Curso de Extensão em Educação Infantil
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Curso de Extensão em Educação Infantil
Curso de Extensão em Educação Infantil Luisa Cogo (Org.) Cilene Cristina Caetano Chaves (Org.) Elisabete R. do Carmo Silva Dener Luis da Silva Curso de Extensão em Educação Infantil Belo Horizonte Editora AVSI 2002 Curso de Extensão em Educação Infantil Organização Preparação de textos Projeto gráfico Capa e Produção gráfica Revisão Luisa Cogo e Cilene Cristina Caetano Chaves Cilene Cristina Caetano Chaves Juliana Vaz Derval O. Braga Júnior (www.e-mega.com.br) Eneida Maria Chaves Viviane Lemos de Oliveira Belga Impresso no Brasil ISBN: 85-89391-01-9 Copyright © – AVSI – 2002 Este material, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. Ficha catalográfica C977 Curso de extensão em educação infantil / Luisa Cogo... [et al.] - Belo Horizonte: Avsi, 2002. 198 p.; 26,5 cm. 1. Educação de crianças. I. Cogo, Luisa. CDD 372.21 Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro Editora AVSI Rua Padre Marinho, 37 / 12° andar – Santa Efigênia Telefone: (31) 3241-2100 Belo Horizonte, Minas Gerais – Brasil AGRADECIMENTO Agradecemos a todos que contribuíram direta ou indiretamente para a realização deste trabalho, em particular aos alunos e professores do Curso, à Faculdade Salesiana de Vitória e aos nossos amigos Marco Coerezza e Rosi Rioli que nos apoiaram durante todo o processo de sistematização desta apostila. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO PEDAGOGIA E PSICOLOGIA O Projeto Pedagógico e a Educação Infantil .............................................................. 1.1 O Desenvolvimento Infantil .......................................................................................... 1.7 O Desenvolvimento Psicossocial ................................................................................. 1.23 A Inserção na Creche ................................................................................................... 1.29 O Brincar ....................................................................................................................... 1.33 A Observação ............................................................................................................... 1.43 A Organização do Espaço Escolar na Perspectiva da Ecologia Psicológica ............ 1.55 A Educação Inclusiva ................................................................................................... 1.67 A Educação Infantil na Legislação Brasileira .............................................................. 1.73 Relação Família-Escola: Concepções Psicopedagógicas ......................................... 1.81 SAÚDE E EDUCAÇÃO Aquisição da Linguagem Oral ..................................................................................... 2.1 Cuidados com a Saúde Infantil.................................................................................... 2.9 OFICINAS O Aprendizado da Arte na Infância ............................................................................. 3.1 Literatura Infantil ........................................................................................................... 3.5 Oficina: Utilização de Papel ......................................................................................... 3.11 Oficina: Material Reciclável .......................................................................................... 3.17 Trabalho em Equipe ..................................................................................................... 3.25 A Educação Matemática e o Jogo............................................................................... 3.31 A Música na Educação Infantil..................................................................................... 3.47 ANEXOS A Identidade Humana entre Desejo e Relacionamento .............................................. 4.1 A Palavra Compartilhada ............................................................................................. 4.9 O Domínio Impossível .................................................................................................. 4.15 O Encontro ................................................................................................................... 4.21 APRESENTAÇÃO Luisa Cogo O curso aqui apresentado, foi oferecido aos educadores dos Centros Educativos envolvidos no Projeto de Rede de Infância, gerido pela AVSI e financiado pela CEI e pelo MAE, assim como aos educadores de outros Centros Educativos que compartilham a mesma tentativa educativa. Faz parte de uma atividade bem mais ampla que pretende colaborar para o fortalecimento dessas escolas destinadas à infância e contribuir para o melhoramento de vida das crianças e das suas famílias. Os argumentos de reflexão que essa proposta entendeu oferecer para os educadores que participaram do curso e para todos aqueles que queiram confrontar sua prática com o conteúdo oferecido, se colocam em uma perspectiva educativa global que envolve e abraça a dimensão profissional, considerada não como uma competência, mas como uma expressão da pessoa do educador. Ser protagonista de uma proposta educativa significa antes de mais nada ser protagonista da própria vida, do próprio trabalho. As contribuições aqui apresentadas se põem como uma ocasião de reflexão para aqueles que entendam colocar o próprio trabalho a serviço de uma proposta que se caracterize como capaz de valorizar todos os aspectos da experiência humana; por isso, não se trata de aplicar um esquema ou algumas regras ou compartilhar princípios abstratos, mas de comparar a própria exigência de educar e se educar com uma hipótese de trabalho verificada como adequada. A etimologia da palavra educar (e-duco) evoca a experiência de um percurso, de um “levar-se” e de um “levar” até algo, até um fim que se reconheça como verdadeiro ou seja correspondente à totalidade, à variedade e à complexidade de exigências que cada realidade suscita e que cada percurso educativo deve saber enfrentar. É importante sublinhar que se trata de uma atividade de formação e não simplesmente de atualização, pois a primeira preocupação é compartilhar e participar de uma postura educativa precisa que defina também a escolha e a aprendizagem dos conteúdos. AVSI APRESENTAÇÃO O curso se caraterizou – e quer continuar – como um espaço aberto às contribuições de todos: não se trata de uma atividade que termina com o fim do curso, mas da possibilidade de criar novas ocasiões de aprendizagem e de juízo comum. O formato escolhido para a apostila, organizada em forma de um fichário, quer dar uma forma concreta a esta idéia, estando predisposta a enriquecer-se com novas reflexões. Está organizada em quatro partes que coletam as contribuições relativas ao âmbito pedagógico e psicológico, aos cuidados com a saúde, às oficinas e às leituras complementares que pretendem oferecer um valioso suporte à pratica cotidiana. A nossa tentativa é aquela de mostrar como na educação os aspetos teóricos e aqueles operativos não podem ser olhados separadamente, a fim de se evitar uma redução a um discurso baseado em uma intelectualidade ou a uma práxis didática e para estimular a criatividade na construção de percursos formativos que correspondam totalmente às necessidades das crianças. O nosso desejo é oferecer um valioso suporte que permita entender, de forma melhor, uma experiência que já está acontecendo e, ao mesmo tempo, estimule um novo empreendimento cultural e profissional. 10 APRESENTAÇÃO AVSI O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL Através da orientação da Constituição 1988, a LDB 9394/96 prescreveu que a educação infantil está incluída no sistema educacional como a primeira etapa da Educação Básica e que fica a cargo dos municípios, com o apoio do Estado, a oferta desse atendimento. Para regulamentar a autonomia dessa “nova” modalidade de ensino no âmbito organizativo e didático, prevê-se que cada instituição, elabore o seu projeto pedagógico, sendo esse um instrumento que representará a identidade cultural, educativa e organizativa de cada creche ou pré-escola. O trabalho educativo tem que ser projetado e desenvolvido com intencionalidade e fundamentado na reciprocidade, ou seja, no reconhecimento do outro (criança, família e cada membro da equipe de trabalho), porque só assim se pode constituir uma identidade e uma responsabilidade que ajude cada um envolvido nesse trabalho a viver com dignidade as tarefas que lhe são confiadas. Por isso, a reciprocidade tem uma ordem: de um lado, exige que o sujeito ao qual foi entregue a criança, seja consciente – ao desenvolver a função confiada pelos pais – de que tem o direito e o dever de educar a criança; do outro lado, os pais não podem delegar essa tarefa e ao mesmo tempo devem estimar e apreciar o trabalho do professor, reconhecendo o valor em relação ao filho. Reconhecendo a importância dessa ordem, torna-se simples afirmar a necessidade de cuidar do relacionamento com os pais, desde o começo na fase da acolhida, dando as razões por que os pais escolheram aquela instituição. O reconhecimento dessa reciprocidade transforma o projeto pedagógico num instrumento capaz de exaltar a liberdade dentro da escola ou da creche, tornando possível para os profissionais dessas instituições indicarem um caminho formativo de boa qualidade e para as famílias escolherem uma proposta que mais corresponda ao seu ideal educativo. O Projeto Pedagógico expressa a co-responsabilidade educativa vivida pelos adultos no “construir” a creche, a qualidade das relações dos diversos sujeitos (pais, direção, AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.1 O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL educadores e outros funcionários) que estão presentes e fazem parte da creche e a preocupação comum que os une na definição do percurso do Projeto Pedagógico. Na medida em que o Projeto Pedagógico deixar de ser algo burocrático (que tem que ser feito, para atender a uma exigência da lei) para ser um instrumento que comunica uma identidade, “uma cara” (e assim reforçar uma unidade), a creche começa a ser um interlocutor sério, apreciado, respeitado pelos pais, pela comunidade, pelas entidades, pelos órgãos Municipais, Estaduais e até Federais, tornando-se a expressão de uma proposta educativa significativa, compartilhada, dinâmica, e eficaz. Hoje, há uma mudança da natureza do Projeto Pedagógico, pois esse não é mais só um documento que contém “os sonhos” dos educadores, creche e pais, nem mesmo só um documento técnico, mas é uma proposta educativa significativa que deve expressar o trabalho que realmente está sendo desenvolvido no cotidiano da creche e refletir a identidade da escola, descartando qualquer possibilidade de aplicação de modelos “pré-fabricados”. Assim, o Projeto Pedagógico representa um instrumento que expressa a proposta educativa de uma comunidade escolar, que nasce da capacidade de delinear um caminho humanamente significativo fundamentado no ponto de vista cultural, adequado ao ponto de vista metodológico que se proponha a sustentar, a defender e a fazer crescer a pessoa na sua integralidade e liberdade, ajudando-a a reconhecer todos os fatores da realidade e desenvolvendo todas as dimensões que a constituem. Dessa forma, elaborar o Projeto Pedagógico sistematizando o trabalho que está sendo desenvolvido diariamente, explicitando os objetivos, a organização, a forma de avaliação e as condições de trabalho dos profissionais, está sendo um desafio para as instituições de educação infantil, pois, segundo Kishimoto (1994 apud Dias & Faria, 2001), historicamente o conceito de proposta pedagógica deriva da idéia de currículo que se limitava à definição de conteúdos, objetivos, atividades e metodologias, estabelecidos por faixa etária, embora a maioria dos educadores considerasse como prioridade: o que ensinar, para que ensinar, como ensinar e quando ensinar. Mais recentemente, essa idéia foi tomando novos rumos. Ampliou-se para aspectos relativos à organização, ao funcionamento, às relações e articulações que criam as condições essenciais para a viabilização da prática pedagógica, construção da identidade e da organização do trabalho em uma instituição histórica e socialmente situada, construída por sujeitos culturais, que se propõem a desenvolver uma ação educativa, a partir de crenças, desejos, valores e concepções, num processo de avaliação contínua. Neste sentido, para Kramer (1999 apud Dias & Faria, 2001), proposta pedagógica é: um caminho não um lugar (...) toda proposta contém uma aposta. Nasce de uma realidade que pergunta e é também busca de uma resposta. É, pois, um diálogo. Toda proposta é situada: traz consigo o lugar de onde fala e a gama de valores que a constitui; traz também as dificuldades que enfrenta, os problemas que precisam ser superados e a direção que a orienta... (p. 2). Ao reconhecer o caráter educativo do trabalho desenvolvido com crianças de 0 a 6 anos, privilegiando o cuidar e o educar, a legislação acabou reconhecendo que, na realidade, essas duas funções já existiam como propostas de muitas instituições, mas só que de forma pouco sistematizada. A LDB 9394/96 baixou normas que definem a elaboração das propostas pedagógicas das instituições de educação infantil para que a organização do trabalho se paute na forma como os sujeitos organizam os espaços, os tempos, as crianças, as atividades, bem como na escolha e formação de seus professores, no modo como estabelecem relações com as crianças, com as famílias e com a comunidade e nas estratégias utilizadas para resolver seus problemas e dificuldades. Segundo Dias & Faria (2001), esta tentativa consciente de organização do trabalho de cuidar/educar crianças em creches e pré-escolas, por um lado, possibilita a formação 1.2 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL continuada em serviço de professores conscientes, críticos, reflexivos e donos do seu fazer e, por outro lado, o retraçar de novos caminhos para que os investimentos nessa “aposta” sejam mais profícuos. Em 1999, o Conselho Nacional de Educação instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. De acordo com a Resolução nº 1, de 07/04/99, artigo 2º, essas diretrizes constituem-se na doutrina sobre Princípios, Fundamentos e Procedimentos da Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, que orientarão as instituições de Educação infantil dos Sistema Brasileiro de Ensino, na organização, articulação, desenvolvimento e avaliação de suas propostas pedagógicas. Essas diretrizes deverão nortear as propostas curriculares e projetos pedagógicos, além de estabelecer paradigmas para a própria concepção desses programas de cuidados e educação, com qualidade. Cabe ao Conselho Municipal de Educação definir normas específicas que deverão ser consideradas para a elaboração de propostas pedagógicas nas instituições públicas e privadas de Educação Infantil que integram seu sistema; isso significa que todas as instituições públicas e privadas (particulares, comunitárias, filantrópicas e confessionais) estão sujeitas a essas normas. Caso o município não possua o Conselho Municipal de Educação, esses deverão integrar-se ao Sistema Estadual de Ensino e estarão sujeitos à Regulamentação da Educação Infantil, aprovado pelo Conselho Estadual de Educação – CEE/MG, que, através da Resolução 443/01, define normas mais específicas em relação às competências, aos profissionais para atuarem nesse nível educacional, aos espaços, ao credenciamento e autorização de funcionamento, ao acompanhamento e avaliação. A resolução denomina a proposta pedagógica como “Projeto Político-Pedagógico”, integrando-a ao Regimento Escolar e definindo aspectos a serem considerados na elaboração das propostas (ou Projeto Político-Pedagógico) das instituições. Tentamos apresentar, abaixo, os vários aspetos que devem ser considerados na elaboração do projeto, comentando-os. 1. As características da população atendida e da comunidade na qual se insere. Trata-se de apresentar a história da comunidade e do seu desenvolvimento, caracterizando as famílias das crianças no que se refere à religiosidade, etnia, escolaridade, profissão e renda. Pois para uma proposta ser desenvolvida tem que considerada a realidade na qual está inserida, mesmo que depois se abra a um horizonte maior. 2. Os fins e objetivos; 3. A concepção de criança, de desenvolvimento infantil e de aprendizagem; 4. A relação educador infantil/criança. Uma experiência educativa começa, se desenvolve e se cumpre, através de um tecido de relacionamentos significativos que caracteriza o ambiente de vida da pessoa. São os adultos que, conscientes da própria identidade e da bondade de experiência que estão vivendo, que se oferecem às crianças como guias atentos e discretos no caminho de crescimento. As crianças se abrem à aventura de conhecimento de si e do mundo, certos de poder confiar em algumas pessoas maduras. A creche tem como objetivo e finalidade o compartilhar com os pais a responsabilidade primária e original que eles vivem na educação dos filhos através de uma oferta de cultura que se traduz nas formas típicas da idade das crianças: o brincar; o uso do próprio corpo e as suas linguagens; a AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.3 O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL transformação direta da realidade; a imaginação e a intuição; a fantasia e o começo da simbolização. Através de uma série de percursos formativos, a criança alcançará algumas metas educativas como: a) ser introduzida na realidade descobrindo o seu significado; 2) ser ajudada na descoberta e na construção de potencialidades que caracterizam a sua personalidade e o seu desenvolvimento integral; e c) ser sustentada na descoberta de todas as potencialidades de conexão ativa da construção e potencialização de toda a realidade, através de um processo de observação, descoberta e a transformação; A realização desse percurso passará por um método ativo fundamentado em cinco princípios: 1) a qualidade do relacionamento educativo; 2) a centralidade da criança no seu ambiente original; 3) a riqueza formativa da vida cotidiana; 4) a organização intencional do ambiente; e 5) a abertura à realidade de acordo com totalidade de elementos constitutivos. 5. A avaliação do desenvolvimento integral da criança; 6. Planejamento geral e a avaliação institucional; 7. A articulação da educação infantil com o ensino fundamental. No planejamento geral, deve ser dada muita importância à observação da criança, à construção do relacionamento entre educadora e criança como primeiro conteúdo de aprendizagem, ao valor da experiência como tomada de consciência do próprio ser dentro do empenho com a vida, à realidade no seu aspecto cotidiano de vida. A escolha dos conteúdos a serem trabalhados deve responder a algumas características: a) realismo, como adesão às exigências do objeto e do sujeito; b) essencialidade, como capacidade do adulto de escolher entre todos os percursos possíveis aquele que mais ajuda no crescimento; c) concretização, atenção tanto aos aspectos formais exteriores à proposta, mas que representam a capacidade de convidar a criança a intervir e transformar a realidade; d) simplicidade reduzindo a complexidade do real, respeitando-se a sua verdade; e) capacidade evocativa de beleza e de verdade, porque só suscitando um maravilhamento na criança acontece um caminho de crescimento que não representa simplesmente um adequar-se passivamente ao pedido do adulto; f) abertura à totalidade, porque o empenho sobre uma atividade particular ajuda a criança a assumir uma postura útil para enfrentar todas as circunstâncias; g) organicidade: a proposta deve conter uma dinâmica evolutiva ordenada e unitária para evitar a fragmentação da experiência e a infantilização, ou seja, a redução daquilo que se propõe a um evento limitado à idade e ao contexto da criança. 8. Regime de funcionamento; 9. Espaço físico, as instalações e os equipamentos; 10. A habilidade e os níveis de escolaridade dos recursos humanos; 11. A organização do cotidiano do trabalho; 12. A educação continuada dos seus profissionais; 13. A articulação da instituição com a família e a comunidade; 14. Atendimento das necessidades educacionais especiais apresentadas pelas crianças. 1.4 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL Nesta parte, a proposta irá explicitar a impostação educativa e escolar na sua complexidade, descrevendo de modo essencial: a) os recursos e os instrumentos (espaço, organização do tempo, equipamentos e materiais); b) a organização escolar; c) a apresentação dos instrumentos que ajudem no relacionamento com os pais; d) a apresentação dos instrumentos para avaliar o percurso formativo; e) a apresentação do planejamento didático e da qualidade do serviço; f) a apresentação dos instrumentos internos que ajudam no desenvolvimento da própria tarefa (momentos de formação em comum, em serviço e discussão da organização da escola). Tendo em vista as escolhas filosóficas e pedagógicas de cada instituição, outras referências devem ser buscadas em livros ou experiências bem-sucedidas que possam contribuir na elaboração da proposta, mas tendo sempre em vista as normas comuns. O “Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil”, elaborado pelo MEC em 1998, é um material que pode também contribuir para esse trabalho, além de outros documentos publicados pelo MEC, como o documento “Propostas Pedagógicas e Curriculares em Educação Infantil”. De acordo com a LDB, a elaboração das propostas pedagógicas fica a cargo das instituição de ensino com a participação dos professores para que estes não se tornem meros destinatários de propostas elaboradas por outros, mas sejam sujeitos dessa construção. Aponta, ainda, a importância da participação e do envolvimento das famílias das crianças atendidas e de outros parceiros que possam contribuir direta ou indiretamente nessa ação. No entanto, chama atenção para a necessidade de se criar mecanismos para que todos os envolvidos possam se encontrar para discutir, opinar, estudar e refletir de fato sobre todos os pontos relativos à construção ou reformulação da proposta, bem como na sistematização desse trabalho. Às Secretarias, não cabe elaborar, mas contribuir, subsidiar e orientar as instituições tanto públicas como privadas na elaboração das propostas pedagógicas, na explicitação da regulamentação pertinente e na tradução das Diretrizes Curriculares Nacionais, bem como no acompanhamento, supervisão e avaliação do processo de elaboração e implementação das propostas, identificando necessidades e criando estratégias que possibilitem seu avanço e melhoria. É seu papel, ainda, orientar e apoiar as instituições para que criem condições concretas que viabilizem tanto a sua execução quanto a avaliação. As Secretarias devem, enfim, definir políticas para a Educação Infantil que considerem a articulação dos vários setores envolvidos no atendimento à criança de 0 a 6 anos, a profissionalização e valorização dos educadores, as condições de trabalho e de funcionamento das instituições, além de fazer as devidas articulações para que o desafio de cuidar e educar as crianças em creches e pré-escolas, se concretize com qualidade. Referências Bibliográficas BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Propostas pedagógicas e curriculares de educação infantil. Brasília: MEC,1996. BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. COEREZZA, Marco. Avvio della riflessione sul piano dell’offerta formativa. Iniziare, Castel Bolognese: ITACA, n. 1, p. 86-90, dez. 2000. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.5 O PROJETO PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INFANTIL DIAS, Fátima Regina Teixeira de Salles; FARIA, Vitória Líbia Barreto de. As instituições de educação infantil e a construção de propostas pedagógicas, 2002. (mímeo) SCUOLA DI CASSANO MAGNAGO. Il piano dell’offerta formativa. Iniziare, Castel Bolognese: ITACA, n. 3, p. 140-142, dez. 2000. 1.6 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O DESENVOLVIMENTO INFANTIL O DESENVOLVIMENTO INFANTIL 1. Introdução Desenvolvimento, segundo o significado primeiro da palavra, quer indicar “ato de des-envolver, des-enrolar; fazer crescer”. O prefixo “des” indica uma negação (por exemplo, desnutrido: não nutrido). Imaginemos, então, que um objeto está envolvido por uma camada, por uma roupa, quando des-envolvo este objeto, ponho-o desnudo, mostro o seu interior. Ou ainda, se tenho um carretel de linhas e desejo pescar, devo des-enrolar o carretel, esticar, levar para longe a linha, desenvolver a linha do carretel. Mais tarde, o termo foi utilizado para significar “aquilo que cresce”, mas que já estava presente no objeto. Assim, quando digo “aquele carvalho desenvolveu”, digo que ele cresceu e, mais precisamente, digo que cresceu a partir de uma semente. O carvalho já estava presente na semente, ainda que em potência. A natureza des-envolveu essa potência que estava contida na semente do carvalho. O Desenvolvimento Infantil diz respeito, assim, ao crescer dessa potência do humano, e a ênfase do presente curso é a de um fazer crescer amplo, totalizante, que passa pela educação. No dizer de Luigi Giussani (2001): Educação é “introdução à realidade total...” E é interessante observar o duplo valor desse “total”: educação significará, com efeito, o desenvolvimento de todas as estruturas de um indivíduo até a sua realização integral e, ao mesmo tempo, a afirmação de todas as possibilidades de conexão ativa daquelas estruturas com toda a realidade. Devemos, logo, notar que a consideração de todos os fatores do homem deve ter presente um fator que poderia passar despercebido, aquele que chamamos de alma: não considerar esse fator significa não considerar que o homem é um mistério e que ele se desenvolve na totalidade dos seus fatores se está aberto na procura de um significado último de tudo através do desenvolvimento ordenado, rico e profundo de todas as dimensões que constituem o seu ser. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.7 O DESENVOLVIMENTO INFANTIL Por isso, falar de totalidade significa afirmar que o homem é feito para algo de grande que se revela na realidade, mas que está além dela, não só em termos espaciais e temporais mas de conhecimento. O desenvolvimento deve tornar possível para a criança, como para o adulto, o reconhecimento da existência de algo que escapa da própria capacidade de indagar. Esse fazer crescer passa pela figura do educador, pela presença e companhia do adulto com a criança que se desenvolve. Mais adiante, veremos que, se a semente de carvalho precisa para desenvolver-se de terra boa, água e sol, assim também a criança precisa de condições “nutridoras” e estas só ocorrem na presença de um adulto, através de um adulto. Vários fatores devem ser observados, quando se fala de desenvolvimento infantil. No presente texto, destacaremos os seguintes: a) os aspectos biológicos envolvidos nesse processo, dentre eles o desenvolvimento neurológico, físico e motor; b) os aspectos sociais: não há crianças que se desenvolvam sozinhas; c) os aspectos cognitivos, ou mais precisamente o modo e o conteúdo do pensamento infantil; e d) o potencial afetivo (afeto provém de affici, ser afetado, ser tocado por algo) que se estabelece na relação com o ambiente. Quer dizer, no desenvolvimento infantil, facilmente percebemos que uma criança ao brincar com uma bola está ativando estes quatro domínios acima mencionados: ela precisa mexer-se e mover-se em direção à bola (aspectos motores); no entanto, ela só poderá mexer se antes um adulto a deixar mexer, lhe der condições, a começar pela comida, energia da qual ela poderá utilizar-se para explorar o ambiente, mas também porque é provavelmente o adulto quem lhe mostra, apresenta a bola (aspectos sociais); ela também precisa ter seus pensamentos e imaginação relacionados com o brincar de bola (aspectos cognitivos) e desejar, ter prazer, estar afetada, ter um interesse – que é uma outra forma de dizermos que gostamos de algo – pela bola (aspectos afetivos). Faremos, a seguir, uma exploração mais aprofundada do desenvolvimento cognitivo, social e afetivo. Assim, buscaremos apresentar algumas importantes contribuições da psicologia no decorrer de sua história. 2. As Idéias de Piaget e a Educação Infantil: o desenvolvimento cognitivo São vários os autores que descreveram o desenvolvimento infantil, mas foi com Jean Piaget, biólogo e psicólogo nascido em Nauchatel, Suíça, em 1896, e falecido no mesmo país em 1980, que começou a atentar-se para os estágios do desenvolvimento cognitivo da criança, numa abordagem educativa. Na época de Piaget, os estudos sobre o desenvolvimento infantil limitavam-se a fazer uma descrição da criança a partir de uma comparação com o adulto. Assim, a criança era tida por muitos como um indivíduo com muitas potencialidades, mas que ainda não as havia desenvolvido. Tem um corpo, mas um corpo frágil, inferior ao do adulto. Tem linguagem mas uma linguagem menor, menos flexível que a do adulto. E assim por diante. Foi Piaget quem primeiro desconfiou desta perspectiva “adultocêntrica”. Assim, ao estudar profundamente como a criança pensa, como ela imagina e raciocina sobre as coisas, descobriu que a criança não é um adulto em miniatura, mas alguém que pensa sob uma lógica diferente. A questão, portanto, não é quantidade de conhecimento, mas sim qualidade de conhecimento. Desejoso de explicar de forma científica como conhecemos as coisas, Piaget, através de suas inúmeras observações e experimentos, acaba por construir uma teoria específica: A Epistemologia Genética. Epistemologia (episteme = conhecimento, logos = estudo, ciência), ciência ou teoria do conhecimento, ou de como o conhecimento ocorre. Genética (gênese = origem) porque o pesquisador genebrino acreditava que não bastava descrever o que é o 1.8 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O DESENVOLVIMENTO INFANTIL conhecimento; é preciso, antes de tudo, saber de onde vem, qual a origem do conhecimento. Daí, seu interesse pela criança. Poderíamos dizer, então, que Piaget não pode ser considerado um Psicólogo da Infância, mas que se utilizou do estudo da infância para alcançar seu principal objetivo: conhecer como ocorre o conhecimento no homem. Assim, o autor suíço construiu uma teoria que muito se diferenciava das antigas, utilizando conceitos e nomenclaturas muitas vezes cunhadas por ele. Por isso, antes de continuarmos nossa discussão, apresentaremos um breve resumo de alguns dos termos mais usados por esse biólogo/psicólogo. Para podermos ler Piaget com propriedade, é importante lembrar que o mesmo chegou à Psicologia Infantil a partir da Biologia. Desse modo, muitos de seus conceitos guardam conexão com os desta ciência. Além disso, se entendermos que Piaget estava preocupado com os processos que levam os organismos a melhor se adaptarem a seu meio, facilmente entenderemos seu fascínio pela inteligência. A inteligência, para este autor, é a capacidade humana que permite ao organismo biológico se adaptar a seu ambiente. De fato, a espécie humana encontra-se difundida em todas as partes do mundo. O homem inteligente molda seu corpo, seus pensamentos (estruturas e esquemas cognitivos) e sua cultura para encontrar saídas frente às dificuldades do ambiente. Diferentemente de autores que advogam que o homem é fruto do ambiente, Piaget demonstra que, ao nascer, a criança traz consigo uma série de reflexos, respostas automáticas ao ambiente – lembrese do reflexo de segurar e o de sugar, indispensáveis à sobrevivência do bebê. É a partir destes reflexos, elaborados através da contínua repetição, que surgem os esquemas cognitivos. A criança não apenas suga o leite, mas olha nos olhos da mãe enquanto faz essa ação, consegue parar, ter maior domínio sobre a ação reflexa. Os esquemas cognitivos, à medida que se complexificam enquanto o desenvolvimento vai ocorrendo, ganham o status de estruturas cognitivas. Assim, estas últimas são como que feixes e conjuntos de esquemas articulados para melhor se adaptar ao ambiente. Quando escrevemos, por exemplo, utilizamo-nos de vários reflexos (segurar, manter corpo ereto etc.) que se manifestam em esquemas (segurar + coordenar a força do lápis no papel + articular o trajeto do lápis com a imagem visual etc.) que se articulam em forma de estruturas cognitivas (segurar + articular com imagem visual + articular com imagem mental da escrita, do que devo escrever etc.). Assim, segundo Piaget, nós nos utilizamos das estruturas cognitivas para melhor nos adaptarmos à realidade, para obtermos respostas mais adequadas, enfim, para entrarmos num estado de equilíbrio com o ambiente e conosco mesmos. O homem, no entender de Piaget, está sempre à procura de um estado de maior equilíbrio; a isto ele chamou de tendência à Equilibração Majorante. É esta tendência que nos move de estados de menor entendimento/adaptação para maior entendimento/adaptação. Para melhor entendimento desse processo, segundo Piaget o processo de adaptação se dá através de dois momentos distintos, porém, complementares e interdependentes. O primeiro momento seria a Assimilação que consistiria em utilizar-se dos esquemas e estruturas já formadas para alcançarmos o estado de equilíbrio. Nesse momento, exige-se que o objeto assimilado se molde às estruturas do sujeito. Assim, uma criança pequena que ainda não desenvolveu esquemas complexos de agarrar uma bola ou chutá-la, fica à mercê de que alguém coloque a bola diante do seu colo ou que a segure pelas mãos para que possa, agora com mais equilíbrio corporal, chutar a bola. O segundo momento da Adaptação é composto pela Acomodação. Aqui, diferentemente do momento anterior, as estruturas ou esquemas anteriores do sujeito são modificados para adaptar-se/conhecer o objeto. Nesse momento, é o sujeito quem se molda ao objeto de conhecimento. No exemplo acima, à medida que a criança cresce, seus esquemas e estruturas vão se modificando e se complexificando até o ponto em que a criança já pode pegar a bola e segurá-la em seu colo sozinha. Uma vez que já desenvolveu os esquemas de marcha e corrida e consegue manter-se equilibrada sem o auxílio de um adulto ou de qualquer suporte, já pode começar a chutar a bola. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.9 O DESENVOLVIMENTO INFANTIL É preciso lembrar, como já foi dito acima, que tais momentos (assimilação e acomodação), apesar de distintos, acontecem simultaneamente e interdependentemente, ou seja, o momento de assimilação depende do momento de acomodação e vice-versa. Nossa adaptação ao ambiente é, portanto, ativa: o conhecimento não se dá de fora para dentro, tão pouco apenas de dentro para fora, mas de um inter-relacionamento entre estes dois pólos. A seguir, apresentaremos sinteticamente os estágios do desenvolvimento cognitivo infantil descritos por Piaget. Lembremos, uma vez mais, que Piaget não estava interessado em fazer uma teoria psicológica, estava antes preocupado em entender como se produz o conhecimento sobre algo. Desse modo, torna-se compreensível por que esse autor dedicou-se quase exclusivamente ao entendimento do desenvolvimento cognitivo, colocando como pano de fundo as demais dimensões do desenvolvimento humano – motor, social e afetivo. Para ele, todas as pessoas passam pelos mesmos estágios, seguindo a mesma ordem em idades específicas. Alguém, por exemplo, só segue para o estágio operacional-concreto se já adquiriu todas as habilidades do estágio anterior, pré-operacional. No entanto, devemos lembrar que cada pessoa tem um biorrítmo e que as idades apresentadas no quadro a seguir são apenas diretrizes para orientar a observação do desenvolvimento infantil. 2.1. Estágio Sensório-Motor (0 a 2 anos): Nesta fase, a criança está explorando o meio físico através de seus esquemas motores. Percebe o ambiente e age sobre ele, embora de forma rudimentar. • Tem reflexos – sucção, agarrar objetos. • Define objetos a partir do uso que se faz deles. • Pega, balança, joga, bate etc. • Diferencia objetos gradativamente. • Procura objetos escondidos. • Tem noção de EU – gradativa percepção da diferença entre si e os objetos ao redor; • Faz gradativas construções das noções de tempo, espaço e causalidade. 2.2. Estágio Pré-Operacional (2 aos 5, 6 anos): A criança é capaz de simbolizar, de evocar objetos ausentes. Estabelece diferença entre significante e significado, o que possibilita distância espaço-temporal entre o sujeito e o objeto, por meio da imagem mental. A criança é capaz de imitar gestos, mesmo com a ausência de modelos. • Possui mais independência em relação a seu ambiente e aos pais. • Gradualmente desenvolve o uso da linguagem e a capacidade de pensar de forma simbólica (função semiótica). • É capaz de pensar sobre operações lógicas em uma determinada direção, ex: se A, então B. Porém, tem dificuldade em inverter esta operação lógica. • Tem dificuldade em ver o ponto de vista de outra pessoa. • A criança “foca” apenas um atributo do objeto, centralizando-se nele, não levando em conta outros elementos. • Vive uma atitude exageradamente concreta em que os nomes, sonhos, pensamentos são percebidos como entidades tangíveis. • Atribui anima, vida, sentimentos e intenções dos seres humanos às coisas e animais. • Atribui forma humana a objetos e animais. 1.10 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O DESENVOLVIMENTO INFANTIL 2.3. Estágio Operacional-Concreto (7 aos 11, 12 anos): A criança tem a inteligência operatória concreta, sendo capaz de realizar uma ação interiorizada, executada em pensamento, reversível, pois admite a possibilidade de uma inversão e coordenação com outras ações, também interiorizadas. Necessita de material concreto, para realizar essas operações, mas já está apta a considerar o ponto de vista do outro, sendo que está saindo do egocentrismo. • O uso da linguagem continua evoluindo. A criança já consegue distinguir o uso verdadeiro do uso metafórico, a verdade e a mentira em uma frase ou história a ela contada. • É capaz de resolver problemas concretos (práticos) de maneira lógica. • Compreende as leis da conservação e é capaz de classificar e seriar, além de perceber que, invertendo-se a operação lógica, teremos o mesmo resultado. Ex: se A > B e B > C, então A >C ou C< A. • Desenvolve a capacidade de ordenação, seriação, classificação, agrupamentos, que possibilitam aprender as operações de adição, subtração, divisão, multiplicação de maneira simples. 2.4. Estágio Lógico-Formal (12 em diante, atravessando a idade adulta): O adolescente tem as estruturas intelectuais para combinar as proporções, as noções probabilísticas, raciocínio hipotético dedutivo de forma complexa e abstrata. • É capaz de resolver problemas abstratos de maneira lógica. • Torna-se mais “científico” ao pensar, usando de hipóteses e probabilidades. Consegue prever eventos só com o uso do pensamento. Ex: se eu derramar mais 100 gramas neste prato da balança, poderei com certeza alcançar 1000 gramas e equilibrar os dois pratos. • É capaz de operar com símbolos e signos. • Raciocina usando conceitos abstratos, desenvolve recursos para descobrir, conhecer, transformar e criar. • Usa a linguagem como suporte analítico do pensamento lógico, abstrato e concreto. • Forma o conceito da sua auto-estima. • Inicia a formação de juízos éticos e morais de maneira autônoma. Como o presente texto tem como foco maior de atenção o desenvolvimento infantil do nascimento aos 6 anos, passaremos, a seguir, a um maior detalhamento dos dois primeiros estágios propostos por Piaget. O Estágio Sensório-Motor, segundo (Woolfolk, 2000), recebe esse nome pelo fato de o pensamento do bebê envolver, neste momento, o ver, o ouvir, o mover-se, o tocar, o provar. No início da relação com os objetos, é fácil retirar alguma coisa das mãos das crianças, basta distraí-las com outra coisa e desaparecer com o objeto, mas, em um segundo momento (a partir do oitavo mês), a criança desenvolve a permanência do objeto, ou seja, ela compreende que os objetos do ambiente existem, ainda que ela não os esteja percebendo naquele momento; aí, se você retira um objeto com o qual a criança brinca, ela poderá “brigar” com você. Outra grande aquisição desse período é o início das ações lógicas voltadas para um objeto. Imaginemos, por exemplo, que uma criança deseje alcançar um determinado brinquedo que se encontra dentro de um baú transparente. A criança pequena pode se frustrar por não conseguir alcançar os brinquedos desejados, já uma criança que dominou o estágio sensório-motor (a partir de um ano e meio) vai ser capaz de lidar com a situação de forma mais ordenada, através de ensaios e erros, ela vai construir um esquema para aquele baú de brinquedos, esquema que passa pelo tirar a tampa, virar o baú, sacudi-lo, ver os brinquedos caírem para poder brincar com aquele que desejou, e depois a criança AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.11 O DESENVOLVIMENTO INFANTIL se torna capaz de reverter essa ação. É importante lembrar que reverter uma ação é uma aquisição do período sensório-motor e é diferente de reverter o pensamento que é uma aquisição que leva muito mais tempo para ser adquirida (final do período pré-operatório, início do período operatório-concreto). Ao final do estágio sensório-motor, a criança já é capaz de usar muitos esquemas de ação, mas isso não basta. A criança precisa adquirir a capacidade de fazer operações, ou seja, ações realizadas e revertidas mentalmente sem a necessidade do objeto estar fisicamente presente. O estágio pré-operacional recebe esse nome justamente pelo fato de a criança estar quase alcançando essa habilidade. Segundo Piaget, para a criança passar da ação para o pensamento, é necessário passar pela internalização da ação. A capacidade de formar e usar símbolos é uma grande aquisição deste período que se denomina função semiótica. Apesar da função semiótica, a criança ainda achará muito difícil pensar de trás para frente. Piaget mostra que esta função se destaca também através dos jogos de imitação. A criança pequena, desde muito cedo, já se utiliza da imitação para modular seu comportamento. Contudo, no estágio pré-operacional, tal uso se aperfeiçoa a ponto de a criança não mais precisar estar diante do modelo para imitar; surge, então, a imitação diferida. Tal habilidade mostra que a criança já possui uma representação do mundo e das coisas. Também o desenho desempenha um importante papel no aperfeiçoamento da Função Semiótica: a criança começa a explorar as cores, os riscos e as possibilidades representativas do desenho. O pensamento reversível, contudo, está relacionado com muitas tarefas que são difíceis para a criança pré-operacional, tais como a conservação da matéria. É esperado que uma criança no estágio pré-operacional não consiga responder adequadamente à questão “Onde há mais água?” quando apresentamos a ela dois copos com a mesma quantidade de água e, logo em seguida, despejamos o conteúdo de um dos copos em um terceiro copo, de um formato diferente, mais baixo e largo. A criança geralmente responde que há mais água no copo comprido e fino. Isso ocorre porque a criança está focalizando a atenção na dimensão da altura do copo; a dificuldade que ela tem é a de considerar mais de um aspecto da situação ao mesmo tempo, o que Piaget chama de descentralização. Diante dessa evidência, concluise que as crianças pré-operacionais têm dificuldades em se libertarem de suas próprias percepções da aparência do mundo, o que nos remete a uma outra característica deste estágio que é o egocentrismo. Isso não significa que a criança é egoísta (o que seria uma centralização do afeto), mas que as crianças pressupõem que todos compartilhem de seus pensamentos, reações e perspectivas (uma centralização cognitiva). Outra característica do egocentrismo é a fala egocêntrica. Quando uma criança, entre 2,5 a 6 anos fala sozinha ou em grupo, fala alegremente, sem, no entanto, segundo Piaget, estar em interação real com ninguém. É comum encontrarmos “diálogos” tipo o que se segue: Criança A: hoje eu vou fazer uma papinha pra ocê neném (segurando a boneca nas mãos)... Criança B: vamos brincar de policial-ladrão? Criança A: vem cá, papinha gostosa, tem que comer tudo... Criança B: policial-ladrão, bang, bang, bang, matou o ladrão. A teoria do desenvolvimento cognitivo que Piaget nos propõe, apenas resumida acima, permite-nos recuperar alguns pontos centrais: • A diferença entre a cognição da criança e o pensamento do adulto não é quantitativa, mas qualitativa. Isso significa que a criança não simplesmente sabe ou conhece menos do que o adulto, mas que o seu pensamento opera segundo categorias qualitativamente diferentes daquelas do adulto. • O pensamento cresce a partir de uma ação; para desenvolver o pensamento da criança, necessita-se começar a trabalhar a partir do nível no qual o pensamento começa a desenvolver-se, que é o estágio concreto e não o abstrato. 1.12 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O DESENVOLVIMENTO INFANTIL • O desenvolvimento do pensamento acontece partindo de um processo global, mais amplo e indefinido, para chegar a uma capacidade de análise mais adequada. • A evolução do pensamento humano acontece, tendo como objetivo uma melhor adequação à realidade, num continuum em busca de uma equilibração constante com o ambiente. Assim como apresentamos, Piaget é, sem dúvida, um autor interessante porque oferece um olhar respeitoso da identidade originária e específica da criança. Mesmo sobre o perfil cognitivo, oferece também uma análise valiosa, ainda hoje, do desenvolvimento das estruturas mentais. Mas existe um ponto crítico em Piaget: pois, para ele, é como se todo o desenvolvimento acontecesse por um movimento interior, por uma determinação do interno para o externo, porque a realidade é uma construção da criança. Assim, o homem se torna o artífice da construção do mundo, através do fato que ele confere um sentido às coisas que encontra e às ações que cumpre. Ao invés, a realidade tem um significado objetivo que a criança descobre devagar, se alguém lhe oferece uma hipótese a ser verificada, e isso tem uma incidência também sobre a estrutura cognitiva do sujeito. E em Piaget é totalmente ausente o conceito de tradição por ausência do adulto como condição do desenvolvimento. No entanto, com uma obra vasta e polêmica, Piaget tem tido seus estudos criticados e revistos por muitos pesquisadores da atualidade. Alguns o criticam por este não ter acrescentado a dimensão social à explicação de como o conhecimento se dá. Outros ainda, com base em estudos mais recentes, admitem que Piaget subestimou os conhecimentos do bebê e da criança pequena (0 a 2 anos). Para estes pesquisadores, o bebê, ao nascer, tem habilidades e potencialidades não descritas por Piaget. Contudo, permanece a contribuição do homem que mudou de vez a perspectiva do olhar adulto sobre a infância1 . 3. Lev Vygotsky e a Educação Infantil: o papel do Outro Outro autor que contribuiu muito para nosso entendimento do desenvolvimento infantil foi Lev Semionovich Vygotsky. Bacharel em direito e psicólogo, Vygotsky nasceu em Miski, cidade da Bielorrússia, uma das províncias do poderoso Império Russo, em 1896, portanto, no mesmo ano em que nasceu Piaget. E morreu em Moscou em 1934, aos 38 anos! Vygotsky, diferentemente do autor suíço, estava preocupado em entender como o homem se torna homem, ou melhor, como adquirimos consciência das coisas, do mundo e de nós mesmos. Assim, a pergunta básica de Vygotsky era: como nos tornamos homens? Como adquirimos a consciência, a cultura e a linguagem (chamadas por este autor de Funções Psicológicas Superiores)? Na tentativa de responder a essas questões, Vygotsky também voltou seu olhar para a infância, buscando nesta a origem dos processos acima mencionados. Através de um método, cuja principal característica é um olhar materialista-dialético sobre a história – o homem ao transformar a natureza, transforma também a si mesmo –, Vygotsky chega à conclusão de que “todas as funções psicológicas foram antes relações sociais. O modo como nos remetemos a nós mesmos foi antes o modo como outros se remeteram a nós”. Assim, o psicólogo russo afirma a gênese social de nossa consciência. O homem se faz, 1 Remetemos o leitor interessado em um aprofundamento das idéias de Piaget aos seguintes livros: FERREIRO, E. A atualidade de Piaget. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001 e KESSELRING, T. Jean Piaget. Petrópolis: Vozes 1993. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.13 O DESENVOLVIMENTO INFANTIL se constrói, na e pela interação com outros homens. O modo como penso, uso a linguagem, imagino, memorizo e até me emociono tem origem no modo como aqueles aos quais eu me relacionei durante minha história pessoal, utilizaram-se destas funções comigo através de sucessivas e complexas internalizações (tornar interno algo que é externo). Mas existe um ponto crítico em Vygotsky, pois é verdade que a educação acontece através do chamado de um outro à existência, mas o desenvolvimento não se dá só por essa interação, que permite conhecimento de coisas que, sozinho, não conseguiria conhecer. Isto é, o outro não possui o meu destino que permanece misterioso aos meus e aos olhos dele. A ajuda que o outro pode dar ao meu crescimento consiste no ser capaz de mover a minha liberdade, assim que eu capto a realidade, segundo a totalidade dos fatores constitutivos e através dessa adesão descubra aquilo para o qual é feito2. Em seus últimos trabalhos, Vygotsky aponta para uma perspectiva diferenciada: a questão da mediação semiótica. A linguagem seria a maior das aquisições da humanidade, uma vez que ela transforma todas as demais funções. O que nos diferencia de outros animais não é o fato de nós termos memória, pensamento, imaginação, sentimentos e os demais animais não. Ao contrário, o que nos distancia dos demais animais é o fato de em nós estas funções psicológicas serem incrementadas pela linguagem. Com o advento da linguagem não mais memorizo as coisas e fatos por eles mesmos, mas utilizo símbolos que podem representar (estar no lugar de) algo. Ganhamos com a linguagem a possibilidade de nos distanciarmos, nos livrarmos das coisas mesmas. Um macaco, por exemplo, só irá utilizar uma vara para conseguir um cacho de bananas longe de suas mãos se vir a vara. Nós, por outro lado, podemos utilizar-nos da memória e lembrarmo-nos do uso da vara em outros momentos – daí a importância da cultura! – e contextos; podemos, ainda, mobilizar o meio social, falando em voz alta: “seria bom se tivéssemos uma vara aqui, facilmente pegaríamos este alimento”. Através da linguagem, a criança que antes precisava ver a mãe para não chorar, agora pode imaginar sua mãe em outro lugar ou no trabalho e, então, acalmar-se e não mais chorar. Para este autor, linguagem não quer significar apenas a emissão de sons através da fala. O choro, o desenho infantil, seus rabiscos, o comportamento verbal e não verbal, tudo isso é Linguagem, quer dizer, tudo possui um significado e pode ser, então, interpretado. O educador atento a esse aspecto irá usar e abusar da linguagem – em suas diferentes manifestações – enquanto está interagindo com seus alunos, uma vez que é através das interações nas quais há trocas simbólicas (uso de algum nível de linguagem) que nos tornamos verdadeiramente humanos. A teoria de Vygotsky, portanto, integra uma perspectiva em que o homem é concebido enquanto ser biológico e social participante de um processo histórico. Para este autor, não é possível entender as pessoas fora de seus contextos socioculturais. Para ele, o que importa não é tanto o que a criança já sabe fazer sozinha, mas o que ela está em vias de saber fazer sozinha. É, portanto, um olhar prospectivo em direção ao desenvolvimento, e não um olhar retrospectivo como de costume. Na perspectiva dialética de Vygotsky, não é o desenvolvimento que sustenta a aprendizagem – como poderíamos afirmar que é para Piaget. Ao contrário, a boa aprendizagem é aquela que se adianta ao desenvolvimento, que “puxa” o desenvolvimento. Para o psicólogo russo, existem, assim, dois níveis evolutivos ou zonas de desenvolvimento: uma zona (área) de desenvolvimento real que é o nível daquilo que o indivíduo já aprendeu e já é capaz de fazer 2 Essa afirmação pode ser conferida nos textos de Guardini e de Lèna que apontam como a educação contém um elemento de poder do adulto sobre o outro e como se evita cair nessa sensação de onipotência sobre o outro. 1.14 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O DESENVOLVIMENTO INFANTIL sozinho. E existe uma zona de desenvolvimento potencial que abrange tudo aquilo que o sujeito não realiza sozinho, porém, se ajudado, ou mediado por outro, consegue realizar. A partir desses dois conceitos, Vygotsky define o que ele chama de “Zona de Desenvolvimento Proximal” (ZDP) que vem a ser a distância entre esses dois níveis de evolução da criança. O bom ensino deve incidir sobre a ZDP. Em outras palavras, não percamos tempo em ensinar o que a criança já sabe, porém, devemos ter o cuidado para não tentar ensinar à criança aquilo que está muito longe de suas possibilidades de entender. Busquemos o meio termo, o lugar onde as idéias e conceitos estão em forma de “embriões”. A partir do conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, podemos afirmar que o relacionamento social, o papel do Outro é de extrema importância no processo de desenvolvimento. São os pais ou o adulto que acompanha a criança que darão os primeiros estímulos e realizarão as primeiras interações com as crianças, dando suporte para esse crescer contínuo. Toda interação social implica, portanto, o partilhar, em algum grau, de um conjunto de signos, com seus respectivos significados, ou seja, da linguagem. Se a interação social for eficaz – encontro –, portanto promotora de desenvolvimento (o que implica processo de Internalização), ela necessariamente agirá sobre a ZDP e terá como um de seus resultados a construção de conhecimento. Essa interação social será tanto mais eficaz – encontro – quanto maior for o grau de afeto envolvido nela. Porém, devemos atentar que a qualidade da interação é o que realmente importa e não a quantidade. Assim, Vygotsky intui o conceito de encontro, porém não chega a defini-lo ou descrevê-lo. Veremos que esta é uma contribuição de outros teóricos e educadores: Martin Buber, Carl Rogers e Luigi Giussani. O encontro, para estes autores, é a fonte das transformações. É o abrir-se para a realidade como ela realmente é e deixar-se tocar por ela (affici). É o que nós, educadores, deveríamos buscar em todo processo educativo. 4. Henri Wallon e a Educação Infantil: um olhar para a totalidade da criança Um terceiro autor que muito contribuiu para o aprofundamento no entendimento sobre os importantes fatores do desenvolvimento infantil, notadamente os aspectos Emoção/ Afeto e Movimento, foi o filósofo, médico e psicólogo francês Henri Wallon, nascido em 1879 e falecido em 1962. Apresentou uma nova visão sobre as Emoções e o papel que o status tem no movimento na construção da identidade e da consciência. Procurando construir uma psicologia da pessoa completa, Wallon evita entender o homem dividido em partes. Assim, para uma real compreensão da criança, é necessário levarmos em consideração todos os níveis: biológico, motor, cognitivo, social e emocional (afetivo). Essa abordagem, tão incomum nos meios científicos costumados a dissecar apenas um dos aspectos e se especializar nesse, tem seu fundamento em um amor e um interesse muito grande pelas crianças. Wallon interessou-se pelas crianças, a princípio, enquanto médico psiquiatra que tratava de casos graves de doenças neurológicas. Nesse momento, ele mostra uma importante e significativa correlação: centros nervosos X emoção X atividade. Assim, utilizando-se do método das múltiplas comparações (comparando crianças normais com as patológicas), Wallon nos mostra que a Emoção no homem tem uma base biológica muito precisa (centros talâmicos e hipotalâmicos, região central do cérebro) e que, portanto, deve possuir uma função específica. Tal função, diz o autor francês, não deve ser encontrada na própria pessoa ou no meio físico. A emoção se dirige sempre para mobilizar o meio social e é neste, então, que devemos buscar a função primordial da emoção: mobilizar o Outro. O bebê ao nascer é extremamente frágil e caso não pudesse mobilizar um adulto poderia ser esquecido e certamente morreria. Assim, através da emoção, sustentada pelos AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.15 O DESENVOLVIMENTO INFANTIL centros nervosos e transformada em atividade (no bebê, uma série de gritos, choros, balbucios, movimentos os mais diversos), a criança consegue mobilizar o meio adulto. A emoção é esta descarga energética transmutada em gesto, em movimento. Isso é possível graças a duas funções: Função Cinética (o que nos permite andar, movimentar) e Função Tônica, que, segundo este autor, é a propriedade que temos de nos sustentar, mantermos nossa rigidez nos músculos. A emoção molda nosso corpo; quando estamos com fome, não apenas nosso estômago está com fome, todo nosso corpo está com fome. É provável que andemos mais depressa, que nos contorçamos, que nosso rosto mude. Também por esta capacidade de moldar meu rosto e corpo, a Emoção pode ser contagiosa. Ou seja, quando vejo alguém se emocionar em um filme no cinema, ou diante de mim, sinto como que um impulso para me emocionar também. Se eu estou em sala de aula e alguém grita comigo, tendo a reagir. Daí a importância de o educador, no dizer de Heloisa Dantas (1996), uma das importantes intérpretes da obra de Wallon, “ser alfabetizado emocionalmente”, ou seja, fazer a correta leitura sobre as emoções que ocorrem em sala de aula, podendo assim, superá-las, se for necessário. Mas Emoção não é a mesma coisa que Afetividade em Wallon. Para este autor, afetividade implica uma emoção já carregada de significados, ou seja, transformada pelo mundo cultural e social. Assim, não poderia dizer que eu simplesmente me emociono ao assistir uma novela, senão que toda uma cultura, toda uma sociedade e, portanto, as relações sociais me levam a me emocionar diante de tal novela. Desse modo, a afetividade nasce da emoção, é também emoção, mas já com interferência do meio humano (cultural). Nasce da emoção porque é um corpo que se emociona, são os músculos que são afetados, tensionados (raiva) ou relaxados (alegria). É também emoção porque o significado de nossos afetos deve ser buscado no meio humano, naquilo que eles mobilizam, afetam. A emoção é o modo primordial de relacionamento da criança pequena e, por isso, é também através dela que a criança vai construindo sua personalidade, tomando consciência de si. Isso ocorre à medida que, ao emocionar-se, a criança mobiliza o Outro. Se, no começo, ela não consegue distinguir seu corpo dos demais objetos do mundo, através da mobilização do Outro, aos poucos essa diferenciação vai ocorrendo, já que é o adulto quem interpreta suas emoções: “oh filhinha, tá com fome né?!”, até o ponto em que ela deve negar o Outro para construir sua identidade. É a fase do NÃO, mais ou menos aos três anos. Esse momento, carregado de tensão, de gestos bruscos e às vezes até violentos, deve ser entendido pelo adulto como a tentativa da criança de separar de si o que é do adulto e o que é dela. Mais uma vez, exige-se do adulto uma “leitura” deste processo. A emoção é controlada através da razão, este deve ser um objetivo de aprendizado de ambos os envolvidos no processo educacional: professores e alunos. Em sua teoria, Wallon dá dicas importantes para uma leitura adequada destes fenômenos. Ele propõe, assim como Piaget, que o desenvolvimento segue um conjunto de estágios. Estágio Impulsivo-emocional – 0 a 1 ano. Nesse período a satisfação das necessidade não é automática como era no período fetal, a criança sentirá sentimentos de privação ou espera que será exteriorizado através de espasmos e gritos. Estágio Sensório-motor e Projetivo – 1 a 3 anos. A criança volta-se ao meio externo, procura dominá-lo e compreendê-lo. O foco principal é o desenvolvimento do intelecto. Estágio do Personalismo – 3 a 6 anos. O principal objetivo deste estágio é a independência e a construção do Eu. O foco principal volta a ser as emoções. Estágio Categorial – 6 a 11 anos. Uma vez mais, a criança joga suas atenções para o meio externo. É o momento de construir uma noção mais precisa e independente das coisas. Estágio da Puberdade e da Adolescência – 11 aos 16 anos. Retoma-se o estágio do personalismo, aqui o jovem coloca suas forças para definir sua personalidade e sua individualidade, de modo semelhante, muitas vezes através da oposição. 1.16 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O DESENVOLVIMENTO INFANTIL Por fim, Wallon aponta para o fato de que não se deve esperar de uma criança pequena (5 a 6 anos) a mesma destreza no uso da atenção, da inteligência ou disciplina em sala de aula do que de um adulto. Os centros nervosos, em especial os responsáveis pelos comportamentos acima citados, desenvolvem-se vagarosamente e portanto, muitas vezes, exige-se da criança que esta pare de brincar ou movimentar-se em sala quando, de fato, este é o comportamento adequado para que ela possa des-envolver suas futuras possibilidades, já que é através dos gestos, ações, que a criança expressa suas emoções, des-envolvendo, deixando à mostra, desnudando seu interior, que deve ser traduzido e refletido, pelo adulto, para a criança. Este é o maior desafio do verdadeiro Educador. 4.1. O Desenvolvimento Afetivo e o Papel da Afetividade na Relação Professor-Aluno O homem é um ser de relação por excelência, sendo assim o desenvolvimento afetivo, bem como o físico e o cognitivo começam a se estruturar dentro das relações estabelecidas desde os primeiros instantes de vida intra-uterina. Assim como a criança é hospedada no seio de uma mulher, e essa é uma condição fundamental para o seu desenvolvimento global, e durante o tempo em que é acolhida pela mãe ela já é esperada, imaginada, desejada, após o nascimento essa mesma criança precisa, para o seu desenvolvimento, sentir-se hospedada por aqueles que a acompanham (um hospedar que pode configurar-se fisicamente, mas também sentir-se hospedada no pensamento de alguém, como a criança que está na instituição, mas tem a certeza de que a mãe está com ela em seu pensamento). Falar do desenvolvimento afetivo significa falar de um sistema de relacionamentos que existe entre a criança e algumas pessoas e entre a criança e os elementos do meio no qual ela vive. Desenvolvimento afetivo pode ser entendido: • como enriquecimento e complexidade de um sistema de relacionamentos. Por exemplo, até uma certa idade, a criança vive só no âmbito familiar, depois começa a freqüentar as instituições educacionais e ali estabelece novos relacionamentos afetivos que enriquecem o sistema; • como a modificação de intensidade de um relacionamento, que faz parte de um sistema, como uma simpatia que se transforma em amizade, ou de qualidade de um relacionamento, como crianças que a princípio são espontâneas e que diante de pais que são muitos severos acabam por assumir uma postura mais retraída. Estudar o desenvolvimento afetivo significa ver em que maneira se constitui esse relacionamento, tentar ver quais são as condições que possibilitam ou favorecem esse desenvolvimento e quais são os obstáculos. Uma teoria interessante sobre o desenvolvimento afetivo é a de Erik Erikson, psicoanalista germânico nascido em Frankfurt-Meno, Alemanha, em 1902, especialista em problemas psicossociais, cujos estudos foram determinantes na expansão da psicanálise que descreve várias etapas. Em cada uma delas, a pessoa enfrenta um problema central que nasce da necessidade de identidade e da necessidade de pertencer ao meio no qual vive, a maneira através da qual o meio sustenta a pessoa nessas etapas influencia o desenvolvimento. No primeiro momento após o nascimento até a idade de um ano e meio aproximadamente, a criança é totalmente dependente do adulto, essa é uma fase de extrema importância para qualquer indivíduo, pois aqui está toda a segurança ou insegurança que ele pode adquirir do mundo exterior. É uma fase marcada pela confiança básica e é com ela que a criança se relaciona com o mundo. Por exemplo, quando a criança chora porque tem fome, ela o faz pela certeza de que receberá o alimento. Quando a criança não possui esse sentimento de confiança básica, ela sente o mundo de forma menos equilibrada, mal AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.17 O DESENVOLVIMENTO INFANTIL adaptada, insegura nas suas relações sociais, não possuindo na maioria das vezes a capacidade interativa, tornando-se arredia, adotando uma postura de inferioridade com relação a si e aos outros. A confiança básica não está submetida à quantidade de estímulos que a criança receberá, mas à qualidade dos estímulos aos quais a criança será submetida. Segundo Erikson, na passagem de uma etapa de desenvolvimento para outra está implicada uma crise, que, apesar de trazer algum desconforto, é o que possibilitará o crescimento e o salto para a nova etapa. A primeira crise sofrida pelo indivíduo é após o desmame na qual criança começa a sentir um pouco o desamparo, podendo trazer sentimentos de nostalgia, dependências, otimismos e pessimismos. A confiança nasce do fato de que a criança se sente totalmente reconhecida no seu valor de pessoa pelo adulto ou pelo ambiente com o qual se relaciona. Isso se dá através do cuidado e da afeição e depois através da proposta que ajuda a criança a conhecer as coisas. Os cuidados que a criança recebe são uma resposta às necessidades físicas que ela tem (comer, dormir, ser trocada), mas, na realidade, correspondem também às necessidades psicológicas e afetivas. A criança, se confia em quem lhe dá um sustento físico verdadeiro, real, concreto, no abraço tem o reconhecimento de toda a pessoa, e isso se reflete por toda a vida do indivíduo. Em uma segunda fase, a criança começa um conflito entre a autonomia e a vergonha acompanhada da dúvida. Nesse momento a criança começa a controlar os esfíncteres, mas ainda sente-se insegura apesar de já se sentir mais autônoma, possui vergonha e dúvidas com relação às suas capacidades e competências. Outro fator que fortalece a autonomia da criança é o fato de nessa fase começar a caminhar, porque assim amplia o horizonte do mundo, até aquele momento desconhecido. A criança começa a sentir-se atraída pela realidade que a cerca e para aprender, pode-se dizer que é a realidade que suscita o interesse no menino. Para acontecer uma atração, devem existir a criança e a realidade e, para que essa atração passe a ser um conhecimento, precisa-se de um relacionamento que introduza a criança nessa realidade, que a atraia para fazer de maneira tal que essa realidade se torne interessante, por isso, objeto de conhecimento e de afeição. A atração está dentro da criança, porque a criança é criada para encontrar a realidade. De fato, se nós pegamos a situação de um bebê, nós podemos ver que tem um imediato relacionamento com a realidade mais próxima que é a mãe. No relacionamento, essa atração inicial chega a ser um interesse para a realidade, para a mãe, e permite um conhecimento. Quando a criança é maior, esta abertura para a realidade se torna um pedido de reconhecimento para poder entender o que eu sou. É típico as crianças de 3 a 5 anos dizerem para o adulto: “olha-me”, olha-me que significa reconhece-me, olha como sou capaz, reconhece que eu tenho um valor, que eu sou uma pessoa. Nesse período, a criança passa pelo período do NÃO, durante o qual se opõe aos pais para mostrar que ela existe, que tem uma personalidade e uma vontade própria. É importante para que a personalidade da criança se desenvolva um relacionamento com o ambiente familiar sereno e tranqüilo que a ajude a aderir às normas, mas ao mesmo tempo lhe permita expressar comportamentos livres. É importante que, nesse momento, os pais sejam firmes mas ao mesmo tempo flexíveis para ajudar a criança superar sua teimosia e amadurecer um senso autônomo de liberdade. Nesse terceiro momento, por volta dos três aos cinco anos de idade, a autonomia da criança permite que ela defina os modelos sociais, culturais, familiares, assumindo características de onipotência, em que se torna capaz de explorar o ambiente em que 1.18 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O DESENVOLVIMENTO INFANTIL vive. A linguagem mais aperfeiçoada permite maior questionamento do que está à sua volta, momento este que trará para a criança novo direcionamento de seu desenvolvimento; adquirindo a capacidade de ver-se como um ser no mundo, dotado de responsabilidades, começa a perceber-se como homem ou mulher e tem entendimento dos papéis exercidos por ela. A afetividade é dirigida para aqueles que se encontram com a criança. Nesta fase, os meninos costumam mostrar-se mais tímidos e retraídos, ao passo que as meninas mostram-se com atitudes de enfrentamento, lançando-se ao mundo. Todo relacionamento humano é movido por um afeto. Na relação professor-aluno, a afetividade é peça fundamental, uma vez que é a partir da interação e do convívio entre pessoas que se dá o aprendizado. Ensinar é, antes de tudo, AFETAR os alunos com o desejo da aprendizagem. Segundo Maldonado (1994), É importante ter em mente o entrelaçamento de aprendizagem e afetividade para perceber que, a todo o momento, é possível partir das miudezas do cotidiano para aprender um pouco mais sobre os grandes temas da vida (p. 44). A conceituação da afetividade e suas implicações são enfocadas sob diferentes perspectivas. No entanto, podemos afirmar que todas as teorias educacionais já se renderam ao papel fundamental desta para a construção do conhecimento. Em uma postura sócio-construtivista, o professor é o mediador e, portanto, o estimulador da busca por essa construção. É na relação professor-aluno que se dá a comunicação necessária para a aprendizagem não só dos conteúdos escolares, mas também a aprendizagem do convívio e da cidadania. Essa aprendizagem só se dará de forma efetiva se esse relacionamento estiver pautado no respeito e no amor. Concordando com Maldonado (1994), ainda ressaltamos que em uma relação é fundamental a “consciência da interação”: se o que se deseja é respeito, antes é preciso respeitar; se o que se deseja é amor, antes é preciso amar; se o que se deseja é reconhecimento pelo trabalho, antes é preciso reconhecer o trabalho alheio. Na relação professor-aluno, cabe ao professor, que já é um adulto com formação de educador e ainda com acúmulo de experiências, dar os primeiros passos para indicar que esse caminho é uma “rua de mão dupla”. É importante que a relação do professor com seus alunos esteja baseada nos alicerces do amor, respeito e reconhecimento. O professor deve conduzir a sala de aula com tranqüilidade e disciplina, estabelecendo os limites, as regras e o respeito mútuo, essencial para uma boa relação, uma vez que uma relação afetiva nunca deve ser permissiva. Se o chamado de atenção para a criança é claro, esta entende isso. Se ao invés é ambíguo, a criança não sabe o que fazer, ou mesmo faz aquilo de que ela mais gosta, o que o instinto a leva fazer. É preciso ter o olhar sobre a totalidade dos fatores dos quais uma criança é feita. O primeiro passo na construção dessa relação marcada pelo bom afeto pode ser a tentativa de resgatar a auto-estima dos alunos, principalmente daqueles que se julgam fracassados ou são taxados como tal. Essas posturas, juntamente com os incentivos individuais e grupais, também favorecem o fortalecimento da auto-estima e autoconfiança dos alunos. Para isso, o professor deve argumentar e relembrar as regras formuladas no grupo. A valorização da produção de cada aluno é outra postura recomendada que, sem dúvida, contribui para o bom relacionamento com os alunos. Esses não se sentem angustiados, por terem a certeza de um reforçamento, já que cada avanço é reconhecido e prestigiado pelo professor; deve-se estimular também as novas conquistas na leitura e na escrita, na matemática enfim, em todos os conteúdos. Dessa forma, os alunos tendem a empenhar-se mais na feitura dos deveres com maior prazer. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.19 O DESENVOLVIMENTO INFANTIL Segundo Maldonado (1994), muitas vezes, as atitudes agressivas, ressentidas e magoadas de alguns alunos são apenas uma proteção pelo medo da rejeição, sendo possível romper essa barreira: Com o auxílio da escuta sensível e da ação orientada pela combinação de firmeza e delicadeza, podemos “descascar as camadas da cebola”, à busca do núcleo amoroso onde está o que de melhor existe nas pessoas (p. 39). O professor pode desenvolver em sua prática essa capacidade de “descascar a cebola” – talvez a custo de muitas lágrimas, pois, sem dúvida, esse é um trabalho árduo – mas que compensa pelo sabor que acrescenta à docência. Maldonado (1994) ainda ressalta: O desenvolvimento da nossa capacidade de enxergar o núcleo amoroso através dessas camadas de hostilidade, tristeza e mágoa ajuda a ampliar o olhar de apreciação: quando pais e educadores passam a reconhecer mais a presença de pontos positivos (“você fez uma letra linda nessa página!”), em vez de ficar criticando e depreciando (“você não tem jeito, é preguiçoso demais”), a criança e o jovem ficam mais estimulados a mostrar suas capacidades e sentem-se mais apreciados. Com isso, tendem a melhorar o desempenho e a mostrar com menos medo seu núcleo amoroso (p. 40). Conhecer a vida pessoal de cada aluno bem como sua realidade ajuda muito na relação afetiva, assim como escutar a criança para orientar, quando há alguma dificuldade em suas famílias. É útil ainda ter por hábito chamar os pais para saber se está tudo bem quando uma criança apresenta alguma dificuldade, da mesma forma que atender aos pais ao final das aulas, se algum solicita. A assertividade é outra postura desejável, ou seja, em nenhum momento deve-se usar de agressividade e autoritarismo ou de passividade e compaixão frente às crianças, mas adotar uma postura firme, olhando a realidade com todos os seus fatores, para garantir o andamento da sala de aula e a solução dos atritos. Ser uma verdadeira autoridade mostrando o caminho a ser seguido. Uma postura de humildade buscando conselhos com outros professores e com a orientação pedagógica ajuda a enfrentar os problemas com mais clareza e certeza das posturas a serem adotadas. Em síntese, todas as conquistas de um bom relacionamento professor-aluno são construídas ao longo do percurso educativo e se dão sob um clima de liberdade (e não libertinagem), mas ao mesmo tempo disciplinado. Ser um professor carinhoso não impede de ter uma postura firme (e não autoritária) e assertiva (e não agressiva) frente aos alunos. Essas posturas acima citadas podem ser adotadas tanto para crianças como para adolescentes; com as devidas adaptações, a adolescência é uma fase considerada difícil pelos educadores; assim, é preciso uma boa dose de paciência e observação para lidar com os alunos. Um exemplo disso foi relatado por uma pedagoga italiana Luisa Cogo (2000): Eu tive uma experiência muito bonita alguns anos atrás, começando uma primeira série, trabalhávamos três professoras, uma trabalhava língua italiana, outra fazia matemática e eu fazia a área considerada menos importante. Era uma turma muito agitada, 25 crianças com muitos problemas, e todas às vezes que eu entrava naquela sala eu falava para os meninos, “hoje nós vamos fazer uma coisa BONITA”, explicava para eles com entusiasmo aquilo que iria ser feito e o que iria ser feito era o conteúdo, o trabalho. Daí algum tempo, eu a mestra Luisa se tornou a mestra que fazia coisas bonitas. Os meninos entre eles colocavam estas coisas: “hoje nós vamos fazer uma coisa bonita?” e o outro dizia: “é claro, ela sempre faz coisas bonitas”, se tornou uma regra isso e se tornou a possibilidade de um relacionamento com eles. Esse 1.20 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O DESENVOLVIMENTO INFANTIL exemplo eu tenho sempre na cabeça não como uma forma que permite acontecer o conhecimento, mas como uma postura para o conhecimento acontecer. Assim, o professor não é só um mediador, mas alguém que introduz o aluno na realidade, porque o meu gosto a minha maneira de colocar-me dentro da realidade, o retomar para mim a motivação, o trabalho de maneira tal a apresentar aquela coisa normal, (pensava também algumas coisas interessantes), essa era a possibilidade de abrir para as crianças o fato de que aprender é uma coisa boa, e isso tornava verdadeiro. Quando depois eu passei a ensinar na mesma turma a língua italiana, a gramática, por incrível que pareça, também se tornou uma coisa interessante e bonita! Através deste exemplo e das teorias apresentadas, concluímos que o desenvolvimento cognitivo está irremediavelmente ligado às interações sociais e ao afeto que delas decorre. Referências Bibliográficas CARMO, Elisabete R. do. A construção do saber docente: um caso de prática bem- sucedida. 2000. Monografia (Especialização em Alfabetização) – Curso de Pós-Graduação em Alfabetização, Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, 2000. CARMO, Elisabete R. do; CHAVES, Eneida Maria. Algumas considerações sobre o papel da afetividade nas práticas pedagógicas de alfabetizadores. Perspectiva, Erechim, v. 25, n. 86, p. 6784, jun. 2000. DANTAS, Heloysa. A afetividade e a construção do sujeito na psicogenética de Wallon. In: LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992. p. 85-98. DIESSE – Centro per la formazione e l’aggiornamento. Il bambino e il suo desiderio di felicita. Varese: Collegio De Filippi – Marzo/Maggio, 1994. GIUSSANI, Luigi. Educar é um risco. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2000. GALVÃO, Izabel. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. Petrópolis: Vozes, 1995. MALDONADO, Maria Tereza. Aprendizagem e afetividade. Revista de Educação AEC, Brasília, n. 91, p. 37-44, abr./jun. 1994. TRAN-THONG. Estágios e conceito de estágios de desenvolvimento da criança na psicologia contemporânea. Tradução Manuel Maia. Porto: Edições Afrontamento, 1987. WADSWORTH, Barry J. Inteligência e afetividade da criança na teoria de Piaget. Tradução Esméria Rovai. 4. ed. São Paulo: Pioneira, 1996. WOOLFOLK, Anita E. Psicologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.21 O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL A criança, desde os seus primeiros momentos de vida, é totalmente dependente de um outro, de um adulto. Em uma esfera mais ampla, podemos afirmar que ela depende “da ajuda prestada pelo grupo social onde ela vive” (Lopez in Coll, 1995, p. 81). Toda criança nasce com necessidades básicas, que estão na base de seu relacionamento com o mundo. Assim, ela precisa ser alimentada e limpa, ela precisa que alguém a ajude a regular sua temperatura, ou seja, nas exigências físicas que ela mesma, neste momento, não consegue suprir. Necessita também de vínculos afetivos estreitos com os adultos que a rodeiam para que, sentindo-se amada e desejada, possa ter a tranqüilidade de explorar o meio físico e social em que vive. Estas necessidades fazem com que a criança esteja “motivada” biológica e socialmente para incorporar-se ao grupo social. Por isso, desde o nascimento, a família tem um papel importante e de grande influência no processo de desenvolvimento, de socialização e de construção da identidade desta criança. A identidade pessoal, do ponto de vista psicológico, se define como “ser em relação”. De fato, o conceito de identidade significa, ao mesmo tempo, igualdade, semelhança e unicidade; especificidade e diferença. Falar de identidade implica, portanto, falar de relação porque a identidade pessoal se constrói dentro de um processo que acontece no pertencer a alguém. O desenvolvimento do indivíduo se dá como decorrência das relações entre o sujeito em crescimento e o sujeito que cuida dele e cresce com ele. A capacidade de relação de fato não é uma das habilidades, mas é a habilidade que define o ser humano. O nascimento psicológico do ser humano coincide com a sua capacidade de colocar-se em relacionamento com o outro significativo, por exemplo a mãe, e o seu amadurecimento com a capacidade de estabelecer relacionamentos adequados, ou seja, trocas profundas com as pessoas que constituem o seu ambiente familiar e social. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.23 O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL Podemos descrever a trajetória que leva a uma relação madura como a passagem da dependência para a interdependência. Essa passagem acontece com momentos de conflitos, situações em que há um retrocesso a etapas anteriores da vida. A dependência, de fato, é uma modalidade típica das primeiras etapas da vida do ser humano, nas quais a criança ainda não se diferenciou da mãe. Contudo, é preciso atentar que há modalidades diversas de dependência nos relacionamentos que acompanham seja o adolescente seja o adulto, de acordo com a maturidade e as situações nas quais eles se encontram. Um relacionamento maduro pressupõe duas personalidades que tenham conseguido a própria individualização e, por isso, saibam colaborar e enfrentar de forma construtiva as dificuldades e as diferenças. O relacionamento maduro não é aquele que não apresenta conflitos ou brigas, mas aquele no qual se tenta diminuir as divergências. A boa qualidade de um relacionamento se dá, portanto, concomitante com a capacidade de equilibrar necessidade de proximidade e separação, de pertencimento e de liberdade pessoal. Mas, como a criança adentra no processo evolutivo do relacionamento? É completamente passiva e espectadora das ações dos outros? A criança observada na família não é isolada e segmentada em etapas evolutivas, paralelas a um processo de amadurecimento biológico, mas um sujeito em constante interação com pessoas significativas. As pesquisas científicas sublinham a precocidade da capacidade de relação da criança. Uma capacidade que se diferencia de acordo com as características dos pais e do relacionamento que se estabelece com eles. Desde as primeiras semanas de vida, as crianças conseguem estabelecer uma ação mútua com a mãe, ou seja, a mãe influencia a criança, mas a criança, por sua vez, com suas necessidades e seu humor, começa a afetar todo o relacionamento familiar. A dependência da criança não deve ser entendida como a criança sendo sujeito passivo no processo de socialização. Ela também interfere no seu meio familiar, muda os hábitos da família, “ensina a mãe a ser mãe”. Com três semanas, a criança já sabe distinguir entre o comportamento materno e o paterno e reage de forma diferente aos dois. Tudo isso podemos dizer que demonstra como a criança possui uma competência social muito precoce. O adulto, desse modo, desenvolve um papel fundamental no favorecer ou contrastar o processo de crescimento através do cuidado; é uma característica típica do adulto fazer crescer e cuidar daquele que ele gerou. Esse cuidado acompanha o filho ao longo de toda vida: nos primeiros tempos, assegurando o bem-estar físico e psíquico, depois oferecendo uma segurança a partir do momento em que a criança sai do contexto familiar até o momento de uma proteção mais flexível que sustenta o adolescente na sua conquista da autonomia. O cuidado compreende, portanto, dois aspectos fundamentais: o recurso do afeto e o respeito às regras, ou seja, os aspectos protetores típicos do papel materno e os aspectos emancipativos típicos do papel paterno. O afeto permite à criança assimilar confiança, estima de si, capacidade de relacionamento; a lei – o sentido daquilo que é bem e mal – o coloca em frente ao limite ajudando a reconhecer a realidade externa, física e social na qual deve inserir-se e dar a sua contribuição. Esses dois aspectos do afeto e da lei no relacionamento adulto/criança devem estar sempre presentes e com equilíbrio porque a acentuação de um só distorce a personalidade. O relacionamento adulto/criança, um relacionamento recíproco, não é, porém, um relacionamento simétrico porque é o adulto quem estabelece as condições e quem garante o relacionamento tendo, portanto, a responsabilidade maior. Mas esse é sempre um relacionamento de mão dupla, no qual adulto/criança são responsáveis pelo relacionamento através da interação que acontece de forma muito precoce, através de um processo pré-verbal. Através da interação do cotidiano se transmite, implícita ou explicitamente, aquilo que podemos chamar de patrimônio hereditário das relações. 1.24 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL É também na família que a criança adquire a linguagem. Esta aquisição é a condição básica para que ela “entre” na vida em sociedade. Ela depende da linguagem para comunicar-se com os outros e também para entender a si mesma. Através da linguagem, a criança passa a ter um controle racional da realidade que, por sua vez, irá estruturar o seu psiquismo, dando significado aos seus sentimentos. Acentuamos aqui que não estamos nos referindo apenas à linguagem falada: lembremo-nos de todas as etapas do desenvolvimento infantil e do uso do jogo motor no processo de individualização da criança e do jogo simbólico como veículo de acesso à cultura. Para entendermos melhor o processo de socialização da criança, faz-se necessário ampliar nosso olhar para além do núcleo familiar, pois a socialização acontece em todo o contexto no qual ela está inserida. Muitas mães trabalham fora e muito cedo recorrem a instituições de educação infantil para assistirem diariamente seus filhos. Assim, a criança entra em contato com as educadoras e com muitas outras crianças, que não são de seus núcleos familiares, mas que exercem influência semelhante na interação e no seu processo de socialização. Os processos de socialização fundamentais ocorrem em três grandes níveis, como especificados a seguir: 1) os processos mentais de socialização que se dão através da aquisição do conhecimento da cultura na qual a criança vive (de acordo com o desenvolvimento cognitivo em Piaget); 2) os processos afetivos de socialização, através dos quais a criança cria e confia nos vínculos afetivos (apego, amor, amizade, empatia) e 3) os processos condutuais de socialização que são o aprendizado da conformação social da conduta da criança. “Se a criança vincula-se afetivamente a determinados adultos, se adquire o conhecimento do que a sociedade é e o que esta espera dela, e se tem um comportamento adequado a estas expectativas, considera-se que estará bem socializada” (Lopes in Coll, 1995, p. 84). Através dos processos mentais de socialização, a criança, aos poucos, vai adquirindo um conceito rudimentar de pessoa. O conhecimento das primeiras diferenças entre o eu e o outro pode ser adquirido de forma muito precoce (por volta do oitavo mês) em interação com o reconhecimento e a discriminação entre diferentes pessoas. As ações da criança e suas conseqüências no meio, bem como a interação com as pessoas que cuidam dela, oferecem muitas possibilidades para que as crianças aprendam que são diferentes dos outros. Agem e desde muito cedo reconhecem os efeitos que acompanham as suas ações e, de forma muito precoce, entram em jogo de interação alternada com aqueles que cuidam dela. Contudo, é preciso lembrar que o desenvolvimento das noções de Eu e, por conseqüência, de sua diferenciação com outros Eus, se afirmará de forma mais completa por volta da puberdade e adolescência (12 a 16 anos), mesmo tendo, ainda, um longo percurso a percorrer, pois esse processo se dá por toda a vida. O papel da mãe: Já na vida pré-natal, a criança é sensível às emoções, faz parte do corpo materno e segue um biorrítimo próprio em seu desenvolvimento. Será com essa mãe que a criança estabelecerá os primeiros contatos com o mundo externo após o nascimento. A maternagem exige um amadurecimento (social e psicológico) da mulher para que possa conseguir satisfazer as necessidades do filho. Ela precisa ter boas condições psicológicas para enfrentar a nova realidade que é imposta após a chegada de um bebê e para mantê-lo vivo, percebendo as suas necessidades. O papel materno, então, é de vital importância para a sobrevivência da criança, e tal papel não diz respeito apenas ao fator biológico ou nutricional. Ser mãe implica cuidar, confortar fisicamente, sendo responsiva aos sinais do bebê, deixando que a criança apeguese a ela, criando uma relação baseada na confiança total (desenvolvimento afetivo – 1ª etapa descrita por Erikson). Cada cultura possui uma maneira de estabelecer os primeiros vínculos afetivos e estes não se fecham na figura materna. Em nossa cultura, logo após o nascimento, a AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.25 O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL criança também relaciona-se com o pai, avós e irmãos e estes também exercem papéis importantes para o desenvolvimento pleno do futuro ser. O papel do pai: Até pouco tempo, atrás o pai era visto como uma figura de segundo plano no desenvolvimento dos filhos. Mas percebe-se hoje que o pai vem assumindo um papel mais ativo e primordial na vida de seus filhos. Alguns já acompanham as esposas desde o pré-natal e até participam do parto, estão mais responsivos e sensíveis à condição paterna que deixa aos poucos de ser uma responsabilidade apenas de sustento financeiro da família. Esses pais que estão em contato mais efetivo com seus filhos criam vínculos íntimos com estes e são de grande influência no desenvolvimento desses. A afetividade dos pais para com seus “rebentos” é crucial para o bom desenvolvimento. O apego e a amizade são vínculos afetivos básicos, tendo o apego um papel fundamental nos primeiros anos de vida, pois o apego pressupõe condutas que mantenham a proximidade com a pessoa a quem se é apegado. Para apegar-se a uma pessoa, a criança precisa construir um modelo mental através das lembranças de contatos confortantes e prazerosos, grau de disponibilidade, acessibilidade, da incondicionalidade (quando a criança precisa, o adulto está presente). APEGO: Conjunto de sentimentos associados à pessoa Segurança Prazer Ansiedade Bem-estar Proximidade O afeto, sendo a mola propulsora desse relacionamento, não deve ser ameaçado ou colocado em “cheque” com falas do tipo “se você fizer isso eu vou embora” ou “se você fizer aquilo eu não gosto mais de você”. A confiança da criança no adulto não deve ser ameaçada, ela deve olhar para o adulto e perceber uma companhia verdadeira a quem ela pode amar e confiar pela certeza deste querer o seu bem. Obviamente, a criança vai também precisar de regras, limites e muitos “nãos” para crescer e se adaptar em sociedade, uma vez que nossa sociedade está estruturada sobre regras. Contudo quanto menos estressada for a relação familiar mais tranqüilo será o aprendizado das normas de conduta e as características psicológicas da criança serão moldadas sobre um bom afeto. Portanto, podemos concluir que a família possui papel central e ativo no desenvolvimento da criança, mas não tem um poder absoluto sobre ela. Além do ambiente familiar a criança vai ter características pessoais (saúde, temperamento, adaptabilidade) que vão influenciar em seu processo de socialização. Além disso, existirão outras agências socializadoras como a escola e a igreja que a influenciarão, sem falar nas influências dos colegas, da comunidade em que está inserida e dos meios de comunicação como televisão e rádio. A postura adotada pelos pais e o comportamento destes dentro de casa acabam por ser as influências mais duradouras e estáveis; daí, sua enorme força no desenvolvimento da personalidade da criança e nas formas como esta criança (que depois se tornará um adulto) interagirá com outras pessoas. Abaixo apresentaremos alguns “tipos” de pais, relatados por Moreno & Cubero (1995), e a conseqüência de seus comportamentos sobre os filhos, tendo consciência que há uma necessidade de esquematizar algumas tipologias que possam auxiliar os estudos, mas que, na realidade, nunca se encontra um “tipo” ao estado puro (ou seja, um pai só autoritário ou só permissivo): Pais autoritários geralmente apresentam um alto nível de controle e uma alta exigência de amadurecimento, ao passo que têm um baixo nível de comunicação, que em geral é baseada na imposição. Exigem obediência à sua autoridade e impõem castigos e disciplinas enérgicas. 1.26 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL Filhos de pais autoritários quase sempre se apresentam obedientes, ordeiros, com baixa agressividade, tímidos, pobres na interiorização, pouco afetuosos, sem iniciativa, sem espontaneidade, com baixa auto-estima, dependentes, inseguros, tristes e vulneráveis. Pais permissivos possuem pouco controle sobre seus filhos e pouca exigência de amadurecimento. Em conseqüência, seus filhos apresentam-se impulsivos, irresponsáveis e imaturos. Já no meio termo deste dois tipos de pais acima citados, estão os pais “democráticos”1 que possuem uma boa comunicação com seus filhos pautada no raciocínio e não na imposição. Apresentam um bom afeto, bom controle, atendem às necessidades da criança, não são indulgentes, possuem consciência dos sentimentos em relação aos filhos, explicam os motivos e os sentidos das coisas, não se rendem às birras e caprichos. Os filhos dos pais “democráticos” possuem um bom autocontrole, auto-iniciativa, boa auto-estima, confiança em seus pais, persistência, são interativas, hábeis no relacionamento, independentes, carinhosas. Lembramos mais uma vez que a influência da conduta dos pais sobre o desenvolvimento dos filhos é, sem dúvida, a de maior peso na vida de qualquer indivíduo, no entanto, existem outras fontes de interação e aprendizado; o descrito acima são modelos do que habitualmente ocorre, mas não são regras em si. O papel da escola como agência socializadora: O processo de formação da escola, na história da humanidade, nasceu da existência de sujeitos (pais e crianças) que expressaram a outros sujeitos (professores) uma necessidade, e a partir dessa construíram juntos uma resposta. Constituindo-se como as primeiras agências socializadoras, a escola e a família compartilham da tarefa de formação dos jovens no desenvolvimento de habilidades que possibilitem uma inserção crítica e participativa na sociedade. A creche representa um espaço de ampliação dos relacionamentos para fora do ambiente familiar, no qual a criança aprende a estar com outros, adultos e crianças. As crianças, desde que nascem, participam de diversas práticas sociais no seu cotidiano, mas elas não aprendem as coisas abstratamente e, sim, a partir do que elas vêem no mundo adulto, dentro de uma experiência que elas possam fazer. Assim, seria impossível alcançar o objetivo da socialização se nós, a escola, não fôssemos exemplos de adultos socializados, isto é, de pessoas que se relacionam umas com as outras, buscando uma unidade entre si. Essa unidade vivida entre os adultos (professores, coordenadores, faxineira etc.), define o ambiente psicológico, o “clima” que a criança respira na escola; esta unidade, as crianças a lêem, não a partir do que falamos, mas a partir do que fazemos, de como vivemos os momentos comuns com toda a escola ou com os pais. As crianças percebem se os adultos se respeitam e se querem bem ou não. Acreditamos que a criança possa amadurecer diante de uma crescente capacidade de colocar-se no ponto de vista do outro, superando o egocentrismo, não de maneira espontânea e natural, como se a maturidade viesse automaticamente com a idade, mas, em primeiro lugar, observando nos adultos uma capacidade recíproca de integração, 1 A respeito da palavra democrático, gostaríamos de ressaltar que esse termo é pouco adequado se aplicado à família. Democrático é o sistema no qual o povo elege os seus representantes, esses representam todos os cidadãos mesmo a minoria que deverá aceitar as deliberações da maioria. No caso da família, os pais não são “eleitos” e em cada caso há leis dentro da família que não podem coincidir com o pedido da maioria. Precisa-se reconhecer que os pais têm uma tarefa que é ENTREGUE; eles têm uma autoridade não autoritária, positiva que é própria da tarefa educativa que eles assumem. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.27 O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL respeito, perdão, estima, e, em segundo lugar, com a ajuda de alguém que, com firmeza e afeto, a ajudasse, nesse sentido, em seus relacionamentos com os colegas. Só tem sentido propor às crianças aquilo que é vivido pelos adultos, isto é, se os adultos são sinais vivos da proposta que fazem. É fundamental a presença de um adulto que reconheça o valor de colocar-se junto ao outro para construir algo maior e mais bonito: um adulto; um adulto que foi educado para o perdão, que sublinha sempre o positivo (o bem) que o outro traz e reinicia um relacionamento. Além disso, o relacionamento com as outras crianças, mais colaborativas e menos competitivas ou agressivas, é possível quando a criança está segura de sua própria identidade, quando se sente reconhecida e amada por um outro significativo para ela; por isso, a professora tem um papel fundamental nesta maturação. Referências Bibliográficas LÓPEZ, Felix. Desenvolvimento social e da personalidade. In: COLL, César; PALÁCIOS, Jesús; MARCHESI, Álvaro. Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia evolutiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 81-93. MORENO, Maria Carmem; CUBERO, Rosario. Relações sociais nos anos pré-escolares: família, escola, colegas. In: COLL, César; PALÁCIOS, Jesús; MARCHESI, Álvaro. Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia evolutiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 190-202. 1.28 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI INSERÇÃO NA CRECHE A INSERÇÃO NA CRECHE 1. Família: ambiente originário O eu da criança cresce e se desenvolve só se é hospedado numa demora desde o útero até a casa, na qual encontra proteção, acolhida e alimento. A criança se torna protagonista do seu desenvolvimento, em virtude do laço de pertencer que caracteriza essa demora e aceita enfrentar a fadiga do crescer como resposta a um chamado de um “tu” significativo que se torna para ela companheiro de caminho. É o ato de reconhecimento por parte de um adulto que desperta na criança a consciência de si e põe em ato as suas capacidades de querer e de conhecer. A família constitui o ambiente originário no qual a criança toma consciência de si, aprende a viver e a dar um sentido às coisas, às palavras e às experiência. A afirmação da importância das figuras dos pais ou dos adultos da família tem a ver também com situações que nós julgaríamos como inadequadas. Para uma criança aquela mulher e aquele homem são “sua mãe, seu pai, sua vovó”, mesmo antes da atribuição de quaisquer adjetivos da fala “bom, mau, adequado e inadequado”. A percepção de uma não confirmação disso, que pode ser também comunicada de forma não verbal, acrescenta um elemento de mal-estar e, com certeza, não ajuda a criança a viver a realidade da própria situação. É preciso refletir sobre o fato de que a maternidade e a paternidade representam um dado ontológico que não pode ser mudado pelo homem. Pode-se tirar o pátrio-poder, mas ninguém pode tirar o fato de que aquela criança é “filho de”. A partir dessa antropologia, nascem o desejo e a tentativa de ajudar o pai a dar o melhor de si, e a criança, que é educada pela família e pela creche, tem uma parte importante nesse processo. Por exemplo, devolver uma criança no momento da saída limpa e bem penteada pode comunicar uma mensagem importante: “Olha como é bonito o seu filho! E se ele tem valor para mim, você, mãe ou pai que o fez nascer, tem valor para mim”. Principalmente, nos contextos em que as famílias vivem situações de dificuldades pesadas, essa mensagem é a condição para poder instaurar um relacionamento de confiança. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.29 INSERÇÃO NA CRECHE A criança vive o primeiro tempo da sua vida dentro do espaço familiar e é nesse tempo e espaço da família que acontece um encontro com pessoas significativas (pais ou outros familiares) que introduzem a criança numa hipótese positiva capaz de explicar a realidade e de dar um sentido ao seu estar no mundo. Aos poucos a criança começa a entrar em contato com ambientes externos à família que lhe possibilitam continuar o caminho de crescimento e aprofundar a própria experiência. A criança deixa um lugar conhecido e seguro e se entrega a um âmbito maior que, sem tirá-la do seu ambiente originário, a ajuda a se relacionar de forma mais madura com a realidade. 2. Creche: ambiente enriquecedor de experiências A inserção na creche constitui uma das muitas oportunidades que se pode oferecer a uma criança, para que ela cresça e enriqueça o seu raio de relacionamento. Na creche, a criança encontra um ambiente intencionalmente predisposto e “projetado” para que ela possa viver experiências que na família não seriam possíveis. Na creche, ela encontra outros “tus” significativos que a reconhecem na própria identidade originária e a ajudam a tomar consciência de si. A inserção representa a primeira etapa de um caminho no qual a criança sai de um ambiente familiar, conhecido e seguro e entra num espaço desconhecido, que, à primeira vista, é até hostil, com pessoas novas, as quais ela ainda não confia. Por isso, este momento deve ser preparado com todo cuidado e é responsabilidade de cada um presente na creche. A inserção deve ser preparada com bastante antecedência, porque não começa no momento no qual a criança chega à creche, mas no momento no qual os pais entram em contato com a instituição procurando uma vaga. A inscrição não é simplesmente um ato burocrático, mas representa o começo de um relacionamento, porque os pais conscientes ou não, pedindo uma vaga, pedem uma colaboração na educação do filho, mesmo que o pedido nasça de uma necessidade. O primeiro momento da inserção acontece através de uma entrevista realizada pela diretora com os pais. Para essa entrevista, não existe um esquema pré-estabelecido, embora seja utilizado um roteiro para coletar dados referentes à história de vida dessa criança; o diálogo e a escuta são momentos bastante valorizados, pois fazem emergir outras informações valorosas a respeito da criança e de sua família. E, ao mesmo tempo, permite à instituição se apresentar, comunicar a sua postura educativa, o processo do trabalho que será realizado, de maneira que os pais possam adquirir confiança no cuidado e educação que serão dados ao filho. O segundo momento é o momento da visita domiciliar, no qual a responsável pela instituição, acompanhada por um funcionário que pode ser a assistente social ou outra pessoa que tiver um bom relacionamento com a comunidade, vai até a casa da família para conhecer um pouco mais da sua realidade, porque só vendo e tocando a realidade é que o diretor poderá transmitir aos educadores que realidade é essa e como devem olhar para a criança que vai chegar. Serve também para estreitar um pouco o laço entre família e creche. No momento que se segue, a criança, acompanhada pelos pais, é convidada a conhecer o ambiente da creche e as pessoas que ali trabalham. Só depois desse terceiro momento é que a criança começa a freqüentar a creche. Sendo a inserção um momento difícil para a criança, uma vez que está sendo separada da mãe, é importante que essa separação se dê de forma gradual. Nos primeiros dias de permanência da criança na creche, é de fundamental importância que a mãe possa estar presente com ela por algumas horas, isso se for possível para a mãe que deve também pegar a criança mais cedo na creche. Somente após a criança adquirir uma certa segurança e confiança nas pessoas que estão cuidando dela, é que podemos inseri-la completamente no novo ambiente. 1.30 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI INSERÇÃO NA CRECHE Durante o processo de inserção e no decorrer de todo o processo educativo da criança na creche, todos os funcionários colaboram para que esse ambiente se torne mais acolhedor, seguro e sereno. O diretor, além de se responsabilizar por toda parte burocrática, deve estar sempre disponível para atender o pedido da família e também para criar todas as condições necessárias para que a criança possa ser bem acolhida; o educador é o responsável direto pela acolhida e pela apresentação da atividade que será desenvolvida com aquelas crianças; enfim, desde o porteiro até a faxineira, todos devem colaborar no cuidado e educação das crianças, bem como no relacionamento com as famílias dentro desse espaço. E isso só pode acontecer dentro de uma instituição em que todos os funcionários se concebem enquanto grupo, conscientes da tarefa que estão desenvolvendo e da importância de cada um na construção de um clima de trabalho favorável. Enfatizamos que o momento da inserção não deve acontecer somente no primeiro contato da criança com a creche; mas, a cada início de ano, também com os “veteranos” é importante que se faça uma reinserção, tendo os mesmos cuidados e atenção dispensados aos novatos. A criança, quando chega à creche, traz consigo uma grande “carga” de insegurança, de desconfiança e de medo, carregando, assim, uma série de necessidades: de segurança, de pertencer, de identidade, de relacionamentos sociais, de exploração e descoberta, de comunicação, de transformação das coisas, de invenção e criação. Essas necessidades são percebidas claramente de forma diferenciada de acordo com a faixa etária de cada criança. A partir dessas necessidades, faz-se necessário pensar, organizar, adaptar não só a postura do adulto, mas também todos os recursos que o educador tem à sua disposição: o espaço, o tempo e a proposta que devem ser organizados de forma intencional. Como as crianças vivem à distância da família, devem encontrar na creche um ambiente que as ajude a reconstruir pontos de referência, mesmo reconhecendo o laço fundamental que têm com a família, como lugar de origem. As crianças desejam ser reconhecidas e reconhecer outros na constituição de novos laços, desejam conhecer-se e, no viver de novas experiências, procuram no final da freqüência na creche relacionamentos sociais com os amigos. As crianças conhecem e experimentam a realidade de forma global, através do brincar e no espaço que facilita o encontro de cada uma com as pessoas, com os objetos e com o ambiente; por isso, é importante predispor-lhes adequadamente todos os recursos disponíveis. Isso nos leva a pensar também na estruturação do espaço da sala de aula de maneira que a criança possa se mover livremente e encontrar os recursos que facilitam o seu trabalho. Na entrevista com os pais é pedido que eles relatem aquilo de que a criança mais gosta, como, por exemplo, os brinquedos que usa. A partir desse conhecimento, pode-se tentar inserir tal objeto no contexto da sala de aula para que a criança, encontrando algo de familiar, se sinta menos perdida. Tendo em vista que o processo de inserção deve acontecer de forma gradual, como mencionado anteriormente, tentaremos delinear como a postura do adulto pode ajudar nesse processo tão difícil para a criança. No início do dia, no momento importantíssimo da separação entre a mãe ou pai e a criança, o educador deve ajudar cada criança a descobrir a modalidade própria de despedida: existe quem deseja ser abraçado, quem deseja mostrar para a mãe algum brinquedo da sala, quem quer só olhar para a mãe que vai embora, quem deseja ser abraçado pela professora, quem deseja chorar sozinho tendo como consolo somente palavras carinhosas da educadora. Mas o educador deve também aceitar essa fadiga da criança que, às vezes, se manifesta em choros inconsoláveis, pirraça, agressividade, desconfiança, passividade etc. Deve, ainda, oferecer uma disponibilidade quase corporal que permita um contato físico de contenção emotiva, acalmando-a, ficando sentado perto AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.31 INSERÇÃO NA CRECHE dela, pegando-a no colo, enxugando as suas lágrimas, escutando seus contos e todos outros gestos que podem surgir de forma espontânea e que respeite o eu original de cada criança, para que se possa construir um relacionamento com o educador. Ainda deve oferecer uma disponibilidade para brincar nos vários cantos da sala, iniciando, assim, um relacionamento com a criança, partindo do interesse dela e favorecendo também os relacionamentos com as crianças envolvidas naquela brincadeira, criando, aos poucos, os primeiros laços. É importante se oferecer à criança uma rotina precisa da divisão do tempo, porque o reconhecimento da sucessão do momentos dá-lhe segurança e a ajuda a entender que, depois da realização de algumas atividades, a mãe volta. É interessante também que sejam oferecidos à criança novata alguns momentos específicos que facilitam a acolhida, como os exemplos que se seguem: • Preparação de uma festa de acolhida organizada pelos educadores e pelas crianças já inseridas na creche, com brincadeiras, dramatizações, músicas etc.; • Preparação de um presente, seguindo a indicação dos pais a respeito do gosto da criança, feito pela turma; • Dar à criança a oportunidade de trazer uma foto pessoal que possa ser usada no momento da chamada, facilitando uma experiência significativa da necessidade de identidade e facilitando o reconhecimento dos colegas; • Trazer uma foto da família para que esteja sempre presente o sentimento de pertencer àquela família; • Através de atividade de organização de um painel na sala. O painel deve ser dividido em duas partes. Uma delas deve conter o desenho de várias casas e a outra o desenho da creche. Esse painel é utilizado para que a criança, ao chegar à creche, coloque uma foto sua do lado no qual está desenhada a creche e, ao ir embora, coloque a foto do lado em que estão desenhadas as casas. Essa atividade ajudará a criança a construir a consciência de que o momento de estadia na creche não é para sempre e que, depois de algum tempo, irá voltar para casa. Referências Bibliográficas FACCIOTTO, Ester. Profonditá di campo. Iniziare, C.E.S.E.D., Milão, n. 6, p.27-31, jun./1997. COEREZZA, Marco. Evidenziatore. Iniziare, C.E.S.E.D., Milão, n. 6, p. 33-36, jun./1997. CONSONNI, Bina; CORNA, Rossana. Impariamo a conoscerci. Iniziare, C.E.S.E.D., Milão, n. 6, p.41-49, jun./1997. 1.32 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O BRINCAR O BRINCAR1 1. Introdução O brincar, como sabemos, é a primeira atividade da criança, momento no qual ela se expressa de maneira total. Portanto, quando observamos atentamente a criança brincar ou brincamos com ela, podemos entender a importância da brincadeira para o seu desenvolvimento global. Brincar é o trabalho dos jovens. Pelo brincar as crianças crescem, elas estimulam os sentidos, aprendem a usar os músculos, coordenam o que vêem com o que fazem, e adquirem domínio sobre seus corpos. Elas exploram o mundo e a si mesmas. Elas adquirem novas habilidades.Tornam-se mais proficientes na língua, experimentam diferentes papéis e – ao reencenarem situações da vida real – manejam emoções complexas (Papalia & Olds, 2000, p. 219). O brincar é a forma típica do agir infantil. Como tal, ele apresenta duas características particulares: primeira, constitui uma ação “desinteressada”, pois não acontece para satisfazer necessidades materiais e biológicas primárias e, segunda, introduz a criança na realidade através de uma “distância” mental e física da vida cotidiana que paradoxalmente favorece e permite manter o contato com ela. Cada brincadeira é, antes de mais nada, uma experiência querida e procurada pela criança. De fato, a criança brinca, porque no brincar encontra uma satisfação, expressa, expande e educa a própria liberdade. Por isso, não existe o brincar sem a participação livre, sem a concentração e sem o 1 Este texto foi elaborado a partir das notas tomadas durante o curso ministrado pelo pedagogo italiano Marco Coereza, em Belo Horizonte, em outubro de 2001. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.33 O BRINCAR envolvimento. O brincar sempre acontece dentro de um limite de tempo e de espaço que permite à criança criar dentro desse espaço/tempo uma ordem própria e absoluta. O brincar se torna um âmbito privilegiado em que a criança experimenta a própria maneira de enfrentar a realidade, sabendo lidar com os fatores que a constituem a partir das habilidades aprendidas. No brincar, a criança aprende a “fazer com“, uma forma de se relacionar compartilhando uma finalidade comum. Dessa forma, o relacionamento se torna verdadeiramente uma potencialidade do eu e da liberdade da pessoa, que descobre no outro um vínculo e não um obstáculo. Se o brincar constitui uma experiência fundamental para a criança, devemos lembrar que normalmente uma experiência não acontece na solidão. De fato, as crianças pedem com insistência para os adultos: “olhem para mim”. Elas não pedem: “me digam o que devo fazer” ou “organizem o meu brincar”, mas pedem: “olhem para mim”. A primeira condição para que o brincar aconteça se dá a partir do momento em que o adulto consegue assegurar e construir um relacionamento positivo e significativo com a criança, como o lugar de reconhecimento da unicidade da pessoa. Dentro desse recíproco relacionar-se, a criança descobre no adulto alguém que a ajuda a descobrir o sentido positivo das coisas, mesmo na fadiga e no erro. O brincar se torna um lugar privilegiado onde a criança pede aquilo que deseja aprender e o adulto reconhece e sustenta esse desejo. Quando se trata de estruturar uma brincadeira, as educadoras devem dar às crianças liberdade de escolha, porque, se a brincadeira é estruturada de forma que a criança não tenha a oportunidade de escolher materiais, espaços, tempos e colegas ou de desenvolver idéias próprias, as crianças de fato param de brincar. Nesse relacionamento, o adulto desenvolve uma função de suporte no caminho de crescimento que a criança cumpre e a ajuda a refletir, a reconstruir eventos, a procurar as causas; dessa forma, o adulto permite que as ações da criança não se percam, mas sejam unificadas em uma experiência com um significado e se torne uma etapa do crescer. 2. O Brincar e o Brincar Simbólico: formas de se relacionar com a realidade Quando o bebê nasce, precisa adaptar-se a um mundo novo, repleto de figuras, sons, formas, cheiros e conteúdos que jamais vira ou experienciara antes. Contudo, durante sua “estadia” no ventre da mãe, já percebia alguns sons, ritmos e certos movimentos. Assim, desde o nascimento até os seis meses, o interesse da criança se centraliza na figura materna. Com poucas horas de vida, já é capaz de reconhecê-la pela voz, pelo olfato, reconhece o ritmo de seu coração, ao qual esteve tão próximo durante os nove meses anteriores. A mãe representa mais do que aquela que lhe acalma a fome: ela é uma voz, um contato, um sorriso, um lugar conhecido no novo mundo. O bebê precisa da mãe para saber que ele próprio existe. Desde os primeiros contatos, adulto e criança estabelecem uma relação marcada pela afetividade, sendo os jogos e as brincadeiras, além da fala dirigida à criança (com ritmos, entonação e expressões faciais próprios), as formas mais comuns de expressão desta afetividade. No entanto, é a partir dos quatro meses que o jogo motor e sensorial começa a estabelecer-se efetivamente para a criança. Com a maturação biológica e o fortalecimento de muitos dos reflexos com os quais a criança já nasce, ela começa a ser capaz de controlar seus movimentos, coordená-los com o movimento dos olhos, aproximar a mão dos objetos, desde que estes estejam próximos. O pedaço de lençol que leva à boca e em que se esconde; o chocalho que sacode, chupa e morde; a grade da cama ou o dedo do adulto; cada objeto próximo ou distante adquire vida e estimula novas experiências. A criança brinca com seu corpo e com os 1.34 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O BRINCAR objetos. Se um adulto tapa-lhe o rosto com um lençol, o mundo, momentaneamente, se oculta e a criança volta a recuperá-lo quando seus olhos se libertam do objeto atrás do qual estava escondida. É possível escutar uma série de gargalhadas, ao brincar com ela de aparecer e desaparecer diante de seus olhos. De sua boca saem balbucios e gorgorejos, suas primeiras tentativas de expressão verbal. A repetição de tais sons é um brinquedo verbal, mostrando que pode fazer com os sons o que já experimentou com os objetos: faz com que eles apareçam e desapareçam. Também com o chocalho, por exemplo, o som aparece e desaparece; o mundo, aos poucos, vai tomando forma e constância. A criança sente que as coisas ao seu redor podem ser, em certa medida, passíveis de seu controle. Na segunda metade do primeiro ano, a criança já é capaz de interessar-se por brinquedos de encaixe (com peças grandes) e continua a brincar com seu corpo. Além de levar tudo à boca, começa a explorar tudo que possa servir como receptáculo: os olhos, os ouvidos ou as bocas das pessoas ao seu lado, onde ela possa encaixar os seus dedinhos ou os objetos que estiverem em suas mãos. Até o oitavo mês, a criança adquire diversos modos de elaborar o mundo que a cerca. Através do brincar motor e sensorial, ela intui, sente e experiencia que as pessoas ou os objetos tanto podem aparecer como desaparecer. Começa a ter um maior controle sobre as coisas que a rodeiam. Contudo, tal experienciar não é fruto de uma reflexão ou consciência da criança. Podemos dizer que um bebê de 3 ou 5 meses brinca com seu corpo à medida que se entretém descobrindo e manipulando seu pezinho, suas mãos ou mesmo observando o móbile que, dependurado sobre sua cabeça, cria formas e luzes diferentes. Também é fácil observar um bebê com 3 meses imitando o sorriso e os manejos de mãos e sons que a mãe efetua enquanto interage com ele. Porém, seria incorreto afirmar que este tipo de brincadeira seja intencional, planejada, o resultado do seguinte pensamento: “agora eu vou brincar disso e não daquilo”. A criança pequena (antes do 8º mês) brinca com partes de seu corpo, mas não tem plena consciência de que tem um corpo. Ela mais re-age do que age intencionalmente. Isso fica mais evidente quando ela, sem querer, se machuca, mordendo-se ou arranhandose ou mesmo prendendo um dos membros em uma posição desconfortável. Aos poucos e gradativamente, estes primeiros jogos e brincadeiras – que chamamos de brincadeiras motoras ou mais precisamente sensório-motoras, porque envolvem movimentos musculares e sensoriais –, vão se tornando objetos deliberados da vontade e intenção do bebê. Caminham juntas, para que isso ocorra, além da maturação biológica, uma construção do espaço e uma construção da realidade por parte da criança. A partir do oitavo mês, é comum observarmos crianças que antes não “estranhavam”, quando eram deixadas no colo de terceiros, agora chorarem e se incomodarem com tal situação. O objeto “mamãe”, que antes não era tido como diferenciado de si própria, passa a ter uma vida diferenciada, uma existência independente. Existe a minha mãe que é diferente de todas as outras mães. A realidade se abre com suas significações e sentidos. A criança, aos poucos, vai percebendo que, apesar de sua mamãe não estar sempre à sua disposição, de, às vezes, sumir do seu campo visual, não deixa de existir. Assim, o bebê vai criando a noção de permanência do objeto, vai percebendo que as coisas e o espaço onde mora, possuem uma existência estável, independente de seu desejo ou percepção imediata. Aqui toma destaque o papel do educador, dos pais ou daquele que cuida da criança. É imprescindível que se ofereça à criança um ambiente estável material e afetivamente, pois ela não constrói a estabilidade sozinha, independentemente. Ela requer que um outro lhe ofereça tal estabilidade, lhe garanta a permanência das coisas. Brincando com a criança, comunicando-se com ela, dando a ela oportunidade de experienciar as coisas e o mundo, o adulto a introduz na realidade, a ajuda a dar sentido às suas experiências. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.35 O BRINCAR Depois do oitavo mês, a criança, que já começou o processo de engatinhar, começa a deslocar-se e ir buscar os objetos de sua preferência. O engatinhar torna a criança mais independente de sua mamãe: ela passa a explorar as coisas que a circundam. Ao final do primeiro ano, quando a criança coloca-se em pé e começa a dar os primeiros passos, ela já consegue afastar-se voluntariamente dos objetos e reencontrá-los quando deseja. Nessa idade, a criança aprecia muito brincar com água, areia, terra, que se tornam objetos na imaginação da criança. As formas circulares também chamam a atenção da criança; elas adoram brincar com globos e bolas. Próximo ao 16º mês, a palavra torna-se para a criança um objeto concreto, é capaz de substituir “magicamente” o objeto real externo por aquele som. Assim, ao dizer mamãe, possui a mãe. Começa, então, a pedir os objetos através da fala. Esse pequeno salto, de um mundo relativamente caótico como deve ser sentido o mundo para o bebê de 3, 5 meses (em que nem mesmo o controle sobre o próprio corpo ainda foi estabelecido) para um mundo constante, seguro da criança ao final do período sensório-motor (como descrito por Piaget, por volta de 1 ano e 8 meses) ocorre, simultaneamente, com uma maior utilização dos esquemas e estruturas cognitivas. A criança vai internalizando (tornando seu) os esquemas externos para manipular os objetos e desse processo surgem as primeiras representações simbólicas intencionais e deliberadas. A partir de um ano e meio em diante, já não podemos dizer que a criança brinca da mesma forma com seu pezinho que lhe aparece à frente dos olhos ou com o móbile dependurado diante dela, como brincava anteriormente. Agora é facilmente identificável uma intenção por trás do brincar, um maior controle sobre o mesmo; por exemplo, balançase o móbile para se conseguir um tipo específico de som ou desenhos. Prova o gosto dos objetos, busca outros que deixou cair, joga outros no chão para ouvir o barulho que fazem ou mesmo para poder buscá-los, uma vez mais (jogo motor intencional). Quando perguntada sobre o papai, olha para os lados procurando-o ou indica a roupa ou um material que facilmente o identifique (memória/imaginação). Imita os sons ou os gestos de outros membros da família, até mesmo na ausência desses modelos (imitação diferida). Começa a falar pequenas palavras, depois pequenas frases (por volta dos 2 anos) e com elas parece querer comunicar uma infinidade de coisas (linguagem). Por fim, se lhe damos a oportunidade de rabiscar um papel, segurar, ainda que de modo não muito preciso, um lápis, caneta ou giz de cera, faz rabiscos e desenhos com os quais quer indicar alguma coisa (desenho). Todas essas ações – jogo motor intencional, memória, imaginação, imitação diferida, linguagem, desenho – são demonstrações de que a criança já desenvolveu uma importante função em seu desenvolvimento: a função semiótica. Tal função marca uma transformação radical na vida e desenvolvimento do bebê. Agora, ele já não responde unicamente à realidade imediata, mas também a uma realidade representada, interna. Se estiver com fome, um bebê de oito meses tem dificuldades de compreender que a mamadeira está por vir e que ele pode parar seu choro. Já uma criança de dois anos não se oporá a esse tipo de solicitação, uma vez que já consegue imaginar, visualizar internamente a mãe trazendo a mamadeira e, em seguida, saciando sua fome. Há, desse modo, uma maior independência da realidade, um descolamento dos instintos e das funções mais primitivas, uma das maiores características da espécie humana. Tudo que apresentamos até agora, poderíamos dizer que são demonstrações de brincadeira simbólica, típica deste período da vida da criança (final do estágio sensóriomotor até o início do período operacional-concreto, dos 2 aos 6, 7 anos). Não significa que não há mais jogo motor, mas que esse se aperfeiçoou durante esses primeiros anos. A brincadeira simbólica é, pois, uma continuidade do desenvolvimento da criança. Ela conversa com “amiguinhos invisíveis”, constrói mundos imaginários, observa atentamente os desenhos animados da TV ou as ilustrações dos livros, cantarola musiquinhas 1.36 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O BRINCAR acompanhando-as com gestos específicos. Em todos esses momentos, poderíamos dizer que a criança está brincando simbolicamente, que é a forma preponderante com a qual a criança de dois a seis anos se relaciona com a realidade. Piaget, preocupado mais com a construção do conhecimento, afirmava que durante a brincadeira a criança mais assimilava – aplicava os esquemas conhecidos pelo prazer na realização da atividade – do que acomodava – procurava compreender a aplicação de determinados esquemas a uma nova situação –, ou seja, a criança mais moldava as coisas da realidade a seus esquemas anteriores do que moldava seus esquemas à realidade. Nesse sentido, para Piaget, o brincar é algo importante, porém, deve ser ultrapassado para um relacionamento objetivo e coerente com as coisas. Já Vygotsky acreditava que o brincar ocupava um importante papel no desenvolvimento humano. Para ele, é através do brincar simbólico que a criança consegue se relacionar com a realidade através de signos e símbolos. Segundo Fontana & Cruz (1997), “ao substituir um objeto por outro, a criança opera com o significado das coisas e dá um passo importante em direção ao pensamento conceitual” (p. 10). Por exemplo, uma cruz não é apenas uma intersecção de duas retas, mas a manifestação de uma religiosidade. Para o autor russo, através do faz de conta, do brincar com uma escova de dentes “fingindo” que ela é um personagem ou mesmo uma outra coisa, a criança está exercitando a função semiótica, está se preparando para um uso mais deliberado de interpretação de signos e símbolos representando outras realidades que é a escrita e a leitura. Segundo Marco Coerezza, quando uma criança lê uma palavra, o faz porque associa aquela palavra a uma imagem que se construiu. Se não tem essa associação, a palavra é dita de maneira mecânica. Se faltar esse processo de simbolização, também a aprendizagem do ler e do escrever fica comprometida. Ao desenhar, a criança tende a representar o mundo que a rodeia, porém, o sapo desenhado não é apenas uma representação de um anfíbio que vive na lagoa, mas o próprio sapo; assim, ao mostrar o desenho, a criança faz movimentos típicos do sapo ou, então, quando vê uma pessoa desenhada, vira a folha e busca as costas da pessoa. É também através dos jogos simbólicos que a criança pode realizar os desejos que não poderia realizar de outra forma. Assim, ao brincar, a criança está sempre agindo em uma área potencial, fortalecendo e preparando futuros comportamentos. Vigotsky chamou a esta área de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Um garoto de 3 anos não pode dirigir o automóvel do pai, contudo, montado sobre um dos braços do sofá e segurando nas mãos uma tampa de panela, ele simula os movimentos, imagina as paisagens, “conversa” com estranhos personagens. Pode realizar eventos desastrosos, como capotar “seu” carro e, no entanto, ter a chance de retomá-lo uma vez mais, de ter um outro carro ainda mais potente ou com poderes diferentes do anterior. Consegue, desse modo, ver sua afetividade agindo em diferentes situações, construindo uma noção estável de EU e de relacionamento com a realidade. Assim, o mundo fantástico não é apenas um mundo imperfeito (como parecia supor Piaget), mas uma importante e indispensável etapa para o posterior desenvolvimento da criança. Uma vez mais o educador possui, aqui, um papel fundamental. Seja na identificação dos tipos e preferências de jogos das crianças (estas podem dizer muito do tipo de personalidade que vem se construindo e mesmo de situações de casa), seja na participação, na valorização daquilo que é sentido não como tolo ou indiferente pela criança mas como de fundamental importância. Muitas vezes, nós, adultos, achamos que as brincadeiras dos pequenos têm menos valor para eles, como em geral têm para nós. Tal compreensão levanos a grandes enganos. Dando oportunidade, oferecendo diferentes tipos de situação e material, o adulto pode estimular um relacionamento saudável com o mundo e com as coisas no mundo. Ao cair e se machucar, ou ao ver-se “roubada” em suas brincadeiras e brinquedos, pode o AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.37 O BRINCAR adulto interferir diretamente dando uma vez mais a estabilidade emocional de que tanto a criança necessita. Não é o caso de desprezar a dor ou os sentimentos da criança, mas o de compará-los, de auxiliar a criança a julgá-los com outras situações e experiências já vividas por ela mesma ou por colegas e pessoas próximas. 3. O Brincar e seus Reflexos na Aprendizagem Se o brincar é o “trabalho” da criança, a creche é, por excelência, um lugar privilegiado para a estimulação e a prática dessa atividade. Na creche, o brincar deve ser uma das atividades mais valorizadas, pois é, através dela, que a criança adquirirá as habilidades e competências necessárias para o convívio social, o desenvolvimento afetivo, o cognitivo, o psicomotor e, até mesmo, o aprendizado da leitura e da escrita. O objetivo primeiro da educação é que a criança aprenda a viver feliz, aprenda a viver no mundo, enfim, que ela seja introduzida na realidade total. Por isso, é interessante ensiná-la a cuidar de si, para que ela saiba reconhecer o lugar das coisas, a reconhecer as coisas que são suas, mas saiba também compartilhá-las. Que ela aprenda a escolher os amigos, que saiba entender que uma briga não é uma coisa pela qual o mundo acaba, que saiba, portanto, expressar coerentemente aquilo que deseja num dado momento. É através dos jogos motor e simbólico que a criança vai tomando consciência de quem é; “treina” e aprende a ser um indivíduo que, ao se tornar adulto, não vai apenas desejar, mas vai saber dizer o que e por que deseja, ou seja, vai dar sentido às suas ações. Valorizar o relacionamento com o cotidiano, com a realidade, é a possibilidade de valorizar as coisas mais bonitas, mais simples, que ajudam a criança a crescer e saber quem ela é. Na cultura de hoje, existe uma ambigüidade entre o brincar como atividades espontâneas e atividades lúdicas “pedagogizadas”. Dentro das instituições infantis, de modo geral, prevalece essa segunda forma de brincar. Não podemos negar que as educadoras estão dispostas a deixar as crianças brincarem livremente, mas só depois de terem desenvolvido as atividades lúdicas propostas. O equívoco está no prevalecer do ensino sobre a aprendizagem, em pensar que a aprendizagem só possa acontecer na medida em que o ensino está presente. De fato, o ensino acontece de forma eficaz só na medida em que responde a uma necessidade de aprendizagem que se manifesta. Por exemplo, ao vermos uma pessoa que sozinha observa alguma coisa, podemos não entender o que ela está observando, mas a postura dela nos desvela que está interessada, que está aprendendo. No entanto, é impossível pensar em uma pessoa que ensine sozinha, porque o ato de ensinar pressupõe que exista um outro ao qual ensinar. Isso significa que uma pessoa sozinha pode aprender; porém, para ensinar, é preciso pelo menos existir duas pessoas. A postura originária, aquela de aprender enquanto a postura do ensinar, acontece só na presença de um relacionamento. Uma criança, até que tome confiança numa situação, deseja conhecê-la nos seus aspectos. Ela é como um sensor que observa, explora, pede, olha, ou seja, brinca. A nossa responsabilidade como educadores não é aquela de “explorar” esse desejo de conhecer, mas de sustentar esse desejo. Obviamente, a dinâmica da aprendizagem não coincide só com o brincar, mas se expressa com o brincar de forma privilegiada, por isso, os momentos nos quais uma criança brinca se tornam fundamentais para observar o que ela é e sabe fazer. Para uma criança, o brincar constitui uma atividade extremamente séria, basta observá-la quando cava um buraco para descobrir ouro; quando coloca remédio nas feridas de uma boneca; quando brinca que está vendendo alguma coisa etc. O perceber essa seriedade não pode deixar de lado a possibilidade de conhecer as crianças através daquilo que está acontecendo. 1.38 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O BRINCAR É extremamente interessante para um educador participar do brincar das crianças: enquanto ele brinca junto com as crianças, não pára de interrogar, perseguir interesses estranhos ao brincar ou parabenizando sobre aquilo que está acontecendo. A participação dos educadores tem um papel importante para se entender aquilo que está acontecendo no brincar e para mostrar às crianças que elas sabem apreciar o jogo e se divertem brincando. Muitas vezes, é interessante brincar ao lado da criança sem participar efetivamente do jogo. De fato, as crianças podem ignorar a educadora e continuar a brincar sozinhas ou aos poucos observar aquilo que a educadora faz para assimilar o próprio jogo até convidá-la para brincar junto com elas. Um adulto que esteja disposto a aceitar o brincar das crianças não precisa tornarse uma criança, pelo contrário, é um adulto que aceita que as crianças guiem as escolhas, os caminhos etc. O brincar, porém, não é fazer aquilo que se quer, em oposição ao absorver algumas tarefas; pelo contrário, é expressão da possível autonomia da criança, como capacidade de reconhecer-se no relacionamento com a realidade. A educadora é aquela que sabe olhar o que é importante no fazer da criança e a ajuda a identificar os desenvolvimentos possíveis e a aprofundar aquilo que se está fazendo; a sua tarefa não é aquela de decidir o tipo de atividade de brincar, mas aquela de cuidar da relação que acontece, do uso do espaço, dos ritmos do dia e das regras; permitindo à criança individualizar-se a respeito de si, dos outros e das coisas. Essa postura é muito parecida com aquela desenvolvida por uma mãe, que raramente ensina, mas tem bem presente o que uma criança deve aprender; por isso, quando está em ação, a mãe a acompanha, a corrige e, se necessário, lhe indica como fazer para realizar aquilo que quer. Uma criança quer entender quem é, onde está e por quê. O adulto deve sustentála nisso, cuidando da curiosidade, do prazer e da motivação. A forma melhor é a de permitir que ela brinque com as “coisas”, ou seja, com a realidade próxima a ela. Cada vez mais as crianças são colocadas em um universo feito de sinais e não de coisas, ela se mede com palavras, imagens e material didático; são poucos os objetos da realidade com os quais ela pode ter um contato; por isso, precisa cuidar desse relacionamento com a realidade, sem ter a preocupação de antecipar competências que esvaziam o período da infância. O percurso do conhecimento acontece a partir da aproximação direta com as coisas para chegar a uma definição mais abstrata, mas a definição por si só não é útil no reconhecer. A escola infantil deve ser o lugar no qual a criança reconheça a si mesma no relacionamento com as pessoas, com as coisas e com a realidade; se isso não acontece nesse período, poderá acontecer com enorme fadiga mais em frente. Sublinhando isso não se quer esvaziar o sentido das atividades estruturadas e da iniciativa do educador. Trata-se de chamar a atenção para a justa proporção entre a atividade livre e estruturada e, antes de mais nada, de ter bem presente que aprender é uma dimensão da vida e não uma função ao lado da vida. Anexo O pedagogo Marco Coerezza relatou, durante um curso proferido em Belo Horizonte, uma experiência feita pela pesquisadora Rosi Rioli, na Itália, partindo de algumas perguntas: o que pode acontecer durante a brincadeira e quais as regras utilizadas nessa? O que serve ou serviu para aquela brincadeira e que instrumentos ou o que é usado como instrumento para o brincar? Onde, quando se brinca e como se brinca? Rosi Rioli examinou algumas brincadeiras antigas, que as crianças italianas ainda fazem até hoje: brincar de roda, cavar buracos na terra, correr com triciclo. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.39 O BRINCAR A primeira brincadeira observada foi uma de roda chamada “gira-mundo” As crianças rodam dando-se as mãos e cantando uma musica, no final todos caem e se levantam. A brincadeira é a atividade que a criança faz, na qual ela tem sempre a possibilidade de retomar, cair e se levantar. O mundo cai, desaba, mas a caída não é irreparável e prevalece o desejo de continuidade. Esta é para uma criança uma experiência muito importante, porque a criança aprende que tudo aquilo que acontece com ela ou que ela possa provocar nos outros não tem o sentido último, que seja definitivo, mas tem sempre a possibilidade da retomada. Esse tipo de brincadeira ensina à criança que, dentro da realidade, nem tudo aquilo que muda pode ser considerado a verdadeira realidade. A verdade da realidade é alguma coisa que fica e que pode ser sempre retomada. Ela entende que o mundo continuamente muda, mas existe alguma coisa de estável e isso dá a possibilidade para a criança de ser curiosa, atenta, livre para perambular e perguntar. Na brincadeira do “gira-mundo”, quando o mundo desaba, as crianças estão juntas, as mãos estão juntas às de um adulto. No começo, uma criança pode ter medo, mas pela mão do adulto ela pode ir além de si. Dar as mãos é uma coisa prazerosa, por isso, uma criança procura um amigo. Essa brincadeira prevê também que uma criança esteja no meio, fique no centro do círculo girando. Não é simples para uma criança ficar no meio, é um novo passo que ela tem de aprender; aprender a confiar em si mesma Olhem quantas coisas a criança aprende numa brincadeira que pode se repetir várias e várias vezes, milhares de vezes dentro de uma creche! A repetição é, na verdade, uma coisa importantíssima quando a criança é pequena. Uma segunda brincadeira analisada por Coerezza foi a de cavar a terra. Essa brincadeira, segundo o educador, significa o início do uso da tecnologia, mas um uso que está em função da descoberta, do interesse que é próprio da criança. Procura um utensílio simples, rudimentar, adequado ao objetivo, no começo basta qualquer coisa, mas depois encontra um outro objeto mais resistente, mais forte. Nasce um problema, depois chega a solução, a solução levanta um outro problema e assim vai seguindo. De maneira espontânea ou por um acaso, ali existe um pensamento em ação, ali está um pensamento que projeta no futuro o instrumento que ela está usando e também o objetivo. E esse pensamento é movido pelo interesse, pela atração que aquela “coisa” tem sobre a criança. Depois, o buraco se torna uma lagoa se a criança a enche de água, e uma folhinha pode se tornar uma barquinha. O pensamento da criança trabalha sobre o que há de mais concreto, as coisas mais simples, ali está a criança inteira e, se o educador também estiver ali, existirá um contexto no qual a criança é sustentada, é levada a seguir adiante. Tudo o que acontece não acontece por acaso, acontece porque a criança está movida por uma curiosidade e porque está diante de um adulto que a ajuda a ultrapassar alguns obstáculos que ela não conseguiria sozinha. Se ela quer reforçar o buraco, o educador pode intervir, ajudar e dar uma solução e a partir daí essa brincadeira se desenvolve mais ainda. Pode acontecer que, quando uma criança mexe no terreno, sinta nojo de alguma coisa, ela pode lavar-se e, depois, movida pela curiosidade, ela volta a olhar, tenta uma vez mais e, no final, ela decide colocar o dedo e, então, vence este medo. Isso representa um crescimento da criança e pode acontecer também que ela se fira, que se machuque. Quantas grandes coisas uma brincadeira contém! Contém tudo aquilo que serve a uma criança para crescer, mas não do ponto de vista sentimental, mas do ponto de vista global: emotivo, afetivo, social e intelectual. Se nós olhamos os verbos do brincar: escavar, descascar, tirar, colocar. O que isso representa? Esse processo é anterior à matemática: tirar, ver que fica menor que 1.40 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI O BRINCAR antes, colocar, acrescentar. É a subtração e a adição. Eu não posso tirar demais, se tiro demais, o buraco cai. Adição e subtração não são simplesmente operações aritméticas que se podem fazer somente com as fórmulas, mas se fazem também com as coisas. O problema é que o pensamento funciona mesmo antes de a criança conseguir fazer as operações pelas fórmulas. Se não faz essas experiências que sustentam as fórmulas, a aprendizagem das formulas se torna algo de abstrato. Referências Bibliográficas FONTANA, Roseli A. Cação & CRUZ, Maria Nazaré da. Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo: Atual, 1997. PAPALIA, Diane E. & OLDS, Sally W. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed, 2000. PIAGET, Jean. O nascimento da Inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar ed., 1975. ________. estudos de Psicologia. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1991. VIGOTSKI, L. S.; LURIA, A R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 5ª Ed., São Paulo: Ícone, 1994. ________. Manuscrito de 1929. In: Revista Educação e Sociedade, n. 71, 2000. ________. Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1995. ________. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes,1995. WALLON, H. As origens do Caráter na criança. Lisboa: Editorial Estampa,1980. ________. Psicologia e Educação da Infância. Lisboa: Editorial Estampa, 1980. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.41 A OBSERVAÇÃO A OBSERVAÇÃO1 Observar parece uma coisa imediata, quando se fica com as crianças todas as horas do dia; mas, no relacionamento com o grupo, se se arrisca a olhar as crianças como se fossem um campo de trigo, cada uma feita de muitas espigas, onde cada espiga não é notada na individualidade, vê-se a uniformidade, quando cada criança tem direito a ser olhada pessoalmente. Nesse sentido, as crianças especiais ensinam muito, porque obrigamnos a olhá-las na cara. A forma de olhar a criança especial deveria ser a mesma para todas as crianças, mesmo que elas estejam bem; mesmo que estejam crescendo sem nenhuma dificuldade, têm necessidade de um relacionamento pessoal. Assim, o uso da observação na educação é importante para se criar e estabelecer uma relação consistente com as crianças, para que se possa conhecê-las, ajudá-las a compreender a realidade, corrigirse, aceitar-se e aprender. O conteúdo principal da observação é o cotidiano, o dia-a-dia e não momentos ou coisas excepcionais. A observação deve ser participativa, pois o educador deve observar a criança dentro do contexto de relacionamento que ela vive diariamente, pois, dessa forma, é mais natural e verdadeiro e é possível perceber a criança como realmente é. Observar não é algo fácil, porque a riqueza da realidade não é facilmente perceptível na sua totalidade e também porque quem observa não é neutro. Existem vários fatores que determinam o nosso comportamento. Por isso, o momento da observação pode ser influenciado por esses fatores, tais como o nosso estado físico, psicológico etc. 1 Os conceitos utilizados nesta apostila foram extraídos dos textos: 1) “A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados”, de Urie Bronfenbrenner; 2) “Apostila do Curso de Formação para Formadores”, com a palestra de Marco Coerezza; e 3) de uma síntese realizada por Luisa Cogo e Elisabete R. do Carmo do texto organizado por D. Varin “Ecologia psicológica e organização do ambiente na creche”. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.43 A OBSERVAÇÃO O olhar do observador deve ser um olhar afetuoso e não de juízos, pois essa observação não é para dizer se a criança faz alguma coisa bem ou mal, mas para entender como é possível entrar em relacionamento com ela de maneira melhor do que havia conseguido até o momento; o observar é para desenvolver melhor a tarefa educativa. Porém, observar não é algo espontâneo, é algo que deve ser trabalhado, requer estudo, paciência de fazer, errar e fazer de novo. Para observar uma criança, é útil identificar os seus planos de desenvolvimento, entendendo quais são os campos de observação. Não porque se precisa sempre avaliar todos os campos, mas para se ter um guia de exploração para se realizar uma observação mais sistemática. Os campos de observação no desenvolvimento da criança são: 1. Funcionamento mental da criança O funcionamento do pensamento da criança determina todas as outras modalidade de funcionamento, como a linha da comida, do sono, do movimento e da comunicação. • A linha da comida é a linha das necessidades primárias. Quando está adequada, significa que a criança tem a distinção entre a mãe e a comida: a mãe como é a única fonte insubstituível de alimentação, de nutrição e de afetividade emocional e intelectual e a comida como expressão de tudo aquilo que fica “fora da mãe”, isso quer dizer o mundo. Uma psicóloga inglesa, Margareth Maller, diz que a separação da criança da mãe é o começo da aventura de amor com o mundo. Se não há essa separação, a mãe vai invadir todo o contexto afetivo da criança e a criança não terá nenhum interesse por outra coisa. Se não se consegue promover uma separação adequada da mãe, não se consegue ajudar a criança a abrir seu mundo à realidade. O fato de as crianças, por exemplo, comerem bem na escola, seja demonstrando apetite, seja tendo uma boa relação com as coisas e com os colegas, é um sinal de identificação do eu, ou seja, a criança saber conceber-se sozinha, sem a mãe. Uma boa separação quer dizer também um bom relacionamento mental. • A linha do sono é um momento muito delicado para uma criança. Quando ela descansa e dorme de maneira suficiente, isso não só significa que ela está bem do ponto de vista físico, mas também os pensamentos estão tranqüilos. Um pensamento perturbado impede o descanso e vice-versa. • A linha do movimento: quando uma criança se move de uma maneira harmoniosa, com coordenação, quando entende qual é o momento no qual deve mover-se e em qual deve estar parada, isso é sinal de que o pensamento está funcionando. Um tempo que não seja já todo estabelecido e organizado deixa à criança a possibilidade de ordenar o seu tempo segundo uma finalidade que ela se dá, é o indício que permite ver como uma criança sozinha sabe organizar-se, sabe agir de maneira autônoma. É indispensável que a criança adquira um funcionamento mental próprio para enfrentar depois a aprendizagem no ensino fundamental, porque não terá sempre presente alguém que indique ou que determine os tempos. Se, desde a creche, a criança é educada a ter um tempo livre para que o organize de maneira autônoma, ela, então, estará educada para enfrentar novas tarefas. Não é necessário que, na creche, a criança aprenda a ler e a escrever, mas é preciso ensiná-la ou ajudá-la no desenvolvimento do funcionamento mental que a levará a ler e a escrever. • A linha da linguagem e da comunicação: quando uma criança fala, me diz alguma coisa do funcionamento mental. A fala da criança não me diz só sobre o contexto sociocultural no qual ela vive, me diz também como funcionam as suas estruturas mentais. 1.44 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A OBSERVAÇÃO Quando uma criança tem uma riqueza de linguagem, quando sabe dar o nome certo para as coisas, isso indica uma experiência que ela conseguiu assimilar; essa riqueza de experiência que ela consegue estabelecer depois num relacionamento com as coisas, isso indica funcionamento mental mais maduro. Eu posso conhecer o nome do copo, porém, eu posso não entender o laço que há entre o copo e a sua função. No começo, as crianças aprendem a dar um nome às coisas, depois, fazendo a experiência, aprendem as funções que elas têm. A linguagem do corpo também é muito importante, por isso é preciso observar como a criança usa o corpo, seja na sua totalidade, seja como ela usa as mãos, os pés, o tom da voz, o olhar, tudo isso indica como a criança percebe a realidade, se é de forma adequada como a situação requer. A linguagem, seja a verbal, seja a do corpo, acontece sempre dentro de um espaço, por isso o relacionamento que a criança vive nesse espaço (um espaço que esteja fechado ou aberto, um espaço no qual ela tenha regras, vínculos ou um espaço onde ela se move livremente, um espaço no qual a criança possa compartilhar com os outros aquilo que ela faz ou um espaço que ela escolhe para uma privacidade) é muito importante. 2. Relação com o objeto Um segundo campo de observação é a relação objetual entre o eu e o outro, ou seja, a relação entre a criança e a mãe. Deve-se olhar a separação e a individualização em relação à mãe, mas também em relação às educadoras, ou seja, observar quanta dependência e quanta autonomia a criança demonstra em relação ao adulto. Entre a dependência e a autonomia deve acontecer uma evolução harmônica. Outro sinal do acontecer dessa relação objetual é avaliar o cuidado pessoal: se a criança sabe vestir-se, amarrar os sapatos, limpar o nariz etc. É claro que é tarefa do adulto ensinar a criança a cuidar de si, mas se uma criança não dá conta que está com os sapatos desamarrados, nariz sujo etc. significa que ela não tomou ainda consciência de si. Se uma criança tem as mãos sujas e se coloca à mesa para comer sem lavá-las, é com certeza uma criança que tem menos percepção da realidade do que uma criança que fale: “tenho as mãos sujas, preciso lavá-las”; assim como o assoar o nariz, o ter prazer de ser cuidado e ordenado no momento da entrega aos pais são sinais de auto-estima. O último aspecto a ser olhado é a capacidade de simbolização, quer dizer a capacidade de utilizar uma coisa no lugar da outra; para elaborar um projeto sempre mais refinado. Essa capacidade de transformar o objeto em símbolo acontece, sobretudo, no jogo simbólico e se torna aos poucos a capacidade de construir o sinal, processo importantíssimo na aprendizagem do ler e do escrever. Atrás da palavra simbolização está todo o percurso que acontece no período da freqüência na creche, do ter o objeto presente até conseguir imaginá-lo mesmo que esteja ausente para chegar a transformar em símbolo. Esse percurso levará à individualização de código, ou seja, à linguagem escrita. A separação mental da mãe, objeto primário de amor, é o que permite a relação objetual. Isso não significa que a mãe não seja mais importante para a criança, mas que a criança entendeu que ela é uma pessoa e a mãe é outra, essa é a condição que permite a relação. 3. Qualidade dos relacionamentos O terceiro campo da observação é a qualidade dos relacionamentos. A pergunta que se pode colocar é: diante dos outros, como essa criança está? Primeiro, tentou-se observar a criança sozinha, agora deve-se olhá-la em relacionamento com os outros. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.45 A OBSERVAÇÃO Um aspecto importante do relacionamento é a aquisição do modelo masculino e feminino. Uma criança, aos três anos, não sabe com certeza onde se colocar; no final do percurso desenvolvido na creche, com cinco ou seis anos de idade, ela consegue reconhecer-se como um menino ou uma menina. Isso diz respeito à socialização, aos relacionamentos sociais que ela teve. Existe uma divisão entre meninos e meninas no momento do brincar e essa divisão tem essa razão: eu entendo mais o que eu sou se fico com os outros que são iguais. Por isso, o relacionamento nos primeiros anos de convivência na creche é um relacionamento ou entre meninos ou entre meninas, depois chega o momento no qual a criança entende mais o que ela é, comparando-se com crianças do sexo oposto, por isso ela brinca com elas e entende de maneira melhor quem é, na comparação. Um outro aspecto de grande importância que a criança devagar vai adquirindo é a capacidade de descentrar o ponto de vista dela, com o qual ela observa a realidade, que é a capacidade de imaginar que ela é o outro. É tentar olhar para as coisas, assim como os outros olham para elas. Isso se expressa muito bem no brincar simbólico: eu faço que sou você, se você fosse a tia você deveria fazer assim, se você é a mãe você deve fazer assim. É muito importante ver dentro do brincar como a criança se coloca, se do ponto de vista dela ou se se coloca dentro do ponto de vista do outro. No campo da fantasia se usa o “faz de conta que eu sou”, isso significa que o brincar tem a capacidade de simbolização, de perceber a distância entre a realidade e a fantasia. Nesse percurso, a criança aprende também a dar um sentido ao amigo, porque o amigo é aquela pessoa que a ajuda a descentrar o pensamento, a ajuda a pensar que se uma coisa não é boa para ela, não deve passá-la para os outros. É o começo da fonte da primeira moralidade. É uma moralidade que ainda é muito competitiva, mas que começa a se tornar uma capacidade de imaginar que, se ela não gosta de uma coisa, também o outro pode não gostar. Sinais da capacidade de colocarse no lugar do outro são também a capacidade de esperar a própria vez e a capacidade de ceder um objeto. Sempre olhando dentro do campo da observação da qualidade da relação, é muito interessante ver como acontece a passagem do eu para o tu e para o nós. Não existe criança que aprenda a falar nós, não passando antes, através do eu e depois através do tu. A estrutura da linguagem na criança é uma estrutura existencial, a criança consegue conceber-se como parte do grupo, como um membro de um grupo através de uma relação existencial. Isso significa: através de um relacionamento importante com o adulto de referência, se a criança não tem um bom relacionamento com a professora, é muito difícil que ela consiga socializar-se também com os colegas. Depois, esse relacionamento significativo entre o eu e o tu pode também tornar-se um relacionamento entre uma criança e um outro amigo. Se este é o percurso, as etapas devem ser olhadas de criança para criança. Alguém é muito rápido nas etapas, por isso são suficientes 15 dias de apego a um colega para depois ampliar a relação com muitas crianças e existe quem fica apegado ao amigo do coração por um ano antes de largar o relacionamento. 4. Tipo de aprendizagem O quarto campo de observação, no final, é o tipo de aprendizagem da criança. A capacidade lógica da criança é determinada pelo tipo de existir, de vida que a criança conduz. Ter uma ordem mental dentro da própria vivência, saber o que acontece antes, o que acontece depois: antes eu me levanto, depois eu tomo café da manhã, depois escovo os dentes, depois eu saio e chego à escola. São todas estruturas existenciais, modos de vida, que suportam, ajudam a criança a desenvolver capacidades lógicas. Por exemplo, a capacidade de entender algumas seqüências, de tempo, de causa e de lógica. 1.46 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A OBSERVAÇÃO Não existe uma ordem mental na criança se não existe antes uma ordem mental no adulto que fica perto dela e que se comunica através da ordem mental, colocado dentro da ação que se propõe. Por que é assim importante a rotina do dia, as coisas que acontecem sempre, no mesmo tempo, da mesma maneira? Porque a ordem é alguma coisa que a criança deve adquirir, deve aprender dentro de uma realidade que continuamente muda; por isso, ela pede sempre o mesmo conto fantástico, pede sempre que se conte da mesma maneira, não errando as palavras usadas, essas são exigências que a criança coloca, mas é para pedir uma ordem mental, dentro de uma realidade que continuamente muda. Se a criança não tem um tipo de experiência que seja ordenada, isso dificulta para ela a estruturação do pensamento lógico. Assim, nos processos de análises e de sínteses: o pensamento da criança no começo é caracterizado por uma percepção global da situação, daquilo que acontece, do sentido das coisas; só no segundo tempo a criança chega a detalhar, a analisar. Esta não é uma percepção do tipo confusa, bagunçada, que mistura várias coisas, mas uma percepção que sabe identificar aquilo que é essencial. Aos poucos, a criança desenvolve essa percepção, de forma integrada e cada vez mais profunda. O pensamento da criança se desenvolve a partir do eu em particular, específico mas essencial, depois parte para o todo, o social, em que ela passa a perceber que existe uma relação entre os acontecimentos. É a partir dessa percepção que ela entra na fase do pensamento hipotético, aprendizagem de uma projectualidade; por exemplo, se há uma fumaça, pode-se imaginar que há fogo. Este é um pensamento que uma criança aprende fazendo a experiência, que as coisas têm laços entre elas e laços que definem as causas e os efeitos das coisas. Assim também se pode entrar dentro da realidade e transformá-la segundo um plano, um objetivo que a pessoa se coloca, não recebendo passivamente a realidade, mas permanecendo ativo diante dela. O observador precisa tolerar o fato de não entender tudo, não saber tudo antes de começar a observar, porque não está observando para demonstrar a eficácia de uma hipótese elaborada anteriormente, assim como não se deve observar para reduzir a realidade a um esquema. O que é observar? Observar é apontar os olhos para aquilo que funciona. Mesmo observando uma criança perturbada ou doente, o objetivo não é aquele de fazer um diagnóstico. A observação, em contexto educativo como a escola, deve olhar a criança ou um grupo de crianças com a tarefa de tentar entender, antes de mais nada, quais são as partes que podem ser potencializadas. Pois se aponta os olhos sobre o sofrimento, sobre as partes doentes, encontra-se um âmbito no qual não se pode intervir. Observar é apontar os olhos para aquilo que funcione e não procurar confirmações para aquilo que já pensamos. Se se tem uma criança que é agressiva, que perturba, que não se insere no grupo, observar é procurar qual o ponto, a brecha na qual podemos entrar em relacionamento. Muitas vezes se observa para confirmar aquilo que já se sabe; no entanto, a observação deve ser projetada para entender aquilo que não se sabe. Uma criança que tenha marca de agressiva, deve ser observada para entender as suas emoções, os seus sentimentos, o terreno sobre o qual nós podemos nos relacionar com ela e no qual nós podemos propor as brincadeiras. Observar é levantar os planos sobre os quais está ocorrendo o desenvolvimento da criança e é atribuir sentidos e integrá-los. Quando observamos uma criança, podemos levantar elementos do tipo orgânico que influem sobre o comportamento. As crianças, sempre um pouco doentes, sem apetite que muitas vezes adoecem, este é um plano sobre o qual ocorre desenvolvimento que, porém, interage também com a sua maneira de relacionar. Talvez essas sejam crianças inseguras que não gostam de nada, que pegam em um brinquedo e o jogam fora. E este é um outro plano sobre o qual ocorre o desenvolvimento. Talvez sejam crianças que têm um relacionamento conflituoso com o AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.47 A OBSERVAÇÃO espaço e o tempo, estão à vontade na escola nas primeiras horas, mas depois ficam desmotivadas. Por isso, o aspecto orgânico, relacional, o relacionamento com o espaço e o tempo são todos planos diferentes que compõem a unidade da pessoa. São muitos os aspectos que concorrem para identificar a globalidade de um desenvolvimento. Por isso, não é suficiente uma única observação, talvez seja necessário fazer todos os dias uma breve observação, para depois avaliar o andamento, porque um fragmento sozinho não dá idéia de todos os planos sobre os quais ocorre o desenvolvimento. Observar não é ter em mente um modelo esquematizado, pensar como deve ser uma criança de quatro anos e comparar com um modelo de criança pré-estabelcido. A observação não é uma quantificação em relação a um modelo, mas é a tentativa de entender como está o pleno desenvolvimento de uma pessoa. A observação não é quantificar, nem é a compilação de uma ficha. No entanto, a ficha pode ser o ato final de avaliação, como se pode fazer no final da freqüência na creche. Por isso, é o ato final de um percurso observativo, não pode ser a síntese de uma observação singular. Observar é adquirir um hábitus que torna o adulto presente no relacionamento com a suficiente distância que permite refletir. Por isso, é uma modalidade de relacionamento que com o tempo se transforma em parte integrante da pessoa. É um aspecto que se torna uma dimensão da pessoa, uma postura que cria relacionamento, que se torna um estilo de relacionamento. A observação não deve ser relegada a alguns momentos que achamos importantes, mas deve se torna um hábitus, ou seja uma forma de estar com as pessoas. Resumindo, a observação da qual estamos falando é do tipo pedagógico. É uma observação da educadora que, em uma situação escolar, identifica como a criança está crescendo e tende a desenvolver suas potencialidades. A observação deve estar sempre dentro do contexto, nunca se deve isolar a criança para observá-la, mas observá-la no ambiente e nos relacionamentos costumeiros com as outras crianças. A observação é partícipe e humilde. Ou seja, o educador não deve estar à distância, atrás de um vidro que impede o relacionamento enquanto observa, mas deve estar dentro da relação tentando, simplesmente, manter uma certa distância. Deve procurar fixar ou, se necessário, descrever aquilo que está acontecendo. Se a criança observada envolve o educador na brincadeira, esse deve aceitar. Anos atrás se dizia que quanto mais uma observação era neutra, mais científica se tornava; hoje se está descobrindo que pode ser científica mesmo sendo partícipe. Ao mesmo tempo, a observação deve ser humilde. Uma das tentações dos profissionais é tornar-se, através da observação do outro, onipotentes, capazes de entender tudo e, por isso, capazes de indicar um comportamento. Mas a realidade é difícil de ser interpretada e existem vários fatores que devem ser considerados. Por isso, precisa-se ser muito humilde, quando se interpretam coisas que têm a ver com os sentimentos dos outros, grandes ou pequenos que sejam. No final quem observa não pode esquecer a sua infância. Precisa-se colocar nas vestes das crianças como se fossem elas. Isso é importante porque, se não nos lembramos da nossa infância, é difícil entender aquilo que está acontecendo, pois não se trata de ter presente um discurso teórico sobre a infância, mas tentar recuperar o sentido da infância, para que cada observação seja sempre acompanhada dessa consciência. A observação do jogo: Uma atenção específica deve ser reservada ao momento do jogo, também no uso do instrumento da observação, porque todas as crianças dominam as tarefas evolutivas através do jogo, através do brinquedo. O brincar é a principal ocupação da criança e, por esse motivo, deve ser observado e registrado de maneira tal que este procedimento venha a contribuir para a compreensão da etapa em que cada criança se encontra, facilitando, assim, a interação com a mesma. 1.48 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A OBSERVAÇÃO Observando uma criança brincar, o educador pode notar a sua capacidade de atenção a um brinquedo, sua habilidade em usar o brinquedo para imitar o irmão ou colega e suas respostas sociais ao interagir com outros. A observação do brincar pode ser em uma situação de observação natural, na qual as crianças iniciam o seu jogo sem a intervenção de nenhum adulto, de acordo com sua própria vontade ou pode ser em situação de observação selecionada na qual o observador planeja a atividade lúdica apropriada para o estágio de desenvolvimento da criança; os brinquedos e as atividades são apresentadas para a criança no momento da sessão de jogos. Enquanto a criança brinca, é possível observar as habilidades motoras e sociais e a sua capacidade para solucionar problemas, a capacidade de manter atenção em uma atividade, todos os movimentos que ela utiliza durante o brincar (olhar, aproximar, agarrar, apanhar, explorar, abandonar) e seus movimentos psicomotores finos (movimento de pinça, habilidade com os dedos etc.). É possível ainda identificar quais os comportamentos imitativos de que é capaz, verificar sua tolerância a frustrações, sua capacidade de manterse em uma atividade até o final, sua resposta a elogios, enfim, o nível e a qualidade da interação enquanto brinca. A nós interessa observar a criança naquilo que a criança sabe fazer e não naquilo que ela não sabe fazer. Aquilo que nos interessa também é identificar os planos de desenvolvimento da criança, entender o sentido que eles têm, dentro do caminho que a criança está fazendo, também integrando os termos entre eles. Como objeto de ajuda, formulamos um pequeno protocolo de observação do brincar, que não é um instrumento definitivo nem único, mas que pode representar uma ajuda: • que pode acontecer? (núcleo operativo que descreve o enfrentamento do real); • para que serve? (objetivo do jogo); • os verbos do jogo (as ações que a criança cumpre ou pode cumprir e que descreve o que ela aprende); • onde se brinca (os espaços onde o jogo acontece); • quando se brinca (quais são os momentos nos quais se desenvolve o jogo); • como se brinca (quais são as modalidades usadas pelas crianças e o papel do adulto). Como exemplo, apresentamos abaixo a análise de duas brincadeiras feita por uma pesquisadora italiana Rosi Rioli: o brincar de roda e o cavar buracos no terreno. Esta do brincar de roda se chama “gira-mundo” e é uma brincadeira que acaba com o fato que o mundo cai! Os meninos fazem assim: dando-se as mãos, enquanto eles vão cantando, devem sentar-se no chão. O mundo cai, mas no momento em que cai, depois se levantam de novo. É uma experiência muito bonita, que descreve uma característica do brincar. A brincadeira é a atividade que a criança faz, na qual ela tem sempre a possibilidade de retomar: cair e se levantar. O mundo cai, desaba, mas a caída não é irreparável e prevalece o desejo de continuidade. Esta é para uma criança uma experiência muito importante. Primeiro, porque a criança aprende que tudo aquilo que acontece com ela ou que ela possa provocar nos outros não tem o sentido último, que seja definitivo, mas tem sempre a possibilidade da retomada. Isso ensina à criança que, dentro da realidade, nem tudo aquilo que muda pode ser considerado a verdadeira realidade. A verdade da realidade é alguma coisa que fica e que pode ser sempre retomada. Estamos falando estas coisas como se fossem coisas filosóficas, mas a criança vive estas coisas de uma maneira experiencial. A partir dali, ela entende uma coisa que é fundamental: que, no mundo que continuamente muda, existe alguma coisa de estável ou que seja contínua. Isso dá possibilidade para a criança de ser curiosa, atenta, livre para perambular e perguntar. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.49 A OBSERVAÇÃO Depois, um detalhe curioso: na brincadeira do “gira-mundo” quando o mundo desaba nós estamos juntos, as mãos estão juntas e também isso não é um fato óbvio. No começo, ela pode ter medo, mas, pela mão do adulto, ela pode ir além de si. Dar as mãos é, precisamos admitir, uma coisa prazerosa, por isso, uma criança procura um amigo. Depois, essa brincadeira prevê também que uma criança esteja no meio, fique no centro do círculo girando. Não é simples para uma criança ficar no meio, isso também é um novo passo que ela tem de aprender; aprender a confiar em si mesma. Por isso, não há necessidade de grandes coisas num relacionamento educativo. Olhem quantas coisas a criança aprende numa brincadeira que pode se repetir várias e várias vezes, milhares de vezes dentro de uma creche! A repetição para uma criança pequena é, na verdade, uma coisa importantíssima. Tentemos ver o que existe dentro de outra brincadeira: o cavar a terra. Pode acontecer, por acaso, que eu tirando uma pedra veja alguma coisa ali embaixo, uma coisa que não esperava: os insetos que se movimentam e, assim, começo a ficar curioso. Por essa descoberta, nasce um trabalho de ir à procura debaixo, o que está debaixo, até ver onde eu posso chegar. A criança começa a cavar com o dedo, depois se dá conta de que o dedo dói e não é suficiente para cavar, por isso pega uma pedra, um pauzinho. O que representa, por exemplo, esta coisa? Isso é o uso da tecnologia, mas este uso está em função da descoberta, do interesse que é próprio da criança. Nós não temos nada a dizer de ruim sobre o computador, porque todos usamos, o que é preciso respeitar, como já vimos, é o contexto onde ele está inserido e também a que serve. Voltamos ao cavar, um utensílio simples, rudimentar, adequado ao objetivo, a criança não vai encontrar qualquer pedaço de pau, no começo basta qualquer coisa mas depois encontra um outro mais resistente, mais forte. Nasce um problema, depois chega a solução, a solução levanta um outro problema e assim vai seguindo. Tudo isso, por que acontece? De maneira espontânea ou por um acaso, ali há um pensamento em ação, ali está um pensamento que projeta no futuro o instrumento que eu estou usando e também o objetivo. O que move esse pensamento? O interesse, a atração que aquela coisa tem sobre mim. Mas, depois, o buraco que eu fiz se torna uma lagoa se eu o encho de água e uma folhinha pode se tornar uma barquinha. Percebam que o pensamento da criança trabalha sobre o que há de mais concreto, as coisas mais simples, e isso vale mil vezes mais que todas as fichas que nós possamos fazer para ele, porque ali está a criança toda inteira; e, se eu também estou ali, existe também um contexto no qual a criança é sustentada, é levada a seguir adiante. Tudo o que acontece não acontece por acaso, acontece porque a criança está movida por essa curiosidade e porque está diante de um adulto que a ajuda a ultrapassar alguns obstáculos que ela não conseguiria sozinha. Se tem que reforçar esse buraco, eu posso intervir, ajudar e dar uma solução e dali essa brincadeira se desenvolve mais ainda. Quando uma criança lê uma palavra, o faz porque associa aquela palavra a uma imagem que se construiu. Se não tem essa associação, a palavra é dita de maneira mecânica. Se falta esse processo de simbolização, também a aprendizagem do ler e do escrever fica comprometida. A criança, na creche aprende o processo de simbolização através de coisas banais, mas são só aparentemente banais. Precisamos decifrar a linguagem de uma criança não partindo de esquemas que tenho na cabeça, mas segundo aquilo que a criança, na verdade, está fazendo. Pode acontecer que, quando uma criança mexe no terreno, sente nojo daquela coisa, ela pode lavar-se e, depois, movida pela curiosidade, ela volta a olhar, tenta uma vez mais e, no final, ela decide colocar o dedo e, então, vence este medo. Isso representa um crescimento da criança, mas pode acontecer que se fira, que se machuque. 1.50 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A OBSERVAÇÃO Quantas grandes coisas a vida contém! Contém tudo aquilo que serve a uma criança para crescer, mas não do ponto de vista sentimental, mas do ponto de vista global: emotivo, afetivo, social intelectual. Tudo. Se nós agora olhamos os verbos do brincar: escavar, descascar, tirar, colocar. O que isso representa? Esse processo é anterior à matemática: tirar, ver que fica menor que antes, colocar, acrescentar. É a subtração e a adição. Eu não posso tirar demais; se tiro demais, o buraco cai. Adição e subtração não são simplesmente operações aritméticas que se podem fazer somente com as fórmulas, mas se fazem também com as coisas. O problema é que o pensamento funciona mesmo antes de a criança conseguir fazer as operações pelas fórmulas. Se não faz essas experiências que ficam debaixo destas fórmulas, depois ela se cansa para entender estas fórmulas. Este texto é a tentativa de apresentar alguns instrumentos, algumas orientações que podem servir de guia para o educador/observador, porém é preciso ter presente que observar só se aprende observando, no relacionamento diário com as crianças. Podemos acrescentar, ainda, que a observação é um processo que, num primeiro momento, prevê uma atividade individual (observação, relatório escrito, releitura colocando as reações do observador sobre o momento observado) e uma atividade desenvolvida no grupo de trabalho. Esse segundo momento é muito importante, porque a comunicação ao grupo e a tentativa de responder às perguntas ajudam a compreender de forma melhor o comportamento da criança e a hipotizar uma nova forma de se colocar com as crianças. A observação se aprende com o tempo, com um exercício constante e adquirindo uma capacidade de reflexão sobre quando acontece, podendo, mais tarde, observar de forma espontânea. Referências Bibliográficas BRONFENBRENNER, U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. COEREZZA, M. Apostila do Curso de Formação para Formadores. Belo Horizonte: AVSI, 2001. (mímeo) AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.51 A OBSERVAÇÃO Anexo 1 Observar é: • fixar os olhos naquilo que funciona; • colher os diversos planos nos quais a criança está se desenvolvendo, atribuir significado e integrá-los; • adquirir um hábito que torne o adulto presente nas relações com separação suficiente que permita refletir. • • • • Observar não é: procurar confirmações para aquilo que já pensamos; “quantificar” e “comparar” a um modelo padrão; o preenchimento de um formulário; isolar alguns momentos “fortes” (ex. inserção). A nossa observação é de tipo pedagógico: • devemos individualizar aquilo que funciona na criança e tender a desenvolver as potencialidades; • é sempre uma observação “na situação”: ambiental e relacional; • é participante e humilde (é difícil interpretar os comportamentos dos outros. Não nos contentamos com a primeira observação. Não se entende tudo imediatamente); • não se esquece da nossa infância (saber colocar-se no lugar de... como se...). • • • • Campos de observação a) Funcionamento mental linha da comida linha do sono linha do movimento linha da linguagem e da comunicação. • • • • b) Relação com o objeto separação/individualização dependência/autonomia atendimento pessoal simbolização c) qualidade da socialização • assunção do modelo M/F • descentralização do ponto de vista do eu ao tu ao nós através da relação com o adulto. 1.52 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A OBSERVAÇÃO Anexo 2 Notas Gerais sobre o Trabalho de Observação Uma consideração do método: é necessário sempre ter presente que escolhemos um instrumento particular que consiste na observação do caráter pedagógico (compreender como e em quais linhas o caminho evolutivo da criança – ou por analogia do relacionamento ou de outros aspectos da situação educativa – está procedendo para sustentá-lo ou corrigi-lo) e de uma observação participativa, ou seja humilde, não distanciada, mas capaz daquela empatia que me faz acolher o outro assim como ele é, sem pretensão que se adeqüe à minha imagem. Além disso, é necessário estarmos atentos à descrição do contexto, porque é um aspecto importantíssimo da observação e à distinção entre observação e comentários/ reflexões/juízos. Poderia ser útil levar em conta alguns elementos como por exemplo: a. ESCOLA …………………………………………… b. DATA ………………………….. HORA ……………. c. QUEM OBSERVA ……………………… d. PAPEL DO OBSERVADOR………………………….. e. CONTEXTO DA OBSERVAÇÃO (situação, momento do dia, espaços, materiais, número de meninos e número de meninas, tipo de atividade desenvolvida, número e função dos adultos, eventos, imprevistos, …) f. OBJETO DA OBSERVAÇÃO (atenção para distinguir as observações dos juízos)……………………………..……………… g. RAZÃO DA OBSERVAÇÃO (porque observo) ………………………………… h. DESCRIÇÃO DO EVENTO (aquilo que acontece, como acontece, o foco da observação) ………………….. i. COMENTÁRIOS E HIPÓTESE DE TRABALHO: • evidenciar os problemas e os temas surgidos • refletir sobre a função do adulto • e sobre aquela do pedagogo • identificar como fazer crescer a experiência e o percurso: • no grupo de trabalho • individualmente (relacionamento de “counseling” entre o pedagogo e a educadora) • • • • AVSI com a criança com o grupo das crianças com os pais com outros. PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.53 A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA1 1. Introdução O termo ecologia psicológica foi utilizado pelo estudioso italiano D. Varin que se baseou na teoria de um psicólogo americano de nome Brofenbrenner e na teoria do alemão Kurt Lewin. Este modelo privilegia a compreensão do ser humano em relacionamento com o ambiente em que se insere e também a influência do ambiente no desenvolvimento global da pessoa. Esses pesquisadores entendem como ecologia psicológica: • “O estudo dos processos através dos quais os fatores de ordem extrapsicológicos influenciam o ambiente psicológico e, através disto o comportamento individual e de grupo” (Varin, 2001, p. 1). • “O estudo do relacionamento entre a pessoa e o ambiente e a influência que o ambiente tem sobre a pessoa” (Coerezza, 2001, p. 31). • “A ecologia do desenvolvimento humano envolve o estudo científico da acomodação progressiva, mútua, entre um ser humano ativo, em desenvolvimento, e as propriedades mutantes dos ambientes imediatos em que a pessoa em desenvolvimento vive. Conforme esse processo é afetado pelas relações entre esses ambientes, e pelos contextos mais amplos em que os ambientes estão inseridos” (Bronfenbrenner, 1996, p. 18). 1 Os conceitos utilizados nesta apostila foram extraídos dos textos: 1) “A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados”, de Urie Bronfenbrenner; 2) “Apostila do Curso de Formação para Formadores”, com a palestra de Marco Coerezza; e 3) de uma síntese realizada por Luisa Cogo e Elisabete R. do Carmo do texto organizado por D. Varin “Ecologia psicológica e organização do ambiente na creche”. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.55 A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA Este modelo privilegia a compreensão do ser humano em relacionamento com o ambiente em que está inserido e também a influência do ambiente no desenvolvimento global da pessoa. Com a palavra ecologia entendemos a organização do sistema e como ambiente entende-se o espaço de vida da pessoa, isto é, aquele espaço no qual a pessoa, através de seus relacionamentos mais significativos, cresce e se desenvolve. O ambiente é composto por elementos humanos, físicos, geográficos e sociais que são externos ao ambiente psicológico, mas que são elementos de grande influência no desenvolvimento da pessoa. Lembremo-nos de que uma criança que nasce e cresce em um país subdesenvolvido, em uma cidade grande, em um bairro com grandes carências sociais, em uma casa com pouco ou nenhum saneamento básico, com pais ausentes vai ter influências ambientais no desenvolvimento psicológico diferentes das de uma criança que mora nesse mesmo país, nesse mesmo bairro, mas em uma casa limpa e organizada, com pais preocupados e presentes durante o seu desenvolvimento. Qualquer dado do ambiente (humano, físico, geográfico ou social) que é modificado, muda-se também a influência do ambiente na pessoa. Os conceitos essenciais de ecologia psicológica podem, assim, ser resumidos: 1) Pessoa: A pessoa é o lugar, a sede de vários processos afetivos, perceptivos, cognitivos e motores. 2) Ambiente psicológico: espaço de vida no qual a pessoa é inserida, isto é, aquele espaço no qual a pessoa, através de seus relacionamentos mais significativos, cresce e se desenvolve. 3) Fatores de ordem extrapsicológica: os aspectos físicos, geográficos e sociais do ambiente, externos ao ambiente psicológico do indivíduo, que assumem a função de fatores de ecologia psicológica quando o influenciam mais duradouramente (isto acontece a cada vez, de situação em situação). Uma criança, antes de nascer, vive no útero da mãe, naquele momento o ambiente psicológico; mesmo depois do nascimento – naqueles primeiros meses, nos quais existe uma fase simbiótica entre a criança e a mãe – o ambiente psicológico do recém-nascido é influenciado por um ambiente externo, bem como pelo relacionamento da mãe com o pai, pela situação econômica que a família vive e pela tranqüilidade do ponto de vista do bem-estar psicofísico. Outros elementos casuais podem surgir e influenciar este ambiente: um medo ou um susto por alguma coisa. Todos são fatores extrapsicológicos, mas que influenciam de maneira profunda o ambiente psicológico. O ambiente psicológico se estrutura em função das características da pessoa e é influenciado pelas características extrapsicológicas, ou seja, externas aos fatores subjetivos da pessoa. Isso é importante, sobretudo, pelo fato de hoje sabermos que uma criança pequena ainda não consegue se diferenciar do ambiente e, por isso, tem a necessidade de ser acompanhada na estruturação dessa diferença, na construção desta individualidade. Nesse momento de fragilidade da criança, a influência do ambiente pode ser muito determinante, porque o eu dela ainda não está estruturado. Por isso, damos importância para o ambiente extrapsicológico, aquele que está fora do relacionamento adulto-criança, fundamental, porque nos ajuda a sustentar o processo de formação da identidade da criança, já que este é um dos aspectos mais determinantes na formação da identidade. É o limite entre o eu e o outro. 4) Comportamento da pessoa: depende seja das características individuais, seja do ambiente psicológico; por sua vez, o ambiente psicológico estrutura-se também em relação com as características da pessoa (estado de ânimo, vivências, experiências etc.). Isso é verdadeiro especialmente para a criança, na qual a diferenciação entre o eu e o ambiente ainda é frágil: os elementos mais relevantes do ambiente podem irromper 1.56 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA mais facilmente na zona interna da pessoa, determinando incômodo e desorganização; ou as mudanças globais do ambiente (por ex.: a inserção na creche aos 3 anos) podem ser causa de ânsia, influenciando o modo no qual o ambiente é percebido. 2. Aspectos mais relevantes da Ecologia Psicológica que podem determinar o Ambiente Psicológico da criança, na creche 2.1. Vínculos Comportamentais e Perceptivos Algumas características do espaço externo ou interno (portas, janelas, móveis, objetos etc.) influenciam, com a presença ou a disposição deles, a possibilidade do verificarse ou não: comportamentos e percepções, assim como também o espaço de livre movimentação física e psicológica, a escolha da atividade, a atenção e, portanto, a aprendizagem da criança; alguns desses vínculos são, em medida maior ou menor, por causa de fatores como o comportamento do educador ou a organização das atividades educativas da creche, enquanto outros vínculos são devidos aos fatores logísticos e arquitetônicos relativos à própria escola. Por exemplo, a disposição das carteiras na sala de aula dando maior ou menor acesso à pessoa do educador ou ainda janelas muito grandes com acesso a alguma rua movimentada que acaba distraindo a atenção das crianças durante as atividades propostas. Qualidades Fisionômicas Espaços e objetos, assim como materiais e cores, não são afetivamente neutrais para a pessoa, mas podem influenciar os estados emotivos. Quanto menor é a criança, mais sensível é a esta percepção fisionômica e não é dito que ela tenha as mesmas percepções fisionômicas do adulto no confronto de certos aspectos do ambiente. Por exemplo, uma sala pintada de vermelho vai causar uma reação emotiva diferente na percepção da criança do que uma sala pintada de branco ou de azul, assim como um piso acolchoado será percebido e interiorizado de forma diversa de um piso comum. Isso tem a ver com o relacionamento da criança com esses objetos. Normalmente, todo esse relacionamento reflete a história que a criança viveu antes de entrar no relacionamento com aquele objeto. Qualidades Simbólicas Espaços e objetos do ambiente podem assumir uma função simbólico-afetiva. Os significados afetivo-simbólicos específicos que lugares, objetos e pessoas podem assumir, dependem de contexto por contexto, das experiências afetivo-cognitivas vividas pela criança; e, além disso, de uma dotação bem estudada para os jogos simbólicos que aumenta as possibilidades de enriquecer as variedades e as diferenças dos processos simbólicos. Por exemplo, um espaço protegido no qual a criança possa se refugiar assume a função de lugar de privacidade, como um ângulo da sala de aula. Agentes de Stress Definimos como stress a situação na qual o sistema psíquico é colocado sob uma pressão que leva a uma ruptura temporária ou a uma desorganização do seu funcionamento. As fontes de stress podem ser internas ou externas à pessoa; um stress psicológico prolongado pode provocar no organismo reações de condicionamentos e adaptação que absorvem quantidades relevantes de energia, atrapalhando, assim, diversos processos psíquicos (atenção, aprendizagem etc.). AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.57 A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA Fatores de stress externos e internos: estímulos físicos (barulho, temperatura etc.); estímulos sociais (multidão, agressões etc.); mudanças bruscas do ambiente (novidade etc.); mudanças fisiológicas (dor, enfraquecimento etc.); sobrecarga de estimulações (acústicas, visuais etc.). O nosso aparato psíquico funciona de modo excelente com níveis adequados (nem tão altos, nem tão baixos) de estimulações, ao passo que não tem condições de tolerar uma sobrecarga de estimulações: através da atenção se consegue focalizar uma parte do campo perceptivo em respeito ao resto, mas esta última continua a exercitar uma pressão global sobre o aparato perceptivo, causando um senso de atordoamento e de cansaço. De vez em quando, uma criança pode ser colocada em uma posição de pressão do ponto de vista psicológico, uma pressão que não lhe permite expressar um comportamento organizado. Tentem pensar, por exemplo, no momento de inserção da criança na escola materna, na creche: quando ela tem um stress, ela chora porque quer a mãe, e não tem nenhum comportamento organizado, só um desespero; é preciso antes acalmá-la para se ter um comportamento organizado com ela e por ela. As fontes de stress podem ser internas e externas. Externas pelo fato de que a mãe foi embora e interna pelo fato que imaginou uma coisa monstruosa que dá medo; podemos pensar quando temos um pesadelo. Se as fontes de stress permanecem no tempo, a criança se adapta, mas o que acontece é que esta adaptação consome muita energia, e, se a sua energia é absorvida, faltará energia para as outras funções: perceptivas, emocionais etc. Quanto mais uma criança tiver um relacionamento sereno com a mãe, mais serena ela ficará com o mundo; isso significa que os fatores de stress diminuem. O stress existe sempre, mas não temos a necessidade de um nível de stress alto. O nível de stress depende também dos interesses que a pessoa tem. Por exemplo, o interesse que a criança tem de ir para a creche; cada um tem um nível diferente do outro. • • • • • Privacidade Nas creches, existe o risco e a tendência em fazer o ambiente assumir um caráter de perda de personalidade em relação ao ambiente familiar; tal tendência é, por certas vezes, inevitáveis, mas, por outras, se pode evitar com pequenos truques. A necessidade de privacidade pode se exprimir no desejo de um espaço pessoal onde repor as próprias coisas; a redução, de fato, do espaço pessoal (parcialmente inevitável na creche) pode causar o surgimento de comportamentos específicos (intolerância, agressões etc.) ou de outras formas de incômodo. A exigência de privacidade é mais forte, quanto mais longo é o tempo que a criança passa na escola em uma situação de coletividade Existe uma relação entre as condições naturais de privacidade e a constituição do Eu, que é influenciada também pelos modos com os quais se realiza a separação do individual do ambiente social e físico; tal separação pede que a criança experimente momentos de solidão (enquanto desejada e não padecida). Um objetivo importante do desenvolvimento infantil é a conquista de autonomia; e a capacidade e a possibilidade de escolher a solidão temporária da privacidade são condições importantes para tal aquisição. A privacidade se torna, assim, uma situação necessária para reforçar o Eu e protegê-lo. Além disso, um nível mínimo de privacidade é um fator que favorece o desdobramento da fantasia e das representações que esta alimenta, como aquelas dos jogos simbólicos (por ex., uma maior proteção do ângulo da casa favorece uma permanência maior da criança nele e constitue uma ocasião para desenvolver jogos inventados mais articulados). 1.58 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA A atividade intelectual também pede pelo menos um nível mínimo de condições de proteção e privacidade. Para falar do relacionamento entre o indivíduo e o ambiente e da influência do ambiente sobre a pessoa, precisa-se ficar atento porque o ambiente não familiar tem sempre um certo caráter despersonalizado, e nós devemos ter absoluta atenção a esse aspecto quando organizamos o ambiente da creche, pois o problema está sempre entre o ambiente e a constituição do Eu da criança. Por exemplo, na escola, cada sala de aula pode ter um espaço que seja exclusivamente pessoal de cada criança, que pode ser uma gaveta, uma caixinha, um canto, um bolso, mas aquele espaço é daquela criança, é da Andrea, do Giovanni, do João..., e cada um pode usar esse espaço segundo a própria exigência. As exigências ligadas à intimidade são as exigências da pessoa que tem necessidade de que o espaço a ajude a encontrar momentos de intimidade, momentos nos quais ela pode dizer eu e meu; esses momentos são geralmente precedidos do encontro com alguém que fica à frente da criança e que diz para ela “tu“. 3. A Escola como Microambiente O espaço tem uma grande função comunicativa, que faz parte da proposta do adulto, o que nós chamamos de intencionalidade. O espaço também faz parte do conhecimento da criança, uma vez que esta percebe, identifica, interpreta, ainda que de forma não consciente, aquilo que o espaço comunica. Através do espaço, a criança constrói um mapa mental na tentativa de se ordenar e viver baseada no sentido que esse espaço tem para sua vida. Se nós tentamos imaginar uma escola, muitas vezes identificamos de maneira reduzida a escola com a sala de aula. Mas, de fato, a escola é bem mais que uma sala de aula! A escola tem percursos, tem caminhos, caminhos que levam a outros lugares: os corredores, o pátio, algumas linhas, o piso, a escola tem pontos de referência, porque estes percursos levam a a lugares bem definidos. Existem a sala de aula, o jardim, a cozinha, o refeitório, portanto, é muito interessante que uma criança interiorize o sentido de cada um desses pontos de referência e o significado que cada um tem. Há também o que poderíamos chamar de “pontos de cruzamento”, o ponto no qual vem sinalizada uma possibilidade de mudança de direção (como pode ser uma sala na qual se abrem todas as salas de aula e dali começam outros pequenos corredores, que levam a outros locais). Um espaço é delimitado – os limites são muito importantes, porque o limite determina aquilo que está dentro e aquilo que está fora. Para uma criança, aquilo que está dentro e aquilo que está fora significam aquilo que interessa a ela e aquilo que não interessa a ela, aquilo que suscita uma maravilha, aquilo que dá medo. Os limites podem também representar obstáculos que podem ou não ser ultrapassados. Além desses pontos itinerários, ponto de cruzamentos, limites, há também o que poderíamos chamar de “áreas delimitadas”. Essas áreas delimitadas são espaços onde acontecem funções específicas. É importante que uma criança possa aprender a função que cada espaço tem e que se comporte em relação à função daquele espaço; isso é importante porque significa um nível de maturidade muito mais alto. Cada espaço exige, portanto, um comportamento adequado da criança em função do sentido daquele espaço Sendo que o espaço e a pessoa se determinam reciprocamente, existem, de um lado, comportamentos que a criança deve adequar para determinado espaço e, de outro lado, espaços que devem ser adequados ao comportamento da criança. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.59 A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA Isso significa que a sala de aula é feita, de uma certa maneira, diferente da cozinha ou do laboratório, onde o ato de pintar tem seu lugar. Há uma reciprocidade de influências entre a pessoa e o espaço. O espaço é o resultado da interação entre a pessoa, a criança e os objetos que estão ali dentro. Sempre devemos nos lembrar: tudo deve ser feito de maneira tal que aconteça a verdadeira educação. A educação acontece na medida em que as pessoas ficam bem juntas, próximas; por isso, o espaço não pode ser um elemento neutro no contexto. Isso é verdadeiro na escola, mas é verdadeiro sobretudo na creche. Para uma criança, existe uma exigência de poder controlar o espaço, reconhecendo-o e comparando-o com o que ela já conhecia. Outra exigência é a de reestruturar, reorganizar o espaço, submetê-lo à iniciativa da criança. Ou seja, é interessante identificar quanta liberdade de movimento existe dentro da sala de aula, porque isso é uma forma de ver como a criança tomou posse desse espaço e sabe utilizar-se deste espaço, que, em última instância, é seu. Através do modo como a criança se move em um espaço, podemos identificar o quanto ela se percebe livre neste espaço. É importante ter presente isso, porque um ambiente pode assumir uma função afetiva, como, por exemplo, acontece quando as crianças querem construir tocas, porque isso expressa a necessidade de intimidade, mas também a construção de um espaço simbólico que ajuda a criança a construir e a enriquecer suas funções intelectuais. Uma criança possui seu espaço não apenas através do conhecimento de tipo intelectual; o domínio vem através do olhar, observar, de se relacionar e ver outros se relacionando dentro desse espaço, da exploração, da descoberta, da ação dirigida ao espaço, que é o brincar. Através de todas essas atividades, uma criança chega a possuir aquele espaço e cada criança tem sua maneira específica: existem crianças que se colocam num canto e olham, outras entram e começam a correr para cá e para lá para tratar de possuir o espaço, outras pedem a mão da educadora para poderem entrar dentro deste espaço. Uma coisa que se pode fazer é organizar o espaço de maneira que a criança chegue a possuir o espaço e, através disso, possa desenvolver uma experiência, enfim, uma vida. Tenhamos presente que a questão fundamental é tentarmos organizar um espaço onde possa acontecer uma experiência educativa, ou seja, de crescimento da criança e tentarmos fazer isso através da criação de condições favoráveis à construção de um bom relacionamento entre a criança e o adulto. Veremos que existe uma grande correspondência entre a maneira de organizar o espaço e o relacionamento que acontece entre o adulto e as crianças. A atenção agora deverá voltar-se para o espaço da sala de aula, enquanto microambiente mais próximo à criança, não para superestimar tal ambiente, nem para criar uma concepção de que a sala de aula deve ser separada do resto da creche; de fato, a sala é parte de um ambiente global e de uma concepção e organização pedagógica global, que também determina, através do uso dos espaços, algumas características essenciais do ambiente educativo. Existem três tipos de organização em sala de aula. O primeiro modo de organização caracteriza-se por ter todos os armários bem encostados nas paredes. No centro, temos todas as mesinhas, cada criança possui a sua mesa e a sua cadeira. Em um dos cantos, podemos ver a mesa do professor; dentro dos armários, o material que só o professor utiliza, ao qual só o professor tem acesso. Nessa situação, é claro que a centralidade é do professor, ele distribui as tarefa todas iguais para cada uma das crianças e nenhuma delas tem possibilidade de utilizar o material 1.60 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA Organização 1 de maneira autônoma. Esta é uma situação típica da escola primária. Neste tipo de sala de aula, não pode acontecer uma brincadeira, não existe um espaço para o brincar, o espaço depende da atividade que se desenvolve; por isso, a centralidade é do professor e da atividade desenvolvida, uma atividade guiada pelo professor. O único espaço que a criança tem é o externo, onde, com certeza, ela pode brincar, mas onde o brincar tem uma função de desabafo. Ela acumula “energias tóxicas” que devem ser expelidas em qualquer lugar. O brincar fica justamente com essa função, como desabafo. O espaço é propriedade do professor e todas as crianças deverão fazer a mesma coisa. Não têm a possibilidade da personalização. A preocupação fundamental do professor é aquela de poder controlar tudo. Contudo, anteriormente falamos que o espaço tem a função de contenção – aquela função também de proteção –, mas aqui essa função de proteção é totalmente reduzida ao controle do adulto. O adulto acredita que pode ter, ao mesmo tempo, tudo sob o seu olhar, este controle é a única contenção possível. Aqui, fica muito evidente a onipotência do adulto. Parece que a única coisa que tem valor é o projeto que aquele adulto tem para aquela criança; depois, com certeza, cada um faz o seu desenho, a única “quase liberdade” que a criança possui neste espaço. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.61 A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA Organização 2 Aqui, nós podemos ver uma situação um pouco diferente: os espaços ficam um pouco mais articulados, basicamente esses espaços são parcialmente estruturados, existem alguns lugares, a casinha, a cozinha, um tapete para assentar e ler algum livro, mas as mesas não estão integradas com o espaço, são colocadas de lado, de modo tal que aqui acontecem as atividades importantes e, quando alguém fica cansado da atividade, pode ir para o seu canto para fazer uma atividade prazerosa. O brincar é introduzido dentro da sala de aula, mas na consciência do professor o brincar ainda fica “ao lado”. Este tipo de brincar espontâneo da criança acontece na ausência do adulto, porque esse adulto centraliza as verdadeiras atividades. Existe ainda uma difícil integração entre o adulto e a criança e entre as atividades estruturadas e o brincar. Não há, de fato, um encontro verdadeiro entre estes dois elementos, um se coloca ao lado do outro, o adulto ao lado da criança, a atividade ao lado do brincar. Nesta terceira situação, o espaço fica mais integrado. É um espaço delimitado em áreas diferentes; as mesinhas estão integradas dentro do espaço e cada espaço tem a sua função. Aqui, o tapete serve tanto para ler quanto para momentos comuns. No momento da atividade estruturada, reúnem-se as mesinhas, bem como com os armários que devem conter todo o material. As atividades precisam ser realizadas em conjunto, aí a casinha sempre serve de casinha, não existe mais a mesa do professor. O fato fundamental é que o espaço se integrou, o professor perdeu a preocupação de cobrar, de controlar. Se o professor fica no tapete, não pode ver os outros que estão perto, não tem tudo sob o seu olhar, sob o seu controle, mas ele utilizou o espaço para realizar uma contenção. Deu à 1.62 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA criança a possibilidade de desenvolver algumas atividades, segundo o interesse delas. O professor irá acompanhar aquelas crianças, baseando-se na observação. Ele poderá acompanhar as crianças no momento da manipulação para ficar mais perto de uma criança. O projeto pedagógico do professor se integra, neste último exemplo, com o projeto de vida das crianças, se desenvolve dentro desse relacionamento. Também, neste último exemplo, o brincar se tornou o interesse do adulto e da criança; isso significa que o brincar foi valorizado no seu sentido afetivo, intelectual e cognitivo. Os espaços e a organização dos espaços têm simplesmente a função última de sustentar esse novo tipo de relacionamento. A criança possui um projeto de vida que tem um valor e este projeto de vida é assumido Organização 3 pelo professor que usa todos os instrumentos para sustentar isso, para suportar isso. Aqui, é interessante ver como é útil uma idéia do psicólogo russo Vygotsky (18961934), que fala de zona de desenvolvimento potencial; poderíamos falar também de aprendizagem potencial. Significa que uma criança alcança alguns níveis na aprendizagem, mas chega a um ponto em que fica evidente a necessidade de um adulto que a ajude a fazer este passo, que a ajude a ver aquele laço entre aquela brincadeira e uma outra possibilidade. Fazendo deste modo, o adulto ajuda a criança a crescer. Referências Bibliográficas BRONFENBRENNER, U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Tradução Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. COEREZZA, M. Apostila do Curso de Formação para Formadores. Belo Horizonte: AVSI, 2001. (mímeo) AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.63 A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA Anexo ESPAÇOS NECESSIDADES MATERIAIS PAPEL DO ADULTO Expressão gráficopictórico • Exprimir-se através do uso de técnicas não verbais (desenho, pintura, retalho); • Papel branco e colorido de diversos tamanhos e formas, papelões, toalhinhas, canetinhas de ponta fina e grossa, giz de cera, lápis de cor, tesoura, cola, revistas, figuras recortadas, quadro que se apaga com canetas ou à álcool, moldes, feltros, papéis adesivos, tintas guache, canetas, esponjas, papel toalha, garrafas de vidro, material de reciclagem. • Apresentação do material e o do seu uso correto; • Motricidade fina; • Criatividade. Manipulação • Conhecimento e exploração; • Movimento fino; • Criatividade. Construção com terra e material de encaixar • Socialização; • Exploração e conhecimento das propriedades dos objetos; • Projeção. • Socialização Material (respeito das estruturado regras e dos e de turnos); encaixe • Exploração e conhecimento da área cognitiva; • Movimentos finos. • Ajuda verbal no momento de atividade guiada. • Massa de modelar, argila, • Intervenção de tabuleta de madeira, sustento durante a equipamentos para trabalhar, atividade. papel toalha, material de reciclagem. • Lego, pecinhas de madeira, • A intervenção do cidade e ferrovia de madeira, adulto é oportuna garagem com carros, quando as encaixes de plástico, peças construções da grandes de plástico. criança se tornam repetitivas por um tempo prolongado. O adulto oferece à criança dicas para novas construções, com o objetivo de instruí-la ao jogo comum e colaborativo, desenvolvendo a própria criatividade no grupo. • Bingo, jogo da memória, dominó, quebra-cabeça, jogo de encaixe, preguinhos com tabuletas, Lego, pérolas de madeira, animais de plástico e de borracha, lousa com letras e formas magnéticas, cidade de encaixe, fechos. • O papel do adulto é aquele de condutor da atividade, inicialmente é continuamente presente. (continua na próxima página) 1.64 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA ESPAÇOS NECESSIDADES MATERIAIS PAPEL DO ADULTO Jogos em miniatura • Segurança; • Bonecas com móveis e roupas, vários acessórios, jóias. • Intervenção indireta da parte do adulto (observação); • Motricidade fina; • Socialização; • Intervenção direta se solicitada pela criança. • Necessidade de representação. Maleáveis • Segurança e proteção; • Relaxamento; • Descoberta; • Grande tapete emborrachado, colchões, fantoches de borracha, pelúcia, cestas cheias de “tesouros”. • Inicialmente o adulto é o ponto de referência e coordena os jogos. • Individualização; • Movimento global. Da Família • Segurança; • Para o recém-nascido: arrinho e assento de bebê, • Reviver as vivências fraldas, bonecas, pratinhos, e os papéis talheres, mamadeira, familiares (alegrias copinhos acessórios para a e conflitos) para higiene, lençóis, cobertas, elaborar-lhes meias, bonés, macacões, …, novamente; pelúcia anti-alergica, • Imitar; joguinhos vários,… • Para a mamãe: vestidos, • Recitação; saias, camisas, lenços, • Identificação; cachecol, luvas, jóias, bolsas, cintos, sapatos, … • Socialização. • Para o papai: camisas, colete, cinto, gravata, paletó, sapato, maleta (de escritório), … Casinha • Segurança; • Móveis (fogão, geladeira, pia) e acessórios, mesa, • Socialização; cadeiras, pratos, copos, • Viver as vivências talheres, taças, Tábua de dos seus familiares; passar com ferro, caminha, espelho, telefone. • Imitação; • Identificação dos papéis; • Segurança; • Individualização; • Conhecimento através das imagens. • Intervenção intencional; • Intervenção de observação; • Dramatização. Leitura • O adulto se insere no grupo para oferecer modelos de comportamento e diversas propostas de jogo (organização dos papéis). • Livros só com imagens para crianças de 3 anos; livros com imagens e palavras para as crianças de 4 e 5 anos; livros com as formas e livros que favoreçam o desenvolvimento perceptivo. • Intervenção sob pedido da criança. (continua na próxima página) AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.65 A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DA ECOLOGIA PSICOLÓGICA ESPAÇOS NECESSIDADES MATERIAIS Objetos para uso pessoal • Segurança; • Coleção de objetos, pequenos jogos “de transição” a disposição da criança segundo a necessidade. • Individualização. Escrivaninha • Segurança; e armário • Individualização. • Objetos administrativos; Espaços murais • Painel de “comunicações sociais” (calendário) no qual se oferece às crianças a possibilidade de formalizar muitos momentos de vida social e extra- escolar utilizando fotografias, símbolos/sinais, desenhos que permitem às crianças tornarem-se conscientes do tempo que passa e dos significados comunicativos dos quais são portadores; • Comunicação; • Informação. PAPEL DO ADULTO • Objetos de uso exclusivo do adulto. • Intervenção intencional; • Intervenção de observação; • Intervenção sob pedido da criança. • Painel de desenho espontâneo; • Painel “a imagens” no qual se privilegie a atividade gráfico-pictórica com propostas de técnicas diversas (mesmo sujeito, representado em diversos modos, por cada criança). Tempos de utilização • No início do ano existe verdadeiramente uma organização dos espaços, e as educadoras: - apresentam o novo material; - guiam as crianças para usarem os espaços de modo adequado; - interagem com elas para incentivar a aprendizagem e garantir a segurança; - projetam as atividades de pequenos grupos (3-4 crianças por vez); - se asseguram que as crianças sejam envolvidas, no que for possível, em todos os aspectos das atividades; • Em seguida, o programa diário não inclui tempos pré-estabelecidos para o jogo livre, se introduzem atividades programadas nos momentos oportunos, deixando “a rodízio” liberdade às crianças não empenhadas a dedicar-se às diversas atividades; • Único espaço utilizado uma vez por semana é o salão para a psicomotricidade. 1.66 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI EDUCAÇÃO INCLUSIVA A EDUCAÇÃO INCLUSIVA A inclusão de crianças com necessidades especiais na escola regular de ensino insere-se no âmbito das discussões referentes à integração de pessoas portadoras de deficiências enquanto cidadãos, com seus respectivos direitos e deveres de participação e contribuição social. Segundo Santos (2001), a discussão sobre inclusão vem sendo veiculada sob a forma de Declarações e Diretrizes Políticas pelo menos desde 1948, quando foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Entretanto, no que diz respeito aos vários cenários em que tais princípios de participação e direitos humanos se inserem, incluindose o educacional, ainda há muito a ser esclarecido e discutido a respeito das diferentes conotações que a inclusão possa assumir. 1. Uma longa História em defesa de oportunidades iguais para todos O histórico apresentado abaixo nos revela que a discriminação e a exclusão de pessoas com necessidades especiais, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, vem de longa data. Embora a forma de olhar essas pessoas tenha sofrido transformações – o que é considerado um grande avanço – e haja leis como a LDB 9394/96, que prescreve que as crianças com necessidades especiais têm direito a uma educação de qualidade junto às “normais”, na prática essa luta ainda vai longe, devido à natureza excludente da nossa sociedade. (Ver tabela na próxima página) AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.67 EDUCAÇÃO INCLUSIVA Até o Século XV Século XVI ao XIX Século XX Anos 60 Crianças deformadas eram jogadas nos Esgotos da Roma Antiga. Na Idade Média, deficientes buscam abrigo nas igrejas. Na mesma época os deficientes ganham a função de bobos da corte. Pessoas com deficiências continuam isoladas do convívio com a sociedade, porém em asilos, conventos e albergues. Surge o primeiro hospital psiquiátrico na Europa, mas todas as instituições dessa época não passam de prisões, sem tratamento especializado nem programas educacionais. Os portadores de deficiência passam a serem vistos como cidadãos de direitos e deveres de participação na sociedade, mas sob uma ótica assistencial e caritativa. Pai e parentes de deficientes organizam-se. Surgem as primeiras críticas à segregação. Teóricos defendem a adequação do deficiente à sociedade para permitir sua integração. Anos 70 1978 Anos 80 e 90 1988 Os Estados Unidos avançam nas pesquisas e teorias de inclusão para proporcionar condições melhores de vida aos mutilados de Guerra do Vietnã. Pela primeira vez, uma constituição brasileira trata do direito da pessoa deficiente: “É assegurada aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante educação especial e gratuita.” Declarações e tratados mundiais passam a defender a inclusão em larga escala. Em 1985, a Assembléia Geral das Nações Unidas lança o Programa de Ação Mundial para as pessoas Deficientes: “quando for pedagogicamente factível, o ensino de pessoas deficientes deve acontecer dentro do sistemas escolar normal.” No Brasil, o interesse pelo assunto é provocado pelo debate antes e depois da Constituinte. A nova Constituição, promulgada em 1988, garante atendimento educacional especializados aos portadores de deficiência preferencialmente na rede regular de ensino. Martinho Lutero defendia que deficientes mentais eram seres diabólicos que mereciam castigo para ser purificados. - Educação inclusiva tem início naquele país via lei 94142, de 1975, que estabelece a modificação dos currículos e a criação de uma rede de informação entre escolas, bibliotecas, hospitais e clínicas. - 1948 Declaração dos Direitos Humanos. “Todo ser humano tem direito à educação.” - A Educação Especial no Brasil aparece pela primeira vez na LDB 4024, de 1961. A lei aponta que a educação dos excepcionais deve, no que for possível, enquadrar-se no sistema geral de educação. (continua na próxima página) 1.68 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI EDUCAÇÃO INCLUSIVA 1989 1990 1994 1996 A lei federal 7853, no item da educação, prevê a oferta obrigatória e gratuita da Educação Especial em estabelecimentos públicos de ensino e prevê crime punível com reclusão de um a quatro anos e multa para os dirigentes de ensino público que recusarem e suspenderem, sem justa causa, a matrícula de um aluno. - A Conferência Mundial sobre Educação para todos, realizada na Tailândia, prevê que as necessidades educacionais básicas sejam oferecidas para todos pela universalização do acesso, promoção da igualdade, ampliação dos meios e conteúdos da Educação Básica e melhoria do ambiente de estudo. Dirigentes de mais de oitenta países se reúnem na Espanha e assinam a Declaração de Salamanca, um dos mais importantes documentos de compromisso de garantia de direitos educacionais. Ela proclama as escolas regulares inclusivas como o meio mais eficaz de combate à discriminação. A Lei de Diretrizes e Bases, 9394, se ajusta à legislação federal e aponta que a educação dos portadores de necessidades especiais deve darse preferencialmente na rede regular de ensino. - o Brasil aprova o Estatuto da Criança e do Adolescente, que reitera os direitos garantidos na Constituição: atendimento educacional especializado para portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. 2. O desafio de uma sociedade democrática A partir da LDB 9394/96, a Escola Fundamental se viu diante do desafio de incluir alunos com necessidades especiais (deficientes mentais, crianças com limitações sensoriais ou neurológicas etc.) no seu quadro escolar. Diante desse desafio, faz-se necessário desenvolver uma prática pedagógica centrada no aluno e capaz de educar com sucesso as crianças com necessidades educativas especiais. Mas quem é esse aluno? Qual é o seu nível de comprometimento cognitivo? Como trabalhar essa necessidade? Como proporcionar espaços e tempos que atendam às limitações das crianças com necessidades especiais? Para responder a essas questões, é necessário que os profissionais das “escolas regulares” se interajam com o objetivo, ou seja, entrem em contato, acolham a criança com necessidades especiais, para que, dessa forma, possam construir uma proposta pedagógica que atenda a todos — crianças especiais e crianças “normais”. Historicamente, a “escola regular” sempre exerceu seu papel de forma segregadora. Será que nos dias de hoje essa escola está preparada para cuidar, integrar, AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.69 EDUCAÇÃO INCLUSIVA reconhecer, relacionar-se com as crianças (e pessoas de um modo geral) com necessidades especiais? (Macedo, 2002). O fato de uma criança com alguma deficiência estar inserida num grupo torna a escola inclusiva? E o que torna a criança deficiente? Estas questões vêm nos dar a oportunidade de refletir e agir em busca de uma ação educativa comprometida com a formação da sociedade democrática. Pois, “o que é debilidade senão uma característica valorizada negativamente em função de norma de deficiência que lhe serve de padrão?” (Lobo, 1992, p. 113). Deficiente é aquele que não é eficiente; esta visão de deficiência desconsidera o sujeito na sua singularidade e possibilidade. Não a possibilidade enquanto “sucesso” (aquele a quem é possível produzir), mas condição própria de existir, de ser no mundo. Portanto, a forma de conceber o sujeito é que vai definir a deficiência e seu impacto existencial. Enquanto a deficiência for tratada como ineficiência, a diferença de aprendizagem será vista como incapacidade. Assim, a ação inclusiva e integradora é necessária, porém, é preciso ter muito cuidado, pois atrás do discurso pode persistir a discriminação, porque a visão que, muitas vezes, se tem da criança deficiente é de comprometimento e restrição. É preciso ouvi-la no que ela tem para dizer, mesmo que sejam palavras incompreensíveis, o esforço da compreensão é tarefa do educador. Compreendê-la no seu fazer, dando suporte para que avance no seu processo de aprendizagem. Como diz Lucas (2001): Pode ser que em uma escola regular essa criança não atinja os patamares das séries e dos objetivos a serem alcançados, que não atenda às expectativas socialmente aceitas e estabelecidas. Mas essa criança teria a vantagem de estar convivendo num espaço social diverso, rico e estimulante, o que seria muito útil para a interação social. Isso seria no mínimo o que poderíamos alcançar ou propiciar a essa criança (p. 30). É preciso fazer retificações sobre o olhar que dirigimos a todos aqueles que se diferenciam dos demais. A expectativa que se cria sobre cada aluno faz com que vejamos somente limites, enquanto que uma mudança neste olhar torna possível, não a negação das dificuldades, mas o reconhecimento das particularidades do sujeito da aprendizagem, dando oportunidades de ver nas limitações as possibilidades. Pois “toda criança é capaz, tem um potencial a ser desenvolvido, desde que respeitada a especificidade de cada uma, dadas as condições necessárias e estabelecido um vínculo afetivo entre os envolvidos” (Lucas, 2001, p. 30). Hoje, não podemos mais nos fechar numa crença de padronização e educação homogeneizada. A realidade é diversa e é nesta diversidade que atuamos e devemos atuar oferecendo um espaço, onde o coletivo não seja tratado como uniformidade, mas como multiplicidades e singularidades. Oportunizar que o educando interaja é criar um espaço inclusivo. Vygotsky já nos disse da importância da interação social, o quanto o meio é propiciador de aprendizagem, o quanto o confronto com as diferenças é para todas as crianças fator de grande importância formadora. Assim, fica o desafio à escola inclusiva, na qual a criança deva ser o centro norteador do processo, assistida por uma pedagogia que dê conta da diversidade, reconhecendo nas diferenças a possibilidade e a não padronização do ensino, desapropriando-se dos modelos reprodutivistas, pois o sujeito enquanto diferente construirá na relação com o outro o saber próprio e não mais escreverá como modelo. Contudo, de acordo com Lucas (2001), “a inclusão na escola regular não resolverá a questão da necessidade da criança, visto que é um problema real, clínico e objetivo. E que o trabalho dos profissionais em educação não é suficiente para a inclusão, se a sociedade não se preparar para receber essa criança; ou seja, não podemos ser ingênuos a ponto de acreditar que uma lei resolve a questão” (p. 31). 1.70 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI EDUCAÇÃO INCLUSIVA Referências Bibliográficas BARALDI, Clemência. Aprender – a aventura de suportar o equívoco. Tradução Nancy Barros de Castro Faria. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. LOBO, Lilia Ferreira. Deficiência, prevenção, diagnóstico e estigma. In: RODRIGUES, H. B. C. et al. (Org.). Grupos e instituições em análise. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. p. 113-126. LUCAS, Andréa da Cruz. O desafio da educação inclusiva. Revista Criança, n. 35, p. 30-31, dez. 2001. MACEDO, Lino. Fundamentos para uma educação inclusiva. Educação on-line, jun. 2002. MRECH, Leny Magalhães. Educação inclusiva: realidade ou utopia? Educação on-line, jan. 2001. OLIVEIRA, Marta Khol de. Vygotsky – aprendizado e desenvolvimento, um processo histórico. São Paulo: Scipione, 1995. SANTOS, Mônica Pereira dos. A inclusão da criança com necessidades educacionais especiais. Educação on-line, jan. 2001 STAINBACK, Susan; STAINBACK, William. Inclusão – um guia para educadores. Tradução Magda França Lopes. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.71 A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA 1. Um Breve Histórico sobre a Criação de Creches e Pré-Escolas no Brasil A discussão sobre a identidade da educação infantil tem constituído um tema desafiador para aqueles que têm se dedicado a ela como objeto de estudo, mas também para os que lutam e reivindicam o seu reconhecimento como direito das crianças brasileiras e de suas famílias. A educação infantil surgiu num contexto de mudanças sociais, políticas e econômicas profundas que ocorreram na Europa no final do século XVIII, que foram consolidando novos arranjos sociais e encaminhando novas compreensões acerca dos papéis dos sujeitos e das instituições da sociedade. No Brasil, as instituições destinadas a proteger a criança começaram a ser criadas de fato a partir de 1940, para atender às novas exigências de uma sociedade urbanoindustrial. As creches “nasceram” ligadas às áreas de saúde e assistência social, como integrantes de uma política de proteção à maternidade e à infância, com o objetivo de combater a pobreza e a mortalidade infantil e destinadas a atender mulheres trabalhadoras, abandonadas ou viúvas, ou para atender crianças, cujas mães eram julgadas incompetentes. A creche era destinada também às crianças “desvalidas”, ou seja, que viviam em famílias desorganizadas. Nessa concepção, para o poder público, o atendimento era baseado na assistência. Assim, o qual a creche não era considerada um direito, mas uma caridade dos filantropos, pois as iniciativas de atendimento assistencial às famílias pobres eram de entidades privadas, cabendo ao poder público apenas o papel de supervisão e repasse de verbas a essas entidades. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.73 A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A ação do Estado na área de creches, desenvolvida desde a década de 40, caracterizou-se pela execução indireta, na forma de associação com instituições particulares de caráter filantrópico, leigo ou confessional, tanto o DNCr como a LBA funcionavam como órgãos repassadores de recursos para essas instituições (Vieira, 1988, p. 4). Nesse cenário, concordamos que muitas entidades foram criadas para responder à grande necessidade, principalmente de mães trabalhadoras que não tinham um lugar seguro no qual deixar os filhos durante as horas de trabalho, prestando, dessa forma, um serviço assistencialista. No entanto, segundo Kuhlmann Jr. (1991), estudos realizados indicam que, no fundo, essas já carregavam na sua estrutura uma motivação educativa. Assim, ao estabelecer que a criança de 0 a 6 anos tem direito à educação infantil, a LDB 9394/96 não só reconheceu a necessidade apresentada por estudos teóricos realizados, mas reconheceu também a prática de educar e cuidar que já vinha sendo desenvolvida por muitas entidades, comprovando a importância de se investir na educação desde os primeiros anos de vida. De acordo com Kuhlmann Jr. (1991), o privilegiamento às concepções de natureza assistencialista não foi uma constante na história das creches no Brasil, pois alguns estudos realizados apontam momentos, localizando, primeiro, um atendimento de origem médico-higienista; depois, um atendimento assistencial e, finalmente, “culminando nos dias de hoje, na etapa educacional, entendida como superior, neutra ou positiva” (Kuhlmann Jr., 1991, p. 18). Nesse último momento, toma-se o pedagógico como um modelo ideal. 2. Educação Infantil, um Direito da Criança Até a Constituição Federal de 1988, a criança era vista pelo Estado como uma figura de cuidado, amparo e assistência e não como uma figura de direito, como asseguram a Constituição e a LDB, hoje. No entanto, segundo Cury (1998), esse ser de direito vinha sendo construído desde a LDB 4.024/61. Ao fazer uma referência muito discreta em relação à educação infantil, essa lei dizia que a educação pré-escolar se destinava aos menores de sete anos de idade que deveriam ser atendidos em jardins de infância e escolas maternais. Essa mesma lei previa também que empresas que empregavam mulheres com filhos em idade pré-escolar deveriam organizar ou manter esse tipo de educação, diretamente ou em cooperação com o poder público. Essa lei já dizia também da necessidade de o professor ter o curso normal. Posteriormente, a LDB 5692, promulgada em 1971, manteve o que a 4.024/61 rezava e reforçou que as empresas organizassem e mantivessem instituições de educação infantil para os menores de sete anos, filhos de suas funcionárias. A contribuição mais valiosa que garante às crianças o direito à educação infantil, foi introduzida pela Constituição de 88 que, através do artigo 208, inciso IV, diz que a oferta da Educação Infantil é dever do Estado e deve ser garantida a crianças de 0 a 6 anos em creches e pré-escolas. A Constituição define a educação infantil como direito da criança e uma opção da família. Assim, ao determinar como obrigação do Estado o atendimento a essa “nova” modalidade de ensino, provocou um considerável desenvolvimento de políticas públicas para essa faixa etária. Novos programas e ações tiveram que ser desenvolvidos, destinandose a uma clientela diferente: “crianças e família de direitos”. O Eca (Estatuto da Criança e do Adolescente, aprovado em 1990) veio reconhecer legalmente essa criança de direito e o adolescente como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento, servindo de base para a construção de uma nova forma de se olhar a criança. 1.74 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA 2.1. Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB 9394/96 A LDB 9394/96 representa o mais recente avanço no atendimento à Educação Infantil. Com base nessa lei, essa “nova” modalidade de ensino foi integrada ao sistema educacional como a primeira etapa do ensino fundamental, de acordo com o artigo abaixo: Art. 21 – A educação escolar compõe-se de: I – educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II – educação superior. Nesse artigo da lei, ficou bem claro que a educação infantil é parte integrante do sistema de ensino. A lei reconhece que as creches e pré-escolas desempenham um papel importante no desenvolvimento e educação das crianças de 0 a 6 anos, portanto, devem estar integradas aos sistemas municipal ou estadual de ensino (art. 89), para que todas as crianças sem distinção possam ter acesso a essas instituições. Art. 29 – A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. A LDB 9394/96 reconhece a necessidade de uma proposta cujo objetivo seja claramente o desenvolvimento integral das crianças. E chama a atenção para uma questão essencial, que é o papel da família, pois a creche ou pré-escola não substitui a educação familiar, mas a complementa. Outra questão importante apontada pela LDB 9394/96 é a formação dos educadores que irão atuar na educação infantil, pois, até a promulgação dessa lei, “qualquer” pessoa poderia estar atuando nessas instituições, principalmente em creches, nas quais o objetivo maior era o de cuidar das crianças, mas, agora, com a proposta de educar e cuidar, segundo o art. 62, a situação mudou: A formação dos docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e instituições superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal. Esse artigo é o mais problemático, pois, diante do quadro de profissionais existente, principalmente dos que atuam nas creches, muitos não têm sequer a formação de nível fundamental, e possibilitar que esses educadores consigam a formação mínima que é o magistério está sendo um desafio, pois, embora exista um grande empenho do poder público e até de órgãos privados, ainda são poucas as instituições que oferecem cursos de formação para educadores infantis. No entanto, avalia-se essa exigência como um ganho, dada a importância alcançada pela educação infantil, que, como primeira etapa da educação básica, passe a exigir um profissional mais qualificado. Além disso, há um ganho em relação ao próprio profissional que passa a pertencer a uma categoria que, como tal, pode exigir seus direitos. Trata-se também de um ganho para o principal beneficiado da educação infantil – a criança – que passa a ser atendida por um profissional mais valorizado e supostamente mais qualificado para o trabalho. Outro aspecto fundamental é a formação continuada em serviço (um espaço, dentro do horário de trabalho, para uma formação permanente). É preciso formar o educador através das observações, discussões e reflexões sobre suas ações cotidianas na creche ou pré-escola. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.75 A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA De acordo com art. 30 da LDB 9394/96 – “a educação infantil deverá ser oferecida em: I) creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II) préescolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade”. Assim, a lei abre a possibilidade de discussão sobre o nome e o tipo de instituição em relação ao nível de ensino e às classes sociais. Creche pública ou particular é a instituição para crianças de 0 a 3 anos e pré-escolas privadas ou públicas para crianças de 4 a 6 anos de idade. Dessa forma, a lei rompe com a prática usual e preconceituosa em relação às creches que até hoje são vistas como instituições de caridade, assistencialistas, localizadas em bairros pobres, que atendem a crianças que têm família de baixa renda. Dessa forma, a lei tenta garantir que tanto as creches particulares, quanto as públicas tenham um mesmo nível de qualidade, fazendo valer o direito de cidadania. A nova LDB 9394/96 traz elementos que, de certa forma, garantem o que foi conquistado na Constituição de 1988, em relação ao atendimento educacional às crianças de 0 a 6 anos. Esses ganhos são significativos, entretanto, há muitas limitações em relação ao destino dos recursos financeiros para a demanda existente. Por isso, ainda há muito o que se discutir sobre o rumo que se dará à educação infantil, e é somente com o esforço de todos que se poderá concretizar propostas, visando a um atendimento de qualidade às crianças. 3. Formação dos Fóruns de Educação Infantil Os fóruns, organizados em níveis estaduais, municipais e regionais, têm se constituído em espaços de socialização das leis vigentes e das ações governamentais em andamento, bem como em momentos privilegiados de discussão e reflexão sobre os diferentes aspectos e desafios relacionados à educação infantil. Alguns assuntos discutidos foram: • Regulamentação e Integração: integração das instituições de educação infantil públicas e privadas ao sistema de ensino (prevista no art. 89 da LDB). É uma ação complexa, pois não se reduz apenas à normatização ou regulamentação, trata-se de como o município vai equacionar o funcionamento compatível com a sua demanda; a formação de seus profissionais; o currículo de suas instituições; o atendimento às necessidades por faixa etária etc. Esses aspectos envolvem muitos direcionamentos dados pela política nacional. Cabe aos municípios se posicionarem através da lei municipal, com relação a um sistema próprio de ensino ou à vinculação ao sistema estadual de ensino. • Financiamento: Um dos grandes desafios é a definição de dotação orçamentária específica para a Educação infantil, uma vez que os recursos destinados a esse nível estão incluídos nos 10% restantes, após a aplicação no Ensino Fundamental (“disputa entre o roto e o esfarrapado”). Isso evidencia a falta de recursos destinados à Educação Infantil. As discussões caminham para a criação de um fundo específico como o que já existe para o Ensino Fundamental (FUND). • Repasse de recursos: Outra discussão refere-se ao repasse dos recursos, como os que são previstos nos Planos Plurianuais. Sendo as creches e pré-escolas parte do sistema de ensino, como está regulamentado pela LDB e também instituições de educação e cuidado, elas exigem necessariamente uma integração entre educação e assistência. Nesse sentido, as verbas previstas para os órgãos responsáveis pela Assistência, 1.76 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA tais como Previdência Social, conselho Nacional e Estadual, precisam estar articuladas de forma a buscar uma eficácia na aplicação. • Formação dos profissionais que atuam diretamente com as crianças Levando-se em conta a realidade nacional, temos um número siginificativo de profissionais que atuam na Educação Infantil. Assim, torna-se urgente a discussão de como organizar a formação dos profissionais das creches. A lei aponta alguns caminhos que merecerão uma maior normatização, com a criação dos Institutos Superiores de Educação, do Curso Normal Superior, da capacitação em serviço etc. Para um atendimento de qualidade, é necessário garantir tanto a educação prévia, como aquela realizada continuamente durante o exercício da profissão. 4. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil Este é um documento oficial (COEDI-MEC, 1998), elaborado por iniciativa do MEC. Sua proposta é servir de base para a produção de programações pedagógicas, planejamentos e avaliações em instituições e redes dos municípios. É muito importante que todos os educadores conheçam o seu teor, pois ele orienta sobre os aspectos mais relevantes na busca de um atendimento de qualidade na educação infantil, demostrando, através de exemplos, diversas formas de organizar, conduzir e avaliar o trabalho junto às crianças e famílias. É apenas um referencial, pois cada município e cada instituição deverá elaborar a sua proposta pedagógica de acordo com as características de sua realidade. 5. Considerações Finais A educação infantil faz parte de um sistema de idéias, um raciocínio que nem sempre existiu. A categoria “infância” e as operações correlatas à sua constituição como fenômeno social nos levam a pensar que as instituições de educação infantil se encontram precisamente num ponto de interseção entre conhecimento e poder. A invenção desta nova categoria corresponde também a novas formas de intervenção social para seu controle e regulação. As propostas para a educação infantil, em seu eixo político, se definem por seu caráter democrático, não discriminatório — propondo atingir a todas as crianças — e por sua pretensão emancipatória, uma vez que o acesso aos bens culturais não só funcionaria como equalizador como permitiria a libertação dos sujeitos infantis dos liames da injustiça e da opressão. No entanto, a educação infantil ainda é vista como compensadora, como conseqüência de uma mudança na organização social, constituindo-se, assim, como uma ajuda familiar muito mais próxima à criação do que à educação e servindo, também, de “ante-sala” à educação sistemática, dentro de uma modalidade intermediária entre o jogo e a aprendizagem, na qual a função educativa específica dos estabelecimentos infantis ainda não está claramente estabelecida. Através das leituras realizadas, concordamos que ocorreram grandes avanços no atendimento da educação infantil, numa conjunção de 3 fatores: 1) um intenso aumento da demanda; 2) a construção de conhecimentos sobre o desenvolvimento da criança e da educação infantil; e 3) sobretudo, o surgimento de políticas públicas na área. Contudo, faz-se necessário tornar a educação infantil mais transparente e participativa com o estabelecimento de políticas públicas mais desafiadoras e construtivas. Acreditamos que é preciso o envolvimento de todos para que a educação de crianças de 0 a 6 anos em espaços coletivos possa cumprir a sua função de educar e cuidar. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.77 A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Referências Bibliográficas ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Referencial curricular nacional para a educação infantil – documento introdutório (versão preliminar). Secretaria de Educação Fundamental. Brasília, 1998, 82 p. BUJES, Maria Isabel Edelweiss. O pedagógico na educação infantil – uma releitura. Educação OnLine, 2002. Acesso em: ago. 2002. CAMPOS, Maria Malta. Educar e cuidar – Questões sobre o perfil do profissional de educação infantil. In: Por uma política de formação do profissional de educação infantil. Brasília: MEC/SEF/ DPE/COEDI, 1994. CARVALHO, Alysson et al. (Org.). Políticas públicas. Belo Horizonte: UFMG, 2002. CNE, Resolução CEB 1/99. Diário Oficial da União, Brasília, 13 de abril, 1999. Seção 1, p. 18 CURY, Carlos Roberto Jamil. A educação infantil como direito. Credenciamento de Instituições Infantil, Brasília, v. 2, maio, 1998. DIAS, Regina Celia. Luta, movimento, creche: a história da conquista de um direito. In: Creches comunitárias: histórias e cotidianos. Belo Horizonte: AMEPPE, 1997. p. 19-41. KUHLMANN Jr., Moysés. Instituições pré-escolares assistencialistas no Brasil (1899-1922). Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 78, p. 17-26, ago. 199l. MARSHALL, James. Governabilidade e educação liberal. In: SILVA, Tomas T. da (Org.). O sujeito da educação – estudos foucautianos. Petrópolis: Vozes, 1994. OLIVEIRA, Zilma de Morães (Org.). Creches: crianças, faz de conta e companhia. São Paulo: Vozes, s/d. SILVA, Isa T. F. R. da. Educação infantil na região metropolitana de Belo Horizonte, MLPC, Belo Horizonte, edição especial, p. 6-14, dez. 1999. VIEIRA, Lívia Maria. Mal necessário: creches no departamento nacional da criança (1940-1970). Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 67, p. 3 -16, nov. 1988. 1.78 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Anexo Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil Resolução Nº 1 da Câmara de Educação Básica O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, de conformidade com o disposto no art. 9º § 1º, alínea “c”, da Lei 9.131, de 25 de novembro de 1995, e tendo em vista o Parecer CEB/CNE 22/98, homologado pelo Senhor Ministro da Educação e do Desporto em 22 de março de 1999, RESOLVE: Art. 1º – A presente Resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, a serem observadas na organização das propostas pedagógicas das instituições de educação infantil integrantes dos diversos sistemas de ensino. Art. 2º – Diretrizes Curriculares Nacionais constituem-se na doutrina sobre Princípios, Fundamentos e Procedimentos da Educação Básica, definidos pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, que orientarão as Instituições de Educação Infantil dos Sistemas Brasileiros de Ensino, na organização, articulação, desenvolvimento e avaliação de suas propostas. Art. 3º – São as seguintes as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil: I – As Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil, devem respeitar os seguintes Fundamentos Norteadores: a) Princípios Éticos da Autonomia, da Responsabilidade, da Solidariedade e do Respeito ao Bem Comum; b) Princípios Políticos dos Direitos e Deveres de Cidadania, do Exercício da Cidadania e do Respeito à Ordem Democrática; c) Princípios Estéticos da Sensibilidade, da Criatividade, da Ludicidade e da Diversidade de Manifestações Artísticas e Culturais. II – As Instituições de Educação Infantil, ao definir suas Propostas Pedagógicas, deverão explicitar o reconhecimento da importância da identidade pessoal de alunos, suas famílias, professores e outros profissionais, e a identidade de cada Unidade de Educacional, nos vários contextos em que se situem. III – As Instituições de Educação Infantil devem promover, em suas Propostas Pedagógicas, práticas de educação e cuidados que possibilitem a integração entre os aspectos físicos, emocionais, afetivos, cognitivo/lingüísticos e sociais da criança, entendendo que ela é um ser completo, total e indivisível. IV – As Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil, ao reconhecer as crianças como seres íntegros, que aprendem a ser e conviver consigo, com os demais e o próprio ambiente de maneira articulada e gradual, devem buscar, a partir de atividades intencionais, em momentos de ações, ora estruturadas, ora espontâneas e livres, a integração entre as diversas áreas de conhecimento e aspectos da vida cidadã, contribuindo, assim, com o provimento de conteúdos básicos para a constituição de conhecimentos e valores. V – As Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil devem organizar suas estratégias de avaliação, através do acompanhamento e dos registros de etapas alcançadas nos cuidados e na educação para crianças de 0 a 6 anos, “sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental”. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.79 A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA VI – As propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil devem ser criadas, coordenadas, supervisionadas e avaliadas por educadores, com, pelo menos, o diploma de Curso de Formação de Professores, mesmo que da equipe de Profissionais participem outros das áreas de Ciências Humanas, Sociais e Exatas, assim como familiares das crianças. Da direção das instituições de Educação Infantil deve participar, necessariamente, um educador com, no mínimo, o Curso de Formação de Professores. VII – O ambiente de gestão democrática por parte dos educadores, a partir de lideranças responsáveis e de qualidade, deve garantir direitos básicos de crianças e suas famílias à educação e cuidados, num contexto de atenção multidisciplinar com profissionais necessários para o atendimento. VIII – As Propostas Pedagógicas e os regimentos das Instituições de Educação Infantil devem, em clima de cooperação, proporcionar condições de funcionamento das estratégias educacionais, do uso do espaço físico, do horário e do calendário escolar, que possibilitem a adoção, execução, avaliação e aperfeiçoamento das diretrizes. Art. 4º – Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, ficando revogadas as disposições em contrário. ULYSSES DE OLIVEIRA PANISSET Presidente da Câmara de Educação Básica 1.80 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS RELAÇÃO FAMÍLIA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS1 1. Introdução Na psicologia como na pedagogia sempre que tratamos do tema do desenvolvimento infantil, recorremos ao papel que a família ocupa, reconhecendo a importância desta para a formação da personalidade da criança. Porém, infelizmente corremos o risco de privilegiarmos um olhar crítico determinado pela intenção de descobrir falhas mais do que contribuições da família para o nosso projeto educativo. Existe uma tendência na sociedade moderna de desvalorização da família, que busca reforçar a incapacidade e fragilidade dos pais na tarefa educativa. Aqueles que defendem esta posição buscam sustentação em teorias da psicologia (Ex: Psicanálise) ou sociologia (Ex: Marxismo), que apregoam que a família não tem competência para referendar os valores contemporâneos. Por influência dessas concepções, foram sendo desenvolvidas políticas governamentais que se destinavam a suprir carências dos indivíduos, perdendo de vista a família como um todo. Assim, nasceram programas diversos em defesa da mulher, das crianças, dos adolescentes etc. As famílias foram sendo fragmentadas, pois seus membros podiam inserir-se em vários programas (inclusive de educação) sem que houvesse relação entre estes. No entanto, o que se constata hoje é que o enfraquecimento das famílias tem gerado conseqüências gravíssimas para a sociedade, como o aumento da violência, a gravidez precoce, o abandono escolar, a instabilidade afetiva etc.. Diante dessa situação, novas iniciativas têm sido feitas com o intuito de recuperar o valor da família, prevalecendo a intenção de fortalecer seus membros no exercício de suas responsabilidades. O Papa João Paulo II é um dos responsáveis por esta nova 1 Este texto é fruto das reflexões da professora Lílian P. C. Reis, especialista em Ciências da Família pela UCSAL e Psicóloga do Centro de Orientação Familiar – COF – em Salvador/BA. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.81 RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS tendência, chamando a atenção da sociedade para a importância da família como santuário da vida (Anexo I). É dentro desse ponto de vista que nasce a nossa proposta, buscando traçar alguns aspectos que nos ajudam a conhecer melhor as famílias, para que possamos identificar recursos que nos auxiliem no sentido de estabelecermos uma relação mais saudável com estas. 2. Família Este é um tema de interesse de todas as ciências que lidam com o ser humano, motivo pelo qual encontramos várias definições que enfatizam aspectos diferentes sobre a mesma. Se o nosso olhar parte da psicologia, recai principalmente na dimensão afetiva, que trata dos vínculos existentes entre os membros da família, da força e qualidade destes, do processo de constituição do eu, através da identificação com as figuras parentais, que influenciam na formação da personalidade. Do ponto de vista pedagógico, a ênfase é sobre os fatores preponderantes no processo de aprendizagem, sendo a família peça chave neste quebra-cabeça, já que tem uma função educativa a desempenhar. Poderíamos aqui esmiuçar o olhar das várias profissões, mas o que queremos destacar é que as famílias têm funções que só competem a elas. Brevemente podemos partir da definição de alguns autores que nos ajudam a clarear os pontos mais significativos sobre o papel das famílias. Vejamos alguns exemplos: • “A família: o primeiro sujeito educativo...” (Luigi Giussani, 2000, p. 187). • Levi Strauss 1967 (apud Petrini, 2001) define a família como “a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos, é um fenômeno universal presente em todo e qualquer tipo de sociedade” (p. 4). • A família se diferencia de outras formas de relações, ao caracterizar-se por um modo específico de viver a diferença de gênero..., que implica em sexualidade – e as relações entre as gerações, que implicam em parentesco (Petrini, 2002, p. 5). Enfim, vislumbramos assim que o núcleo familiar tem qualidades específicas, que não podem passar despercebidas. A primeira dessas potencialidades da família é ser o lugar dos laços afetivos, da vivência do amor, que envolve valores como respeito, reciprocidade, disponibilidade, gratuidade, amizade, aceitação etc. É através da convivência familiar que aprendemos a nos relacionar com pessoas de idades e sexo diferentes. Na troca de experiências, vamos adquirindo a compreensão dos papéis masculinos e femininos, das funções sociais que competem a cada um, assimilando valores, crenças e regras de conduta para o bom convívio. Todas as influências que sofremos deste contexto vão ser decisivas para a constituição da nossa própria identidade. Além do aspecto emocional, a família é também lugar de educação para a vida, é o ponto de partida, de referência para que a pessoa se posicione perante o mundo. Esta função educativa é evidenciada ainda pela constatação de que fomos criados, de que nossa vida é um dom, de que dependemos de outros e de um Outro, de que pertencemos a uma história, a qual nos é transmitida por pais e avós e que define a nossa origem. Dentro do contexto familiar, cada pessoa tem seu valor, sua dignidade, porque é única e diferente. A missão pessoal deve ser realizada por cada membro. Sendo assim, os filhos também têm sua parcela de contribuição e responsabilidade e são chamados principalmente a demonstrar a gratidão, reconhecendo o valor do que receberam. Dizemos justamente que a estrutura de uma família é saudável quando percebemos a capacidade de todos os membros de interagiram entre si, de vivenciarem estes valores e de estabelecerem vínculos fortes. Alguns teóricos têm procurado estudar o funcionamento das famílias, indicando critérios práticos que nos auxiliam na compreensão desses aspectos. 1.82 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS Quando estudamos o desenvolvimento infantil, vimos que existem características que permitem definir fases ou etapas deste processo. Autores como Freud, Piaget e Erikson tratam desse assunto. Também em relação às famílias é possível identificar mudanças mais ou menos bruscas, cujas características representam uma evolução do estágio anterior, com funções qualitativamente diferentes. Evelyn Duvall (apud Nerval 1979), por exemplo, elaborou a teoria que mostra o ciclo evolutivo da família, distinguindo certos elementos que nos permitem predizer o momento da história familiar (Anexo II). Em cada etapa, os membros da família devem desempenhar tarefas específicas, que são condições básicas para sua sobrevivência e desenvolvimento. Quando a família não consegue ajustar-se às condições impostas pela sua realidade, todo o seu processo posterior de desenvolvimento poderá ficar comprometido. O educador norte-americano Havighurst (apud Nerval 1979) advoga que há certas tarefas ou habilidades que o indivíduo tem que aprender para poder ser considerado como pessoa de desenvolvimento adequado e satisfatoriamente ajustado, conforme as expectativas da sociedade. O mesmo acontece com a família, pois existem funções que competem a esta e que são de suma relevância para a sociedade. Petrini (2002) esclarece estes aspectos ao afirmar que a família também constitui um recurso para a sociedade, pois facilita respostas a problemas e necessidades cotidianos de seus membros. A família é um recurso sem o qual a sociedade, da forma como está organizada atualmente, entraria em colapso, caso fosse obrigada a assumir tarefas que, via de regra, são desempenhadas, de forma melhor e a menor custo, por ela. Através da proteção, da promoção, do acolhimento, da integração e das respostas que oferece às necessidades de seus membros, a família favorece o desenvolvimento da sociedade (p. 10). Vejamos algumas destas funções: Estabelecimento de laços entre os cônjuges; Procriação e relacionamentos sexuais entre os cônjuges; Dar aos filhos um nome e uma condição social; Cuidados primários para os filhos e os parentes (tarefas que competem aos pais – Anexo III); • Socialização e instrução dos filhos (e pais); • Proteção dos membros da família; • Fornecimento de suporte emocional e afetivo aos membros da família. As informações oferecidas até este momento referem-se a todas as famílias e servem para nos mostrar que não convém ficar limitados a uma visão restrita das pessoas, pois alguns recursos que são valiosos para ajudá-las escondem-se atrás de pequenas observações decorrentes de sua história. Até aqui nossa atenção esteve centrada na família e em suas competências. Partindo daí, já podemos nos perguntar sobre quais são as tarefas que cabem à escola. • • • • 3. Escola A principal competência da escola é dar continuidade ao projeto educativo dos pais, já que estes são os responsáveis pelo cuidado das crianças e têm o direito de escolher o modo de criação dos filhos (conforme os padrões sociais vigentes). No entanto, em nossa sociedade há, muitas vezes, um distanciamento desta proposta. De um lado, encontramos pais que abrem mão de sua função de autoridade e de cuidadores e começam a delegar à escola ou educadores estes papéis. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.83 RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS Existem escolas que acabam correspondendo a essa demanda, rejeitando ou evitando a participação dos pais no planejamento de suas atividades, reforçando a incompetência ou fragilidade destes. No entanto, atualmente já se constata que quanto mais é favorecida a interação entre família e escola, melhores resultados são obtidos no processo de desenvolvimento do educando. Pesquisas confirmam que o primeiro passo seria a busca de um empreendimento cooperativo sustentado a partir dos seguintes pontos (Eulina Lordelo, 2002): • Transparência das políticas e ações da instituição: os pais devem ser informados dos projetos da creche, regras, práticas e restrições; com a abertura da creche à entrada das famílias se incrementa um clima de cooperação; • Respeito à diversidade de idéias e práticas existentes na sociedade: delimitação de áreas em que se deve buscar um consenso e em que se deve estabelecer uma política de convivência com o diferente; • Envolvimento conjunto em áreas de interesse geral: é a base principal de formação de um vínculo solidário entre as partes; • Formação de pessoal: treinamento específico do quadro de funcionários. A escola, para realizar sua missão, deve abrir-se para a realidade na qual está inserida e os educadores são os protagonistas dessa empreitada, principalmente quando percebemos o limite dos pais no desempenho da tarefa educativa. Ao invés de nos queixarmos da ausência destes, somos responsáveis pela tarefa de chamá-los à sua responsabilidade, chegando até eles, através de nosso exemplo ou de nossa presença. Luigi Giussani (2000) acentua que “se a escola é um lugar de educação, deve ser um lugar de introdução à realidade total. Podemos dizer: o lugar onde a experiência da vida tende a uma consciência total” (p. 180). Vale reforçar, então, que a escola pode tornar-se modelo de referência para as famílias, ajudando-as a recuperarem o sentido de sua missão, oferecendo a estas, através de sua presença, apoio para que possam resgatar sua força perante as opressões da sociedade, descobrindo valores que dignificam sua existência. 4. A Comunicação com as Famílias Falar de comunicação implica em abordar todas as formas de contato que estabelecemos com as pessoas, pois além da troca de informações do discurso verbal este processo abrange também os comportamentos que manifestamos perante o outro (Watzlawick). Sendo assim, para dizer que estamos nos comunicando, não basta cuidar só da nossa fala ou do vocabulário com o qual nos expressamos. Estamos nos comunicando mesmo quando não nos apercebemos dessa intenção; é impossível não comunicar, palavras ou silêncio, tudo possui um valor de mensagem. Então, a comunicação passa pelo verbal (a palavra) e o não verbal (expressão facial, cadência da fala, posturas, jeito de vestir etc.) e baseia-se na interdependência dessas duas modalidades, sendo que uma se traduz na outra. Por que falarmos desses aspectos na relação com as famílias? Porque qualquer comunicação implica em compromisso e por isso define a relação. Giussani (2000) afirma que “A educação é uma comunicação de si, isto é, do próprio modo de se relacionar com o real” (p. 120). Duas perguntas emergem neste momento: • Que efeitos produzem em mim as famílias/crianças com as quais convivo? Que sentimentos provocam em mim? • Que produzo nas famílias/crianças com as quais convivo? Como elas me percebem? • Se algo que pensei é desconfortável, o que posso fazer para reverter isto? 1.84 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS É aqui que chegamos ao X da questão, pois podemos aprender a detectar, em nós e nos outros, aquelas habilidades que “puxam para cima”, que nos ajudam a viver melhor e a encontrar um sentido maior para nossa vida. A atenção pela nossa própria postura é o passo inicial no desenvolvimento de habilidades que favorecem a comunicação. Essas habilidades podem ser aperfeiçoadas no relacionamento com os outros, mas para isto deve existir uma disponibilidade interna para ajudar a família. Já nos primeiros contatos, o profissional deve buscar favorecer a acolhida da família e aí construir a base da relação entre os dois. No trabalho com as famílias, alguns cuidados devem ser privilegiados: • Escuta – estar atentos às reais necessidades da família. • Partilha – o envolvimento é importante quando se consideram as pessoas, tanto no agir, como no conhecer. Com certeza, as famílias se apresentam (falam de si) de forma diferente (mais transparente) com aqueles que com ela se comprometem. Construir um conhecimento partilhado com essas pessoas não significa juntar somente informações sobre a vida delas ou sobre os programas realizados, mas significa “dar voz” a elas, transmitir para as famílias os meios para poder exprimir-se e refletir. • Capacitação – promover o crescimento das famílias, valorizando seus recursos e suas potencialidades, ajudando-as a aprimorar suas capacidades. Existem indicações que permitem entender a família e situar seu contexto, para direcionar condutas a serem priorizadas. Devem ser averiguados os seguintes aspectos: • As necessidades – escuta, método da partilha, “dar voz”; • Papéis evolutivos específicos (etapas do ciclo familiar, capacidade dos membros de assumirem suas responsabilidades, dinâmicas relacionais necessárias); • Eventos críticos (lista dos problemas internos e externos “estruturais” ou “ocasionais”); • Recursos internos (qualidade dos laços intergeracionais, flexibilidade, coesão, criatividade, “pessoas-chave”); • Potencialidades externas (vizinhança, parentela extensa, novos trabalhos); • Recursos externos (serviços, intervenções, projetos, como fazê-los encontrar?). O mais importante é que o educador não deve ter a pretensão de dar conta de tudo e, sim, compreender que pode ser mediador da família, deve saber o que não se pode fazer, mas também quem, em outra parte do mundo (ou do bairro), sabe e pode fazê-lo. Vale, então, o entrosamento dos vários profissionais (assistentes sociais, médicos, educadores, enfermeiros, agentes pastorais, psicólogos etc.), que, juntos, decidem quem deve agir e o que deve fazer. É preciso incentivar estas famílias para que elas possam valorizar seus próprios recursos, mobilizando-se a fim de encontrar soluções criativas para seus problemas e desenvolvendo suas potencialidades. Neste caso, o profissional serve como orientador e ajuda fornecendo a elas informações que as auxiliem na compreensão de suas dificuldades ou indicações de serviços aos quais possam recorrer. O profissional atua como uma bússola que indica a direção a seguir, mas quem deve conduzir o barco são os próprios membros da família. Esse tipo de conduta colabora para que as famílias cresçam, fortalecendo seus vínculos, capacitando-se para enfrentar as adversidades que a vida lhes impõe. Referências Bibliográficas CENTRO DE ORIENTAÇÃO FAMILIAR (COF). Apostilas. 2000. GIUSSANI, Luigi. Educar é um risco. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2000. GRIFFA, Maria C.; MORENO, José E. Chaves para a psicologia do desenvolvimento. São Paulo: Paulinas, 2001. Tomo I e II. AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.85 RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS LORDELO, Eulina da Rocha. Convergência e conflito na relação creche-família: construindo novas práticas. In: MOREIRA, Lúcia Vaz de Campos. Educação infantil: lições de quem estuda psicologia. Salvador: EDUFBA, 2002. MINUCHIN, Salvador. Trabalhando com famílias pobres. Porto Alegre: Artmed, 1999. MIRANDA, Clara Feldman; Miranda, Márcio Lúcio. Construindo a relação de ajuda. Belo Horizonte: Crescer, 1996. PETRINI, G. Notas para uma antropologia da família. Seminário da Família. Salvador: Pontifício Instituto João Paulo II de Estudos sobre Matrimônio e Família, set. 2001. Rosa, Nerval. Problemas da família moderna. Rio de Janeiro: JUERP, 1979. WATZLAWICK, Paul; BEAUN, Janet; JACKSON, Don D. Pragmática da comunicação humana. São Paulo: Cultrix, 2000. Anexo 1 II Encontro do Papa João Paulo II com as Famílias “A família é o dom de Deus o Criador, o seu projeto originário. (...) É a primeira, natural, célula vivente da sociedade, na qual se baseiam todas as outras comunidades e sociedades, e é a primeira célula vivente da Igreja. A família recebeu o dom de transmitir a vida humana – a maternidade e paternidade – como fruto do seu amor. Cada filho, cada pessoa é dom de Deus, criado por Deus à sua imagem, com dignidade e direitos inatos desde a concepção até a morte natural. A vida da família é um dom quotidiano que requer amor, paciência e sacrifício. (...) É um dom que junta diferentes gerações numa cadeia sem fim de reciprocidade e solidariedade. É a melhor escola de humanidade, onde o dom reciproco dos pais enche a casa toda. Assim nascem novos membros maduros, respeitosos dos outros, gratos pela solidariedade que os ajuda a viver na caridade. A família, então, é dom necessário para a sociedade, para a humanidade inteira. É a primeira escola das virtudes, em que aprendemos o respeito pelos outros e a ajuda recíproca. A família é um dom para a Igreja e para a nova evangelização”. 1.86 PEDAGOGIA E PSICOLOGIA AVSI RELAÇÃO FAMÍLA-ESCOLA: CONCEPÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS Anexo 2 Ciclo de Vida da Família Etapa Características Tarefas evolutivas 1) Famílias iniciantes Casais ainda sem filhos Projeto do casal 2) Famílias gerando filhos Filhos mais velho de 2 anos e meio Alteração dos hábitos, rotinas e responsabilidades do casal 3) famílias com crianças pré-escolares Filhos mais velho de 2 anos e meio a 5/6 anos Questão disciplinar – processo educativo 4) Famílias com crianças na idade escolar Filho mais velho 6 -13 anos Socialização do indivíduo 5) Famílias com adolescentes Filhos mais velho 13 - 20 anos Crise de identidade do adolescente 6) Famílias como centros de partida para a vida Saída do primeiro filho – saída do último filho Inserção social dos filhos/ investimento na relação do casal 7) Família de meia idade “ninho vazio” a aposentadoria Reencontro do casal 8) Famílias idosas Da aposentadoria à morte dos cônjuges Funções e papéis de avós AVSI PEDAGOGIA E PSICOLOGIA 1.87 AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM 1. Linguagem A linguagem é a nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento. Ela tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto falamos e ouvimos, nos fazer compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto os dos outros que falam e se comunicam conosco. Refere-se ao mundo através de significações, e, por isso, nos permite relacionar com a realidade através da palavra; exprime e descobre significados e, por essa razão, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros. A linguagem, como a percepção e a imaginação, pode comprazer-se no já dado, já dito e já pensado, no instituído e estabelecido, ficando escrava dos preconceitos e das ideologias. Pode bloquear nosso conhecimento e pode produzir desconhecimento (mentira e desinformação). É assim nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade. A linguagem é uma forma de nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com os outros, é uma dimensão de nossa existência. 2. Aquisição da Linguagem Oral São várias as teorias que fundamentam a aquisição da linguagem oral: a explicação behaviorista, a inatista, a cognitivista e a sócio-interacionista. Neste texto, vamos no ater às teorias sócio-interacionistas, deixando para outra oportunidade um detalhamento das outras teorias. Teorias sócio-interacionistas e cognitivistas postulam que, através das várias formas de linguagem, a criança aprende e apreende o mundo. Linguagem, neste caso, é entendida em toda sua diversidade. A criança fala com o olhar, com o choro, com o riso, com os gestos, com o corpo. Desde os primórdios de sua existência, a criança estabelece sinais comunicativos com os adultos. Nessas várias formas de se expressar, ela vai re-significando AVSI SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.1 AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL o mundo. Falar do trabalho com a linguagem na Educação Infantil é falar dessas múltiplas linguagens que permeiam o universo infantil. A apropriação da linguagem pela criança não é algo dado pela natureza, mas trata-se de um processo complexo e construído nas interações sociais. Palavra e pensamento se articulam, sendo o pensamento elemento constitutivo da comunicação e do próprio sujeito, centro organizador e formador da atividade mental. Vygostsky, contrariando as concepções clássicas, que consideravam a relação pensamento e linguagem como invariável ao longo do desenvolvimento, percebia essa conexão como originária do desenvolvimento, evoluindo ao longo dele num processo dinâmico. Dessa forma, pensamento e linguagem têm – na filogênese e na ontogênese – raízes genéticas diferentes, mas que se sintetizam dialeticamente no desenvolvimento. Assim, numa concepção sociointeracionista1 da linguagem, é possível apontar uma função comunicativa, que possibilita a construção de uma representação de mundo por meio de um conjunto de conceitos compartilhados através dos discursos produzidos nas interações entre sujeitos, e outra função cognitiva condicionante da construção dos conceitos. A linguagem oral, nessa perspectiva, não pode ser considerada o produto final do desenvolvimento infantil, mas como produto histórico que se estrutura continuamente nas interações da criança com o adulto ou com outras crianças. A elaboração conceitual da palavra não ocorre naturalmente na criança, mas é desenvolvida culturalmente. Nas crianças pequenas, o pensamento evolui sem a linguagem (pensamento préverbal). Os primeiros balbucios se formam sem o pensamento e têm como objetivo atrair a atenção do adulto (linguagem sem pensamento). Percebe-se, assim, a presença de uma função social da fala, desde os primeiros meses de vida da criança. Tal esforço funciona como fundamento e suporte para o desenvolvimento da linguagem oral, cuja eficácia está atrelada ao desempenho do adulto, à forma como ele está interagindo com a criança. Isso porque “inicialmente o significado da palavra depende da situação em que a criança se encontra ao ouvi-la, da pessoa que a pronuncia, da entonação de voz utilizada, do emprego (ou não) de gestos, etc.” (Baquero, 1998, p. 96). Segundo Vygotsky (1993), pode-se, pois, estabelecer no desenvolvimento da fala da criança uma linguagem pré-intelectual e no desenvolvimento de seu pensamento, um pensamento pré-lingüístico. Em um dado momento do desenvolvimento, as curvas do pensamento pré-lingüístico e da linguagem pré-intelectual se encontram. O pensamento se torna verbal e a linguagem intelectual. Esse é um momento relevante do desenvolvimento humano. O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inata, mas é determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento e fala (Vygotsky, 1993, p. 44). Por volta do segundo ano, a criança começa a perceber o propósito da fala e que cada coisa tem um nome. Desse momento em diante, passa a sentir a necessidade das palavras, tenta aprender os signos: é a descoberta da função simbólica da palavra. A partir do momento em que a criança descobre que tudo tem um nome, cada novo objeto que surge representa um problema que ela resolve atribuindo-lhe um nome. Quando lhe falta a palavra para nomear este novo objeto, ela recorre ao seu repertório 1 2.2 Esta concepção está alicerçada nas idéias propostas por Vygotsky, principalmente, entendendo a linguagem como uma construção histórico-cultural, produto das interações humanas. SAÚDE E EDUCAÇÃO AVSI AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL generalizando os nomes já conhecidos, utilizando-os conforme o contexto. Esses significados básicos de palavras assim adquiridos funcionarão como embriões para a formação de conceitos novos e mais complexos. Gradualmente, cada um desses fatores situacionais perde a relevância para a significação da palavra; então, a criança passa a selecionar o objeto nomeado, independentemente da situação. À medida que a criança evolui, a função designadora da palavra se estabiliza, permitindo a comunicação entre adultos e crianças. Contudo, o significado da palavra ainda não está concluído, porque depende de funções mais complexas tais como a atenção, formação de imagens, associação, comparação e inferências. Na elaboração do significado, a criança explora o material sensorial e opera intelectualmente sobre ele, conforme as interações que estabelece com o outro e com o meio, num exercício contínuo de análise e generalização. De acordo com Vygotsky, o primeiro exercício de generalização na infância se dá pelo pensamento por complexos que está bem “colado” à realidade. Do mesmo modo, a capacidade de análise esboça-se nos conceitos potenciais, construídos a partir do isolamento de determinado elemento da totalidade. Quando a criança dá conta de articular generalização e abstração, ela inicia a elaboração de conceitos. “A palavra passa a ser usada com referência a categorias abstratas. Sua nova função torna-se codificar a experiência, os objetos e situações do mundo em esquemas conceituais” (Baquero, 1998, p. 101). O recém-nascido já tem uma linguagem gestual que se define bem cedo, a partir das respostas que obtém do adulto, principalmente da mãe. O choro, o sorriso, as vocalizações inicialmente autônomas tornam-se carregadas da intencionalidade aos moldes do adulto interlocutor. Assim, o bebê chora se está desconfortável; sorri a um gracejo porque o adulto deu-lhe estes significados. A linguagem verbal, como já dissemos, inicia-se pela imitação do adulto e evolui inserida num contexto social, por isso é primordial definir estratégias comunicativas dentro da creche que privilegiem a iniciativa infantil de conversação, estimulando o diálogo. O espaço no interior dessa instituição é para a interatividade e não para a passividade infantil. O repertório comunicativo da criança vai se ampliando, mas a linguagem verbal não elimina ou substitui a linguagem gestual; ambas servem, outrossim, para se reforçarem. Normalmente, “as crianças mais precoces parecem continuar a utilizar e a enriquecer seus próprios esquemas gestuais na expressão verbal” (Albanese & Antoniott, 1998, p. 204). As crianças que utilizam as expressões gestuais são mais bem-sucedidas em suas interações. É importante pensar que todo o processo não obedece a uma linearidade, é destituído de etapas bem definidas. Significa que é inviável construir metodologias para “escolarizar” a linguagem oral, visando a uma aprendizagem cumulativa. O possível é envolver afetivamente a criança de modo a criar situações autênticas para expressão oral, potencializando seu desenvolvimento. 3. Linguagem e Aprendizagem Como vimos anteriormente, a linguagem é vista comumente como forma de comunicação. Através do domínio da mesma, a criança começa a adquirir os conhecimentos transmitidos pelos adultos. Por esse motivo, todo o sistema de ensino e as propostas pedagógicas estão apoiadas nessa concepção comunicativa da linguagem, a diferença está na relação formal que a linguagem adquire nas interações adulto/criança. O aprendizado espontâneo e natural passado pelos pais adquire um caráter institucionalizado e formalizado no espaço escolar. AVSI SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.3 AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL Nesse modelo, a criança precisa possuir habilidades lingüísticas que lhe permitam receber informações verbais e assimilá-las garantindo, assim, o seu desenvolvimento. Uma vez que a criança se utiliza da mesma linguagem que o adulto e reproduz a mesma fala, muitas vezes o adulto pressupõe que a criança atribui os mesmos significados e possui a mesma compreensão para as mesmas expressões; assim, vincula-se o desenvolvimento infantil a uma somatória de conteúdos aprendidos, mas essa forma de conceber o desenvolvimento é extremamente reduzida. A linguagem é, sem dúvida, um importante instrumento de aprendizagem, porém, esse é um processo que envolve vários fatores, o desenvolvimento dessa está diretamente ligado à evolução do pensamento e à construção das estruturas da inteligência. A partir do segundo ano de vida, como vimos anteriormente, a linguagem se manifesta como parte de uma função simbólica mais ampla e depende de todo o desenvolvimento construído ao longo do período sensório-motor e que servirá de base para a evolução das futuras e complexas condutas caracterizadas pela construção de conhecimentos práticos e pela formação de modos de comunicação não verbais. Dessa forma, considera-se que exista um desenvolvimento cognitivo anterior à aquisição da linguagem, mas esta também, à medida que vai se instaurando como conduta simbólica e instrumento de apoio para o pensamento, vai influenciar o desenvolvimento cognitivo. Dessa forma, para uma boa aquisição da linguagem, é preciso que criança desde as fases mais elementares, estabeleça vínculos e formas de relação que permitam que o adulto entre em contato com ela e que ela também possa se relacionar com o adulto. Crianças que apresentam dificuldades na formação dos conhecimentos básicos já na fase sensório-motora tendem a apresentar um retardo na aquisição da linguagem que pode se prolongar até a idade escolar e dificultar o processo ensino-aprendizagem. Já na fase em que a criança tem acesso às condutas simbólicas esta deve se movimentar no sentido de substituir ou diferenciar as formas elementares de comunicação por formas mais avançadas e eficientes, assim, a linguagem deve ser algo atrativo do ponto de vista cognitivo e afetivo – cabe ao adulto introduzir a criança ao mundo das palavras, interagir com ela e dar sentido ao uso dessas palavras. Os educadores e pais devem estar atentos para observar se a criança apresenta algum atraso na aquisição da linguagem ou no seu desenvolvimento: aos dois anos, a criança já deve ser capaz de apresentar alguma forma de comunicação verbal; aos cinco anos, a criança já deve possuir um certo domínio da gramática, possui um vocabulário vasto, no entanto, ainda não consolidou as noções exatas de tais palavras. Esta defasagem entre a habilidade de usar as palavras e a capacidade de compreendê-las muitas vezes leva o adulto a imaginar que pode propor conteúdos complexos demais para a criança. Portanto, apesar de a criança progredir rapidamente no mundo da linguagem, esse é um conhecimento intuitivo, prático, e só progressivamente será conceituado transformandose em conhecimento metalingüístico. Crianças com atrasos na aquisição da linguagem tendem a apresentar também dificuldades ao nível articulatório, tendo necessidade de serem auxiliadas tanto no desenvolvimento da linguagem quanto na aquisição dos fonemas. No desenvolvimento normal da fala, existe uma variedade de possibilidades, crianças que ainda muito novas adquirem todos os fonemas e dominam a fala, outras demoram mais para chegar a esse ponto; cinco anos é a idade esperada para que as crianças dominem todos os sons da fala, algumas crianças demoram um pouco mais, sendo assim, 6 anos é o tempo limite para essa aquisição. Os distúrbios da fala podem se configurar de diversas maneiras e ter diferentes causas. Quando há dificuldades articulatórias, a criança deve ser encaminhada para avaliação apropriada. 2.4 SAÚDE E EDUCAÇÃO AVSI AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL É importante ressaltar, ainda, a necessidade de uma boa avaliação das crianças com dificuldades na fala para verificar se esta dificuldade está somente na fala ou se é uma alteração mais ampla na linguagem ou no desenvolvimento cognitivo. Nesses casos, é apropriado encaminhar a criança para atendimento fonoaudiológico. Uma vez que a linguagem é veículo de adaptação da criança ao meio, é importante cuidar adequadamente de todo tipo de alteração para que estas não gerem desadaptações, como é o caso de crianças com pequenas dificuldades de fala que se isolam e fogem do contato com as pessoas. O ambiente em que a criança vive atua diretamente na evolução da linguagem, dessa forma, algumas condições sociais podem ser, assim, descritas: • Modelos adequados de linguagem: a criança constrói sua linguagem a partir de modelos lingüísticos fornecidos pelas pessoas com quem convive; a partir da interação através da linguagem do outro, ela constrói sua própria linguagem. Sendo assim, ela pode ter bons modelos ou maus modelos. • Linguagem como um fato significativo para a criança: a atividade mental da criança depende de sua experiência, de sua atuação sobre o objeto a ser conhecido. É essa possibilidade de ação que torna as coisas significativas, incluindo a linguagem. A linguagem do adulto pode tornar-se significativa para a criança na medida em que lhe seja acessível, assimilável, que se refira a coisas com as quais ela possa se relacionar e compreender. • Interesse do adulto por aquilo que a criança quer expressar: o interesse do adulto motiva a criança a se expor, e quanto mais ela desejar se comunicar mais ela irá buscar recursos lingüísticos apropriados para se fazer compreender. • Compreensão das dificuldades naturais da criança e valorização do seu esforço para crescer: a construção da linguagem não é um processo simples e fácil, portanto, as crianças têm dificuldades e acabam cometendo muitos enganos, o que deve ser compreendido, o adulto deve cuidar para não ter reações exageradas frente às dificuldades, como, por exemplo, o procedimento excessivo de correção. • Situações sistemáticas de vivência do simbolismo da linguagem: a linguagem é uma conduta simbólica, existindo, assim, situações favoráveis para o exercício dessa atividade representativa envolvendo a fantasia e a imaginação, como ler e ouvir histórias e situações de jogos simbólicos. Por fim, lembremo-nos de que desenvolvimento cognitivo é um processo de trocas entre o sujeito e o meio formando, assim, a inteligência (estruturas que vão sendo construídas na medida em que atuam sobre o meio e interagem com ele). Assim, a escola tem um papel muito importante nesse processo, pois é através da educação que o indivíduo terá acesso à cultura, ao conhecimento. Nesse contexto, a linguagem torna-se veículo privilegiado do conhecimento e é muitas vezes usada no processo ensino-aprendizagem de forma equivocada, perdendo o seu papel de instrumento de pensamento e significação e transformando-se em instrumento de uma memorização vazia de significado. Lembremos que é necessário desenvolver o raciocínio da criança e não apenas a memória. A linguagem é a via através da qual o sujeito pode se colocar em relação ao outro, mas é a inteligência, enquanto estrutura de compreensão do sujeito, que pode regular essa interação. 4. Linguagem Oral no Contexto da Creche e da Pré-escola No contexto da creche e da pré-escola, de forma semelhante a outros contextos onde a criança se insere, a palavra do outro ajuda a elaborar o significado de novas palavras. Sendo assim, o desenvolvimento da criança está intrinsecamente aliado às interações que ela puder estabelecer enquanto interlocutora. O papel da creche e da pré- AVSI SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.5 AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL escola é oferecer à criança um ambiente aconchegante onde ela possa estabelecer uma forte relação afetiva com os adultos e com outras crianças, conversando, cantando, ouvindo e contando histórias freqüentemente, o que contribuirá para o desenvolvimento da linguagem oral. Desenvolver a linguagem oral da criança implica também em contemplar diferentes linguagens no contexto da creche, uma vez que estas constituem o aparato que permite à criança desvendar seu entorno e construir sua representação de mundo. Tanto o cotidiano da creche quanto o da pré-escola são ricos em situações em que a brincadeira, a música, a dança, a conversa e o jogo podem fluir de forma bem natural, na entrada, na hora do lanche, do banho e das brincadeiras em todos os momentos do dia, tornando-se motivação para o desenvolvimento da linguagem verbal. É interessante lembrar que a creche tem uma função especial no desenvolvimento da linguagem verbal, mas que não é exclusiva dela. A parceria com a família cria uma riqueza de interações para a criança, que não seria possível num trabalho isolado da primeira instituição. Existem pesquisas que elucidam, de certa maneira, os contrastes entre as crianças que ficam nas creches e aquelas que só têm a convivência familiar. Em termos de linguagem oral, a diferença não é quantitativa, mas qualitativa: crianças que ficam em casa são mais centradas em si mesmas e exprimem desejos de posse. As crianças que ficam em creches falam mais sobre eventos ou temas gerais. Essa diferença inicial, entretanto, tende a desaparecer com a idade. No contexto atual, em que a permanência das crianças em creches tornou-se uma contingência social, a educação infantil precisa conhecer e incentivar a capacidade comunicativa da criança, propiciar situações de jogos em pequenos grupos, favorecer as interações entre crianças de diferentes idades e “conceder a fala à criança”. Além de facilitar a aprendizagem do sistema lingüístico como tal, suas regras e conteúdo, é importante que o educador transmita à criança as regras de uso da comunicação, ou seja, as convenções sociais. O profissional da creche na atualidade precisa demonstrar algumas competências que antes não eram exigidas: um saber técnico que garanta minimamente o bem-estar físico e cognitivo da criança, uma sensibilidade que favoreça e estimule o convívio e a interação com e entre as crianças. Os aspectos emocionais e intelectuais da infância têm uma relação de interdependência com a aprendizagem e o desenvolvimento; por isso, a prioridade do lúdico, especialmente quando se fala em linguagem oral. Os brinquedos cantados, os jogos, o faz-de-conta, a conversa, a caixa-surpresa e as entrevistas são atividades indispensáveis para desenvolver a linguagem: a criança aprende a falar, falando! Torna-se necessário, nesse novo contexto, que o adulto saia um pouco de cena, permitindo que as crianças tentem resolver seus conflitos e que descubram formas mais apropriadas de se comunicar. 5. Considerações Finais A aquisição da linguagem oral, geralmente, se dá de maneira informal, envolvendo várias operações complexas. A criança aprende a falar para satisfazer a uma necessidade de comunicação. As pessoas que convivem em seu meio naturalmente lhe transmitem o código de representação da fala por elas utilizado, sem possuírem para isso um método. A nossa intenção, neste ensaio, foi realçar a importância e a necessidade de possibilitar à criança momentos que privilegiem a linguagem oral em todos os contextos, principalmente na creche e escolas infantis, pois, ao apropriar-se dessa forma de linguagem, a criança consegue elaborar e expressar seu pensamento mais claramente, o que favorece as interlocuções com os grupos à sua volta. De acordo com Rego (1998), “o domínio da 2.6 SAÚDE E EDUCAÇÃO AVSI AQUISIÇÃO NA LINGUAGEM ORAL linguagem promove mudanças radicais na criança, principalmente no seu modo de se relacionar com o seu meio, pois possibilita novas formas de comunicação com os indivíduos e de organização de seu modo de agir e pensar” (p. 67-68). Referências Bibliográficas ALBANESE, Ottavia; ANTONIOTT, Carla. O desenvolvimento da linguagem. In: BONDIOLI, Anna; MANTOVANI, Sussana. Manual de Educação Infantil: de 0 a 3 anos – uma abordagem reflexiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. BAQUERO, Ricardo. Vigotsky e a aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. BONDIOLI, Anna; MANTOVANI, Sussana. Manual de Educação Infantil: de 0 a 3 anos – uma abordagem reflexiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Referencial curricular nacional para educação infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. v. 1, p. 26 e 32. CARMO, Elisabete R. do; CHAVES, Eneida M. Análise das concepções de aprendizagem de uma alfabetizadora bem-sucedida. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 114, p. 121-136. nov. 2001. FERREIRO, Emilia. A escrita ... antes das letras. In: SINCLAIR, Hermine (Org.). A produção de notações na criança: linguagem, número, ritmos e melodias. Tradução Maria Lúcia F. Moro. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1990. p. 19-70. ______. Sobre a necessária coordenação entre semelhanças e diferenças. In: CASTORINA, José Antonio et al. Piaget-Vygotsky. Novas contribuições para o debate. Tradução Cláudia Schilling. São Paulo: Ática, 1995. p. 147-175. ______. Reflexões sobre alfabetização. Tradução Horácio Gonzales et al. 24. ed. São Paulo: Cortez, 1995b. FONTANA, Roseli; CRUZ, Nazaré. Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo: Atual, 1997. GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996. GOULART, Maria Inês Mafra. Uma abordagem processual na prática da educação infantil. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 5, n. 29, p. 29-37, set./out. 1999. HOFFMAN, Jussara; SILVA, Maria Beatriz G. da (Coord.). Ação educativa na creche. Porto Alegre: Mediação, 1999. KATO, Mary A. A lingüística e a aprendizagem da escrita. Cadernos CEVEC, São Paulo, n. 4, p. 2530, 1988. LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1994. REGO, Teresa Cristina. Vigotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. SALLES, Fátima (Org.). Desenvolvimento e aprendizagem. Belo Horizonte: UFMG, 2002. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ______. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1996. AVSI SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.7 CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL1 1. Introdução Vários motivos nos levam a considerar a saúde como um dos temas importantes a serem enfrentados dentro de uma creche ou centro infantil. Não se trata simplesmente da preocupação que aparece todos os dias nos centros educativos – problemas de crianças que ficam doentes, caem e machucam, têm dor ou febre, faltam muito porque vão sempre ao médico, não crescem direito –, nem que é necessário um crescimento e um desenvolvimento adequados para que a criança possa aprender o que é ensinado a ela diariamente. Consideramos o processo educativo como introdução a uma realidade total em que saúde e doença não têm como ponto de referência exclusivo a avaliação médicobiológica (não se trata simplesmente de ir ao médico e tomar remédio para curar a doença), mas a pessoa, os objetivos perseguidos por ela e as possibilidades que são oferecidas a ela para realizar plenamente as potencialidades da existência (Cesana, 2000, p. 41). Isso nos ajuda a compreender o que seja a saúde e, portanto, os cuidados de saúde necessários. A Organização Mundial de Saúde – OMS – define a saúde “não simplesmente como ausência de doença, mas como o estado de completo bem-estar físico, mental e social” (p. 51). Isto é, não basta não ter doenças. Para que a criança seja saudável é necessário também um bom ambiente na sala de aula, pessoas que queiram bem a ela, uma boa alimentação, jogar bola ou cantar, alguém que ensine a ela as coisas importantes na vida, ter bons relacionamentos com as outras crianças e com seus familiares, ter condições de moradia adequadas, uma boa vizinhança e tantas outras coisas. 1 Este texto é fruto das reflexões de Marco Antônio Bragança de Matos, médico-pediatra pela UFMG. AVSI SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.9 CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL Então, podemos perceber facilmente o grande número de fatores e situações que podem interferir na saúde da criança, seja fisicamente – germes que provocam infecções, alimentação, escovação –, como mentalmente – situações que provocam os seus sentimentos, afeição, segurança, capacidade de aprendizado –, ou socialmente – relacionamentos e problemáticas na família, violência do bairro, dificuldade econômica. Da mesma maneira, fala-se hoje em promoção da saúde, “processo necessário para tornar as pessoas – no sentido coletivo de gente, povo – sempre mais capazes de controlar e melhorar as próprias condições de saúde” (Carta de OHAWA, 21/03/1986). Mas as pessoas – também as crianças – não são educadas para isso simplesmente aprendendo regras a serem repetidas. Antes é necessário aprender um olhar sobre si mesmas e sobre a realidade, saber o porquê de uma coisa ou outra, ter um gosto e uma responsabilidade para com o que acontece. A pessoa é o centro da atenção quando se fala de educação e promoção em saúde. No nosso caso, esta pessoa é uma criança, uma criança que depende da sua mãe, da família, do educador da creche, da comunidade em que vive e, por isso, a atenção e o cuidado devem ser redobrados. E, se consideramos ainda o fato de grande parte dessas crianças viverem em um contexto familiar e social de risco, a atenção e cuidados devem ser estendidos, de alguma forma, também a estes âmbitos. A responsabilidade nesse processo cabe a todos. A começar dos educadores com os quais as crianças passam a maior parte do dia, mas chegando a todos aqueles que convivem diariamente com elas. 2. Rotinas e Cuidados em Saúde Infantil O que são rotinas e cuidados em saúde infantil? São procedimentos realizados de maneira ordenada e habitual para promover a vigilância do crescimento e o desenvolvimento adequados da criança, de um lado, prevenindo contra situações que possam de alguma maneira comprometê-los e, de outro lado, promovendo ações que possam favorecê-los. De quem é a responsabilidade? De todos. Todos os profissionais que acompanham a criança durante as suas atividades na creche ou centro infantil podem vigiar a saúde da criança, primeiro porque têm a possibilidade de observá-la e acompanhá-la e, segundo, porque são responsáveis por cuidados da creche que podem influenciar diretamente sobre a vida da criança. É importante também que essas rotinas e cuidados sejam organizados, tendo, sempre que possível, pessoas capacitadas que se responsabilizem mais diretamente pelas crianças. E a responsabilidade dos pais das crianças? Os cuidados com a criança na creche não podem substituir os cuidados dos pais para com os seus filhos. Pelo contrário, devem se tornar uma oportunidade para educar também os pais. O momento da admissão na creche ou a recepção diária ou reuniões e encontros ou, ainda, as visitas domiciliares são momentos de diálogo com a mãe da criança, podendose conhecer melhor as suas dificuldades e necessidades, ajudando-a e orientando-a. 2.10 SAÚDE E EDUCAÇÃO AVSI CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL Quais são os principais cuidados e rotinas e como organizá-los? 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Crescimento Desenvolvimento Alimentação Vacinação Higiene Saúde Bucal Doenças Acidentes na infância A seguir apresentaremos cada um desses cuidados e rotinas. 2.1. Crescimento O que é? Conjunto de alterações que acontecem no corpo da criança, dentro do tempo (desde a concepção), que implicam no aumento da sua massa corporal. Como pode ser acompanhado? Através da medida do peso e do tamanho. Como fazer para pesar? Equipamentos de pesagem: • Balança Pediátrica: utilizada para crianças menores de 2 anos. Capacidade máxima: 16 Kg. Possui uma escala numérica mais subdividida, proporcionando um valor mais apurado e sensível às possíveis variações de ganho ou perda de peso, comuns nesta faixa etária. • Balança Plataforma ou Clínica: utilizada para crianças maiores de 2 anos até a idade adulta. • Balanças Eletrônicas. Como pesar? • A criança menor de 2 anos deve estar sem roupas e sem sapatos. As maiores deverão usar o mínimo de roupa possível (cueca, calcinha) e sem sapatos. • Verificar se o braço da balança está no ponto médio, isto é, se as agulhas estão niveladas. Em caso negativo deverá ser feito o nivelamento utilizando o calibrador. • Colocar a criança no centro da balança. • Mover os cursores sobre a escala numérica, primeiro o maior (quilo) e depois o menor (gramas), até que as agulhas permaneçam niveladas. • Realizar a leitura do peso. O profissional deve estar de frente para a balança. • Anotar o peso. • Travar a balança. Esta operação é fundamental, pois evita que a mola da balança trabalhe sem necessidade, assegurando o bom funcionamento do equipamento. • Retirar a criança da balança. • Retornar os cursores ao zero da escala numérica. Como fazer para medir o tamanho? Instrumentos: • Fita métrica com divisões em cm e subdivisões em mm e um esquadro de madeira com um ângulo de 90°. AVSI SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.11 CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL • Régua métrica. Como medir? • A criança deve estar descalça e sem presilhas, passadores, bonés ou outros objetos na cabeça. • Fixar a fita métrica de baixo para cima (com o zero na parte de baixo) em uma superfície plana. Se for uma parede, não deve haver rodapés. • Encostar as costas da criança no local onde está fixada a fita. A criança deve permanecer com os braços estendidos ao longo do corpo, os pés juntos e calcanhares, glúteos e ombros tocando a superfície da parede; deve permanecer reta, olhando para a frente. • Manter a criança nesta posição, fazendo uma leve pressão para cima a fim de manter a cabeça ereta, e sobre os joelhos e calcanhares, mantendo-os na posição correta. • Deslizar o esquadro sobre a fita, até tocar a cabeça da criança. • Fazer a leitura da medida na fita métrica. • Anotar a medida. • Para crianças menores, que ainda não ficam em pé, poderá ser usada uma régua métrica. Neste caso a criança deve ser deitada em uma superfície horizontal, firme e dura, com o corpo todo encostado sobre a superfície, joelhos estendidos, cabeça reta, olhando para cima. A base fixa da régua deve ser encostada na cabeça da criança. Aproximar a base móvel até tocar os calcanhares. Fazer a leitura e anotar a medida. Como fazer a anotação no gráfico de crescimento? Antes de tudo, prestar atenção porque existem os gráficos para o peso e os gráficos para a estatura. Esses gráficos cruzam o peso ou a medida da criança com a sua idade, em meses ou anos. Marcar com uma bolinha o cruzamento entre a linha da idade e o peso ou medida. Quando forem realizadas anotações subseqüentes, unir as marcas formando a curva do crescimento da criança. A curva do crescimento deve ser avaliada (se adequada ou não), como indicado no Cartão da Criança: Bom (linha subindo, o peso está aumentando), Perigo (linha horizontal; o peso parou de aumentar) e Grande perigo (linha descendo; o peso está diminuindo). Deverão ser marcadas no gráfico também as intercorrências como D (diarréia), P (pneumonia), O (outra doença) e H (hospitalização), situações que levam à perda de peso. Quando pesar e medir a criança? • Crianças até 2 anos: mensalmente • de 2 a 4 anos: de 2 em 2 meses Em casos de doenças, hospitalização ou desnutrição, a criança deverá ser pesada mais freqüentemente, independentemente da idade, até que a sua curva de crescimento se torne novamente regular. As crianças que apresentarem uma curva de crescimento muito irregular, ou abaixo do percentil 10, ou perdas de peso subseqüentes, deverão ter uma atenção individualizada e ser encaminhadas para uma avaliação no serviço de saúde. 2.12 SAÚDE E EDUCAÇÃO AVSI AVSI Idade 0 a 1 ano Maiores de 1 ano 1º REFORÇO (1a 3m) 2º REFORÇO (5 anos) 1º REFORÇO (1a 3m) 2º REFORÇO (5 anos) Tríplice Tétano Difteria Coqueluche OBSERVAÇÃO: calendário de vacinação fixado pela Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais em 2002 REFORÇO (10 anos) 3ª DOSE (6 meses) 3ª DOSE (6 meses após) 3ª DOSE (6 meses) 1ª DOSE (2 meses) 2ª DOSE (4 meses) 1ª DOSE (1ª semana) Tetravalente Tétano Difteria Coqueluche Hemófilo B 2ª DOSE (1 mês após) 1ª DOSE (2 meses) 1ª DOSE (1ª semana) Hepatite B 2ª DOSE (4 meses) Sabim Paralisia Infantil BCG Tuberculose DOSE ÚNICA (1 ano) Triviral (Mmr) Sarampo Rubéola Caxumba OUTRAS 1ª DOSE (1 ano) Febre Amarela Nome: _____________________________________________________________ Data de nascimento: ___/___/___ QUADRO VACINAL CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.13 CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL 2.2. Desenvolvimento O que é? Conjunto de mudanças que acontecem na criança na medida em que ela cresce em peso e tamanho. São habilidades e capacidades que ela vai adquirindo, como, por exemplo: falar, andar, contar uma história, repetir gestos que vê uma outra pessoa fazer, cantar, fazer contas etc. Outras mudanças dizem respeito à sua personalidade, temperamentos, hábitos e capacidade de se relacionar. Como pode ser acompanhado? Através da observação da criança e comparação com tabelas de desenvolvimento. Como fazer? Modelos de tabelas de desenvolvimento e como usá-las: • Cartão da Criança – indica habilidades e capacidades e a idade em que a maioria das crianças já deveria tê-las adquirido (ex: 6 meses: Vira sem errar para o lado do barulho ou 1 ano: Fala duas palavras). Marcar, no espaço apropriado, a idade em que a criança adquiriu aquela determinada habilidade ou capacidade. • Ficha de acompanhamento do desenvolvimento – indica os marcos do desenvolvimento (ou resposta esperada), nas várias idades e a faixa de idade (quadros escuros) em que estes marcos estão presentes (ex: abre e fecha os braços em resposta à estimulação – reflexo de Moro: presente de 1 a 4 meses) ou em que a criança deveria adquirir a capacidade ou habilidade (ex: senta-se sem apoio: de 7 a 12 meses). Marcar no espaço referente à idade na data da avaliação os sinais P (presente), A (ausente) ou NV (não verificado). 2.14 SAÚDE E EDUCAÇÃO AVSI AVSI 6 meses 4 meses 2 meses 1 mês ÉPOCA DA CONSULTA Vira a cabeça na direção de uma voz ou um objeto sonoro Segura e transfere objetos de uma mão para a outra Levantada pelos braços ajuda com o corpo Emite sons – vocaliza Alcança e pega objetos pequenos Colocada de bruços, levanta e sustenta a cabeça apoiando-se no antebraço Fixa e acompanha objetos em seu campo visual Sorri espontaneamente Colocada de bruço, levanta a cabeça momentaneamente Olha para as pessoas que a observam Postura: barriga para cima, braços fletidos, cabeça lateralizada Abre e fecha os braços em resposta à estimulação (reflexo de Moro) MARCOS DO DESENVOLVIMENTO (RESPOSTA ESPERADA) Nome: _________________________________________________________ 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 Idade (meses) Data de nascimento: ___/___/___ CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.15 2.16 SAÚDE E EDUCAÇÃO 2 anos 18 meses ÉPOCA DA CONSULTA 12 meses 9 meses ÉPOCA DA CONSULTA Diz seu próprio nome Em companhia de outras crianças brinca isoladamente Corre e/ou sobe degraus baixos Tira qualquer peça do vestuário Combina pelo menos duas palavras Anda sozinha, raramente cai MARCOS DO DESENVOLVIMENTO (RESPOSTA ESPERADA) Emprega pelo menos uma palavra com sentido Faz gestos com a mão e a cabeça (de tchau, de não etc.), bate palmas Anda com apoio Responde diferentemente a pessoas familiares e estranhas Arrasta-se ou engatinha Senta-se sem apoio MARCOS DO DESENVOLVIMENTO (RESPOSTA ESPERADA) Nome: _________________________________________________________ 13 14 15 18 Idade (meses) 21 2 3 4 5 Idade (anos) 6 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 Idade (meses) Data de nascimento: ___/___/___ CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL AVSI AVSI 5 anos 4 anos 3 anos ÉPOCA DA CONSULTA P = PRESENTE A = AUSENTE Pede ajuda quando necessário Veste-se sozinha NV = NÃO VERIFICADO Pula alternadamente com um e outro pé Reconhece mais de duas cores Brinca com outras crianças Pula sobre um só pé Veste-se com auxílio Usa frases Fica sobre um pé momentaneamente MARCOS DO DESENVOLVIMENTO (RESPOSTA ESPERADA) Nome: _________________________________________________________ 13 14 15 18 Idade (meses) 21 2 3 4 5 Idade (anos) Data de nascimento: ___/___/___ 6 CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.17 CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL Avaliação do desenvolvimento e conduta: A partir da comparação da idade em que a criança adquiriu determinada habilidade ou capacidade com a idade, indicada nas tabelas, em que ela deveria adquiri-las, verificase se o desenvolvimento está adequado ou não. Se existem desvios, a criança deverá ser encaminhada ao serviço de saúde. No desenvolvimento da criança é necessário estar atentos ao controle de esfíncteres: idade para início (1 ano e 6 meses) e métodos de estimulação. 2.3. Alimentação O que é? Processo pelo qual o organismo recebe as substâncias – nutrientes – indispensáveis para a manutenção da vida, crescimento, funcionamento normal dos órgãos e produção de energia. Quais os tipos de alimentos? • Energéticos: são os carboidratos e lipídios. São aqueles que dão energia, calor e força para andar, falar, trabalhar. Exemplo de alimentos energéticos: mel, melado, rapadura, arroz, milho, feijão, banha, óleo, abóbora, banana, farinha de trigo e alimentos que nascem embaixo da terra, como a batata. • Construtores: são as proteínas. Como o próprio nome indica, elas vão construir a base que nos ajudará a crescer e manter o corpo saudável. As proteínas vão nos ajudar na formação do nosso organismo. Exemplo de alimentos construtores: carnes de modo geral, ovos, queijo, leite, bucho de porco ou de boi, coração, rim, feijão, soja. • Protetores ou reguladores: são as vitaminas e sais minerais. Têm como função regular o bom andamento de todas as partes do corpo, sendo fundamentais para a defesa contra possíveis doenças. Exemplo de alimentos protetores: verduras (alface, couve, repolho, almeirão, espinafre, ora-pro-nobis), legumes (tomate, cenoura, pimentão, chuchu, abobrinha, beterraba, pepino), frutas (banana, laranja, limão, mamão, goiaba, abacaxi, abacate, caqui, manga, tangerina, melancia, jabuticaba). O que fazer para ter uma boa alimentação? São necessários: • Balanço nutricional adequado: trata-se de uma distribuição e uso dos alimentos feita de tal maneira a fornecer todos os nutrientes necessários: energéticos, construtores e protetores ou reguladores. • Hábito saudável: trata-se de uma modalidade de se alimentar com relação a horários, intervalos, quantidade, cardápio, mastigação dos alimentos, postura. Dicas para uma boa alimentação a) A alimentação deve atender às necessidades energéticas da criança, ou seja, deve satisfazer o seu apetite e permitir um crescimento adequado. Através da medida do peso da criança, pode-se verificar se a quantidade de alimento é suficiente ou não: se a criança está ganhando peso corretamente, se a sua curva de crescimento se desloca com regularidade é porque a criança está se alimentando em quantidade suficiente. b) Deve ser equilibrada, ou seja, deve responder, além das necessidades de proteína, carboidratos e gorduras, às necessidades de vitaminas e sais minerais. c) Deve-se estar atentos ao hábito alimentar da criança: horários, modo, higiene. 2.18 SAÚDE E EDUCAÇÃO AVSI CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL d) Muitas vezes, a última refeição na creche é feita antes das 16:00h. Por isso, deve-se estar atentos à alimentação que a criança recebe em casa, evitando-se períodos prolongados de jejum. e) Deve ser adequada à idade da criança, à sua capacidade digestiva e às suas capacidades e habilidades. f) Deve-se equilibrar a tendência laxante ou constipante dos alimentos. g) Deve-se estar atentos à alimentação no primeiro ano de vida. Nesta fase, o crescimento e desenvolvimento da criança é bastante acentuado, principalmente no que se refere ao sistema nervoso. Além disso, é um período em que a criança é muito susceptível às doenças que, quando ocorrem, espoliam seu organismo. h) Deve-se estimular as mães dos menores de seis meses ao aleitamento materno. Mesmo que elas tenham necessidade de trabalhar, estratégias podem ser utilizadas, como a retirada do leite, amamentação nos intervalos do trabalho, amamentação no período da noite e outras. i) Os bebês não devem tomar sozinhos as mamadeiras; estas devem ser dadas no colo, a fim de se prevenir acidentes e possibilitar o estabelecimento de uma relação afetiva com a pessoa que a alimenta. j) O uso da colher se inicia quando forem oferecidos alimentos pastosos: mingaus, papas e sopas. k) Os alimentos sólidos serão introduzidos gradativamente e quando as crianças tiverem condições de se alimentarem sozinhas; as frutas, verduras, pães, biscoitos etc. podem ser dados em suas próprias mãos visando a estimular o processo de mastigação e digestão, bem como favorecer sua independência no ato de alimentar-se. l) O modo de apresentar os alimentos e o ambiente calmo e alegre no momento das refeições ajudam a estimular o apetite das crianças, como também servem para educálas quanto aos hábitos alimentares. m)Deve ser assegurada à criança a repetição e a oportunidade de conhecer e escolher os alimentos, a seu gosto, e não forçá-la a preferências e tabus alimentares do adulto. Convém lembrar, ainda, que a alimentação não pode ser utilizada como prêmio ou castigo, inclusive na tentativa de resolver problemas de disciplina. n) A ajuda da nutricionista é muito importante para se elaborar o cardápio da creche. 2.4. Imunização O que é? Procedimento pelo qual a criança, recebendo a vacina, desenvolve uma proteção contra determinados tipos de doenças. Quais as vacinas que toda criança deve tomar? • BCG: contra a Tuberculose • Anti-Pólio – SABIN (gotinha): contra Paralisia Infantil • DPT – TRÍPLICE: contra Difteria (crupe), Coqueluche e Tétano • Anti HEMÓFILO B: contra a infecção pela bactéria Haemophilus influenzae B • TETRAVALENTE: contra Difteria (crupe), Coqueluche, Tétano e Hemófilo • Anti SARAMPO: contra Sarampo • MMR - TRÍPLICE VIRAL: contra Sarampo, Caxumba e Rubéola • Anti HEPATITE B: contra a Hepatite do tipo B • Anti FEBRE AMARELA: contra Febre Amarela Com que idade a criança deve tomar estas vacinas? O quadro de vacinas indica o tipo e a idade em que devem ser tomadas. AVSI SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.19 CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL Como conferir o cartão de vacina da criança? Normalmente, as Unidades de Saúde carimbam e assinalam com caneta a data em que foi aplicada a vacina e a lápis a data ou idade para a qual está agendada a dose subseqüente. A maioria das doses são aplicadas até a idade de 1 ano. Depois dessa idade, seguem-se intervalos longos até os reforços de 5 e 10 anos. Deve-se estar atentos às campanhas realizadas pelo governo. Quando a criança for admitida na creche, deverá ser aberta uma cópia do cartão de vacina que contêm as vacinas e a idade de aplicação. Nessa ocasião marcar na cópia as vacinas já aplicadas. A partir daí, esta cópia deverá ser atualizada mensalmente até a idade de 1 ano. Se a criança ultrapassou a idade indicada, deve-se solicitar à mãe o Cartão de Vacina para conferir se já foi ou não aplicada aquela dose. Se sim, faz-se anotação; se não encaminha-se a criança para o serviço de saúde. Para crianças maiores de 1 ano, com a vacinação em dia, não é necessário que a conferência seja mensal. Poderá ser feita quando a criança alcançar a idade de 5 anos. 2.5. Higiene O que é? Conjunto de medidas que visam à remoção da sujeira, permitindo a conservação da saúde e prevenção de doenças. Quais os cuidados de higiene mais importantes? A higiene deve ser pessoal, dos vestuários e utensílios e do ambiente. Salientamos aqui alguns cuidados com a higiene pessoal da criança: • Manter as mãos das crianças limpas: na medida em que a criança cresce, ela pode ser educada a lavar as mãos com água e sabão antes de comer, após a ida ao banheiro ou após o contato com objetos ou superfícies sujas. • Unhas: o corte das unhas pode ser orientado para que as mães o façam em casa. As unhas grandes acumulam mais sujeiras e facilitam a contaminação da criança, além de fazer com que elas se arranhem com facilidade. • Banho: o banho diário na entidade para crianças até 2 anos é essencial. É importante que cada criança tenha a sua toalha. Os cabelos devem ser lavados regularmente e, para penteá-los, o ideal é que cada uma tenha o seu pente. Se não for possível, lave bem o pente de uma criança para a outra para evitar a transmissão de piolhos e lêndeas. • Troca de fraldas: todo o material necessário para a troca de fralda deve estar à mão para que não se deixe a criança sozinha na bancada. Ao trocar a criança, retire o excesso de fezes, lave a pele com água e sabão, enxágüe bem para evitar assaduras e coloque a fralda limpa. Evite que a criança manipule a fralda suja. Nas meninas a higiene deve ser feita da frente para trás, ou seja, no sentido da vagina para o ânus. 2.6. Saúde Bucal Por que é importante? Porque os dentes, além de desempenhar uma função estética importante (o sorriso bonito), têm o grande papel de iniciar o processo da digestão da maioria dos alimentos, através do processo de mastigação. Além disso, este cuidado é a maneira para se evitar a cárie, uma das causas de maior desconforto da criança: a dor de dente. 2.20 SAÚDE E EDUCAÇÃO AVSI CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL O que é a cárie? É a doença mais comum que pode atingir os dentes. A cárie aparece por causa da placa bacteriana, uma película de micróbios que se forma sobre os dentes e perto das gengivas. Essas bactérias se alimentam de resíduos de alimentos, principalmente o açúcar, transformando-os em ácidos que começam um processo de corrosão do esmalte. A área do esmalte que foi machucada por este processo se chama cárie. Se ela não for tratada a tempo, o processo de corrosão continua e a lesão se aprofunda, podendo atingir o canal, o que pode levar à perda do dente. Como prevenir? • Higiene: Escovar os dentes depois das refeições e antes de dormir é fundamental para remover e evitar a nova formação da placa de bactérias que provoca a cárie. • Dieta: Alimentos ricos em açúcar, como doces, chocolates e refrigerantes, convertemse facilmente nos ácidos que atacam os dentes. Deve ser feita, individual e coletivamente, a orientação de uma dieta que, considerando hábitos e condições socioeconômicas, seja equilibrada e variada, evitando os açúcares e favorecendo a ingestão de fibras, que diminuem a acidez da boca. Também a ingestão de água deve ser estimulada, porque ela torna a saliva menos ácida, auxiliando a higiene dos dentes. • Flúor: Esta substância combate a perda de minerais do dente. É adicionada nas águas de abastecimento público de muitas cidades e também na maior parte das marcas de dentifrícios usados na escovação. Quantas vezes é necessário escovar os dentes? Devem ser feitas pelo menos três escovações por dia, depois das principais refeições: café da manhã, almoço e jantar. Mas o ideal é limpar os dentes após a mastigação de qualquer alimento. Quanto tempo deve durar a escovação? O que importa é a qualidade da escovação. Pelo menos uma das vezes deve durar de 10 a 15 minutos. É importante lembrar que, para as crianças maiores, deve ser ensinado o hábito de usar o fio dental antes da escovação, já que muitos resíduos alimentares se alojam entre os dentes, local que a escova não alcança. Qual é o melhor tipo de escova de dentes? Aquela que tem a cabeça pequena e cerdas arredondadas para não machucar a gengiva. Para crianças pequenas, as melhores são as de cerdas macias e uniformes. Vale lembrar que a escova deve ser trocada pelo menos de 3 em 3 meses, já que o desgaste das cerdas compromete a qualidade da escovação. É importante que cada criança tenha a sua escova, que deve ser lavada bem com água corrente e guardada em lugar limpo e arejado, de preferência seca para evitar o crescimento de fungos. Qual a pasta de dente ideal? A mais indicada é a que contém flúor. Não há diferença importante entre pasta e gel dental. Recomenda-se colocar pouco creme dental na escova, já que o excesso de flúor pode levar a uma alteração no esmalte chamada fluorose, que provoca manchas nos dentes. Quando iniciar a escovação? A higiene bucal é recomendada desde os primeiros dias de vida, fazendo limpeza diária com gaze ou uma fralda embebida em água limpa. Com o surgimento dos primeiros dentes, a higiene deve ser realizada com escovas bem macias. AVSI SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.21 CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL A mamadeira noturna provoca cáries? Esta é uma orientação importante para as mães e responsáveis da criança. Não se deve acostumar a criança a tomar mamadeira durante a madrugada porque os resíduos do leite passarão muito tempo na boca, provocando descalcificações e o aparecimento de cáries. Deve-se insistir na amamentação natural, já que o leite materno é fundamental à formação de uma dentição saída. Como fazer uma boa escovação? Comece sempre da gengiva em direção ao dente. Na parte de cima, com manobras verticais, escove de cima para baixo. Na parte de baixo, também na vertical, movimente a escova de baixo para cima. Repita a operação na parte interna dos dentes, em cima e embaixo. Na superfície do dente, o movimento mais indicado é o vaivém. 2.7. Doenças Quais as doenças mais comuns nas crianças? Gripe, diarréia, verminose, pediculose (piolho), escabiose (sarna), varicela (catapora), impetigo (broto, pereba), conjuntivite, desnutrição. Como saber quando a criança está doente? Todas as vezes que uma criança não está indo muito bem, ela merece uma atenção especial, principalmente nas situações de risco. Os sinais e sintomas mais comuns das doenças são: febre, falta de apetite (inapetência), vômitos, diarréia, choro forte, empolação (exantema), hipoatividade, tosse, perda de peso. É importante observar a duração e intensidade desses sinais e sintomas: quanto maior a duração e intensidade, maior a gravidade da situação. Esses sinais e sintomas podem ser relatados pela mãe ou observados na própria creche. Crianças maiores são capazes de fazer queixas mais precisas como, por exemplo, dor de garganta ou vontade de vomitar ou episódios de diarréia. Deve-se ficar atentos aos sinais de gravidade: quanto mais intenso e duradouro o sinal ou sintoma, mais grave pode ser a situação da criança. Ficar atentos também a sinais de doenças infecto-contagiosas, ou seja, aquelas doenças que se espalham rapidamente. As crianças menores de 1 ano, as crianças desnutridas e aquelas com história de infecções de repetição são mais frágeis. Precisam de uma atenção especial. Quais os cuidados com a criança doente? • observação; • hidratação mais freqüente, principalmente se houver diarréia e vômitos; • alimentação pausada e em pequenas quantidades; • manutenção da criança em local arejado; • administração correta dos medicamentos (doses e horários); • avaliação da necessidade de consulta médica; • investigação junto à mãe sobre condições do dia anterior; • orientação para a mãe no final do dia. Em caso de dúvidas, sempre encaminhar ao serviço de saúde para uma avaliação profissional. Quais os cuidados com a administração de remédios na creche? • Saber que criança vai ser tratada, a doença que tem, a gravidade e presenças de fatores de risco. • Verificar se a criança doente precisa de uma avaliação médica. 2.22 SAÚDE E EDUCAÇÃO AVSI CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL • Com relação a crianças que já passaram por uma consulta médica: verificar receitas, providenciar o medicamento, observar a evolução. • É importante o envolvimento da mãe no tratamento. • Atenção à história de alergia ou intolerância. Como conservar os medicamentos? • Devem ser conservados em local próprio, limpo e longe do alcance da criança. • Deve haver uma pessoa responsável atenta, além de outras coisas, ao controle da data de validade e à possível automedicação por parte de funcionários da creche. Como administrar os medicamentos? • Verificar a receita (nome da criança, nome do medicamento, dose, horários). • Usar medidas próprias ou seringas (atenção à conservação; proceder à desinfecção como para mamadeiras). • Fazer anotação. • Verificar sempre se a criança está recebendo corretamente as doses administradas em casa, durante a noite ou fim de semana. 2.8. Acidentes na Infância Quais os acidentes mais comuns na infância? De maneira geral, os acidentes mais comuns são: asfixia, queimaduras, afogamento, quedas, envenenamento, corpo estranho. É verdade que a freqüência desses acidentes variam de idade em idade. Como prevenir os acidentes? Em primeiro lugar, é necessário estar atentos à palavra prevenção. Para se prevenir acidentes, é necessário estar atentos à criança, observá-la nos seus movimentos e hábitos e, sobretudo, acompanhar o desenvolvimento de novas capacidades e habilidades. Depois, é muito importante observar atentamente o ambiente em que a criança faz suas atividades, identificando situações que podem provocar acidentes e educando-a a se afastar do “perigo”. Dicas para prevenir acidentes em crianças menores de 1 ano? • Não pense que você e seu filho estão livres dos acidentes e que estes só acontecem com os outros. • Verificando a água do banho com o cotovelo; • Não ingerir alimentos quentes estando com o bebê no colo; • Não deixar a criança sozinha na banheira ou sobre móveis, nem um minuto sequer; • A mãe não deve dar banho no bebê, se estiver sozinha em casa e não estiver totalmente recuperada do parto (é comum casos de mães que desmaiam enquanto banham seus filhos e estes se afogam). • Dê brinquedos grandes, resistentes, sem pontas ou arestas agudas e se for de tecidos estes devem ser anti-sufocantes e anti-alérgicos. • Mantenha alfinetes, botões, contas e outros objetos pequenos e cortantes fora do alcance da criança. • Afaste todos os objetos sufocantes como sacos plásticos, fios, travesseiros. • Não deixe ao alcance do bebê alimentos quentes, fios elétricos, garrafas térmicas, tábuas de passar roupas, ferros de passar roupa, agentes de limpeza, remédios, tomadas desprotegidas. • Não tenha álcool líquido e ácidos em casa. AVSI SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.23 CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL • Escolha bem o colchão e o berço do bebê (estes devem ter medidas dentro dos padrões de segurança), mantenha o berço longe de cortinas e venezianas. • Não dê balões de encher para crianças nessa faixa etária. • Mantenha todos os produtos de limpeza e perigosos nas embalagens originais e em local alto e fechado. • Não coloque cordões e barbantes em torno do pescoço da criança. • Não dê pedaços grandes de alimentos que possam causar sufocamento. • Coloque portas ou cercas nas escadas. • Baixe o estrado do berço ou da cama quando a criança começar a ficar sentada ou de pé. • Remova os móveis baixos e de bordas cortantes da área de brinquedo da criança. • Mantenha a porta de banheiros sempre fechadas. • Não leve o bebê no colo durante viagens em automóveis, use sempre a cadeirinha própria. Dicas para prevenir acidentes em crianças de 1 a 6 anos? • Bloqueie ou tranque todas as portas e janelas, caminhos que levem para escadas ou outras áreas de perigo. • Mantenha a porta da cozinha e do banheiro sempre fechadas quando não tiver um adulto nestes. • Use sempre pratos e copos de plásticos para o uso das crianças. • Instale grades ou redes de proteção em janelas que estiverem acima do primeiro andar. • Nunca deixe a criança sozinha na cozinha. • Quando estiver cozinhando, mantenha os cabos das panelas sempre voltados para o centro do fogão. • Ensine para crianças o significado das palavras: “quente”, “machuca”, “atenção”, “não pode” e outros comandos simples que façam a criança parar a ação que está fazendo. • Mantenha os fios elétricos, fósforos e isqueiros, arames e eletrodomésticos fora do alcance das crianças. • Nunca deixe a criança sozinha em banheiras, bacias, piscinas, perto de lagos ou lagoas por mais rasas que sejam. • A partir do segundo ano, comece a ensinar as regras básicas de trânsito. • Supervisione os jogos, verifique a segurança e se os brinquedos dos parquinhos são apropriados para a idade. • Use sempre roupas de tecidos não inflamáveis para as crianças dormirem. • Não permita que as crianças abram torneiras de água quente. • Coloque decalques coloridos em portas grandes de vidro. • Tranque ferramentas e os equipamentos de jardinagem. • Não incentive a criança a acariciar animais estranhos. Referências Bibliográficas CESANA, Giancarlo. Il “Ministero” della salute - note introduttive alla medicina. Firenze: Studio Editoriale Fiorentino, 2000. CRECHE E MANUAL DE SAÚDE. Secretaria Municipal da Família e Bem-estar Social de São Paulo, s/d. GUIA DO LÍDER COMUNITÁRIO. Pastoral da Criança, CNBB, 11ª ed., 1992. LEÃO, Ennio et al. Pediatria ambulatorial. Belo Horizonte: Coopmed, 1998. MATOS, M. A. B.; FERNANDES, B. S.; FERNANDES, I. O. B. Cuidados com a saúde de crianças em creches. Belo Horizonte: CDM, 2000. 2.24 SAÚDE E EDUCAÇÃO AVSI CUIDADOS COM A SAÚDE INFANTIL ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1946. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Carta de Otawa, 1986. SAWAYA, Ana Lídia. Desnutrição urbana no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997. SOLYMOS, Gisela M. Bernardes; SAWAYA, Ana Lídia (Org.). Saúde e nutrição em creches e centros de educação infantil. São Paulo: Salus Paulista, 2002. v. 2 (Coleção Vencendo a Desnutrição) AVSI SAÚDE E EDUCAÇÃO 2.25 O APRENDIZADO DA ARTE NA INFÂNCIA O APRENDIZADO DA ARTE NA INFÂNCIA1 A história da educação artística das últimas décadas foi marcada por uma pedagogia que se estruturava na livre expressão. Essa forma de entender e realizar a ação educativa em Artes levou à formação de gerações ignorantes sobre Arte: maus produtores, não críticos e não conhecedores. A Escola Nova, visão pedagógica tão difundida e também tão distorcida entre nós, foi diretamente responsável por esse estado de coisas. Adepta da pedagogia da livre expressão, tinha por currículo uma listagem de temas e técnicas: colagem com diferentes materiais, pintura com instrumentos diversos, desenhos, modelagem etc. Nas escolas brasileiras de inspiração escolanovista, até hoje, a arte é compreendida como atividade e não como disciplina. Temas e técnicas ocupam o lugar de conteúdos e objetivos. As atividades artísticas das crianças se reduzem a uma sucessão de fazeres onde à criança é “deixado que faça” sem nenhuma orientação ou intervenção do professor. A criança desenha, pinta, cola, constrói, modela etc., fazendo o que pode com o que lhe é oferecido como material de trabalho e seus recursos expressivos pessoais. A criança fica abandonada em seu percurso de aprendizagem da arte, abandonada à própria ignorância de indivíduo recém-chegado à cultura. Esse jeito de entender a forma como as crianças podem e devem se relacionar com a Arte e aprender sobre ela expressa uma polaridade entre: • a livre expressão e uma pedagogia marcada pela diretividade; • a atividade espontânea e a atividade cultivada; • uma visão de arte como atividade e outra de Arte como disciplina. Essas idéias são hoje discutíveis. 1 Este texto foi extraído de CAVALCANTE, Zélia. Arte na sala de aula. Porto Alegre: ARTMED, 1995. AVSI OFICINAS 3.1 O APRENDIZADO DA ARTE NA INFÂNCIA Na passagem do século, quando a Escola Nova está sendo gestada, entendia-se que a gênese da arte infantil era natural e universal. De lá até nossos dias, principalmente em pesquisas mais recentes, verificou-se que a gênese da arte infantil varia nas distintas culturas e que em cada cultura haverá diferenças, de acordo com os modelos visuais a que a criança estiver exposta e às possibilidades interativas dos alunos. O que significa dizer que a possibilidade de se expressar através da linguagem da Arte se desenvolve no sujeito de acordo com suas condições internas (de desenvolvimentos) e com as condições externas (de aprendizagem), de sua vida na cultura. Crianças que vivem em ambientes culturais onde a Arte está presente cotidianamente serão melhores produtores, conhecedores e críticos de Arte. Crianças afastadas das expressões artísticas das culturas humanas poucos recursos terão para se desenvolver nesta área de conhecimento. Essa nova forma de reconhecer a relação das crianças com a produção artística fomentou um novo conceito de aprendizagem e uma nova forma de ação pedagógica onde a escola aparece como promotora: • do fazer artístico individual (através de atividades de produção de objetos; desenhos, pintura, colagem etc.); • de conhecimento em relação aos princípios formais da imagem, que permitam apreciar e desenvolver a competência de construir juízos de valor sobre imagens (através de atividades de apreciação de produtos artísticos); • da interação com o conhecimento socialmente acumulado (através de atividades com História da Arte). A educação artística da criança passa, segundo essa metodologia, por um processo de aprendizagem amplo, que se dá tanto dentro quanto fora da escola. No entanto, é à escola que cabe organizar, sistematizar esse aprendizado em atividades onde o aluno possa estar tanto no lugar de quem produz, como de quem pode conhecer e apreciar sua “herança” artística, num processo onde o fazer é retro-alimento pelo conhecimento de outros produtores e pela possibilidade de “ler” seus produtos. As crianças brasileiras têm acesso a expressões artísticas de diferentes produtores, seja através da televisão, dos grafites impressos nos muros, dos artefatos vinculados a festas populares, da arte primitiva dos produtores mais próximos à comunidade em que vivem, e tantas outras fontes de informação. A fonte menos usual, infelizmente e ironicamente, tem sido a escola. Uma criança, mesmo nas zonas mais pobres das cidades, nunca está “isenta” do contato com expressões artísticas; o que difere, entre as crianças que chegam à escola – e isso é fundamental –, são os graus de relação que puderem estabelecer até aquele momento com a Arte. Hoje se sabe que a experiência de assimilação de repertório entre indivíduos que produzem imagens faz parte das construções artísticas da infância. Na escola, a situação de sistematização e produção conjunta favorece a reflexão do aluno sobre a produção do outro (o igual, o produtor histórico e o contemporâneo). Por isso, cabe à escola sistematizar as situações de aprendizagem em Arte. Essa sistematização, se quiser contribuir verdadeiramente para a educação artística infantil, deve se organizar a partir de propostas planejadas e dirigidas pelo professor, mas também deve dar espaço ao momento do fazer artístico criador que, por sua natureza, exige liberdade e decisão para que a criança construa seu percurso individual. São propostas dirigidas, nas quais a situação de aprendizagem se organiza a partir de um material planejado para que, na ação sobre ele, o aluno possa construir conhecimentos sobre um determinado aspecto do conteúdo da Arte. Alguns exemplos: • atividades de pintura, desenho, colagem etc., para as quais o professor define o material a ser utilizado; 3.2 OFICINAS AVSI O APRENDIZADO DA ARTE NA INFÂNCIA • atividades de apreciação (de trabalhos dos alunos, de outros alunos, de produtores adultos, de produtores consagrados) em que o professor não apenas escolhe que trabalhos apreciar, mas também dirige a apreciação, “a forma de olhar”, através de perguntas, viés de análise etc.; • atividades de pesquisa sobre diferentes produtores, suas biografias, escolas a que pertenceram etc. Nessas “atividades controladas”, o professor se coloca como um mediador/ instrutor de conhecimentos culturais; a intervenção que realiza na construção de conhecimentos em Arte pela criança fica evidente e pode ser avaliada pela quantidade do material que seleciona, organiza e traz para a classe. É através dessa intervenção consciente e planejada que os alunos ficarão familiarizados com larga faixa de materiais, ferramentas, equipamentos e técnicas; que estudarão sobre tradições e artesãos, materiais e atitudes de artistas em seus trabalhos. O espaço para o fazer artístico criador é aberto nas oficinas de livre escolha, onde os alunos têm acesso a uma multiplicidade de materiais plásticos e podem decidir o que e como realizar seu trabalho. É evidente que, nesses momentos, a presença do professor é importante para informar às crianças as soluções técnicas adequadas ao que se propõe fazer. Aqui, o papel intervencionista do professor se faz presente através do apoio técnico que fornece, apoio que não deve ser confundido com “fazer pelo aluno” aquilo que não pode “fazer direito” sozinho. O reconhecimento, pelo professor, da importância da necessária qualidade da intervenção que realiza junto a seus alunos é fundamental para que seus planejamentos contemplem uma vasta gama de informações e possibilidades de produção em Artes. E para que possa realizar esses planejamentos, o professor necessita dedicar ao conhecimento artístico, não apenas estudando nos livros, visitando mostras e museus, conhecendo os produtores existentes na comunidade em que vive, mas também se colocando como um possível produtor de arte, experimentando um fazer artístico criador, dando oportunidade ao desenvolvimento de um percurso pessoal, como o que os alunos realizam nas oficinas. Referência Bibliográfica CAVALCANTE, Zélia. Arte na sala de aula. Porto Alegre: ARTMED, 1995. AVSI OFICINAS 3.3 LITERATURA INFANTIL LITERATURA INFANTIL O ato de ler é uma prática muito importante na vida das pessoas, pois vivemos em uma sociedade na qual a leitura e a escrita são possibilidades para o desenvolvimento social e para a realização e as conquistas pessoais. No entanto, ler é um ato que ultrapassa o decifrar sinais gráficos e ser leitor significa entender o significado do que se lê, ter a capacidade de explorar e extrapolar o texto lido para a realidade cotidiana, para o mundo – aprender a ler os livros para aprender a ler a realidade. A escola tradicional preocupa-se muito em ensinar a leitura e a escrita sem, no entanto, vislumbrar a função social destas. É comum encontrarmos crianças e adultos alfabetizados que não são leitores justamente pelo fato de a leitura não ser uma prática habitual em nossa cultura. Por esses motivos, a literatura infantil é um grande instrumento para despertar o gosto pela leitura. Brincar com a leitura tem a ver com o fato de lidar com a palavra como uma entidade mágica. As ilustrações de livros abrem horizontes para a imaginação e a percepção de elementos plásticos, cujos significados apontam, também, para representações vividas no dia-a-dia, estimulando o leitor a imaginá-los de outras formas. Descobrir a literatura infantil significa vê-la não apenas como um instrumento didático ou de trabalho com as crianças, mas vê-la em todas as suas dimensões, inclusive em admitir seu valor para o trabalho com adolescentes e adultos. Descobrir a literatura infantil significa também se permitir voltar à infância e lembrarse de como são importantes o afeto e o aconchego junto da pessoa que nos conta a história. Descobrir a literatura infantil é também reconhecer seu importante papel para a alfabetização. Trabalhar a realidade através da fantasia, dar asas à imaginação e à criatividade dos alunos e principalmente proporcionar momentos de prazer, de muito afeto aos alunos são características marcantes da literatura infantil. Leitor e ouvinte têm a oportunidade e a AVSI OFICINAS 3.5 LITERÃTURA INFANTIL liberdade de identificar-se com as personagens, transferir angústias, trabalhar as perversões; podem sonhar, viajar no mundo da fantasia. Como conseqüência, a criatividade se desenvolve, trabalha-se a realidade com clareza, estimula-se a reflexão. Enquanto se introspecta, a história fortalece o seu EU, formam-se vínculos, enfim CRESCE. A história da literatura infantil nos mostra que, nos seus primórdios, havia muito mais uma preocupação didático-pedagógica do que uma preocupação com o lúdico das crianças; as histórias tinham como finalidade ensinar a moral e os bons costumes da época, passando a ser usada também como meio de propagar a ideologia dominante. Hoje, temos de nos preocupar em escolher bons livros para nossos leitores e não usarmos o livro infantil – que, em seu princípio, é fonte de prazer e ludicidade – em instrumento de avaliação e tortura dos alunos. A leitura de um livro infantil deve ser gostosa como uma brincadeira. Contar histórias ou simplesmente lê-las não é tarefa difícil, não é preciso ser grande ator ou ter dotes especiais, mas basta permitir-se vivenciar os personagens dando alma a eles. Assim, a história flui naturalmente, fica atrativa, entusiasma e emociona quem escuta. Existindo vários gêneros na literatura infantil, é possível encontrarmos bons livros para todo tipo de leitor, desde aquele que trata de assuntos delicados como sexo, morte, separação, diferenças pessoais e sociais, passando por temas subjetivos como amor, saudade, poder, até temas divertidos como brincadeiras, amizade. Enfim, o importante é que seja um livro interessante, com bom conteúdo, bem escrito, bem estruturado em sua narrativa e que seja do interesse do leitor. Caso o livro seja de ilustrações, este também deve ser de boa qualidade, com imagens bem feitas e que tenham conteúdo em sua seqüência. As gravuras devem estar bem visíveis aos alunos em caso de uma apresentação em sala de aula, de forma que estes possam inteirar-se de todos os detalhes que as ilustrações oferecem. Além da narrativa com ou sem a presença do livro, é possível variar as formas de se apresentar uma história, através de recursos como ampliações, flanelógrafos, teatros e também explorar ao máximo as histórias através de oficinas de arte, música e produção de textos. Através da literatura infantil, pode-se RE-DESCOBRIR mais uma vez que, através do afeto, da fantasia, das brincadeiras e do lúdico, o aprendizado se torna prazeroso. A criança e também o adulto começam a ter uma percepção de mundo mais saborosa, sem que isso signifique uma fuga da realidade, mas justamente o contrário: que se consiga enfrentar o mundo e sua realidade de frente e sem ilusões. Para formar futuros leitores, que sintam prazer com a literatura, é bom que se comece cedo o contato com os livros e com o ato de ouvir histórias. Segundo Kaercher (2001), é preciso fazer com que o livro se torne parte integrante do dia-a-dia das crianças para se iniciar o processo de formação delas como leitores. A autora acima citada, em seu texto E por falar em literatura, faz algumas sugestões para propiciar um prazeroso contato com a literatura infantil desde a mais tenra idade: • Para crianças dos 0 aos 2 anos, a possibilidade é a de propiciar o contato da criança com o objeto livro, para que ele se torne familiar. Mais tarde, quando um adulto intervier e contar as histórias e se contar de forma cativante, vai ajudar a criança a construir uma concepção de livro como a de um brinquedo que vai proporcionar divertimento e emoção. Para que a criança goste de ler, é preciso, também, que o adulto que a esteja introduzindo nessa aventura tenha uma boa relação com a leitura, que também a julgue importante. Com crianças nessa idade vai-se trabalhar mais através dos sentidos, assim tudo que possa ser cheirado, ouvido, visto, tocado ou saboreado pode ser de grande importância. Por isso, para essa faixa etária, recomendam-se livros de borracha (infláveis e coloridos) ou livros de pano. Por esse material ser normalmente de alto custo, a autora sugere a possibilidade do próprio adulto confeccionar o livro utilizando sacos plásticos resistentes 3.6 OFICINAS AVSI LITERATURA INFANTIL que sejam “recheados de bonitas gravuras” que sejam do universo infantil como bichos, fraldas, brinquedos etc. Costura-se bem um saquinho no outro fazendo assim o formato de um livro que vai facilitar o manuseio pela criança. Da mesma forma outros materiais como tecidos e retalhos podem se transformar em preciosidades nas mãos dos mais pequenos, além destes poderem ser lavados, uma vez que crianças nessa idade levam tudo à boca. Conforme a criança vai crescendo, os temas podem começar a tomar um formato mais organizado com temas como a higiene, a alimentação, o brincar. Quando a criança estiver próxima aos dois anos de idade e a aquisição da linguagem oral já estiver mais dominada, pode-se começar a destacar as palavras, com histórias breves e com poucos personagens e já se pode utilizar livros de papelão, com bordas arredondadas; podem ser livros em formatos geométricos ou mesmo em formato de animais. Se o próprio educador for confeccionar o livro, é importante tomar o cuidado de lixar as bordas para evitar riscos às crianças. Para essa fase, o educador deve utilizar ilustrações grandes e de fácil compreensão de forma que a criança possa recontar a história mesmo sem o auxílio do adulto. • Para leitores dos 3 aos 6 anos, Kaercher (2001) indica-nos o momento em que a escrita começa a tornar-se mais interessante para a criança, momento em que as histórias começam a ganhar um destaque especial e os momentos de leitura adquirem um caráter especial. Nesse momento, começa-se a indicar para a criança a necessidade de acomodar-se para escutar a história, não fazer barulhos para que todos possam ouvir e, assim, poder visualizar o relacionamento do adulto com o livro, seu posicionamento e como o adulto manuseia o objeto livro. Dessa forma, a criança vai construindo o seu modelo de leitor e de leitura. A partir do terceiro ano, a criança começa a se interessar pelos contos de fadas, e estes, por sua vez, auxiliam a criança a organizar suas vivências. Os contos fantásticos também podem ser utilizados como desencadeador de grandes discussões e temáticas na educação infantil. A partir dos quatro anos, as narrativas podem ser um pouco mais longas, com maior número de personagens e com desfechos mágicos; nesse período, as crianças também se interessam por versos rimados, que exploram a sonoridade. Além das histórias editadas, é importante trabalhar com a produção de histórias das próprias crianças; assim elas podem – individualmente ou em grupo – construir suas próprias histórias, através da oralidade, e o professor fazer o papel de escriba. Para ilustrarmos as diferentes formas de apresentação das histórias infantis, nós nos reportaremos ao terceiro capítulo do livro Contar histórias uma arte sem idade, de autoria de Betty Coelho, no qual a autora mostra as inúmeras possibilidades de se trabalhar com o texto literário. Aqui, trabalharemos as principais idéias do texto. No entanto, vale a pena recorrer ao livro no qual a autora dá dicas práticas e faz referências a várias obras que podem ser utilizadas nas diversas modalidades de apresentação. Lembramos ainda que, para se trabalhar com qualquer tipo de apresentação de histórias, é indispensável que o proponente conheça profundamente a história: • Simples Narrativa – Segundo a autora, esta é a forma mais atraente de todas, além de ser a mais tradicional e não requerer nenhum recurso além do narrador que se utiliza da voz, da postura e de toda a expressão corporal para tornar a história atraente. É indicado ainda que os contos de fadas, lendas, fábulas e histórias recolhidas da tradição oral sejam sempre contados sob a forma narrativa para possibilitar que o ouvinte imagine livremente cada uma das situações narradas e cada um dos personagens. Livros para serem narrados: A bonequinha preta; O bonequinho doce; Pituchinha; O rabo do macaco; Tonho, o elefante. • Narrativa com o livro – Existem textos que requerem a apresentação do livro. São aqueles em que a apresentação gráfica e as imagens são tão ricas quanto o texto. Esse tipo de literatura, além de prender a atenção pela história, é atraente pela imagem (o que facilita AVSI OFICINAS 3.7 LITERÃTURA INFANTIL para os não-alfabetizados) e contribui para a construção da seqüência lógica do pensamento infantil. A autora recomenda “mostrar o livro para a classe virando lentamente as páginas com a mão direita, enquanto a esquerda sustenta a parte inferior do livro”. Para narrar com o livro, o narrador deve já conhecer e estudar a história para poder contá-la com as próprias palavras com firmeza e sem consultar o texto para não prejudicar a integridade da narrativa. Deve evitar também comentários para chamar a atenção para as gravuras, pois não se faz necessário. Livros para serem utilizados durante a narração: Filó e Marieta; Corre ratinho; A bela borboleta; O curumim que virou gigante; Flicts; As centopéias e seus sapatinhos; Zé diferente; Maria vai com as outras; Quero casa com janela; Coleção Tererê; Coleção Um, dois, feijão com arroz; O menino Maluquinho; A flor (entre outros). • Narrativa com gravuras – Se o livro tiver um formato pequeno ou ilustrações que antecipem ou estiverem incoerentes com o enredo, ou histórias publicadas juntamente com outros encartes, impossibilita a utilização dos mesmos durante a narração da história. Quando isso acontece, Bety Coelho aconselha a reprodução das gravuras que podem ser ampliadas em cartolina ou através de colagem. As gravuras são ideais para crianças pequenas, pois possibilita maior apreensão dos detalhes e contribuem para a ordenação do pensamento. Alguns cuidados devem ser tomados como colocar antecipadamente as gravuras em ordem de apresentação e, à medida que a história for sendo contada, as gravuras são colocadas em um suporte próprio para elas. Os movimentos de troca de gravuras devem ser feitos com naturalidade e no momento exato; a narração deve fluir mesmo durante a troca das gravuras. Histórias que podem ser contadas através das gravuras: O burrinho verde; O presente dos pássaros; Camilão, o comilão; Confusão no fundo do mar; O coelhinho medroso. • Narrativa com o flanelógrafo – O flanelógrafo é um bom recurso para histórias em que o personagem entra e sai de cena várias vezes. As figuras podem ser confeccionadas em flanela, papel camursa ou feltro ou papel comum, apoiados em papel mais resistente. Estas gravuras devem ter um pedaço de lixa colada no seu verso de forma que elas possam aderir e se soltar da flanela com facilidade. A autora ainda adverte para “não confundir o uso do flanelógrafo com apresentação de gravuras. Na gravura reproduzse a cena. No flanelógrafo, cada personagem é colocado individualmente, ocupando seu lugar no quadro, o que dá a idéia de movimento”. O importante nessa técnica é a ação do personagem principal em um movimento constante. Histórias que possibilitam o uso do flanelógrafo: Feliz como um vaga-lume; Camaleão; A lenda do arco-íris; Uma nuvem chamada fofinha. • Narrativa com desenhos – Fazer desenhos no quadro negro ou em papel de metro é outra alternativa apresentada por Betty Coelho, pelo fato de o desenho aguçar a curiosidade dos ouvintes e ser um recurso atraente; mas, para utilizar os desenhos, é preciso que a história seja de poucos personagens e de traços rápidos. É uma atividade que pode ser compartilhada com as crianças e tem grande alcance pedagógico. Histórias que podem ser desenhadas: As idéias de Tadeu; Nicolau tinha uma idéia. • Narrativa com interferência do narrador e dos ouvintes – Esta técnica consiste na participação ativa do narrador e dos ouvintes através de falas e gestos caracterizados por uma palavra ou frase que se repete em determinados momentos, como no caso de histórias em que se canta um determinado estribilho repetidamente em momentos exatos. Esse recurso é de grande ajuda para grandes platéias, uma vez que o recurso prende a atenção do público que se sente pertencente à história. Histórias que podem sofrer interferências: O castelo amarelo; A galinha ruiva; O coelhinho medroso; Bom dia todas as cores; panela de arroz; Rapunzel; O presente dos pássaros; Confusão no fundo do mar; Pituchinha; O burrinho verde, entre outras. 3.8 OFICINAS AVSI LITERATURA INFANTIL Como vimos, as formas de se apresentar uma história são muitas, mas devem ser escolhidas de acordo com o local e as circunstâncias, observando-se o espaço disponível, a luminosidade, a idade dos ouvintes, o número de pessoas etc. Por fim, queremos lembrar que a literatura infantil é um excelente instrumento pedagógico que pode ser aproveitado para atribuir significados às palavras, trabalhar as fantasias, as angústias e os medos, mas, antes de tudo, é uma fonte de lazer, prazer e alegria. Por isso, não deve ser transformada em algo enfadonho e chato para os leitores e ouvintes. Referências Bibliográficas BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. CRAIDY, Carmem; KAERCHER, Gládis. Educação infantil: pra que te quero? Porto Alegre: Artemed, 2001. COELHO, Betty. Contar histórias. Uma arte sem idade. 6. ed. São Paulo: Ática, 1995. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. 5. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1983. GARCEZ. Lucília H. do Carmo. Cadê a poesia que estava aqui? Jornal do Professor de 1° Grau. p. 7, 1988. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Ática, 1987. KHÉDE, Sonia S. As polêmicas sobre o gênero. In: KHÉDE, Sonia S. (Org.). Literatura infantojuvenil. Um gênero polêmico. Petrópolis: Vozes, 1983. MARTINS, Maria Helena. 0 que é leitura? São Paulo: Brasiliense, 1983. MELLO, Ana Maria L. de, LEONHARDT, Dalva Rigon. A origem e o significado dos contos de fadas. In: PERRAULT, Charles. O Barba Azul. 2. ed. Porto Alegre: Kuarup, 1991. PEREIRA, Lucia Helena Pena. Decodificação critica e expressão criativa: seriedade e alegria no cotidiano da sala de aula. Rio de Janeiro, UERJ, 1992. (Dissertação de Mestrado em Educação) PONDÉ, Glória. A arte de fazer artes. Como escrever histórias para crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: Nórdica, 1985. SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga. As reinações renovadas. Rio de Janeiro: Agir, 1987. SNYDERS, Georges. A alegria na escola. São Paulo: Manole, 1988. YUNES, Eliana. PONDÉ, Glória. Leitura e leituras da literatura infantil. São Paulo: FTD, 1988. ZILBERMAN, Regina. O lugar do leitor na produção e recepção da literatura infantil. In: KHÉDE, Sonia S. (Org.). Literatura infanto-juvenil. Um gênero polêmico. Petrópolis: Vozes, 1983. AVSI OFICINAS 3.9 OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL O Mandarin • • • • • Material utilizado: Casca de ovo; Papel laminado vermelho ou dourado; Caneta nanquim; Lã preta; Cola. Como fazer: 1º Lavar bem uma casca de ovo inteira e vazia; 2º Recortar os moldes do chapéu e do colarinho no papel laminado; 3º Fazer uma trança com a lã preta e colar na lateral interna do chapéu; 4º Desenhar o rosto e o cabelo do Mandarin com caneta nanquim; 5º Colar o chapéu e o colarinho. AVSI OFICINAS 3.11 OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL O Cachorrinho • • • • • • Material utilizado: Papel de espessura firme cor branca (Super White, Canson, Vergê, Cartão, etc.); Caneta nanquim preta; Lápis de cor vermelho; Cola; Balas ou docinhos enrolados em papel franjas; Gliter ou cola gliter vermelho. Como fazer: 1º Recortar o molde no papel; 2º Cobrir com nanquim preto os olhos, nariz, detalhes e manchas; 3º Colorir com o lápis de cor vermelho o laço e passar o gliter; 4º Dobrar o papel nas linhas pontilhadas; colar a ponta nas costas da figura; 5º Colocar uma bala ou um docinho embrulhado em papel com franjas no espaço que foi construído. 3.12 OFICINAS AVSI OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL A Cestinha • • • • • • Material utilizado: Papel de espessura firme da cor desejada (Color Plus, Super White, Canson, Vergê, Cartão, etc.); Papel de presente com estampas delicadas; Fita de seda; Cola; Cola gliter ou purpurina; Balas ou docinhos enrolados em papel com franjas. Como fazer: 1º Recortar o molde no papel escolhido; Atenção: dobrar o papel ao meio; 2º Recortar detalhes ou formas no papel de presente. Colar decorando o lado externo da cestinha; 3º Colar as abas laterais montando assim a cestinha; 4º Dar acabamento usando a cola com gliter ou purpurina; 5º Unir as alças da cestinha usando a fita de seda para fazer um laço; 6º Encher a cestinha com docinhos ou balas enroladas em papel com franjas. AVSI OFICINAS 3.13 OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL O Gatinho • • • • • • • • Material utilizado: Papel de espessura firme da cor desejada (Color Plus, Super White, Canson, Vergê, Cartão, etc.); Papel crepon das cor desejada; Caneta nanquim; Linha da cor do papel; Agulha fina; Cola; Prato pequeno de papelão; Balas ou docinhos enrolados em papel com franjas. Como fazer: 1º Recortar os moldes nos papéis; 2º Cobrir todos os detalhes (olhos, nariz, boca, bigode, etc.) com tinta nanquim; 3º Cortar duas tirinhas de papel crepon que servirão de alças para a calça. Colar no corpo do gatinho já recortado; 4º Recortar a calça seguindo o molde. Primeiro devemos colar as abas da calça montandoa. Depois temos que alinhavar as bordas para franzir; 5º Vestir a calça no gatinho. Puxar as linhas para franzir. Amarrar as pontas no tornozelo e na cintura; 6º Colar a ponta da calça por dentro da calça na parte de trás; 7º Dobrar as patinhas para a frente e colar em um pratinho de papelão; 8º Distribuir balas ou docinhos enrolados em papel com franjas. 3.14 OFICINAS AVSI OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL O Cisne • • • • • • • • Material utilizado: Papel de espessura firme da cor desejada (Color Plus, Super White, Canson, Vergê, Cartão, etc.); Feltro branco ou cor suave (amarelo, rosa ou azul); Caneta nanquim preta; Cola; Lixa fina; Cola gliter ou purpurina; Pratinhos de papelão; Balas ou docinhos enrolados em papel com franjas. Como fazer: 1º Recortar os moldes nos papéis; 2º Colorir o bico do cisne com lápis de cor alaranjado; 3º Colorir os olhos e os detalhes com nanquim preto; 4º Colar os dois modelos correspondentes a parte de trás do cisne, esperar secar e recortar; 5º Colar as duas partes recobertas com feltro no modelo principal do cisne; 6º Lixar suavemente as duas laterais com feltro; 7º Colar o cisne no pratinho de papelão; 8º Decorar o pratinho com balas ou docinhos enrolados em papel azul com franjas; 9º Dar acabamento com cola gliter ou purpurina. AVSI OFICINAS 3.15 OFICINA: UTILIZAÇÃO DE PAPEL O Coelhinho • • • • • • • • Material utilizado: Papel de espessura firme da cor desejada (Color Plus, Super White, Canson, Vergê, Cartão, etc.); Feltro branco ou cor suave (amarelo, rosa ou azul); Caneta nanquim preta; Cola; Lixa fina; Cola gliter ou purpurina; Pratinhos de papelão; Balas ou docinhos enrolados em papel com franjas. Como fazer: 1º Recortar os moldes nos papéis; 2º Colorir o nariz e o detalhes com nanquim preto; 3º Colar os dois modelos correspondentes a parte de trás do coelhinho, esperar secar e recortar; 5º Colar as duas partes recobertas com feltro no modelo principal do coelhinho; 6º Lixar suavemente as duas laterais com feltro; 7º Colar o coelhinho no pratinho de papelão; 8º Dar acabamento com cola gliter ou purpurina; 9º Decorar o pratinho com balas ou docinhos enrolados em papel alaranjado ou verde. 3.16 OFICINAS AVSI OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL Suporte para panelas • • • • • Material utilizado: Jornal; Cola; Corda sisal; Tinta ; Verniz. Como fazer: 1º Fazer tubos (roletes) com meia folha de jornal; 2º Fazer roldanas (rodas) com diâmetro 5 cm, usando cabo de vassoura ou outro material (tubo PVC, por exemplo); 3º Fechar as roldanas com cola na extremidade. Deixar secar; 4º Amarrar as roldanas uma a outra com sisal, ate formar um circulo com 6 ou 8 pecas, pintar, aplicar verniz para acabamento. AVSI OFICINAS 3.17 OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL Máscaras com Balão Material utilizado: • Balão para festas; • Papel revista; • Cola branca. Como fazer: 1º Encher o balão ate metade de sua capacidade; 2º Cortar folhas de revistas (picar com as mãos) em tamanhos variados; 3º Revestir o balão com papel picado (colocando cola branca sobre o balão, cobrindo-o totalmente; 4º Após estar seco fazer furo no balão para saída do ar soltando o revestimento do papel; 5º Pressionar o revestimento sobre o rosto (olho, nariz e boca) modelar a impressão com papel acompanhando os ressaltos; 6º Após secar aplicar nova camada de papel. Cesto em Jornal Material utilizado: • Jornal; • Cola. Como fazer: 1º Fazer rocetes de jornal com a folha inteira (canudos); 2º Achatar os canudos de jornal a espessura mais fina possível; 3º Sobrepor as tiras uma sobre a outra com cola branca; 4º Formar círculos com diâmetro a critério; 5º Colocar círculos um por fora do outro, observando deixar 3 milímetros acima um do outro sempre aumentando o diâmetro. 3.18 OFICINAS AVSI OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL Tintas Naturais/Extração Material utilizado: • Legumes frescos; • Cola branca. Como fazer: Extração 1º Cozinhar os legumes com pouca água para extração das cores: beterraba, cenoura, folhas etc. uma espécie por vez; 2º Após a extração adicionar cola branca mais consistente possível; 3º Para aplicação em papel e cartolina; 4º Chás mate e outras ervas a fervura devera ser com mínimo de água possível. Caixas Presentes Material utilizado: • Caixa de leite (vazia) tipo retangular; • Acetona; • Algodão. Como fazer: 1º Umedecer o algodão na acetona, pressionar em circulo sobre a caixa para dissolver a tinta da impressão gráfica; 2º Dar formas as caixas moldando com as mãos; 3º Fazer furos na parte superior da caixa (com furador) e passar fita tecido para amarrar as embalagens. AVSI OFICINAS 3.19 OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL Porta-Treco a) b) c) d) Cortar uma garrafa pet coca-cola conforme a fig. 1; Cortar a coroa conforme a fig. 2; Dobrar conforme a fig. 3; Dobrar para dentro observando a fig. 4. 3.20 OFICINAS AVSI OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL Coelho com Caixa de Leite a) b) c) d) e) f) g) h) i) Retirar a tampa da caixa, ver fig. 1; Retirar a tampa, pressionar conforme, fig. 2; Observar dobra (pressão para fechar) fig. 3; Dentes e orelhas fig. 4 e 5; Fazer corte horizontal na caixa para encaixe dos dentes, cortar com estilete, conforme fig. 6; Orelhas, observar fig. 5, cortar em cartolina, mais ou menos 10 cm. Grampeá-las conforme, fig. 7; Revestir a caixa de leite com papel colorido para disfarçar propagandas da embalagem; Criar olhos chapados e nariz, fazer barbatanas de canudos de refrigerante; Para encaixar barbatanas fazer furos. Ver fig. 7. AVSI OFICINAS 3.21 OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL Bolsa de Garrafa Pet a) b) c) d) e) f) g) Cortar garrafa retirando parte cônica, ver fig. 1; Observar fig. 2; Recortar conforme fig. 3 e 4; Dobrar tampa conforme fig. 5; Eliminar ângulo conforme fig. 5b; Parte cônica conforme fig. 7. Encaixe no corte “x” da garrafa; Colocar alça de barbante lateral ou costas. 3.22 OFICINAS AVSI OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL Peão de Jornal a) b) c) d) e) f) Fazer canudos de folha de jornal conforme fig. 1 Achatar canudos em folhar retas; Enrolar palitos de fósforo no canudo de jornal conforme fig. 2; Dar seqüência enrolando conforme fig. 3; Colar a ponta, enrolar até o final; Observar fig. 4. Concluída. AVSI OFICINAS 3.23 OFICINA: MATERIAL RECICLÁVEL Revestimento de Embalagem com Sisal e Papel tipo Seda a) b) c) d) e) Desfiar a corda sisal e cortar as fibras em partes pequenas; Umedecer a superfície a ser revestida com cola branca; Salpicar as fibras sobre a superfície com cola; Envolver com papel seda, pincelar com cola branca, com pincel à seco; Ver desenho. 3.24 OFICINAS AVSI TRABALHO EM EQUIPE TRABALHO EM EQUIPE “Há um bocado de diferença entre pessoas trabalhando juntas num projeto e todas elas apenas trabalhando ao mesmo tempo.” Estudos indicam que, para qualquer organização sobreviver no próximo século, faz-se necessário o investimento na formação de pessoas para que aprendam a trabalhar em equipe, pois o sucesso não depende mais de um indivíduo e, sim, do trabalho integrado de várias pessoas, pois não adianta ter talentos trabalhando sozinho; os talentos de cada pessoa encontram uma valorização maior em uma construção comum. No entanto, é preciso estar atento, pois formação de grupos é bastante comum; grupos existem em todo lugar, porém, equipes são raras. Formar equipes não é uma tarefa fácil. A convivência é fator fundamental para a formação de equipes. É preciso educar continuamente as pessoas na metodologia de construção e fortalecimento de equipe, desenvolvendo principalmente a competência interpessoal, pois durante muito tempo as pessoas foram educadas para o individualismo e a competição; no entanto, para trabalhar em conjunto, é preciso cooperar, compartilhar, respeitar as individualidades e fortalecer relações com os colegas que, muitas vezes, não compactuam com suas crenças e valores. O trabalho em equipe é uma atividade de doação e compromisso com o outro, é o sentimento de querer contribuir e colaborar para o sucesso individual e grupal; por isso, precisa ser visto como um processo de desenvolvimento pessoal e profissional. Hoje, diante de problemas e buscas de soluções do mundo globalizado, surge a exigência da formação de equipes de trabalho. O que distinguem grupos e equipes? Uma equipe de trabalho é um grupo de duas ou mais pessoas que se juntam com um mesmo objetivo, buscando alcançá-los de forma compartilhada. Um grupo pode se transformar em uma equipe quando: • partilham suas idéias para a melhoria do que fazem e de todos os processos de trabalho do grupo; • respeitam as individualidades e sabem ouvir; AVSI OFICINAS 3.25 TRABALHO EM EQUIPE • • • · • comunicam-se ativamente; desenvolvem respostas coordenadas em benefício dos propósitos definidos; constroem respeito, confiança mútua e afetividade nas relações; participam do estabelecimento de objetivos comuns; desenvolvem a cooperação e a integração entre os membros. Estruturar uma equipe é identificar potencial, competências e a forma como cada um pode contribuir para o alcance dos resultados, além da harmonização dos diferentes estilos individuais. Conhecer cada um no aspecto pessoal e profissional é requisito fundamental para se conseguir a integração dos talentos e das emoções. Para o indivíduo, fazer parte de uma equipe bem estruturada representa uma oportunidade de perceber o trabalho como uma nova forma de relacionamento e de liberação do potencial criativo. Para uma organização, montar equipes bem estruturadas pode representar a diminuição de desperdícios, eficiência nos processos internos, idéias inovadoras, melhoria da qualidade do ambiente e conseqüentemente dos resultados. Cientes de não poder desenvolver essa temática de forma completa como seria necessário, anexamos abaixo alguns instrumentos que podem ser utilizados como referência para o desenvolvimento de trabalhos futuros. Anexo Dinâmicas: 1. Gira Roda É formada a roda com todos de mãos dadas. Sem soltar as mãos, devem conseguir fazer a roda virar para fora (ficando todos de costas para o centro da roda) sem cruzar os braços no peito. E agora como fazer? 2. Máquina Em pequenos grupos, devem construir uma máquina (com o próprio corpo) em funcionamento, criando uma sincronia de movimentos. 3. Teremos um grupo de observação. Formar grupos de 5 e cada grupo recebe 5 envelopes com peças de cartolina que estão misturadas. A atividade é formar 5 quadrados sem usar a fala; enquanto o grupo realiza a tarefa, o observador registra as ações individuais e coletivas. Ao final da atividade, o grupo discute as ações, os resultados e os sentimentos. 3.26 OFICINAS AVSI TRABALHO EM EQUIPE Textos de Apoio 1. Responsabilidade Esta é uma história sobre 4 pessoas: Todo mundo, alguém, qualquer um e ninguém. Havia um importante trabalho a ser feito e todo mundo tinha certeza de que alguém o faria. Qualquer um podia tê-lo feito, mas ninguém o fez. Alguém se zangou porque era um trabalho de todo mundo. Todo mundo pensou que qualquer um poderia fazê-lo, mas ninguém imaginou que todo mundo deixasse de fazê-lo. Ao final, todo mundo culpou alguém, quando ninguém fez o que qualquer um poderia ter feito. Autor desconhecido Ter responsabilidade é ter compromisso. É ter capacidade de se comprometer em cumprir uma tarefa ou dar uma resposta sem nenhuma pressão externa. Responsabilidade Individual • Ser responsável é ter a capacidade de responder às provocações que a realidade coloca. Responsabilidade Coletiva • Ser responsável é ter a capacidade de influir, interferindo na coletividade; de colocar em grupo as próprias capacidades para responder juntos a uma necessidade que precisa ser respondida. Respeito • Respeito envolve muitas atitudes importantes: a consideração porque o outro é um ser único e irrepetível com modalidades de se colocar diferentes das minhas; a admiração por uma pessoa é o cuidado, a valorização do outro – da natureza, dos animais e das plantas –, enfim, do mundo que nos cerca. • Numa convivência em grupo, é preciso ter respeito pelo outro e cobrar que seja respeitado. 2. Você Sabe Ouvir 1) Para ouvir, você se coloca em posição de atenção, diante da pessoa que vai lhe falar, assegurando-lhe um ambiente favorável à comunicação? ____Geralmente ____ Às vezes ____ Raramente AVSI OFICINAS 3.27 TRABALHO EM EQUIPE 2) Ao escutar, você observa quem fala? ____Geralmente ____ Às vezes ____ Raramente 3) Decide, julgando pela aparência e maneira de falar do interlocutor, se o que ele tem a dizer vale a pena ou não ? ____Geralmente ____ Às vezes ____ Raramente 4) Escuta, procurando principalmente idéias? ____Geralmente ____ Às vezes ____ Raramente 5) Enquanto ouve, você determina as suas tendências e trata de justificá-las perante a pessoa que lhe fala? ____Geralmente ____ Às vezes ____ Raramente 6) Você presta atenção a quem lhe está falando? ____Geralmente ____ Às vezes ____ Raramente 7) Ouvindo uma opinião com a qual não concorda, você interrompe imediatamente quem lhe fala? ____Geralmente ____ Às vezes ____ Raramente 8) Antes de emitir sua opinião sobre alguma coisa que ouviu, você procura certificar-se de que compreendeu o que lhe foi dito? ____Geralmente ____ Às vezes ____ Raramente 9) Sentindo que as suas convicções estão sendo abaladas pelo que ouve, procura certificarse de que compreendeu o que lhe foi dito? ____Geralmente ____ Às vezes ____ Raramente 10)Procura você, conscientemente, avaliar a lógica e a credibilidade do que ouve? ____Geralmente ____ Às vezes ____ Raramente Pontos RESULTADO: _________________ INTERPRETAÇÃO: __________________ 3. História Deus sabe Contam que na carpintaria houve uma vez uma estranha assembléia. Foi uma reunião de ferramentas para acertarem suas diferenças. Um martelo exerceu a presidência, mas os participantes lhe notificaram que teria que renunciar. A causa? Fazia demasiado barulho; e além do mais, passava todo o tempo golpeando. O martelo aceitou sua culpa, mas pediu que também fosse expulso o parafuso, dizendo que ele dava muitas voltas para conseguir algo. Diante do ataque, o parafuso concordou, mas por sua vez, pediu a expulsão da lixa. Dizia que era muito áspera no tratamento com os demais, entrando sempre em atritos. A lixa acatou, com a condição de que se expulsasse o metro, que sempre media os 3.28 OFICINAS AVSI TRABALHO EM EQUIPE outros segundo a sua medida, como se fora o zinco perfeito. Nesse momento entrou o carpinteiro, juntou o material e iniciou o seu tratamento. Utilizou o martelo, a lixa, o metro e o parafuso. Finalmente a madeira converteu-se num fino móvel. Quando a carpintaria ficou novamente só, a assembléia reativou a discussão. Foi então que o serrote tomou a palavra e disse: “Senhores, ficou demonstrado que temos defeitos, mas o carpinteiro trabalha com nossas qualidades, com nossos pontos valiosos. Assim, não pensemos em nossos pontos fracos, e concentremos-nos em nossos pontos fortes”. A assembléia entendeu que o martelo era forte, o parafuso unia e dava força, a lixa era especial para limar e afinar asperezas, e o metro era preciso e exato. Sentiram-se então como uma equipe capaz de produzir móveis de qualidade. Sentiram alegria pela oportunidade de trabalharem juntos. Referências Bibliográficas ANTUNES, Celso. Manual de técnicas de dinâmica de grupo de sensibilização de ludopedagogia. Petrópolis: Vozes, 2000. MOSCOVICI, Fela. Equipes que dão certo. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1994. FAGUNDES, Márcia Botelho. Aprendendo valores éticos. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. AVSI OFICINAS 3.29 A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO1 Desde os primórdios, o jogo é muito importante na vida da criança. Meninas brincam com bonecas e meninos brincam com bola de gude, soltam pipas, colecionam figurinhas; isso acontece com a mesma necessidade e entusiasmo dos seus antepassados. Brincar é fundamental na vida da criança, especialmente na primeira infância. É tão vital que do jogo e da forma como é conduzido depende em grande parte o desenvolvimento do futuro ser humano. Para algumas crianças, jogar é uma necessidade instrutiva mais forte do que comer e dormir. Assim, o jogo tornou-se um recurso muito valioso no ensino da Matemática. O que caracteriza o jogo como pedagógico é a atitude e o objetivo que envolve a sua utilização. Um jogo pedagógico com as letras do alfabeto impressas em cubos de madeira, por exemplo, pode ser usado para montar um trenzinho, e um trenzinho pode ser usado como instrumento de alfabetização, quando a criança se interessa em ler o nome formado pela função das letras. 1. Funções do Jogo Existem divergências em torno do jogo educativo que estão relacionadas à presença concomitante de duas funções: 1.1. Função lúdica – o jogo propicia a diversão, o prazer e até o desprazer quando escolhido voluntariamente; 1 Este texto é fruto das reflexões do professor Renato Srbek Araújo, Mestre em Educação pela UFMG e professor de Matemática na Educação Infantil no Curso de Pós-Graduação da UNI-BH. AVSI OFICINAS 3.31 A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO 1. 2. Função educativa – o jogo ensina qualquer coisa que complete o indivíduo em seu saber, seus conhecimentos e sua apreensão do mundo (Campagne, 1989, p. 112). O equilíbrio entre as duas funções é o objeto do jogo educativo. Entretanto, o desequilíbrio provoca duas situações: não há mais ensino, há apenas jogo; quando a função educativa elimina todo hedonismo, resta apenas o ensino. Se o professor escolhe um jogo de memória, com estampas de frutas, destinado a auxiliar na discriminação das mesmas, mas as crianças utilizam as cartas do jogo para fazer pequenas construções, a função lúdica predomina e observa-se o aspecto educativo definido pelo professor: discriminar frutas. Da mesma forma, certos jogos perdem rápido sua dimensão lúdica quando empregados inadequadamente. O uso de quebra-cabeças e jogos de encaixes como modalidades de avaliação constrange e elimina a ação lúdica. Se perde sua função de propiciar prazer em proveito da aprendizagem, o brinquedo torna-se instrumento de trabalho, ferramenta do educador. O “brinquedo” já não é brinquedo, é material pedagógico ou didático. Alguns filósofos e teóricos, quando tratam da utilização do jogo pela educação, apontam o que denominam “paradoxo do jogo educativo”. A contradição vista no jogo educativo se resume à junção de dois elementos considerados distintos: o jogo e a educação. O jogo, dotado de natureza livre, parece incompatibilizar-se com a busca de resultados, típica de processos educativos. Embora autores como Bally (1959), Caillois (1967), Huizinga (1951), Alam (1957), Herriot (1983), Rabecq-Maillard (1969), Sutton-Smith (1971), entre outros, destaquem a liberdade como atributo principal do jogo, no campo da educação procura-se conciliar a liberdade, típica dos jogos, com a orientação própria dos processos educativos. Em outros termos, elimina-se o paradoxo na prática pedagógica ao se preservar a liberdade de brincar da criança. Desde que não entre em conflito com a ação pedagógica intencional do professor, deve refletir-se na organização do espaço, na seleção dos brinquedos e na interação com as crianças. Cresce o número de autores que adotam o jogo na escola assumindo o significado usual: incorporando a função lúdica e a educativa. Entre eles, destaca-se Campagne (1989, p.113) que sugere critérios para uma adequada escolha de brinquedos de uso escolar de modo a garantir a essência do jogo. São eles: 1) o valor experimental – permitir a exploração e a manipulação; 2) o valor da estruturação – dar suporte à construção da personalidade infantil; 3) o valor de relação – colocar a criança em contato com seus pares e adultos, com objetos e com o ambiente em geral para propiciar o estabelecimento de relações; 4) o valor lúdico – avaliar se os objetos possuem as qualidades que estimulam o aparecimento da ação lúdica. A tais critérios são acrescidos questionamentos relativos à idade, preferências, capacidades, projetos de cada criança e uma constante verificação da presença do prazer e dos efeitos positivos do jogo. Há que se considerar ainda que o jogador não é inato, mas uma aquisição social. Dessa forma, o educador tem que estar atento para auxiliar a criança, ensiná-la a utilizar o brinquedo. Só depois ela estará apta a uma exploração livre. A organização de espaços adequados para estimular brincadeiras constitui hoje uma das preocupações da maioria de educadores e profissionais de instituição infantis. Nessa organização do espaço, Campagne (1989, p.116) alerta para a necessidade de analisar componentes como: a disponibilidade de materiais, o nível de verbalização entre adultos e crianças e aspectos educativos e corporais para estimular brincadeiras. O suporte material deve incluir locais apropriados, dotados de estantes para comportar diferentes tipos, dispostos de modo acessível às crianças e espaços para o seu uso. A verbalização do professor deve incidir sobre a valorização de características e 3.32 OFICINAS AVSI A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO possibilidades dos brinquedos e possíveis estratégias de exploração. Enfim, o professor deve oferecer informações sobre diferentes formas de utilização dos brinquedos, contribuindo para a ampliação do referencial infantil. A dimensão corporal não pode estar ausente. Na relação com objetos, solicitam-se o corpo e os sentidos. O educador deve também brincar e participar das brincadeiras, demonstrando não só o prazer de fazê-lo, mas estimulando as crianças para tais ações. Finalmente, o caráter educativo coloca o jogo na ordem de meios e recursos que consideram desejos, necessidades de expressão e outros valores exigidos para a implementação de um projeto educativo. 2. Atributo X Elemento X Conjunto Desde cedo, as crianças têm contato com os conjuntos. Não é raro vermos alunos formando grupos com peças, brinquedos, colecionando objetos e, em jogos, organizando grupos de pessoas para formar times. Elas fazem isso sem precisarem ser ensinadas. Para a Matemática, as noções de conjunto e elemento são consideradas noções intuitivas – são aceitas sem demonstrações formais rígidas. Pode-se dizer que o conceito de conjunto é primitivo, como também o é o conceito de elemento. Quando trabalhamos com conjuntos, as diferentes características das peças são consideradas atributos. Por exemplo, em uma caixa de blocos lógicos, temos 48 unidades organizadas segundo seus atributos. a) forma (triângulo, retângulo, quadrado e disco) b) cor (azul, amarelo, vermelho) c) tamanho (grande, pequeno) d) espessura (fino, grosso) A quantidade de materiais que compõem o conjunto é dada pelo produto de seus atributos: 4 formas x 3 cores x 2 tamanhos x 2 espessuras = 4 x 3 x 2 x 2 = 48 peças. Devemos estabelecer uma distinção: tamanho e espessura não são propriamente atributos, pois dependem de uma comparação para caracterizarem determinado elemento. Para um pequeno, outro grande. Só podemos caracterizálos dessa forma porque comparamos os tamanhos: não há nada em qualquer um deles que determine o seu tamanho. Atributos, então, são características físicas ou comuns ao próprio objeto. Características como tamanho, peso espessura etc. são chamadas de noções relativas. Dependem de uma comparação que relacione dois objetos para existirem. As noções relativas somente podem ser usadas como atributos se existirem apenas duas possibilidades para cada característica. É o que acontece com os blocos lógicos: ou a peça é grande ou pequena, ou é fina ou grossa. Não há meio-termo. Na construção de um conjunto, precisamos escolher quais os elementos que queremos. “Para isto, criamos uma condição que selecione os elementos que queremos”. Essa condição é chamada de critério. Por exemplo, trabalhando ainda com blocos lógicos, podemos determinar o conjunto de triângulos. Nele estão incluídos todos os triângulos pequenos, grandes, finos, grossos, azuis, amarelos etc. Como o critério escolhido foi apenas “ser triângulo”, qualquer elemento que atenda a essa condição pode entrar no conjunto. Podemos selecionar elementos, a partir da articulação de dois ou mais atributos, de modo a ter no conjunto apenas aqueles que realmente queremos. Articulando os atributos de cor, forma e tamanho em um único critério, formamos o conjuntos dos triângulos amarelos pequenos; um critério desse tipo elimina todos os elementos que não atendam à condição imposta. AVSI OFICINAS 3.33 A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO Estamos habituados a lidar com a idéia de conjunto relacionando-a a “grupo” ou “coleção” de objetos; para a Matemática, contudo, a palavra “conjunto” possui um significado especial: nem sempre será usada para designar grupos, já que podemos ter um conjunto formado por apenas um elemento (unitário) ou por nenhum (vazio). Um conceito fundamental é o de conjunto universo. Este significa a reunião de todos os elementos disponíveis para trabalharmos. Dentro do universo das peças que compõem os blocos lógicos não há nenhuma peça verde. O conjunto de peças verdes é, portanto, vazio no universo das peças que compõem os blocos lógicos. Em outros universos de elementos, entretanto, pode não ser vazio: basta existir algum elemento com atributo verde. O conjunto unitário parte da mesma premissa. Tomemos, por exemplo, o conjunto de corpos celestes que compõem o Sistema Solar para determinar um conjunto universo. Neste, podemos facilmente determinar um conjunto unitário: o conjunto de sóis do nosso Sistema Solar. Como só possuímos um Sol, este conjunto é unitário. Da articulação de atributos surgem os critérios que darão origem aos conjuntos. Um grupo de elementos, por si só, não forma um conjunto. É necessário que estes estejam reunidos a partir de uma proposição lógica – um critério para poderem determinar um conjunto. C E A G - conjunto E - elemento A - atributo 3. Brinquedos Pedagógicos Costuma-se chamar brinquedo pedagógico ao que foi fabricado com o objetivo de proporcionar determinadas aprendizagens, tais como cores, formas geométricas, números ou letras etc. 1º) Como já foi colocado anteriormente, o que caracteriza o brinquedo é a atitude que envolve a sua utilização. Um brinquedo pedagógico com as letras do alfabeto impressas em cubos de madeira, por exemplo, pode ser usado para montar um trenzinho, e um trenzinho pode ser usado como instrumento de alfabetização, quando a criança se interessa em ler o nome do seu fabricante, no exemplo já mencionado. 2º) O que é e o que não é pedagógico? Será que a pedagogia se restringe a ensinar formas, cores, números e letras? A educação é um processo global e contínuo. Cada etapa de desenvolvimento, cada momento da vida de uma criança tem prioridades diferentes que a atuação pedagógica precisa atender. O ursinho de pelúcia é o mais pedagógico que se pode oferecer em certos momentos, como uma bola de futebol pode ser em outros. Seguindo esta linha de pensamento, poderíamos dizer que brinquedo pedagógico é todo o objeto que atende à necessidade da criança no momento em que ela o utiliza. Esta definição seria a mais correta do ponto de vista conceitual, pois também são tarefas da educação o desenvolvimento emocional e social, a preservação da alegria e da saúde mental da criança. Como já dissemos antes, todo brinquedo pode ser pedagógico, dependendo das circunstâncias, assim como também o mais educativo dos brinquedos pode deixar de sê-lo em determinada situação, pois o valor do brinquedo está diretamente relacionado com o que ele consegue provocar na criança. Podemos adotar a denominação brinquedo pedagógico não a nível conceitual, mas apenas para caracterizar um tipo de brinquedo que tem uma proposta mais objetiva. No brinquedo simbólico, a satisfação acontece no decorrer da atividade, ao passo que no brinquedo pedagógico o desafio é justamente obter a satisfação do final da atividade, 3.34 OFICINAS AVSI A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO ou seja, quando o objetivo do jogo foi alcançado. Mas este prazer de ter conseguido pode ser tão importante que a criança queira repetir o mesmo jogo muitas vezes só para revivê-lo. Montessori constatou que um determinado jogo pode atender de tal forma a uma necessidade interior da criança que ela o executa algumas dezenas de vezes, polarizando sua atenção de maneira que, ao largar o jogo, está mais calma e relaxada, podendo até passar a ter comportamento mais equilibrado. O maior valor do brinquedo está na sua gratuidade. No brinquedo livre e espontâneo, a criança chega a alcançar um nível de participação, uma profundidade que a enriquece na medida em que aumenta sua capacidade de engajamento, pelo livre exercício de concentração de atenção. Nem só os jogos que alimentam a fantasia da criança atendem às suas necessidades, visto que existem outras necessidades inerentes ao seu processo de desenvolvimento. A proposta definida de um brinquedo pedagógico pode funcionar como desafio à participação da criança. É motivador o subjacente convite a uma auto-avaliação de habilidades ou à possibilidade de obter sucesso e reforçar o autoconhecimento. As crianças gostam de superar-se. 4. Material Alternativo: um desafio à criatividade Costuma-se chamar de “sucata” ao material descartável, àquele material que, aparentemente, não tem mais utilidade, mas que, com um pouco de criatividade, pode ser reaproveitado. Por que reaproveitar? É mais econômico e, às vezes, pode ser o único tipo de matéria-prima disponível; mas não é só isso, a redução do lixo é uma das grandes questões do novo século. A criação de brinquedos com material alternativo é também uma proposta de mudança, um desafio à nossa capacidade e um convite para uma pequena aventura. O processo criativo nos introduz ao prazer de transformar, de tornar útil e belo algo que até então era considerado inútil e feio. Esta magia pedagógica pode ajudar o professor a construir os recursos que enriquecerão e facilitarão o seu trabalho, mas o mais importante é que ele também será transformado pelo prazer de criar recursos que possam proporcionar maior número de descobertas e de experiências às crianças. Quando partilhamos com uma criança a descoberta de um objeto cuja utilização pode ser reinventada estamos também mostrando o valor e o encanto das pequenas coisas. Essa atitude pode ser bem mais do que uma alternativa de material para brincar; é uma alternativa para uma escala de valores. Utilizamos material alternativo não só por ser gratuito, mas porque nos proporciona oportunidade para criar e para nos libertarmos do vício do consumo. O processo criativo, uma vez iniciado, vai se multiplicando. O primeiro brinquedo é feito quase por necessidade, o segundo já é mais fácil e os outros já vão fazendo parte de um processo contínuo de criação em que qualquer material alternativo passa a ser um desafio irresistível. 5. Construção do Conceito de Número segundo Jean Piaget 5.1. Tipos de conhecimento Para Piaget, há três tipos indissociáveis de conhecimento: o físico, o lógicomatemático e o social. O conhecimento físico ocorre por meio de abstração simples, que é a abstração (possibilidade da criança fazer relações) das propriedades observáveis no objeto: o tamanho, a forma, a cor, a textura, o som, o sabor, entre outros que podem ser observados pela atuação dos sentidos. Além disso, o objeto pode ser quebrado, dobrado, AVSI OFICINAS 3.35 A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO vergado ou até mesmo destruído pela ação do sujeito sobre ele. Tudo isso faz parte das propriedades físicas do objeto e, atuando sobre ele, a criança obtém novas informações. Na abstração simples ou conhecimento físico, o “ feed-back “vem dos objetos. O conhecimento físico é, portanto, um conhecimento empírico, mas é de fundamental importância para a estruturação do pensamento matemático. O conhecimento lógicomatemático desenvolve-se através da abstração reflexiva que ocorre como resultado da coordenação das ações mentais do sujeito sobre o objeto, estabelecendo relações. No conhecimento lógico-matemático, o “feed-back” provém das relações coordenadas que a criança cria. 5.2. Que São Relações Coordenadas? Considerando, como exemplo, uma criança observando e explorando um cubo e uma bola. Ela pode perceber que a bola é vermelha e o cubo é azul. A bola é grande e o cubo é pequeno. Essas são características físicas. Mas, se comparar os dois objetos, descobrirá que a bola rola e o cubo não rola. Nesse caso, houve ação da criança sobre o objeto e a relação observada não seria possível se as ações não tivessem sido realizadas. Daí, a criança passa a exigir o movimento de rolar apenas da bola e começa a pensar: “por que o cubo não rola?” A procura de outros objetos que rolam, ou não passa a ser objetivo da criança, que começa a estruturar um sistema de classificação dos objetos que rolam e dos objetos que não rolam. As relações desenvolvidas nesse processo são coordenadas e contribuem para a reestruturação dos esquemas lógico-matemáticos. O conhecimento lógico-matemático tem características específicas, como: • Não pode ser transmitido nem ensinado, pois é construído a partir das relações coordenadas, criadas pela criança sobre o objeto. • É construído pela elaboração de uma estrutura primária, original; cada estrutura posterior é construída a partir das anteriores e a elas é integrada num processo constante de superação; por isso, se diz que, muitas vezes, a criança aprende sozinha e, se o ambiente escolar for estimulador, ela constrói seu conhecimento de uma forma cada vez mais coerente. O conhecimento lógico-matemático nada tem de arbitrário, pois sua fonte é interna, está na mente da criança em sua interação com o meio, através de ações coordenadas de modo a estabelecer relações. Já o conhecimento social é externo e tem como fonte primária as convenções desenvolvidas pelas pessoas. São exemplos de conhecimento social o fato de 25 de dezembro ser a comemoração do Natal, o fato de a criança chamar-se João, Pedro ou outro nome próprio; os sinais matemáticos +, —,= e os nomes atribuídos às operações e seus termos são também convenções. A natureza arbitrária do conhecimento social é sua principal característica. A maneira de adquirir conhecimento social é por meio da convivência com pessoas. Quando a criança diz o nome dos números (um, dois, três...), ela está verbalizando um conhecimento social, o que não garante que tenha conhecimento operatório desses números. A criança não elabora a construção de símbolos matemáticos que, por serem arbitrários, serão conhecidos através de informações e introduzidos pelo professor no momento oportuno. Esse tipo de conhecimento é adquirido através da transmissão social. São valores, normas sociais, regras, nomes das pessoas e objetos que o indivíduo precisa saber para se integrar ao meio onde vive. São estabelecidos arbitrariamente. Por exemplo, não há uma razão lógica para se chamar o lugar em que comemos de “mesa” ou o lugar onde sentamos de “cadeira”. Sua arbitrariedade é confirmada quando constatamos que em outras línguas esses mesmos conceitos têm outras palavras para representá-los. A fonte do conhecimento social é essencialmente externa. 3.36 OFICINAS AVSI A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO 5.3. Relações Estruturais para a Construção do Conceito de Número É comum observar nas crianças pequenas algumas estratégias de contagem que, num primeiro momento, podem nos parecer impossíveis. 1) Se os objetos estão enfileirados (espacialmente organizados), ela salta alguns na contagem ou conta um mesmo elemento mais de uma vez. 2) Quando eles estão espacialmente espalhados, ela os vai contando “indefinidamente”, não sabe por onde iniciar a contagem, nem mesmo quando parar, conta elementos mais de uma vez e deixa de contar alguns. Por que as crianças criam estas “estratégias”? Elas fazem assim porque ainda não estabeleceram mentalmente uma relação de ordem entre os objetos a serem contados (relação de ordem: criar dois grupos na contagem – “os já contados” e “os não contados”. Elas devem perceber que cada objeto só será contado apenas uma vez e que, uma vez um objeto, dentre outros, foi contado, ele passa a pertencer ao grupo dos “já contados”. Para esta construção, as crianças terão que perceber que os objetos serão colocados em ordem. Mas colocá-los em ordem não quer dizer que basta a criança dispor esses objetos numa ordem espacial para garantir a ela não saltar e nem repetir nenhum elemento na contagem. Colocar os elementos em ordem é, durante a contagem, criar sobre o grupo a ser contado dois outros subgrupos: perceber que, se um objeto foi contado, ele passa a pertencer imediatamente ao subgrupo “dos já contados”, que cada elemento só será contado uma única vez e que todos os objetos deverão ser incluídos na contagem. Grupo a ser contado: 06 elementos AVSI OFICINAS 3.37 A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO Grupo “a contar” 1ª contagem Grupo “dos já contados” Grupo “a contar” 2ª contagem Grupo “dos já contados” Observações: • O grupo dos “a contar” decresce e o dos já contados” cresce. • Todos os objetos devem ser incluídos na contagem. Mas será que basta a criança estabelecer esta relação de ordem entre os objetos para que o problema da quantificação esteja resolvido? Não, só isso não é suficiente, pois a criança pode ordenar os objetos mentalmente e contá-los apenas nomeando os elementos e não quantificando. É o mesmo que ela ir apontando os objetos e dizendo: esse é o João (o um), esse é o Paulo (o dois)... Nesse caso, quando lhe pedimos para nos dar os cinco objetos contados, ela, em geral, aponta para o último, mostrando-nos o quinto (ordinal). Isso nos demonstra que a criança ainda não construiu a cardinalidade (noção de quantidade), o conceito de número. Assim, para construir esse conceito, além da relação de ordem, é necessário a criação de um outro tipo de relação mental entre os objetos: a inclusão hierárquica de classe (um grupo formado por subgrupos). Um grupo de cinco animais é formado por dois cães, dois gatos e um coelho. Um grupo de cinco frutas é formado por duas laranjas e três bananas. Um grupo de cinco unidades é formado por: 3.38 OFICINAS AVSI A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO Portanto, para construir o conceito de número, a criança precisa fazer a síntese entre dois tipos de relação: a contagem ordenada e a inclusão hierárquica de classe. O que significa isso? Significa que cada objeto inclui o objeto que o precede na proporção mais um. Por exemplo, quando a criança conta sete elementos, ela vai incluindo, mentalmente: um em dois, dois em três, três em quatro, quatro em cinco, cinco em seis e seis em sete. 5.4. Relação de Inclusão Conforme já foi dito, a percepção de semelhanças e diferenças entre os objetos leva à idéia de atributo: na formação de um conjunto o aluno saberá destacar a(s) característica(s) comum(ns) a todos os elementos que o constituem. Segundo Piaget, a identificação de conjuntos com até 5 elementos pode ser feita de maneira instantânea; daí porque os números até 5 são chamados números perceptuais. A partir daí, o número de elementos de outros conjuntos baseadas nos primeiros: AVSI OFICINAS 3.39 A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO A determinação dos conjuntos pode ser feita de duas maneiras: POR EXTENSÃO POR COMPREENSÃO Todos os elementos são designados O atributo comum é destacado a, e, i, o , u Vogais A construção da estrutura de conservação de quantidades discretas leva a inúmeras atividades envolvendo conjuntos com o mesmo número de elementos; a partir de tais atividades, podem ser exploradas as idéias de equivalência (equipotência entre conjuntos) e correspondência um-a-um (correspondência biunívoca). Lembramos mais uma vez que o importante é a construção dos conceitos e não simplesmente o uso da terminologia específica. A construção da seriação possibilita outras atividades que, em última análise, se referem à comparação e ordenação; assim, • Qual o conjunto que tem mais elementos? • Qual o conjunto que tem menos elementos? Como colocá-los em ordem? • Quantos elementos este conjunto tem a mais (ou a menos) que o outro? • Quantos elementos devo colocar neste conjunto para ele ficar com 5 elementos? Finalmente, a possibilidade de classificação leva a um grande enriquecimento no que se refere à descoberta das relações lógicas, entre as quais, a de inclusão. Os Blocos Lógicos criados por Zoltan Dienes, constituídos por 48 peças de cor, forma e espessura variadas, possibilitam uma gama de experiências, nas quais as 48 peças correspondem ao conjunto universo (aquele que contém os demais) e cada atributo considerado permite descobrir os subconjuntos: Atributo Subconjuntos Nº de Peças no Subconjunto Forma Quadrado/retângulo/ triângulo/Disco 12 Cor Vermelho/azul/amarelo 16 Tamanho Grande/pequeno 24 Espessura Fino/grosso 24 5.5. Trabalhando a Classificação Classificar significa coordenar semelhanças e diferenças. Implica reunir os objetos em classes de acordo com seus atributos de tal forma que as classes assim formadas possam ser incluídas em outra mais ampla. Por exemplo: a classe dos gatos e a dos cães se incluem na classe dos animais. Assim, há mais animais do que gatos, porque existem outros animais além dos gatos. Por outro lado, as classificações pressupõem não apenas relações de semelhança, mas também o reconhecimento de diferenças: O gatinho Mimi não pertence à classe dos cães. Por quê? Para que se constitua uma classe, Piaget faz intervir duas espécies de relações necessárias a esta constituição: 3.40 OFICINAS AVSI A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO • as qualidades comuns a seus membros e aos da classe a que pertencem, assim como as diferenças que os distinguem dos elementos de outras classes. • as relações da parte com o todo no sentido de dependência, pertinência e inclusão, determinadas pelos “todos”, “alguns”, “nenhum”. No exemplo dos gatos e dos cães, a criança percebe que há mais animais que gatos, porque todos são animais e apenas alguns são gatos. Arranjos, chamados de coleções figurais, a criança apenas manipula, olha, gira, afasta e aproxima objetos; ela não sente necessidade de utilizar semelhanças ou diferenças dos objetos nos seus arranjos. Por exemplo: ao colocar uma peça triangular em cima de um quadrado, ela dirá que se trata de uma casa: Piaget denomina de “coleção figural” os arranjos obtidos desse modo. Da mesma forma, quando agrupa elementos de acordo com sua conveniência utilitária – um bebê com a mamadeira; um pássaro na árvore; uma mesa rodeada por cadeiras – a criança estará lidando com coleções figurais. A coleção figural se constitui em uma figura construída a partir da ligações entre seus elementos. A seguir, ocorre a fase da coleção não-figural. Nessa coleção, os agrupamentos são realizados em função de semelhanças e diferenças, mas sem alcançar a hierarquia própria das classes. Os objetos são agrupados em pequenos grupos, de acordo com suas semelhanças e a criança é capaz de separar o grupo em subgrupos, bem como reunir estes e formar grupos mais abrangentes. Quando a criança forma grupos de peças dos seus blocos lógicos, organizandoos de acordo com a cor, forma ou tamanho está realizando uma coleção não-figural. A idéia de subconjunto ou subgrupo está implícita nesta atividade: o grupo das peças azuis é um subconjunto da coleção maior, no caso, as peças lógicas. A percepção dos subconjuntos integrados ao conjunto universo constitui a passagem para o domínio de construção de classes, mediante a ação de inclusão. A classificação hierárquica é possível quando a criança percebe a reversibilidade operatória, fazendo a síntese entre a compreensão e a extensão da classe. Assim, a estrutura de classificação se consolida e a criança passa a ser capaz de realizar inclusões hierárquicas, ou seja, perceber classes “encaixadas” sucessivamente umas nas outras: AVSI OFICINAS 3.41 A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO Por isso, a classificação é uma operação da maior importância, sem a qual o conceito de número não se constrói por completo. A lógica necessária para compreender que dentro de uma classe mais ampla incluem-se subclasses é a mesma para entender que 5 é igual a 2 mais 3, pois cada numero é uma classe dentro da qual podem ser realizadas todas as operações lógicas. 5.6. Seriação Já seriar significa agrupar objetos de acordo com suas diferenças ordenáveis, em função de um atrito destacado. Por exemplo, um conjunto de varetas de tamanhos diferentes pode ser organizado em ordem ascendente (da menor para a maior) ou descendente (da maior para a menor). Além do tamanho (grande, pequeno), outros atributos podem ser destacados para a organização de séries: Idade Æ enfileirar os alunos da sala de acordo com a idade, dos mais novos para os mais velhos. Espessura Æ organizar tubos dos mais finos aos mais grossos. Altura Æ organizar os alunos dos mais altos para os mais baixos. Comprimento Æ curto / comprido. Largura Æ largo / estreito. Volume Æ cheio / vazio. Velocidade Æ lento / rápido. É importante salientar que a seriação também está relacionada ao conceito de número e envolve a compreensão da relação de ordem, uma relação assimétrica que se traduz em expressões do tipo: “mais que”, “menos que”, “maior que”, “menor que”, “muito“, “pouco”, “nenhum”, “algum”, “todos” e outras de nosso vocabulário usual. Nível 1 – A criança ainda não domina a seriação. Para organizar bastões de tamanhos diferentes, ela, eventualmente, conseguirá arrumá-los aos pares e aos trios (intercalando um médio entre o grande e o pequeno), mas não é capaz de coordenar os diferentes tamanhos ao mesmo tempo: Nível 2 – A criança consegue arrumar os bastões em série, na base da tentativa e do erro. Sua abordagem do problema ainda não é sistemática; solicitada a intercalar novos elementos, em geral, desmancha a série já feita e começa tudo outra vez, ou faz a intercalação através de tentativas. Daí porque esta forma de seriar é perceptiva ou intuitiva. Esta criança ainda não consolidou em sua mente a coordenação entre duas inversas: “menor que” precisa ser percebida simultaneamente a “menor que”: 3.42 OFICINAS AVSI A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO b é maior que a b é menor que c a b c Nível 3 – A criança construirá a série utilizando um método sistemático, coordenado, onde está presente a reversibilidade, por reciprocidade, no conhecimento de um bastão maior que todos os anteriores e menor que os restantes. Esse reconhecimento de relações simultâneas indica um estrutura de seriação completamente desenvolvida e conseguida sem tentativas e erros. A criança agora reconhece prontamente a dupla propriedade do objeto b: ser maior que a e menor que c. A idéia de transitividade é a culminância da seriação e possibilidade e efetiva compreensão de que: se A = B e então A = C B=C se A > B eB>C então A > C 5.7. Conservação Conservar significa compreender que determinada quantidade permanece a mesma, ainda que sua aparência ou sua disposição espacial sejam alteradas – daí, decorre o princípio da invariância do número. São observados três estágios, em relação ao comportamento da criança. 1) A criança faz sua fileira coincidir com a outra pelas suas extremidades, mas a quantidade de fichas não coincide. No 1º estágio, há ausência de conservação; a criança procede por correspondência global, com base na percepção do comprimento das fileiras. Não há nem correspondência termo a termo, nem equivalência. AVSI OFICINAS 3.43 A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO 2) A criança organiza corretamente a 2ª fileira, fazendo responder a cada ficha vermelha uma amarela. 2º estágio, a criança faz esta correspondência e obtém a equivalência sem, necessariamente, perceber o conceito de número: se os elementos da 1ª fileira forem espaçados, a criança poderá não admitir a igualdade entre as duas. 3) A criança coloca uma ficha amarela para cada ficha vermelha, sem se prender ao espaço entre elas: 3º estágio, a criança, depois de toda essa manipulação, percebe que a soma numérica de cada fileira se conserva, mesmo quando se modifica o arranjo espacial dos elementos. 5.8. O Trabalho com o Material Jean Piaget pesquisou atentamente as relações que as crianças estabeleciam com o espaço, com as quantidades e com o número ao longo do seu processo de aprendizagem e desenvolvimento. Esses estudos, acrescidos dos trabalhos realizados mais tarde por outros pesquisadores, formam o suporte teórico que temos hoje para nos aprofundarmos na tarefa de compreender como a criança constrói o seu conhecimento na área de Matemática. Esse suporte teórico, embora possa ser encarado como ponto de partida para as discussões epistemológicas de Matemática ( ou seja, que dizem respeito a como as crianças – ou as pessoas, em geral – constroem o seu conhecimento), não deve ser encarado como o nosso objetivo final, algo que deve ser atingido a todo custo. Ele é um instrumento muito útil a nós, professores, para nossas reflexões, estudos e pesquisas: mas não é uma metodologia nem uma linha de trabalho. É importante esclarecer esses pontos antes de aprofundarmos a discussão em torno do material concreto e seus usos, já que muitas interpretações errôneas acerca de “o que é o Construtivismo” acabam nos levando a uma utilização bastante questionável desse recurso em nossas salas de aula. Isso ocorre em grande parte por causa de uma espécie de “mistificação” existente em torno do material manipulativo dentro de uma proposta construtivista em Matemática. É exatamente a esse respeito que falaremos a seguir. É muito comum ouvirmos afirmações como esta: “Eu sou construtivistas, só trabalho com material concreto”. Ora manipulativo, o Construtivismo não é uma metodologia a ser seguida. Nesse sentido, é um ledo engano acreditar que o simples fato de utilizar materiais manipuláveis pelas crianças em nossas aulas nos torna “construtivistas“. Não é bem assim ... Partimos do principio de que o conhecimento é construído pela pessoa através das relações que ela estabelece com a realidade. Essas relações são constantemente modificadas e aperfeiçoadas à medida que novas experiências vão sendo vivenciadas, 3.44 OFICINAS AVSI A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E O JOGO gerando desafios superáveis a partir de novas relações que serão estabelecidas num processo constante de interação. O tão conhecido “material concreto” tornou–se uma expressão corriqueira que, nos dias de hoje, define o ponto de partida de toda ação escolar tida como construtivista – a “realidade concreta” dos alunos. No caso específico de crianças em fase de alfabetização, é muito comum elas entremearem suas experimentações na leitura e na escrita com mitos ou regionalismos, fatos ou personagens carregados de fantasia e imaginação. Enquanto lê e escreve, cada criança se revela como indivíduo que tem história, tem medos, desejos e “realidade” bastante peculiares. Todas essas coisas não são concretas do ponto de vista estritamente material, mas são inquestionavelmente, reais. Mas, afinal, o que podemos chamar de “material concreto”? O quadro-de-giz é um material concreto? E uma folha de papel é? Cada área diferente (Língua Portuguesa, Ciências, Matemática etc.) pode interpretar diversos materiais como concretos ou não, conforme seus usos e necessidades específicas. De um modo geral, qualquer tipo de material pode ser utilizado como material manipulativo dependendo do uso que se faz dele. Vejamos como exemplo o texto em Língua Portuguesa: o professor deve considerá-lo uma experiência concreta, se entendido como uma unidade significativa concreta de percepção auditiva e visual tomada pelos usuários da Língua (falante/ouvinte/escritor/leitor) em situações de interação e comunicação. Em Estudos Sociais, podemos tratar como material concreto tudo aquilo que a criança e o professor possam trazer para desenvolver as atividades propostas. O principal instrumento são as vivências e experiências relatadas e discutidas em turma, além de outros instrumentos como jornais, revistas, noticiários de TV, jogos de todos os tipos, com os quais se fará a construção dos conceitos de Espaço, Tempo, Grupo Social e Trabalho. O conceito de “concreto” amplia-se ainda mais quando pensamos na área de Educação Artística, onde o material concreto utilizado (além do pano, papel, madeira, argila, papelão etc., que podemos manipular e dar nova forma) é também a produção artística da nossa e de outras culturas: através da analise de artesanato, ilustrações de obras de arte, apresentações teatrais e musicais irão conhecer mais sobre o processo de criação humano e, conseqüentemente, enriquecer o seu próprio repertório expressivo. Na Matemática, a definição de material concreto ganha ares de polêmica na medida em que existe quase uma convenção no sentido de chamar de “concretos” apenas aqueles materiais famosos, conhecidos de todos, como os blocos lógicos, o material de contagem etc. Não é bem assim, nem em Matemática nem nas outras áreas. Se oferecermos ao nosso aluno uma folha de jornal e permitimos que ele a explore, estabelecendo relações e fazendo descobertas a propósito de um determinado assunto, então essa folha de jornal está sendo usada como um material concreto. Também é importante prestarmos atenção ao fato de que não basta apresentar os materiais às crianças para livre exploração, ou então conduzirmos inteiramente o trabalho delas na manipulação do material. É preciso que as crianças tenham toda a liberdade para descobrirem o material, brincarem com ele em manipulações livres, assim como é importante que o professor saiba onde quer chegar com a atividade em questão, ou seja, quais são os seus objetivos. Somente assim, ele poderá conduzir estimulando seus alunos a fazerem descobertas e apresentando desafios que os ajudem na construção de um determinado conceito. Referências Bibliográficas ARAÚJO, Renato S. Material de referência para o professor. Belo Horizonte, 2002. (mímeo). AVSI OFICINAS 3.45 A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL A música é a linguagem que se traduz em formas sonoras capazes de expressar e comunicar sensações, sentimentos e pensamentos, por meio da organização e relacionamento expressivo entre o som e o silêncio. A música faz parte da vida do nosso dia-a-dia, desde a mais tenra infância; e antes mesmo quando ainda se está no ventre materno, as notas musicais invadem nossa mente, seja sorrateira ou explicitamente. Em nossa cultura, quando uma criança nasce, logo em seus primeiros desconsolos, a mãe utiliza-se das cantigas para acalentar e acalmar seu filho; vemos isso em todos os níveis socioeconômicos e em diversas culturas. O ambiente em que vivemos é rodeado de sons e a música está presente em formas e situações das mais variadas. Assim, a musicalização se inicia de forma natural logo na primeira infância. Toda criança cantarola, balbucia e traça melodias desconhecidas dos adultos à sua volta. Através do comportamento imitativo, as crianças logo querem fazer aqueles sons melodiosos que elas escutam, aprendem que também podem produzir sons através de instrumentos como latas e chocalhos e que esses sons também podem ser melodiosos; geralmente, as crianças dançam enquanto fazem suas músicas. Ouvir música, aprender uma canção, brincar de roda e realizar brinquedos rítmicos são atividades que despertam, estimulam e desenvolvem o gosto pela atividade musical, além de propiciar a vivência de elementos estruturais dessa linguagem. A criança, através da brincadeira, relaciona-se com o mundo que a cada dia descobre e é dessa forma que faz música: brincando. Receptiva e curiosa, ela pesquisa materiais sonoros, “descobre instrumentos”, inventa melodias e ouve com prazer a música de todos os povos. De forma ativa e contínua, a aprendizagem musical integra prática, reflexão e conscientização, encaminhando a experiência para níveis cada vez mais elaborados. Nesse sentido, a música deve ser trabalhada de forma lúdica para que a criança sinta prazer em participar das aulas. O envolvimento dos alunos é muito importante para o bom andamento do processo de musicalização. “É aconselhável (...) que a música seja apresentada por meio de estórias, dramatizações, jogos e brincadeiras que motivem a participação” (Silva, 1992 apud Oliveira, 2001, p. 100). AVSI OFICINAS 3.47 A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL É tarefa do professor incentivar a participação dos alunos desde bem pequenos; mesmo os bebês são capazes de diferenciar som e silêncio e, se colocarmos um instrumento em suas mãos, saberão que eles devem tocar (balançar) o instrumento para ouvirem o som. De acordo com Oliveira (2001), a música deve começar a ser trabalhada o mais cedo possível, assim que a criança entra na creche ou pré-escola, como parte da rotina da sala. Durante a educação infantil, devem ser trabalhados sons corporais, atenção, noção de ritmo e “ouvido musical”. Segundo as indicações do Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil, a música pode ser trabalhada na educação infantil de acordo com a faixa etária – dos 0 aos 3 e dos 4 aos 6 – considerando-se que se deve respeitar o nível de percepção e desenvolvimento (musical e global) das crianças em cada fase, observando-se também as diferenças socioculturais bem como as regionais. O trabalho realizado com a música deverá priorizar a possibilidade de desenvolver a comunicação e expressão por meio dessa linguagem, utilizando-se conceitos em construção, organizados num processo contínuo e integrado através da: • exploração de materiais e a escuta de obras musicais para propiciar o contato e as experiências com a matéria-prima da linguagem musical: o som (e suas qualidades) e o silêncio; • vivência da organização dos sons e silêncios em linguagem musical pelo fazer e pelo contato com obras diversas; • reflexão sobre a música como produto cultural do ser humano, uma importante forma de se conhecer e representar o mundo. Quanto aos objetivos: Dos 0 aos 3 anos Dos 4 aos 6 anos Ouvir, perceber e discriminar eventos sonoros diversos, fontes sonoras e produções musicais. Explorar e identificar elementos da música para se expressar, interagir com os outros e ampliar seu conhecimento do mundo. Brincar com a música, imitar, inventar e reproduzir criações musicais. Perceber e expressar sensações, sentimentos e pensamentos, por meio de improvisações, composições e interpretações musicais. Quanto ao fazer musical: Dos 0 aos 3 anos Dos 4 aos 6 anos Exploração, expressão e produção do silêncio e de sons com a voz, com o corpo, com o entorno e com materiais sonoros diversos. Reconhecimento e utilização expressiva, em contextos musicais das diferentes características geradas pelo silêncio e pelos sons: altura (graves ou agudos), duração (curtos ou longos), intensidade (fracos ou fortes) e timbre (característica que distingue e “personaliza” cada som). Interpretação de músicas e canções diversas. Reconhecimento e utilização das variações de velocidade e densidade na organização e realização de algumas produções musicais. 3.48 OFICINAS AVSI A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Dos 0 aos 3 anos Participação em brincadeiras e jogos cantados e rítmicos. Dos 4 aos 6 anos Participação em jogos e brincadeiras que envolvam a dança e/ou a improvisação musical. Repertório de canções para desenvolver memória musical. se Quanto à apreciação musical: Dos 0 aos 3 anos Dos 4 aos 6 anos Escuta de obras musicais variadas. Escuta de obras musicais de diversos gêneros, estilos, épocas e culturas, da produção musical brasileira e de outros povos e países. Participação em situações que integrem músicas, canções e movimentos corporais. Reconhecimento de elementos musicais básicos: frases, partes, elementos que se repetem etc. (a forma). Informações sobre as obras ouvidas e sobre seus compositores para iniciar seus conhecimentos sobre a produção musical. No trabalho com a música, deve-se utilizar os diferentes estilos musicais: popular, folclórico, erudito, cantigas de roda, mas priorizando sempre a música brasileira que é riquíssima tanto histórica como culturalmente. As cantigas de roda apresentam uma vasta possibilidade de trabalho com as crianças. Segundo Ayoub (apud Oliveira 2001), as cantigas de roda ... geralmente realizadas em círculo, além de todas as suas variações rítmicas, favorecem a participação de todos e o desenvolvimento de um sentido de grupo e de uma identidade cultural, que são reforçados pelas inter-relações que ocorrem durante o canto em conjunto (p. 101). A música popular é talvez o laço que pode ajudar a aproximar os filhos dos pais; os filhos com a história dos pais, e, por isso, com a cultura do nosso povo. É preciso incentivar os alunos a ouvirem músicas que façam parte do universo infantil e existem bons CDs que apresentam cantigas de roda, outros que incentivam a criatividade, as brincadeiras necessárias ao desenvolvimento das crianças; porém, faz-se necessário a apresentação também de outros repertórios musicais que podem ser de conhecimento das crianças. Para Oliveira (2001), o trabalho realizado com a música não tem o objetivo de formar músicos, mas de desenvolver a criatividade das crianças, pois primeiro é preciso ampliar o universo sonoro das crianças, para, mais tarde, pensar na grafia musical, e isso não é papel da educação infantil, de acordo com Jeandot (1993): ... uma aprendizagem voltada apenas para os aspectos técnicos da música é inútil e até prejudicial, se ela não despertar o senso musical, não desenvolver a AVSI OFICINAS 3.49 A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL sensibilidade. Tem que formar na criança o musicista, que talvez não disponha de uma bagagem técnica ampla, mas será capaz de sentir, viver e apreciar a música (apud Oliveira, 2001, p. 102). É de fundamental importância que o trabalho com a música envolva todo o corpo, pois a criança de zero a seis anos se expressa através de gestos e sons. Assim, as aulas devem ter atividades diversificadas para assegurar o envolvimento das crianças durante a maior parte do tempo e garantir a realização de um bom trabalho. Pode-se utilizar em uma mesma aula: música para cantar, para dançar, para tocar e conto sonoro, a fim de se tornar a aula mais interessante e participativa. A seguir, apresentaremos uma série de atividades que podem auxiliar no trabalho cotidiano com a musicalização. Parte I a) Audição de Música instrumental: percussão, cordas, teclado para identificação dos instrumentos usados. b) Atividades de produção musical: • Meu corpo, um instrumento musical; • Orquestra de papel; • Bandinha de Sucatas. A tradição se comunica através das músicas: apresentação de tipos de músicas acompanhadas com os instrumentos musicais confeccionados. • músicas de ninar; • músicas de brincadeiras; • músicas para comemoração; • músicas de roda. Parte II a) Atividades de Percepção Auditiva: (exercícios práticos e sugestivos) • Consciência auditiva: capacidade de reagir a estímulos sonoros: - passear de mãos dadas e parar ou soltar a mão quando ouve um determinado som; - marchar, correr, pular, ... ao ritmo de batidas. • Atenção auditiva: capacidade de concentrar a atividade psíquica nos estímulos auditivos: - em silêncio, identificar os sons do ambiente. • Localização auditiva: habilidade de determinar de que direção está vindo o som: - andar na direção do som de olhos vendados; - chicotinho queimado. • Identificação auditiva: habilidade de relacionar um som à sua frente: - imitar o som: do telefone, da buzina, da campainha, do relógio, do repique do sino, do trovão, do espirro, da chuva, do cachorro, do gato, do galo, de choro, de tosse, de gargalhada. 3.50 OFICINAS AVSI A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL • Discriminação auditiva: habilidade de diferenciar um som de outros e diferença em sons: - dizer se os sons são iguais ou diferentes. Parte III a) Atividades de desenvolvimento da fala: • soprar canudinho para formar bolhas de sabão; • soprar apito, balões, penas, algodão; • abrir e fechar a boca, vagarosamente, rapidamente; • mastigar com boca fechada; • encher e contrair as bochechas; • esticar e encolher a língua; • estalar a língua; • contrair os lábios para assobiar; • arredondar os lábios como um O. b) Expressão verbal: capacidade de desenvolver um vocabulário básico de acordo com sua idade. • telefone sem fio; • telefone; • verbalizar ações dramatizadas: pular, correr, cantar, escrever; • enumeração: Fui à feira e comprei..., Fiz um passeio e vi...; • descrição de objetos e pessoas; • cantar músicas da tradição; • entrevista. c) Raciocínio verbal: • completar a frase; • continuar uma seqüência; • continuar uma narração (história conhecida); • (história inventada). Sugestões de CDs Infantis • • • • • • • • • • • • AVSI As mais belas cantigas de roda – M. Viana/Nave dos sonhos Casa de Brinquedos – Toquinho Canções de Ninar – Coleção Palavra Cantada Canções de Brincar – Coleção Palavra Cantada Passarim o Palhaço Cantor – Rubinho do Vale Palavra Cantada – Arca de Noé 1 e 2 – Vinícius para crianças Mil Pássaros – Sete histórias de Ruth Rocha Pandalelê Lullabies and Children’s songs – Unesco Collection Na Pancada do Ganzá – Antônio Nóbrega Os Saltimbancos – Adap. Chico Buarque OFICINAS 3.51 A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL • Villa-Lobos às Crianças – Jerzy Milewski, Contabile Projetos de Artes, RJ • Villa-Lobos das Crianças – Espetáculo Musical de Cantigas Infantis • Villa-Lobos para Crianças – Instituto Itaú Cultural Referências Bibliográficas JOGOS INFANTIS: brinquedos cantados. Disponível em: http://www.terrabrasileira.net/folclore. Acesso em julho de 2003. OLIVEIRA, Débora Alves de. Musicalização na educação infantil. ETD, Campinas, v.3, n.1, p. 98108, dez. 2001. REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA EDUCAÇÃO INFANTIL. Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. P. 43-81. SOFFIANTINNI, Cristina. As cantigas de roda. Belo Horizonte. Mímeo. SOUZA, Marco Aurélio C. de. Relatório Curso de Música do ano de 2002. Belo Horizonte, 2003. Mímeo. 3.52 OFICINAS AVSI A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Anexo Relato de Experiência Neste anexo, encontra-se um relatório final de aulas dadas pelo Professor Marco Aurélio de Souza, no qual o professor descreve, de forma resumida, algumas das atividades mais marcantes do ano de 2002, durante as aulas de música, ao mesmo tempo em que faz uma reflexão sobre o significado de alguns gestos desse processo. Não cessaremos nunca de explorar e o fim de toda nossa exploração será chegar ao ponto de partida... T. S. Eliot Este documento não é um relatório técnico das Aulas de Música, mesmo porque me aborrece um pouco este título – Aulas de Música. Este documento pretende ser relatos, depoimentos retirados das nossas experiências quotidianas. Por certo que não mergulhamos no científico – na matéria técnica – sem que este tenha uma proximidade com o dia-a-dia, com a vida corriqueira. Por isso, as aulas são alegres, vivas; cheias da novidade que é a própria vida desses meninos. Sem querer afirmar o óbvio: o “Criador” é o ponto de partida; e, por isso, a justiça, a beleza, o ser criatura (a contradição, as perguntas, a dúvida), enfim, a realidade toda é o que nos anima. “Observando os meninos, fico a imaginar o que passa em suas cabecinhas. De repente ‘eu’ estando ali no meio da roda e os meus amigos cantando prá mim: “Você gosta de mim ó maninha, eu também de você...” Eu segurando uma flor que, ao final da cantiga, darei a quem eu escolher. Eu sendo cuidado com um gesto de afeto; eu podendo escolher a quem dar um abraço; eu sendo escolhido. A roda é um centro (um lugar) onde todos são abraçados, onde todos são chamados a comparar suas vidas: os que são mais fortes e os que são mais fracos, os que estão calmos e os perturbados. O canto como forma estética da beleza, a roda como forma aglutinadora, humanizadora.”1 “Propus para este mês uma cantiga chamada “Eu” – Paulo Tatit e Sandra Peres – que conta a história do menino que pergunta prá sua mãe: “mãe, onde é que você nasceu”? Aí, ela conta toda sua história familiar, de como seus avós se conheceram, o que faziam, com que trabalhavam etc. É uma canção muito poética, linda mesmo, cheia de sonzinhos, ruídos. Partindo dessa idéia, propus à prof. Carla e ela fez um bilhetinho pedindo aos pais dos meninos que contassem um pouco da história de como eles se conheceram e se apaixonaram. O resultado foi muito bom. Recebemos e lemos para eles na sala de aula. Houve casos alegres e apaixonados (como os que se encontraram num baile de “Forró”) e também alguns tristes. O importante é que eles passaram a conhecer um pouco mais os seus pais; estabeleceu-se uma possibilidade de abertura entre eles, o que cada 1 Relatório agosto 2000. AVSI OFICINAS 3.53 A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL um, ao seu modo, soube aproveitar. Situações embaraçosas também não faltaram, como filhos que não vivem com o pai; ou da mãe que não quis escrever. No entanto, todas as adversidades foram tocadas e tratadas com respeito cuidadoso.”2 “Estávamos trabalhando a canção “Ciranda dos Pares”, de Bia Bedran, que é um poema de associações muito bonito e muito imaginativo; então, resolvi usar essa idéia e compor junto com os meninos o nosso próprio poema dos “pares”. Bia canta: “Eu sou a nuvem, eu sou o céu Eu sou a concha, eu sou o mar Eu sou a linha, eu sou o carretel Sou abelhinha, hoje eu sou o mel.” Fizemos, então, o nosso poema com associações simples tipo: “Eu sou o ovo, eu sou a galinha Eu sou o arroz, eu sou o feijão.” E outras bem mais interessantes como: “Eu sou a serra, eu sou a lima Eu sou o vento, eu sou o ‘tornado’ Eu sou o moleque, eu sou o passarinho.” Tudo isso me causou grande surpresa, o que me fez pensar que, cantando, brincando ou fantasiando, eles estão desenvolvendo a sua capacidade de criticar, de comparar e, então, de usar a razão. Parece-me que eles estão entendendo as implicações das coisas: “eu sou a serra, eu sou a lima”; ou “eu sou o moleque, eu sou passarinho”. E verdade que eles são “moleques”, mas também é verdade que eles são “passarinhos”. – Alguém pode negar? Não há limites para quem cria. Em Memórias da Emília (de Monteiro Lobato), a certa altura Emília se dirige ao Visconde de Sabugosa dizendo que queria que as suas memórias fossem impressas “em papel cor do céu, com todas as suas estrelinhas; com tinta cor do mar, com todos os seus peixinhos e penas de pato com todos os seus patinhos”. Volto a afirmar que não há limites para quem cria, não cabe em nossas mãos a explosão de vida das crianças. E não vale a pena tentarmos amalgamá-las nos nossos projetos. Me parece muito elucidativo um fato ocorrido numa classe há poucos dias: ao fim da aula, eu perguntei para os meninos onde estava o meu caminhãozinho (de brinquedo). Eles correram até a sua garaginha e pegaram o carrinho. A professora assustada logo falou: — Crianças, não mexam, pois só gente grande pode pilotar esse carrinho. Eu fiquei preocupado sem querer ir contra a professora – pois ela estava com medo que eles pudessem quebrá-lo – mas falei: É, mas esse carrinho aí criança pequena pode brincar sim. 2 Relatório agosto 2000. 3.54 OFICINAS AVSI A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Maior que a possibilidade de quebrar o carrinho é o fato de que eles entrem em relacionamento comigo, que eles corram o risco de se relacionarem. A repressão corta o ímpeto e corta também a capacidade de eles se jogarem numa amizade que pode ser educativa e marcante para sempre. Eles sabem que não devem fazer mal a mim e a ninguém. Eles sabem.3 Maio chegou com um espetáculo da natureza! Manhãs lindas de sol, com um ventinho fresco demais. Para não perdermos esta ocasião, fomos fazer algumas aulas no pátio, perto da árvore e perto do beija-flor. A princípio, estava receoso de sair com os meninos para o pátio, pois algumas turmas têm ainda muita dificuldade de conceber relacionamentos, ser parte de um grupinho, ouvir e esperar sua vez. Os muito pequenos têm de aprender tudo, embora tenham uma capacidade ainda inata de se fascinar com as coisas; já os maiores, por diversas circunstâncias, têm pensamentos preconceituosos e perderam os limites, são muitas vezes indelicados com os colegas e até conosco professores. Mesmo assim, atendendo a esse apelo da realidade e do coração, tomei coragem e fomos todos para fora. O que experimentamos foi uma alegria sem medidas. Com os maiores, fiz jogos de concentração, de memória, cantamos, rodamos o pião etc. Com os pequenos, fizemos roda, cantamos e encenamos cantigas, formamos a “serpente”, tocamos violão etc. Dois fatos merecem ser comentados sobre este dia: • O primeiro foi um presente imenso da natureza. Ao cantarmos a música do beija-flor (ao final sempre usava um assobio com o pretexto de chamá-lo), eis que pertinho de nós aparece um lindo beija-flor preto, que, segundo os meninos, fazia sua casinha ali na árvore. Foi uma alegria imensa, como se faltasse um bem (uma coisa) deste tamanho para uma beleza que é inimaginável. • O segundo foi acontecendo aos poucos. Estávamos cantando o “Carneirinho Carneirão” (na roda) com os pequeninos. Lentamente alguns meninos do reforço (7, 8 anos), que já foram meus alunos ano passado, foram entrando na roda com uma liberdade incrível, certos de que eu não iria me incomodar; certos, cheios de confiança, sinal da nossa amizade. Talvez não pareça tecnicamente palpável uma reflexão sobre as aulas de música nestes níveis (que não são medidos quanto aos aspectos musicais). Porém, me desculpem meus mestres de música; pressinto antes de tudo ser melhor dar relevância à construção da pessoa. Não que a música seja somente um pretexto, mas ela não é um fim. Deste modo, a comunicação destes meninos com eles mesmos, comigo e com as coisas em volta; a percepção aguçada dos vários níveis do sensível, interior e também a percepção do outro, do fora de mim; a afeição ao que não me pertence, ao que é do outro — e isso na música é fundamental (a audição, o se colocar juntos no ritmo, na melodia) — a adesão às propostas de um mestre, tudo pode nos parecer muita coisa ao mesmo tempo. Mas o homem é complexo e possível”.4 Um dos aspectos mais interessantes do trabalho que venho desenvolvendo nas aulas de música é que elas suscitam cada vez mais a criatividade dos professores. Aos poucos, percebo que a música e as representações vão se tornando um hábito entre nós. Alguns exemplos servem bem para demonstrar isso: • Elas sempre fazem desenhos, painéis para enfeitarem as salas de aula com temas atuais, como no dia do índio, páscoa, natal. • Criam roupinhas, fantasias, alegorias para as cantigas. 3 Relatório março 2001. 4 Relatório maio 2001. AVSI OFICINAS 3.55 A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL • Trazem sempre cantigas pouco conhecidas, muitas das vezes aprendidas com parentes mais velhos. Cantos antigos da nossa tradição. Digo isso para afirmar que estamos dividindo esta responsabilidade de ensinar e ser companhia. As nossas vivências nascem de experiências felizes e não de um plano ideologista. Desta forma, promovemos no final do mês de maio a festa das mães juntamente com a coroação de Nossa Senhora da Conceição. Uma frase dita pela prof. Marta me marcou muito. Ela disse que tinha um ‘problemão’ nas mãos, pois, “a cada proposta feita por nós aos meninos, todos queriam participar, e por isso tínhamos que conseguir um papel para cada um”.5 Agosto, é o mês do folclore. A creche estava se colorindo com cartazes, desenhos, pinturas e painéis. Os professores e os alunos foram, aos poucos, dando forma a esse tema fantástico. Levei para sala de aula e para o pátio uma “corda” para brincarmos e também duas petecas lindas feitas artesanalmente com penas coloridas. É claro que antigamente elas eram feitas de palha de milho ou de bananeira (como meu pai fazia), mas não tem problema, isso eu contei prá eles. Levei o tambor e, enquanto brincávamos, cantávamos as quadrinhas populares: “Aonde você pretende morar...” “Sai, sai, sai ô piaba...” “Tá caindo fulô...” Nestes dias me acompanhava a Bárbara (Educadora em uma escola de Milão – Itália), e ela me dizia estar impressionada como é que meninos de 3, 4 anos conseguiam pular corda com tamanha desenvoltura e ritmo. Segundo ela, seus alunos de 5 anos não têm essa capacidade. Observo que o conhecimento vem do desafio da brincadeira. As crianças têm um ímpeto para o novo, para o belo. Maria Amélia Pereira no seu texto “Educação da Sensibilidade” afirma que “quando a criança brinca, dentro dela surgem indagações sobre diversas áreas do conhecimento, como matemática, ciência, linguagem, estudos sociais, arte, filosofia etc...” A atividade não é um “exercício físico”; é uma diversão, é uma brincadeira que leva em consideração as relações da criança com as coisas à sua volta, sua casa, seus irmãos, sua capacidade motora e intelectual. Neste mês de agosto, um fato inusitado aconteceu na turma da Cássia. É a turma do Carlos, um menino de 5 ou 6 anos que, junto com o irmão mais novo, não pára de chupar o dedão. Provavelmente por problemas psicológicos advindos de relações familiares complicadas. O fato é que um dia, no começo do ano, eu falei prá ele que, se continuasse chupando o dedo, os micróbios iriam contaminá-lo e ele iria ficar com a barriga cheia de lombrigas. Daí por diante, toda aula, ele me procurava pedindo para conhecer a lombriga. Após alguns meses, consegui com uma amiga bióloga (Graciela Frucch) um exemplar desse “bichinho” e levei prá sala de aula num vidrinho. Todos, claro, acharam nojento e feio. O curioso disso é que mesmo assim o Carlos continuou a chupar o dedo. Comentei com o Renato Boechat (Dentista da creche) e ele disse que uma hora ou outra esse fato pode tocá-lo, e ele, lembrando, pare de chupar o dedo. Assim espero. De qualquer forma, espero que ele entenda que eu olhei para o seu desejo de conhecer com uma atenção simples e respeitosa.”6 Além do desenvolvimento auditivo, rítmico, melódico que todas as cantigas e brincadeiras proporcionam, decidi, neste fim do ano, levar dois brinquedos para serem fabricados na sala de aula. O primeiro é o “Balangandão Arco-íris”: feito com papel crepom 5 Relatório junho 2001. 6 Relatório agosto 2001. 3.56 OFICINAS AVSI A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL e linha de papagaio (parece um ‘berimbau’ – como se diz aqui em Minas ). Os meninos giram pelo ar as fitas de papel crepom formando desenhos coloridos, como fazem as ginastas das Olimpíadas. O segundo é a “Bestinha de grampo”: uma espécie de arco e flecha feito com grampo de cabelo, prendedor de roupas e palito de fósforo. Parece uma atiradeira medieval inofensiva, mas muito divertida. Com isso, podemos trabalhar a concentração, a coordenação motora, a imaginação e, principalmente, o fortalecimento da nossa amizade.7 “Eis a questão: Como ensinar aos meninos o que é o carnaval? Como fazê-los entender uma festa tradicional brasileira: uma festa do ritmo, do corpo, da fantasia?” Claro que toda explicação seria insuficiente diante daquilo que torna essa festa tão mágica. Pensei que, acima de tudo, a experiência seria o melhor caminho. Tratei logo de imaginar como foi que me aconteceu na infância, pois hoje em dia as imagens que temos de carnaval nos fazem quase esquecer que a alegria e a pureza do coração podem andar juntas no mesmo barco. Pensei na leveza da euforia que nos fazia brincar no salão com nossos amigos, ora jogando confetes e serpentinas, ora cantando e balançando os bracinhos. Me lembro que tudo é meio primitivo: o batido do tambor, a voz sem pudor, a sensualidade da satisfação e da alegria: isso é o carnaval. Busquei alguns enfeites que poderiam sugerir umas fantasias (havaianas, gatinho, índio) e peguei o tamborzinho para animarmos. Ensinei para eles a marchinha “Mamãe eu quero” – Você se lembra? E a surpresa foi vê-los aos poucos reagindo ao chamado da música e do ritmo. Na turma da Carla, ao meu lado estava o Caíque que mexia os ombros numa dança totalmente leve e sem compromissos, uma soltura de quem parece estar criando o carnaval. O corpo agradece e se diverte, como numa ciranda ou num jogo de futebol. Na turma da Milene, estava na minha frente o Richard, dançando como um personagem encantado que, com seus movimentos engraçados, com seu sorriso seguro e cheio de certeza, parece que queria nos convencer a segui-lo. E é claro que nós que, por algum motivo, somos mais tímidos, aos poucos nos entregamos também ao seu apelo.8 ... “quero lembrar do dia em que a Jéssica me chamou para ouvi-la cantar. Era a música da propaganda da TV que ela disse à sua mãe que queria me mostrar. Achei uma grande oportunidade para contar aos seus coleguinhas que ela sabia aproveitar o que tem beleza. Gostei muito da música e a ensinei para todos: “ai que saudade d’ocê” (Geraldo Azevedo).9 Por que falar baixinho se todos falam alto? Imagino que, se os meninos tivessem argumentação, falariam algo assim. É muito comum que, numa sala de aula cheia de crianças, o nível da intensidade de voz seja muito alto. Tanto que a Stefani — da turma da Neide – costumava chorar de incômodo quando a gente gritava e fazia bagunça. Mas é esse o momento de querer ser ouvido, de se afirmar e exercitar a palavra. Ok. Contudo, esse é também o momento de perceber a própria voz e de aprender a ouvir. Trouxe prá sala de aula um brinquedo que se chama “matraca.” A gente gira e ele faz um barulhão (quando alguém é muito falador nós dizemos que é uma ‘matraca’). Brincamos de colocar e tirar as mãos do ouvido, como um tampão, deixando passar ou obstruindo o som. Foi muito interessante irmos assim abaixando o nosso tom de voz para falarmos e cantarmos.10 7 Relatório dezembro 2001. 8 Relatório janeiro 2002. 9 Relatório abril 2002. 10 Relatório maio 2002. AVSI OFICINAS 3.57 A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL “A primavera da Lagarta” é a história da mudança, da transformação. É o paradigma da primavera, quando nasce a vida, quando nascem das plantas as cores. E a história dessa música (“A Primavera da Lagarta”) é a história de uma gulosa e preguiçosa lagarta que “come, come, come sem parar”, causando um incômodo enorme nos outros bichinhos da floresta, tanto que eles se juntam e fazem um conclave para “acabar com a raça” da lagarta. Só que a surpresa veio logo: eles não sabiam que a lagarta precisava comer muito para poder se recolher no seu casulo para aguardar a sua mutação. E isso aconteceu aos olhos de todos, causando um grande espanto. De repente, ela foi saindo devagar do casulo e, quando conseguiu abrir suas lindas asas coloridas, todos ficaram encantados e de boca aberta. Para a minha fantasia (na cabeça deles tudo pode acontecer), essa é a metáfora da esperança; eu sou o que você pode ver e sou também imprevisivelmente muito mais que isso. A história é, de verdade, linda. A música encantadora.11 Conto agora um fato de grande relevância. Estávamos aprendendo a canção “A Casa”, do grande poeta brasileiro Vinícius de Moraes. Canção esta que fala de uma casa que era muito engraçada pois não tinha teto, não tinha nada. A casa não tinha chão, não tinha paredes, não tinha pinico etc. É uma música leve, uma grande brincadeira. Porém, todos sabem que as crianças têm uma capacidade enorme de fazer paralelos com as suas experiências; e a certo ponto uma delas começou a falar: “a minha mãe separou-se do meu pai, e nós fomos morar na roça, ela levou tudo com ela, o armário, a tv, o fogão. Agora eu voltei e estou com o meu pai, e na casa do meu pai só tem uma cama e o som.” Isto é, na casa do seu pai está um vazio enorme. Uma ausência grande, a falta da mãe e das coisas materiais.”12 Trabalhei neste período um tema muito comum do nosso povo: o acalanto. O acalanto é um aconchego, é o ato de embalar com um canto a criança, na maioria das vezes para fazê-la dormir (aquecendo-a no braço). Bia Bedran – no seu CD Acalanto – diz que “as cantigas de ninar ou acalantos podem ser entendidos como as primeiras notícias que a criança recebe do mundo...”, “... um gesto extremo de amor materno.” Escolhi duas cantigas deste CD da Bia: “Xô Papão” e “Meias de Luz”. A primeira é muito parecida com o “Boi da Cara Preta” no sentido de exortar a imagem do “bicho papão” (a noite escura, o sono que incomoda). A segunda – “Meias de Luz” – mostra Nossa Senhora tecendo calmamente umas “meinhas” para o Menino Jesus. “... o carinho, a afetividade, a presença física da mãe fazendo o gesto de acalentar mais forte que qualquer monstro, transformando a ameaça em segurança, o medo em coragem, a noite escura num dia claro e feliz.”13 Serginho é a novidade deste fim de ano na sala da Telma. Ele é novato, e com ele aconteceu um fato interessante. Quando cheguei à sala de aula, eles já estavam assentados na roda me esperando. Escolhi uma criança para ir ao centro da roda e começamos a brincar com a cantiga “pé de alface”. 11 Relatório julho 2002. 12 Idem. 13 Relatório outubro 2002. 3.58 OFICINAS AVSI A MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL “Subi no pé de alface a “Teresa” tirou um galho (x2) Rebola chuchu rebola Rebola senão eu caio” (x2) A certo ponto, a criança que está no centro deve escolher um coleguinha e os dois dançam uma “requebradinha” com a cintura. É uma festa e um desafio para todos. Vencer a vergonha dos colegas e a timidez. Não por acaso, comecei a observar as reações do Serginho, que, aos poucos, foi se encolhendo, encolhendo e de um pulo saiu da roda e foi se assentar na cadeira perto da professora. O que se passou na cabecinha dele ninguém sabe, porém é certo que, de alguma forma, ele estava sendo chamado a se mostrar, a correr o risco de ficar nu diante dos colegas. Eu certamente fiquei admirado de presenciar o fato ocorrido, porém, reconheço com alegria que um longo caminho já foi percorrido com essa turminha, pois todos os alunos desejam cantar e dançar, vencendo os seus medos, abandonando-se naquilo que eles mesmos já confiam.14 Conclusão: este é, e pretende ser, apenas um pequeno relato desse intenso período de trabalho do qual fui convidado a fazer. É importante salientar que a ajuda oferecida pelas Creches a esses meninos é vital. Este é um tempo de disfarces, de sutilezas, no qual a violência é muitas vezes maquiada, aliviada pelo conforto, pelo consumo ou pela fantasia. Mas esse não é o nosso caso. Aqui a violência é explícita. Pode-se ver quotidianamente no rosto desses meninos a aflição que, muitas vezes, é o seu dia-a-dia. A pobreza e a irracionalidade dessa nossa situação não é (ainda bem) abafada. A nós, Deus dá a força de uma afeição sem limites por essas crianças. E nós agradecemos a todos vocês que nos ajudam com sua confiança e suporte. Não é possível fazer uma experiência de amizade bela se ela não é esteticamente bela, psicologicamente bela. 14 Relatório dezembro 2002. AVSI OFICINAS 3.59 A IDENTIDADE HUMANA A IDENTIDADE HUMANA ENTRE DESEJO E RELACIONAMENTO1 Francesco Botturi2 A idéia da felicidade como desejo constitutivo do coração do homem. Busca-se colher qual seja o fator fundador, último, da própria educação. O fator decisivo na educação é que o homem tenha um desejo de felicidade, de realização; só então se abre espaço para que o homem tenha um caminho em direção à realização. O fato de que o homem esteja em uma condição de obscuridade original em respeito à sua realização, dá sentido àquilo que é o acontecimento educativo. O fato de que o homem tenha um desejo de realização dá sentido a um caminho que precisa ser percorrido, no qual ele possa ser acompanhado e guiado. Lá, onde falta a idéia da felicidade possível ao homem, e, portanto, a razoável tentativa que o homem faz para atingir a sua realização; lá, onde existe o ceticismo a propósito disto, também a idéia de educação, mais cedo ou mais tarde, é eliminada. Um dado emergente da nossa cultura é a fadiga em ter um conceito próprio de educação, porque faltou a idéia do homem como ser único e dinâmico, isto é, a idéia de que o homem tem uma identidade para construir. Se o homem não realiza esta tarefa, em algum momento a idéia da educação desaparece e, em substituição, surge a idéia de informar e de treinar as funções. Uma característica decisiva da cultura do nosso tempo é a perda da idéia da unicidade do homem. Este tornou-se um fragmento entre fragmentos. Na antiguidade, o homem era visto como parte do cosmo, mas também como um microcosmo que buscava 1 Extraído de BOTTURI (2000). 2 Professor de Antropologia Filosófica na Universidade Católica do Sagrado Coração em Milão. AVSI ANEXOS 4.1 A IDENTIDADE HUMANA a sua realização harmônica em si e fora de si. A partir daí, foi possível confirmar a idéia de homem como pessoa, como centro do cosmo. Hoje, ao contrário, não temos nem a idéia de pessoa, nem a idéia de cosmo; o homem é simplesmente um fragmento entre fragmentos e não existe mais uma unidade nem dentro, nem fora dele. A idéia de felicidade comporta a idéia de homem como pessoa, isto é, como microcosmo, como uma unidade interior que busca a sua realização harmônica em si e fora de si. Quando nós falamos que a educação é a “introdução à realidade total” pensamos que esta frase tem um significado fundamental em consonância com o que dissemos: a educação é introdução, logo, acompanhamento ao sentido único da realidade, que do ponto de vista existencial da pessoa concreta tem um nome preciso: felicidade. Educar é introduzir a esta realidade total, ao sentido único que para o sujeito é a sua felicidade, e portanto é o acompanhamento neste caminho. Naturalmente, isto também quer dizer que buscar a felicidade possível para o homem é, junto, introduzir a um início de cultura, de concepção de que a realidade é um todo. Dizer que o homem tem uma vocação à realização, que o homem não é um fragmento perdido entre fragmentos sem sentido, significa introduzir a uma visão do mundo. A educação tem como premissa algumas idéias extremamente coligadas entre si. A felicidade, a pessoa, o sentido unitário da realidade constituem fundamentos de uma visão do mundo. Relacionamento Interpessoal como relacionamento de reconhecimento Nós falamos de pertencer como dinamismo fundamental do ser pessoa: o homem se torna ele mesmo em um pertencer fundamental. O homem, de qualquer modo, possui a realização. Se o homem tem uma vocação a algo, é porque ele é possuído por isto; de outra forma não existiria esta vocação, esta atração, este chamado. O homem pertence ao seu destino, pertence a Deus, o homem pertence a Deus em Cristo. Este é o nome da felicidade, a idéia última da pessoa e o princípio cultural da exigência. Então, quando falamos de reconhecimento queremos falar do aspecto imediatamente experimentável, portanto, também psicológico, do relacionamento de pertencer. O pertencer, como lei fundamental do ser homem, é também lei empírica, lei do modo com o qual o homem entra em relacionamento com o outro homem. O ser do homem é pertencer, e a dinâmica do seu relacionar-se com os outros é um relacionamento de pertencer, como reconhecimento. Uma das necessidades fundamentais do homem é, de fato, comunicar de modo radical, [comunicar a si mesmo no ser reconhecido como sujeito]. A primeira afirmação fundamental, como dissemos, é que o homem tem um desejo de felicidade; este é o impulso vital do homem. Dentro desse desejo, que coincide com o ser humano, o homem precisa ser reconhecido. Certo, o homem é cheio de tantas outras necessidades, mas a característica humana da necessidade, no sentido material do termo, é que o homem vive inevitavelmente as suas necessidades, as mais elementares, as mais banais, as mais materiais, dentro da busca de reconhecimento. O que é mais ofensivo que dar alguma coisa com desprezo? É como dizer: “eu te dou, mas não te conheço como pessoa, te desprezo como um outro eu, como um tu”; assim como pode existir, ao contrário, uma pessoa que expresse uma participação, mesmo em um estado de indigência. O tecido da vida é feito desses reconhecimentos, dos relacionamentos mais íntimos àqueles sociais mais anônimos. Na realidade, toda a socialização se instaura através da troca de experiências, mas dentro de um relacionamento de reconhecimento ou de falta. 4.2 ANEXOS AVSI A IDENTIDADE HUMANA Nesse reconhecimento, o homem pode percorrer uma estrada normal e equilibrada para atingir a sua própria identidade. A tal ponto o homem vive de um pertencer reconhecido, que consente a sua identidade através desse próprio reconhecimento. Voltamos ao discurso da felicidade que é uma questão absolutamente pessoal e no entanto faz sentido ajudarse a encontrá-la, a caminhar em sua direção. Assim, a identidade é aquilo que temos de mais pessoal e é a condição para que o homem se desenvolva intelectual e afetivamente. Entretanto, é tão verdadeiro que o homem também tem necessidade do outro e de receber do relacionamento com o outro, que há nisso a possibilidade de chegar à própria identidade. Os relacionamentos interpessoais fundamentais são aqueles que propõem o significado primário e permitem o acesso a própria identidade, através do reconhecimento de ser acolhido pelo outro, e que de algum modo, um habita dentro do outro. O eu, diante do mundo, é como um sujeito em um deserto. O reconhecimento equivale a encontrar uma habitação nesse deserto. É exatamente um habitar, um morar em um lugar orientado e construído. O homem vai habitar em um outro e, através disso se torna ele mesmo e toma um lugar no mundo. O homem vem ao mundo começando a habitar em uma outra pessoa. Ele vem ao mundo com sua primeira consciência infantil, através do habitar na consciência de algum outro: primeiro os pais, a professora, algum amigo. Mas o homem, continuamente, na sua vida, vem ao mundo sempre habitando em algum outro. Seja como for, o homem sempre percebe que renasce, se consegue habitar dentro de um outro. Enfim, a experiência mais radical é a consciência de vir ao mundo enquanto reconhecidos pelo Senhor do mundo. Porém, o reconhecimento, momento tão radical na vida, é ambíguo se deixado só nas mãos do homem. De fato, o reconhecimento é a forma de poder mais sutil e determinante da vida do homem. A necessidade de ser reconhecido é mais fundamental que a de obter conhecimentos. Por isso, o poder entre os homens se realiza mais em se abrir ou se fechar diante do reconhecimento, a este hospedar ou não hospedar o outro, que no fato de troca ou não trocar conhecimentos. Dessa forma, os meios sociais de comunicação são os instrumentos de poderforça porque distribuem paradigmas de reconhecimento. “Se você faz assim, é alguém, se não faz assim, não é ninguém. Se tiver isto, é alguém, se não tiver, não é ninguém”. Existe uma mitologia inevitável dos meios sociais de comunicação cujo poder não está naquilo que apresentam, mas no que constitui um paradigma de reconhecimento social. Fazer acreditar que são capazes de satisfazer o seu reconhecimento é o princípio do senhorio entre os homens. Este discurso pode ser distribuído em muitos níveis. O amor entre os homens é assim ambíguo porque a paixão é a sutil chantagem para fazer acreditar que se está à altura das necessidades do outro. Com toda a fundamentação e ambigüidade do reconhecimento a sai estrutura no relacionamento educativo coincide com a experiência de autoridade. Esta é exatamente aquela função que, no relacionamento, demonstra uma certa capacidade de responder à necessidade de reconhecimento, portanto, de fazer acontecer a identidade do sujeito. A autoridade é indispensável e inevitável. Qualquer um tem uma autoridade na sua vida. As piores são aquelas que o homem vive inconscientemente. Apliquemos o discurso do reconhecimento no fato educativo: o verdadeiro reconhecimento nos indica o que é a autoridade. Uma pessoa que age com autoridade é aquela que no relacionamento demonstra uma certa capacidade de responder a necessidade de reconhecimento do outro. Por isso, qualquer relacionamento entre os homens é educativo ou não educativo. A educação não é algo que se conclui entre a escola e a família. Nas relações entre as pessoas tudo se dá para reconhecimentos em vários níveis, tudo faz acontecer ou impede o acontecimento da identidade do outro, tudo é caminho ou obstáculo para a felicidade do homem, portanto, tudo é educativo ou não educativo. AVSI ANEXOS 4.3 A IDENTIDADE HUMANA A ação educativa é tão ampla quanto a existência. Certos ambientes – família ou escola – são lugares educativos por excelência, nos quais, com mais consciência, a educação é colocada como tema. Mas seria um grave erro pensar que só a escola ou a família são espaços educativos. A família possui determinadas funções biológicas e vitais o que a faz se impor como lugar educativo e vinculador. Por outro lado, a escola tem o papel de instruir, o que a qualifica como lugar educativo. Se não houvesse a necessidade de instrução, se poderia muito bem educar a pessoa entre outras comunidades. A boa autoridade é aquela que abre a uma verificação em relação à hipótese do sentido único da realidade, que é capaz de construir o relacionamento de reconhecimento que se instaura com o outro, e que abre este espaço de relacionamento como verificação do caminho da pessoa. Isto é, coloca em evidência a questão da identidade do sujeito, o problema do relacionamento com o destino, e utiliza o espaço de reconhecimento existente para a verificação neste caminho pessoal. É claro que se a própria autoridade coloca o problema do relacionamento como verificação, ela concebe o seu poder de reconhecimento como algo que não exaure a necessidade do outro. A relação que usa o outro ao invés, é aquela na qual não existe espaço para a verificação. A boa autoridade é de quem vive o seu relacionamento de reconhecimento de poder como um espaço de verificação para si e para o outro sujeito. Assim, a verificação torna-se uma companhia humana, em um caminho que é reconhecido, repleto de autoridade e significativo para ambos. A Especialização Escolar A escola é uma ocasião de educação que confere a instrução. Escola é o lugar de educação que tem a função de instruir. Então, o problema diz respeito ao tipo de relação entre aprendizagem e educação. Como o instruir e o ensinar entram no educar? A idéia fundamental é esta: a instrução, com todas as suas técnicas particulares e os seus percursos específicos, participa da educação enquanto é um exercício e uma ativação das capacidades de conhecimento do sujeito. Nos damos conta que a capacidade de que conhecimento do sujeito não está a parte ou não é um acessório com respeito do seu caminho de pessoa em direção ao destino, em direção a felicidade. Se não é assim, deveríamos ter uma concepção um pouco estranha do homem. O que é o homem – pessoa que caminha em direção ao destino – senão um ser constituído das suas capacidades de conhecimento e de vontade? Até a animalidade do homem é diferente porque é conectada à inteligência e vontade. A relação entre instrução e educação se firma no momento no qual existe uma estima profunda e fundamental pela capacidade de conhecimento que define o homem como um ser que é relacionamento com a verdade. Alguns aprofundamentos Ao falar de desejo e de necessidade – desejo de felicidade e necessidade de reconhecimento, de conhecimento e de verdade do homem – entende-se que a estrutura humana é como uma série de cercas concentricas, dentre as quais a cerca mais compreensiva é exatamente a do desejo humano. Depois existem, dentro do horizonte do desejo, no qual o homem é projetado em direção a sua realização, necessidades particulares com respeito a esse desejo, entre as quais, o desejo de reconhecimento e a exigência de conhecimento. Essas necessidades possuem sempre objetos particulares, portanto representam dois níveis diferentes do ser 4.4 ANEXOS AVSI A IDENTIDADE HUMANA humano, mas juntos, profundamente coligados. Tanto que, de fato, o homem vive o seu desejo de felicidade através da necessidade de reconhecimento e de conhecimento. Analisamos mais profundamente em que consiste o desejo de felicidade do homem. O que quer dizer: o homem deseja a felicidade? Pascal definia o homem como “vara pensante”. Queria dizer que o homem é esta situação paradoxal: é um ser frágil como uma vara de cana, um fragmento insignificante no universo, que qualquer acidente material pode destruir; mas é um ser pensante, isto é, capaz de compreender, o mundo inteiro mesmo sendo um pequeno fragmento do mundo. Este paradoxo indiscutível significa que o homem excede por cada lado a sua evidente conclusão. Por exemplo, o homem faz experiência do tempo: cada um de nós vive e simultaneamente vivemos, instante por instante o presente. A psicologia até nos diz que o homem vive uma capacidade de presença psicológica entre 0,5 e 2 segundos. Essa presença que o homem vive é de no máximo 2 segundos e, no entanto, o homem, através da experiência do tempo, vive o passado e o futuro, se dilata infinitamente além do seu presente. O homem vive a experiência pensando nela. O que quer dizer que o homem pensa? Quer dizer quer o homem tem um conhecimento universal das coisas; um conhecimento que certamente empobrece o concreto com o qual o homem entra em contato. Se pensarmos a vida em termos universais, fugirá a riqueza do símbolo particular, porém, tem-se a imediata possibilidade de estender este conhecimento do particular a tudo aquilo que se assemelha a ele. Por exemplo, vejo aquele objeto e digo: “é uma cadeira”; não digo só aquele objeto, mas todas as cadeiras possíveis, inserindo uma gama infinitamente ampla de peças que podem servir para sentar-se. Isto quer dizer que o homem dilata a sua capacidade de relacionamento com a realidade indefinidamente, ilimitadamente. Disto podemos colher a experiência do desejo: o homem, com base no seu conhecimento universal, deseja, ilimitadamente. O homem tem consciência, por mais implícita que seja, que por direito tudo é objeto do seu conhecimento. O homem tem por direito o todo como objeto do seu conhecimento. Se existe uma realidade, esta é possível de ser conhecida. Existirá o problema técnico de conseguir colocar-se na perspectiva justa para conhecê-la, mas tudo é dado como possibilidade de ser conhecido. Por que o homem avança continuamente na tentativa de conhecer? Porque ele tem a absoluta certeza de que tudo aquilo que existe se pode conhecer. Da mesma forma, o homem tem uma certa consciência de que, por direito, tudo é objeto possível da sua vontade. O progresso técnico é uma enorme documentação dessa afirmação e responde a muitas necessidades imediatas: o seu desejo mais profundo é aquele de dominar a situação material e do ambiente no qual vive. Em outros termos: a razão humana é exigência de conhecimento e explicação total; a vontade humana é exigência de tal posse. Totalidade não como soma de fragmentos, mas como indefinida expansão. Isto é o que caracteriza o homem e o que, na pequena ou grande análise da vida humana, descobrimos com sinais muito eloqüentes. Esta é a raiz do desejo de felicidade do homem, a tensão entre a ilimitada exigência e a potencialidade de conhecer e possuir. O desejo de felicidade do homem se define como constante confronto ou interação entre estes dois pólos da existência: a sua evidente limitação, que depois tem uma sanção drástica com a morte e, por outro lado, o o pensamento e a vontade o levam a exceder-se continuamente no seu limite. É a sua estrutura de “vara pensante” que o constrange a desejar uma condição na qual a sua capacidade ilimitada não tenha obstáculos.O viver humano é colocado nesta inevitável tensão a um ponto ômega no qual seja possível conciliar as suas limitações com esta capacidade ilimitada. O homem não pode deixar de desejar uma extensão ulterior AVSI ANEXOS 4.5 A IDENTIDADE HUMANA das próprias possibilidades. Não pode negar o sonho que a realidade concreta tenha uma plasticidade tal, que se curve a esta expansão. Observemos fenômenos como o esporte ou a arte. Porque são assim tão importantes na história da humanidade? O homem nem sempre teve a ciência, mas teve o esporte e a arte. São as expressões eficazes do desejo de colocar-se além do limite das próprias capacidades e do sonho de infinita e harmoniosa expansão. De fato, o homem não suporta, sendo capaz de possuir e conhecer ilimitadamente tudo, encontrar uma atividade como obstáculo. Este desejo: E´ constitutivo e pré-consciente. O homem é estruturado por este desejo, não o inventa. Não é um produto da sua reflexão, pelo contrário, a reflexão do homem, o acontecimento da própria identidade está na tomada de consciência de ser feito assim. Deste ponto surge a pergunta que emerge no homem com respeito ao término deste caminho e da situação resolutiva do seu desejo: o que é a felicidade? É utópico: etimologicamente significa “sem lugar”, que “não tem lugar”. Isto explica a dramaticidade do desejo. O homem não pode viver, se não desejando esta pacificação: que a realidade finita não seja obstáculo a sua indefinida possibilidade de expansão, de posse, de conhecimento; entretanto, este inevitável dinamismo não tem um lugar de realização completa. O homem racionalmente consegue pensar que deveria superar a morte, que deveria superar a patologia psicológica e a sua alienação espiritual. Como o homem pode prolongar ou restringir a sua sombra, mas não pode evitar que a luz produza a sombra, assim o homem não pode sair do seu desejo e estar numa situação contínua de insatisfação. É como se o homem vivesse um sonho do qual não conhecesse a possibilidade de realização. Aliás, quanto mais analisa os elementos à sua disposição, tem a certeza de não poder satisfazê-lo. Este drama o conduz ao senso religioso ou leva, sem dúvida, ao trágico; a menos que, manipulando os dados da experiência, chegue a dizer que o homem é “um fragmento entre fragmentos”. Então se elimina o problema. O significado do desejo está no senso religioso. Se o homem não é um erro trágico, então temos que admitir que seu baricentro, isto é, o centro de equilíbrio do homem está fora dele. A nossa realização depende de algo que é externo aos nossos poderes. Sabemos que o nome desta felicidade é Cristo, Cristo Ressuscitado, isto é, que a ressurreição é o conteúdo do desejo completo. A Ressurreição é a humanidade transfigurada, ou seja, a humanidade cujo término não é mais um obstáculo. A imagem do Cristo, que atravessa os muros, diz qual é o desejo do homem: o de passar através de muros físicos e espirituais que são obstáculos à instância mais profunda da sua natureza. Neste sentido, o desejo do homem é Deus, mas Deus como Humanidade Ressuscitada. A relação do reconhecimento com o desejo de felicidade Tal relação é dúplice. O reconhecimento é uma exigência não suprida, é a necessidade sutil e tenaz de ser antes de tudo conhecido, de ser estimado, admirado, querido bem, até no sentido eticamente melhor destas palavras. Por que acontece a necessidade desta relação de acolhida para afirmar a si mesmo no outro? Porque este é um aspecto parcial, que não satisfaz, mas de qualquer forma é um aspecto do realizar o desejo fundamental. O que é de fato habitar no outro? É estar presente no conhecimento, na vontade e no amor do outro. É o modo mais sutil, mais profundo, mais íntimo com o qual o homem começa a se expandir, e o outro começa a não ser oposição, porém acolhida. 4.6 ANEXOS AVSI A IDENTIDADE HUMANA O homem com este desejo de ser hospedado pelo outro realiza inicialmente o desejo de existir ilimitadamente. Com o reconhecimento vive-se na intencionalidade do outro, no seu conhecimento e na seu querer reconhece-lo e, portanto, existe fora de si mesmo; isto já é romper o próprio limite e superar a diferença que separa. Então, viver na consciência e no amor do outro é um germe de atuação do desejo de viver ilimitadamente, de ser mais do que o próprio término, de ser segundo a ilimitada capacidade do conhecimento e da vontade. Além disso, a relação de reconhecimento faz acontecer a própria identidade. O homem é ativado na sua capacidade de querer e de conhecer e, portanto, experimenta uma particular satisfação por esta ativação da sua capacidade. Neste sentido, existe um valor pedagógico da lei do reconhecimento. Este é um instrumento potente para orientar o outro, para ajudá-lo a caminhar. É inútil fingir que não tem este poder: o verdadeiro problema é usá-lo bem, para ajudar o outro, para fazê-lo caminhar, para abri-lo ao exercício da sua diversidade. Referência Bibliográfica BOTTURI, Francesco. L’identitá umana fra desiderio e relazione. Iniziare, Castel Bologneza: I Itaca, n. 3, p. 100-106, 2000. Tradução Juliana Pasquarelli Peres. AVSI ANEXOS 4.7 A PALAVRA COMPARTILHADA A PALAVRA COMPARTILHADA1 Marguerite Lèna A conversão exemplar da obrigação súbita à responsabilidade exercida, e da desigualdade imposta à reciprocidade livre das pessoas constitui o frágil e misterioso privilégio da relação educativa: é nossa profundidade antropológica e nossa dificuldade, além disso, nos explica vários insucessos. Com efeito, olhando bem, essa conversão atinge em nós toda a categoria do ter para transformá-lo em dom e em partilha, e toda a categoria do poder para transformá-lo em obediência e serviço. E mesmo se for facilitada pela ternura espontânea que normalmente leva o homem em direção à criança, e do impulso de crescimento que leva a criança em direção ao homem, ela sempre é, como toda conversão, sofrimento e liberdade. É uma morte de si e um passar ao outro: diante disso não precisamos ficar surpresos que não existam educadores muito verdadeiros. Mesmo assim, devemos nos esforçar para sê-lo. Há uma experiência infinitamente banal, que continua a nos lembrar que isso é possível, simples e vital: é o aprendizado da língua materna por parte da criança. Ele delineia uma espécie de prefiguração profética e de resumo significativo da lenta aventura constituída por toda educação porque é verdade que a linguagem é a cima de tudo. Neste aprendizado reúnem-se obrigação e alegria, obediência e liberdade, tornando explícita – de modo mais decisivo que em qualquer outra experiência, pois ele ordena todo o resto – a dúplice condição de toda relação educativa realizada: o respeito à verdade e à autenticidade do amor. Por isso, evocar o aprendizado significa reunir sinteticamente as considerações anteriores e reconduzi-las ao seu fundamento. Antes de mais nada, podemos observar que o aprendizado da língua materna quase sempre é coroado pelo sucesso, o que é um princípio de otimismo e de esperança 1 Extraído de LÈNA (2000). AVSI ANEXOS 4.9 A PALAVRA COMPARTILHADA a ser colocado na base de todas as tarefas ulteriores da educação. Certamente, são raros os que dominam perfeitamente os recursos de sua língua; desfrutamos de apenas alguns filões desse tesouro, deixamos dormir mil criações brilhantes, raro privilégio dos poetas; não cessamos de ser alunos de nossa língua materna ao longo da vida. Mas há fatos ainda mais graves, são os excluídos da palavra: as crianças autistas ou gravemente deficientes. Entretanto eles não estão excluídos da educação por isso, e o amor deve inventar para eles outros percursos de humanização diferentes da palavra. Entre o poeta e a criança fechada em uma fortaleza vazia, há lugar para muitos que utilizam mal a própria língua, pois foram desarraigados da própria cultura, ou nem sempre completamente arraigados nela, e a pobreza de palavras impede que se expressem e se comuniquem. Contudo, não se trata aqui de levar em consideração o domínio absoluto da língua, mas a porta de acesso à palavra. Pois bem, a maior parte das crianças penetra no universo dos signos e não é por acaso que a língua assim apreendida é chamada “materna”. Ainda que seja rudimentar na criança, a língua a gera para a vida do espírito e torna-se, a rigor, a grande educadora, a que faz emergir na pessoa a consciência de si. Sempre é um acontecimento comovente quando, na sua simplicidade, a criança diz “eu” pela primeira vez, quando coloca de repente todo o edifício do discurso em primeira pessoa, sinalizando, concomitantemente, com essa pequena palavra “eu” uma referência absolutamente inédita e insubstituível: até o fim da vida, ele será o único, exclusivamente, a empregar o “eu” nesse sentido. Dessa maneira, firma-se sua identidade de sujeito e sua diferença de todas as outras pessoas. Ao dizer o seu nome e nomear as coisas e os seres, a criança sai da particularidade fugidia e incomunicável das suas impressões ou dos seus impulsos imediatos. Pode objetivar as suas necessidades ao enunciá-las, representar os objetos, ao invés de temê-los por causa de sua proximidade física. Como observa o psicanalista Denis Vasse, mais que o nascimento, é a palavra que separa o homem de seu semelhante. No conto autobiográfico de H. Keller, Sourde, Muette, Aveugle, Histoire de ma vie (a partir do qual foram feitos uma peça de teatro e um filme estupendos: Miracle en Alabama, que valem como parábola para toda a educação), temos um exemplo do acesso à linguagem, particularmente surpreendente pelo caráter excepcional das circunstâncias: para que a pequena Helen, surda, muda e cega, entrasse na compreensão dos signos da linguagem, foi necessária toda a tenacidade de sua instrutora, Miss Sulivan. Helen Keller evocou com extrema lucidez a liberdtação que a revelação da linguagem representou para ela, uma criança presa pelas paredes da vida. “Descemos ao longo do caminho que levava ao poço... Alguém estava tirando água e minha instrutora colocou a minha mão sob o jato do balde que estavam esvaziando. Enquanto saboreava a sensação de frescor da água sobre a mão, Miss Sulivan escreveu na mão que ficou livre a palavra “água”, primeiro lentamente, depois mais rapidamente. Fiquei imóvel, com toda a atenção concentrada no movimento dos dedos. De repente, veio uma recordação imprecisa de algo de um tempo esquecido e, instantaneamente, o mistério da linguagem foi revelado a mim. Sabia que “ág-u-a” estava indicando aquela coisa fresca na minha mão. A palavra tinha uma vida, iluminava o meu espírito que ficava livre, enchendo-o de alegria e esperança. Ainda tinha diante de mim muitos obstáculos a superar, é verdade, mas agora tinha em mim a convicção de que, com o tempo, conseguiria... Deixei o poço animada por um grande ardor pelo estudo. Cada objeto tinha um nome, e cada nome suscitava em mim um novo pensamento. Tudo o que aparecia no meu caminho para casa me parecia palpitar de vida. Via as coisas exteriores sob um novo aspecto. Ao entrar em casa, lembrei-me da boneca quebrada. Tateando, fui recolhendo os fragmentos pelo caminho e procurava, em vão, reuni-los. Então, meus olhos se encheram de lágrimas, porque entendi que tinha sido má, e pela primeira vez conheci o arrependimento... Naquele mesmo dia, aprendi muitas palavras novas. Não 4.10 ANEXOS AVSI A PALAVRA COMPARTILHADA me lembro de todas: entre outras, estavam as palavras ‘mãe, pai, irmã, instrutor’, que suscitavam em mim sentimentos dulcíssimos, desconhecidos até aquele momento. Teria sido difícil encontrar uma criança mais feliz do que eu quando, na noite daquele dia memorável, na minha caminha, recapitulei as alegrias que eu havia procurado: eu nunca havia adormecido impaciente pelo amanhã” (Op. cit. pp. 40-41). Esta é uma página importante que apresenta o despertar intelectual como mistério de vida e de alegria, e associa estritamente o acesso ao signo, à consciência moral, a uma duração pessoal orientada, com a inserção na constelação familiar. Tal separação é por si mesma um nascimento. Lembremos o que nos fala o Gênesis para descrever a ação criadora da Palavra de Deus. Abraão é arrancado da sua terra natal, e assim se dá início a uma história. A compreensão dos signos da linguagem dá à criança um espaço de liberdade, de direito ilimitado: a vida inteira não será mais suficiente para explorar e elaborar o universo de significados oferecidos a ela pela língua, autêntica mediação transparente entre si e si, entre si e as coisas, entre si e os outros. Talvez a língua materna também devesse ser chamada de fraterna; através da língua, a criança não só diz o seu nome, mas estabelece relações. O outro torna-se um interlocutor real ou virtual. Aprender a falar significa adquirir os meios para se comunicar, não só com os que hoje falam a mesma língua, mas também com o passado de uma cultura e com todas as outras. A língua materna é necessária para possuirmos raízes espirituais, como é necessária para nos abrirmos a outras línguas. Compreende-se, desse modo, porque psicólogos e antropólogos consideram o acesso à linguagem um limiar decisivo de humanização. Ora, quais são as modalidades desse aprendizado? Ele não começa na escola, mas na vida familiar; não tem um lugar nem um tempo estabelecido, contudo reúne em uma unidade exemplar, que talvez só encontre equivalente na experiência estética, o prazer e a obrigação, o trabalho e o jogo que vimos serem necessários para qualquer educação. De fato, ainda antes de qualquer palavra e como condição de sua possibilidade, há na criança o desejo e o prazer, o jogo e a alegria da comunicação. Em uma página de seu livro Au fil de l’autre, France Quère evoca com fineza o diálogo sem palavras que preludia a todas as palavras, a aliança alegre entre mãe e filho: “Na riqueza das nossas experiências comuns, há uma que me fascina mais do que as outras e me enche de maravilha: é a boa aliança, a compreensão boa que reina entre nós, essa compreensão imediata e fundamental que nos une uma à outra. Emmanuelle, que não tem nem um ano, ‘não fala’, como dizem os adultos... Não fala? Toda a sua pessoa, corpo, olhos, gestos e voz, são uma palavra imensa. Ela nos grita os segredos que preenchem a sua cabeça e, se não podemos compreendê-los, corremos o risco de nos privar dessa festa, e também a menina, infelizmente... Achamos que essa necessidade de se comunicar com os outros é causada por um sentido, por algo que deve ser dito. Estou descobrindo que, mais fundamental do que o sentido, é o puro desejo de cada saudação recíproca que nos faz falar ainda antes que haja algo a ser contado. Você existe e eu existo, graças a Deus! Mas estou filosofando demais. A alegria nasce entre nós, simplesmente, por termos conversado sem falar nada.” (F. Quere, Au fil de l’autre, Seuil, Paris, 1979, pp. 96-97). Segue-se a mesma direção em P. Celier, que escreve em La parole et l’Etre (Aubier, Paris, 1974, p. 14): “A comunicação precede o conhecimento; constatei em todos os meus filhos. O homem procura o diálogo antes de ter condições de conhecer e também quase antes de sentir. Talvez nada seja mais comovente que esse primeiro apelo ao amor em um ser reduzido, em uma vida puramente vegetativa, esse primeiro nível que interroga o outro antes de conhecê-lo. Todas as mães conhecem esse fato fundamental que os filósofos parecem nunca ter considerado”. AVSI ANEXOS 4.11 A PALAVRA COMPARTILHADA O prazer de se comunicar não é sufocado, mas renovado e acrescido pelo domínio gradual da língua materna que a criança adquire. É necessário reconhecer que a aquisição é antes de tudo uma disponibilidade de escutar: “ouvir é constitutivo do dizer”, diz Heidegger, e se realiza a custo de um treino. A língua impõe mais rudemente as suas leis à criança do que um patrão ao seu escravo. Deve se dobrar a uma obediência corporal e espiritual: aprender a falar significa disciplinar a própria língua e o pensamento que está nascendo, de acordo com sons, regras semânticas e sintáticas que se opõem à espontaneidade original da expressão. Com certeza, a criança toma muitas liberdades com as regras, joga com a linguagem como com se fosse um maravilhoso instrumento no qual são possíveis mil variações fantasiosas, que encontram a cumplicidade divertida dos adultos. Mas a brincadeira de criança também representa um trabalho da língua, ao fim do qual só há um vencedor, sempre o mesmo, a língua materna. Do defeito de pronúncia à fantasia semântica, das palavras inventadas às palavras usadas impropriamente, a língua faz reinar a sua ordem, a custo de reprimir o balbuciar infantil. Desse ponto de vista, a aquisição da língua, bem longe de ser uma expressão de si, é uma integração social, algo determinado pelo exterior, uma disciplina imposta. Todavia, em cada fase de aprendizado, ficam o prazer e a alegria; a espontaneidade se enriquece de novos meios. O prazer móvel, intelectual, afetivo, transforma a criança que descobre a língua no Cristóvão Colombo de uma América maravilhosa, e a sua alegria reflete-se no ambiente. Assim, a aquisição da linguagem, que condiciona tantas outras formas de aprendizagem, também profetiza o ponto de chegada, que se realiza na espontaneidade dócil e na obrigação libertadora, onde a alegria não se exaure, mas é reforçada. Também é necessário acrescentar que a aquisição da linguagem prefigura de modo ainda mais significativo a passagem da desigualdade à reciprocidade, exigência fundamental de toda relação educativa. No que diz respeito à língua materna, a desigualdade é absoluta entre a criança – in-fans, o que por definição não fala – e seu ambiente. Se o aprendizado da palavra fosse um simples condicionamento, a criança, ao ter acesso à linguagem, tornar-se-ia escrava de uma língua constituída antes dela e sem ela, que lhe impõe um comportamento repetitivo, semelhante ao treino com um animal. Mas não é assim. Como observa Pontalis no artigo dedicado ao caso de Helen Keller, é muito mais difícil treinar uma criança com os signos que um animal, um cão... que se deixa ‘pavlovizar’. Como a pequena Helen que fica completamente excluída da linguagem até o momento em que ela lhe é dada, e dada completamente. O milagre da linguagem consiste no fato de que o acesso ao signo é ao mesmo tempo acesso à vida do espírito, na total liberdade, mesmo que de modo ainda incipiente e velado, pois é repentino como qualquer mudança de ordem, como qualquer nascimento, mesmo se foi longamente preparado por mecanismos ocultos. Um signo designa e expressa: liga a interioridade que se aprofunda à exterioridade que evidencia. Permite comunicar na duração, os sentimentos e os pensamentos, os sujeitos e os projetos. Por isso, a palavra faz a criança entrar na esfera dos relacionamentos entre verdade e liberdade, nos quais ninguém entra como escravo, nem como simples técnico de instrumentos verbais indiferentes, mas como sujeito moral. Assim que aprende a falar, a criança já tem condições, de modo elementar mas real, de dizer sim ou não, de exercer um início de responsabilidade com relação ao verdadeiro e ao falso, de dar-se ou de se subtrair ao encontro e ao amor, de assumir, pessoalmente, ou não, as possibilidades para seu acesso à palavra. A importante mudança da posição de subordinação à de comunicação, realizada pela linguagem, só se realiza sob a égide da idéia de verdade e exige, de ambas as partes, a confiança do amor. Quando a criança entra espontaneamente no espaço do discurso e se move nele com alegria é porque ele, normalmente, coincide com o espaço do amor. As 4.12 ANEXOS AVSI A PALAVRA COMPARTILHADA palavras só têm sentido se forem levadas por um amor que lhes deu um sentido, escreve F. Dolto. Muitas observações de psiquiatras revelam que podem aparecer desordens no discurso, se a primeira experiência de confiança for traída: as palavras privadas de ternura são apenas um bronze que ressoa, sinos que tilintam. No mesmo sentido, o relacionamento que a criança tem com a verdade é inseparável da relação estabelecida com aqueles que lhe ensinaram a falar. É uma confiança harmonizada com a palavra do outro, um ato de confiança, e não uma suspeita, uma postura de disponibilidade, e não de verificação. Da parte do adulto, mesmo se de modo muito elementar e quase involuntário, compartilhar a palavra é um dom fundamental, gratuito e desinteressado: ninguém ensina uma criança a falar com a intenção interesseira e deliberada de encontrar um interlocutor! Mais profundamente, o adulto nunca pode segurar com ciúme nem o sentido, nem o uso das palavras que ele dá à criança. Também pode acontecer que um dia ela se sirva da língua materna para insultar sua mãe: é um risco a que o amor se expõe ao oferecer a palavra. Mas, graças a essa liberalidade que não calcula, nem pode calcular, os pais têm a possibilidade grave e alegre de entrar com os filhos nas dificuldades e nas alegrias do diálogo. Por outro lado, o amor que precede ao nascimento da palavra não é um sentimento arbitrário ou generosidade cega; está ligado à verdade. Como haveria aprendizado da linguagem se o ambiente em que a criança cresce utilizasse as palavras ao acaso e de acordo com o capricho do momento? Na verdade, a criança aprende a falar porque o adulto se submete primeiro às leis da língua, não se ergue como professor com relação ao significado autêntico das palavras, respeita o seu sentido e reconhece as exigências de verdade que regulamentam o seu uso. Chegamos aqui ao que se poderia chamar função paterna da linguagem, como primeiro indicador e revelador de valores. Se o adulto não o levar em conta e se servir das palavras para enganar, se as transformar em instrumento de sedução ou de mentira, toda a relação educativa estará comprometida. Longe de favorecer o emergir da consciência, a conversão da obrigação à liberdade e da dependência à reciprocidade cria uma insegurança profunda e escandaliza a criança antes mesmo de fechá-la na suspeita sistemática, na mentira ou na revolta. Ao contrário, quando educadores e crianças rebelam-se juntos contra essa perversão da palavra, no diálogo antes hesitante e ímpar que se instaura, a paternidade humana se realiza em fraternidade, segundo a sua vocação, pois uma lei própria de objetividade e respeito à verdade regulamenta o uso da linguagem, seja quem quer que fale. Ela interage entre irmãos e contribui para que todos aprendam a viver como iguais com os que não têm a mesma idade, força e experiência; interage entre pais e filhos, professores e alunos e, aos poucos, coloca em relação a palavra de uns e outros com a verdade e o bem, dos quais os próprios educadores são apenas servoscomo vimos. Quando o seu filho for adulto, trate-o como um irmão, diz um provérbio africano, já mencionado aqui, que indica assim o ideal último da relação educativa. É importante acrescentar agora que essa necessidade inscreve-se e se realiza na educação de forma incipiente, muito antes que o filho tenha se tornado adulto: a partir do momento em que ele entra com o pai, e graças a ele, na pátria da palavra. Amor e verdade se encontram, diz o Salmo 84, como sinal da era messiânica. Na nossa experiência, raras são as vezes em que esses dois bens se vêem juntos: nós conseguimos afirmar somente alguns reflexos fugazes e parciais. Caminhamos tateando em um mundo onde a violência tem mais espaço e faz mais barulho que o amor, onde a mentira às vezes pesa muito mais do que a verdade na balança dos poderosos e sobre os ombros dos pobres. Mesmo assim, não há educador autêntico que, espontânea ou deliberadamente, não faça do encontro entre amor e verdade o programa ou o sonho da sua ação. Vocês descobrirão esse encontro na raiz de qualquer aprendizado oculto na obscuridade das origens da palavra, e então ele se torna sinal de esperança tênue, mas AVSI ANEXOS 4.13 A PALAVRA COMPARTILHADA real, humilde e profético. Cada um de nós conhece educadores que, embora desprovidos de meios, pouco cultos ou simplesmente sobrecarregados de trabalho para dedicar o tempo necessário à própria tarefa, conduzem as crianças e os jovens a eles confiados à completa maturidade humana. Isso é possível porque neles estão presentes a lealdade à verdade e o amor desinteressado, que constituem em última análise a “única coisa necessária” da relação educativa. Referência Bibliográfica LÈNA, Marguerite. La parola condivisa. Iniziare, Castel Bologneza: I Itaca, n.2, p. 68-73, 2000. Tradução Juliana Pasquarelli Peres. 4.14 ANEXOS AVSI O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL1 Marguerite Léna Na ação educativa emerge – tão banal a ponto de passar despercebida – a misteriosa prova que o homem dá de sua humanidade, não tanto em termos de domínio operativo, mas de responsabilidade frente a outra pessoa. Educar não significa inscrever uma forma em uma matéria inerte, segundo o esquema técnico da ação, que devolve o desejo a si mesmo em uma inexaurível sucessão de objetos; também não significa – ainda que, sob certos aspectos, o modelo apresente analogias – superar fragilmente a violência através de um contrato que reconheça a liberdade dos outros, como exige a relação política. Além disso, a educação não significa apenas – ainda que também o seja – responder pelos próprios atos diante dos outros em nome da humanidade do homem, como exige a ética. Educar significa responder ao outro com a própria humanidade, responder por ele e sobre ele, enquanto ele não estiver em condições de fazê-lo, a fim isso acontece no momento apropriado. Técnica, política, ética delineiam os contornos da ação relacional, as condições e os campos de intervenção da razão prática. A ação educativa entra em todos esses campos, sem coincidir com nenhum deles. Experiência viva de um dom que vai de pessoa a pessoa, segundo um forte e generoso contato espiritual, a educação introduz, na esfera da ação, interdependências e fecundidade específicas e proporcionais às potencialidades de aceitação em ato. Antes de tudo, é duplamente impossível definir a fase inicial da ação educativa O educador não pode delimitar a própria tarefa no tempo, nem pode se situar no ponto de origem, pois como confirma o ditado: a educação da criança começa com a educação da mãe. 1 Extraído de LÈNA (2000). AVSI ANEXOS 4.15 O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL Se fosse possível definir a educação só como o aprendizado técnico, seria fácil assinalar, senão o final, ao menos seu início, já que é possível começar ou não um estudo de violino ou de inglês, por exemplo. Mas a educação vai além da esfera dos aprendizados e também do quadro temporal que lhes é próprio. Na família e na escola, a educação não tem momentos reservados e atividades específicas ou diferentes por natureza da trama comum da vida: quando se está com crianças ou jovens, é exatamente a trama comum da vida que sustenta a ação educativa e que tende a se confundir com ela. Certamente, algumas intervenções ou iniciativas têm uma intenção deliberadamente educativa. Pode acontecer, então, o que ocorre com os “jogos educativos”, que forçando nesse aspecto, param de ser jogos ..., de serem utilizados e, portanto, de serem capazes de educar. A criança não pede para ser educada, ela quer isso ou aquilo, quer sair ou ficar em casa, receber um amigo ou assistir a um certo espetáculo, entender um livro ou um problema determinado... Por sua vez, os educadores não têm a possibilidade de se revestir ou de se desfazer quando quiserem do seu papel. Por se tratar sempre, em última análise, de compartilhar com os outros a própria humanidade, o educador não pode se isolar em uma função social: mesmo quando a atividade é exercida em um contexto profissional, a profissão de educador não pode ser totalmente igual às outras. Nessa área, empenha-se sempre um pouco mais de tempo, um pouco mais de alma e de amor do que pedem contratos, e também se recolhem tantas alegrias e dores que fica difícil contabilizar. No que tange aos pais, eles são conscientes de que não se pode delimitar o trabalho da educação no tempo porque, ao seu modo, ela exige tudo. É como na vida moral e no caminho espiritual: não se trata de uma atividade particular, mas de uma atividade considerada sob uma certa luz e segundo uma intenção específica. Não está no nosso poder recuperar em nós mesmos as fontes da ação – essa espontaneidade dada, esse impulso recebido – assim nunca é possível dar início, ex novo, à tarefa da educação. Nesse fato há uma indicação de fundamental importância a ser refletida: a educação só é “instituível” pela humanidade se já estiver instituída, antes de tudo, no educador que, por sua vez, já foi educado. De modo significativo, na área educacional também acontece o que ressaltamos na ordem da linguagem e da política. Tais realidades, cada uma fundadora na própria ordem, já existem por si mesmas e fogem do projeto incessantemente renovado de tomar posse e de retornar ao antes de sua instituição. Não dispomos de nossos inícios, nem mesmo no instante em que o homem é acolhido por outro homem, o homem forma o homem. Nesse instante, paradoxalmente, o homem faz a experiência de uma dependência irredutível com relação a um dado que ele não constituiu e que não pode dominar de jeito nenhum: dado que o educador é para si mesmo, nos limites da própria personalidade e da própria história, da própria inserção social e histórica, com a própria fragilidade e as próprias fidelidades incertas que não lhe permitem nunca encarnar efetiva e adequadamente as palavras na conduta. Ele sempre encontrará esse dado diante de si, na criança, por exemplo, que não é nem material bruto, pronto a se adaptar docilmente a uma forma imposta, tampouco é uma tabula rasa onde se possa imprimir ex novo um programa de humanidade. Pais e educadores verificam todos os dias que posturas e comportamentos iguais de sua parte assumem sentidos e dão resultados diversos em cada uma das crianças ou dos jovens confiados a eles. São ações que se colocam diante de uma personalidade e de uma história singular, em que outros já intervieram, em tempo e modos que fogem à memória e, com mais razão, aos diários pessoais e às agendas escolares. Os próprios pais, que têm o privilégio de intervir em primeiro lugar no início de uma vida, ao olhar o recémnascido, têm consciência de que um mistério já pleno de história foi confiado a eles. “Quem é você, estranha recém-chegada? E o que você vai fazer com as coisas que nos pertencem?” Pergunta-se Claudel diante de sua filha. Mistério impenetrável de uma herança, de uma lenta gestação, de um nascimento repentino e desse primeiro encontro com as cores e formas do mundo, com palavras e rostos. 4.16 ANEXOS AVSI O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL A Biologia e a Psicologia, com suas múltiplas especializações, certamente contribuem para iluminar alguns aspectos desse mistério, enriquecendo prodigiosamente nosso conhecimento a respeito dos processos de crescimento, a experiência pré ou neo-natal, o universo da infância e da adolescência. Depois dos trabalhos de Freud, Piaget e de sua escola, sabemos muito melhor que a inteligência, a vida afetiva, o sistema dos interesses, longe de obedecerem a uma lei de desenvolvimento linear, modificam-se de limiar em limiar e de crise em crise. Também conhecemos mais claramente as incidências do ambiente físico, das condições higiênicas e alimentares, do clima afetivo, do contexto sócio-cultural. O maior conhecimento obriga-nos a nos abster de assimilações tranquilizadoras e de projeções inconscientes com as quais arriscamos desconhecer a criança na sua diversidade, e nos convida ao exercício sempre renovado de atenção ao outro. Todavia, sob a condição de não deixar que a ação educativa seja esmigalhada em uma série de comportamentos especializados, cada um desses remeteria a um saber particular, perdendo portanto a visão da realidade concreta e singular da criança. Seria muito grave que o desenvolvimento da pedagogia levasse a esquecer a educação. Com um certo humor, Maritain observava: “A criança é submetida a tantos testes, é tão observada, as suas necessidades são tão bem analisadas, sua psicologia é tão claramente definida, os métodos para tornar-lhe tudo fácil são tão aperfeiçoados, que no final de todas essas louváveis melhorias, corremos o risco de esquecer o desconhecido.” Encontramo-nos, assim, diante de pais inquietos e, enfim, absolutamente convencidos da própria incompetência técnica, que vão incansavelmente do psicólogo ao médico e do médico ao psicólogo, e nunca ousam tomar sozinhos a mínima iniciativa. Frente à fragilidade de uma psique infantil, frente à sua complexidade, como arriscar uma educação cuja única arma é a boa vontade? No entanto, agir é mais que necessário. Com efeito, o acréscimo de conhecimentos e de poderes, fornecido pelas ciências e pelas técnicas da educação, torna ainda mais indispensáveis a integração e a responsabilidade das pessoas a serviço da pessoa. Quanto mais o saber positivo nos domina, mais a educação nos obriga a responder a uma questão crucial colocada pelo predomínio técnico, terreno privilegiado do verdadeiro debate ético: que uso fazer da potência? Tornamo-nos muito sensíveis aos problemas relativos a transmitir a vida ou a conservá-la na fronteira da morte. E sem dúvida seremos obrigados a ser sempre mais sensíveis no que respeita à ação educativa. O domínio e o controle técnico da nossa natureza biológica, afetiva, intelectual, materializam-se em um poder sempre maior, que pode determinar o desenvolvimento do homem na criança: serviremos apenas para a manipulação com fins econômicos ou ideológicos, ou seremos instrumento para servir ao homem? A esse propósito também parece evidente que não é possível subtrair-se ao problema dos fins. Não se fazem experimentos com crianças. Definitivamente, não se trata de ignorar os condicionamentos de todo crescimento humano, que, aliás, o educador pode apreender normalmente, de modo mais intuitivo ou mais metódico. Trata-se, antes, de reconduzi-los incessantemente à unidade vivente da pessoa, o que se perdeu de vista na educação por causa do controle técnico (como acontece em uma medicina especializada demais, que corre o risco de desconhecer a unidade funcional do corpo). Por isso, a falência humana da educação perfeitamente “atingida”: a criança nunca teve a ocasião de se tornar sujeito do seu próprio crescimento. Nesse ponto aparece, como um continente desconhecido que reestrutura a paisagem inteira, uma forma de alteridade mais radical do que a explorada pelas ciências positivas: o outro, como sujeito irredutível, insubstituível. Ninguém deveria se tornar educador sem, ao menos uma vez, experimentar e sem conservar em si o sentido da maravilha que Dostoievskij evoca nos Demônios: AVSI ANEXOS 4.17 O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL “É uma grande alegria (...), a aparição de um novo ser é um grande mistério, um mistério incompreensível. Eram dois, e eis um novo ser humano a aparecer, um novo espírito, completo, acabado, que nenhuma mão jamais conseguiu criar, um novo pensamento, um novo amor. E também é terrível... Não há nada maior no mundo”. “Um ser humano – escrevia M. Daniélou – por mais humilde que seja, tem resssonâncias infinitas, profundidades insondáveis, uma palavra a dizer que só ele pode dizer, embora se insira em um coro imenso, uma vocação que na realidade é um pensamento divino”. Meçamos então o limite de todas as expressões, aliás freqüentes, de “objetivos pedagógicos” ou de “projetos educativos”. A primeira, delimita justamente os objetivos precisos de aprendizados particulares que, de fato, podem ser programados e adquirir eficácia; mas tais aprendizados ainda não constituem a educação. A segunda, coloca ênfase na coerência de projetos, que deve inspirar e animar toda ação educativa autêntica, preservando-a de imprevistos, do acaso, da contradição. Assim, o “projeto educativo” torna-se a carta espiritual da ação dos educadores, mas não é o caso de defini-lo segundo um esquema estritamente normativo, nem de reduzilo a um simples e rígido protocolo de comportamento. Quando se quer definir um tipo de homem, com o objetivo deliberado de realizá-lo, corre-se o risco de transformar a idéia de homem em um conceito operativo, e as pessoas concretas que nos são confiadas, em materiais e instrumentos da operação. Todos conhecemos aqueles pais invasivos, decididos a ter um filho engenheiro. De modo, por sorte, limitado ao seu âmbito de poder, eles repetem o que os regimes totalitários fazem em escala muito mais perigosa. A esse propósito também se deve convir que a educação é uma ação particular com relação ao fim ao qual tende. Com efeito, trata-se de uma tarefa infinita, não somente porque sempre exige uma vigilância presente e não se deixa delimitar no tempo, mas também porque nunca é possível atingir sua realização. A ação educativa escapa a todos os cálculos. Ela leva em si algo de irresolúvel, detém-se diante de um limiar misterioso, sempre um pouco aquém do seu resultado, o que não lhe permite concluir que a obra seja sua, obrigando-a à modéstia: educar não significa criar e muito menos fabricar. Enquanto a ação técnica afirma o domínio do querer, no mundo das coisas, a verdadeira capacidade educativa fica à margem, incompleta. Sobre o “projeto educativo” é possível dizer o que Pierre Emmanuel disse sobre cultura, que só leva até o limiar do espírito: “O mais coerente projeto cultural pode apenas preparar, como “em negativo”, as condições dessa passagem ao limite, à descoberta misteriosa do ser reservada àqueles que, no limiar, se desfazem de tudo o que os conduziu até ali... [a cultura] não é a Páscoa do espírito, nem um substituto da vida interior que a cultura pode ajudar a descobrir”. Devemos dizer o mesmo sobre a ação educativa. Tratase de colocar em órbita uma liberdade humana, confiando-a à atração do que merece ser conhecido, escolhido, servido. A ação do educador só intervém, como mísseis vetores, em um primeiro momento. Mas sua influência não poderá ser a lei do movimento da criança e do jovem: é preciso deixar que eles saiam do campo de atração dos educadores. Se existe um campo, para ainda citar Blondel, em que “cada ato é um ato de fé, e é justamente aquele que não se apóia na inércia de algo, mas sobre uma liberdade inédita, e que deve encaminhá-la às suas responsabilidades”. Efetivamente, como a educação precede a si mesma no educador, assim sucede a si mesma no educando: o seu fim último, escreve Eriv Weil, é “fazer do educando um educador”. João Paulo II expressa-se nos mesmos termos no seu Discurso na Unesco: “O primeiro e fundamental fato cultural é o homem espiritualmente maduro, ou seja, o homem plenamente educado, o homem capaz de educar a si mesmo e de educar aos outros”. Portanto, a educação é transitiva e reflexiva, passa de sujeito a sujeito, suscita o sujeito em 4.18 ANEXOS AVSI O DOMÍNIO IMPOSSÍVEL cada um. Nunca deve substituí-lo. Por isso, é uma grande ilusão atribuir à educação os fracassos da existência adulta. Sem dúvida, há carências difíceis de se compensar, feridas de difícil cura. Há também tesouros inalienáveis, recebidos na infância ou na adolescência, que toda a vida adulta pode alcançar sem temor de exaurir sua riqueza. Porém, os educadores não fazem tudo, e talvez nunca saibam exatamente tudo o que fazem... A educação só é verdadeira se tiver consciência dos próprios limites, respeitosa de tudo que uma liberdade em fase de crescimento significa em termos de impulsos imprevisíveis e de independência frente ao poder dos educadores. Paradoxalmente, essa independência é a condição da sua ação e, ao mesmo tempo, fixa seu limite. Sartre, logo depois do trecho citado, sublinhava isso, distinguindo de tal forma a influência educativa de todo tipo de condicionamento exercido mecanicamente: é verdade que “A criança, – ele escreve –, sentirá o peso da decisão que se toma por ela, mas tal decisão só será realmente integrada na sua história “na medida em que ela a tiver interiorizado livremente e em que se tornar não um limite imposto pelo seu pai, mas a livre limitação que sua liberdade coloca a si mesma”. A conversão da súbita obrigação à liberdade exercida será objeto de um estudo mais aprofundado. Notemos simplesmente que quem a desconhece e quem acredita que a educação faça tudo chega a culpar injustamente os educadores e a paralisar a sua iniciativa; desse modo, os jovens é que serão os bodes expiatórios de desilusões inventadas. Diante dessa excessiva atribuição de culpa, reverso obscuro de uma inconfessada vontade de poder, é necessário recordar a discrição maiêutica de Sócrates, ou a observação de Eriv Weil, segundo o qual a “educação conduz somente ao limiar da moral”. Pois não se trata de identificar um ser com algumas normas exteriores, mas de conduzi-lo à própria identidade; não de o remeter a “princípios”, entretanto de escavar nele a sua humanidade até o princípio secreto que ordena todos os princípios; uma liberdade capaz de amar e de construir junta a história. A isto, podemos, por direito, chamar de espírito. Princípio, fonte, lugar de irredutível singularidade e de profunda comunhão: nenhuma ciência e nenhum “projeto educativo” poderiam ser substituídos pela atenção singular dada a cada ser, a cada situação, a cada fase de crescimento, que respeita e revela no outro o ignoto e lhe oferece a hospitalidade de um amor. Como Abraão começa obedecendo a uma palavra que expressa uma ordem precisa, sem equívocos nem contradições, e que lhe descerra um horizonte, sem antes delinear as passagens, feliz a criança que recebe dos seus educadores a palavra criadora de história, de vocação rumo a um país desconhecido que será o seu. Referência Bibliográfica LÈNA, Marguerite. Il dominio impossibile. Iniziare, Castel Bologneza: I Itaca, n.1, p. 81-84. 2000. Tradução Juliana Pasquarelli Peres. AVSI ANEXOS 4.19 O ENCONTRO O ENCONTRO1 Romano Guardini Ensaio de análise da estrutura da existência humana A existência humana adquire forma graças a diversos elementos: psíquicos e físicos pertencentes ao ambiente natural e ao curso da história; a momentos e acontecimentos; a situações e ações particulares. Alguns deles são causados por forças que operam segundo uma necessidade intrínseca própria; outros, originados da liberdade, tanto da própria, quanto da liberdade das outras pessoas... Assim, a existência adquire forma: na multiplicidade de todos esses elementos difíceis de abraçar em apenas um olhar, todavia reunida e mantida na forma de uma unidade vivente, pela ação constante da identidade de cada ser humano que se afirma e se desenvolve. Desse fenômeno complexo – que não seria errado chamar de “estrutura” ou também “fluxo” –, queremos considerar mais atentamente um elemento de particular importância: o encontro. Como tudo o que é vivo, o encontro é rico em conteúdo e constituído por muitos fatores entrelaçados; por isso, com grande cuidado, desejamos despertar novamente a experiência. Na acepção mais óbvia e imediata, “encontro” significa que duas realidades se chocam uma com a outra. O que se entende por “realidade” e como deve se configurar esse choque, para que surja o que indicamos com aquele termo? Um “encontro” propriamente dito só se realiza quando é o homem que se choca com a realidade. 1 Extraído de GUARDINI (2000). AVSI ANEXOS 4.21 O ENCONTRO Mas isso acontece todas as vezes em que o homem entra em relacionamento com as coisas? Quando ele está com fome e estende a mão em direção ao alimento, “encontra” a fruta que o espera? É evidente que não; pelo menos, nem sempre. Na maior parte dos casos, ele se comporta de maneira análoga ao animal: o impulso da fome faz-se ouvir, e ele “encontra” a fruta que o espera? Todavia, seu comportamento só é parecido com o do animal, uma vez que também pode assumir outra forma. O homem também é capaz de olhar a fruta de modo que surja uma natureza morta de Cèzanne – pensem na Natureza morta com maçã. Aí, aconteceu um “encontro”... É encontrar uma pessoa, quando alguém vira a esquina velozmente e derruba o outro? É evidente que não. Esse caso seria como bolas de bilhar. Porém, aqui também se trata de algo parecido, não idêntico. Pode ser também que os dois, depois da surpresa inicial, detenham-se, olhem-se e, de repente, aconteça que pessoas que se perderam de vista há muito tempo se reconheçam. Aqui floresce algo pleno de significado para o homem. Aí, sim, acontece o “encontro”. A partir do que foi dito, fica claro em que condições é possível falar de “encontro”. Antes de tudo, é um choque entre mim e algo real. Entretanto, não acontece quando bato superficialmente contra a realidade, ou quando só entro em um relacionamento mecânico com ela, ou segundo o dinamismo biológico e psicológico de ação e reação; mas quando “tomo distância” da realidade, acolho-a com um olhar justo, deixo-me tocar pela sua peculiaridade, quando tomo posição na realidade com a minha ação. Para que isso ocorra, devemos ter em mente um dado, de fato, fundamental: a liberdade. Para eu ser realmente capaz do encontro, não posso estar totalmente vinculado a algumas dimensões da vida. Esse é o caso do animal, que só entra em relação com os animais aos quais está ligado por natureza e que gravitam em seu ambiente. Essa ligação pode chegar até o ponto que o animal presta atenção exclusiva aos seus filhotes, como a fêmea do canguru ou de outras espécies... Ora, também se dá um fenômeno correspondente no que diz respeito ao ser humano. Consideremos os nossos hábitos: neles percebo apenas o que está no plano do costume correspondente e me comporto sempre da mesma forma a seu respeito. Aqui não acontece nenhum encontro. Análogas são as coisas quando se trata de um comportamento utilitarista ou destinado a um objetivo qualquer. Ocupado com algum trabalho, posso me mover entre as pessoas, dizer ou fazer algo com um ou com outro, sem que tome forma o livre estar-diante-de no qual se realiza o encontro. Mas a situação também pode ser “forçada”. Talvez eu preste atenção, de repente, no rosto do homem ao qual dou ordens e perceba nele uma nuança de tristeza que me deixa pensativo, ou uma letícia de ânimo que me toca e, então, o encontro acontece. Certamente, o homem tem uma posição própria dentro da complexa realidade do mundo. Suas dimensões e seus limites naturais, a constituição dos seus órgãos de sentido e sua estrutura mental sinalizam à sua consciência apenas realidades e objetos determinados.Contudo, seu horizonte é tão vasto que nos autoriza a falar, por princípio, em uma radical e fundamental incomensurabilidade... Isso também implica que eu só possa prognosticar e prever dentro de certos limites o que virá ao meu encontro nesse espaço aberto da realidade. Assim, experimento o sentimento vivo do caráter de espontaneidade, dom e iniciativa que me diz respeito, que é próprio da realidade e que me leva a tomar posição frente ao que se apresenta a mim, encontrando-o e acolhendo-o. Além disso, o homem é capaz de fazer uma experiência que pode ser qualificada como experiência ou consciência viva da existência enquanto tal. Nela, o “todo”, o “inteiro”, o “essencial”, se apresenta, em particular, através de um símbolo, de uma obra de arte autêntica, da experiência de um profundo amor espiritual – e por isso, também na experiência imediata da existência em geral. O puro e simples estar-aqui-e-agora da existência, com a 4.22 ANEXOS AVSI O ENCONTRO sua obviedade, está como suspenso, e se abre com uma profundidade vinda de longe. O que parecia óbvio torna-se novo e nos maravilha. Portanto, desde sua origem primeira, trata-se de uma liberdade de relação com a realidade que o animal não possui. Ao lado dessa liberdade – que é possibilidade de relacionamento universal com tudo que existe – está a liberdade própria da posição pessoal. O homem não é obrigado a estabelecer relações, pode fazê-lo ou não. Também acontecem encontros que o pegam de surpresa e levam a melhor – fazem o homem feliz, o transtornam ou o levam à ruína – ele, porém, pode aceitá-los ou defender-se deles, ou ao menos procurar resistir a eles. O homem pode ter experimentado que certos encontros (em particular, com homens ou obras de arte de certo gênero) não são positivos e evitá-los ao longo do caminho. Pode se abrir confiante aos acontecimentos mas também se tornar prudente e circunspecto, e se conter. Em grande parte, nisso consiste a sabedoria. Pode chegar a se convencer de que não é do tipo que confia em tudo que vem ao seu encontro. Pode fechar as portas do seu coração e deixar o mundo de fora. O antigo estoicismo fez isso, e assim se comporta a ascese religiosa, para voltar a alma somente a Deus. Portanto: o fenômeno do encontro acontece sobre o fundamento da liberdade, da possibilidade radical, confiada à própria iniciativa de entrar em relação com cada coisa ou de, ao contrário, recusá-la. II Agora podemos traçar uma descrição mais completa: na autenticidade e liberdade de que se falou. Eu estou diante da realidade que me circunda. As funções vitais e as intenções mais imediatas desaparecem. Sou tocado pela essência do que está na minha frente, entro no seu horizonte de significado, sinto-me convidado a tomar posição a seu respeito. O encontro só pode se realizar “de minha parte” quando ele se referir a um objeto. Por outro lado, é verdade que na própria situação também é possível perceber uma certa iniciativa: é o que procuramos dizer com expressões como “a paisagem não me diz nada”, ou “o temporal me impressionou”. É a intensidade das coisas como tais. É a potência de sua presença, o esplendor cheio do sentido da forma essencial que as constituem e que se irradia ao seu redor – até quando se adverte uma espécie de iminente proximidade entre o homem e mundo inteiro... É o que compreende Platão e, depois dele, ainda mais resolutamente, Agostinho, quando afirmam que as idéias resplandecem; que o ato de perceber em que consiste o conhecimento é – ao mesmo tempo e de modo ainda mais radical – sermos possuídos pelo objeto que se concede a nós; que amar é sermos tocados e atraídos pelo que transborda de bem e de valor... Por acaso, encontro-me pela primeira vez na vida na presença de uma fonte de água; ou melhor, já vi uma qualquer, mas para dizer a verdade, nunca lhe dei atenção particular. Agora, ao invés, acolho-a na profundidade do olhar. Sou tocado pelo fenômeno: aqui, algo – aliás, não a água, o “elemento” primordial – brota das entranhas da terra. Além do dado, de fato – biologicamente falando, aqui embaixo se formou água que graças a certas relações de pressão sobre à superfície –, manifesta-se o que é ainda mais essencial: o surgir da profundidade, o perene brotar, a permanente doação de si mesmo, o mistério de uma originalidade inviolada, ainda não dobrada a um objetivo qualquer nas mãos dos homens. E tudo isso torna-se parábola das realidades últimas da vida. Encontro é isso. Ele me doa uma imagem viva que eu não possuía até aquele momento e sem a qual não existe nenhuma compreensão efetiva da existência porque, realmente, sem conhecer o que a “fonte” é, não é possível compreender nenhuma característica do que existe... Desse modo, eu posso encontrar tudo, um elemento por AVSI ANEXOS 4.23 O ENCONTRO meio de outro: uma árvore e, nela, a “árvore” enquanto tal; a flor, o vento, o animal feroz, uma ave – tanto a minúscula e veloz, quanto um verdadeiro pássaro, feito para as vastas dimensões do céu – e assim por diante. Do encontro nasce o pensar filosófico: a meditação e a reflexão exploram a sua profundidade; o trabalho do pensamento lhe dá ordem e forma (...). Quando diz respeito a uma pessoa, o encontro também pode se configurar na dimensão da reciprocidade. Pode se tratar de um desconhecido ao qual volto a minha atenção agora, em nossa primeira aproximação, volto-me à sua presença viva, à sua força, ao seu caráter, à sua beleza. Porém, estou atento a “ele” através de todos esses aspectos; e quanto mais eu tiver originalmente a experiência viva dele, em sua identidade vivente e irrepetivel, mais profundamente compreenderei o que é o “homem” através dele. O encontro completa-se quando o outro também me concede a sua atenção. Então, os rostos iluminam-se um ao outro, a intimidade da pessoa se revela, os olhares florescem com uma intensidade incomum. As relações mais diversas podem nascer daqui: confiança, comunhão de intenções e de obras, amizade, amor, seguimento. Mas, para dizer a verdade, também pode nascer recusa, hostilidade, luta. Um destino pode começar a tomar forma. E pode acontecer o mesmo na relação com um homem que já conheço de vista há muito tempo. Talvez trabalhemos na mesma empresa, ou no mesmo escritório, ou tomemos muitas vezes o mesmo ônibus, mas eu só o olhei de soslaio. Então, “encontro” significa que aquilo que me circunda dá um passo adiante em relação ao seu alinhamento costumeiro, no quadro do desenvolvimento cotidiano de tantas ações. Não porque aquela pessoa faça algo fora do normal; mas sim pelo fato de que ela aparece a mim dentro de um horizonte diferente de significado. E aqui, a palavra “aparece” não significa de modo algum “aparência enganosa”; ao contrário, é a manifestação do que o homem transforma autenticamente nele mesmo. A sua essência se revela e exige – além de qualquer elemento que distingue o homem como pertencente a uma estrutura social, com determinadas funções no todo – exige ser nele mesmo reconhecida e apreciada. Aliás, isso pressupõe que em mim aconteça o mesmo, de alguma forma, ainda que pura e simplesmente em virtude da postura de atenção autêntica e disponível. Naquele momento, a pessoa que anteriormente não era mais que um número em meio a outros torna-se um “alguém” – digamos mais exatamente: “você, aí” e “eu, aqui”. III Não é sempre que o encontro acontece. Digamos claramente: o momento deve ser propício. Já falamos sobre o significado dessa expressão no nosso curso. O “momento propício” é um complexo constituído por inúmeros fatores. As minhas forças e as minhas condições físicas; os meus diversos movimentos vitais, conscientes e também, de modo muito particular, inconscientes, o que eu experimentei até hoje, do que sinto necessidade agora, a que tendem as minhas inclinações interiores – tudo isso deve encontrar-se, coincidir em uma postura fundamental de sinceridade, atenção, disponibilidade... A pessoa que vem ao meu encontro também deve ser a “pessoa certa”. Em tal “justiça” convergem da mesma forma elementos diversos como aspecto, temperamento particular, mentalidade e força da personalidade, disponibilidade para ajudar ou, ao contrário, necessidade de ser ajudado, letícia ou infelicidade, sucesso ou fracasso, até a extrema imponderabilidade de simpatia ou antipatia, do clima ou dos humores... Não é preciso considerar os dois, de um lado e de outro, como elementos antes, separados, e depois, de alguma forma, reunidos; mas sim como constituintes de uma totalidade originária, uma relação viva na qual a pessoa torna algo possível, encoraja o 4.24 ANEXOS AVSI O ENCONTRO outro, chama-o à existência e o determina. O encontro não é uma reunião de acontecimentos a posteriori, mas nasce nos mil momentos e elementos de que consiste. Veremos logo como o fenômeno do encontro dilata-se no horizonte mais vasto do que se chama “desígnio” ou “destino”. Com isso, seja dito também que um encontro autêntico não pode ser “produzido”. Ninguém está em condições de perceber tudo o que é necessário para o seu êxito. Aliás, exatamente aqui está a raiz da problemática de todos os esforços e tentativas de fazer os homens se “encontrarem”. A seleção mais prudente e a preparação mais escrupulosa permanecem sempre fragmentárias e aproximativas frente à multiplicidade e à mobilidade final de uma situação real e ao complexo de elementos que a constituem. Além disso, em todo encontro autêntico há um momento de originalidade e de criação. Há um descerrar dos olhos, do espírito e do coração do próprio íntimo, um “ser-pegos” e um pegar, uma produção viva como resposta a um contato que liberta as forças mais secretas. Tudo isso só pode acontecer espontaneamente. Aliás, a sabedoria nos recorda: um verdadeiro encontro é freqüentemente “perturbado” por intenções e projetos. No mundo das fábulas, há o símbolo da “flor azul” que abre o caminho ao tesouro escondido, mas a flor só é encontrada por quem não a procura. Aqui está contida uma verdade metafísica: as realidades essenciais devem ser dadas. Não podem ser nem “pretendidas”, por direito, nem arrancadas à força, mas devem conceder-se a si mesmas ou serem dadas. Isso indica à nossa inteligência uma instância objetiva, que supera a de cada individualidade humana, em particular; um poder que guia a situação e dá toda sua intensidade à sucessão das circunstâncias. Aliás, a “compõe” realmente – como uma estrofe do “carmen pulcherrimum decurrens per tempora”, segundo a expressão de Agostinho –, com sabedoria, expressão e originalidade, frente às quais todo agir humano parece insípido e até brutal. Por isso mesmo, todo encontro autêntico suscita um sentimento de indignidade pessoal e de gratidão, no mínimo de maravilha pelo modo singular e inesperado como tomou forma. O que foi descrito até aqui em seu caráter ontológico-metafísico possui também um caráter psicológico. Aspirar, fazer, organizar são formas diversas de tensão da vontade a um objetivo, ou seja, de concentração. Porém, ela provoca o oposto da postura que torna o encontro possível, isto é, a abertura sincera à realidade. A concentração tende, destina, isola. Disto, surge o fenômeno que oferece um motivo tão forte de ressentimento a todos os temperamentos para os quais só existe – ou quase – o que já está de alguma forma finalizado, amantes do zelo e da pedantice: o fato de que os encontros sejam dados, freqüentemente, aos homens que não se esforçam nesse sentido e que nem ao menos parecem merecê-los. No entanto, uma vez que o encontro aconteceu, florescido da profundidade do imprevisível sobre a qual o homem não tem poder, não raro é despertada uma impressão digna de atenção particular: “Não poderia ter sido diferente”. É um sentimento que toca intimamente a essência da existência humana. Pode acontecer que ele seja mal-entendido, por exemplo, quando acreditamos que não se trata de algo além das conseqüências necessárias de uma causalidade imediata de caráter psicológico ou sociológico. Mas tal gênero de causalidade destruiria justamente o que constitui o núcleo essencial do encontro, isto é, a liberdade. A necessidade em questão não existe antes do efeito, só depois. Mais precisamente, ela surge da eficácia do fenômeno, revela-se nessa última como realização plena de um significado que se completa como realização de sentido. Perceber que “eu tinha que encontrar esse homem” não significa que uma seqüência férrea de causas de um certo tipo tenha provocado o fato de o outro aparecer no momento em que eu também estava ali, e de a situação ter certas características. Não é exatamente assim, e eu sei muito bem. Bastaria uma inabilidade – a oscilação de um estado de ânimo, demorar diante AVSI ANEXOS 4.25 O ENCONTRO de uma vitrine, qualquer variação nas condições do trânsito – para impedir tudo. Porém tudo isso foi “necessário”, no sentido de que somente assim poderia emergir o que foi – para mim, para a outra pessoa ou para um certo trabalho – uma satisfação, um presságio ou até mesmo a própria salvação. Aqui, liberdade e necessidade se movem juntas ao redor de um eixo inteiramente espiritual, ou mais exatamente, interior, e convergem na positiva realização e manifestação do significado. Nesse momento, nesse lugar, nessa relação com as coisas ou com uma pessoa, a existência torna-se plena, justa, saudável e salva. Assim compreendido, o encontro constitui um elemento importante no contexto global do comportamento, da ação e da criatividade do homem; e completando-a, acompanha a atividade de trabalho planificada, organizada, realizada e aperfeiçoada por meio de um empenho tenaz e da vontade de superar os obstáculos. O encontro é dado, o trabalho é decidido e realizado. Do encontro nascem a intuição fecunda, a iniciativa criadora, a irrupção da novidade. Através do trabalho, tudo isso adquire ordem e forma e permanece no tempo. Sozinho, o encontro faria da vida uma aventura inquieta e à mercê do instante. Sozinho, o trabalho seria privado de fecundidade; tudo se tornaria habitual, usado, “velho”. A existência seria comprimida em um esquema. Alegria e temor seriam perdidos. A religiosidade desapareceria. Digamos melhor: um fator importante do que se chama “religiosidade”. Pois no encontro não se mostra apenas o essencial e único, mas o mistério também. Quando Sócrates e Fedro se encontram perto do Ilisso e o primeiro, na comoção do momento, fala do Amor, o plátano à sombra do qual eles se sentam transformase de repente em dríade. Na verdade, a ninfa não é absolutamente uma figura alegórica que se sobrepõe à árvore e a caracteriza exteriormente, é o fato de que a árvore revela, de repente, uma profundidade inefável em si, e agora é realmente ela mesma. É uma árvore verdadeira, não um fantasma; alguém a plantou, alguém pode derrubá-la e vendê-la como lenha. Nesse instante, porém, torna-se um dom. Doa a si mesmo. “Alguma coisa” se doa nela. Aqui nos expressamos de forma mítica. Seria mais exato dizer o que compreendemos de outro modo. No instante em que encontro uma coisa ou um homem – e aqui se trata de um encontro recíproco – ele podem ganhar uma dimensão nova e mais profunda: a dimensão religiosa. Então, tudo se torna mistério. E o homem responde ao mistério; surpreendendo-se, agradecendo, percebendo algo como um abalo ou uma perturbação.Vejam aquele trecho das Confissões, quando Santo Agostinho faz a experiência de ser liberto repentinamente de uma dor de dente aguda (IX, 4, 12). IV Chegamos agora às reflexões que introduzem ao núcleo mais secreto do que a palavra “encontro” significa. No Novo Testamento é relatada uma frase de Jesus que nos dá um golpe insólito. Diz assim: “Aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 16, 25). A expressão aparece em primeiro lugar em um contexto religioso e se refere ao modo como um homem entra em relacionamento com Cristo, ou como enfrenta uma situação de perigo, a partir dali. Quanto mais tempo nos compararmos com a frase, mais reconhecemos que é uma palavra-chave para a compreensão essencial da existência humana. O vocábulo que em grego diz “vida” (psyché) também pode significar “alma”. Seu significado move-se ao redor desses dois pólos; assim, não cometeríamos um erro se o traduzíssemos como “o próprio eu vivente”. A palavra de Cristo diz: quem segurar o próprio eu vivente, irá perdê-lo; mas quem se privar dele, irá ganhá-lo. 4.26 ANEXOS AVSI O ENCONTRO Aparentemente um paradoxo; na verdade, a perfeita expressão de uma postura fundamental na existência humana. O próprio ser, o vivo consistir na própria essência não é fixo nem está pronto e acabado. Ele não atinge a realização se o homem obstinar-se em viver na posse imediata de si mesmo, se se fizer de orgulhoso leiloeiro e o cultivar em todos os modos e ocasiões. O próprio ser é antes de tudo elástico; até seria possível dizer dialético. Ele só pode encontrar a própria realização em virtude de um ato no qual aparentemente se perdeu. O homem não consiste em si mesmo, mas está “aberto e propenso”, na linha de um risco, rumo ao que é diferente de si, sobretudo rumo ao outro ser humano. Quanto mais o homem ousar afirmar-se não como uma individualidade fechada, mas aberto e propenso a algo que justifique tal risco, mais ele será e se tornará autenticamente ele mesmo. Dizendo em termos simples: o homem torna-se ele mesmo “ao tomar distância” de si – não na forma de uma despreocupada irreflexão, nem na de um vazio existencial, mas ao aderir ao que, para ser conquistado, é digno do risco de perder a si mesmo. Isso pode acontecer de muitas maneiras diversas. Por exemplo: se eu me encontrar diante de uma árvore, posso me perguntar: qual é o seu valor? O que quero fazer com ela? Quanto vou ganhar com sua venda? São considerações racionais que sempre passam pela cabeça de lenhadores e comerciantes de madeira. Elas gravitam ao redor do lucro que a árvore pode me dar. Desenvolvendo-as, penso em mim e na árvore com relação a mim. Mas posso considerá-la de outra forma, procurando compreender o que a árvore é, qual é a sua estrutura vivente, o seu ciclo biológico, a sua relação com o ambiente; ou ainda, posso considerá-la para fazer experiência da sua beleza, da sua peculiaridade como realidade singular criada, que se segura nas raízes na terra, lança-se ao alto sob o céu e se expande no espaço ao seu redor – silenciosa, imóvel e todavia tão cheia de vida. Essa é a postura do biólogo quando desenvolve sua pesquisa; de Morike, quando cria o poema “A bela faia”, ou também de Ruysdael, enquanto pinta o “Vale dos freixos”... Ora, se eu me perguntar o que pode ter ocorrido em mim como correspondência a essas duas modalidades de consideração do objeto, constato uma diferença: no primeiro caso, permaneci na minha proximidade imediata, não me perdi de vista um só instante, sempre recolhido em mim mesmo. No segundo, me distanciei do meu “eu”, identifiquei-me com o que estava à minha frente, dedicado à sua essência, à sua beleza, ao seu mistério. Antes, eu afirmei, certifiquei, me impus, e a árvore me serviu para esse objetivo: não era mais que um fragmento do meu ambiente, ali, só para mim. Aqui, ao contrário, esqueci-me de mim, e se formou um espaço aberto, no qual pode ter lugar a manifestação da árvore. Pode ter sido uma revelação tão potente e intensa que depois eu devesse me retomar. Aqui, porém, algo teve primazia. E eu fui de alguma forma revigorado, reanimado, enriquecido. Ao alargar o espaço, por assim dizer, deixando a mim mesmo nele, cheguei a mim por outra estrada e certamente com uma vantagem: fui mais plenamente eu mesmo. Outro exemplo, tirado da vida da Universidade e hoje muito atual. Há dois estudantes. O primeiro, trabalha sem ver nada além da própria carreira futura, da possibilidade de emprego, da utilidade desse ou daquele conhecimento, de um ou outro exame. Uma atitude excelente, e com isso o estudante pode ter sucesso como advogado, médico ou em qualquer outra profissão. O segundo, está inteiramente ocupado em compreender o que significa perguntar e pesquisar, o que significa a palavra “verdade”. É absorvido pelo estudo, com todos os seus problemas. Pode ser que assim perca tempo, cultive algo que não tem objetivos práticos e imediatos; algo, por assim dizer, “inutilizável”. Suponhamos que ele, em breve, no decorrer do seu estudo também chegue à lógica conclusão... O que devemos pensar ao olhar para eles? Para o primeiro estudante, a ciência era um meio para alcançar certo fim, um pré-requisito para se impor, mais tarde, à vida. Tudo o que ele fez esteve totalmente AVSI ANEXOS 4.27 O ENCONTRO “colado” ao seu próprio eu. O segundo, esqueceu-se de si mesmo. No fundo da sua ação, a postura era uma abertura sincera à realidade e aos objetos às vezes presentes. Os problemas tiveram a possibilidade de se desdobrar no seu espírito. O centro de gravidade de cada coisa: não ela em primeiro lugar, mas a verdade. Por fim, qual dos dois é mais profundo e autêntico, mais plenamente ele mesmo? No sentido das energias vitais imediatas, com certeza, o primeiro; mas no sentido de autêntica realização de si mesmo, o segundo. O primeiro ficou parado em sua identidade imediata; nunca foi um pouco mais além, e assim tornou-se estreito e mísero e, não obstante toda a sua grandeza privou-se de vida. Ao contrário, o outro, em cada passo ao longo do caminho do autêntico perguntar e pesquisar, era novo e mais intensamente dado a si mesmo. Na distância de si para aderir ao conhecimento da verdade, e sem se dar conta, encontrava sempre mais a si mesmo. Um último exemplo a propósito das relações pessoais entre os seres humanos. O relacionamento com outra pessoa pode se apoiar sobre o fundamento do hábito, como ocorre com um amigo de infância ou de adolescência; da conveniência, quando o outro me ajuda no trabalho; ou até da imediata influência própria do homem, quando o outro, por exemplo, age sobre mim ao me tranqüilizar, ou me encoraja, ou como vigilância luminosa e iluminadora. Então, o meu amor próprio inscreve aquela pessoa no horizonte do ambiente vital que se forma ao redor do meu “eu”. Torna-se parte dele. Não posso ficar sem aquela pessoa e exijo que seja exatamente como eu preciso. Porém, na relação com ela, meu “eu” fica em casa. Isso não é amizade, de jeito nenhum. Porque a amizade só nasce quando eu reconheço o outro como pessoa, reconheço sua liberdade de existir na sua identidade e essência; quando consinto que se torne centro de gravidade para si mesmo e experimento uma solicitude viva para que isso realmente aconteça... Então, forma e estrutura do relacionamento pessoal convertem-se, e também a disposição de ânimo com a qual eu o preencho. O centro do relacionamento está na outra pessoa. No ato de realizá-lo, distanciome continuamente de mim mesmo e exatamente assim me reencontro, como amigo, ao invés de aproveitador; livre, ao contrário de preocupado com o meu lucro; realmente magnânimo, antes que cheio de pretensão. Então, entro na esfera dos valores “extraordinários”, “fora do comum”, que no fundo dão sentido à existência humana na sua totalidade. Podemos reunir ainda muitos exemplos. O homem é criado de forma a ser antes de tudo dado a si mesmo em “forma-de-início”, em uma abertura e predisposição ao que virá ao seu encontro. Quando ele se bloqueia e se enrijece, quando fica fechado em si mesmo, sem nunca correr o risco de se colocar na postura de dedicação à realidade, se torna sempre mais rígido e mísero. Ele “conservou para si a própria alma” e assim a “perde” sempre mais. Mas quando ele se abre, acolhendo e afirmando as coisas em si mesmas, então se torna um horizonte escancarado, no qual o outro pode se manifestar: a própria terra que ele ama, o trabalho ao qual se dedica, a pessoa à qual se ligou, as idéias que o iluminaram e o fizeram feliz; e, dessa forma, ele se torna sempre mais completo e autenticamente “ele mesmo”. Este sair de si pode ganhar até uma intensidade religiosa. Pensemos no fato de que a palavra que expressa uma forma muito alta de comoção religiosa diz “êxtase”, ektasis, ou seja ter-saído-de-si, estar-fora-do-próprio-ser-e-aderir ao Absoluto. A esse propósito, com respeito a toda relação possível, não devemos esquecer que a relação não é por si mesma unilateral, sem correspondência. Não concerne só ao homem que abandona a si mesmo por amor ao que vem ao seu encontro: o que está diante dele – cuja essência é descoberta – ao sair do esconderijo em que estava selado e se voltar ao homem, também se manifesta a ele. 4.28 ANEXOS AVSI O ENCONTRO Aqui está, portanto, uma lei fundamental da existência. As modalidades em que se realiza são multiformes como a vida. Em cada pessoa, os relacionamentos configuramse de forma diversa. A relação fundamental é a mesma: o homem tende para além de si mesmo rumo ao outro, rumo ao que constitui sua essência, e só alcança realmente a si mesmo dessa maneira. O encontro é a origem de tal processo de auto-realização – pelo menos pode se tornar. É o momento em que o que foi encontrado vira uma sugestão inicial, através da qual a pessoa que foi tocada emerge da “imediatez” do próprio ser e é convidada a se distanciar de si mesma para entrar no outro que a chama. Referência Bibliográfica GUARDINI, Romano. L’incontro. Sarggio di analisi della struttura dell’esistenza umana. Iniziare, Castel Bologneza: I Itaca, n. 3, p. 107-115, 2000. Tradução Juliana Pasquarelli Peres. AVSI ANEXOS 4.29