Curso de Extensão em Educação Infantil

Transcrição

Curso de Extensão em Educação Infantil
Curso de Extensão
em Educação Infantil
Luisa Cogo (Org.)
Cilene Cristina Caetano Chaves (Org.)
Elisabete R. do Carmo Silva
Dener Luis da Silva
Curso de Extensão
em Educação Infantil
Belo Horizonte
Editora AVSI
2002
Curso de Extensão em Educação Infantil
Organização
Preparação de textos
Projeto gráfico
Capa e Produção gráfica
Revisão
Luisa Cogo e Cilene Cristina Caetano Chaves
Cilene Cristina Caetano Chaves
Juliana Vaz
Derval O. Braga Júnior (www.e-mega.com.br)
Eneida Maria Chaves
Viviane Lemos de Oliveira Belga
Impresso no Brasil
ISBN: 85-89391-01-9
Copyright © – AVSI – 2002
Este material, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio
sem autorização escrita do Editor.
Ficha catalográfica
C977
Curso de extensão em educação infantil / Luisa
Cogo... [et al.] - Belo Horizonte: Avsi, 2002. 198 p.;
26,5 cm.
1. Educação de crianças. I. Cogo, Luisa.
CDD 372.21
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro
Editora AVSI
Rua Padre Marinho, 37 / 12° andar – Santa Efigênia
Telefone: (31) 3241-2100
Belo Horizonte, Minas Gerais – Brasil
AGRADECIMENTO
Agradecemos a todos que contribuíram direta ou indiretamente para a realização
deste trabalho, em particular aos alunos e professores do Curso, à Faculdade Salesiana
de Vitória e aos nossos amigos Marco Coerezza e Rosi Rioli que nos apoiaram durante
todo o processo de sistematização desta apostila.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
O Projeto Pedagógico e a Educação Infantil ..............................................................
1.1
O Desenvolvimento Infantil ..........................................................................................
1.7
O Desenvolvimento Psicossocial .................................................................................
1.23
A Inserção na Creche ...................................................................................................
1.29
O Brincar .......................................................................................................................
1.33
A Observação ...............................................................................................................
1.43
A Organização do Espaço Escolar na Perspectiva da Ecologia Psicológica ............
1.55
A Educação Inclusiva ...................................................................................................
1.67
A Educação Infantil na Legislação Brasileira ..............................................................
1.73
Relação Família-Escola: Concepções Psicopedagógicas .........................................
1.81
SAÚDE E EDUCAÇÃO
Aquisição da Linguagem Oral .....................................................................................
2.1
Cuidados com a Saúde Infantil....................................................................................
2.9
OFICINAS
O Aprendizado da Arte na Infância .............................................................................
3.1
Literatura Infantil ...........................................................................................................
3.5
Oficina: Utilização de Papel .........................................................................................
3.11
Oficina: Material Reciclável ..........................................................................................
3.17
Trabalho em Equipe .....................................................................................................
3.25
A Educação Matemática e o Jogo...............................................................................
3.31
A Música na Educação Infantil.....................................................................................
3.47
ANEXOS
A Identidade Humana entre Desejo e Relacionamento ..............................................
4.1
A Palavra Compartilhada .............................................................................................
4.9
O Domínio Impossível ..................................................................................................
4.15
O Encontro ...................................................................................................................
4.21
APRESENTAÇÃO
Luisa Cogo
O curso aqui apresentado, foi oferecido aos educadores dos Centros Educativos
envolvidos no Projeto de Rede de Infância, gerido pela AVSI e financiado pela CEI e pelo
MAE, assim como aos educadores de outros Centros Educativos que compartilham a
mesma tentativa educativa. Faz parte de uma atividade bem mais ampla que pretende
colaborar para o fortalecimento dessas escolas destinadas à infância e contribuir para o
melhoramento de vida das crianças e das suas famílias.
Os argumentos de reflexão que essa proposta entendeu oferecer para os
educadores que participaram do curso e para todos aqueles que queiram confrontar sua
prática com o conteúdo oferecido, se colocam em uma perspectiva educativa global que
envolve e abraça a dimensão profissional, considerada não como uma competência, mas
como uma expressão da pessoa do educador.
Ser protagonista de uma proposta educativa significa antes de mais nada ser
protagonista da própria vida, do próprio trabalho.
As contribuições aqui apresentadas se põem como uma ocasião de reflexão para
aqueles que entendam colocar o próprio trabalho a serviço de uma proposta que se
caracterize como capaz de valorizar todos os aspectos da experiência humana; por isso,
não se trata de aplicar um esquema ou algumas regras ou compartilhar princípios abstratos,
mas de comparar a própria exigência de educar e se educar com uma hipótese de trabalho
verificada como adequada.
A etimologia da palavra educar (e-duco) evoca a experiência de um percurso, de
um “levar-se” e de um “levar” até algo, até um fim que se reconheça como verdadeiro ou
seja correspondente à totalidade, à variedade e à complexidade de exigências que cada
realidade suscita e que cada percurso educativo deve saber enfrentar.
É importante sublinhar que se trata de uma atividade de formação e não simplesmente
de atualização, pois a primeira preocupação é compartilhar e participar de uma postura
educativa precisa que defina também a escolha e a aprendizagem dos conteúdos.
AVSI
APRESENTAÇÃO
O curso se caraterizou – e quer continuar – como um espaço aberto às
contribuições de todos: não se trata de uma atividade que termina com o fim do curso,
mas da possibilidade de criar novas ocasiões de aprendizagem e de juízo comum.
O formato escolhido para a apostila, organizada em forma de um fichário, quer
dar uma forma concreta a esta idéia, estando predisposta a enriquecer-se com novas
reflexões.
Está organizada em quatro partes que coletam as contribuições relativas ao âmbito
pedagógico e psicológico, aos cuidados com a saúde, às oficinas e às leituras
complementares que pretendem oferecer um valioso suporte à pratica cotidiana.
A nossa tentativa é aquela de mostrar como na educação os aspetos teóricos e
aqueles operativos não podem ser olhados separadamente, a fim de se evitar uma redução
a um discurso baseado em uma intelectualidade ou a uma práxis didática e para estimular
a criatividade na construção de percursos formativos que correspondam totalmente às
necessidades das crianças.
O nosso desejo é oferecer um valioso suporte que permita entender, de forma
melhor, uma experiência que já está acontecendo e, ao mesmo tempo, estimule um novo
empreendimento cultural e profissional.
10
APRESENTAÇÃO
AVSI
O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL
O PROJETO PEDAGÓGICO E
A EDUCAÇÃO INFANTIL
Através da orientação da Constituição 1988, a LDB 9394/96 prescreveu que a
educação infantil está incluída no sistema educacional como a primeira etapa da Educação
Básica e que fica a cargo dos municípios, com o apoio do Estado, a oferta desse atendimento.
Para regulamentar a autonomia dessa “nova” modalidade de ensino no âmbito
organizativo e didático, prevê-se que cada instituição, elabore o seu projeto pedagógico,
sendo esse um instrumento que representará a identidade cultural, educativa e organizativa
de cada creche ou pré-escola.
O trabalho educativo tem que ser projetado e desenvolvido com intencionalidade
e fundamentado na reciprocidade, ou seja, no reconhecimento do outro (criança, família e
cada membro da equipe de trabalho), porque só assim se pode constituir uma identidade
e uma responsabilidade que ajude cada um envolvido nesse trabalho a viver com dignidade
as tarefas que lhe são confiadas.
Por isso, a reciprocidade tem uma ordem: de um lado, exige que o sujeito ao qual
foi entregue a criança, seja consciente – ao desenvolver a função confiada pelos pais – de
que tem o direito e o dever de educar a criança; do outro lado, os pais não podem delegar
essa tarefa e ao mesmo tempo devem estimar e apreciar o trabalho do professor,
reconhecendo o valor em relação ao filho.
Reconhecendo a importância dessa ordem, torna-se simples afirmar a necessidade
de cuidar do relacionamento com os pais, desde o começo na fase da acolhida, dando as
razões por que os pais escolheram aquela instituição.
O reconhecimento dessa reciprocidade transforma o projeto pedagógico num
instrumento capaz de exaltar a liberdade dentro da escola ou da creche, tornando possível
para os profissionais dessas instituições indicarem um caminho formativo de boa qualidade
e para as famílias escolherem uma proposta que mais corresponda ao seu ideal educativo.
O Projeto Pedagógico expressa a co-responsabilidade educativa vivida pelos
adultos no “construir” a creche, a qualidade das relações dos diversos sujeitos (pais, direção,
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
1.1
O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL
educadores e outros funcionários) que estão presentes e fazem parte da creche e a
preocupação comum que os une na definição do percurso do Projeto Pedagógico.
Na medida em que o Projeto Pedagógico deixar de ser algo burocrático (que tem
que ser feito, para atender a uma exigência da lei) para ser um instrumento que comunica
uma identidade, “uma cara” (e assim reforçar uma unidade), a creche começa a ser um
interlocutor sério, apreciado, respeitado pelos pais, pela comunidade, pelas entidades,
pelos órgãos Municipais, Estaduais e até Federais, tornando-se a expressão de uma
proposta educativa significativa, compartilhada, dinâmica, e eficaz.
Hoje, há uma mudança da natureza do Projeto Pedagógico, pois esse não é mais
só um documento que contém “os sonhos” dos educadores, creche e pais, nem mesmo só
um documento técnico, mas é uma proposta educativa significativa que deve expressar o
trabalho que realmente está sendo desenvolvido no cotidiano da creche e refletir a identidade
da escola, descartando qualquer possibilidade de aplicação de modelos “pré-fabricados”.
Assim, o Projeto Pedagógico representa um instrumento que expressa a proposta
educativa de uma comunidade escolar, que nasce da capacidade de delinear um caminho
humanamente significativo fundamentado no ponto de vista cultural, adequado ao ponto
de vista metodológico que se proponha a sustentar, a defender e a fazer crescer a pessoa
na sua integralidade e liberdade, ajudando-a a reconhecer todos os fatores da realidade e
desenvolvendo todas as dimensões que a constituem.
Dessa forma, elaborar o Projeto Pedagógico sistematizando o trabalho que está
sendo desenvolvido diariamente, explicitando os objetivos, a organização, a forma de
avaliação e as condições de trabalho dos profissionais, está sendo um desafio para as
instituições de educação infantil, pois, segundo Kishimoto (1994 apud Dias & Faria, 2001),
historicamente o conceito de proposta pedagógica deriva da idéia de currículo que se
limitava à definição de conteúdos, objetivos, atividades e metodologias, estabelecidos por
faixa etária, embora a maioria dos educadores considerasse como prioridade: o que ensinar,
para que ensinar, como ensinar e quando ensinar.
Mais recentemente, essa idéia foi tomando novos rumos. Ampliou-se para aspectos
relativos à organização, ao funcionamento, às relações e articulações que criam as
condições essenciais para a viabilização da prática pedagógica, construção da identidade
e da organização do trabalho em uma instituição histórica e socialmente situada, construída
por sujeitos culturais, que se propõem a desenvolver uma ação educativa, a partir de
crenças, desejos, valores e concepções, num processo de avaliação contínua.
Neste sentido, para Kramer (1999 apud Dias & Faria, 2001), proposta pedagógica é:
um caminho não um lugar (...) toda proposta contém uma aposta. Nasce de uma
realidade que pergunta e é também busca de uma resposta. É, pois, um diálogo.
Toda proposta é situada: traz consigo o lugar de onde fala e a gama de valores
que a constitui; traz também as dificuldades que enfrenta, os problemas que
precisam ser superados e a direção que a orienta... (p. 2).
Ao reconhecer o caráter educativo do trabalho desenvolvido com crianças de 0 a
6 anos, privilegiando o cuidar e o educar, a legislação acabou reconhecendo que, na
realidade, essas duas funções já existiam como propostas de muitas instituições, mas só
que de forma pouco sistematizada. A LDB 9394/96 baixou normas que definem a elaboração
das propostas pedagógicas das instituições de educação infantil para que a organização
do trabalho se paute na forma como os sujeitos organizam os espaços, os tempos, as
crianças, as atividades, bem como na escolha e formação de seus professores, no modo
como estabelecem relações com as crianças, com as famílias e com a comunidade e nas
estratégias utilizadas para resolver seus problemas e dificuldades.
Segundo Dias & Faria (2001), esta tentativa consciente de organização do trabalho
de cuidar/educar crianças em creches e pré-escolas, por um lado, possibilita a formação
1.2
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL
continuada em serviço de professores conscientes, críticos, reflexivos e donos do seu
fazer e, por outro lado, o retraçar de novos caminhos para que os investimentos nessa
“aposta” sejam mais profícuos.
Em 1999, o Conselho Nacional de Educação instituiu as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil. De acordo com a Resolução nº 1, de 07/04/99, artigo 2º,
essas diretrizes constituem-se na doutrina sobre Princípios, Fundamentos e
Procedimentos da Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, que
orientarão as instituições de Educação infantil dos Sistema Brasileiro de Ensino,
na organização, articulação, desenvolvimento e avaliação de suas propostas
pedagógicas.
Essas diretrizes deverão nortear as propostas curriculares e projetos pedagógicos,
além de estabelecer paradigmas para a própria concepção desses programas de cuidados
e educação, com qualidade.
Cabe ao Conselho Municipal de Educação definir normas específicas que deverão
ser consideradas para a elaboração de propostas pedagógicas nas instituições públicas e
privadas de Educação Infantil que integram seu sistema; isso significa que todas as
instituições públicas e privadas (particulares, comunitárias, filantrópicas e confessionais)
estão sujeitas a essas normas.
Caso o município não possua o Conselho Municipal de Educação, esses deverão
integrar-se ao Sistema Estadual de Ensino e estarão sujeitos à Regulamentação da
Educação Infantil, aprovado pelo Conselho Estadual de Educação – CEE/MG, que, através
da Resolução 443/01, define normas mais específicas em relação às competências, aos
profissionais para atuarem nesse nível educacional, aos espaços, ao credenciamento e
autorização de funcionamento, ao acompanhamento e avaliação. A resolução denomina a
proposta pedagógica como “Projeto Político-Pedagógico”, integrando-a ao Regimento
Escolar e definindo aspectos a serem considerados na elaboração das propostas (ou Projeto
Político-Pedagógico) das instituições. Tentamos apresentar, abaixo, os vários aspetos que
devem ser considerados na elaboração do projeto, comentando-os.
1.
As características da população atendida e da comunidade na qual se insere.
Trata-se de apresentar a história da comunidade e do seu desenvolvimento,
caracterizando as famílias das crianças no que se refere à religiosidade, etnia, escolaridade,
profissão e renda. Pois para uma proposta ser desenvolvida tem que considerada a realidade
na qual está inserida, mesmo que depois se abra a um horizonte maior.
2.
Os fins e objetivos;
3.
A concepção de criança, de desenvolvimento infantil e de aprendizagem;
4.
A relação educador infantil/criança.
Uma experiência educativa começa, se desenvolve e se cumpre, através de um
tecido de relacionamentos significativos que caracteriza o ambiente de vida da pessoa.
São os adultos que, conscientes da própria identidade e da bondade de experiência que
estão vivendo, que se oferecem às crianças como guias atentos e discretos no caminho
de crescimento. As crianças se abrem à aventura de conhecimento de si e do mundo,
certos de poder confiar em algumas pessoas maduras. A creche tem como objetivo e
finalidade o compartilhar com os pais a responsabilidade primária e original que eles vivem
na educação dos filhos através de uma oferta de cultura que se traduz nas formas típicas
da idade das crianças: o brincar; o uso do próprio corpo e as suas linguagens; a
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
1.3
O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL
transformação direta da realidade; a imaginação e a intuição; a fantasia e o começo da
simbolização.
Através de uma série de percursos formativos, a criança alcançará algumas metas
educativas como: a) ser introduzida na realidade descobrindo o seu significado; 2) ser
ajudada na descoberta e na construção de potencialidades que caracterizam a sua
personalidade e o seu desenvolvimento integral; e c) ser sustentada na descoberta de
todas as potencialidades de conexão ativa da construção e potencialização de toda a
realidade, através de um processo de observação, descoberta e a transformação;
A realização desse percurso passará por um método ativo fundamentado em cinco
princípios: 1) a qualidade do relacionamento educativo; 2) a centralidade da criança no
seu ambiente original; 3) a riqueza formativa da vida cotidiana; 4) a organização intencional
do ambiente; e 5) a abertura à realidade de acordo com totalidade de elementos
constitutivos.
5.
A avaliação do desenvolvimento integral da criança;
6.
Planejamento geral e a avaliação institucional;
7.
A articulação da educação infantil com o ensino fundamental.
No planejamento geral, deve ser dada muita importância à observação da criança,
à construção do relacionamento entre educadora e criança como primeiro conteúdo de
aprendizagem, ao valor da experiência como tomada de consciência do próprio ser dentro
do empenho com a vida, à realidade no seu aspecto cotidiano de vida. A escolha dos
conteúdos a serem trabalhados deve responder a algumas características: a) realismo,
como adesão às exigências do objeto e do sujeito; b) essencialidade, como capacidade
do adulto de escolher entre todos os percursos possíveis aquele que mais ajuda no
crescimento; c) concretização, atenção tanto aos aspectos formais exteriores à proposta,
mas que representam a capacidade de convidar a criança a intervir e transformar a realidade;
d) simplicidade reduzindo a complexidade do real, respeitando-se a sua verdade; e)
capacidade evocativa de beleza e de verdade, porque só suscitando um maravilhamento
na criança acontece um caminho de crescimento que não representa simplesmente um
adequar-se passivamente ao pedido do adulto; f) abertura à totalidade, porque o empenho
sobre uma atividade particular ajuda a criança a assumir uma postura útil para enfrentar
todas as circunstâncias; g) organicidade: a proposta deve conter uma dinâmica evolutiva
ordenada e unitária para evitar a fragmentação da experiência e a infantilização, ou seja, a
redução daquilo que se propõe a um evento limitado à idade e ao contexto da criança.
8.
Regime de funcionamento;
9.
Espaço físico, as instalações e os equipamentos;
10. A habilidade e os níveis de escolaridade dos recursos humanos;
11. A organização do cotidiano do trabalho;
12. A educação continuada dos seus profissionais;
13. A articulação da instituição com a família e a comunidade;
14. Atendimento das necessidades educacionais especiais apresentadas pelas
crianças.
1.4
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL
Nesta parte, a proposta irá explicitar a impostação educativa e escolar na sua
complexidade, descrevendo de modo essencial:
a) os recursos e os instrumentos (espaço, organização do tempo, equipamentos
e materiais);
b) a organização escolar;
c) a apresentação dos instrumentos que ajudem no relacionamento com os pais;
d) a apresentação dos instrumentos para avaliar o percurso formativo;
e) a apresentação do planejamento didático e da qualidade do serviço;
f) a apresentação dos instrumentos internos que ajudam no desenvolvimento da
própria tarefa (momentos de formação em comum, em serviço e discussão da
organização da escola).
Tendo em vista as escolhas filosóficas e pedagógicas de cada instituição, outras
referências devem ser buscadas em livros ou experiências bem-sucedidas que possam
contribuir na elaboração da proposta, mas tendo sempre em vista as normas comuns.
O “Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil”, elaborado pelo MEC
em 1998, é um material que pode também contribuir para esse trabalho, além de outros
documentos publicados pelo MEC, como o documento “Propostas Pedagógicas e
Curriculares em Educação Infantil”.
De acordo com a LDB, a elaboração das propostas pedagógicas fica a cargo das
instituição de ensino com a participação dos professores para que estes não se tornem
meros destinatários de propostas elaboradas por outros, mas sejam sujeitos dessa
construção. Aponta, ainda, a importância da participação e do envolvimento das famílias
das crianças atendidas e de outros parceiros que possam contribuir direta ou indiretamente
nessa ação.
No entanto, chama atenção para a necessidade de se criar mecanismos para que
todos os envolvidos possam se encontrar para discutir, opinar, estudar e refletir de fato
sobre todos os pontos relativos à construção ou reformulação da proposta, bem como na
sistematização desse trabalho.
Às Secretarias, não cabe elaborar, mas contribuir, subsidiar e orientar as instituições
tanto públicas como privadas na elaboração das propostas pedagógicas, na explicitação
da regulamentação pertinente e na tradução das Diretrizes Curriculares Nacionais, bem
como no acompanhamento, supervisão e avaliação do processo de elaboração e
implementação das propostas, identificando necessidades e criando estratégias que
possibilitem seu avanço e melhoria. É seu papel, ainda, orientar e apoiar as instituições
para que criem condições concretas que viabilizem tanto a sua execução quanto a avaliação.
As Secretarias devem, enfim, definir políticas para a Educação Infantil que
considerem a articulação dos vários setores envolvidos no atendimento à criança de 0 a 6
anos, a profissionalização e valorização dos educadores, as condições de trabalho e de
funcionamento das instituições, além de fazer as devidas articulações para que o desafio
de cuidar e educar as crianças em creches e pré-escolas, se concretize com qualidade.
Referências Bibliográficas
BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Propostas pedagógicas e curriculares de educação infantil.
Brasília: MEC,1996.
BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil.
Brasília: MEC/SEF, 1998.
COEREZZA, Marco. Avvio della riflessione sul piano dell’offerta formativa. Iniziare, Castel Bolognese:
ITACA, n. 1, p. 86-90, dez. 2000.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
1.5
O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL
DIAS, Fátima Regina Teixeira de Salles; FARIA, Vitória Líbia Barreto de. As instituições de educação
infantil e a construção de propostas pedagógicas, 2002. (mímeo)
SCUOLA DI CASSANO MAGNAGO. Il piano dell’offerta formativa. Iniziare, Castel Bolognese: ITACA,
n. 3, p. 140-142, dez. 2000.
1.6
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
1. Introdução
Desenvolvimento, segundo o significado primeiro da palavra, quer indicar “ato de
des-envolver, des-enrolar; fazer crescer”. O prefixo “des” indica uma negação (por exemplo,
desnutrido: não nutrido). Imaginemos, então, que um objeto está envolvido por uma
camada, por uma roupa, quando des-envolvo este objeto, ponho-o desnudo, mostro o
seu interior. Ou ainda, se tenho um carretel de linhas e desejo pescar, devo des-enrolar o
carretel, esticar, levar para longe a linha, desenvolver a linha do carretel. Mais tarde, o
termo foi utilizado para significar “aquilo que cresce”, mas que já estava presente no objeto.
Assim, quando digo “aquele carvalho desenvolveu”, digo que ele cresceu e, mais
precisamente, digo que cresceu a partir de uma semente. O carvalho já estava presente na
semente, ainda que em potência. A natureza des-envolveu essa potência que estava contida
na semente do carvalho.
O Desenvolvimento Infantil diz respeito, assim, ao crescer dessa potência do
humano, e a ênfase do presente curso é a de um fazer crescer amplo, totalizante, que
passa pela educação. No dizer de Luigi Giussani (2001): Educação é “introdução à realidade
total...” E é interessante observar o duplo valor desse “total”: educação significará, com
efeito, o desenvolvimento de todas as estruturas de um indivíduo até a sua realização
integral e, ao mesmo tempo, a afirmação de todas as possibilidades de conexão ativa
daquelas estruturas com toda a realidade.
Devemos, logo, notar que a consideração de todos os fatores do homem deve ter
presente um fator que poderia passar despercebido, aquele que chamamos de alma: não
considerar esse fator significa não considerar que o homem é um mistério e que ele se
desenvolve na totalidade dos seus fatores se está aberto na procura de um significado
último de tudo através do desenvolvimento ordenado, rico e profundo de todas as
dimensões que constituem o seu ser.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
1.7
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
Por isso, falar de totalidade significa afirmar que o homem é feito para algo de
grande que se revela na realidade, mas que está além dela, não só em termos espaciais e
temporais mas de conhecimento. O desenvolvimento deve tornar possível para a criança,
como para o adulto, o reconhecimento da existência de algo que escapa da própria
capacidade de indagar.
Esse fazer crescer passa pela figura do educador, pela presença e companhia do
adulto com a criança que se desenvolve. Mais adiante, veremos que, se a semente de
carvalho precisa para desenvolver-se de terra boa, água e sol, assim também a criança
precisa de condições “nutridoras” e estas só ocorrem na presença de um adulto, através
de um adulto. Vários fatores devem ser observados, quando se fala de desenvolvimento
infantil. No presente texto, destacaremos os seguintes: a) os aspectos biológicos envolvidos
nesse processo, dentre eles o desenvolvimento neurológico, físico e motor; b) os aspectos
sociais: não há crianças que se desenvolvam sozinhas; c) os aspectos cognitivos, ou mais
precisamente o modo e o conteúdo do pensamento infantil; e d) o potencial afetivo (afeto
provém de affici, ser afetado, ser tocado por algo) que se estabelece na relação com o
ambiente.
Quer dizer, no desenvolvimento infantil, facilmente percebemos que uma criança
ao brincar com uma bola está ativando estes quatro domínios acima mencionados: ela
precisa mexer-se e mover-se em direção à bola (aspectos motores); no entanto, ela só
poderá mexer se antes um adulto a deixar mexer, lhe der condições, a começar pela comida,
energia da qual ela poderá utilizar-se para explorar o ambiente, mas também porque é
provavelmente o adulto quem lhe mostra, apresenta a bola (aspectos sociais); ela também
precisa ter seus pensamentos e imaginação relacionados com o brincar de bola (aspectos
cognitivos) e desejar, ter prazer, estar afetada, ter um interesse – que é uma outra forma de
dizermos que gostamos de algo – pela bola (aspectos afetivos).
Faremos, a seguir, uma exploração mais aprofundada do desenvolvimento
cognitivo, social e afetivo. Assim, buscaremos apresentar algumas importantes contribuições
da psicologia no decorrer de sua história.
2. As Idéias de Piaget e a Educação Infantil:
o desenvolvimento cognitivo
São vários os autores que descreveram o desenvolvimento infantil, mas foi com
Jean Piaget, biólogo e psicólogo nascido em Nauchatel, Suíça, em 1896, e falecido no
mesmo país em 1980, que começou a atentar-se para os estágios do desenvolvimento
cognitivo da criança, numa abordagem educativa. Na época de Piaget, os estudos sobre
o desenvolvimento infantil limitavam-se a fazer uma descrição da criança a partir de uma
comparação com o adulto. Assim, a criança era tida por muitos como um indivíduo com
muitas potencialidades, mas que ainda não as havia desenvolvido. Tem um corpo, mas
um corpo frágil, inferior ao do adulto. Tem linguagem mas uma linguagem menor, menos
flexível que a do adulto. E assim por diante. Foi Piaget quem primeiro desconfiou desta
perspectiva “adultocêntrica”. Assim, ao estudar profundamente como a criança pensa,
como ela imagina e raciocina sobre as coisas, descobriu que a criança não é um adulto
em miniatura, mas alguém que pensa sob uma lógica diferente. A questão, portanto, não
é quantidade de conhecimento, mas sim qualidade de conhecimento. Desejoso de explicar
de forma científica como conhecemos as coisas, Piaget, através de suas inúmeras
observações e experimentos, acaba por construir uma teoria específica: A Epistemologia
Genética. Epistemologia (episteme = conhecimento, logos = estudo, ciência), ciência ou
teoria do conhecimento, ou de como o conhecimento ocorre. Genética (gênese = origem)
porque o pesquisador genebrino acreditava que não bastava descrever o que é o
1.8
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
conhecimento; é preciso, antes de tudo, saber de onde vem, qual a origem do
conhecimento. Daí, seu interesse pela criança. Poderíamos dizer, então, que Piaget não
pode ser considerado um Psicólogo da Infância, mas que se utilizou do estudo da infância
para alcançar seu principal objetivo: conhecer como ocorre o conhecimento no homem.
Assim, o autor suíço construiu uma teoria que muito se diferenciava das antigas,
utilizando conceitos e nomenclaturas muitas vezes cunhadas por ele. Por isso, antes de
continuarmos nossa discussão, apresentaremos um breve resumo de alguns dos termos
mais usados por esse biólogo/psicólogo.
Para podermos ler Piaget com propriedade, é importante lembrar que o mesmo
chegou à Psicologia Infantil a partir da Biologia. Desse modo, muitos de seus conceitos
guardam conexão com os desta ciência. Além disso, se entendermos que Piaget estava
preocupado com os processos que levam os organismos a melhor se adaptarem a seu
meio, facilmente entenderemos seu fascínio pela inteligência. A inteligência, para este autor,
é a capacidade humana que permite ao organismo biológico se adaptar a seu ambiente.
De fato, a espécie humana encontra-se difundida em todas as partes do mundo. O homem
inteligente molda seu corpo, seus pensamentos (estruturas e esquemas cognitivos) e sua
cultura para encontrar saídas frente às dificuldades do ambiente. Diferentemente de autores
que advogam que o homem é fruto do ambiente, Piaget demonstra que, ao nascer, a
criança traz consigo uma série de reflexos, respostas automáticas ao ambiente – lembrese do reflexo de segurar e o de sugar, indispensáveis à sobrevivência do bebê. É a partir
destes reflexos, elaborados através da contínua repetição, que surgem os esquemas
cognitivos. A criança não apenas suga o leite, mas olha nos olhos da mãe enquanto faz
essa ação, consegue parar, ter maior domínio sobre a ação reflexa. Os esquemas cognitivos,
à medida que se complexificam enquanto o desenvolvimento vai ocorrendo, ganham o
status de estruturas cognitivas. Assim, estas últimas são como que feixes e conjuntos de
esquemas articulados para melhor se adaptar ao ambiente. Quando escrevemos, por
exemplo, utilizamo-nos de vários reflexos (segurar, manter corpo ereto etc.) que se
manifestam em esquemas (segurar + coordenar a força do lápis no papel + articular o
trajeto do lápis com a imagem visual etc.) que se articulam em forma de estruturas cognitivas
(segurar + articular com imagem visual + articular com imagem mental da escrita, do que
devo escrever etc.). Assim, segundo Piaget, nós nos utilizamos das estruturas cognitivas
para melhor nos adaptarmos à realidade, para obtermos respostas mais adequadas, enfim,
para entrarmos num estado de equilíbrio com o ambiente e conosco mesmos. O homem,
no entender de Piaget, está sempre à procura de um estado de maior equilíbrio; a isto ele
chamou de tendência à Equilibração Majorante. É esta tendência que nos move de estados
de menor entendimento/adaptação para maior entendimento/adaptação. Para melhor
entendimento desse processo, segundo Piaget o processo de adaptação se dá através de
dois momentos distintos, porém, complementares e interdependentes. O primeiro momento
seria a Assimilação que consistiria em utilizar-se dos esquemas e estruturas já formadas
para alcançarmos o estado de equilíbrio. Nesse momento, exige-se que o objeto assimilado
se molde às estruturas do sujeito. Assim, uma criança pequena que ainda não desenvolveu
esquemas complexos de agarrar uma bola ou chutá-la, fica à mercê de que alguém coloque
a bola diante do seu colo ou que a segure pelas mãos para que possa, agora com mais
equilíbrio corporal, chutar a bola. O segundo momento da Adaptação é composto pela
Acomodação. Aqui, diferentemente do momento anterior, as estruturas ou esquemas
anteriores do sujeito são modificados para adaptar-se/conhecer o objeto. Nesse momento,
é o sujeito quem se molda ao objeto de conhecimento. No exemplo acima, à medida que
a criança cresce, seus esquemas e estruturas vão se modificando e se complexificando
até o ponto em que a criança já pode pegar a bola e segurá-la em seu colo sozinha. Uma
vez que já desenvolveu os esquemas de marcha e corrida e consegue manter-se equilibrada
sem o auxílio de um adulto ou de qualquer suporte, já pode começar a chutar a bola.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
1.9
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
É preciso lembrar, como já foi dito acima, que tais momentos (assimilação e
acomodação), apesar de distintos, acontecem simultaneamente e interdependentemente,
ou seja, o momento de assimilação depende do momento de acomodação e vice-versa.
Nossa adaptação ao ambiente é, portanto, ativa: o conhecimento não se dá de fora para
dentro, tão pouco apenas de dentro para fora, mas de um inter-relacionamento entre estes
dois pólos.
A seguir, apresentaremos sinteticamente os estágios do desenvolvimento
cognitivo infantil descritos por Piaget. Lembremos, uma vez mais, que Piaget não estava
interessado em fazer uma teoria psicológica, estava antes preocupado em entender como
se produz o conhecimento sobre algo. Desse modo, torna-se compreensível por que
esse autor dedicou-se quase exclusivamente ao entendimento do desenvolvimento
cognitivo, colocando como pano de fundo as demais dimensões do desenvolvimento
humano – motor, social e afetivo. Para ele, todas as pessoas passam pelos mesmos
estágios, seguindo a mesma ordem em idades específicas. Alguém, por exemplo, só
segue para o estágio operacional-concreto se já adquiriu todas as habilidades do estágio
anterior, pré-operacional. No entanto, devemos lembrar que cada pessoa tem um biorrítmo
e que as idades apresentadas no quadro a seguir são apenas diretrizes para orientar a
observação do desenvolvimento infantil.
2.1. Estágio Sensório-Motor (0 a 2 anos):
Nesta fase, a criança está explorando o meio físico através de seus esquemas
motores.
Percebe o ambiente e age sobre ele, embora de forma rudimentar.
• Tem reflexos – sucção, agarrar objetos.
• Define objetos a partir do uso que se faz deles.
• Pega, balança, joga, bate etc.
• Diferencia objetos gradativamente.
• Procura objetos escondidos.
• Tem noção de EU – gradativa percepção da diferença entre si e os objetos ao redor;
• Faz gradativas construções das noções de tempo, espaço e causalidade.
2.2. Estágio Pré-Operacional (2 aos 5, 6 anos):
A criança é capaz de simbolizar, de evocar objetos ausentes. Estabelece diferença
entre significante e significado, o que possibilita distância espaço-temporal entre o sujeito
e o objeto, por meio da imagem mental. A criança é capaz de imitar gestos, mesmo com a
ausência de modelos.
• Possui mais independência em relação a seu ambiente e aos pais.
• Gradualmente desenvolve o uso da linguagem e a capacidade de pensar de forma
simbólica (função semiótica).
• É capaz de pensar sobre operações lógicas em uma determinada direção, ex: se A,
então B. Porém, tem dificuldade em inverter esta operação lógica.
• Tem dificuldade em ver o ponto de vista de outra pessoa.
• A criança “foca” apenas um atributo do objeto, centralizando-se nele, não levando em
conta outros elementos.
• Vive uma atitude exageradamente concreta em que os nomes, sonhos, pensamentos
são percebidos como entidades tangíveis.
• Atribui anima, vida, sentimentos e intenções dos seres humanos às coisas e animais.
• Atribui forma humana a objetos e animais.
1.10 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
2.3. Estágio Operacional-Concreto (7 aos 11, 12 anos):
A criança tem a inteligência operatória concreta, sendo capaz de realizar uma
ação interiorizada, executada em pensamento, reversível, pois admite a possibilidade de
uma inversão e coordenação com outras ações, também interiorizadas. Necessita de
material concreto, para realizar essas operações, mas já está apta a considerar o ponto de
vista do outro, sendo que está saindo do egocentrismo.
• O uso da linguagem continua evoluindo. A criança já consegue distinguir o uso verdadeiro
do uso metafórico, a verdade e a mentira em uma frase ou história a ela contada.
• É capaz de resolver problemas concretos (práticos) de maneira lógica.
• Compreende as leis da conservação e é capaz de classificar e seriar, além de perceber
que, invertendo-se a operação lógica, teremos o mesmo resultado. Ex: se A > B e B >
C, então A >C ou C< A.
• Desenvolve a capacidade de ordenação, seriação, classificação, agrupamentos, que
possibilitam aprender as operações de adição, subtração, divisão, multiplicação de
maneira simples.
2.4. Estágio Lógico-Formal (12 em diante, atravessando a idade adulta):
O adolescente tem as estruturas intelectuais para combinar as proporções, as
noções probabilísticas, raciocínio hipotético dedutivo de forma complexa e abstrata.
• É capaz de resolver problemas abstratos de maneira lógica.
• Torna-se mais “científico” ao pensar, usando de hipóteses e probabilidades. Consegue
prever eventos só com o uso do pensamento. Ex: se eu derramar mais 100 gramas
neste prato da balança, poderei com certeza alcançar 1000 gramas e equilibrar os dois
pratos.
• É capaz de operar com símbolos e signos.
• Raciocina usando conceitos abstratos, desenvolve recursos para descobrir, conhecer,
transformar e criar.
• Usa a linguagem como suporte analítico do pensamento lógico, abstrato e concreto.
• Forma o conceito da sua auto-estima.
• Inicia a formação de juízos éticos e morais de maneira autônoma.
Como o presente texto tem como foco maior de atenção o desenvolvimento infantil
do nascimento aos 6 anos, passaremos, a seguir, a um maior detalhamento dos dois
primeiros estágios propostos por Piaget.
O Estágio Sensório-Motor, segundo (Woolfolk, 2000), recebe esse nome pelo fato
de o pensamento do bebê envolver, neste momento, o ver, o ouvir, o mover-se, o tocar, o
provar. No início da relação com os objetos, é fácil retirar alguma coisa das mãos das
crianças, basta distraí-las com outra coisa e desaparecer com o objeto, mas, em um segundo
momento (a partir do oitavo mês), a criança desenvolve a permanência do objeto, ou seja,
ela compreende que os objetos do ambiente existem, ainda que ela não os esteja
percebendo naquele momento; aí, se você retira um objeto com o qual a criança brinca,
ela poderá “brigar” com você.
Outra grande aquisição desse período é o início das ações lógicas voltadas para
um objeto. Imaginemos, por exemplo, que uma criança deseje alcançar um determinado
brinquedo que se encontra dentro de um baú transparente. A criança pequena pode se
frustrar por não conseguir alcançar os brinquedos desejados, já uma criança que dominou
o estágio sensório-motor (a partir de um ano e meio) vai ser capaz de lidar com a situação
de forma mais ordenada, através de ensaios e erros, ela vai construir um esquema para
aquele baú de brinquedos, esquema que passa pelo tirar a tampa, virar o baú, sacudi-lo,
ver os brinquedos caírem para poder brincar com aquele que desejou, e depois a criança
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.11
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
se torna capaz de reverter essa ação. É importante lembrar que reverter uma ação é uma
aquisição do período sensório-motor e é diferente de reverter o pensamento que é uma
aquisição que leva muito mais tempo para ser adquirida (final do período pré-operatório,
início do período operatório-concreto).
Ao final do estágio sensório-motor, a criança já é capaz de usar muitos esquemas
de ação, mas isso não basta. A criança precisa adquirir a capacidade de fazer operações,
ou seja, ações realizadas e revertidas mentalmente sem a necessidade do objeto estar
fisicamente presente. O estágio pré-operacional recebe esse nome justamente pelo fato
de a criança estar quase alcançando essa habilidade. Segundo Piaget, para a criança
passar da ação para o pensamento, é necessário passar pela internalização da ação. A
capacidade de formar e usar símbolos é uma grande aquisição deste período que se
denomina função semiótica. Apesar da função semiótica, a criança ainda achará muito
difícil pensar de trás para frente. Piaget mostra que esta função se destaca também através
dos jogos de imitação. A criança pequena, desde muito cedo, já se utiliza da imitação para
modular seu comportamento. Contudo, no estágio pré-operacional, tal uso se aperfeiçoa
a ponto de a criança não mais precisar estar diante do modelo para imitar; surge, então, a
imitação diferida. Tal habilidade mostra que a criança já possui uma representação do
mundo e das coisas. Também o desenho desempenha um importante papel no
aperfeiçoamento da Função Semiótica: a criança começa a explorar as cores, os riscos e
as possibilidades representativas do desenho.
O pensamento reversível, contudo, está relacionado com muitas tarefas que são difíceis
para a criança pré-operacional, tais como a conservação da matéria. É esperado que uma
criança no estágio pré-operacional não consiga responder adequadamente à questão “Onde
há mais água?” quando apresentamos a ela dois copos com a mesma quantidade de água e,
logo em seguida, despejamos o conteúdo de um dos copos em um terceiro copo, de um
formato diferente, mais baixo e largo. A criança geralmente responde que há mais água no
copo comprido e fino. Isso ocorre porque a criança está focalizando a atenção na dimensão
da altura do copo; a dificuldade que ela tem é a de considerar mais de um aspecto da situação
ao mesmo tempo, o que Piaget chama de descentralização. Diante dessa evidência, concluise que as crianças pré-operacionais têm dificuldades em se libertarem de suas próprias
percepções da aparência do mundo, o que nos remete a uma outra característica deste estágio
que é o egocentrismo. Isso não significa que a criança é egoísta (o que seria uma centralização
do afeto), mas que as crianças pressupõem que todos compartilhem de seus pensamentos,
reações e perspectivas (uma centralização cognitiva).
Outra característica do egocentrismo é a fala egocêntrica. Quando uma criança, entre
2,5 a 6 anos fala sozinha ou em grupo, fala alegremente, sem, no entanto, segundo Piaget,
estar em interação real com ninguém. É comum encontrarmos “diálogos” tipo o que se segue:
Criança A: hoje eu vou fazer uma papinha pra ocê neném (segurando a boneca
nas mãos)...
Criança B: vamos brincar de policial-ladrão?
Criança A: vem cá, papinha gostosa, tem que comer tudo...
Criança B: policial-ladrão, bang, bang, bang, matou o ladrão.
A teoria do desenvolvimento cognitivo que Piaget nos propõe, apenas resumida
acima, permite-nos recuperar alguns pontos centrais:
• A diferença entre a cognição da criança e o pensamento do adulto não é quantitativa,
mas qualitativa. Isso significa que a criança não simplesmente sabe ou conhece menos
do que o adulto, mas que o seu pensamento opera segundo categorias qualitativamente
diferentes daquelas do adulto.
• O pensamento cresce a partir de uma ação; para desenvolver o pensamento da criança,
necessita-se começar a trabalhar a partir do nível no qual o pensamento começa a
desenvolver-se, que é o estágio concreto e não o abstrato.
1.12 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
• O desenvolvimento do pensamento acontece partindo de um processo global, mais
amplo e indefinido, para chegar a uma capacidade de análise mais adequada.
• A evolução do pensamento humano acontece, tendo como objetivo uma melhor
adequação à realidade, num continuum em busca de uma equilibração constante com
o ambiente.
Assim como apresentamos, Piaget é, sem dúvida, um autor interessante porque
oferece um olhar respeitoso da identidade originária e específica da criança. Mesmo sobre
o perfil cognitivo, oferece também uma análise valiosa, ainda hoje, do desenvolvimento
das estruturas mentais. Mas existe um ponto crítico em Piaget: pois, para ele, é como se
todo o desenvolvimento acontecesse por um movimento interior, por uma determinação
do interno para o externo, porque a realidade é uma construção da criança. Assim, o
homem se torna o artífice da construção do mundo, através do fato que ele confere um
sentido às coisas que encontra e às ações que cumpre. Ao invés, a realidade tem um
significado objetivo que a criança descobre devagar, se alguém lhe oferece uma hipótese
a ser verificada, e isso tem uma incidência também sobre a estrutura cognitiva do sujeito.
E em Piaget é totalmente ausente o conceito de tradição por ausência do adulto como
condição do desenvolvimento.
No entanto, com uma obra vasta e polêmica, Piaget tem tido seus estudos criticados
e revistos por muitos pesquisadores da atualidade. Alguns o criticam por este não ter
acrescentado a dimensão social à explicação de como o conhecimento se dá. Outros
ainda, com base em estudos mais recentes, admitem que Piaget subestimou os
conhecimentos do bebê e da criança pequena (0 a 2 anos). Para estes pesquisadores, o
bebê, ao nascer, tem habilidades e potencialidades não descritas por Piaget. Contudo,
permanece a contribuição do homem que mudou de vez a perspectiva do olhar adulto
sobre a infância1 .
3. Lev Vygotsky e a Educação Infantil:
o papel do Outro
Outro autor que contribuiu muito para nosso entendimento do desenvolvimento
infantil foi Lev Semionovich Vygotsky. Bacharel em direito e psicólogo, Vygotsky nasceu
em Miski, cidade da Bielorrússia, uma das províncias do poderoso Império Russo, em
1896, portanto, no mesmo ano em que nasceu Piaget. E morreu em Moscou em 1934, aos
38 anos! Vygotsky, diferentemente do autor suíço, estava preocupado em entender como
o homem se torna homem, ou melhor, como adquirimos consciência das coisas, do mundo
e de nós mesmos. Assim, a pergunta básica de Vygotsky era: como nos tornamos homens?
Como adquirimos a consciência, a cultura e a linguagem (chamadas por este autor de
Funções Psicológicas Superiores)?
Na tentativa de responder a essas questões, Vygotsky também voltou seu olhar
para a infância, buscando nesta a origem dos processos acima mencionados. Através de
um método, cuja principal característica é um olhar materialista-dialético sobre a história –
o homem ao transformar a natureza, transforma também a si mesmo –, Vygotsky chega à
conclusão de que “todas as funções psicológicas foram antes relações sociais. O modo
como nos remetemos a nós mesmos foi antes o modo como outros se remeteram a nós”.
Assim, o psicólogo russo afirma a gênese social de nossa consciência. O homem se faz,
1
Remetemos o leitor interessado em um aprofundamento das idéias de Piaget aos seguintes
livros: FERREIRO, E. A atualidade de Piaget. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001 e KESSELRING,
T. Jean Piaget. Petrópolis: Vozes 1993.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.13
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
se constrói, na e pela interação com outros homens. O modo como penso, uso a linguagem,
imagino, memorizo e até me emociono tem origem no modo como aqueles aos quais eu
me relacionei durante minha história pessoal, utilizaram-se destas funções comigo através
de sucessivas e complexas internalizações (tornar interno algo que é externo).
Mas existe um ponto crítico em Vygotsky, pois é verdade que a educação acontece
através do chamado de um outro à existência, mas o desenvolvimento não se dá só por
essa interação, que permite conhecimento de coisas que, sozinho, não conseguiria
conhecer. Isto é, o outro não possui o meu destino que permanece misterioso aos meus e
aos olhos dele. A ajuda que o outro pode dar ao meu crescimento consiste no ser capaz
de mover a minha liberdade, assim que eu capto a realidade, segundo a totalidade dos
fatores constitutivos e através dessa adesão descubra aquilo para o qual é feito2.
Em seus últimos trabalhos, Vygotsky aponta para uma perspectiva diferenciada:
a questão da mediação semiótica. A linguagem seria a maior das aquisições da
humanidade, uma vez que ela transforma todas as demais funções. O que nos diferencia
de outros animais não é o fato de nós termos memória, pensamento, imaginação,
sentimentos e os demais animais não. Ao contrário, o que nos distancia dos demais animais
é o fato de em nós estas funções psicológicas serem incrementadas pela linguagem. Com
o advento da linguagem não mais memorizo as coisas e fatos por eles mesmos, mas
utilizo símbolos que podem representar (estar no lugar de) algo. Ganhamos com a
linguagem a possibilidade de nos distanciarmos, nos livrarmos das coisas mesmas. Um
macaco, por exemplo, só irá utilizar uma vara para conseguir um cacho de bananas longe
de suas mãos se vir a vara. Nós, por outro lado, podemos utilizar-nos da memória e
lembrarmo-nos do uso da vara em outros momentos – daí a importância da cultura! – e
contextos; podemos, ainda, mobilizar o meio social, falando em voz alta: “seria bom se
tivéssemos uma vara aqui, facilmente pegaríamos este alimento”.
Através da linguagem, a criança que antes precisava ver a mãe para não chorar,
agora pode imaginar sua mãe em outro lugar ou no trabalho e, então, acalmar-se e não
mais chorar.
Para este autor, linguagem não quer significar apenas a emissão de sons através
da fala. O choro, o desenho infantil, seus rabiscos, o comportamento verbal e não verbal,
tudo isso é Linguagem, quer dizer, tudo possui um significado e pode ser, então,
interpretado. O educador atento a esse aspecto irá usar e abusar da linguagem – em suas
diferentes manifestações – enquanto está interagindo com seus alunos, uma vez que é
através das interações nas quais há trocas simbólicas (uso de algum nível de linguagem)
que nos tornamos verdadeiramente humanos.
A teoria de Vygotsky, portanto, integra uma perspectiva em que o homem é
concebido enquanto ser biológico e social participante de um processo histórico. Para
este autor, não é possível entender as pessoas fora de seus contextos socioculturais.
Para ele, o que importa não é tanto o que a criança já sabe fazer sozinha, mas o
que ela está em vias de saber fazer sozinha. É, portanto, um olhar prospectivo em direção
ao desenvolvimento, e não um olhar retrospectivo como de costume.
Na perspectiva dialética de Vygotsky, não é o desenvolvimento que sustenta a
aprendizagem – como poderíamos afirmar que é para Piaget. Ao contrário, a boa aprendizagem
é aquela que se adianta ao desenvolvimento, que “puxa” o desenvolvimento. Para o psicólogo
russo, existem, assim, dois níveis evolutivos ou zonas de desenvolvimento: uma zona (área) de
desenvolvimento real que é o nível daquilo que o indivíduo já aprendeu e já é capaz de fazer
2
Essa afirmação pode ser conferida nos textos de Guardini e de Lèna que apontam como a
educação contém um elemento de poder do adulto sobre o outro e como se evita cair nessa
sensação de onipotência sobre o outro.
1.14 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
sozinho. E existe uma zona de desenvolvimento potencial que abrange tudo aquilo que o
sujeito não realiza sozinho, porém, se ajudado, ou mediado por outro, consegue realizar. A
partir desses dois conceitos, Vygotsky define o que ele chama de “Zona de Desenvolvimento
Proximal” (ZDP) que vem a ser a distância entre esses dois níveis de evolução da criança. O
bom ensino deve incidir sobre a ZDP. Em outras palavras, não percamos tempo em ensinar o
que a criança já sabe, porém, devemos ter o cuidado para não tentar ensinar à criança aquilo
que está muito longe de suas possibilidades de entender. Busquemos o meio termo, o lugar
onde as idéias e conceitos estão em forma de “embriões”.
A partir do conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, podemos afirmar que
o relacionamento social, o papel do Outro é de extrema importância no processo de
desenvolvimento. São os pais ou o adulto que acompanha a criança que darão os primeiros
estímulos e realizarão as primeiras interações com as crianças, dando suporte para esse
crescer contínuo. Toda interação social implica, portanto, o partilhar, em algum grau, de
um conjunto de signos, com seus respectivos significados, ou seja, da linguagem. Se a
interação social for eficaz – encontro –, portanto promotora de desenvolvimento (o que
implica processo de Internalização), ela necessariamente agirá sobre a ZDP e terá como
um de seus resultados a construção de conhecimento.
Essa interação social será tanto mais eficaz – encontro – quanto maior for o grau de
afeto envolvido nela. Porém, devemos atentar que a qualidade da interação é o que realmente
importa e não a quantidade. Assim, Vygotsky intui o conceito de encontro, porém não chega
a defini-lo ou descrevê-lo. Veremos que esta é uma contribuição de outros teóricos e
educadores: Martin Buber, Carl Rogers e Luigi Giussani. O encontro, para estes autores, é a
fonte das transformações. É o abrir-se para a realidade como ela realmente é e deixar-se
tocar por ela (affici). É o que nós, educadores, deveríamos buscar em todo processo educativo.
4. Henri Wallon e a Educação Infantil:
um olhar para a totalidade da criança
Um terceiro autor que muito contribuiu para o aprofundamento no entendimento
sobre os importantes fatores do desenvolvimento infantil, notadamente os aspectos Emoção/
Afeto e Movimento, foi o filósofo, médico e psicólogo francês Henri Wallon, nascido em
1879 e falecido em 1962. Apresentou uma nova visão sobre as Emoções e o papel que o
status tem no movimento na construção da identidade e da consciência.
Procurando construir uma psicologia da pessoa completa, Wallon evita entender
o homem dividido em partes. Assim, para uma real compreensão da criança, é necessário
levarmos em consideração todos os níveis: biológico, motor, cognitivo, social e emocional
(afetivo). Essa abordagem, tão incomum nos meios científicos costumados a dissecar
apenas um dos aspectos e se especializar nesse, tem seu fundamento em um amor e um
interesse muito grande pelas crianças.
Wallon interessou-se pelas crianças, a princípio, enquanto médico psiquiatra que
tratava de casos graves de doenças neurológicas. Nesse momento, ele mostra uma importante
e significativa correlação: centros nervosos X emoção X atividade. Assim, utilizando-se do
método das múltiplas comparações (comparando crianças normais com as patológicas),
Wallon nos mostra que a Emoção no homem tem uma base biológica muito precisa (centros
talâmicos e hipotalâmicos, região central do cérebro) e que, portanto, deve possuir uma
função específica. Tal função, diz o autor francês, não deve ser encontrada na própria pessoa
ou no meio físico. A emoção se dirige sempre para mobilizar o meio social e é neste, então,
que devemos buscar a função primordial da emoção: mobilizar o Outro.
O bebê ao nascer é extremamente frágil e caso não pudesse mobilizar um adulto
poderia ser esquecido e certamente morreria. Assim, através da emoção, sustentada pelos
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.15
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
centros nervosos e transformada em atividade (no bebê, uma série de gritos, choros,
balbucios, movimentos os mais diversos), a criança consegue mobilizar o meio adulto. A
emoção é esta descarga energética transmutada em gesto, em movimento. Isso é possível
graças a duas funções: Função Cinética (o que nos permite andar, movimentar) e Função
Tônica, que, segundo este autor, é a propriedade que temos de nos sustentar, mantermos
nossa rigidez nos músculos. A emoção molda nosso corpo; quando estamos com fome,
não apenas nosso estômago está com fome, todo nosso corpo está com fome. É provável
que andemos mais depressa, que nos contorçamos, que nosso rosto mude. Também por
esta capacidade de moldar meu rosto e corpo, a Emoção pode ser contagiosa. Ou seja,
quando vejo alguém se emocionar em um filme no cinema, ou diante de mim, sinto como
que um impulso para me emocionar também. Se eu estou em sala de aula e alguém grita
comigo, tendo a reagir. Daí a importância de o educador, no dizer de Heloisa Dantas (1996),
uma das importantes intérpretes da obra de Wallon, “ser alfabetizado emocionalmente”,
ou seja, fazer a correta leitura sobre as emoções que ocorrem em sala de aula, podendo
assim, superá-las, se for necessário.
Mas Emoção não é a mesma coisa que Afetividade em Wallon. Para este autor,
afetividade implica uma emoção já carregada de significados, ou seja, transformada pelo
mundo cultural e social. Assim, não poderia dizer que eu simplesmente me emociono ao
assistir uma novela, senão que toda uma cultura, toda uma sociedade e, portanto, as
relações sociais me levam a me emocionar diante de tal novela. Desse modo, a afetividade
nasce da emoção, é também emoção, mas já com interferência do meio humano (cultural).
Nasce da emoção porque é um corpo que se emociona, são os músculos que são afetados,
tensionados (raiva) ou relaxados (alegria). É também emoção porque o significado de
nossos afetos deve ser buscado no meio humano, naquilo que eles mobilizam, afetam.
A emoção é o modo primordial de relacionamento da criança pequena e, por
isso, é também através dela que a criança vai construindo sua personalidade, tomando
consciência de si. Isso ocorre à medida que, ao emocionar-se, a criança mobiliza o Outro.
Se, no começo, ela não consegue distinguir seu corpo dos demais objetos do mundo,
através da mobilização do Outro, aos poucos essa diferenciação vai ocorrendo, já que é o
adulto quem interpreta suas emoções: “oh filhinha, tá com fome né?!”, até o ponto em que
ela deve negar o Outro para construir sua identidade. É a fase do NÃO, mais ou menos aos
três anos. Esse momento, carregado de tensão, de gestos bruscos e às vezes até violentos,
deve ser entendido pelo adulto como a tentativa da criança de separar de si o que é do
adulto e o que é dela. Mais uma vez, exige-se do adulto uma “leitura” deste processo. A
emoção é controlada através da razão, este deve ser um objetivo de aprendizado de ambos
os envolvidos no processo educacional: professores e alunos.
Em sua teoria, Wallon dá dicas importantes para uma leitura adequada destes
fenômenos. Ele propõe, assim como Piaget, que o desenvolvimento segue um conjunto
de estágios.
Estágio Impulsivo-emocional – 0 a 1 ano. Nesse período a satisfação das
necessidade não é automática como era no período fetal, a criança sentirá sentimentos de
privação ou espera que será exteriorizado através de espasmos e gritos.
Estágio Sensório-motor e Projetivo – 1 a 3 anos. A criança volta-se ao meio externo,
procura dominá-lo e compreendê-lo. O foco principal é o desenvolvimento do intelecto.
Estágio do Personalismo – 3 a 6 anos. O principal objetivo deste estágio é a
independência e a construção do Eu. O foco principal volta a ser as emoções.
Estágio Categorial – 6 a 11 anos. Uma vez mais, a criança joga suas atenções para o
meio externo. É o momento de construir uma noção mais precisa e independente das coisas.
Estágio da Puberdade e da Adolescência – 11 aos 16 anos. Retoma-se o estágio
do personalismo, aqui o jovem coloca suas forças para definir sua personalidade e sua
individualidade, de modo semelhante, muitas vezes através da oposição.
1.16 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
Por fim, Wallon aponta para o fato de que não se deve esperar de uma criança
pequena (5 a 6 anos) a mesma destreza no uso da atenção, da inteligência ou disciplina
em sala de aula do que de um adulto. Os centros nervosos, em especial os responsáveis
pelos comportamentos acima citados, desenvolvem-se vagarosamente e portanto, muitas
vezes, exige-se da criança que esta pare de brincar ou movimentar-se em sala quando, de
fato, este é o comportamento adequado para que ela possa des-envolver suas futuras
possibilidades, já que é através dos gestos, ações, que a criança expressa suas emoções,
des-envolvendo, deixando à mostra, desnudando seu interior, que deve ser traduzido e
refletido, pelo adulto, para a criança. Este é o maior desafio do verdadeiro Educador.
4.1. O Desenvolvimento Afetivo e o Papel da Afetividade na Relação Professor-Aluno
O homem é um ser de relação por excelência, sendo assim o desenvolvimento
afetivo, bem como o físico e o cognitivo começam a se estruturar dentro das relações
estabelecidas desde os primeiros instantes de vida intra-uterina.
Assim como a criança é hospedada no seio de uma mulher, e essa é uma condição
fundamental para o seu desenvolvimento global, e durante o tempo em que é acolhida
pela mãe ela já é esperada, imaginada, desejada, após o nascimento essa mesma criança
precisa, para o seu desenvolvimento, sentir-se hospedada por aqueles que a acompanham
(um hospedar que pode configurar-se fisicamente, mas também sentir-se hospedada no
pensamento de alguém, como a criança que está na instituição, mas tem a certeza de que
a mãe está com ela em seu pensamento).
Falar do desenvolvimento afetivo significa falar de um sistema de relacionamentos
que existe entre a criança e algumas pessoas e entre a criança e os elementos do meio no
qual ela vive.
Desenvolvimento afetivo pode ser entendido:
• como enriquecimento e complexidade de um sistema de relacionamentos. Por exemplo,
até uma certa idade, a criança vive só no âmbito familiar, depois começa a freqüentar as
instituições educacionais e ali estabelece novos relacionamentos afetivos que enriquecem
o sistema;
• como a modificação de intensidade de um relacionamento, que faz parte de um sistema,
como uma simpatia que se transforma em amizade, ou de qualidade de um
relacionamento, como crianças que a princípio são espontâneas e que diante de pais
que são muitos severos acabam por assumir uma postura mais retraída.
Estudar o desenvolvimento afetivo significa ver em que maneira se constitui esse
relacionamento, tentar ver quais são as condições que possibilitam ou favorecem esse
desenvolvimento e quais são os obstáculos.
Uma teoria interessante sobre o desenvolvimento afetivo é a de Erik Erikson,
psicoanalista germânico nascido em Frankfurt-Meno, Alemanha, em 1902, especialista em
problemas psicossociais, cujos estudos foram determinantes na expansão da psicanálise
que descreve várias etapas. Em cada uma delas, a pessoa enfrenta um problema central
que nasce da necessidade de identidade e da necessidade de pertencer ao meio no qual
vive, a maneira através da qual o meio sustenta a pessoa nessas etapas influencia o
desenvolvimento.
No primeiro momento após o nascimento até a idade de um ano e meio
aproximadamente, a criança é totalmente dependente do adulto, essa é uma fase de extrema
importância para qualquer indivíduo, pois aqui está toda a segurança ou insegurança que
ele pode adquirir do mundo exterior. É uma fase marcada pela confiança básica e é com
ela que a criança se relaciona com o mundo. Por exemplo, quando a criança chora porque
tem fome, ela o faz pela certeza de que receberá o alimento. Quando a criança não possui
esse sentimento de confiança básica, ela sente o mundo de forma menos equilibrada, mal
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.17
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
adaptada, insegura nas suas relações sociais, não possuindo na maioria das vezes a
capacidade interativa, tornando-se arredia, adotando uma postura de inferioridade com
relação a si e aos outros. A confiança básica não está submetida à quantidade de estímulos
que a criança receberá, mas à qualidade dos estímulos aos quais a criança será submetida.
Segundo Erikson, na passagem de uma etapa de desenvolvimento para outra
está implicada uma crise, que, apesar de trazer algum desconforto, é o que possibilitará o
crescimento e o salto para a nova etapa. A primeira crise sofrida pelo indivíduo é após o
desmame na qual criança começa a sentir um pouco o desamparo, podendo trazer
sentimentos de nostalgia, dependências, otimismos e pessimismos.
A confiança nasce do fato de que a criança se sente totalmente reconhecida no
seu valor de pessoa pelo adulto ou pelo ambiente com o qual se relaciona. Isso se dá
através do cuidado e da afeição e depois através da proposta que ajuda a criança a conhecer
as coisas.
Os cuidados que a criança recebe são uma resposta às necessidades físicas que
ela tem (comer, dormir, ser trocada), mas, na realidade, correspondem também às
necessidades psicológicas e afetivas.
A criança, se confia em quem lhe dá um sustento físico verdadeiro, real, concreto,
no abraço tem o reconhecimento de toda a pessoa, e isso se reflete por toda a vida do
indivíduo.
Em uma segunda fase, a criança começa um conflito entre a autonomia e a
vergonha acompanhada da dúvida. Nesse momento a criança começa a controlar os
esfíncteres, mas ainda sente-se insegura apesar de já se sentir mais autônoma, possui
vergonha e dúvidas com relação às suas capacidades e competências. Outro fator que
fortalece a autonomia da criança é o fato de nessa fase começar a caminhar, porque assim
amplia o horizonte do mundo, até aquele momento desconhecido.
A criança começa a sentir-se atraída pela realidade que a cerca e para aprender,
pode-se dizer que é a realidade que suscita o interesse no menino.
Para acontecer uma atração, devem existir a criança e a realidade e, para que
essa atração passe a ser um conhecimento, precisa-se de um relacionamento que introduza
a criança nessa realidade, que a atraia para fazer de maneira tal que essa realidade se
torne interessante, por isso, objeto de conhecimento e de afeição. A atração está dentro
da criança, porque a criança é criada para encontrar a realidade.
De fato, se nós pegamos a situação de um bebê, nós podemos ver que tem um
imediato relacionamento com a realidade mais próxima que é a mãe. No relacionamento,
essa atração inicial chega a ser um interesse para a realidade, para a mãe, e permite um
conhecimento.
Quando a criança é maior, esta abertura para a realidade se torna um pedido de
reconhecimento para poder entender o que eu sou. É típico as crianças de 3 a 5 anos
dizerem para o adulto: “olha-me”, olha-me que significa reconhece-me, olha como sou
capaz, reconhece que eu tenho um valor, que eu sou uma pessoa.
Nesse período, a criança passa pelo período do NÃO, durante o qual se opõe aos
pais para mostrar que ela existe, que tem uma personalidade e uma vontade própria. É
importante para que a personalidade da criança se desenvolva um relacionamento com o
ambiente familiar sereno e tranqüilo que a ajude a aderir às normas, mas ao mesmo tempo
lhe permita expressar comportamentos livres.
É importante que, nesse momento, os pais sejam firmes mas ao mesmo tempo
flexíveis para ajudar a criança superar sua teimosia e amadurecer um senso autônomo de
liberdade.
Nesse terceiro momento, por volta dos três aos cinco anos de idade, a autonomia
da criança permite que ela defina os modelos sociais, culturais, familiares, assumindo
características de onipotência, em que se torna capaz de explorar o ambiente em que
1.18 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
vive. A linguagem mais aperfeiçoada permite maior questionamento do que está à sua
volta, momento este que trará para a criança novo direcionamento de seu
desenvolvimento; adquirindo a capacidade de ver-se como um ser no mundo, dotado
de responsabilidades, começa a perceber-se como homem ou mulher e tem entendimento
dos papéis exercidos por ela. A afetividade é dirigida para aqueles que se encontram
com a criança. Nesta fase, os meninos costumam mostrar-se mais tímidos e retraídos,
ao passo que as meninas mostram-se com atitudes de enfrentamento, lançando-se ao
mundo.
Todo relacionamento humano é movido por um afeto. Na relação professor-aluno,
a afetividade é peça fundamental, uma vez que é a partir da interação e do convívio entre
pessoas que se dá o aprendizado. Ensinar é, antes de tudo, AFETAR os alunos com o
desejo da aprendizagem. Segundo Maldonado (1994),
É importante ter em mente o entrelaçamento de aprendizagem e afetividade para
perceber que, a todo o momento, é possível partir das miudezas do cotidiano
para aprender um pouco mais sobre os grandes temas da vida (p. 44).
A conceituação da afetividade e suas implicações são enfocadas sob diferentes
perspectivas. No entanto, podemos afirmar que todas as teorias educacionais já se
renderam ao papel fundamental desta para a construção do conhecimento. Em uma postura
sócio-construtivista, o professor é o mediador e, portanto, o estimulador da busca por
essa construção. É na relação professor-aluno que se dá a comunicação necessária para
a aprendizagem não só dos conteúdos escolares, mas também a aprendizagem do convívio
e da cidadania. Essa aprendizagem só se dará de forma efetiva se esse relacionamento
estiver pautado no respeito e no amor.
Concordando com Maldonado (1994), ainda ressaltamos que em uma relação é
fundamental a “consciência da interação”: se o que se deseja é respeito, antes é preciso
respeitar; se o que se deseja é amor, antes é preciso amar; se o que se deseja é
reconhecimento pelo trabalho, antes é preciso reconhecer o trabalho alheio. Na relação
professor-aluno, cabe ao professor, que já é um adulto com formação de educador e
ainda com acúmulo de experiências, dar os primeiros passos para indicar que esse caminho
é uma “rua de mão dupla”.
É importante que a relação do professor com seus alunos esteja baseada nos
alicerces do amor, respeito e reconhecimento. O professor deve conduzir a sala de aula
com tranqüilidade e disciplina, estabelecendo os limites, as regras e o respeito mútuo,
essencial para uma boa relação, uma vez que uma relação afetiva nunca deve ser permissiva.
Se o chamado de atenção para a criança é claro, esta entende isso. Se ao invés é
ambíguo, a criança não sabe o que fazer, ou mesmo faz aquilo de que ela mais gosta, o
que o instinto a leva fazer. É preciso ter o olhar sobre a totalidade dos fatores dos quais
uma criança é feita.
O primeiro passo na construção dessa relação marcada pelo bom afeto pode ser
a tentativa de resgatar a auto-estima dos alunos, principalmente daqueles que se julgam
fracassados ou são taxados como tal.
Essas posturas, juntamente com os incentivos individuais e grupais, também
favorecem o fortalecimento da auto-estima e autoconfiança dos alunos. Para isso, o
professor deve argumentar e relembrar as regras formuladas no grupo.
A valorização da produção de cada aluno é outra postura recomendada que, sem
dúvida, contribui para o bom relacionamento com os alunos. Esses não se sentem
angustiados, por terem a certeza de um reforçamento, já que cada avanço é reconhecido
e prestigiado pelo professor; deve-se estimular também as novas conquistas na leitura e
na escrita, na matemática enfim, em todos os conteúdos. Dessa forma, os alunos tendem
a empenhar-se mais na feitura dos deveres com maior prazer.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.19
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
Segundo Maldonado (1994), muitas vezes, as atitudes agressivas, ressentidas e
magoadas de alguns alunos são apenas uma proteção pelo medo da rejeição, sendo
possível romper essa barreira:
Com o auxílio da escuta sensível e da ação orientada pela combinação de firmeza
e delicadeza, podemos “descascar as camadas da cebola”, à busca do núcleo
amoroso onde está o que de melhor existe nas pessoas (p. 39).
O professor pode desenvolver em sua prática essa capacidade de “descascar a
cebola” – talvez a custo de muitas lágrimas, pois, sem dúvida, esse é um trabalho árduo –
mas que compensa pelo sabor que acrescenta à docência. Maldonado (1994) ainda ressalta:
O desenvolvimento da nossa capacidade de enxergar o núcleo amoroso através
dessas camadas de hostilidade, tristeza e mágoa ajuda a ampliar o olhar de
apreciação: quando pais e educadores passam a reconhecer mais a presença de
pontos positivos (“você fez uma letra linda nessa página!”), em vez de ficar
criticando e depreciando (“você não tem jeito, é preguiçoso demais”), a criança e
o jovem ficam mais estimulados a mostrar suas capacidades e sentem-se mais
apreciados. Com isso, tendem a melhorar o desempenho e a mostrar com menos
medo seu núcleo amoroso (p. 40).
Conhecer a vida pessoal de cada aluno bem como sua realidade ajuda muito na
relação afetiva, assim como escutar a criança para orientar, quando há alguma dificuldade
em suas famílias. É útil ainda ter por hábito chamar os pais para saber se está tudo bem
quando uma criança apresenta alguma dificuldade, da mesma forma que atender aos pais
ao final das aulas, se algum solicita.
A assertividade é outra postura desejável, ou seja, em nenhum momento deve-se
usar de agressividade e autoritarismo ou de passividade e compaixão frente às crianças,
mas adotar uma postura firme, olhando a realidade com todos os seus fatores, para garantir
o andamento da sala de aula e a solução dos atritos. Ser uma verdadeira autoridade
mostrando o caminho a ser seguido. Uma postura de humildade buscando conselhos
com outros professores e com a orientação pedagógica ajuda a enfrentar os problemas
com mais clareza e certeza das posturas a serem adotadas.
Em síntese, todas as conquistas de um bom relacionamento professor-aluno são
construídas ao longo do percurso educativo e se dão sob um clima de liberdade (e não
libertinagem), mas ao mesmo tempo disciplinado. Ser um professor carinhoso não impede
de ter uma postura firme (e não autoritária) e assertiva (e não agressiva) frente aos alunos.
Essas posturas acima citadas podem ser adotadas tanto para crianças como para
adolescentes; com as devidas adaptações, a adolescência é uma fase considerada difícil
pelos educadores; assim, é preciso uma boa dose de paciência e observação para lidar
com os alunos.
Um exemplo disso foi relatado por uma pedagoga italiana Luisa Cogo (2000):
Eu tive uma experiência muito bonita alguns anos atrás, começando uma primeira
série, trabalhávamos três professoras, uma trabalhava língua italiana, outra fazia
matemática e eu fazia a área considerada menos importante. Era uma turma
muito agitada, 25 crianças com muitos problemas, e todas às vezes que eu entrava
naquela sala eu falava para os meninos, “hoje nós vamos fazer uma coisa BONITA”,
explicava para eles com entusiasmo aquilo que iria ser feito e o que iria ser feito
era o conteúdo, o trabalho. Daí algum tempo, eu a mestra Luisa se tornou a
mestra que fazia coisas bonitas.
Os meninos entre eles colocavam estas coisas: “hoje nós vamos fazer uma coisa
bonita?” e o outro dizia: “é claro, ela sempre faz coisas bonitas”, se tornou uma
regra isso e se tornou a possibilidade de um relacionamento com eles. Esse
1.20 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
exemplo eu tenho sempre na cabeça não como uma forma que permite acontecer
o conhecimento, mas como uma postura para o conhecimento acontecer. Assim,
o professor não é só um mediador, mas alguém que introduz o aluno na realidade,
porque o meu gosto a minha maneira de colocar-me dentro da realidade, o retomar
para mim a motivação, o trabalho de maneira tal a apresentar aquela coisa normal,
(pensava também algumas coisas interessantes), essa era a possibilidade de abrir
para as crianças o fato de que aprender é uma coisa boa, e isso tornava verdadeiro.
Quando depois eu passei a ensinar na mesma turma a língua italiana, a gramática,
por incrível que pareça, também se tornou uma coisa interessante e bonita!
Através deste exemplo e das teorias apresentadas, concluímos que o
desenvolvimento cognitivo está irremediavelmente ligado às interações sociais e ao afeto
que delas decorre.
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AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.21
O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL
O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL
A criança, desde os seus primeiros momentos de vida, é totalmente dependente
de um outro, de um adulto. Em uma esfera mais ampla, podemos afirmar que ela depende
“da ajuda prestada pelo grupo social onde ela vive” (Lopez in Coll, 1995, p. 81).
Toda criança nasce com necessidades básicas, que estão na base de seu
relacionamento com o mundo. Assim, ela precisa ser alimentada e limpa, ela precisa que
alguém a ajude a regular sua temperatura, ou seja, nas exigências físicas que ela mesma,
neste momento, não consegue suprir. Necessita também de vínculos afetivos estreitos
com os adultos que a rodeiam para que, sentindo-se amada e desejada, possa ter a
tranqüilidade de explorar o meio físico e social em que vive.
Estas necessidades fazem com que a criança esteja “motivada” biológica e
socialmente para incorporar-se ao grupo social. Por isso, desde o nascimento, a família
tem um papel importante e de grande influência no processo de desenvolvimento, de
socialização e de construção da identidade desta criança.
A identidade pessoal, do ponto de vista psicológico, se define como “ser em
relação”. De fato, o conceito de identidade significa, ao mesmo tempo, igualdade,
semelhança e unicidade; especificidade e diferença.
Falar de identidade implica, portanto, falar de relação porque a identidade pessoal
se constrói dentro de um processo que acontece no pertencer a alguém. O desenvolvimento
do indivíduo se dá como decorrência das relações entre o sujeito em crescimento e o
sujeito que cuida dele e cresce com ele.
A capacidade de relação de fato não é uma das habilidades, mas é a habilidade
que define o ser humano. O nascimento psicológico do ser humano coincide com a sua
capacidade de colocar-se em relacionamento com o outro significativo, por exemplo a
mãe, e o seu amadurecimento com a capacidade de estabelecer relacionamentos
adequados, ou seja, trocas profundas com as pessoas que constituem o seu ambiente
familiar e social.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.23
O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL
Podemos descrever a trajetória que leva a uma relação madura como a passagem
da dependência para a interdependência. Essa passagem acontece com momentos de
conflitos, situações em que há um retrocesso a etapas anteriores da vida. A dependência,
de fato, é uma modalidade típica das primeiras etapas da vida do ser humano, nas quais a
criança ainda não se diferenciou da mãe. Contudo, é preciso atentar que há modalidades
diversas de dependência nos relacionamentos que acompanham seja o adolescente seja
o adulto, de acordo com a maturidade e as situações nas quais eles se encontram.
Um relacionamento maduro pressupõe duas personalidades que tenham
conseguido a própria individualização e, por isso, saibam colaborar e enfrentar de forma
construtiva as dificuldades e as diferenças. O relacionamento maduro não é aquele que
não apresenta conflitos ou brigas, mas aquele no qual se tenta diminuir as divergências. A
boa qualidade de um relacionamento se dá, portanto, concomitante com a capacidade de
equilibrar necessidade de proximidade e separação, de pertencimento e de liberdade
pessoal.
Mas, como a criança adentra no processo evolutivo do relacionamento? É
completamente passiva e espectadora das ações dos outros?
A criança observada na família não é isolada e segmentada em etapas evolutivas,
paralelas a um processo de amadurecimento biológico, mas um sujeito em constante
interação com pessoas significativas. As pesquisas científicas sublinham a precocidade
da capacidade de relação da criança. Uma capacidade que se diferencia de acordo com
as características dos pais e do relacionamento que se estabelece com eles. Desde as
primeiras semanas de vida, as crianças conseguem estabelecer uma ação mútua com a
mãe, ou seja, a mãe influencia a criança, mas a criança, por sua vez, com suas necessidades
e seu humor, começa a afetar todo o relacionamento familiar. A dependência da criança
não deve ser entendida como a criança sendo sujeito passivo no processo de socialização.
Ela também interfere no seu meio familiar, muda os hábitos da família, “ensina a mãe a ser
mãe”.
Com três semanas, a criança já sabe distinguir entre o comportamento materno e
o paterno e reage de forma diferente aos dois. Tudo isso podemos dizer que demonstra
como a criança possui uma competência social muito precoce.
O adulto, desse modo, desenvolve um papel fundamental no favorecer ou
contrastar o processo de crescimento através do cuidado; é uma característica típica do
adulto fazer crescer e cuidar daquele que ele gerou. Esse cuidado acompanha o filho ao
longo de toda vida: nos primeiros tempos, assegurando o bem-estar físico e psíquico,
depois oferecendo uma segurança a partir do momento em que a criança sai do contexto
familiar até o momento de uma proteção mais flexível que sustenta o adolescente na sua
conquista da autonomia. O cuidado compreende, portanto, dois aspectos fundamentais:
o recurso do afeto e o respeito às regras, ou seja, os aspectos protetores típicos do papel
materno e os aspectos emancipativos típicos do papel paterno. O afeto permite à criança
assimilar confiança, estima de si, capacidade de relacionamento; a lei – o sentido daquilo
que é bem e mal – o coloca em frente ao limite ajudando a reconhecer a realidade externa,
física e social na qual deve inserir-se e dar a sua contribuição. Esses dois aspectos do
afeto e da lei no relacionamento adulto/criança devem estar sempre presentes e com
equilíbrio porque a acentuação de um só distorce a personalidade.
O relacionamento adulto/criança, um relacionamento recíproco, não é, porém,
um relacionamento simétrico porque é o adulto quem estabelece as condições e quem
garante o relacionamento tendo, portanto, a responsabilidade maior. Mas esse é sempre
um relacionamento de mão dupla, no qual adulto/criança são responsáveis pelo
relacionamento através da interação que acontece de forma muito precoce, através de um
processo pré-verbal. Através da interação do cotidiano se transmite, implícita ou
explicitamente, aquilo que podemos chamar de patrimônio hereditário das relações.
1.24 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL
É também na família que a criança adquire a linguagem. Esta aquisição é a
condição básica para que ela “entre” na vida em sociedade. Ela depende da linguagem
para comunicar-se com os outros e também para entender a si mesma. Através da
linguagem, a criança passa a ter um controle racional da realidade que, por sua vez, irá
estruturar o seu psiquismo, dando significado aos seus sentimentos. Acentuamos aqui
que não estamos nos referindo apenas à linguagem falada: lembremo-nos de todas as
etapas do desenvolvimento infantil e do uso do jogo motor no processo de individualização
da criança e do jogo simbólico como veículo de acesso à cultura.
Para entendermos melhor o processo de socialização da criança, faz-se necessário
ampliar nosso olhar para além do núcleo familiar, pois a socialização acontece em todo o
contexto no qual ela está inserida. Muitas mães trabalham fora e muito cedo recorrem a
instituições de educação infantil para assistirem diariamente seus filhos. Assim, a criança
entra em contato com as educadoras e com muitas outras crianças, que não são de seus
núcleos familiares, mas que exercem influência semelhante na interação e no seu processo
de socialização.
Os processos de socialização fundamentais ocorrem em três grandes níveis, como
especificados a seguir: 1) os processos mentais de socialização que se dão através da
aquisição do conhecimento da cultura na qual a criança vive (de acordo com o
desenvolvimento cognitivo em Piaget); 2) os processos afetivos de socialização, através
dos quais a criança cria e confia nos vínculos afetivos (apego, amor, amizade, empatia) e
3) os processos condutuais de socialização que são o aprendizado da conformação social
da conduta da criança. “Se a criança vincula-se afetivamente a determinados adultos, se
adquire o conhecimento do que a sociedade é e o que esta espera dela, e se tem um
comportamento adequado a estas expectativas, considera-se que estará bem socializada”
(Lopes in Coll, 1995, p. 84).
Através dos processos mentais de socialização, a criança, aos poucos, vai
adquirindo um conceito rudimentar de pessoa. O conhecimento das primeiras diferenças
entre o eu e o outro pode ser adquirido de forma muito precoce (por volta do oitavo mês)
em interação com o reconhecimento e a discriminação entre diferentes pessoas. As ações
da criança e suas conseqüências no meio, bem como a interação com as pessoas que
cuidam dela, oferecem muitas possibilidades para que as crianças aprendam que são
diferentes dos outros. Agem e desde muito cedo reconhecem os efeitos que acompanham
as suas ações e, de forma muito precoce, entram em jogo de interação alternada com
aqueles que cuidam dela. Contudo, é preciso lembrar que o desenvolvimento das noções
de Eu e, por conseqüência, de sua diferenciação com outros Eus, se afirmará de forma
mais completa por volta da puberdade e adolescência (12 a 16 anos), mesmo tendo, ainda,
um longo percurso a percorrer, pois esse processo se dá por toda a vida.
O papel da mãe: Já na vida pré-natal, a criança é sensível às emoções, faz parte
do corpo materno e segue um biorrítimo próprio em seu desenvolvimento. Será com essa
mãe que a criança estabelecerá os primeiros contatos com o mundo externo após o
nascimento. A maternagem exige um amadurecimento (social e psicológico) da mulher
para que possa conseguir satisfazer as necessidades do filho. Ela precisa ter boas condições
psicológicas para enfrentar a nova realidade que é imposta após a chegada de um bebê e
para mantê-lo vivo, percebendo as suas necessidades.
O papel materno, então, é de vital importância para a sobrevivência da criança, e
tal papel não diz respeito apenas ao fator biológico ou nutricional. Ser mãe implica cuidar,
confortar fisicamente, sendo responsiva aos sinais do bebê, deixando que a criança apeguese a ela, criando uma relação baseada na confiança total (desenvolvimento afetivo – 1ª
etapa descrita por Erikson).
Cada cultura possui uma maneira de estabelecer os primeiros vínculos afetivos e
estes não se fecham na figura materna. Em nossa cultura, logo após o nascimento, a
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.25
O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL
criança também relaciona-se com o pai, avós e irmãos e estes também exercem papéis
importantes para o desenvolvimento pleno do futuro ser.
O papel do pai: Até pouco tempo, atrás o pai era visto como uma figura de segundo
plano no desenvolvimento dos filhos. Mas percebe-se hoje que o pai vem assumindo um
papel mais ativo e primordial na vida de seus filhos. Alguns já acompanham as esposas
desde o pré-natal e até participam do parto, estão mais responsivos e sensíveis à condição
paterna que deixa aos poucos de ser uma responsabilidade apenas de sustento financeiro
da família. Esses pais que estão em contato mais efetivo com seus filhos criam vínculos
íntimos com estes e são de grande influência no desenvolvimento desses.
A afetividade dos pais para com seus “rebentos” é crucial para o bom
desenvolvimento. O apego e a amizade são vínculos afetivos básicos, tendo o apego um
papel fundamental nos primeiros anos de vida, pois o apego pressupõe condutas que
mantenham a proximidade com a pessoa a quem se é apegado. Para apegar-se a uma
pessoa, a criança precisa construir um modelo mental através das lembranças de contatos
confortantes e prazerosos, grau de disponibilidade, acessibilidade, da incondicionalidade
(quando a criança precisa, o adulto está presente).
APEGO: Conjunto de sentimentos associados à pessoa
Segurança
Prazer
Ansiedade
Bem-estar
Proximidade
O afeto, sendo a mola propulsora desse relacionamento, não deve ser ameaçado
ou colocado em “cheque” com falas do tipo “se você fizer isso eu vou embora” ou “se
você fizer aquilo eu não gosto mais de você”. A confiança da criança no adulto não deve
ser ameaçada, ela deve olhar para o adulto e perceber uma companhia verdadeira a quem
ela pode amar e confiar pela certeza deste querer o seu bem.
Obviamente, a criança vai também precisar de regras, limites e muitos “nãos”
para crescer e se adaptar em sociedade, uma vez que nossa sociedade está estruturada
sobre regras. Contudo quanto menos estressada for a relação familiar mais tranqüilo será
o aprendizado das normas de conduta e as características psicológicas da criança serão
moldadas sobre um bom afeto.
Portanto, podemos concluir que a família possui papel central e ativo no
desenvolvimento da criança, mas não tem um poder absoluto sobre ela. Além do ambiente
familiar a criança vai ter características pessoais (saúde, temperamento, adaptabilidade)
que vão influenciar em seu processo de socialização. Além disso, existirão outras agências
socializadoras como a escola e a igreja que a influenciarão, sem falar nas influências dos
colegas, da comunidade em que está inserida e dos meios de comunicação como televisão
e rádio.
A postura adotada pelos pais e o comportamento destes dentro de casa acabam
por ser as influências mais duradouras e estáveis; daí, sua enorme força no desenvolvimento
da personalidade da criança e nas formas como esta criança (que depois se tornará um
adulto) interagirá com outras pessoas.
Abaixo apresentaremos alguns “tipos” de pais, relatados por Moreno & Cubero
(1995), e a conseqüência de seus comportamentos sobre os filhos, tendo consciência que
há uma necessidade de esquematizar algumas tipologias que possam auxiliar os estudos,
mas que, na realidade, nunca se encontra um “tipo” ao estado puro (ou seja, um pai só
autoritário ou só permissivo):
Pais autoritários geralmente apresentam um alto nível de controle e uma alta
exigência de amadurecimento, ao passo que têm um baixo nível de comunicação, que em
geral é baseada na imposição. Exigem obediência à sua autoridade e impõem castigos e
disciplinas enérgicas.
1.26 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL
Filhos de pais autoritários quase sempre se apresentam obedientes, ordeiros,
com baixa agressividade, tímidos, pobres na interiorização, pouco afetuosos, sem iniciativa,
sem espontaneidade, com baixa auto-estima, dependentes, inseguros, tristes e vulneráveis.
Pais permissivos possuem pouco controle sobre seus filhos e pouca exigência
de amadurecimento. Em conseqüência, seus filhos apresentam-se impulsivos,
irresponsáveis e imaturos.
Já no meio termo deste dois tipos de pais acima citados, estão os pais
“democráticos”1 que possuem uma boa comunicação com seus filhos pautada no
raciocínio e não na imposição. Apresentam um bom afeto, bom controle, atendem às
necessidades da criança, não são indulgentes, possuem consciência dos sentimentos em
relação aos filhos, explicam os motivos e os sentidos das coisas, não se rendem às birras
e caprichos.
Os filhos dos pais “democráticos” possuem um bom autocontrole, auto-iniciativa,
boa auto-estima, confiança em seus pais, persistência, são interativas, hábeis no
relacionamento, independentes, carinhosas.
Lembramos mais uma vez que a influência da conduta dos pais sobre o
desenvolvimento dos filhos é, sem dúvida, a de maior peso na vida de qualquer indivíduo,
no entanto, existem outras fontes de interação e aprendizado; o descrito acima são modelos
do que habitualmente ocorre, mas não são regras em si.
O papel da escola como agência socializadora: O processo de formação da
escola, na história da humanidade, nasceu da existência de sujeitos (pais e crianças) que
expressaram a outros sujeitos (professores) uma necessidade, e a partir dessa construíram
juntos uma resposta. Constituindo-se como as primeiras agências socializadoras, a escola
e a família compartilham da tarefa de formação dos jovens no desenvolvimento de
habilidades que possibilitem uma inserção crítica e participativa na sociedade.
A creche representa um espaço de ampliação dos relacionamentos para fora do
ambiente familiar, no qual a criança aprende a estar com outros, adultos e crianças. As
crianças, desde que nascem, participam de diversas práticas sociais no seu cotidiano,
mas elas não aprendem as coisas abstratamente e, sim, a partir do que elas vêem no
mundo adulto, dentro de uma experiência que elas possam fazer. Assim, seria impossível
alcançar o objetivo da socialização se nós, a escola, não fôssemos exemplos de adultos
socializados, isto é, de pessoas que se relacionam umas com as outras, buscando uma
unidade entre si.
Essa unidade vivida entre os adultos (professores, coordenadores, faxineira etc.),
define o ambiente psicológico, o “clima” que a criança respira na escola; esta unidade, as
crianças a lêem, não a partir do que falamos, mas a partir do que fazemos, de como
vivemos os momentos comuns com toda a escola ou com os pais. As crianças percebem
se os adultos se respeitam e se querem bem ou não.
Acreditamos que a criança possa amadurecer diante de uma crescente capacidade
de colocar-se no ponto de vista do outro, superando o egocentrismo, não de maneira
espontânea e natural, como se a maturidade viesse automaticamente com a idade, mas,
em primeiro lugar, observando nos adultos uma capacidade recíproca de integração,
1
A respeito da palavra democrático, gostaríamos de ressaltar que esse termo é pouco adequado
se aplicado à família. Democrático é o sistema no qual o povo elege os seus representantes,
esses representam todos os cidadãos mesmo a minoria que deverá aceitar as deliberações da
maioria. No caso da família, os pais não são “eleitos” e em cada caso há leis dentro da família
que não podem coincidir com o pedido da maioria. Precisa-se reconhecer que os pais têm uma
tarefa que é ENTREGUE; eles têm uma autoridade não autoritária, positiva que é própria da
tarefa educativa que eles assumem.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.27
O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL
respeito, perdão, estima, e, em segundo lugar, com a ajuda de alguém que, com firmeza e
afeto, a ajudasse, nesse sentido, em seus relacionamentos com os colegas.
Só tem sentido propor às crianças aquilo que é vivido pelos adultos, isto é, se os
adultos são sinais vivos da proposta que fazem. É fundamental a presença de um adulto
que reconheça o valor de colocar-se junto ao outro para construir algo maior e mais bonito:
um adulto; um adulto que foi educado para o perdão, que sublinha sempre o positivo (o
bem) que o outro traz e reinicia um relacionamento.
Além disso, o relacionamento com as outras crianças, mais colaborativas e menos
competitivas ou agressivas, é possível quando a criança está segura de sua própria
identidade, quando se sente reconhecida e amada por um outro significativo para ela; por
isso, a professora tem um papel fundamental nesta maturação.
Referências Bibliográficas
LÓPEZ, Felix. Desenvolvimento social e da personalidade. In: COLL, César; PALÁCIOS, Jesús;
MARCHESI, Álvaro. Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia evolutiva. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1995. p. 81-93.
MORENO, Maria Carmem; CUBERO, Rosario. Relações sociais nos anos pré-escolares: família,
escola, colegas. In: COLL, César; PALÁCIOS, Jesús; MARCHESI, Álvaro. Desenvolvimento
psicológico e educação: psicologia evolutiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 190-202.
1.28 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
INSERÇÃO NA CRECHE
A INSERÇÃO NA CRECHE
1. Família: ambiente originário
O eu da criança cresce e se desenvolve só se é hospedado numa demora desde
o útero até a casa, na qual encontra proteção, acolhida e alimento. A criança se torna
protagonista do seu desenvolvimento, em virtude do laço de pertencer que caracteriza
essa demora e aceita enfrentar a fadiga do crescer como resposta a um chamado de um
“tu” significativo que se torna para ela companheiro de caminho. É o ato de reconhecimento
por parte de um adulto que desperta na criança a consciência de si e põe em ato as suas
capacidades de querer e de conhecer.
A família constitui o ambiente originário no qual a criança toma consciência de si,
aprende a viver e a dar um sentido às coisas, às palavras e às experiência. A afirmação da
importância das figuras dos pais ou dos adultos da família tem a ver também com situações
que nós julgaríamos como inadequadas. Para uma criança aquela mulher e aquele homem
são “sua mãe, seu pai, sua vovó”, mesmo antes da atribuição de quaisquer adjetivos da fala
“bom, mau, adequado e inadequado”. A percepção de uma não confirmação disso, que pode
ser também comunicada de forma não verbal, acrescenta um elemento de mal-estar e, com
certeza, não ajuda a criança a viver a realidade da própria situação. É preciso refletir sobre o
fato de que a maternidade e a paternidade representam um dado ontológico que não pode ser
mudado pelo homem. Pode-se tirar o pátrio-poder, mas ninguém pode tirar o fato de que
aquela criança é “filho de”. A partir dessa antropologia, nascem o desejo e a tentativa de ajudar
o pai a dar o melhor de si, e a criança, que é educada pela família e pela creche, tem uma parte
importante nesse processo. Por exemplo, devolver uma criança no momento da saída limpa e
bem penteada pode comunicar uma mensagem importante: “Olha como é bonito o seu filho!
E se ele tem valor para mim, você, mãe ou pai que o fez nascer, tem valor para mim”.
Principalmente, nos contextos em que as famílias vivem situações de dificuldades pesadas,
essa mensagem é a condição para poder instaurar um relacionamento de confiança.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.29
INSERÇÃO NA CRECHE
A criança vive o primeiro tempo da sua vida dentro do espaço familiar e é nesse
tempo e espaço da família que acontece um encontro com pessoas significativas (pais ou
outros familiares) que introduzem a criança numa hipótese positiva capaz de explicar a
realidade e de dar um sentido ao seu estar no mundo. Aos poucos a criança começa a
entrar em contato com ambientes externos à família que lhe possibilitam continuar o caminho
de crescimento e aprofundar a própria experiência. A criança deixa um lugar conhecido e
seguro e se entrega a um âmbito maior que, sem tirá-la do seu ambiente originário, a ajuda
a se relacionar de forma mais madura com a realidade.
2. Creche: ambiente enriquecedor de experiências
A inserção na creche constitui uma das muitas oportunidades que se pode oferecer
a uma criança, para que ela cresça e enriqueça o seu raio de relacionamento. Na creche,
a criança encontra um ambiente intencionalmente predisposto e “projetado” para que ela
possa viver experiências que na família não seriam possíveis. Na creche, ela encontra
outros “tus” significativos que a reconhecem na própria identidade originária e a ajudam a
tomar consciência de si.
A inserção representa a primeira etapa de um caminho no qual a criança sai de
um ambiente familiar, conhecido e seguro e entra num espaço desconhecido, que, à primeira
vista, é até hostil, com pessoas novas, as quais ela ainda não confia. Por isso, este momento
deve ser preparado com todo cuidado e é responsabilidade de cada um presente na
creche.
A inserção deve ser preparada com bastante antecedência, porque não começa
no momento no qual a criança chega à creche, mas no momento no qual os pais entram
em contato com a instituição procurando uma vaga. A inscrição não é simplesmente um
ato burocrático, mas representa o começo de um relacionamento, porque os pais
conscientes ou não, pedindo uma vaga, pedem uma colaboração na educação do filho,
mesmo que o pedido nasça de uma necessidade.
O primeiro momento da inserção acontece através de uma entrevista realizada
pela diretora com os pais. Para essa entrevista, não existe um esquema pré-estabelecido,
embora seja utilizado um roteiro para coletar dados referentes à história de vida dessa
criança; o diálogo e a escuta são momentos bastante valorizados, pois fazem emergir
outras informações valorosas a respeito da criança e de sua família. E, ao mesmo tempo,
permite à instituição se apresentar, comunicar a sua postura educativa, o processo do
trabalho que será realizado, de maneira que os pais possam adquirir confiança no cuidado
e educação que serão dados ao filho.
O segundo momento é o momento da visita domiciliar, no qual a responsável pela
instituição, acompanhada por um funcionário que pode ser a assistente social ou outra pessoa
que tiver um bom relacionamento com a comunidade, vai até a casa da família para conhecer
um pouco mais da sua realidade, porque só vendo e tocando a realidade é que o diretor
poderá transmitir aos educadores que realidade é essa e como devem olhar para a criança
que vai chegar. Serve também para estreitar um pouco o laço entre família e creche.
No momento que se segue, a criança, acompanhada pelos pais, é convidada a
conhecer o ambiente da creche e as pessoas que ali trabalham. Só depois desse terceiro
momento é que a criança começa a freqüentar a creche. Sendo a inserção um momento
difícil para a criança, uma vez que está sendo separada da mãe, é importante que essa
separação se dê de forma gradual. Nos primeiros dias de permanência da criança na
creche, é de fundamental importância que a mãe possa estar presente com ela por algumas
horas, isso se for possível para a mãe que deve também pegar a criança mais cedo na
creche. Somente após a criança adquirir uma certa segurança e confiança nas pessoas
que estão cuidando dela, é que podemos inseri-la completamente no novo ambiente.
1.30 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
INSERÇÃO NA CRECHE
Durante o processo de inserção e no decorrer de todo o processo educativo da
criança na creche, todos os funcionários colaboram para que esse ambiente se torne mais
acolhedor, seguro e sereno. O diretor, além de se responsabilizar por toda parte burocrática,
deve estar sempre disponível para atender o pedido da família e também para criar todas
as condições necessárias para que a criança possa ser bem acolhida; o educador é o
responsável direto pela acolhida e pela apresentação da atividade que será desenvolvida
com aquelas crianças; enfim, desde o porteiro até a faxineira, todos devem colaborar no
cuidado e educação das crianças, bem como no relacionamento com as famílias dentro
desse espaço. E isso só pode acontecer dentro de uma instituição em que todos os
funcionários se concebem enquanto grupo, conscientes da tarefa que estão desenvolvendo
e da importância de cada um na construção de um clima de trabalho favorável.
Enfatizamos que o momento da inserção não deve acontecer somente no primeiro
contato da criança com a creche; mas, a cada início de ano, também com os “veteranos”
é importante que se faça uma reinserção, tendo os mesmos cuidados e atenção
dispensados aos novatos.
A criança, quando chega à creche, traz consigo uma grande “carga” de
insegurança, de desconfiança e de medo, carregando, assim, uma série de necessidades:
de segurança, de pertencer, de identidade, de relacionamentos sociais, de exploração e
descoberta, de comunicação, de transformação das coisas, de invenção e criação. Essas
necessidades são percebidas claramente de forma diferenciada de acordo com a faixa
etária de cada criança. A partir dessas necessidades, faz-se necessário pensar, organizar,
adaptar não só a postura do adulto, mas também todos os recursos que o educador tem
à sua disposição: o espaço, o tempo e a proposta que devem ser organizados de forma
intencional. Como as crianças vivem à distância da família, devem encontrar na creche um
ambiente que as ajude a reconstruir pontos de referência, mesmo reconhecendo o laço
fundamental que têm com a família, como lugar de origem.
As crianças desejam ser reconhecidas e reconhecer outros na constituição de
novos laços, desejam conhecer-se e, no viver de novas experiências, procuram no final da
freqüência na creche relacionamentos sociais com os amigos.
As crianças conhecem e experimentam a realidade de forma global, através do
brincar e no espaço que facilita o encontro de cada uma com as pessoas, com os objetos
e com o ambiente; por isso, é importante predispor-lhes adequadamente todos os recursos
disponíveis. Isso nos leva a pensar também na estruturação do espaço da sala de aula de
maneira que a criança possa se mover livremente e encontrar os recursos que facilitam o
seu trabalho.
Na entrevista com os pais é pedido que eles relatem aquilo de que a criança mais
gosta, como, por exemplo, os brinquedos que usa. A partir desse conhecimento, pode-se
tentar inserir tal objeto no contexto da sala de aula para que a criança, encontrando algo
de familiar, se sinta menos perdida.
Tendo em vista que o processo de inserção deve acontecer de forma gradual,
como mencionado anteriormente, tentaremos delinear como a postura do adulto pode
ajudar nesse processo tão difícil para a criança.
No início do dia, no momento importantíssimo da separação entre a mãe ou pai e
a criança, o educador deve ajudar cada criança a descobrir a modalidade própria de
despedida: existe quem deseja ser abraçado, quem deseja mostrar para a mãe algum
brinquedo da sala, quem quer só olhar para a mãe que vai embora, quem deseja ser
abraçado pela professora, quem deseja chorar sozinho tendo como consolo somente
palavras carinhosas da educadora. Mas o educador deve também aceitar essa fadiga da
criança que, às vezes, se manifesta em choros inconsoláveis, pirraça, agressividade,
desconfiança, passividade etc. Deve, ainda, oferecer uma disponibilidade quase corporal
que permita um contato físico de contenção emotiva, acalmando-a, ficando sentado perto
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.31
INSERÇÃO NA CRECHE
dela, pegando-a no colo, enxugando as suas lágrimas, escutando seus contos e todos
outros gestos que podem surgir de forma espontânea e que respeite o eu original de cada
criança, para que se possa construir um relacionamento com o educador. Ainda deve
oferecer uma disponibilidade para brincar nos vários cantos da sala, iniciando, assim, um
relacionamento com a criança, partindo do interesse dela e favorecendo também os
relacionamentos com as crianças envolvidas naquela brincadeira, criando, aos poucos,
os primeiros laços.
É importante se oferecer à criança uma rotina precisa da divisão do tempo, porque
o reconhecimento da sucessão do momentos dá-lhe segurança e a ajuda a entender que,
depois da realização de algumas atividades, a mãe volta.
É interessante também que sejam oferecidos à criança novata alguns momentos
específicos que facilitam a acolhida, como os exemplos que se seguem:
• Preparação de uma festa de acolhida organizada pelos educadores e pelas crianças já
inseridas na creche, com brincadeiras, dramatizações, músicas etc.;
• Preparação de um presente, seguindo a indicação dos pais a respeito do gosto da
criança, feito pela turma;
• Dar à criança a oportunidade de trazer uma foto pessoal que possa ser usada no
momento da chamada, facilitando uma experiência significativa da necessidade de
identidade e facilitando o reconhecimento dos colegas;
• Trazer uma foto da família para que esteja sempre presente o sentimento de pertencer
àquela família;
• Através de atividade de organização de um painel na sala. O painel deve ser dividido
em duas partes. Uma delas deve conter o desenho de várias casas e a outra o desenho
da creche. Esse painel é utilizado para que a criança, ao chegar à creche, coloque uma
foto sua do lado no qual está desenhada a creche e, ao ir embora, coloque a foto do
lado em que estão desenhadas as casas. Essa atividade ajudará a criança a construir a
consciência de que o momento de estadia na creche não é para sempre e que, depois
de algum tempo, irá voltar para casa.
Referências Bibliográficas
FACCIOTTO, Ester. Profonditá di campo. Iniziare, C.E.S.E.D., Milão, n. 6, p.27-31, jun./1997.
COEREZZA, Marco. Evidenziatore. Iniziare, C.E.S.E.D., Milão, n. 6, p. 33-36, jun./1997.
CONSONNI, Bina; CORNA, Rossana. Impariamo a conoscerci. Iniziare, C.E.S.E.D., Milão, n. 6,
p.41-49, jun./1997.
1.32 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O BRINCAR
O BRINCAR1
1. Introdução
O brincar, como sabemos, é a primeira atividade da criança, momento no qual ela
se expressa de maneira total. Portanto, quando observamos atentamente a criança brincar
ou brincamos com ela, podemos entender a importância da brincadeira para o seu
desenvolvimento global.
Brincar é o trabalho dos jovens. Pelo brincar as crianças crescem, elas estimulam
os sentidos, aprendem a usar os músculos, coordenam o que vêem com o que
fazem, e adquirem domínio sobre seus corpos. Elas exploram o mundo e a si
mesmas. Elas adquirem novas habilidades.Tornam-se mais proficientes na língua,
experimentam diferentes papéis e – ao reencenarem situações da vida real –
manejam emoções complexas (Papalia & Olds, 2000, p. 219).
O brincar é a forma típica do agir infantil. Como tal, ele apresenta duas
características particulares: primeira, constitui uma ação “desinteressada”, pois não
acontece para satisfazer necessidades materiais e biológicas primárias e, segunda, introduz
a criança na realidade através de uma “distância” mental e física da vida cotidiana que
paradoxalmente favorece e permite manter o contato com ela. Cada brincadeira é, antes
de mais nada, uma experiência querida e procurada pela criança. De fato, a criança brinca,
porque no brincar encontra uma satisfação, expressa, expande e educa a própria liberdade.
Por isso, não existe o brincar sem a participação livre, sem a concentração e sem o
1
Este texto foi elaborado a partir das notas tomadas durante o curso ministrado pelo pedagogo
italiano Marco Coereza, em Belo Horizonte, em outubro de 2001.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.33
O BRINCAR
envolvimento. O brincar sempre acontece dentro de um limite de tempo e de espaço que
permite à criança criar dentro desse espaço/tempo uma ordem própria e absoluta.
O brincar se torna um âmbito privilegiado em que a criança experimenta a própria
maneira de enfrentar a realidade, sabendo lidar com os fatores que a constituem a partir
das habilidades aprendidas. No brincar, a criança aprende a “fazer com“, uma forma de se
relacionar compartilhando uma finalidade comum. Dessa forma, o relacionamento se torna
verdadeiramente uma potencialidade do eu e da liberdade da pessoa, que descobre no
outro um vínculo e não um obstáculo.
Se o brincar constitui uma experiência fundamental para a criança, devemos
lembrar que normalmente uma experiência não acontece na solidão. De fato, as crianças
pedem com insistência para os adultos: “olhem para mim”. Elas não pedem: “me digam o
que devo fazer” ou “organizem o meu brincar”, mas pedem: “olhem para mim”. A primeira
condição para que o brincar aconteça se dá a partir do momento em que o adulto consegue
assegurar e construir um relacionamento positivo e significativo com a criança, como o
lugar de reconhecimento da unicidade da pessoa. Dentro desse recíproco relacionar-se, a
criança descobre no adulto alguém que a ajuda a descobrir o sentido positivo das coisas,
mesmo na fadiga e no erro. O brincar se torna um lugar privilegiado onde a criança pede
aquilo que deseja aprender e o adulto reconhece e sustenta esse desejo.
Quando se trata de estruturar uma brincadeira, as educadoras devem dar às
crianças liberdade de escolha, porque, se a brincadeira é estruturada de forma que a
criança não tenha a oportunidade de escolher materiais, espaços, tempos e colegas ou de
desenvolver idéias próprias, as crianças de fato param de brincar.
Nesse relacionamento, o adulto desenvolve uma função de suporte no caminho
de crescimento que a criança cumpre e a ajuda a refletir, a reconstruir eventos, a procurar
as causas; dessa forma, o adulto permite que as ações da criança não se percam, mas
sejam unificadas em uma experiência com um significado e se torne uma etapa do crescer.
2. O Brincar e o Brincar Simbólico:
formas de se relacionar com a realidade
Quando o bebê nasce, precisa adaptar-se a um mundo novo, repleto de figuras,
sons, formas, cheiros e conteúdos que jamais vira ou experienciara antes. Contudo, durante
sua “estadia” no ventre da mãe, já percebia alguns sons, ritmos e certos movimentos.
Assim, desde o nascimento até os seis meses, o interesse da criança se centraliza na
figura materna. Com poucas horas de vida, já é capaz de reconhecê-la pela voz, pelo
olfato, reconhece o ritmo de seu coração, ao qual esteve tão próximo durante os nove
meses anteriores. A mãe representa mais do que aquela que lhe acalma a fome: ela é uma
voz, um contato, um sorriso, um lugar conhecido no novo mundo. O bebê precisa da mãe
para saber que ele próprio existe.
Desde os primeiros contatos, adulto e criança estabelecem uma relação marcada
pela afetividade, sendo os jogos e as brincadeiras, além da fala dirigida à criança (com
ritmos, entonação e expressões faciais próprios), as formas mais comuns de expressão
desta afetividade. No entanto, é a partir dos quatro meses que o jogo motor e sensorial
começa a estabelecer-se efetivamente para a criança. Com a maturação biológica e o
fortalecimento de muitos dos reflexos com os quais a criança já nasce, ela começa a ser
capaz de controlar seus movimentos, coordená-los com o movimento dos olhos, aproximar
a mão dos objetos, desde que estes estejam próximos.
O pedaço de lençol que leva à boca e em que se esconde; o chocalho que sacode,
chupa e morde; a grade da cama ou o dedo do adulto; cada objeto próximo ou distante
adquire vida e estimula novas experiências. A criança brinca com seu corpo e com os
1.34 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O BRINCAR
objetos. Se um adulto tapa-lhe o rosto com um lençol, o mundo, momentaneamente, se
oculta e a criança volta a recuperá-lo quando seus olhos se libertam do objeto atrás do
qual estava escondida. É possível escutar uma série de gargalhadas, ao brincar com ela
de aparecer e desaparecer diante de seus olhos.
De sua boca saem balbucios e gorgorejos, suas primeiras tentativas de expressão
verbal. A repetição de tais sons é um brinquedo verbal, mostrando que pode fazer com os
sons o que já experimentou com os objetos: faz com que eles apareçam e desapareçam.
Também com o chocalho, por exemplo, o som aparece e desaparece; o mundo, aos poucos,
vai tomando forma e constância. A criança sente que as coisas ao seu redor podem ser,
em certa medida, passíveis de seu controle.
Na segunda metade do primeiro ano, a criança já é capaz de interessar-se por
brinquedos de encaixe (com peças grandes) e continua a brincar com seu corpo. Além de
levar tudo à boca, começa a explorar tudo que possa servir como receptáculo: os olhos,
os ouvidos ou as bocas das pessoas ao seu lado, onde ela possa encaixar os seus dedinhos
ou os objetos que estiverem em suas mãos.
Até o oitavo mês, a criança adquire diversos modos de elaborar o mundo que a
cerca. Através do brincar motor e sensorial, ela intui, sente e experiencia que as pessoas
ou os objetos tanto podem aparecer como desaparecer. Começa a ter um maior controle
sobre as coisas que a rodeiam. Contudo, tal experienciar não é fruto de uma reflexão ou
consciência da criança. Podemos dizer que um bebê de 3 ou 5 meses brinca com seu
corpo à medida que se entretém descobrindo e manipulando seu pezinho, suas mãos ou
mesmo observando o móbile que, dependurado sobre sua cabeça, cria formas e luzes
diferentes. Também é fácil observar um bebê com 3 meses imitando o sorriso e os manejos
de mãos e sons que a mãe efetua enquanto interage com ele. Porém, seria incorreto afirmar
que este tipo de brincadeira seja intencional, planejada, o resultado do seguinte
pensamento: “agora eu vou brincar disso e não daquilo”.
A criança pequena (antes do 8º mês) brinca com partes de seu corpo, mas não
tem plena consciência de que tem um corpo. Ela mais re-age do que age intencionalmente.
Isso fica mais evidente quando ela, sem querer, se machuca, mordendo-se ou arranhandose ou mesmo prendendo um dos membros em uma posição desconfortável.
Aos poucos e gradativamente, estes primeiros jogos e brincadeiras – que
chamamos de brincadeiras motoras ou mais precisamente sensório-motoras, porque
envolvem movimentos musculares e sensoriais –, vão se tornando objetos deliberados da
vontade e intenção do bebê. Caminham juntas, para que isso ocorra, além da maturação
biológica, uma construção do espaço e uma construção da realidade por parte da criança.
A partir do oitavo mês, é comum observarmos crianças que antes não “estranhavam”,
quando eram deixadas no colo de terceiros, agora chorarem e se incomodarem com tal
situação. O objeto “mamãe”, que antes não era tido como diferenciado de si própria,
passa a ter uma vida diferenciada, uma existência independente. Existe a minha mãe que
é diferente de todas as outras mães. A realidade se abre com suas significações e sentidos.
A criança, aos poucos, vai percebendo que, apesar de sua mamãe não estar sempre à sua
disposição, de, às vezes, sumir do seu campo visual, não deixa de existir. Assim, o bebê
vai criando a noção de permanência do objeto, vai percebendo que as coisas e o espaço
onde mora, possuem uma existência estável, independente de seu desejo ou percepção
imediata. Aqui toma destaque o papel do educador, dos pais ou daquele que cuida da
criança. É imprescindível que se ofereça à criança um ambiente estável material e
afetivamente, pois ela não constrói a estabilidade sozinha, independentemente. Ela requer
que um outro lhe ofereça tal estabilidade, lhe garanta a permanência das coisas. Brincando
com a criança, comunicando-se com ela, dando a ela oportunidade de experienciar as
coisas e o mundo, o adulto a introduz na realidade, a ajuda a dar sentido às suas
experiências.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.35
O BRINCAR
Depois do oitavo mês, a criança, que já começou o processo de engatinhar,
começa a deslocar-se e ir buscar os objetos de sua preferência. O engatinhar torna a
criança mais independente de sua mamãe: ela passa a explorar as coisas que a circundam.
Ao final do primeiro ano, quando a criança coloca-se em pé e começa a dar os
primeiros passos, ela já consegue afastar-se voluntariamente dos objetos e reencontrá-los
quando deseja. Nessa idade, a criança aprecia muito brincar com água, areia, terra, que
se tornam objetos na imaginação da criança. As formas circulares também chamam a
atenção da criança; elas adoram brincar com globos e bolas.
Próximo ao 16º mês, a palavra torna-se para a criança um objeto concreto, é
capaz de substituir “magicamente” o objeto real externo por aquele som. Assim, ao dizer
mamãe, possui a mãe. Começa, então, a pedir os objetos através da fala.
Esse pequeno salto, de um mundo relativamente caótico como deve ser sentido o
mundo para o bebê de 3, 5 meses (em que nem mesmo o controle sobre o próprio corpo
ainda foi estabelecido) para um mundo constante, seguro da criança ao final do período
sensório-motor (como descrito por Piaget, por volta de 1 ano e 8 meses) ocorre,
simultaneamente, com uma maior utilização dos esquemas e estruturas cognitivas. A criança
vai internalizando (tornando seu) os esquemas externos para manipular os objetos e desse
processo surgem as primeiras representações simbólicas intencionais e deliberadas.
A partir de um ano e meio em diante, já não podemos dizer que a criança brinca
da mesma forma com seu pezinho que lhe aparece à frente dos olhos ou com o móbile
dependurado diante dela, como brincava anteriormente. Agora é facilmente identificável
uma intenção por trás do brincar, um maior controle sobre o mesmo; por exemplo, balançase o móbile para se conseguir um tipo específico de som ou desenhos. Prova o gosto dos
objetos, busca outros que deixou cair, joga outros no chão para ouvir o barulho que fazem
ou mesmo para poder buscá-los, uma vez mais (jogo motor intencional). Quando
perguntada sobre o papai, olha para os lados procurando-o ou indica a roupa ou um
material que facilmente o identifique (memória/imaginação). Imita os sons ou os gestos de
outros membros da família, até mesmo na ausência desses modelos (imitação diferida).
Começa a falar pequenas palavras, depois pequenas frases (por volta dos 2 anos) e com
elas parece querer comunicar uma infinidade de coisas (linguagem). Por fim, se lhe damos
a oportunidade de rabiscar um papel, segurar, ainda que de modo não muito preciso, um
lápis, caneta ou giz de cera, faz rabiscos e desenhos com os quais quer indicar alguma
coisa (desenho).
Todas essas ações – jogo motor intencional, memória, imaginação, imitação
diferida, linguagem, desenho – são demonstrações de que a criança já desenvolveu uma
importante função em seu desenvolvimento: a função semiótica. Tal função marca uma
transformação radical na vida e desenvolvimento do bebê. Agora, ele já não responde
unicamente à realidade imediata, mas também a uma realidade representada, interna. Se
estiver com fome, um bebê de oito meses tem dificuldades de compreender que a
mamadeira está por vir e que ele pode parar seu choro. Já uma criança de dois anos não
se oporá a esse tipo de solicitação, uma vez que já consegue imaginar, visualizar
internamente a mãe trazendo a mamadeira e, em seguida, saciando sua fome. Há, desse
modo, uma maior independência da realidade, um descolamento dos instintos e das funções
mais primitivas, uma das maiores características da espécie humana.
Tudo que apresentamos até agora, poderíamos dizer que são demonstrações de
brincadeira simbólica, típica deste período da vida da criança (final do estágio sensóriomotor até o início do período operacional-concreto, dos 2 aos 6, 7 anos). Não significa que
não há mais jogo motor, mas que esse se aperfeiçoou durante esses primeiros anos. A
brincadeira simbólica é, pois, uma continuidade do desenvolvimento da criança. Ela
conversa com “amiguinhos invisíveis”, constrói mundos imaginários, observa atentamente
os desenhos animados da TV ou as ilustrações dos livros, cantarola musiquinhas
1.36 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O BRINCAR
acompanhando-as com gestos específicos. Em todos esses momentos, poderíamos dizer
que a criança está brincando simbolicamente, que é a forma preponderante com a qual
a criança de dois a seis anos se relaciona com a realidade. Piaget, preocupado mais com
a construção do conhecimento, afirmava que durante a brincadeira a criança mais assimilava
– aplicava os esquemas conhecidos pelo prazer na realização da atividade – do que
acomodava – procurava compreender a aplicação de determinados esquemas a uma nova
situação –, ou seja, a criança mais moldava as coisas da realidade a seus esquemas
anteriores do que moldava seus esquemas à realidade. Nesse sentido, para Piaget, o
brincar é algo importante, porém, deve ser ultrapassado para um relacionamento objetivo
e coerente com as coisas.
Já Vygotsky acreditava que o brincar ocupava um importante papel no
desenvolvimento humano. Para ele, é através do brincar simbólico que a criança consegue
se relacionar com a realidade através de signos e símbolos. Segundo Fontana & Cruz
(1997), “ao substituir um objeto por outro, a criança opera com o significado das coisas e
dá um passo importante em direção ao pensamento conceitual” (p. 10). Por exemplo, uma
cruz não é apenas uma intersecção de duas retas, mas a manifestação de uma religiosidade.
Para o autor russo, através do faz de conta, do brincar com uma escova de dentes “fingindo”
que ela é um personagem ou mesmo uma outra coisa, a criança está exercitando a função
semiótica, está se preparando para um uso mais deliberado de interpretação de signos e
símbolos representando outras realidades que é a escrita e a leitura.
Segundo Marco Coerezza, quando uma criança lê uma palavra, o faz porque
associa aquela palavra a uma imagem que se construiu. Se não tem essa associação, a
palavra é dita de maneira mecânica. Se faltar esse processo de simbolização, também a
aprendizagem do ler e do escrever fica comprometida.
Ao desenhar, a criança tende a representar o mundo que a rodeia, porém, o sapo
desenhado não é apenas uma representação de um anfíbio que vive na lagoa, mas o
próprio sapo; assim, ao mostrar o desenho, a criança faz movimentos típicos do sapo ou,
então, quando vê uma pessoa desenhada, vira a folha e busca as costas da pessoa.
É também através dos jogos simbólicos que a criança pode realizar os desejos
que não poderia realizar de outra forma. Assim, ao brincar, a criança está sempre agindo
em uma área potencial, fortalecendo e preparando futuros comportamentos. Vigotsky
chamou a esta área de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Um garoto de 3 anos
não pode dirigir o automóvel do pai, contudo, montado sobre um dos braços do sofá e
segurando nas mãos uma tampa de panela, ele simula os movimentos, imagina as
paisagens, “conversa” com estranhos personagens. Pode realizar eventos desastrosos,
como capotar “seu” carro e, no entanto, ter a chance de retomá-lo uma vez mais, de ter um
outro carro ainda mais potente ou com poderes diferentes do anterior. Consegue, desse
modo, ver sua afetividade agindo em diferentes situações, construindo uma noção estável
de EU e de relacionamento com a realidade. Assim, o mundo fantástico não é apenas um
mundo imperfeito (como parecia supor Piaget), mas uma importante e indispensável etapa
para o posterior desenvolvimento da criança.
Uma vez mais o educador possui, aqui, um papel fundamental. Seja na identificação
dos tipos e preferências de jogos das crianças (estas podem dizer muito do tipo de
personalidade que vem se construindo e mesmo de situações de casa), seja na participação,
na valorização daquilo que é sentido não como tolo ou indiferente pela criança mas como
de fundamental importância. Muitas vezes, nós, adultos, achamos que as brincadeiras dos
pequenos têm menos valor para eles, como em geral têm para nós. Tal compreensão levanos a grandes enganos.
Dando oportunidade, oferecendo diferentes tipos de situação e material, o adulto
pode estimular um relacionamento saudável com o mundo e com as coisas no mundo. Ao
cair e se machucar, ou ao ver-se “roubada” em suas brincadeiras e brinquedos, pode o
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.37
O BRINCAR
adulto interferir diretamente dando uma vez mais a estabilidade emocional de que tanto a
criança necessita. Não é o caso de desprezar a dor ou os sentimentos da criança, mas o
de compará-los, de auxiliar a criança a julgá-los com outras situações e experiências já
vividas por ela mesma ou por colegas e pessoas próximas.
3. O Brincar e seus Reflexos na Aprendizagem
Se o brincar é o “trabalho” da criança, a creche é, por excelência, um lugar
privilegiado para a estimulação e a prática dessa atividade. Na creche, o brincar deve ser
uma das atividades mais valorizadas, pois é, através dela, que a criança adquirirá as
habilidades e competências necessárias para o convívio social, o desenvolvimento afetivo,
o cognitivo, o psicomotor e, até mesmo, o aprendizado da leitura e da escrita.
O objetivo primeiro da educação é que a criança aprenda a viver feliz, aprenda a
viver no mundo, enfim, que ela seja introduzida na realidade total. Por isso, é interessante
ensiná-la a cuidar de si, para que ela saiba reconhecer o lugar das coisas, a reconhecer as
coisas que são suas, mas saiba também compartilhá-las. Que ela aprenda a escolher os
amigos, que saiba entender que uma briga não é uma coisa pela qual o mundo acaba,
que saiba, portanto, expressar coerentemente aquilo que deseja num dado momento. É
através dos jogos motor e simbólico que a criança vai tomando consciência de quem é;
“treina” e aprende a ser um indivíduo que, ao se tornar adulto, não vai apenas desejar, mas
vai saber dizer o que e por que deseja, ou seja, vai dar sentido às suas ações.
Valorizar o relacionamento com o cotidiano, com a realidade, é a possibilidade de
valorizar as coisas mais bonitas, mais simples, que ajudam a criança a crescer e saber
quem ela é.
Na cultura de hoje, existe uma ambigüidade entre o brincar como atividades
espontâneas e atividades lúdicas “pedagogizadas”. Dentro das instituições infantis, de modo
geral, prevalece essa segunda forma de brincar. Não podemos negar que as educadoras
estão dispostas a deixar as crianças brincarem livremente, mas só depois de terem
desenvolvido as atividades lúdicas propostas. O equívoco está no prevalecer do ensino
sobre a aprendizagem, em pensar que a aprendizagem só possa acontecer na medida em
que o ensino está presente.
De fato, o ensino acontece de forma eficaz só na medida em que responde a uma
necessidade de aprendizagem que se manifesta. Por exemplo, ao vermos uma pessoa
que sozinha observa alguma coisa, podemos não entender o que ela está observando,
mas a postura dela nos desvela que está interessada, que está aprendendo. No entanto, é
impossível pensar em uma pessoa que ensine sozinha, porque o ato de ensinar pressupõe
que exista um outro ao qual ensinar. Isso significa que uma pessoa sozinha pode aprender;
porém, para ensinar, é preciso pelo menos existir duas pessoas. A postura originária, aquela
de aprender enquanto a postura do ensinar, acontece só na presença de um relacionamento.
Uma criança, até que tome confiança numa situação, deseja conhecê-la nos seus
aspectos. Ela é como um sensor que observa, explora, pede, olha, ou seja, brinca. A
nossa responsabilidade como educadores não é aquela de “explorar” esse desejo de
conhecer, mas de sustentar esse desejo. Obviamente, a dinâmica da aprendizagem não
coincide só com o brincar, mas se expressa com o brincar de forma privilegiada, por isso,
os momentos nos quais uma criança brinca se tornam fundamentais para observar o que
ela é e sabe fazer. Para uma criança, o brincar constitui uma atividade extremamente séria,
basta observá-la quando cava um buraco para descobrir ouro; quando coloca remédio
nas feridas de uma boneca; quando brinca que está vendendo alguma coisa etc. O perceber
essa seriedade não pode deixar de lado a possibilidade de conhecer as crianças através
daquilo que está acontecendo.
1.38 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O BRINCAR
É extremamente interessante para um educador participar do brincar das crianças:
enquanto ele brinca junto com as crianças, não pára de interrogar, perseguir interesses
estranhos ao brincar ou parabenizando sobre aquilo que está acontecendo. A participação
dos educadores tem um papel importante para se entender aquilo que está acontecendo
no brincar e para mostrar às crianças que elas sabem apreciar o jogo e se divertem
brincando. Muitas vezes, é interessante brincar ao lado da criança sem participar
efetivamente do jogo. De fato, as crianças podem ignorar a educadora e continuar a brincar
sozinhas ou aos poucos observar aquilo que a educadora faz para assimilar o próprio jogo
até convidá-la para brincar junto com elas.
Um adulto que esteja disposto a aceitar o brincar das crianças não precisa tornarse uma criança, pelo contrário, é um adulto que aceita que as crianças guiem as escolhas,
os caminhos etc.
O brincar, porém, não é fazer aquilo que se quer, em oposição ao absorver algumas
tarefas; pelo contrário, é expressão da possível autonomia da criança, como capacidade
de reconhecer-se no relacionamento com a realidade. A educadora é aquela que sabe
olhar o que é importante no fazer da criança e a ajuda a identificar os desenvolvimentos
possíveis e a aprofundar aquilo que se está fazendo; a sua tarefa não é aquela de decidir
o tipo de atividade de brincar, mas aquela de cuidar da relação que acontece, do uso do
espaço, dos ritmos do dia e das regras; permitindo à criança individualizar-se a respeito de
si, dos outros e das coisas. Essa postura é muito parecida com aquela desenvolvida por
uma mãe, que raramente ensina, mas tem bem presente o que uma criança deve aprender;
por isso, quando está em ação, a mãe a acompanha, a corrige e, se necessário, lhe indica
como fazer para realizar aquilo que quer.
Uma criança quer entender quem é, onde está e por quê. O adulto deve sustentála nisso, cuidando da curiosidade, do prazer e da motivação. A forma melhor é a de permitir
que ela brinque com as “coisas”, ou seja, com a realidade próxima a ela.
Cada vez mais as crianças são colocadas em um universo feito de sinais e não de
coisas, ela se mede com palavras, imagens e material didático; são poucos os objetos da
realidade com os quais ela pode ter um contato; por isso, precisa cuidar desse
relacionamento com a realidade, sem ter a preocupação de antecipar competências que
esvaziam o período da infância. O percurso do conhecimento acontece a partir da
aproximação direta com as coisas para chegar a uma definição mais abstrata, mas a
definição por si só não é útil no reconhecer. A escola infantil deve ser o lugar no qual a
criança reconheça a si mesma no relacionamento com as pessoas, com as coisas e com
a realidade; se isso não acontece nesse período, poderá acontecer com enorme fadiga
mais em frente.
Sublinhando isso não se quer esvaziar o sentido das atividades estruturadas e da
iniciativa do educador. Trata-se de chamar a atenção para a justa proporção entre a atividade
livre e estruturada e, antes de mais nada, de ter bem presente que aprender é uma dimensão
da vida e não uma função ao lado da vida.
Anexo
O pedagogo Marco Coerezza relatou, durante um curso proferido em Belo
Horizonte, uma experiência feita pela pesquisadora Rosi Rioli, na Itália, partindo de algumas
perguntas: o que pode acontecer durante a brincadeira e quais as regras utilizadas nessa?
O que serve ou serviu para aquela brincadeira e que instrumentos ou o que é usado como
instrumento para o brincar? Onde, quando se brinca e como se brinca?
Rosi Rioli examinou algumas brincadeiras antigas, que as crianças italianas ainda
fazem até hoje: brincar de roda, cavar buracos na terra, correr com triciclo.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.39
O BRINCAR
A primeira brincadeira observada foi uma de roda chamada “gira-mundo” As
crianças rodam dando-se as mãos e cantando uma musica, no final todos caem e se
levantam.
A brincadeira é a atividade que a criança faz, na qual ela tem sempre a possibilidade
de retomar, cair e se levantar. O mundo cai, desaba, mas a caída não é irreparável e prevalece
o desejo de continuidade. Esta é para uma criança uma experiência muito importante,
porque a criança aprende que tudo aquilo que acontece com ela ou que ela possa provocar
nos outros não tem o sentido último, que seja definitivo, mas tem sempre a possibilidade
da retomada.
Esse tipo de brincadeira ensina à criança que, dentro da realidade, nem tudo
aquilo que muda pode ser considerado a verdadeira realidade. A verdade da realidade é
alguma coisa que fica e que pode ser sempre retomada. Ela entende que o mundo
continuamente muda, mas existe alguma coisa de estável e isso dá a possibilidade para a
criança de ser curiosa, atenta, livre para perambular e perguntar.
Na brincadeira do “gira-mundo”, quando o mundo desaba, as crianças estão
juntas, as mãos estão juntas às de um adulto. No começo, uma criança pode ter medo,
mas pela mão do adulto ela pode ir além de si. Dar as mãos é uma coisa prazerosa, por
isso, uma criança procura um amigo. Essa brincadeira prevê também que uma criança
esteja no meio, fique no centro do círculo girando. Não é simples para uma criança ficar no
meio, é um novo passo que ela tem de aprender; aprender a confiar em si mesma
Olhem quantas coisas a criança aprende numa brincadeira que pode se repetir
várias e várias vezes, milhares de vezes dentro de uma creche! A repetição é, na verdade,
uma coisa importantíssima quando a criança é pequena.
Uma segunda brincadeira analisada por Coerezza foi a de cavar a terra.
Essa brincadeira, segundo o educador, significa o início do uso da tecnologia,
mas um uso que está em função da descoberta, do interesse que é próprio da criança.
Procura um utensílio simples, rudimentar, adequado ao objetivo, no começo basta qualquer
coisa, mas depois encontra um outro objeto mais resistente, mais forte. Nasce um problema,
depois chega a solução, a solução levanta um outro problema e assim vai seguindo. De
maneira espontânea ou por um acaso, ali existe um pensamento em ação, ali está um
pensamento que projeta no futuro o instrumento que ela está usando e também o objetivo.
E esse pensamento é movido pelo interesse, pela atração que aquela “coisa” tem
sobre a criança. Depois, o buraco se torna uma lagoa se a criança a enche de água, e uma
folhinha pode se tornar uma barquinha.
O pensamento da criança trabalha sobre o que há de mais concreto, as coisas
mais simples, ali está a criança inteira e, se o educador também estiver ali, existirá um
contexto no qual a criança é sustentada, é levada a seguir adiante.
Tudo o que acontece não acontece por acaso, acontece porque a criança está
movida por uma curiosidade e porque está diante de um adulto que a ajuda a ultrapassar
alguns obstáculos que ela não conseguiria sozinha. Se ela quer reforçar o buraco, o
educador pode intervir, ajudar e dar uma solução e a partir daí essa brincadeira se
desenvolve mais ainda.
Pode acontecer que, quando uma criança mexe no terreno, sinta nojo de alguma
coisa, ela pode lavar-se e, depois, movida pela curiosidade, ela volta a olhar, tenta uma vez
mais e, no final, ela decide colocar o dedo e, então, vence este medo. Isso representa um
crescimento da criança e pode acontecer também que ela se fira, que se machuque.
Quantas grandes coisas uma brincadeira contém! Contém tudo aquilo que serve
a uma criança para crescer, mas não do ponto de vista sentimental, mas do ponto de vista
global: emotivo, afetivo, social e intelectual.
Se nós olhamos os verbos do brincar: escavar, descascar, tirar, colocar. O que
isso representa? Esse processo é anterior à matemática: tirar, ver que fica menor que
1.40 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
O BRINCAR
antes, colocar, acrescentar. É a subtração e a adição. Eu não posso tirar demais, se tiro
demais, o buraco cai. Adição e subtração não são simplesmente operações aritméticas
que se podem fazer somente com as fórmulas, mas se fazem também com as coisas. O
problema é que o pensamento funciona mesmo antes de a criança conseguir fazer as
operações pelas fórmulas. Se não faz essas experiências que sustentam as fórmulas, a
aprendizagem das formulas se torna algo de abstrato.
Referências Bibliográficas
FONTANA, Roseli A. Cação & CRUZ, Maria Nazaré da. Psicologia e trabalho pedagógico. São
Paulo: Atual, 1997.
PAPALIA, Diane E. & OLDS, Sally W. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed, 2000.
PIAGET, Jean. O nascimento da Inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar ed., 1975.
________. estudos de Psicologia. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1991.
VIGOTSKI, L. S.; LURIA, A R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 5ª
Ed., São Paulo: Ícone, 1994.
________. Manuscrito de 1929. In: Revista Educação e Sociedade, n. 71, 2000.
________. Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
________. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes,1995.
WALLON, H. As origens do Caráter na criança. Lisboa: Editorial Estampa,1980.
________. Psicologia e Educação da Infância. Lisboa: Editorial Estampa, 1980.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.41
A OBSERVAÇÃO
A OBSERVAÇÃO1
Observar parece uma coisa imediata, quando se fica com as crianças todas as
horas do dia; mas, no relacionamento com o grupo, se se arrisca a olhar as crianças como
se fossem um campo de trigo, cada uma feita de muitas espigas, onde cada espiga não é
notada na individualidade, vê-se a uniformidade, quando cada criança tem direito a ser
olhada pessoalmente. Nesse sentido, as crianças especiais ensinam muito, porque obrigamnos a olhá-las na cara. A forma de olhar a criança especial deveria ser a mesma para todas
as crianças, mesmo que elas estejam bem; mesmo que estejam crescendo sem nenhuma
dificuldade, têm necessidade de um relacionamento pessoal. Assim, o uso da observação
na educação é importante para se criar e estabelecer uma relação consistente com as
crianças, para que se possa conhecê-las, ajudá-las a compreender a realidade, corrigirse, aceitar-se e aprender.
O conteúdo principal da observação é o cotidiano, o dia-a-dia e não momentos
ou coisas excepcionais. A observação deve ser participativa, pois o educador deve observar
a criança dentro do contexto de relacionamento que ela vive diariamente, pois, dessa
forma, é mais natural e verdadeiro e é possível perceber a criança como realmente é.
Observar não é algo fácil, porque a riqueza da realidade não é facilmente perceptível
na sua totalidade e também porque quem observa não é neutro. Existem vários fatores
que determinam o nosso comportamento. Por isso, o momento da observação pode ser
influenciado por esses fatores, tais como o nosso estado físico, psicológico etc.
1
Os conceitos utilizados nesta apostila foram extraídos dos textos: 1) “A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados”, de Urie Bronfenbrenner; 2) “Apostila do
Curso de Formação para Formadores”, com a palestra de Marco Coerezza; e 3) de uma síntese
realizada por Luisa Cogo e Elisabete R. do Carmo do texto organizado por D. Varin “Ecologia
psicológica e organização do ambiente na creche”.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.43
A OBSERVAÇÃO
O olhar do observador deve ser um olhar afetuoso e não de juízos, pois essa
observação não é para dizer se a criança faz alguma coisa bem ou mal, mas para entender
como é possível entrar em relacionamento com ela de maneira melhor do que havia
conseguido até o momento; o observar é para desenvolver melhor a tarefa educativa.
Porém, observar não é algo espontâneo, é algo que deve ser trabalhado, requer estudo,
paciência de fazer, errar e fazer de novo.
Para observar uma criança, é útil identificar os seus planos de desenvolvimento,
entendendo quais são os campos de observação. Não porque se precisa sempre avaliar
todos os campos, mas para se ter um guia de exploração para se realizar uma observação
mais sistemática. Os campos de observação no desenvolvimento da criança são:
1. Funcionamento mental da criança
O funcionamento do pensamento da criança determina todas as outras modalidade
de funcionamento, como a linha da comida, do sono, do movimento e da comunicação.
• A linha da comida é a linha das necessidades primárias. Quando está adequada,
significa que a criança tem a distinção entre a mãe e a comida: a mãe como é a única
fonte insubstituível de alimentação, de nutrição e de afetividade emocional e intelectual
e a comida como expressão de tudo aquilo que fica “fora da mãe”, isso quer dizer o
mundo.
Uma psicóloga inglesa, Margareth Maller, diz que a separação da criança da mãe
é o começo da aventura de amor com o mundo. Se não há essa separação, a mãe vai
invadir todo o contexto afetivo da criança e a criança não terá nenhum interesse por outra
coisa. Se não se consegue promover uma separação adequada da mãe, não se consegue
ajudar a criança a abrir seu mundo à realidade.
O fato de as crianças, por exemplo, comerem bem na escola, seja demonstrando
apetite, seja tendo uma boa relação com as coisas e com os colegas, é um sinal de
identificação do eu, ou seja, a criança saber conceber-se sozinha, sem a mãe. Uma boa
separação quer dizer também um bom relacionamento mental.
• A linha do sono é um momento muito delicado para uma criança. Quando ela descansa
e dorme de maneira suficiente, isso não só significa que ela está bem do ponto de vista
físico, mas também os pensamentos estão tranqüilos. Um pensamento perturbado
impede o descanso e vice-versa.
• A linha do movimento: quando uma criança se move de uma maneira harmoniosa,
com coordenação, quando entende qual é o momento no qual deve mover-se e em
qual deve estar parada, isso é sinal de que o pensamento está funcionando.
Um tempo que não seja já todo estabelecido e organizado deixa à criança a
possibilidade de ordenar o seu tempo segundo uma finalidade que ela se dá, é o indício
que permite ver como uma criança sozinha sabe organizar-se, sabe agir de maneira
autônoma.
É indispensável que a criança adquira um funcionamento mental próprio para
enfrentar depois a aprendizagem no ensino fundamental, porque não terá sempre presente
alguém que indique ou que determine os tempos. Se, desde a creche, a criança é educada
a ter um tempo livre para que o organize de maneira autônoma, ela, então, estará educada
para enfrentar novas tarefas.
Não é necessário que, na creche, a criança aprenda a ler e a escrever, mas é
preciso ensiná-la ou ajudá-la no desenvolvimento do funcionamento mental que a levará a
ler e a escrever.
• A linha da linguagem e da comunicação: quando uma criança fala, me diz alguma
coisa do funcionamento mental. A fala da criança não me diz só sobre o contexto
sociocultural no qual ela vive, me diz também como funcionam as suas estruturas mentais.
1.44 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A OBSERVAÇÃO
Quando uma criança tem uma riqueza de linguagem, quando sabe dar o nome certo
para as coisas, isso indica uma experiência que ela conseguiu assimilar; essa riqueza
de experiência que ela consegue estabelecer depois num relacionamento com as coisas,
isso indica funcionamento mental mais maduro.
Eu posso conhecer o nome do copo, porém, eu posso não entender o laço que
há entre o copo e a sua função. No começo, as crianças aprendem a dar um nome às
coisas, depois, fazendo a experiência, aprendem as funções que elas têm.
A linguagem do corpo também é muito importante, por isso é preciso observar
como a criança usa o corpo, seja na sua totalidade, seja como ela usa as mãos, os pés, o
tom da voz, o olhar, tudo isso indica como a criança percebe a realidade, se é de forma
adequada como a situação requer.
A linguagem, seja a verbal, seja a do corpo, acontece sempre dentro de um espaço,
por isso o relacionamento que a criança vive nesse espaço (um espaço que esteja fechado
ou aberto, um espaço no qual ela tenha regras, vínculos ou um espaço onde ela se move
livremente, um espaço no qual a criança possa compartilhar com os outros aquilo que ela
faz ou um espaço que ela escolhe para uma privacidade) é muito importante.
2. Relação com o objeto
Um segundo campo de observação é a relação objetual entre o eu e o outro, ou
seja, a relação entre a criança e a mãe. Deve-se olhar a separação e a individualização em
relação à mãe, mas também em relação às educadoras, ou seja, observar quanta
dependência e quanta autonomia a criança demonstra em relação ao adulto. Entre a
dependência e a autonomia deve acontecer uma evolução harmônica.
Outro sinal do acontecer dessa relação objetual é avaliar o cuidado pessoal: se a
criança sabe vestir-se, amarrar os sapatos, limpar o nariz etc. É claro que é tarefa do adulto
ensinar a criança a cuidar de si, mas se uma criança não dá conta que está com os sapatos
desamarrados, nariz sujo etc. significa que ela não tomou ainda consciência de si. Se uma
criança tem as mãos sujas e se coloca à mesa para comer sem lavá-las, é com certeza
uma criança que tem menos percepção da realidade do que uma criança que fale: “tenho
as mãos sujas, preciso lavá-las”; assim como o assoar o nariz, o ter prazer de ser cuidado
e ordenado no momento da entrega aos pais são sinais de auto-estima.
O último aspecto a ser olhado é a capacidade de simbolização, quer dizer a
capacidade de utilizar uma coisa no lugar da outra; para elaborar um projeto sempre mais
refinado. Essa capacidade de transformar o objeto em símbolo acontece, sobretudo, no
jogo simbólico e se torna aos poucos a capacidade de construir o sinal, processo
importantíssimo na aprendizagem do ler e do escrever.
Atrás da palavra simbolização está todo o percurso que acontece no período da
freqüência na creche, do ter o objeto presente até conseguir imaginá-lo mesmo que esteja
ausente para chegar a transformar em símbolo. Esse percurso levará à individualização de
código, ou seja, à linguagem escrita.
A separação mental da mãe, objeto primário de amor, é o que permite a relação
objetual. Isso não significa que a mãe não seja mais importante para a criança, mas que a
criança entendeu que ela é uma pessoa e a mãe é outra, essa é a condição que permite a
relação.
3. Qualidade dos relacionamentos
O terceiro campo da observação é a qualidade dos relacionamentos. A pergunta
que se pode colocar é: diante dos outros, como essa criança está? Primeiro, tentou-se
observar a criança sozinha, agora deve-se olhá-la em relacionamento com os outros.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.45
A OBSERVAÇÃO
Um aspecto importante do relacionamento é a aquisição do modelo masculino e
feminino. Uma criança, aos três anos, não sabe com certeza onde se colocar; no final do
percurso desenvolvido na creche, com cinco ou seis anos de idade, ela consegue
reconhecer-se como um menino ou uma menina. Isso diz respeito à socialização, aos
relacionamentos sociais que ela teve. Existe uma divisão entre meninos e meninas no
momento do brincar e essa divisão tem essa razão: eu entendo mais o que eu sou se fico
com os outros que são iguais. Por isso, o relacionamento nos primeiros anos de convivência
na creche é um relacionamento ou entre meninos ou entre meninas, depois chega o
momento no qual a criança entende mais o que ela é, comparando-se com crianças do
sexo oposto, por isso ela brinca com elas e entende de maneira melhor quem é, na
comparação.
Um outro aspecto de grande importância que a criança devagar vai adquirindo é
a capacidade de descentrar o ponto de vista dela, com o qual ela observa a realidade, que
é a capacidade de imaginar que ela é o outro. É tentar olhar para as coisas, assim como os
outros olham para elas. Isso se expressa muito bem no brincar simbólico: eu faço que sou
você, se você fosse a tia você deveria fazer assim, se você é a mãe você deve fazer assim.
É muito importante ver dentro do brincar como a criança se coloca, se do ponto de vista
dela ou se se coloca dentro do ponto de vista do outro.
No campo da fantasia se usa o “faz de conta que eu sou”, isso significa que o
brincar tem a capacidade de simbolização, de perceber a distância entre a realidade e
a fantasia. Nesse percurso, a criança aprende também a dar um sentido ao amigo,
porque o amigo é aquela pessoa que a ajuda a descentrar o pensamento, a ajuda a
pensar que se uma coisa não é boa para ela, não deve passá-la para os outros. É o
começo da fonte da primeira moralidade. É uma moralidade que ainda é muito
competitiva, mas que começa a se tornar uma capacidade de imaginar que, se ela não
gosta de uma coisa, também o outro pode não gostar. Sinais da capacidade de colocarse no lugar do outro são também a capacidade de esperar a própria vez e a capacidade
de ceder um objeto.
Sempre olhando dentro do campo da observação da qualidade da relação, é
muito interessante ver como acontece a passagem do eu para o tu e para o nós. Não
existe criança que aprenda a falar nós, não passando antes, através do eu e depois através
do tu. A estrutura da linguagem na criança é uma estrutura existencial, a criança consegue
conceber-se como parte do grupo, como um membro de um grupo através de uma relação
existencial. Isso significa: através de um relacionamento importante com o adulto de
referência, se a criança não tem um bom relacionamento com a professora, é muito difícil
que ela consiga socializar-se também com os colegas. Depois, esse relacionamento
significativo entre o eu e o tu pode também tornar-se um relacionamento entre uma criança
e um outro amigo. Se este é o percurso, as etapas devem ser olhadas de criança para
criança. Alguém é muito rápido nas etapas, por isso são suficientes 15 dias de apego a um
colega para depois ampliar a relação com muitas crianças e existe quem fica apegado ao
amigo do coração por um ano antes de largar o relacionamento.
4. Tipo de aprendizagem
O quarto campo de observação, no final, é o tipo de aprendizagem da criança. A
capacidade lógica da criança é determinada pelo tipo de existir, de vida que a criança
conduz. Ter uma ordem mental dentro da própria vivência, saber o que acontece antes, o
que acontece depois: antes eu me levanto, depois eu tomo café da manhã, depois escovo
os dentes, depois eu saio e chego à escola. São todas estruturas existenciais, modos de
vida, que suportam, ajudam a criança a desenvolver capacidades lógicas. Por exemplo, a
capacidade de entender algumas seqüências, de tempo, de causa e de lógica.
1.46 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A OBSERVAÇÃO
Não existe uma ordem mental na criança se não existe antes uma ordem mental
no adulto que fica perto dela e que se comunica através da ordem mental, colocado dentro
da ação que se propõe.
Por que é assim importante a rotina do dia, as coisas que acontecem sempre, no
mesmo tempo, da mesma maneira? Porque a ordem é alguma coisa que a criança deve
adquirir, deve aprender dentro de uma realidade que continuamente muda; por isso, ela
pede sempre o mesmo conto fantástico, pede sempre que se conte da mesma maneira,
não errando as palavras usadas, essas são exigências que a criança coloca, mas é para
pedir uma ordem mental, dentro de uma realidade que continuamente muda.
Se a criança não tem um tipo de experiência que seja ordenada, isso dificulta
para ela a estruturação do pensamento lógico. Assim, nos processos de análises e de
sínteses: o pensamento da criança no começo é caracterizado por uma percepção global
da situação, daquilo que acontece, do sentido das coisas; só no segundo tempo a criança
chega a detalhar, a analisar. Esta não é uma percepção do tipo confusa, bagunçada, que
mistura várias coisas, mas uma percepção que sabe identificar aquilo que é essencial. Aos
poucos, a criança desenvolve essa percepção, de forma integrada e cada vez mais profunda.
O pensamento da criança se desenvolve a partir do eu em particular, específico
mas essencial, depois parte para o todo, o social, em que ela passa a perceber que existe
uma relação entre os acontecimentos. É a partir dessa percepção que ela entra na fase do
pensamento hipotético, aprendizagem de uma projectualidade; por exemplo, se há uma
fumaça, pode-se imaginar que há fogo. Este é um pensamento que uma criança aprende
fazendo a experiência, que as coisas têm laços entre elas e laços que definem as causas
e os efeitos das coisas. Assim também se pode entrar dentro da realidade e transformá-la
segundo um plano, um objetivo que a pessoa se coloca, não recebendo passivamente a
realidade, mas permanecendo ativo diante dela.
O observador precisa tolerar o fato de não entender tudo, não saber tudo antes
de começar a observar, porque não está observando para demonstrar a eficácia de uma
hipótese elaborada anteriormente, assim como não se deve observar para reduzir a
realidade a um esquema.
O que é observar? Observar é apontar os olhos para aquilo que funciona. Mesmo
observando uma criança perturbada ou doente, o objetivo não é aquele de fazer um
diagnóstico. A observação, em contexto educativo como a escola, deve olhar a criança ou
um grupo de crianças com a tarefa de tentar entender, antes de mais nada, quais são as
partes que podem ser potencializadas. Pois se aponta os olhos sobre o sofrimento, sobre
as partes doentes, encontra-se um âmbito no qual não se pode intervir.
Observar é apontar os olhos para aquilo que funcione e não procurar confirmações
para aquilo que já pensamos. Se se tem uma criança que é agressiva, que perturba, que
não se insere no grupo, observar é procurar qual o ponto, a brecha na qual podemos
entrar em relacionamento. Muitas vezes se observa para confirmar aquilo que já se sabe;
no entanto, a observação deve ser projetada para entender aquilo que não se sabe. Uma
criança que tenha marca de agressiva, deve ser observada para entender as suas emoções,
os seus sentimentos, o terreno sobre o qual nós podemos nos relacionar com ela e no
qual nós podemos propor as brincadeiras.
Observar é levantar os planos sobre os quais está ocorrendo o desenvolvimento
da criança e é atribuir sentidos e integrá-los. Quando observamos uma criança, podemos
levantar elementos do tipo orgânico que influem sobre o comportamento. As crianças,
sempre um pouco doentes, sem apetite que muitas vezes adoecem, este é um plano sobre
o qual ocorre desenvolvimento que, porém, interage também com a sua maneira de
relacionar. Talvez essas sejam crianças inseguras que não gostam de nada, que pegam
em um brinquedo e o jogam fora. E este é um outro plano sobre o qual ocorre o
desenvolvimento. Talvez sejam crianças que têm um relacionamento conflituoso com o
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.47
A OBSERVAÇÃO
espaço e o tempo, estão à vontade na escola nas primeiras horas, mas depois ficam
desmotivadas. Por isso, o aspecto orgânico, relacional, o relacionamento com o espaço e
o tempo são todos planos diferentes que compõem a unidade da pessoa. São muitos os
aspectos que concorrem para identificar a globalidade de um desenvolvimento. Por isso,
não é suficiente uma única observação, talvez seja necessário fazer todos os dias uma
breve observação, para depois avaliar o andamento, porque um fragmento sozinho não
dá idéia de todos os planos sobre os quais ocorre o desenvolvimento.
Observar não é ter em mente um modelo esquematizado, pensar como deve ser
uma criança de quatro anos e comparar com um modelo de criança pré-estabelcido. A
observação não é uma quantificação em relação a um modelo, mas é a tentativa de entender
como está o pleno desenvolvimento de uma pessoa. A observação não é quantificar, nem
é a compilação de uma ficha. No entanto, a ficha pode ser o ato final de avaliação, como
se pode fazer no final da freqüência na creche. Por isso, é o ato final de um percurso
observativo, não pode ser a síntese de uma observação singular.
Observar é adquirir um hábitus que torna o adulto presente no relacionamento
com a suficiente distância que permite refletir. Por isso, é uma modalidade de relacionamento
que com o tempo se transforma em parte integrante da pessoa. É um aspecto que se torna
uma dimensão da pessoa, uma postura que cria relacionamento, que se torna um estilo de
relacionamento. A observação não deve ser relegada a alguns momentos que achamos
importantes, mas deve se torna um hábitus, ou seja uma forma de estar com as pessoas.
Resumindo, a observação da qual estamos falando é do tipo pedagógico. É uma
observação da educadora que, em uma situação escolar, identifica como a criança está
crescendo e tende a desenvolver suas potencialidades. A observação deve estar sempre
dentro do contexto, nunca se deve isolar a criança para observá-la, mas observá-la no
ambiente e nos relacionamentos costumeiros com as outras crianças.
A observação é partícipe e humilde. Ou seja, o educador não deve estar à distância,
atrás de um vidro que impede o relacionamento enquanto observa, mas deve estar dentro
da relação tentando, simplesmente, manter uma certa distância. Deve procurar fixar ou, se
necessário, descrever aquilo que está acontecendo. Se a criança observada envolve o
educador na brincadeira, esse deve aceitar.
Anos atrás se dizia que quanto mais uma observação era neutra, mais científica
se tornava; hoje se está descobrindo que pode ser científica mesmo sendo partícipe. Ao
mesmo tempo, a observação deve ser humilde. Uma das tentações dos profissionais é
tornar-se, através da observação do outro, onipotentes, capazes de entender tudo e, por
isso, capazes de indicar um comportamento. Mas a realidade é difícil de ser interpretada e
existem vários fatores que devem ser considerados. Por isso, precisa-se ser muito humilde,
quando se interpretam coisas que têm a ver com os sentimentos dos outros, grandes ou
pequenos que sejam.
No final quem observa não pode esquecer a sua infância. Precisa-se colocar nas
vestes das crianças como se fossem elas. Isso é importante porque, se não nos lembramos
da nossa infância, é difícil entender aquilo que está acontecendo, pois não se trata de ter
presente um discurso teórico sobre a infância, mas tentar recuperar o sentido da infância,
para que cada observação seja sempre acompanhada dessa consciência.
A observação do jogo:
Uma atenção específica deve ser reservada ao momento do jogo, também no uso
do instrumento da observação, porque todas as crianças dominam as tarefas evolutivas
através do jogo, através do brinquedo. O brincar é a principal ocupação da criança e, por
esse motivo, deve ser observado e registrado de maneira tal que este procedimento venha
a contribuir para a compreensão da etapa em que cada criança se encontra, facilitando,
assim, a interação com a mesma.
1.48 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A OBSERVAÇÃO
Observando uma criança brincar, o educador pode notar a sua capacidade de
atenção a um brinquedo, sua habilidade em usar o brinquedo para imitar o irmão ou colega
e suas respostas sociais ao interagir com outros.
A observação do brincar pode ser em uma situação de observação natural, na
qual as crianças iniciam o seu jogo sem a intervenção de nenhum adulto, de acordo com
sua própria vontade ou pode ser em situação de observação selecionada na qual o
observador planeja a atividade lúdica apropriada para o estágio de desenvolvimento da
criança; os brinquedos e as atividades são apresentadas para a criança no momento da
sessão de jogos.
Enquanto a criança brinca, é possível observar as habilidades motoras e sociais e
a sua capacidade para solucionar problemas, a capacidade de manter atenção em uma
atividade, todos os movimentos que ela utiliza durante o brincar (olhar, aproximar, agarrar,
apanhar, explorar, abandonar) e seus movimentos psicomotores finos (movimento de pinça,
habilidade com os dedos etc.). É possível ainda identificar quais os comportamentos
imitativos de que é capaz, verificar sua tolerância a frustrações, sua capacidade de manterse em uma atividade até o final, sua resposta a elogios, enfim, o nível e a qualidade da
interação enquanto brinca.
A nós interessa observar a criança naquilo que a criança sabe fazer e não naquilo
que ela não sabe fazer. Aquilo que nos interessa também é identificar os planos de
desenvolvimento da criança, entender o sentido que eles têm, dentro do caminho que a
criança está fazendo, também integrando os termos entre eles.
Como objeto de ajuda, formulamos um pequeno protocolo de observação do
brincar, que não é um instrumento definitivo nem único, mas que pode representar uma
ajuda:
• que pode acontecer? (núcleo operativo que descreve o enfrentamento do real);
• para que serve? (objetivo do jogo);
• os verbos do jogo (as ações que a criança cumpre ou pode cumprir e que descreve o
que ela aprende);
• onde se brinca (os espaços onde o jogo acontece);
• quando se brinca (quais são os momentos nos quais se desenvolve o jogo);
• como se brinca (quais são as modalidades usadas pelas crianças e o papel do adulto).
Como exemplo, apresentamos abaixo a análise de duas brincadeiras feita por
uma pesquisadora italiana Rosi Rioli: o brincar de roda e o cavar buracos no terreno.
Esta do brincar de roda se chama “gira-mundo” e é uma brincadeira que acaba
com o fato que o mundo cai!
Os meninos fazem assim: dando-se as mãos, enquanto eles vão cantando, devem
sentar-se no chão. O mundo cai, mas no momento em que cai, depois se levantam de
novo. É uma experiência muito bonita, que descreve uma característica do brincar. A
brincadeira é a atividade que a criança faz, na qual ela tem sempre a possibilidade de
retomar: cair e se levantar. O mundo cai, desaba, mas a caída não é irreparável e prevalece
o desejo de continuidade. Esta é para uma criança uma experiência muito importante.
Primeiro, porque a criança aprende que tudo aquilo que acontece com ela ou que ela
possa provocar nos outros não tem o sentido último, que seja definitivo, mas tem sempre
a possibilidade da retomada.
Isso ensina à criança que, dentro da realidade, nem tudo aquilo que muda pode
ser considerado a verdadeira realidade. A verdade da realidade é alguma coisa que fica e
que pode ser sempre retomada. Estamos falando estas coisas como se fossem coisas
filosóficas, mas a criança vive estas coisas de uma maneira experiencial. A partir dali, ela
entende uma coisa que é fundamental: que, no mundo que continuamente muda, existe
alguma coisa de estável ou que seja contínua. Isso dá possibilidade para a criança de ser
curiosa, atenta, livre para perambular e perguntar.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.49
A OBSERVAÇÃO
Depois, um detalhe curioso: na brincadeira do “gira-mundo” quando o mundo
desaba nós estamos juntos, as mãos estão juntas e também isso não é um fato óbvio. No
começo, ela pode ter medo, mas, pela mão do adulto, ela pode ir além de si. Dar as mãos
é, precisamos admitir, uma coisa prazerosa, por isso, uma criança procura um amigo.
Depois, essa brincadeira prevê também que uma criança esteja no meio, fique no centro
do círculo girando. Não é simples para uma criança ficar no meio, isso também é um novo
passo que ela tem de aprender; aprender a confiar em si mesma. Por isso, não há
necessidade de grandes coisas num relacionamento educativo. Olhem quantas coisas a
criança aprende numa brincadeira que pode se repetir várias e várias vezes, milhares de
vezes dentro de uma creche!
A repetição para uma criança pequena é, na verdade, uma coisa importantíssima.
Tentemos ver o que existe dentro de outra brincadeira: o cavar a terra. Pode
acontecer, por acaso, que eu tirando uma pedra veja alguma coisa ali embaixo, uma coisa
que não esperava: os insetos que se movimentam e, assim, começo a ficar curioso. Por
essa descoberta, nasce um trabalho de ir à procura debaixo, o que está debaixo, até ver
onde eu posso chegar. A criança começa a cavar com o dedo, depois se dá conta de que
o dedo dói e não é suficiente para cavar, por isso pega uma pedra, um pauzinho. O que
representa, por exemplo, esta coisa?
Isso é o uso da tecnologia, mas este uso está em função da descoberta, do
interesse que é próprio da criança. Nós não temos nada a dizer de ruim sobre o computador,
porque todos usamos, o que é preciso respeitar, como já vimos, é o contexto onde ele está
inserido e também a que serve. Voltamos ao cavar, um utensílio simples, rudimentar,
adequado ao objetivo, a criança não vai encontrar qualquer pedaço de pau, no começo
basta qualquer coisa mas depois encontra um outro mais resistente, mais forte. Nasce um
problema, depois chega a solução, a solução levanta um outro problema e assim vai
seguindo. Tudo isso, por que acontece?
De maneira espontânea ou por um acaso, ali há um pensamento em ação, ali está
um pensamento que projeta no futuro o instrumento que eu estou usando e também o
objetivo.
O que move esse pensamento? O interesse, a atração que aquela coisa tem sobre
mim. Mas, depois, o buraco que eu fiz se torna uma lagoa se eu o encho de água e uma
folhinha pode se tornar uma barquinha.
Percebam que o pensamento da criança trabalha sobre o que há de mais concreto,
as coisas mais simples, e isso vale mil vezes mais que todas as fichas que nós possamos
fazer para ele, porque ali está a criança toda inteira; e, se eu também estou ali, existe
também um contexto no qual a criança é sustentada, é levada a seguir adiante.
Tudo o que acontece não acontece por acaso, acontece porque a criança está
movida por essa curiosidade e porque está diante de um adulto que a ajuda a ultrapassar
alguns obstáculos que ela não conseguiria sozinha. Se tem que reforçar esse buraco, eu
posso intervir, ajudar e dar uma solução e dali essa brincadeira se desenvolve mais ainda.
Quando uma criança lê uma palavra, o faz porque associa aquela palavra a uma
imagem que se construiu. Se não tem essa associação, a palavra é dita de maneira
mecânica. Se falta esse processo de simbolização, também a aprendizagem do ler e do
escrever fica comprometida. A criança, na creche aprende o processo de simbolização
através de coisas banais, mas são só aparentemente banais. Precisamos decifrar a
linguagem de uma criança não partindo de esquemas que tenho na cabeça, mas segundo
aquilo que a criança, na verdade, está fazendo.
Pode acontecer que, quando uma criança mexe no terreno, sente nojo daquela
coisa, ela pode lavar-se e, depois, movida pela curiosidade, ela volta a olhar, tenta uma vez
mais e, no final, ela decide colocar o dedo e, então, vence este medo. Isso representa um
crescimento da criança, mas pode acontecer que se fira, que se machuque.
1.50 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A OBSERVAÇÃO
Quantas grandes coisas a vida contém! Contém tudo aquilo que serve a uma
criança para crescer, mas não do ponto de vista sentimental, mas do ponto de vista global:
emotivo, afetivo, social intelectual. Tudo.
Se nós agora olhamos os verbos do brincar: escavar, descascar, tirar, colocar. O
que isso representa?
Esse processo é anterior à matemática: tirar, ver que fica menor que antes, colocar,
acrescentar. É a subtração e a adição. Eu não posso tirar demais; se tiro demais, o buraco
cai. Adição e subtração não são simplesmente operações aritméticas que se podem fazer
somente com as fórmulas, mas se fazem também com as coisas. O problema é que o
pensamento funciona mesmo antes de a criança conseguir fazer as operações pelas
fórmulas. Se não faz essas experiências que ficam debaixo destas fórmulas, depois ela se
cansa para entender estas fórmulas.
Este texto é a tentativa de apresentar alguns instrumentos, algumas orientações
que podem servir de guia para o educador/observador, porém é preciso ter presente que
observar só se aprende observando, no relacionamento diário com as crianças. Podemos
acrescentar, ainda, que a observação é um processo que, num primeiro momento, prevê
uma atividade individual (observação, relatório escrito, releitura colocando as reações do
observador sobre o momento observado) e uma atividade desenvolvida no grupo de
trabalho. Esse segundo momento é muito importante, porque a comunicação ao grupo e
a tentativa de responder às perguntas ajudam a compreender de forma melhor o
comportamento da criança e a hipotizar uma nova forma de se colocar com as crianças. A
observação se aprende com o tempo, com um exercício constante e adquirindo uma
capacidade de reflexão sobre quando acontece, podendo, mais tarde, observar de forma
espontânea.
Referências Bibliográficas
BRONFENBRENNER, U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e
planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
COEREZZA, M. Apostila do Curso de Formação para Formadores. Belo Horizonte: AVSI, 2001.
(mímeo)
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.51
A OBSERVAÇÃO
Anexo 1
Observar é:
• fixar os olhos naquilo que funciona;
• colher os diversos planos nos quais a criança está se desenvolvendo, atribuir significado
e integrá-los;
• adquirir um hábito que torne o adulto presente nas relações com separação suficiente
que permita refletir.
•
•
•
•
Observar não é:
procurar confirmações para aquilo que já pensamos;
“quantificar” e “comparar” a um modelo padrão;
o preenchimento de um formulário;
isolar alguns momentos “fortes” (ex. inserção).
A nossa observação é de tipo pedagógico:
• devemos individualizar aquilo que funciona na criança e tender a desenvolver as
potencialidades;
• é sempre uma observação “na situação”: ambiental e relacional;
• é participante e humilde (é difícil interpretar os comportamentos dos outros. Não nos
contentamos com a primeira observação. Não se entende tudo imediatamente);
• não se esquece da nossa infância (saber colocar-se no lugar de... como se...).
•
•
•
•
Campos de observação
a) Funcionamento mental
linha da comida
linha do sono
linha do movimento
linha da linguagem e da comunicação.
•
•
•
•
b) Relação com o objeto
separação/individualização
dependência/autonomia
atendimento pessoal
simbolização
c) qualidade da socialização
• assunção do modelo M/F
• descentralização do ponto de vista do eu ao tu ao nós através da relação com o adulto.
1.52 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A OBSERVAÇÃO
Anexo 2
Notas Gerais sobre o Trabalho de Observação
Uma consideração do método: é necessário sempre ter presente que escolhemos
um instrumento particular que consiste na observação do caráter pedagógico
(compreender como e em quais linhas o caminho evolutivo da criança – ou por analogia
do relacionamento ou de outros aspectos da situação educativa – está procedendo para
sustentá-lo ou corrigi-lo) e de uma observação participativa, ou seja humilde, não
distanciada, mas capaz daquela empatia que me faz acolher o outro assim como ele é,
sem pretensão que se adeqüe à minha imagem.
Além disso, é necessário estarmos atentos à descrição do contexto, porque é
um aspecto importantíssimo da observação e à distinção entre observação e comentários/
reflexões/juízos.
Poderia ser útil levar em conta alguns elementos como por exemplo:
a. ESCOLA ……………………………………………
b. DATA ………………………….. HORA …………….
c. QUEM OBSERVA ………………………
d. PAPEL DO OBSERVADOR…………………………..
e. CONTEXTO DA OBSERVAÇÃO (situação, momento do dia, espaços, materiais, número
de meninos e número de meninas, tipo de atividade desenvolvida, número e função
dos adultos, eventos, imprevistos, …)
f. OBJETO DA OBSERVAÇÃO (atenção para distinguir as observações dos
juízos)……………………………..………………
g. RAZÃO DA OBSERVAÇÃO (porque observo) …………………………………
h. DESCRIÇÃO DO EVENTO (aquilo que acontece, como acontece, o foco da observação)
…………………..
i. COMENTÁRIOS E HIPÓTESE DE TRABALHO:
• evidenciar os problemas e os temas surgidos
• refletir sobre a função do adulto
• e sobre aquela do pedagogo
• identificar como fazer crescer a experiência e o percurso:
• no grupo de trabalho
• individualmente (relacionamento de “counseling” entre o pedagogo e a
educadora)
•
•
•
•
AVSI
com a criança
com o grupo das crianças
com os pais
com outros.
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.53
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA
PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA1
1. Introdução
O termo ecologia psicológica foi utilizado pelo estudioso italiano D. Varin que se
baseou na teoria de um psicólogo americano de nome Brofenbrenner e na teoria do alemão
Kurt Lewin. Este modelo privilegia a compreensão do ser humano em relacionamento com
o ambiente em que se insere e também a influência do ambiente no desenvolvimento
global da pessoa. Esses pesquisadores entendem como ecologia psicológica:
• “O estudo dos processos através dos quais os fatores de ordem extrapsicológicos
influenciam o ambiente psicológico e, através disto o comportamento individual e de
grupo” (Varin, 2001, p. 1).
• “O estudo do relacionamento entre a pessoa e o ambiente e a influência que o ambiente
tem sobre a pessoa” (Coerezza, 2001, p. 31).
• “A ecologia do desenvolvimento humano envolve o estudo científico da acomodação
progressiva, mútua, entre um ser humano ativo, em desenvolvimento, e as propriedades
mutantes dos ambientes imediatos em que a pessoa em desenvolvimento vive. Conforme
esse processo é afetado pelas relações entre esses ambientes, e pelos contextos mais
amplos em que os ambientes estão inseridos” (Bronfenbrenner, 1996, p. 18).
1
Os conceitos utilizados nesta apostila foram extraídos dos textos:
1) “A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados”, de Urie
Bronfenbrenner;
2) “Apostila do Curso de Formação para Formadores”, com a palestra de Marco Coerezza; e
3) de uma síntese realizada por Luisa Cogo e Elisabete R. do Carmo do texto organizado por D.
Varin “Ecologia psicológica e organização do ambiente na creche”.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.55
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
Este modelo privilegia a compreensão do ser humano em relacionamento com o
ambiente em que está inserido e também a influência do ambiente no desenvolvimento
global da pessoa.
Com a palavra ecologia entendemos a organização do sistema e como ambiente
entende-se o espaço de vida da pessoa, isto é, aquele espaço no qual a pessoa, através
de seus relacionamentos mais significativos, cresce e se desenvolve.
O ambiente é composto por elementos humanos, físicos, geográficos e sociais
que são externos ao ambiente psicológico, mas que são elementos de grande influência
no desenvolvimento da pessoa.
Lembremo-nos de que uma criança que nasce e cresce em um país
subdesenvolvido, em uma cidade grande, em um bairro com grandes carências sociais,
em uma casa com pouco ou nenhum saneamento básico, com pais ausentes vai ter
influências ambientais no desenvolvimento psicológico diferentes das de uma criança que
mora nesse mesmo país, nesse mesmo bairro, mas em uma casa limpa e organizada, com
pais preocupados e presentes durante o seu desenvolvimento. Qualquer dado do ambiente
(humano, físico, geográfico ou social) que é modificado, muda-se também a influência do
ambiente na pessoa.
Os conceitos essenciais de ecologia psicológica podem, assim, ser resumidos:
1) Pessoa: A pessoa é o lugar, a sede de vários processos afetivos, perceptivos, cognitivos
e motores.
2) Ambiente psicológico: espaço de vida no qual a pessoa é inserida, isto é, aquele espaço
no qual a pessoa, através de seus relacionamentos mais significativos, cresce e se
desenvolve.
3) Fatores de ordem extrapsicológica: os aspectos físicos, geográficos e sociais do
ambiente, externos ao ambiente psicológico do indivíduo, que assumem a função de
fatores de ecologia psicológica quando o influenciam mais duradouramente (isto
acontece a cada vez, de situação em situação). Uma criança, antes de nascer, vive no
útero da mãe, naquele momento o ambiente psicológico; mesmo depois do nascimento
– naqueles primeiros meses, nos quais existe uma fase simbiótica entre a criança e a
mãe – o ambiente psicológico do recém-nascido é influenciado por um ambiente externo,
bem como pelo relacionamento da mãe com o pai, pela situação econômica que a
família vive e pela tranqüilidade do ponto de vista do bem-estar psicofísico. Outros
elementos casuais podem surgir e influenciar este ambiente: um medo ou um susto por
alguma coisa. Todos são fatores extrapsicológicos, mas que influenciam de maneira
profunda o ambiente psicológico.
O ambiente psicológico se estrutura em função das características da pessoa e é
influenciado pelas características extrapsicológicas, ou seja, externas aos fatores subjetivos
da pessoa. Isso é importante, sobretudo, pelo fato de hoje sabermos que uma criança
pequena ainda não consegue se diferenciar do ambiente e, por isso, tem a necessidade
de ser acompanhada na estruturação dessa diferença, na construção desta individualidade.
Nesse momento de fragilidade da criança, a influência do ambiente pode ser muito
determinante, porque o eu dela ainda não está estruturado. Por isso, damos importância
para o ambiente extrapsicológico, aquele que está fora do relacionamento adulto-criança,
fundamental, porque nos ajuda a sustentar o processo de formação da identidade da
criança, já que este é um dos aspectos mais determinantes na formação da identidade. É
o limite entre o eu e o outro.
4) Comportamento da pessoa: depende seja das características individuais, seja do
ambiente psicológico; por sua vez, o ambiente psicológico estrutura-se também em
relação com as características da pessoa (estado de ânimo, vivências, experiências
etc.). Isso é verdadeiro especialmente para a criança, na qual a diferenciação entre o eu
e o ambiente ainda é frágil: os elementos mais relevantes do ambiente podem irromper
1.56 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
mais facilmente na zona interna da pessoa, determinando incômodo e desorganização;
ou as mudanças globais do ambiente (por ex.: a inserção na creche aos 3 anos) podem
ser causa de ânsia, influenciando o modo no qual o ambiente é percebido.
2. Aspectos mais relevantes da Ecologia Psicológica que podem
determinar o Ambiente Psicológico da criança, na creche
2.1. Vínculos Comportamentais e Perceptivos
Algumas características do espaço externo ou interno (portas, janelas, móveis,
objetos etc.) influenciam, com a presença ou a disposição deles, a possibilidade do verificarse ou não: comportamentos e percepções, assim como também o espaço de livre
movimentação física e psicológica, a escolha da atividade, a atenção e, portanto, a
aprendizagem da criança; alguns desses vínculos são, em medida maior ou menor, por
causa de fatores como o comportamento do educador ou a organização das atividades
educativas da creche, enquanto outros vínculos são devidos aos fatores logísticos e
arquitetônicos relativos à própria escola. Por exemplo, a disposição das carteiras na sala
de aula dando maior ou menor acesso à pessoa do educador ou ainda janelas muito
grandes com acesso a alguma rua movimentada que acaba distraindo a atenção das
crianças durante as atividades propostas.
Qualidades Fisionômicas
Espaços e objetos, assim como materiais e cores, não são afetivamente neutrais
para a pessoa, mas podem influenciar os estados emotivos. Quanto menor é a criança,
mais sensível é a esta percepção fisionômica e não é dito que ela tenha as mesmas
percepções fisionômicas do adulto no confronto de certos aspectos do ambiente. Por
exemplo, uma sala pintada de vermelho vai causar uma reação emotiva diferente na
percepção da criança do que uma sala pintada de branco ou de azul, assim como um piso
acolchoado será percebido e interiorizado de forma diversa de um piso comum. Isso tem
a ver com o relacionamento da criança com esses objetos. Normalmente, todo esse
relacionamento reflete a história que a criança viveu antes de entrar no relacionamento
com aquele objeto.
Qualidades Simbólicas
Espaços e objetos do ambiente podem assumir uma função simbólico-afetiva. Os
significados afetivo-simbólicos específicos que lugares, objetos e pessoas podem assumir,
dependem de contexto por contexto, das experiências afetivo-cognitivas vividas pela criança;
e, além disso, de uma dotação bem estudada para os jogos simbólicos que aumenta as
possibilidades de enriquecer as variedades e as diferenças dos processos simbólicos. Por
exemplo, um espaço protegido no qual a criança possa se refugiar assume a função de
lugar de privacidade, como um ângulo da sala de aula.
Agentes de Stress
Definimos como stress a situação na qual o sistema psíquico é colocado sob
uma pressão que leva a uma ruptura temporária ou a uma desorganização do seu
funcionamento.
As fontes de stress podem ser internas ou externas à pessoa; um stress psicológico
prolongado pode provocar no organismo reações de condicionamentos e adaptação que
absorvem quantidades relevantes de energia, atrapalhando, assim, diversos processos
psíquicos (atenção, aprendizagem etc.).
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.57
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
Fatores de stress externos e internos:
estímulos físicos (barulho, temperatura etc.);
estímulos sociais (multidão, agressões etc.);
mudanças bruscas do ambiente (novidade etc.);
mudanças fisiológicas (dor, enfraquecimento etc.);
sobrecarga de estimulações (acústicas, visuais etc.).
O nosso aparato psíquico funciona de modo excelente com níveis adequados (nem
tão altos, nem tão baixos) de estimulações, ao passo que não tem condições de tolerar uma
sobrecarga de estimulações: através da atenção se consegue focalizar uma parte do campo
perceptivo em respeito ao resto, mas esta última continua a exercitar uma pressão global sobre
o aparato perceptivo, causando um senso de atordoamento e de cansaço.
De vez em quando, uma criança pode ser colocada em uma posição de pressão
do ponto de vista psicológico, uma pressão que não lhe permite expressar um
comportamento organizado. Tentem pensar, por exemplo, no momento de inserção da
criança na escola materna, na creche: quando ela tem um stress, ela chora porque quer a
mãe, e não tem nenhum comportamento organizado, só um desespero; é preciso antes
acalmá-la para se ter um comportamento organizado com ela e por ela.
As fontes de stress podem ser internas e externas. Externas pelo fato de que a
mãe foi embora e interna pelo fato que imaginou uma coisa monstruosa que dá medo;
podemos pensar quando temos um pesadelo. Se as fontes de stress permanecem no
tempo, a criança se adapta, mas o que acontece é que esta adaptação consome muita
energia, e, se a sua energia é absorvida, faltará energia para as outras funções: perceptivas,
emocionais etc.
Quanto mais uma criança tiver um relacionamento sereno com a mãe, mais serena
ela ficará com o mundo; isso significa que os fatores de stress diminuem. O stress existe
sempre, mas não temos a necessidade de um nível de stress alto. O nível de stress depende
também dos interesses que a pessoa tem. Por exemplo, o interesse que a criança tem de
ir para a creche; cada um tem um nível diferente do outro.
•
•
•
•
•
Privacidade
Nas creches, existe o risco e a tendência em fazer o ambiente assumir um caráter
de perda de personalidade em relação ao ambiente familiar; tal tendência é, por certas
vezes, inevitáveis, mas, por outras, se pode evitar com pequenos truques.
A necessidade de privacidade pode se exprimir no desejo de um espaço pessoal
onde repor as próprias coisas; a redução, de fato, do espaço pessoal (parcialmente inevitável
na creche) pode causar o surgimento de comportamentos específicos (intolerância,
agressões etc.) ou de outras formas de incômodo.
A exigência de privacidade é mais forte, quanto mais longo é o tempo que a
criança passa na escola em uma situação de coletividade
Existe uma relação entre as condições naturais de privacidade e a constituição do
Eu, que é influenciada também pelos modos com os quais se realiza a separação do
individual do ambiente social e físico; tal separação pede que a criança experimente
momentos de solidão (enquanto desejada e não padecida). Um objetivo importante do
desenvolvimento infantil é a conquista de autonomia; e a capacidade e a possibilidade de
escolher a solidão temporária da privacidade são condições importantes para tal aquisição.
A privacidade se torna, assim, uma situação necessária para reforçar o Eu e protegê-lo.
Além disso, um nível mínimo de privacidade é um fator que favorece o
desdobramento da fantasia e das representações que esta alimenta, como aquelas dos
jogos simbólicos (por ex., uma maior proteção do ângulo da casa favorece uma
permanência maior da criança nele e constitue uma ocasião para desenvolver jogos
inventados mais articulados).
1.58 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
A atividade intelectual também pede pelo menos um nível mínimo de condições
de proteção e privacidade.
Para falar do relacionamento entre o indivíduo e o ambiente e da influência do
ambiente sobre a pessoa, precisa-se ficar atento porque o ambiente não familiar tem sempre
um certo caráter despersonalizado, e nós devemos ter absoluta atenção a esse aspecto
quando organizamos o ambiente da creche, pois o problema está sempre entre o ambiente
e a constituição do Eu da criança.
Por exemplo, na escola, cada sala de aula pode ter um espaço que seja
exclusivamente pessoal de cada criança, que pode ser uma gaveta, uma caixinha, um
canto, um bolso, mas aquele espaço é daquela criança, é da Andrea, do Giovanni, do
João..., e cada um pode usar esse espaço segundo a própria exigência.
As exigências ligadas à intimidade são as exigências da pessoa que tem
necessidade de que o espaço a ajude a encontrar momentos de intimidade, momentos
nos quais ela pode dizer eu e meu; esses momentos são geralmente precedidos do encontro
com alguém que fica à frente da criança e que diz para ela “tu“.
3. A Escola como Microambiente
O espaço tem uma grande função comunicativa, que faz parte da proposta do
adulto, o que nós chamamos de intencionalidade. O espaço também faz parte do
conhecimento da criança, uma vez que esta percebe, identifica, interpreta, ainda que de
forma não consciente, aquilo que o espaço comunica.
Através do espaço, a criança constrói um mapa mental na tentativa de se ordenar
e viver baseada no sentido que esse espaço tem para sua vida.
Se nós tentamos imaginar uma escola, muitas vezes identificamos de maneira
reduzida a escola com a sala de aula. Mas, de fato, a escola é bem mais que uma sala de
aula! A escola tem percursos, tem caminhos, caminhos que levam a outros lugares: os
corredores, o pátio, algumas linhas, o piso, a escola tem pontos de referência, porque
estes percursos levam a a lugares bem definidos.
Existem a sala de aula, o jardim, a cozinha, o refeitório, portanto, é muito
interessante que uma criança interiorize o sentido de cada um desses pontos de referência
e o significado que cada um tem.
Há também o que poderíamos chamar de “pontos de cruzamento”, o ponto no
qual vem sinalizada uma possibilidade de mudança de direção (como pode ser uma sala
na qual se abrem todas as salas de aula e dali começam outros pequenos corredores, que
levam a outros locais).
Um espaço é delimitado – os limites são muito importantes, porque o limite
determina aquilo que está dentro e aquilo que está fora. Para uma criança, aquilo que está
dentro e aquilo que está fora significam aquilo que interessa a ela e aquilo que não interessa
a ela, aquilo que suscita uma maravilha, aquilo que dá medo. Os limites podem também
representar obstáculos que podem ou não ser ultrapassados.
Além desses pontos itinerários, ponto de cruzamentos, limites, há também o que
poderíamos chamar de “áreas delimitadas”. Essas áreas delimitadas são espaços onde
acontecem funções específicas. É importante que uma criança possa aprender a função
que cada espaço tem e que se comporte em relação à função daquele espaço; isso é
importante porque significa um nível de maturidade muito mais alto.
Cada espaço exige, portanto, um comportamento adequado da criança em função
do sentido daquele espaço Sendo que o espaço e a pessoa se determinam reciprocamente,
existem, de um lado, comportamentos que a criança deve adequar para determinado
espaço e, de outro lado, espaços que devem ser adequados ao comportamento da criança.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.59
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
Isso significa que a sala de aula é feita, de uma certa maneira, diferente da cozinha ou do
laboratório, onde o ato de pintar tem seu lugar. Há uma reciprocidade de influências entre
a pessoa e o espaço. O espaço é o resultado da interação entre a pessoa, a criança e os
objetos que estão ali dentro.
Sempre devemos nos lembrar: tudo deve ser feito de maneira tal que aconteça a
verdadeira educação. A educação acontece na medida em que as pessoas ficam bem
juntas, próximas; por isso, o espaço não pode ser um elemento neutro no contexto. Isso é
verdadeiro na escola, mas é verdadeiro sobretudo na creche. Para uma criança, existe
uma exigência de poder controlar o espaço, reconhecendo-o e comparando-o com o que
ela já conhecia.
Outra exigência é a de reestruturar, reorganizar o espaço, submetê-lo à iniciativa
da criança. Ou seja, é interessante identificar quanta liberdade de movimento existe dentro
da sala de aula, porque isso é uma forma de ver como a criança tomou posse desse
espaço e sabe utilizar-se deste espaço, que, em última instância, é seu.
Através do modo como a criança se move em um espaço, podemos identificar o
quanto ela se percebe livre neste espaço.
É importante ter presente isso, porque um ambiente pode assumir uma função
afetiva, como, por exemplo, acontece quando as crianças querem construir tocas, porque
isso expressa a necessidade de intimidade, mas também a construção de um espaço
simbólico que ajuda a criança a construir e a enriquecer suas funções intelectuais.
Uma criança possui seu espaço não apenas através do conhecimento de tipo
intelectual; o domínio vem através do olhar, observar, de se relacionar e ver outros se
relacionando dentro desse espaço, da exploração, da descoberta, da ação dirigida ao
espaço, que é o brincar. Através de todas essas atividades, uma criança chega a possuir
aquele espaço e cada criança tem sua maneira específica: existem crianças que se colocam
num canto e olham, outras entram e começam a correr para cá e para lá para tratar de
possuir o espaço, outras pedem a mão da educadora para poderem entrar dentro deste
espaço.
Uma coisa que se pode fazer é organizar o espaço de maneira que a criança
chegue a possuir o espaço e, através disso, possa desenvolver uma experiência, enfim,
uma vida.
Tenhamos presente que a questão fundamental é tentarmos organizar um espaço
onde possa acontecer uma experiência educativa, ou seja, de crescimento da criança e
tentarmos fazer isso através da criação de condições favoráveis à construção de um bom
relacionamento entre a criança e o adulto.
Veremos que existe uma grande correspondência entre a maneira de organizar o
espaço e o relacionamento que acontece entre o adulto e as crianças.
A atenção agora deverá voltar-se para o espaço da sala de aula, enquanto
microambiente mais próximo à criança, não para superestimar tal ambiente, nem para
criar uma concepção de que a sala de aula deve ser separada do resto da creche; de fato,
a sala é parte de um ambiente global e de uma concepção e organização pedagógica
global, que também determina, através do uso dos espaços, algumas características
essenciais do ambiente educativo.
Existem três tipos de organização em sala de aula.
O primeiro modo de organização caracteriza-se por ter todos os armários bem
encostados nas paredes. No centro, temos todas as mesinhas, cada criança possui a
sua mesa e a sua cadeira. Em um dos cantos, podemos ver a mesa do professor; dentro
dos armários, o material que só o professor utiliza, ao qual só o professor tem acesso.
Nessa situação, é claro que a centralidade é do professor, ele distribui as tarefa todas
iguais para cada uma das crianças e nenhuma delas tem possibilidade de utilizar o material
1.60 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
Organização 1
de maneira autônoma. Esta é uma situação típica da escola primária. Neste tipo de sala
de aula, não pode acontecer uma brincadeira, não existe um espaço para o brincar, o
espaço depende da atividade que se desenvolve; por isso, a centralidade é do professor
e da atividade desenvolvida, uma atividade guiada pelo professor. O único espaço que a
criança tem é o externo, onde, com certeza, ela pode brincar, mas onde o brincar tem
uma função de desabafo. Ela acumula “energias tóxicas” que devem ser expelidas em
qualquer lugar. O brincar fica justamente com essa função, como desabafo. O espaço é
propriedade do professor e todas as crianças deverão fazer a mesma coisa. Não têm a
possibilidade da personalização. A preocupação fundamental do professor é aquela de
poder controlar tudo.
Contudo, anteriormente falamos que o espaço tem a função de contenção – aquela
função também de proteção –, mas aqui essa função de proteção é totalmente reduzida
ao controle do adulto. O adulto acredita que pode ter, ao mesmo tempo, tudo sob o seu
olhar, este controle é a única contenção possível. Aqui, fica muito evidente a onipotência
do adulto. Parece que a única coisa que tem valor é o projeto que aquele adulto tem para
aquela criança; depois, com certeza, cada um faz o seu desenho, a única “quase liberdade”
que a criança possui neste espaço.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.61
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
Organização 2
Aqui, nós podemos ver uma situação um pouco diferente: os espaços ficam um
pouco mais articulados, basicamente esses espaços são parcialmente estruturados, existem
alguns lugares, a casinha, a cozinha, um tapete para assentar e ler algum livro, mas as
mesas não estão integradas com o espaço, são colocadas de lado, de modo tal que aqui
acontecem as atividades importantes e, quando alguém fica cansado da atividade, pode ir
para o seu canto para fazer uma atividade prazerosa. O brincar é introduzido dentro da
sala de aula, mas na consciência do professor o brincar ainda fica “ao lado”. Este tipo de
brincar espontâneo da criança acontece na ausência do adulto, porque esse adulto
centraliza as verdadeiras atividades. Existe ainda uma difícil integração entre o adulto e a
criança e entre as atividades estruturadas e o brincar. Não há, de fato, um encontro
verdadeiro entre estes dois elementos, um se coloca ao lado do outro, o adulto ao lado da
criança, a atividade ao lado do brincar.
Nesta terceira situação, o espaço fica mais integrado. É um espaço delimitado em
áreas diferentes; as mesinhas estão integradas dentro do espaço e cada espaço tem a sua
função. Aqui, o tapete serve tanto para ler quanto para momentos comuns. No momento
da atividade estruturada, reúnem-se as mesinhas, bem como com os armários que devem
conter todo o material. As atividades precisam ser realizadas em conjunto, aí a casinha
sempre serve de casinha, não existe mais a mesa do professor. O fato fundamental é que
o espaço se integrou, o professor perdeu a preocupação de cobrar, de controlar. Se o
professor fica no tapete, não pode ver os outros que estão perto, não tem tudo sob o seu
olhar, sob o seu controle, mas ele utilizou o espaço para realizar uma contenção. Deu à
1.62 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
criança a possibilidade de
desenvolver algumas atividades,
segundo o interesse delas. O
professor irá acompanhar
aquelas crianças, baseando-se
na observação. Ele poderá
acompanhar as crianças no
momento da manipulação para
ficar mais perto de uma criança.
O projeto pedagógico do
professor se integra, neste último
exemplo, com o projeto de vida
das crianças, se desenvolve
dentro desse relacionamento.
Também, neste último exemplo,
o brincar se tornou o interesse do
adulto e da criança; isso significa
que o brincar foi valorizado no seu
sentido afetivo, intelectual e
cognitivo. Os espaços e a
organização dos espaços têm
simplesmente a função última de
sustentar esse novo tipo de
relacionamento.
A criança possui um
projeto de vida que tem um valor
e este projeto de vida é assumido
Organização 3
pelo professor que usa todos os
instrumentos para sustentar isso,
para suportar isso.
Aqui, é interessante ver como é útil uma idéia do psicólogo russo Vygotsky (18961934), que fala de zona de desenvolvimento potencial; poderíamos falar também de
aprendizagem potencial. Significa que uma criança alcança alguns níveis na aprendizagem,
mas chega a um ponto em que fica evidente a necessidade de um adulto que a ajude a
fazer este passo, que a ajude a ver aquele laço entre aquela brincadeira e uma outra
possibilidade. Fazendo deste modo, o adulto ajuda a criança a crescer.
Referências Bibliográficas
BRONFENBRENNER, U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e
planejados. Tradução Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
COEREZZA, M. Apostila do Curso de Formação para Formadores. Belo Horizonte: AVSI, 2001.
(mímeo)
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.63
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
Anexo
ESPAÇOS
NECESSIDADES
MATERIAIS
PAPEL DO ADULTO
Expressão
gráficopictórico
• Exprimir-se através
do uso de técnicas
não verbais
(desenho, pintura,
retalho);
• Papel branco e colorido de
diversos tamanhos e formas,
papelões, toalhinhas,
canetinhas de ponta fina e
grossa, giz de cera, lápis de
cor, tesoura, cola, revistas,
figuras recortadas, quadro
que se apaga com canetas
ou à álcool, moldes, feltros,
papéis adesivos, tintas
guache, canetas, esponjas,
papel toalha, garrafas de
vidro, material de
reciclagem.
• Apresentação do
material e o do seu
uso correto;
• Motricidade fina;
• Criatividade.
Manipulação • Conhecimento e
exploração;
• Movimento fino;
• Criatividade.
Construção
com terra
e material
de
encaixar
• Socialização;
• Exploração e
conhecimento das
propriedades dos
objetos;
• Projeção.
• Socialização
Material
(respeito das
estruturado
regras e dos
e de
turnos);
encaixe
• Exploração e
conhecimento da
área cognitiva;
• Movimentos finos.
• Ajuda verbal no
momento de
atividade guiada.
• Massa de modelar, argila,
• Intervenção de
tabuleta de madeira,
sustento durante a
equipamentos para trabalhar,
atividade.
papel toalha, material de
reciclagem.
• Lego, pecinhas de madeira,
• A intervenção do
cidade e ferrovia de madeira,
adulto é oportuna
garagem com carros,
quando as
encaixes de plástico, peças
construções da
grandes de plástico.
criança se tornam
repetitivas por um
tempo prolongado.
O adulto oferece à
criança dicas para
novas construções,
com o objetivo de
instruí-la ao jogo
comum e
colaborativo,
desenvolvendo a
própria criatividade
no grupo.
• Bingo, jogo da memória,
dominó, quebra-cabeça,
jogo de encaixe, preguinhos
com tabuletas, Lego, pérolas
de madeira, animais de
plástico e de borracha, lousa
com letras e formas
magnéticas, cidade de
encaixe, fechos.
• O papel do adulto é
aquele de condutor
da atividade,
inicialmente é
continuamente
presente.
(continua na próxima página)
1.64 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
ESPAÇOS
NECESSIDADES
MATERIAIS
PAPEL DO ADULTO
Jogos em
miniatura
• Segurança;
• Bonecas com móveis e
roupas, vários acessórios,
jóias.
• Intervenção indireta
da parte do adulto
(observação);
• Motricidade fina;
• Socialização;
• Intervenção direta
se solicitada pela
criança.
• Necessidade de
representação.
Maleáveis
• Segurança e
proteção;
• Relaxamento;
• Descoberta;
• Grande tapete
emborrachado, colchões,
fantoches de borracha,
pelúcia, cestas cheias de
“tesouros”.
• Inicialmente o
adulto é o ponto de
referência e
coordena os jogos.
• Individualização;
• Movimento global.
Da Família
• Segurança;
• Para o recém-nascido:
arrinho e assento de bebê,
• Reviver as vivências
fraldas, bonecas, pratinhos,
e os papéis
talheres, mamadeira,
familiares (alegrias
copinhos acessórios para a
e conflitos) para
higiene, lençóis, cobertas,
elaborar-lhes
meias, bonés, macacões, …,
novamente;
pelúcia anti-alergica,
• Imitar;
joguinhos vários,…
•
Para
a mamãe: vestidos,
• Recitação;
saias, camisas, lenços,
• Identificação;
cachecol, luvas, jóias,
bolsas, cintos, sapatos, …
• Socialização.
• Para o papai: camisas,
colete, cinto, gravata, paletó,
sapato, maleta (de
escritório), …
Casinha
• Segurança;
• Móveis (fogão, geladeira,
pia) e acessórios, mesa,
• Socialização;
cadeiras, pratos, copos,
• Viver as vivências
talheres, taças, Tábua de
dos seus familiares;
passar com ferro, caminha,
espelho, telefone.
• Imitação;
• Identificação dos
papéis;
• Segurança;
• Individualização;
• Conhecimento
através das
imagens.
• Intervenção
intencional;
• Intervenção de
observação;
• Dramatização.
Leitura
• O adulto se insere
no grupo para
oferecer modelos
de comportamento
e diversas
propostas de jogo
(organização dos
papéis).
• Livros só com imagens para
crianças de 3 anos; livros
com imagens e palavras
para as crianças de 4 e 5
anos; livros com as formas e
livros que favoreçam o
desenvolvimento perceptivo.
• Intervenção sob
pedido da criança.
(continua na próxima página)
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.65
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA
ESPAÇOS
NECESSIDADES
MATERIAIS
Objetos
para uso
pessoal
• Segurança;
• Coleção de objetos,
pequenos jogos “de
transição” a disposição da
criança segundo a
necessidade.
• Individualização.
Escrivaninha • Segurança;
e armário
• Individualização.
• Objetos administrativos;
Espaços
murais
• Painel de “comunicações
sociais” (calendário) no qual
se oferece às crianças a
possibilidade de formalizar
muitos momentos de vida
social e extra- escolar
utilizando fotografias,
símbolos/sinais, desenhos
que permitem às crianças
tornarem-se conscientes do
tempo que passa e dos
significados comunicativos
dos quais são portadores;
• Comunicação;
• Informação.
PAPEL DO ADULTO
• Objetos de uso exclusivo do
adulto.
• Intervenção
intencional;
• Intervenção de
observação;
• Intervenção sob
pedido da criança.
• Painel de desenho
espontâneo;
• Painel “a imagens” no qual
se privilegie a atividade
gráfico-pictórica com
propostas de técnicas
diversas (mesmo sujeito,
representado em diversos
modos, por cada criança).
Tempos de
utilização
• No início do ano existe verdadeiramente uma organização dos espaços, e as
educadoras:
- apresentam o novo material;
- guiam as crianças para usarem os espaços de modo adequado;
- interagem com elas para incentivar a aprendizagem e garantir a segurança;
- projetam as atividades de pequenos grupos (3-4 crianças por vez);
- se asseguram que as crianças sejam envolvidas, no que for possível, em
todos os aspectos das atividades;
• Em seguida, o programa diário não inclui tempos pré-estabelecidos para o
jogo livre, se introduzem atividades programadas nos momentos oportunos,
deixando “a rodízio” liberdade às crianças não empenhadas a dedicar-se às
diversas atividades;
• Único espaço utilizado uma vez por semana é o salão para a
psicomotricidade.
1.66 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
EDUCAÇÃO INCLUSIVA
A EDUCAÇÃO INCLUSIVA
A inclusão de crianças com necessidades especiais na escola regular de ensino
insere-se no âmbito das discussões referentes à integração de pessoas portadoras de
deficiências enquanto cidadãos, com seus respectivos direitos e deveres de participação
e contribuição social.
Segundo Santos (2001), a discussão sobre inclusão vem sendo veiculada sob a
forma de Declarações e Diretrizes Políticas pelo menos desde 1948, quando foi aprovada
a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Entretanto, no que diz respeito aos vários
cenários em que tais princípios de participação e direitos humanos se inserem, incluindose o educacional, ainda há muito a ser esclarecido e discutido a respeito das diferentes
conotações que a inclusão possa assumir.
1. Uma longa História em defesa de
oportunidades iguais para todos
O histórico apresentado abaixo nos revela que a discriminação e a exclusão
de pessoas com necessidades especiais, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, vem
de longa data. Embora a forma de olhar essas pessoas tenha sofrido transformações –
o que é considerado um grande avanço – e haja leis como a LDB 9394/96, que prescreve
que as crianças com necessidades especiais têm direito a uma educação de qualidade
junto às “normais”, na prática essa luta ainda vai longe, devido à natureza excludente
da nossa sociedade.
(Ver tabela na próxima página)
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.67
EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Até o Século XV
Século XVI ao XIX
Século XX
Anos 60
Crianças
deformadas eram
jogadas nos
Esgotos da Roma
Antiga. Na Idade
Média, deficientes
buscam abrigo nas
igrejas. Na mesma
época os deficientes
ganham a função de
bobos da corte.
Pessoas com
deficiências
continuam isoladas
do convívio com a
sociedade, porém
em asilos, conventos
e albergues. Surge o
primeiro hospital
psiquiátrico na
Europa, mas todas
as instituições dessa
época não passam
de prisões, sem
tratamento
especializado nem
programas
educacionais.
Os portadores de
deficiência passam a
serem vistos como
cidadãos de direitos
e deveres de
participação na
sociedade, mas sob
uma ótica
assistencial e
caritativa.
Pai e parentes de
deficientes
organizam-se.
Surgem as primeiras
críticas à
segregação.
Teóricos defendem a
adequação do
deficiente à
sociedade para
permitir sua
integração.
Anos 70
1978
Anos 80 e 90
1988
Os Estados Unidos
avançam nas
pesquisas e teorias
de inclusão para
proporcionar
condições melhores
de vida aos
mutilados de Guerra
do Vietnã.
Pela primeira vez,
uma constituição
brasileira trata do
direito da pessoa
deficiente: “É
assegurada aos
deficientes a
melhoria de sua
condição social e
econômica
especialmente
mediante educação
especial e gratuita.”
Declarações e
tratados mundiais
passam a defender
a inclusão em larga
escala. Em 1985, a
Assembléia Geral
das Nações Unidas
lança o Programa de
Ação Mundial para
as pessoas
Deficientes:
“quando for
pedagogicamente
factível, o ensino
de pessoas
deficientes deve
acontecer dentro
do sistemas
escolar normal.”
No Brasil, o
interesse pelo
assunto é
provocado pelo
debate antes e
depois da
Constituinte. A nova
Constituição,
promulgada em
1988, garante
atendimento
educacional
especializados aos
portadores de
deficiência
preferencialmente na
rede regular de
ensino.
Martinho Lutero
defendia que
deficientes mentais
eram seres
diabólicos que
mereciam castigo
para ser purificados.
- Educação inclusiva
tem início naquele
país via lei 94142, de
1975, que
estabelece a
modificação dos
currículos e a
criação de uma rede
de informação entre
escolas, bibliotecas,
hospitais e clínicas.
- 1948 Declaração
dos Direitos
Humanos. “Todo ser
humano tem direito
à educação.”
- A Educação
Especial no Brasil
aparece pela
primeira vez na LDB
4024, de 1961. A lei
aponta que a
educação dos
excepcionais deve,
no que for possível,
enquadrar-se no
sistema geral de
educação.
(continua na próxima página)
1.68 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
EDUCAÇÃO INCLUSIVA
1989
1990
1994
1996
A lei federal 7853, no
item da educação,
prevê a oferta
obrigatória e gratuita
da Educação
Especial em
estabelecimentos
públicos de ensino e
prevê crime punível
com reclusão de um
a quatro anos e
multa para os
dirigentes de ensino
público que
recusarem e
suspenderem, sem
justa causa, a
matrícula de um
aluno.
- A Conferência
Mundial sobre
Educação para
todos, realizada na
Tailândia, prevê que
as necessidades
educacionais
básicas sejam
oferecidas para
todos pela
universalização do
acesso, promoção
da igualdade,
ampliação dos
meios e conteúdos
da Educação Básica
e melhoria do
ambiente de estudo.
Dirigentes de mais
de oitenta países se
reúnem na Espanha
e assinam a
Declaração de
Salamanca, um dos
mais importantes
documentos de
compromisso de
garantia de direitos
educacionais. Ela
proclama as escolas
regulares inclusivas
como o meio mais
eficaz de combate à
discriminação.
A Lei de Diretrizes e
Bases, 9394, se
ajusta à legislação
federal e aponta que
a educação dos
portadores de
necessidades
especiais deve darse preferencialmente
na rede regular de
ensino.
- o Brasil aprova o
Estatuto da Criança
e do Adolescente,
que reitera os
direitos garantidos
na Constituição:
atendimento
educacional
especializado para
portadores de
deficiência,
preferencialmente na
rede regular de
ensino.
2. O desafio de uma sociedade democrática
A partir da LDB 9394/96, a Escola Fundamental se viu diante do desafio de incluir
alunos com necessidades especiais (deficientes mentais, crianças com limitações sensoriais
ou neurológicas etc.) no seu quadro escolar. Diante desse desafio, faz-se necessário
desenvolver uma prática pedagógica centrada no aluno e capaz de educar com sucesso
as crianças com necessidades educativas especiais. Mas quem é esse aluno? Qual é o
seu nível de comprometimento cognitivo? Como trabalhar essa necessidade? Como
proporcionar espaços e tempos que atendam às limitações das crianças com necessidades
especiais?
Para responder a essas questões, é necessário que os profissionais das “escolas
regulares” se interajam com o objetivo, ou seja, entrem em contato, acolham a criança
com necessidades especiais, para que, dessa forma, possam construir uma proposta
pedagógica que atenda a todos — crianças especiais e crianças “normais”.
Historicamente, a “escola regular” sempre exerceu seu papel de forma
segregadora. Será que nos dias de hoje essa escola está preparada para cuidar, integrar,
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.69
EDUCAÇÃO INCLUSIVA
reconhecer, relacionar-se com as crianças (e pessoas de um modo geral) com necessidades
especiais? (Macedo, 2002). O fato de uma criança com alguma deficiência estar inserida
num grupo torna a escola inclusiva? E o que torna a criança deficiente? Estas questões
vêm nos dar a oportunidade de refletir e agir em busca de uma ação educativa
comprometida com a formação da sociedade democrática. Pois, “o que é debilidade senão
uma característica valorizada negativamente em função de norma de deficiência que lhe
serve de padrão?” (Lobo, 1992, p. 113). Deficiente é aquele que não é eficiente; esta visão
de deficiência desconsidera o sujeito na sua singularidade e possibilidade. Não a
possibilidade enquanto “sucesso” (aquele a quem é possível produzir), mas condição
própria de existir, de ser no mundo. Portanto, a forma de conceber o sujeito é que vai
definir a deficiência e seu impacto existencial. Enquanto a deficiência for tratada como
ineficiência, a diferença de aprendizagem será vista como incapacidade.
Assim, a ação inclusiva e integradora é necessária, porém, é preciso ter muito
cuidado, pois atrás do discurso pode persistir a discriminação, porque a visão que, muitas
vezes, se tem da criança deficiente é de comprometimento e restrição. É preciso ouvi-la no
que ela tem para dizer, mesmo que sejam palavras incompreensíveis, o esforço da
compreensão é tarefa do educador. Compreendê-la no seu fazer, dando suporte para que
avance no seu processo de aprendizagem. Como diz Lucas (2001):
Pode ser que em uma escola regular essa criança não atinja os patamares das
séries e dos objetivos a serem alcançados, que não atenda às expectativas
socialmente aceitas e estabelecidas.
Mas essa criança teria a vantagem de estar convivendo num espaço social diverso,
rico e estimulante, o que seria muito útil para a interação social. Isso seria no
mínimo o que poderíamos alcançar ou propiciar a essa criança (p. 30).
É preciso fazer retificações sobre o olhar que dirigimos a todos aqueles que se
diferenciam dos demais. A expectativa que se cria sobre cada aluno faz com que vejamos
somente limites, enquanto que uma mudança neste olhar torna possível, não a negação
das dificuldades, mas o reconhecimento das particularidades do sujeito da aprendizagem,
dando oportunidades de ver nas limitações as possibilidades. Pois “toda criança é capaz,
tem um potencial a ser desenvolvido, desde que respeitada a especificidade de cada uma,
dadas as condições necessárias e estabelecido um vínculo afetivo entre os envolvidos”
(Lucas, 2001, p. 30).
Hoje, não podemos mais nos fechar numa crença de padronização e educação
homogeneizada. A realidade é diversa e é nesta diversidade que atuamos e devemos
atuar oferecendo um espaço, onde o coletivo não seja tratado como uniformidade, mas
como multiplicidades e singularidades. Oportunizar que o educando interaja é criar um
espaço inclusivo. Vygotsky já nos disse da importância da interação social, o quanto o
meio é propiciador de aprendizagem, o quanto o confronto com as diferenças é para
todas as crianças fator de grande importância formadora.
Assim, fica o desafio à escola inclusiva, na qual a criança deva ser o centro
norteador do processo, assistida por uma pedagogia que dê conta da diversidade,
reconhecendo nas diferenças a possibilidade e a não padronização do ensino,
desapropriando-se dos modelos reprodutivistas, pois o sujeito enquanto diferente construirá
na relação com o outro o saber próprio e não mais escreverá como modelo.
Contudo, de acordo com Lucas (2001), “a inclusão na escola regular não resolverá
a questão da necessidade da criança, visto que é um problema real, clínico e objetivo. E
que o trabalho dos profissionais em educação não é suficiente para a inclusão, se a
sociedade não se preparar para receber essa criança; ou seja, não podemos ser ingênuos
a ponto de acreditar que uma lei resolve a questão” (p. 31).
1.70 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Referências Bibliográficas
BARALDI, Clemência. Aprender – a aventura de suportar o equívoco. Tradução Nancy Barros de
Castro Faria. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
LOBO, Lilia Ferreira. Deficiência, prevenção, diagnóstico e estigma. In: RODRIGUES, H. B. C. et al.
(Org.). Grupos e instituições em análise. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. p. 113-126.
LUCAS, Andréa da Cruz. O desafio da educação inclusiva. Revista Criança, n. 35, p. 30-31, dez.
2001.
MACEDO, Lino. Fundamentos para uma educação inclusiva. Educação on-line, jun. 2002.
MRECH, Leny Magalhães. Educação inclusiva: realidade ou utopia? Educação on-line, jan. 2001.
OLIVEIRA, Marta Khol de. Vygotsky – aprendizado e desenvolvimento, um processo histórico. São
Paulo: Scipione, 1995.
SANTOS, Mônica Pereira dos. A inclusão da criança com necessidades educacionais especiais.
Educação on-line, jan. 2001
STAINBACK, Susan; STAINBACK, William. Inclusão – um guia para educadores. Tradução Magda
França Lopes. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.71
A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A EDUCAÇÃO INFANTIL NA
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
1. Um Breve Histórico sobre a Criação de Creches
e Pré-Escolas no Brasil
A discussão sobre a identidade da educação infantil tem constituído um tema
desafiador para aqueles que têm se dedicado a ela como objeto de estudo, mas também
para os que lutam e reivindicam o seu reconhecimento como direito das crianças brasileiras
e de suas famílias.
A educação infantil surgiu num contexto de mudanças sociais, políticas e
econômicas profundas que ocorreram na Europa no final do século XVIII, que foram
consolidando novos arranjos sociais e encaminhando novas compreensões acerca dos
papéis dos sujeitos e das instituições da sociedade.
No Brasil, as instituições destinadas a proteger a criança começaram a ser criadas
de fato a partir de 1940, para atender às novas exigências de uma sociedade urbanoindustrial. As creches “nasceram” ligadas às áreas de saúde e assistência social, como
integrantes de uma política de proteção à maternidade e à infância, com o objetivo de
combater a pobreza e a mortalidade infantil e destinadas a atender mulheres trabalhadoras,
abandonadas ou viúvas, ou para atender crianças, cujas mães eram julgadas
incompetentes. A creche era destinada também às crianças “desvalidas”, ou seja, que
viviam em famílias desorganizadas.
Nessa concepção, para o poder público, o atendimento era baseado na assistência.
Assim, o qual a creche não era considerada um direito, mas uma caridade dos filantropos,
pois as iniciativas de atendimento assistencial às famílias pobres eram de entidades privadas,
cabendo ao poder público apenas o papel de supervisão e repasse de verbas a essas
entidades.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.73
A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A ação do Estado na área de creches, desenvolvida desde a década de 40,
caracterizou-se pela execução indireta, na forma de associação com instituições
particulares de caráter filantrópico, leigo ou confessional, tanto o DNCr como a
LBA funcionavam como órgãos repassadores de recursos para essas instituições
(Vieira, 1988, p. 4).
Nesse cenário, concordamos que muitas entidades foram criadas para responder
à grande necessidade, principalmente de mães trabalhadoras que não tinham um lugar
seguro no qual deixar os filhos durante as horas de trabalho, prestando, dessa forma, um
serviço assistencialista. No entanto, segundo Kuhlmann Jr. (1991), estudos realizados
indicam que, no fundo, essas já carregavam na sua estrutura uma motivação educativa.
Assim, ao estabelecer que a criança de 0 a 6 anos tem direito à educação infantil, a LDB
9394/96 não só reconheceu a necessidade apresentada por estudos teóricos realizados,
mas reconheceu também a prática de educar e cuidar que já vinha sendo desenvolvida
por muitas entidades, comprovando a importância de se investir na educação desde os
primeiros anos de vida.
De acordo com Kuhlmann Jr. (1991), o privilegiamento às concepções de
natureza assistencialista não foi uma constante na história das creches no Brasil, pois
alguns estudos realizados apontam momentos, localizando, primeiro, um atendimento
de origem médico-higienista; depois, um atendimento assistencial e, finalmente,
“culminando nos dias de hoje, na etapa educacional, entendida como superior, neutra
ou positiva” (Kuhlmann Jr., 1991, p. 18). Nesse último momento, toma-se o pedagógico
como um modelo ideal.
2. Educação Infantil, um Direito da Criança
Até a Constituição Federal de 1988, a criança era vista pelo Estado como uma
figura de cuidado, amparo e assistência e não como uma figura de direito, como asseguram
a Constituição e a LDB, hoje. No entanto, segundo Cury (1998), esse ser de direito vinha
sendo construído desde a LDB 4.024/61. Ao fazer uma referência muito discreta em relação
à educação infantil, essa lei dizia que a educação pré-escolar se destinava aos menores
de sete anos de idade que deveriam ser atendidos em jardins de infância e escolas
maternais. Essa mesma lei previa também que empresas que empregavam mulheres com
filhos em idade pré-escolar deveriam organizar ou manter esse tipo de educação,
diretamente ou em cooperação com o poder público. Essa lei já dizia também da
necessidade de o professor ter o curso normal.
Posteriormente, a LDB 5692, promulgada em 1971, manteve o que a 4.024/61
rezava e reforçou que as empresas organizassem e mantivessem instituições de educação
infantil para os menores de sete anos, filhos de suas funcionárias.
A contribuição mais valiosa que garante às crianças o direito à educação infantil,
foi introduzida pela Constituição de 88 que, através do artigo 208, inciso IV, diz que a oferta
da Educação Infantil é dever do Estado e deve ser garantida a crianças de 0 a 6 anos em
creches e pré-escolas.
A Constituição define a educação infantil como direito da criança e uma opção da
família. Assim, ao determinar como obrigação do Estado o atendimento a essa “nova”
modalidade de ensino, provocou um considerável desenvolvimento de políticas públicas
para essa faixa etária. Novos programas e ações tiveram que ser desenvolvidos, destinandose a uma clientela diferente: “crianças e família de direitos”. O Eca (Estatuto da Criança e
do Adolescente, aprovado em 1990) veio reconhecer legalmente essa criança de direito e
o adolescente como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento, servindo de
base para a construção de uma nova forma de se olhar a criança.
1.74 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
2.1. Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB 9394/96
A LDB 9394/96 representa o mais recente avanço no atendimento à Educação
Infantil. Com base nessa lei, essa “nova” modalidade de ensino foi integrada ao sistema
educacional como a primeira etapa do ensino fundamental, de acordo com o artigo abaixo:
Art. 21 – A educação escolar compõe-se de: I – educação básica, formada pela
educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II – educação superior.
Nesse artigo da lei, ficou bem claro que a educação infantil é parte integrante do
sistema de ensino. A lei reconhece que as creches e pré-escolas desempenham um papel
importante no desenvolvimento e educação das crianças de 0 a 6 anos, portanto, devem
estar integradas aos sistemas municipal ou estadual de ensino (art. 89), para que todas as
crianças sem distinção possam ter acesso a essas instituições.
Art. 29 – A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como
finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus
aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família
e da comunidade.
A LDB 9394/96 reconhece a necessidade de uma proposta cujo objetivo seja
claramente o desenvolvimento integral das crianças. E chama a atenção para uma questão
essencial, que é o papel da família, pois a creche ou pré-escola não substitui a educação
familiar, mas a complementa.
Outra questão importante apontada pela LDB 9394/96 é a formação dos
educadores que irão atuar na educação infantil, pois, até a promulgação dessa lei,
“qualquer” pessoa poderia estar atuando nessas instituições, principalmente em creches,
nas quais o objetivo maior era o de cuidar das crianças, mas, agora, com a proposta de
educar e cuidar, segundo o art. 62, a situação mudou:
A formação dos docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior,
em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e instituições
superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do
magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino
fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal.
Esse artigo é o mais problemático, pois, diante do quadro de profissionais existente,
principalmente dos que atuam nas creches, muitos não têm sequer a formação de nível
fundamental, e possibilitar que esses educadores consigam a formação mínima que é o
magistério está sendo um desafio, pois, embora exista um grande empenho do poder
público e até de órgãos privados, ainda são poucas as instituições que oferecem cursos
de formação para educadores infantis.
No entanto, avalia-se essa exigência como um ganho, dada a importância
alcançada pela educação infantil, que, como primeira etapa da educação básica, passe a
exigir um profissional mais qualificado. Além disso, há um ganho em relação ao próprio
profissional que passa a pertencer a uma categoria que, como tal, pode exigir seus direitos.
Trata-se também de um ganho para o principal beneficiado da educação infantil – a criança
– que passa a ser atendida por um profissional mais valorizado e supostamente mais
qualificado para o trabalho.
Outro aspecto fundamental é a formação continuada em serviço (um espaço,
dentro do horário de trabalho, para uma formação permanente). É preciso formar o educador
através das observações, discussões e reflexões sobre suas ações cotidianas na creche
ou pré-escola.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.75
A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
De acordo com art. 30 da LDB 9394/96 – “a educação infantil deverá ser oferecida
em: I) creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II) préescolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade”. Assim, a lei abre a possibilidade
de discussão sobre o nome e o tipo de instituição em relação ao nível de ensino e às
classes sociais. Creche pública ou particular é a instituição para crianças de 0 a 3 anos e
pré-escolas privadas ou públicas para crianças de 4 a 6 anos de idade. Dessa forma, a lei
rompe com a prática usual e preconceituosa em relação às creches que até hoje são
vistas como instituições de caridade, assistencialistas, localizadas em bairros pobres, que
atendem a crianças que têm família de baixa renda. Dessa forma, a lei tenta garantir que
tanto as creches particulares, quanto as públicas tenham um mesmo nível de qualidade,
fazendo valer o direito de cidadania.
A nova LDB 9394/96 traz elementos que, de certa forma, garantem o que foi
conquistado na Constituição de 1988, em relação ao atendimento educacional às crianças
de 0 a 6 anos. Esses ganhos são significativos, entretanto, há muitas limitações em relação
ao destino dos recursos financeiros para a demanda existente. Por isso, ainda há muito o
que se discutir sobre o rumo que se dará à educação infantil, e é somente com o esforço
de todos que se poderá concretizar propostas, visando a um atendimento de qualidade às
crianças.
3. Formação dos Fóruns de Educação Infantil
Os fóruns, organizados em níveis estaduais, municipais e regionais, têm se
constituído em espaços de socialização das leis vigentes e das ações governamentais em
andamento, bem como em momentos privilegiados de discussão e reflexão sobre os
diferentes aspectos e desafios relacionados à educação infantil. Alguns assuntos discutidos
foram:
• Regulamentação e Integração:
integração das instituições de educação infantil públicas e privadas ao
sistema de ensino (prevista no art. 89 da LDB). É uma ação complexa, pois não se
reduz apenas à normatização ou regulamentação, trata-se de como o município vai
equacionar o funcionamento compatível com a sua demanda; a formação de seus
profissionais; o currículo de suas instituições; o atendimento às necessidades por
faixa etária etc. Esses aspectos envolvem muitos direcionamentos dados pela política
nacional. Cabe aos municípios se posicionarem através da lei municipal, com relação
a um sistema próprio de ensino ou à vinculação ao sistema estadual de ensino.
• Financiamento:
Um dos grandes desafios é a definição de dotação orçamentária específica
para a Educação infantil, uma vez que os recursos destinados a esse nível estão
incluídos nos 10% restantes, após a aplicação no Ensino Fundamental (“disputa entre
o roto e o esfarrapado”). Isso evidencia a falta de recursos destinados à Educação
Infantil. As discussões caminham para a criação de um fundo específico como o que
já existe para o Ensino Fundamental (FUND).
• Repasse de recursos:
Outra discussão refere-se ao repasse dos recursos, como os que são
previstos nos Planos Plurianuais. Sendo as creches e pré-escolas parte do sistema
de ensino, como está regulamentado pela LDB e também instituições de educação e
cuidado, elas exigem necessariamente uma integração entre educação e assistência.
Nesse sentido, as verbas previstas para os órgãos responsáveis pela Assistência,
1.76 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
tais como Previdência Social, conselho Nacional e Estadual, precisam estar articuladas
de forma a buscar uma eficácia na aplicação.
• Formação dos profissionais que atuam diretamente com as crianças
Levando-se em conta a realidade nacional, temos um número siginificativo
de profissionais que atuam na Educação Infantil. Assim, torna-se urgente a discussão
de como organizar a formação dos profissionais das creches. A lei aponta alguns
caminhos que merecerão uma maior normatização, com a criação dos Institutos
Superiores de Educação, do Curso Normal Superior, da capacitação em serviço etc.
Para um atendimento de qualidade, é necessário garantir tanto a educação prévia,
como aquela realizada continuamente durante o exercício da profissão.
4. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
Este é um documento oficial (COEDI-MEC, 1998), elaborado por iniciativa do MEC.
Sua proposta é servir de base para a produção de programações pedagógicas,
planejamentos e avaliações em instituições e redes dos municípios.
É muito importante que todos os educadores conheçam o seu teor, pois ele orienta
sobre os aspectos mais relevantes na busca de um atendimento de qualidade na educação
infantil, demostrando, através de exemplos, diversas formas de organizar, conduzir e avaliar
o trabalho junto às crianças e famílias. É apenas um referencial, pois cada município e
cada instituição deverá elaborar a sua proposta pedagógica de acordo com as
características de sua realidade.
5. Considerações Finais
A educação infantil faz parte de um sistema de idéias, um raciocínio que nem
sempre existiu. A categoria “infância” e as operações correlatas à sua constituição como
fenômeno social nos levam a pensar que as instituições de educação infantil se encontram
precisamente num ponto de interseção entre conhecimento e poder. A invenção desta
nova categoria corresponde também a novas formas de intervenção social para seu controle
e regulação.
As propostas para a educação infantil, em seu eixo político, se definem por seu
caráter democrático, não discriminatório — propondo atingir a todas as crianças — e por
sua pretensão emancipatória, uma vez que o acesso aos bens culturais não só funcionaria
como equalizador como permitiria a libertação dos sujeitos infantis dos liames da injustiça
e da opressão.
No entanto, a educação infantil ainda é vista como compensadora, como
conseqüência de uma mudança na organização social, constituindo-se, assim, como uma
ajuda familiar muito mais próxima à criação do que à educação e servindo, também, de
“ante-sala” à educação sistemática, dentro de uma modalidade intermediária entre o jogo
e a aprendizagem, na qual a função educativa específica dos estabelecimentos infantis
ainda não está claramente estabelecida.
Através das leituras realizadas, concordamos que ocorreram grandes avanços no
atendimento da educação infantil, numa conjunção de 3 fatores: 1) um intenso aumento
da demanda; 2) a construção de conhecimentos sobre o desenvolvimento da criança e da
educação infantil; e 3) sobretudo, o surgimento de políticas públicas na área.
Contudo, faz-se necessário tornar a educação infantil mais transparente e
participativa com o estabelecimento de políticas públicas mais desafiadoras e construtivas.
Acreditamos que é preciso o envolvimento de todos para que a educação de crianças de
0 a 6 anos em espaços coletivos possa cumprir a sua função de educar e cuidar.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.77
A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Referências Bibliográficas
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1998, 82 p.
BUJES, Maria Isabel Edelweiss. O pedagógico na educação infantil – uma releitura. Educação OnLine, 2002. Acesso em: ago. 2002.
CAMPOS, Maria Malta. Educar e cuidar – Questões sobre o perfil do profissional de educação
infantil. In: Por uma política de formação do profissional de educação infantil. Brasília: MEC/SEF/
DPE/COEDI, 1994.
CARVALHO, Alysson et al. (Org.). Políticas públicas. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
CNE, Resolução CEB 1/99. Diário Oficial da União, Brasília, 13 de abril, 1999. Seção 1, p. 18
CURY, Carlos Roberto Jamil. A educação infantil como direito. Credenciamento de Instituições
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DIAS, Regina Celia. Luta, movimento, creche: a história da conquista de um direito. In: Creches
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KUHLMANN Jr., Moysés. Instituições pré-escolares assistencialistas no Brasil (1899-1922). Cadernos
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MARSHALL, James. Governabilidade e educação liberal. In: SILVA, Tomas T. da (Org.). O sujeito
da educação – estudos foucautianos. Petrópolis: Vozes, 1994.
OLIVEIRA, Zilma de Morães (Org.). Creches: crianças, faz de conta e companhia. São Paulo: Vozes,
s/d.
SILVA, Isa T. F. R. da. Educação infantil na região metropolitana de Belo Horizonte, MLPC, Belo
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VIEIRA, Lívia Maria. Mal necessário: creches no departamento nacional da criança (1940-1970).
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 67, p. 3 -16, nov. 1988.
1.78 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Anexo
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil
Resolução Nº 1 da Câmara de Educação Básica
O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação,
de conformidade com o disposto no art. 9º § 1º, alínea “c”, da Lei 9.131, de 25 de novembro
de 1995, e tendo em vista o Parecer CEB/CNE 22/98, homologado pelo Senhor Ministro da
Educação e do Desporto em 22 de março de 1999,
RESOLVE:
Art. 1º – A presente Resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil, a serem observadas na organização das propostas pedagógicas das
instituições de educação infantil integrantes dos diversos sistemas de ensino.
Art. 2º – Diretrizes Curriculares Nacionais constituem-se na doutrina sobre
Princípios, Fundamentos e Procedimentos da Educação Básica, definidos pela Câmara
de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, que orientarão as Instituições
de Educação Infantil dos Sistemas Brasileiros de Ensino, na organização, articulação,
desenvolvimento e avaliação de suas propostas.
Art. 3º – São as seguintes as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação
Infantil:
I – As Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil, devem respeitar
os seguintes Fundamentos Norteadores:
a) Princípios Éticos da Autonomia, da Responsabilidade, da Solidariedade e do Respeito
ao Bem Comum;
b) Princípios Políticos dos Direitos e Deveres de Cidadania, do Exercício da Cidadania e
do Respeito à Ordem Democrática;
c) Princípios Estéticos da Sensibilidade, da Criatividade, da Ludicidade e da Diversidade
de Manifestações Artísticas e Culturais.
II – As Instituições de Educação Infantil, ao definir suas Propostas Pedagógicas,
deverão explicitar o reconhecimento da importância da identidade pessoal de alunos, suas
famílias, professores e outros profissionais, e a identidade de cada Unidade de Educacional,
nos vários contextos em que se situem.
III – As Instituições de Educação Infantil devem promover, em suas Propostas
Pedagógicas, práticas de educação e cuidados que possibilitem a integração entre os
aspectos físicos, emocionais, afetivos, cognitivo/lingüísticos e sociais da criança,
entendendo que ela é um ser completo, total e indivisível.
IV – As Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil, ao reconhecer
as crianças como seres íntegros, que aprendem a ser e conviver consigo, com os demais
e o próprio ambiente de maneira articulada e gradual, devem buscar, a partir de atividades
intencionais, em momentos de ações, ora estruturadas, ora espontâneas e livres, a
integração entre as diversas áreas de conhecimento e aspectos da vida cidadã, contribuindo,
assim, com o provimento de conteúdos básicos para a constituição de conhecimentos e
valores.
V – As Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil devem
organizar suas estratégias de avaliação, através do acompanhamento e dos registros de
etapas alcançadas nos cuidados e na educação para crianças de 0 a 6 anos, “sem o
objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental”.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.79
A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
VI – As propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil devem ser
criadas, coordenadas, supervisionadas e avaliadas por educadores, com, pelo menos, o
diploma de Curso de Formação de Professores, mesmo que da equipe de Profissionais
participem outros das áreas de Ciências Humanas, Sociais e Exatas, assim como familiares
das crianças. Da direção das instituições de Educação Infantil deve participar,
necessariamente, um educador com, no mínimo, o Curso de Formação de Professores.
VII – O ambiente de gestão democrática por parte dos educadores, a partir de
lideranças responsáveis e de qualidade, deve garantir direitos básicos de crianças e suas
famílias à educação e cuidados, num contexto de atenção multidisciplinar com profissionais
necessários para o atendimento.
VIII – As Propostas Pedagógicas e os regimentos das Instituições de Educação
Infantil devem, em clima de cooperação, proporcionar condições de funcionamento das
estratégias educacionais, do uso do espaço físico, do horário e do calendário escolar, que
possibilitem a adoção, execução, avaliação e aperfeiçoamento das diretrizes.
Art. 4º – Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, ficando
revogadas as disposições em contrário.
ULYSSES DE OLIVEIRA PANISSET
Presidente da Câmara de Educação Básica
1.80 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS
RELAÇÃO FAMÍLIA-ESCOLA:
CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS1
1. Introdução
Na psicologia como na pedagogia sempre que tratamos do tema do
desenvolvimento infantil, recorremos ao papel que a família ocupa, reconhecendo a
importância desta para a formação da personalidade da criança. Porém, infelizmente
corremos o risco de privilegiarmos um olhar crítico determinado pela intenção de descobrir
falhas mais do que contribuições da família para o nosso projeto educativo.
Existe uma tendência na sociedade moderna de desvalorização da família, que busca
reforçar a incapacidade e fragilidade dos pais na tarefa educativa. Aqueles que defendem esta
posição buscam sustentação em teorias da psicologia (Ex: Psicanálise) ou sociologia (Ex:
Marxismo), que apregoam que a família não tem competência para referendar os valores
contemporâneos. Por influência dessas concepções, foram sendo desenvolvidas políticas
governamentais que se destinavam a suprir carências dos indivíduos, perdendo de vista a
família como um todo. Assim, nasceram programas diversos em defesa da mulher, das crianças,
dos adolescentes etc. As famílias foram sendo fragmentadas, pois seus membros podiam
inserir-se em vários programas (inclusive de educação) sem que houvesse relação entre estes.
No entanto, o que se constata hoje é que o enfraquecimento das famílias tem
gerado conseqüências gravíssimas para a sociedade, como o aumento da violência, a
gravidez precoce, o abandono escolar, a instabilidade afetiva etc..
Diante dessa situação, novas iniciativas têm sido feitas com o intuito de recuperar
o valor da família, prevalecendo a intenção de fortalecer seus membros no exercício de
suas responsabilidades. O Papa João Paulo II é um dos responsáveis por esta nova
1
Este texto é fruto das reflexões da professora Lílian P. C. Reis, especialista em Ciências da Família
pela UCSAL e Psicóloga do Centro de Orientação Familiar – COF – em Salvador/BA.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.81
RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS
tendência, chamando a atenção da sociedade para a importância da família como santuário
da vida (Anexo I).
É dentro desse ponto de vista que nasce a nossa proposta, buscando traçar alguns
aspectos que nos ajudam a conhecer melhor as famílias, para que possamos identificar recursos
que nos auxiliem no sentido de estabelecermos uma relação mais saudável com estas.
2. Família
Este é um tema de interesse de todas as ciências que lidam com o ser humano, motivo
pelo qual encontramos várias definições que enfatizam aspectos diferentes sobre a mesma.
Se o nosso olhar parte da psicologia, recai principalmente na dimensão afetiva,
que trata dos vínculos existentes entre os membros da família, da força e qualidade destes,
do processo de constituição do eu, através da identificação com as figuras parentais, que
influenciam na formação da personalidade.
Do ponto de vista pedagógico, a ênfase é sobre os fatores preponderantes no
processo de aprendizagem, sendo a família peça chave neste quebra-cabeça, já que tem
uma função educativa a desempenhar.
Poderíamos aqui esmiuçar o olhar das várias profissões, mas o que queremos
destacar é que as famílias têm funções que só competem a elas. Brevemente podemos
partir da definição de alguns autores que nos ajudam a clarear os pontos mais significativos
sobre o papel das famílias.
Vejamos alguns exemplos:
• “A família: o primeiro sujeito educativo...” (Luigi Giussani, 2000, p. 187).
• Levi Strauss 1967 (apud Petrini, 2001) define a família como “a união mais ou menos
durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos, é um fenômeno
universal presente em todo e qualquer tipo de sociedade” (p. 4).
• A família se diferencia de outras formas de relações, ao caracterizar-se por um modo
específico de viver a diferença de gênero..., que implica em sexualidade – e as relações
entre as gerações, que implicam em parentesco (Petrini, 2002, p. 5).
Enfim, vislumbramos assim que o núcleo familiar tem qualidades específicas, que
não podem passar despercebidas. A primeira dessas potencialidades da família é ser o
lugar dos laços afetivos, da vivência do amor, que envolve valores como respeito,
reciprocidade, disponibilidade, gratuidade, amizade, aceitação etc. É através da convivência
familiar que aprendemos a nos relacionar com pessoas de idades e sexo diferentes. Na
troca de experiências, vamos adquirindo a compreensão dos papéis masculinos e femininos,
das funções sociais que competem a cada um, assimilando valores, crenças e regras de
conduta para o bom convívio. Todas as influências que sofremos deste contexto vão ser
decisivas para a constituição da nossa própria identidade.
Além do aspecto emocional, a família é também lugar de educação para a vida, é
o ponto de partida, de referência para que a pessoa se posicione perante o mundo. Esta
função educativa é evidenciada ainda pela constatação de que fomos criados, de que
nossa vida é um dom, de que dependemos de outros e de um Outro, de que pertencemos
a uma história, a qual nos é transmitida por pais e avós e que define a nossa origem.
Dentro do contexto familiar, cada pessoa tem seu valor, sua dignidade, porque é
única e diferente. A missão pessoal deve ser realizada por cada membro. Sendo assim, os
filhos também têm sua parcela de contribuição e responsabilidade e são chamados
principalmente a demonstrar a gratidão, reconhecendo o valor do que receberam.
Dizemos justamente que a estrutura de uma família é saudável quando percebemos
a capacidade de todos os membros de interagiram entre si, de vivenciarem estes valores
e de estabelecerem vínculos fortes.
Alguns teóricos têm procurado estudar o funcionamento das famílias, indicando
critérios práticos que nos auxiliam na compreensão desses aspectos.
1.82 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS
Quando estudamos o desenvolvimento infantil, vimos que existem características
que permitem definir fases ou etapas deste processo. Autores como Freud, Piaget e Erikson
tratam desse assunto. Também em relação às famílias é possível identificar mudanças
mais ou menos bruscas, cujas características representam uma evolução do estágio anterior,
com funções qualitativamente diferentes.
Evelyn Duvall (apud Nerval 1979), por exemplo, elaborou a teoria que mostra o
ciclo evolutivo da família, distinguindo certos elementos que nos permitem predizer o
momento da história familiar (Anexo II).
Em cada etapa, os membros da família devem desempenhar tarefas específicas,
que são condições básicas para sua sobrevivência e desenvolvimento. Quando a família
não consegue ajustar-se às condições impostas pela sua realidade, todo o seu processo
posterior de desenvolvimento poderá ficar comprometido.
O educador norte-americano Havighurst (apud Nerval 1979) advoga que há certas
tarefas ou habilidades que o indivíduo tem que aprender para poder ser considerado como
pessoa de desenvolvimento adequado e satisfatoriamente ajustado, conforme as
expectativas da sociedade. O mesmo acontece com a família, pois existem funções que
competem a esta e que são de suma relevância para a sociedade. Petrini (2002) esclarece
estes aspectos ao afirmar que
a família também constitui um recurso para a sociedade, pois facilita respostas a
problemas e necessidades cotidianos de seus membros. A família é um recurso
sem o qual a sociedade, da forma como está organizada atualmente, entraria em
colapso, caso fosse obrigada a assumir tarefas que, via de regra, são
desempenhadas, de forma melhor e a menor custo, por ela. Através da proteção,
da promoção, do acolhimento, da integração e das respostas que oferece às
necessidades de seus membros, a família favorece o desenvolvimento da
sociedade (p. 10).
Vejamos algumas destas funções:
Estabelecimento de laços entre os cônjuges;
Procriação e relacionamentos sexuais entre os cônjuges;
Dar aos filhos um nome e uma condição social;
Cuidados primários para os filhos e os parentes (tarefas que competem aos pais –
Anexo III);
• Socialização e instrução dos filhos (e pais);
• Proteção dos membros da família;
• Fornecimento de suporte emocional e afetivo aos membros da família.
As informações oferecidas até este momento referem-se a todas as famílias e
servem para nos mostrar que não convém ficar limitados a uma visão restrita das pessoas,
pois alguns recursos que são valiosos para ajudá-las escondem-se atrás de pequenas
observações decorrentes de sua história.
Até aqui nossa atenção esteve centrada na família e em suas competências.
Partindo daí, já podemos nos perguntar sobre quais são as tarefas que cabem à escola.
•
•
•
•
3. Escola
A principal competência da escola é dar continuidade ao projeto educativo dos
pais, já que estes são os responsáveis pelo cuidado das crianças e têm o direito de escolher
o modo de criação dos filhos (conforme os padrões sociais vigentes). No entanto, em
nossa sociedade há, muitas vezes, um distanciamento desta proposta. De um lado,
encontramos pais que abrem mão de sua função de autoridade e de cuidadores e começam
a delegar à escola ou educadores estes papéis.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.83
RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS
Existem escolas que acabam correspondendo a essa demanda, rejeitando ou
evitando a participação dos pais no planejamento de suas atividades, reforçando a
incompetência ou fragilidade destes.
No entanto, atualmente já se constata que quanto mais é favorecida a interação
entre família e escola, melhores resultados são obtidos no processo de desenvolvimento
do educando. Pesquisas confirmam que o primeiro passo seria a busca de um
empreendimento cooperativo sustentado a partir dos seguintes pontos (Eulina Lordelo,
2002):
• Transparência das políticas e ações da instituição: os pais devem ser informados dos
projetos da creche, regras, práticas e restrições; com a abertura da creche à entrada
das famílias se incrementa um clima de cooperação;
• Respeito à diversidade de idéias e práticas existentes na sociedade: delimitação de
áreas em que se deve buscar um consenso e em que se deve estabelecer uma política
de convivência com o diferente;
• Envolvimento conjunto em áreas de interesse geral: é a base principal de formação de
um vínculo solidário entre as partes;
• Formação de pessoal: treinamento específico do quadro de funcionários.
A escola, para realizar sua missão, deve abrir-se para a realidade na qual está
inserida e os educadores são os protagonistas dessa empreitada, principalmente quando
percebemos o limite dos pais no desempenho da tarefa educativa. Ao invés de nos
queixarmos da ausência destes, somos responsáveis pela tarefa de chamá-los à sua
responsabilidade, chegando até eles, através de nosso exemplo ou de nossa presença.
Luigi Giussani (2000) acentua que “se a escola é um lugar de educação, deve ser
um lugar de introdução à realidade total. Podemos dizer: o lugar onde a experiência da vida
tende a uma consciência total” (p. 180).
Vale reforçar, então, que a escola pode tornar-se modelo de referência para as
famílias, ajudando-as a recuperarem o sentido de sua missão, oferecendo a estas, através
de sua presença, apoio para que possam resgatar sua força perante as opressões da
sociedade, descobrindo valores que dignificam sua existência.
4. A Comunicação com as Famílias
Falar de comunicação implica em abordar todas as formas de contato que
estabelecemos com as pessoas, pois além da troca de informações do discurso verbal
este processo abrange também os comportamentos que manifestamos perante o outro
(Watzlawick). Sendo assim, para dizer que estamos nos comunicando, não basta cuidar
só da nossa fala ou do vocabulário com o qual nos expressamos. Estamos nos comunicando
mesmo quando não nos apercebemos dessa intenção; é impossível não comunicar,
palavras ou silêncio, tudo possui um valor de mensagem. Então, a comunicação passa
pelo verbal (a palavra) e o não verbal (expressão facial, cadência da fala, posturas, jeito de
vestir etc.) e baseia-se na interdependência dessas duas modalidades, sendo que uma se
traduz na outra.
Por que falarmos desses aspectos na relação com as famílias? Porque qualquer
comunicação implica em compromisso e por isso define a relação. Giussani (2000) afirma
que “A educação é uma comunicação de si, isto é, do próprio modo de se relacionar com
o real” (p. 120).
Duas perguntas emergem neste momento:
• Que efeitos produzem em mim as famílias/crianças com as quais convivo? Que
sentimentos provocam em mim?
• Que produzo nas famílias/crianças com as quais convivo? Como elas me percebem?
• Se algo que pensei é desconfortável, o que posso fazer para reverter isto?
1.84 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS
É aqui que chegamos ao X da questão, pois podemos aprender a detectar, em
nós e nos outros, aquelas habilidades que “puxam para cima”, que nos ajudam a viver
melhor e a encontrar um sentido maior para nossa vida.
A atenção pela nossa própria postura é o passo inicial no desenvolvimento de
habilidades que favorecem a comunicação. Essas habilidades podem ser aperfeiçoadas
no relacionamento com os outros, mas para isto deve existir uma disponibilidade interna
para ajudar a família.
Já nos primeiros contatos, o profissional deve buscar favorecer a acolhida da
família e aí construir a base da relação entre os dois.
No trabalho com as famílias, alguns cuidados devem ser privilegiados:
• Escuta – estar atentos às reais necessidades da família.
• Partilha – o envolvimento é importante quando se consideram as pessoas, tanto no agir,
como no conhecer. Com certeza, as famílias se apresentam (falam de si) de forma
diferente (mais transparente) com aqueles que com ela se comprometem. Construir um
conhecimento partilhado com essas pessoas não significa juntar somente informações
sobre a vida delas ou sobre os programas realizados, mas significa “dar voz” a elas,
transmitir para as famílias os meios para poder exprimir-se e refletir.
• Capacitação – promover o crescimento das famílias, valorizando seus recursos e suas
potencialidades, ajudando-as a aprimorar suas capacidades.
Existem indicações que permitem entender a família e situar seu contexto, para
direcionar condutas a serem priorizadas. Devem ser averiguados os seguintes aspectos:
• As necessidades – escuta, método da partilha, “dar voz”;
• Papéis evolutivos específicos (etapas do ciclo familiar, capacidade dos membros de
assumirem suas responsabilidades, dinâmicas relacionais necessárias);
• Eventos críticos (lista dos problemas internos e externos “estruturais” ou “ocasionais”);
• Recursos internos (qualidade dos laços intergeracionais, flexibilidade, coesão,
criatividade, “pessoas-chave”);
• Potencialidades externas (vizinhança, parentela extensa, novos trabalhos);
• Recursos externos (serviços, intervenções, projetos, como fazê-los encontrar?).
O mais importante é que o educador não deve ter a pretensão de dar conta de
tudo e, sim, compreender que pode ser mediador da família, deve saber o que não se
pode fazer, mas também quem, em outra parte do mundo (ou do bairro), sabe e pode
fazê-lo. Vale, então, o entrosamento dos vários profissionais (assistentes sociais, médicos,
educadores, enfermeiros, agentes pastorais, psicólogos etc.), que, juntos, decidem quem
deve agir e o que deve fazer.
É preciso incentivar estas famílias para que elas possam valorizar seus próprios
recursos, mobilizando-se a fim de encontrar soluções criativas para seus problemas e
desenvolvendo suas potencialidades. Neste caso, o profissional serve como orientador e
ajuda fornecendo a elas informações que as auxiliem na compreensão de suas dificuldades
ou indicações de serviços aos quais possam recorrer. O profissional atua como uma bússola
que indica a direção a seguir, mas quem deve conduzir o barco são os próprios membros
da família. Esse tipo de conduta colabora para que as famílias cresçam, fortalecendo seus
vínculos, capacitando-se para enfrentar as adversidades que a vida lhes impõe.
Referências Bibliográficas
CENTRO DE ORIENTAÇÃO FAMILIAR (COF). Apostilas. 2000.
GIUSSANI, Luigi. Educar é um risco. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2000.
GRIFFA, Maria C.; MORENO, José E. Chaves para a psicologia do desenvolvimento. São Paulo:
Paulinas, 2001. Tomo I e II.
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.85
RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS
LORDELO, Eulina da Rocha. Convergência e conflito na relação creche-família: construindo novas
práticas. In: MOREIRA, Lúcia Vaz de Campos. Educação infantil: lições de quem estuda psicologia.
Salvador: EDUFBA, 2002.
MINUCHIN, Salvador. Trabalhando com famílias pobres. Porto Alegre: Artmed, 1999.
MIRANDA, Clara Feldman; Miranda, Márcio Lúcio. Construindo a relação de ajuda. Belo Horizonte:
Crescer, 1996.
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Instituto João Paulo II de Estudos sobre Matrimônio e Família, set. 2001.
Rosa, Nerval. Problemas da família moderna. Rio de Janeiro: JUERP, 1979.
WATZLAWICK, Paul; BEAUN, Janet; JACKSON, Don D. Pragmática da comunicação humana. São
Paulo: Cultrix, 2000.
Anexo 1
II Encontro do Papa João Paulo II com as Famílias
“A família é o dom de Deus o Criador, o seu projeto originário. (...) É a primeira,
natural, célula vivente da sociedade, na qual se baseiam todas as outras comunidades e
sociedades, e é a primeira célula vivente da Igreja.
A família recebeu o dom de transmitir a vida humana – a maternidade e
paternidade – como fruto do seu amor.
Cada filho, cada pessoa é dom de Deus, criado por Deus à sua imagem, com
dignidade e direitos inatos desde a concepção até a morte natural.
A vida da família é um dom quotidiano que requer amor, paciência e sacrifício.
(...) É um dom que junta diferentes gerações numa cadeia sem fim de reciprocidade e
solidariedade. É a melhor escola de humanidade, onde o dom reciproco dos pais enche a
casa toda. Assim nascem novos membros maduros, respeitosos dos outros, gratos pela
solidariedade que os ajuda a viver na caridade.
A família, então, é dom necessário para a sociedade, para a humanidade inteira.
É a primeira escola das virtudes, em que aprendemos o respeito pelos outros e a ajuda
recíproca. A família é um dom para a Igreja e para a nova evangelização”.
1.86 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA
AVSI
RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS
Anexo 2
Ciclo de Vida da Família
Etapa
Características
Tarefas evolutivas
1) Famílias iniciantes
Casais ainda sem filhos
Projeto do casal
2) Famílias gerando filhos
Filhos mais velho de 2 anos
e meio
Alteração dos hábitos,
rotinas e responsabilidades do casal
3) famílias com crianças
pré-escolares
Filhos mais velho de 2 anos
e meio a 5/6 anos
Questão disciplinar –
processo educativo
4) Famílias com crianças na
idade escolar
Filho mais velho 6 -13 anos
Socialização do indivíduo
5) Famílias com
adolescentes
Filhos mais velho 13 - 20
anos
Crise de identidade do
adolescente
6) Famílias como centros
de partida para a vida
Saída do primeiro filho –
saída do último filho
Inserção social dos filhos/
investimento na relação
do casal
7) Família de meia idade
“ninho vazio” a aposentadoria
Reencontro do casal
8) Famílias idosas
Da aposentadoria à morte
dos cônjuges
Funções e papéis de avós
AVSI
PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.87
AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL
AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM
1. Linguagem
A linguagem é a nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento. Ela tem a
capacidade especial de nos fazer pensar enquanto falamos e ouvimos, nos fazer
compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto os dos outros que falam e se
comunicam conosco. Refere-se ao mundo através de significações, e, por isso, nos permite
relacionar com a realidade através da palavra; exprime e descobre significados e, por essa
razão, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros.
A linguagem, como a percepção e a imaginação, pode comprazer-se no já dado,
já dito e já pensado, no instituído e estabelecido, ficando escrava dos preconceitos e das
ideologias. Pode bloquear nosso conhecimento e pode produzir desconhecimento (mentira
e desinformação). É assim nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade. A
linguagem é uma forma de nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com os
outros, é uma dimensão de nossa existência.
2. Aquisição da Linguagem Oral
São várias as teorias que fundamentam a aquisição da linguagem oral: a explicação
behaviorista, a inatista, a cognitivista e a sócio-interacionista. Neste texto, vamos no ater às
teorias sócio-interacionistas, deixando para outra oportunidade um detalhamento das outras
teorias.
Teorias sócio-interacionistas e cognitivistas postulam que, através das várias formas
de linguagem, a criança aprende e apreende o mundo. Linguagem, neste caso, é entendida
em toda sua diversidade. A criança fala com o olhar, com o choro, com o riso, com os
gestos, com o corpo. Desde os primórdios de sua existência, a criança estabelece sinais
comunicativos com os adultos. Nessas várias formas de se expressar, ela vai re-significando
AVSI
SAÚDE E EDUCAÇÃO
2.1
AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL
o mundo. Falar do trabalho com a linguagem na Educação Infantil é falar dessas múltiplas
linguagens que permeiam o universo infantil.
A apropriação da linguagem pela criança não é algo dado pela natureza, mas
trata-se de um processo complexo e construído nas interações sociais. Palavra e
pensamento se articulam, sendo o pensamento elemento constitutivo da comunicação e
do próprio sujeito, centro organizador e formador da atividade mental.
Vygostsky, contrariando as concepções clássicas, que consideravam a relação
pensamento e linguagem como invariável ao longo do desenvolvimento, percebia essa
conexão como originária do desenvolvimento, evoluindo ao longo dele num processo
dinâmico. Dessa forma, pensamento e linguagem têm – na filogênese e na ontogênese –
raízes genéticas diferentes, mas que se sintetizam dialeticamente no desenvolvimento.
Assim, numa concepção sociointeracionista1 da linguagem, é possível apontar uma
função comunicativa, que possibilita a construção de uma representação de mundo por
meio de um conjunto de conceitos compartilhados através dos discursos produzidos nas
interações entre sujeitos, e outra função cognitiva condicionante da construção dos
conceitos.
A linguagem oral, nessa perspectiva, não pode ser considerada o produto final do
desenvolvimento infantil, mas como produto histórico que se estrutura continuamente nas
interações da criança com o adulto ou com outras crianças. A elaboração conceitual da
palavra não ocorre naturalmente na criança, mas é desenvolvida culturalmente.
Nas crianças pequenas, o pensamento evolui sem a linguagem (pensamento préverbal). Os primeiros balbucios se formam sem o pensamento e têm como objetivo atrair a
atenção do adulto (linguagem sem pensamento). Percebe-se, assim, a presença de uma
função social da fala, desde os primeiros meses de vida da criança. Tal esforço funciona
como fundamento e suporte para o desenvolvimento da linguagem oral, cuja eficácia está
atrelada ao desempenho do adulto, à forma como ele está interagindo com a criança. Isso
porque “inicialmente o significado da palavra depende da situação em que a criança se
encontra ao ouvi-la, da pessoa que a pronuncia, da entonação de voz utilizada, do emprego
(ou não) de gestos, etc.” (Baquero, 1998, p. 96).
Segundo Vygotsky (1993), pode-se, pois, estabelecer no desenvolvimento da fala
da criança uma linguagem pré-intelectual e no desenvolvimento de seu pensamento, um
pensamento pré-lingüístico. Em um dado momento do desenvolvimento, as curvas do
pensamento pré-lingüístico e da linguagem pré-intelectual se encontram. O pensamento
se torna verbal e a linguagem intelectual. Esse é um momento relevante do desenvolvimento
humano.
O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inata, mas é
determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedades e leis
específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento
e fala (Vygotsky, 1993, p. 44).
Por volta do segundo ano, a criança começa a perceber o propósito da fala e que
cada coisa tem um nome. Desse momento em diante, passa a sentir a necessidade das
palavras, tenta aprender os signos: é a descoberta da função simbólica da palavra.
A partir do momento em que a criança descobre que tudo tem um nome, cada
novo objeto que surge representa um problema que ela resolve atribuindo-lhe um nome.
Quando lhe falta a palavra para nomear este novo objeto, ela recorre ao seu repertório
1
2.2
Esta concepção está alicerçada nas idéias propostas por Vygotsky, principalmente, entendendo
a linguagem como uma construção histórico-cultural, produto das interações humanas.
SAÚDE E EDUCAÇÃO
AVSI
AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL
generalizando os nomes já conhecidos, utilizando-os conforme o contexto. Esses
significados básicos de palavras assim adquiridos funcionarão como embriões para a
formação de conceitos novos e mais complexos.
Gradualmente, cada um desses fatores situacionais perde a relevância para a
significação da palavra; então, a criança passa a selecionar o objeto nomeado,
independentemente da situação.
À medida que a criança evolui, a função designadora da palavra se estabiliza,
permitindo a comunicação entre adultos e crianças. Contudo, o significado da palavra
ainda não está concluído, porque depende de funções mais complexas tais como a atenção,
formação de imagens, associação, comparação e inferências.
Na elaboração do significado, a criança explora o material sensorial e opera
intelectualmente sobre ele, conforme as interações que estabelece com o outro e com o
meio, num exercício contínuo de análise e generalização. De acordo com Vygotsky, o
primeiro exercício de generalização na infância se dá pelo pensamento por complexos
que está bem “colado” à realidade. Do mesmo modo, a capacidade de análise esboça-se
nos conceitos potenciais, construídos a partir do isolamento de determinado elemento da
totalidade.
Quando a criança dá conta de articular generalização e abstração, ela inicia a
elaboração de conceitos. “A palavra passa a ser usada com referência a categorias abstratas.
Sua nova função torna-se codificar a experiência, os objetos e situações do mundo em
esquemas conceituais” (Baquero, 1998, p. 101).
O recém-nascido já tem uma linguagem gestual que se define bem cedo, a partir
das respostas que obtém do adulto, principalmente da mãe. O choro, o sorriso, as
vocalizações inicialmente autônomas tornam-se carregadas da intencionalidade aos moldes
do adulto interlocutor. Assim, o bebê chora se está desconfortável; sorri a um gracejo
porque o adulto deu-lhe estes significados.
A linguagem verbal, como já dissemos, inicia-se pela imitação do adulto e evolui
inserida num contexto social, por isso é primordial definir estratégias comunicativas dentro
da creche que privilegiem a iniciativa infantil de conversação, estimulando o diálogo. O
espaço no interior dessa instituição é para a interatividade e não para a passividade infantil.
O repertório comunicativo da criança vai se ampliando, mas a linguagem verbal
não elimina ou substitui a linguagem gestual; ambas servem, outrossim, para se
reforçarem. Normalmente, “as crianças mais precoces parecem continuar a utilizar e a
enriquecer seus próprios esquemas gestuais na expressão verbal” (Albanese &
Antoniott, 1998, p. 204). As crianças que utilizam as expressões gestuais são mais
bem-sucedidas em suas interações.
É importante pensar que todo o processo não obedece a uma linearidade, é
destituído de etapas bem definidas. Significa que é inviável construir metodologias para
“escolarizar” a linguagem oral, visando a uma aprendizagem cumulativa. O possível é
envolver afetivamente a criança de modo a criar situações autênticas para expressão oral,
potencializando seu desenvolvimento.
3. Linguagem e Aprendizagem
Como vimos anteriormente, a linguagem é vista comumente como forma de
comunicação. Através do domínio da mesma, a criança começa a adquirir os conhecimentos
transmitidos pelos adultos. Por esse motivo, todo o sistema de ensino e as propostas
pedagógicas estão apoiadas nessa concepção comunicativa da linguagem, a diferença
está na relação formal que a linguagem adquire nas interações adulto/criança. O
aprendizado espontâneo e natural passado pelos pais adquire um caráter institucionalizado
e formalizado no espaço escolar.
AVSI
SAÚDE E EDUCAÇÃO
2.3
AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL
Nesse modelo, a criança precisa possuir habilidades lingüísticas que lhe permitam
receber informações verbais e assimilá-las garantindo, assim, o seu desenvolvimento. Uma
vez que a criança se utiliza da mesma linguagem que o adulto e reproduz a mesma fala,
muitas vezes o adulto pressupõe que a criança atribui os mesmos significados e possui a
mesma compreensão para as mesmas expressões; assim, vincula-se o desenvolvimento
infantil a uma somatória de conteúdos aprendidos, mas essa forma de conceber o
desenvolvimento é extremamente reduzida.
A linguagem é, sem dúvida, um importante instrumento de aprendizagem, porém,
esse é um processo que envolve vários fatores, o desenvolvimento dessa está diretamente
ligado à evolução do pensamento e à construção das estruturas da inteligência.
A partir do segundo ano de vida, como vimos anteriormente, a linguagem se
manifesta como parte de uma função simbólica mais ampla e depende de todo o
desenvolvimento construído ao longo do período sensório-motor e que servirá de
base para a evolução das futuras e complexas condutas caracterizadas pela
construção de conhecimentos práticos e pela formação de modos de comunicação
não verbais. Dessa forma, considera-se que exista um desenvolvimento cognitivo
anterior à aquisição da linguagem, mas esta também, à medida que vai se instaurando
como conduta simbólica e instrumento de apoio para o pensamento, vai influenciar o
desenvolvimento cognitivo.
Dessa forma, para uma boa aquisição da linguagem, é preciso que criança desde
as fases mais elementares, estabeleça vínculos e formas de relação que permitam que o
adulto entre em contato com ela e que ela também possa se relacionar com o adulto.
Crianças que apresentam dificuldades na formação dos conhecimentos básicos já na fase
sensório-motora tendem a apresentar um retardo na aquisição da linguagem que pode se
prolongar até a idade escolar e dificultar o processo ensino-aprendizagem.
Já na fase em que a criança tem acesso às condutas simbólicas esta deve se
movimentar no sentido de substituir ou diferenciar as formas elementares de comunicação
por formas mais avançadas e eficientes, assim, a linguagem deve ser algo atrativo do
ponto de vista cognitivo e afetivo – cabe ao adulto introduzir a criança ao mundo das
palavras, interagir com ela e dar sentido ao uso dessas palavras.
Os educadores e pais devem estar atentos para observar se a criança apresenta
algum atraso na aquisição da linguagem ou no seu desenvolvimento: aos dois anos, a
criança já deve ser capaz de apresentar alguma forma de comunicação verbal; aos cinco
anos, a criança já deve possuir um certo domínio da gramática, possui um vocabulário
vasto, no entanto, ainda não consolidou as noções exatas de tais palavras. Esta defasagem
entre a habilidade de usar as palavras e a capacidade de compreendê-las muitas vezes
leva o adulto a imaginar que pode propor conteúdos complexos demais para a criança.
Portanto, apesar de a criança progredir rapidamente no mundo da linguagem, esse é um
conhecimento intuitivo, prático, e só progressivamente será conceituado transformandose em conhecimento metalingüístico.
Crianças com atrasos na aquisição da linguagem tendem a apresentar também
dificuldades ao nível articulatório, tendo necessidade de serem auxiliadas tanto no
desenvolvimento da linguagem quanto na aquisição dos fonemas.
No desenvolvimento normal da fala, existe uma variedade de possibilidades,
crianças que ainda muito novas adquirem todos os fonemas e dominam a fala, outras
demoram mais para chegar a esse ponto; cinco anos é a idade esperada para que as
crianças dominem todos os sons da fala, algumas crianças demoram um pouco mais,
sendo assim, 6 anos é o tempo limite para essa aquisição.
Os distúrbios da fala podem se configurar de diversas maneiras e ter diferentes
causas. Quando há dificuldades articulatórias, a criança deve ser encaminhada para
avaliação apropriada.
2.4
SAÚDE E EDUCAÇÃO
AVSI
AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL
É importante ressaltar, ainda, a necessidade de uma boa avaliação das crianças
com dificuldades na fala para verificar se esta dificuldade está somente na fala ou se é
uma alteração mais ampla na linguagem ou no desenvolvimento cognitivo. Nesses casos,
é apropriado encaminhar a criança para atendimento fonoaudiológico.
Uma vez que a linguagem é veículo de adaptação da criança ao meio, é importante
cuidar adequadamente de todo tipo de alteração para que estas não gerem desadaptações,
como é o caso de crianças com pequenas dificuldades de fala que se isolam e fogem do
contato com as pessoas.
O ambiente em que a criança vive atua diretamente na evolução da linguagem,
dessa forma, algumas condições sociais podem ser, assim, descritas:
• Modelos adequados de linguagem: a criança constrói sua linguagem a partir de modelos
lingüísticos fornecidos pelas pessoas com quem convive; a partir da interação através
da linguagem do outro, ela constrói sua própria linguagem. Sendo assim, ela pode ter
bons modelos ou maus modelos.
• Linguagem como um fato significativo para a criança: a atividade mental da criança
depende de sua experiência, de sua atuação sobre o objeto a ser conhecido. É essa
possibilidade de ação que torna as coisas significativas, incluindo a linguagem. A
linguagem do adulto pode tornar-se significativa para a criança na medida em que lhe
seja acessível, assimilável, que se refira a coisas com as quais ela possa se relacionar e
compreender.
• Interesse do adulto por aquilo que a criança quer expressar: o interesse do adulto motiva
a criança a se expor, e quanto mais ela desejar se comunicar mais ela irá buscar recursos
lingüísticos apropriados para se fazer compreender.
• Compreensão das dificuldades naturais da criança e valorização do seu esforço para
crescer: a construção da linguagem não é um processo simples e fácil, portanto, as
crianças têm dificuldades e acabam cometendo muitos enganos, o que deve ser
compreendido, o adulto deve cuidar para não ter reações exageradas frente às
dificuldades, como, por exemplo, o procedimento excessivo de correção.
• Situações sistemáticas de vivência do simbolismo da linguagem: a linguagem é uma
conduta simbólica, existindo, assim, situações favoráveis para o exercício dessa atividade
representativa envolvendo a fantasia e a imaginação, como ler e ouvir histórias e situações
de jogos simbólicos.
Por fim, lembremo-nos de que desenvolvimento cognitivo é um processo de trocas
entre o sujeito e o meio formando, assim, a inteligência (estruturas que vão sendo
construídas na medida em que atuam sobre o meio e interagem com ele). Assim, a escola
tem um papel muito importante nesse processo, pois é através da educação que o indivíduo
terá acesso à cultura, ao conhecimento. Nesse contexto, a linguagem torna-se veículo
privilegiado do conhecimento e é muitas vezes usada no processo ensino-aprendizagem
de forma equivocada, perdendo o seu papel de instrumento de pensamento e significação
e transformando-se em instrumento de uma memorização vazia de significado. Lembremos
que é necessário desenvolver o raciocínio da criança e não apenas a memória.
A linguagem é a via através da qual o sujeito pode se colocar em relação ao outro,
mas é a inteligência, enquanto estrutura de compreensão do sujeito, que pode regular
essa interação.
4. Linguagem Oral no Contexto da Creche e da Pré-escola
No contexto da creche e da pré-escola, de forma semelhante a outros contextos
onde a criança se insere, a palavra do outro ajuda a elaborar o significado de novas palavras.
Sendo assim, o desenvolvimento da criança está intrinsecamente aliado às
interações que ela puder estabelecer enquanto interlocutora. O papel da creche e da pré-
AVSI
SAÚDE E EDUCAÇÃO
2.5
AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL
escola é oferecer à criança um ambiente aconchegante onde ela possa estabelecer uma
forte relação afetiva com os adultos e com outras crianças, conversando, cantando, ouvindo
e contando histórias freqüentemente, o que contribuirá para o desenvolvimento da
linguagem oral.
Desenvolver a linguagem oral da criança implica também em contemplar diferentes
linguagens no contexto da creche, uma vez que estas constituem o aparato que permite à
criança desvendar seu entorno e construir sua representação de mundo. Tanto o cotidiano
da creche quanto o da pré-escola são ricos em situações em que a brincadeira, a música, a
dança, a conversa e o jogo podem fluir de forma bem natural, na entrada, na hora do lanche,
do banho e das brincadeiras em todos os momentos do dia, tornando-se motivação para o
desenvolvimento da linguagem verbal.
É interessante lembrar que a creche tem uma função especial no desenvolvimento
da linguagem verbal, mas que não é exclusiva dela. A parceria com a família cria uma
riqueza de interações para a criança, que não seria possível num trabalho isolado da primeira
instituição. Existem pesquisas que elucidam, de certa maneira, os contrastes entre as
crianças que ficam nas creches e aquelas que só têm a convivência familiar. Em termos de
linguagem oral, a diferença não é quantitativa, mas qualitativa: crianças que ficam em casa
são mais centradas em si mesmas e exprimem desejos de posse. As crianças que ficam
em creches falam mais sobre eventos ou temas gerais. Essa diferença inicial, entretanto,
tende a desaparecer com a idade.
No contexto atual, em que a permanência das crianças em creches tornou-se
uma contingência social, a educação infantil precisa conhecer e incentivar a capacidade
comunicativa da criança, propiciar situações de jogos em pequenos grupos, favorecer as
interações entre crianças de diferentes idades e “conceder a fala à criança”. Além de facilitar
a aprendizagem do sistema lingüístico como tal, suas regras e conteúdo, é importante que
o educador transmita à criança as regras de uso da comunicação, ou seja, as convenções
sociais.
O profissional da creche na atualidade precisa demonstrar algumas competências
que antes não eram exigidas: um saber técnico que garanta minimamente o bem-estar
físico e cognitivo da criança, uma sensibilidade que favoreça e estimule o convívio e a
interação com e entre as crianças.
Os aspectos emocionais e intelectuais da infância têm uma relação de
interdependência com a aprendizagem e o desenvolvimento; por isso, a prioridade do
lúdico, especialmente quando se fala em linguagem oral. Os brinquedos cantados, os
jogos, o faz-de-conta, a conversa, a caixa-surpresa e as entrevistas são atividades
indispensáveis para desenvolver a linguagem: a criança aprende a falar, falando!
Torna-se necessário, nesse novo contexto, que o adulto saia um pouco de cena,
permitindo que as crianças tentem resolver seus conflitos e que descubram formas mais
apropriadas de se comunicar.
5. Considerações Finais
A aquisição da linguagem oral, geralmente, se dá de maneira informal, envolvendo
várias operações complexas. A criança aprende a falar para satisfazer a uma necessidade
de comunicação. As pessoas que convivem em seu meio naturalmente lhe transmitem o
código de representação da fala por elas utilizado, sem possuírem para isso um método.
A nossa intenção, neste ensaio, foi realçar a importância e a necessidade de
possibilitar à criança momentos que privilegiem a linguagem oral em todos os contextos,
principalmente na creche e escolas infantis, pois, ao apropriar-se dessa forma de linguagem,
a criança consegue elaborar e expressar seu pensamento mais claramente, o que favorece
as interlocuções com os grupos à sua volta. De acordo com Rego (1998), “o domínio da
2.6
SAÚDE E EDUCAÇÃO
AVSI
AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL
linguagem promove mudanças radicais na criança, principalmente no seu modo de se
relacionar com o seu meio, pois possibilita novas formas de comunicação com os indivíduos
e de organização de seu modo de agir e pensar” (p. 67-68).
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AVSI
SAÚDE E EDUCAÇÃO
2.7
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL1
1. Introdução
Vários motivos nos levam a considerar a saúde como um dos temas importantes a
serem enfrentados dentro de uma creche ou centro infantil. Não se trata simplesmente da
preocupação que aparece todos os dias nos centros educativos – problemas de crianças que
ficam doentes, caem e machucam, têm dor ou febre, faltam muito porque vão sempre ao
médico, não crescem direito –, nem que é necessário um crescimento e um desenvolvimento
adequados para que a criança possa aprender o que é ensinado a ela diariamente.
Consideramos o processo educativo como introdução a uma realidade total em que
saúde e doença não têm como ponto de referência exclusivo a avaliação médicobiológica (não se trata simplesmente de ir ao médico e tomar remédio para curar
a doença), mas a pessoa, os objetivos perseguidos por ela e as possibilidades
que são oferecidas a ela para realizar plenamente as potencialidades da existência
(Cesana, 2000, p. 41).
Isso nos ajuda a compreender o que seja a saúde e, portanto, os cuidados de
saúde necessários.
A Organização Mundial de Saúde – OMS – define a saúde “não simplesmente
como ausência de doença, mas como o estado de completo bem-estar físico, mental e
social” (p. 51). Isto é, não basta não ter doenças. Para que a criança seja saudável é
necessário também um bom ambiente na sala de aula, pessoas que queiram bem a ela,
uma boa alimentação, jogar bola ou cantar, alguém que ensine a ela as coisas importantes
na vida, ter bons relacionamentos com as outras crianças e com seus familiares, ter
condições de moradia adequadas, uma boa vizinhança e tantas outras coisas.
1
Este texto é fruto das reflexões de Marco Antônio Bragança de Matos, médico-pediatra pela
UFMG.
AVSI
SAÚDE E EDUCAÇÃO
2.9
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
Então, podemos perceber facilmente o grande número de fatores e situações que
podem interferir na saúde da criança, seja fisicamente – germes que provocam infecções,
alimentação, escovação –, como mentalmente – situações que provocam os seus
sentimentos, afeição, segurança, capacidade de aprendizado –, ou socialmente –
relacionamentos e problemáticas na família, violência do bairro, dificuldade econômica.
Da mesma maneira, fala-se hoje em promoção da saúde, “processo necessário
para tornar as pessoas – no sentido coletivo de gente, povo – sempre mais capazes de
controlar e melhorar as próprias condições de saúde” (Carta de OHAWA, 21/03/1986).
Mas as pessoas – também as crianças – não são educadas para isso simplesmente
aprendendo regras a serem repetidas. Antes é necessário aprender um olhar sobre si
mesmas e sobre a realidade, saber o porquê de uma coisa ou outra, ter um gosto e uma
responsabilidade para com o que acontece.
A pessoa é o centro da atenção quando se fala de educação e promoção em
saúde. No nosso caso, esta pessoa é uma criança, uma criança que depende da sua mãe,
da família, do educador da creche, da comunidade em que vive e, por isso, a atenção e o
cuidado devem ser redobrados. E, se consideramos ainda o fato de grande parte dessas
crianças viverem em um contexto familiar e social de risco, a atenção e cuidados devem
ser estendidos, de alguma forma, também a estes âmbitos.
A responsabilidade nesse processo cabe a todos. A começar dos educadores
com os quais as crianças passam a maior parte do dia, mas chegando a todos aqueles
que convivem diariamente com elas.
2. Rotinas e Cuidados em Saúde Infantil
O que são rotinas e cuidados em saúde infantil?
São procedimentos realizados de maneira ordenada e habitual para promover a
vigilância do crescimento e o desenvolvimento adequados da criança, de um lado,
prevenindo contra situações que possam de alguma maneira comprometê-los e, de outro
lado, promovendo ações que possam favorecê-los.
De quem é a responsabilidade?
De todos. Todos os profissionais que acompanham a criança durante as suas
atividades na creche ou centro infantil podem vigiar a saúde da criança, primeiro porque
têm a possibilidade de observá-la e acompanhá-la e, segundo, porque são responsáveis
por cuidados da creche que podem influenciar diretamente sobre a vida da criança. É
importante também que essas rotinas e cuidados sejam organizados, tendo, sempre que
possível, pessoas capacitadas que se responsabilizem mais diretamente pelas crianças.
E a responsabilidade dos pais das crianças?
Os cuidados com a criança na creche não podem substituir os cuidados dos pais
para com os seus filhos. Pelo contrário, devem se tornar uma oportunidade para educar
também os pais.
O momento da admissão na creche ou a recepção diária ou reuniões e encontros
ou, ainda, as visitas domiciliares são momentos de diálogo com a mãe da criança, podendose conhecer melhor as suas dificuldades e necessidades, ajudando-a e orientando-a.
2.10 SAÚDE E EDUCAÇÃO
AVSI
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
Quais são os principais cuidados e rotinas e como organizá-los?
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Crescimento
Desenvolvimento
Alimentação
Vacinação
Higiene
Saúde Bucal
Doenças
Acidentes na infância
A seguir apresentaremos cada um desses cuidados e rotinas.
2.1. Crescimento
O que é?
Conjunto de alterações que acontecem no corpo da criança, dentro do tempo
(desde a concepção), que implicam no aumento da sua massa corporal.
Como pode ser acompanhado?
Através da medida do peso e do tamanho.
Como fazer para pesar?
Equipamentos de pesagem:
• Balança Pediátrica: utilizada para crianças menores de 2 anos. Capacidade máxima: 16
Kg. Possui uma escala numérica mais subdividida, proporcionando um valor mais
apurado e sensível às possíveis variações de ganho ou perda de peso, comuns nesta
faixa etária.
• Balança Plataforma ou Clínica: utilizada para crianças maiores de 2 anos até a idade
adulta.
• Balanças Eletrônicas.
Como pesar?
• A criança menor de 2 anos deve estar sem roupas e sem sapatos. As maiores deverão
usar o mínimo de roupa possível (cueca, calcinha) e sem sapatos.
• Verificar se o braço da balança está no ponto médio, isto é, se as agulhas estão niveladas.
Em caso negativo deverá ser feito o nivelamento utilizando o calibrador.
• Colocar a criança no centro da balança.
• Mover os cursores sobre a escala numérica, primeiro o maior (quilo) e depois o menor
(gramas), até que as agulhas permaneçam niveladas.
• Realizar a leitura do peso. O profissional deve estar de frente para a balança.
• Anotar o peso.
• Travar a balança. Esta operação é fundamental, pois evita que a mola da balança trabalhe
sem necessidade, assegurando o bom funcionamento do equipamento.
• Retirar a criança da balança.
• Retornar os cursores ao zero da escala numérica.
Como fazer para medir o tamanho?
Instrumentos:
• Fita métrica com divisões em cm e subdivisões em mm e um esquadro de madeira com
um ângulo de 90°.
AVSI
SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.11
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
• Régua métrica.
Como medir?
• A criança deve estar descalça e sem presilhas, passadores, bonés ou outros objetos na
cabeça.
• Fixar a fita métrica de baixo para cima (com o zero na parte de baixo) em uma superfície
plana. Se for uma parede, não deve haver rodapés.
• Encostar as costas da criança no local onde está fixada a fita. A criança deve permanecer
com os braços estendidos ao longo do corpo, os pés juntos e calcanhares, glúteos e
ombros tocando a superfície da parede; deve permanecer reta, olhando para a frente.
• Manter a criança nesta posição, fazendo uma leve pressão para cima a fim de manter a
cabeça ereta, e sobre os joelhos e calcanhares, mantendo-os na posição correta.
• Deslizar o esquadro sobre a fita, até tocar a cabeça da criança.
• Fazer a leitura da medida na fita métrica.
• Anotar a medida.
• Para crianças menores, que ainda não ficam em pé, poderá ser usada uma régua métrica.
Neste caso a criança deve ser deitada em uma superfície horizontal, firme e dura, com
o corpo todo encostado sobre a superfície, joelhos estendidos, cabeça reta, olhando
para cima. A base fixa da régua deve ser encostada na cabeça da criança. Aproximar a
base móvel até tocar os calcanhares. Fazer a leitura e anotar a medida.
Como fazer a anotação no gráfico de crescimento?
Antes de tudo, prestar atenção porque existem os gráficos para o peso e os gráficos
para a estatura. Esses gráficos cruzam o peso ou a medida da criança com a sua idade,
em meses ou anos.
Marcar com uma bolinha o cruzamento entre a linha da idade e o peso ou medida.
Quando forem realizadas anotações subseqüentes, unir as marcas formando a curva do
crescimento da criança.
A curva do crescimento deve ser avaliada (se adequada ou não), como indicado
no Cartão da Criança: Bom (linha subindo, o peso está aumentando), Perigo (linha
horizontal; o peso parou de aumentar) e Grande perigo (linha descendo; o peso está
diminuindo).
Deverão ser marcadas no gráfico também as intercorrências como D (diarréia), P
(pneumonia), O (outra doença) e H (hospitalização), situações que levam à perda de peso.
Quando pesar e medir a criança?
• Crianças até 2 anos: mensalmente
• de 2 a 4 anos: de 2 em 2 meses
Em casos de doenças, hospitalização ou desnutrição, a criança deverá ser pesada
mais freqüentemente, independentemente da idade, até que a sua curva de crescimento
se torne novamente regular.
As crianças que apresentarem uma curva de crescimento muito irregular, ou abaixo
do percentil 10, ou perdas de peso subseqüentes, deverão ter uma atenção individualizada
e ser encaminhadas para uma avaliação no serviço de saúde.
2.12 SAÚDE E EDUCAÇÃO
AVSI
AVSI
Idade
0 a 1 ano
Maiores
de 1 ano
1º REFORÇO
(1a 3m)
2º REFORÇO
(5 anos)
1º REFORÇO
(1a 3m)
2º REFORÇO
(5 anos)
Tríplice
Tétano
Difteria
Coqueluche
OBSERVAÇÃO: calendário de vacinação fixado pela Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais em 2002
REFORÇO
(10 anos)
3ª DOSE
(6 meses)
3ª DOSE
(6 meses
após)
3ª DOSE
(6 meses)
1ª DOSE
(2 meses)
2ª DOSE
(4 meses)
1ª DOSE
(1ª semana)
Tetravalente
Tétano
Difteria
Coqueluche
Hemófilo B
2ª DOSE
(1 mês após)
1ª DOSE
(2 meses)
1ª DOSE
(1ª semana)
Hepatite B
2ª DOSE
(4 meses)
Sabim
Paralisia Infantil
BCG
Tuberculose
DOSE ÚNICA
(1 ano)
Triviral (Mmr)
Sarampo
Rubéola
Caxumba
OUTRAS
1ª DOSE
(1 ano)
Febre Amarela
Nome: _____________________________________________________________ Data de nascimento: ___/___/___
QUADRO VACINAL
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.13
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
2.2. Desenvolvimento
O que é?
Conjunto de mudanças que acontecem na criança na medida em que ela cresce
em peso e tamanho. São habilidades e capacidades que ela vai adquirindo, como, por
exemplo: falar, andar, contar uma história, repetir gestos que vê uma outra pessoa fazer,
cantar, fazer contas etc. Outras mudanças dizem respeito à sua personalidade,
temperamentos, hábitos e capacidade de se relacionar.
Como pode ser acompanhado?
Através da observação da criança e comparação com tabelas de desenvolvimento.
Como fazer?
Modelos de tabelas de desenvolvimento e como usá-las:
• Cartão da Criança – indica habilidades e capacidades e a idade em que a maioria das
crianças já deveria tê-las adquirido (ex: 6 meses: Vira sem errar para o lado do barulho
ou 1 ano: Fala duas palavras). Marcar, no espaço apropriado, a idade em que a criança
adquiriu aquela determinada habilidade ou capacidade.
• Ficha de acompanhamento do desenvolvimento – indica os marcos do desenvolvimento
(ou resposta esperada), nas várias idades e a faixa de idade (quadros escuros) em que
estes marcos estão presentes (ex: abre e fecha os braços em resposta à estimulação –
reflexo de Moro: presente de 1 a 4 meses) ou em que a criança deveria adquirir a
capacidade ou habilidade (ex: senta-se sem apoio: de 7 a 12 meses). Marcar no espaço
referente à idade na data da avaliação os sinais P (presente), A (ausente) ou NV (não
verificado).
2.14 SAÚDE E EDUCAÇÃO
AVSI
AVSI
6 meses
4 meses
2 meses
1 mês
ÉPOCA
DA
CONSULTA
Vira a cabeça na direção de uma voz ou um objeto sonoro
Segura e transfere objetos de uma mão para a outra
Levantada pelos braços ajuda com o corpo
Emite sons – vocaliza
Alcança e pega objetos pequenos
Colocada de bruços, levanta e sustenta a cabeça apoiando-se no
antebraço
Fixa e acompanha objetos em seu campo visual
Sorri espontaneamente
Colocada de bruço, levanta a cabeça momentaneamente
Olha para as pessoas que a observam
Postura: barriga para cima, braços fletidos, cabeça lateralizada
Abre e fecha os braços em resposta à estimulação (reflexo de Moro)
MARCOS DO DESENVOLVIMENTO
(RESPOSTA ESPERADA)
Nome: _________________________________________________________
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Idade (meses)
Data de nascimento: ___/___/___
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.15
2.16 SAÚDE E EDUCAÇÃO
2 anos
18 meses
ÉPOCA
DA
CONSULTA
12 meses
9 meses
ÉPOCA
DA
CONSULTA
Diz seu próprio nome
Em companhia de outras crianças brinca isoladamente
Corre e/ou sobe degraus baixos
Tira qualquer peça do vestuário
Combina pelo menos duas palavras
Anda sozinha, raramente cai
MARCOS DO DESENVOLVIMENTO
(RESPOSTA ESPERADA)
Emprega pelo menos uma palavra com sentido
Faz gestos com a mão e a cabeça (de tchau, de não etc.), bate palmas
Anda com apoio
Responde diferentemente a pessoas familiares e estranhas
Arrasta-se ou engatinha
Senta-se sem apoio
MARCOS DO DESENVOLVIMENTO
(RESPOSTA ESPERADA)
Nome: _________________________________________________________
13
14
15
18
Idade (meses)
21
2
3
4
5
Idade (anos)
6
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Idade (meses)
Data de nascimento: ___/___/___
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
AVSI
AVSI
5 anos
4 anos
3 anos
ÉPOCA
DA
CONSULTA
P = PRESENTE
A = AUSENTE
Pede ajuda quando necessário
Veste-se sozinha
NV = NÃO VERIFICADO
Pula alternadamente com um e outro pé
Reconhece mais de duas cores
Brinca com outras crianças
Pula sobre um só pé
Veste-se com auxílio
Usa frases
Fica sobre um pé momentaneamente
MARCOS DO DESENVOLVIMENTO
(RESPOSTA ESPERADA)
Nome: _________________________________________________________
13
14
15
18
Idade (meses)
21
2
3
4
5
Idade (anos)
Data de nascimento: ___/___/___
6
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.17
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
Avaliação do desenvolvimento e conduta:
A partir da comparação da idade em que a criança adquiriu determinada habilidade
ou capacidade com a idade, indicada nas tabelas, em que ela deveria adquiri-las, verificase se o desenvolvimento está adequado ou não. Se existem desvios, a criança deverá ser
encaminhada ao serviço de saúde.
No desenvolvimento da criança é necessário estar atentos ao controle de
esfíncteres: idade para início (1 ano e 6 meses) e métodos de estimulação.
2.3. Alimentação
O que é?
Processo pelo qual o organismo recebe as substâncias – nutrientes –
indispensáveis para a manutenção da vida, crescimento, funcionamento normal dos órgãos
e produção de energia.
Quais os tipos de alimentos?
• Energéticos: são os carboidratos e lipídios. São aqueles que dão energia, calor e força
para andar, falar, trabalhar. Exemplo de alimentos energéticos: mel, melado, rapadura,
arroz, milho, feijão, banha, óleo, abóbora, banana, farinha de trigo e alimentos que
nascem embaixo da terra, como a batata.
• Construtores: são as proteínas. Como o próprio nome indica, elas vão construir a base
que nos ajudará a crescer e manter o corpo saudável. As proteínas vão nos ajudar na
formação do nosso organismo. Exemplo de alimentos construtores: carnes de modo
geral, ovos, queijo, leite, bucho de porco ou de boi, coração, rim, feijão, soja.
• Protetores ou reguladores: são as vitaminas e sais minerais. Têm como função regular
o bom andamento de todas as partes do corpo, sendo fundamentais para a defesa
contra possíveis doenças. Exemplo de alimentos protetores: verduras (alface, couve,
repolho, almeirão, espinafre, ora-pro-nobis), legumes (tomate, cenoura, pimentão,
chuchu, abobrinha, beterraba, pepino), frutas (banana, laranja, limão, mamão, goiaba,
abacaxi, abacate, caqui, manga, tangerina, melancia, jabuticaba).
O que fazer para ter uma boa alimentação?
São necessários:
• Balanço nutricional adequado: trata-se de uma distribuição e uso dos alimentos feita de
tal maneira a fornecer todos os nutrientes necessários: energéticos, construtores e
protetores ou reguladores.
• Hábito saudável: trata-se de uma modalidade de se alimentar com relação a horários,
intervalos, quantidade, cardápio, mastigação dos alimentos, postura.
Dicas para uma boa alimentação
a) A alimentação deve atender às necessidades energéticas da criança, ou seja, deve
satisfazer o seu apetite e permitir um crescimento adequado. Através da medida do
peso da criança, pode-se verificar se a quantidade de alimento é suficiente ou não: se a
criança está ganhando peso corretamente, se a sua curva de crescimento se desloca
com regularidade é porque a criança está se alimentando em quantidade suficiente.
b) Deve ser equilibrada, ou seja, deve responder, além das necessidades de proteína,
carboidratos e gorduras, às necessidades de vitaminas e sais minerais.
c) Deve-se estar atentos ao hábito alimentar da criança: horários, modo, higiene.
2.18 SAÚDE E EDUCAÇÃO
AVSI
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
d) Muitas vezes, a última refeição na creche é feita antes das 16:00h. Por isso, deve-se
estar atentos à alimentação que a criança recebe em casa, evitando-se períodos
prolongados de jejum.
e) Deve ser adequada à idade da criança, à sua capacidade digestiva e às suas capacidades
e habilidades.
f) Deve-se equilibrar a tendência laxante ou constipante dos alimentos.
g) Deve-se estar atentos à alimentação no primeiro ano de vida. Nesta fase, o crescimento
e desenvolvimento da criança é bastante acentuado, principalmente no que se refere
ao sistema nervoso. Além disso, é um período em que a criança é muito susceptível às
doenças que, quando ocorrem, espoliam seu organismo.
h) Deve-se estimular as mães dos menores de seis meses ao aleitamento materno. Mesmo
que elas tenham necessidade de trabalhar, estratégias podem ser utilizadas, como a
retirada do leite, amamentação nos intervalos do trabalho, amamentação no período da
noite e outras.
i) Os bebês não devem tomar sozinhos as mamadeiras; estas devem ser dadas no colo,
a fim de se prevenir acidentes e possibilitar o estabelecimento de uma relação afetiva
com a pessoa que a alimenta.
j) O uso da colher se inicia quando forem oferecidos alimentos pastosos: mingaus, papas
e sopas.
k) Os alimentos sólidos serão introduzidos gradativamente e quando as crianças tiverem
condições de se alimentarem sozinhas; as frutas, verduras, pães, biscoitos etc. podem
ser dados em suas próprias mãos visando a estimular o processo de mastigação e
digestão, bem como favorecer sua independência no ato de alimentar-se.
l) O modo de apresentar os alimentos e o ambiente calmo e alegre no momento das
refeições ajudam a estimular o apetite das crianças, como também servem para educálas quanto aos hábitos alimentares.
m)Deve ser assegurada à criança a repetição e a oportunidade de conhecer e escolher os
alimentos, a seu gosto, e não forçá-la a preferências e tabus alimentares do adulto.
Convém lembrar, ainda, que a alimentação não pode ser utilizada como prêmio ou
castigo, inclusive na tentativa de resolver problemas de disciplina.
n) A ajuda da nutricionista é muito importante para se elaborar o cardápio da creche.
2.4. Imunização
O que é?
Procedimento pelo qual a criança, recebendo a vacina, desenvolve uma proteção
contra determinados tipos de doenças.
Quais as vacinas que toda criança deve tomar?
• BCG: contra a Tuberculose
• Anti-Pólio – SABIN (gotinha): contra Paralisia Infantil
• DPT – TRÍPLICE: contra Difteria (crupe), Coqueluche e Tétano
• Anti HEMÓFILO B: contra a infecção pela bactéria Haemophilus influenzae B
• TETRAVALENTE: contra Difteria (crupe), Coqueluche, Tétano e Hemófilo
• Anti SARAMPO: contra Sarampo
• MMR - TRÍPLICE VIRAL: contra Sarampo, Caxumba e Rubéola
• Anti HEPATITE B: contra a Hepatite do tipo B
• Anti FEBRE AMARELA: contra Febre Amarela
Com que idade a criança deve tomar estas vacinas?
O quadro de vacinas indica o tipo e a idade em que devem ser tomadas.
AVSI
SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.19
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
Como conferir o cartão de vacina da criança?
Normalmente, as Unidades de Saúde carimbam e assinalam com caneta a data
em que foi aplicada a vacina e a lápis a data ou idade para a qual está agendada a dose
subseqüente.
A maioria das doses são aplicadas até a idade de 1 ano. Depois dessa idade,
seguem-se intervalos longos até os reforços de 5 e 10 anos. Deve-se estar atentos às
campanhas realizadas pelo governo.
Quando a criança for admitida na creche, deverá ser aberta uma cópia do cartão
de vacina que contêm as vacinas e a idade de aplicação. Nessa ocasião marcar na cópia
as vacinas já aplicadas. A partir daí, esta cópia deverá ser atualizada mensalmente até a
idade de 1 ano. Se a criança ultrapassou a idade indicada, deve-se solicitar à mãe o Cartão
de Vacina para conferir se já foi ou não aplicada aquela dose. Se sim, faz-se anotação; se
não encaminha-se a criança para o serviço de saúde.
Para crianças maiores de 1 ano, com a vacinação em dia, não é necessário que a
conferência seja mensal. Poderá ser feita quando a criança alcançar a idade de 5 anos.
2.5. Higiene
O que é?
Conjunto de medidas que visam à remoção da sujeira, permitindo a conservação
da saúde e prevenção de doenças.
Quais os cuidados de higiene mais importantes?
A higiene deve ser pessoal, dos vestuários e utensílios e do ambiente. Salientamos
aqui alguns cuidados com a higiene pessoal da criança:
• Manter as mãos das crianças limpas: na medida em que a criança cresce, ela pode ser
educada a lavar as mãos com água e sabão antes de comer, após a ida ao banheiro ou
após o contato com objetos ou superfícies sujas.
• Unhas: o corte das unhas pode ser orientado para que as mães o façam em casa. As
unhas grandes acumulam mais sujeiras e facilitam a contaminação da criança, além de
fazer com que elas se arranhem com facilidade.
• Banho: o banho diário na entidade para crianças até 2 anos é essencial. É importante
que cada criança tenha a sua toalha. Os cabelos devem ser lavados regularmente
e, para penteá-los, o ideal é que cada uma tenha o seu pente. Se não for possível,
lave bem o pente de uma criança para a outra para evitar a transmissão de piolhos
e lêndeas.
• Troca de fraldas: todo o material necessário para a troca de fralda deve estar à mão
para que não se deixe a criança sozinha na bancada. Ao trocar a criança, retire o excesso
de fezes, lave a pele com água e sabão, enxágüe bem para evitar assaduras e coloque
a fralda limpa. Evite que a criança manipule a fralda suja. Nas meninas a higiene deve
ser feita da frente para trás, ou seja, no sentido da vagina para o ânus.
2.6. Saúde Bucal
Por que é importante?
Porque os dentes, além de desempenhar uma função estética importante (o sorriso
bonito), têm o grande papel de iniciar o processo da digestão da maioria dos alimentos,
através do processo de mastigação. Além disso, este cuidado é a maneira para se evitar a
cárie, uma das causas de maior desconforto da criança: a dor de dente.
2.20 SAÚDE E EDUCAÇÃO
AVSI
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
O que é a cárie?
É a doença mais comum que pode atingir os dentes. A cárie aparece por causa
da placa bacteriana, uma película de micróbios que se forma sobre os dentes e perto das
gengivas. Essas bactérias se alimentam de resíduos de alimentos, principalmente o açúcar,
transformando-os em ácidos que começam um processo de corrosão do esmalte. A área
do esmalte que foi machucada por este processo se chama cárie. Se ela não for tratada a
tempo, o processo de corrosão continua e a lesão se aprofunda, podendo atingir o canal,
o que pode levar à perda do dente.
Como prevenir?
• Higiene: Escovar os dentes depois das refeições e antes de dormir é fundamental para
remover e evitar a nova formação da placa de bactérias que provoca a cárie.
• Dieta: Alimentos ricos em açúcar, como doces, chocolates e refrigerantes, convertemse facilmente nos ácidos que atacam os dentes. Deve ser feita, individual e coletivamente,
a orientação de uma dieta que, considerando hábitos e condições socioeconômicas,
seja equilibrada e variada, evitando os açúcares e favorecendo a ingestão de fibras,
que diminuem a acidez da boca. Também a ingestão de água deve ser estimulada,
porque ela torna a saliva menos ácida, auxiliando a higiene dos dentes.
• Flúor: Esta substância combate a perda de minerais do dente. É adicionada nas águas
de abastecimento público de muitas cidades e também na maior parte das marcas de
dentifrícios usados na escovação.
Quantas vezes é necessário escovar os dentes?
Devem ser feitas pelo menos três escovações por dia, depois das principais
refeições: café da manhã, almoço e jantar. Mas o ideal é limpar os dentes após a mastigação
de qualquer alimento.
Quanto tempo deve durar a escovação?
O que importa é a qualidade da escovação. Pelo menos uma das vezes deve
durar de 10 a 15 minutos. É importante lembrar que, para as crianças maiores, deve ser
ensinado o hábito de usar o fio dental antes da escovação, já que muitos resíduos
alimentares se alojam entre os dentes, local que a escova não alcança.
Qual é o melhor tipo de escova de dentes?
Aquela que tem a cabeça pequena e cerdas arredondadas para não machucar a
gengiva. Para crianças pequenas, as melhores são as de cerdas macias e uniformes. Vale
lembrar que a escova deve ser trocada pelo menos de 3 em 3 meses, já que o desgaste
das cerdas compromete a qualidade da escovação. É importante que cada criança tenha
a sua escova, que deve ser lavada bem com água corrente e guardada em lugar limpo e
arejado, de preferência seca para evitar o crescimento de fungos.
Qual a pasta de dente ideal?
A mais indicada é a que contém flúor. Não há diferença importante entre pasta e
gel dental. Recomenda-se colocar pouco creme dental na escova, já que o excesso de
flúor pode levar a uma alteração no esmalte chamada fluorose, que provoca manchas nos
dentes.
Quando iniciar a escovação?
A higiene bucal é recomendada desde os primeiros dias de vida, fazendo limpeza
diária com gaze ou uma fralda embebida em água limpa. Com o surgimento dos primeiros
dentes, a higiene deve ser realizada com escovas bem macias.
AVSI
SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.21
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
A mamadeira noturna provoca cáries?
Esta é uma orientação importante para as mães e responsáveis da criança. Não
se deve acostumar a criança a tomar mamadeira durante a madrugada porque os resíduos
do leite passarão muito tempo na boca, provocando descalcificações e o aparecimento
de cáries. Deve-se insistir na amamentação natural, já que o leite materno é fundamental à
formação de uma dentição saída.
Como fazer uma boa escovação?
Comece sempre da gengiva em direção ao dente. Na parte de cima, com manobras
verticais, escove de cima para baixo. Na parte de baixo, também na vertical, movimente a
escova de baixo para cima. Repita a operação na parte interna dos dentes, em cima e
embaixo. Na superfície do dente, o movimento mais indicado é o vaivém.
2.7. Doenças
Quais as doenças mais comuns nas crianças?
Gripe, diarréia, verminose, pediculose (piolho), escabiose (sarna), varicela
(catapora), impetigo (broto, pereba), conjuntivite, desnutrição.
Como saber quando a criança está doente?
Todas as vezes que uma criança não está indo muito bem, ela merece uma atenção
especial, principalmente nas situações de risco. Os sinais e sintomas mais comuns das
doenças são: febre, falta de apetite (inapetência), vômitos, diarréia, choro forte, empolação
(exantema), hipoatividade, tosse, perda de peso. É importante observar a duração e
intensidade desses sinais e sintomas: quanto maior a duração e intensidade, maior a
gravidade da situação. Esses sinais e sintomas podem ser relatados pela mãe ou
observados na própria creche. Crianças maiores são capazes de fazer queixas mais precisas
como, por exemplo, dor de garganta ou vontade de vomitar ou episódios de diarréia.
Deve-se ficar atentos aos sinais de gravidade: quanto mais intenso e duradouro o
sinal ou sintoma, mais grave pode ser a situação da criança. Ficar atentos também a sinais
de doenças infecto-contagiosas, ou seja, aquelas doenças que se espalham rapidamente.
As crianças menores de 1 ano, as crianças desnutridas e aquelas com história de infecções
de repetição são mais frágeis. Precisam de uma atenção especial.
Quais os cuidados com a criança doente?
• observação;
• hidratação mais freqüente, principalmente se houver diarréia e vômitos;
• alimentação pausada e em pequenas quantidades;
• manutenção da criança em local arejado;
• administração correta dos medicamentos (doses e horários);
• avaliação da necessidade de consulta médica;
• investigação junto à mãe sobre condições do dia anterior;
• orientação para a mãe no final do dia.
Em caso de dúvidas, sempre encaminhar ao serviço de saúde para uma avaliação
profissional.
Quais os cuidados com a administração de remédios na creche?
• Saber que criança vai ser tratada, a doença que tem, a gravidade e presenças de fatores
de risco.
• Verificar se a criança doente precisa de uma avaliação médica.
2.22 SAÚDE E EDUCAÇÃO
AVSI
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
• Com relação a crianças que já passaram por uma consulta médica: verificar receitas,
providenciar o medicamento, observar a evolução.
• É importante o envolvimento da mãe no tratamento.
• Atenção à história de alergia ou intolerância.
Como conservar os medicamentos?
• Devem ser conservados em local próprio, limpo e longe do alcance da criança.
• Deve haver uma pessoa responsável atenta, além de outras coisas, ao controle da data
de validade e à possível automedicação por parte de funcionários da creche.
Como administrar os medicamentos?
• Verificar a receita (nome da criança, nome do medicamento, dose, horários).
• Usar medidas próprias ou seringas (atenção à conservação; proceder à desinfecção
como para mamadeiras).
• Fazer anotação.
• Verificar sempre se a criança está recebendo corretamente as doses administradas em
casa, durante a noite ou fim de semana.
2.8. Acidentes na Infância
Quais os acidentes mais comuns na infância?
De maneira geral, os acidentes mais comuns são: asfixia, queimaduras,
afogamento, quedas, envenenamento, corpo estranho. É verdade que a freqüência desses
acidentes variam de idade em idade.
Como prevenir os acidentes?
Em primeiro lugar, é necessário estar atentos à palavra prevenção. Para se prevenir
acidentes, é necessário estar atentos à criança, observá-la nos seus movimentos e hábitos
e, sobretudo, acompanhar o desenvolvimento de novas capacidades e habilidades. Depois,
é muito importante observar atentamente o ambiente em que a criança faz suas atividades,
identificando situações que podem provocar acidentes e educando-a a se afastar do
“perigo”.
Dicas para prevenir acidentes em crianças menores de 1 ano?
• Não pense que você e seu filho estão livres dos acidentes e que estes só acontecem
com os outros.
• Verificando a água do banho com o cotovelo;
• Não ingerir alimentos quentes estando com o bebê no colo;
• Não deixar a criança sozinha na banheira ou sobre móveis, nem um minuto sequer;
• A mãe não deve dar banho no bebê, se estiver sozinha em casa e não estiver totalmente
recuperada do parto (é comum casos de mães que desmaiam enquanto banham seus
filhos e estes se afogam).
• Dê brinquedos grandes, resistentes, sem pontas ou arestas agudas e se for de tecidos
estes devem ser anti-sufocantes e anti-alérgicos.
• Mantenha alfinetes, botões, contas e outros objetos pequenos e cortantes fora do alcance
da criança.
• Afaste todos os objetos sufocantes como sacos plásticos, fios, travesseiros.
• Não deixe ao alcance do bebê alimentos quentes, fios elétricos, garrafas térmicas, tábuas
de passar roupas, ferros de passar roupa, agentes de limpeza, remédios, tomadas
desprotegidas.
• Não tenha álcool líquido e ácidos em casa.
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SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.23
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
• Escolha bem o colchão e o berço do bebê (estes devem ter medidas dentro dos padrões
de segurança), mantenha o berço longe de cortinas e venezianas.
• Não dê balões de encher para crianças nessa faixa etária.
• Mantenha todos os produtos de limpeza e perigosos nas embalagens originais e em
local alto e fechado.
• Não coloque cordões e barbantes em torno do pescoço da criança.
• Não dê pedaços grandes de alimentos que possam causar sufocamento.
• Coloque portas ou cercas nas escadas.
• Baixe o estrado do berço ou da cama quando a criança começar a ficar sentada ou de pé.
• Remova os móveis baixos e de bordas cortantes da área de brinquedo da criança.
• Mantenha a porta de banheiros sempre fechadas.
• Não leve o bebê no colo durante viagens em automóveis, use sempre a cadeirinha
própria.
Dicas para prevenir acidentes em crianças de 1 a 6 anos?
• Bloqueie ou tranque todas as portas e janelas, caminhos que levem para escadas ou
outras áreas de perigo.
• Mantenha a porta da cozinha e do banheiro sempre fechadas quando não tiver um
adulto nestes.
• Use sempre pratos e copos de plásticos para o uso das crianças.
• Instale grades ou redes de proteção em janelas que estiverem acima do primeiro andar.
• Nunca deixe a criança sozinha na cozinha.
• Quando estiver cozinhando, mantenha os cabos das panelas sempre voltados para o
centro do fogão.
• Ensine para crianças o significado das palavras: “quente”, “machuca”, “atenção”, “não
pode” e outros comandos simples que façam a criança parar a ação que está fazendo.
• Mantenha os fios elétricos, fósforos e isqueiros, arames e eletrodomésticos fora do
alcance das crianças.
• Nunca deixe a criança sozinha em banheiras, bacias, piscinas, perto de lagos ou lagoas
por mais rasas que sejam.
• A partir do segundo ano, comece a ensinar as regras básicas de trânsito.
• Supervisione os jogos, verifique a segurança e se os brinquedos dos parquinhos são
apropriados para a idade.
• Use sempre roupas de tecidos não inflamáveis para as crianças dormirem.
• Não permita que as crianças abram torneiras de água quente.
• Coloque decalques coloridos em portas grandes de vidro.
• Tranque ferramentas e os equipamentos de jardinagem.
• Não incentive a criança a acariciar animais estranhos.
Referências Bibliográficas
CESANA, Giancarlo. Il “Ministero” della salute - note introduttive alla medicina. Firenze: Studio
Editoriale Fiorentino, 2000.
CRECHE E MANUAL DE SAÚDE. Secretaria Municipal da Família e Bem-estar Social de São Paulo, s/d.
GUIA DO LÍDER COMUNITÁRIO. Pastoral da Criança, CNBB, 11ª ed., 1992.
LEÃO, Ennio et al. Pediatria ambulatorial. Belo Horizonte: Coopmed, 1998.
MATOS, M. A. B.; FERNANDES, B. S.; FERNANDES, I. O. B. Cuidados com a saúde de crianças em
creches. Belo Horizonte: CDM, 2000.
2.24 SAÚDE E EDUCAÇÃO
AVSI
CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1946.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Carta de Otawa, 1986.
SAWAYA, Ana Lídia. Desnutrição urbana no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997.
SOLYMOS, Gisela M. Bernardes; SAWAYA, Ana Lídia (Org.). Saúde e nutrição em creches e centros
de educação infantil. São Paulo: Salus Paulista, 2002. v. 2 (Coleção Vencendo a Desnutrição)
AVSI
SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.25
O APRENDIZADO DA ARTE NA INFÂNCIA
O APRENDIZADO DA ARTE NA INFÂNCIA1
A história da educação artística das últimas décadas foi marcada por uma
pedagogia que se estruturava na livre expressão. Essa forma de entender e realizar a ação
educativa em Artes levou à formação de gerações ignorantes sobre Arte: maus produtores,
não críticos e não conhecedores.
A Escola Nova, visão pedagógica tão difundida e também tão distorcida entre
nós, foi diretamente responsável por esse estado de coisas. Adepta da pedagogia da livre
expressão, tinha por currículo uma listagem de temas e técnicas: colagem com diferentes
materiais, pintura com instrumentos diversos, desenhos, modelagem etc.
Nas escolas brasileiras de inspiração escolanovista, até hoje, a arte é compreendida
como atividade e não como disciplina. Temas e técnicas ocupam o lugar de conteúdos e
objetivos. As atividades artísticas das crianças se reduzem a uma sucessão de fazeres
onde à criança é “deixado que faça” sem nenhuma orientação ou intervenção do professor.
A criança desenha, pinta, cola, constrói, modela etc., fazendo o que pode com o que lhe é
oferecido como material de trabalho e seus recursos expressivos pessoais. A criança fica
abandonada em seu percurso de aprendizagem da arte, abandonada à própria ignorância
de indivíduo recém-chegado à cultura.
Esse jeito de entender a forma como as crianças podem e devem se relacionar
com a Arte e aprender sobre ela expressa uma polaridade entre:
• a livre expressão e uma pedagogia marcada pela diretividade;
• a atividade espontânea e a atividade cultivada;
• uma visão de arte como atividade e outra de Arte como disciplina.
Essas idéias são hoje discutíveis.
1
Este texto foi extraído de CAVALCANTE, Zélia. Arte na sala de aula. Porto Alegre: ARTMED, 1995.
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OFICINAS
3.1
O APRENDIZADO DA ARTE NA INFÂNCIA
Na passagem do século, quando a Escola Nova está sendo gestada, entendia-se
que a gênese da arte infantil era natural e universal. De lá até nossos dias, principalmente
em pesquisas mais recentes, verificou-se que a gênese da arte infantil varia nas distintas
culturas e que em cada cultura haverá diferenças, de acordo com os modelos visuais a
que a criança estiver exposta e às possibilidades interativas dos alunos. O que significa
dizer que a possibilidade de se expressar através da linguagem da Arte se desenvolve no
sujeito de acordo com suas condições internas (de desenvolvimentos) e com as condições
externas (de aprendizagem), de sua vida na cultura.
Crianças que vivem em ambientes culturais onde a Arte está presente
cotidianamente serão melhores produtores, conhecedores e críticos de Arte. Crianças
afastadas das expressões artísticas das culturas humanas poucos recursos terão para se
desenvolver nesta área de conhecimento.
Essa nova forma de reconhecer a relação das crianças com a produção artística
fomentou um novo conceito de aprendizagem e uma nova forma de ação pedagógica
onde a escola aparece como promotora:
• do fazer artístico individual (através de atividades de produção de objetos; desenhos,
pintura, colagem etc.);
• de conhecimento em relação aos princípios formais da imagem, que permitam apreciar
e desenvolver a competência de construir juízos de valor sobre imagens (através de
atividades de apreciação de produtos artísticos);
• da interação com o conhecimento socialmente acumulado (através de atividades com
História da Arte).
A educação artística da criança passa, segundo essa metodologia, por um
processo de aprendizagem amplo, que se dá tanto dentro quanto fora da escola. No entanto,
é à escola que cabe organizar, sistematizar esse aprendizado em atividades onde o aluno
possa estar tanto no lugar de quem produz, como de quem pode conhecer e apreciar sua
“herança” artística, num processo onde o fazer é retro-alimento pelo conhecimento de
outros produtores e pela possibilidade de “ler” seus produtos.
As crianças brasileiras têm acesso a expressões artísticas de diferentes produtores,
seja através da televisão, dos grafites impressos nos muros, dos artefatos vinculados a
festas populares, da arte primitiva dos produtores mais próximos à comunidade em que
vivem, e tantas outras fontes de informação. A fonte menos usual, infelizmente e
ironicamente, tem sido a escola.
Uma criança, mesmo nas zonas mais pobres das cidades, nunca está “isenta” do
contato com expressões artísticas; o que difere, entre as crianças que chegam à escola –
e isso é fundamental –, são os graus de relação que puderem estabelecer até aquele
momento com a Arte.
Hoje se sabe que a experiência de assimilação de repertório entre indivíduos que
produzem imagens faz parte das construções artísticas da infância.
Na escola, a situação de sistematização e produção conjunta favorece a reflexão
do aluno sobre a produção do outro (o igual, o produtor histórico e o contemporâneo). Por
isso, cabe à escola sistematizar as situações de aprendizagem em Arte.
Essa sistematização, se quiser contribuir verdadeiramente para a educação artística
infantil, deve se organizar a partir de propostas planejadas e dirigidas pelo professor, mas
também deve dar espaço ao momento do fazer artístico criador que, por sua natureza,
exige liberdade e decisão para que a criança construa seu percurso individual.
São propostas dirigidas, nas quais a situação de aprendizagem se organiza a
partir de um material planejado para que, na ação sobre ele, o aluno possa construir
conhecimentos sobre um determinado aspecto do conteúdo da Arte. Alguns exemplos:
• atividades de pintura, desenho, colagem etc., para as quais o professor define o material
a ser utilizado;
3.2
OFICINAS
AVSI
O APRENDIZADO DA ARTE NA INFÂNCIA
• atividades de apreciação (de trabalhos dos alunos, de outros alunos, de produtores
adultos, de produtores consagrados) em que o professor não apenas escolhe que
trabalhos apreciar, mas também dirige a apreciação, “a forma de olhar”, através de
perguntas, viés de análise etc.;
• atividades de pesquisa sobre diferentes produtores, suas biografias, escolas a que
pertenceram etc.
Nessas “atividades controladas”, o professor se coloca como um mediador/
instrutor de conhecimentos culturais; a intervenção que realiza na construção de
conhecimentos em Arte pela criança fica evidente e pode ser avaliada pela quantidade do
material que seleciona, organiza e traz para a classe.
É através dessa intervenção consciente e planejada que os alunos ficarão
familiarizados com larga faixa de materiais, ferramentas, equipamentos e técnicas; que
estudarão sobre tradições e artesãos, materiais e atitudes de artistas em seus trabalhos.
O espaço para o fazer artístico criador é aberto nas oficinas de livre escolha, onde
os alunos têm acesso a uma multiplicidade de materiais plásticos e podem decidir o que e
como realizar seu trabalho. É evidente que, nesses momentos, a presença do professor é
importante para informar às crianças as soluções técnicas adequadas ao que se propõe
fazer. Aqui, o papel intervencionista do professor se faz presente através do apoio técnico
que fornece, apoio que não deve ser confundido com “fazer pelo aluno” aquilo que não
pode “fazer direito” sozinho.
O reconhecimento, pelo professor, da importância da necessária qualidade da
intervenção que realiza junto a seus alunos é fundamental para que seus planejamentos
contemplem uma vasta gama de informações e possibilidades de produção em Artes. E
para que possa realizar esses planejamentos, o professor necessita dedicar ao
conhecimento artístico, não apenas estudando nos livros, visitando mostras e museus,
conhecendo os produtores existentes na comunidade em que vive, mas também se
colocando como um possível produtor de arte, experimentando um fazer artístico criador,
dando oportunidade ao desenvolvimento de um percurso pessoal, como o que os alunos
realizam nas oficinas.
Referência Bibliográfica
CAVALCANTE, Zélia. Arte na sala de aula. Porto Alegre: ARTMED, 1995.
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OFICINAS
3.3
LITERATURA INFANTIL
LITERATURA INFANTIL
O ato de ler é uma prática muito importante na vida das pessoas, pois vivemos em
uma sociedade na qual a leitura e a escrita são possibilidades para o desenvolvimento
social e para a realização e as conquistas pessoais.
No entanto, ler é um ato que ultrapassa o decifrar sinais gráficos e ser leitor significa
entender o significado do que se lê, ter a capacidade de explorar e extrapolar o texto lido
para a realidade cotidiana, para o mundo – aprender a ler os livros para aprender a ler a
realidade.
A escola tradicional preocupa-se muito em ensinar a leitura e a escrita sem, no
entanto, vislumbrar a função social destas. É comum encontrarmos crianças e adultos
alfabetizados que não são leitores justamente pelo fato de a leitura não ser uma prática
habitual em nossa cultura.
Por esses motivos, a literatura infantil é um grande instrumento para despertar o
gosto pela leitura. Brincar com a leitura tem a ver com o fato de lidar com a palavra como
uma entidade mágica. As ilustrações de livros abrem horizontes para a imaginação e a
percepção de elementos plásticos, cujos significados apontam, também, para
representações vividas no dia-a-dia, estimulando o leitor a imaginá-los de outras formas.
Descobrir a literatura infantil significa vê-la não apenas como um instrumento
didático ou de trabalho com as crianças, mas vê-la em todas as suas dimensões, inclusive
em admitir seu valor para o trabalho com adolescentes e adultos.
Descobrir a literatura infantil significa também se permitir voltar à infância e lembrarse de como são importantes o afeto e o aconchego junto da pessoa que nos conta a
história. Descobrir a literatura infantil é também reconhecer seu importante papel para a
alfabetização.
Trabalhar a realidade através da fantasia, dar asas à imaginação e à criatividade
dos alunos e principalmente proporcionar momentos de prazer, de muito afeto aos alunos
são características marcantes da literatura infantil. Leitor e ouvinte têm a oportunidade e a
AVSI
OFICINAS
3.5
LITERÃTURA INFANTIL
liberdade de identificar-se com as personagens, transferir angústias, trabalhar as perversões;
podem sonhar, viajar no mundo da fantasia. Como conseqüência, a criatividade se
desenvolve, trabalha-se a realidade com clareza, estimula-se a reflexão. Enquanto se
introspecta, a história fortalece o seu EU, formam-se vínculos, enfim CRESCE.
A história da literatura infantil nos mostra que, nos seus primórdios, havia muito
mais uma preocupação didático-pedagógica do que uma preocupação com o lúdico das
crianças; as histórias tinham como finalidade ensinar a moral e os bons costumes da época,
passando a ser usada também como meio de propagar a ideologia dominante.
Hoje, temos de nos preocupar em escolher bons livros para nossos leitores e não
usarmos o livro infantil – que, em seu princípio, é fonte de prazer e ludicidade – em
instrumento de avaliação e tortura dos alunos. A leitura de um livro infantil deve ser gostosa
como uma brincadeira.
Contar histórias ou simplesmente lê-las não é tarefa difícil, não é preciso ser grande
ator ou ter dotes especiais, mas basta permitir-se vivenciar os personagens dando alma a
eles. Assim, a história flui naturalmente, fica atrativa, entusiasma e emociona quem escuta.
Existindo vários gêneros na literatura infantil, é possível encontrarmos bons livros
para todo tipo de leitor, desde aquele que trata de assuntos delicados como sexo, morte,
separação, diferenças pessoais e sociais, passando por temas subjetivos como amor,
saudade, poder, até temas divertidos como brincadeiras, amizade. Enfim, o importante é
que seja um livro interessante, com bom conteúdo, bem escrito, bem estruturado em sua
narrativa e que seja do interesse do leitor.
Caso o livro seja de ilustrações, este também deve ser de boa qualidade, com
imagens bem feitas e que tenham conteúdo em sua seqüência. As gravuras devem estar
bem visíveis aos alunos em caso de uma apresentação em sala de aula, de forma que
estes possam inteirar-se de todos os detalhes que as ilustrações oferecem.
Além da narrativa com ou sem a presença do livro, é possível variar as formas de
se apresentar uma história, através de recursos como ampliações, flanelógrafos, teatros e
também explorar ao máximo as histórias através de oficinas de arte, música e produção de
textos.
Através da literatura infantil, pode-se RE-DESCOBRIR mais uma vez que, através
do afeto, da fantasia, das brincadeiras e do lúdico, o aprendizado se torna prazeroso. A
criança e também o adulto começam a ter uma percepção de mundo mais saborosa, sem
que isso signifique uma fuga da realidade, mas justamente o contrário: que se consiga
enfrentar o mundo e sua realidade de frente e sem ilusões.
Para formar futuros leitores, que sintam prazer com a literatura, é bom que se
comece cedo o contato com os livros e com o ato de ouvir histórias. Segundo Kaercher
(2001), é preciso fazer com que o livro se torne parte integrante do dia-a-dia das crianças
para se iniciar o processo de formação delas como leitores. A autora acima citada, em seu
texto E por falar em literatura, faz algumas sugestões para propiciar um prazeroso contato
com a literatura infantil desde a mais tenra idade:
• Para crianças dos 0 aos 2 anos, a possibilidade é a de propiciar o contato da criança
com o objeto livro, para que ele se torne familiar. Mais tarde, quando um adulto intervier
e contar as histórias e se contar de forma cativante, vai ajudar a criança a construir uma
concepção de livro como a de um brinquedo que vai proporcionar divertimento e emoção.
Para que a criança goste de ler, é preciso, também, que o adulto que a esteja introduzindo
nessa aventura tenha uma boa relação com a leitura, que também a julgue importante.
Com crianças nessa idade vai-se trabalhar mais através dos sentidos, assim tudo que
possa ser cheirado, ouvido, visto, tocado ou saboreado pode ser de grande importância.
Por isso, para essa faixa etária, recomendam-se livros de borracha (infláveis e coloridos)
ou livros de pano. Por esse material ser normalmente de alto custo, a autora sugere a
possibilidade do próprio adulto confeccionar o livro utilizando sacos plásticos resistentes
3.6
OFICINAS
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LITERATURA INFANTIL
que sejam “recheados de bonitas gravuras” que sejam do universo infantil como bichos,
fraldas, brinquedos etc. Costura-se bem um saquinho no outro fazendo assim o formato
de um livro que vai facilitar o manuseio pela criança. Da mesma forma outros materiais
como tecidos e retalhos podem se transformar em preciosidades nas mãos dos mais
pequenos, além destes poderem ser lavados, uma vez que crianças nessa idade levam
tudo à boca. Conforme a criança vai crescendo, os temas podem começar a tomar um
formato mais organizado com temas como a higiene, a alimentação, o brincar. Quando
a criança estiver próxima aos dois anos de idade e a aquisição da linguagem oral já
estiver mais dominada, pode-se começar a destacar as palavras, com histórias breves
e com poucos personagens e já se pode utilizar livros de papelão, com bordas
arredondadas; podem ser livros em formatos geométricos ou mesmo em formato de
animais. Se o próprio educador for confeccionar o livro, é importante tomar o cuidado
de lixar as bordas para evitar riscos às crianças. Para essa fase, o educador deve utilizar
ilustrações grandes e de fácil compreensão de forma que a criança possa recontar a
história mesmo sem o auxílio do adulto.
• Para leitores dos 3 aos 6 anos, Kaercher (2001) indica-nos o momento em que a
escrita começa a tornar-se mais interessante para a criança, momento em que as histórias
começam a ganhar um destaque especial e os momentos de leitura adquirem um caráter
especial. Nesse momento, começa-se a indicar para a criança a necessidade de
acomodar-se para escutar a história, não fazer barulhos para que todos possam ouvir e,
assim, poder visualizar o relacionamento do adulto com o livro, seu posicionamento e
como o adulto manuseia o objeto livro. Dessa forma, a criança vai construindo o seu
modelo de leitor e de leitura. A partir do terceiro ano, a criança começa a se interessar
pelos contos de fadas, e estes, por sua vez, auxiliam a criança a organizar suas vivências.
Os contos fantásticos também podem ser utilizados como desencadeador de grandes
discussões e temáticas na educação infantil. A partir dos quatro anos, as narrativas
podem ser um pouco mais longas, com maior número de personagens e com desfechos
mágicos; nesse período, as crianças também se interessam por versos rimados, que
exploram a sonoridade. Além das histórias editadas, é importante trabalhar com a
produção de histórias das próprias crianças; assim elas podem – individualmente ou
em grupo – construir suas próprias histórias, através da oralidade, e o professor fazer o
papel de escriba.
Para ilustrarmos as diferentes formas de apresentação das histórias infantis, nós
nos reportaremos ao terceiro capítulo do livro Contar histórias uma arte sem idade, de
autoria de Betty Coelho, no qual a autora mostra as inúmeras possibilidades de se trabalhar
com o texto literário. Aqui, trabalharemos as principais idéias do texto. No entanto, vale a
pena recorrer ao livro no qual a autora dá dicas práticas e faz referências a várias obras
que podem ser utilizadas nas diversas modalidades de apresentação. Lembramos ainda
que, para se trabalhar com qualquer tipo de apresentação de histórias, é indispensável
que o proponente conheça profundamente a história:
• Simples Narrativa – Segundo a autora, esta é a forma mais atraente de todas, além de
ser a mais tradicional e não requerer nenhum recurso além do narrador que se utiliza da
voz, da postura e de toda a expressão corporal para tornar a história atraente. É indicado
ainda que os contos de fadas, lendas, fábulas e histórias recolhidas da tradição oral
sejam sempre contados sob a forma narrativa para possibilitar que o ouvinte imagine
livremente cada uma das situações narradas e cada um dos personagens. Livros para
serem narrados: A bonequinha preta; O bonequinho doce; Pituchinha; O rabo do macaco;
Tonho, o elefante.
• Narrativa com o livro – Existem textos que requerem a apresentação do livro. São aqueles
em que a apresentação gráfica e as imagens são tão ricas quanto o texto. Esse tipo de
literatura, além de prender a atenção pela história, é atraente pela imagem (o que facilita
AVSI
OFICINAS
3.7
LITERÃTURA INFANTIL
para os não-alfabetizados) e contribui para a construção da seqüência lógica do
pensamento infantil. A autora recomenda “mostrar o livro para a classe virando lentamente
as páginas com a mão direita, enquanto a esquerda sustenta a parte inferior do livro”.
Para narrar com o livro, o narrador deve já conhecer e estudar a história para poder
contá-la com as próprias palavras com firmeza e sem consultar o texto para não prejudicar
a integridade da narrativa. Deve evitar também comentários para chamar a atenção
para as gravuras, pois não se faz necessário. Livros para serem utilizados durante a
narração: Filó e Marieta; Corre ratinho; A bela borboleta; O curumim que virou gigante;
Flicts; As centopéias e seus sapatinhos; Zé diferente; Maria vai com as outras; Quero
casa com janela; Coleção Tererê; Coleção Um, dois, feijão com arroz; O menino
Maluquinho; A flor (entre outros).
• Narrativa com gravuras – Se o livro tiver um formato pequeno ou ilustrações que
antecipem ou estiverem incoerentes com o enredo, ou histórias publicadas juntamente
com outros encartes, impossibilita a utilização dos mesmos durante a narração da história.
Quando isso acontece, Bety Coelho aconselha a reprodução das gravuras que podem
ser ampliadas em cartolina ou através de colagem. As gravuras são ideais para crianças
pequenas, pois possibilita maior apreensão dos detalhes e contribuem para a ordenação
do pensamento. Alguns cuidados devem ser tomados como colocar antecipadamente
as gravuras em ordem de apresentação e, à medida que a história for sendo contada,
as gravuras são colocadas em um suporte próprio para elas. Os movimentos de troca
de gravuras devem ser feitos com naturalidade e no momento exato; a narração deve
fluir mesmo durante a troca das gravuras. Histórias que podem ser contadas através
das gravuras: O burrinho verde; O presente dos pássaros; Camilão, o comilão; Confusão
no fundo do mar; O coelhinho medroso.
• Narrativa com o flanelógrafo – O flanelógrafo é um bom recurso para histórias em que o
personagem entra e sai de cena várias vezes. As figuras podem ser confeccionadas em
flanela, papel camursa ou feltro ou papel comum, apoiados em papel mais resistente.
Estas gravuras devem ter um pedaço de lixa colada no seu verso de forma que elas
possam aderir e se soltar da flanela com facilidade. A autora ainda adverte para “não
confundir o uso do flanelógrafo com apresentação de gravuras. Na gravura reproduzse a cena. No flanelógrafo, cada personagem é colocado individualmente, ocupando
seu lugar no quadro, o que dá a idéia de movimento”. O importante nessa técnica é a
ação do personagem principal em um movimento constante. Histórias que possibilitam
o uso do flanelógrafo: Feliz como um vaga-lume; Camaleão; A lenda do arco-íris; Uma
nuvem chamada fofinha.
• Narrativa com desenhos – Fazer desenhos no quadro negro ou em papel de metro é
outra alternativa apresentada por Betty Coelho, pelo fato de o desenho aguçar a
curiosidade dos ouvintes e ser um recurso atraente; mas, para utilizar os desenhos, é
preciso que a história seja de poucos personagens e de traços rápidos. É uma atividade
que pode ser compartilhada com as crianças e tem grande alcance pedagógico. Histórias
que podem ser desenhadas: As idéias de Tadeu; Nicolau tinha uma idéia.
• Narrativa com interferência do narrador e dos ouvintes – Esta técnica consiste na
participação ativa do narrador e dos ouvintes através de falas e gestos caracterizados
por uma palavra ou frase que se repete em determinados momentos, como no caso de
histórias em que se canta um determinado estribilho repetidamente em momentos exatos.
Esse recurso é de grande ajuda para grandes platéias, uma vez que o recurso prende a
atenção do público que se sente pertencente à história. Histórias que podem sofrer
interferências: O castelo amarelo; A galinha ruiva; O coelhinho medroso; Bom dia todas
as cores; panela de arroz; Rapunzel; O presente dos pássaros; Confusão no fundo do
mar; Pituchinha; O burrinho verde, entre outras.
3.8
OFICINAS
AVSI
LITERATURA INFANTIL
Como vimos, as formas de se apresentar uma história são muitas, mas devem ser
escolhidas de acordo com o local e as circunstâncias, observando-se o espaço disponível,
a luminosidade, a idade dos ouvintes, o número de pessoas etc.
Por fim, queremos lembrar que a literatura infantil é um excelente instrumento
pedagógico que pode ser aproveitado para atribuir significados às palavras, trabalhar as
fantasias, as angústias e os medos, mas, antes de tudo, é uma fonte de lazer, prazer e
alegria. Por isso, não deve ser transformada em algo enfadonho e chato para os leitores e
ouvintes.
Referências Bibliográficas
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CRAIDY, Carmem; KAERCHER, Gládis. Educação infantil: pra que te quero? Porto Alegre: Artemed,
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SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga. As reinações renovadas. Rio de Janeiro: Agir, 1987.
SNYDERS, Georges. A alegria na escola. São Paulo: Manole, 1988.
YUNES, Eliana. PONDÉ, Glória. Leitura e leituras da literatura infantil. São Paulo: FTD, 1988.
ZILBERMAN, Regina. O lugar do leitor na produção e recepção da literatura infantil. In: KHÉDE,
Sonia S. (Org.). Literatura infanto-juvenil. Um gênero polêmico. Petrópolis: Vozes, 1983.
AVSI
OFICINAS
3.9
OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL
OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL
O Mandarin
•
•
•
•
•
Material utilizado:
Casca de ovo;
Papel laminado vermelho ou dourado;
Caneta nanquim;
Lã preta;
Cola.
Como fazer:
1º Lavar bem uma casca de ovo inteira e vazia;
2º Recortar os moldes do chapéu e do colarinho no papel laminado;
3º Fazer uma trança com a lã preta e colar na lateral interna do chapéu;
4º Desenhar o rosto e o cabelo do Mandarin com caneta nanquim;
5º Colar o chapéu e o colarinho.
AVSI
OFICINAS 3.11
OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL
O Cachorrinho
•
•
•
•
•
•
Material utilizado:
Papel de espessura firme cor branca (Super White, Canson, Vergê, Cartão, etc.);
Caneta nanquim preta;
Lápis de cor vermelho;
Cola;
Balas ou docinhos enrolados em papel franjas;
Gliter ou cola gliter vermelho.
Como fazer:
1º Recortar o molde no papel;
2º Cobrir com nanquim preto os olhos, nariz, detalhes e manchas;
3º Colorir com o lápis de cor vermelho o laço e passar o gliter;
4º Dobrar o papel nas linhas pontilhadas; colar a ponta nas costas da figura;
5º Colocar uma bala ou um docinho embrulhado em papel com franjas no espaço que foi
construído.
3.12 OFICINAS
AVSI
OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL
A Cestinha
•
•
•
•
•
•
Material utilizado:
Papel de espessura firme da cor desejada (Color Plus, Super White, Canson, Vergê,
Cartão, etc.);
Papel de presente com estampas delicadas;
Fita de seda;
Cola;
Cola gliter ou purpurina;
Balas ou docinhos enrolados em papel com franjas.
Como fazer:
1º Recortar o molde no papel escolhido; Atenção: dobrar o papel ao meio;
2º Recortar detalhes ou formas no papel de presente. Colar decorando o lado externo da
cestinha;
3º Colar as abas laterais montando assim a cestinha;
4º Dar acabamento usando a cola com gliter ou purpurina;
5º Unir as alças da cestinha usando a fita de seda para fazer um laço;
6º Encher a cestinha com docinhos ou balas enroladas em papel com franjas.
AVSI
OFICINAS 3.13
OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL
O Gatinho
•
•
•
•
•
•
•
•
Material utilizado:
Papel de espessura firme da cor desejada (Color Plus, Super White, Canson, Vergê,
Cartão, etc.);
Papel crepon das cor desejada;
Caneta nanquim;
Linha da cor do papel;
Agulha fina;
Cola;
Prato pequeno de papelão;
Balas ou docinhos enrolados em papel com franjas.
Como fazer:
1º Recortar os moldes nos papéis;
2º Cobrir todos os detalhes (olhos, nariz, boca, bigode, etc.) com tinta nanquim;
3º Cortar duas tirinhas de papel crepon que servirão de alças para a calça. Colar no corpo
do gatinho já recortado;
4º Recortar a calça seguindo o molde. Primeiro devemos colar as abas da calça montandoa. Depois temos que alinhavar as bordas para franzir;
5º Vestir a calça no gatinho. Puxar as linhas para franzir. Amarrar as pontas no tornozelo e
na cintura;
6º Colar a ponta da calça por dentro da calça na parte de trás;
7º Dobrar as patinhas para a frente e colar em um pratinho de papelão;
8º Distribuir balas ou docinhos enrolados em papel com franjas.
3.14 OFICINAS
AVSI
OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL
O Cisne
•
•
•
•
•
•
•
•
Material utilizado:
Papel de espessura firme da cor desejada (Color Plus, Super White, Canson, Vergê,
Cartão, etc.);
Feltro branco ou cor suave (amarelo, rosa ou azul);
Caneta nanquim preta;
Cola;
Lixa fina;
Cola gliter ou purpurina;
Pratinhos de papelão;
Balas ou docinhos enrolados em papel com franjas.
Como fazer:
1º Recortar os moldes nos papéis;
2º Colorir o bico do cisne com lápis de cor alaranjado;
3º Colorir os olhos e os detalhes com nanquim preto;
4º Colar os dois modelos correspondentes a parte de trás do cisne, esperar secar e recortar;
5º Colar as duas partes recobertas com feltro no modelo principal do cisne;
6º Lixar suavemente as duas laterais com feltro;
7º Colar o cisne no pratinho de papelão;
8º Decorar o pratinho com balas ou docinhos enrolados em papel azul com franjas;
9º Dar acabamento com cola gliter ou purpurina.
AVSI
OFICINAS 3.15
OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL
O Coelhinho
•
•
•
•
•
•
•
•
Material utilizado:
Papel de espessura firme da cor desejada (Color Plus, Super White, Canson, Vergê,
Cartão, etc.);
Feltro branco ou cor suave (amarelo, rosa ou azul);
Caneta nanquim preta;
Cola;
Lixa fina;
Cola gliter ou purpurina;
Pratinhos de papelão;
Balas ou docinhos enrolados em papel com franjas.
Como fazer:
1º Recortar os moldes nos papéis;
2º Colorir o nariz e o detalhes com nanquim preto;
3º Colar os dois modelos correspondentes a parte de trás do coelhinho, esperar secar e
recortar;
5º Colar as duas partes recobertas com feltro no modelo principal do coelhinho;
6º Lixar suavemente as duas laterais com feltro;
7º Colar o coelhinho no pratinho de papelão;
8º Dar acabamento com cola gliter ou purpurina;
9º Decorar o pratinho com balas ou docinhos enrolados em papel alaranjado ou verde.
3.16 OFICINAS
AVSI
OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL
OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL
Suporte para panelas
•
•
•
•
•
Material utilizado:
Jornal;
Cola;
Corda sisal;
Tinta ;
Verniz.
Como fazer:
1º Fazer tubos (roletes) com meia folha de jornal;
2º Fazer roldanas (rodas) com diâmetro 5 cm, usando cabo de vassoura ou outro material
(tubo PVC, por exemplo);
3º Fechar as roldanas com cola na extremidade. Deixar secar;
4º Amarrar as roldanas uma a outra com sisal, ate formar um circulo com 6 ou 8 pecas,
pintar, aplicar verniz para acabamento.
AVSI
OFICINAS 3.17
OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL
Máscaras com Balão
Material utilizado:
• Balão para festas;
• Papel revista;
• Cola branca.
Como fazer:
1º Encher o balão ate metade de sua capacidade;
2º Cortar folhas de revistas (picar com as mãos) em tamanhos variados;
3º Revestir o balão com papel picado (colocando cola branca sobre o balão, cobrindo-o
totalmente;
4º Após estar seco fazer furo no balão para saída do ar soltando o revestimento do papel;
5º Pressionar o revestimento sobre o rosto (olho, nariz e boca) modelar a impressão com
papel acompanhando os ressaltos;
6º Após secar aplicar nova camada de papel.
Cesto em Jornal
Material utilizado:
• Jornal;
• Cola.
Como fazer:
1º Fazer rocetes de jornal com a folha inteira (canudos);
2º Achatar os canudos de jornal a espessura mais fina possível;
3º Sobrepor as tiras uma sobre a outra com cola branca;
4º Formar círculos com diâmetro a critério;
5º Colocar círculos um por fora do outro, observando deixar 3 milímetros acima um do
outro sempre aumentando o diâmetro.
3.18 OFICINAS
AVSI
OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL
Tintas Naturais/Extração
Material utilizado:
• Legumes frescos;
• Cola branca.
Como fazer:
Extração
1º Cozinhar os legumes com pouca água para extração das cores: beterraba, cenoura,
folhas etc. uma espécie por vez;
2º Após a extração adicionar cola branca mais consistente possível;
3º Para aplicação em papel e cartolina;
4º Chás mate e outras ervas a fervura devera ser com mínimo de água possível.
Caixas Presentes
Material utilizado:
• Caixa de leite (vazia) tipo retangular;
• Acetona;
• Algodão.
Como fazer:
1º Umedecer o algodão na acetona, pressionar em circulo sobre a caixa para dissolver a
tinta da impressão gráfica;
2º Dar formas as caixas moldando com as mãos;
3º Fazer furos na parte superior da caixa (com furador) e passar fita tecido para amarrar as
embalagens.
AVSI
OFICINAS 3.19
OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL
Porta-Treco
a)
b)
c)
d)
Cortar uma garrafa pet coca-cola conforme a fig. 1;
Cortar a coroa conforme a fig. 2;
Dobrar conforme a fig. 3;
Dobrar para dentro observando a fig. 4.
3.20 OFICINAS
AVSI
OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL
Coelho com Caixa de Leite
a)
b)
c)
d)
e)
f)
g)
h)
i)
Retirar a tampa da caixa, ver fig. 1;
Retirar a tampa, pressionar conforme, fig. 2;
Observar dobra (pressão para fechar) fig. 3;
Dentes e orelhas fig. 4 e 5;
Fazer corte horizontal na caixa para encaixe dos dentes, cortar com estilete, conforme
fig. 6;
Orelhas, observar fig. 5, cortar em cartolina, mais ou menos 10 cm. Grampeá-las
conforme, fig. 7;
Revestir a caixa de leite com papel colorido para disfarçar propagandas da embalagem;
Criar olhos chapados e nariz, fazer barbatanas de canudos de refrigerante;
Para encaixar barbatanas fazer furos. Ver fig. 7.
AVSI
OFICINAS 3.21
OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL
Bolsa de Garrafa Pet
a)
b)
c)
d)
e)
f)
g)
Cortar garrafa retirando parte cônica, ver fig. 1;
Observar fig. 2;
Recortar conforme fig. 3 e 4;
Dobrar tampa conforme fig. 5;
Eliminar ângulo conforme fig. 5b;
Parte cônica conforme fig. 7. Encaixe no corte “x” da garrafa;
Colocar alça de barbante lateral ou costas.
3.22 OFICINAS
AVSI
OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL
Peão de Jornal
a)
b)
c)
d)
e)
f)
Fazer canudos de folha de jornal conforme fig. 1
Achatar canudos em folhar retas;
Enrolar palitos de fósforo no canudo de jornal conforme fig. 2;
Dar seqüência enrolando conforme fig. 3;
Colar a ponta, enrolar até o final;
Observar fig. 4. Concluída.
AVSI
OFICINAS 3.23
OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL
Revestimento de Embalagem com Sisal e Papel tipo Seda
a)
b)
c)
d)
e)
Desfiar a corda sisal e cortar as fibras em partes pequenas;
Umedecer a superfície a ser revestida com cola branca;
Salpicar as fibras sobre a superfície com cola;
Envolver com papel seda, pincelar com cola branca, com pincel à seco;
Ver desenho.
3.24 OFICINAS
AVSI
TRABALHO EM EQUIPE
TRABALHO EM EQUIPE
“Há um bocado de diferença entre pessoas trabalhando juntas
num projeto e todas elas apenas trabalhando ao mesmo tempo.”
Estudos indicam que, para qualquer organização sobreviver no próximo século,
faz-se necessário o investimento na formação de pessoas para que aprendam a trabalhar
em equipe, pois o sucesso não depende mais de um indivíduo e, sim, do trabalho integrado
de várias pessoas, pois não adianta ter talentos trabalhando sozinho; os talentos de cada
pessoa encontram uma valorização maior em uma construção comum.
No entanto, é preciso estar atento, pois formação de grupos é bastante comum;
grupos existem em todo lugar, porém, equipes são raras.
Formar equipes não é uma tarefa fácil. A convivência é fator fundamental para a
formação de equipes. É preciso educar continuamente as pessoas na metodologia de
construção e fortalecimento de equipe, desenvolvendo principalmente a competência
interpessoal, pois durante muito tempo as pessoas foram educadas para o individualismo
e a competição; no entanto, para trabalhar em conjunto, é preciso cooperar, compartilhar,
respeitar as individualidades e fortalecer relações com os colegas que, muitas vezes, não
compactuam com suas crenças e valores. O trabalho em equipe é uma atividade de doação
e compromisso com o outro, é o sentimento de querer contribuir e colaborar para o sucesso
individual e grupal; por isso, precisa ser visto como um processo de desenvolvimento
pessoal e profissional.
Hoje, diante de problemas e buscas de soluções do mundo globalizado, surge a
exigência da formação de equipes de trabalho.
O que distinguem grupos e equipes? Uma equipe de trabalho é um grupo de
duas ou mais pessoas que se juntam com um mesmo objetivo, buscando alcançá-los de
forma compartilhada.
Um grupo pode se transformar em uma equipe quando:
• partilham suas idéias para a melhoria do que fazem e de todos os processos de trabalho
do grupo;
• respeitam as individualidades e sabem ouvir;
AVSI
OFICINAS 3.25
TRABALHO EM EQUIPE
•
•
•
·
•
comunicam-se ativamente;
desenvolvem respostas coordenadas em benefício dos propósitos definidos;
constroem respeito, confiança mútua e afetividade nas relações;
participam do estabelecimento de objetivos comuns;
desenvolvem a cooperação e a integração entre os membros.
Estruturar uma equipe é identificar potencial, competências e a forma como cada
um pode contribuir para o alcance dos resultados, além da harmonização dos diferentes
estilos individuais. Conhecer cada um no aspecto pessoal e profissional é requisito
fundamental para se conseguir a integração dos talentos e das emoções.
Para o indivíduo, fazer parte de uma equipe bem estruturada representa uma
oportunidade de perceber o trabalho como uma nova forma de relacionamento e de
liberação do potencial criativo. Para uma organização, montar equipes bem estruturadas
pode representar a diminuição de desperdícios, eficiência nos processos internos, idéias
inovadoras, melhoria da qualidade do ambiente e conseqüentemente dos resultados.
Cientes de não poder desenvolver essa temática de forma completa como seria
necessário, anexamos abaixo alguns instrumentos que podem ser utilizados como referência
para o desenvolvimento de trabalhos futuros.
Anexo
Dinâmicas:
1. Gira Roda
É formada a roda com todos de mãos dadas. Sem soltar as mãos, devem conseguir
fazer a roda virar para fora (ficando todos de costas para o centro da roda) sem cruzar
os braços no peito.
E agora como fazer?
2. Máquina
Em pequenos grupos, devem construir uma máquina (com o próprio corpo) em
funcionamento, criando uma sincronia de movimentos.
3. Teremos um grupo de observação.
Formar grupos de 5 e cada grupo recebe 5 envelopes com peças de cartolina que
estão misturadas. A atividade é formar 5 quadrados sem usar a fala; enquanto o grupo
realiza a tarefa, o observador registra as ações individuais e coletivas.
Ao final da atividade, o grupo discute as ações, os resultados e os sentimentos.
3.26 OFICINAS
AVSI
TRABALHO EM EQUIPE
Textos de Apoio
1. Responsabilidade
Esta é uma história sobre 4 pessoas:
Todo mundo, alguém, qualquer um e ninguém.
Havia um importante trabalho a ser feito e todo mundo tinha certeza de que
alguém o faria.
Qualquer um podia tê-lo feito, mas ninguém o fez. Alguém se zangou porque
era um trabalho de todo mundo.
Todo mundo pensou que qualquer um poderia fazê-lo, mas ninguém
imaginou que todo mundo deixasse de fazê-lo.
Ao final, todo mundo culpou alguém, quando ninguém fez o que qualquer
um poderia ter feito.
Autor desconhecido
Ter responsabilidade é ter compromisso. É ter capacidade de se comprometer
em cumprir uma tarefa ou dar uma resposta sem nenhuma pressão externa.
Responsabilidade Individual
• Ser responsável é ter a capacidade de responder às provocações que a realidade coloca.
Responsabilidade Coletiva
• Ser responsável é ter a capacidade de influir, interferindo na coletividade; de colocar
em grupo as próprias capacidades para responder juntos a uma necessidade que precisa
ser respondida.
Respeito
• Respeito envolve muitas atitudes importantes: a consideração porque o outro é um ser
único e irrepetível com modalidades de se colocar diferentes das minhas; a admiração
por uma pessoa é o cuidado, a valorização do outro – da natureza, dos animais e das
plantas –, enfim, do mundo que nos cerca.
• Numa convivência em grupo, é preciso ter respeito pelo outro e cobrar que seja
respeitado.
2. Você Sabe Ouvir
1) Para ouvir, você se coloca em posição de atenção, diante da pessoa que vai lhe falar,
assegurando-lhe um ambiente favorável à comunicação?
____Geralmente
____ Às vezes
____ Raramente
AVSI
OFICINAS 3.27
TRABALHO EM EQUIPE
2) Ao escutar, você observa quem fala?
____Geralmente
____ Às vezes
____ Raramente
3) Decide, julgando pela aparência e maneira de falar do interlocutor, se o que ele tem a
dizer vale a pena ou não ?
____Geralmente
____ Às vezes
____ Raramente
4) Escuta, procurando principalmente idéias?
____Geralmente
____ Às vezes
____ Raramente
5) Enquanto ouve, você determina as suas tendências e trata de justificá-las perante a
pessoa que lhe fala?
____Geralmente
____ Às vezes
____ Raramente
6) Você presta atenção a quem lhe está falando?
____Geralmente
____ Às vezes
____ Raramente
7) Ouvindo uma opinião com a qual não concorda, você interrompe imediatamente quem
lhe fala?
____Geralmente
____ Às vezes
____ Raramente
8) Antes de emitir sua opinião sobre alguma coisa que ouviu, você procura certificar-se de
que compreendeu o que lhe foi dito?
____Geralmente
____ Às vezes
____ Raramente
9) Sentindo que as suas convicções estão sendo abaladas pelo que ouve, procura certificarse de que compreendeu o que lhe foi dito?
____Geralmente
____ Às vezes
____ Raramente
10)Procura você, conscientemente, avaliar a lógica e a credibilidade do que ouve?
____Geralmente
____ Às vezes
____ Raramente
Pontos
RESULTADO: _________________
INTERPRETAÇÃO: __________________
3. História
Deus sabe
Contam que na carpintaria houve uma vez uma estranha assembléia. Foi uma
reunião de ferramentas para acertarem suas diferenças. Um martelo exerceu a presidência,
mas os participantes lhe notificaram que teria que renunciar. A causa? Fazia demasiado
barulho; e além do mais, passava todo o tempo golpeando. O martelo aceitou sua culpa,
mas pediu que também fosse expulso o parafuso, dizendo que ele dava muitas voltas para
conseguir algo. Diante do ataque, o parafuso concordou, mas por sua vez, pediu a expulsão
da lixa. Dizia que era muito áspera no tratamento com os demais, entrando sempre em
atritos. A lixa acatou, com a condição de que se expulsasse o metro, que sempre media os
3.28 OFICINAS
AVSI
TRABALHO EM EQUIPE
outros segundo a sua medida, como se fora o zinco perfeito. Nesse momento entrou o
carpinteiro, juntou o material e iniciou o seu tratamento. Utilizou o martelo, a lixa, o metro e
o parafuso. Finalmente a madeira converteu-se num fino móvel. Quando a carpintaria ficou
novamente só, a assembléia reativou a discussão. Foi então que o serrote tomou a palavra
e disse: “Senhores, ficou demonstrado que temos defeitos, mas o carpinteiro trabalha
com nossas qualidades, com nossos pontos valiosos. Assim, não pensemos em nossos
pontos fracos, e concentremos-nos em nossos pontos fortes”.
A assembléia entendeu que o martelo era forte, o parafuso unia e dava força, a
lixa era especial para limar e afinar asperezas, e o metro era preciso e exato. Sentiram-se
então como uma equipe capaz de produzir móveis de qualidade. Sentiram alegria pela
oportunidade de trabalharem juntos.
Referências Bibliográficas
ANTUNES, Celso. Manual de técnicas de dinâmica de grupo de sensibilização de ludopedagogia.
Petrópolis: Vozes, 2000.
MOSCOVICI, Fela. Equipes que dão certo. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1994.
FAGUNDES, Márcia Botelho. Aprendendo valores éticos. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
AVSI
OFICINAS 3.29
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO1
Desde os primórdios, o jogo é muito importante na vida da criança. Meninas
brincam com bonecas e meninos brincam com bola de gude, soltam pipas, colecionam
figurinhas; isso acontece com a mesma necessidade e entusiasmo dos seus antepassados.
Brincar é fundamental na vida da criança, especialmente na primeira infância. É
tão vital que do jogo e da forma como é conduzido depende em grande parte o
desenvolvimento do futuro ser humano. Para algumas crianças, jogar é uma necessidade
instrutiva mais forte do que comer e dormir.
Assim, o jogo tornou-se um recurso muito valioso no ensino da Matemática. O
que caracteriza o jogo como pedagógico é a atitude e o objetivo que envolve a sua utilização.
Um jogo pedagógico com as letras do alfabeto impressas em cubos de madeira, por
exemplo, pode ser usado para montar um trenzinho, e um trenzinho pode ser usado como
instrumento de alfabetização, quando a criança se interessa em ler o nome formado pela
função das letras.
1. Funções do Jogo
Existem divergências em torno do jogo educativo que estão relacionadas à
presença concomitante de duas funções:
1.1. Função lúdica
– o jogo propicia a diversão, o prazer e até o desprazer quando escolhido voluntariamente;
1
Este texto é fruto das reflexões do professor Renato Srbek Araújo, Mestre em Educação pela
UFMG e professor de Matemática na Educação Infantil no Curso de Pós-Graduação da UNI-BH.
AVSI
OFICINAS 3.31
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
1. 2. Função educativa
– o jogo ensina qualquer coisa que complete o indivíduo em seu saber, seus
conhecimentos e sua apreensão do mundo (Campagne, 1989, p. 112).
O equilíbrio entre as duas funções é o objeto do jogo educativo. Entretanto, o
desequilíbrio provoca duas situações: não há mais ensino, há apenas jogo; quando a
função educativa elimina todo hedonismo, resta apenas o ensino.
Se o professor escolhe um jogo de memória, com estampas de frutas, destinado
a auxiliar na discriminação das mesmas, mas as crianças utilizam as cartas do jogo para
fazer pequenas construções, a função lúdica predomina e observa-se o aspecto educativo
definido pelo professor: discriminar frutas. Da mesma forma, certos jogos perdem rápido
sua dimensão lúdica quando empregados inadequadamente. O uso de quebra-cabeças
e jogos de encaixes como modalidades de avaliação constrange e elimina a ação lúdica.
Se perde sua função de propiciar prazer em proveito da aprendizagem, o brinquedo torna-se
instrumento de trabalho, ferramenta do educador. O “brinquedo” já não é brinquedo, é
material pedagógico ou didático.
Alguns filósofos e teóricos, quando tratam da utilização do jogo pela educação,
apontam o que denominam “paradoxo do jogo educativo”. A contradição vista no jogo
educativo se resume à junção de dois elementos considerados distintos: o jogo e a
educação. O jogo, dotado de natureza livre, parece incompatibilizar-se com a busca de
resultados, típica de processos educativos. Embora autores como Bally (1959), Caillois
(1967), Huizinga (1951), Alam (1957), Herriot (1983), Rabecq-Maillard (1969), Sutton-Smith
(1971), entre outros, destaquem a liberdade como atributo principal do jogo, no campo da
educação procura-se conciliar a liberdade, típica dos jogos, com a orientação própria dos
processos educativos. Em outros termos, elimina-se o paradoxo na prática pedagógica ao
se preservar a liberdade de brincar da criança. Desde que não entre em conflito com a
ação pedagógica intencional do professor, deve refletir-se na organização do espaço, na
seleção dos brinquedos e na interação com as crianças.
Cresce o número de autores que adotam o jogo na escola assumindo o significado
usual: incorporando a função lúdica e a educativa. Entre eles, destaca-se Campagne (1989,
p.113) que sugere critérios para uma adequada escolha de brinquedos de uso escolar de
modo a garantir a essência do jogo. São eles:
1) o valor experimental – permitir a exploração e a manipulação;
2) o valor da estruturação – dar suporte à construção da personalidade infantil;
3) o valor de relação – colocar a criança em contato com seus pares e adultos, com objetos
e com o ambiente em geral para propiciar o estabelecimento de relações;
4) o valor lúdico – avaliar se os objetos possuem as qualidades que estimulam o
aparecimento da ação lúdica.
A tais critérios são acrescidos questionamentos relativos à idade, preferências,
capacidades, projetos de cada criança e uma constante verificação da presença do prazer
e dos efeitos positivos do jogo. Há que se considerar ainda que o jogador não é inato, mas
uma aquisição social. Dessa forma, o educador tem que estar atento para auxiliar a criança,
ensiná-la a utilizar o brinquedo. Só depois ela estará apta a uma exploração livre.
A organização de espaços adequados para estimular brincadeiras constitui hoje
uma das preocupações da maioria de educadores e profissionais de instituição infantis.
Nessa organização do espaço, Campagne (1989, p.116) alerta para a necessidade de
analisar componentes como: a disponibilidade de materiais, o nível de verbalização entre
adultos e crianças e aspectos educativos e corporais para estimular brincadeiras.
O suporte material deve incluir locais apropriados, dotados de estantes para
comportar diferentes tipos, dispostos de modo acessível às crianças e espaços para o seu
uso. A verbalização do professor deve incidir sobre a valorização de características e
3.32 OFICINAS
AVSI
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
possibilidades dos brinquedos e possíveis estratégias de exploração. Enfim, o professor
deve oferecer informações sobre diferentes formas de utilização dos brinquedos,
contribuindo para a ampliação do referencial infantil.
A dimensão corporal não pode estar ausente. Na relação com objetos, solicitam-se
o corpo e os sentidos. O educador deve também brincar e participar das brincadeiras,
demonstrando não só o prazer de fazê-lo, mas estimulando as crianças para tais ações.
Finalmente, o caráter educativo coloca o jogo na ordem de meios e recursos que consideram
desejos, necessidades de expressão e outros valores exigidos para a implementação de
um projeto educativo.
2. Atributo X Elemento X Conjunto
Desde cedo, as crianças têm contato com os conjuntos. Não é raro vermos alunos
formando grupos com peças, brinquedos, colecionando objetos e, em jogos, organizando
grupos de pessoas para formar times. Elas fazem isso sem precisarem ser ensinadas.
Para a Matemática, as noções de conjunto e elemento são consideradas noções intuitivas
– são aceitas sem demonstrações formais rígidas.
Pode-se dizer que o conceito de conjunto é primitivo, como também o é o conceito
de elemento. Quando trabalhamos com conjuntos, as diferentes características das peças
são consideradas atributos. Por exemplo, em uma caixa de blocos lógicos, temos 48
unidades organizadas segundo seus atributos.
a) forma (triângulo, retângulo, quadrado e disco)
b) cor (azul, amarelo, vermelho)
c) tamanho (grande, pequeno)
d) espessura (fino, grosso)
A quantidade de materiais que compõem o conjunto é dada pelo produto de seus
atributos: 4 formas x 3 cores x 2 tamanhos x 2 espessuras = 4 x 3 x 2 x 2 = 48 peças.
Devemos estabelecer uma distinção: tamanho e espessura não são propriamente
atributos, pois dependem de uma comparação para caracterizarem determinado elemento.
Para
um pequeno, outro grande. Só podemos caracterizálos dessa forma porque comparamos os tamanhos: não há nada em qualquer um deles
que determine o seu tamanho.
Atributos, então, são características físicas ou comuns ao próprio objeto.
Características como tamanho, peso espessura etc. são chamadas de noções relativas.
Dependem de uma comparação que relacione dois objetos para existirem. As noções
relativas somente podem ser usadas como atributos se existirem apenas duas possibilidades
para cada característica. É o que acontece com os blocos lógicos: ou a peça é grande ou
pequena, ou é fina ou grossa. Não há meio-termo.
Na construção de um conjunto, precisamos escolher quais os elementos que
queremos. “Para isto, criamos uma condição que selecione os elementos que queremos”.
Essa condição é chamada de critério. Por exemplo, trabalhando ainda com blocos lógicos,
podemos determinar o conjunto de triângulos. Nele estão incluídos todos os triângulos
pequenos, grandes, finos, grossos, azuis, amarelos etc. Como o critério escolhido foi
apenas “ser triângulo”, qualquer elemento que atenda a essa condição pode entrar no
conjunto.
Podemos selecionar elementos, a partir da articulação de dois ou mais atributos,
de modo a ter no conjunto apenas aqueles que realmente queremos. Articulando os atributos
de cor, forma e tamanho em um único critério, formamos o conjuntos dos triângulos amarelos
pequenos; um critério desse tipo elimina todos os elementos que não atendam à condição
imposta.
AVSI
OFICINAS 3.33
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
Estamos habituados a lidar com a idéia de conjunto relacionando-a a “grupo” ou
“coleção” de objetos; para a Matemática, contudo, a palavra “conjunto” possui um
significado especial: nem sempre será usada para designar grupos, já que podemos ter
um conjunto formado por apenas um elemento (unitário) ou por nenhum (vazio).
Um conceito fundamental é o de conjunto universo. Este significa a reunião de
todos os elementos disponíveis para trabalharmos. Dentro do universo das peças que
compõem os blocos lógicos não há nenhuma peça verde. O conjunto de peças verdes é,
portanto, vazio no universo das peças que compõem os blocos lógicos. Em outros universos
de elementos, entretanto, pode não ser vazio: basta existir algum elemento com atributo
verde.
O conjunto unitário parte da mesma premissa. Tomemos, por exemplo, o conjunto
de corpos celestes que compõem o Sistema Solar para determinar um conjunto universo.
Neste, podemos facilmente determinar um conjunto unitário: o conjunto de sóis do nosso
Sistema Solar. Como só possuímos um Sol, este conjunto é unitário.
Da articulação de atributos surgem os critérios que darão origem aos conjuntos.
Um grupo de elementos, por si só, não forma um conjunto. É necessário que estes estejam
reunidos a partir de uma proposição lógica – um critério para poderem determinar um
conjunto.
C
E
A
G - conjunto
E - elemento
A - atributo
3. Brinquedos Pedagógicos
Costuma-se chamar brinquedo pedagógico ao que foi fabricado com o objetivo
de proporcionar determinadas aprendizagens, tais como cores, formas geométricas,
números ou letras etc.
1º) Como já foi colocado anteriormente, o que caracteriza o brinquedo é a atitude
que envolve a sua utilização. Um brinquedo pedagógico com as letras do alfabeto impressas
em cubos de madeira, por exemplo, pode ser usado para montar um trenzinho, e um
trenzinho pode ser usado como instrumento de alfabetização, quando a criança se interessa
em ler o nome do seu fabricante, no exemplo já mencionado.
2º) O que é e o que não é pedagógico? Será que a pedagogia se restringe a ensinar
formas, cores, números e letras? A educação é um processo global e contínuo. Cada etapa
de desenvolvimento, cada momento da vida de uma criança tem prioridades diferentes que
a atuação pedagógica precisa atender. O ursinho de pelúcia é o mais pedagógico que se
pode oferecer em certos momentos, como uma bola de futebol pode ser em outros. Seguindo
esta linha de pensamento, poderíamos dizer que brinquedo pedagógico é todo o objeto que
atende à necessidade da criança no momento em que ela o utiliza.
Esta definição seria a mais correta do ponto de vista conceitual, pois também são
tarefas da educação o desenvolvimento emocional e social, a preservação da alegria e da
saúde mental da criança.
Como já dissemos antes, todo brinquedo pode ser pedagógico, dependendo
das circunstâncias, assim como também o mais educativo dos brinquedos pode deixar de
sê-lo em determinada situação, pois o valor do brinquedo está diretamente relacionado
com o que ele consegue provocar na criança.
Podemos adotar a denominação brinquedo pedagógico não a nível conceitual,
mas apenas para caracterizar um tipo de brinquedo que tem uma proposta mais objetiva.
No brinquedo simbólico, a satisfação acontece no decorrer da atividade, ao passo
que no brinquedo pedagógico o desafio é justamente obter a satisfação do final da atividade,
3.34 OFICINAS
AVSI
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
ou seja, quando o objetivo do jogo foi alcançado. Mas este prazer de ter conseguido pode
ser tão importante que a criança queira repetir o mesmo jogo muitas vezes só para revivê-lo.
Montessori constatou que um determinado jogo pode atender de tal forma a uma
necessidade interior da criança que ela o executa algumas dezenas de vezes, polarizando
sua atenção de maneira que, ao largar o jogo, está mais calma e relaxada, podendo até
passar a ter comportamento mais equilibrado.
O maior valor do brinquedo está na sua gratuidade. No brinquedo livre e
espontâneo, a criança chega a alcançar um nível de participação, uma profundidade que
a enriquece na medida em que aumenta sua capacidade de engajamento, pelo livre
exercício de concentração de atenção.
Nem só os jogos que alimentam a fantasia da criança atendem às suas
necessidades, visto que existem outras necessidades inerentes ao seu processo de
desenvolvimento.
A proposta definida de um brinquedo pedagógico pode funcionar como desafio à
participação da criança. É motivador o subjacente convite a uma auto-avaliação de
habilidades ou à possibilidade de obter sucesso e reforçar o autoconhecimento. As crianças
gostam de superar-se.
4. Material Alternativo: um desafio à criatividade
Costuma-se chamar de “sucata” ao material descartável, àquele material que,
aparentemente, não tem mais utilidade, mas que, com um pouco de criatividade, pode ser
reaproveitado.
Por que reaproveitar? É mais econômico e, às vezes, pode ser o único tipo de
matéria-prima disponível; mas não é só isso, a redução do lixo é uma das grandes questões
do novo século. A criação de brinquedos com material alternativo é também uma proposta
de mudança, um desafio à nossa capacidade e um convite para uma pequena aventura.
O processo criativo nos introduz ao prazer de transformar, de tornar útil e belo
algo que até então era considerado inútil e feio. Esta magia pedagógica pode ajudar o
professor a construir os recursos que enriquecerão e facilitarão o seu trabalho, mas o mais
importante é que ele também será transformado pelo prazer de criar recursos que possam
proporcionar maior número de descobertas e de experiências às crianças.
Quando partilhamos com uma criança a descoberta de um objeto cuja utilização
pode ser reinventada estamos também mostrando o valor e o encanto das pequenas coisas.
Essa atitude pode ser bem mais do que uma alternativa de material para brincar; é uma
alternativa para uma escala de valores.
Utilizamos material alternativo não só por ser gratuito, mas porque nos proporciona
oportunidade para criar e para nos libertarmos do vício do consumo. O processo criativo,
uma vez iniciado, vai se multiplicando. O primeiro brinquedo é feito quase por necessidade,
o segundo já é mais fácil e os outros já vão fazendo parte de um processo contínuo de
criação em que qualquer material alternativo passa a ser um desafio irresistível.
5. Construção do Conceito de Número segundo Jean Piaget
5.1. Tipos de conhecimento
Para Piaget, há três tipos indissociáveis de conhecimento: o físico, o lógicomatemático e o social. O conhecimento físico ocorre por meio de abstração simples, que
é a abstração (possibilidade da criança fazer relações) das propriedades observáveis no
objeto: o tamanho, a forma, a cor, a textura, o som, o sabor, entre outros que podem ser
observados pela atuação dos sentidos. Além disso, o objeto pode ser quebrado, dobrado,
AVSI
OFICINAS 3.35
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
vergado ou até mesmo destruído pela ação do sujeito sobre ele. Tudo isso faz parte das
propriedades físicas do objeto e, atuando sobre ele, a criança obtém novas informações.
Na abstração simples ou conhecimento físico, o “ feed-back “vem dos objetos. O
conhecimento físico é, portanto, um conhecimento empírico, mas é de fundamental
importância para a estruturação do pensamento matemático. O conhecimento lógicomatemático desenvolve-se através da abstração reflexiva que ocorre como resultado da
coordenação das ações mentais do sujeito sobre o objeto, estabelecendo relações. No
conhecimento lógico-matemático, o “feed-back” provém das relações coordenadas que a
criança cria.
5.2. Que São Relações Coordenadas?
Considerando, como exemplo, uma criança observando e explorando um cubo e
uma bola. Ela pode perceber que a bola é vermelha e o cubo é azul. A bola é grande e o
cubo é pequeno. Essas são características físicas. Mas, se comparar os dois objetos,
descobrirá que a bola rola e o cubo não rola. Nesse caso, houve ação da criança sobre o
objeto e a relação observada não seria possível se as ações não tivessem sido realizadas.
Daí, a criança passa a exigir o movimento de rolar apenas da bola e começa a pensar: “por
que o cubo não rola?” A procura de outros objetos que rolam, ou não passa a ser objetivo
da criança, que começa a estruturar um sistema de classificação dos objetos que rolam e
dos objetos que não rolam.
As relações desenvolvidas nesse processo são coordenadas e contribuem para a
reestruturação dos esquemas lógico-matemáticos. O conhecimento lógico-matemático tem
características específicas, como:
• Não pode ser transmitido nem ensinado, pois é construído a partir das relações
coordenadas, criadas pela criança sobre o objeto.
• É construído pela elaboração de uma estrutura primária, original; cada estrutura posterior
é construída a partir das anteriores e a elas é integrada num processo constante de
superação; por isso, se diz que, muitas vezes, a criança aprende sozinha e, se o ambiente
escolar for estimulador, ela constrói seu conhecimento de uma forma cada vez mais
coerente.
O conhecimento lógico-matemático nada tem de arbitrário, pois sua fonte é interna,
está na mente da criança em sua interação com o meio, através de ações coordenadas de
modo a estabelecer relações. Já o conhecimento social é externo e tem como fonte primária
as convenções desenvolvidas pelas pessoas. São exemplos de conhecimento social o
fato de 25 de dezembro ser a comemoração do Natal, o fato de a criança chamar-se João,
Pedro ou outro nome próprio; os sinais matemáticos +, —,= e os nomes atribuídos às
operações e seus termos são também convenções. A natureza arbitrária do conhecimento
social é sua principal característica. A maneira de adquirir conhecimento social é por meio
da convivência com pessoas. Quando a criança diz o nome dos números (um, dois, três...),
ela está verbalizando um conhecimento social, o que não garante que tenha conhecimento
operatório desses números. A criança não elabora a construção de símbolos matemáticos
que, por serem arbitrários, serão conhecidos através de informações e introduzidos pelo
professor no momento oportuno.
Esse tipo de conhecimento é adquirido através da transmissão social. São valores,
normas sociais, regras, nomes das pessoas e objetos que o indivíduo precisa saber para
se integrar ao meio onde vive. São estabelecidos arbitrariamente. Por exemplo, não há
uma razão lógica para se chamar o lugar em que comemos de “mesa” ou o lugar onde
sentamos de “cadeira”. Sua arbitrariedade é confirmada quando constatamos que em
outras línguas esses mesmos conceitos têm outras palavras para representá-los. A fonte
do conhecimento social é essencialmente externa.
3.36 OFICINAS
AVSI
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
5.3. Relações Estruturais para a Construção do Conceito de Número
É comum observar nas crianças pequenas algumas estratégias de contagem que,
num primeiro momento, podem nos parecer impossíveis.
1) Se os objetos estão enfileirados (espacialmente organizados), ela salta alguns na
contagem ou conta um mesmo elemento mais de uma vez.
2) Quando eles estão espacialmente espalhados, ela os vai contando “indefinidamente”,
não sabe por onde iniciar a contagem, nem mesmo quando parar, conta elementos
mais de uma vez e deixa de contar alguns.
Por que as crianças criam estas “estratégias”? Elas fazem assim porque ainda
não estabeleceram mentalmente uma relação de ordem entre os objetos a serem contados
(relação de ordem: criar dois grupos na contagem – “os já contados” e “os não contados”.
Elas devem perceber que cada objeto só será contado apenas uma vez e que, uma vez
um objeto, dentre outros, foi contado, ele passa a pertencer ao grupo dos “já contados”.
Para esta construção, as crianças terão que perceber que os objetos serão
colocados em ordem. Mas colocá-los em ordem não quer dizer que basta a criança dispor
esses objetos numa ordem espacial para garantir a ela não saltar e nem repetir nenhum
elemento na contagem.
Colocar os elementos em ordem é, durante a contagem, criar sobre o grupo a ser
contado dois outros subgrupos: perceber que, se um objeto foi contado, ele passa a
pertencer imediatamente ao subgrupo “dos já contados”, que cada elemento só será
contado uma única vez e que todos os objetos deverão ser incluídos na contagem.
Grupo a ser contado: 06 elementos
AVSI
OFICINAS 3.37
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
Grupo “a contar”
1ª contagem
Grupo “dos já contados”
Grupo “a contar”
2ª contagem
Grupo “dos já contados”
Observações:
• O grupo dos “a contar” decresce e o dos já contados” cresce.
• Todos os objetos devem ser incluídos na contagem.
Mas será que basta a criança estabelecer esta relação de ordem entre os objetos
para que o problema da quantificação esteja resolvido?
Não, só isso não é suficiente, pois a criança pode ordenar os objetos mentalmente
e contá-los apenas nomeando os elementos e não quantificando. É o mesmo que ela ir
apontando os objetos e dizendo: esse é o João (o um), esse é o Paulo (o dois)... Nesse
caso, quando lhe pedimos para nos dar os cinco objetos contados, ela, em geral, aponta
para o último, mostrando-nos o quinto (ordinal).
Isso nos demonstra que a criança ainda não construiu a cardinalidade (noção de
quantidade), o conceito de número. Assim, para construir esse conceito, além da relação
de ordem, é necessário a criação de um outro tipo de relação mental entre os objetos: a
inclusão hierárquica de classe (um grupo formado por subgrupos). Um grupo de cinco
animais é formado por dois cães, dois gatos e um coelho. Um grupo de cinco frutas é
formado por duas laranjas e três bananas. Um grupo de cinco unidades é formado por:
3.38 OFICINAS
AVSI
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
Portanto, para construir o conceito de número, a criança precisa fazer a síntese
entre dois tipos de relação: a contagem ordenada e a inclusão hierárquica de classe. O
que significa isso? Significa que cada objeto inclui o objeto que o precede na proporção
mais um. Por exemplo, quando a criança conta sete elementos, ela vai incluindo,
mentalmente: um em dois, dois em três, três em quatro, quatro em cinco, cinco em seis e
seis em sete.
5.4. Relação de Inclusão
Conforme já foi dito, a percepção de semelhanças e diferenças entre os objetos
leva à idéia de atributo: na formação de um conjunto o aluno saberá destacar a(s)
característica(s) comum(ns) a todos os elementos que o constituem.
Segundo Piaget, a identificação de conjuntos com até 5 elementos pode ser feita
de maneira instantânea; daí porque os números até 5 são chamados números perceptuais.
A partir daí, o número de elementos de outros conjuntos baseadas nos primeiros:
AVSI
OFICINAS 3.39
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
A determinação dos conjuntos pode ser feita de duas maneiras:
POR EXTENSÃO
POR COMPREENSÃO
Todos os elementos
são designados
O atributo comum
é destacado
a, e, i, o , u
Vogais
A construção da estrutura de conservação de quantidades discretas leva a inúmeras
atividades envolvendo conjuntos com o mesmo número de elementos; a partir de tais
atividades, podem ser exploradas as idéias de equivalência (equipotência entre conjuntos) e
correspondência um-a-um (correspondência biunívoca). Lembramos mais uma vez que o
importante é a construção dos conceitos e não simplesmente o uso da terminologia específica.
A construção da seriação possibilita outras atividades que, em última análise, se
referem à comparação e ordenação; assim,
• Qual o conjunto que tem mais elementos?
• Qual o conjunto que tem menos elementos? Como colocá-los em ordem?
• Quantos elementos este conjunto tem a mais (ou a menos) que o outro?
• Quantos elementos devo colocar neste conjunto para ele ficar com 5 elementos?
Finalmente, a possibilidade de classificação leva a um grande enriquecimento no
que se refere à descoberta das relações lógicas, entre as quais, a de inclusão.
Os Blocos Lógicos criados por Zoltan Dienes, constituídos por 48 peças de cor,
forma e espessura variadas, possibilitam uma gama de experiências, nas quais as 48 peças
correspondem ao conjunto universo (aquele que contém os demais) e cada atributo
considerado permite descobrir os subconjuntos:
Atributo
Subconjuntos
Nº de Peças no
Subconjunto
Forma
Quadrado/retângulo/
triângulo/Disco
12
Cor
Vermelho/azul/amarelo
16
Tamanho
Grande/pequeno
24
Espessura
Fino/grosso
24
5.5. Trabalhando a Classificação
Classificar significa coordenar semelhanças e diferenças. Implica reunir os objetos
em classes de acordo com seus atributos de tal forma que as classes assim formadas
possam ser incluídas em outra mais ampla. Por exemplo: a classe dos gatos e a dos cães
se incluem na classe dos animais. Assim, há mais animais do que gatos, porque existem
outros animais além dos gatos. Por outro lado, as classificações pressupõem não apenas
relações de semelhança, mas também o reconhecimento de diferenças:
O gatinho Mimi não pertence à classe dos cães. Por quê?
Para que se constitua uma classe, Piaget faz intervir duas espécies de relações
necessárias a esta constituição:
3.40 OFICINAS
AVSI
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
• as qualidades comuns a seus membros e aos da classe a que pertencem, assim como
as diferenças que os distinguem dos elementos de outras classes.
• as relações da parte com o todo no sentido de dependência, pertinência e inclusão,
determinadas pelos “todos”, “alguns”, “nenhum”.
No exemplo dos gatos e dos cães, a criança percebe que há mais animais que
gatos, porque todos são animais e apenas alguns são gatos.
Arranjos, chamados de coleções figurais, a criança apenas manipula, olha, gira,
afasta e aproxima objetos; ela não sente necessidade de utilizar semelhanças ou diferenças
dos objetos nos seus arranjos. Por exemplo: ao colocar uma peça triangular em cima de
um quadrado, ela dirá que se trata de uma casa: Piaget denomina de “coleção figural” os
arranjos obtidos desse modo. Da mesma forma, quando agrupa elementos de acordo
com sua conveniência utilitária – um bebê com a mamadeira; um pássaro na árvore; uma
mesa rodeada por cadeiras – a criança estará lidando com coleções figurais.
A coleção figural se constitui em uma figura construída a partir da ligações entre
seus elementos.
A seguir, ocorre a fase da coleção não-figural. Nessa coleção, os agrupamentos
são realizados em função de semelhanças e diferenças, mas sem alcançar a hierarquia
própria das classes. Os objetos são agrupados em pequenos grupos, de acordo com
suas semelhanças e a criança é capaz de separar o grupo em subgrupos, bem como
reunir estes e formar grupos mais abrangentes.
Quando a criança forma grupos de peças dos seus blocos lógicos, organizandoos de acordo com a cor, forma ou tamanho está realizando uma coleção não-figural.
A idéia de subconjunto ou subgrupo está implícita nesta atividade: o grupo das
peças azuis é um subconjunto da coleção maior, no caso, as peças lógicas. A percepção
dos subconjuntos integrados ao conjunto universo constitui a passagem para o domínio
de construção de classes, mediante a ação de inclusão.
A classificação hierárquica é possível quando a criança percebe a reversibilidade
operatória, fazendo a síntese entre a compreensão e a extensão da classe. Assim, a
estrutura de classificação se consolida e a criança passa a ser capaz de realizar inclusões
hierárquicas, ou seja, perceber classes “encaixadas” sucessivamente umas nas outras:
AVSI
OFICINAS 3.41
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
Por isso, a classificação é uma operação da maior importância, sem a qual o
conceito de número não se constrói por completo.
A lógica necessária para compreender que dentro de uma classe mais ampla
incluem-se subclasses é a mesma para entender que 5 é igual a 2 mais 3, pois cada
numero é uma classe dentro da qual podem ser realizadas todas as operações lógicas.
5.6. Seriação
Já seriar significa agrupar objetos de acordo com suas diferenças ordenáveis,
em função de um atrito destacado. Por exemplo, um conjunto de varetas de tamanhos
diferentes pode ser organizado em ordem ascendente (da menor para a maior) ou
descendente (da maior para a menor).
Além do tamanho (grande, pequeno), outros atributos podem ser destacados para
a organização de séries:
Idade Æ enfileirar os alunos da sala de acordo com a idade, dos mais novos para
os mais velhos.
Espessura Æ organizar tubos dos mais finos aos mais grossos.
Altura Æ organizar os alunos dos mais altos para os mais baixos.
Comprimento Æ curto / comprido.
Largura Æ largo / estreito.
Volume Æ cheio / vazio.
Velocidade Æ lento / rápido.
É importante salientar que a seriação também está relacionada ao conceito de
número e envolve a compreensão da relação de ordem, uma relação assimétrica que se
traduz em expressões do tipo: “mais que”, “menos que”, “maior que”, “menor que”, “muito“,
“pouco”, “nenhum”, “algum”, “todos” e outras de nosso vocabulário usual.
Nível 1 – A criança ainda não domina a seriação. Para organizar bastões de tamanhos
diferentes, ela, eventualmente, conseguirá arrumá-los aos pares e aos trios (intercalando
um médio entre o grande e o pequeno), mas não é capaz de coordenar os diferentes
tamanhos ao mesmo tempo:
Nível 2 – A criança consegue arrumar os bastões em série, na base da tentativa e do erro.
Sua abordagem do problema ainda não é sistemática; solicitada a intercalar novos
elementos, em geral, desmancha a série já feita e começa tudo outra vez, ou faz a
intercalação através de tentativas. Daí porque esta forma de seriar é perceptiva ou
intuitiva. Esta criança ainda não consolidou em sua mente a coordenação entre duas
inversas: “menor que” precisa ser percebida simultaneamente a “menor que”:
3.42 OFICINAS
AVSI
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
b é maior que a
b é menor que c
a
b c
Nível 3 – A criança construirá a série utilizando um método sistemático, coordenado, onde
está presente a reversibilidade, por reciprocidade, no conhecimento de um bastão maior
que todos os anteriores e menor que os restantes. Esse reconhecimento de relações
simultâneas indica um estrutura de seriação completamente desenvolvida e conseguida
sem tentativas e erros. A criança agora reconhece prontamente a dupla propriedade do
objeto b: ser maior que a e menor que c.
A idéia de transitividade é a culminância da seriação e possibilidade e efetiva
compreensão de que:
se A = B
e
então A = C
B=C
se A > B
eB>C
então A > C
5.7. Conservação
Conservar significa compreender que determinada quantidade permanece a
mesma, ainda que sua aparência ou sua disposição espacial sejam alteradas – daí, decorre
o princípio da invariância do número.
São observados três estágios, em relação ao comportamento da criança.
1) A criança faz sua fileira coincidir com a outra pelas suas extremidades, mas a quantidade
de fichas não coincide.
No 1º estágio, há ausência de conservação; a criança procede por correspondência
global, com base na percepção do comprimento das fileiras. Não há nem
correspondência termo a termo, nem equivalência.
AVSI
OFICINAS 3.43
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
2) A criança organiza corretamente a 2ª fileira, fazendo responder a cada ficha vermelha
uma amarela.
2º estágio, a criança faz esta correspondência e obtém a equivalência sem,
necessariamente, perceber o conceito de número: se os elementos da 1ª fileira forem
espaçados, a criança poderá não admitir a igualdade entre as duas.
3) A criança coloca uma ficha amarela para cada ficha vermelha, sem se prender ao espaço
entre elas:
3º estágio, a criança, depois de toda essa manipulação, percebe que a soma numérica
de cada fileira se conserva, mesmo quando se modifica o arranjo espacial dos elementos.
5.8. O Trabalho com o Material
Jean Piaget pesquisou atentamente as relações que as crianças estabeleciam
com o espaço, com as quantidades e com o número ao longo do seu processo de
aprendizagem e desenvolvimento. Esses estudos, acrescidos dos trabalhos realizados
mais tarde por outros pesquisadores, formam o suporte teórico que temos hoje para nos
aprofundarmos na tarefa de compreender como a criança constrói o seu conhecimento na
área de Matemática.
Esse suporte teórico, embora possa ser encarado como ponto de partida para as
discussões epistemológicas de Matemática ( ou seja, que dizem respeito a como as crianças
– ou as pessoas, em geral – constroem o seu conhecimento), não deve ser encarado
como o nosso objetivo final, algo que deve ser atingido a todo custo. Ele é um instrumento
muito útil a nós, professores, para nossas reflexões, estudos e pesquisas: mas não é uma
metodologia nem uma linha de trabalho.
É importante esclarecer esses pontos antes de aprofundarmos a discussão em
torno do material concreto e seus usos, já que muitas interpretações errôneas acerca de
“o que é o Construtivismo” acabam nos levando a uma utilização bastante questionável
desse recurso em nossas salas de aula. Isso ocorre em grande parte por causa de uma
espécie de “mistificação” existente em torno do material manipulativo dentro de uma
proposta construtivista em Matemática. É exatamente a esse respeito que falaremos a
seguir.
É muito comum ouvirmos afirmações como esta: “Eu sou construtivistas, só
trabalho com material concreto”. Ora manipulativo, o Construtivismo não é uma metodologia
a ser seguida. Nesse sentido, é um ledo engano acreditar que o simples fato de utilizar
materiais manipuláveis pelas crianças em nossas aulas nos torna “construtivistas“. Não é
bem assim ...
Partimos do principio de que o conhecimento é construído pela pessoa através
das relações que ela estabelece com a realidade. Essas relações são constantemente
modificadas e aperfeiçoadas à medida que novas experiências vão sendo vivenciadas,
3.44 OFICINAS
AVSI
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO
gerando desafios superáveis a partir de novas relações que serão estabelecidas num
processo constante de interação. O tão conhecido “material concreto” tornou–se uma
expressão corriqueira que, nos dias de hoje, define o ponto de partida de toda ação escolar
tida como construtivista – a “realidade concreta” dos alunos.
No caso específico de crianças em fase de alfabetização, é muito comum elas
entremearem suas experimentações na leitura e na escrita com mitos ou regionalismos,
fatos ou personagens carregados de fantasia e imaginação. Enquanto lê e escreve, cada
criança se revela como indivíduo que tem história, tem medos, desejos e “realidade”
bastante peculiares. Todas essas coisas não são concretas do ponto de vista estritamente
material, mas são inquestionavelmente, reais.
Mas, afinal, o que podemos chamar de “material concreto”? O quadro-de-giz é
um material concreto? E uma folha de papel é?
Cada área diferente (Língua Portuguesa, Ciências, Matemática etc.) pode interpretar
diversos materiais como concretos ou não, conforme seus usos e necessidades específicas.
De um modo geral, qualquer tipo de material pode ser utilizado como material manipulativo
dependendo do uso que se faz dele. Vejamos como exemplo o texto em Língua Portuguesa:
o professor deve considerá-lo uma experiência concreta, se entendido como uma unidade
significativa concreta de percepção auditiva e visual tomada pelos usuários da Língua
(falante/ouvinte/escritor/leitor) em situações de interação e comunicação.
Em Estudos Sociais, podemos tratar como material concreto tudo aquilo que a
criança e o professor possam trazer para desenvolver as atividades propostas. O principal
instrumento são as vivências e experiências relatadas e discutidas em turma, além de
outros instrumentos como jornais, revistas, noticiários de TV, jogos de todos os tipos, com
os quais se fará a construção dos conceitos de Espaço, Tempo, Grupo Social e Trabalho.
O conceito de “concreto” amplia-se ainda mais quando pensamos na área de
Educação Artística, onde o material concreto utilizado (além do pano, papel, madeira,
argila, papelão etc., que podemos manipular e dar nova forma) é também a produção
artística da nossa e de outras culturas: através da analise de artesanato, ilustrações de
obras de arte, apresentações teatrais e musicais irão conhecer mais sobre o processo de
criação humano e, conseqüentemente, enriquecer o seu próprio repertório expressivo.
Na Matemática, a definição de material concreto ganha ares de polêmica na medida
em que existe quase uma convenção no sentido de chamar de “concretos” apenas aqueles
materiais famosos, conhecidos de todos, como os blocos lógicos, o material de contagem
etc. Não é bem assim, nem em Matemática nem nas outras áreas. Se oferecermos ao
nosso aluno uma folha de jornal e permitimos que ele a explore, estabelecendo relações e
fazendo descobertas a propósito de um determinado assunto, então essa folha de jornal
está sendo usada como um material concreto.
Também é importante prestarmos atenção ao fato de que não basta apresentar
os materiais às crianças para livre exploração, ou então conduzirmos inteiramente o trabalho
delas na manipulação do material. É preciso que as crianças tenham toda a liberdade para
descobrirem o material, brincarem com ele em manipulações livres, assim como é
importante que o professor saiba onde quer chegar com a atividade em questão, ou seja,
quais são os seus objetivos. Somente assim, ele poderá conduzir estimulando seus alunos
a fazerem descobertas e apresentando desafios que os ajudem na construção de um
determinado conceito.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Renato S. Material de referência para o professor. Belo Horizonte, 2002. (mímeo).
AVSI
OFICINAS 3.45
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
A música é a linguagem que se traduz em formas sonoras
capazes de expressar e comunicar sensações,
sentimentos e pensamentos, por meio da organização
e relacionamento expressivo entre o som e o silêncio.
A música faz parte da vida do nosso dia-a-dia, desde a mais tenra infância; e
antes mesmo quando ainda se está no ventre materno, as notas musicais invadem nossa
mente, seja sorrateira ou explicitamente. Em nossa cultura, quando uma criança nasce,
logo em seus primeiros desconsolos, a mãe utiliza-se das cantigas para acalentar e acalmar
seu filho; vemos isso em todos os níveis socioeconômicos e em diversas culturas.
O ambiente em que vivemos é rodeado de sons e a música está presente em
formas e situações das mais variadas. Assim, a musicalização se inicia de forma natural
logo na primeira infância. Toda criança cantarola, balbucia e traça melodias desconhecidas
dos adultos à sua volta. Através do comportamento imitativo, as crianças logo querem
fazer aqueles sons melodiosos que elas escutam, aprendem que também podem produzir
sons através de instrumentos como latas e chocalhos e que esses sons também podem
ser melodiosos; geralmente, as crianças dançam enquanto fazem suas músicas.
Ouvir música, aprender uma canção, brincar de roda e realizar brinquedos
rítmicos são atividades que despertam, estimulam e desenvolvem o gosto pela atividade
musical, além de propiciar a vivência de elementos estruturais dessa linguagem. A
criança, através da brincadeira, relaciona-se com o mundo que a cada dia descobre e
é dessa forma que faz música: brincando. Receptiva e curiosa, ela pesquisa materiais
sonoros, “descobre instrumentos”, inventa melodias e ouve com prazer a música de
todos os povos.
De forma ativa e contínua, a aprendizagem musical integra prática, reflexão e
conscientização, encaminhando a experiência para níveis cada vez mais elaborados. Nesse
sentido, a música deve ser trabalhada de forma lúdica para que a criança sinta prazer em
participar das aulas. O envolvimento dos alunos é muito importante para o bom andamento
do processo de musicalização. “É aconselhável (...) que a música seja apresentada por
meio de estórias, dramatizações, jogos e brincadeiras que motivem a participação” (Silva,
1992 apud Oliveira, 2001, p. 100).
AVSI
OFICINAS 3.47
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
É tarefa do professor incentivar a participação dos alunos desde bem pequenos;
mesmo os bebês são capazes de diferenciar som e silêncio e, se colocarmos um instrumento
em suas mãos, saberão que eles devem tocar (balançar) o instrumento para ouvirem o som.
De acordo com Oliveira (2001), a música deve começar a ser trabalhada o mais
cedo possível, assim que a criança entra na creche ou pré-escola, como parte da rotina da
sala. Durante a educação infantil, devem ser trabalhados sons corporais, atenção, noção
de ritmo e “ouvido musical”.
Segundo as indicações do Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil, a
música pode ser trabalhada na educação infantil de acordo com a faixa etária – dos 0 aos
3 e dos 4 aos 6 – considerando-se que se deve respeitar o nível de percepção e
desenvolvimento (musical e global) das crianças em cada fase, observando-se também as
diferenças socioculturais bem como as regionais.
O trabalho realizado com a música deverá priorizar a possibilidade de desenvolver
a comunicação e expressão por meio dessa linguagem, utilizando-se conceitos em
construção, organizados num processo contínuo e integrado através da:
• exploração de materiais e a escuta de obras musicais para propiciar o contato e as experiências com a matéria-prima da linguagem musical: o som (e suas qualidades) e o silêncio;
• vivência da organização dos sons e silêncios em linguagem musical pelo fazer e pelo
contato com obras diversas;
• reflexão sobre a música como produto cultural do ser humano, uma importante forma
de se conhecer e representar o mundo.
Quanto aos objetivos:
Dos 0 aos 3 anos
Dos 4 aos 6 anos
Ouvir, perceber e discriminar eventos
sonoros diversos, fontes sonoras e
produções musicais.
Explorar e identificar elementos da música
para se expressar, interagir com os outros
e ampliar seu conhecimento do mundo.
Brincar com a música, imitar, inventar e
reproduzir criações musicais.
Perceber e expressar sensações,
sentimentos e pensamentos, por meio de
improvisações,
composições
e
interpretações musicais.
Quanto ao fazer musical:
Dos 0 aos 3 anos
Dos 4 aos 6 anos
Exploração, expressão e produção do
silêncio e de sons com a voz, com o corpo,
com o entorno e com materiais sonoros
diversos.
Reconhecimento e utilização expressiva,
em contextos musicais das diferentes
características geradas pelo silêncio e
pelos sons: altura (graves ou agudos),
duração (curtos ou longos), intensidade
(fracos ou fortes) e timbre (característica
que distingue e “personaliza” cada som).
Interpretação de músicas e canções
diversas.
Reconhecimento e utilização das
variações de velocidade e densidade na
organização e realização de algumas
produções musicais.
3.48 OFICINAS
AVSI
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Dos 0 aos 3 anos
Participação em brincadeiras e jogos
cantados e rítmicos.
Dos 4 aos 6 anos
Participação em jogos e brincadeiras que
envolvam a dança e/ou a improvisação
musical.
Repertório de canções para
desenvolver memória musical.
se
Quanto à apreciação musical:
Dos 0 aos 3 anos
Dos 4 aos 6 anos
Escuta de obras musicais variadas.
Escuta de obras musicais de diversos
gêneros, estilos, épocas e culturas, da
produção musical brasileira e de outros
povos e países.
Participação em situações que integrem
músicas, canções e movimentos
corporais.
Reconhecimento de elementos musicais
básicos: frases, partes, elementos que se
repetem etc. (a forma).
Informações sobre as obras ouvidas e
sobre seus compositores para iniciar seus
conhecimentos sobre a produção musical.
No trabalho com a música, deve-se utilizar os diferentes estilos musicais: popular,
folclórico, erudito, cantigas de roda, mas priorizando sempre a música brasileira que é
riquíssima tanto histórica como culturalmente. As cantigas de roda apresentam uma vasta
possibilidade de trabalho com as crianças. Segundo Ayoub (apud Oliveira 2001), as cantigas
de roda
... geralmente realizadas em círculo, além de todas as suas variações rítmicas,
favorecem a participação de todos e o desenvolvimento de um sentido de grupo
e de uma identidade cultural, que são reforçados pelas inter-relações que ocorrem
durante o canto em conjunto (p. 101).
A música popular é talvez o laço que pode ajudar a aproximar os filhos dos pais;
os filhos com a história dos pais, e, por isso, com a cultura do nosso povo.
É preciso incentivar os alunos a ouvirem músicas que façam parte do universo
infantil e existem bons CDs que apresentam cantigas de roda, outros que incentivam a
criatividade, as brincadeiras necessárias ao desenvolvimento das crianças; porém, faz-se
necessário a apresentação também de outros repertórios musicais que podem ser de
conhecimento das crianças.
Para Oliveira (2001), o trabalho realizado com a música não tem o objetivo de
formar músicos, mas de desenvolver a criatividade das crianças, pois primeiro é preciso
ampliar o universo sonoro das crianças, para, mais tarde, pensar na grafia musical, e isso
não é papel da educação infantil, de acordo com Jeandot (1993):
... uma aprendizagem voltada apenas para os aspectos técnicos da música é
inútil e até prejudicial, se ela não despertar o senso musical, não desenvolver a
AVSI
OFICINAS 3.49
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
sensibilidade. Tem que formar na criança o musicista, que talvez não disponha de
uma bagagem técnica ampla, mas será capaz de sentir, viver e apreciar a música
(apud Oliveira, 2001, p. 102).
É de fundamental importância que o trabalho com a música envolva todo o corpo,
pois a criança de zero a seis anos se expressa através de gestos e sons. Assim, as aulas
devem ter atividades diversificadas para assegurar o envolvimento das crianças durante a
maior parte do tempo e garantir a realização de um bom trabalho. Pode-se utilizar em uma
mesma aula: música para cantar, para dançar, para tocar e conto sonoro, a fim de se tornar
a aula mais interessante e participativa.
A seguir, apresentaremos uma série de atividades que podem auxiliar no trabalho
cotidiano com a musicalização.
Parte I
a) Audição de Música instrumental: percussão, cordas, teclado para identificação dos
instrumentos usados.
b) Atividades de produção musical:
• Meu corpo, um instrumento musical;
• Orquestra de papel;
• Bandinha de Sucatas.
A tradição se comunica através das músicas: apresentação de tipos de músicas
acompanhadas com os instrumentos musicais confeccionados.
• músicas de ninar;
• músicas de brincadeiras;
• músicas para comemoração;
• músicas de roda.
Parte II
a) Atividades de Percepção Auditiva: (exercícios práticos e sugestivos)
• Consciência auditiva: capacidade de reagir a estímulos sonoros:
- passear de mãos dadas e parar ou soltar a mão quando ouve um determinado
som;
- marchar, correr, pular, ... ao ritmo de batidas.
• Atenção auditiva: capacidade de concentrar a atividade psíquica nos estímulos
auditivos:
- em silêncio, identificar os sons do ambiente.
• Localização auditiva: habilidade de determinar de que direção está vindo o
som:
- andar na direção do som de olhos vendados;
- chicotinho queimado.
• Identificação auditiva: habilidade de relacionar um som à sua frente:
- imitar o som: do telefone, da buzina, da campainha, do relógio, do repique
do sino, do trovão, do espirro, da chuva, do cachorro, do gato, do galo, de
choro, de tosse, de gargalhada.
3.50 OFICINAS
AVSI
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
• Discriminação auditiva: habilidade de diferenciar um som de outros e diferença
em sons:
- dizer se os sons são iguais ou diferentes.
Parte III
a) Atividades de desenvolvimento da fala:
• soprar canudinho para formar bolhas de sabão;
• soprar apito, balões, penas, algodão;
• abrir e fechar a boca, vagarosamente, rapidamente;
• mastigar com boca fechada;
• encher e contrair as bochechas;
• esticar e encolher a língua;
• estalar a língua;
• contrair os lábios para assobiar;
• arredondar os lábios como um O.
b) Expressão verbal: capacidade de desenvolver um vocabulário básico de acordo com
sua idade.
• telefone sem fio;
• telefone;
• verbalizar ações dramatizadas: pular, correr, cantar, escrever;
• enumeração: Fui à feira e comprei..., Fiz um passeio e vi...;
• descrição de objetos e pessoas;
• cantar músicas da tradição;
• entrevista.
c) Raciocínio verbal:
• completar a frase;
• continuar uma seqüência;
• continuar uma narração (história conhecida);
• (história inventada).
Sugestões de CDs Infantis
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AVSI
As mais belas cantigas de roda – M. Viana/Nave dos sonhos
Casa de Brinquedos – Toquinho
Canções de Ninar – Coleção Palavra Cantada
Canções de Brincar – Coleção Palavra Cantada
Passarim o Palhaço Cantor – Rubinho do Vale
Palavra Cantada –
Arca de Noé 1 e 2 – Vinícius para crianças
Mil Pássaros – Sete histórias de Ruth Rocha
Pandalelê
Lullabies and Children’s songs – Unesco Collection
Na Pancada do Ganzá – Antônio Nóbrega
Os Saltimbancos – Adap. Chico Buarque
OFICINAS 3.51
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
• Villa-Lobos às Crianças – Jerzy Milewski, Contabile Projetos de Artes, RJ
• Villa-Lobos das Crianças – Espetáculo Musical de Cantigas Infantis
• Villa-Lobos para Crianças – Instituto Itaú Cultural
Referências Bibliográficas
JOGOS INFANTIS: brinquedos cantados. Disponível em: http://www.terrabrasileira.net/folclore.
Acesso em julho de 2003.
OLIVEIRA, Débora Alves de. Musicalização na educação infantil. ETD, Campinas, v.3, n.1, p. 98108, dez. 2001.
REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA EDUCAÇÃO INFANTIL. Ministério da Educação e
do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. P. 43-81.
SOFFIANTINNI, Cristina. As cantigas de roda. Belo Horizonte. Mímeo.
SOUZA, Marco Aurélio C. de. Relatório Curso de Música do ano de 2002. Belo Horizonte, 2003.
Mímeo.
3.52 OFICINAS
AVSI
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Anexo
Relato de Experiência
Neste anexo, encontra-se um relatório final de aulas dadas pelo Professor Marco
Aurélio de Souza, no qual o professor descreve, de forma resumida, algumas das atividades
mais marcantes do ano de 2002, durante as aulas de música, ao mesmo tempo em que faz
uma reflexão sobre o significado de alguns gestos desse processo.
Não cessaremos nunca de explorar
e o fim de toda nossa exploração
será chegar ao ponto de partida...
T. S. Eliot
Este documento não é um relatório técnico das Aulas de Música, mesmo porque
me aborrece um pouco este título – Aulas de Música. Este documento pretende ser relatos,
depoimentos retirados das nossas experiências quotidianas. Por certo que não
mergulhamos no científico – na matéria técnica – sem que este tenha uma proximidade
com o dia-a-dia, com a vida corriqueira. Por isso, as aulas são alegres, vivas; cheias da
novidade que é a própria vida desses meninos.
Sem querer afirmar o óbvio: o “Criador” é o ponto de partida; e, por isso, a justiça,
a beleza, o ser criatura (a contradição, as perguntas, a dúvida), enfim, a realidade toda é o
que nos anima.
“Observando os meninos, fico a imaginar o que passa em suas cabecinhas. De
repente ‘eu’ estando ali no meio da roda e os meus amigos cantando prá mim:
“Você gosta de mim ó maninha, eu também de você...”
Eu segurando uma flor que, ao final da cantiga, darei a quem eu escolher.
Eu sendo cuidado com um gesto de afeto; eu podendo escolher a quem dar um
abraço; eu sendo escolhido.
A roda é um centro (um lugar) onde todos são abraçados, onde todos são
chamados a comparar suas vidas: os que são mais fortes e os que são mais fracos, os que
estão calmos e os perturbados. O canto como forma estética da beleza, a roda como
forma aglutinadora, humanizadora.”1
“Propus para este mês uma cantiga chamada “Eu” – Paulo Tatit e Sandra Peres –
que conta a história do menino que pergunta prá sua mãe:
“mãe, onde é que você nasceu”?
Aí, ela conta toda sua história familiar, de como seus avós se conheceram, o que
faziam, com que trabalhavam etc. É uma canção muito poética, linda mesmo, cheia de
sonzinhos, ruídos. Partindo dessa idéia, propus à prof. Carla e ela fez um bilhetinho pedindo
aos pais dos meninos que contassem um pouco da história de como eles se conheceram
e se apaixonaram. O resultado foi muito bom. Recebemos e lemos para eles na sala de
aula. Houve casos alegres e apaixonados (como os que se encontraram num baile de
“Forró”) e também alguns tristes. O importante é que eles passaram a conhecer um pouco
mais os seus pais; estabeleceu-se uma possibilidade de abertura entre eles, o que cada
1
Relatório agosto 2000.
AVSI
OFICINAS 3.53
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
um, ao seu modo, soube aproveitar. Situações embaraçosas também não faltaram, como
filhos que não vivem com o pai; ou da mãe que não quis escrever. No entanto, todas as
adversidades foram tocadas e tratadas com respeito cuidadoso.”2
“Estávamos trabalhando a canção “Ciranda dos Pares”, de Bia Bedran, que é um
poema de associações muito bonito e muito imaginativo; então, resolvi usar essa idéia e
compor junto com os meninos o nosso próprio poema dos “pares”.
Bia canta:
“Eu sou a nuvem, eu sou o céu
Eu sou a concha, eu sou o mar
Eu sou a linha, eu sou o carretel
Sou abelhinha, hoje eu sou o mel.”
Fizemos, então, o nosso poema com associações simples tipo:
“Eu sou o ovo, eu sou a galinha
Eu sou o arroz, eu sou o feijão.”
E outras bem mais interessantes como:
“Eu sou a serra, eu sou a lima
Eu sou o vento, eu sou o ‘tornado’
Eu sou o moleque, eu sou o passarinho.”
Tudo isso me causou grande surpresa, o que me fez pensar que, cantando,
brincando ou fantasiando, eles estão desenvolvendo a sua capacidade de criticar, de
comparar e, então, de usar a razão. Parece-me que eles estão entendendo as implicações
das coisas:
“eu sou a serra, eu sou a lima”; ou “eu sou o moleque, eu sou passarinho”.
E verdade que eles são “moleques”, mas também é verdade que eles são
“passarinhos”.
– Alguém pode negar?
Não há limites para quem cria.
Em Memórias da Emília (de Monteiro Lobato), a certa altura Emília se dirige ao
Visconde de Sabugosa dizendo que queria que as suas memórias fossem impressas
“em papel cor do céu, com todas as suas estrelinhas;
com tinta cor do mar, com todos os seus peixinhos
e penas de pato com todos os seus patinhos”.
Volto a afirmar que não há limites para quem cria, não cabe em nossas mãos a
explosão de vida das crianças. E não vale a pena tentarmos amalgamá-las nos nossos
projetos.
Me parece muito elucidativo um fato ocorrido numa classe há poucos dias: ao fim
da aula, eu perguntei para os meninos onde estava o meu caminhãozinho (de brinquedo).
Eles correram até a sua garaginha e pegaram o carrinho. A professora assustada logo
falou: — Crianças, não mexam, pois só gente grande pode pilotar esse carrinho. Eu fiquei
preocupado sem querer ir contra a professora – pois ela estava com medo que eles
pudessem quebrá-lo – mas falei: É, mas esse carrinho aí criança pequena pode brincar
sim.
2
Relatório agosto 2000.
3.54 OFICINAS
AVSI
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Maior que a possibilidade de quebrar o carrinho é o fato de que eles entrem em
relacionamento comigo, que eles corram o risco de se relacionarem. A repressão corta o
ímpeto e corta também a capacidade de eles se jogarem numa amizade que pode ser
educativa e marcante para sempre. Eles sabem que não devem fazer mal a mim e a ninguém.
Eles sabem.3
Maio chegou com um espetáculo da natureza! Manhãs lindas de sol, com um
ventinho fresco demais. Para não perdermos esta ocasião, fomos fazer algumas aulas no
pátio, perto da árvore e perto do beija-flor.
A princípio, estava receoso de sair com os meninos para o pátio, pois algumas
turmas têm ainda muita dificuldade de conceber relacionamentos, ser parte de um grupinho,
ouvir e esperar sua vez. Os muito pequenos têm de aprender tudo, embora tenham uma
capacidade ainda inata de se fascinar com as coisas; já os maiores, por diversas
circunstâncias, têm pensamentos preconceituosos e perderam os limites, são muitas vezes
indelicados com os colegas e até conosco professores.
Mesmo assim, atendendo a esse apelo da realidade e do coração, tomei coragem
e fomos todos para fora. O que experimentamos foi uma alegria sem medidas. Com os
maiores, fiz jogos de concentração, de memória, cantamos, rodamos o pião etc. Com os
pequenos, fizemos roda, cantamos e encenamos cantigas, formamos a “serpente”, tocamos
violão etc.
Dois fatos merecem ser comentados sobre este dia:
• O primeiro foi um presente imenso da natureza. Ao cantarmos a música do beija-flor (ao
final sempre usava um assobio com o pretexto de chamá-lo), eis que pertinho de nós
aparece um lindo beija-flor preto, que, segundo os meninos, fazia sua casinha ali na
árvore. Foi uma alegria imensa, como se faltasse um bem (uma coisa) deste tamanho
para uma beleza que é inimaginável.
• O segundo foi acontecendo aos poucos. Estávamos cantando o “Carneirinho Carneirão”
(na roda) com os pequeninos. Lentamente alguns meninos do reforço (7, 8 anos), que
já foram meus alunos ano passado, foram entrando na roda com uma liberdade incrível,
certos de que eu não iria me incomodar; certos, cheios de confiança, sinal da nossa
amizade.
Talvez não pareça tecnicamente palpável uma reflexão sobre as aulas de música
nestes níveis (que não são medidos quanto aos aspectos musicais). Porém, me desculpem
meus mestres de música; pressinto antes de tudo ser melhor dar relevância à construção
da pessoa. Não que a música seja somente um pretexto, mas ela não é um fim. Deste
modo, a comunicação destes meninos com eles mesmos, comigo e com as coisas em
volta; a percepção aguçada dos vários níveis do sensível, interior e também a percepção
do outro, do fora de mim; a afeição ao que não me pertence, ao que é do outro — e isso na
música é fundamental (a audição, o se colocar juntos no ritmo, na melodia) — a adesão às
propostas de um mestre, tudo pode nos parecer muita coisa ao mesmo tempo. Mas o
homem é complexo e possível”.4
Um dos aspectos mais interessantes do trabalho que venho desenvolvendo nas
aulas de música é que elas suscitam cada vez mais a criatividade dos professores. Aos
poucos, percebo que a música e as representações vão se tornando um hábito entre nós.
Alguns exemplos servem bem para demonstrar isso:
• Elas sempre fazem desenhos, painéis para enfeitarem as salas de aula com temas atuais,
como no dia do índio, páscoa, natal.
• Criam roupinhas, fantasias, alegorias para as cantigas.
3
Relatório março 2001.
4
Relatório maio 2001.
AVSI
OFICINAS 3.55
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
• Trazem sempre cantigas pouco conhecidas, muitas das vezes aprendidas com parentes
mais velhos. Cantos antigos da nossa tradição.
Digo isso para afirmar que estamos dividindo esta responsabilidade de ensinar
e ser companhia. As nossas vivências nascem de experiências felizes e não de um plano
ideologista. Desta forma, promovemos no final do mês de maio a festa das mães juntamente
com a coroação de Nossa Senhora da Conceição. Uma frase dita pela prof. Marta me
marcou muito. Ela disse que tinha um ‘problemão’ nas mãos, pois,
“a cada proposta feita por nós aos meninos, todos queriam participar, e por isso
tínhamos que conseguir um papel para cada um”.5
Agosto, é o mês do folclore. A creche estava se colorindo com cartazes, desenhos,
pinturas e painéis. Os professores e os alunos foram, aos poucos, dando forma a esse
tema fantástico. Levei para sala de aula e para o pátio uma “corda” para brincarmos e
também duas petecas lindas feitas artesanalmente com penas coloridas. É claro que
antigamente elas eram feitas de palha de milho ou de bananeira (como meu pai fazia),
mas não tem problema, isso eu contei prá eles. Levei o tambor e, enquanto brincávamos,
cantávamos as quadrinhas populares:
“Aonde você pretende morar...” “Sai, sai, sai ô piaba...” “Tá caindo fulô...”
Nestes dias me acompanhava a Bárbara (Educadora em uma escola de Milão –
Itália), e ela me dizia estar impressionada como é que meninos de 3, 4 anos conseguiam
pular corda com tamanha desenvoltura e ritmo. Segundo ela, seus alunos de 5 anos não
têm essa capacidade. Observo que o conhecimento vem do desafio da brincadeira. As
crianças têm um ímpeto para o novo, para o belo. Maria Amélia Pereira no seu texto
“Educação da Sensibilidade” afirma que “quando a criança brinca, dentro dela surgem
indagações sobre diversas áreas do conhecimento, como matemática, ciência, linguagem,
estudos sociais, arte, filosofia etc...” A atividade não é um “exercício físico”; é uma diversão,
é uma brincadeira que leva em consideração as relações da criança com as coisas à sua
volta, sua casa, seus irmãos, sua capacidade motora e intelectual.
Neste mês de agosto, um fato inusitado aconteceu na turma da Cássia. É a turma
do Carlos, um menino de 5 ou 6 anos que, junto com o irmão mais novo, não pára de
chupar o dedão. Provavelmente por problemas psicológicos advindos de relações familiares
complicadas. O fato é que um dia, no começo do ano, eu falei prá ele que, se continuasse
chupando o dedo, os micróbios iriam contaminá-lo e ele iria ficar com a barriga cheia de
lombrigas. Daí por diante, toda aula, ele me procurava pedindo para conhecer a lombriga.
Após alguns meses, consegui com uma amiga bióloga (Graciela Frucch) um exemplar
desse “bichinho” e levei prá sala de aula num vidrinho. Todos, claro, acharam nojento e
feio. O curioso disso é que mesmo assim o Carlos continuou a chupar o dedo. Comentei
com o Renato Boechat (Dentista da creche) e ele disse que uma hora ou outra esse fato
pode tocá-lo, e ele, lembrando, pare de chupar o dedo. Assim espero. De qualquer forma,
espero que ele entenda que eu olhei para o seu desejo de conhecer com uma atenção
simples e respeitosa.”6
Além do desenvolvimento auditivo, rítmico, melódico que todas as cantigas e
brincadeiras proporcionam, decidi, neste fim do ano, levar dois brinquedos para serem
fabricados na sala de aula. O primeiro é o “Balangandão Arco-íris”: feito com papel crepom
5
Relatório junho 2001.
6
Relatório agosto 2001.
3.56 OFICINAS
AVSI
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
e linha de papagaio (parece um ‘berimbau’ – como se diz aqui em Minas ). Os meninos
giram pelo ar as fitas de papel crepom formando desenhos coloridos, como fazem as
ginastas das Olimpíadas. O segundo é a “Bestinha de grampo”: uma espécie de arco e
flecha feito com grampo de cabelo, prendedor de roupas e palito de fósforo. Parece uma
atiradeira medieval inofensiva, mas muito divertida. Com isso, podemos trabalhar a
concentração, a coordenação motora, a imaginação e, principalmente, o fortalecimento
da nossa amizade.7
“Eis a questão: Como ensinar aos meninos o que é o carnaval? Como fazê-los
entender uma festa tradicional brasileira: uma festa do ritmo, do corpo, da fantasia?”
Claro que toda explicação seria insuficiente diante daquilo que torna essa festa
tão mágica. Pensei que, acima de tudo, a experiência seria o melhor caminho. Tratei logo
de imaginar como foi que me aconteceu na infância, pois hoje em dia as imagens que
temos de carnaval nos fazem quase esquecer que a alegria e a pureza do coração podem
andar juntas no mesmo barco. Pensei na leveza da euforia que nos fazia brincar no salão
com nossos amigos, ora jogando confetes e serpentinas, ora cantando e balançando os
bracinhos. Me lembro que tudo é meio primitivo: o batido do tambor, a voz sem pudor, a
sensualidade da satisfação e da alegria: isso é o carnaval.
Busquei alguns enfeites que poderiam sugerir umas fantasias (havaianas, gatinho,
índio) e peguei o tamborzinho para animarmos. Ensinei para eles a marchinha “Mamãe eu
quero” – Você se lembra? E a surpresa foi vê-los aos poucos reagindo ao chamado da
música e do ritmo. Na turma da Carla, ao meu lado estava o Caíque que mexia os ombros
numa dança totalmente leve e sem compromissos, uma soltura de quem parece estar
criando o carnaval. O corpo agradece e se diverte, como numa ciranda ou num jogo de
futebol. Na turma da Milene, estava na minha frente o Richard, dançando como um
personagem encantado que, com seus movimentos engraçados, com seu sorriso seguro
e cheio de certeza, parece que queria nos convencer a segui-lo. E é claro que nós que, por
algum motivo, somos mais tímidos, aos poucos nos entregamos também ao seu apelo.8
... “quero lembrar do dia em que a Jéssica me chamou para ouvi-la cantar. Era a
música da propaganda da TV que ela disse à sua mãe que queria me mostrar.
Achei uma grande oportunidade para contar aos seus coleguinhas que ela sabia
aproveitar o que tem beleza. Gostei muito da música e a ensinei para todos: “ai
que saudade d’ocê” (Geraldo Azevedo).9
Por que falar baixinho se todos falam alto? Imagino que, se os meninos tivessem
argumentação, falariam algo assim.
É muito comum que, numa sala de aula cheia de crianças, o nível da intensidade
de voz seja muito alto. Tanto que a Stefani — da turma da Neide – costumava chorar de
incômodo quando a gente gritava e fazia bagunça. Mas é esse o momento de querer ser
ouvido, de se afirmar e exercitar a palavra. Ok. Contudo, esse é também o momento de
perceber a própria voz e de aprender a ouvir. Trouxe prá sala de aula um brinquedo que se
chama “matraca.” A gente gira e ele faz um barulhão (quando alguém é muito falador nós
dizemos que é uma ‘matraca’). Brincamos de colocar e tirar as mãos do ouvido, como um
tampão, deixando passar ou obstruindo o som. Foi muito interessante irmos assim
abaixando o nosso tom de voz para falarmos e cantarmos.10
7
Relatório dezembro 2001.
8
Relatório janeiro 2002.
9
Relatório abril 2002.
10
Relatório maio 2002.
AVSI
OFICINAS 3.57
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
“A primavera da Lagarta” é a história da mudança, da transformação. É o paradigma
da primavera, quando nasce a vida, quando nascem das plantas as cores.
E a história dessa música (“A Primavera da Lagarta”) é a história de uma gulosa e
preguiçosa lagarta que “come, come, come sem parar”, causando um incômodo enorme
nos outros bichinhos da floresta, tanto que eles se juntam e fazem um conclave para “acabar
com a raça” da lagarta. Só que a surpresa veio logo: eles não sabiam que a lagarta precisava
comer muito para poder se recolher no seu casulo para aguardar a sua mutação. E isso
aconteceu aos olhos de todos, causando um grande espanto. De repente, ela foi saindo
devagar do casulo e, quando conseguiu abrir suas lindas asas coloridas, todos ficaram
encantados e de boca aberta. Para a minha fantasia (na cabeça deles tudo pode acontecer),
essa é a metáfora da esperança; eu sou o que você pode ver e sou também
imprevisivelmente muito mais que isso. A história é, de verdade, linda. A música
encantadora.11
Conto agora um fato de grande relevância. Estávamos aprendendo a canção “A
Casa”, do grande poeta brasileiro Vinícius de Moraes. Canção esta que fala de uma casa
que era muito engraçada pois não tinha teto, não tinha nada. A casa não tinha chão, não
tinha paredes, não tinha pinico etc. É uma música leve, uma grande brincadeira. Porém,
todos sabem que as crianças têm uma capacidade enorme de fazer paralelos com as
suas experiências; e a certo ponto uma delas começou a falar:
“a minha mãe separou-se do meu pai, e nós fomos morar na roça, ela levou tudo
com ela, o armário, a tv, o fogão. Agora eu voltei e estou com o meu pai, e na casa
do meu pai só tem uma cama e o som.”
Isto é, na casa do seu pai está um vazio enorme. Uma ausência grande, a falta da
mãe e das coisas materiais.”12
Trabalhei neste período um tema muito comum do nosso povo: o acalanto. O
acalanto é um aconchego, é o ato de embalar com um canto a criança, na maioria das
vezes para fazê-la dormir (aquecendo-a no braço). Bia Bedran – no seu CD Acalanto – diz
que “as cantigas de ninar ou acalantos podem ser entendidos como as primeiras notícias
que a criança recebe do mundo...”, “... um gesto extremo de amor materno.”
Escolhi duas cantigas deste CD da Bia: “Xô Papão” e “Meias de Luz”. A primeira
é muito parecida com o “Boi da Cara Preta” no sentido de exortar a imagem do “bicho
papão” (a noite escura, o sono que incomoda). A segunda – “Meias de Luz” – mostra
Nossa Senhora tecendo calmamente umas “meinhas” para o Menino Jesus.
“... o carinho, a afetividade, a presença física da mãe fazendo o gesto de acalentar
mais forte que qualquer monstro, transformando a ameaça em segurança, o medo em
coragem, a noite escura num dia claro e feliz.”13
Serginho é a novidade deste fim de ano na sala da Telma. Ele é novato, e com ele
aconteceu um fato interessante.
Quando cheguei à sala de aula, eles já estavam assentados na roda me esperando.
Escolhi uma criança para ir ao centro da roda e começamos a brincar com a cantiga “pé
de alface”.
11
Relatório julho 2002.
12
Idem.
13
Relatório outubro 2002.
3.58 OFICINAS
AVSI
A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
“Subi no pé de alface
a “Teresa” tirou um galho
(x2)
Rebola chuchu rebola
Rebola senão eu caio”
(x2)
A certo ponto, a criança que está no centro deve escolher um coleguinha e os
dois dançam uma “requebradinha” com a cintura. É uma festa e um desafio para todos.
Vencer a vergonha dos colegas e a timidez. Não por acaso, comecei a observar as reações
do Serginho, que, aos poucos, foi se encolhendo, encolhendo e de um pulo saiu da roda
e foi se assentar na cadeira perto da professora.
O que se passou na cabecinha dele ninguém sabe, porém é certo que, de alguma
forma, ele estava sendo chamado a se mostrar, a correr o risco de ficar nu diante dos
colegas. Eu certamente fiquei admirado de presenciar o fato ocorrido, porém, reconheço
com alegria que um longo caminho já foi percorrido com essa turminha, pois todos os
alunos desejam cantar e dançar, vencendo os seus medos, abandonando-se naquilo que
eles mesmos já confiam.14
Conclusão: este é, e pretende ser, apenas um pequeno relato desse intenso período
de trabalho do qual fui convidado a fazer. É importante salientar que a ajuda oferecida
pelas Creches a esses meninos é vital. Este é um tempo de disfarces, de sutilezas, no qual
a violência é muitas vezes maquiada, aliviada pelo conforto, pelo consumo ou pela fantasia.
Mas esse não é o nosso caso. Aqui a violência é explícita. Pode-se ver quotidianamente no
rosto desses meninos a aflição que, muitas vezes, é o seu dia-a-dia. A pobreza e a
irracionalidade dessa nossa situação não é (ainda bem) abafada. A nós, Deus dá a força
de uma afeição sem limites por essas crianças. E nós agradecemos a todos vocês que nos
ajudam com sua confiança e suporte.
Não é possível fazer uma experiência de amizade bela se ela não é esteticamente
bela, psicologicamente bela.
14
Relatório dezembro 2002.
AVSI
OFICINAS 3.59
A IDENTIDADE HUMANA
A IDENTIDADE HUMANA
ENTRE DESEJO E RELACIONAMENTO1
Francesco Botturi2
A idéia da felicidade como desejo constitutivo do coração do homem.
Busca-se colher qual seja o fator fundador, último, da própria educação. O fator
decisivo na educação é que o homem tenha um desejo de felicidade, de realização; só
então se abre espaço para que o homem tenha um caminho em direção à realização.
O fato de que o homem esteja em uma condição de obscuridade original em
respeito à sua realização, dá sentido àquilo que é o acontecimento educativo. O fato de
que o homem tenha um desejo de realização dá sentido a um caminho que precisa ser
percorrido, no qual ele possa ser acompanhado e guiado. Lá, onde falta a idéia da felicidade
possível ao homem, e, portanto, a razoável tentativa que o homem faz para atingir a sua
realização; lá, onde existe o ceticismo a propósito disto, também a idéia de educação,
mais cedo ou mais tarde, é eliminada.
Um dado emergente da nossa cultura é a fadiga em ter um conceito próprio de
educação, porque faltou a idéia do homem como ser único e dinâmico, isto é, a idéia de
que o homem tem uma identidade para construir. Se o homem não realiza esta tarefa, em
algum momento a idéia da educação desaparece e, em substituição, surge a idéia de
informar e de treinar as funções.
Uma característica decisiva da cultura do nosso tempo é a perda da idéia da
unicidade do homem. Este tornou-se um fragmento entre fragmentos. Na antiguidade, o
homem era visto como parte do cosmo, mas também como um microcosmo que buscava
1
Extraído de BOTTURI (2000).
2
Professor de Antropologia Filosófica na Universidade Católica do Sagrado Coração em Milão.
AVSI
ANEXOS
4.1
A IDENTIDADE HUMANA
a sua realização harmônica em si e fora de si. A partir daí, foi possível confirmar a idéia de
homem como pessoa, como centro do cosmo. Hoje, ao contrário, não temos nem a idéia
de pessoa, nem a idéia de cosmo; o homem é simplesmente um fragmento entre fragmentos
e não existe mais uma unidade nem dentro, nem fora dele.
A idéia de felicidade comporta a idéia de homem como pessoa, isto é, como
microcosmo, como uma unidade interior que busca a sua realização harmônica em si e
fora de si. Quando nós falamos que a educação é a “introdução à realidade total” pensamos
que esta frase tem um significado fundamental em consonância com o que dissemos: a
educação é introdução, logo, acompanhamento ao sentido único da realidade, que do
ponto de vista existencial da pessoa concreta tem um nome preciso: felicidade.
Educar é introduzir a esta realidade total, ao sentido único que para o sujeito é a
sua felicidade, e portanto é o acompanhamento neste caminho.
Naturalmente, isto também quer dizer que buscar a felicidade possível para o
homem é, junto, introduzir a um início de cultura, de concepção de que a realidade é um
todo. Dizer que o homem tem uma vocação à realização, que o homem não é um fragmento
perdido entre fragmentos sem sentido, significa introduzir a uma visão do mundo.
A educação tem como premissa algumas idéias extremamente coligadas entre si.
A felicidade, a pessoa, o sentido unitário da realidade constituem fundamentos de uma
visão do mundo.
Relacionamento Interpessoal como relacionamento de
reconhecimento
Nós falamos de pertencer como dinamismo fundamental do ser pessoa: o homem
se torna ele mesmo em um pertencer fundamental. O homem, de qualquer modo, possui a
realização. Se o homem tem uma vocação a algo, é porque ele é possuído por isto; de outra
forma não existiria esta vocação, esta atração, este chamado. O homem pertence ao seu
destino, pertence a Deus, o homem pertence a Deus em Cristo. Este é o nome da felicidade,
a idéia última da pessoa e o princípio cultural da exigência. Então, quando falamos de
reconhecimento queremos falar do aspecto imediatamente experimentável, portanto, também
psicológico, do relacionamento de pertencer. O pertencer, como lei fundamental do ser
homem, é também lei empírica, lei do modo com o qual o homem entra em relacionamento
com o outro homem. O ser do homem é pertencer, e a dinâmica do seu relacionar-se com os
outros é um relacionamento de pertencer, como reconhecimento.
Uma das necessidades fundamentais do homem é, de fato, comunicar de modo
radical, [comunicar a si mesmo no ser reconhecido como sujeito].
A primeira afirmação fundamental, como dissemos, é que o homem tem um desejo
de felicidade; este é o impulso vital do homem. Dentro desse desejo, que coincide com o
ser humano, o homem precisa ser reconhecido.
Certo, o homem é cheio de tantas outras necessidades, mas a característica
humana da necessidade, no sentido material do termo, é que o homem vive inevitavelmente
as suas necessidades, as mais elementares, as mais banais, as mais materiais, dentro da
busca de reconhecimento.
O que é mais ofensivo que dar alguma coisa com desprezo? É como dizer: “eu te
dou, mas não te conheço como pessoa, te desprezo como um outro eu, como um tu”;
assim como pode existir, ao contrário, uma pessoa que expresse uma participação, mesmo
em um estado de indigência. O tecido da vida é feito desses reconhecimentos, dos
relacionamentos mais íntimos àqueles sociais mais anônimos. Na realidade, toda a
socialização se instaura através da troca de experiências, mas dentro de um relacionamento
de reconhecimento ou de falta.
4.2
ANEXOS
AVSI
A IDENTIDADE HUMANA
Nesse reconhecimento, o homem pode percorrer uma estrada normal e equilibrada
para atingir a sua própria identidade. A tal ponto o homem vive de um pertencer reconhecido,
que consente a sua identidade através desse próprio reconhecimento. Voltamos ao discurso
da felicidade que é uma questão absolutamente pessoal e no entanto faz sentido ajudarse a encontrá-la, a caminhar em sua direção.
Assim, a identidade é aquilo que temos de mais pessoal e é a condição para que
o homem se desenvolva intelectual e afetivamente. Entretanto, é tão verdadeiro que o
homem também tem necessidade do outro e de receber do relacionamento com o outro,
que há nisso a possibilidade de chegar à própria identidade. Os relacionamentos
interpessoais fundamentais são aqueles que propõem o significado primário e permitem o
acesso a própria identidade, através do reconhecimento de ser acolhido pelo outro, e que
de algum modo, um habita dentro do outro.
O eu, diante do mundo, é como um sujeito em um deserto. O reconhecimento
equivale a encontrar uma habitação nesse deserto. É exatamente um habitar, um morar
em um lugar orientado e construído. O homem vai habitar em um outro e, através disso se
torna ele mesmo e toma um lugar no mundo. O homem vem ao mundo começando a
habitar em uma outra pessoa. Ele vem ao mundo com sua primeira consciência infantil,
através do habitar na consciência de algum outro: primeiro os pais, a professora, algum
amigo. Mas o homem, continuamente, na sua vida, vem ao mundo sempre habitando em
algum outro. Seja como for, o homem sempre percebe que renasce, se consegue habitar
dentro de um outro. Enfim, a experiência mais radical é a consciência de vir ao mundo
enquanto reconhecidos pelo Senhor do mundo. Porém, o reconhecimento, momento tão
radical na vida, é ambíguo se deixado só nas mãos do homem.
De fato, o reconhecimento é a forma de poder mais sutil e determinante da vida
do homem. A necessidade de ser reconhecido é mais fundamental que a de obter
conhecimentos. Por isso, o poder entre os homens se realiza mais em se abrir ou se fechar
diante do reconhecimento, a este hospedar ou não hospedar o outro, que no fato de troca
ou não trocar conhecimentos.
Dessa forma, os meios sociais de comunicação são os instrumentos de poderforça porque distribuem paradigmas de reconhecimento.
“Se você faz assim, é alguém, se não faz assim, não é ninguém. Se tiver isto, é
alguém, se não tiver, não é ninguém”. Existe uma mitologia inevitável dos meios sociais de
comunicação cujo poder não está naquilo que apresentam, mas no que constitui um
paradigma de reconhecimento social. Fazer acreditar que são capazes de satisfazer o seu
reconhecimento é o princípio do senhorio entre os homens.
Este discurso pode ser distribuído em muitos níveis. O amor entre os homens é
assim ambíguo porque a paixão é a sutil chantagem para fazer acreditar que se está à
altura das necessidades do outro.
Com toda a fundamentação e ambigüidade do reconhecimento a sai estrutura no
relacionamento educativo coincide com a experiência de autoridade. Esta é exatamente aquela
função que, no relacionamento, demonstra uma certa capacidade de responder à necessidade
de reconhecimento, portanto, de fazer acontecer a identidade do sujeito. A autoridade é
indispensável e inevitável. Qualquer um tem uma autoridade na sua vida. As piores são aquelas
que o homem vive inconscientemente. Apliquemos o discurso do reconhecimento no fato
educativo: o verdadeiro reconhecimento nos indica o que é a autoridade. Uma pessoa que age
com autoridade é aquela que no relacionamento demonstra uma certa capacidade de responder
a necessidade de reconhecimento do outro. Por isso, qualquer relacionamento entre os homens
é educativo ou não educativo. A educação não é algo que se conclui entre a escola e a família.
Nas relações entre as pessoas tudo se dá para reconhecimentos em vários níveis,
tudo faz acontecer ou impede o acontecimento da identidade do outro, tudo é caminho ou
obstáculo para a felicidade do homem, portanto, tudo é educativo ou não educativo.
AVSI
ANEXOS
4.3
A IDENTIDADE HUMANA
A ação educativa é tão ampla quanto a existência. Certos ambientes – família ou
escola – são lugares educativos por excelência, nos quais, com mais consciência, a
educação é colocada como tema. Mas seria um grave erro pensar que só a escola ou a
família são espaços educativos. A família possui determinadas funções biológicas e vitais
o que a faz se impor como lugar educativo e vinculador. Por outro lado, a escola tem o
papel de instruir, o que a qualifica como lugar educativo. Se não houvesse a necessidade
de instrução, se poderia muito bem educar a pessoa entre outras comunidades.
A boa autoridade é aquela que abre a uma verificação em relação à hipótese do
sentido único da realidade, que é capaz de construir o relacionamento de reconhecimento
que se instaura com o outro, e que abre este espaço de relacionamento como verificação
do caminho da pessoa. Isto é, coloca em evidência a questão da identidade do sujeito, o
problema do relacionamento com o destino, e utiliza o espaço de reconhecimento existente
para a verificação neste caminho pessoal.
É claro que se a própria autoridade coloca o problema do relacionamento como
verificação, ela concebe o seu poder de reconhecimento como algo que não exaure a
necessidade do outro. A relação que usa o outro ao invés, é aquela na qual não existe
espaço para a verificação.
A boa autoridade é de quem vive o seu relacionamento de reconhecimento de
poder como um espaço de verificação para si e para o outro sujeito. Assim, a verificação
torna-se uma companhia humana, em um caminho que é reconhecido, repleto de autoridade
e significativo para ambos.
A Especialização Escolar
A escola é uma ocasião de educação que confere a instrução. Escola é o lugar de
educação que tem a função de instruir.
Então, o problema diz respeito ao tipo de relação entre aprendizagem e educação.
Como o instruir e o ensinar entram no educar? A idéia fundamental é esta: a instrução,
com todas as suas técnicas particulares e os seus percursos específicos, participa da
educação enquanto é um exercício e uma ativação das capacidades de conhecimento do
sujeito. Nos damos conta que a capacidade de que conhecimento do sujeito não está a
parte ou não é um acessório com respeito do seu caminho de pessoa em direção ao
destino, em direção a felicidade.
Se não é assim, deveríamos ter uma concepção um pouco estranha do homem.
O que é o homem – pessoa que caminha em direção ao destino – senão um ser constituído
das suas capacidades de conhecimento e de vontade?
Até a animalidade do homem é diferente porque é conectada à inteligência e
vontade. A relação entre instrução e educação se firma no momento no qual existe uma
estima profunda e fundamental pela capacidade de conhecimento que define o homem
como um ser que é relacionamento com a verdade.
Alguns aprofundamentos
Ao falar de desejo e de necessidade – desejo de felicidade e necessidade de
reconhecimento, de conhecimento e de verdade do homem – entende-se que a estrutura
humana é como uma série de cercas concentricas, dentre as quais a cerca mais
compreensiva é exatamente a do desejo humano.
Depois existem, dentro do horizonte do desejo, no qual o homem é projetado em
direção a sua realização, necessidades particulares com respeito a esse desejo, entre as
quais, o desejo de reconhecimento e a exigência de conhecimento. Essas necessidades
possuem sempre objetos particulares, portanto representam dois níveis diferentes do ser
4.4
ANEXOS
AVSI
A IDENTIDADE HUMANA
humano, mas juntos, profundamente coligados. Tanto que, de fato, o homem vive o seu
desejo de felicidade através da necessidade de reconhecimento e de conhecimento.
Analisamos mais profundamente em que consiste o desejo de felicidade do
homem. O que quer dizer: o homem deseja a felicidade? Pascal definia o homem como
“vara pensante”. Queria dizer que o homem é esta situação paradoxal: é um ser frágil
como uma vara de cana, um fragmento insignificante no universo, que qualquer acidente
material pode destruir; mas é um ser pensante, isto é, capaz de compreender, o mundo
inteiro mesmo sendo um pequeno fragmento do mundo.
Este paradoxo indiscutível significa que o homem excede por cada lado a sua
evidente conclusão. Por exemplo, o homem faz experiência do tempo: cada um de nós
vive e simultaneamente vivemos, instante por instante o presente.
A psicologia até nos diz que o homem vive uma capacidade de presença
psicológica entre 0,5 e 2 segundos. Essa presença que o homem vive é de no máximo 2
segundos e, no entanto, o homem, através da experiência do tempo, vive o passado e o
futuro, se dilata infinitamente além do seu presente.
O homem vive a experiência pensando nela. O que quer dizer que o homem pensa?
Quer dizer quer o homem tem um conhecimento universal das coisas; um conhecimento
que certamente empobrece o concreto com o qual o homem entra em contato. Se pensarmos
a vida em termos universais, fugirá a riqueza do símbolo particular, porém, tem-se a imediata
possibilidade de estender este conhecimento do particular a tudo aquilo que se assemelha
a ele. Por exemplo, vejo aquele objeto e digo: “é uma cadeira”; não digo só aquele objeto,
mas todas as cadeiras possíveis, inserindo uma gama infinitamente ampla de peças que
podem servir para sentar-se.
Isto quer dizer que o homem dilata a sua capacidade de relacionamento com a
realidade indefinidamente, ilimitadamente. Disto podemos colher a experiência do desejo:
o homem, com base no seu conhecimento universal, deseja, ilimitadamente. O homem
tem consciência, por mais implícita que seja, que por direito tudo é objeto do seu
conhecimento. O homem tem por direito o todo como objeto do seu conhecimento. Se
existe uma realidade, esta é possível de ser conhecida. Existirá o problema técnico de
conseguir colocar-se na perspectiva justa para conhecê-la, mas tudo é dado como
possibilidade de ser conhecido.
Por que o homem avança continuamente na tentativa de conhecer? Porque ele
tem a absoluta certeza de que tudo aquilo que existe se pode conhecer.
Da mesma forma, o homem tem uma certa consciência de que, por direito, tudo é
objeto possível da sua vontade. O progresso técnico é uma enorme documentação dessa
afirmação e responde a muitas necessidades imediatas: o seu desejo mais profundo é
aquele de dominar a situação material e do ambiente no qual vive. Em outros termos: a
razão humana é exigência de conhecimento e explicação total; a vontade humana é
exigência de tal posse. Totalidade não como soma de fragmentos, mas como indefinida
expansão.
Isto é o que caracteriza o homem e o que, na pequena ou grande análise da vida
humana, descobrimos com sinais muito eloqüentes. Esta é a raiz do desejo de felicidade
do homem, a tensão entre a ilimitada exigência e a potencialidade de conhecer e possuir.
O desejo de felicidade do homem se define como constante confronto ou interação entre
estes dois pólos da existência: a sua evidente limitação, que depois tem uma sanção drástica
com a morte e, por outro lado, o o pensamento e a vontade o levam a exceder-se
continuamente no seu limite.
É a sua estrutura de “vara pensante” que o constrange a desejar uma condição
na qual a sua capacidade ilimitada não tenha obstáculos.O viver humano é colocado nesta
inevitável tensão a um ponto ômega no qual seja possível conciliar as suas limitações com
esta capacidade ilimitada. O homem não pode deixar de desejar uma extensão ulterior
AVSI
ANEXOS
4.5
A IDENTIDADE HUMANA
das próprias possibilidades. Não pode negar o sonho que a realidade concreta tenha uma
plasticidade tal, que se curve a esta expansão. Observemos fenômenos como o esporte
ou a arte. Porque são assim tão importantes na história da humanidade? O homem nem
sempre teve a ciência, mas teve o esporte e a arte. São as expressões eficazes do desejo
de colocar-se além do limite das próprias capacidades e do sonho de infinita e harmoniosa
expansão. De fato, o homem não suporta, sendo capaz de possuir e conhecer
ilimitadamente tudo, encontrar uma atividade como obstáculo.
Este desejo:
E´ constitutivo e pré-consciente. O homem é estruturado por este desejo, não o
inventa. Não é um produto da sua reflexão, pelo contrário, a reflexão do homem,
o acontecimento da própria identidade está na tomada de consciência de ser
feito assim. Deste ponto surge a pergunta que emerge no homem com respeito
ao término deste caminho e da situação resolutiva do seu desejo: o que é a
felicidade?
É utópico: etimologicamente significa “sem lugar”, que “não tem lugar”. Isto explica
a dramaticidade do desejo. O homem não pode viver, se não desejando esta
pacificação: que a realidade finita não seja obstáculo a sua indefinida possibilidade
de expansão, de posse, de conhecimento; entretanto, este inevitável dinamismo
não tem um lugar de realização completa.
O homem racionalmente consegue pensar que deveria superar a morte, que
deveria superar a patologia psicológica e a sua alienação espiritual. Como o homem pode
prolongar ou restringir a sua sombra, mas não pode evitar que a luz produza a sombra,
assim o homem não pode sair do seu desejo e estar numa situação contínua de insatisfação.
É como se o homem vivesse um sonho do qual não conhecesse a possibilidade
de realização. Aliás, quanto mais analisa os elementos à sua disposição, tem a certeza de
não poder satisfazê-lo. Este drama o conduz ao senso religioso ou leva, sem dúvida, ao
trágico; a menos que, manipulando os dados da experiência, chegue a dizer que o homem
é “um fragmento entre fragmentos”. Então se elimina o problema.
O significado do desejo está no senso religioso. Se o homem não é um erro
trágico, então temos que admitir que seu baricentro, isto é, o centro de equilíbrio do homem
está fora dele. A nossa realização depende de algo que é externo aos nossos poderes.
Sabemos que o nome desta felicidade é Cristo, Cristo Ressuscitado, isto é, que a
ressurreição é o conteúdo do desejo completo. A Ressurreição é a humanidade
transfigurada, ou seja, a humanidade cujo término não é mais um obstáculo. A imagem do
Cristo, que atravessa os muros, diz qual é o desejo do homem: o de passar através de
muros físicos e espirituais que são obstáculos à instância mais profunda da sua natureza.
Neste sentido, o desejo do homem é Deus, mas Deus como Humanidade Ressuscitada.
A relação do reconhecimento com o desejo de felicidade
Tal relação é dúplice. O reconhecimento é uma exigência não suprida, é a
necessidade sutil e tenaz de ser antes de tudo conhecido, de ser estimado, admirado,
querido bem, até no sentido eticamente melhor destas palavras.
Por que acontece a necessidade desta relação de acolhida para afirmar a si mesmo
no outro?
Porque este é um aspecto parcial, que não satisfaz, mas de qualquer forma é um
aspecto do realizar o desejo fundamental. O que é de fato habitar no outro? É estar presente
no conhecimento, na vontade e no amor do outro. É o modo mais sutil, mais profundo,
mais íntimo com o qual o homem começa a se expandir, e o outro começa a não ser
oposição, porém acolhida.
4.6
ANEXOS
AVSI
A IDENTIDADE HUMANA
O homem com este desejo de ser hospedado pelo outro realiza inicialmente o
desejo de existir ilimitadamente. Com o reconhecimento vive-se na intencionalidade do
outro, no seu conhecimento e na seu querer reconhece-lo e, portanto, existe fora de si
mesmo; isto já é romper o próprio limite e superar a diferença que separa.
Então, viver na consciência e no amor do outro é um germe de atuação do desejo
de viver ilimitadamente, de ser mais do que o próprio término, de ser segundo a ilimitada
capacidade do conhecimento e da vontade.
Além disso, a relação de reconhecimento faz acontecer a própria identidade. O
homem é ativado na sua capacidade de querer e de conhecer e, portanto, experimenta
uma particular satisfação por esta ativação da sua capacidade. Neste sentido, existe um
valor pedagógico da lei do reconhecimento. Este é um instrumento potente para orientar
o outro, para ajudá-lo a caminhar. É inútil fingir que não tem este poder: o verdadeiro
problema é usá-lo bem, para ajudar o outro, para fazê-lo caminhar, para abri-lo ao exercício
da sua diversidade.
Referência Bibliográfica
BOTTURI, Francesco. L’identitá umana fra desiderio e relazione. Iniziare, Castel Bologneza: I Itaca,
n. 3, p. 100-106, 2000. Tradução Juliana Pasquarelli Peres.
AVSI
ANEXOS
4.7
A PALAVRA COMPARTILHADA
A PALAVRA COMPARTILHADA1
Marguerite Lèna
A conversão exemplar da obrigação súbita à responsabilidade exercida, e da
desigualdade imposta à reciprocidade livre das pessoas constitui o frágil e misterioso privilégio
da relação educativa: é nossa profundidade antropológica e nossa dificuldade, além disso,
nos explica vários insucessos. Com efeito, olhando bem, essa conversão atinge em nós
toda a categoria do ter para transformá-lo em dom e em partilha, e toda a categoria do poder
para transformá-lo em obediência e serviço. E mesmo se for facilitada pela ternura espontânea
que normalmente leva o homem em direção à criança, e do impulso de crescimento que
leva a criança em direção ao homem, ela sempre é, como toda conversão, sofrimento e
liberdade. É uma morte de si e um passar ao outro: diante disso não precisamos ficar surpresos
que não existam educadores muito verdadeiros. Mesmo assim, devemos nos esforçar para
sê-lo. Há uma experiência infinitamente banal, que continua a nos lembrar que isso é possível,
simples e vital: é o aprendizado da língua materna por parte da criança. Ele delineia uma
espécie de prefiguração profética e de resumo significativo da lenta aventura constituída por
toda educação porque é verdade que a linguagem é a cima de tudo.
Neste aprendizado reúnem-se obrigação e alegria, obediência e liberdade,
tornando explícita – de modo mais decisivo que em qualquer outra experiência, pois ele
ordena todo o resto – a dúplice condição de toda relação educativa realizada: o respeito à
verdade e à autenticidade do amor. Por isso, evocar o aprendizado significa reunir
sinteticamente as considerações anteriores e reconduzi-las ao seu fundamento.
Antes de mais nada, podemos observar que o aprendizado da língua materna
quase sempre é coroado pelo sucesso, o que é um princípio de otimismo e de esperança
1
Extraído de LÈNA (2000).
AVSI
ANEXOS
4.9
A PALAVRA COMPARTILHADA
a ser colocado na base de todas as tarefas ulteriores da educação. Certamente, são raros
os que dominam perfeitamente os recursos de sua língua; desfrutamos de apenas alguns
filões desse tesouro, deixamos dormir mil criações brilhantes, raro privilégio dos poetas;
não cessamos de ser alunos de nossa língua materna ao longo da vida. Mas há fatos
ainda mais graves, são os excluídos da palavra: as crianças autistas ou gravemente
deficientes. Entretanto eles não estão excluídos da educação por isso, e o amor deve
inventar para eles outros percursos de humanização diferentes da palavra.
Entre o poeta e a criança fechada em uma fortaleza vazia, há lugar para muitos
que utilizam mal a própria língua, pois foram desarraigados da própria cultura, ou nem
sempre completamente arraigados nela, e a pobreza de palavras impede que se
expressem e se comuniquem. Contudo, não se trata aqui de levar em consideração o
domínio absoluto da língua, mas a porta de acesso à palavra. Pois bem, a maior parte
das crianças penetra no universo dos signos e não é por acaso que a língua assim
apreendida é chamada “materna”. Ainda que seja rudimentar na criança, a língua a
gera para a vida do espírito e torna-se, a rigor, a grande educadora, a que faz emergir
na pessoa a consciência de si.
Sempre é um acontecimento comovente quando, na sua simplicidade, a criança
diz “eu” pela primeira vez, quando coloca de repente todo o edifício do discurso em primeira
pessoa, sinalizando, concomitantemente, com essa pequena palavra “eu” uma referência
absolutamente inédita e insubstituível: até o fim da vida, ele será o único, exclusivamente,
a empregar o “eu” nesse sentido.
Dessa maneira, firma-se sua identidade de sujeito e sua diferença de todas as
outras pessoas. Ao dizer o seu nome e nomear as coisas e os seres, a criança sai da
particularidade fugidia e incomunicável das suas impressões ou dos seus impulsos
imediatos. Pode objetivar as suas necessidades ao enunciá-las, representar os objetos, ao
invés de temê-los por causa de sua proximidade física. Como observa o psicanalista Denis
Vasse, mais que o nascimento, é a palavra que separa o homem de seu semelhante.
No conto autobiográfico de H. Keller, Sourde, Muette, Aveugle, Histoire de ma vie
(a partir do qual foram feitos uma peça de teatro e um filme estupendos: Miracle en Alabama,
que valem como parábola para toda a educação), temos um exemplo do acesso à
linguagem, particularmente surpreendente pelo caráter excepcional das circunstâncias:
para que a pequena Helen, surda, muda e cega, entrasse na compreensão dos signos da
linguagem, foi necessária toda a tenacidade de sua instrutora, Miss Sulivan. Helen Keller
evocou com extrema lucidez a liberdtação que a revelação da linguagem representou
para ela, uma criança presa pelas paredes da vida. “Descemos ao longo do caminho que
levava ao poço... Alguém estava tirando água e minha instrutora colocou a minha mão sob
o jato do balde que estavam esvaziando. Enquanto saboreava a sensação de frescor da
água sobre a mão, Miss Sulivan escreveu na mão que ficou livre a palavra “água”, primeiro
lentamente, depois mais rapidamente. Fiquei imóvel, com toda a atenção concentrada no
movimento dos dedos. De repente, veio uma recordação imprecisa de algo de um tempo
esquecido e, instantaneamente, o mistério da linguagem foi revelado a mim. Sabia que “ág-u-a” estava indicando aquela coisa fresca na minha mão. A palavra tinha uma vida,
iluminava o meu espírito que ficava livre, enchendo-o de alegria e esperança. Ainda tinha
diante de mim muitos obstáculos a superar, é verdade, mas agora tinha em mim a convicção
de que, com o tempo, conseguiria... Deixei o poço animada por um grande ardor pelo
estudo. Cada objeto tinha um nome, e cada nome suscitava em mim um novo pensamento.
Tudo o que aparecia no meu caminho para casa me parecia palpitar de vida. Via as coisas
exteriores sob um novo aspecto. Ao entrar em casa, lembrei-me da boneca quebrada.
Tateando, fui recolhendo os fragmentos pelo caminho e procurava, em vão, reuni-los. Então,
meus olhos se encheram de lágrimas, porque entendi que tinha sido má, e pela primeira
vez conheci o arrependimento... Naquele mesmo dia, aprendi muitas palavras novas. Não
4.10 ANEXOS
AVSI
A PALAVRA COMPARTILHADA
me lembro de todas: entre outras, estavam as palavras ‘mãe, pai, irmã, instrutor’, que
suscitavam em mim sentimentos dulcíssimos, desconhecidos até aquele momento. Teria
sido difícil encontrar uma criança mais feliz do que eu quando, na noite daquele dia
memorável, na minha caminha, recapitulei as alegrias que eu havia procurado: eu nunca
havia adormecido impaciente pelo amanhã” (Op. cit. pp. 40-41).
Esta é uma página importante que apresenta o despertar intelectual como mistério
de vida e de alegria, e associa estritamente o acesso ao signo, à consciência moral, a uma
duração pessoal orientada, com a inserção na constelação familiar.
Tal separação é por si mesma um nascimento. Lembremos o que nos fala o Gênesis
para descrever a ação criadora da Palavra de Deus. Abraão é arrancado da sua terra natal,
e assim se dá início a uma história. A compreensão dos signos da linguagem dá à criança
um espaço de liberdade, de direito ilimitado: a vida inteira não será mais suficiente para
explorar e elaborar o universo de significados oferecidos a ela pela língua, autêntica
mediação transparente entre si e si, entre si e as coisas, entre si e os outros.
Talvez a língua materna também devesse ser chamada de fraterna; através da
língua, a criança não só diz o seu nome, mas estabelece relações. O outro torna-se um
interlocutor real ou virtual. Aprender a falar significa adquirir os meios para se comunicar,
não só com os que hoje falam a mesma língua, mas também com o passado de uma
cultura e com todas as outras. A língua materna é necessária para possuirmos raízes
espirituais, como é necessária para nos abrirmos a outras línguas.
Compreende-se, desse modo, porque psicólogos e antropólogos consideram o
acesso à linguagem um limiar decisivo de humanização.
Ora, quais são as modalidades desse aprendizado? Ele não começa na escola,
mas na vida familiar; não tem um lugar nem um tempo estabelecido, contudo reúne em
uma unidade exemplar, que talvez só encontre equivalente na experiência estética, o prazer
e a obrigação, o trabalho e o jogo que vimos serem necessários para qualquer educação.
De fato, ainda antes de qualquer palavra e como condição de sua possibilidade,
há na criança o desejo e o prazer, o jogo e a alegria da comunicação. Em uma página de
seu livro Au fil de l’autre, France Quère evoca com fineza o diálogo sem palavras que
preludia a todas as palavras, a aliança alegre entre mãe e filho:
“Na riqueza das nossas experiências comuns, há uma que me fascina mais do
que as outras e me enche de maravilha: é a boa aliança, a compreensão boa que
reina entre nós, essa compreensão imediata e fundamental que nos une uma à
outra. Emmanuelle, que não tem nem um ano, ‘não fala’, como dizem os adultos...
Não fala? Toda a sua pessoa, corpo, olhos, gestos e voz, são uma palavra imensa.
Ela nos grita os segredos que preenchem a sua cabeça e, se não podemos
compreendê-los, corremos o risco de nos privar dessa festa, e também a menina,
infelizmente... Achamos que essa necessidade de se comunicar com os outros é
causada por um sentido, por algo que deve ser dito.
Estou descobrindo que, mais fundamental do que o sentido, é o puro desejo de
cada saudação recíproca que nos faz falar ainda antes que haja algo a ser contado.
Você existe e eu existo, graças a Deus! Mas estou filosofando demais. A alegria
nasce entre nós, simplesmente, por termos conversado sem falar nada.” (F. Quere,
Au fil de l’autre, Seuil, Paris, 1979, pp. 96-97).
Segue-se a mesma direção em P. Celier, que escreve em La parole et l’Etre (Aubier,
Paris, 1974, p. 14): “A comunicação precede o conhecimento; constatei em todos
os meus filhos. O homem procura o diálogo antes de ter condições de conhecer
e também quase antes de sentir. Talvez nada seja mais comovente que esse
primeiro apelo ao amor em um ser reduzido, em uma vida puramente vegetativa,
esse primeiro nível que interroga o outro antes de conhecê-lo. Todas as mães
conhecem esse fato fundamental que os filósofos parecem nunca ter considerado”.
AVSI
ANEXOS 4.11
A PALAVRA COMPARTILHADA
O prazer de se comunicar não é sufocado, mas renovado e acrescido pelo domínio
gradual da língua materna que a criança adquire. É necessário reconhecer que a aquisição
é antes de tudo uma disponibilidade de escutar: “ouvir é constitutivo do dizer”, diz Heidegger,
e se realiza a custo de um treino. A língua impõe mais rudemente as suas leis à criança do
que um patrão ao seu escravo. Deve se dobrar a uma obediência corporal e espiritual:
aprender a falar significa disciplinar a própria língua e o pensamento que está nascendo,
de acordo com sons, regras semânticas e sintáticas que se opõem à espontaneidade
original da expressão. Com certeza, a criança toma muitas liberdades com as regras, joga
com a linguagem como com se fosse um maravilhoso instrumento no qual são possíveis
mil variações fantasiosas, que encontram a cumplicidade divertida dos adultos.
Mas a brincadeira de criança também representa um trabalho da língua, ao fim do
qual só há um vencedor, sempre o mesmo, a língua materna. Do defeito de pronúncia à
fantasia semântica, das palavras inventadas às palavras usadas impropriamente, a língua
faz reinar a sua ordem, a custo de reprimir o balbuciar infantil. Desse ponto de vista, a
aquisição da língua, bem longe de ser uma expressão de si, é uma integração social, algo
determinado pelo exterior, uma disciplina imposta.
Todavia, em cada fase de aprendizado, ficam o prazer e a alegria; a espontaneidade
se enriquece de novos meios. O prazer móvel, intelectual, afetivo, transforma a criança
que descobre a língua no Cristóvão Colombo de uma América maravilhosa, e a sua alegria
reflete-se no ambiente. Assim, a aquisição da linguagem, que condiciona tantas outras
formas de aprendizagem, também profetiza o ponto de chegada, que se realiza na
espontaneidade dócil e na obrigação libertadora, onde a alegria não se exaure, mas é
reforçada.
Também é necessário acrescentar que a aquisição da linguagem prefigura de
modo ainda mais significativo a passagem da desigualdade à reciprocidade, exigência
fundamental de toda relação educativa. No que diz respeito à língua materna, a desigualdade
é absoluta entre a criança – in-fans, o que por definição não fala – e seu ambiente. Se o
aprendizado da palavra fosse um simples condicionamento, a criança, ao ter acesso à
linguagem, tornar-se-ia escrava de uma língua constituída antes dela e sem ela, que lhe
impõe um comportamento repetitivo, semelhante ao treino com um animal. Mas não é
assim. Como observa Pontalis no artigo dedicado ao caso de Helen Keller, é muito mais
difícil treinar uma criança com os signos que um animal, um cão... que se deixa ‘pavlovizar’.
Como a pequena Helen que fica completamente excluída da linguagem até o momento
em que ela lhe é dada, e dada completamente. O milagre da linguagem consiste no fato
de que o acesso ao signo é ao mesmo tempo acesso à vida do espírito, na total liberdade,
mesmo que de modo ainda incipiente e velado, pois é repentino como qualquer mudança
de ordem, como qualquer nascimento, mesmo se foi longamente preparado por
mecanismos ocultos.
Um signo designa e expressa: liga a interioridade que se aprofunda à exterioridade
que evidencia. Permite comunicar na duração, os sentimentos e os pensamentos, os sujeitos
e os projetos. Por isso, a palavra faz a criança entrar na esfera dos relacionamentos entre
verdade e liberdade, nos quais ninguém entra como escravo, nem como simples técnico
de instrumentos verbais indiferentes, mas como sujeito moral. Assim que aprende a falar,
a criança já tem condições, de modo elementar mas real, de dizer sim ou não, de exercer
um início de responsabilidade com relação ao verdadeiro e ao falso, de dar-se ou de se
subtrair ao encontro e ao amor, de assumir, pessoalmente, ou não, as possibilidades para
seu acesso à palavra.
A importante mudança da posição de subordinação à de comunicação, realizada
pela linguagem, só se realiza sob a égide da idéia de verdade e exige, de ambas as partes,
a confiança do amor. Quando a criança entra espontaneamente no espaço do discurso e
se move nele com alegria é porque ele, normalmente, coincide com o espaço do amor. As
4.12 ANEXOS
AVSI
A PALAVRA COMPARTILHADA
palavras só têm sentido se forem levadas por um amor que lhes deu um sentido, escreve
F. Dolto. Muitas observações de psiquiatras revelam que podem aparecer desordens no
discurso, se a primeira experiência de confiança for traída: as palavras privadas de ternura
são apenas um bronze que ressoa, sinos que tilintam. No mesmo sentido, o relacionamento
que a criança tem com a verdade é inseparável da relação estabelecida com aqueles que
lhe ensinaram a falar. É uma confiança harmonizada com a palavra do outro, um ato de
confiança, e não uma suspeita, uma postura de disponibilidade, e não de verificação. Da
parte do adulto, mesmo se de modo muito elementar e quase involuntário, compartilhar a
palavra é um dom fundamental, gratuito e desinteressado: ninguém ensina uma criança a
falar com a intenção interesseira e deliberada de encontrar um interlocutor!
Mais profundamente, o adulto nunca pode segurar com ciúme nem o sentido,
nem o uso das palavras que ele dá à criança. Também pode acontecer que um dia ela se
sirva da língua materna para insultar sua mãe: é um risco a que o amor se expõe ao
oferecer a palavra. Mas, graças a essa liberalidade que não calcula, nem pode calcular, os
pais têm a possibilidade grave e alegre de entrar com os filhos nas dificuldades e nas
alegrias do diálogo.
Por outro lado, o amor que precede ao nascimento da palavra não é um sentimento
arbitrário ou generosidade cega; está ligado à verdade. Como haveria aprendizado da
linguagem se o ambiente em que a criança cresce utilizasse as palavras ao acaso e de
acordo com o capricho do momento? Na verdade, a criança aprende a falar porque o
adulto se submete primeiro às leis da língua, não se ergue como professor com relação ao
significado autêntico das palavras, respeita o seu sentido e reconhece as exigências de
verdade que regulamentam o seu uso.
Chegamos aqui ao que se poderia chamar função paterna da linguagem, como
primeiro indicador e revelador de valores. Se o adulto não o levar em conta e se servir das
palavras para enganar, se as transformar em instrumento de sedução ou de mentira, toda
a relação educativa estará comprometida. Longe de favorecer o emergir da consciência, a
conversão da obrigação à liberdade e da dependência à reciprocidade cria uma insegurança
profunda e escandaliza a criança antes mesmo de fechá-la na suspeita sistemática, na
mentira ou na revolta. Ao contrário, quando educadores e crianças rebelam-se juntos contra
essa perversão da palavra, no diálogo antes hesitante e ímpar que se instaura, a paternidade
humana se realiza em fraternidade, segundo a sua vocação, pois uma lei própria de
objetividade e respeito à verdade regulamenta o uso da linguagem, seja quem quer que
fale. Ela interage entre irmãos e contribui para que todos aprendam a viver como iguais
com os que não têm a mesma idade, força e experiência; interage entre pais e filhos,
professores e alunos e, aos poucos, coloca em relação a palavra de uns e outros com a
verdade e o bem, dos quais os próprios educadores são apenas servoscomo vimos. Quando
o seu filho for adulto, trate-o como um irmão, diz um provérbio africano, já mencionado
aqui, que indica assim o ideal último da relação educativa. É importante acrescentar agora
que essa necessidade inscreve-se e se realiza na educação de forma incipiente, muito
antes que o filho tenha se tornado adulto: a partir do momento em que ele entra com o pai,
e graças a ele, na pátria da palavra.
Amor e verdade se encontram, diz o Salmo 84, como sinal da era messiânica. Na
nossa experiência, raras são as vezes em que esses dois bens se vêem juntos: nós
conseguimos afirmar somente alguns reflexos fugazes e parciais. Caminhamos tateando
em um mundo onde a violência tem mais espaço e faz mais barulho que o amor, onde a
mentira às vezes pesa muito mais do que a verdade na balança dos poderosos e sobre os
ombros dos pobres. Mesmo assim, não há educador autêntico que, espontânea ou
deliberadamente, não faça do encontro entre amor e verdade o programa ou o sonho da
sua ação. Vocês descobrirão esse encontro na raiz de qualquer aprendizado oculto na
obscuridade das origens da palavra, e então ele se torna sinal de esperança tênue, mas
AVSI
ANEXOS 4.13
A PALAVRA COMPARTILHADA
real, humilde e profético. Cada um de nós conhece educadores que, embora desprovidos
de meios, pouco cultos ou simplesmente sobrecarregados de trabalho para dedicar o
tempo necessário à própria tarefa, conduzem as crianças e os jovens a eles confiados à
completa maturidade humana. Isso é possível porque neles estão presentes a lealdade à
verdade e o amor desinteressado, que constituem em última análise a “única coisa
necessária” da relação educativa.
Referência Bibliográfica
LÈNA, Marguerite. La parola condivisa. Iniziare, Castel Bologneza: I Itaca, n.2, p. 68-73, 2000.
Tradução Juliana Pasquarelli Peres.
4.14 ANEXOS
AVSI
O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL
O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL1
Marguerite Léna
Na ação educativa emerge – tão banal a ponto de passar despercebida – a
misteriosa prova que o homem dá de sua humanidade, não tanto em termos de domínio
operativo, mas de responsabilidade frente a outra pessoa.
Educar não significa inscrever uma forma em uma matéria inerte, segundo o
esquema técnico da ação, que devolve o desejo a si mesmo em uma inexaurível sucessão
de objetos; também não significa – ainda que, sob certos aspectos, o modelo apresente
analogias – superar fragilmente a violência através de um contrato que reconheça a liberdade
dos outros, como exige a relação política. Além disso, a educação não significa apenas –
ainda que também o seja – responder pelos próprios atos diante dos outros em nome da
humanidade do homem, como exige a ética.
Educar significa responder ao outro com a própria humanidade, responder por
ele e sobre ele, enquanto ele não estiver em condições de fazê-lo, a fim isso acontece no
momento apropriado. Técnica, política, ética delineiam os contornos da ação relacional,
as condições e os campos de intervenção da razão prática. A ação educativa entra em
todos esses campos, sem coincidir com nenhum deles. Experiência viva de um dom que
vai de pessoa a pessoa, segundo um forte e generoso contato espiritual, a educação
introduz, na esfera da ação, interdependências e fecundidade específicas e proporcionais
às potencialidades de aceitação em ato.
Antes de tudo, é duplamente impossível definir a fase inicial da ação educativa O
educador não pode delimitar a própria tarefa no tempo, nem pode se situar no ponto de
origem, pois como confirma o ditado: a educação da criança começa com a educação da
mãe.
1
Extraído de LÈNA (2000).
AVSI
ANEXOS 4.15
O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL
Se fosse possível definir a educação só como o aprendizado técnico, seria fácil assinalar,
senão o final, ao menos seu início, já que é possível começar ou não um estudo de violino ou de
inglês, por exemplo. Mas a educação vai além da esfera dos aprendizados e também do quadro
temporal que lhes é próprio. Na família e na escola, a educação não tem momentos reservados
e atividades específicas ou diferentes por natureza da trama comum da vida: quando se está
com crianças ou jovens, é exatamente a trama comum da vida que sustenta a ação educativa e
que tende a se confundir com ela. Certamente, algumas intervenções ou iniciativas têm uma
intenção deliberadamente educativa. Pode acontecer, então, o que ocorre com os “jogos
educativos”, que forçando nesse aspecto, param de ser jogos ..., de serem utilizados e, portanto,
de serem capazes de educar. A criança não pede para ser educada, ela quer isso ou aquilo, quer
sair ou ficar em casa, receber um amigo ou assistir a um certo espetáculo, entender um livro ou
um problema determinado... Por sua vez, os educadores não têm a possibilidade de se revestir
ou de se desfazer quando quiserem do seu papel. Por se tratar sempre, em última análise, de
compartilhar com os outros a própria humanidade, o educador não pode se isolar em uma
função social: mesmo quando a atividade é exercida em um contexto profissional, a profissão de
educador não pode ser totalmente igual às outras. Nessa área, empenha-se sempre um pouco
mais de tempo, um pouco mais de alma e de amor do que pedem contratos, e também se
recolhem tantas alegrias e dores que fica difícil contabilizar.
No que tange aos pais, eles são conscientes de que não se pode delimitar o
trabalho da educação no tempo porque, ao seu modo, ela exige tudo. É como na vida
moral e no caminho espiritual: não se trata de uma atividade particular, mas de uma atividade
considerada sob uma certa luz e segundo uma intenção específica.
Não está no nosso poder recuperar em nós mesmos as fontes da ação – essa
espontaneidade dada, esse impulso recebido – assim nunca é possível dar início, ex novo,
à tarefa da educação. Nesse fato há uma indicação de fundamental importância a ser
refletida: a educação só é “instituível” pela humanidade se já estiver instituída, antes de
tudo, no educador que, por sua vez, já foi educado. De modo significativo, na área
educacional também acontece o que ressaltamos na ordem da linguagem e da política.
Tais realidades, cada uma fundadora na própria ordem, já existem por si mesmas e fogem
do projeto incessantemente renovado de tomar posse e de retornar ao antes de sua
instituição. Não dispomos de nossos inícios, nem mesmo no instante em que o homem é
acolhido por outro homem, o homem forma o homem. Nesse instante, paradoxalmente, o
homem faz a experiência de uma dependência irredutível com relação a um dado que ele
não constituiu e que não pode dominar de jeito nenhum: dado que o educador é para si
mesmo, nos limites da própria personalidade e da própria história, da própria inserção
social e histórica, com a própria fragilidade e as próprias fidelidades incertas que não lhe
permitem nunca encarnar efetiva e adequadamente as palavras na conduta. Ele sempre
encontrará esse dado diante de si, na criança, por exemplo, que não é nem material bruto,
pronto a se adaptar docilmente a uma forma imposta, tampouco é uma tabula rasa onde
se possa imprimir ex novo um programa de humanidade.
Pais e educadores verificam todos os dias que posturas e comportamentos iguais
de sua parte assumem sentidos e dão resultados diversos em cada uma das crianças ou
dos jovens confiados a eles. São ações que se colocam diante de uma personalidade e de
uma história singular, em que outros já intervieram, em tempo e modos que fogem à memória
e, com mais razão, aos diários pessoais e às agendas escolares. Os próprios pais, que
têm o privilégio de intervir em primeiro lugar no início de uma vida, ao olhar o recémnascido, têm consciência de que um mistério já pleno de história foi confiado a eles. “Quem
é você, estranha recém-chegada? E o que você vai fazer com as coisas que nos pertencem?”
Pergunta-se Claudel diante de sua filha. Mistério impenetrável de uma herança, de uma
lenta gestação, de um nascimento repentino e desse primeiro encontro com as cores e
formas do mundo, com palavras e rostos.
4.16 ANEXOS
AVSI
O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL
A Biologia e a Psicologia, com suas múltiplas especializações, certamente
contribuem para iluminar alguns aspectos desse mistério, enriquecendo
prodigiosamente nosso conhecimento a respeito dos processos de crescimento, a
experiência pré ou neo-natal, o universo da infância e da adolescência. Depois dos
trabalhos de Freud, Piaget e de sua escola, sabemos muito melhor que a inteligência,
a vida afetiva, o sistema dos interesses, longe de obedecerem a uma lei de
desenvolvimento linear, modificam-se de limiar em limiar e de crise em crise. Também
conhecemos mais claramente as incidências do ambiente físico, das condições
higiênicas e alimentares, do clima afetivo, do contexto sócio-cultural. O maior
conhecimento obriga-nos a nos abster de assimilações tranquilizadoras e de projeções
inconscientes com as quais arriscamos desconhecer a criança na sua diversidade, e
nos convida ao exercício sempre renovado de atenção ao outro.
Todavia, sob a condição de não deixar que a ação educativa seja esmigalhada
em uma série de comportamentos especializados, cada um desses remeteria a um saber
particular, perdendo portanto a visão da realidade concreta e singular da criança. Seria
muito grave que o desenvolvimento da pedagogia levasse a esquecer a educação.
Com um certo humor, Maritain observava: “A criança é submetida a tantos testes,
é tão observada, as suas necessidades são tão bem analisadas, sua psicologia é tão
claramente definida, os métodos para tornar-lhe tudo fácil são tão aperfeiçoados, que no
final de todas essas louváveis melhorias, corremos o risco de esquecer o desconhecido.”
Encontramo-nos, assim, diante de pais inquietos e, enfim, absolutamente convencidos da
própria incompetência técnica, que vão incansavelmente do psicólogo ao médico e do
médico ao psicólogo, e nunca ousam tomar sozinhos a mínima iniciativa. Frente à fragilidade
de uma psique infantil, frente à sua complexidade, como arriscar uma educação cuja única
arma é a boa vontade?
No entanto, agir é mais que necessário. Com efeito, o acréscimo de conhecimentos
e de poderes, fornecido pelas ciências e pelas técnicas da educação, torna ainda mais
indispensáveis a integração e a responsabilidade das pessoas a serviço da pessoa.
Quanto mais o saber positivo nos domina, mais a educação nos obriga a responder
a uma questão crucial colocada pelo predomínio técnico, terreno privilegiado do verdadeiro
debate ético: que uso fazer da potência? Tornamo-nos muito sensíveis aos problemas
relativos a transmitir a vida ou a conservá-la na fronteira da morte. E sem dúvida seremos
obrigados a ser sempre mais sensíveis no que respeita à ação educativa. O domínio e o
controle técnico da nossa natureza biológica, afetiva, intelectual, materializam-se em um
poder sempre maior, que pode determinar o desenvolvimento do homem na criança:
serviremos apenas para a manipulação com fins econômicos ou ideológicos, ou seremos
instrumento para servir ao homem? A esse propósito também parece evidente que não é
possível subtrair-se ao problema dos fins. Não se fazem experimentos com crianças.
Definitivamente, não se trata de ignorar os condicionamentos de todo
crescimento humano, que, aliás, o educador pode apreender normalmente, de modo
mais intuitivo ou mais metódico. Trata-se, antes, de reconduzi-los incessantemente à
unidade vivente da pessoa, o que se perdeu de vista na educação por causa do controle
técnico (como acontece em uma medicina especializada demais, que corre o risco de
desconhecer a unidade funcional do corpo). Por isso, a falência humana da educação
perfeitamente “atingida”: a criança nunca teve a ocasião de se tornar sujeito do seu
próprio crescimento.
Nesse ponto aparece, como um continente desconhecido que reestrutura a
paisagem inteira, uma forma de alteridade mais radical do que a explorada pelas ciências
positivas: o outro, como sujeito irredutível, insubstituível. Ninguém deveria se tornar educador
sem, ao menos uma vez, experimentar e sem conservar em si o sentido da maravilha que
Dostoievskij evoca nos Demônios:
AVSI
ANEXOS 4.17
O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL
“É uma grande alegria (...), a aparição de um novo ser é um grande mistério, um
mistério incompreensível. Eram dois, e eis um novo ser humano a aparecer, um
novo espírito, completo, acabado, que nenhuma mão jamais conseguiu criar, um
novo pensamento, um novo amor. E também é terrível... Não há nada maior no
mundo”.
“Um ser humano – escrevia M. Daniélou – por mais humilde que seja, tem
resssonâncias infinitas, profundidades insondáveis, uma palavra a dizer que só ele pode
dizer, embora se insira em um coro imenso, uma vocação que na realidade é um pensamento
divino”. Meçamos então o limite de todas as expressões, aliás freqüentes, de “objetivos
pedagógicos” ou de “projetos educativos”. A primeira, delimita justamente os objetivos
precisos de aprendizados particulares que, de fato, podem ser programados e adquirir
eficácia; mas tais aprendizados ainda não constituem a educação. A segunda, coloca
ênfase na coerência de projetos, que deve inspirar e animar toda ação educativa autêntica,
preservando-a de imprevistos, do acaso, da contradição.
Assim, o “projeto educativo” torna-se a carta espiritual da ação dos educadores,
mas não é o caso de defini-lo segundo um esquema estritamente normativo, nem de reduzilo a um simples e rígido protocolo de comportamento. Quando se quer definir um tipo de
homem, com o objetivo deliberado de realizá-lo, corre-se o risco de transformar a idéia de
homem em um conceito operativo, e as pessoas concretas que nos são confiadas, em
materiais e instrumentos da operação.
Todos conhecemos aqueles pais invasivos, decididos a ter um filho engenheiro.
De modo, por sorte, limitado ao seu âmbito de poder, eles repetem o que os regimes
totalitários fazem em escala muito mais perigosa.
A esse propósito também se deve convir que a educação é uma ação particular
com relação ao fim ao qual tende. Com efeito, trata-se de uma tarefa infinita, não somente
porque sempre exige uma vigilância presente e não se deixa delimitar no tempo, mas
também porque nunca é possível atingir sua realização. A ação educativa escapa a todos
os cálculos. Ela leva em si algo de irresolúvel, detém-se diante de um limiar misterioso,
sempre um pouco aquém do seu resultado, o que não lhe permite concluir que a obra seja
sua, obrigando-a à modéstia: educar não significa criar e muito menos fabricar. Enquanto
a ação técnica afirma o domínio do querer, no mundo das coisas, a verdadeira capacidade
educativa fica à margem, incompleta.
Sobre o “projeto educativo” é possível dizer o que Pierre Emmanuel disse sobre
cultura, que só leva até o limiar do espírito: “O mais coerente projeto cultural pode apenas
preparar, como “em negativo”, as condições dessa passagem ao limite, à descoberta
misteriosa do ser reservada àqueles que, no limiar, se desfazem de tudo o que os conduziu
até ali... [a cultura] não é a Páscoa do espírito, nem um substituto da vida interior que a
cultura pode ajudar a descobrir”. Devemos dizer o mesmo sobre a ação educativa. Tratase de colocar em órbita uma liberdade humana, confiando-a à atração do que merece ser
conhecido, escolhido, servido. A ação do educador só intervém, como mísseis vetores,
em um primeiro momento. Mas sua influência não poderá ser a lei do movimento da criança
e do jovem: é preciso deixar que eles saiam do campo de atração dos educadores. Se
existe um campo, para ainda citar Blondel, em que “cada ato é um ato de fé, e é justamente
aquele que não se apóia na inércia de algo, mas sobre uma liberdade inédita, e que deve
encaminhá-la às suas responsabilidades”.
Efetivamente, como a educação precede a si mesma no educador, assim sucede
a si mesma no educando: o seu fim último, escreve Eriv Weil, é “fazer do educando um
educador”. João Paulo II expressa-se nos mesmos termos no seu Discurso na Unesco: “O
primeiro e fundamental fato cultural é o homem espiritualmente maduro, ou seja, o homem
plenamente educado, o homem capaz de educar a si mesmo e de educar aos outros”.
Portanto, a educação é transitiva e reflexiva, passa de sujeito a sujeito, suscita o sujeito em
4.18 ANEXOS
AVSI
O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL
cada um. Nunca deve substituí-lo. Por isso, é uma grande ilusão atribuir à educação os
fracassos da existência adulta. Sem dúvida, há carências difíceis de se compensar, feridas
de difícil cura. Há também tesouros inalienáveis, recebidos na infância ou na adolescência,
que toda a vida adulta pode alcançar sem temor de exaurir sua riqueza. Porém, os
educadores não fazem tudo, e talvez nunca saibam exatamente tudo o que fazem... A
educação só é verdadeira se tiver consciência dos próprios limites, respeitosa de tudo que
uma liberdade em fase de crescimento significa em termos de impulsos imprevisíveis e de
independência frente ao poder dos educadores. Paradoxalmente, essa independência é a
condição da sua ação e, ao mesmo tempo, fixa seu limite. Sartre, logo depois do trecho
citado, sublinhava isso, distinguindo de tal forma a influência educativa de todo tipo de
condicionamento exercido mecanicamente: é verdade que “A criança, – ele escreve –,
sentirá o peso da decisão que se toma por ela, mas tal decisão só será realmente integrada
na sua história “na medida em que ela a tiver interiorizado livremente e em que se tornar
não um limite imposto pelo seu pai, mas a livre limitação que sua liberdade coloca a si
mesma”.
A conversão da súbita obrigação à liberdade exercida será objeto de um estudo
mais aprofundado. Notemos simplesmente que quem a desconhece e quem acredita que
a educação faça tudo chega a culpar injustamente os educadores e a paralisar a sua
iniciativa; desse modo, os jovens é que serão os bodes expiatórios de desilusões inventadas.
Diante dessa excessiva atribuição de culpa, reverso obscuro de uma inconfessada
vontade de poder, é necessário recordar a discrição maiêutica de Sócrates, ou a observação
de Eriv Weil, segundo o qual a “educação conduz somente ao limiar da moral”. Pois não
se trata de identificar um ser com algumas normas exteriores, mas de conduzi-lo à própria
identidade; não de o remeter a “princípios”, entretanto de escavar nele a sua humanidade
até o princípio secreto que ordena todos os princípios; uma liberdade capaz de amar e de
construir junta a história. A isto, podemos, por direito, chamar de espírito.
Princípio, fonte, lugar de irredutível singularidade e de profunda comunhão:
nenhuma ciência e nenhum “projeto educativo” poderiam ser substituídos pela atenção
singular dada a cada ser, a cada situação, a cada fase de crescimento, que respeita e
revela no outro o ignoto e lhe oferece a hospitalidade de um amor.
Como Abraão começa obedecendo a uma palavra que expressa uma ordem
precisa, sem equívocos nem contradições, e que lhe descerra um horizonte, sem antes
delinear as passagens, feliz a criança que recebe dos seus educadores a palavra criadora
de história, de vocação rumo a um país desconhecido que será o seu.
Referência Bibliográfica
LÈNA, Marguerite. Il dominio impossibile. Iniziare, Castel Bologneza: I Itaca, n.1, p. 81-84. 2000.
Tradução Juliana Pasquarelli Peres.
AVSI
ANEXOS 4.19
O ENCONTRO
O ENCONTRO1
Romano Guardini
Ensaio de análise da estrutura da existência humana
A existência humana adquire forma graças a diversos elementos: psíquicos e físicos
pertencentes ao ambiente natural e ao curso da história; a momentos e acontecimentos; a
situações e ações particulares. Alguns deles são causados por forças que operam segundo
uma necessidade intrínseca própria; outros, originados da liberdade, tanto da própria,
quanto da liberdade das outras pessoas... Assim, a existência adquire forma: na
multiplicidade de todos esses elementos difíceis de abraçar em apenas um olhar, todavia
reunida e mantida na forma de uma unidade vivente, pela ação constante da identidade de
cada ser humano que se afirma e se desenvolve.
Desse fenômeno complexo – que não seria errado chamar de “estrutura” ou
também “fluxo” –, queremos considerar mais atentamente um elemento de particular
importância: o encontro.
Como tudo o que é vivo, o encontro é rico em conteúdo e constituído por muitos
fatores entrelaçados; por isso, com grande cuidado, desejamos despertar novamente a
experiência.
Na acepção mais óbvia e imediata, “encontro” significa que duas realidades se
chocam uma com a outra. O que se entende por “realidade” e como deve se configurar
esse choque, para que surja o que indicamos com aquele termo?
Um “encontro” propriamente dito só se realiza quando é o homem que se choca
com a realidade.
1
Extraído de GUARDINI (2000).
AVSI
ANEXOS 4.21
O ENCONTRO
Mas isso acontece todas as vezes em que o homem entra em relacionamento
com as coisas? Quando ele está com fome e estende a mão em direção ao alimento,
“encontra” a fruta que o espera? É evidente que não; pelo menos, nem sempre. Na maior
parte dos casos, ele se comporta de maneira análoga ao animal: o impulso da fome faz-se
ouvir, e ele “encontra” a fruta que o espera? Todavia, seu comportamento só é parecido
com o do animal, uma vez que também pode assumir outra forma. O homem também é
capaz de olhar a fruta de modo que surja uma natureza morta de Cèzanne – pensem na
Natureza morta com maçã. Aí, aconteceu um “encontro”...
É encontrar uma pessoa, quando alguém vira a esquina velozmente e derruba o
outro? É evidente que não. Esse caso seria como bolas de bilhar. Porém, aqui também se
trata de algo parecido, não idêntico. Pode ser também que os dois, depois da surpresa
inicial, detenham-se, olhem-se e, de repente, aconteça que pessoas que se perderam de
vista há muito tempo se reconheçam. Aqui floresce algo pleno de significado para o homem.
Aí, sim, acontece o “encontro”.
A partir do que foi dito, fica claro em que condições é possível falar de “encontro”.
Antes de tudo, é um choque entre mim e algo real. Entretanto, não acontece quando bato
superficialmente contra a realidade, ou quando só entro em um relacionamento mecânico
com ela, ou segundo o dinamismo biológico e psicológico de ação e reação; mas quando
“tomo distância” da realidade, acolho-a com um olhar justo, deixo-me tocar pela sua
peculiaridade, quando tomo posição na realidade com a minha ação.
Para que isso ocorra, devemos ter em mente um dado, de fato, fundamental: a
liberdade.
Para eu ser realmente capaz do encontro, não posso estar totalmente vinculado a
algumas dimensões da vida. Esse é o caso do animal, que só entra em relação com os
animais aos quais está ligado por natureza e que gravitam em seu ambiente. Essa ligação
pode chegar até o ponto que o animal presta atenção exclusiva aos seus filhotes, como a
fêmea do canguru ou de outras espécies... Ora, também se dá um fenômeno
correspondente no que diz respeito ao ser humano.
Consideremos os nossos hábitos: neles percebo apenas o que está no plano do
costume correspondente e me comporto sempre da mesma forma a seu respeito. Aqui
não acontece nenhum encontro. Análogas são as coisas quando se trata de um
comportamento utilitarista ou destinado a um objetivo qualquer. Ocupado com algum
trabalho, posso me mover entre as pessoas, dizer ou fazer algo com um ou com outro,
sem que tome forma o livre estar-diante-de no qual se realiza o encontro.
Mas a situação também pode ser “forçada”. Talvez eu preste atenção, de repente,
no rosto do homem ao qual dou ordens e perceba nele uma nuança de tristeza que me
deixa pensativo, ou uma letícia de ânimo que me toca e, então, o encontro acontece.
Certamente, o homem tem uma posição própria dentro da complexa realidade do
mundo. Suas dimensões e seus limites naturais, a constituição dos seus órgãos de sentido
e sua estrutura mental sinalizam à sua consciência apenas realidades e objetos
determinados.Contudo, seu horizonte é tão vasto que nos autoriza a falar, por princípio,
em uma radical e fundamental incomensurabilidade... Isso também implica que eu só possa
prognosticar e prever dentro de certos limites o que virá ao meu encontro nesse espaço
aberto da realidade. Assim, experimento o sentimento vivo do caráter de espontaneidade,
dom e iniciativa que me diz respeito, que é próprio da realidade e que me leva a tomar
posição frente ao que se apresenta a mim, encontrando-o e acolhendo-o.
Além disso, o homem é capaz de fazer uma experiência que pode ser qualificada
como experiência ou consciência viva da existência enquanto tal. Nela, o “todo”, o “inteiro”,
o “essencial”, se apresenta, em particular, através de um símbolo, de uma obra de arte
autêntica, da experiência de um profundo amor espiritual – e por isso, também na experiência
imediata da existência em geral. O puro e simples estar-aqui-e-agora da existência, com a
4.22 ANEXOS
AVSI
O ENCONTRO
sua obviedade, está como suspenso, e se abre com uma profundidade vinda de longe. O
que parecia óbvio torna-se novo e nos maravilha.
Portanto, desde sua origem primeira, trata-se de uma liberdade de relação com a
realidade que o animal não possui.
Ao lado dessa liberdade – que é possibilidade de relacionamento universal com
tudo que existe – está a liberdade própria da posição pessoal. O homem não é obrigado a
estabelecer relações, pode fazê-lo ou não. Também acontecem encontros que o pegam
de surpresa e levam a melhor – fazem o homem feliz, o transtornam ou o levam à ruína –
ele, porém, pode aceitá-los ou defender-se deles, ou ao menos procurar resistir a eles. O
homem pode ter experimentado que certos encontros (em particular, com homens ou
obras de arte de certo gênero) não são positivos e evitá-los ao longo do caminho. Pode se
abrir confiante aos acontecimentos mas também se tornar prudente e circunspecto, e se
conter. Em grande parte, nisso consiste a sabedoria. Pode chegar a se convencer de que
não é do tipo que confia em tudo que vem ao seu encontro. Pode fechar as portas do seu
coração e deixar o mundo de fora. O antigo estoicismo fez isso, e assim se comporta a
ascese religiosa, para voltar a alma somente a Deus.
Portanto: o fenômeno do encontro acontece sobre o fundamento da liberdade,
da possibilidade radical, confiada à própria iniciativa de entrar em relação com cada coisa
ou de, ao contrário, recusá-la.
II
Agora podemos traçar uma descrição mais completa: na autenticidade e liberdade
de que se falou. Eu estou diante da realidade que me circunda. As funções vitais e as
intenções mais imediatas desaparecem. Sou tocado pela essência do que está na minha
frente, entro no seu horizonte de significado, sinto-me convidado a tomar posição a seu
respeito.
O encontro só pode se realizar “de minha parte” quando ele se referir a um objeto.
Por outro lado, é verdade que na própria situação também é possível perceber uma certa
iniciativa: é o que procuramos dizer com expressões como “a paisagem não me diz nada”,
ou “o temporal me impressionou”. É a intensidade das coisas como tais. É a potência de
sua presença, o esplendor cheio do sentido da forma essencial que as constituem e que
se irradia ao seu redor – até quando se adverte uma espécie de iminente proximidade
entre o homem e mundo inteiro... É o que compreende Platão e, depois dele, ainda mais
resolutamente, Agostinho, quando afirmam que as idéias resplandecem; que o ato de
perceber em que consiste o conhecimento é – ao mesmo tempo e de modo ainda mais
radical – sermos possuídos pelo objeto que se concede a nós; que amar é sermos tocados
e atraídos pelo que transborda de bem e de valor...
Por acaso, encontro-me pela primeira vez na vida na presença de uma fonte de
água; ou melhor, já vi uma qualquer, mas para dizer a verdade, nunca lhe dei atenção
particular. Agora, ao invés, acolho-a na profundidade do olhar. Sou tocado pelo fenômeno:
aqui, algo – aliás, não a água, o “elemento” primordial – brota das entranhas da terra. Além
do dado, de fato – biologicamente falando, aqui embaixo se formou água que graças a
certas relações de pressão sobre à superfície –, manifesta-se o que é ainda mais essencial:
o surgir da profundidade, o perene brotar, a permanente doação de si mesmo, o mistério
de uma originalidade inviolada, ainda não dobrada a um objetivo qualquer nas mãos dos
homens. E tudo isso torna-se parábola das realidades últimas da vida.
Encontro é isso. Ele me doa uma imagem viva que eu não possuía até aquele
momento e sem a qual não existe nenhuma compreensão efetiva da existência porque,
realmente, sem conhecer o que a “fonte” é, não é possível compreender nenhuma
característica do que existe... Desse modo, eu posso encontrar tudo, um elemento por
AVSI
ANEXOS 4.23
O ENCONTRO
meio de outro: uma árvore e, nela, a “árvore” enquanto tal; a flor, o vento, o animal feroz,
uma ave – tanto a minúscula e veloz, quanto um verdadeiro pássaro, feito para as vastas
dimensões do céu – e assim por diante.
Do encontro nasce o pensar filosófico: a meditação e a reflexão exploram a sua
profundidade; o trabalho do pensamento lhe dá ordem e forma (...).
Quando diz respeito a uma pessoa, o encontro também pode se configurar na
dimensão da reciprocidade. Pode se tratar de um desconhecido ao qual volto a minha
atenção agora, em nossa primeira aproximação, volto-me à sua presença viva, à sua força,
ao seu caráter, à sua beleza. Porém, estou atento a “ele” através de todos esses aspectos;
e quanto mais eu tiver originalmente a experiência viva dele, em sua identidade vivente e
irrepetivel, mais profundamente compreenderei o que é o “homem” através dele.
O encontro completa-se quando o outro também me concede a sua atenção.
Então, os rostos iluminam-se um ao outro, a intimidade da pessoa se revela, os olhares
florescem com uma intensidade incomum. As relações mais diversas podem nascer daqui:
confiança, comunhão de intenções e de obras, amizade, amor, seguimento. Mas, para
dizer a verdade, também pode nascer recusa, hostilidade, luta. Um destino pode começar
a tomar forma.
E pode acontecer o mesmo na relação com um homem que já conheço de vista
há muito tempo. Talvez trabalhemos na mesma empresa, ou no mesmo escritório, ou
tomemos muitas vezes o mesmo ônibus, mas eu só o olhei de soslaio. Então, “encontro”
significa que aquilo que me circunda dá um passo adiante em relação ao seu alinhamento
costumeiro, no quadro do desenvolvimento cotidiano de tantas ações. Não porque aquela
pessoa faça algo fora do normal; mas sim pelo fato de que ela aparece a mim dentro de
um horizonte diferente de significado. E aqui, a palavra “aparece” não significa de modo
algum “aparência enganosa”; ao contrário, é a manifestação do que o homem transforma
autenticamente nele mesmo. A sua essência se revela e exige – além de qualquer elemento
que distingue o homem como pertencente a uma estrutura social, com determinadas
funções no todo – exige ser nele mesmo reconhecida e apreciada. Aliás, isso pressupõe
que em mim aconteça o mesmo, de alguma forma, ainda que pura e simplesmente em
virtude da postura de atenção autêntica e disponível. Naquele momento, a pessoa que
anteriormente não era mais que um número em meio a outros torna-se um “alguém” –
digamos mais exatamente: “você, aí” e “eu, aqui”.
III
Não é sempre que o encontro acontece. Digamos claramente: o momento deve
ser propício.
Já falamos sobre o significado dessa expressão no nosso curso. O “momento
propício” é um complexo constituído por inúmeros fatores. As minhas forças e as minhas
condições físicas; os meus diversos movimentos vitais, conscientes e também, de modo
muito particular, inconscientes, o que eu experimentei até hoje, do que sinto necessidade
agora, a que tendem as minhas inclinações interiores – tudo isso deve encontrar-se, coincidir
em uma postura fundamental de sinceridade, atenção, disponibilidade...
A pessoa que vem ao meu encontro também deve ser a “pessoa certa”. Em tal
“justiça” convergem da mesma forma elementos diversos como aspecto, temperamento
particular, mentalidade e força da personalidade, disponibilidade para ajudar ou, ao
contrário, necessidade de ser ajudado, letícia ou infelicidade, sucesso ou fracasso, até a
extrema imponderabilidade de simpatia ou antipatia, do clima ou dos humores...
Não é preciso considerar os dois, de um lado e de outro, como elementos antes,
separados, e depois, de alguma forma, reunidos; mas sim como constituintes de uma
totalidade originária, uma relação viva na qual a pessoa torna algo possível, encoraja o
4.24 ANEXOS
AVSI
O ENCONTRO
outro, chama-o à existência e o determina. O encontro não é uma reunião de acontecimentos
a posteriori, mas nasce nos mil momentos e elementos de que consiste.
Veremos logo como o fenômeno do encontro dilata-se no horizonte mais vasto do
que se chama “desígnio” ou “destino”.
Com isso, seja dito também que um encontro autêntico não pode ser “produzido”.
Ninguém está em condições de perceber tudo o que é necessário para o seu êxito. Aliás,
exatamente aqui está a raiz da problemática de todos os esforços e tentativas de fazer os
homens se “encontrarem”. A seleção mais prudente e a preparação mais escrupulosa
permanecem sempre fragmentárias e aproximativas frente à multiplicidade e à mobilidade
final de uma situação real e ao complexo de elementos que a constituem. Além disso, em
todo encontro autêntico há um momento de originalidade e de criação. Há um descerrar
dos olhos, do espírito e do coração do próprio íntimo, um “ser-pegos” e um pegar, uma
produção viva como resposta a um contato que liberta as forças mais secretas. Tudo isso
só pode acontecer espontaneamente.
Aliás, a sabedoria nos recorda: um verdadeiro encontro é freqüentemente
“perturbado” por intenções e projetos. No mundo das fábulas, há o símbolo da “flor azul”
que abre o caminho ao tesouro escondido, mas a flor só é encontrada por quem não a
procura. Aqui está contida uma verdade metafísica: as realidades essenciais devem ser
dadas. Não podem ser nem “pretendidas”, por direito, nem arrancadas à força, mas devem
conceder-se a si mesmas ou serem dadas. Isso indica à nossa inteligência uma instância
objetiva, que supera a de cada individualidade humana, em particular; um poder que guia
a situação e dá toda sua intensidade à sucessão das circunstâncias. Aliás, a “compõe”
realmente – como uma estrofe do “carmen pulcherrimum decurrens per tempora”, segundo
a expressão de Agostinho –, com sabedoria, expressão e originalidade, frente às quais
todo agir humano parece insípido e até brutal. Por isso mesmo, todo encontro autêntico
suscita um sentimento de indignidade pessoal e de gratidão, no mínimo de maravilha pelo
modo singular e inesperado como tomou forma.
O que foi descrito até aqui em seu caráter ontológico-metafísico possui também
um caráter psicológico. Aspirar, fazer, organizar são formas diversas de tensão da vontade
a um objetivo, ou seja, de concentração. Porém, ela provoca o oposto da postura que
torna o encontro possível, isto é, a abertura sincera à realidade. A concentração tende,
destina, isola. Disto, surge o fenômeno que oferece um motivo tão forte de ressentimento
a todos os temperamentos para os quais só existe – ou quase – o que já está de alguma
forma finalizado, amantes do zelo e da pedantice: o fato de que os encontros sejam dados,
freqüentemente, aos homens que não se esforçam nesse sentido e que nem ao menos
parecem merecê-los.
No entanto, uma vez que o encontro aconteceu, florescido da profundidade do
imprevisível sobre a qual o homem não tem poder, não raro é despertada uma impressão
digna de atenção particular: “Não poderia ter sido diferente”.
É um sentimento que toca intimamente a essência da existência humana. Pode
acontecer que ele seja mal-entendido, por exemplo, quando acreditamos que não se trata
de algo além das conseqüências necessárias de uma causalidade imediata de caráter
psicológico ou sociológico. Mas tal gênero de causalidade destruiria justamente o que
constitui o núcleo essencial do encontro, isto é, a liberdade.
A necessidade em questão não existe antes do efeito, só depois. Mais
precisamente, ela surge da eficácia do fenômeno, revela-se nessa última como realização
plena de um significado que se completa como realização de sentido. Perceber que “eu
tinha que encontrar esse homem” não significa que uma seqüência férrea de causas de
um certo tipo tenha provocado o fato de o outro aparecer no momento em que eu também
estava ali, e de a situação ter certas características. Não é exatamente assim, e eu sei
muito bem. Bastaria uma inabilidade – a oscilação de um estado de ânimo, demorar diante
AVSI
ANEXOS 4.25
O ENCONTRO
de uma vitrine, qualquer variação nas condições do trânsito – para impedir tudo. Porém
tudo isso foi “necessário”, no sentido de que somente assim poderia emergir o que foi –
para mim, para a outra pessoa ou para um certo trabalho – uma satisfação, um presságio
ou até mesmo a própria salvação.
Aqui, liberdade e necessidade se movem juntas ao redor de um eixo inteiramente
espiritual, ou mais exatamente, interior, e convergem na positiva realização e manifestação
do significado. Nesse momento, nesse lugar, nessa relação com as coisas ou com uma
pessoa, a existência torna-se plena, justa, saudável e salva.
Assim compreendido, o encontro constitui um elemento importante no contexto
global do comportamento, da ação e da criatividade do homem; e completando-a,
acompanha a atividade de trabalho planificada, organizada, realizada e aperfeiçoada por
meio de um empenho tenaz e da vontade de superar os obstáculos.
O encontro é dado, o trabalho é decidido e realizado. Do encontro nascem a
intuição fecunda, a iniciativa criadora, a irrupção da novidade. Através do trabalho, tudo
isso adquire ordem e forma e permanece no tempo. Sozinho, o encontro faria da vida uma
aventura inquieta e à mercê do instante. Sozinho, o trabalho seria privado de fecundidade;
tudo se tornaria habitual, usado, “velho”. A existência seria comprimida em um esquema.
Alegria e temor seriam perdidos.
A religiosidade desapareceria. Digamos melhor: um fator importante do que se
chama “religiosidade”. Pois no encontro não se mostra apenas o essencial e único, mas o
mistério também. Quando Sócrates e Fedro se encontram perto do Ilisso e o primeiro, na
comoção do momento, fala do Amor, o plátano à sombra do qual eles se sentam transformase de repente em dríade. Na verdade, a ninfa não é absolutamente uma figura alegórica
que se sobrepõe à árvore e a caracteriza exteriormente, é o fato de que a árvore revela, de
repente, uma profundidade inefável em si, e agora é realmente ela mesma. É uma árvore
verdadeira, não um fantasma; alguém a plantou, alguém pode derrubá-la e vendê-la como
lenha. Nesse instante, porém, torna-se um dom. Doa a si mesmo. “Alguma coisa” se doa
nela.
Aqui nos expressamos de forma mítica. Seria mais exato dizer o que
compreendemos de outro modo. No instante em que encontro uma coisa ou um homem –
e aqui se trata de um encontro recíproco – ele podem ganhar uma dimensão nova e mais
profunda: a dimensão religiosa. Então, tudo se torna mistério. E o homem responde ao
mistério; surpreendendo-se, agradecendo, percebendo algo como um abalo ou uma
perturbação.Vejam aquele trecho das Confissões, quando Santo Agostinho faz a experiência
de ser liberto repentinamente de uma dor de dente aguda (IX, 4, 12).
IV
Chegamos agora às reflexões que introduzem ao núcleo mais secreto do que a
palavra “encontro” significa.
No Novo Testamento é relatada uma frase de Jesus que nos dá um golpe insólito.
Diz assim: “Aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida
por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 16, 25). A expressão aparece em primeiro lugar em
um contexto religioso e se refere ao modo como um homem entra em relacionamento com
Cristo, ou como enfrenta uma situação de perigo, a partir dali. Quanto mais tempo nos
compararmos com a frase, mais reconhecemos que é uma palavra-chave para a
compreensão essencial da existência humana. O vocábulo que em grego diz “vida” (psyché)
também pode significar “alma”. Seu significado move-se ao redor desses dois pólos; assim,
não cometeríamos um erro se o traduzíssemos como “o próprio eu vivente”. A palavra de
Cristo diz: quem segurar o próprio eu vivente, irá perdê-lo; mas quem se privar dele, irá
ganhá-lo.
4.26 ANEXOS
AVSI
O ENCONTRO
Aparentemente um paradoxo; na verdade, a perfeita expressão de uma postura
fundamental na existência humana.
O próprio ser, o vivo consistir na própria essência não é fixo nem está pronto e
acabado. Ele não atinge a realização se o homem obstinar-se em viver na posse imediata
de si mesmo, se se fizer de orgulhoso leiloeiro e o cultivar em todos os modos e ocasiões.
O próprio ser é antes de tudo elástico; até seria possível dizer dialético. Ele só pode encontrar
a própria realização em virtude de um ato no qual aparentemente se perdeu. O homem
não consiste em si mesmo, mas está “aberto e propenso”, na linha de um risco, rumo ao
que é diferente de si, sobretudo rumo ao outro ser humano. Quanto mais o homem ousar
afirmar-se não como uma individualidade fechada, mas aberto e propenso a algo que
justifique tal risco, mais ele será e se tornará autenticamente ele mesmo. Dizendo em termos
simples: o homem torna-se ele mesmo “ao tomar distância” de si – não na forma de uma
despreocupada irreflexão, nem na de um vazio existencial, mas ao aderir ao que, para ser
conquistado, é digno do risco de perder a si mesmo.
Isso pode acontecer de muitas maneiras diversas. Por exemplo: se eu me encontrar
diante de uma árvore, posso me perguntar: qual é o seu valor? O que quero fazer com ela?
Quanto vou ganhar com sua venda? São considerações racionais que sempre passam
pela cabeça de lenhadores e comerciantes de madeira. Elas gravitam ao redor do lucro
que a árvore pode me dar. Desenvolvendo-as, penso em mim e na árvore com relação a
mim.
Mas posso considerá-la de outra forma, procurando compreender o que a árvore
é, qual é a sua estrutura vivente, o seu ciclo biológico, a sua relação com o ambiente; ou
ainda, posso considerá-la para fazer experiência da sua beleza, da sua peculiaridade como
realidade singular criada, que se segura nas raízes na terra, lança-se ao alto sob o céu e se
expande no espaço ao seu redor – silenciosa, imóvel e todavia tão cheia de vida.
Essa é a postura do biólogo quando desenvolve sua pesquisa; de Morike, quando
cria o poema “A bela faia”, ou também de Ruysdael, enquanto pinta o “Vale dos freixos”...
Ora, se eu me perguntar o que pode ter ocorrido em mim como correspondência a essas
duas modalidades de consideração do objeto, constato uma diferença: no primeiro caso,
permaneci na minha proximidade imediata, não me perdi de vista um só instante, sempre
recolhido em mim mesmo. No segundo, me distanciei do meu “eu”, identifiquei-me com o
que estava à minha frente, dedicado à sua essência, à sua beleza, ao seu mistério. Antes, eu
afirmei, certifiquei, me impus, e a árvore me serviu para esse objetivo: não era mais que um
fragmento do meu ambiente, ali, só para mim. Aqui, ao contrário, esqueci-me de mim, e se
formou um espaço aberto, no qual pode ter lugar a manifestação da árvore. Pode ter sido
uma revelação tão potente e intensa que depois eu devesse me retomar. Aqui, porém, algo
teve primazia. E eu fui de alguma forma revigorado, reanimado, enriquecido. Ao alargar o
espaço, por assim dizer, deixando a mim mesmo nele, cheguei a mim por outra estrada e
certamente com uma vantagem: fui mais plenamente eu mesmo.
Outro exemplo, tirado da vida da Universidade e hoje muito atual. Há dois estudantes.
O primeiro, trabalha sem ver nada além da própria carreira futura, da possibilidade de
emprego, da utilidade desse ou daquele conhecimento, de um ou outro exame. Uma atitude
excelente, e com isso o estudante pode ter sucesso como advogado, médico ou em qualquer
outra profissão. O segundo, está inteiramente ocupado em compreender o que significa
perguntar e pesquisar, o que significa a palavra “verdade”. É absorvido pelo estudo, com
todos os seus problemas. Pode ser que assim perca tempo, cultive algo que não tem objetivos
práticos e imediatos; algo, por assim dizer, “inutilizável”. Suponhamos que ele, em breve, no
decorrer do seu estudo também chegue à lógica conclusão... O que devemos pensar ao
olhar para eles?
Para o primeiro estudante, a ciência era um meio para alcançar certo fim, um
pré-requisito para se impor, mais tarde, à vida. Tudo o que ele fez esteve totalmente
AVSI
ANEXOS 4.27
O ENCONTRO
“colado” ao seu próprio eu. O segundo, esqueceu-se de si mesmo. No fundo da sua
ação, a postura era uma abertura sincera à realidade e aos objetos às vezes presentes.
Os problemas tiveram a possibilidade de se desdobrar no seu espírito. O centro de
gravidade de cada coisa: não ela em primeiro lugar, mas a verdade. Por fim, qual dos
dois é mais profundo e autêntico, mais plenamente ele mesmo? No sentido das energias
vitais imediatas, com certeza, o primeiro; mas no sentido de autêntica realização de si
mesmo, o segundo. O primeiro ficou parado em sua identidade imediata; nunca foi um
pouco mais além, e assim tornou-se estreito e mísero e, não obstante toda a sua
grandeza privou-se de vida. Ao contrário, o outro, em cada passo ao longo do caminho
do autêntico perguntar e pesquisar, era novo e mais intensamente dado a si mesmo.
Na distância de si para aderir ao conhecimento da verdade, e sem se dar conta,
encontrava sempre mais a si mesmo.
Um último exemplo a propósito das relações pessoais entre os seres humanos.
O relacionamento com outra pessoa pode se apoiar sobre o fundamento do hábito,
como ocorre com um amigo de infância ou de adolescência; da conveniência, quando o
outro me ajuda no trabalho; ou até da imediata influência própria do homem, quando o
outro, por exemplo, age sobre mim ao me tranqüilizar, ou me encoraja, ou como vigilância
luminosa e iluminadora. Então, o meu amor próprio inscreve aquela pessoa no horizonte
do ambiente vital que se forma ao redor do meu “eu”. Torna-se parte dele. Não posso ficar
sem aquela pessoa e exijo que seja exatamente como eu preciso. Porém, na relação com
ela, meu “eu” fica em casa.
Isso não é amizade, de jeito nenhum. Porque a amizade só nasce quando eu
reconheço o outro como pessoa, reconheço sua liberdade de existir na sua identidade e
essência; quando consinto que se torne centro de gravidade para si mesmo e experimento
uma solicitude viva para que isso realmente aconteça... Então, forma e estrutura do
relacionamento pessoal convertem-se, e também a disposição de ânimo com a qual eu o
preencho. O centro do relacionamento está na outra pessoa. No ato de realizá-lo, distanciome continuamente de mim mesmo e exatamente assim me reencontro, como amigo, ao
invés de aproveitador; livre, ao contrário de preocupado com o meu lucro; realmente
magnânimo, antes que cheio de pretensão. Então, entro na esfera dos valores
“extraordinários”, “fora do comum”, que no fundo dão sentido à existência humana na sua
totalidade.
Podemos reunir ainda muitos exemplos. O homem é criado de forma a ser antes
de tudo dado a si mesmo em “forma-de-início”, em uma abertura e predisposição ao que
virá ao seu encontro. Quando ele se bloqueia e se enrijece, quando fica fechado em si
mesmo, sem nunca correr o risco de se colocar na postura de dedicação à realidade, se
torna sempre mais rígido e mísero. Ele “conservou para si a própria alma” e assim a “perde”
sempre mais.
Mas quando ele se abre, acolhendo e afirmando as coisas em si mesmas, então
se torna um horizonte escancarado, no qual o outro pode se manifestar: a própria terra
que ele ama, o trabalho ao qual se dedica, a pessoa à qual se ligou, as idéias que o
iluminaram e o fizeram feliz; e, dessa forma, ele se torna sempre mais completo e
autenticamente “ele mesmo”.
Este sair de si pode ganhar até uma intensidade religiosa. Pensemos no fato de
que a palavra que expressa uma forma muito alta de comoção religiosa diz “êxtase”, ektasis,
ou seja ter-saído-de-si, estar-fora-do-próprio-ser-e-aderir ao Absoluto.
A esse propósito, com respeito a toda relação possível, não devemos esquecer
que a relação não é por si mesma unilateral, sem correspondência. Não concerne só ao
homem que abandona a si mesmo por amor ao que vem ao seu encontro: o que está
diante dele – cuja essência é descoberta – ao sair do esconderijo em que estava selado e
se voltar ao homem, também se manifesta a ele.
4.28 ANEXOS
AVSI
O ENCONTRO
Aqui está, portanto, uma lei fundamental da existência. As modalidades em que
se realiza são multiformes como a vida. Em cada pessoa, os relacionamentos configuramse de forma diversa. A relação fundamental é a mesma: o homem tende para além de si
mesmo rumo ao outro, rumo ao que constitui sua essência, e só alcança realmente a si
mesmo dessa maneira.
O encontro é a origem de tal processo de auto-realização – pelo menos pode se
tornar. É o momento em que o que foi encontrado vira uma sugestão inicial, através da
qual a pessoa que foi tocada emerge da “imediatez” do próprio ser e é convidada a se
distanciar de si mesma para entrar no outro que a chama.
Referência Bibliográfica
GUARDINI, Romano. L’incontro. Sarggio di analisi della struttura dell’esistenza umana. Iniziare,
Castel Bologneza: I Itaca, n. 3, p. 107-115, 2000. Tradução Juliana Pasquarelli Peres.
AVSI
ANEXOS 4.29