A viagem do Beagle Livro 2 09

Transcrição

A viagem do Beagle Livro 2 09
CAPÍTULO XI
ESTREITO DE MAGALHÃES:
CLIMA DAS COSTAS DO SUL
Estreito de Magalhães – Port Famine – Escalada do Monte Tarn
– Florestas – Fungos comestíveis – Zoologia – Alga gigante – Deixando a Terra do Fogo – Clima – Árvores frutíferas e as produções
das Costas do Sul – Altura da linha de neve na cordilheira – Descida
de geleiras para o mar – Formação de icebergs– Transporte de blocos
– Clima e produções das Ilhas Antárticas – Preservação de carcaças
congeladas – Recapitulação
No final de maio, 1834, entramos, pela segunda vez, na
abertura oriental do estreito de Magalhães. Ambos os lados
dessa parte do estreito consiste em planícies quase niveladas,
como aquelas da Patagônia. O Cabo Negro, um tanto para dentro do segundo canal, pode ser considerado como o ponto onde
a terra começa a assumir as características peculiares à Terra
do Fogo. Na costa leste, ao sul do estreito, o cenário semelhante a um parque partido conecta de maneira similar essas
duas regiões que estão opostas uma a outra em quase todas
as características. É realmente surpreendente encontrar em um
espaço de 32 quilômetros tamanha mudança na paisagem. Se
tomarmos uma distância ainda maior, como entre Port Famine
e a Baía Gregory, que é de aproximadamente cem quilômetros,
a diferença é ainda mais fantástica. Se no primeiro local encontramos montanhas escondidas por florestas impenetráveis que
são encharcadas com as chuvas trazidas pelas perpétuas sucessões de vendavais, no segundo há um céu claro e azul sobre as
planícies secas e estéreis. As correntes atmosféricas1, embora
1. As brisas de sudoeste são geralmente muito secas. Quando estávamos ancorados no cabo Gregory no dia 29 de janeiro, um vendaval muito forte de oeste para
sul limpou o céu, deixando-o com poucas nuvens; a temperatura era de 57º (14º
C), o ponto de orvalho 36º (2º C), a diferença 21º (-6º C). No dia 15 de janeiro,
pela manhã, quando estávamos no Porto San Julian, enfrentamos um vento suave
com muita chuva, seguido por uma forte ventania com chuva (continua na p. 16)
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rápidas, turbulentas e aparentemente não limitadas por qualquer tipo de barreira, ainda assim pareciam seguir, como um
rio em seu leito, um curso determinado e regular.
Durante a nossa visita anterior (em janeiro), tivemos, no
cabo Gregory, um encontro com os famosos gigantes da Patagônia, que nos deram uma recepção muito cordial. Sua altura
parece maior do que realmente é por causa de suas grandes
mantas de guanaco, seus cabelos longos e soltos e o aspecto
geral de suas figuras. Em média, sua altura é de aproximadamente um metro e oitenta, com alguns homens mais altos e
apenas uns poucos mais baixos. As mulheres são igualmente
altas. É certamente a raça mais alta que vimos em qualquer
lugar. Sua aparência lembra muito a dos indígenas que vi mais
ao norte na companhia de Rosas, mas esses têm uma aparência
mais selvagem e mais formidável. Suas faces eram pintadas de
vermelho e preto, e um homem usava pinturas brancas, como
as dos fueguinos. O capitão Fitz Roy se ofereceu para levar
três deles a bordo, escolhidos aleatoriamente, e todos pareciam determinados a estar entre os selecionados. Demorou
muito até que conseguíssemos liberar o barco, e finalmente
subimos a bordo com nossos três gigantes os quais jantaram
com o capitão e se comportaram quase como cavalheiros, fazendo uso de facas, garfos e colheres. Nada era tão apreciado
quanto o açúcar. Essa tribo tinha tido tanta comunicação com
foqueiros e baleeiros que a maioria dos homens falava um
pouco de inglês e espanhol, eles são semicivilizados e proporcionalmente depravados.
Na manhã seguinte, um grande grupo veio à costa para
trocar peles e penas de avestruz. Uma vez que as armas de fogo
lhes foram recusadas, o tabaco era muito solicitado, bem mais
do que machados ou ferramentas. Toda a população dos toldos, homens, mulheres e crianças, estava acomodada na praia.
Era uma cena divertida e seria impossível não ter simpatia
pelos chamados “gigantes”, pois eram muito bem-humorados
(continua da p. 15) que logo se transformou em um terrível vendaval com nuvens
carregadas. Esta condição se desfez por meio de um vento muito forte de sul
para sudoeste. A temperatura era de 60º (16º C), o ponto de orvalho 42º (6º C), a
diferença 18º (-8º C). (N.A.)
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e agiam de boa-fé. Convidaram-nos a visitá-los novamente.
Pareciam gostar de ter europeus em sua companhia, e a velha
Maria, uma mulher importante na tribo, uma vez implorou ao
sr. Low para que deixasse um de seus marujos com eles. Passam a maior parte do ano aqui, mas durante o verão caçam ao
longo do pé da cordilheira e, algumas vezes, viajam até o Rio
Negro, 1.200 quilômetros ao norte. Possuem muitos cavalos, e
alguns homens chegam a ter, de acordo com o sr. Low, seis ou
sete. Todas as mulheres e até mesmo as crianças possuem seus
próprios cavalos. No tempo de Sarmiento (1580), esses índios
usavam arco e flecha, há muito em desuso. Naquela época eles
já possuíam alguns cavalos. Esse é um fato muito curioso, que
mostra quão rapidamente os cavalos se multiplicam na América do Sul. O cavalo foi primeiramente introduzido em Buenos
Aires no ano de 1537. Como a colônia ficou abandonada por
um tempo, os cavalos se tornaram selvagens2; em 1580, apenas
43 anos depois, temos notícias deles no estreito de Magalhães!
O sr. Low me informa que uma tribo vizinha de índios que andavam a pé está se transformando em uma tribo montada: a tribo na Baía Gregory lhes dá seus cavalos mais cansados e no
inverno mandam alguns de seus homens mais habilidosos caçar
para eles.
1o de junho – Ancoramos na bela baía de Port Famine. Era o
começo do inverno, e nunca tinha me deparado com uma visão
tão desoladora. As matas escuras, cobertas pela neve, podiam
ser vistas vagamente através de uma atmosfera enevoada. Tivemos, entretanto, sorte ao desfrutarmos de dois dias bonitos. Em um desses dias, o Monte Sarmiento, uma montanha
com 2.070 metros de altura, ofereceu-nos um belo espetáculo.
Freqüentemente eu me surpreendia com paisagem da Terra do
Fogo, pois, apesar de as elevações parecerem pequenas, eram,
na verdade, muito altas. Suspeito que isso se deva a uma causa que a princípio não se poderia imaginar, isto é, que toda a
massa, do cume até o limite com a água, pode ser, em geral,
completamente abarcada pela visão. Lembro de ter visto uma
montanha, primeiro a partir do canal de Beagle, onde toda a
2. Rengger, Natur. der Saeugethiere von Paraguay. S. 334. (N.A.)
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extensão do cume até a base estava completamente à vista e
depois do Braço Ponsonby, por trás de sucessivas cordilheiras.
Era curioso observar, no último caso, como cada nova cordilheira possibilitava novos meios para avaliarmos, ao longe, a
altura da montanha.
Antes de chegarmos a Port Famine, vimos dois homens
correndo pela costa em saudação ao navio. Um bote foi mandado para buscá-los. Eram dois marujos que tinham fugido de
um barco foqueiro e se juntado aos patagônios. Esses índios os
trataram com a discreta hospitalidade que lhes era de costume.
Tinham se separado do grupo por acidente e agora seguiam
para Port Famine com a esperança de encontrar algum navio.
Ouso dizer que eram vagabundos sem nenhum valor, mas nunca tinha visto algum em condições tão miseráveis. Estavam vivendo há alguns dias de mexilhões e amoras, e suas roupas esfarrapadas tinham sido queimadas por dormirem muito perto
do fogo. Ficaram expostos noite e dia, sem nenhum abrigo, às
recentes e incessantes ventanias, com chuva, granizo e neve, e
mesmo assim gozavam de boa saúde.
Durante nossa permanência no Port Famine, os fueguinos por duas vezes vieram nos importunar. Como havia muitos
instrumentos, roupas e homens na praia, foi necessário afastá-los. Na primeira vez, foram efetuados disparos de arma de
grande calibre quando eles ainda estavam distantes. Era muito
engraçado observá-los através da luneta. Cada vez que os tiros
atingiam a água, os índios pegavam pedras e, desafiando-nos,
lançavam-nas em direção ao nosso navio, embora estivéssemos a aproximadamente dois quilômetros de distância! Um
bote foi enviado com ordens de disparar alguns mosquetes
contra uma localidade próxima de onde eles se encontravam.
Os fueguinos se esconderam atrás de árvores e, a cada descarga de mosquetes, atiravam suas flechas. Todas, entretanto,
caíam antes do barco, e o oficial apontava para eles e ria. Isso
deixou os fueguinos tomados de raiva, e eles sacudiam suas
mantas em uma fúria vã. Finalmente, ao ver as balas cortando
e acertando as árvores, fugiram, deixando-nos em paz e quietude. Durante a viagem anterior, os fueguinos daqui causaram
muitos problemas e, para assustá-los, um foguete foi dispara18
do sobre suas ocas durante a noite. O estratagema deu certo,
e um dos oficiais me contou que chegava a ser cômico o contraste entre a balbúrdia gerada pelo disparo, somado ao latido
dos cães, com o profundo silêncio que em um ou dois minutos
prevaleceu. Na manhã seguinte não se viu um fueguino na
vizinhança.
Quando o Beagle esteve aqui no mês de fevereiro, comecei, certa manhã, às quatro em ponto, a escalar o monte
Tarn, que tem 790 metros de altura e é o ponto mais elevado
neste distrito. Fomos em um bote até o pé da montanha (mas
infelizmente não para a melhor parte) e então começamos
nossa subida. A floresta começa na linha da marca da cheia,
e abandonei todas as esperanças de chegar ao topo nas primeiras duas horas. A mata era tão fechada que eu precisava
recorrer constantemente à bússola; cada marco, embora numa
região montanhosa, ficava completamente fora de vista. Nas
ravinas profundas, a desolação era tamanha que inviabilizava a possibilidade de ser descrita, assemelhando-se a uma
cena de morte. Do lado de fora um vendaval soprava, mas,
nestes vales, nem um suspiro de vento movimentava as folhas até mesmo das árvores mais altas. Cada parte era tão
sombria, fria e úmida que nem mesmo fungos, musgos ou
samambaias vingavam. Nos vales, era difícil até mesmo rastejar pelos caminhos, de tal forma estavam interrompidos por
grandes troncos apodrecidos que tinham caído em todas as
direções. Quando passávamos sobre essas pontes naturais, a
perna de alguém freqüentemente penetrava até o joelho na
madeira apodrecida. Em outras vezes, ao tentar se apoiar em
uma árvore firme, alguém se surpreendia ao descobrir uma
massa putrefata, pronta a se desmanchar ao menor toque. Finalmente nos encontramos em meio às árvores atarracadas, e
então logo alcançamos a cordilheira limpa, que nos conduziu
ao topo. Dali se tinha uma vista das peculiares características
da Terra do Fogo: cadeias de montanhas irregulares, sarapintadas com neve, vales profundos de um amarelo esverdeado
e braços de mar interseccionando a terra em muitas direções.
O vento era forte, frio e cortante, e a atmosfera enevoada,
de forma que ficamos muito tempo no topo da montanha.
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