto social ampliado é fator determinante no modo com que se reconhece a existência ou não de uma gravidez. E acrescenta que “em um universo em que a maternidade é tão valorizada, a gravidez se apresenta como um momento crucial do ponto de vista sociológico”. Albuquerque (2008), por sua vez, a partir de uma análise histórica chama atenção para uma divisão social dos papeis da mulher e do homem no que tange ao exercício da paternidade e da maternidade. Segundo esta autora, o patriarcalismo e a estrutura hierárquica entre os membros da família eram características marcantes até o início do século XX. Assim, o homem exercia o papel de provedor e chefe da família, já a mulher era responsável pelo cuidado e zelo com a educação dos filhos e, portanto, “era ausente da cena pública e excluída da cidadania jurídica” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 140). Neste contexto, a procriação era uma das funções essenciais do casamento e também a única forma legítima da prática de relações sexuais. A partir da codificação deste modelo familiar qualquer hipótese que fora deste padrão significaria um atentado contra a moral social estabelecida. O contexto social impunha um rígido comportamento de conduta à mulher e sua inobservância gerava uma enorme pressão social, gestar um filho na condição de solteira já seria uma desonra e mais grave ainda se fosse fruto de uma relação extramatrimonial. Fatos que tornavam a mulher indigna da convivência familiar e alvo de discriminação e vergonha no meio social. (ALBUQUERQUE, 2008, p. 141). Ainda no que concerne aos aspectos psicossociais do aborto, SILVA (1993) chama atenção para achados de sua pesquisa que apontam a relação entre a incidência do aborto provocado e o estado conjugal das mulheres. Na percepção desta autora, as mulheres casadas e as solteiras, em contraste com as viúvas, divorciadas, unidas consensualmente são as que recorrem menos intensamente a essa prática. Nessa ótica, as gestações das mulheres casadas são as que com menor frequência terminam em aborto, enquanto as das solteiras têm esse fim com a maior frequência. Outro ponto observado pela referida autora em relação ao aborto provocado diz respeito ao diferencial em função do número prévio de filhos. Em seu estudo foi possível observar que entre as mulheres com nascidos vivos, à medida que se eleva o número de partos, diminui a ocorrência de aborto. Para as mulheres sem nascidos vivos constatouse que embora engravidem proporcionalmente menos, ao engravidarem, utilizam o aborto provocado com maior frequência que as mulheres com nascidos vivos. Esta colocação do autor vem de encontro às informações expostas por COSTA (1999) quando alega que a instabilidade da relação ou ainda a falta de apoio emocional e financeiro por parte do companheiro em relação à gravidez têm sido mencionados pelas mulheres como uma das razões para abortar. A autora cita ainda uma análise multivariada que revela a situação conjugal como o maior fator de risco independente para aborto induzido que resultou em hospitalização. Conforme as proposições desta autora, dados sugerem que as mulheres que vivem sozinhas têm uma probabilidade cinco vezes maior de viver um aborto induzido do que as casadas. Tal constatação aproxima-se das inferências de SILVA (1993) ao concluir que a união matrimonial estável – caso das mulheres casadas e viúvas – favorece o prosseguimento da gestação, enquanto os relacionamentos instáveis “revelam-se um fator de incremento à ocorrência do aborto provocado”. Emergem aqui a discriminação e os problemas sociais relacionados à gestação de mulheres não casadas. Por conseguinte, estas mulheres parecem recorrer ao aborto como uma maneira de se livrarem de uma gravidez inoportuna, discriminada socialmente. Observa-se ainda uma escassa utilização de alternativas contraceptivas para evitar uma gravidez indesejada, haja vista que um número significativo de mulheres inicia sua vida reprodutiva com a provocação de um aborto. Em síntese, SILVA (1993) demonstra que a incorporação provocado, dos está métodos contraceptivos, estreitamente relacionada inclusive com o os aborto valores socioculturais das mulheres. Igualmente importante para compreendermos o contexto social da prática do aborto, diz respeito às relações de gênero. A este respeito, SILVA (1993) sinaliza que a mulher sempre aparece como protagonista da opção do aborto sem a devida responsabilização do marido ou companheiro (permanente ou transitório), dos pais, da família, das igrejas, da empresa, dos filhos, dos médicos. Neste contexto a penalização, principalmente social, é exclusivamente voltada para a mulher. Frequentemente a mulher aparece como uma criminosa, que, isoladamente, decidiu cometer um delito. Outro detalhe importante relativo ao contexto social do aborto, e que é bem ressaltado por CARVALHO et al. (2012), é que a indução desta prática é utilizada por mulheres pobres como uma forma de controlar sua fertilidade, considerando-se a falta de conhecimento na obtenção dos métodos de planejamento familiar, associados ainda à ampla disponibilidade de drogas abortivas. Segundo pesquisadores, a interrupção da gravidez costuma ser mais comum entre mulheres de menor escolaridade, fato que pode estar relacionado a outras características sociais das mulheres de baixo nível educacional (DINIZ & MEDEIROS, 2010). Ocorre que o aborto provocado tende a ser visto exclusivamente como um problema médico, deixando em segundo plano os aspectos psicológicos e sociais aplicados. Desta forma, a maioria dos estudos realizados sobre o assunto é feita por meio do levantamento de informações hospitalares e concentrando-se nos aspectos médicos. No entender de COSTA et al (1995) o resultado desta visão médica da questão é ausência de pesquisas sobre as circunstâncias sociais e fatores emocionais que exerceriam influência sobre a decisão de abortar. Também são escassos os estudos sobre o processo de decisão de aborto ou das suas repercussões na saúde mental das mulheres. Partindo das considerações acima referidas é possível inferir que a causa da maior parte dos abortos realizados no Brasil não é decorrente da intercorrência médica, e se encontram associada a fatores de ordem psicossocial (BARTILOTTI, 2002). Nesta perspectiva, é possível inferir que os fatores emocionais e sociais representam peso significativo no processo de decisão das mulheres para efetuar ou não ao aborto. Tais aspectos apontam ainda para a necessidade de algumas reflexões importantes para a compreensão da prática do aborto de forma mais sistêmica e global. Corroborando tal proposição, MENEZES & AQUINO (2009) destacam que a investigação do aborto requer cuidados metodológicos específicos, com implicações éticas no manejo do tema. Estas autoras assinalam que a “maioria das pesquisas está concentrada em populações específicas, sendo estas, em sua maioria, mulheres admitidas em hospitais públicos com aborto incompleto”. Sendo assim, apresentam um viés de seleção posto que se reporta à apenas uma parcelas dos abortos, aqueles com complicações e que demandam hospitalização. Presume-se que as particularidades sociais e psicológicas em torno da questão do aborto implicam em dificuldades no seu relato pelas mulheres, especialmente em contextos de ilegalidade, como no Brasil. A pesquisa em torno do tema também é dificultada pela ausência de dados abrangentes e confiáveis sobre o assunto, conforme sinaliza (OSIS et al., 1996). Nessa ótica, observou-se que as mulheres tendem a omitir informação sobre a prática do aborto, além daquelas que não reconhecem o uso de chá ou medicamentos como práticas abortivas. Existe ainda certa resistência das mulheres em assumirem a indução do aborto devido ao desconforto psíquico em abordar o tema. Assim, “admitir ou não a prática do aborto está relacionado ao significado da gravidez indesejada e da sua interrupção ou não no imaginário de cada mulher”. O sub-registro e a classificação errônea também são frequentes, segundo COSTA (1999). Desta forma, é corriqueira a relutância dos profissionais de saúde em registrar corretamente o evento em prontuários hospitalares, por causa das sanções legais aplicáveis. Sob ótica semelhante, SILVA (1993) assinala que as sutilezas da vida emocional e afetiva das mulheres assim como as relações sociais, culturais e morais em torno da questão são motivos que levam a omissão de informações sobre a provocação do aborto. Salienta esta autora que “o Brasil enquadra-se, seguramente, entre os países que apresentam as estatísticas mais deficientes acerca da ocorrência do aborto provocado”. Conclui que a omissão destas informações mostrase coerente com os padrões sócio-morais vigentes em nossa sociedade. Na visão de CARVALHO et al (2012), a situação de ilegalidade do procedimento pode determinar a falta de confiabilidade dos dados coletados. Na mesma perspectiva, LEAL (2012) conclui que dados etnográficos “juntamente com questões relativas à ilegalidade do aborto, permite levantar hipóteses sobre eventual subestimativa de taxa de aborto no caso brasileiro”. 2.3 - O aborto como um direito: a urgência da formulação de novas políticas públicas O abortamento inseguro e clandestino é potencialmente danoso para a saúde das mulheres e invocam a elaboração de políticas públicas que levem em consideração as particularidades e sutilezas diretamente relacionadas a tal situação. A magnitude da prática do aborto inseguro na realidade brasileira e mundial também aponta a necessidade de direcionar esforços na busca da compreensão do comportamento de fecundidade das mulheres visando uma abordagem mais ampla de saúde e dos direitos reprodutivos. Ademais, a proteção ao direito constitucional à saúde da mulher, assim como o direito à liberdade e privacidade, indica a urgente reforma da legislação brasileira, visando a descriminalização do aborto e a realização dos procedimentos de interrupção voluntária da gravidez pelo Sistema Único de Saúde. Pode citar com mais SARMENTO (2012) pontua que a criminalização do aborto, conforme estabelecida na legislação brasileira, atinge duplamente o direito à saúde das mulheres. Por um lado, ocorre a lesão aos direitos das gestantes na medida em que são obrigadas a levar a termo gestações que representam risco à sua saúde física ou psíquica, sendo que a última não configura como uma hipótese de aborto autorizada pela legislação. Além disso, ocorre uma lesão coletiva ao direito de saúde das mulheres em idade fértil já que o principal efeito prático das normas repressivas acarreta em milhares de gestantes, sobretudo as mais pobres, que se submetem a procedimentos clandestinos. Entretanto, embora esteja previsto no código penal o aborto como um crime, é possível constatar a total ausência de dados relativos às consequências previstas. Cumpre reconhecer que a tal delito não é atribuída significativa importância pela sociedade nos dias atuais e, desta forma, não há clamor público no sentido de reprimir a conduta delitiva, conforme destaca DOMINGUES (2008). Assim sendo, a ênfase dada pelo referido autor, é de que “não existe razão suficiente para a manutenção de normas incriminadoras no ordenamento jurídico que não cumprem o seu papel subsidiário de conformação de condutas e repressão de desvios”. Ressalta o mesmo autor que a conservação do aborto como crime acirra a desigualdade existente entre homens e mulheres, dificultando às últimas de acessar possibilidades e concorrer em condições igualitárias no mercado de trabalho e nas relações sociais como um todo. Neste ponto, cumpre enfatizar a questão dos direitos reprodutivos como uma questão de democracia, uma questão de política. A matriz desta ideia traz a tona o debate acerca das relações assimétricas de gênero. Conforme a perspectiva de SARMENTO (2012), o fato de a gestação desenvolver-se no interior do corpo feminino tem particular relevância. Neste sentido, o autor considera a imposição à gestante de que mantenha uma gravidez contra a sua vontade uma intrusão intensa e grave sobre seu próprio corpo. A proibição ao aborto viola ainda a igualdade entre os gêneros, posto que subjuga as mulheres ao infligir exclusivamente a elas o ônus decorrente e impactos desproporcionais. Tal situação tende a perpetuar a assimetria de poder entre os gêneros, marcante em nossa sociedade. Neste contexto, a maternidade precisa ser concebida como uma decisão livre e desejada e não uma obrigação social imposta à mulher. Portanto, é imperativa a formulação de políticas públicas que garantam à mulher decidir soberanamente se quer ou não ser mãe, reconhecendo assim sua autonomia. Essas premissas encontram-se em conformidade com as ideias apresentadas no “Manifesto da Frente Nacional pelo fim da criminalização e pela legalização do aborto”, datado de setembro de 2008, conforme trecho que transcrevemos a seguir: A maternidade deve ser uma decisão livre e desejada e não uma obrigação das mulheres. Deve ser compreendida como função social e, portanto, o Estado deve prover todas as condições para que as mulheres decidam soberanamente se querem ou não ser mães, e quando querem. Para aquelas que desejam ser mães devem ser asseguradas as condições econômicas e sociais, através de políticas públicas universais que garantam a assistência a gestação, parto e puerpério, assim como os cuidados necessários ao desenvolvimento pleno de uma criança: creche, escola, lazer, saúde. As mulheres que desejam evitar gravidez devem ser garantido o planejamento reprodutivo e as que necessitam interromper uma gravidez deve ser assegurado o atendimento ao aborto legal e seguro no sistema público de saúde. (FLEISCHER, anexo 1, 2009, p. 105) Além da questão da busca pela igualdade de gênero, a problemática do aborto ainda implica a desigualdade social, já que as mulheres provenientes de situação socioeconômica desfavorável são as grandes vítimas do modelo repressivo vigente. E é relevante destacar, neste ponto, que as mulheres pobres, negras e jovens, do campo e da periferia das cidades, são as que, em sua maioria, mais recorrem a clínicas clandestinas e a outros meios precários e inseguros. Isto porque não têm acesso às ofertas da rede privada, que cobra preços altos. Também não podem viajar a países onde o aborto é legalizado, opções utilizadas pelas mulheres ricas, conforme discute FLEISCHER (2009). Vale lembrar que as formas de abortamento induzido são as mais diversas e refletem a precariedade em que vivem estas mulheres. Segundo SANTIAGO (2008), há registros de mulheres que se submeteram a formas desumanas e desesperadas de realização do aborto: introdução de osso de galinha, de faca doméstica ou de cabide de roupas; uso de chás caseiros, alguns produzidos com drogas tóxicas; e até traumas autodeferidos sobre a região abdominal. Com base nestas premissas teóricas é mister reconhecer a necessidade de reformulação da normas legais vigentes, descriminalizando a prática do aborto. Utilizando palavras de SARMENTO (2012), “a proibição do aborto não salva vidas de fetos, mas mata muitas mulheres e impõe graves sequelas a outras tantas”. Paradoxalmente, pode-se argumentar que a legalização do aborto é uma etapa necessária, mas insuficiente para eliminar o aborto inseguro. Em contrapartida à criminalização do aborto, necessitamos de políticas integrais de saúde sexual e reprodutiva que contemple as condições necessárias para práticas sexuais seguras. Neste sentido, a criação de mecanismos extra-penais para evitar a banalização do aborto, relacionados à educação sexual, ao planejamento familiar e ao fortalecimento da rede de proteção social voltada para a mulher são de fundamental importância. E, além de remover a interdição legal ao aborto, é preciso garantir a realização de procedimentos médicos necessários no sistema público de saúde, propiciando o acesso a tal serviço pelas camadas sociais mais vulneráveis, como bem destacado por SARMENTO (2012). Em 1998, o Ministério da Saúde elaborou norma técnica8 que inclui o atendimento às mulheres com gravidez decorrente de estupro e que solicitam o procedimento de interrupção da gestação na saúde pública. Neste particular, ROCHA (2004) cita, em seu estudo, a constatação das dificuldades da implementação do conjunto de serviços que prestam atendimento ao aborto legal no país. No mesmo sentido, VIANA (2008) demonstra que, apesar dos esforços de profissionais, de grupos sociais e do próprio poder público, até hoje o número de serviços existentes de assistência à mulher para os casos de aborto legal não é suficiente e não está distribuído adequadamente pelo país. Além disso, a divulgação dentro dos próprios serviços de saúde e junto à população é insuficiente, inviabilizando o acesso às mulheres. Por outro lado, acrescenta-se a esta situação a baixa qualidade do atendimento registrado na realização do procedimento de interrupção de gestação. Conforme disserta MENEZES & AQUINO (2009), a atenção dispensada às mulheres que praticam o aborto “está centrada em cuidados corporais, muitas vezes de modo técnico e impessoal, com pouca escuta e atenção às necessidades das mulheres”. Frequentemente o tempo de espera para a realização da curetagem é longo e raramente são fornecidas explicações sobre os procedimentos realizados ou sobre os cuidados requeridos pós-procedimento. Ainda no que concerne a tal situação os mesmos autores citam estudo etnográfico realizado em uma maternidade pública de Salvador onde fica demonstrado que as unidades onde são realizados estes 8 BRASIL. “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, publicada em 1999. procedimentos são pensadas exclusivamente como espaço destinado às parturientes. Assim concluem: Para além dos maus tratos na relação profissional/usuária, discute-se como a discriminação é também simbólica e está institucionalizada na estrutura física, nos espaços destinados às mulheres que abortam e na forma de organização do atendimento9. Tal constatação aproxima-se dos resultados encontrados em pesquisa realizada por GESTEIRA, DINIZ & OLIVEIRA (2008) através de uma abordagem qualitativa com profissionais de equipe de enfermagem de uma maternidade pública. Foi constatado pelas autoras que mesmo nos casos do aborto legal e após o devido processo judicial com sentença favorável à interrupção da gravidez, tal prática permanece sendo considerada pelas profissionais de enfermagem como crime. Além disso, restou concluído neste estudo que as profissionais de enfermagem percebem o abortamento também como pecado por contrariar dogmas religiosos e culpabilizam as mulheres por ferirem a “lei de Deus”. Outro aspecto ressaltado pelas referidas autoras é que as profissionais de enfermagem “declaram priorizar a assistência às parturientes, puérperas e gestantes de alto risco em detrimento da assistência às mulheres que abortam”, evidenciando assim atitudes discriminatórias. Estas profissionais trazem à tona em seus discursos a negação do exercício dos direitos reprodutivos da mulher, influenciando sobremaneira a assistência prestada nos casos de aborto provocado. Torna-se fundamental, em suma, a implantação de políticas públicas com relação à assistência à mulher dando especial atenção à relação dialógica entre profissional e usuária. Desta forma, prioriza-se a implantação da política de humanização da assistência às mulheres em processo de aborto provocado. 9 MENEZES, G. AQUINO, E. M. L. Pesquisa sobre aborto no Brasil: subsídios para as políticas públicas de saúde. Rev. Promoção da Saúde, Brasília, v.3, n.6, out. 2002. P. 196. Outro aspecto que merece atenção quando se discute a questão do aborto, diz respeito à melhoria da contracepção que também pode auxiliar muito na redução do nível de gravidez indesejada. Com base nesta premissa, SILVA (1993) aponta para a necessidade de maiores esforços para o esclarecimento, divulgação e acesso aos métodos contraceptivos disponíveis. Além disso, é essencial dispensar maior atenção à implementação de meios anticoncepcionais adequados ao período inicial da vida reprodutiva, uma vez que, tido como eficazes, pílula e DIU ainda apresentam contraindicações. Tendo em vista as particularidades do comportamento de fecundidade apontadas por SILVA (1993), salienta-se a necessidade de políticas públicas na área da saúde, sobretudo da saúde reprodutiva, direcionadas para propiciar os devidos esclarecimentos, bem como o acesso a mecanismos adequados de regulação do ciclo reprodutivo das mulheres. Portanto, é imperativo um maior investimento na formulação de políticas além da sensibilização dos gestores públicos no sentido da implementação de medidas que reflitam maior impacto sobre a habilidade das mulheres de um melhor planejamento da gravidez. Tal proposição pode ser alcançada através de melhorias na disponibilidade e qualidade de informação e os serviços de contracepção e planejamento familiar na rede pública de saúde. (COSTA, 1999) De acordo com o estudo de ROCHA (2004), a principal referência quanto à legislação sobre planejamento familiar no Brasil é a Constituição Federal de 1988, em seu parágrafo 7º, artigo 226. Posteriormente, nos anos de 1996 e 1997 o dispositivo constitucional foi regulamentado por meio da lei Nº 9263/96 que propôs uma visão mais abrangente de planejamento familiar na perspectiva de assistência integral à saúde. A política pública brasileira referente ao planejamento familiar no Brasil é parte integrante do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM)10, formulado em 1983 e regulamentado em 1986, pelo Ministério da Saúde. Todavia, a implementação deste programa encontra dificuldades tendo em vista que atinge uma quantidade relativamente pequena de mulheres, assim como presta atendimento de maneira limitada em relação à proposta original, conforme salienta ROCHA (2004). Ao analisar o processo de implementação do PAISM, COSTA (1999), de maneira similar, aponta alguns impasse e desafios, entre eles o baixo impacto nos indicadores de saúde. No entanto, defende que, no tocante ao âmbito conceitual e das políticas para a saúde das mulheres, o PAISM satisfaz inteiramente. A autora faz ressalvas quanto aos necessários ajustes e adequações ao programa de forma a abarcar a dinâmica e complexa realidade epidemiológica. Contrapondo tais premissas, CARVALHO et al. (2012) assinalam que mesmo se constituindo em uma das ações do PAISM, o atendimento à demanda por contracepção não tem encontrado resposta suficiente nos serviços públicos de saúde. Os autores problematizam a escassez de programas de planejamento familiar assim como a irregularidade na provisão de métodos para distribuição gratuita. Há ainda carência de profissionais treinados e clareza sobre ações programáticas. Estas deficiências contribuem para a inadequação das medidas contraceptivas com consequente ocorrência de gestações não planejadas e abortos inseguros. É importante repisar que a reavaliação da legislação vigente e a melhoria das formas de contracepção são iniciativas já previstas, recomendadas e aprovadas pelo governo brasileiro durante a conferência sobre população e desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994. 10 Segundo Costa (1999), “o PAISM constitui-se de um conjunto de diretrizes e princípios destinados a orientar toda a assistência oferecida às mulheres das distintas faixas etárias, etnias ou classes sociais, nas suas necessidades epidemiologicamente detectáveis – incluindo as demandas específicas do processo reprodutivo. Compreende, ainda, todo o conjunto de patologias e situações que envolvam o controle do risco à saúde e ao bem-estar da população feminina.” De qualquer sorte, o acesso à contracepção pode reduzir, mas não elimina a necessidade das pessoas a praticarem o aborto. A alteração deste quadro reflete a necessidade de atuação em vários campos a partir de ações articuladas e intersetoriais. São dignas de nota as considerações de SANTIAGO (2008) acerca da urgente elaboração de uma política de saúde em termos de prevenção das complicações decorrentes do abortamento inseguro. O autor cita as propostas de políticas da Organização mundial de Saúde que preconizam a “realização de procedimentos de interrupção em condições salubres, dentro de limites de adequação médica e sanitária”. A partir desta premissa, a referida autora apresenta propostas para a diminuição da mortalidade e morbidade maternas, associadas ao aborto inseguro, em níveis de prevenção primária, secundária e terciárias. Nas ações primárias o foco seria a redução da necessidade de procura pelo abortamento com proposta de criação e implantação de políticas amplas de planejamento familiar, facilitando seu acesso e conscientizando acerca da sua responsabilização pelo casal e não exclusivamente pela mulher. Além disso, a prevenção primária tem como objetivo a realização do aborto em condições sanitariamente corretas com capacitação profissional a partir da legalização do aborto. A prevenção secundária aconteceria no âmbito da capacitação para o reconhecimento e a abordagem das complicações clínicas. Já a prevenção terciária prevê o controle de longo prazo das complicações e suporte hospitalar às condições clínicas difíceis e reparo cirúrgico de outras situações. Neste ponto, cumpre esclarecer que a implementação de políticas públicas para solucionar a problemática do aborto não implicaria numa exacerbação dos gastos pelo Estado. SARMENTO (2012) frisa que apesar da ilegalidade do aborto no país, o Governo já gasta atualmente vultosos recursos para tratar as consequências clandestinos sobre a saúde das mulheres. dos abortos Seguindo a mesma linha de raciocínio, COSTA (1999) cita estudo realizado no estado do Rio de Janeiro que calculou gastos de hospitais públicos com procedimentos decorrentes de situação de abortamento. Utilizando dados do DATASUS este estudo chegou a estimativas acerca dos custos advindos de tratamentos e internações após a prática do aborto. Conclui-se que a quantia destinada às internações por complicações de abortamentos de curetagens seria suficiente para o Estado garantir a realização de 62.600 abortos seguros, o que representa 91% dos 68,649 abortos estimados para o estado do Rio de Janeiro no ano de 1991. O estudo mostrou ainda que, ao reduzir o custo de aborto para o valor cobrado pelo setor privado permitiria ao governo oferecer aborto seguro para todas as mulheres que procuraram o recurso e ainda garantir verba para planejamento familiar. Diante das considerações apresentadas, convém destacar que o aborto não pode ser tratado como um simples método anticoncepcional. Além disso, tanto a vida do nascituro como os direitos fundamentais à saúde, à privacidade, à autonomia reprodutiva e à igualdade da mulher são interesses constitucionalmente relevantes, que merecem ser devidamente protegidos. No entanto, já restou comprovado a partir de experiências nacionais e internacionais que o meio de proteção mais adequado do nascituro não é pela via da repressão criminal. Faz-se necessário a ampliação dos investimentos em planejamento familiar e educação sexual, políticas de gênero eficientes que garantam a oferta de creches e o combate ao preconceito contra a mulher grávida no ambiente de trabalho, e o fortalecimento da rede de segurança social. Outra perspectiva à questão do aborto é verificada pelo caminho da juridicionalização que já vislumbra algumas propostas. Existe um projeto de lei de nº 3.220/2008 proposto pelo Deputado Sérgio Barradas Carneiro que consiste na possibilidade da genitora doar a criança sem ser identificada, anonimamente, ficando isenta de responsabilidade civil e penal. Os idealizadores de tal proposta acreditam que a criminalização de práticas de aborto e de abandono de crianças só agrava a situação, já que os genitores, por temor à punição, acabam por procurar “soluções”, as mais clandestinas possíveis para uma gravidez indesejada. A instituição do “parto anônimo” não apenas seria uma alternativa para evitar o aborto e assegurar o anonimato da mãe, como também representaria uma política pública de proteção à criança. (ALBUQUERQUE, 2008) CONSIDERAÇÕES FINAIS O tema estudado, aborto inseguro, saúde da mulher e políticas públicas, reflete diferentes considerações construídas essencialmente com bases em valores morais, religiosos e culturais que desconsideram questões atinentes à dignidade e à saúde da mulher. Na literatura utilizada, estudiosos da temática apontaram inclusive para a presença de fundamentos religiosos no contexto do poder Legislativo através da presença marcante de setores conservadores contrários à descriminalização do aborto. Há que se chamar a atenção para a necessidade de desvinculação da questão do aborto de uma visão exclusivamente religiosa quando, oportunamente, o Estado passará então a assumir uma posição laica a esse respeito. Com base nestes questionamentos, é possível inferir ainda acerca de interferências do Estado em uma decisão de âmbito privado, qual seja, a escolha de ter ou não um filho, ou ainda, o direito de optar ou não pela maternidade. Vê-se, por conseguinte, uma tendência ao controle e publicização em torno do corpo feminino com notáveis prejuízos para a almejada equidade de gênero. Um ponto que merece destaque e que se pôde concluir com estudo, diz respeito à urgência pela revisão da legislação penal vigente em relação ao aborto, conforme convencionado em protocolos e compromissos internacionais já mencionados. Do mergulho e da compreensão realizados, foi possível aferir que, se por um lado as interdições legais ao aborto não tem contribuído para evitar a sua prática, por outro, colaboram para sua realização de forma clandestina e insegura à saúde da mulher. Há que se destacar, neste ponto, a genuína preocupação com uma possível banalização da prática do aborto decorrente de sua descriminalização. Neste sentido, é possível argumentar, a partir dos arcabouços conceituais empregados que esta situação poderá ser evitada a partir da implementação de políticas públicas voltadas para a educação sexual, planejamento familiar e fortalecimento da rede de proteção social direcionada à mulher. Neste contexto, também foi possível vislumbrar, a partir do estudo bibliográfico, uma crescente e exitosa tendência à liberalização da legislação sobre o aborto em uma gama de nações, sobretudo em razão da proteção dos direitos humanos e dos direitos reprodutivos, sendo os últimos entendidos como direito ao livre exercício da sexualidade humana. É preciso sublinhar, entretanto, a insuficiência, do ponto de vista prático, da descriminalização da prática do aborto no campo dos direitos reprodutivos sem equivalente garantia da realização dos procedimentos pelo sistema público de saúde. Tal medida torna-se fundamental quando se compreende o fenômeno do aborto inseguro como uma realidade que atinge em sua grande maioria mulheres de baixo poder econômico. É ainda importante destacar a existência de uma força simbólica acerca da interdição penal em torno do aborto, ainda que tal prática frequentemente não resulte em condenação, conforme ressaltado em literatura pesquisada. Em nossa sociedade é marcante a tendência de práticas sociais preconceituosas assim como acentuada intolerância moral em relação à mulher abortiva, visto não assumir os compromissos socialmente convencionados à maternidade. Um dos grandes desafios que se coloca posto, diz respeito à discussão do assunto junto à sociedade civil. Neste particular, faz-se necessário uma decodificação dos conceitos de maternidade e maternagem, vislumbrando principalmente o alcance, ainda que em longo prazo, de mudanças culturais que favoreçam a questão da autonomia reprodutiva das mulheres. Contudo, é possível concluir que a sociedade brasileira ainda carece de maiores informações sobre o tema, reconhecendo que a prática do aborto é real e incide de forma preocupante na experiência de milhares de mulheres. No tocante aos estudos e pesquisas científicas sobre o assunto, verificou-se que a investigação do aborto abrange especificidades não apenas no que tange a cuidados metodológicos particulares e à implicações éticas no manejo, mas sobretudo no contexto de subnotificação decorrentes do caráter ilícito da prática. Em suma, há uma infinidade de lacunas e desafios que invocam investigações mais aprofundadas sobre o aborto. Neste âmbito, cabe ainda o questionamento acerca de uma possível associação entre as dificuldades de realização de pesquisas sobre o aborto e a inexistência de políticas públicas mais adequadas no diz respeito aos direitos reprodutivos. Esta problemática ainda nos leva a inferir acerca da ineficiência das políticas públicas atuais em garantir as condições para o planejamento reprodutivo que, por sua vez, parecem contribuir para a uma maior incidência do aborto inseguro. Não obstante, há que se questionar também acerca da inexistência de políticas públicas preventivas que toma contornos ainda mais agravantes pela prevalência de medidas repressivas e punitivas para questões de base fundamentalmente social. O contexto brasileiro evidencia o predomínio de práticas estatais punitivas que representam, sobretudo, formas de conter comportamentos moralmente reprováveis em detrimento de ações que considerem a proteção a direitos já instituídos em plataformas internacionais. Sendo assim, este trabalho aponta para a pertinência da formulação de políticas públicas voltadas para questões de saúde reprodutiva. Ainda que não seja possível aferir sobre dados oficiais da prática do aborto, em razão da ilegalidade, não se pode ignorar as evidências empíricas e estimativas acerca de sua magnitude. Neste contexto, o enfrentamento desta situação reflete um problema social e, em particular, de saúde pública. Tal situação sinaliza a necessidade de elaboração de projetos e programas que busquem acolher a mulher que vive gravidez indesejada, investindo na promoção de sua autonomia e no respeito à decisão que possa vir a tomar frente àquela realidade. Estes projetos e programas poderiam oferecer o apoio necessário tanto na prevenção da gravidez indesejada, quanto no acompanhamento prévio e pós a tomada de decisão acerca da interrupção ou não da gestação. Visando a eficácia e eficiência desta proposta, as ações poderão ocorrer em diferentes frentes: uma delas seria a conscientização da comunidade acerca dos direitos reprodutivos através de campanhas que visem à desmistificação dos papeis da mulher/mãe e também da mobilização da sociedade civil para que a atenção a estas mulheres passe a ser prioridade na agenda política. Outra frente seria a busca pela superação de atitudes preconceituosas por parte dos profissionais que compõem os serviços públicos de saúde destinados à realização do procedimento do aborto. Uma ação igualmente importante está relacionada à capacitação dos profissionais dos serviços de atendimento a gravidez indesejada, no sentido de buscar compreender os motivos para a interrupção da gestação, realizar intervenções e ofertar alternativas, tais como a proposta do “parto anônimo”, que possam ampliar o espectro de decisões da mulher. Neste processo é igualmente importante propiciar um contexto adequado ao pleno exercício dos direitos reprodutivos, incluindo aí o de decidir sobre o calendário da própria maternidade. Propostas como estas podem propiciar ainda, em longo prazo, mudanças culturais acerca do papel social da mulher a partir da contraposição entre o exercício da maternidade e o desejo de maternar. A implementação de políticas similares podem ainda fomentar discussões acerca das relações de gênero internalizadas socialmente e que contribuem enormemente para a condenação legal e moral da mulher que não deseja assumir a maternidade. Vimos que a culpabilização da mulher e a sobrecarga feminina em torno das tarefas de procriação contribuem em grande parte para a prática do aborto, posto que esta vislumbra como uma forma encontrada de lidar com a gravidez indesejada. Cabe ressaltar que a efetividade deste tipo de proposta dependerá de estratégias intersetoriais e articuladas na sua implementação. A elaboração e execução de políticas públicas que visem oferecer espaço de escuta e acolhimento, serviços de orientação e assistência à mulher frente à decisão de abortar ou não pode se mostrar eficiente. A diminuição da ocorrência dos abortos inseguros demanda ações que extrapolam o âmbito da saúde. Investimentos em educação são necessários, primando pela inserção da educação sexual nas escolas em uma perspectiva não-sexista e não-homofóbica e também na ampliação do número de creches e escolas. As perspectivas de solução para o problema exposto abarcam a discussão, elaboração e implementação de políticas públicas efetivas, que certamente poderão contribuir para a diminuição da ocorrência dos abortos inseguros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALDANA. M. Vozes católicas no Congresso Nacional: aborto, defesa da vida. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, V. 16, maio- agosto. 2008 ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. O instituto do parto anônimo no Direito brasileiro. 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