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PARTE III DTI 3 Comunicação e Cidadania Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de PósGraduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Popular, alternative and community communication: a mapping of Postgraduate student production in Communication in Brazil (1972-2012) M a r i a A l ic e C a m pagn o l i O t r e 1 Resumo: Trata-se de um recorte da tese de doutorado da autora, por meio do qual foram mapeadas as pesquisas referentes à comunicação popular, alternativa e comunitária (CPAC) defendidas, até 2012, nos Programas de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil, níveis mestrado e doutorado. Foram analisadas 102 pesquisas sobre CPAC, por meio de Análise de Conteúdo, a partir de partes prédefinidas: Resumo, Palavras chave, Introdução, Sumário, Considerações Finais e capítulo metodológico, quando presente. Resultados indicam: a) 68% das pesquisas enfocam a comunicação comunitária, 24% enfatizam o caráter alternativo e 8% dizem respeito a ambos os enfoques b) predominância de estudos empíricos 79% ante 21% de estudos teóricos; c) a variedade de denominações atribuídas às experiências pelos pesquisadores; d) a constante luta das classes populares por democratização da comunicação e por direitos sociais; e) a influência e importância dos intelectuais orgânicos nas experiências estudadas, f) problemas metodológicos como a não explicitação do método de pesquisa e em alguns casos nem do tipo e técnicas no resumo e introdução; g) UMESP, USP e UFRJ como as instituições que mais pesquisam sobre a subárea, e, h) Cicilia Peruzzo e Raquel Paiva como as orientadoras que mais centralizam as reflexões no País. Palavras-Chave: Comunicação popular. Comunicação alternativa. Comunicação Comunitária. Pós-graduação. Brasil. Abstract: The article refers to an extract piece of the author’s Doctorate thesis whereby researches relating with Popular, Alternative and Community Communication (CPAC) presented in Brazil up to 2012 were mapped out. These researches relates to Post Graduate studies in Brazil at master and doctorate level. To this analysis 102 researches about CPAC had their content evaluated by the pre-defined parts: Abstract, Keywords, Introduction, Summary, Final Considerations and Methodology chapter when present. Results indicated: a) 68% of researches highlight and focus the community communication, 24% emphasizes its alternative trait, 8% relates to both focus: community and alternative; b) Empiric studies prevails in 79% before 21% of theoretical studies; c) a variety of denominations attributed to the experiences by the researcher; d) the constant class struggle to democratize 1. Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo e docente da Universidade de Marília. [email protected]. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 803 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre communication and for social rights; e) the relevance and influence of the organic intellectuals on the studied experiences; f) methodological problems such as no research method explanation and in some cases not even the type and technique on the abstract and introduction and; g) UMESP, USP and UFRJ as the institutions that mostly research on this sub-area, and; h) Cicilia Peruzzo and Raquel Paiva as the supervisors and tutors that most centralize this reflection in the country. Keywords: Popular Communication. Alternative Communication. Community Communication. Post-Graduation. Brazil INTRODUÇÃO STE ARTIGO apresenta um mapeamento e análise das dissertações e teses defendi- E das nos Programas de Pós-Graduação em Comunicação stricto sensu no Brasil, de 1972 a 2012, a partir da Análise de Conteúdo (AC). Nesta etapa, avaliamos com base em um protocolo de AC as 102 dissertações e teses identificadas por meio de pesquisa exploratória, sobre a comunicação popular, alternativa e comunitária (CPAC), definida conforme nosso quadro de referências baseado em Jorge González, Cicilia Peruzzo, Regina Festa, Pedro Gilberto Gomes e outros. Quanto aos procedimentos metodológicos, no que se refere aos filtros usados para compor a amostra, num primeiro momento analisamos todos os trabalhos a partir do título. Depois, analisamos título e resumo. A última forma de seleção inclui a leitura do título, resumo, introdução, considerações finais e capítulo metodológico (quando presente) e sua Análise de Conteúdo. Para selecionar os trabalhos e atribuir-lhes categorias específicas, o mais difícil de fazer nesta subárea precisava ser feito: separar as experiências em categorias/ denominações, mesmo sabendo que elas são muitas vezes elásticas e híbridas. Também contava como empecilho o fato de não estarmos em contato direto com as experiências para analisá-las todas com os mesmo parâmetros. Nossa matéria-prima era um discurso (já enviesado pelas marcas subjetivas/discursivas do pesquisador) sobre as experiências. O ângulo que ele selecionou, os fatos que descreveu mais detalhadamente, as informações que achou desnecessárias – e que talvez nos interessasse – e assim por diante. “O ponto de vista, diz Saussure, cria o objeto” (apud LOPES, 2001, p.122); devido a isso, consideramos importante elencar, dentre os critérios recuperados por meio de nosso quadro teórico de referência, baseado principalmente nas pesquisas de Cicilia Peruzzo e na pré-análise das teses e dissertações, alguns parâmetros que foram utilizados como critérios para o enquadramento: a) Comunicação popular e alternativa: processos diversos de comunicação (fanzine, jornal mural, vídeos) forjados, geralmente, com o apoio de um agente externo às classes populares (Igreja, movimentos populares, ONGs) e tendo como pano de fundo a questão da democratização da comunicação, do direito à voz e da crítica às desigualdades sociais. Além disso, esses veículos contam com a participação do povo em sua produção e/ou gestão. Não tematiza em primeiro plano questões referentes à localidade, como problemas específicos do bairro, mas atua em uma esfera mais ampla de luta por direitos sociais, incluindo o direito à comunicação. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 804 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre b) Comunicação popular e comunitária: Geralmente circunscrita a uma localidade, ou a comunidades por afinidades, em que o foco está, para além do produto comunicacional, nos processos vivenciados por meio da participação horizontal, da produção à gestão; processos educomunicativos que ampliam o olhar daquela comunidade sobre o que está “extra-muro”. Exige, para que a comunidade se aproprie da comunicação de maneira transformadora, processos que favoreçam a leitura crítica da mídia. Objetivam, na maioria das vezes, dar visibilidade às comunidades consideradas às margens da sociedade, mostrando um outro lado que na maioria das vezes a grande mídia não mostra; por isso, também se situa no âmbito da democratização da comunicação e na amplificação de vozes. Atua como contrafluxo comunicacional em um momento em que a mídia se coloca cada vez mais como legitimadora de discursos; não posicionando-se como combativa à grande imprensa, mas como fonte silenciada ou cuja imagem é frequentemente deturpada ações que contribuem para os processos exclusórios. Sua preocupação está geralmente focada nos projetos mais localizados de transformação social, como políticas públicas que digam respeito ao bairro; embora, para além dos aspectos políticos, também estejam a serviço da cultura local, da diversidade musical, religiosa; em situações de constante negociação entre seus membros, já que não se pode idealizar uma comunidade pós-moderna homogênea e sem conflitos. c) Comunicação popular, alternativa e comunitária: Especificamente para a tese, esta categoria serviu para caracterizar pesquisas, geralmente de cunho teórico, que falavam de maneira ampla de uma comunicação transformadora e cidadã; ou de processos diversos de comunicação em comunidades periféricas, sendo, portanto também entendido como um encontro de experiências alternativas e comunitárias de cunho popular em uma mesma localidade. d) Jornalismo Popular Alternativo: Menos amplo que a comunicação popular e alternativa, que pode envolver diversos processos que não apenas jornalísticos, consideramos como jornalismo popular e alternativo os processos jornalísticos forjados, geralmente, com o apoio de um agente externo às classes populares (Igreja, movimentos populares, ONGs), nas mesmas bases da comunicação popular e alternativa, no que diz respeito a temas, participação, postura ante aos grandes meios. A distribuição, geralmente, vai além da localidade, portanto, contam com tiragens volumosas, se comparadas às experiências de comunicação popular e comunitária. Devido a isso, assumem muitas vezes um padrão “mais profissional”, jornalisticamente falando, se compararmos com a mídia comunitária. Apesar de todo esforço de pesquisa, não garantimos aqui a infalibilidade da amostra e pode ser que trabalhos referentes à subárea que analisamos não tenham sido contemplados pelos filtros aplicados ou tenham sido catalogados em desacordo com outros quadros teóricos. Numa área tão plural, criativa e movediça, como a comunicação popular, alternativa e comunitária não esperamos que haja um consenso generalizado. Justamente por isso, elencamos nossos critérios e nos dedicamos a selecionar e analisar 40 anos de produção acadêmica baseados neles2. Para fins de análise, o gráfico abaixo 2. Não foi possível no espaço deste artigo apresentar os 102 títulos de pesquisas que compõem cada fase de análise. Da mesma forma, não será possível apresentar todas as categorias analisadas, assim como quadros e gráficos resultantes da AC. Aos que se interessarem em conhecer os resultados aprofundados, o trabalho completo poderá ser encontrado a partir de agosto de 2015 no link http://portal.metodista.br/ poscom/teses-e-dissertacoes/teses. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 805 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre ilustra a divisão feita, com enfoque temporal, para a análise. Esta última década de produção discente foi dividida devido à grande concentração de produções nesta fase (cerca de 67% das pesquisas concentradas nesta década) e às rápidas mudanças sociais e tecnológicas que podem nos permitir diferentes análises. Gráfico 1. Distribuição das teses e dissertações sobre comunicação popular, alternativa e comunitária por períodos (1972-2012) Identificamos que a pesquisa referente à CPAC começa efetivamente em 1984, com a dissertação de mestrado de Regina Festa, defendida na Universidade Metodista de São Paulo; mesmo assim, situamos nosso estudo a partir de 1972, pois a pesquisa exploratória abarcou todo o período de existência da pós-graduação em Comunicação no país. 1. DE 1972 A 1992: REFLEXÕES FUNDANTES PARA A CPAC NO BRASIL Identificamos que no período que vai de 1972 a 1992, estão presentes reflexões fundantes para e sobre a comunicação popular, alternativa e comunitária no Brasil. Fazem parte desta primeira fase de análises, que vai de 1972 a 1992, 11 pesquisas, sendo 8 (oito) dissertações de mestrados e 3 (três) teses de doutorado. A Universidade de São Paulo e a Universidade Metodista de São Paulo ocupam neste momento posição central no interesse pela CPAC, sendo 6 (seis) pesquisas desenvolvidas na USP e 4 (quatro) na UMESP. Apesar de ser composto por apenas 11 trabalhos, encontra-se aqui uma multiplicidade de temas que engloba pontos principais da comunicação popular. De maneira geral, podemos dizer que os temas abordados neste período marcam de maneira clara a relação da comunicação popular com a Igreja católica (principalmente representada pelo movimento de base e pelas Comunidades Eclesiais de Base); dialogam com os conceitos marxistas de classe e dos conflitos de classes como pano de fundo da comunicação popular; falam sobre experiências de vídeo, rádio e jornal impresso populares; além de discutirem a importância dos Centros de Documentação e Informação populares; enfocam a participação como peça chave para este tipo de comunicação; analisam experiências em comunidades indígenas do Equador; e, por fim, analisam a inserção do popular no ensino superior em comunicação. É um grande leque de discussões que dá conta da amplitude e complexidade do universo da CPAC. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 806 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre Além disso, pesquisadores que fazem parte deste momento como Regina Festa, Pedro Gilberto Gomes, Luiz Fernando Santoro e Cicilia Peruzzo passam a ser atores-chave para a pesquisa em comunicação popular, alternativa e comunitária desde então. 2. DE 1993 A 2002: LEGALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO EM DESTAQUE No segundo período de análises identificamos 22 pesquisas referentes à comunicação popular, alternativa e comunitária, sendo 17 de mestrados e 5 (cinco) de doutorados. Entre 1993 e 2002, a USP começa a se destacar com 7 (sete) pesquisas desenvolvidas. A UFRJ aparece com 6 (seis) trabalhos e a Metodista (UMESP) com 5 (cinco) pesquisas. Se nas duas primeiras décadas de pesquisa o total de trabalhos com esta abordagem era 11, vivenciamos no final do século XX e início do século XXI o dobro de produções sobre os temas, aumento certamente impulsionado pelo maior número de programas de mestrado e doutorado em Comunicação no País, mas também pela importância que tais temas representaram nos últimos anos. Acreditamos que as eleições diretas (1989) e a sensação de liberdade política, de expressão e de mobilização da sociedade civil tenham contribuído para esse salto de 100% nas pesquisas. Esse período se destaca por dois marcos legais: a institucionalização dos canais comunitários através da Lei Federal nº 8.977, de 6 de janeiro de 1995 – conhecida como Lei do Cabo; e a Lei 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, que institui o serviço de radiodifusão comunitária. Depreendemos da análise de conteúdo que das 22 pesquisas deste momento, apenas uma fixava seus olhos para um período histórico anterior a 10 anos, estudando os jornais alternativos da Amazônia numa análise que foi de 1971 a 1981. Rádio e televisão foram os canais estudados em 13, das 22 pesquisas. Com relação a temáticas paralelas que conseguimos identificar com as leituras, destaca-se a diminuição de pesquisas que falavam da Igreja Católica, agente tão importante nos trabalhos da primeira fase de análises. Neste contexto, penas 13% do total de produções falavam sobre comunicação relacionada à Igreja, enquanto na primeira fase eles representaram 36%. Com o fim da ditadura e a abertura política, as CEBs e a Teologia da Libertação parecem ter perdido sua força. Essas observações são importantes, pois, por meio de um olhar dialético, é possível identificar o quanto o momento histórico e social vivido pelos pesquisadores influencia na definição dos temas e problemas analisados. Muitos pesquisadores destacaram em seus trabalhos que analisavam o objeto que ainda estava em movimento e, mais do que enxergar um problema nisso, viam uma oportunidade de verificar durante o processo de desenvolvimento do objeto (por exemplo, a instalação dos canais comunitários na TV a Cabo) como as experiências se davam, servindo de motivação para futuros projetos. 3. DE 2003 A 2007: TESTANDO AS EXPERIÊNCIAS E FORJANDO IDENTIDADES Fazem parte deste período de análise, que vai de 2003 a 2007, 25 pesquisas sobre comunicação popular, alternativa e comunitária, sendo 20 mestrados e 5 (cinco) doutorados. A UMESP apresenta neste período, um total de 5 (cinco) produções neste subcampo, assim como a USP. UFRJ produziu nesta fase 4 (quatro) dissertações de mestrado. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 807 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre Identificamos que das 25 pesquisas, 21 tratam da comunicação popular e comunitária, o que representa cerca de 84% das pesquisas de 2003 a 2007, dado muito expressivo, pois indica novas configurações nas pesquisas - e também nas experiências – sobre CPAC: do alternativo para o comunitário. A mudança do cenário político, assim como as novas formas de as classes populares se organizarem e se apropriarem da comunicação contribuem para isso. Com relação a temas subjacentes, que não foram categorizados na Análise de Conteúdo, mas que foram identificados pela recorrência com o qual foram tratados, destaca-se a comunicação popular, alternativa e comunitária como ferramenta para a promoção da cidadania, preponderante para o desenvolvimento local e para a melhoria nas condições de vida da comunidade em destaque, inclusive com autores que incluíram o conceito de esfera pública de Habermas, analisando as mídias comunitárias sobre esse viés: processos e instrumentos capazes de fortalecer a esfera pública e o poder local. Sedimentadas algumas conquistas nos anos anteriores - fim da censura, fim da perseguição pela ditadura, regulamentação dos sistemas de Rádio e TV Comunitárias etc - os pesquisadores voltam seus olhos para uma vertente da comunicação popular que não é exclusiva desta década - sempre se falou da relação intrínseca entre comunicação popular e cidadania - porém, neste contexto, a relação parece ganhar mais destaque. É como se a conquista da cidadania fosse atividade-fim do processo de comunicação popular e estivéssemos chegando lá; após duras batalhas. Outro tipo de perseguição, que não o da ditadura, está presente nas pesquisas da década: perseguição às rádios que não têm a autorização conquistada. As pesquisas retratam as dificuldades desses veículos e os problemas identitários (discutem se são ou não piratas, são ou não legítimas) e, nesse sentido, a dissertação de Cristiano Aguiar Lopes defendida na UnB em 2005 e intitulada “Política de Radiodifusão Comunitária no Brasil – Exclusão como Estratégia de Contra-reforma” deu grande contribuição. O objetivo primordial do estudo foi demonstrar o quão restritiva é a política de radiodifusão comunitária vigente no Brasil, que, segundo o pesquisador, “termina por ser não um fator de inclusão, mas de exclusão radiofônica” (LOPES, 2005, p. 5). Devido a esse problema, alguns autores pontuaram em suas pesquisas a questão da municipalização das RadCom como uma possibilidade, uma saída para agilizar o processo das concessões, inclusive sendo este o foco da dissertação de Adriane Lorenzon dos Santos (2004). A discussão identitária de “é uma comunitária verdadeira, mesmo sem a outorga?” ou ainda “é verdadeiramente comunitária só por ter a outorga?” também esteve presente nas discussões do período. Lahni (2005), Ferreira (2006), Bahia (2006) e Afonso (2007) foram alguns pesquisadores que pautaram este tema. 4. DE 2008 A 2012: NA CONTRAMÃO TECNOLÓGICA, O GRITO POR CIDADANIA Os anos de 2008 a 2012 foram muito frutíferos para pesquisa sobre comunicação popular, alternativa e comunitária. Em cinco anos, foram 44 produções acadêmicas, sendo 42 dissertações e 2 (duas) teses, número que representa 43% do total de produções. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 808 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre A Metodista se destaca com a defesa de 11 dissertações e 1 (uma) tese sobre o enfoque pesquisado. Na UFRJ defende-se neste período cinco (5) mestrados. Pela primeira vez, a Unisinos aparece como uma das instituições que mais produziu nesta abordagem, sendo 4 (quatro) dissertações e 1 (uma) tese publicada. A PUC-RS apresenta 3 (três) pesquisas, e a UFRGS, também situada no Rio Grande do Sul, aparece com duas pesquisas sobre a subárea. Percebe-se uma ramificação das pesquisas sobre o tema do eixo RJ-SP para o RS. Isso também confirma o fortalecimento dos Programas em Comunicação de outras regiões, que não a sudeste. Vimos nestes cinco últimos anos um declínio na produção da USP sobre a CPAC, com apenas um trabalho produzido neste período. Certamente isso se deve a falta de um professor-pesquisador que oriente e represente a subárea analisada, como acontece na Metodista, na UFRJ e mais recentemente na Unisinos. Neste período, pela primeira vez, tivemos acesso a 100% das teses e dissertações completas, sendo que todas elas podem ser acessadas via internet. Isso demonstra um grande avanço no Brasil com relação à democratização da ciência no que diz respeito à produção discente stricto sensu, pelo menos no recorte estudado. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANÁLISE Cada comunidade, grupo ou processo comunicacional analisado é único e permeado por especificidades. Não é a toa que as pesquisas da área são de cunho geralmente exploratório, na tentativa de apreender as particularidades de cada situação. No entanto, para viabilizar a análise desta tese precisamos assumir posicionamentos teóricos que nos permitissem categorizar as pesquisas, mesmo correndo o risco de não abranger todos os posicionamentos teóricos possíveis. Assim, temos como eixo principal: Quadro 1. Eixo principal das pesquisas (1972-2012) Eixo principal Comunicação popular e comunitária 69 Comunicação popular e alternativa 15 Comunicação popular, alternativa e comunitária 8 Jornalismo Popular Alternativo 10 Total 102 As experiências mais estudadas em nossa amostra, 68%, dizem respeito à comunicação popular e comunitária. Se somados os trabalhos categorizados como jornalismo popular alternativo e comunicação popular e alternativa, que fazem parte de um mesmo tronco conceitual, temos 24% do total. Cerca de 8% retratam ou experiências que reúnem o popular, alternativo e comunitário; ou se colocam como pano de fundo das experiências em geral; por exemplo, a formação de comunicadores populares ou ainda políticas públicos para ampliar o direito à comunicação, portanto foram consideradas de maneira ampla. Perguntamo-nos também sobre quais os canais de comunicação mais estudados nas dissertações e teses. Obtivemos o seguinte gráfico: Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 809 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre Gráfico 2. Suportes analisados nas teses e dissertações da amostra total (1972-2012) Identificamos a predominância dos estudos sobre rádios (33%), sendo que 91% destes falavam sobre rádios comunitárias. Em segundo lugar, destacam-se as pesquisas que analisaram jornais impressos (15%), sendo que, destes, 79% dizem respeito à comunicação ou jornalismo alternativo. Dentre as dissertações e teses que analisaram a televisão (11%), em 90% dos casos o enfoque era a comunicação popular e comunitária. O vídeo, por sua vez é o quarto suporte mais analisado (7%) e, na maioria dos casos, 57%, a pesquisa dizia respeito à comunicação popular e alternativa. Entendemos que a definição do tipo de experiência (popular, alternativa, comunitária ou mista) não precede a escolha do meio de comunicação a ser utilizado. Parece-nos, porém, que as características técnicas, de produção, linguagem, distribuição, seus formatos e até mesmo questões legais (como no caso da regulamentação de rádios e TVs comunitárias), tornam alguns veículos mais propícios a serem usados em determinadas situações: Rádio e TV enquanto comunicação popular e comunitária e Impresso e Vídeo enquanto comunicação popular e alternativa, por exemplo. Se existem características que promovem essa identificação, questões de adequabilidade e/ou quais são as variáveis em jogo, podem ser propostas para outro estudo. Questões metodológicas Quanto à questão metodológica, foi comum identificarmos nas teses e dissertações, termos como qualitativa, analítico-descritiva, levantamento, descritiva, exploratória, hipotético-dedutiva e etnometodologia, por exemplo, sendo usados pelos pesquisadores como forma de definir o método utilizado na pesquisa. Pelo que identificamos na literatura, não há consenso quanto à forma correta de apresentar o método. Uma forma é, como explica Antônio Carlos Gil (2002, p. 41-43), classificar a pesquisa com base nos seus objetivos, podendo estas serem exploratórias, descritivas ou explicativas. Triviños (1987, p. 109) chama-os de tipos de estudo, podendo ser exploratórios, descritivos e experimentais. Elas podem ainda ser descritas, conforme Gil (2002, p. 43-57) com base nos procedimentos técnicos utilizados, sendo divididos quanto às fontes utilizadas para coleta de dados: fontes de “papel” ou fontes “humanas”. Constatamos que não há, entre os próprios livros e manuais de metodologia científica, consenso sobre a forma como deveriam ser apresentadas as orientações metodológicas da pesquisa. Em Gil (2002, p. 162-163), por exemplo, existe a orientação de que deve aparecer o tipo de pesquisa e delineamento adotado; população e amostra; coleta de dados e análise dos dados como foi/será feita, tudo com foco na descrição de Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 810 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre procedimentos. Em Peruzzo (2013, p. 17), orienta-se que a metodologia seja apresentada da seguinte forma, exigindo a explicitação dos paradigmas teórico-metodológicos, conforme consideramos: Nesta parte do projeto é necessário descrever detalhadamente como se vai proceder para fazer a investigação explicitando os métodos e as técnicas a serem empregados. Ou seja, há que detalhar todos os procedimentos metodológicos adotados apontando: a) Quais são os paradigmas teórico-metodológicos norteadores da pesquisa, principalmente em se tratando de projetos de pesquisa para teses de doutoramento. b) Qual a estratégia (o tipo de pesquisa) adotada, por exemplo, se será uma pesquisa bibliográfica, um estudo de caso, uma análise de conteúdo, uma pesquisa participante etc. c) Descrição dos procedimentos e técnicas, ou seja, evidenciar os instrumentos a serem empregados para o levantamento de dados e para a análise dos resultados, tais como questionário, entrevista, diário de campo, protocolo categorial etc. Optamos, assim, ao formular as categorias da AC, separar em métodos de pesquisa (Dialético; Fenomenológico; Positivista; Construtivista; Funcionalista; Outros) Tipos de pesquisa (Pesquisa bibliográfica; Pesquisa documental; Pesquisa histórica; Pesquisa-ação; Pesquisa participante; Pesquisa Etnográfica; Pesquisa de recepção; Estudo de caso; Análise de conteúdo; Análise de discurso) e as Técnicas (dentre elas, observação; entrevistas; diário de campo; questionários; protocolos; planilhas) que orientaram a pesquisa. Das 102 pesquisas estudadas, 14 foram classificadas como completas no que diz respeito à explicitação metodológica (método, tipo e técnicas de pesquisa). Isso representa menos de 14% do total. Destas, 13, ou 93%, tiveram como referência o enfoque marxista. Método dialético, histórico-dialético, ou materialismo dialético foram os termos utilizados pelos pesquisadores. Apenas em um trabalho o construtivismo fora citado enquanto método de pesquisa. Em um dos trabalhos analisados, de Maria Inês Amarante, a autora traz uma citação de Bertold Brecht (apud CANDIDO et al., 1972, p. 97) que dizia que “tudo o que tem relação com o ‘conflito, o choque ou o combate’ nunca pode ser tratado fora da dialética materialista, pois é proveniente de uma força social real que determina essas atitudes” (AMARANTE, 2004, p. 156). Lopes (2001, p. 38) indo ao encontro da citação de Brecht, diz que “há certas problemáticas que somente se impõem a partir de determinadas teorias, ou somente com base em dada teoria é que certa problemática se resolve plenamente” (LOPES, 2001, p. 38). Isso marca de maneira clara o viés com o qual a subárea é pensada, assim como o quadro teórico de referência da comunicação popular, alternativa e comunitária, relacionando a própria pesquisa com o que se espera da praxis: menos desigualdades; mais mudanças sociais; emancipação dos sujeitos; a defesa dos direitos sociais, dentre eles o de comunicação; etc. Com relação à baixa reflexão sobre o método utilizado, consideramos um problema nas teses e dissertações não apenas o silenciamento sobre a orientação teórico-metodológica enquanto paradigmas que norteiam a pesquisa, mas a falta de clareza na indicação dos tipos e/ou técnicas de pesquisa nos resumos e introduções; já que embora não haja consenso do que deva ser apresentado, há consenso de que ao menos os tipos e ou técnicas de pesquisa devem ser explicitados. E em muitas pesquisas, tivemos que Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 811 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre ir para além do resumo e introdução para entender quais foram os passos dados pelo pesquisador para o encaminhamento das problematizações. Ao falar especificamente das pesquisas em Comunicação, já em 2001 Lopes (2001) questionava o que vimos refletir na vertente da comunicação popular, alternativa e comunitária, até 2012. Assim diz: É comum nas teses de comunicação notar-se um marco teórico que guarda pouca relação com a estratégia metodológica [...] ou então um discurso inicial e bastante genérico sobre o método, que serve mais para preencher a função de “título honorífico”3, tal como apontada por Kaplan. Segundo Bachelard, a explicitação dos métodos é requisito indispensável para o exercício da vigilância epistemológica que deve ser exercida pelo investigador (LOPES, 2001, p. 101-102). Foi possível na análise perceber o caráter instrucional e técnico que o tema “métodos e técnicas de pesquisa” tem representado. O ponto positivo é que mesmo a explicação técnica foi ascendente no último período de análise, juntamente com a explicitação plena dos métodos e técnicas, se compararmos com os anos de 2003 a 2007. Além disso, os casos de pesquisas que não explicitavam métodos nem técnicas caíram para zero e os que citam, mas com pouca clareza, representam neste último período apenas 2%. É possível que com o amadurecimento das Ciências da Comunicação, assim como as cada vez mais frequentes discussões epistemológicas, estejam forjando uma cultura (urgente e necessária) de se dedicar mais atenção à reflexão e aos procedimentos metodológicos. Especificamente quanto a tipos e técnicas de pesquisa, identificamos que 100% das pesquisas são de cunho qualitativo, apesar de algumas apresentarem técnicas quantitativas de coletas de dados, em alguns momentos, como por meio da utilização de questionários (survey); levantamentos de dados de acesso; audiência etc. Instituições e professores-orientadores que centralizam produções na subárea Para encerrar essas considerações gerais sobre as análises de conteúdo quantitativas, elencamos instituições e orientadores que mais favoreceram o desenvolvimento desta subárea. Gráfico 3. Programas de Pós-Graduação que mais desenvolveram pesquisas sobre a comunicação popular, alternativa e comunitária (1972-2012) 3. Segundo a autor, citando Kaplan, o termo título honorífico servia para designar uma preocupação formal, que serviria para assegurar o “status cientifico”, sem qualquer indicação clara de como a preocupação se incorpora à investigação (LOPES, 2001, p. 101). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 812 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre Juntas, estas 7 (sete) instituições somam 82 pesquisas desenvolvidas no período de 1972 a 2012, representando 80% do total. As outras instituições4 que produziram teses e dissertações sobre a subárea estudada não foram apresentadas no gráfico, pois tinham apenas 1 (uma) ou 2 (duas) pesquisas sobre o enfoque. Citamos três pontos, que analisados de maneira cruzada, contribuem para este protagonismo: 1) Ano de criação do curso de pós-graduação em comunicação: Em sua maioria são programas tradicionais e consolidados que, também pelo tempo, cumulam mais pesquisas nessa subárea. USP e UFRJ (1972); UNB (1974); UMESP (1978); Unisinos (1994) e PUC-RS (1994) possuem de 20 a 40 anos de história. Apenas a Unesp iniciou o Programa mais recentemente, em 2002, e doutorado em 2014. 2) Contemplam linhas de pesquisa específicas ou próximas da subárea: das sete instituições, quatro possuem linha de pesquisa específica para a temática e as outras três se valem de linhas bem amplas que abrem margem para a investigação da temática enfocada. 3) Na maioria, reúnem professores orientadores que se dedicam/dedicaram à temática; o que indica o quanto estes professores estimulam a produção de conhecimento nestes locais sobre comunicação popular, alternativa e comunitária5. Vejamos: Gráfico 4. Professores que orientaram duas ou mais pesquisas sobre comunicação popular, alternativa e comunitária, conforme nossa amostra. (1972-2007). Por último, mas não menos importante, vale lembrar que tanto a Universidade Metodista de São Paulo quanto a Universidade Federal do Rio de Janeiro, que estão entre as três principais referências sobre o tema no Brasil, mantêm grupos de pesquisa fortes e que muito contribuem para a subárea, o Comuni (Metodista) e o LECC (UFRJ) promovendo encontros, discussões, investigações teóricas e empíricas. Sabe-se que a contribuição desses grupos e professores é bem mais ampla do que o enfoque a que nos dedicamos, porém, não teríamos como analisar as pesquisas que englobam todo o espectro de temas correlatos abordados pelos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Portanto, 4. PUC-MG, PUC-RIO, PUC-SO, UCB, UCL, UEL, UERJ, UFC, UFF, UFG, UFJF, UFMG, UFPE, UFPR, UFRGS e Unicamp. 5. Na Metodista, destaca-se a atuação do prof. José Marques de Melo, na década de 1980 com duas orientações; e da profa. Cicilia Peruzzo, a partir dos anos 2000, com 19 orientações concluídas. Na UFRJ, temos Muniz Sodré, com duas orientações, na década de 1990 e de Raquel Paiva, a partir dos anos 2000 (totalizando oito orientações). Na USP, apesar de não termos atualmente um nome que se dedique exclusivamente à comunicação popular, alternativa e comunitária, repetem-se como orientadores, José Marques de Melo, com duas orientações nos anos 1980; Anamaria Fadul, com duas assistências, em 1989 e 1991; Maria Nazareth Ferreira, com orientações em 1991 e 2005; José Manuel Moran Costa, orientador em 2000 e 2001; e Luiz Fernando Santoro, em 2005 e 2006. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 813 Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012) Maria Alice Campagnoli Otre delimitar o enfoque da comunicação popular, alternativa e comunitária seguindo nosso quadro de referência, não significou menosprezar toda essa produção, mas foi estratégia metodológica para a viabilização desta pesquisa. REFERÊNCIAS Amarante, M. I. (2004). Rádio comunitária na escola: protagonismo adolescente e dramaturgia na comunicação educativa. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Afonso, M. R. T. (2007). Mídia e comunidade: estudo sobre produção e recepção da rádio Heliópolis. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Bahia, L. C. M. (2006). A reconfiguração da esfera pública local pelas rádios comunitárias inter-FM e união na região metropolitana de Belo Horizonte. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Ferreira, G. S. N. (2006). Rádios comunitárias e poder local: estudo de caso de emissoras legalizadas da região nordeste do Estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Universidade de São Paulo, São Paulo. Festa, R. (1984). Comunicação popular e alternativa: a realidade e as utopias. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo. Gil, A. C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa. 4ed. São Paulo: Atlas. Gomes, P. (1990). O jornalismo alternativo no projeto popular. São Paulo: Ed. Paulinas. Gonzalez, J. (1990). Sociología de las culturas subalternas. Mexicali: UABC. Lahni, C. (2005). Possibilidades de cidadania associadas à Radio comunitária Juizforana Mega FM. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Universidade de São Paulo, São Paulo. Lopes, C. A. (2005). Política de Radiodifusão Comunitária no Brasil: exclusão como estratégia de contra-reforma. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de Brasília, Brasília. Lopes, M. I. V. (2001). Pesquisa em Comunicação. 6ed. São Paulo: Edições Loyola. Peruzzo, C. M. K. (2004). Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. 3ª ed. Petrópolis: Vozes. Peruzzo, C. M. K. (2008a). Conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária revisitados. Reelaborações no setor. Revista Palabra clave, 11(2), p. 367-379. Peruzzo, C. M. K. (2008b). Da comunicação popular à imprensa alternativa no Brasil. Revista Humanidades. 55(1). p.100-108. Peruzzo, C. M. K. (2013). Manual de normas técnicas para referências e apresentação de relatório de qualificação, tese e dissertação. São Bernardo do Campo: Poscom – Umesp. 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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 814 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO On the edges of the Tocantins River: the voice of the Movement of Dam-Affected People on Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia R egina Guimar aes Clemente 1 Resumo: Este artigo objetiva compreender as formações discursivas construídas pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) por meio da análise de 18 notícias publicadasde 2010 a 2013 do site institucional www.mabnacional.org.br no trato dado sobre a Usina Hidrelétrica Estreito (construída no rio Tocantins, nos estados do Maranhão e Tocantins, com reservatório de 400 km² e executada pelo Consórcio formado pelas multinacionais GDF Suez-Tractebel Energia, Vale, Alcoa e Intercement). O MAB atua comoporta-voz das comunidades impactadas por hidrelétricas no país desde os anos 1980. A partir das contribuições teóricas de Michel Foucault, mapeiam-se aqui os sujeitos que constituem o discurso do MAB: quem fala, o que fala e o lugar institucional do discurso do Movimento. Dos resultados parciais, nota-se que a principal temática abordada abarca as ações de resistência do movimento contra as hidrelétricas,marchas, manifestações, denúncias e conquistas. O MAB considera o Ceste como “dona da barragem” e põe em xeque o interesse das multinacionais em detrimento do bem-estar da população local; situa o Estado como responsável pelo empreendimento e pela situação de vida dos atingidos e reforça seu próprio lugar institucional de mediador nasconquistas do direito das famílias atingidas. Palavras-Chave: Movimento dos Atingidos por Barragens. Usina Hidrelétrica Estreito. Formações Discursivas. Abstract: This article aims to understand the Discursive Formations built by the Movement of Dam-Affected People (MAB) through the 18 news analysis published 2010- 2013 on the institutional site www.mabnacional.org.br about the Usina Hidrelétrica Estreito (built on the Tocantins River in the states of Maranhão and Tocantins, with reservoir 400 km² and executed by the Consortium formed by multinational GDF Suez-Tractebel Energia, Vale, Alcoa and Intercement). The MAB acts as spokesman of the communities impacted by hydropower in the country since the 1980s. From the theoretical contributions of Michel Foucault we map here the subjects that constitute the discourse of MAB: the speaker, the talking and the institutional place Movement speech.The partial results, we note that the main theme discussed covers the movement of 1. Mestranda da Universidade Paulista – Unip. [email protected]. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 815 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente resistance actions against hydroelectric power plants, such as marches, events, complaints and achievements. The MAB considers Ceste as “owner of the dam” and questions the interest of multinationals to the detriment of the welfare of the local population; places the State as responsible for the development and the living situation of those affected and reinforces their own mediator institutional place in the achievements of the right of affected families. Keywords: Movement of Dam-Affected People. Usina Hidrelétrica Estreito. Discursive Formations D ENTRO DA problemática que envolve a construção de grandes empreendimentos no país, como a Usina Hidrelétrica Estreito, este artigo traz o recorte de uma pesquisa de Mestrado em andamento, na qual nos preocupamos em observar como são construídos os discursos nas diferentes instâncias da esfera midiática sobre os diversos atores sociais envolvidos no processo de implantação de uma usina. A partir da categorização das instituições que fazem parte desse processo por esferas: do Estado, da Sociedade Civil; do Mercado e da mídia impressa, analisa-se como os atores sociais, tais quais: o poder público, o consórcio responsável pelas obras; associações; movimentos sociais; organizações não governamentais e comunidade impactada direta e indiretamente (ribeirinhos, agricultores, comerciantes, indígenas e outros) se fazem representar e são representados. Neste texto, especificamente, enfocaremos sobre a construção do discurso de um dos segmentos em análise, na esfera da sociedade civil, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Analisaremos aqui o site institucional do MAB, na cobertura jornalística sobre a UHE Estreito, com o intuito de perceber as Modalidades Enunciativas que compõem essas Formações Discursivas (Foucault, 2000), identificar quais sujeitos falam, sobre o que falam e qual o lugar institucional do Movimento. Tomaremos como suporte teórico, para compreender o discurso, a obra de Michel Foucault, que em A Ordem do Discurso (2009) propõe métodos de análise, de desconstruir os procedimentos que regem o discurso, de compreender a origem de sua formação. Apropriando-nos dos conceitos trabalhados em Arqueologia do Saber, buscamos encontrar, num percurso metodológico, regularidades no discurso, como propõe Foucault, no conceito-noção de Formação Discursiva. No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva. (Foucault, 2000, p. 43) As regularidades que existem por trás da dispersão de elementos e essas regularidades resultam no processo de formação discursiva, que tentaremos identificar nas publicações do MAB sobre a Usina Hidrelétrica Estreito. A Usina em estudo, a UHE Estreito, foi inaugurada em 2012. Construída no rio Tocantins, é situada nos estados do Maranhão e Tocantins, com reservatório de abrangência Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 816 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente em 12 municípios desses dois estados e alcançando 400 km2 de terras inundadas. Sob responsabilidade do Consórcio Estreito Energia (Ceste), formado pelas empresas multinacionais GDF Suez-Tractebel Energia, Vale, Alcoa e Intercement, a Usina teve investimento na ordem de R$ 5 bilhões e compõe uma das grandes metas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 2 na área energética do país desta década. O processo de instalação do empreendimento, iniciado em 2008, foi marcado por diversos conflitos e despertou o debate na imprensa sobre as questões relativas aos impactos trazidos a nível local (questões ambientais, socioeconômicas e territoriais), assim como o potencial desenvolvimento para a matriz energética brasileira gerado pela barragem. 1. O SUJEITO ATINGIDO POR BARRAGEM Antes de discutirmos a natureza de movimentos sociais como o Movimento dos Atingidos por Barragens, é válido esboçarmos alguma demarcação sobre quem é o sujeito “atingindo por barragens” e quais legislações e concepções abarcam esse sujeito. Waldman enumera alguns impactos mais recorrentes na criação de usinas hidrelétricas. A forma com a qual é realizado o estudo das propriedades; desmatam as áreas, destroem roçados, fazem perfurações, instalam postos de mediações causando uma série de prejuízos aos proprietários que não são indenizados. [...] Alteração do curso rio e poluição das águas a jusante da barragem. O que afeta a pesca e o plantio. Alteração na ecologia; surgimento de pragas. Mudanças bruscas na região e possibilidades de terremotos. Êxodo rural e migração forçada; aumento de desemprego e violência, destruição da cultura, esfacelamento da vida comunitária; Desaparecimento de terras férteis que estão produzindo alimentos (Waldman, 2002, p. 82). Para que sejam emitidas licenças ambientais e a permissão para construir usinas hidrelétricas é necessária a realização do chamado Estudo de Impactos Ambientais (EIA). No caso da UHE Estreito, o EIA foi realizado em 2001, pela empresa CNEC Engenharia como condição para emissão da Licença Prévia pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O EIA relata, no quesito “impactos socioambientais”, que a construção da UHE Estreito resultaria num saldo inicial de 5.937 habitantes atingidos, compreendidos em 268 famílias da zona urbana e 1.019 famílias da zona rural. Registra, também, impactos sobre 301 imóveis urbanos atingidos e 909 imóveis rurais. O Estudo reconhece e avalia os impactos ambientais e sociais para a região: “A intervenção sobre o espaço físico para implantar a UHE Estreito (TO/MA) atinge também o espaço social constituído, provocando, de modo considerável, alterações no cotidiano da população residente nas proximidades do empreendimento”. (CNEC, 2001, p.67). O EIA aponta as principais tendências da mudança social decorrente da implantação do empreendimento, evidenciando, principalmente, os processos sociais que atingem as populações rural (ribeirinha e ilhéus) e urbana, que se encontram na área a ser afetada pelo reservatório e afirma que o meio socioeconômico é o que abarca os impactos mais representativos das alternativas de barramento do empreendimento, classificado em quatro diferentes grupos: Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 817 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente Econômico (a base econômica efetiva e potencial da área estudada): potencial dos recursos naturais e potenciais áreas de lavouras; Social (as populações urbana e rural afetadas): integração à vida social, alterações no nível de emprego, na posse dos meios de produção e trabalho e interferências culturais; Regional (quilometragem de estradas): Infra-estrutura de articulação produtiva e social da região; e institucional (divisão político-territorial): municípios atingidos em mais de 10% e sedes municipais relocadas (CNEC, 2001, 34). O Estudo de Impactos Ambientais, além de descrever a área a ser afetada pelo empreendimento, apresenta alternativas, como indenização, desapropriação por utilidade pública ou não e o reassentamento habitacional. “A desapropriação é o procedimento administrativo pelo qual o Poder Público ou seus delegados, mediante prévia declaração de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, impõe ao proprietário a perda de um bem, substituindo-o em seu patrimônio por justa indenização” (CNEC, 2001, p.88). Nos termos do art. 10, da Lei 9.074/95, com a redação dada pela Lei 9.648/98, “cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, declarar a utilidade pública, para fins de desapropriação ou instituição de servidão administrativa, das áreas necessárias à implantação de instalações de concessionários, permissionários e autorizados de energia elétrica”. Desde 26 de outubro de 2010, com o Decreto Nº 7.342, a ferramenta utilizada pelos estudos hidrelétricos que define quem é ou não considerado atingido é o Cadastro Socioeconômico realizado com os moradores das áreas afetadas: “Art. 1o Fica instituído o cadastro socioeconômico, como instrumento de identificação, qualificação e registro público da população atingida por empreendimentos de geração de energia hidrelétrica”. Dentro da compreensão sobre quem é esse sujeito que sofre os impactos, Vainer (2007), no artigo “Conceito de atingido: uma revisão do debate e diretrizes”, discute que a noção de “atingido por barragem” não é meramente técnica ou econômica, mas é um conceito em disputa, que diz respeito à legitimação e ao reconhecimento de direitos e demandas. Estabelecer que determinado grupo social, família ou indivíduo é, ou foi, atingido por determinado empreendimento significa reconhecer como legítimo – e, em alguns casos, como legal – seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenização, reabilitação ou reparação não pecuniária. Isto explica que a abrangência do conceito seja, ela mesma, objeto de uma disputa (Vainer, 2007, p.01) No caso da UHE Estreito, ser reconhecido como atingido e, consequentemente, ter direito a uma compensação, foi motivo de diversas tensões entre os moradores das áreas direta e indiretamente atingidas do reservatório, sociedade cicvil organizada e o Consórcio responsável pelo empreendimento. A forma como o atingido é concebido, os princípios que essa concepção abarca definem as práticas pelas quais a instituição vai reconhecer os direitos desse sujeito. Locatelli (2014) e Vainer (2009) traçaram um quadro com síntese de concepções sobre o atingido que vêm sendo utilizadas por projetos hidrelétricos desde os anos 1980, definindo as principais características e por quais instituições são usadas: Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 818 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente Tabela 01. Concepções sobre Atingido por Barragens Concepção Características Tendência de uso Territorial patrimonialista Direito de desapropriação por interesse público; “O território atingido é concebido como sendo a área a ser inundada e a população atingida é constituída pelos proprietários fundiários da área a ser inundada”; Indenização mediante a títulos. Empreendedores Bndes. Hídrica Efeitos do empreendimento estritamente a área a ser inundada. Exclui os que não têm área alagada, mas têm sua estrutura produtiva prejudicada. Bndes; Legislação; Empreendedores; MME; Aneel; Ibama; Eletrobas. Mudança social Empreendimento como mudança social nos planos econômico, político, cultural e ambiental, em várias dimensões e escalas espaciais e temporais. Parte da literatura acadêmica, movimentos sociais, MAB, Banco Mundial, Comissão Mundial de Barragens. Fonte: Locatelli (2014); Vainer (2009). Como se pode observar no quadro, a concepção sob um ponto de vista de mudança social considera, além das mudanças físicas e territoriais que o alagamento em sentido estrito acarreta, também as outras instâncias mais subjetivas pelo qual o atingido é submetido. Essa concepção é um ponto de partida dos movimentos sociais que atuam na causa, como a do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que luta pela garantia do direito dos atingidos por barragens no país. 2. O MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS Aumentar o potencial energético do país também tem sido uma grande preocupação de especialistas desde a década de 1970, quando grandes projetos hidrelétricos começaram a ser implantados. Considerada uma energia “limpa”, mais segura, mais duradoura e menos custosa quando comparada com outras formas de geração de energia, a hidroeletricidade tem sido o meio mais utilizado pelo país para suprir sua demanda por energia, correspondendo a 67,09% da produção nacional atualmente em operação (Aneel, 2014). As demais fontes utilizadas no Brasil em operação são de origem, respectivamente, fóssil (19,04%); biomassa (9,58%); nuclear (1,45%); eólica (2,82%) e solar (0,01%) (Aneel, 2014). O processo de instalação das primeiras usinas hidrelétricas no Brasil se deu de forma abrupta, muitas vezes, ferindo os direitos das famílias ribeirinhas. Milhares de atingidos por barragens foram vítimas da ditadura militar, principalmente nos anos 1970, sendo expropriados de suas casas, terras e trabalhos sem qualquer tipo de direito ou reparação pela construção de barragens, tais como Sobradinho, Itapiraca, Tucuruí, Itaipu e Passo Real. Os ‘afogados’ não eram reconhecidos como sujeitos de direitos pelas empresas construtoras e pelo Estado, que considerava os desalojados como uma questão a ser resolvida do âmbito da reforma agrária. (ANAB, 2013, p.09) No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, novos movimentos sociais eclodiram no Brasil, como movimentos das mulheres, ecológicos e pacifistas. Novos atores sociais entraram em cena. Nesse contexto que surgiam várias forças de trabalhadores como o Movimento Sem Terra, a Central Única dos Trabalhadores e o Partido dos Trabalhadores, a organização dos atingidos por barragens dava seus primeiros passos. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 819 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente A organização do MAB teve raízes nos focos de resistência locais de usinas do Tucuruí (PA); Itaipu (binacional com Paraguai), Itá e Machadinho, no sul no país; Sobradinho e Itaparica, na região nordeste. Nessas regiões os atingidos iniciaram revoltas, lutas por indenização e formaram organizações locais e regionais de resistência. Eram as chamadas Comissões de Atingidos, CRAB (Comissão Regional dos Atingidos por Barragens) na região Sul, CAHTU (Comissão dos Atingidos pela Hidrelétrica de Tucuruí) e CRABI (Comissão Regional dos Atingidos do Rio Iguaçu). A partir de março de 1991 o MAB se consolidou como um movimento nacional, popular e autônomo, de massa, com direção coletiva, organizando e articulando as ações contra as barragens a partir das realidades locais. Atualmente o MAB está organizado em 16 estados do Brasil (BA, CE, GO, MA, MG, MT, PA, PB, PE, PI, PR, RO, RS, SC, SP e TO), levantando bandeiras pelos direitos dos atingidos por barragens, por um modelo energético popular que leve em conta as necessidades do povo, defendendo o lema “Água e energia não são mercadorias! Água e energia são para soberania!”. O MAB está organizado nos grupos de base e possui coordenações a nível local, estadual e nacional. De acordo com o movimento, integram o MAB: Participam dos Grupos de Base todas as famílias ameaçadas ou atingidas direta e indiretamente por barragens. Na prática, isso significa organizar todos aqueles que moram nas comunidades atingidas e estão dispostos a lutar. Participam dos grupos, não só as famílias que possuem terras nas comunidades, mas também aquelas que de alguma forma dependem economicamente da comunidade atingida para viver ou do próprio rio, ou seja, os arrendatários, os posseiros, os pescadores, os meeiros, os parceiros, os agregados, os trabalhadores rurais sem-terra, entre outros (MAB, acesso em agosto de 2014). 3. PRODUÇÃO DISCURSIVA NO SITE DO MAB O site www.mabnacional.org.br funciona como uma ferramenta institucional do movimento, como porta-voz das ações realizadas nas lutas em prol dos atingidos por barragens de todo o país, denunciando perdas de direitos e destacando as conquistas alcançadas pelo movimento. O site é muitas vezes utilizado como fonte secundária por jornalistas na produção do noticiário sobre a atuação de hidrelétricas. O site em análise data o início de postagens de notícias a partir de 2009. Além de postagens sobre barragens ordenadas de acordo com as cinco regiões geográficas do país, é possível acessar também a outras produções institucionais do movimento, como o jornal institucional “Jornal do MAB”, entrevistas em áudio, poesias, músicas, jingles, vídeos, cartilhas, fotos; assim como um acervo de publicações acadêmicas sobre hidrelétricas como livros, dissertações, teses e artigos. Para este estudo foram mapeadas primeiramente a totalidade de 33 notícias jornalísticas do site que fazem menção à UHE Estreito, no período de 2009 a 2013 (período que compreende das fases de instalação ao início de operação da usina). Do total das 33 notícias foram selecionadas para a análise 18 notícias, que têm como temática específica somente a problemática que envolve a UHE Estreito. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 820 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente Tabela 02. Notícias site do MAB sobre a UHE Estreito selecionadas para análise Título na notícia Data de publicação 1. Atingidos por barragens realizam acampamentos na próxima semana 12 mar 2010 2. Atingidos por barragens reforçam acampamento de 9 meses no Tocantins 16 mar 2010 3. Atingidos por barragens continuarão mobilizados rumo a Brasília 18 mar 2010 4. Atingidos pela UHE de Estreito realizam marcha por direitos em Tocantins 19 ago 2010 5. Atingidos pela UHE Estreito continuam marcha por direitos 30 ago 2010 6. Marcha dos atingidos chega à Estreito 7. MAB denuncia violação de direitos humanos na barragem de Estreito 18 mar 2011 8. Atingidos ocupam área da União em Barra do Ouro (TO) 18 abr 2011 9. Usina de Estreito acaba com pesca no Tocantins 27 abr 2011 10. Acampamento ganha força com chegada de mais atingidos 29 abr 2011 11. MAB e MST completam uma semana de acampamento em frente ao INCRA (TO) 12. Hidrelétrica de Estreito deixa famílias assentadas sem água 07 jun 2011 13. Ceste apresentou relatório falso, denuncia MPF/TO 22 jun 2011 14. Pescadores do Maranhão e Tocantins organizam cooperativa 04 out 2011 15. Atingidos pela barragem de Estreito cobram resolução de problemas 15 mar 2012 16. Atingidos por Estreito entregam pauta a presidenta Dilma 20 out 2012 17. Ministro da Pesca e Aquicultura inaugura salas multiuso em Estreito 25 fev 2013 18. Atingidos trancam hidrelétrica de Estreito, em Tocantins 11 jul 2013 02 set 010 06 maio 2011 Fonte: www.mabnacional.org.br 3.1. Quem fala e o sobre o que se fala? Em sua aula inaugural no Collège de France, Foucault levanta alguns apontamentos sobre a Ordem do Discurso. O primeiro deles é o pressuposto que a produção do discurso em toda sociedade é “ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (2009, p.8). Nessa obra, Foucault elenca procedimentos externos e internos de exclusão do discurso. Segundo ele, a palavra proibida (interdição), a segregação da loucura (separação) e a vontade de verdade são os três grandes sistemas de exclusão e que se apoiam sobre um suporte institucional. Foucault (2009) aponta que os procedimentos de controle (seleção, organização e redistribuição da produção) funcionam como rarefação do discurso, da “rarefação dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (p.37). E destaca três coerções do discurso: as que limitam seus poderes; as que dominam suas aparições aleatórias e as que selecionam os sujeitos que falam. Recorreremos, para esta análise, ao conceito de Foucault (2000) sobre formação discursiva, que objetiva desvendar o funcionamento das regras de formação de cada constituição em particular, buscando a regularidade em meio à dispersão. Estas regras Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 821 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente passam pela descrição dos quatro níveis de construção discursiva: Objetos, Modalidades Enunciativas, Conceitos e Estratégias. Tratando da formação das Modalidades Enunciativas Foucault (2000, p.57-59) aponta que é preciso descrever uma coexistência de enunciados dispersos visando buscar sua articulação e determinar as regras que permitem a existência de enunciações diversas. Estas regras remetem a questões como: 1) Quem fala? Quem, entre todos os sujeitos falantes possui legitimidade para enunciar?; 2) De quais lugares institucionais ele obtém o seu discurso? De qual lugar advém tanto os objetos e enunciados quanto sua legitimidade?; 3) Que posições o sujeito ocupa em relação aos domínios ou grupos de objetos? Estes três questionamentos põem o discurso novamente em um jogo de relações, uma prática que articula status, lugares e posições e, em plena expressão discursiva, produz um campo de regularidades para as diversas (e dispersas) posições de subjetividade (Foucault, 2000). No quadro-resumo abaixo são identificados, nas 18 notícias, quem é o sujeito que fala, quem é qualificado para falar; quem obedece aos critérios que regem o discurso, categorizado aqui de acordo com a esfera a qual pretence (Estado, Mercado, Sociedade, Sociedade Civil Organizada e Academia). Observamos que em 17, do total das 18 notícias, pelo menos um dos membros da coordenação no MAB ou de outra instituição civil organizada tem sua voz no texto veiculado. Em seis, do total das notícias analisadas, o atingido (morador, pescador ou ribeirinho, que não necessariamente membro do Movimento) foi ouvido e pôde detalhar, com citações diretas, seu posicionamento e relato perante a construção da UHE Estreito. Considerando-se que a temática principal abordado no noticiário do MAB são denúncias contra ao Consórcio responsável pela Usina, constata-se que não houve registro, no entanto, da fala do Ceste - consórcio responsável pela Usina. Tabela 04. Quadro-resumo sujeitos que falam. Esfera Quem Fala Estado Analista do IBAMA que não quis se identificar; Ministério Público Federal; Prefeito de Babaçulândia; Procurador da República no Tocantins, Álvaro Manzano. Mercado ------ Sociedade Assentado Alberto dos Reis, engenheiro agrônomo e morador; Atingidos; Morador; Moradora; Pescador Domingos; Pescador Raimundo. Sociedade Civil Organizada Cirineu da Rocha, coordenador regional do MAB; Flávio Gonçalves, coordenador do Movimento; José Josivaldo Alves, da coordenação nacional do MAB; Luiz Moura, presidente da Associação de Pescadores Cooperatins; MAB; Pescadores. Academia Especialista em Ecologia e Conservação de Peixes da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Fernando Mayer Pelicice; Professora de Ciências Sociais da Universidade Federal de Tocantins (UFT), Rejane Medeiros. Fonte: elaborado pela autora Na análise do diagnóstico sobre o que se fala, tem-se que a principal temática na produção do noticiário do MAB permeia sobre ações de táticas de resistência do movimento contra as hidrelétricas, como marchas, manifestações, acampamentos, denúncias e as evidências das conquistas alcançadas. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 822 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente Enunciados do tipo ‘“Lutaremos pelos nossos direitos até que tenhamos condições mais dignas para viver’, declarou José Josivaldo Alves, da coordenação nacional do MAB” (MAB, 2010), funcionam como regularidades que marcam o lugar institucional do Movimento como militância ativa, que atua quando o Estado deixa de prover os direitos do cidadão. ‘“Já se passaram mais de 30 dias e nada foi resolvido. Foram publicadas algumas denúncias, mas nada adiantou. O povo então ocupou a área e não vai sair’, declarou uma militante” (MAB, 2011). A visão do noticiário do MAB sobre o Consórcio Estreito Energia é de que o Ceste é “dono da barragem”, evidenciando que as empresas que compõem o Consórcio são multinacionais e que não se preocupam com o bem- estar da população local. ‘O consórcio é formado pelas empresas Suez, Vale, Alcoa, BHP Billiton Metais e Camargo Corrêa Energia. São todas transnacionais que não se importam com a vida das pessoas, apenas com o lucro que a usina vai gerar, por isso não vamos arredar o pé’, afirmou Cirineu da Rocha, coordenador do MAB. (MAB, 2010) Há uma queixa recorrente nos enunciados da falta de diálogo entre os atingidos e o Ceste. A população local, na outra extremidade do processo, não participaria plenamente da tomada de decisões sobre a Usina: ‘Ao invés de discutir os direitos dessas categorias, as empresas vêm cooptando, articulando falsas lideranças para confundir e dividir as comunidades, prometendo empregos, prestação de serviços, doando recursos para festas, computadores, carros e outras coisas’, afirma Cirineu da Rocha, coordenador do MAB na região (MAB, 2010). Regularidade observada tanto na fala institucional do movimento quanto na da sociedade atingida como se observa na notícia intitulada “MAB denuncia violação de direitos humanos na barragem de Estreito”: ‘Durante todas as audiências públicas realizadas no município de Barra do Ouro, em Tocantins, o consórcio sempre deixou claro que os povoados a beira rio não seriam atingidos. No entanto, no início do ano, uma equipe do consórcio alojou-se na cidade e iniciou o levantamento de todo o povoado, sem sequer discutir conosco o porquê de tal medição de última hora’, afirmam os atingidos. (MAB, 2011) A expropriação dos moradores, sob uma concepção sobre o atingido territorial-patrimonialista, conforme detalhado na tabela 01, enquadra-se com uma das principais reivindicações do Movimento. O curto intervalo de tempo no qual o processo ocorre também coloca o morador ribeirinho numa situação de sujeição frente à força do empreendimento. ‘“Eles deram o prazo de 24 horas para nós sair e se não saísse, nós iria ser multado em até 27 mil reais e seria retirado por força policial’, declarou uma moradora” (MAB, 2011). A relação com o ambiente transformado; a relocação das famílias; a adaptação a novas ocupações de trabalho com a nova configuração do cenário pós a barragem também compõem de forma persistente os enunciados analisados. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 823 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente ‘Estou com a minha canoa no seco. Pesquei a minha vida inteira e criei meus 15 filhos com a pesca’, lamenta Raimundo Tavares da Silva, 70 anos, 43 dedicados à atividade. O pescador conta que tanto abaixo quanto acima da barragem, não há mais peixe. ‘Acabou a nossa condição de pescar. Com essas mortes, as pessoas nem estão comprando os peixes que restaram’, completa (MAB, 2011). O lugar institucional da esfera da academia, com a fala da Professora de Ciências Sociais da Universidade Federal de Tocantins (UFT), Rejane Medeiros, define o funcionamento econômico da hidrelétrica sob uma perspectiva que corrobora com o lema defendido pelo movimento: “Trata-se de um caso de privatização da água, um bem natural sendo utilizado a favor da minoria que controla a água na região para gerar energia para seu próprio beneficio” (MAB, 2011). Na ocasião da inauguração da usina, o site publicou em 20 de outubro de 2012, a notícia intitulada “Atingidos por Estreito entregam pauta a presidenta Dilma”. Durante a inauguração da UHE Estreito, nesse 17 de outubro (quarta-feira), a presidenta Dilma Rousseff recebeu a pauta do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). A pauta é resultado de anos de luta e organização das famílias atingidas por esta barragem que em muitos momentos sofreram por falta de diálogo e intransigência dos representantes dos CESTE, dona da barragem. Desde o início das obras, os atingidos já fizeram mais de três acampamentos e uma marcha de mais de uma centena de quilômetros sempre na busca da terra e das condições de sobrevivência das famílias. A presidenta se comprometeu em dar os devidos encaminhamentos principalmente no tocante a terra para as famílias cadastradas pelo INCRA e no desenvolvimento do projeto do pescado. ‘Estreito é um marco para o setor elétrico brasileiro e para pesca, pois foi a partir do processo de luta dos pescadores que os mesmos foram reconhecidos como atingidos. Para pensar, propor, construir o desenvolvimento é necessário dialogar, garantir o direito das famílias atingidas’, afirmou Cirineu da Rocha, militante do MAB. (MAB, 2012) Diferentemente do enfoque que os veículos da grande mídia deram à notícia – a inauguração propriamente dita da Usina – o site do MAB deu enfoque à pauta que estava sendo entregue à Presidenta, recapitulando os anos de luta do movimento e a falta de diálogo dos representantes do Consórcio. Na fala, o militante do MAB reconhece a importância do empreendimento para o país e situa o Estado no lugar institucional de responsável pelo empreendimento e pela situação de vida dos atingidos; e reforçando o lugar institucional do Movimento de mediador nas conquistas do direito das famílias atingidas por meio do diálogo e ações. 4. CONSIDERAÇÕES Reitera-se que a análise das formações de um discurso pressupõe estudo de práticas, de disputas, de processos, por isso, não estanques. Em um dos segmentos que constituem a esfera da sociedade civil, no caso o Movimento dos Atingidos por Barragens, pôde-se perceber, por ora, alguns elementos recorrentes nas formações discursivas que tendem a ser refletidos no brilho da visibilidade por parte da produção noticiosa do próprio MAB. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 824 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente Sob a luz dos estudos de Foucault, pressupõe-se nestas análises que há um sistema de poder que age sobre o discurso, e estes emergem de relações entre verdades, saberes, práticas sociais e instituições; daí a necessidade de compreender as condições de existência desses discursos. Percebe-se que as formações discursivas construídas pelo Movimento dos Atingidos por Barragens sob a égide da luta de “Água e energia são para soberania!” pressupõe a representatividade de sujeitos das diversas esferas sociais elencadas na análise; dando certa visibilidade ao indivíduo atingido que sofre os impactos da hidrelétrica e que encontra no Movimento, enquanto sociedade civil organizada, espaço de legitimação de lutas; acusando e cobrando o sujeito da esfera do Mercado e pressionando do Estado o posicionamento de retomada da ordem e a garantia dos direitos que foram prejudicados em prol do discurso do desenvolvimento do país. Ponderamos, no entanto, que não temos o intuito de superestimar o MAB; que embora ele seja uma entidade representativa, não representa a unanimidade dos sujeitos atingidos; também que há contradições entre o MAB e outras organizações da sociedade civil no entorno da UHE Estreito; e que nos processos de tensões e negociações que envolvem a sociedade, o MAB, o Ceste e o Estado há oscilações entre conflitos, acordos, estratégias e táticas que compõem uma delicada teia de relações. Por outro lado, do ponto de vista da comunicação dos movimentos sociais reconhecemos que há uma contribuição pra o jogo democrático, que pressupõe liberdades, e participação popular. A participação popular pode facilitar o devir de uma nova práxis da comunicação. A participação e a comunicação representam uma necessidade no processo de constituição de uma cultura democrática, de ampliação dos direitos de cidadania e da conquista da hegemonia, na construção de uma sociedade que veja o ser humano como força motivadora, propulsora e receptora dos benefícios do desenvolvimento histórico. (Peruzzo, 1998) Cabe, ainda, considerar que nos processo de intalação de barragens, ferramentas democráticas que poderiam dar visibilidade aos sujeitos envolvidos, como os comitês de co-gestão e audiências públicas, nem sempre cumprem o papel igualitário de dar voz aos que deveriam falar. Os processos concernentes à instalação de uma usina hidrelétrica ocorrem em paralelo às representações que são dadas a essas práticas. No entanto, pressões e lutas a nível simbólico, em que a imagem de instituições e de sujeitos ganham espaço na esfera midiática (articuladora desses múltiplos discursos), podem influenciar na conquista de direitos, como o das famílias remanejadas, alterando e promovendo uma revisão sobre como o processo pode ser reconduzindo, de forma mais justa; e remoldando os procedimentos a serem adotados em futuros empreendimentos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL. (2014). Recuperado em dezembro de 2014, de http://www.aneel.gov.br Associação Nacional de atingidos por Barragens. (2013). Cartilha As Lutas dos Atingidos por Barragens por Direitos Humanos - ANAB. Recuperada em agosto de 2014, em: http://www.mabnacional.org.br/publicacao/cartilha-lutas-dos-atingidos-por-barragenspor-direitos-humanos. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 825 Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO Ligia Regina Guimaraes Clemente CNEC Engenharia S. A. (2001). Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA da Usina Hidrelétrica de Estreito. São Paulo. Foucault, Michel (19 ed). (2009). A Ordem do Discurso: Aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970, São Paulo: Ed. Loyola. Foucault, Michel. (6 ed). (2000). A Arqueologia do Saber, Rio de Janeiro: Forense Universitária. Locatelli, Carlos. (2014). Comunicação e Barragens: O poder da comunicação das organizações e da mídia na implantação de hidrelétricas. Florianópolis: Insular. Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB. (2010; 2012; 2013). Recuperado em agosto de 2014, de http://www.mabnacional.org.br Peruzzo, Cecilia K. (2 ed). (1998). Comunicação nos Movimentos Populares: a participação na construçãoda Cidadania. Petrópolis, RJ: Vozes. Vainer, Carlos. (2007). Conceito de atingido: uma revisão do debate e diretrizes. Recuperado em 02 de maio de 2014, de http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/publicações. Waldman, Maurício. (2002). Ecologia e Lutas Sociais no Brasil. São Paulo: Contexto. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 826 Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático Communication, power and citizenship: the meeting of the alternative and counter-hegemonic in the same media vehicle A m anda Medeiros 1 Resumo: Costumamos considerar o sistema midiático estruturado em meios hegemônicos e contra-hegemônicos ou alternativos de comunicação. Por vezes, falhamos ao utilizar como sinônimas palavras que, neste contexto, podem indicar meios midiáticos diferentes. O fato de ser alternativo, não garante, por si só, que um veículo seja considerado contra-hegemônico. É neste sentido que, como parte de uma pesquisa mais ampla, buscamos aqui discutir teoricamente sobre o momento em que o alternativo e o contra-hegemônico “confundem-se” em um mesmo veículo midiático. Para tanto, amparamo-nos principalmente em teóricos como Gramsci, Downing, Peruzzo, Paiva e Moraes, os quais nos levaram à conclusão de que é a partir do encontro do alternativo com o contra-hegemônico que podemos falar de uma comunicação cidadã e do seu poder. Palavras-chave: Hegemonia; Contra-hegemonia; Mídia radical alternativa; Comunicação cidadã; Veículos midiáticos. Abstract: We usually consider the media system structured in hegemonic and counter-hegemonic media or alternative media of communication. Sometimes, we fail using as synonymous words that, in this context, may indicate differents vehicle media. The fact that be alternative does not guarantee, by itself, that a vehicle is considered counter-hegemonic. This is why, as part of a broader research, we have here a theoretical discussion about the time when the alternative and conter-hegemonic are mixed into the same vehicle media. For this, we base mainly on theoreticals as Gramsci, Downing, Peruzzo, Paiva and Moraes, who take us to the conclusion that is from the meeting of alternative and counter-hegemonic that we can speak of a citizen communication and its power. Keywords: Hegemony; Counter-hegemonic; Radical alternative media; Citizen communication; Media vehicles INTRODUÇÃO IANTE DA afirmação de que “X” é alternativo a “Y”, podemos concluir objetivamente D que “X” difere de “Y”, uma vez que possuindo exatamente as mesmas características um não poderia ser considerado alternativo ao outro. Partimos, portanto, dessa premissa geral para abordá-la, mais especificamente, no âmbito da esfera midiática. 1. Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEM/UFRN). Email: [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 827 Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático Amanda Medeiros De forma simplificada, costumamos considerar o sistema midiático como sendo estruturado em meios hegemônicos e contra-hegemônicos ou alternativos de comunicação. Por vezes, falhamos ao utilizar como sinônimas palavras que, neste contexto, podem indicar meios midiáticos diferentes. O fato de ser alternativo, não garante, por si só, que um veículo seja considerado contra-hegemônico. Para Paiva (2008, p. 164), é no entendimento de que o “contra” se define “pela visceralidade da oposição – e não por um mero revezamento de forças contraditórias – que reside possivelmente a compreensão daquilo que se pode pautar ideologicamente como uma postura contra-hegemônica”. Seguindo tal linha de raciocínio, nos amparamos ainda em Peruzzo (2009) quando ela diz que os meios alternativos assumem o papel de se estruturarem em espaços em que a comunicação aconteça de forma participativa, dialógica e horizontal, logo, aproximando-se da ideia de mídia radical alternativa oferecida por Downing (2004). É neste sentido que, como parte de uma pesquisa mais ampla, buscamos aqui discutir teoricamente sobre o momento em que o alternativo e o contra-hegemônico “confundem-se” em um mesmo veículo midiático. Ao final deste ensaio chegamos a uma discussão teórica suficientemente consistente que, quando confrontada com dados empíricos, poderá nos auxiliar na identificação de propostas midiáticas que são, de fato, alternativas e contra-hegemônicas, por conseguinte, ligadas aos princípios da comunicação cidadã. HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NO CENÁRIO MIDIÁTICO A palavra hegemonia vem do grego “hêgemôn”, que significa líder; logo, está diretamente ligada à ideia de uma posição superior. Para Gramsci, essa superioridade se dá em termos de liderança cultural e/ou político-ideológica de uma classe social sobre as outras. O autor acredita que o domínio implícito na ideia de hegemonia se dá através de duas frentes, uma de consenso e outra de coerção. Antes de tudo, os dominados precisam ser convencidos da proposta dominante – através de estratégias de argumentação e persuasão –, para que somente então as heterogeneidades existentes entre eles possam ser amenizadas, e os princípios hegemônicos possam ai ser aceitos e tomados como universais. [...] a hegemonia não deve ser entendida nos limites de uma coerção pura e simples, pois inclui a direção cultural e o consentimento social a um universo de convicções, normas morais e regras de conduta, assim como a destruição e a superação de outras crenças e sentimentos diante da vida e do mundo (GRAMSCI, 2002, apud MORAES, 2010, p. 55) Amparada também em Gramsci, Veloso (2014, p. 38) acrescenta que “o bloco de poder abriga não apenas a classe que exerce a autoridade cultural, política e econômica, mas também segmentos da classe subordinada que entendem seus interesses como os mesmo do grupo dominante”. A partir dessa ideia, seguimos com a hipótese de que, mesmo dentro de um grupo aparentemente coerente, a heterogeneidade faz-se presente, tornando inevitável a existência de conflitos; logo, há aí o impedimento de uma subordinação absoluta, o que resulta na impossibilidade de uma hegemonia total: “sempre há formas emergentes de consciência e representação podendo ser mobilizadas Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 828 Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático Amanda Medeiros em oposição à ordem (O’SULLUVAN et al, 2001, p. 122 apud VELOSO, 2014, p. 38). Acerca das limitações de uma hegemonia, Gruppi (1978, p. 67, apud MORAES, 2010, p. 55) nos diz: Uma classe é hegemônica, dirigente e dominante até o momento em que – através de uma classe sua ação política, ideológica, cultural – consegue manter articulado um grupo de forças heterogêneas e impedir que o contraste existente entre tais forças exploda, provocando assim uma crise na ideologia dominante, que leve à recusa de tal ideologia, fato que irá coincidir com a crise política das forças no poder. São realmente muitas as oportunidades para que crises desse tipo se desenvolvam, pois a ideia de hegemonia não se restringe ao domínio do campo econômico: os embates também se dão em torno da organização política, de questões culturais, expressão de saberes, tradições, modelos de representação e autoridade. Conforme Moraes (2010, p. 54), “além de congregar as bases econômicas, a hegemonia tem a ver com entrechoques de percepções, juízos de valor e princípios entre sujeitos da ação política”. Atrelada à ideia de hegemonia encontramos, pois, a ideia de contra-hegemonia. Eduardo Coutinho, parafraseando Marx, diz que toda hegemonia traz em si o germe da contra-hegemonia: “há, na verdade, uma unidade dialética entre ambas, uma se definindo pela outra. Isto porque a hegemonia não é algo estático, pronta e acabada. Uma hegemonia viva é um processo. Um processo de luta cultura” (COUTINHO, 2008, p. 77). Processo pelo qual uma classe social constrói e reconstróis sua liderança intelectual e moral sobre as demais classes, reproduzindo ativamente os valores, as ideias, as práticas culturais por uma determinada perspectiva e impondo-a ao conjunto da sociedade. Assim, podemos falar em tradições hegemônicas, que reafirmam a visão de mundo das camadas dominantes, e em tradições contra-hegemônicas, que reconstroem a história pelas perspectiva das classes subalternas (COUTINHO, 2005, p.95) Ainda conforme Coutinho (2008), a contra-hegemonia se coloca como possibilidade a partir do momento em que a dominação de classe já não se dá pela coerção, mas também pelo consenso. Essa contra-hegemonia assume o papel de instituir o contraditório e a tensão no que até então parecia homogêneo e estável. Segundo Moraes (2010, p. 73), um dos principais desafios para o pensamento contra-hegemônico consiste em “alargar a visibilidade pública de enfoques ideológicos que contribuam para a reorganização de repertórios, princípios, e variáveis de identificação e coesão, com vistas à alteração gradual e permanente das relações sociais e de poder”. Retomando a discussão anteriormente suscitada acerca de heterogeneidade das classes sociais e resistência, temos que, de acordo com Williams (1999), hegemonia não existe “passivamente” como forma de dominação, sendo capaz de renovar-se, recriar-se, defender-se e modificar-se diante da resistência continuada, limitada e desafiante em que se configura a contra-hegemonia. Ao abordar o conceito de hegemonia, Paiva (2008, p. 164), em consonância com o que Gramsci nos oferece, afirma tratar-se de “uma forma de poder caracterizada por uma postura totalizante, generalizada, mas que se dá com o consentimento ou a aceitação dos demais. É, assim, uma configuração particular de dominação ideológica”. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 829 Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático Amanda Medeiros Por outro lado, segundo a mesma autora “é no entendimento de que o ‘contra’ se define pela visceralidade da oposição – e não por um mero revezamento de forças contraditórias – que reside possivelmente a compreensão daquilo que se pode pautar ideologicamente como uma postura contra-hegemônica”. (PAIVA, 2008, p. 164) Neste sentido, e já propriamente inseridos no campo midiático, podemos não só afirmar que os meios contra-hegemônicos não almejam uma simples substituição na ocupação do lugar hegemônico, como também podemos dizer que estes residem no fato de nunca objetivarem a posição hegemônica e todas as suas peculiaridades. São, portanto, meios que se vestem da responsabilidade de “propiciar novas formas de reflexão, com o objetivo precípuo e final de libertar as consciências. Se as bases são diferentes dessas, certamente os propósitos são outros. E, então, a ‘pró-hegemonia’ torna-se o objetivo maior” (PAIVA, 2008, p. 167). Vale salientar que, conforme Gramsci (2010), uma força contra-hegemônica só pode ser reconhecida como tal na medida em que consegue ultrapassar a espontaneidade do movimento, que intervém com capacidade de modificar e alterar uma dada estrutura social. Assim sendo, temos que, apesar dos obstáculos, os meios alternativos à mídia hegemônica ocupam posição de destaque nas ações de resistência diante dos dominantes, e na disseminação da contra-informação. Portanto, “num ambiente de dominação onde a prática jornalística é alvo de omissões, distorções e manipulação deliberadas, os meios alternativos têm a possibilidade de discutir o pouco que se informa, mas também o que não se informa, quem informa e como faz” (BELTRÁN & FOZ, 1982, apud, VELOSO, 2014, p. 40). A MÍDIA (RADICAL) ALTERNATIVA: PARTICIPAÇÃO, DIÁLOGO E HORIZONTALIDADE Com a disseminação de tecnologias de informação e comunicação (TICs), e a facilidade de acesso à internet, os meios alternativos somaram novas possibilidades de exercerem o seu papel contra-hegemônico. Como já sugerido anteriormente, esses meios não são o simples oposto dos meios hegemônicos, uma vez que, se por um lado propostas hegemônicas e contra-hegemônicas de comunicação buscam ocupar determinados espaços e legitimar-se junto à sociedade; por outro, os caminhos percorridos, as estratégias utilizadas e as metas a serem alcançadas por eles divergem em vários aspectos, como veremos adiante. Caracterizando brevemente a mídia alternativa, Downing (2002) nos diz que ela seria, em geral, [...] de pequena escala e sob muitas formas diferentes; que expressa um visão alternativa às políticas, prioridades e perspectivas hegemônicas; que não apenas fornece ao público os fatos que lhe são negados, mas também pesquisa formas de desenvolver uma perspectiva de questionamento do processo hegemônico e fortalece o sentimento de confiança do público em seu poder de engendrar mudanças construtivas. (DOWNING, 2002, apud GOÉS, 2007) Sendo assim, é coerente afirmar que a mídia alternativa contra-hegemônica defende a mudança social, buscando, para tanto, garantir aos sujeitos a ideia de pertencimento dentro dos processos necessários ao alcance dos objetivos traçados. Este tipo de comunicação é, portanto, uma prática em conflito (BERGER, 1989, apud PERRUZO, 2004) que Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 830 Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático Amanda Medeiros não se resume a estratégias diferenciadas de produção de conteúdo, mas que se ocupa com uma produção crítica capaz de instigar questionamentos e levar à reflexão/ação dos sujeitos e/ou grupos socialmente organizados. Peruzzo (2006, p. 07) explica que A comunicação alternativa é caracterizada por apresentar uma opção de fonte de informação, tanto pelo conteúdo que oferece quanto pelo tipo de abordagem que utiliza. No Brasil, denominou as experiências de contra-informação na época da ditadura militar, mas está presente na comunicação dos movimentos populares. Ainda conforme Peruzzo (2009), esses meios alternativos assumem o papel de se estruturarem em espaços em que a comunicação aconteça de forma participativa, dialógica e horizontal, configurando-se, dessa forma, em instrumentos de conscientização e democratização da informação que acabam por contribuir para a transformação social. Para Ramírez (1997, p. 45, apud, VELOSO, 2014, p. 33), a comunicação alternativa é “[...] participação dos cidadãos, defesa do bem comum, serviço à verdade, mediação para resolver problemas da vida cotidiana, cultivo do debate responsável e pluralista, garantia efetiva de recepção e expressão para os legítimos movimentos sociais, políticos e culturais”. Sem entrar em detalhes sobre o que diz a legislação acerca do funcionamento de canais comunitários, tomemos o exemplo hipotético de um canal comunitário de televisão, uma mídia alternativa2; para seu funcionamento dentro de uma lógica realmente contra-hegemônica, tal canal “requer a existência de democracia e envolvimento direto de cidadãos, associações populares e demais organizações sem fins lucrativos nos seus processos de criação, de administração e na programação” (PERUZZO, 2007, p. 110). Como sugerido acima, uma das características essenciais de uma mídia alternativa contra-hegemônica é a participação livre de pessoas nos processos que vão desde o pensar o veículo até a execução de um produto midiático. Essa participação garantirá, além do direito essencial da liberdade de expressão, a multiplicidade de conteúdos a serem veiculados – visto que construídos “a muitas mãos” –, e a pertinência desses conteúdos junto ao público a que se destinam. Uma vez que tais conteúdos sejam idealizados por sujeitos que não estão inseridos na lógica capitalista do mercado midiático, e que fazem parte do contexto social no qual aquela mídia alternativa se insere, possivelmente teremos como resultado um produto que interesse, de fato, ao público alvo, bem como que possua uma carga de preocupação social. Com as TICs, conceitos mercadológicos como o de interatividade3 tentam aproximar-se da ideia de participação ativa de sujeitos na produção de conteúdos midiáticos. Ao navegar pela internet, por exemplo, são muitas as possibilidades oferecidas para que possamos comentar sobre o tema de algum produto jornalístico, sugerir pautas, enviar vídeos e/ou fotos, etc; todavia, esta participação é reativa, tendo em vista que nós, enquanto internautas, reagimos a uma ação lançada pela grande mídia e somos 2. Entendemos como comunicação alternativa contra-hegemônica toda aquela que se opõe e, logo, se diferencia da mídia hegemônica; neste sentido, propostas de comunicação comunitária, popular, livre, etc, são tipos de projetos que se diferenciam entre si, mas que serão considerados aqui inseridos no macro campo da mídia alternativa. 3. Vale esclarecer que a interatividade não é um termo que nasce com a web; Moherdaui (2007) explica que esse tipo de relação já ocorria no rádio e na tv, por exemplo, mas que foi com a internet que ela se amplificou. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 831 Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático Amanda Medeiros instigados a participar, agindo desta ou daquela forma, desde que seja a maneira mais conveniente aos interesses do veículo em questão. Como já indicado anteriormente, no contexto de uma mídia alternativa contra-hegemônica essa participação não deve sofrer esse tipo de “censura”; aqui o sujeito é livre para se expressar, para agir, e não somente reagir diante de assuntos que sejam de interesse público. Ligada diretamente à ideia de participação, temos o diálogo como outra característica da mídia alternativa contra-hegemônica. Conforme Paulo Freire (1977), para haver comunicação faz-se necessário reciprocidade, jamais passividade, e o diálogo é o que marca essa comunicação. Tomemos novamente as possibilidades de “participação” oferecidas no ciberespaço, e lancemos o seguinte questionamento: no momento em que reagimos a uma provocação apresentada em uma página online, digamos que de um telejornal, e fazemos um comentário abaixo de determinada postagem, estaríamos, então, falando de diálogo? No Dicionário de Comunicação, organizado por Ciro Marcondes Filho (2009, p. 95), a etimologia do termo “diálogo” aparece como “do grego dia- + logos, palavra, fala, discurso que atravessa, que perpassa. Conversa entre duas ou mais pessoas visando objetivos diversos”. Neste sentido, é lícito afirmar que, na lógica da mídia hegemônica, de uma forma geral, não encontramos a ideia de diálogo, uma vez que a palavra deveria ser trocada, num processo de ação e reflexão, e o que encontramos é a construção do discurso midiático de forma vertical e descendente. Portanto, respondendo ao questionamento, temos que, neste caso, o diálogo se resumiria a uma ação (por parte do veículo) e uma reação (por parte do internauta); resguardadas as exceções, o processo se encerraria ai, quebrando as lógicas de circularidade, dinamicidade, reciprocidade, inerentes à ideia de diálogo. Por fim, e ligada intimamente às características anteriores, temos a horizontalidade como marca da mídia alternativa contra-hegemônica. Há muito tempo Beltrán (1981) já tratava da comunicação horizontal. Para o autor, são três os pré-requisitos básicos para que se concretize sua ideia de horizontalidade: todos devem ter o direito efetivo de receber mensagens, sem que haja restrição por parte dos responsáveis pela emissão; todos devem ter o direito efetivo de transmitir mensagens, salvo aquelas que infrinjam questões morais e /ou leis; todos devem ter o direito efetivo de participação na produção e/ou emissão das mensagens. Dornelles (2007, p. 8) nos diz que “teoricamente, toda comunicação deveria ser horizontal, mas nem sempre este processo acontece na prática”; o que temos, na realidade, é uma multiplicidade de exemplos de comunicação vertical. Sobre esse tipo de comunicação, Beltrán (1981, p. 72) explica que, [...] o que ocorre seguidamente sob o nome de comunicação é pouco mais do que um monólogo dominante em benefício do iniciador do processo. A retroalimentação não é empregada para proporcionar a oportunidade de um diálogo autêntico. [...] Tão vertical, assimétrica e quase autoritária relação social constitui, no meu modo de ver, uma forma antidemocrática de comunicação [...]. Devemos ser capazes de construir um novo conceito de comunicação – um modelo humanizado, não elitista, democrático e não-mercantilista. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 832 Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático Amanda Medeiros Downing (2004, p. 30), por sua vez, apresenta um ponto de vista diferente sobre comunicação vertical e horizontal. Para o pesquisador, qualquer proposta de comunicação radical alternativa4, pode e deve incluir ambos os propósitos, vertical e horizontal; essa espécie de mídia, portanto, serviria a duas finalidades: “a) expressar verticalmente, a partir dos setores subordinados, oposição direta à estrutura de poder e seu comportamento; b) obter, horizontalmente, apoio e solidariedade e construir uma rede de relações contrária às políticas públicas ou mesmo à própria sobrevivência da estrutura de poder” Face ao exposto, podemos afirmar que a comunicação alternativa contra-hegemônica segue com a premissa de ser feita por pessoas, e não sobre pessoas ou grupos socialmente organizados, e, para tanto, precisa verdadeiramente estruturar-se no tripé “participação”, “diálogo” e “horizontalidade”. Temos ainda que são muitas as possibilidades abertas junto à ideia de ser alternativo, logo, alcançar uma conceituação precisa permanece sendo um desafio aos estudiosos da área. Em sua tese, Veloso (2014) debate esse termo e nos diz que, apesar dos estudos já existentes em torno dele, não é possível dar ao alternativo uma definição estável, uma vez que o conceito é bastante cambiante. Para falar com pertinência de comunicação alternativa, seria necessário, pois, tratar de elementos alternativos na comunicação, como buscamos fazer no decorrer desta discussão teórica. Segundo a pesquisadora, Nesta perspectiva, ao buscar rotular quais meios seriam alternativos – e contrahegemônicos –, Grinberg, (1987, p. 30, apud VELOSO, 2014, p. 34) sintetiza seu pensamento afirmando que é alternativo todo meio que, num contexto onde setores privilegiados detêm o poder político, econômico e cultural, representa uma “opção frente ao discurso dominante”. Chegamos, pois, a outro ponto acerca da conceituação desse tipo de veículo. Por vezes, falhamos ao utilizar como sinônimas palavras que, no contexto midiático, podem indicar meios de comunicação diferentes. O fato de ser alternativo, não garante, por si só, que um veículo seja considerado contra-hegemônico: um veículo “X” pode ser alternativo a determinado canal de televisão da mídia hegemônica simplesmente por não ter a estrutura necessária para funcionar nos mesmos moldes desta televisão; todavia, seus princípios são os mesmos, assim como seus objetivos – resguardando as proporcionalidades de cada um desses meios. Downing (2004), em um longo estudo acerca da mídia alternativa, discute a definição do conceito, e opta por chamá-la de “mídia alternativa radical”. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que falar simplesmente em mídia alternativa é quase um paradoxismo. Qualquer coisa, em algum ponto, é alternativa a alguma outra. [...] Até certo ponto5, a designação extra de radical ajuda a firmar a definição de mídia alternativa. [...] O contexto e as consequências devem ser nossos principais guias ao que pode ou não pode ser definido como mídia radical alternativa. (DOWNING, 2004, p. 27-28) Ainda conforme Downing (2004, p. 28), a imprensa radical alternativa “constitui a forma mais atuante da audiência ativa e expressa as tendências de oposição, abertas e veladas, nas culturas populares”. 4. Mais adiante discutiremos tal conceito. 5. Em sua obra “Mídia Radial: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais” Downing explica ponto a ponto, dez motivos pelos quais mesmo a designação radical precisa ser tomada com cautela. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 833 Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático Amanda Medeiros A COMUNICAÇÃO CIDADà NA MÍDIA ALTERNATIVA E CONTRA-HEGEMÔNICA: PERSPECTIVAS DE UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO Diantes das discussões conceituais já apresentadas, podemos agora, pois, falar da comunicação cidadã como uma das características – e mesmo finalidades – dos meios alternativos e contra-hegemônicos de comunicação. Trata-se, como veremos mais adiante, de uma ideia diretamente ligada à perspectiva de uma comunicação mais democrática. A ideia de “cidadania comunicativa” é concebida em termos de possibilidades de democratização do acesso e participação da sociedade na propriedade, gestão, produção e distribuição dos recursos comunicacionais (COGO, 2012). Mata (2006, p. 13) acrescenta que cidadania comunicativa implica no “6desenvolvimento de práticas tendentes à garantir os direitos no campo específico da comunicação”. O exercício da cidadania é um processo de aprendizagem com o qual contribuem diferentes instituições presentes na sociedade, entre elas os meios de comunicação. A partir de um meio de comunicação sempre se constrói cidadania: pode-se ajudar no fortalecimento de uma cidadania ativa e participativa, ou pode-se fomentar uma cidadania passiva vinculada unicamente com o consumo7. (LAMAS, 1998, p. 224, apud CAMACHO, 2011, p. 151). Lima (2009, p. 01) acredita que o direito à comunicação abre perspectivas imensas do ponto de vista de garantias ao cidadão; sendo assim, democratizar a comunicação passa a ser, portanto, “garantir a circulação da diversidade e da pluralidade de ideias existentes na sociedade, isto é, a universalidade da liberdade de expressão individual e coletiva”. Ainda segundo o mesmo autor, a comunicação perpassa todas as três dimensões da cidadania8, constituindo-se, ao mesmo tempo, em direito civil — “liberdade individual de expressão”; em direito político — “através do direito à comunicação, que vai além do direito de ser informado”; e em direito social — “através do direito a uma política pública democrática de comunicação que assegure pluralidade e diversidade na representação de ideias e opiniões” (LIMA, 2006, p. 11). Para que se alcance o processo pleno de cidadania sob a lógica comunicativa não basta que o sujeito social tenha o direito de ser informado, mas também de informar e buscar informações e bens culturais. Tais direitos esbarram na lógica de mercado que, para Mata (2006), se continuar como único regulador dos meios de comunicação, poucas serão as chances para pensarmos um exercício efetivo de cidadania. Em uma relação ideal entre os meios de comunicação e o exercício pleno da cidadania, esses precisam ser tomados como espaços estratégicos “para a expressão, mobilização, transformação sociocultural e política e para a produção de igualdade em que a comunicação midiática não se restringe a conteúdos e efeitos, mas a processos que possibilitam usos dos recursos midiáticos por parte de diferentes setores sociais”. (MATA, 2006 & COGO, 2010, apud COGO, 2012). Ainda segundo Mata (2006, p. 13), a ideia de cidadania comunicativa se firma no 6. Texto original: “desarrollo de prácticas tendientes a garantizar los derechos en el campo específico de la comunicación” 7. Texto original: “El ejercicio de ciudadanía es un proceso de aprendizaje al que contribuyen las diferentes instituciones presentes en la sociedad, entre ellas los medios de comunicación. Desde un medio de comunicación siempre se construye ciudadanía: se puede ayudar al fortalecimiento de una ciudadanía activa y participativa o se puede fomentar una ciudadanía pasiva vinculada únicamente con el consume”. 8. Propostas por T. H. Marshall em 1949 Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 834 Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático Amanda Medeiros [...] reconhecimento da capacidade de ser sujeito de direito e dever no terreno da comunicação pública, e o exercício desse direito. Trata-se de uma noção completa que envolve várias dimenões e que reconhece a condição de públicos dos meios que os indivíduos têm nas sociedades midiatizada9. Face ao exposto, é lícito afirmar que mesmo com as TICs propiciando atualmente a multiplicação dos espaços democráticos de comunicação, são muitos os entraves que nos são apresentados até que possamos alcançar uma comunicação cidadã efetiva, uma vez que “a falta de pluralidade (concentração da mídia em poucos grupos privados) e de diversidade, ou seja, de conteúdos ou programas que contemplem os distintos interesses da sociedade é um problema histórico do contexto comunicacional brasileiro” (LACERDA, 2013, p. 6). Neste sentido, cabe aos meios alternativos e contra-hegemônicos o desafio de buscar uma comunicação cidadã plena, marcada, principalmente, pela democratização dos espaços comunicativos. CONSIDERAÇÕES FINAIS O desafio de ser alternativo e contra-hegemônico já foi uma tarefa que exigia muito mais ousadia por parte dos veículos de comunicação. Hoje, com a presença marcante das TICs os espaços se ampliaram e, consequentemente, as possibilidades de enfrentar a mídia hegemônica se multiplicaram. Sendo assim, temos que o poder dos meios alternativos e contra-hegemônicos cada vez mais legitima-se através de suas ações – democráticas – de disseminação da contra-informação. Se antes esse poder não era um preocupação para a mídia hegemônica, hoje trata-se de uma questão que não só não pode ser deixada de lado, como em muito mexe com as estratégia e táticas dos que fazem os grupos dominantes no cenário midiático. É investindo-se desse poder que os meios alternativos e contra-hegemônicos de comunicação ocupam novos espaços na sociedade ao levr à cabo uma proposta, como visto, de cidadania comunicativa. Moraes (2010, p. 72) ressalta que, “para a contraposição ao poderio midiático, todos os recursos táticos e canais contra-hegemônicos devem ser mobilizados e aproveitados. As forças renovadoras não podem se dar o luxo de eleger uma única vertente de expressão”. Maia (2008, p. 278), por sua vez, diz que é preciso levar em consideração que, para fortalecer a democracia, são necessárias “não apenas estruturas comunicacionais eficientes, ou instituições propícias à participação, mas também devem estar presentes a motivação correta, o interesse e a disponibilidade dos próprios cidadãos para engajar-se em debates”. Por fim, vale salientar que ser alernativo não basta quando o intuito é se estruturar em uma contra-mídia-hegemônica (PAIVA, 2008). Portanto, para alcançar tal finalidade e seguir, então, norteado pela comunicação cidadã, precisamos que, em um mesmo veículo midiático, confundam-se as ideias de alternativo e contra-hegemônico em suas essências. 9. Texto original: “[...] reconocimiento de la capacidad de ser sujeto de derecho y demanda en el terreno de la comunicación pública, y el ejercicio de ese derecho. Se trata de una noción compleja que envuelve varias dimensiones y que reconoce la condición de público de los medios que los individuos tenemos en las sociedades mediatizadas”. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 835 Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático Amanda Medeiros REFERÊNCIAS BELTRÁN, Luiz Ramiro. (1981). Adeus a Aristóteles: Comunicação horizontal. In: Comunicação & Sociedade. São Bernardo do Campo, IMS, ano III, nº 6, set. CAMACHO AZURDUY, C. A. (2011). Propuesta de un modelo de comunicación masiva para la construcción de ciudadanía en América Latina. In: PERUZZO, C. M. K.; TUFTE, T.; CASANOVA, J. V. Trazos de otra comunicación en América Latina: prácticas comunitarias, teorías y demandas sociales. Barranquilla-Colombia: Editorial Universidad del Norte, p. 142-163. COUTINHO, Eduardo Granja. (2005) Os sentidos da tradição. 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A partir das diversas ênfases teóricas empregadas para definir o conceito de capital social e das teorias sobre cooperativismo, foi feita uma análise comparativa com o objetivo de identificar pontos de convergência, a fim de oferecer mais subsídios que possam contribuir com a necessidade de engajamento entre cooperados e cooperativa (governança), conforme apontado por pesquisadores e pelas entidades representativas de classe da área. Os resultados demonstram que capital social está enraizado nos princípios e legislação cooperativistas, mas nem por isso pode-se dizer que tenham capital social alto. Apontam a necessidade de criar caminhos para uma comunicação voltada ao entendimento (não ao convencimento), capaz de gerar oportunidade para que os cooperados/associados reflitam não apenas sobre suas ideias, mas também sobre as dos seus pares. Entretanto, são resultados que não encerram a questão. Ao contrário, identificam a necessidade de se investir em novos estudos sobre o tema, principalmente considerando a questão dos valores cooperativistas, identificados como uma fonte de vantagem competitiva neste modelo organizacional. Palavras-Chave: Capital Social; Comunicação; Cooperativismo; Valores. Abstract: The proposal of this paper is to make a theoretical analysis on social capital and communication, specifically in cooperative organizations. Departing from diverse theoretical emphasis used to define the concept of social capital, and from the theories on cooperatives, a comparative analysis is done aiming at to identify points of convergence, in order to offer subsidies that can contribute to fill the need of engagement of members of cooperative organizations and governance of the organizations, as indicated by researchers and associations that represent those organizations. Our findings show that although social capital has roots in the cooperatives principles and legislation, it is not possible to say that cooperatives have a strong social capital. It is necessary to create new paths to a communication oriented to understanding (not convincement), and able to generate opportunities for the associates of cooperatives to make a reflection about their own ideas and of their peers as well. But those findings do not put an end to the problem. On the contrary, they show the need to invest in new studies on the subject, specially in the question of cooperative values, that are seen as a source of competitive advantage in this organizational model. Keywords: Social Capital; Communication; Cooperatives; Values 1. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Comunicação da Universidade de São Paulo. [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 838 Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas Maura Padula INTRODUÇÃO ESDE OS tempos dos pioneiros de Rochdale (Inglaterra)2, em 1844, os sistemas D cooperativos contribuem de forma significativa para o desenvolvimento econômico e social em muitos países. Hoje, cerca de 1 bilhão de pessoas em mais de 100 países estão vinculadas a cooperativas, com a geração de mais de 100 milhões de empregos (ACI, 2014). Dados publicados no World Co-operative Monitor (2014, p. 15) apontam que o setor movimentou, em 2012, USD 2,603.02 bi3. No Brasil, cerca de 33 milhões de pessoas estão envolvidas direta ou indiretamente no cooperativismo, segundo a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). Existem mais de 6,6 mil cooperativas no país, com 11 milhões de cooperados, divididos em 13 ramos. Em 2013, o sistema cooperativo injetou R$ 8 bilhões na economia, apenas com salários e benefícios ao trabalhador e as exportações chegaram a US$ 6 bilhões. O número de empregos diretos chegou a 321,4 mil. (Relatório OCB, 2013). Apesar de sua importância econômica e social, o cooperativismo vive um conflito intrínseco de sua estrutura, com dimensões distintas, dependendo do ramo de atividade em que atua e das características específicas de seus sócios, incluindo, aqui, cultura, hábitos e costumes (PADULA, 2006, p.2). Democracia, solidariedade e igualdade são princípios da gestão cooperativista, que se preocupa em manter o foco no homem e não no capital. Entretanto, é um modelos organizacional que frequentemente expõe o associado/cooperado a uma dicotomia de papéis enquanto prestador de serviços, e/ ou como cliente e/ou como dono do negócio ou, ainda, quando eleito pelos seus pares, como dirigente/gestor, situações que propiciam o conflito. Neste cenário, Davis e Bialoskorsky Neto (2010) desenvolveram estudo sobre governança e a gestão do capital social em cooperativas e alertaram que a participação dos associados na gestão pode ser limitada e complexa, mas que ao não dar atenção para tal questão as cooperativas comprometem uma importante vantagem competitiva. Mas a forma de fazê-lo ainda é um desafio. (...) está claro que há a necessidade de novas abordagens para incentivar o envolvimento dos membros, não se sugere que sejam abolidas as oportunidades de participação tradicionais e democráticas, em que os cooperados frequentam as reuniões e nas quais os gestores têm a obrigação de apresentar relatórios. Os processos democráticos de responsabilização institucional e de prestação de contas devem ser preservados, mas deve-se reconhecer que, por si só, eles não são suficientes. (DAVIS & BIALOSKORSKY NETO, 2010, 4) Os autores discutem formas de governança corporativa em cooperativas e defendem que os gestores devem identificar as necessidades dos associados e aumentar o envolvimento desses nas questões de suas cooperativas, pois isso certamente proporcionará melhor eficiência econômica da organização. Ao final, propõem um processo de Gestão Cooperativista de Capital Social ou “Cooperative Social Capital Management-CSCM”, aplicando esse conceito às cooperativas brasileiras. 2. Há relatos de experiências cooperativistas anteriores, mas a Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale (UK) foi a primeira que estruturou um estatuto para o seu funcionamento (SILVA FILHO, 2001; MARASCHIN, 2004). 3. Valores que incluem as cooperativas de crédito e os prêmios das cooperativas de seguros e mutualidades. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 839 Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas Maura Padula A proposta deste ensaio é avançar neste tema, aprofundando os estudos sobre capital social e comunicação em cooperativas, a fim de oferecer mais subsídios que possam atender às demandas reais do cooperativismo em todo o mundo, conforme apontado pelos autores. Verificará, também, junto às orientações legais cooperativistas, os pontos de intersecção que justifiquem (ou não) maior investimento dos gestores cooperativistas em estudos sobre capital social, comunicação e esfera pública. O uso do termo esfera pública especificamente neste estudo, logicamente, restringe-se a rede social de abrangência das respectivas cooperativas, visando ao engajamento dos associados, conforme proposto por Davis e Bialoskorky Neto (2010). Trata-se de um estudo teórico e a análise comparativa foi feita com base na bibliografia sobre capital social e comunicação, mais especificamente, a partir da obra de Matos (2009), e as Diretrizes para a Legislação Cooperativista - 3ª Edição - (2012), desenvolvidas pela Organização Internacional do Trabalho, a pedido da Aliança Cooperativista Internacional (ACI). Para uma verificação mais localizada em nível de Brasil, foram consultadas também as legislações locais: Lei nº 5.764, de 16.12.71; Lei nº 7.231, de 23.10.84; Decreto 90.393, de 30.10.84 e Resoluções do Conselho Nacional de Cooperativismo. CAPITAL SOCIAL E ENGAJAMENTO Os estudos em torno do conceito e aplicação de “capital social” tem merecido a atenção de diversos pesquisadores no campo das ciências sociais. Prates, Carvalhais e Silva (2007, p. 47) propuseram-se a discutir “a questão da ambiguidade teórica do conceito de capital social na sociologia contemporânea” e afirmam que “o tema vem sendo discutido tanto na literatura sociológica (Bordieu, 1983; Coleman, 1990; Putnam, 1996; Portes, 1998; Fukyama, 2001) como na econômica (Robison et al., 2000; Arrow, 2001)”. Os autores destacam que dois conceitos ganharam visibilidade nos últimos anos: o de capital social e o de rede social e limitam o seu estudo aos conceitos de redes, de Gronevetter (1973), que “teve maior impacto e visibilidade teórica na sociologia contemporânea” (Prates et al, 2007, p. 47). Na exploração das definições sobre capital social o texto cita dois grandes conjuntos de conceitos: o primeiro em torno de uma dimensão individual-utilitária – uma relação entre pessoas ou grupos - (Robison, 2000) e o segundo, em uma definição culturalista (Putnam, 1996), como “práticas institucionalizadas de cultura cívica” (p.49). Na visão de Prates et al (2007, p.49) a literatura pode ser diferenciada pelo tipo de ênfase empregada para definir capital social e, assim, dividem em três tradições: 1. Individualista: baseada em Bourdieu, na qual “a participação nas redes sociais constitui um recurso potencial de poder, na medida em que possibilita acesso diferenciado aos recursos existentes nas redes para a realização de seus interesses individuais” (Prates et al, 2007. p. 49). 2. Tradição normativo-associativista: que pautada em Fukuyama (2001) e Putnam (1993), “enfatizam o papel de valores e normas como definidores de atitudes voltadas para o interesse coletivo, para a “coisa pública”, e funcionam como predisposições comportamentais que minimizam os custos da ação coletiva ou do associativismo”. (p.49). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 840 Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas Maura Padula 3. Tradição interacionais – baseada em Coleman (1990), que segundo os autores, cria um conceito genuíno de capital social com ênfase nas relações sociais. Matos (2009, p, 35) lembra que a primeira análise sistemática do conceito de capital social foi feita por Bourdieu (1980), para quem “o capital social descreve circunstâncias nas quais os indivíduos podem se valer de sua participação em grupo e redes para atingir metas e benefícios”. Nesta ótica, capital social seria algo a ser apropriados pelos indivíduos. Já Coleman propõe que o capital social deve ser concebido como um bem público e que “não está situado nem nos indivíduos nem nos meios de produção, mas nas redes sociais densas e fechadas que garantem a confiança nas estruturas sociais e permitem a geração de solidariedade” (COLEMAN, 1990, p. 302, apud MATOS, 2009, p. 36), indo ao encontro da tradição interativa apontada por Prates et al, (2007). Apoiando-se em Granovetter (1983), Coleman definiu as distinções entre capital físico, capital humano e capital social, sendo esse último constituído por três características: confiança entre os membros; gerar e colocar em funcionamento os fluxos de informações; e as normas que regem o processo. A confiança também é defendida por Putnam como elemento facilitador de cooperação. Mediante a importância dada a essa questão, Reis (2003) desenvolveu estudo no qual buscou enfocar os significados teóricos e empíricos dos conceitos de capital social e confiança e expõe o quão imaturo ainda é o tema. Destaca o papel perigoso da “confiança” neste processo, pois a precisão analítica do lugar da confiança no argumento pode ser comprometida pela polissemia em que se enreda. E concluí: “Será crucial, talvez, para a preservação de seu papel em uma teoria empírica da democracia, mostrarmo-nos capazes de traduzir o que esperamos da confiança em padrões comportamentais (grifo do autor) observáveis” (REIS, 2003, p.47) Há, portanto, uma linha de pensadores que considera os laços sociais na construção do capital social, que podem ser laços fortes – marcados pela proximidade, intimidade e intenção de se construir e manter vínculos – ou fracos, caracterizados pelas relações eventuais, sem intimidade (Granovetter, 1984 e Lin, Burt e Cook, 2011, apud Matos, 2009). De acordo com pesquisa de Prates et al (2007), há uma associação entre a existência de laços fracos e alto capital social na determinação da eficácia coletiva. Há, ainda, os laços multiplexos, que incluem a interação em vários tipos de relações sociais: trabalho, social, lazer etc. Para Recuero (2005) a interação social é uma ação que tem reflexo comunicativo para o indivíduo e seus pares e não necessariamente há a necessidade de interação. Como exemplo cita os laços associativos, em que interação seria de outra ordem, sendo necessário apenas um sentimento de pertencimento. Entretanto, estudos mostram que a interação social que gera o capital social tem perdido força. Nos EUA, por exemplo, houve queda na participação dos americanos nas eleições, nas ações religiosas, nas associações de pais e mestres das escolas, entre outros. Entre as causas, aponta-se a mídia, pois as pessoas passam a dedicar horas de seu tempo para assistir TV e deixam de interagir. Há autores que rebatem a crítica, pois não há evidências de uma relação negativa entre a ação de usar as mídias para buscar informações políticas e o interesse político. Ao contrário, vê-se uma relação positiva. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 841 Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas Maura Padula Enfim, nota-se que capital social está intimamente relacionado à interatividade, comunicação e opinião pública. O engajamento depende da confiança, formada principalmente pela opinião favorável à causa. E o princípio básico da opinião pública é que exista o debate a partir da disseminação das informações. A esse tipo de conversação, Matos (2009) chama de “conversação cívica” – diferente da conversação social e conversação política - caracterizada por uma comunicação em busca do entendimento. (...) é preciso valorizar as conversações que, cotidianamente, auxiliam os indivíduos a interpretar coletivamente certos problemas, orientando suas forças para que visem à busca do entendimento e da intercompreensão. (....) a conversação cívica cotidiana entre amigos, familiares, vizinhos, conhecidos, colegas de trabalho e mesmo desconhecidos, sobre questões de interesse público, prepara o caminho para seu engajamento em processos decisórios formais e normativos” (MATOS, 2009, p. 87) Acreditamos que o mesmo aconteça em uma estrutura cooperativista. Entretanto, como alertam Rojas (2008,) e Kim e Kim (2008) (apud Matos, 2009), a conversação deve ser voltada para o entendimento e não o convencimento. Matos(2009) adverte que o aumento de exposições de ideias geradas pela conversação aumenta as chances de integração e confiança entre as pessoas. Mas destaca que algumas interações são mais cooperativas e outras mais conflituosas. Algumas formas de engajamento e de participação ampliam a cooperação e outras simplesmente a destrói. Apesar das ressalvas, para a autora, nas associações, a conversação cívica é fundamental, pois por meio dela os participantes podem expressar suas experiências, refletir sobre elas e também entrar em contato com um rol maior de opiniões e entendimentos. E o fato positivo é que ter a própria opinião considerada confere ao indivíduo um sentimento de “eficácia política”, ou seja, a percepção de que seu ponto de vista pode fazer a diferença (Lane e Sears, 1996; Noris, 2000 apud Matos, 2009, p. 97) COOPERATIVISMO: PRINCÍPIOS E DESAFIOS Os princípios cooperativos, criados desde o tempo dos pioneiros de Rochdale, são as linhas orientadoras pelas quais as cooperativas levam os seus valores à prática. Em 1937, foram adotados pela Aliança Cooperativista Internacional (ACI). Na época, as regras eram: 1º - Livre adesão; 2º - Controle democrático: uma pessoa corresponde a um voto; 3º - Retorno de excedentes em proporção às compras; 4º - Juros limitados sobre o capital; 5º - Neutralidade política e religiosa; 6º - Vendas à vista: preocupação pela boa gestão; 7º - Educação contínua dos sócios, custeada por uma pequena parte do saldo anual. (MAURER, 1966) Para promover o fortalecimento do cooperativismo na economia mundial, a ACI passou a fazer revisões nestes princípios: em 1966 (Congresso de Viena), 1988, sendo concluída nos Congressos de Tóquio (1992) e Manchester (1995). Atualmente, os princípios cooperativistas, apresentados no Quadro 1, regem as cooperativas em todo o mundo. Dependendo da natureza da cooperativa um ou outro item é mais valorizado. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 842 Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas Maura Padula Quadro 1. Princípios Cooperativistas Princípios Entendimento 1º - Adesão voluntária e livre. Liberdade na adesão. Organizações livres e abertas às pessoas que tenham afinidade à proposta. Não permite discriminações de sexo, sociais, raciais, políticas e religiosas. 2º - Gestão democrática e livre. Um homem, um voto. Grandes decisões tomadas por todos, em assembleias, que elegem também os membros do grupo que ficarão à frente da administração. 3º - Participação econômica dos membros. Os membros contribuem equitativamente para o capital das suas cooperativas e controlam-no democraticamente. A remuneração está relacionada à produtividade e as sobras ou perdas são destinadas conforme decisão de assembleia. 4º - Autonomia e independência. As cooperativas são organizações autônomas, de ajuda mútua, controladas por seus membros. 5º - Educação, formação e informação. Trabalham a educação e formação dos seus membros, dos representantes eleitos e dos trabalhadores e têm a missão de difundir a filosofia cooperativista. 6º - Intercooperação. Valorizam o movimento cooperativista, trabalhando em conjunto, em estruturas locais, regionais, nacionais e internacionais. 7º - Interesse pela comunidade. As cooperativas trabalham para o desenvolvimento sustentavel das suas comunidades por meio de políticas aprovadas pelos membros. Fonte: Padula, 2006, p.12. Adaptado da OCB (www.ocb.org.br). Segundo a OCB, [...] as cooperativas baseiam-se em valores de ajuda mútua e responsabilidade, democracia, igualdade, equidade e solidariedade. Na tradição dos seus fundadores, os membros das cooperativas acreditam nos valores éticos da honestidade, transparência, responsabilidade social e preocupação pelo seu semelhante (www.ocb.com.br). A importância do cooperativismo para mundo fica clara nos número: envolvimento de 1 bilhão de pessoas em mais de 100 países; geração de mais de 100 milhões de empregos; movimentação de USD 2,603.02 bi4 em 2012. (ACI, 2014). E também faz a diferença quando promove a inclusão de pessoas que, pelas normas do capitalismo liberal, estariam excluídas ou à margem legal em suas atividades, como ressalta um trecho das Diretrizes para a Legislação Cooperativista - 3ª Edição - (2012), desenvolvido pela Organização Internacional do Trabalho, a pedido da Aliança Cooperativista Internacional (ACI). Durante os últimos 160 anos, as cooperativas têm provado ser um meio para os atores da economia informal se juntarem à economia formal em muitos países ao redor do mundo. Políticas cooperativas e legislação facilitam o reconhecimento das cooperativas como pessoas jurídicas legais, com os mesmos direitos e obrigações das outras entidades empresariais legalmente reconhecidas. Uma legislação cooperativista adequada - incluindo a tributação de cooperativas, que leva em conta a diferença entre lucro e excedente, a lógica do pagamento dos sistemas pró-rata entre os membros e a criação de fundos de reserva indivisíveis, bem como a aplicação de normas contábeis específicas para cooperativas -, são medidas 4. Valores que incluem as cooperativas de crédito e os prêmios das cooperativas de seguros e mutualidades. Dados publicados no World Co-operative Monitor (2014, p. 15) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 843 Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas Maura Padula que percorrem um longo caminho no sentido de deter os atores da economia informal de evasões fiscais e também evitar que paguem contribuições para esquemas de segurança social. (tradução nossa). (HENRŸ, 2012, p 43) 5 Com todos os benefícios que o cooperativismo traz para a sociedade, trata-se de um modelo organizacional que expõe os seus associados a uma dicotomia de papeis, enquanto fornecedores de bens e serviços e, também, proprietários do negócio. Para se entender o processo, é preciso esclarecer o modus operandi do sistema cooperativo, no qual o capital é dividido em cotas-parte, de igual valor econômico, que cada cooperado adquiri no momento de adesão à cooperativa, com direito a uma única cota, a fim de garantir o princípio da democracia, ou seja, a igualdade de participação entre os associados. A partir daí, a renda de cada cooperado está relacionada ao desenvolvimento de seu próprio produto, ou serviço junto à cooperativa, e não à “sobra”6, dando margem ao surgimento de interesses individuais em detrimento do coletivo. Assim, como pode uma estrutura coletivista ter valores individualistas? São questões que demandam debates por serem fontes constantes de conflito entre gestores e associados. Outro desafio está relacionado às legislações (ou a falta delas), que permitem desvios de governança – principalmente relacionado às tributações - e expõem negativamente o sistema cooperativo. Em função disso, viu-se criar, nas últimas décadas do século 20, em determinados países, leis que apoiam ou impedem o desenvolvimento de cooperativas. Foi para reverter esse processo que a Organização Mundial do Trabalho (OIT) criou as Diretrizes para a Legislação Cooperativista, em 1995, trabalho que já se encontra em sua 3ª Edição. Sua função é orientar e respaldar as cooperativas, enquanto responde aos desafios de uma concorrência cada vez mais dura entre as empresas em todos os níveis. Buscando especificamente as orientações do documento para relacionamentos entre os sócios (item 4,8 – Obrigações e Diretos dos membros – p. 75), destacam-se, primeiramente, os princípios cooperativistas, já descritos neste artigo (HENRŸ, 2012, p 75). O autor destaca que a sequência pela qual as questões são tratadas na lei não é indicativa de qualquer ranking, mas reflete o peso dado a um item específico. E assim justifica a ênfase dada nas Diretrizes às obrigações dos sócios, justificando que frequentemente os associados querem discutir os benefícios. Segundo ele, o sistema cooperativo está associado a benefícios e a legislação cooperativista e leis subsidiárias devem assegurar que sejam respeitadas as regras, mesmo em casos em que as normas sociais gerais tendam a substituir esses direitos e obrigações. 5. For the past 160 years, cooperatives have proven to be a means for informal economy actors to join the formal economy in many countries around the world. Cooperative policy and law facilitate the recognition of cooperatives as legal persons with the same rights and obligations as other legally recognized business entities. An adequate cooperative legislation, including taxation of cooperatives, which takes into account the difference between profit and surplus, the rationale of patronage refund payments to members and the setting up of indivisible reserve funds, as well as the application of cooperative-specific accounting standards, are all measures which go a long way towards deterring informal economy actors from tax evasion and from avoiding paying contributions to social security schemes. 6. “Sobra” é o termo usado pelo sistema cooperativo para identificar os resultados operacionais da organização, que é distribuída aos cooperados, ao final de cada exercício fiscal. Quanto é negativo é chamado de “perdas”, que também são rateadas entre os associados. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 844 Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas Maura Padula Fica clara na legislação que a participação efetiva do cooperado em sua cooperativa é mais que um direito: é um compromisso (p. 76). Por pertencer a uma cooperativa, os membros se comprometem a: • respeitar os estatutos, as decisões tomadas pela assembleia geral, independentemente se votaram em sua adoção ou não, bem como as decisões tomadas pela administração, que estejam em consonância com as decisões da assembleia geral. • abster-se de qualquer atividade prejudicial para o objetivo da sua cooperativa. Frequentemente, a participação em várias cooperativas com o mesmo objetivo é considerada um prejuízo para o sistema cooperativo. No entanto, isso não precisa ser o caso. • participar das atividades da cooperativa. Esta obrigação não pode, contudo, ser forçada. (Grifo nosso. Tradução nossa.)7 Complementando o item acima, o documento esclarece, em “outras obrigações”, que é possível prever em estatuto a obrigatoriedade dos cooperados no uso de, pelo menos, os serviços ou instalações de sua cooperativa, mas não é recomendado. Apesar de favorecer, em um primeiro momento, o desenvolvimento da organização, tal regra pode influenciar negativamente a competitividade da cooperativa e, pior, o direito da concorrência. E assim, sugere que ao invés de se impor por meio de obrigações legais, pode-se considerar que os membros têm o dever moral de trabalhar com sua cooperativa. Entretanto, ressalta que cabe aos administradores oferecerem serviços suficientemente atrativos para agregar os seus membros. Surge, aqui, mais uma necessidade fundamental de conversação “cívica” para a solução dos desafios e impasses. Falando dos direitos, as Diretrizes destacam o ambiente democrático de expressão, que marca o cooperativismo: Cada cooperado tem o direito de: • pedir pelos serviços que constituem o objetivo da cooperativa • pedir educação e formação pela cooperativa de acordo com os estatutos ou as decisões da assembleia geral • utilizar as instalações e serviços da cooperativa • participar da assembleia geral, propor moções e votar • eleger ou ser eleito para um cargo na cooperativa ou em uma estrutura de nível superior a qual sua cooperativa seja afiliada • obter, a qualquer tempo, informações por parte dos responsáveis eleitos sobre a situação da cooperativa • ter acesso aos livros e registros inspecionados pelo conselho fiscal, se houver • em conjunto (número necessário para ser determinado) os associados podem também convocar uma assembleia geral e/ou ter uma pergunta inscrita na ordem do dia de uma assembleia geral e • pedir uma auditoria (adicional) (Tradução nossa). (HENRŸ, 2012, p 77.).8 7. By belonging to a cooperative, members commit themselves to: • respect the bylaws/statutes, the decisions taken by the general assembly, whether they voted for their adoption or not, as well as the decisions taken by the management which are in line with the decisions of the general assembly; • abstain from any activity detrimental to the objective of their cooperative. Frequently, membership in several cooperatives having the same objective is considered as harming the cooperative(s). However, this need not be the case; • participate in the activities of the cooperative. This obligation may not, however, be enforced. 8. Each member has the right to: • ask for those services which form the objective of the cooperative; • ask for education and training by the cooperative according to the bylaws/statutes or the decisions of the general Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 845 Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas Maura Padula No Brasil, a legislação que rege o cooperativismo acompanha as orientações gerais da ACI. Em termos regionais, assim como na Europa (Statute for a European Cooperative Society - SCE), o Mercosul possui, desde 2009, um estatuto cooperativo para orientar os seus membros associados nas relações transnacionais. Porém, sua aplicabilidade depende do seu reconhecimento da legislação local. No Mercosul, apenas o Uruguai adotou o documento. Assim, nota-se que teoricamente, em termos legais, o processo democrático e de participação está garantido, mas não é o que se observa em termos de mercado. Para Davis e Bialoskorky Neto (2010), na era da administração voltada para valores e em ambiente de altíssima competição, o compartilhamento de valores é um elemento vital para engajar os trabalhadores e, no caso das cooperativas, os associados, no processo decisório. Pode-se supor que as cooperativas proporcionem, com maior facilidade, esse ambiente, mas, contraditoriamente, nem sempre isso acontece. Contudo, paradoxalmente, em grande medida, as próprias cooperativas têm falhado na utilização dinâmica de seus valores centrados no ser humano e em seus processos de comunicação com seus membros, clientes e empregados. Isso ocorre porque o movimento tem dado pouca atenção ao que esses valores representam de fato para a gestão. Parece que a literatura cooperativista não ajuda a sanar esse problema porque enfatiza demasiadamente a responsabilidade democrática no estabelecimento de políticas e a responsabilidade administrativa na execução das políticas traçadas. (DAVIS e BIALOSKORKY NETO, 2010, p.12) Para os autores, o problema pode estar exatamente na literatura cooperativista e, principalmente, responsabilizam a gestão, que acaba por provocar o afastamento dos seus membros. Na verdade, a prática da gestão cooperativista tem sido determinada por ideias administrativas inadequadas que acabaram criando uma falta de visão por parte da gestão nas sociedades cooperativistas. Provocaram também o afastamento dos membros dos verdadeiros processos de tomada de decisões no interior de suas cooperativas. A ideia de que a democracia representa a responsabilização institucional ao invés da participação dos membros acaba por deixá-los sem influência e os gestores sem informação. O resultado é uma divisão criada por suspeitas mútuas que impedem a união da comunidade de trabalho para atender às necessidades mais gerais da sociedade para o benefício de todos. (DAVIS e BIALOSKORKY NETO, 2010, p.12) COOPERATIVISMO, CAPITAL SOCIAL E COMUNICAÇÃO Parece-nos claro que os benefícios que o cooperativismo traz para a sociedade são inquestionáveis. Tanto que a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu o ano de 2012 como o “Ano Internacional das Cooperativas”, tendo como tema central assembly; • use the installations and services of the cooperative; • participate in the general assembly, propose a motion therein, and vote; • elect or be elected for an office in the cooperative or in that of a higher level structure to which his cooperative is affiliated; • obtain at all reasonable times from the elected responsible persons in the cooperative information on the situation of the cooperative and; • have the books and registers inspected by the supervisory council, if any; • jointly (necessary number to be determined) the members can also convene a general assembly and/or have a question inscribed on the agenda of a general assembly and; • ask for an (additional) audit. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 846 Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas Maura Padula “Empresas cooperativas constroem um mundo melhor”. Durante as comemorações lançaram projetos para uma década cooperativista, com atividades até 2020. Entre os grandes desafios para a década, segundo o relatório desenvolvido pelo Comitê Gestor da ACI que deu subsídios para a proposição do plano de ação, estão a necessidade de elevar a participação entre cooperados e governança a um nível maior de envolvimento e a construção de uma mensagem capaz de garantir a identidade cooperativa. Nota-se que o capital social é o grande diferencial e maior vantagem competitiva neste modelo organizacional. Atualmente, também tem sido uma das maiores preocupações. Pelo tripé confiança, informações e normas resumem-se os desafios a serem encarados pelos líderes cooperativistas. Daves e Bialoskorsky Neto (2010) defendem a necessidade de se consolidar uma Gestão Baseada em Valores em Cooperativas, a qual chamaram de Gestão Cooperativista de Capital Social (GCCS). Sua proposta foca nas questões administrativas, que podem e devem ser melhor amparadas por uma boa estrutura de conversação cívica cooperativista, voltada para o entendimento. Os autores propõem adaptações de teorias, como a Learning Organisation Theory e a Intellectual Capital Management Theory, pois ambas reconhecem que a vantagem organizacional competitiva é derivada da aplicação do conhecimento compartilhado entre o capital humano das organizações e, no caso das cooperativas, o seu capital social. Em pesquisa anterior (Padula, 2006), pudemos verificar que a maioria das cooperativas entende a importância da comunicação nos processos cooperativos, mas a maior parte o faz de forma assimétrica. Buscam não apenas informar, mas principalmente convencer, o que acaba por quebrar a confiança tão almejada, conforme mostram os estudos sobre capital social. Investimentos na área de comunicação não garantem o engajamento, pois para se construir o capital social não basta informar; tem que interagir, olho no olho, a fim de desenvolver a confiança. Mas concordamos com Reis (2003) que é preciso definir em nível comportamental o que é confiança. Das leituras realizadas, um dado que deverá colocar o sistema cooperativo em alerta é o fato das pessoas estarem participando menos da vida comunitária. A sociedade globalizada entra um ritmo alucinante de informações, pois ao mesmo tempo que se quebra a barreira na relação espaço-tempo (Canclini, 2002), integrando povos e nações, isola os indivíduos, que passam a se relacionar por meios tecnológicos. Não é foco deste trabalho discutir se isso é bom o ruim para a humanidade, mas sim analisar o seu impacto na formação do capital social. A questão é que falta tempo para convivência. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao relacionar o cooperativismo com capital social trabalha-se com uma perspectiva de valorização da gestão voltada para valores, defendida por Daves e Bialoskorsky Neto (2010), que pode e deve ser melhor amparada por uma boa estrutura de conversação cívica cooperativista, voltada para o entendimento. Fica claro nos estudos sobre o tema que o movimento cooperativista não tem dado a atenção necessária ao que esses valores representam de fato para a gestão. Partilhamos da ideia que o capital social, com a valorização da cooperação, é o grande diferencial e uma importante fonte de vantagem competitiva no modelo organizacional cooperativista. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 847 Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas Maura Padula O sistema cooperativo, em suas diretrizes e leis, busca garantir os princípios democráticos que motivaram o movimento desde os tempos de Rochdale e a comunicação é uma forte aliada neste processo. Entretanto, não é qualquer comunicação. Pautados em Coleman (1990), para se atingir o nível interativo recomentado para a gestão do capital social, vê-se a necessidade de se trabalhar a confiança, a circulação das informações e as normatizações. Investimentos na área de comunicação não garantem o engajamento. O engajamento depende da confiança, formada principalmente pela opinião favorável à causa, que por sua vez, para se formar necessita de informação e debate. Considerando a própria filosofia cooperativa, é fundamental que os gestores criem oportunidades para que os membros/cooperados possam interagir, expressando suas experiências e refletindo sobre elas, além de também de conhecer um número maior de ideias e argumentos. Pois como alertado por Lane e Sears (1996) e Noris (2000) (apud Matos, 2009) ter sua a própria opinião considerada confere ao indivíduo um sentimento de “eficácia política”, ou seja, a percepção de que seu ponto de vista pode fazer a diferença, reforçando seu sentimento de pertencimento, além de reforçar a confiança mútua. E reforçamos o pensamento de Reis (2003) que é preciso definir em nível comportamental o que é confiança, para elevar a gestão a um nível maior de envolvimento e à construção de uma mensagem capaz de garantir a identidade cooperativa. Não é objetivo deste trabalho encerrar questões, muito pelo contrário. Trata-se de inquietações para as quais precisamos de respostas, sob pena de comprometer um sistema que beneficia cerca de um bilhão de pessoas. Quando buscam uma cooperativa para viabilizar o seu trabalho ou para escoar sua produção, o cooperado não está preparado para esse modelo de gestão. E a educação cooperativista, fornecida por muitas cooperativas aos seus cooperados, não dá conta da questão, pois o problema está além da administração: esta nos valores pessoais, na cultura. E assim, abrem-se aqui diversas oportunidades de novas pesquisas. REFERÊNCIAS BIALOSKOSKY NETO, S. Economia das organizações cooperativas: uma análise da influência da cultura e das instituições. 2004, 178f. Tese (Livre Docência). Faculdade de Economia e Administração, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, 2004. BRASIL. Lei n. 5.764, de 16 de dezembro de 1971. Define a política nacional de cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas e dá outras providências. 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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 849 Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas Encouraging gender issues on the internet: women’s struggle for recognition and the presence of testimonies on feminist blogs Laís Modelli Rodrigues1 M au ro Souz a Ven t u r a 2 Resumo: O artigo propõe um estudo analítico sobre o modo como questões de gênero são percebidas em blogs feministas quando blogueiras compartilham testemunhos. A rede formada pela repercussão destes posts entre os leitores, a motivação das autoras e como o compartilhamento de experiências pessoais de mulheres na internet podem evidenciar sentimento de injustiça e casos de opressão e humilhação de gênero são questões reflexionadas. Para tanto, foram analisados posts mais lidos de 2014 dos blogs coletivos Blogueiras Feministas e Blogueiras Negras. Como protocolo metodológico, seguimos os estudos de participação de Maia e Gomes (2012), de Maia (2008) sobre testemunhos e narrativas, métodos de pesquisa para internet de Fragoso, Recuero e Amaral (2011) e pontuações de Castells (2013) sobre redes sociais na era da internet. Concluiu-se que as causas de gênero foram vivenciadas, compartilhadas e repercutidas em 2014 de maneiras muito distintas entre mulheres que publicaram no Blogueiras Feministas e mulheres que publicaram no Blogueiras Negras. Problemas, injustiças e insatisfações também não foram os mesmos quando comparados os blogs. Constatou-se, ainda, que quando uma autora feminista testemunha sobre um problema de gênero vivenciado, outros testemunhos são gerados entre os leitores de maneira espontânea, se aproximando de uma conversação cotidiana. Palavras-Chave: Internet. Blogs. Testemunhos. Feminismo. Abstract: The article proposes an analytical study on how gender issues are perceived in feminist blogs when bloggers share testimonies. It will discuss the network formed by the repercussion of these posts among readers, the motivation of the authors and how the sharing of personal experiences of women on the internet may show cases of oppression, gender humiliation and the feeling of injustice. For these purposes, the most read posts of the collaborative blogs “Blogueiras Feministas” and “Blogueiras Negras” in 2014 were analyzed. As a methodological protocol, we follow Maia and Gomes (2012) participation studies, Maia´s (2008) 1. Mestranda do programa de pós graduação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP, [email protected] 2. Professor doutor e coordenador do programa de pós graduação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP, [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 850 Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura testimony and narratives, Fragoso, Recuero and Amaral´s (2011) methods for researching the internet and Castells ´(2013) social networks in the internet age. It was concluded that gender issues experienced, shared and passed in 2014 in very different ways among women published in Blogueiras Feministas and among women published in Blogueiras Negras. Problems, injustices and dissatisfactions were not the same when comparing the blogs. It was found, still, when a feminist blogger testimonie about an experienced gender problema, other testimonies are generated among readers spontaneously, approaching an everyday conversation. Keywords: Internet. Blogs. Testimonies. Feminism. UMA BREVE HISTÓRIA DO FEMINISMO NO BRASIL S BANDEIRAS que se discutem ainda hoje no movimento feminista nacional, A como a legalização do aborto, igualdade salarial e maiores penas à crimes de violência sexual e doméstica, são pautadas pelo movimento feminista brasileiro desde a década de 60. Essa foi a época em que o movimento começa a aparecer na mídia para debater temas sobre a condição do corpo feminino e a luta para ocuparem maiores espaços de poder na sociedade e dentro da própria casa. Naquela época, contudo, não se tratava de ampliar os direitos previstos em uma sociedade democrática, mas de conquistar a própria democracia. Se por um lado a ação de feministas brasileiras era intensa nos anos de 1960, a reação do governo também era. A História política dessa época, à exemplo de outras, tentava abafar os movimentos feministas no Brasil em casos como o Golpe de 1964, que colocou milhares de mulheres no exílio, nas cadeias e na clandestinidade. Em 1975, a luta feminista volta a ganhar força com o Movimento das Mulheres pela Anistia. Em 1987, as mulheres se reúnem para exigir seus direitos em uma Carta das Mulheres aos Constituintes. O documento foi aprovado no texto Constitucional de 1988 em 85 por cento da sua totalidade. Desde a data, no entanto, a pauta da luta das mulheres cresceu e exige novas necessidades e debates no Brasil. Eram bandeiras do movimento feminista brasileiro dessa época: o combate à discriminação de gênero, o combate à violência contra a mulher e a luta pelos Direitos Sexuais e Reprodutivos. Vale lembrar que até 1988, o homem era considerado o chefe da família perante a Constituição. Tal panorama histórico demonstra que foi somente no final do século XX que a mulher brasileira conseguiu dialogar com a sociedade pautas ligadas ao controle do próprio corpo, como o uso da pílula anticoncepcional e a divisão social entre a sexualidade e a maternidade. Conseguir maiores espaços de diálogo não significa, contudo, que esses direitos tenham sido alcançados. FEMINISMO NA ERA DA INTERNET O mundo vive uma nova onda feminista, em que questões de gênero conseguem espaço na mídia por causa das possibilidades de maior intervenção das mulheres nos espaços públicos e simbólicos (CASTELLS, 2013). Mas como já apontamos anteriormente, maior espaço de diálogo e capacidade de pautar temas feministas não significa alcançar a aprovação desses temas. Aqui também é preciso refletir sobre como essas pautas têm Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 851 Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura sido abordadas e como falar sobre os pequenos ganhos conseguidos com muita luta até hoje parecem naturalizar e deslegitimar as ações feministas atuais: A sociedade patriarcal rejeita a ideia de que ainda é preciso falar de feminismo nos tempos contemporâneos. Isso porque as mulheres já conquistaram um espaço significativo no mercado de trabalho. Hoje, ocupam cargos historicamente masculinos e têm liberdade de escolha na vida pessoal e profissional. Essas mudanças promoveram a naturalização de um perfil de “mulher moderna” enquanto independente financeiramente; naturalização esta que produziu um efeito de estabilidade sobre os impactos das conquistas dos movimentos feministas na vida da mulher (LIMA, 2013, p.10) Diferente de duas décadas atrás, quando não era possível confrontar os discursos antifeministas da mídia de maneira direta, a não ser por meio de uma ligação à redação do meio de comunicação ou do envio de uma carta ao editor, hoje essa ação já se torna possível graças à internet. Nas redes sociais e até nos espaços de comentários de notícias de grandes portais, feministas podem confrontar tais discursos. Já em blogs e sites próprios, mulheres que vivem o problema de gênero podem divulgar seus próprios relatos sem cortes e edição de um editor ou revisor. Segundo Lima (2013, p10), “a popularização da internet contribuiu para fazer circular massivamente discursos de valorização do feminismo”. Assim, se o movimento Marcha Mundial das Mulheres resolve fazer um grande ato no dia 8 de março, por exemplo, ele não depende mais exclusivamente da grande mídia para convocar as pessoas e cobrir a marcha; o próprio movimento tem suas páginas em redes sociais na internet e ainda contam com a ajuda de divulgação de demais blogs feministas na rede. Diante da sociedade do conhecimento, a internet se torna um elemento estratégico a mais para a luta das mulheres em busca de condições de igualdade social. Mais assim como nos espaços reais, é preciso também conquistar seu espaço ne virtual, uma vez que o próprio ambiente on-line também apresenta sua parcela de exclusão por gênero, seja pela falta de mulheres em ambientes de desenvolvedores(as) de tecnologias digitais, seja pelas brechas de definição de gênero e feminismo encontradas em páginas como Wikipédia, seja pela violência das redes sociais na internet contra mulheres, com vazamento de vídeos e fotos íntimos de mulheres famosas e anônimas. “Afinal, a virtualização das relações sociais não reduziu as velhas práticas de violência sexista, ao contrário, criou novas ferramentas para o exercício do poder patriarcal sobre nossas vidas e nossos corpos” (NATANSOHN, 2013, p180). A ESCOLHA DOS SUJEITOS, DOS ESPAÇOS E OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA O Brasil passa por um momento em que discussões feministas acaloram marchas de rua, vida as ações internacionais e nacionais da Marcha Mundial das Mulheres e dos atos semestrais da Marcha das Vadias, ambos os movimentos espalhados pelo Brasil todo. No âmbito institucional, a recente aprovação da lei que transforma o assassinato de mulheres em crimes de feminicídio, que podem duplicar a prisão ao agressor, também contribuíram para maior destaque de temas feministas na mídia. No âmbito social, o crescente número de blogs feministas, vide Lugar de Mulher, Escreva Lola Escreva, Think Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 852 Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura Olga etc, que ao mesmo tempo postam diariamente conteúdos ligados às causas de gênero, também permitem que qualquer mulher feminista post seu próprio texto, tem criado uma nova geração de mulheres que se informam com outras mulheres. E não foi somente o feminismo, como demais movimentos sociais viram nas redes sociais o potencial para se organizarem e se manifestarem (CASTELLS, 2013). Para Castells, o poder de se expressar sem intervenção de um editor nessas redes sociais na internet fazem com que essas ferramentas on-line vão além de uma função organizacional para os movimentos sociais. “Quanto mais as ideias são geradas de dentro do movimento com base na experiência dos participantes, mais representativo, entusiástico e esperançoso será ele, e vice-versa”. (2013, p.20). Tratam-se, logo, de ferramentas de revigoramento social. Depois de prévio levantamento, escolhemos estudar os objetos: Blogueiras Feministas, um blog coletivo, hospedado em http://blogueirasfeministas.com/, surgido em 2010 e que reúne mulheres feministas de todo o Brasil para compartilharem suas experiências em forma de textos sobre questões de gênero; Blogueiras Negras, hospedado em http:// blogueirasnegras.org/, surgido em 2010, que reúne postagens de mulheres negras feministas de todo o país. Todo dia ou em um intervalo curto de dias, uma mulher de um lugar diferente do Brasil relata no blog um caso pessoal sobre um tema feminista ou se posiciona diante de uma questão ligada à condição de gênero ou de uma notícia circulada na grande mídia nacional e internacional. Também há a tradução e postagem de textos feitos por mulheres estrangeiras em outros blogs feministas.Uma das organizadoras do Blogueiras Feministas define o projeto como: Este blog existe porque queremos vivenciar na rede a experiência de ser feminista. Escrever posts, apontar manifestações do machismo na sociedade, twittar, fazer videos, publicar fotos, organizar manifestações nas ruas e na rede, entre outras formas de espalhar essa ideia de que ainda tem muita coisa pra mudar nas relações entre homens e mulheres. Por outro lado, tem a ver com uma reflexão constante sobre a nossa própria vida, sobre como a gente pode enfrentar as nossas contradições, como a gente constrói as nossas relações com mais autonomia e liberdade. (BLOGUEIRAS FEMINISTAS, 2014) Baseado nos processos interativos de dar e receber razão e da importância dos testemunhos para evidenciar um problema antes naturalizado (MAIA, 2012) e considerando que “a mudança do ambiente comunicacional afeta diretamente as normas de relação de significado e, portanto, a produção das relações de poder” (CASTELLS, 2013, p.11), procuraremos indicar: Como blogueiras feministas brasileiras compartilham na internet experiências pessoais ligadas à condição de ser mulher; como questões de gênero são percebidas em blogs feministas quando blogueiras compartilham experiências pessoais por meio de testemunhos e depoimentos; como essas informações, ligadas a atual demanda de bandeiras feministas no Brasil, são recebidas e refletidas pelos leitores. Escolher analisar blogs, dentre tantas outras redes sociais existentes na internet, também tem suas razões: blogs possuem um papel importante na maneira como uma informação é propagada na internet, uma vez que a personalização da ferramenta foca diretamente a linguagem e a forma de determinar o que será publicado, além de Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 853 Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura manter sempre uma pequena audiência em torno do blog, audiência essa normalmente conectada através dos blogrolls (lista de outros blogs que normalmente vai anexa a um determinado blog, criando uma rede de conexões entre audiências de blogs diferentes e até de redes sociais diferentes) (RECUERO, 2009). Conceitualmente, ainda segundo Recuero, Blogs são sites de divulgação, capazes de reunir links de outros blogs ou quaisquer outras redes sociais na internet. São formados por textos, chamados de posts, organizados de forma cronológica inversa, com a presença frequente de comentários. A escolha dos blogs ainda considerou que existe pouca bibliografia sobre metodologias aplicadas nas redes formadas em Twitter e, menos ainda, em Facebook. O estudo de Redes Sociais como aporte metodológico, por sua vez, foi escolhido porque os autores do presente artigo acreditam na potencialidade de observar a sociedade organizada na metáfora da rede, com atores tecendo e quebrando suas conexões entre si e com outras redes sempre que conveniente. Sendo os blogs e demais redes sociais espaços de debates e discussões sociais entre atores ativos, podemos analisar a maneira como testemunhos são compartilhados, percebidos, significados e negociados na rede on-line, além de estudar como essa percepção e negociação pode influenciar as trocas de informação entre blogueiras feministas e seus leitores por meio de outros testemunhos gerados no espaço dos “comentários”. Este trabalho origina-se de uma pesquisa mais abrangente da autora sobre a formação de capital social e formação da rede on-line em torno das manifestações feministas na internet e nas marchas de rua, pesquisa essa que vem sendo desenvolvida na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual de São Paulo, Unesp – Bauru. Espaço dos comentários no blog: deliberativo ou impositivo? Não chamaremos o espaço virtual dos “comentários” analisado como um espaço de deliberação e de esfera pública, uma vez que não há aquilo que Gomes e Maia apontam como elemento essencial de uma esfera pública: “não seja uma mera competição verbal, supõe que aqueles que discutem empreguem argumentos que são dispostos em posições e contraposições, voltados para a obtenção de uma opinião prevalente ou de um consenso possível” (2008, p. 36). A competição verbal aqui apontada refere-se ao fato de termos verificado durante a coleta de comentários que muitos deles são postados uma única vez, por pessoas que não haviam comentado antes no período, e que não têm a intensão de gerar uma conversa argumentativa, mas apenas querem ora ofender, ora impor sua opinião sobre algum tema feminista. Não podemos deixar de ressaltar, contudo, que, assim como nos espaços deliberativos (GOMES e MAIA, 2008), o espaço dos comentários dos blogs analisados propiciam a discussão e a troca de argumentos e razões entre os leitores/as e as autoras das postagens: Participar da esfera pública, nesse sentido, significa comprometer-se a obedecer às leis da racionalidade (discute-se sinceramente quando se quer expor razões e considerar as razões que os outros queiram expor) e da discursividade (pretensões só podem ser consideradas se apresentadas na forma de argumentos), excluindo-se eticamente todos os recursos e expedientes que a tais leis se oponham. (GOMES e MAIA, 2008, p. 36) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 854 Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura Desse modo, apesar de não ser nomeado como esfera pública por não acreditarmos até o momento que o espaço seja, de fato, deliberativo, utilizamos, em caráter metodológico, categorias de análise dos conteúdos dos comentários coletados advindas dos estudos de participação política e de deliberação online. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Por meio de um estudo qualitativo com elementos empíricos, o corpus desta pesquisa está constituído pelos posts contendo testemunhos feitos durante o ano de 2014 pelos blogs coletivos e feministas Blogueiras Feministas e Blogueiras Negras e listados como os “mais lidos do ano” pelas autoras das próprias páginas. Os objetos foram analisados sob a ótica metodológica da formação de redes sociais na internet, uma metáfora estrutural para compreender elementos dinâmicos e de composição dos grupos sociais envolvidos. No caso, atores envolvidos em uma rede construída por feministas em torno de narrativas em primeira pessoa de experiências pessoais vividas pelas autoras na condição de mulher. O aporte metodológico teve como base os estudos de Fragoso, Recuero e Amaral (2011) sobre métodos de pesquisa para internet, de Maia e Gomes (2011) sobre internet e participação política, de Castells (2013) sobre formação de poder e influência das redes on-line. Vale ressaltar que, apesar de não nomear o espaço virtual analisado neste artigo como “esfera pública”, vem do pensar na formação dela que definimos a metodologia apresentada. A análise foi feita por meio de uma ida ao campo virtual, na página do Blogueiras Feministas e na página do Blogueiras Negras, onde foram analisados os posts mais lidos de 2014. Também foram coletados comentários de leitores replicados no blog nesses mesmos posts a fim de analisar como foi a recepção, reflexão e tomada de decisão para postar um novo depoimento como comentário. A coleta de dados precedida da ida ao campo virtual resultou na construção de uma tabela de categorias de análise que mediu o grau de interação entre as blogueiras e os leitores em volta do compartilhamento de testemunhos feministas feitos em 2014. Sobre as categorias de análise da tabela, considerando os estudos de Barbero (2002), que percebe como ativo quem recebe a mensagem, receptor esse capaz de produzir seus próprios significados e negociações a partir do seu repertório sociocultural, adaptamos seus estudos para o conceito de graus de conexão, advindo dos estudos de Redes Sociais de Fragoso, Recuero e Amaral (2011) e estabelecemos categorias de análise: Depoimento (Depoimento que viveu o mesmo problema; Depoimento que viveu o mesmo problema, mas em situação diferente; Depoimentos que contradizem a situação) Concordância, Discordância, Reflexão. Quanto mais as categorias forem preenchidas, mas forte será a rede on-line construída. Quanto menos categorias preenchidas, mais fraca as conexões dessa rede e menos propícia para o ambiente de discussão e reflexão, pois “Enquanto os laços fortes possuem um alto nível de intimidade e suporte social, os laços mais fracos representam relações mais superficiais, menos íntimas e com menos valores construídos entre os atores” (RECUERO, 2009, p.24). Quando tabelamos Concordância e Discordância, consideramos o ponto de vista defendido pelo depoimento da blogueira; quando tabelamos Reflexão, consideramos comentários que informam que, ao ler o texto e os comentários deixados, refletiu sobre o assunto para poder deixar o seu comentário. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 855 Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura Ao identificar e categorizar os comentários de leitores e blogueiras, conseguiremos dimensionar: a) o grau de interação entre blogueiras e leitores/as, e vice-versa; b) o grau de confiança entre leitores/as e blogueiras; c) como o tipo de narrativa, no caso depoimentos e testemunhos, impulsiona as postagens sobre um tema feminista. RESULTADOS Enquanto o Blogueiras Negras elegeu os 20 textos mais lidos do blog em 2014. Deles, sete tinham depoimentos e testemunhos como principal tema das postagens. O Blogueiras Feministas elencou os 10 mais lidos de 2014 e seis continham tais narrativas. No que se refere aos textos do Blogueiras Negras, vale ressaltar que um dos posts foi assinado por uma das blogueiras como “Anônima”, com a descrição de “A autora anônima somos todas nós. Ela sou eu e também é você quando precisa preservar sua identidade”. Foi o único, de todos os textos analisados em ambos os blogs, em que a autora assinou como “anônima”. Sobre os textos mais lidos do Blogueiras Feministas, dos seis posts que se referem a depoimentos e testemunhos de mulheres na internet: a) dois são depoimentos de autoras do blog, b) dois são tradução de depoimentos de mulheres feministas de outros países, publicados em outros sites e blogs, c) dois são reflexões das autoras sobre testemunhos de atrizes de Hollywood e de uma jornalista do Estado de São Paulo. Sobre os comentários postados no blog, somando todas as mensagens feitas nos seis posts analisados, foram tabelados 193 comentários. Desses, 179 são depoimentos e testemunhos. 151 se identificaram em seus depoimentos com o problema retratado pelas autoras; 25 se identificaram com o problema, porém vivenciaram-no de maneira diferente; 3 usaram seus depoimentos para discordarem da situação apresentada pelas autoras. No Blogueiras Negras, encontramos sete posts de depoimentos de autoras do blog. Deles, apenas um é o depoimento de uma mulher que não pertence ao blog e que esteja presente na mídia. Dos comentários, encontramos 156 deixados nos sete posts. Desses, 138 eram depoimentos e testemunhos. 118 se identificaram com o problema retratado pelas autoras; 18 se identificaram com o problema, porém vivenciaram-no de maneira diferente; 2 usaram seus depoimentos para discordarem da situação apresentada pelas autoras. Gostaríamos de destacar um dos casos que conseguiu atingir o autor do caso de discriminação racial deposta pela autora. Trata-se do post “Não fui selecionada. Por que será?”, em que a autora, mesmo tendo assinado como “Anônima”, foi localizada pelo possível autor nos comentários deixados. No texto, a autora conta como se sentiu discriminada ao participar de uma seleção da loja Arezzo para trabalhar como vendedora. Na ficha de seleção, tinha que informar peso e cor. “Minha entrevista durou menos de 10 minutos”. Ao sair frustrada da seleção, resolveu visitar três lojas da marca, uma delas para onde era a vaga, e constatou que não havia uma mulher negra como vendedora. “Qual a relevância de se perguntar o PESO e a COR de uma pessoa para processo seletivo de suas vagas?”, questiona a autora. Dentro os 30 comentários que teve o post, um deles era da empresa responsável pela seleção da Arezzo, comentando que o preenchimento era apenas protocolo e que isso não era levado em conta na hora da contratação de vendedoras. A partir daí, não houve nenhuma outra postagem de depoimentos e testemunhos nos comentários, uma vez que os leitores passaram a questionar a resposta Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 856 Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura da empresa de seleção de maneira mais aprofundada. A empresa, por sua vez, não respondeu a nenhum comentário. Comparando o resultado em ambos os blogs, foi constatado aquela que era nossa hipótese desde o início: com o compartilhamento de depoimento e testemunho das blogueiras, novos depoimentos e testemunhos são gerados de maneira espontânea entre os leitores. Quando dizemos espontânea, consideramos aqueles comentários que, ao concordar ou discordar com a autora do post, registra a sua própria experiência de vida. Muitos desses depoimentos espontâneos assumem o risco, inclusive, de serem o que é considerado machista e preconceituoso para os demais atores sociais da rede: Assumo aqui minha gordofobia, que odeio e desprezo. Luto todos os dias contra esse preconceito, essa ideia absurda de que ser gordo não é saudável. Não me orgulho disso, ok? Como acabei de dizer, luto contra isso. Sou uma pessoa que acredita na tolerância e aceitação das diferenças, sejam elas quais forem e por essa razão sofro tanto com essa visão enviesada que tenho concernente as pessoas gordas. Acredito que a porra da televisão me fez muito mal, a visão dos padrões de beleza, de uma forma só de ser pessoa e mulher me transformaram nesse ser preconceituoso que sou. Ontem, mesmo antes de ler este post, em um diálogo comigo mesma, resolvi que evitaria assistir essas baboseiras para que parasse de ver a vida e as pessoas de forma tão enquadradas.Assumo aqui que sou preconceituosa, que luto contra isso e que estou no caminho. Espero que não me condenem por isso, porque não estou falando que esteja certa, não estou. Estou assumindo aqui que não quero ter essa visão e que como sempre é muito bom levar uns tapas argumentativos para poder repensar os próprios equívocos e erros. (Viviane, 15/01/2014 às 10:24) Dentro dos comentários do Blogueiras Feministas, vimos poucos depoimentos de mulheres que, para exemplificar uma situação de preconceito, depunham sobre o preconceito racial. Somente uma leitora fez isso nos textos analisados no blog. O mesmo também aconteceu no Blogueiras Negras: apenas 9 leitores/as que não se consideravam “negra” depôs no espaço dos comentários. Constatamos também que depoimentos que apresentavam um novo ponto de vista a situação geravam outros depoimentos compatíveis, gerando mais que Reflexão, mas também um diálogo racional e aprofundado sobre a questão. Veja a sequência a seguir retirada do post Algumas vezes é preciso se divorciar de seus pais, postado no Blogueiras Feministas: Quando se tem pais crueis, creio que seja necessario esses afastamento, mas qdo se tem pai ou mae (mae no meu caso) que sofre de problemas psiquiatricos (bipolaridade e depressão), nao quer e nunca quis se tratar, e usa essa doença como desculpa para sempre ser uma vitima da vida, provocando dia a dia somente culpa e distirubios nos filhos? e sendo filha unica de pai ausente? Difícil (DANI, 22/08/2014) Dani, tenho o mesmo problema que vc, também sou filha única. Quando li seu relato, parecia que vc estava falando de mim, é muito complicado mesmo, recentemente moro longe da minha mãe e minha vida mudou completamente, mas ela ainda me liga reclamando de tudo e também não se trata, sempre coloca obstáculo pra tudo. Nunca nada é bom pra ela. É difícil demais ajudar quem não se ajuda. (Fran, 13/09/2014) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 857 Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura Meu Deus! Estou pasma, lendo esses comentários e parece que as pessoas estão falando sobre mim rsrsrs Fico feliz e me sinto acolhida de saber que existem outras pessoas com o melhor problema e que não sentem vergonha de compartilhar isso, pq infelizmente vivemos numa sociedade hipocrita que taxa pai e mae como santinhos. (Ana, 29/10/2014) Constatamos, por fim, que quase todos comentários foram postados com um nome e foto. Se eram reais, não podemos afirmar. Os que postavam como anônimos, geralmente escreviam “hoje estou anônimo/a”, demonstrando que possivelmente já tinham deixado outros depoimentos e testemunhos nos blogs. Ainda, constatamos que a presença de leitores que se declaram homens nos comentários foi baixa. No Blogueiras Feministas, apenas 16 homens comentaram. No Blogueiras Negras, 23 homens. Sobre os temas depostos e testemunhados, encontramos no Blogueiras Feministas: preconceito com mulheres que não se enquadram no padrão de beleza das magras; cobrança da maternidade e do pós-parto; existem pais que não fazem bem aos seus filhos; posar nua; descriminalização do aborto. No Blogueiras Negras encontramos: protestos contra a representação da mulher negra no programa da TV Globo O Sexo e as Negas; mercado de trabalho discrimina mulheres negras na hora de contratar; o direito de assumir o cabelo afro sem sofrer preconceito pela sociedade; repercussão do caso #TodosSomosMacacos, campanha online lançada pelo jogador Neymar; repercussão do discurso da atriz negra ganhadora do Oscar, Lupita Nyong´o. CONCLUSÕES Ao analisar os temas que viraram posts mais lidos em cada um dos blogs, ambos feministas, com um deles voltado à questão do racismo, podemos constatar como o feminismo tem suas especificidades quando deixamos de generalizar o que é ser “mulher”. Em outras palavras, pudemos constatar como que mulheres do mesmo país, no mesmo ano, perceberam e vivenciaram as questões de gênero de maneiras distintas. Podemos ver essa distinção de mulher para mulher na vivência de problemas sociais ligados ao gênero logo no primeiro post analisado do período, publicado em janeiro de 2014 no Blogueiras Feministas, que traz falas das atrizes hollywoodianas sobre seu peso e sua vontade de comer, Melissa McCarthy, mulher considerada muito além do peso, e Jennifer Lawrence, magra, porém considerada “gorda” para os padrões (“Em Hollywood, eu sou obesa. Sou considerada uma atriz gorda”; “Eu sou a única atriz sobre a qual não existem rumores sobre anorexia”). Por ser uma tradução de um texto escrito por uma blogueira americana, sem intervenção da blogueira brasileira que o traduziu, dos 25 comentários deixado no post afirmava que “Bom artigo, muito mais pertinente nos EUA, onde a intolerância com a obesidade é imensa” (Renata, postado em 14/01/2014). No mesmo comentário, contudo, a leitora deixa seu próprio depoimento concordando com o tema: “Eu sei como é isso, já fui bem magra comendo de tudo e achei que nunca fosse engordar, aí tive um problema e engordei e minha mãe me chamava de obesa (vestindo 40) até que cheguei quase no 48 e emagreci um pouco depois”. Ressaltamos que o problema, no caso o de se enquadrar nos padrões de beleza da mulher magra, foi vivenciado de maneira diferente, mas a questão existe tanto para mulheres norte americanas como para as mulheres brasileiras. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 858 Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura Vale a ressalva que a palavra “denunciar”, mostrando que o depoimento esbarra em questões legais, foi usada uma única vez em todos os depoimentos analisados nos dois blogs: veio do texto Sistema da PF não aceitou meu cabelo black power para foto de passaporte, postado no dia 16 de julho de 2014. Das repercussões e traduções de depoimentos de mulheres públicas que não são autoras dos blogs, percebemos que o Blogueiras Negras replicou o depoimento de apenas uma mulher, da atriz Lupita Nyong´o, vencedora do Oscar 2014 na categoria de atriz coadjuvante, enquanto que no Blogueiras Feministas houve a replicação e tradução de depoimentos de duas atrizes e uma jornalista, todas brancas. Dessas constatações, podemos inferir questões de representação da mulher branca e da mulher negra versus sentir-se representada, concluindo que a mulher negra tem poucos referenciais e sentese pouco representada na mídia. REFERÊNCIAS Castells, M. (2013) Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Editora Zahar. Rio de Janeiro. Fragoso, S; Recuero, R; Amaral, A. (2011) Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre: Sulina. Gomes, W; Maia, R. C. (2008) Comunicação e democracia: problemas e perspectivas. Paulus. São Paulo. Lima, Q. S. (2013) Blogueiras feministas e o discurso de divulgação do feminismo no ciberespaço. In: Seminário de estudos em análise do discurso. Rio Grande do Sul. Recuperado em 22 de março, 2014, de: http://www.ufrgs.br/analisedodiscurso/anaisdosead/6SEAD/ SIMPOSIOS/BlogueirasFeministasEODiscurso.pdf Maia, R. C. (2012) Emoção, retórica e histórias pessoais na esfera pública. In: Soares, M.C., et al. Mídia e Cidadania. Cultura Acadêmica. 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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 859 O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa The leadership of black women in alternative media T a t i a n a C ava l c a n t e de Oliveir a Botosso 1 Resumo: Este trabalho discorre sobre o poder da mídia, os conglomerados de comunicação do Brasil e como é retratada a imagem da mulher negra nessas empresas. O objetivo deste estudo é examinar meios de comunicação alternativos protagonizados por mulheres negras. A mídia atua como uma indústria da informação e naturaliza as relações de desigualdade e opressão da mulher negra, que sofre com as piores condições socioeconômicas. Em contrapartida, as mulheres negras têm produzido um conteúdo independente nos meios de comunicação alternativa. Tais conteúdos, protagonizados por mulheres negras, reproduzem um discurso independente de valorização da identidade e da cultura afro-brasileira, e de resistência aos sistemas de opressão. Palavras-Chave: Mulher negra. Mídia. Comunicação alternativa. Blogueiras Negras. Meninas Black Power. Abstract: This paper discusses the power of the media, the Brazilian media conglomerates and how are portrayed the image of black women by these communication companies. The objective of this study is to examine alternative media of communication spearheaded by black women. The media operate as an information industry, and naturalize the relations of inequality and oppression of black women, which suffering under the worst socioeconomic conditions. On the other hand, black women generate an independent communication content in alternative medias. Such communication content, produced by black women, generates an independent speech of identity and african-Brazilian culture, and resistance to oppression systems. Keywords: Black women. Media. Alternative media. Blogueiras Negras. Meninas Black Power. INTRODUÇÃO S MULHERES negras enfrentam as piores condições socioeconômicas da socie- A dade brasileira. Entretanto, o protagonismo político dessas mulheres negras tem promovido o reconhecimento dessas opressões, denunciando inclusive a naturalização do racismo nos meios de comunicação. O poder simbólico é exercido pela mídia através de conglomerados da indústria da comunicação. Essas empresas atuam de maneira opressora ao invisibilizar as mulheres negras nos seus veículos, ou quando disseminam uma imagem negativa dessas mulheres. 1. Jornalista e mestre em Ciências com ênfase em Mudança Social e Participação Política pela EACH - Escola de Artes Ciências e Humanidades da USP, professora do Celacc – Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação na ECA – Escola de Comunicações e Artes da USP, email: [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 860 O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso Na contramão do poder midiático, os meios de comunicação alternativos atuam promovendo novas relações de produção comunicativa. As mídias alternativas: Blogueiras Negras e Meninas Black Power mobilizam o protagonismo das mulheres negras na produção de conteúdos de maneira independente e colaborativa. O MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS ENEGRECENDO O FEMINISMO Cotidianamente, a realidade das negras brasileiras é constituída de empecilhos à plenitude de sua cidadania. Tais como: estereótipos negativos e ofensivos, assédio sexual no local de trabalho, esterilização, violência doméstica, quesito de boa aparência, subemprego, tráfico e turismo sexual, falta de registro em carteira, aborto induzido através de métodos danosos à saúde, múltiplas jornadas de trabalho e o analfabetismo. (Quintão, 2004) A partir da década de 1980, a dificuldade em promover a discussão sobre: a opressão racial dentro do movimento feminista, e a opressão machista dentro do movimento negro, resultou na criação de várias organizações de mulheres negras. Para a filósofa Sueli Carneiro (2003), no movimento feminista brasileiro a trajetória das mulheres negras pode ser designada pela expressão enegrecendo o feminismo. Essa expressão demonstra que a identidade feminista clássica: branca e ocidental revela-se insuficiente na teoria e na prática política do feminismo construído em sociedades pluriculturais e multirraciais. O protagonismo político das mulheres negras tem promovido: • o reconhecimento da falácia da visão universalizante de mulher; • o reconhecimento das diferenças intragênero; • o reconhecimento do racismo e da discriminação racial como fatores de produção e reprodução das desigualdades sociais experimentadas pelas mulheres no Brasil; • o reconhecimento dos privilégios que essa ideologia produz para as mulheres do grupo racial hegemônico; • o reconhecimento da necessidade de políticas específicas para as mulheres negras para a equalização das oportunidades sociais; • o reconhecimento da dimensão racial que a pobreza tem no Brasil e, conseqüentemente, a necessidade do corte racial na problemática da feminização da pobreza; • o reconhecimento da violência simbólica e a opressão que a brancura, como padrão estético privilegiado e hegemônico, exerce sobre as mulheres não brancas. (Carneiro, 2003, p. 129-130) Entretanto, os principais vetores de enfrentamento do movimento são: o mercado de trabalho, a violência: em seus variados aspectos, a saúde e os meios de comunicação. Para a autora: Os meios de comunicação vêm se constituindo em um espaço de interferência e agendamento de políticas do movimento de mulheres negras, pois a naturalização do racismo e do sexismo na mídia reproduz e cristaliza, sistematicamente, estereótipos e estigmas que prejudicam, em larga escala, a afirmação de identidade racial e o valor social desse grupo. (Carneiro, 2003, p. 125) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 861 O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso Dessa maneira, o movimento de mulheres negras, fruto da reivindicação histórica por melhores condições de vida, também denuncia a maneira como a imagem da mulher negra é apresentada na mídia. O PODER DA MÍDIA Em relação a suas instituições paradigmáticas e recursos, Thompson (1998) afirma que existem quatro formas de poder. Uma delas pode ser identificada como o poder simbólico, no qual operam os recursos dos meios de comunicação e informação. Tais como, as instituições culturais, a igreja, as indústrias da mídia, as escolas e as universidades. Dessa maneira, a mídia exerce o poder simbólico, naturalizando as relações de opressão. A mídia exerce o poder simbólico em dois aspectos principais, denominados por Chaui (2006) como econômico e ideológico. No aspecto econômico, os meios de comunicação são empresas privadas, “uma indústria (a indústria cultural) regida pelos imperativos do capitalismo” (CHAUI, 2006: p. 73). No Brasil existem dez conglomerados de empresas de comunicação denominados por Görgen (2009) como Sistema Central de Mídia, que se adequam a três condições: (1) exercer controle direto de uma rede nacional de rádio ou de TV, (2) manter relações políticas e econômicas com mais de dois grupos regionais afiliados em mais da metade das unidades da federação e (3) possuir vínculo com grupos que detêm propriedade de veículos, ao menos, nos segmentos de rádio, televisão e jornal ou revista. (Görgen, 2009, p. 97) Os dez conglomerados que compõe o Sistema Central de Mídia no Brasil, identificados pelo autor, são: (1) Organizações Globo, (2) Sílvio Santos, (3) Igreja Universal do Reino de Deus, (4) Bandeirantes, (5) Governo Federal, (6) TeleTV, (7) Abril, (8) Amaral de Carvalho, (9) Governo do Estado de São Paulo e (10) Organização Monteiro de Barros. Estas organizações controlam ao todo 1.310 veículos de comunicação direta ou indiretamente. O número de veículos do conglomerado Organizações Globo era de 383 durante a pesquisa, o segundo colocado, Sílvio Santos, tinha 195 veículos. Em seu aspecto ideológico, Chaui (2006) afirma que o exercício do poder pode ser nomeado como ideologia da competência e seu discurso tem a forma do discurso do conhecimento. Esse discurso é ser personificado na figura do especialista. “Dizendo-nos o que devemos pensar, sentir, falar e fazer, afirma que nada sabemos e seu poder se realiza como intimidação social e cultural.” Assim, a divisão social entre os incompetentes que não sabem e o competentes que sabem é instituída pela ideologia da competência. O discurso do conhecimento, disseminado pela ideologia da competência, pode ser produzido pelas elites logotécnicas que são, para Sodré (1999, p. 244), “especializadas na neo-retórica elaboradora do discurso público”. Formadas por âncoras de tevê, artistas, jornalistas especiais, editores, criadores publicitários, editorialistas, articulistas, têm a funcionalidade de filtragem e síntese de diversas formas de cognição e ação presentes nas elites políticas, culturais e econômicas. Contudo, pelo discurso mediático-popularesco, essas elites reproduzem logotecnicamente o imaginário racista de maneira mais eficaz e sutil, disseminando o racismo mediático. Os fatores que suscitam o racismo mediático são: 1) a negação; 2) o recalcamento; 3) a estigmatização e 4) a indiferença profissional. (SODRÉ, 1999) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 862 O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso A representação das mulheres negras nos meios de comunicação tem sido objeto de estudo de inúmeras pesquisas nos veículos de televisão, jornal e revista. A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS NA MÍDIA Pavan e Oliveira (2004) analisaram a novela Da cor do pecado, escrita por João Emanuel Carneiro e transmitida pela Rede Globo de Televisão no primeiro semestre de 2004. Na trama, a protagonista é a atriz negra Taís Araújo, cuja personagem se chama Preta e seu par romântico é o ator Reinaldo Gianecchini, que interpreta Paco. A avaliação da personagem Preta aponta que: Primeiro: Preta, embora a heroína da história, ainda atua como o elemento perturbador da ordem familiar branca. Perturba o namoro de Paco e Bárbara, cria tensões na família de Paco, cria tensões na cabeça de Paco após o sumiço deste e mantém uma relação com Felipe mesmo deixando claro sua preferência por Paco. Segundo: Ainda Preta. O seu movimento nas relações raciais é o da passividade. Se porta como vítima, frágil, que necessita de apoio, proteção, dó. O tipo físico da atriz – menina, bonita – reforça esta imagem. Neste sentido, Preta aponta para uma relação racial de fragilidade de um dos pólos que necessita de uma ação paternalista. Além disso, tem uma perspectiva de relação estável com um branco (Paco), familiar com brancos (Afonso e família) e de amores pontuais com negros (Dodô e Felipe). Pavan e Oliveira (2004, p. 10) Segundo os autores, um aspecto positivo da novela é a ideia de possibilidade de existência de uma beleza negra com a ostensiva presença da atriz Taís Araújo no CD da trilha sonora da novela e em revistas, que inegavelmente questiona o padrão estético de beleza branca. Entretanto, um aspecto negativo é “o reforço da idéia de que a superação dos conflitos raciais dá-se unicamente pela via da negociação e que o problema do racismo se resume a comportamentos desviantes e não são fruto de questões estruturais, particularmente das relações de classe” (PAVAN e OLIVEIRA, 2004, p. 14). A presença de mulheres negras e pardas foi analisada por Christofoletti e Watzko (2009) em uma pesquisa de fotografias dos jornais do estado de Santa Catarina: A Notícia, Jornal de Santa Catarina e Diário Catarinense. A principal constatação dessa pesquisa foi: a quantidade de fotografias com mulheres negras e pardas desses jornais é muito inferior ao seu percentual na população do estado. Os autores concluem que a imprensa catarinense contribui muito pouco para revelar a diversidade étnica e cultural da região. “Consciente ou não, deliberada ou inadvertida, essa tendência na imprensa contribui para um processo de embranquecimento da população local” (Christofoletti e Watzko, 2009, 103-104). Ainda segundo os autores, no Brasil a discriminação racial não ocorre somente por atitudes, mas principalmente pela indiferença com que as mulheres negras são tratadas nos jornais, pela ausência, pela exclusão e pelo reforço aos estereótipos equivocados e preconceituosos atribuídos a elas. Para Oliveira (2011), a dimensão da opressão simbólica ocorre no reforço da branquitude normativa, na eleição do paradigma estético e formal branco como o referencial e os demais que se afastam dele como desviantes. O autor realizou uma pesquisa quantitativa e qualitativa nas seguintes revistas brasileiras: Playboy, Nova, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 863 O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso Atrevida, Raça e Veja. Para a comparação da análise quantitativa, também foram analisadas as revistas norte-americanas congêneres: Seventeen, Playboy (EUA), Cosmopolitan, Ebony e Time. A análise quantitativa verificou que, com exceção das revistas direcionadas aos afrodescendentes, a presença dos negros no Brasil foi menor: 8,7% em relação aos EUA, que foi de cerca de 9% nas revistas analisadas. Entretanto, “A diferença seria insignificante não fosse pelo detalhe que a população negra no Brasil é, segundo os dados oficiais, superior a 50% contra 15% nos EUA. A distorção, portanto, no Brasil é muito maior que nos Estados Unidos.” (Oliveira, 2011, p. 36) Na pesquisa qualitativa foi observada uma difamação estética ou classificação negativada no que se refere à moda e beleza das mulheres negras: Na seção Sexy ou Over, também da revista Nova, percebe-se que é classificado como sexy opções estéticas mais utilizadas por mulheres brancas e aquelas que advém da estética de mulheres negras são classificadas como over, isto é exagerado, uma dimensão da sensualidade acima da medida, conforme define a própria revista. (Oliveira, 2011, p. 37) Outra constatação da análise foi a objetificação radicalizada da mulher negra dentro de uma perspectiva de objeto de consumo: Nas poucas vezes em que modelos negras posam para a revista Playboy é ressaltada o caráter de puro objeto sexual, acima inclusive das suas qualidades profissionais. No caso de mulheres brancas, o discurso da Playboy inverte: a nudez das mulheres vai no sentido de revelar uma face oculta de uma mulher que se estabeleceu como celebridade por atributos outros (em geral como atriz de telenovela da Globo). No caso da mulher negra, o fato dela ser atriz aparece como um plus, uma cereja no bolo, pois o que se ressalta nela é o fato de ser uma mulher “gostosa”, resgatando a idéia da mulata. (Oliveira, 2011, p. 38) Oliveira (2011) conclui que as revistas concedem pouco espaço nas revistas aos negros e negras. Entretanto, essas concessões não diminuem o preconceito racial, mas deslocam esse preconceito criando símbolos formatados por processos de objetificação. Para conhecer a opinião da população brasileira em relação às representações das mulheres na mídia, Data Popular e Instituto Patrícia Galvão (2013), realizaram a pesquisa: Representações das mulheres nas propagandas na TV, que entrevistou 722 homens e 779 mulheres de diversas regiões do país. Discordaram da frase As propagandas na TV mostram a mulher na vida real: 59% das mulheres e 52% dos homens. Além disso, 80% de todos os entrevistados consideram que as propagandas na TV mostram mais mulheres brancas, e a maioria: 51% gostariam de ver mais mulheres negras nas propagandas. Diante dessa pesquisa, podemos concluir que a invisibilidade das mulheres negras na propaganda é percebida pelo público brasileiro que anseia por maior representatividade dessa população. Apesar da expressiva presença de mulheres negras na população brasileira, a mídia, enquanto uma esfera de poder simbólico atua ideologicamente reforçando um padrão naturalizado de embranquecimento. Por meio dessa prática de racismo mediático, as mulheres negras são estereotipadas e invisibilizadas. Entretanto, na contramão desses conglomerados midiáticos, existem meios de comunicação alternativos. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 864 O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso A COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA E O PROTAGONISMO DAS MULHERES NEGRAS NO SITE BLOGUEIRAS NEGRAS E NO BLOGUE MENINAS BLACK POWER Diante do inconformismo da desigualdade histórica entre subalternos e dominadores, de acordo com Peruzzo (2009), estão em curso reelaborações culturais, tais como a comunicação alternativa e comunitária, que contribuem com uma mudança nas práticas que constituem o exercício da cidadania. Incorporando suportes digitais, as novas manifestações alternativas de comunicação, tendo em vista a desalienação, produzem conteúdos diferenciados. Esses conteúdos são produzidos com novos procedimentos de ação e socialização de conhecimentos técnicos, instituindo novas relações sociais de produção nas quais se suspende a hierarquia. Não se trata de tornar-se uma celebridade, mas sim “de uma participação política, uma vontade de interferir para a ampliação da qualidade da cidadania, para a circulação de ideias dissonantes das dominantes e para a transformação social” (PERUZZO, 2009, p. 144). Uma das conclusões da autora é que os processos de comunicação alternativa têm sido revolucionados pela comunicação mediada por computador (CMC). E, dessa forma, fazem parte de um amplo processo mutacional, atualizando o social interesse por democracia e justiça. Dois expressivos meios de comunicação alternativa, produzidos por mulheres negras, são: o site Blogueiras Negras e o blogue Meninas Black Power. O site Blogueiras Negras, cujo endereço eletrônico é: < http://www.blogueirasnegras. org>, informa no Manual da Blogueira Negra2, que sua atuação é de instrumento de publicação, que objetiva principalmente o aumento da visibilidade da produção de blogueiras negras. Além de ser uma comunidade com opiniões e demandas diversificadas, que se organiza por: 1) um grupo de discussão; 2) um time dinâmico de autoras; 3) e uma equipe de facilitadoras. Sobre a linha editorial: Partimos do princípio que nossa espinha dorsal é o feminismo negro e a experiência da mulher negra. Nosso objetivo é fornecer material para o debate por meio do nosso protagonismo e visibilidade. Primaremos pelo ativismo de interseção que direciona o olhar para as demandas e especificidades da mulher negra, evitando hierarquizar qualquer opressão. Não temos o objetivo ou a pretensão de protagonizar outras lutas, corpos e territórios que tem vida e atuação próprias, mas escreveremos em solidariedade a todas as mulheres que não são tradicionalmente contempladas pelos movimentos de hegemonia. (Disponível em: <http://blogueirasnegras. org/manual-da-blogueira-negra/>) O Blogue Meninas Black Power está localizado no endereço: <http://meninasblackpower.blogspot.com.br/>. A página: Sobre3 descreve o Coletivo Meninas Black Power, que é constituído por mulheres pretas formadas em diversas áreas, que fizeram a opção pelo cabelo natural crespo, compreendendo os significados e significantes dele para a sociedade. 2. Publicado em setembro de 2013 na página: <http://blogueirasnegras.org/manual-da-blogueira-negra/>. 3. A página Sobre localiza-se no endereço: <http://meninasblackpower.blogspot.com.br/p/faq.html>. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 865 O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso Nosso trabalho consiste em incentivar a consciência do valor deste cabelo crespo natural e outras características naturalmente pretas, mas, sobretudo, do valor que cada mulher preta com quem nos comunicamos deve possuir aos próprios olhos. Trazemos nossas ideias para a prática através de atividades educativas direcionados para o público infantojuvenil e mulheres pretas, além de atuar em redes sociais e outras mídias, promovendo diálogos diversos que contemplem as pessoas para as quais falamos. Contatos para possíveis ações em espaços educativos são muito bem-vindos e podem ser feitos através do email [email protected]. Para que possamos crescer enquanto Coletivo, nos organizamos em Grupos de Trabalho de acordo com nossas áreas de atuação. São eles: educação, histórico-político, comunicação, cultura, moda e beleza. (Disponível em: http://meninasblackpower. blogspot.com.br/p/faq.html) O DISCURSO DE MULHERES NEGRAS NA MÍDIA ALTERNATIVA Para a pesquisa das mídias alternativas: Blogueiras Negras e Meninas Black Power foi utilizada a metodologia da análise de discurso, tendo como referência a autora Eni Puccinelli Orlandi4. Segundo Orlandi (2005), a produção da existência humana está fundamentada no trabalho simbólico do discurso. Na análise de discurso, a linguagem pode ser concebida como mediadora da realidade social e natural do ser humano. A partir de uma formação ideológica determinada, a autora define como formação discursiva aquilo que determina o que pode e deve ser dito. Dessa maneira, o discurso compreendido na formação discursiva é constituído por seus sentidos determinados ideologicamente. Para a análise de discurso do protagonismo feminino negro nos meios de comunicação alternativos foi utilizado o método de termos pivôs que, de acordo com Oliveira (1997), identifica os conceitos nos quais o discurso pleiteia sua entrada no domínio da intertextualidade. Foram escolhidos seis textos, três de cada blogue, no período do mês de julho de 2014 devido à celebração do dia 25 de julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra; e o Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. Os termos pivôs escolhidos foram: identidade, cultura e resistência. Os textos foram selecionados de acordo com as indexações de categorias homônimas das publicações. Análise dos resultados A primeira categoria analisada teve como termo-pivô: identidade. O texto selecionado: Literatura infantil negra5, de Aline Silva, foi publicado em 30/07/2014 no site Blogueiras Negras. A autora relata a sua experiência no ensino de educação infantil com livros de literatura infantil negra. O discurso da identidade, presente no texto, revela uma positividade, com valorização ao pertencimento à cultura africana e à cultura negra brasileira, disseminado na sala de 4. Eni Puccinelli Orlandi parte da linha francesa da análise de discurso proposta por Michel Pêcheux, que fundou a Escola Francesa de Análise de Discurso, na qual teoriza de que maneira a linguagem se materializa na ideologia e como esta é manifestada pela linguagem. 5. Disponível em: <http://blogueirasnegras.org/2014/07/30/literaturainfantilnegra/>. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 866 O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso aula. É importante destacar também que a experiência relatada remonta uma mudança positiva nos alunos, conforme a autora discorre no seguinte trecho: “Com as histórias contadas nesses livros, vi olhos brilharem, vejo gostos pela leitura nascerem, vi conflitos resolvidos, ganhei o amor e confiança de muitas crianças que tinham em mim uma referência, uma esperança, amor e carinho”. O texto Sankofa6, de Maria Fernanda, foi publicado em 30/07/2014 no site Meninas Black Power. A autora explica o significado de Sankofa, como referencial simbólico na recuperação da cultura ancestral africana. Além de compartilhar o sucesso de sua própria experiência de identidade positiva: “Um exemplo é poder compartilhar a felicidade de ter conseguido sair à rua orgulhosa com seu Black Power e não sentir-se acuada ao ouvir uma piada racista, receber elogios amorosos de homens ou mulheres pretas que enxergam quem você é”. A segunda categoria analisada teve como termo pivô: cultura. O texto: Ser preto tá na moda?7, de Mara Gomes, foi publicado em 10/07/2014 no site Blogueiras Negras. Trata-se de uma crítica à apropriação da música negra pela elite branca, questionando os artistas e os produtos culturais apropriados por essa elite. O discurso cultura é positivado para as manifestações culturais negras, porém é negativado quando essas manifestações são apropriadas e comercializadas para as elites brancas, tanto por artistas negros quanto pela indústria musical. A autora conclui justificando suas críticas e conclamando um debate sobre o tema: “a apropriação de cultura não é bonita, não me agrada, não é um elogio, é um processo racista que infelizmente não nos damos conta por completo ainda. No entanto precisamos, precisamos muito falar mais sobre isso”. O texto Encrespando8 -2.a Edição foi escrito e publicado pelo blogue Meninas Black Power em 21/07/2014. É um texto que divulga a segunda edição do evento Encrespando, destacando a importância dele para o Coletivo Meninas Black Power. O discurso da cultura ressalta valores da cultura negra, como o Renascença Clube, local aonde será realizado o evento e que foi muito importante para a cultura negra carioca. A relação do discurso da cultura com o entretenimento e a conscientização foi diagnosticada na seguinte frase: “O Encrespando é nossa casa e queremos que quem passar por lá possa desfrutar de um entretenimento saudável, conscientizador, que reflita toda beleza e resistência de nossa negritude”. A terceira categoria de análise foi o termo-pivô: resistência. O texto: Por quais mulheres o feminismo radical luta ?9 da Gabriela Pires, foi publicado em 21/07/2014 no site Blogueiras Negras. Nesse texto a autora, que se assume feminista, faz uma crítica negativa da ao feminismo radical. O discurso da resistência vai ao sentido de não se deixar dominar por uma vertente do feminismo com a qual não concorda, justificando suas motivações, em vários trechos, tais como: “O feminismo radical defende que a raiz de todas as de opressões é o patriarcado. Enquanto isso mães negras presenciam os assassinatos de seus filhos homens negros todos os dias (por serem negros, não por serem homens)”. 6. Disponível em: <http://meninasblackpower.blogspot.com.br/2014/07/sankofa.html>. 7. Disponível em: <http://blogueirasnegras.org/2014/07/10/serpretotanamoda/>. 8. Disponível em: <http://meninasblackpower.blogspot.com.br/2014/07/encrespando2edicao.html>. 9. Disponível em: <http://blogueirasnegras.org/2014/07/21/porquaismulheresofeminismoradicalluta/>. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 867 O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso Além disso, a autora denuncia práticas opressivas do feminismo radical, e discursa em resistência a essas opressões: “Feminismo radical não considera a sua luta uma luta de pessoas trans*, enquanto mulheres trans* e negras sofrem com a exploração sexual, com a patologização de seus corpos e mentes, com a transmisoginia”. O texto Olha, eu sou da pele preta: graças a Deus!10, de Cecília Oliveira, foi publicado em 28/07/2014 no blogue Meninas Black Power. A autora relata a experiência de assumir o seu cabelo natural, que ela alisava desde os nove anos de idade, discorrendo sobre o ato político da aceitação e do enfrentamento ao racismo. O discurso sobre resistência é conduzido pelo processo de valorização do cabelo da autora e no seu reconhecimento. Contudo, o enfrentamento também é perceptível no discurso de resistência no seguinte trecho: “Nós vamos lutar para viver mais e melhor e vamos ensinar nossos filhos que nosso cabelo, nosso nariz, nossa pele são as características da liberdade e da resistência e que temos, sim, direito a um lugar ao sol”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Historicamente as mulheres negras se organizaram por melhores condições de trabalho, saúde, educação e renda. O movimento de mulheres negras enegreceu o feminismo promovendo o protagonismo político na luta contra o racismo e o machismo. A mídia brasileira é formada por conglomerados midiáticos que exercem o poder simbólico. E as relações de opressão das mulheres negras pela sua cor e pelo seu sexo são reproduzidas pelas elites logotécnicas. Dessa maneira o racismo mediático se dá principalmente pela invisibilidade e pelos estereótipos atribuídos às mulheres negras. Entretanto, os brasileiros gostariam de ver mais mulheres negras na propaganda, uma vez que a mesma não revela a dimensão real da proporção dessas mulheres na população. Os meios de comunicação alternativa, na contramão do poder ideológico e econômico das grandes empresas de mídia, atuam pela desalienação, mobilizando o interesse pela democracia e justiça social. As mídias alternativas Blogueiras Negras e Meninas Black Power atuam de maneira colaborativa e independente para a produção de conteúdos emancipadores do discurso do conhecimento. Ao escreverem os textos em primeira pessoa, as autoras abordam os temas da perspectiva de sua própria realidade, personalizando a mobilização pelo empoderamento das mulheres negras e as relações de pertencimento com o público leitor. Os textos analisados têm em comum o protagonismo emancipador das mulheres negras, com discursos positivos e valorativos de identidade, de resgate da cultura africana e afrodescendente. E também de resistência, crítica e enfrentamento à opressão simbólica dos padrões de branqueamento impostos pela mídia. REFERÊNCIAS Carneiro, Sueli. (2003). Mulheres em Movimento. Revista de Estudos Avançados, 17 (49). issn. 0103-4014. p.117-142 Chaui, Marilena (2006). Simulacro e poder. São Paulo: Perseu Abramo. 10. Disponível em: <http://meninasblackpower.blogspot.com.br/2014/07/olhaeusoudapelepretagracasdeus. html>. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 868 O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso Christofoletti, Rogério; Watzko, Roberta C. (2009). Mulheres negras nos jornais: exclusão, gênero e etnia. Revista FAMECOS, 1 (39). issbn 1415-0549. p. 98-104. Data Popular; Instituto Patrícia Galvão. (2013). Representações das mulheres nas propagandas na TV. São Paulo: Instituto Patrícia Galvão. Recuperado em 19 de março, 2015 de: <http://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/ uploads/2012/05/representacoes_das_mulheres_nas_propagandas_na_tv.pdf>. Görgen, J. (2009). Sistema central de mídia: proposta de um modelo sobre os conglomerados de comunicação no Brasil. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Informação) – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, UFGRS. Recuperado em 19 de março, 2015 de: <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17166>. Oliveira, Dennis de. 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Para tal, analisou os meios de comunicação digitais desenvolvidos pela Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (FEMAMA) e as interações de ativistas engajados na luta contra o câncer mama, nestes espaços digitais. Partindo da análise sistemática do site e redes sociais da FEMAMA, que permitiu conhecer os usos e apropriações que os sujeitos fazem da tecnologia durante suas interações, foi possível verificar que estes espaços comunicacionais podem suscitar e ampliar o debate a cerca do direito à saúde, possibilitando o exercício da cidadania, contribuindo para a formação de uma identidade cultural específica dos ativistas envolvidos com a temática do câncer de mama. Palavras-Chave: Câncer de Mama. Ativismo. Cidadania. Identidade Cultural. Abstract: This article aims to discuss the possibilities of bonds establishment between individuals and possibilities of exercising citizenship, offered by the new digital technologies of communications. To accomplish it, this research analyzed the digital media developed by FEMAMA and the interactions of the activists engaged on the fight against breast cancer, in these digital spaces. Starting from the systematic analyze of FEMAMA’s website and social networks, that allowed the knowledge of the uses and appropriations which individuals do of the technology during their interactions, it was possible to verify that those spaces can stimulate and increase the debate around the right of health, allowing citizenship practices, contributing for the formation of a specific cultural identity of activists involved with the breast cancer theme. Keywords: Breast Cancer. Activism. Citizenship. Cultural Identity. MOVIMENTOS SOCIOCOMUNICATIVOS NAO ESPAÇO DIGITAL SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA vem passando por sucessivas fases de transfor- A mações culturais e tecnológicas. Em todas as camadas sociais há uma busca cada vez maior por uma vida mais digna que gradativamente se transforma no desejo de interferir na realidade atual e provocar mudanças. Na tentativa de criar sociedades 1. Mestranda em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), bolsista CAPES-PROSUP, Graduada em Comunicação Social- Habilitação Relações Públicas, pela mesma universidade. Membro do grupo de pesquisa PROCESSOCOM. Contato: <[email protected]>. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 870 As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama Thaís Costa Cardoso Soares mais justas e igualitárias, vários grupos vêm se aproximando e transformando estas inquietações em movimentos sociais de formas diversas. Historicamente a saúde é considerada como um dos direitos sociais fundamentais, por ser a base elementar do direito à vida. No Brasil, por exemplo, a criação do Sistema Único de Saúde, sistema que garante à população o acesso gratuito e universal à saúde, é uma conquista baseada em uma concepção de direitos sociais avançada, construída ao longo de cerca de 40 anos de história por movimentos sociais ligados ao desenvolvimento da saúde pública. (CÂMARA, 2011). Neste cenário, a articulação dos movimentos sociais com as mídias ao longo do tempo se tornou fundamental para dar visibilidade as suas pautas e engajar cada vez mais indivíduos a fim de inserir suas demandas na agenda social. Conforme Rubim (2003, p. 112) “a comunicação, enquanto espaço, inclusive socialmente existente, que possibilita a publicização passa a ter um lugar essencial para a cidadania na atualidade”. Desse modo, percebe-se que, nas últimas décadas, o uso dos meios de comunicação digitais intensifica a capacidade de influência das mídias nos modos com que sociedade contemporânea interage, sociabiliza e entende o mundo. A comunicação digital se apresenta como espaço propício para a formação de redes diversas e potencializa as formas de representação e ação para transformação social. (CASTELLS, 2013). Dessa forma, ampliam-se as possibilidades para que os variados movimentos sociais criem e estruturem seus próprios espaços comunicacionais digitais, configurando processos comunicacionais alternativos às mídias hegemônicas, e oferecendo outras percepções e novas formas de atuação e mobilização para seus ativistas. Neste sentido, parte-se do pressuposto que o papel da comunicação na mobilização destes indivíduos vai além da simples disseminação de informações, sendo também essencial para articulação de valores e partilha de sentidos que contribui para o processo de reconhecimento e pertencimento na formação da identidade do movimento. (HENRIQUES, 2007). É assim que se inserem as organizações como a FEMAMA2, objeto de referência desta investigação. A FEMAMA é uma associação civil, sem fins lucrativos, fundada em 2006, que conta com representação em 17 estados brasileiros e no Distrito Federal, por meio de 56 entidades associadas, atuando na articulação de uma agenda nacional única. Com o objetivo de diminuir a incidência e a mortalidade por câncer no Brasil, esta instituição se propõe a informar a sociedade e ampliar o debate público sobre a doença, visando influenciar a formulação de políticas públicas efetivas que garantam o seu acesso ao diagnóstico precoce e ao tratamento adequado. Para tal, desenvolve, no ambiente digital, meios de comunicação autônomos, independentes e alternativos aos meios de comunicação hegemônicos. Sendo assim, entende-se que essa instituição, através de seus meios de comunicação digitais, estabelece espaços comunicacionais que podem suscitar e ampliar o debate a cerca do direito à saúde, possibilitando práticas cidadãs e contribuindo para a formação de uma identidade cultural dos ativistas envolvidos com a temática do câncer de mama. Logo, esta pesquisa busca encontrar e analisar nestes meios de comunicação desenvolvidos pela instituição, com foco no processo comunicacional, esta construção de 2. Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio a Saúde Mama Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 871 As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama Thaís Costa Cardoso Soares vínculos entre os sujeitos e as possibilidades de exercício da cidadania, tanto no âmbito do direito de livre expressão quanto no âmbito do direito à saúde. Vale ressaltar que esta investigação considera estes ativistas, públicos preferenciais das organizações estudadas, como sujeitos comunicantes qualificados, que apresentam, simultaneamente características de receptores, produtores, participantes, transmissores e fruidores de sentidos no processo comunicacional. Nesse sentido, a investigação também busca ponderar sobre os modos como as organizações disponibilizam recursos e ferramentas de comunicação aos públicos que acessam seus espaços, contribuindo para a garantia dos direitos de acesso a informação e à expressão, constitutivos de uma cidadania comunicativa. (MATA, 2005). Com relação aos conteúdos, importa destacar que esta pesquisa considera apenas os recursos e informações disponíveis no portal3 da instituição na internet e em seu perfil no Facebook4, por ser a rede social mais ativamente utilizada pela organização. Da mesma forma, são interessantes para investigação apenas os materiais e discussões que façam referência à busca por direitos relacionados ao tratamento e diagnóstico, bem como, a inclusão social do paciente com câncer de mama, excluindo os conteúdos educativos e científicos sobre a doença. Dessa maneira, o objetivo é construir um mapeamento dos aspectos mais relevantes e recorrentemente abordados pela organização, através da observação e organização sistemática dos conteúdos disponíveis nestes espaços comunicacionais. Acerca da noção de cidadania a pesquisa se debruça em autores como Cortina (2005), que entendem que este conceito integra exigências por justiça e sentimentos de pertença, não se limitando, a reivindicações por bens imprescindíveis a sobrevivência, mas se estendendo a aceitação e a inclusão social, tecnológica e comunicacional. No que diz respeito ao conceito de identidade, a investigação toma a perspectiva de Hall (1997), de que a identificação não é singular e nem automática, podendo mudar de acordo com a forma com os sujeitos são representados ou interpelados, bem como, ser perdida ou ganhada ao longo da vida de acordo com as interações sociais de cada sujeito. Cabe esclarecer, também, que as reflexões sobre a internet como espaço comunicacional, consideram não só a rapidez do desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação digital, mas também o modo desigual com que esses recursos são acessados. Da mesma forma, entende-se que o aumento das possibilidades de participação no debate público não é determinado exclusivamente pelo desenvolvimento de novas tecnologias, mas pelos usos sociais que são dados a essas tecnologias. (FRAGOSO, MALDONADO, 2009). PROBLEMATIZAÇÃO TEÓRICA Para o desenvolvimento teórico, este estudo teve embasamento em autores e obras de referência no campo da comunicação através da revisão bibliográfica de pesquisas a respeito da problemática da cidadania, das identidades culturais e dos movimentos sociocomunicativos. Além disso, devido às especificidades dos instrumentos de comunicação escolhidos, faz-se necessário teorizar sobre a comunicação autônoma ou alternativa e as redes de comunicação da internet. 3. http://www.femama.org.br 4. https://www.facebook.com/femamabrasil Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 872 As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama Thaís Costa Cardoso Soares Primeiramente, é preciso esclarecer que, segundo Miani (2008), movimentos sociais são todos os grupos e organizações que atuam para a circulação e consumo de bens de uso coletivo, os que confrontam o capital de reprodução social e aqueles que enfrentam a ideologia de dominação nas lutas políticas cotidianas. Conforme Castells (2013, p.16) “suas raízes estão na injustiça fundamental de todas as sociedades, implacavelmente confrontadas pelas aspirações humanas de justiça”. Para Thompson (2009) o próprio surgimento dos movimentos sociais está ligado à criação de sistemas de comunicação, como o invento da imprensa entre os séculos XV e XVI, que possibilitavam a partilha de símbolos e crenças expressas entre indivíduos não interagiam diretamente, dando origem ao moderno sentido de pertença a uma particular nação. No entanto, conforme Gohn (2004), a partir dos anos 90 a prática dos movimentos sociais foi cada vez mais se deslocando de movimentos populares de natureza classista ou partidária para movimentos marcados por lutas cívicas ou cidadãs, com destacada emergência das Organizações Não Governamentais (ONGs). Para Cogo (2010, p.46) a partir deste momento “a cidadania já se constituía, portanto, em uma questão de comunicação” estando não exclusivamente orientada por demandas dos grandes sindicatos e partidos políticos, mas por uma combinação de formas e configurações de participação que também incluem temas relacionados à vida cotidiana e ao mundo simbólico. Faz-se necessário esclarecer que a cidadania é um conceito complexo, não estando restrito apenas à dimensão cívica, mas abrangendo também as dimensões moral, pessoal, social e cultural dos sujeitos. Segundo Cortina (2005, p.28) “a cidadania é um conceito mediador porque integra exigências de justiça e, ao mesmo tempo, faz referência aos que são membros da comunidade, une a racionalidade da justiça com o calor do sentimento de pertença”. Desta forma, é possível afirmar que esta cidadania complexa, intercultural e cosmopolita, também passa por questões comunicativas, uma vez que a construção desse sentimento de pertença depende de trocas simbólicas e interações sociais que se baseiam em atos comunicativos. No que diz respeito especificamente à cidadania comunicativa, cabe esclarecer que ela é compreendida como “o reconhecimento e a capacidade de ser sujeito de direito e demandar no terreno da comunicação pública o exercício desse direito”. (MATA, 2006, p.13). Para Rubim (2003, p. 112), “o direito à comunicação pode ser formulado como direito à existência social no mundo atual” sendo essencial para o exercício da cidadania de forma geral. Neste contexto, Peruzzo (2010, p.18) afirma que estes movimentos inauguram uma forma de comunicação que pode ser classificada como popular, alternativa ou comunitária que “é constituída por iniciativas populares (para além dos jornais) e orgânicas aos movimentos sociais”. Ainda segundo Peruzzo (2010, p.19) devem ser considerados como alternativos “tanto os produtos de comunicação produzidos dentro dos movimentos sociais, como aqueles feitos fora, mas que de algum modo contribuem para o processo de conscientização e ação”. Castells (2013) define a comunicação desenvolvida pelos movimentos sociais, através de plataformas de comunicação digitais, como uma autocomunicação de massa, pois alcança uma multiplicidade infindável de receptores, é decidida de forma autônoma Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 873 As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama Thaís Costa Cardoso Soares pelo remetente, é multidirecional, permite referência constante a um hipertexto global e não pode ser totalmente controlada pelo poder instituído. Desta forma, Castells (2013, p. 12) define que “a autocomunicação de massa fornece a plataforma tecnológica para a construção da autonomia do ator social, seja ele individual ou coletivo, em relação às instituições da sociedade”. Além disso, a comunicação é considerada como fator articulador na formação de identidades culturais, que são entendidas como “o conjunto de características pertencentes aos indivíduos e às formações coletivas”, de forma complexa, multifacetada e em constante transição. (COÊLHO, 2014, p. 91). Sendo assim, Henriques (2007, p.23-24) reforça que: Cabe à comunicação uma articulação entre valores e símbolos no processo de construção da identidade de um movimento, estabelecendo de uma maneira estruturada a produção de elementos que orientem e gerem referências para a interação dos indivíduos, possibilitando, assim, um sentimento de reconhecimento e pertencimento capaz de torná-los corresponsáveis. No entanto, não basta que esses grupos se reconheçam entre si e se identifiquem como movimentos sociais. Para realizar mudanças de fato, é preciso que eles se articulem de forma organizada. Conforme Henriques (2007, p.29) a comunicação “é imprescindível para os movimentos sociais sendo, ela própria, o fator de coordenação de ações e de mobilização”. Desta forma, Castells (2013), reforça que as tecnologias de comunicação digitais exercem um papel fundamental no desenvolvimento dos movimentos sociais na atualidade, pois mais do que ferramentas, são formas organizacionais, expressões culturais e plataformas específicas para a autonomia política desses grupos. Sendo assim, estes movimentos podem ser categorizados como sociocomunicativos, uma vez que se organizam através de aparatos midiáticos, realizando uma reapropriação tecnopolítica dos meios de comunicação (CASTELLS, 2013). Neste sentido, a comunicação assume não só o papel de coordenação entre os indivíduos pertencentes a um mesmo movimento social, mas também um papel motivador com a responsabilidade de convocar cada vez mais indivíduos para estes movimentos através do compartilhamento de experiências e sentimentos. Sendo assim, Henriques (2007, p.21) afirma que “isso significa dizer que a comunicação deve ser planejada para estimular a participação destes públicos, devendo estar orientada pelo sentimento de corresponsabilidade”. Segundo Castells (2013), todos os movimentos sociais são emocionalmente motivados, mas para que eles realmente se formem é preciso que a ativação emocional dos indivíduos se conecte com a de outros indivíduos. Assim, as redes de comunicação digitais são espaços privilegiados de catalisação destas emoções, pois estabelecem uma ubiquidade simbólica, permitindo que os indivíduos se encontrem e se conectem, mesmo que territorialmente distantes, e juntos vençam a solidão e o medo que os impedem de agir. Para que o processo de comunicação opere, há duas exigências: a consonância cognitiva entre emissores e receptores da mensagem e um canal de comunicação eficaz. A empatia no processo de comunicação é determinada por experiências semelhantes às que motivaram Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 874 As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama Thaís Costa Cardoso Soares o acesso emocional inicial. Quanto mais rápido e interativo for o processo de comunicação, maior será a probabilidade de formação de um processo de ação coletiva enraizado na indignação, propelido pelo entusiasmo e motivado pela esperança (CASTELLS, 2013, p.19). Obviamente, não pode ser ignorado o fator informacional dos meios de comunicação, principalmente os digitais. Dallari (2002), explica que a informação é o primeiro passo para a conscientização das pessoas sobre a existência dos seus direitos e a possibilidade de defendê-los. Para Vieira (2003, p. 20) “as oportunidades de atualizações e geração de conhecimento são condições indispensáveis para o amadurecimento da cidadania, quanto maior for o universo conceitual abarcado pelos cidadãos, mais abundante será a colheita da cidadania”. Da mesma forma, Castells (2013), reforça que a inserção racional de ideias e ideologias no movimento também se dá por um processo de comunicação, sendo indispensável para passagem da ação impulsionada pela emoção para a deliberação e elaboração de projetos conjuntos. No entanto, é importante frisar que a verdadeira transformação social não se dá apenas pela capacidade comunicacional dos movimentos sociais, ela depende de uma série de outras condições objetivas, do âmbito político, econômico e cultural, associados à ação de redes sociais e pessoais dentro e fora da internet. Neste sentido, Peruzzo reforça que: Contudo, a comunicação não se presta a fazer mudanças sozinha. A visão de uso dos meios meramente para difundir conteúdos educativos está superada. Trata-se de sua inserção em processos de mobilização e de vínculo local ou identitário sintonizados a programas mais amplos de organização-ação dos movimentos sociais populares. (PERUZZO 2010, p. 20) Sendo assim, cabe dizer que a verdadeira batalha por transformação está acontecendo na mente das pessoas, e nesse sentido os movimentos sociocomunicativos baseados na internet têm feito um grande progresso, pois promovem uma cultura mundial da transformação, através da superação do medo e da solidariedade internacional. Assim, Castells (2013) aponta que os movimentos sociais da atualidade estão desenvolvendo uma revolução rizomática, no qual o processo de transformação de consciência, como fluxo constante, é mais importante do que qualquer mudança ou produto imediato dos movimentos em seu âmbito local. PROCESSUALIDADES METODOLÓGICAS Neste artigo, serão abordados os resultados adquiridos através da adaptação do método de Análise Multifocal, proposto por Vieira (2012), que consiste na sistematização dos conteúdos, visando à construção de um sistema de lentes voltadas a múltiplos focos, capazes de captar uma imagem ampliada e categorizada do ativismo na internet. A Análise Multifocal se mostrou pertinente para esta investigação, pois representa uma perspectiva quantitativa e qualitativa, que permite um estudo retrospectivo do conteúdo das interações da organização com seus públicos. Além disso, este método se propõe a uma categorização temática baseada em conceitos da Comunicação para a Mobilização Social, que servem aos objetivos desta pesquisa, mas que precisaram ser adaptados para considerar as especificidades das mensagens e do objeto de pesquisa (VIEIRA, 2012). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 875 As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama Thaís Costa Cardoso Soares Nesta adaptação, mantiveram-se os critérios de categorização relacionados aos conteúdos, e as especificidades dos meios de interação, mas foram desconsiderados os critérios ligados à autoria das mensagens, já que estas não variam no objeto de pesquisa selecionado. Assim, Análise Multifocal centra-se, nesta pesquisa, em duas vertentes, o meio e o conteúdo, que funcionam como captadores de informação, ajudando a formar uma imagem global sobre os processos de comunicação da FEMAMA no ambiente digital. Os critérios relacionados ao meio, dizem respeito ao potencial de capilaridade das postagens, oferecidas através de conexões com plataformas externas ao site da FEMAMA e ao seu perfil no Facebook. Já os critérios relacionados ao conteúdo avaliam a força comunicativa das mensagens e sua capacidade de coletivização. Portanto, subdividem-se em: classe, tipo, natureza, função comunicativa e nível de relação com a causa, neste caso a formulação de políticas públicas de atenção à saúde das mamas (VIEIRA, 2012). No que diz respeito às categorizações e suas subcategorizações, o quadro abaixo apresenta um breve descritivo dos quesitos que compreendem cada uma delas, segundo o que é proposto por Vieira (2012), e pelos quais foram analisados e classificados individualmente cada postagem para posterior comparação. Tabela 1. Descrição dos critérios de categorização das postagens na Análise Multifocal. Categoria Classe Subcategoria Descrição Manifestações Caráter geral, diversas naturezas, as quais revelam enunciados e vocalizações dos sujeitos, expressões individuais de opiniões, interpretações, inferências, entre outros. Táticas de Mobilização Mensagens direcionadas à disseminação de repertórios de ações comunicativas, offline ou online, com vistas à mobilização de público em torno da causa. Monitoramen- Informações que relatam, refletem ou problematizam fatos ou ações relacionados to da atividade ao universo do Congresso Nacional, particularmente da atuação de deputados e parlamentar senadores com relação a Projetos de Lei de interesse da organização. Enunciações Mensagens de adesão ou apoio ao movimento; mensagens de protesto ou repúdio a fatos, ações, conduta de agentes políticos ou pessoas públicas; proposição direta ou indireta de questões para debate no ambiente do Facebook. Convocações Convites a ações presenciais ou virtuais (twitaço, e-mail, ligações telefônicas, entre outros), destacam-se as mensagens que estimulam a adesão via abaixo-assinado, seja fisicamente ou via sites como Avaaz.org ou Petition Online e também aquelas que fazem denuncias de irregularidades nos sistemas de saúde. Notícia Conteúdo de caráter noticioso, oriundos da mídia comercial, dos canais oficiais de órgãos públicos, ou provenientes de mídias alternativas, incluindo a própria internet, particularmente a plataforma Facebook. Material de Campanha Vídeos, banners, depoimentos, modelos de mensagens, listas de contatos, conteúdos em geral disponibilizados pela FEMAMA. Operacional Tratam de questões logísticas de campanha, oferecem um passo-a-passo para determinada ação ou esclarecem sobre questões pontuais. Não exigem uma interpretação aprofundada dos leitores, são de rápida assimilação. Contextual Mensagens que tratam de um contexto de ação, oferecendo dados sobre um fato, uma realidade vivida pelos públicos, exigindo capacidade de interpretação do leitor. As notícias, por tratarem de fatos políticos, em grande medida estão presentes nesta categoria. Temática Mensagens vinculadas detalhes dos tratamentos, procedimentos e medicamentos que necessitam de maior dedicação e tempo do leitor para reflexão sobre o conteúdo e são de caráter mais analítico. Em geral, não se prendem a uma ação ou contexto específico, mas a uma visão ampliada do tema. Tipo Natureza Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 876 As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama Thaís Costa Cardoso Soares Categoria Função Comunicativa Nível Subcategoria Descrição Convocação e Identificação Interações onde há o predomínio do chamamento à causa do câncer de mama; se utilizam fartamente de elementos simbólicos e de identificação visual, tradutores dos objetivos do movimento; por meio delas os indivíduos se vêm reconhecidos na causa. Motivação e Animação Interações que fazem circular informações sobre as ações desenvolvidas, oferecendo visibilidade aos avanços do movimento; almejam o reconhecimento público delas e também dispõem de uma ritualística que valorize as situações de encontro e de construção coletiva. Fomento ao Debate Interações que trazem subsídios ao debate, como informações qualificadas sobre os temas políticos de interesse da organização. Estas interações contribuem para ampliação do entendimento, percepção e compreensão dos públicos sobre a problemática enfrentada, favorecendo a participação deles na criação de soluções Central Posts que tratam diretamente de questões relacionadas ao movimento de mobilização em favor da aprovação, sanção e viabilização de Projetos de Lei. Tangencial Agrupam os posts cujas informações tratam de temas relacionados à saúde, mas não relacionados ao câncer de mama diretamente. Periférico Posts que tratam de outras causas de interesse público, mas alheias à temática do câncer de mama. Capilaridade Refere-se à presença de conexão com outros conteúdos, mensagens ou atores presentes na internet; em geral oferecem links para eles. Quanto a essa variável, importa saber se há ou não a presença da capilaridade e para quem essa direciona. Canal Direciona a outras plataformas de ação da internet, em especial para redes sociais e ambientes de livre compartilhamento de conteúdo. Podem remeter a canais como: Youtube, Twitter, para o próprio Facebook, Avaaz.org, Petition Online, entre outros sites. Tabela 2. Exemplo comparativo dos procedimentos de classificação dos conteúdos Número do post 33 37 Data 04/02/15 27/02/2015 Classe Táticas de Mobilização Manifestações Tipo Convocações Notícias Natureza Operacional Temática Função Convocação e Identificação Fomento ao Debate Nível Central Periférico Capilaridade Sim Sim Canal Petição Online – avaaz.org.br Site FEMAMA Comentários 9 0 Curtidas 163 36 Compartilhamentos 0 0 Observação Dia Mundial do Câncer Pesquisa renda das pacientes Cabe esclarecer que foram considerados para esta base de dados os 46 posts, de caráter político, do perfil da FEMAMA no Facebook, bem como, as 86 noticias postadas no portal da organização, que continham o mesmo cunho político, durante o período de março de 2014 a março de 2015. Tais mensagens foram transpostas para um arquivo digital de texto, e posteriormente numeradas e listadas em uma planilha eletrônica, em ordem crescente, do mais antigo ao mais recente. Sendo assim, cada postagem se configurou em uma unidade-base de coleta, interpretação e análise. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 877 As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama Thaís Costa Cardoso Soares Vale enfatizar que embora os comentários relacionados a cada post façam parte deste repositório de informação, os mesmos não foram categorizados, mas serão posteriormente comparados com resultados de entrevistas em profundidade a serem ainda realizadas. Da mesma forma, as imagens e vídeos foram reservados para análise posterior, que demandará outros procedimentos metodológicos. Entende-se também que o intercruzamento destas categorias permitirá diversas leituras interessantes sobre o objeto de pesquisa, mas este artigo se deterá naquelas que são mais pertinentes aos objetivos da investigação. A partir desta base de dados, foi preciso mapear e agrupar as postagens e notícias de acordo com suas funções comunicativas, buscando relacioná-las com a sua capacidade de estabelecer vínculos identitários entre os sujeitos e motivá-los a práticas cidadãs de luta por direitos e dignidade. Nesse sentido, as funções comunicativas são fundamentais, pois através delas podemos identificar que os processos comunicativos da FEMAMA realmente contribuem para a formação da identidade dos ativistas, bem como, proporcionam um espaço privilegiado para o exercício da cidadania. Sendo assim, nas postagens categorizadas de acordo com a função de Convocação e Identificação, são aquelas em que predominam os elementos simbólicos e de identificação visual, que criam um senso de nós, fazendo um chamamento à participação ativa dos sujeitos em alguma ação com objetivo específico, convocando o sentimento de corresponsabilidade. Já aqueles correspondentes à função de Motivação e Animação, fazem circular informações referentes às ações da organização, dão visibilidade aos avanços do movimento e almejam o reconhecimento público. Por fim, as postagens identificadas com a função de Fomento ao Debate se caracterizam como fontes de informação qualificada, ampliando o entendimento da sociedade sobre a causa, e fornecendo subsídio para o debate público, se configurando em um espaço propício para discussões e problematização de temas que dividem e que mobilizam opiniões diversas dentro e fora do movimento (HENRIQUES, 2007). No que diz respeito à análise das postagens, destaca-se que as funções comunicativas nelas manifestadas se equilibram e apresentam certa interdependência entre si, mas preponderam umas sobre as outras dependendo do contexto em que se inserem. Neste sentido, é possível afirmar que as postagens em que predominam a primeira e a segunda função são aquelas que mais facilmente se propõem a formação de identidades culturais. Da mesma forma, aquelas que combinam a segunda e a terceira função são aquelas que permitem o exercício da cidadania tanto em termos de envolvimento em atividades práticas de protesto e pressão política, quanto ampliam as discussões sobre o direito a saúde, no espaço público. Outra questão relativa, a análise das postagens refere-se a um senso de injustiça irrefutável demonstrado através de expressões contundentes de repúdio a situação humilhante em que as pacientes de câncer de mama se encontram. Neste sentido, Gamson (2011) reforça que este processo de indignação coletiva desatomiza os sujeitos, impulsionando-os na defesa um dos outros, através de ações dentro e fora da internet. Da mesma forma, Castells (2013) explica que através do compartilhamento de experiências via internet, os cidadãos da era da informação superam os sentimentos de isolomento e impotência, e acabam subvertendo o processo comunicacional como tradicionalmente Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 878 As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama Thaís Costa Cardoso Soares se dá, envolvendo-se na produção autônoma de mensagens e lutam contra os poderes instituídos identificando as redes que os constituem. No entanto, Castells (2013) destaca que todos os processos de construção simbólica dependem amplamente das mensagens e estruturas criadas e difundidas nos meios de comunicação, pois mesmo que cada sujeito interprete e construa seus próprios significados, esse processo é condicionado pelo ambiente da comunicação. Ao descrever os processos comunicacionais desenvolvidos pelos movimentos sociais durante a Primavera Árabe, Castells (2013) explica que, O poder das imagens, assim como das emoções criativas provocadas pelas narrativas, ao mesmo tempo mobilizadoras e tranquilizantes, produziram um ambiente virtual de arte e significado no qual os ativistas do movimento podiam confiar para se conectar com a população jovem em geral, transformando assim a cultura em instrumento de política (CASTELLS, 2013, p.85). Neste sentido, pode-se afirmar que a estética e o estilo de linguagem adotado pela FEMAMA, bem como, as estruturas multimídias características dos espaços digitais, é que fomentam esse sentimento de revolta e possibilitam a identificação e o encontro dos sujeitos com seus pares. Da mesma forma, os recursos tecnológicos disponíveis em plataformas digitais como o Facebook e o próprio site da organização, oportunizam o compartilhamento intenso de informações, bem como, a rápida adesão dos sujeitos através de um simples “curtir”, e o envio direto de mensagens de apoio ou repúdio aos detentores do poder institucional. Todas essas ações realizadas nos espaços digitais podem ser caracterizadas como práticas cidadãs que visam à transformação social. Outra questão verificada através da análise das postagens é de que as tecnologias de comunicação digitais realmente configuram um novo espaço de sociabilidade. Ficou evidente que sem o uso destas tecnologias, a FEMAMA jamais conseguiria articular a formação de uma agenda única, considerando as distâncias geográficas que separam as organizações associadas, umas das outras. Da mesma forma, essas tecnologias permitem a aproximação da organização com movimentos internacionais, oxigenando o movimento local com informações vindas de outros cenários socioeconômicos, permitindo a comparação e o aprendizado com iniciativas bem sucedidas e permitindo o engajamento da organização em movimentos de escala global. No entanto, a principal contribuição deste novo espaço de sociabilidades, possibilitado pela internet, é a renovação contínua do sentimento de esperança, que é a força propulsora dos movimentos sociais. Contudo, Castells (2013) reforça que este novo espaço é híbrido, sendo composto por um espaço de fluxos, presente na internet, e um espaço de lugares, representado pelos encontros presenciais que continuam sendo fundamentais ao movimento e retroalimentam o debate online. Esta questão pode ser evidenciada pelo fato de que as postagens com o maior número de curtidas e compartilhamentos são aquelas que anunciam ou relatam um evento presencial promovido pela instituição. No entanto, ao contrário do que é evidenciado por Castells (2013), durante a execução destes encontros o número a participação online do público decai significativamente. Isto pode indicar tanto que os indivíduos mais ativos nas redes são aqueles que já fazem parte formalmente da Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 879 As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama Thaís Costa Cardoso Soares organização, como sua inabilidade ou desinteresse de participar simultaneamente nos espaços online e off-line. Por fim, cabe dizer que a análise das postagens tanto do site quanto do perfil da FEMAMA no Facebook, também verificou que se realizam as principais condições de coletivização de uma causa apontadas por Henriques (2010). Na experiência de observação das plataformas digitais nos quais a FEMAMA atua, a concretude foi evidenciada pelo desenvolvimento e pela adesão do público em abaixo-assinados e petições online, bem como, seu encaminhamento físico aos órgãos oficiais responsáveis que também alimentou o espaço digital com notícias. Já o caráter público, pode ser verificado na expressiva evolução da adesão numérica que se deu pelas variadas formas de capilaridade das postagens. No que diz respeito à viabilidade, o apelo da própria causa gera a impossibilidade de se argumentar contra as práticas realizadas pela organização, com exceção de algumas controvérsias geradas por especificidades técnicas e científicas de alguns procedimentos médicos defendidos pela organização. Neste sentido, é notável que em diferentes momentos, somam-se ao movimento jornalistas, artistas, parlamentas e especialistas médicos unindo esforços em prol da melhoria no acesso ao diagnóstico precoce e o tratamento adequado ao câncer de mama. Acerca dos valores mais amplos as postagens demonstraram a preocupação da organização em debater não apenas questões específicas do tratamento e diagnóstico do câncer de mama, mas também questões relativas a outros tipos de câncer, a situação da saúde pública em geral, ao direito das mulheres e à dignidade e igualdade social dos pacientes. REFERÊNCIAS Câmara, C. (2011) Mapeamento político da saúde no Brasil: um recurso para ONGs atuando em câncer de mama. São Paulo: Grafa. Castells, M. (2013) Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar. Coêlho, T. F. (2014) Processos Comunicativos Digitais e Presenciais na Comunidade CSPOA: Relações Culturais/Identitárias e Perspectivas de Cidadania Comunicativa e Cultural. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS. São Leopoldo. Cogo, D. (2010) Comunicação, cidadania e transnacionalismo. In: Barbalho, A.; Fuser, B.; Cogo, D. (Org.). Comunicação para a Cidadania: Temas e aportes Teóricos Metodológicos. São Paulo: INTERCOM. Cortina, A. (2005) Cidadão do mundo: para uma teoria da cidadania. São Paulo: Loyola. Dallari, D. (20012) Direito de participação. Ambientalismo e participação na contemporaneidade. São Paulo: EDUC/FAPESP. Fragoso, S.; Maldonado, A. E. (2009) A internet na América Latina. São Leopoldo: Ed. Unisinos. Gamson, W.A. (2011) Falando de política. Belo Horizonte: Autêntica Editora. Gohn, M. G. (2004) Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola. Hall, S. 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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 881 Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV Communication and Public Health: the communicative potential of the Internet for the development of political talks about the HPV vaccination Fr a n c i n e A lt h e m a n 1 Resumo: O objetivo do trabalho é analisar o possível potencial deliberativo de conversações políticas on-line acerca da campanha de vacinação contra o HPV, lançada em março de 2014. Foram analisados comentários postados espontaneamente em divulgações da campanha na página oficial do Ministério da Saúde no Facebook. A discussão on-line gerada nesse espaço revela que conversações políticas nas redes sociais podem, potencialmente, garantir a formação de esferas públicas e contextos deliberativos. No entanto, a comunicação pública, especialmente aquela que tem como emissor o Estado, precisa ser melhor explorada em redes sociais, para que a troca argumentativa não seja bloqueada ou mesmo fique na superficialidade. Palavras-Chave: Comunicação Pública. Esferas Públicas. Conversação Política. Campanha de Vacinação contra HPV. Abstract: The objective of this article is to analyze the possible deliberative potential of online political talks about the vaccination campaign against HPV, launched in March 2014. It had been analyzed comments posted spontaneously in campaign disclosures on the official website of the Ministry of Health on Facebook. The online discussion generated in this space shows that political talks on social networks can potentially ensure the formation of public spheres and deliberative contexts. However, public communication, especially those who’s the issuing is the state, needs to be better exploited in social networks, so that the argumentative exchange is not blocked or even stay in superficiality. Keywords: Public Communication. Public Spheres. Political Conversation. Vaccination Campaign against HPV. INTRODUÇÃO COMUNICAÇÃO PÚBLICA é aquela que tem como emissor o Estado, ou ainda A sujeitos privados, cujo objeto de divulgação é de interesse geral da sociedade. De forma generalista, a comunicação pública engloba a troca comunicativa entre instituições (geralmente públicas) e sociedade. Autores que vem estudando a 1. Mestre em Comunicação na Contemporaneidade pela Faculdade Cásper Líbero. Graduada em Comunicação Social – Jornalismo – pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Especialista em Divulgação Científica pelo Núcleo José Reis da ECA/USP. Coordenadora de Comunicação do Conselho de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Crefito). Professora do curso de Jornalismo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). E-mail: [email protected]. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 882 Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV Francine Altheman comunicação pública (ROLANDO, 2011; LÓPEZ, 2012; HASWANI, 2013; MAIA, 2011; MATOS, 2011) entendem que ela é um processo de comunicação que envolve o Estado e a sociedade, inserindo-se na esfera pública, ou seja, promovendo a participação dos atores sociais para que estes não sejam apenas receptores do processo comunicacional do governo. Por outro lado, uma esfera pública é constituída quando indivíduos consideram que há uma questão que os afeta coletivamente e tentam construí-la como problema, ao mesmo tempo em que instauram uma situação comunicativa de interlocução em que se empenham para buscar o entendimento recíproco através do oferecimento de razões e justificativas para seus pontos de vista. Desse modo, uma esfera pública é parte de uma “engrenagem social voltada para a solução coletiva de um problema definido na interação” (GOMES, 2008, p. 120). Ela é uma estrutura social orientada pela razão comunicativa e funciona a partir dos critérios de publicidade, acessibilidade e visibilidade. Assim, uma esfera pública se forma a partir de um processo deliberativo que se inicia entre interlocutores os quais se sentem concernidos por uma questão e buscam, através da obediência a determinados princípios normativos (inclusividade, igualdade, reflexividade, reciprocidade, uso da razão), entender o que está em causa e buscar a solução que atenda, de forma justa, as demandas de todos e de cada um. Desse modo, ao se falar de esfera pública como espaço social onde se insere a comunicação pública, este artigo busca analisar a comunicação estabelecida pelo Ministério da Saúde em suas redes sociais, especificamente no Facebook, no período de lançamento da campanha de vacinação contra o HPV (março de 2014), bem como a conversação política on-line que se forma a partir dos comentários postados pelos atores sociais. O objetivo é verificar o efeito da internet, especialmente das redes sociais, na comunicação pública, especialmente aquela que provêm do Estado e como ela fomenta a participação e o engajamento da população nas políticas adotadas, especialmente em um período específico de lançamento de uma campanha nacional, em que o governo promove uma espécie de lobby junto à opinião pública (caracterizado pela comunicação governamental), ao mesmo tempo em que necessita do reconhecimento da população pelas políticas públicas promovidas. COMUNICAÇÃO PÚBLICA E SUAS DIFERENTES DIMENSÕES Os estudos sobre comunicação pública ainda têm registrado multiplicidade de conceitos, provavelmente porque é uma área da comunicação que começou a ser observada somente nas últimas décadas, especialmente no Brasil. No entanto, é importante salientar que crescem os estudos sobre esse assunto focados na realidade brasileira, o que amplia o número de instituições que procuram adotar a produção de informações observando o interesse público. O conceito de comunicação pública parece estar intimamente ligado ao Estado como emissor. No entanto, (…) a comunicação pública compreende processos diversos e faz interagir os atores públicos e também os privados, na perspectiva de ativar a relação entre o Estado e os cidadãos, com o intuito de promover um processo de crescimento civil e social (Haswani, 2011, p. 82). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 883 Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV Francine Altheman O bem-estar social não é apenas responsabilidade do Estado, mas também da organização civil, que se reúne em redes associativas, que participa do processo de decisão política e se engaja politicamente, promovendo políticas comunitárias, com enfoque no interesse coletivo (HASWANI, 2013; MATOS, 2011; HABERMAS, 2003b). Mas, para que isso ocorra, é necessária uma comunicação pública pró-ativa, mesmo porque a participação dos atores sociais em debates pressupõe a publicidade, entre outros fatores. Stefano Rolando (2011) reflete sobre a comunicação pública como um sistema fragmentado e propõe, incorporando experiências da comunicação empresarial, que os pressupostos da comunicação pública sejam divididos em sete estágios, formando um edifício que vai do térreo ao sexto andar. Tal metáfora ficou conhecida como o Edifício de Rolando e mostra que a comunicação pública começa com serviços básicos, como acesso a ações administrativas (térreo), passando por fases cada vez mais complexas, conforme os andares “sobem”, chegando ao sexto andar que envolve a gestão dinâmica de um patrimônio simbólico. Essa experiência proposta por Rolando pretende inter-relacionar os andares entre si e, com isso, promover o diálogo entre os sujeitos envolvidos. Produzir comunicação, estabelecer pontes relacionais, gerar serviço baseado na escuta e na transferência de conhecimento, utilizando aquelas superfícies com relação a essas necessidades, deve ser de fato um processo guiado por uma consciência de objetivos precisos a serem alcançados. (Rolando, 2011, p. 31). Nesse contexto, também é importante entender o que é interesse público. Seu conceito pode parecer óbvio e, de forma generalizada, o interesse público está ligado ao bem comum da sociedade. É natural pensar que quanto mais pessoas forem beneficiadas com determinada informação, maior é o interesse público. Rousiley Maia (2011), baseada nos teóricos deliberacionistas, entende que para se chegar ao interesse público é necessário intercâmbios entre as pessoas. O interesse público deve resultar de um debate público. No entanto, constrangimentos diversos, situações que envolvem interesses pessoais, a complexidade geográfica de um Estado como o Brasil e mesmo o papel dos meios de comunicação de massa podem descaracterizar o interesse público. Ainda que carregado de persuasões e ação estratégica, o debate público deve ser uma das formas que sustenta a comunicação pública. Antônio Hohlfeldt (2011, p. 238) sustenta que “no caso do Estado, o maior interesse público a que pode servir a comunicação é a democracia”. Nesse sentido, publicidade é característica fundamental da democracia e um Estado democrático de direito não pode se furtar de fornecer informações. Daí a importância de se estudar a comunicação pública e ampliá-la cada vez mais. Tais características sobre a esfera pública, a formação do debate, a publicidade e o papel dos meios de comunicação, especificamente as redes sociais, nesse processo serão analisados adiante. Antes, porém, o momento da pesquisa – lançamento da campanha de vacinação contra o HPV – será contextualizado a seguir. CONTEXTUALIZAÇÃO: CAMPANHA DE VACINAÇÃO CONTRA O HPV A campanha de vacinação contra o papiloma vírus humano (HPV) foi lançada em março de 2014, logo após o fim do período de carnaval, com a veiculação de campanha Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 884 Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV Francine Altheman publicitária para orientar a população sobre a importância da prevenção contra o câncer do colo do útero. A campanha foi veiculada em TV, rádio e jornais, mas com foco especial nas redes sociais, tendo em vista que o público-alvo eram meninas de 9 a 13 anos (aquelas que seriam vacinadas na primeira fase da campanha). O investimento do Ministério da Saúde na campanha foi de R$ 20 milhões. Os postos de saúde e escolas de todo o país começaram a ofertar a vacina no dia 10 de março de 2014, período em que a campanha foi intensificada nos veículos de comunicação. A meta do Ministério da Saúde era de vacinar 80% do público-alvo, formado por cerca de 5 milhões de meninas entre 9 e 13 anos, que foram priorizadas porque a vacina tem mais eficácia em meninas que ainda não iniciaram a vida sexual. No entanto, no primeiro mês de aplicação, 58% das meninas nesta faixa etária foram vacinadas. Existem diversos questionamentos importantes que surgem, especialmente nas mães de meninas que devem tomar a vacina, que não ficam claros na campanha divulgada pelo Ministério da Saúde. Ao analisar a campanha, não fica clara a questão da eficácia da vacina em meninas que ainda não iniciaram a vida sexual, nem o fato de que a vacina é um complemento às ações preventivas que já existem, e devem ser mantidas, como a realização do Papanicolau e o uso de preservativos em relações sexuais. A campanha não menciona efeitos colaterais da vacina, que foram relatados em muitas meninas, ou questões mais sérias, como a causa de paralisias musculares, difundidas pelas redes sociais e cujo esclarecimento oficial não foi satisfatório, entre outros questionamentos e dúvidas que surgiram durante a campanha. A falta de informações claras e precisas pode ser um dos aspectos que explica a porcentagem relativamente baixa – 58% – de meninas vacinadas em um primeiro momento. Nesse sentido, pode-se avaliar um dos aspectos da campanha de vacinação promovida pelo Ministério Público – nas redes sociais – e seus desdobramentos na conversação política formada a partir dos comentários postados. Com relação à participação política, formação da opinião pública e como a esfera pública pode se inserir em um ambiente informal como a internet veremos adiante, com os conceitos introduzidos por Jürgen Habermas. ESFERAS PÚBLICAS DIGITAIS De acordo com o especialista em comunicação pública, mobilização social e processos participativos, Juan Camilo Jaramillo López (2012), é na esfera pública que se constrói a agenda a partir da qual se chega à opinião pública. Portanto, Comunicação pública é, no meu conceito, a que se dá na esfera pública, seja para construir bens públicos (política), para incidir na agenda pública (midiática), para fazer a comunicação das entidades do Estado com a sociedade (estatal), para construir sentido compartilhado ao interior da organização (organizacional), ou como resultado das interações próprias dos movimentos sociais (vida social). (López, 2012, p. 255). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 885 Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV Francine Altheman Os estudos sobre deliberação e sua associação com os conceitos de esfera pública estão principalmente baseados pelos trabalhos de Jürgen Habermas (2003a, 2003b, 2008), que reflete sobre a interseção da comunicação com o processo deliberativo. Esfera pública pode ser definida como o espaço social e comunicativo entre esfera privada e o Estado, caracterizada pelo acesso livre, geral e desimpedido ao público, pela publicidade e, com isso, pela possibilidade de crítica ao Estado e pela decisão própria autônoma do cidadão. Esse espaço só pode ser constituído por meio da linguagem e o fluxo de informações que circula nele provém não só da mídia, mas também de outros espaços de conversação e diálogo. A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. (...) A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana (Habermas, 2003b, p. 92). Uma esfera pública é constituída principalmente quando indivíduos se consideram afetados por uma questão e colocam-na em discussão de maneira coletiva, de modo a buscar o entendimento recíproco do problema, como é o caso dos debates em torno da educação pública de qualidade, ou mesmo sobre a progressão continuada. Desse modo, segundo Habermas (2003b, p. 47), a deliberação é um processo discursivo que conecta as diferentes discussões que ocorrem nas esferas públicas e toma forma em uma “rede de discursos e negociações, a qual deve possibilitar a solução racional de questões pragmáticas, morais e éticas”. A deliberação deve ser entendida como um processo social de comunicação, que pode conectar esferas formais e informais de discussão, além de diferentes atores e discursos, que estabelecem um diálogo para avaliar e compreender um problema de interesse coletivo. Para isso, é necessário que os indivíduos saibam fazer uso da linguagem para argumentar, considerar a opinião do outro, refletir e simultaneamente interpelá-lo, convencendo-o e se deixando convencer. Os atores sociais que se propõe a participar do processo deliberativo estão expostos a opiniões que nem sempre concordam e devem deixar-se persuadir por elas, ao mesmo tempo em que expõem seus pontos de vista. Esse é um dos motivos pelos quais não se pode afirmar que os espaços de debates on-line formam esferas públicas digitais. Assim, deve-se ter cautela em apontar os fóruns on-line como esferas públicas, pois a troca argumentativa que caracteriza uma esfera pública é reflexiva, mesmo sendo de natureza conflitiva, propondo sempre a continuação do diálogo. A diversidade de públicos e a proliferação de todos os tipos de vozes na rede conectada podem acarretar problemas nesse sentido (MARQUES, 2010a). Além disso, como destaca Habermas, a formação de mini-espaços públicos especializados na web pode fazer com que os sujeitos restrinjam suas interlocuções àqueles espaços que congregam os temas de sua preferência e os interlocutores que pensam como eles: Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 886 Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV Francine Altheman O crescimento de milhões de salas de bate-papo (chat rooms) fragmentadas através do mundo tende a uma fragmentação de amplas audiências de massa, porém politicamente focadas, em um grande número de públicos isolados e voltados para uma única questão (Habermas, 2006, p. 414). Certamente a internet pode abrigar esferas públicas nas quais prevalece o agir orientado ao entendimento. Mas é preciso que tenhamos sempre em mente que a comunicação em rede é intermediada por softwares e condicionada por protocolos que delimitam os conteúdos e os formatos de interação. A assimetria entre interagentes no interior do ciberespaço coloca em dúvida se os atos de fala e a liberdade comunicativa são minimamente equilibrados nas interações entre os que dominam ou entendem os códigos e os que não entendem (SILVEIRA, 2009). Tais assimetrias nas relações e oportunidades de acesso à rede interconectada dificulta a participação paritária dos indivíduos e a própria constituição de esferas públicas on-line. O uso da linguagem de forma clara, para que todos se entendam mutuamente, também é uma barreira na internet, já que existem comunicações cifradas e nem todo significado atribuído a um proferimento ou sentença é entendido por todos os participantes. Mesmo considerando as diversas possibilidades de construção de esferas públicas, os autores acima mencionados são cautelosos ao apontar a internet como espaço capaz de abrigar esferas públicas. Eles salientam que a ampla possibilidade de expressão nos espaços digitais não garante a formação de esferas de debate; não assegura ser ouvido e considerado e não indica que os argumentos serão compreendidos, pois a igualdade não é exatamente uma característica da rede. “Redes existem apenas em situações de assimetria ou incongruência. Se não, nenhuma rede seria necessária – pares simétricos podem se comunicar, mas pares assimétricos devem ‘se enredar’” (GALLOWAY, 2010, p. 89). A internet, com todas as críticas que lhe podem ser feitas, amplia a visibilidade de informações e acontecimentos além de abrigar inúmeros espaços de trocas comunicativas. Sem deixar de lado as barreiras digitais da rede, Maia (2008, p. 277) também observa o potencial democrático e deliberativo da internet: a “rede pode proporcionar um meio pelo qual o público e os políticos podem comunicar-se, trocar informações, consultar e debater, de maneira direta, rápida e sem obstáculos burocráticos”. Nesse sentido, Silveira (2009) e Girardi Júnior (2009) mostram que o conceito habermasiano de esfera pública pode ser compatibilizado com o mundo digital. Segundo eles, o ciberespaço pode abrigar debates que possuam contornos deliberativos, dados sobretudo pelos princípios normativos que estruturam a ação comunicativa habermasiana. Além disso, os avanços tecnológicos que envolvem a internet se transformaram em uma importante ferramenta de comunicação pública, pois “possibilita a inclusão, entre os emissores, de pessoas e grupos sociais até então segregados, com uma importante perspectiva emancipadora” (HASWANI, 2013, p. 98). Além disso, como alerta a autora citada, a proliferação das redes sociais faz com que a pressão da opinião pública exija mais transparência do Estado. Alguns desses princípios, como veremos adiante, serão utilizados como base para refletir e analisar a comunicação pública desenvolvida a partir de redes sociais – Facebook, neste caso – analisando a página do Ministério da Saúde na rede. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 887 Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV Francine Altheman ANÁLISE: FACEBOOK COMO OPÇÃO PARA A ABERTURA AO DIÁLOGO E ESPAÇO DE CONVERSAÇÃO POLÍTICA As redes sociais se apresentam hoje como espaços de troca comunicativa que alimentam processos deliberativos mais amplos (que se desdobram em espaços administrativos, institucionais, do cotidiano e da mídia) ao promoverem situações de conversação que levam potencialmente à formação de esferas públicas e ao desenvolvimento de capacidades argumentativas e reflexivas. A conversação política on-line é extremamente importante para estruturar e fortalecer processos deliberativos que, ao articularem diferentes esferas públicas, demandam que os sujeitos que nelas interagem tenham tido a oportunidade de desenvolver suas capacidades argumentativas e reflexivas (MAIA, 2008; ALTHEMAN, 2012). A conversação, portanto, pode incentivar os sujeitos a aprimorar formas de pensar, de formular verbalmente, interpretar, argumentar e agir sobre questões políticas que afetam diretamente suas próprias vidas e de outros (CONOVER et al., 2002). Assim, fazem emergir a opinião pública e a participação política.O percurso metodológico desenvolvido leva em conta que um processo deliberativo não se apresenta de maneira pontual, mas se desdobra em diferentes momentos no ambiente de conversação on-line. Tal desdobramento leva em conta tanto aspectos ligados às configurações das trocas de enunciados no Facebook quanto aspectos configuradores de momentos que podem ser considerados como deliberativos. Com relação à configuração das trocas, podemos destacar o fato de que o próprio espaço do Facebook oferece ferramentas para a construção da conversação e, ao mesmo tempo, aqueles que aí interagem constroem e se apropriam do contexto por elas gerado, aproveitando a experiência que já possuem de exploração da plataforma (RECUERO, 2012). No Facebook, e também em outros ambientes sociais da rede, há uma forte interseção entre o ambiente e as possibilidades de mediação que ele oferece: articulação com outras redes sociais, mecanismos de busca, citação e indexação (o que amplia as possibilidades de fundamentação e exemplificação de pontos de vista e argumentos, por exemplo). Tal característica é importante, pois o estudo do processo deliberativo on-line não pode desconsiderar que as trocas discursivas que acontecem em uma rede social frequentemente se espraiam para outras plataformas dando origem à uma interconexão de esferas e de conteúdos. Quanto às contribuições que a conversação política no Facebook podem oferecer ao processo deliberativo, procurou-se observar a partir da troca desencadeada pelas postagens a configuração de alguns princípios normativos que guiam a deliberação, a saber: • Discussão crítico-racional: como os participantes expressam seus pontos de vista sob a forma de argumentos potencialmente aceitáveis por todos e capazes de ser refutados e justificados; • Reciprocidade: envolve a troca de turnos e respostas às afirmações dos outros. O ponto de vista apresentado deve ser confrontado pela visão oposta dos outros, com respeito mútuo; • Reflexividade: os participantes se mantém flexíveis para alterar suas opiniões e preferências quando confrontados com críticas e argumentos sustentados pelos outros. A página oficial do Ministério da Saúde no Facebook apesar de parecer, à primeira vista, um local com grande quantidade de informações interessantes para a sociedade, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 888 Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV Francine Altheman não aprofunda seu conteúdo, se limitando a divulgar a campanha publicitária da campanha, com pouca informação de fato esclarecedora. Assim, surgem diversos comentários, a maioria deles buscando informação sobre a vacinação, como vemos abaixo (foram elencados aqueles que nos parecem mais pertinentes para a análise proposta)2: 1. É uma bela iniciativa a vacina contra HPV. Mas quando essa vacina vai estar disponível para outras faixas etárias e para o gênero masculino? E a vacina contra Varicela e Hepatite A, que podem deixar sequelas? Estou fazendo estágio e tive que pagar 310 reais pela primeira dose dessas vacinas... Ainda tenho que pagar a segunda dose, de mesmo valor. Tanto imposto e ainda não temos vacinas essenciais no SUS... 2. Por que só meninas? Meninos também são portadores e possem passar o mal para outros e outras... Por que perto da Copa do Mundo? Se antes existia a vacina, por que não fizeram antes? 3. A questão é cade o estudo que permite das as doses nas datas tão afastadas da indicada pelo fabricante? Será que vai servir? 4. Tenho uma filha de 11 anos e estou com medo de vacina-la... pq vi no face uns videos com crianças que tomaram e estão com problemas seríssimos...queria ajuda 5. Soube que a priorização e limite de idade é para meninas virgens, é verdade? 6. Quem ja teve e tem 20 anos pode tomar também? Grande parte das questões levantadas são respondidas pelo Ministério da Saúde, mas as respostas costumam ser padronizadas, sugerindo a procura de informações em outros canais, cortando, desse modo, o diálogo, comprometendo a reciprocidade e a discussão crítico-racional que poderia se formar a partir daí. O que se observa também é que diante das questões levantadas pelos atores sociais, o ministério não buscou reavaliar a campanha para promover mais esclarecimentos acerca das principais dúvidas dos usuários. Tais informações foram trabalhadas por alguns veículos de comunicação em uma programação que pouco atinge o público-alvo da campanha. Outro enfoque observado nos comentários foi a crítica ao órgão do governo, muitas vezes sem o aspecto racional, o que compromete a continuação de um processo deliberativo como se supõe. Vejamos3: 1. E lamentável o GOVERNO ficar divulgando essa campanha e chegar no posto e as “enfermeiras” dizerem acabou volte amanhã !! e no outro dia ouvir a mesma coisa !! se não tem pra que divulgam ??? So pra constar moro na “Cidade” de Belford Roxo ! fica no estado do RIO DE JANEIRO ! 2. Uma medida do proprio ministerio da saude, disse a pouco no problema sem censura que a vacinacao contra o hpv é apenas para classe c e d!?!?! Mas isto nao é claro na propaganda da vacina!! 3. Concordo plenamente com essa iniciativa. Porém, acho amiga, que essa proposta tem que ser melhor explicadinha para os pais. Porque conheço varios que dizem que estamos facilitando para as meninas começarem cedo a vida sexual. Acho que para essa campanha ser mais positiva, os pais tinham que assistir uma uma palestra exclarecedora!! 2. A grafia foi deixada como publicada, incluindo erros gramaticais. 3. A grafia foi deixada como publicada, incluindo erros gramaticais. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 889 Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV Francine Altheman 4. Seria melhor educar as. Meninas a não andar acasalando sem preservativo.. 5. Meninas não devem transar e sim estudar e se preparar para o casamento.. 6. O governo quer que seus filhos se sintam seguros para praticar sexo com 10 anos de idade, isso é uma das armadilhas! 7. Quero + ação e – publicidade. 8. O pior é saber que tem crianças com 9 anos já tendo relação sexual... 9. Estãopensando que o governo esta agindo com bondade em vacinar seus filhos esperem e verão! Numa análise preliminar dos comentários postados, é possível detectar aspectos de uma discussão crítico-racional. As posições, sob a forma de argumentação (objeções, demonstrações e contra-objeções), foram usadas, porém não de forma racional, com os pré-requisitos à construção de uma esfera pública, como uso da linguagem de forma que todos se entendam com clareza e criação de uma relação em que todos se veem como parceiros, com reconhecimento recíproco. Ao contrário, a maioria dos participantes demonstra que conhece o assunto, apresenta os enunciados de acordo com suas evidências e experiências pessoais, mas não de forma clara e acessível, além de reagir negativamente e muitas vezes agressivamente ao ser refutado. A conversação política on-line que se estabelece entre governo e sociedade pressupõe também, como fica evidente nos comentários analisados, que a questão vai além da clareza das informações prestadas e do diálogo que é interrompido pelo próprio Estado. A questão passa pelo reconhecimento, já que os envolvidos, em muitos momentos, não se sentem reconhecidos pelo Estado como interlocutor, apenas como receptor. (...) o sujeito é oprimido por um sentimento de falta do próprio valor, porque seus parceiros de interação ferem normas cuja observância o fez valer como a pessoa que ele deseja ser conforme seus ideais de ego; portanto, a crise moral na comunicação se desencadeia aqui pelo fato de que são desapontadas as expectativas normativas que o sujeito ativo acreditou poder situar na disposição do seu defrontante para o respeito. (Honneth, 2003, p. 223) Assim, verifica-se que o público deseja manter um canal de diálogo e interação com o órgão do governo, apesar de algumas reações negativas que comprometem a reciprocidade e a discussão crítico-racional. Mas a rede social ainda é um campo que precisa ser explorado para ser utilizada no contexto de conversações políticas de forma mais eficaz. CONSIDERAÇÕES FINAIS A conversação política on-line é um processo que permite aos sujeitos se perceberem como participantes de um processo deliberativo que os ultrapassa e que, ao mesmo tempo, oferece a possibilidade de tomarem a palavra e terem-na inserida em uma rede de esferas públicas digitais. A interação comunicativa destinada à definição e à interpretação de uma questão política possibilita aos sujeitos colocar em prática suas habilidades e conhecimentos, submetendo-os à apreciação e ao julgamento de seus parceiros de conversação. Além disso, as trocas on-line requerem uma tomada de posição no debate com relação aos valores e pontos de vista partilhados com entre Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 890 Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV Francine Altheman os interlocutores. As conversações políticas auxiliam os cidadãos a aprimorarem suas capacidades comunicativas e reflexivas ao convidá-los a tomar parte e a assumir os riscos do debate público como, por exemplo, ter seu ponto de vista desafiado e recusado; ser insultado e depreciado; tematizar questões delicadas, etc. (MARQUES, 2009). Por outro lado, é possível perceber que a rede é uma importante ferramenta para a ampliação do processo de comunicação pública e que as redes sociais são uma fonte para colher a opinião e as necessidades da população. O espaço público aberto na rede pode ser um caminho interessante para colher informações sobre o interesse público, se bem utilizado. No entanto, faz-se necessário conhecer melhor espaços de comunicação pública on-line, como o Facebook, e seus potenciais para conectar indivíduos dessemelhantes para produzir uma fala política intersectada, capaz de promover relações com as diferentes discussões e espaços políticos (formais e informais), especialmente no que se refere aos emissores de comunicação pública por excelência, ou seja, o Estado. REFERÊNCIAS Altheman, F. (2012). A construção de esferas públicas: processos midiáticos, deliberação e conversação em torno do Projeto de Lei do Ato Médico. Dissertação (Mestrado em Comunicação na Contemporaneidade) - Faculdade Cásper Líbero. São Paulo. Recuperado em 28 de janeiro, 2015, de: http://casperlibero.edu.br/mestrado/dissertacoes/a-construcao-de-esferas-publicas-processos-midiaticos-deliberativos-e-a-conversacao-em-torno-do-projeto-de-lei-do-ato-medico/ Benhabib, S. (2009). Rumo a um modelo deliberativo de legitimidade democrática. In A. C. S. 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Comunicação política na sociedade mediática: o impacto da teoria normativa na pesquisa empírica. Líbero, XI, 21, 9-20. Retrieved from: http://casperlibero. edu.br/wp-content/uploads/2014/05/Comunicação-política-na-sociedade-mediática.pdf Haswani, M. F. (2011). Comunicação pública 360 graus e a garantia de direitos. In M. M. K. Kunsch (Ed.), Comunicação pública, sociedade e cidadania (pp. 81-97). São Caetano do Sul, SP: Difusão Editora. Haswani, M. F. (2013). Comunicação pública. Bases e abrangências. São Paulo: Saraiva. Hohlfeldt, A. (2011). Comunicação pública: os diferentes sentidos do interesse público. In M. M. K. Kunsch (ed.), Comunicação pública, sociedade e cidadania (pp. 229-241). São Caetano do Sul, SP: Difusão Editora. Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34. López, J. C. J. (2012). Proposta geral de comunicação pública. In J. Duarte (ed.), Comunicação Pública. 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Palavras-Chave: Processos comunicacionais. Movimentos Sociais. Comperj. Rede. Abstract: Study on the communication processes of Comperj workers. The objectives are to discuss the new social movements and the performance of these workers through the self-communication. The methodology came from references, documentary research, empirical analysis on Facebook, Youtube, newspapers of the mainstream media and alternative newspaper. It is concluded that the self-communication network seems to manage this movement. Keywords: Communication processes. Social Movements. Comperj. Network. INTRODUÇÃO ARAFRASEANDO MANUEL Castells (2001), a galáxia da internet é um novo [não tão P novo assim] ambiente de comunicação. Como a comunicação é inerente à atividade humana é impossível dissociá-la do nosso cotidiano. Com o avanço vertiginoso das tecnologias de informação e comunicação todos os domínios da vida social estão sendo modificados e transformados pelos usos e implicações que a internet proporciona. Ela faz parte desse processo de mudança e atua nos diversos setores da vida social, nos governos, nas variadas instituições, na cultura, na economia, na política, e é claro, que os movimentos sociais não ficariam de fora. Acontecimentos recentes têm mostrado que o ciberespaço é a ágora da contemporaneidade, mas não se encerram neste. Como pode ser percebido no Polo Petroquímico do Rio de Janeiro - Comperj. Este mega empreendimento faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e caracteriza-se como um complexo industrial, onde serão produzidos derivados de petróleo e produtos petroquímicos. O Comperj é um dos principais empreendimentos da Petrobras e está sendo construído numa área de 45 km² no município de Itaboraí, região metropolitana do Rio de Janeiro. A construção dessas instalações tem gerado muitos problemas para a comunidade local. 1. Publicitária e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo – São Paulo, [email protected], bolsista CNPq. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 893 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva Muitos proprietários de sítios, chácaras e fazendas foram convidados a vender suas propriedades para ceder lugar ao empreendimento. Com efeito, muitos caseiros ficaram desempregados e mais, sem local de moradia. Especulação imobiliária, crescimento populacional, seguido do aumento da criminalidade, tráfego intenso na rodovia, índice significativo de acidentes etc. No início do mês de janeiro de 2014 funcionários terceirizados, por meio de ações coletivas, fizeram greve de 40 dias reivindicando reajuste salarial e melhores condições de trabalho. Um ano se passou e o cenário de greves, corrupções, demissões só aumentou, junto com o desejo dos trabalhadores em ter suas reinvindicações atendidas. E como? Com a boca no trombone. Eles se fazem ouvir pelas redes sociais digitais e também fora delas, utilizando várias ferramentas tais como, Facebook, Youtube, Zello, WhatsApp e a boa e velha rádio peão. A partir da contextualização acima pretendemos discorrer sobre os processos comunicacionais desenvolvidos pelos trabalhadores do Comperj e seus dispositivos em rede. Justifica-se a escolha do tema em função de sua relevância social, pois o estudo recai sobre as mutações dos processos comunicacionais mediados pelas mídias. Não temos o intuito de pesquisar tecnologias, mas os tipos de interações que acorrem na internet por meio das redes sociais online e que as extrapolam, se materializando nas ruas. O que desejamos não é um deslumbre tecnológico, mas a reflexão sobre novos dispositivos que transitam por todos os setores da vida cotidiana. A metodologia utilizada partiu de referências bibliográficas, pesquisa documental, bem como análise empírica em algumas páginas do Facebook, Youtube, alguns jornais da grande mídia e um jornal alternativo sobre a atuação dos trabalhadores na greve de 40 dias no Comperj. A primeira parte do trabalho será dedicada aos aspectos mais gerais sobre os novos movimentos sociais, com ênfase naqueles surgidos no século XXI. Não temos a ambição de caracterizar ou enquadrar este ou aquele movimento dentro de categorias pré-definidas, mas a partir do entendimento de suas novas configurações, entendêlos por meio de suas atuações, agora em rede. Contudo, objetiva-se teorizar sobre a configuração desses novos movimentos à luz dos processos comunicacionais, assim como os dispositivos re-inventados neste contexto. Na segunda parte será explicitado os procedimentos metodológicos utilizados para a análise empírica do material coletado bem como a pesquisa documental. Os resultados serão analisados à luz das teorias empregadas na primeira parte do texto. MOVIMENTOS SOCIAIS DO SÉCULO XXI Os movimentos sociais utilizam a internet como um instrumento privilegiado para informar, atuar, recrutar, resistir, organizar, dominar e contradominar. Os movimentos sociais do século XXI, por meio de ações coletivas que visam objetivos comuns, à transformação de valores e instituições da sociedade, se manifestam na e pela internet. A Primavera Árabe em meados do ano de 2010 tomou força e se espalhou por diversos países do oriente médio, tendo em vista a condição do processo econômico e a reformulação geopolítica dos países do mundo árabe; os protestos que eclodiram no Brasil em junho de 2013 devido à reivindicação do movimento Passe Livre pelo transporte gratuito Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 894 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva e de qualidade, que em seguida ganham força por causa dos processos de corrupção na política brasileira demonstram que os movimentos sociais se reinventam a cada instante. Gohn (2012, p.11-14) afirma que para analisar os diferentes movimentos sociais, em realidades sociais concretas, como no Brasil atual, deve-se primeiro destacar quatro pontos do contexto sociopolítico, econômico e cultural do país, são eles: 1- a necessidade de qualificar o tipo de ação coletiva que tem sido caracterizado como movimento social. 2- no novo cenário as relações desenvolvidas entre os diferentes sujeitos sociopolíticos na cena pública alteraram-se; ampliação das formas de mobilização e atuação agora em redes; novas tecnologias da informação e comunicação; neocomunitarismo. 3- alterações do papel do Estado em suas relações com a sociedade civil e em seu próprio interior; novas políticas sociais. 4- grande lacuna na produção acadêmica sobre os movimentos sociais, tais como o próprio conceito de movimento social, o que os qualifica como novos, o que os distingue de outras ações coletivas, o que ocorre quando uma ação coletiva expressa num movimento social se institucionaliza, o papel dos movimentos sociais neste novo século, como diferenciar movimentos sociais criados a partir da sociedade civil de outras formas, quais tem sido as teorias que têm sido construídas para explicá-los. Para Gohn (2012, p.14) “um movimento social é sempre expressão de uma ação coletiva e decorre de uma luta sociopolítica, econômica ou cultural”. A autora faz um apanhado sobre os traços constituintes de um movimento social e aponta os seguintes aspectos: demandas que configuram sua identidade; adversários e aliados, bases, lideranças e assessorias, formando redes de mobilizações; práticas comunicativas, desde a oralidade aos modernos recursos tecnológicos; visões de mundo que dão suporte a suas demandas e culturas próprias nas formas como sustentam e encaminham suas reivindicações (GOHN, 2012, p.14). Em texto mais recente escrito no calor das manifestações de junho de 2013 Gohn (2014, p.8-9) denomina as manifestações que ocorrem nas ruas e praças como atos de protesto e os inclui em uma categoria mais geral: “‘Movimento dos Indignados’. Os ‘Indignados’ focalizam demandas locais, regionais, nacionais, ou seja, a realidade do país.” É importante frisar também que para a pesquisadora as manifestações de junho de 2013 no Brasil fazem parte de uma nova forma de movimento social composta por jovens, escolarizados, predominância de camadas médias, conectados por e em redes digitais. Este último aspecto, torna-se importante para o movimento em aqui em questão, dos trabalhadores do Comperj. Essa massa trabalhadora, ao contrário do que aponta Gohn (2014) são formados em sua maioria por trabalhadores com pouco grau de instrução, de classes mais abastadas, mas preserva um traço importante apontado pela pesquisadora, eles estão conectados por e em redes. REDES ENERGIZADAS PELA INTERNET O conceito de redes sociais é complexo e amplo. A formação de redes é uma prática humana muito antiga em virtude da necessidade de interação social e compartilhamento com o outro. Dentre as categorias teóricas utilizadas nos estudos atuais sobre os movimentos sociais apontadas por Gohn (2013) destaca-se a categoria rede. Para a autora (2013, p.32) rede social passa a ter na atualidade para vários pesquisadores um papel mais importante do que o movimento social. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 895 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva A categoria rede segundo Gohn é muito utilizada em diferentes sentidos e constitui-se em certo modismo, todavia, ela é importante na análise das relações sociais, tais como território, comunidade porque permite a leitura da diversidade sociocultural e política existente nessas relações. A autora aponta que tanto nas ciências exatas, quanto nas ciências humanas e biológicas a ideia de rede não é nova. Nas ciências sociais o uso de redes sociais também é antigo, mas atualmente é utilizado como instrumento de análise e articulação de políticas sociais. Segundo Gohn (2013, p.34), a categoria rede também incorpora várias outras subcategorias: “circulação, fluxo, troca, intercâmbio de informações, compartilhamento, intensidade, extensão, colaboração, [...] horizontalidade organizativa, flexibilidade, maior agilidade etc”. Todavia, o uso indiscriminado de termos novos na busca do moderno pode estar deixando de lado outras categorias importantes como articulações, processos, relações etc (GOHN, 2013, p.34 -35). Afirma ainda que a questão é complexa e diz respeito à luta política e cultural de diferentes grupos sociais. Para Manuel Castells (2013, p.11), “a constituição de redes é operada pelo ato da comunicação”. Define a comunicação como o processo de compartilhar significado pela troca de informações. Reitera ainda que a principal fonte da produção social de significado é o processo de comunicação socializada. Essa é parte das premissas de Castells, de que as pessoas, instituições, a sociedade em geral transforma a tecnologia, apropriando-a, modificando-a, experimentando-a, como é o caso da internet que, para o sociólogo, é uma tecnologia de comunicação. A territorialidade física e simbólica dos movimentos sociais em nossa sociedade é formada pelo espaço híbrido, conforme Castells (2013, p.16), entre o espaço urbano ocupado e as redes sociais digitais na internet. A questão premente é que nesse novo espaço em rede, situado entre os espaços digital e urbano forma-se um espaço de comunicação autônoma. E autonomia é a quintessência dos movimentos sociais, ao permitir que ele se forme e possibilitar que ele se relacione com a sociedade, fora do controle dos detentores do poder, do poder da comunicação (CASTELLS, 2013, p.16). A nova configuração espaço-temporal advinda das transformações nas tecnologias de informação e comunicação mudou significativamente os modos de vida, as relações sociais e econômicas entre as pessoas. Possibilitou também a participação de eventos simultâneos, sem a necessidade de estar num mesmo local. Então, surge a possibilidade de novos tipos de grupamentos sociais, de supostos tipos de comunidades. Segundo Costa (2008, p.34), o que o estilo de vida móvel vem provocando é uma reorganização na forma como as pessoas se encontram, trocam e se comunicam entre si. Andréas Huyssen (2000), comenta que as novas tecnologias da informação e comunicação sempre transformaram a percepção humana na modernidade. Para Huyssen (2000, p.36), “práticas de memória nacionais e locais contestam os mitos do cibercapitalismo e da globalização com sua negação de tempo, espaço e lugar”. O Autor assegura que foi dessa forma desde a ferrovia, o telefone, o rádio e o avião e acredita que o mesmo vai acontecer quanto ao ciberespaço. Aliás, é o que está acontecendo na atualidade, pois vivemos numa intensa compressão espaço-temporal onde a relação entre passado, presente e futuro está sendo transformada. E as tecnologias da informação e comunicação, em especial a internet, contribuem para este novo ordenamento. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 896 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva Raquel Recuero (2009) compartilha com Andreas Hyussen a ideia de que as redes existem muito antes da chegada da internet. Entretanto, Recuero (2009, p.135) afirma que uma das primeiras mudanças detectadas pela comunicação mediada pelo computador nas relações sociais é a transformação da noção de localidade geográfica dessas relações sociais, embora assim como Hyussen aponta que a internet não foi a única responsável por essas transformações. Por outro lado, Castells (2003) aponta a revolução [mutação] da tecnologia da informação como ponto de partida por sua penetrabilidade em todas as esferas da atividade humana e afirma que devemos localizar o processo de transformação tecnológica revolucionária no contexto social em que ele ocorre e pelo qual está sendo moldado. Em Castells (2003, p. 287), “a internet não é simplesmente uma tecnologia; é o meio de comunicação que constitui a forma organizativa de nossas sociedades”. O estudioso demonstra que a internet é um novo paradigma sociotécnico e que constitui a base material da vida das pessoas, de suas relações cotidianas, de trabalho e comunicação. “Qual seria o possível legado dos movimentos sociais em rede ainda em processo? A democracia. Uma nova forma de democracia. Uma antiga aspiração jamais concretizada da humanidade” (CASTELLS, 2013, p.30). AUTOCOMUNICAÇÃO, AUTONOMIA E RESISTÊNCIA A comunicação é um direito humano, e como tal precisa ser garantido e exercido, pelo menos. Vimos à explosão dessa vontade de comunicar a partir dos levantes da Primavera Árabe, dos diversos protestos espalhados pelo mundo e os reflexos das manifestações que eclodiram no Brasil e que ainda acontecem nos centros das metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro. Castells (2013, p.11) diz que a mudança fundamental ocorrida nos últimos anos está no domínio da comunicação, no que ele denominou como autocomunicação, “o uso da internet e das redes sem fio como plataformas da comunicação digital”. Como aponta Castells (2013), as manifestações começaram nas redes sociais digitais, já que estas são espaços de autonomia, muito além do controle de governos e empresas, que, ao longo da história, haviam monopolizado os canais de comunicação como alicerces de seu poder. Tais manifestações não são protestos espontâneos, são protestos provocados por descontentamentos muito antigos ligados a organizações das sociedades civis que existem em determinados países, sob a perspectiva social, política, econômica e ditatorial. Compartilhando dores e esperanças no livre espaço público da internet, os atores sociais formaram redes, independente de suas opiniões ou filiações. Uniramse e compartilharam. A partir da segurança promovida pelo ciberespaço, multidões passaram a ocupar o espaço público para reivindicar seu direito de fazer história numa “manifestação da autoconsciência que sempre caracterizou os grandes movimentos sociais” (CASTELLS, 2013, p.10). No entanto, essas manifestações não são mutações2 das redes sociais digitais - Twitter, Facebook, blogs etc -, são mutações da sociedade civil que utilizam o aparato tecnológico para divulgar informações e compartilhar, porém, o 2. Preferimos utilizar o termo mutações ao invés de revoluções. Revolução implica numa mudança de paradigma, numa ruptura. Acreditamos que esse processo seja uma mutação tecnológica, como aponta Muniz Sodré (2002). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 897 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva que é óbvio é que sem a internet os movimentos sociais não teriam condições de juntar e mobilizar tantas pessoas nas ruas instantaneamente. Após décadas de embate e luta dos movimentos pela cidadania, a comunicação que era privilégio de poucos grandes conglomerados, se reinventa e passa a fazer parte do cotidiano dos sujeitos. De uma forma ou de outra, a comunicação dos movimentos sempre existiu, via folhetos, marchas, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST)3, entre outras formas de comunicar. Porém, a diferença na atualidade é a maneira como ela acontece, no espaço em rede, ou seja, num espaço de comunicação autônoma. A comunicação que sempre aconteceu no bojo dos movimentos, com os novos movimentos sociais, se reinventa e conquista outros espaços, outros dispositivos apoiados nas tecnologias de informação e comunicação (TICC). Para Castells a questão basilar é que os movimentos sociais são a chave para a mudança social, para a constituição da sociedade. E para ele, muito mais do que categorizar movimentos sociais e questionar seu nascimento é preciso compreender o conjunto de causas estruturais e motivos individuais que os move. Os movimentos sociais são constituídos de indivíduos, de suas emoções, de seus anseios, de sua subjetividade, de sua autonomia. Uma questão importante para esse entendimento é segundo o sociólogo “quando, como e por que uma pessoa ou uma centena de pessoas decidem, individualmente, fazer uma coisa que foram repetidamente aconselhadas a não fazer porque seriam punidas” Castells (2013, p.17). Em síntese, precisamos entender como esses indivíduos se formam em rede, primeiro mentalmente, de uns quererem se conectar aos outros, por que são capazes de fazê-lo, num processo de comunicação que, em última instância, leva à ação coletiva. BREVE ANÁLISE E CONSIDERAÇÕES: COMPERJ PELAS ONDAS DA INTERNET Após busca no Facebook localizamos alguns perfis, comunidades e páginas criadas automaticamente devido à procura dos usuários pelo Comperj. Contudo, selecionamos para análise, o Comperj Online. Esta página é aberta e fomenta discussões e compartilhamentos sobre o Comperj, assuntos relacionados a classe operária, construção civil e metalúrgica. Ela é administrada por um colaborador, Militar Santos, conforme declaração de autoria na Facebook. Apesar da página Comperj Online ter começado suas atividades no final da greve, ela teve muita visibilidade por noticiar uma retrospectiva do confronto que ocorreu durante a última assembleia realizada pelo sindicato da categoria. Importante apontar também que outra página encontrada foi a Acorda Peão – uma comunidade do Facebook, intitulada de Movimento de trabalhadores e trabalhadoras do Comperj, independente, classista e combativo, de oposição à atual diretoria do Sinticom, porém notamos poucas atualizações de conteúdo. O foco do conteúdo desta página versa sobre o movimento da cozinha realizado pelas mulheres que trabalham no preparo da alimentação dos trabalhadores. Os operários do Movimento Acorda Peão (MAP) contam o apoio da Central Sindical e Popular (CSP- Conlutas). 3. Em nosso trabalho de conclusão de curso (monografia) defendido em 2005, discutimos as formas de comunicação do MST. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 898 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva Verificamos que a utilização do Youtube foi essencial para a divulgação dos fatos ocorridos durante a greve e as manifestações. Os dispositivos citados foram analisados num período que correspondeu, aproximadamente aos 40 dias de greve, de fevereiro a março de 2014. Durante a análise levamos em consideração os comentários, as fotos, os ícones, os compartilhamentos e as curtidas dos seguidores da página Comperj Online no Facebook, bem como os vídeos postados no Youtube. Não tivemos a pretensão de quantificá-los, mas sim de buscar uma compreensão mesmo que de forma geral sobre os processos comunicacionais oriundos desses funcionários, na linha do pensamento de Castells (2013) sobre autocomunicação. Para a análise dos vídeos postados no Youtube não criamos nenhuma categoria pré-estabelecida, no entanto tomamos como norte algumas palavras-chave, tais como: Comperj online 2014; Comperj 2014; Comperj; Greve no Comperj na busca pelos vídeos. Utilizamos o próprio filtro disponibilizado pelo Youtube para facilitar a nossa busca, selecionando os filtros Vídeo e Canal. A maioria dos vídeos postados são referentes aos atos de manifestações e principalmente aquela ocorrida no dia 10 de março, dia em que o sindicato convocou uma Assembleia. Revoltados cerca de 20 mil trabalhadores lançaram guerra contra o governo, o sindicato e o Comperj. A maioria dos vídeos analisados mostra um cenário degradante de fumaça, correcorre, gritaria, nervosismo, palavrões etc. Alguns títulos das postagens sugerem a indignação dos trabalhadores, tais como: Manifestação dos trabalhadores do Comperj 2014. 37 Dias de greve; Greve continua no Comperj; confronto entre trabalhadores e polícias no Comperj; Guerra no Comperj de Itaboraí 12mar2014, entre outros. Apesar de estarmos atentos às visualizações, acreditamos não ser importante inclui-las aqui, já que empreendemos às análises algum tempo depois do calor da greve e também como já apontamos, não temos a pretensão de quantificar essas publicações. Destacamos também dois canais que colaboraram em defesa dos funcionários, o canal do Jornal A Nova Democracia (AND) e o canal da deputada Estadual Janira Rocha, integrante do PSOL. No dia 15 de março o Jornal AND divulga em seu canal um vídeo sobre a manifestação citada, cujo título é Greve do COMPERJ: “Sindicato ameaça e paga para matar”. No texto publicado junto ao vídeo, a AND relata que a última assembleia foi marcada por intensos confrontos entre os trabalhadores, pistoleiros do sindicato e a polícia, que deixaram várias pessoas feridas com tiros de munição letal. Segundo os trabalhadores, o sindicato não os representa e até agora só tem servido ao patrão. Diante da rejeição dos trabalhadores, o Sindicato da Construção Civil de São Gonçalo e Região — que fatura até 1,5 milhão de reais por ano — começou a apelar à pistolagem para seguir dirigindo as assembleias, de acordo com os operários (Youtube, 2014). Neste vídeo, o Jornal AND com tom denunciatório entrevista um trabalhador, que teve a sua imagem protegida. Ele reclama da falta de pagamento de salários e fala sobre o papel do sindicato, sobre o fato de que eles deveriam ter uma representação grande e alega que esse mesmo sindicato os abandonou. “Os próprios trabalhadores é que começou o movimento de greve, o próprio trabalhador é que tava sendo massacrado Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 899 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva dentro da empresa, dentro do Comperj por esse mesmo sindicato. Por que? Por que eles elegem por conta própria os seus representantes [...], relatou o trabalhador. Com obras atrasadas, empresas falindo, o Comperj, que era pra ser um audacioso projeto de desenvolvimento social e urbano e de promoção de riqueza, tornou-se um caos. Na fala da deputada Janira Rocha, em assembleia veiculada na TV ALERJ, “ele está falindo a cidade de Itaboraí, ele está falindo aquela região, os consórcios de municípios que num primeiro momento estavam dentro desse processo de construção” (Youtube, 2014). A deputada apontou ainda que o lado mais sensível, mais pobres são os operários. E que dos 30 mil operários que trabalham no Comperj 50% não são do Estado do Rio de Janeiro, são de outros estados, em grande maioria do nordeste brasileiro. Já as análises na página do Facebook, o Comperj Online, nos indica que existe um colaborar que pautava e ainda continua pautando os acontecimentos, bem como dinamizando o processo, estimulando os trabalhadores, ex-trabalhadores a comentar suas postagens. A maioria das postagens e imagens são relacionadas ao momento de crise envolvendo o Comperj, as empreiteiras, os descontentamentos com sindicato da categoria e a cobrança dos direitos dos trabalhadores, e principalmente, as demandas dos trabalhadores. Entre os principais portais de notícias como o G1 e o Estadão, no período da greve, averiguamos críticas em relação ao Comperj. A matéria publicada pelo G1 na edição do dia 07/04/2014 e exibida no Jornal Nacional intitulada “Empresas ligadas à obra do Complexo Petroquímico do Rio atrasam salários e não pagam direitos trabalhistas”4, retrata o cenário envolvendo o Comperj, suas empresas subsidiárias e seus colaboradores. A participação do Jornal A Nova Democracia durante os protestos também foi importante para dar visibilidade a luta dos trabalhadores, bem como a atuação da Mídia Ninja. Em um vídeo relatam que foram impedidos de filmar às manifestações, tendo o seu direito de comunicar violado naquele momento. Mesmo assim, relataram parte da ação. Outro momento importante da pesquisa foi a averiguação das formas de comunicação desenvolvidas pelo Comperj, Petrobras, empreiteiras e do sindicato em busca de respostas ou pronunciamentos em relação a greve de 40 dias. Não cabe aqui destrinchar os resultados porque não é o intuito do trabalho, mas vale uma contextualização. Durante o período analisado não constatamos nenhum tipo de pronunciamento da Petrobras na rede, em sua página no Facebook, no site, tampouco no blog. Simplesmente a Petrobras e as empreiteiras não respondiam aos comentários dos funcionários, preferiram não comunicar. Não localizamos em seu site espaço para esclarecimentos, mas continuava a postar notas, informações e publicidade sobre suas boas ações, projetos sociais etc na tentativa de maquiar o momento de crise, maquiar a revolta e a indignação dos trabalhadores. O Comperj não possui site, blog, tampouco rede social digital. No site da Petrobras existe uma página (aba) com informações sobre o Complexo, porém não recebe atualização de conteúdo. Nesta página, além do conteúdo institucional, existe um boletim online. 4. Matéria veiculado no G1, edição do dia 07/04/2014 disponível em <http://g1.globo.com/jornal-nacional/ noticia/2014/04/empresas-ligadas-obra-do-complexo-petroquimico-do-rio-atrasam-salarios-e-nao-pagamdireitos-trabalhistas.html> Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 900 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva Este mesmo boletim é distribuído esporadicamente nas comunidades no entorno do Complexo. Já o Sinticom - Sindicato dos trabalhadores da indústria da construção civil e pesada, montagem e manutenção Industrial, de São Gonçalo, Itaboraí e região - publicava em seu site notícias sobre a situação da greve, bem como noticiava as sus próprias ações e informações relacionadas ao andamento das negociações com as empreiteiras. E algumas vezes, levantam bandeiras de estimulo aos funcionários. Sendo assim, não diagnosticamos estratégias para o gerenciamento da crise ocorrida no Comperj, mas pudemos sintetizar os resultados do seu silenciamento. Greve. Protestos, manifestações e demissões. Resistência. Uma comunicação autônoma via corpo a corpo, compartilhamentos de informações postadas, discussões fomentadas pelos trabalhadores a partir do tema da postagem, a fim de se organizarem, de compartilham seus pontos de vista, por vezes, divergentes quanto algumas demandas. Alguns favoráveis às ações do sindicato, outros querendo derrubá-lo. Uma comunicação autônoma forjada no interior dos ônibus a caminho do canteiro de obras, nos protestos registrando e compartilhando suas ações. Os trabalhadores fizeram uso das redes sociais para colocar a boca no trombone sobre as demissões e falta de pagamento de salários. De acordo com Bueno (2014, p. 120) “a comunicação democrática requer menos logística e mais diálogo, menos engenheiros de precisão e mais transparência”. Após mais de 40 dias de greve, o Sinticom, pressionou os trabalhadores, e sem alternativa eles decidiram pelo fim da paralisação. A greve foi derrotada em função do não apoio do sindicato aos trabalhadores, simplesmente de forma verticalizada decidiram que os funcionários deveriam acatar o aumento de 9% do salário e o não desconto dos dias de greve (contra os 15% de aumento e R$ 500, 00 de Sodexo - cartão alimentação que os trabalhadores reivindicavam), sendo estas as últimas possibilidades apontadas pelo sindicato, quem comentou publicamente a esse respeito e fez críticas severas foi a deputada Janira Rocha. Mesmo não tendo a reinvindicações atendidas a altura, os trabalhadores suspenderam o movimento grevista e voltaram às suas atividades, mas a luta continuou. Serviu também para demarcar a atuação dos trabalhadores enquanto movimento sem liderança. Movimento que aconteceu nas mentes, nas redes via celulares conectados à internet com mais repercussões nas ruas tempos depois. Logo depois da greve de 40 dias, os funcionários fizeram novas paralisações e continuaram usando a rede para fomentar discussões e reclamar sobre o descaso das empresas contratantes. As reclamações são inúmeras, dentre elas, o silenciamento das empresas terceirizadas, do sindicato e, especialmente, do Comperj. Um ano após o ocorrido, acontece um processo de demissão em massa devido à crise da Petrobras – a partir da investigação sobre corrupção, iniciada também há um ano, com a Operação Lava Jato, renúncia de diretores, fraude em licitações, falência de empreiteiras, o atraso nas obras do complexo. Aproximadamente há quatro meses 3.000 funcionários de uma das empreiteiras investigadas na Operação Lava Jato estão com salários atrasados, vivendo em condições de miséria e vulnerabilidade, alguns nas ruas. No canteiro de obras do Comperj só restaram 300 trabalhadores, atingindo de forma avassaladora suas vidas. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 901 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva O Comperj é o maior investimento individual de toda a história da Petrobras, contabilizando mais de US$ 8, 4 bilhões, ou seja, esse valor seria suficiente para a construção de aproximadamente três refinarias do porte da Refinaria de Duque de Caxias - Reduc. Hoje, é um fantasma para os moradores, para a maioria dos pequenos comerciantes da região do entorno do Comperj e principalmente para aqueles homens e mulheres que trabalham no canteiro de obras para levar para suas casas o alimento, para ter o direito de ir e vir. Todavia, enquanto esse movimento e muitos outros, estiverem em movimento, descasos, desmandos, esquemas de corrupção virão à tona. É apenas a pontinha do iceberg. E a autocomunicação tem favorecido a luta pelo direito a democracia comunicacional e a consciência de que ter direitos precisa ser exercida na prática. Em contrapartida, o cenário das manifestações de junho de 2013 permite um olhar atento para as reinvindicações da classe trabalhadora do Comperj. Indignados, buscam por meio de mobilizações na internet mecanismos, dispositivos que dê visibilidade em seus discursos e os auxilie na luta por melhores condições de trabalho, pagamento de salários atrasados etc. Tais trabalhadores colocaram a boca no trombone, ou melhor, nas redes sociais digitais, buscando visibilidade para demandas específicas. O que os motiva é um sentimento de revolta, descontentamento e indignação contra a conjuntura atual. Na primeira parte do texto apontamos categorias explicitadas por Gohn (2013; 2014), para situar os novos movimentos sociais, são elas: redes e indignados. O movimento de trabalhadores do Comperj aponta, mesmo que de forma provisória, para essas duas categorias. Interessante que a comunicação não acontece só via computadores e internet, os funcionários utilizaram durante os protestos de 2014 celulares, smartphones, num registro instantâneo do individual e do coletivo. Fazendo ponderações sobre as manifestações de junho de 2013 no Brasil, Gohn (2014, p.141) diz que “os celulares e as diferentes formas de mídia móvel passaram a ser meios de comunicação básicos, o registro instantâneo de ações transformou-se em arma de luta, ações que geram outras ações como resposta”. Exatamente como na passagem anterior, é o que se percebe neste movimento em rede e de indignados do Comperj. Além do Facebook e do Youtube, utilizam a ferramenta Zello, um aplicativo gratuito que realiza e recebe ligações por meio da internet, uma espécie de rádio. Assim, com mais este canal os funcionários se mobilizavam e articulavam suas demandas. Atualmente o administrador da página do Comperj Online no Facebook disponibilizou um contato via WhatsApp, mais uma ferramenta para colaborar com a luta os trabalhadores. Novos dispositivos em sintonia com a boa e velha rádio peão. Num encontro do canteiro de obras com as redes online acontece a autocomunicação. Por um lado, os trabalhadores almejam visibilidade por meio da internet, mesmo que não tenham respostas efetivas das empreiteiras, do sindicato e tampouco do Comperj, pelos mesmos canais. Por outro, se fazem ouvir e compartilham entre si suas demandas, suas opiniões. O Comperj Online parece ser reflexo da rádio peão, agora uma rádio sintonizada pelas ondas da internet. No entanto, mais do que categorizar manifestações, ações coletivas, mobilizações, protestos, movimentos sociais na era da internet, é importante buscar uma compreensão sobre o momento atual, seja na política, na economia, na cultura, na comunicação, na Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 902 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva vida cotidiana. Momento este, marcado pelo desejo e devir dos sujeitos que se movem nas redes e nas ruas, num espaço híbrido conforme Castells (2013). Porém, uma coisa é certa, os atores sociais estão mudando e a mudança começa na mente, com o desejo de formar redes. Tais redes não dizem respeito somente às redes que se formaram e se formam na internet, mas a rede complexa de atores sociais, cada qual, com sua luta em busca do bem comum. Difícil nomear os últimos acontecimentos no Brasil e no mundo, difícil nomear, categorizar a classe trabalhadora do Comperj, talvez até mesmo o conceito de classe precisaria ser repensado na atual conjuntura. Todavia, redes e indignados parecem mesmo servir, provisoriamente, aquilo que dá corpo, alma, autonomia e põe em movimento centenas, milhares de pessoas. E a autocomunicação parece gerir esse movimento no canteiro do Comperj em meio à conflitos e resistência. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. 4ª reimpressão. Chapecó, SC: Argos, 2013. ANTOUN, Henrique; MELINI, Fábio. A internet e a rua. Ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013. COSTA, Rogério da. Por um novo conceito de comunidade: redes sociais, comunidades pessoais, inteligência coletiva. In: ANTOUN, Henrique (Org.). Web 2.0: Participação e vigilância na era da comunicação distribuída. Rio de Janeiro: MAUAD, 2008, pp. 29-48. CASTELLS, Manuel. 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Disponível em: < https://www.youtube. com/watch?v=4xTAQQRbFeQ> Acesso em abril de 2014. GOHN, Maria da Glória. Novas teorias dos movimentos sociais. 4. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. 166p. GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e redes de mobilizações civis no Brasil contemporâneo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. 189p. GOHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. 157p. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 903 Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência Suelen de Aguiar Silva Deputada Janira Rocha. Youtube. Disponível em: < https://www.youtube.com/user/mandatojanira> Acesso em abril de 2014. PERUZZO, Cicilia M. Krohling. Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. 3ª edição. 342p. RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. 191p. SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho: Uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. 268p. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 904 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo The communicative act in the “jornadas de junho”? The MPL, the mainstream media and the Executive Branch K e i l a C . G. R o s a 1 Resumo: Em junho de 2013, manifestações tomaram as ruas do país. Um fenômeno que não se via há mais de duas décadas, desde os “caras pintadas”. Nas recentes manifestações, organizadas pelo Movimento Passe Livre, protestava-se contra o aumento da tarifa do transporte público, mas novas reivindicações surgiram e o número de adeptos ao movimento cresceu. Com o caso em tela, o objetivo deste trabalho foi explorar a atual ambiência comunicacional da internet, por meio de um estudo exploratório sob a luz do ato comunicativo de três atores: o MPL/ SP, a grande imprensa e o Poder Executivo. Para tanto, foram analisadas suas respectivas atuações durante as Jornadas de Junho, em seus esforços nas redes sociais digitais, para divulgar seus pontos de vista relativos ao fenômeno que se vivia. As impressões obtidas foram que as manifestações tiveram relevância para o MPL/SP, devido à vasta visibilidade alcançada. Para a grande imprensa, os fatos tiveram elevado valor noticioso. Nas instâncias governamentais, houve pouco espaço dado às manifestações. Palavras-Chave: Jornadas de Junho. Manifestações sociais. Imprensa. Redes sociais. Internet. Abstract: In June 2013, demonstrations took to the streets of the country. A phenomenon not seen for more than two decades, since the “caras pintadas”. In the recent demonstrations, organized by the Movimento Passe Livre, the protesting was initially against the increase in public transport fare, but new claims arose and the number of adherents to the movement grew. With this case in question, the objective of this study was to explore the current communication ambience of the internet, through an exploratory study in the light of the communicative act of three actors: the MPL/SP, the mainstream press and the executive branch. Therefore, their respective performances were analyzed during the June Days, in their efforts in digital social networks to disseminate their views on the phenomenon that was lived. The obtained impressions were that the demonstrations had relevance to the MPL/SP, due to the vast achieved visibility. For the mainstream media, the facts had high value news. In government bodies, there was little space given to the demonstrations. Keywords: Journeys of June. Social events. Media. Social network. Internet. 1. Mestranda em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB). [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 905 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa INTRODUÇÃO UPONHA QUE o articulista de um importante jornal publicasse o seguinte trecho S em seu artigo de domingo: (...) um novo estilo de mobilização e contestação social, bastante diferente da prática política da esquerda tradicional, (...), pegando a crítica e o próprio sistema de surpresa e transformando a juventude, enquanto grupo, num novo foco de contestação radical. O que estava acontecendo? Falava-se de uma nova consciência, de uma nova era, enfim, de novos tempos. De que ‘tempos’ estamos falando? Se a publicação não datasse de 1986, escrita em livro pelo Prof. Carlos Pereira, poderíamos dizer que o trecho acima referia-se aos acontecimentos de junho de 2013 no Brasil. No entanto, a descrição do professor é parte de um texto que discutia outra época, os anos 1960. Período em que “inúmeros analistas afirmaram que houve uma grande revolução cultural e comportamental nos costumes e hábitos de uma geração que estava muito além de seus pais e antepassados, no sentido de anseios por um novo modo de vida” (GOHN, 2013, p.13). Do mesmo modo, junho de 2013 tem sido tratado como um marco, por constituir-se em fenômeno inesperado, que levou mais de um milhão de pessoas às ruas em um único dia. As manifestações ficaram conhecidas como Jornadas de Junho. O fenômeno iniciou-se a partir da demanda pública pela revogação de aumento da tarifa do transporte urbano na capital paulista, mas rápido transformou-se em algo maior e as razões passaram a ser muitas. O assunto tem demandado muita reflexão nas ciências sociais, porquanto pode significar uma transformação na cultura política, ensejando novas experiências aos atores sociais no modelo político representativo do Brasil republicano. No campo da comunicação, com foco nas modernas tecnologias da comunicação e com referências ao agir comunicativo pensado por Habermas, a nossa intenção é alimentar o discurso em torno da pergunta: como comportaram-se o poder executivo, o Movimento Passe Livre e imprensa tradicional frente às manifestações populares? Assim, este trabalho pretende realizar um estudo exploratório, a partir de interações nas redes sociais digitais e na mídia realizadas por três atores das Jornadas de Junho. De outro modo, pretende-se avaliar como estes atores se utilizaram-se de argumentos para externar seus pontos de vista relativos ao fenômeno vivido. Por se tratar de atores com perfis e atuações díspares na sociedade, constituímos um corpus de estudo que especifica os meios, no intervalo de dias entre 5 e 20 de junho de 2013. Para vislumbrar as abordagens do MPL/SP em face do evento, exploramos o seu perfil no Facebook e o site da organização. A imprensa foi examinada a partir dos jornais Folha de São Paulo (Folha) e O Estado de São Paulo (Estadão) e da TV Globo. E para observar a visão do Poder Executivo, consideramos os portais na internet da Prefeitura e do Governo Estadual de São Paulo, além dos perfis de Fernando Haddad e Geraldo Alkmin no Facebook. ENQUADRAMENTO TEÓRICO Em junho de 2013, alguns atores sociais foram protagonistas, na ambiência comunicacional na internet, durante as Jornadas de Junho. Pensando na relação que estes Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 906 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa atores protagonizaram junto à sociedade, que por sua vez participou nas ruas e nas redes sociais on line, buscamos aproximar esta interação com a teoria do agir comunicativo de Habermas. O conceito do agir comunicativo traz em seu bojo a interação com o outro, onde, a partir do ato de fala, utiliza-se da prática argumentativa para chegar a um consenso. Neste caso, nos atos de fala “os conteúdos associam-se a pretensões de validade e fundamentam relações intersubjetivas que constituem realidades sociais factuais, que podem ser empiricamente conferidas” (LEO MARR, 2014, p.15). Podendo o ouvinte contestar os argumentos que não atendem os aspectos de validade do ato falado, sendo que “o significado de cada ato de fala não pode ser desconectado do complexo horizonte de sentido do mundo da vida; ele permanece entrelaçado com o saber de fundo, intuitivamente presente, dos participantes da interação” (HABERMAS, 2000, p. 485). Desta forma, o estudo habermasiano retrata ainda duas categorias importantes para entender o agir comunicativo. A primeira, trata-se de um ‘mundo objetivo’ relacionado a um agir estratégico e movido pelos interesses individuais, sobretudo econômico propícia à coerção entre os atores da fala, o que elimina a ideia de consenso. A segunda categoria é o ‘mundo da vida’, constituído por um “saber intuitivo ao qual se domina por viver numa mesma cultura e compartilhar uma mesma experiência. Ele é um pano de fundo de coisas desde sempre sabidas que torna possível a comunicação entre os falantes”. Este último, para o autor, é condição para o agir comunicativo. Todos estes conceitos levantados por Habermas tornam-se importantes para percebermos a validade do agir comunicativo, ou mesmo a existência dele, na interação dos atores sociais que estiveram no cerne das manifestações que aconteceram em São Paulo em junho de 2013. Atrelado ao nosso trabalho, ainda levamos em consideração o conceito de redes sociais por Recuero (2014, p. 403) onde “as redes socais são estruturas que representam processos de conversação, fluxos de informações e seus reflexos no campo social”. Entendendo que o processo de conversação é um modo de interação que permite interlocutores utilizarem-se do ato da fala para concretizar a relação nas redes e também nas ruas. Não menos importante para pensar o ato comunicativo a partir das redes sociais on line, o conceito de ‘interação’ permite vislumbrar os atos de fala relacionados aos atores sociais presentes neste estudo. Neste sentido, optamos pela definição proposta por Thompson (2014, p. 119), que antes de mais nada relembra que “Durante a maior parte da história humana, a grande maioria das interações sociais foram face a face. Os indivíduos se relacionavam entre si principalmente na aproximação e no intercâmbio de formas simbólicas, ou se ocupavam de outros tipos de ação dentro de um ambiente físico compartilhado” No entanto, hoje na era da sociedade da informação, com “o desenvolvimento dos meios de comunicação cria novas formas de ação e de interação e novos tipos de relacionamentos sociais” (THOMPSON, 2014, p. 119). Sendo assim, o autor divide a interação em três formas distintas, de acordo com o meio de comunicação utilizado. A primeira forma é a interação ‘face a face’, onde é compartilhado o mesmo espaço físico durante a troca simbólica. De outra forma, há um diálogo presencial. Em seguida, temos a ‘interação Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 907 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa mediada’, ou seja, necessita-se de recursos técnicos para que o diálogo se materialize, como por exemplo, em nosso caso de estudo, o computador e a internet, sobretudo pelos sites de redes sociais, dentre outros dispositivos comunicacionais. E por último, a ‘quase-interação mediada’, também colocada em tela por meio da imprensa. Neste caso a autor defende ser uma mediação ‘predominantemente de sentido único’. Porém, permite um “certo tipo de situação social na qual os indivíduos se ligam uns aos outros num processo de comunicação e intercâmbio simbólico” (THOMPSON, 2014, p.122). Desta forma, entendemos que veículos de comunicação como a TV e o jornal, também são meios que permitem a interação entre atores, por isso, nosso olhar sobre eles. Além disso, com a disponibilidade do conteúdo jornalístico em dispositivos móveis e com as ferramentas de comunicação disponíveis por meio da conectividade, proporcionada pela internet, estes meios de comunicação deixam de estar em um ambiente monólogo da comunicação mediada. Em nosso entender, as novas tecnologias da comunicação permitem a interação e a uma troca simbólica regrada por normas sociais com a pretensão de validade, seja ela mediada ou quase-mediada. Nessa esteira, no campo da imprensa, bebemos na fonte de Park (2008, p.51) para pensar o resultado de uma interação, onde tomamos que “A notícia, como algo que faz as pessoas falarem, tende a possuir o caráter de um documento público e está limitada de um modo característico a eventos que causam mudanças súbitas e decisivas. (...) A função da notícia é orientar o homem e a sociedade no mundo real”. Desta forma os acontecimentos compartilhados, durante as Jornadas de Junho, e construídos por uma sociedade envolvida no diálogo, podem ser consequências do agir comunicativo frente uma possível transformação na cultura política, ensejando novas experiências aos atuais atores sociais. O Movimento social Ao que tudo indica, as Jornadas de Junho, inicialmente, tiveram, como protagonista, o Movimento Passe Livre - São Paulo (MPL/SP), um movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente. O movimento social caracteriza-se por um modelo de organização ativa, designada a atuar no campo político e social em nome de seus princípios, que, em regra, utiliza meios não institucionalizados em grande escala para resistir ou produzir mudanças sociais. Na maioria das vezes, este modelo de instituição tem como tática a realização de manifestações massivas, boicotes, podendo, às vezes, agir com violência. (RODRÍGUEZ, 2003, p. 241). Com o olhar sobre as interações via página oficial do MPL/SP na internet e em seu perfil no Facebook, fizemos aqui, uma descrição não linear dos fatos, mas seguindo uma cronologia que permitisse enxergar um panorama da comunicação em torno das manifestações. Desta forma, em 5 de junho de 2013, um grupo de estudantes e alguns intelectuais2 se reuniram, em evento público, com objetivo de debater os problemas de mobilidade 2. Foram convidados, como debatedores, o Prof. Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da UNICAMP, o Prof. José Arbex Jr., da PUC-SP e representantes da União dos Movimentos de Moradia (UMM). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 908 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa urbana da cidade. Tratava-se de um de encontro organizado pelo MPL/SP. Chamou-nos a atenção, além da participação de pesquisadores acadêmicos, a interação feita por meio das redes sociais digitais, com o intuito de mobilizar pessoas para o encontro. Observamos, todavia, a página deste evento no Facebook, onde os dados demonstram que 4,2 mil pessoas foram convidadas e dentre elas 209 confirmaram presença e 165 sinalizaram como “talvez”. Naturalmente, os modernos dispositivos móveis de comunicação, como celulares smartphones, notebook e tablets, conectados em rede, facilitaram a convocação e mobilização, não apenas pela mobilidade e fácil acesso, bem como pela questão de tempo e espaço diminuídos pelas tecnologias disponíveis. Já em 6 de junho de 2013, aconteceu um protesto contra o aumento das passagens de ônibus na capital paulista. O protesto foi chamado de 1º Grande Ato pelos organizadores. Apesar da denominação, as manifestações que reivindicavam melhoras nas condições de mobilidade urbana não tiveram início em junho de 2013, como recordou Erica de Oliveira, membro do MPL/SP em entrevista à Revista Caros Amigos (2013)3. Ainda foi possível tomar conhecimento de que em outras cidades, como Taboão da Serra/SP e Porto Alegre/RS, também houve reajuste na tarifa do transporte público e que, através de protestos e manifestações sociais, a população conseguiu a revogação do aumento das passagens. Em consequência, no entendimento do MPL/SP, se em tais cidades a demanda foi atendida, logo, em São Paulo a reivindicação também poderia ser. Outras informações disponíveis revelaram alguns eventos que ocorreram antes do dia 6 de junho. Acreditamos que essas ocorrências faziam parte da estratégia do MPL/ SP para interagir com outros atores políticos que reconheciam a luta do movimento como legítima, configurando competência interativa e demonstrando aptidão discursiva e comunicativa. Para ilustrar, uma reunião pública realizada na Câmara Municipal de São Paulo, no dia 27 de maio, organizada pelo Diretório Municipal do PSOL, convidou o MPL/SP. A pauta da reunião envolvia temas como plano de mobilidade para a cidade, aumento das tarifas e renovação dos contratos de concessão com as empresas de ônibus. Outro evento foi um ato de vigília contra o aumento da passagem que aconteceu em frente à prefeitura de São Paulo, no dia 28 de maio. Ocasião em que, mais uma vez, destacamos o uso das redes sociais digitais para o chamamento. Os organizadores criaram uma página do evento no Facebook e convidaram simultaneamente 26.800 pessoas, das quais 1.100 confirmaram a participação e 794 se manifestaram indecisos. Neste caso, o MPL/SP foi convidado a apoiar o evento. Em paralelo, desde o dia 12 de maio, circulavam nas redes sociais as intenções do MPL/SP em ‘parar’ a cidade no dia 6 de junho. O fato estava explícito em sua página na internet em uma peça de divulgação: “Se a tarifa aumentar, São Paulo vai parar!”. Tratava-se de mais uma peça na estratégia de mobilização para o primeiro grande ato. 3. Segundo ela, o MPL desenvolve trabalhos de base desde 2005. Para outro membro: “As revoltas de junho de 2013, desencadeadas pela luta organizada pelo MPL/SP contra o aumento das tarifas, não são algo inteiramente novo. Para começar a compreender esse processo é preciso que voltemos a, no mínimo, 2003, quando, em resposta ao aumento das passagens, iniciou-se em Salvador uma série de manifestações que se estenderam por todo o mês de agosto daquele ano, que ficou conhecida como a Revolta do Buzu.” (MPL/SP, 2013). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 909 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa No mesmo sentido, durante os protestos do 1º Grande Ato, verificou-se que membros do MPL/SP interagiam com seus seguidores virtuais em sua página no Facebook. As falas publicadas no espaço aberto ao público diziam: “Um passeio pelo centro não revoga o aumento!”, “São Paulo começa a parar!” e “23 de Maio tomada pela população!”. Para ilustrar a intensidade desta interação nas redes sociais on line, levantamos alguns números. Uma imagem do ato, publicada durante o seu acontecimento, foi compartilhada por 246 pessoas, ou seja, recebida e multiplicada na rede centenas de vezes por (inter) locutores, demonstrando concordância com a mensagem. Mais, neste dia, oito mensagens, resultaram em 1.583 curtidas, 149 comentários e 975 compartilhamentos. Muito importante, portanto, foi a interação em tempo real, compartilhada por quem era a própria notícia. Estes números auxiliam no estudo da competência interativa do movimento social. Dando sequência, no dia 7 de junho, as trocas de mensagens, sobre as ocorrências do protesto do dia anterior, aconteceram de maneira vasta pelas redes sociais. E também na grande imprensa (comentaremos à frente). O conteúdo das falas que se destacavam era a violenta ação policial sobre os manifestantes, um público que, segundo MPL/SP, alcançava cinco mil pessoas. Interessante foi observar que, aproveitando a cobertura jornalística dos grandes veículos de comunicação, o MPL/SP convocou uma nova manifestação. A ação foi coroada de êxito, uma vez que, a grande visibilidade dada ao movimento, multiplicou o poder de mobilização através dos sites de redes sociais. Assim, mais uma vez, o fluxo de conteúdo na página do MPL/SP no Facebook cresceu. Ao considerarmos os números de interações no primeiro e no segundo dia de protesto, ou seja, entre os 6 e 7 de junho, notamos o crescimento de 423,7% em compartilhamento de mensagens. Após os eventos de 5, 6 e 7 de junho, houve uma rápida difusão das notícias sobre as manifestações e a ausência de resposta por parte dos governos Estadual e Municipal. Nesta perspectiva o MPL/SP mudou seu discurso nas redes e o ato de fala vinha acompanhado da mensagem: “amanhã vai ser maior”. Logo, as manifestações não se expandiram só pelas ruas, elas se proliferaram também pelas redes digitais. O número de adeptos aos protestos crescera. Ao que tudo indica, fruto de interações sociais, com mútuos interesses. Em suma, foram sete atos organizados pelo MPL/SP na capital. O último aconteceu dia 20 junho, logo após o anúncio da revogação do aumento da passagem. Após esta data, o MPL/SP retirou-se da arena, mas outros protestos persistiram, porém com pautas e demandas que não eram comuns às do movimento. De forma breve, o levantamento dos acontecimentos das Jornadas de Junho nos permitiu observar que havia um ambiente comunicacional diferente dos movimentos sociais passados. Este ambiente está formalizado no espaço virtual, marcadamente em sites de redes sociais que atuaram como suporte para as interações que constituem as redes sociais (Recuero, 2014, p.103). Observando essas ideias, cabe perguntar se estamos passando por uma mutação nos processos comunicativos e, como reflexo, novas experiências políticas estão sendo experimentadas? Como afirma Virilio (1996, p. 15), “(...) ninguém ignora que a capacidade de comunicar é para o homem, como para toda espécie viva, a condição indispensável de seu estar no mundo, ou seja, de sua sobrevivência” e os eventos de junho sugerem que essa capacidade foi alterada e potencializada. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 910 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa A GRANDE IMPRENSA E O FENÔMENO DAS RUAS Consideramos a cobertura midiática de acontecimentos com vasto valor social, como foram as Jornadas de Junho, importante no que tange as mediações e interações do evento com uma coletividade. Neste sentido, tem relevo a imprensa, considerada quarto poder diante de um Estado democrático, devido a sua posição de ‘contra poder’ exercido quando abusos ofendem os demais poderes legítimos da democracia: Executivo, Legislativo e Judiciário. No caso do Brasil, o quarto poder está concentrado em grandes, porém, poucos grupos privados. Esta imprensa tradicional formada por estes poucos grupos vem desempenhando um papel importante de formador da opinião pública. Além disso, “O jornalismo se constitui como lugar de articulação de discursos sociais, com base no diálogo de interesse público e, consequentemente, agente mediador entre o mundo dos fatos e a instância da recepção” (DALMON, 2010, p.216) Assim sendo, nossa investigação observou à forma de interação da imprensa e o uso das funções de linguagem: representativa, interativa e expressiva. O estudo focou os telejornais da Tv Globo, além dos jornais Folha e Estadão, por serem veículos de comunicação de maior audiência na capital paulista. Para observar de perto, destacamos algumas publicações da imprensa, enquanto locutor no processo de interação, neste caso, a ‘quase-interação’. Com relação ao 1º Grande Ato, por exemplo, o noticiário nacional na TV falou: “Em São Paulo, manifestantes que protestavam contra o aumento no preço das passagens de ônibus entraram em confronto com a polícia, na noite desta quinta-feira (6), na Avenida Paulista.” (JN, TV Globo, 6/06/2013). E na Folha, a mensagem em destaque na capa era: “Protesto contra o aumento de ônibus tem confronto e vandalismo em S.P” (Folha de S. Paulo, Cotidiano, 7/06/2013). Além destes destaques, um comentário sobre as manifestações, feito pelo apresentador do telejornal Bom Dia SP (TV Globo), causou polêmica nas redes sociais e também virou notícia. Ou seja, uma notícia virou notícia, pois sua mensagem foi contestada em sua verdade. Uma publicação no portal Folha noticiava o problema: (...) ao vivo, a jornalista Patrícia Bringel explicou que alguns manifestantes já estavam liberados após pagarem fiança, com valores que variavam de um salário mínimo até R$ 3 mil. Ao fim da explicação, o apresentador se manifestou: ‘Alguns deles não tem R$ 3,20 ou 20 centavos a mais para pagar a passagem de ônibus, mas têm R$ 3 mil para pagar a fiança.’ (...) Alguns internautas reclamaram do comentário, mas houve quem elogiasse. Em sua conta no Twitter, Bocardi agradeceu um internauta que achou a frase “sensacional. (Folha de S. Paulo, online, F5, 7/06/2013) E nessa esteira, outro jornal local, enfatizava a situação dos protestos como: A manifestação deixou rastro de destruição e sujeira na Avenida Paulista. Ato organizado por estudantes critica o aumento das passagens do transporte público. Movimento Passe Livre (MPL/SP) promete fazer novo protesto nesta sexta-feira (7) em Pinheiros. (SPTV, TV Globo, 2013) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 911 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa Também, no primeiro dia de protesto, um jornal impresso afirmava na capa: “Protesto contra tarifa acaba em depredação e caos em SP: manifestantes fecharam avenidas, invadiram shopping e deixaram rastro de destruição” (O Estado de São Paulo, Capa, 7/06/2013). Diante do posicionamento negativo da grande imprensa, frente aos acontecimentos, o MPL/SP divulgou uma nota de esclarecimento, informando que as cinco mil pessoas que participavam do evento, saíram em caminhada pelas ruas da cidade de forma pacífica e foram surpreendidas por forte repressão policial (com armas e bombas), o que provocou revolta e violência. E reforçou: “As imagens dessa repressão brutal podem ser vistas em toda a imprensa e em vídeos nas redes sociais” (MPL/SP, 2013). No segundo dia de protesto, 7 de junho, a mensagem na TV era: “Protesto contra aumento de passagens causa nova confusão em São Paulo” (JN, TV GLOBO, 07/06/2013). E, pelo segundo dia consecutivo, as manifestações ganharam a capa dos principais jornais da capital paulista. O Estadão destacou: “Protesto fecha a Marginal e a lentidão chega a 226 km” e no primeiro caderno publica uma entrevista exclusiva com o prefeito sob o título: “Haddad vai pedir ajuda de Dilma para baixar passagem”. A partir destas mensagens e analisando a reação dos interlocutores nas redes sociais, percebemos que a ação da imprensa pode ser considerada coerciva, ao levarmos em consideração os desencontros das trocas simbólicas por meio do ato de fala dos principais atores. No dia 10 de junho, o MPL/SP resolveu contrapor-se à imprensa. O movimento divulgou uma segunda nota, desta vez, com o intuito foi informar sobre as prisões que ocorreram no primeiro grande ato, já que a grande imprensa não estava sendo claro em suas declarações e nem se aprofundava nas verdadeiras questões sociais das manifestações. A visão do MPL/SP era reforçada pelas interações do movimento com seus ativistas no Facebook, onde uma ativista trouxe para o cenário a seguinte fala: “Precisamos nos unir para dar notícias verdadeiras, porque, para a imprensa, não passam de baderneiros”. Em seguida aconteceu o 3º Grande Ato, dia 11. O Jornal Nacional narrou: “Houve tensão e confronto na região central. Os lojistas fecharam suas portas e ficaram com muito medo. A polícia reagiu com bombas e gás... tropa de choque se posicionando para enfrentar a 3ª manifestação do MPL/SP (...)” (JN, Tv Globo, 2013). Neste dia, a emissora dedicou o tempo de 1 minuto e 33 segundos ao assunto com cobertura ao vivo. O editorial da notícia era: “(...) os manifestantes usaram barricadas. Um grande número de policiais foi chamado para o local do protesto. Durante a tarde desta terça (11) houve confrontos e tumulto.” (JN, 11/06/13). Apenas para contextualizar, neste dia, jornalistas e ativistas foram detidos pela polícia e houve mais de 100 feridos. Bens públicos e privados sofreram danos (GOHN, 2014, p. 27). No dia seguinte, as manifestações receberam ainda maior atenção da imprensa. O Jornal Nacional dedicou 03 minutos e 28 segundos ao tema. No discurso da emissora, a ideia de que atos de vandalismo tomavam conta da manifestação: “o protesto que começou com manifestantes caminhando ao lado de policiais, virou uma batalha nas ruas (...) em menos de uma semana foi o terceiro e mais violento (...)” (JN, 12/06/2013). Nesta perspectiva, concordamos com Gohn (2014), quando afirma que as manifestações passaram por um momento de desqualificação e descaso. Além disso, na interpretação da autora, “a criminalização dos movimentos foi a forma mais fácil que muitos dirigentes Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 912 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa encontraram para responder à situação e revelar também um desconhecimento dos fatos que estavam se articulando” (GOHN, 2014, p. 22). Após 13 de junho, as imagens da violência estampadas nas capas dos jornais e revistas, encontravam-se enquadradas de forma diferente em relação aos primeiros protestos. Uma imagem brutal foi publicada, onde uma repórter aparece com um tiro de bala de borracha no olho (Folha de S. Paulo, Capa, 14/06/2013). Outra foto destacada, que nos permite perceber a mudança de enquadramento da imprensa, foi a de um casal que estava em um bar na Avenida Paulista e foi brutalmente expulso do local pela polícia. Para a imprensa, naquele momento, a polícia foi protagonista da violência nas manifestações, diferente do que vimos nas notícias anteriores. Diante da alteração da postura da imprensa, questionamos sua função social, marcadamente na ambiência comunicacional. Ressalta-se, porém, que “é inegável que ela desempenha claramente um papel-chave na batalha para ganhar os corações e mentes dos segmentos sociais que, no Brasil ao menos, formam o que se chama opinião pública” (ROSSI, 2007, p.8). De qualquer forma, houve forma coerciva na comunicação. Houve um interesse obnubilado nas interações da imprensa com seu público, que não o senso comum. Avançando para os estudos das notícias do quinto ato, 17 de junho, foi divulgado que 50 mil pessoas se reuniram em frente na Praça da Sé (Centro) e saíram em protesto pela cidade. O Jornal Nacional (JN), logo após o seu usual boa noite, iniciou o programa da seguinte forma: “Depois de uma segunda-feira histórica marcada por protestos pacíficos na sua imensa maioria, manifestantes voltaram às ruas de diversas cidades brasileiras hoje” e continuou, “(...) no início da noite houve um tumulto em frente a Prefeitura promovido por uma minoria mais exaltada” (JN, TV Globo, 18/06/2013). Diante disso, só em 19 de junho, os governos municipal e estadual de São Paulo anunciaram a revogação do aumento das passagens. Em suma, no início das manifestações, a imprensa se comunicava com tom de reprovação, retratando o ocorrido como atos de vandalismo, sem se aprofundar nas questões que levaram tantas pessoas às ruas da cidade. Depois posicionou-se favoravelmente ao movimento, apoiando os protestos, alterando sua fala e posicionamento argumentativo sem motivo claro. A PRESENÇA GOVERNAMENTAL NA INTERNET A busca pela presença governamental na internet tem intenção de enriquecer o debate na ambiência comunicacional em torno das Jornadas de Junho. Ajuda ainda, a vislumbrar como as instituições usaram os recursos disponíveis na rede mundial de computadores para interagir com a sociedade durante as manifestações como meio de comunicação. Desta forma, visitamos as páginas oficiais na internet do Governo de Estado e da Prefeitura de São Paulo. Acreditamos que estes estudos exploratórios podem oferecer pistas sobre a presença do ato comunicativo destas instituições nas manifestações. A Prefeitura Sobre a Prefeitura, exploramos primeiramente, no que consideramos ser o meio de comunicação oficial da instituição, o Portal www.capital.sp.gov.br. E para nossa surpresa não encontramos relatos sobre os eventos de junho de 2013. Para chegar a esta conclusão Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 913 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa utilizamos o mecanismo de busca, disponibilizado na página principal do Portal. Buscamos informações por meio do indexador ‘junho 2013’. Continuamos a busca, desta vez por meio do indexador ‘2013’, que poderia nos trazer quaisquer notícias deste ano, porém o resultado encontrado demonstrou um gargalo, entre dezembro de 2012 e setembro de 2013, não há nenhuma informação publicada. No mesmo do Portal, por meio de um link disponível, fomos para o canal-vídeo da instituição no Youtube. Neste espaço, foi possível observar que a Prefeitura conta com 920 inscrições, isto é, a quantidade de pessoas que acompanham os vídeos publicados pela instituição. O canal foi criado em janeiro de 2013 e dentre os conteúdos, encontramos uma entrevista do Prefeito sobre o tema em foco e o vídeo de uma reunião promovida pela instituição entre o Conselho da Cidade e o Movimento Passe Livre. Partimos, então, em busca de informações no perfil da Prefeitura de São Paulo no Facebook. O resultado foi uma página criada em julho de 2014, mais de um ano após as manifestações. Alternativamente, procuramos o perfil do prefeito Fernando Haddad. De acordo, com as informações do site, o perfil foi criado em fevereiro de 2013, no entanto, o acesso às informações não são públicas. Concluímos que a comunicação é feita apenas por meio da instituição Prefeitura. O Governo Estadual Passando para instancias estaduais, tivemos como resultado da pesquisa com o indexador ‘junho 2013’, no mecanismo de busca dentro do Portal do Governo estadual, diversas notícias, mas nenhuma específica sobre as manifestações de 2013. No entanto, a partir da página principal do Portal acessamos um link que nos levou ao canal de vídeos da Instituição no Youtube. No canal, criado em março de 2009, encontramos um vídeo com a declaração, na íntegra, do Governador Geraldo Alkmin sobre o anúncio da revogação do aumento da tarifa do transporte público na capital paulista. O vídeo foi publicado 19 de junho de 2013. Percebemos nesta publicação que o dispositivo que permite aos visitantes escrever comentários, encontrava-se desabilitado, ou seja, não era permitido comentários naquele espaço sobre os vídeos da instituição em tela. Continuamos a pesquisa no Facebook em busca de interações do governo estadual. Neste espaço, fizemos uma busca entre os dias 6 e 20 de junho de 2013 por publicações sobre as manifestações. Os resultados são: 1) no dia 11/06 havia a publicação de vídeo com o título “Em Paris, Alckmin destaca expansão do metrô de São Paulo”; 2) no dia 16/06, outro vídeo “Secretaria de segurança convida manifestantes para reunião”, seguido do comentário de uma usuária da rede social “Como assim? Quem repreende os manifestantes são os policiais. Não tem essa. A reunião é necessária com os responsáveis da Policia Militar do Estado de São Paulo, que parecem estar vivendo em um regime em que não se possa manifestar dignamente”; 3) em 17/06 a chamada “Governo convida manifestantes para definir trajeto e garantir manifestação pacífica.” Seguida de um vídeo “PM define estratégias para manifestações desta segunda” e 4) no dia 19/06 – outro vídeo sob o título “Declaração da revogação do aumento das passagens”. Em suma, diante desta rápida exploração nos canais de comunicação das instâncias governamentais, percebemos que houve pouca interação e as vezes nenhuma, com a sociedade e que o discurso muitas vezes repetia o que ouvíamos da imprensa. Neste Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 914 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa sentido, torna-se relevante lembrar que “as redes de comunicação são fontes decisivas na construção do poder” (CASTELLS, 2013, p. 12). E diante das novas tecnologias da comunicação disponíveis hoje à sociedade, principalmente no que diz respeito às redes sociais, as instituições governamentais, demonstraram ainda não utiliza-las em grande potencial. Um dado importante divulgado pelo Instituto Data Folha diz que as redes digitais são a segunda maior fonte de notícias, segundo os usuários da internet, no estado de São Paulo. Esta informação pode ser um estímulo para os atores em tela e constitui um objeto de estudo nas ciências sociais. Além disso, diante das Jornadas de Junho ...a mídia escrita, TV, som/rádio e internet foi muito mais que veículo de transmissão dos acontecimentos. Foi parte agente da construção dos eventos, quer seja noticiando as manifestações com destaque, manchetes diárias, divulgando as convocações; quer seja transmitindo os atos em tempo real. (GOHN, 2014, p. 72) Desta forma, percebemos ainda que as manifestações que ocorreram em junho de 2013, demonstraram que há um processo comunicativo complexo por trás do fenômeno. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante das informações levantas e as impressões obtidas neste estudo exploratório, concluímos que as manifestações tiveram valores sociais elevados, levando-se em consideração uma possível transformação na cultura política, a partir de novas experiências vividas pelos atores sociais no modelo político representativo do Brasil. Isso porque as manifestações provocaram uma interação múltipla e em rede entre os vários atores sociais. Apesar de uma demanda central - a revogação do reajuste do transporte público urbano -, sucedeu-se dispersões nas intenções de fala dos interlocutores, aparentemente produzido pela interação da imprensa com o público, como destacado neste trabalho. Ao mesmo tempo, o consenso, ato pretendido no agir comunicativo, parecia estar subliminarmente no desejo de que o fenômeno fosse um evento pacífico, sem violência. Acreditamos, todavia, que o pressuposto da coerção, presente no conceito de ‘mundo objetivo’ estava presente quase, ou quiçá, em todas as interações dos atores envolvidos efetivamente nas manifestações. Deste modo, para o MPL/SP, enquanto movimento social, as Jornadas de Junho, foram um fenômeno importante devido à vasta visibilidade alcançada, juntamente com ampliação de seus adeptos, além de uma certa reputação, o que pode caracterizar um objetivo individual da organização. Para a grande imprensa, representada pelos jornais e TV’s selecionados, foram fatos de grande valor noticioso, com vasta repercussão e audiência, a ponto de mudar a programação normal dos veículos em prol da transmissão dos acontecimentos. Ou seja, a preocupação em ganhar pontos de audiência, reflexo de interesses econômicos, estava à frente dos interesses sociais comuns aos envolvidos. Já para as instâncias governamentais, pouco foi o espaço dado às manifestações em seus canais de comunicação na internet. Isso, em nosso entender, está relacionado à baixa prioridade dispensada ao evento dentro das políticas de comunicação do poder executivo. Assim, como inspiração para um futuro estudo nas questões comunicacionais e sociais participativas, destacamos Antônio Candido que, em uma de suas contribuições Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 915 Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo Keila C. G. Rosa sobre Raízes do Brasil, afirmou que a camada dos oprimidos seria a única parcela da população capaz de revitalizar a sociedade e dar um novo sentido à vida política. Esta visão permite olhar as manifestações de 2013 como de pistas de uma nova experiência política, a partir das tecnologias da comunicação. REFERÊNCIAS CAROS AMIGOS (2013). A tarefa é fortalecer as lutas sociais. Ano XVII, edição 196. CASTELLS, M. (2013). Redes de Indignação e Esperança. Rio de Janeiro: Zahar. DALMON, E. F. (2010) Narrativas Jornalísticas e Narrativas Sociais. In: FERREIRA, Giovandro M. et al (orgs) Teorias da Comunicação: trajetórias investigativas. Porto Alegre: EdiPUCRS. FOLHA DE S.PAULO (2013). Diversos conteúdos. Recuperado em 20/09/2013, de http:// www1.folha.uol.com.br/fsp/ GOHN, M. da G. (2013). Sociologia dos Movimentos Sociais. São Paulo: Cortez. GOHN, M. G. (2014). 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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 916 Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos Between Identity and Citizenship: the discourse of individuals-subjects M a r c i a P e r e n c i n To n d a t o 1 Resumo: aqui trago discursos de sujeitos-indivíduos urbanos entendidos como narrativas de identificação e pertencimento, interpretadas no âmbito da intersecção consumo-cidadania. Exploro a cidadania modificada pela globalização, indo além da dimensão geopolítica e das possibilidades tecnológicas. Analiso isso na intersecção com o consumo como lugar de circulação dos sentidos, em movimentos de exclusões e legitimações, entendendo que nas sociedades democráticas capitalistas a cultura do consumo acontece em um contexto de “cidadania” e que na relação mídia-sociedade-sujeito é preciso compreendê-la como um “processo”, determinado e limitado às práticas e pertencimentos. Empiricamente, discuto resultados de pesquisa de campo realizada no Distrito Federal, junto a 16 entrevistados, a partir do que se percebe a compreensão da cidadania como um aspecto que permite que as pessoas sejam “aceitas” na cidade, na sociedade onde convivem, mas que, em parte, depende de ações “externas”, do Estado, no caso. Fica claro também uma relação ‘naturalizada’, mas não reconhecida verbalmente, entre cidadania e consumo na medida em que para “ser aceito”, reconhecido nos seus direitos de “ir e vir”, para entrar nas lojas, em instituições públicas e privadas, é preciso “estar apresentável”. Palavras-Chave: Comunicação. Consumo. Cidadania. Identidade. Discurso. Abstract: I bring here speeches by urbane subject-individuals understood as narratives of identification, interpreted in the context of the intersection consumption-citizenship. I explore citizenship as a concept modified by globalization, going beyond geopolitical dimension and technological resources. I analyze that in the intersection with consumption understood as a place of circulation of meanings, in movements of exclusions and legitimations, understanding that the culture of consumption happens in a context of “citizenship” in the capitalist democratic societies, understood as a “process”, determined and limited by social practices of geographical belonging. Empirically, I discuss about field findings resulted from work carried out at Distrito Federal, where I interviewed 16 people, from what we can infer that the subjects understand citizenship as something that allows people to be “accepted” in the city, in the society where they live, but that it is partially dependent on external actions, by the State, in the case. A ‘naturalized’ relation between citizenship and consumption is also pointed out, but not verbally acknowledged, in so far as “to be accepted”, to be recognized in one’s rights of “going and coming”, entering in the shops, public and private institutions, it is necessary “to be well-dressed”. Keywords: Communication. Consumption. Citizenship. Identity. Discourse. 1. Doutora em Comunicação pela ECA-USP, professora titular PPGCom-ESPM, [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 917 Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos Marcia Perencin Tondato O ASSUNTO DESTE estudo são as narrativas de identificação e pertencimento dos sujeitos-indivíduos urbanos entendidas como decorrentes das identidades sociais que numa sociedade pós-tradicional “tem de ser construídas pelos indivíduos – pois não são dadas nem atribuídas” na medida em que “nas circunstâncias mais desnorteantes possíveis: não só a posição da pessoa deixou de ser fixa na ordem do status, como a própria ordem é instável e cambiante e é representada por produtos e imagens, igualmente cambiantes” (Slater, 2002, p. 37). Exploro a cidadania modificada pela globalização, indo além da dimensão geopolítica e das possibilidades tecnológicas, num contexto rico de cruzamentos e interações que se refletem nas práticas sociais e culturais. Isso é analisado na intersecção com o consumo como lugar de circulação dos sentidos de distinção, em movimentos de exclusões e legitimações. Como princípio, entendo que, nas sociedades democráticas capitalistas, a cultura do consumo acontece em um contexto de “cidadania”, um conceito que na relação mídia-sociedade-sujeito é preciso ser compreendido como um “processo”, determinado e limitado à práticas e pertencimentos. Com vistas a discutir as interlocuções referentes à cidadania e o viver em sociedade, trago resultados de pesquisa de campo realizada no Distrito Federal, hoje constituído por 31 Regiões Administrativas, originadas da construção de Brasília, que nos seus 54 anos (até 2014) extrapolou o plano inicial. Junto a seus habitantes, brasileiros vindos de praticamente todos os estados da nação, busquei concepções de consumo e cidadania na expressão de suas práticas de consumo midiático e material, que ocorrem no entrelaçamento de uma diversidade de culturas e valores. Entendendo que consumo interseciona as relações sociais como “cenário de objetivação de desejos”, sendo também o lugar de circulação de sentidos e significados, a proposta é problematizar a transposição de conceitos caracterizados pelo tempo e espaço lineares, para a compreensão de práticas promovidas por dinâmicas constituídas de transformações no entendimento da cidadania tendo em vista a passagem da condição de trabalhadores para cidadãos e finalmente consumidores. É no consumo que diversos aspectos da vida em sociedade se integram, na medida em que realiza a apropriação e usos dos produtos, transformando “desejos em demandas e em atos socialmente regulados”, sendo que “o desejo de possuir ‘o novo’ não atua como algo irracional ou independente da cultura coletiva a que se pertence” (Garcia Canclini, 1996, p. 59-60). Uma cultura que acontece principalmente nas sociedades democráticas capitalistas em um contexto de “cidadania” sujeito a condições que se alternam, e/ou sobrepõem, conforme as demandas do sistema em curso. Nesse mesmo espaço também ocorre o consumo, integrando diversos aspectos da vida em sociedade, fazendo parte constituinte da própria cultura. CAMINHOS DA DESCOBERTA No âmbito da recepção trago discursos sobre cidadania pensados na dimensão do simbólico cultural e do imaginário social, resultado de leituras convergentes e divergentes possibilitadas pela interação social no contexto hegemônico do cotidiano, midiatizado e mediado na intersecção com os processos de significação e ressignificação inerentes ao viver social citadino. A partir de entrevistas em profundidade, faço reflexões Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 918 Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos Marcia Perencin Tondato referenciadas no consumo como constituição das identidades e na cidadania como espaço de participação do indivíduo comum nos destinos da sociedade, ciente e agente de seu direito ao consumo simbólico e cultural, definido também pelo consumo material. Para o campo empírico, partindo do entendimento de que a intersecção das práticas de consumo midiático e material, em correspondência com o exercício da cidadania, é parte constituinte da identidade do indivíduo-sujeito, tomei os moradores de Brasília como universo por tratar-se esta cidade de um espaço de intersecção de culturas onde, eventualmente, se concretiza uma identidade “brasileira”. Pela segmentação da ocupação espacial, característica de Brasília, foi possível atingir a diversidade planejada com uma amostra melhor qualificada. Diversidade que, buscada entre os brasilienses, com formação educacional básica, média e superior, permitiu alcançar o todo, identificado nas formações discursivas das falas dos respondentes. Brasília, uma cidade planejada, voltada ao espaço público. A não consideração de um desenvolvimento impactado pelas contingências características da vida que se vive “no dia a dia” resultou no crescimento periférico desordenado, originando a maioria das cidades satélites (ou Regiões Administrativas – RAs – denominação oficial). Nelas mora a maioria dos descendentes dos “candangos”, que vivem da prestação de serviço no PlanoPiloto, habitado majoritariamente por funcionários públicos. Entretanto, os dois grupos têm algo em comum: a origem em outros estados, de onde levaram uma diversidade de culturas, valores e até formas de expressão. Regionalismos que foram/são abrandados em uma cidade em contínua “construção”, mais do que em metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, para onde a migração se deu por “ondas”, integrando os “chegantes” a uma “identidade” já constituída, ainda que tenham encontrado seus “pares” em bairros já estabelecidos, onde foram acolhidos, mas também onde sofrem exclusões na medida em que se tornam “mundos à parte” da dinâmica cosmopolita. Brasília aqui representa o melting pot brasileiro. DISCURSOS E INTERPRETAÇÕES Foram entrevistadas 16 pessoas (9M e 7H), 12 migrantes de outros estados (os próprios ou com os pais), especialmente do Nordeste (5 – Ceará, Maranhã, Paraíba, Piauí), Sudeste/Sul (5 – Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul) e dois do Centro-Oeste. Dos quatro entrevistados nascidos em Brasília, seus os pais eram do Sudeste e Nordeste. A média de idade dos que não nasceram em Brasília é de 47 anos, com média de tempo de moradia em Brasília igual a 31 anos. A média de idade dos brasilienses natos é 40 anos, a mais jovem com 29 anos. A maioria dos entrevistados exerce atividade remunerada, característica considerada na seleção intencional da amostra. Pelas próprias características da cidade, metade é funcionário público e os demais exercem atividades de administração na Feira de Ceilândia (cargo efetivado pela experiência e interação com os comerciantes do local, mas sem formação específica), vendedor de rua, enfermeiro e diarista. Quatro das entrevistadas são donas-de-casa, entre elas uma funcionária pública aposentada. A descrição do perfil dos entrevistados é relevante na medida em que a pesquisa conduzida teve o discurso como princípio de trabalho metodológico, fosse pelo olhar das representações do sujeito coletivo, fosse pela análise de discurso de linha francesa. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 919 Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos Marcia Perencin Tondato Nesse processo, o interesse foi a “passagem da superfície linguística para o objeto discursivo”, avaliando-se a “materialidade linguística: o como se diz, o que o diz, em que circunstâncias [...] e o processo de enunciação (em que o sujeito se marca no que diz)”, isso nos “fornecendo pistas para compreendermos o modo como o discurso que pesquisamos se textualiza [...] em função de formações imaginárias, em suas relações de sentido e de forças, através dos vestígios que deixam no fio do discurso” (Orlandi, 2001, p. 65). Na interpretação a seguir, também levo em conta que “os sentidos resultam de relações: um discurso aponta para outros que o sustentam”, sendo que “segundo o mecanismo da antecipação, todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor ‘ouve’”, um mecanismo que regula a argumentação (Orlandi, 2001, p. 39). No caso do discurso em questão, ainda que tenha sido explicada a finalidade da pesquisa às pessoas entrevistadas, necessariamente não fica claro o processo completo, o que será feito com o que elas dizem, daí a suposição de que seus discursos carreguem a preocupação de “impressionar” o interlocutor, ou o receio de declarar fielmente seus hábitos, opiniões e sentimentos. Antes de apresentar o tema central deste artigo, as significações dadas ao conceito de “ser cidadão” e interpretações disso no contexto de uma identidade de pertencimento, é importante comentar as opiniões sobre o “viver em Brasília” como contextualização tendo por princípio que para que a comunicação, como produção de sentido que é, se efetive, fazem-se necessários o discurso, a subjetividade e o contexto (Baccega, 1998) e a abordagem qualitativa é a que melhor dá conta da captação e interpretação deste processo. Além disso, o essencial para estudarmos o processo de decodificação (a recepção) não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular. Entendendo que a percepção que temos do lugar onde vivemos carrega elementos da nossa identidade coletiva de pertencimento, começo retomando Hall (2006, p. 71) quando diz que a moldagem e a remodelagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas. [...] Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos. Elas têm aquilo que Edward Said chama de suas “geografias imaginárias”, suas “paisagens” características, seu senso de “lugar”, de casa/lar, de heimat, bem como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas que ligam passado e presente, em mitos de origem que projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos, mais importantes. Embora se referindo ao estado do indivíduo no contexto das nações-estado num mundo globalizado, tal citação é adequada à situação dos moradores de Brasília na medida em que para a maioria a mudança para o Distrito Federal se deu em um contexto essencialmente de busca por melhores condições de sobrevivência. Ou seja, ainda que originários de regiões do mesmo território nacional, no DF se encontraram diferentes culturas, tradições e valores, que hoje ainda estão em vias de constituir uma identidade brasiliense, talvez não aos moldes do que ocorreu em São Paulo e outras regiões Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 920 Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos Marcia Perencin Tondato receptoras de migrantes, mas ainda assim passando por processos de estranhamento e identificação, que eventualmente resultam em novas identidades de pertencimento e concepções de cidadania. Decorrente disso, como era de se esperar e tendo ocorrido, os entrevistados manifestaram grande satisfação em morar em Brasília, nem tanto pelo que a cidade lhes oferece em termos de serviços públicos, mas pelas oportunidades encontradas de sobrevivência e progresso (material), especialmente em uma época, como historicamente sabemos, em que o Nordeste sofria as agruras das secas. Nestas falas é possível desvelar elementos que nos levam a uma cidadania como representação social resultante do compartilhamento de ideias, o que viabiliza as sociedades. As “identidades de pertencimento” que permeiam estas falas trazem as marcas da interação social vivida e exigida por estas pessoas quando da chegada a este lugar, então estranho, inóspito, longe de referências biológicas e culturais familiares. Brasília [...] uma cidade que me deu tudo o que sou hoje, [...] me deu as condições de buscar os conhecimentos. [...] aqui dá pra gente viver feliz, principalmente pra trabalhar. [...] catar papelão dá dinheiro, catar latinha dá dinheiro, vender garrafa, vender ferro velho. (Compilação de algumas falas dos entrevistados) Numa perspectiva macro de interpretação, tais declarações refletem uma visão limitada, mas muito realista, das possibilidades de inserção cidadã, de consideraremse indivíduos de direitos em uma sociedade, que se diz, fundamentada na igualdade e democracia. Isso nos remete com mais ênfase à necessidade de uma maior reflexão sobre os processos de significação da recepção e apropriação dos conteúdos e simbolismos que preenchem os cotidianos na sociedade midiatizada do consumo. Os sentimentos de viver bem se relacionam com “ter conforto”, “comodidade”, ainda que condicionados às condições de acesso material. Quando isso não é possível, a gratidão por um lugar que os acolheu é mais forte do que o reconhecimento de ser Brasília uma cidade construída para abrigar o poder, estatal e financeiro, cuja construção e funcionamento dependeram e dependem de um contingente de migrantes. Reconhecem as dificuldades, mas não se colocam como seus pacientes, os problemas apontados são comentados como se afetassem apenas aos outros, a quem não conhecem. Entrevistados com escolaridade de nível superior, ocupando cargos públicos concursados de relevância hierárquica, consideram-se acima das necessidades. Falam de direitos de cidadão referindo-se a quem não tem recursos materiais, pois para eles, que têm plano médico particular, moradia, condições de escolha de lugar de compra e lazer, não há necessidade de maior atenção do Estado. Quem precisa de ações do governo (relacionando à cidadania) é quem não tem. O custo (de vida) é muito alto, mas boa parte dos salários de Brasília cobre isso. [...] tem a facilidade de ganhar dinheiro só que o aluguel aqui é muito caro. [...] as coisas aqui no Plano são mais caras, e você encontra mais barato nas cidades satélites. [...] Alimentação eu acho caro, moradia eu acho caro, transporte é caro. Não adianta você pensar que vai se divertir dependendo do transporte público, porque deu meia-noite, acabou. [...] transporte público em Brasília muito inacessível, muito caro, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 921 Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos Marcia Perencin Tondato muito ruim de horário. [...] A saúde pública de Brasília está bem ruim. [...] (nas RAs)2 tá muito difícil, não tem pronto socorro, não tem médico. [...] Saúde pra quem, como nós, tem planos de saúde, tá tranquilo. [...] Assalto demais. De noite é perigoso, principalmente lá onde eu moro, na Ceilândia. [...] Nós moramos aqui num setor que é mais no centro, acho que os governantes se preocupam mais em dar mais segurança pra gente. (Compilação de algumas falas dos entrevistados) O resultado é uma aceitação de uma situação que exclui, que limita, que seleciona quem pode e quem não pode transitar, consumir, viver no Plano, como é designada a área em que está situada Brasília propriamente dita, o “avião”, com seu Eixo Monumental atravessando de Leste (onde fica a residência presidencial) a Oeste (o Memorial JK abrindo-se para as rodovias de ligação com as RAs mais urbanizadas e desenvolvidas (Núcleo Bandeirantes, Taguatinga, Ceilândia) (Prado, 2012), separando a Asa Norte da Asa Sul com suas quadras, superquadras e entrequadras. Pra compras aqui (Paranoá) é muito bom, tem um comercio bem farto, os preços também é (são) compatível(ies) com a renda da gente, se comparando ao Plano Piloto. [...] Eu prefiro morar aqui no centro de Brasília, é um pouco mais caro, mas aí é o custo benefício, né, eu tenho a comodidade de ir pro meu trabalho que é daqui 5 minutos, economizo o meu tempo, meu combustível, meu carro. Agora sobre esse negócio de mercado, eu faço aqui, Tem padaria, tem mercado pra tudo quanto é lado. [...] O nosso comércio é muito rico, que gera muita renda. Existem vários ambulantes, existe o cara que vende churrasquinho e que sobrevive disso, cria famílias, paga a faculdade do filho vendendo churrasquinho [...] tem uma vivência muito forte, as pessoas convivem muito e ela tem um comércio muito fortalecido você acaba tendo as grandes lojas que você tem na área central de Brasília você tem também nas cidades satélite. [...] Aqui a gente já conhece todo mundo. Quase todo mundo que mora aqui ainda é daqueles tempos que receberam as casas. (Compilação de algumas falas dos entrevistados) O que se percebe é a relativização do bem-estar. Aqueles com maior acesso material falam das necessidades do “outro”, apontam aspectos negativos da parte dos governantes, das autoridades, mas sempre relativizando, pois a maioria é funcionário público e, por ética ou receio (afinal eu era uma desconhecida entrando em suas casas e fazendo perguntas sobre suas vidas). Já as pessoas com menos acesso material relativizam no âmbito da necessidade de cada uma buscar o que é de seu interesse, procurar, reconhecendo a carência do que lhe é fornecido, compensando com uma relativa facilidade de acesso com quem tem o poder, condições de encaminhar as demandas, ainda que as soluções sejam na maioria encaminhadas ao particular e não ao coletivo, como era de se esperar. Ou seja, conseguir atender as necessidades, o mínimo pelo menos, fica por conta do indivíduo, sendo assim atendido. A quem tem pouca expressão material, resta o apelo individual. [...] eu sinto o desrespeito no trânsito [...] A gente tem o Hospital de Base, que era referência no país. [...] construíram novos leitos e tal, pra Copa. [...] Nesse ponto eu me sinto desrespeitada. 2. Regiões Administrativas. RAs de moradia dos entrevistados: Paranoá, Taguatinga, Ceilândia, Cruzeiro. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 922 Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos Marcia Perencin Tondato [...] tem muitos direitos que a gente consegue buscar e alcançar [...] aqui no Distrito Federal, percebo que as pessoas escutam muito a gente [...] e aqui em Brasília é muito bom porque a gente tem contato às vezes com as pessoas que estão diretamente lá mexendo com o governo. [...] eu procuro com quem eu possa falar pra que ela me dê atenção. (Compilação de algumas falas dos entrevistados) Por outro lado, um dos entrevistados, vendedor de açaí e salada de fruta na rua, relata situações e diversidades que atribui a sua condição financeira, diz que só quem tem dinheiro é respeitado como cidadão, atendido devidamente, tanto em locais públicos (hospitais, departamentos públicos, por exemplo) ou privados (bancos, academias). Percebe-se nestes discursos a compreensão da cidadania como um fenômeno a partir do qual as pessoas são “aceitas” na cidade, na sociedade onde convivem, mas também em parte dependente de ações “externas”, do Estado, no caso. Fica claro também a relação ‘naturalizada’, portanto, não reconhecida verbalmente, entre cidadania e consumo. A análise preliminar já nos aponta que para ser cidadão, reconhecido nos seus direitos de “ir e vir”, entrar nas lojas, nas instituições públicas e privadas, é preciso “estar apresentável” (de terno e gravata), sem mencionar as dificuldades de acesso geográfico ao lazer e à cultura, visto que os grandes eventos culturais, públicos ou privados, são realizados no centro, no caso, no Plano Piloto. Ao discutir a relação cidade-cidadania, Santana (2000) lembra que em Henri Lefebvre ser cidadão é ter direito à cidade e que a cidade deveria ser o lugar de efetivação de direitos e deveres. A cidade é o lugar do cidadão, entretanto não é necessariamente o que acontece, pois a segregação, tanto social quanto espacial, vem aumentando de forma extraordinária. “Os sinais da cidadania, da igualdade de condições, de acessos, de direitos e deveres comuns a todos deveriam estar inscritos por toda parte e serem reconhecidos em todos os pontos” (Santana, 2000). A cidadania desenhada pelos entrevistados se aproxima disso ao que complemento dizendo que é aquela da qual fala Hall (2006, p. 49) quando explica que na impossibilidade de sobreviver onde nasceram, assumem Brasília como o local onde constroem uma identidade de cidadão, onde se sentem amparados. A cidadania brasiliense é complicada de se adquirir porque a maioria não nasceu aqui [...] Você tem que ver a prática: veio para trabalhar, trabalhe, amizade, se der, é segundo plano. [...] você ter um poder de consumo, você ter condições de comprar as coisas pra sua casa ou para os seus filhos. [...] bolsa família [...] extremamente importante, mas o poder da compra é totalmente atrelado à cidadania. [...] Sim claro, pode você chegar no hospital e ser atendido. Você se sente cidadã, cidadão, você não se sente um mendigo implorando por uma obrigação do governo. [...] eu acho que o poder de compra realmente dá uma autonomia bem bacana pra pessoa, ela trabalhar, ela ter seu emprego e poder ir lá e comprar o que ela quiser e onde ela quiser. (Compilação de algumas falas dos entrevistados) Na percepção dos entrevistados, a autonomia faz parte da cidadania e por autonomia entendem “poder escolher”, não só o que comprar e onde, mas também em relação ao uso fruto dos serviços públicos – saúde, educação, lazer. Nesse sentido, ser obrigado a recorrer a um posto de saúde específico, ter que esperar para ser atendido, não ter transporte público em quantidade e horários suficientes para o trabalho e para o lazer é não ser Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 923 Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos Marcia Perencin Tondato respeitado nos direitos de cidadão. Por outro lado, ter a oportunidade de participar da gestão da escola, do orçamento público, com vistas a atender as demandas mais prementes, que me verdade deveriam ser atendidas sem necessidade de reivindicações, é ser reconhecido como membro efetivo da sociedade. [...] a gente tem que fazer valer o direito da gente assim como os deveres então tem que buscar os direitos. A gente também tem que dar muita opinião. [...] a gente vai num posto de saúde e não consegue ou não tem uma vaga pra tal coisa, a gente busca o ministério público e ele de imediato vai arrumar uma UTI pra pôr o seu parente [...] tem que ir para o orçamento participativo e a gente tem que ir lá votar. A nossa escola é participativa. [...] Eu acho que isso faz parte da cidadania. [...] A gente procura fazer uma parceria com os pais que é um ato de cidadania tanto da gente quanto do pai participar da vida escolar do filho [...] Eu acho que uma coisa que faz parte da cidadania pra mim e que tá faltando nas pessoas é se preocupar com o próximo, tentar ajudar de alguma forma. [...] “ah eu vou votar se o cara me arrumar um emprego”. Eu já acho isso errado. Eu tinha que ter a minha casa própria pra eu me sentir uma verdadeira cidadã, e eu não tenho então como se diz eu não me considero uma cidadã porque eu não consegui até hoje ter minha... [...] Eu sei que é ajudar na limpeza da cidade, é participar de alguma coisa que tiver pra cidade para o bem da comunidade, é você ser cidadã. Ajudar o próximo. [...] Tem muita gente que ajuda e faz essa parte assim mais cidadã que não aparece, tem muita gente ajuda creches, lar de velhinhos, então eu acho assim que o pessoal é bem, é bem. (Compilação de algumas falas dos entrevistados) No ambiente do liberalismo, o centro da teoria social é a escolha individual: “as instituições sociais são decorrentes da maneira pela qual os indivíduos formulam seus interesses privados, autodeterminados como demandas sociais, [...] as escolhas são feitas pelos indivíduos exclusivamente como parte da busca da satisfação de sua agenda” (Slater, 2002, p. 46). Neste contexto, a identidade só pode nascer da escolha, tendo o indivíduo que “negociar identidades múltiplas e contraditórias à medida que percorre diferentes esferas públicas e privadas, cada qual com seus diferentes papéis, normas”. “A verdade é contextual; a autoridade e os conhecimentos especializados são provisórios” (Giddens apud Slater, 2002, p. 86). CONSIDERAÇÕES FINAIS Na síntese desta busca junto a 16 entrevistados enfatizo que a compreensão da cidadania se dá a partir da aceitação na vida em sociedade, de circular pelos espaços públicos, participar da vida comercial e cultural da cidade. A compreensão sobre “ser cidadão” ainda não abrange a condição política, restringindo-se ao social – o assistencialismo –, e ao comunicacional – ter conhecimento das pendências sociais – casos de exclusão, impunidade, fragilidade. Assim como as identidades (Tondato, 2011, p. 159), as ações coletivas só subsistem quando há espaço para ações individuais. Por mais que estejamos ‘expostos’ a interesses dominantes, a lutas simbólicas, e reais, na complexidade que se tornou a sociedade, criam-se, ou buscam-se, brechas para a expressão dos sujeitos transformados em agentes nos seus cotidianos. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 924 Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos Marcia Perencin Tondato As pessoas ainda não se sentem parte de um todo, por ele responsáveis. Acreditam que suas ações não tenham repercussão, o que dá espaço para as infindáveis campanhas de mobilização às quais somos expostos com frequência, porém sem resultados efetivos de mudanças. Ter pensado as relações apontadas a partir da comunicação utilizando o Discurso do Sujeito Coletivo me aproximou da noção de cidadania entendida como uma representação social resultante do compartilhamento de ideias, a partir do que as sociedades são viabilizadas. Entretanto, dificilmente chegaremos a um conhecimento consistente, que atenda às necessidades de conceituação e compreensão com vistas à práxis se não houver uma forte disposição para reformulações e reinvenções, de novas possibilidades de expressão e conhecimento. Para tanto, é necessário um movimento que trabalhe a educação com a mídia e a partir desta, não apenas como objeto de motivação ao estudo, mas como objeto de reflexão, inserindo seus assuntos e argumentações no discurso efetivo das salas de aula e discussões sociais. Por outro lado, é nesse contexto hegemônico que devemos procurar e entender os novos referentes conceituais de cidadania e consumo, procurando ultrapassar as relações parciais e precárias com as quais nos defrontamos no fazer das reflexões. Num contexto em que as identidades “explodem” a partir da multiplicação de referentes “desde aqueles com os quais o sujeito se identifica como tal, [...] mas também dos indivíduos, que agora vivem uma integração parcial e precária das múltiplas dimensões que os conformam” (Martin-Barbero, 2006, p. 60). REFERÊNCIAS Baccega, M. A.. (1998) Comunicação e linguagem – discursos e ciência, São Paulo: Moderna. Garcia Canclini, N.. (1996) Consumidores e cidadãos - conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ. Hall, S.. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª edição. Rio de Janeiro: DP&A. Martin-Barbero, J.. (2006) “Tecnicidades, identidades, alteridades: mudanças e opacidades da comunicação no novo século” In Moraes D. de (Org.). (2006) Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad X. Orlandi, E. P. (2001) Análise de Discurso - princípios e procedimentos. 3ª edição. São Paulo: Pontes. Prado, L. F. do. (2012) “A ocupação irregular de terras no Distrito Federal e o impacto ambiental”. Bacharelado em Direito, 2012. 63 p. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação) - Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, 2012. Disponível em: <http://repositorio.uniceub.br/bitstream/123456789/607/3/20768492_Lindalva%20Prado.pdf>, acesso em março, 2015. Santana, M. A.. (2000) Memória, cidade e cidadania. In: Costa, I. T. M. & Gondar, J. (Orgs.) Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7 Letras. Slater, D.. (2002) Cultura do consumo & modernidade. São Paulo: Nobel. Tondato, M. P.. (2011) Identidades múltiplas: meios de comunicação e a atribuição de sentido no âmbito do consumo. In: Temer, A. C. R. P. (Org.). (2011) Mídia, Cidadania e Poder. Goiânia: Facomb/FUNAPE, p. 153-174. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 925 Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré R enata da S i lva S o u z a 1 Resumo: A Maré, conjunto de favelas localizado na zona norte do Rio de Janeiro, foi ocupada em abril de 2014 por forças militares de pacificação. A engenhosa operação, que envolveu um total de 2.700 militares, composta por 2.050 homens do Exército, 450 fuzileiros navais, e 200 policiais militares com 20 tanques blindados, além de jipes e metralhadoras, foi transmitida ao vivo por diversos veículos de comunicação. Assim, o artigo que se apresenta toma como objeto a cobertura midiática desta ocupação militar e utiliza como método a análise das reportagens publicadas em tempo real à invasão. A ideia é esboçar as tensões entre o discurso dito oficial angariado pelos meios de comunicação e as estratégias informativas engendradas através das redes sociais por narradores comunitários da Maré. Observa-se que tais iniciativas podem colocar em disputada novas versões dos fatos. Para tanto, serão traçadas abordagens teóricas que deem conta da análise a respeito da ordem do discurso, a partir de Foucault, e de uma breve reflexão sobre o discurso do sofrimento. Busca-se compreender como se forja o discurso midiático sobre a favela, como este reafirma estereótipos e legitima intervenções autoritárias do Estado. Cabe observar que a autora é moradora da Maré e acompanhou a ação como telespectadora. Palavras-Chave: Maré, favela, discurso, midiático, milirarização. Abstract: The Complexo da Maré, a group of 16 slums in North Rio de Janeiro, was occupied in April 2014 by Federal troops. The ingenious operation, which involved a total of 2,700 military, consisting of 2,050 men from the Army’s Parachute Brigade, 450 Marines, and 200 Military Police officers rely on 20 armored tanks, plus machine-gun jeeps was broadcast live by several medias. Thus, this article presents the dimension of media coverage of this military occupation using as method the analysis the headlines in real time. The idea is to describe the tensions between the official discourse of public power absorbed by the mainstream media and informational strategies produced through social networks by community narrators. These initiatives may present new versions of the events, playing the narrative to the official discourse. Therefore, theoretical approaches will be drawn analyzing the order of discourse, from Foucault, and a brief reflection on the discourse of suffering. This article seeks to understand how the mainstream media forge a speech about the slums that consequently reaffirms stereotypes and legitimizes authoritarian 1. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ. Jornalista e Publicitária formada pela PUC-Rio, é pesquisadora do LECC – Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária da UFRJ. Em sua dissertação de mestrado, concluído em 2011, a doutoranda explorou o tema “O Cidadão: uma década de experiência ideológica, pedagógica e política de comunicação comunitária”. E-mail: [email protected]. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 926 Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré Renata da Silva Souza actions of the state in peripheral areas of the city. It should be noted that the author is a resident of Complexo da Maré and followed the occupation as spectator. Keywords: Maré, slums, discourse, media, military. A ORDEM DO DISCURSO FABRICAÇÃO DO discurso, de acordo com Michel Foucault (2012), obedece uma A série de procedimentos. Com o objetivo de limitar seus poderes e perigos, essa produção é controlada, selecionada, organizada e redistribuída. Desse modo, em nossa sociedade, há mecanismos de exclusão que se revela na interdição do direito de dizer tudo. É descabido falar sobre tudo, no entanto, é facultado o direito de fala a alguns privilegiados, os sujeitos de fala. Nesse sentido, nas áreas relativas à sexualidade e à política, o discurso se caracteriza por sua obscuridade e sua relação com as interdições ligadas ao desejo e ao poder. É onde se processa o poder ilimitado sobre o corpo social. Foucault identifica três sistemas de exclusão, que se valem da separação e rejeição, que concedem capilaridade e organizam o discurso, são eles: a palavra proibida, que se caracteriza pela fala do louco expondo a oposição entre razão e loucura; a segregação da loucura; e a vontade de verdade, capitaneada pela dicotomia entre verdadeiro e falso. O autor rememora que os poetas gregos, no século VI, se valiam do discurso verdadeiro para pronunciar o futuro. Tal atividade provocava a adesão da população em um espetáculo completamente ritualizado. No século VII, no entanto, o sofista perde seu reinado, já que o discurso de verdade se afastou do ato ritualizado de enunciação e se estabeleceu no próprio enunciado. Ao se estabelecer uma separação entre Hesíodo e Platão, houve consequentemente a dicotomia entre discurso verdadeiro e discurso falso. O discurso verdadeiro deixa de ser desejável, porque se distanciou do discurso ligado ao poder. O discurso ganha outros contornos na dimensão do acontecimento e do acaso, classificada por Foucault como procedimento interno de controle e delimitação do discurso. São elas o comentário e o autor. O comentário articula o acaso do discurso, uma vez que relaciona o texto primeiro com o texto segundo e permite construir novos discursos, uma possibilidade aberta de fala. Já o autor corresponde ao, mais que o indivíduo falante ou escritor, princípio de unidade do discurso e sua coerência. “O comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade do eu” (FOUCAULT, 2012, p. 28). Outro princípio de limitação do discurso é a disciplina, que se opõe tanto aos princípios do comentário e do autor. A disciplina, diferente do princípio do autor, se caracteriza pelo domínio da técnica e de métodos. Em oposição ao comentário, a disciplina não pressupõe um ponto de partida, já que prenuncia a construção de novos enunciados e formulações indefinidamente. A disciplina fixa os limites do discurso através do jogo de uma identidade, que precisa ser constantemente reatualizada obedecendo as regras impostas pela própria disciplina. Há ainda outro grupo de procedimento que, ao determinar as condições de funcionamento de controle do discurso, promove a “rarefação dos sujeitos que falam”. Para se ter acesso à ordem do discurso é necessário dominar determinadas regras e atender a certas exigências. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 927 Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré Renata da Silva Souza As doutrinas, sejam elas religiosas, políticas ou filosóficas, se qualificam como o inverso de uma “sociedade de discurso”, uma vez que tende a difundir-se. No entanto, esta realiza uma dupla sujeição tanto relativa ao sujeito que fala o discurso como dos discursos ao grupo. Em uma escala mais ampla, há a apropriação social do discurso realizada, por exemplo, pelo sistema de educação. Este é uma ferramenta política capaz de manter ou modificar a apropriação do discurso, uma vez que detém saberes e poderes específicos. Para Foucault, o discurso filosófico “nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso (...) isso se dá porque todas as coisas podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si” (FOUCAULT, 2012, p. 46). Sendo assim, “os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem” (Idem, p. 50). “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Ibid., p. 10). Desse modo, não há surpresa sobre a dominação de um discurso midiático que se revela como hegemônico na manutenção do poder daqueles que detém o direito de fala. Ou seja, as elites formulam seus discursos para sustentar seus privilégios e disseminar através de seus meios de comunicação o discurso hegemônico que identifica os despossuídos financeiramente como inimigos, como classe perigosa que deve ser controlada e vigiada. O DISCURSO MIDIÁTICO SOBRE A FAVELA O discurso hegemônico sobre a favela, angariado pelo discurso midiático, a delimita como um espaço dominado pelo tráfico de drogas, pela violência e falta de condições humanas de sobrevivência. Em uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (Cesec), em 2004, um dos consensos encontrados entre os jornalistas é o reconhecimento de que os veículos em que trabalham são os responsáveis pela caracterização das favelas como espaços privativos da violência. Isto porque a pauta prioritária dá conta das operações policiais, dos tiroteios, execuções, etc. Alguns argumentam a falta de “fontes legítimas” ou mesmo uma recepção negativa por parte da população. Ao que a pesquisa indagou corretamente: “Será que os repórteres estão limitando a sua presença nas favelas ao acompanhamento de ações policiais por causa da hostilidade da população ou passaram a encontrar uma recepção hostil por só acompanharem as ações policiais?” (RAMOS; PAIVA, 2007, p. 77). A pesquisa relaciona a abordagem monotemática à elitização das redações, desde a década de 70, quando o diploma universitário passou a ser obrigatório para o exercício da profissão. Isto caracterizaria o aumento do apuro técnico em detrimento de uma aproximação mais orgânica do repórter com o cotidiano dos moradores de favela, algo já experimentado pelos “jornalistas da antiga”. Outra hipótese seria o reduzido número de pessoas negras e/ou ligadas às comunidades dentro das redações. No entanto, conclui que não se deve creditar a cobertura estigmatizante sobre a favela apenas ao repórter. As pautas seguem uma linha editorial previamente defina pelo veículo de comunicação que prioriza a cobertura dos bairros nobres, aonde estão seus leitores que “não gostam Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 928 Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré Renata da Silva Souza muito de favela”, como afirmou uma das jornalistas entrevistadas. Aliado a tudo isso, está a suposta sensação de insegurança gerada nos repórteres após a execução do jornalista da TV Globo, Tim Lopes, no Complexo do Alemão. Uma das jornalistas entrevistadas pela pesquisa, Roberta Pennafort, alertou para a falta de sensibilidade de seus colegas ao cobrirem o sofrimento dos moradores de favela. Ela narrou que em uma cobertura sobre um deslizamento de terra em um morro, que havia vitimado três crianças, uma repórter fazia perguntas completamente alheias à dor da família. Pennaforte garante que os repórteres, em geral, na apuração in loco de tragédias dramáticas com famílias da classe média ou alta costumam ser mais respeitosos e chegam a compartilhar da dor do outro. Tal relato reforça a percepção empírica de que os discursos de sofrimento na construção midiática não se qualificam por uma neutralidade social. Quando a vítima que sofre, por exemplo, é um morador de favela que fora atingido por um tiro de “bala perdida” durante conflito entre policiais e traficantes, a vítima já é vista com desconfiança. Ainda mais se corporificar características do perfil de um suposto criminoso, ou seja, jovem, pobre e negro. Se processa uma ambiguidade sobre a vítima, que muitas vezes precisa provar sua inocência. Quando a vítima é atingida de forma fatal, sua família encabeça uma luta inglória para provar sua inocência post mortem. Isto ocorre porque, dificilmente, os meios de comunicação tradicionais articulam o direito ao contraditório em suas coberturas jornalísticas. A palavra final é dada pela “fonte oficial”, a própria polícia. Como se observa na manchete: “Delegado diz que DG estava ao lado de traficantes durante o confronto com a polícia” (R7 – 26/4/2014), sobre a morte do dançarino do programa “Esquenta”, Douglas Rafael da Silva, no morro Pavão-Pavãozinho. É como se o fato de ele estar na favela ao lado de um suposto traficante o levasse a justificada morte. Se o fato ocorresse a 100 metros do morro, em Copacabana, e a vítima fosse um jovem, branco de classe média, haveria uma comoção geral sem levantar suspeitas sobre a índole da vítima. A criminalização da vítima faz parte de uma estratégia de construção de supostos inimigos violentos e delimita os que seriam as vítimas inocentes. Paulo Vaz qualificou os moradores de favela, por sua conexão espacial e midiática com os traficantes, como “criminosos virtuais”. Menospreza-se sua dor e sofrimento. “Se duvidarmos mais da versão da polícia do que de sua inocência, ainda assim poderemos pacificar nossa indignação pensando que toda ‘guerra’ implica sacrifícios” (VAZ, 2005, p. 20). Cabe ressaltar, no entanto, que sendo a vítima culpada ou inocente, o código de ética do jornalista prevê a defesa intransigente dos direitos humanos. No entanto, tais discursos revelam a distinção entre a vida que vale mais e a que vale menos. Entre o extermínio justificado e aceito, e a morte inaceitável e injustificada. O jornalista, no papel de observador nato, ignora o sofrimento real, já que não há uma empatia ou identificação com a vítima da favela. Uma vez que esta não é reconhecida como igual, a diferença econômica e de cor lhe causam indiferença. É o preconceito moral que o impede de reconhecer o sofrimento. E, muitas vezes, diante de crimes que interrompem uma suposta calmaria dos indivíduos comuns e da ineficácia de ação do Estado, se revelam inquisidores, uma vez que uma espécie de sofrimento torna-se contingente. A consequente busca por bodes expiatórios se dá como “crítica moral da Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 929 Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré Renata da Silva Souza política e legitima a vingança como modo de lidar com todos aqueles que a moralidade constrói como monstros” (VAZ, 2010, p. 163). O surgimento de tabloides a baixo custo destinados às classes C, D e E também não diminuiu o universo de abordagens estereotipadas sobre as comunidades, pelo contrário, aumentou o sensacionalismo sobre a cobertura policial. Desse modo, além de notícias esporádicas sobre os espetáculos artísticos promovidos por organizações não-governamentais, o que vira notícia sobre a favela é aquilo que pode ser qualificado como exótico, como a manchete “Único padre exorcista do Rio é da Maré”, publicado no jornal O Dia (7/4/2014). MARÉ MILITARIZADA E MIDIATIZADA A cobertura midiática sobre a ocupação militar da Maré, um conjunto de 16 favelas localizadas na zona norte do Rio de Janeiro, ocorrida no final de março de 2014, expõe concretamente o investimento em abordagem policialesca sobre as comunidades antes e durante ao fato ocorrido. Com a manchete “Complexo da Maré terá um militar para cada 55 moradores” (O Dia – 25/3/14). A reportagem antecipa com detalhes a operação e forja uma expectativa que gera sofrimento anterior à própria ação do Estado. Assim, segue o texto que qualifica, já em sua primeira linha, como “O pedido de socorro do estado ao governo federal para enfrentar os criminosos responsáveis pelos ataques em série a bases de UPPs”. O lide desconsidera o desmentido, descrito no corpo do texto, em que o próprio secretário de Segurança afirma que tal inciativa não teria relação com os ataques que ocorreram às UPPs em diferentes favelas da cidade. No entanto, o texto continua articulado nessa mesma hipótese. A matéria segue com uma imagem aérea panorâmica em que a Maré aparece margeando as linhas vermelha e amarela, além da Avenida Brasil. A reportagem também oferece um infográfico em que o leitor pode analisar o mapa do conjunto de favelas. Os mapas e infográficos não são expostos aleatoriamente para ilustrar a reportagem. Os mapas não são reflexos de uma espacialidade exterior, como revela De Certeau (2008). Eles representam atos de fala que organizam o território com seus possíveis rumos. Sendo assim, o mapa “faz ver” os locais e delimita as trajetórias permitidas, em contraposição aquelas que são proibidas. Portanto, não é difícil concluir que o mapa “faz ver” a favela para o interlocutor que não a conhece e demonstra o caminho que não se deve seguir, já que ali o perigo é iminente. Ao mesmo tempo, tais notícias midiáticas justificam qualquer ato inconstitucional em um território favelado. Vide a manchete “Justiça expede mandado coletivo e polícia pode fazer buscas em todas as casas do Parque União e da Nova Holanda” (Extra – 29/3/14). A reportagem se limitou à notícia em si e não se propôs em problematizar a aberração “legal” de um mandado coletivo. Já está previamente legitimado o poder da própria Justiça e das forças policiais em violar “legalmente” as casas dos favelados. É sabido que a Constituição Brasileira, em seu Art. 5º - XI – determina que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre”2. 2. Constituição da República Federativa do Brasil. Título II – Dos direitos e garantias fundamentais. Capítulo I – Dos direitos e deveres individuais e coletivos. Art. 5º - XI. Disponível em http://www. observatoriodainfancia.com.br/IMG/pdf/doc-47.pdf Acesso em 30 de abril de 2014. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 930 Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré Renata da Silva Souza “Ocupação no Complexo da Maré é concluída em apenas 15 minutos” (Extra – 30/3/14). A imagem selecionada para ilustrar a reportagem estampa agentes das forças policiais fortemente armados ao lado de uma senhora que passeia com o seu cão e com uma sacola na mão. E o texto segue com a descrição sobre o funcionamento normal do comércio e o elogio de uma moradora, que não quis se identificar, dizendo que estava adorando a ação. A cobertura televisiva foi feita ao vivo pela principal emissora do Rio de Janeiro, a Rede Globo. A programação teve sua grade alterada e ao invés de exibir o “Globo Rural”, foi transmitida a ocupação da Maré. As imagens exibidas deram conta da movimentação ostensiva das tropas, de mais de 2 mil homens, com seus tangues de guerras terrestres e helicópteros blindados. Enquanto as forças de segurança ocupavam o local, jornalistas os seguiam com suas câmeras audiovisuais e equipamentos fotográficos. A interpretação quase que imediata das imagens, sem o áudio, revela uma tropa de homens exageradamente armados que dão cobertura à invasão dos profissionais de mídia a uma favela. Além dessas cenas de ação, as câmeras se voltam para o tradicional ritual do Estado em ocupação de um território considerado hostil. Em uma praça pública, policiais da cavalaria trotam em seus animais e ensaiam uma aproximação amistosa com a população. Crianças, jovens e idosos são convidados a montarem os cavalos da tropa, em um clima pacífico. Logo depois, o ritual se encerra com a cerimônia de hasteamento das bandeiras do Brasil e do estado do Rio de Janeiro. O “grand finale” fica por conta da soltura de pombas brancas no território teoricamente pacificado pelas forças de segurança. Uma cobertura coerente à tentativa de pacificação das tensões sociais. Em paralelo a esta abordagem midiática, moradores usaram as redes sociais para comentar a ocupação. Com a criação de uma comunidade virtual no facebook denominada Maré Vive e a utilização de #hastegs como #MaréVive #OquetemnaMaré #DedentrodaMaré, esses moradores protagonizam o papel de narradores das mazelas do Estado de dentro do front. A rede social encarnou o espaço de disputa de versões e discursos sobre esse episódio na Maré. Um dos comentários de moradores dizia: “Mandados coletivos de busca? Traduzindo, todos que moram na favela são previamente suspeitos de serem criminosos. Vai ver se tem mandado coletivo nos condomínios de luxo, onde o tráfico corre solto?”. A proximidade entre a data da ação na Maré e o dia em que se remomora os 50 anos da Ditadura Militar gerou inúmeras conexões. Parte dos moradores qualicaram a ocupação militar como estado de sítio e de excessão em plena democracia. A comunidade virtual “Maré Vive” divulgou inúmeros casos de abusos de autoridade que não foram veiculados nas mídias tradicionais. Segue um dos relatos: “Senti uma respiração forte e ofegante com um hálito quente em meu rosto. Meio sonolenta, abro os olhos e me deparo com um cão e homens de preto a minha volta. Susto, medo e revolta. Meu quarto tomado por desconhecidos da lei e perguntas que não sei responder. Todos os dias eles vêm na minha casa. Já não durmo de camisola, porque essa visita pela manhã virou rotina e tenho que estar preparada para recebê-los. Hoje já entraram duas vezes. Minha casa virou o Batalhão da Polícia Militar”. No mundo real, um profissional mais atento e preocupado com as mazelas sociais não deixaria uma comunidade virtual como esta passar despercebida. São quase 10 mil seguidores, entre moradores e curiosos, que fazem relatos diários sobre a situação na Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 931 Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré Renata da Silva Souza Maré. Ou seja, ignora-se uma fonte legítima. Isto porque tais moradores se autodeclaram envolvidos com a luta pelos direitos humanos fundamentais dos cidadãos que vivem em favelas e estão dispostos a denunciar casos de abusos ocorridos com familiares e vizinhos. Mas, a opção midiática em cobrir a ocupação privilegiando as fontes ditas oficiais não passa despercebida pela própria comunidade. Em uma nota pública, veicula no dia 1º de abril de 2014, a comunidade questiona a promoção de notícias que qualificam a “invasão militar” como o maior sucesso dos últimos tempos. Segundo eles, contrariamente ao espetáculo midiático, são recorrentes os relatos sobre violações e abusos. “Policiais entrando nas casas sem mandado; com ‘toca ninja’ e ameaçando moradores de morte; depedrando bens e roubando eletrodomésticos sem nota fiscal; tratando moradores com violência verbal e apontando armas e fuzis para os seus rostos; constrangendo e agredindo crianças”3. Em outra nota, publicada em 11 de abril, a comunidade afirma que um Estado que utiliza tanques de guerra contra a população não busca o diálogo e não se preocupa com a manutenção de direitos. Uma das principais estratégias da página é a utilização de um discurso irônico sobre a cobertura midiática, como se verifica na Figura 1. Figura 1. Figura 1. A comunidade de facebook “Maré Vive” compartilha comentário da pagína “Favela Fiscal” que ironiza a manchete do jornal O Dia sobre o resgate da cidadania perdida da Maré Em outro post, a comunidade critica a tentativa da linha editorial do jornal O Globo em criminalizar os moradores que protestam contra as arbitrariedades cometidas pelas forças de pacificação. Como revela a Figura 2. 3. “Manifesto e Nota pública acerca da resistência popular contra a ditadura militar na Maré” (Maré Vive – Abril de 2014). Disponível em http://marevive.wordpress.com/ . Acesso em 20 de julho de 2014. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 932 Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré Renata da Silva Souza Figura 2. Figura 2. A comunidade “Maré Vive” questiona a linha editorial do jornal O Globo que a partir de sua manchete criminaliza os protestos protagonizados por moradores contra a militarização da favela CONSIDERANDO QUE A “MARÉ VIVE” Entre as propostas de soluções apontadas pela pesquisa do Cesec para uma cobertura mais plural sobre as favelas está a criação de novos canais de diálogo com a população das comunidades. Uma das formas de acesso mais interessante seria a interlocução com organizações não-governamentais e entidades de direitos humanos. No entanto, é inadequada e descabida a sugestão de “promover encontros sistemáticos com suas lideranças, a exemplo do que vem fazendo até instituições mais fechadas, como a Polícia Militar” (RAMOS; PAIVA, 2007, p. 86). Mesmo reconhecendo que o livro foi editado antes da política de pacificação das favelas, não é aconselhável a reprodução de qualquer estratégia já pensada e executada pela Polícia Militar para ter acesso à comunidade. Esses encontros com as forças militares são geridos de maneira autoritária e intensifica a relação conflituosa, de desconfiança e insegurança com relação aos órgãos de Segurança Pública e da própria imprensa. Além disso, a análise do discurso midiático sobre a ocupação militar da Maré não deixa dúvidas sobre a tentativa de pacificação das relações sociais. A principal característica dessa iniciativa se revela na abordagem jornalística em que se expressa, no primeiro momento, uma ideia de que tal processo se deu com sucesso e aceitação popular. Logo, as notícias que se seguem relatam a morte de um adolescente horas após à ocupação e próximo ao local onde fora hasteada a bandeira do Brasil. As reportagens revelam apenas a versão das forças policiais de que o menino teria sido vítima de uma Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 933 Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré Renata da Silva Souza guerra entre facções. Não se questionou em nenhum momento como um adolescente foi assassinado em plena luz do dia no mesmo instante em que a favela acabara de ser ocupada por mais de 2 mil homens da Segurança Pública. Isso demonstra que, além de pacificar os conflitos ali existentes, o discurso midiático forja a naturalização da perda de vidas em um processo dito de pacificação, o efeito collateral, a morte do jovem, já está antecipadamente justicada. Sendo assim, a construção de possibilidades de novas versões sobre os fatos não pode ser negligenciada. Uma iniciativa como a comunidade virtual Maré Viva é capaz de pôr em xeque os discursos cristalizados que direcionam às favelas todo tipo de estereótipos e preconceitos. Tal disputa é sem dúvida inglória, uma vez que a opinião pública não é tão penetrável como se imagina. Mas, como bem expressou a Maré Vive, na Figura 2, o universo 2.0 é um espaço que cabe probabilidades infinitas que ainda não foram exploradas e experimentadas ao seu máximo. É nesses espaços, seja na internet ou em meios físicos como as rádios, jornais e tvs comunitárias, que a favela reivindica e realiza o seu direito de fala. BIBLIOGRAFIA CAMPOS, Andrelino. Do Quilombo à Favela: a produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2011. CENSO MARÉ 2000. Quem somos, quantos somos, o que fazemos? Rio de Janeiro, RJ: Ceasm, 2000. CENSO DEMOGRÁFICO DE 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Brasil, 2010. DAVIS, Mike. Planeta Favela. 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Disponível em http://www.google.com.br/url?s a=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CB4QFjAA&url=http%3A%2F%2Fw ww.compos.org.br%2Fseer%2Findex.php%2Fe-compos%2Farticle%2FviewFile%2F46% 2F46&ei=FHbQU5QS8eawBKudgNgL&usg=AFQjCNH9Bm0mnIn-YHMPsQTEYv6ZN itG_A&sig2=kGArwZTWiKgRKqMkgr36GQ. Acesso em 10 de junho de 2014. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 934 Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré Renata da Silva Souza Reportagens COSTA, Bernardo. “Ocupação no Complexo da Maré é concluída em apenas 15 minutos” (EXTRA – 30/3/13). Disponível em http://extra.globo.com/casos-de-policia/ocupacao-no-complexo-da-mare-concluida-em-apenas-15-minutos-12033951.html. Acesso em 15 de julho de 2014. MARÉ VIVE. “Manifesto e Nota pública acerca da resistência popular contra a ditadura militar na Maré” (Maré Vive – Abril de 2014). Disponível em http://marevive.wordpress.com/ . Acesso em 20 de julho de 2014. NASCIMENTO, Christiane et al. “Complexo da Maré terá um militar para cada 55 moradores” (O DIA – 25/3/14). Disponível em http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-03-25/ complexo-da-mare-tera-um-militar-para-cada-55-moradores.html. Acesso em 15 de junho de 2014. SOARES, Rafael. “Justiça expede mandado coletivo e polícia pode fazer buscas em todas as casas do Parque União e da Nova Holanda” (Extra – 29/3/14). Disponível em http://extra.globo. com/casos-de-policia/justica-expede-mandado-coletivo-policia-pode-fazer-buscas-em-todas-as-casas-do-parque-uniao-da-nova-holanda-12026896.html. Acesso em 15 de junho de 2014. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 935 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Press, citizenship and emancipatory initiatives Jorge K anehide Ijuim 1 Resumo: Ao auxiliar a identificar os objetivos da comunidade, ajudando-a a defini-la, a imprensa tem como uma de suas finalidades a promoção da cidadania (Kovach e Rosenstiel, 2004). A proposta deste ensaio é discutir a relação entre o jornalismo e a cidadania. Esta reflexão parte da questão perturbadora: Por que no Brasil há tantas organizações – e seus veículos virtuais – que atuam em defesa das minorias e dos excluídos? Esta inquietação desperta o olhar para eventuais lacunas da mídia no cumprimento do seu papel de promover a cidadania. Por isso, trago ao debate uma leitura histórico-cultural sobre a cidadania, assim como exponho porque o Pensamento Moderno transformou os esforços de emancipação em esforços de regulação (Santos, 2002), o que atribuiu ao seu conceito um caráter reducionista. Ao final, apresento algumas constatações que me levam a argumentar que segmentos da imprensa, como reflexo da própria sociedade brasileira, trata as minorias com descaso, como também condena grupos sociais à exclusão. Em outros termos, têm negligenciado uma de suas importantes missões. Palavras-Chave: Jornalismo. Jornalismo, cultura e sociedade. Cidadania. Abstract: When the press helps to identify and to define the community goals it has, as one of its purposes, the promotion of the citizenship (Kovach and Rosenstiel, 2004). The focus of this essay is to discuss the relation between journalism and citizenship. This reflection starts from a disturbing question: Why there are so many organizations in Brazil - and their specific virtual vehicles - that act in defense of minorities and excluded persons? This question raises the look for possible gaps of the media in the role of promoting citizenship. So, I bring to the debate a historical-cultural reading of citizenship, as well as I expose the reasons why Modern Thought turned the emancipation efforts in regulatory efforts (Santos, 2002), which attributed to his concept a reductionist character. Finally, I present some discoveries that lead me to argue that some segments of the press, as a reflection of the Brazilian society, treat minorities with contempt. In other words, they have been neglecting this important mission. Keywords: Journalism. Journalism, culture and society. Citizenship. 1. Doutor em Ciências da Comunicação/Jornalismo pela ECA/USP; Universidade Federal de Santa Catarina/ Brasil; e-mail [email protected] , com a colaboração das pesquisadoras Suzana Rosendo e Criselli Montipó. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 936 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim 1. INTRODUÇÃO DECLARAÇÃO UNIVERSAL dos Direitos Humanos visa sintetizar os anseios de A bem-estar do cidadão, ao ressaltar as garantias de seus direitos civis, políticos e sociais. Já na primeira afirmação, no Artigo I, evidencia: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Em seguida, explicita a capacidade de qualquer pessoa para gozar os direitos e as liberdades, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Ao sublinhar o direito a uma nacionalidade, esta também enfatiza a igualdade perante a lei e o direito de proteção contra qualquer forma de discriminação. Além do direito ao trabalho e remuneração adequada, a Declaração assegura que toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. Tais preceitos parecem ser incontestáveis no plano da comunicação. Na academia como entre profissionais, o espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos está nos códigos de ética e deontológicos dos jornalistas como na bibliografia da área. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (Fenaj, 2007), em dois artigos, destaca alguns compromissos relevantes: XI - defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, negros e minorias; XIV - combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza. Os jornalistas lusitanos igualmente expressam tais preocupações no Artigo 8º do seu Código Deontológico, quando ressaltam que “o jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça, credos, nacionalidade ou sexo”. A Sociedade dos Jornalistas Profissionais dos Estados Unidos da América encoraja seus filiados a “evitar estereótipos de raça, gênero, idade, religião, etnia, geografia, orientação sexual, deficiência, aparência física ou status social”. Em ampla consulta a profissionais e à população, Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2004) procuraram identificar a opinião de especialistas e do público sobre a questão “Para que serve o jornalismo?” A primeira constatação confirmou o sentimento considerado uma pedra angular para os norte-americanos, qual seja, as garantias de direito de livreexpressão, embasado no princípio de que o público tem direito de ser informado. Este fato determinou que aqueles estudiosos afirmassem: A principal finalidade do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações de que necessitam para serem livres e se autogovernar. (Kovach e Rosenstiel, 2004: 31). A par desta percepção, no entanto, os pesquisadores sentiram nos depoimentos o que consideraram uma “obrigação [do jornalismo] para com a cidadania”. Esta abriga várias formas, como identificar os objetivos da comunidade, como também oferecer voz aos esquecidos ou desamparados. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 937 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim Veículos de comunicação brasileiros têm explicitado sua missão de promover a cidadania, a exemplo da revista Brasileiros, como veremos no decorrer deste texto. Mas que cidadania? Como a imprensa entende a cidadania? Como se comporta, de fato, na busca dessa cidadania? Diante dessas considerações iniciais, devo esclarecer que este trabalho, de caráter ensaístico, propõe uma reflexão teórica sobre as relações entre o Jornalismo e a Cidadania. Para tanto, apresento nas próximas linhas uma discussão sobre a evolução do conceito de cidadania (Marshall, 1967) e um questionamento que aponta um eventual reducionismo a tal conceito (Santos, 2002). No intento de aprofundar as observações desta relação entre Jornalismo e Cidadania, parto de uma pergunta perturbadora: - Por que no Brasil há tantas organizações – e seus veículos virtuais específicos – que atuam em defesa das minorias e dos excluídos? Ao descrever e analisar os espaços virtuais de uma amostra de organizações de defesa de minorias e de grupos sociais excluídos, e confrontar este quadro com alguns episódios tratados pela imprensa, aponto fragilidades que representam lacunas nesta missão de promoção da cidadania. Para esta tarefa, recorri aos recursos da análise crítica de mídia com base em Isabel Ferin Cunha (2012) e Luiz Gonzaga Motta (2013). 2. QUE CIDADANIA? A expressão cidadania tem sua origem no latim civitas, que significa “cidade”. Desde a Antiguidade, as ideias evoluíram de modo a estabelecer um caráter de pertencimento a uma comunidade politicamente articulada, que lhe atribui um conjunto de direitos e obrigações. As noções contemporâneas sobre cidadania advêm da Modernidade com a estruturação do conceito de estado-nação, ao conferir ao cidadão a posse de direitos civis, políticos e sociais. Em seu texto clássico “Cidadania e classe social”, o sociólogo britânico T.H. Marshall (1967) salienta que na Idade Média esses três direitos eram fundidos porque as próprias instituições eram amalgamadas. Ao longo de quatro séculos, entre XVII e XIX, as ideias sobre a cidadania sofreram um processo de fusão e separação ao que Marshall observou um distanciamento entre esses três direitos e logo pareceram elementos estranhos entre si. As transformações extraordinárias que aconteceram na Europa naquele período envolveram os aspectos político, econômico e social, entre outros. As revoluções científica e industrial, a criação dos estados-nação, a emergência da burguesia contribuíram para o processo a que Marshall se refere. Com a queda do absolutismo implantou-se as novas formas de governo e de administração pública; a burguesia em ascensão fez valer seus interesses capitalistas. As primeiras consequências foram o surgimento de uma administração burocratizada encarregada da cobrança de impostos e a criação dos tribunais que regulamentassem os novos modos de vida de uma sociedade mais urbanizada. Se o direito ao trabalho e à propriedade tornou-se símbolo dos direitos civis, os direitos políticos foram marcados pela possibilidade de participação na vida pública. Na opinião de Marshall, estes dois elementos foram fundidos ao longo desses séculos, em detrimento da separação da noção de direitos sociais. Estes últimos passaram a Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 938 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim ser esboçados no século XIX com a conquista do direito à instrução. As garantias de acesso aos serviços públicos só evoluiu efetivamente no século XX, em especial após a 2ª Guerra Mundial, o que coincide com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Boaventura de Sousa Santos (1997, 2002, 2010) analisa este período e este processo por outros parâmetros e faz considerações igualmente interessantes. O sociólogo português observa que o conflito entre o ideário iluminista e os interesses capitalistas da burguesia gerou algumas tensões. A mais importante é que a criação do estado de direito transformou os esforços de emancipação em esforços de regulação, o que estabeleceu uma lógica que supervalorizou o Estado em sua atuação sobre os negócios, no legislar e no mundo do direito. Esse superestado controlador chamou para si várias responsabilidades constituindo um estado providência e, centralizador, negligenciou o atendimento de serviços mais básicos da sociedade. Simultaneamente a estas considerações, Santos aponta pelo menos mais dois fatores que marcam os conflitos da Modernidade, quais sejam, o predomínio de uma “razão indolente” (Santos, 2002) e o desenvolvimento de um “pensamento abissal” (Santos, 2012). A razão indolente instalou-se com a consolidação do Estado-liberal na Europa e na América do Norte, as revoluções industriais e a escalada capitalista. Estas constituíram um contexto sociopolítico também favorável ao colonialismo e ao imperialismo. A indolência desta razão tem vários vieses, mas vou me concentrar na crítica que Santos chama de “razão metonímica”, por ser a mais adequada a esta discussão. Esta razão metonímica é obcecada pela ideia de totalidade sob a forma de ordem. Fruto da compreensão cartesiana sobre o universal e o particular, por ser uma razão arrogante, dita que “não há compreensão nem ação que não seja referida a um todo, e o todo tem absoluta primazia sobre cada uma das partes que o compõem” (Santos, 2002: 241-242). Assim, o todo é uma das partes transformada em termos de referência para as demais [falsa generalização?]. Por isso mesmo, o homem ideal – europeu, branco, letrado, burguês – impõe-se ao mundo como modelo a ser seguido. Tal imposição denota a forma mais acabada dessa falsa totalidade – a dicotomia. Por ser parcial e seletiva, gera hierarquias e distinções, como conhecimento científico/conhecimento tradicional, homem/mulher, civilizado/primitivo, capital/trabalho, branco/negro, Norte/Sul, Ocidente/Oriente. Assim, não é capaz de aceitar que a compreensão do mundo é muito mais do que a compreensão ocidental de mundo. Por outro lado, como enfatiza Santos, um processo que vem desde a era dos descobrimentos e os primeiros tratados de amizade, ganhou força e apoio desta razão moderna. Para ele, “o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal” (Santos, 2012: 23). Este consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis de modo a dividir a realidade social em dois universos: O deste lado da linha e o do outro lado da linha. “A divisão é tal que o outro lado da linha desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente [...] Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível” (idem: 23). A crueldade do pensamento abissal está justamente em não reconhecer, nem se interessar, e desprezar qualquer componente do “outro lado da linha”. Este quadro constitui o que Santos chama de Epistemologias do Sul. O autor alerta, no entanto, que esta caracterização não é mais geográfica (hemisférios norte e sul), mas Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 939 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim uma metáfora que denuncia o sistema de distinções aqui debatidos. Portanto, há um norte e um sul em Lisboa, como em Portugal, como na própria Europa. Há visíveis e invisíveis em Nova Iorque como nos Estados Unidos. Há existentes e inexistentes no Rio de Janeiro ou em São Paulo, no Brasil ou na América Latina. Como síntese deste momento da discussão, podemos inferir que: a) O conceito de cidadania transformou-se durante quatro séculos, evidenciando os direitos civis, políticos e sociais. Estas conquistas decorreram das tensões Sociedade e Estado. Os direitos civis e políticos sofreram um processo de fusão e uma desvalorização dos direitos sociais. b) A instalação de uma razão indolente e o desenvolvimento de um pensamento abissal colaboraram para o aumento das distinções, primeiro na própria Europa e depois estas ganharam escala global. c) A conjugação destes fatores contribui para o estabelecimento de uma versão reducionista ao conceito de cidadania. Na forma popular, parece que cidadania está restrita aos diretos de qualquer pessoa de participar da vida pública. O direito de usufruir dos serviços essenciais, o direito de buscar e assegurar a emancipação social são noções pouco lembradas – pela população e pelos órgãos de imprensa. 3. JORNALISMO E EMANCIPAÇÃO Cremilda Medina (1988, 2008) já alertara que o jornalismo moderno teve suas bases estabelecidas no século XIX, quando a imprensa deixou de ser atividade artesanal para constituir-se como indústria de informação e adotou os mesmos métodos e processos de uma fábrica. Assim também, essas novas organizações incorporaram o pensamento predominante – o pensamento positivista. O crescimento econômico, a expansão populacional, o aumento do número de pessoas alfabetizadas, aliados à efervescência cultural naquele período, exigiram dos meios de comunicação não só maior produção de notícias, mas também agilidade na disponibilização de seu produto no mercado. Nestas circunstâncias, os modelos jornalísticos foram construídos de modo a atender uma demanda ansiosa e crescente. Para corresponder a tais exigências, as empresas jornalísticas adequaram processos de fabricação a fórmulas para a observação da realidade. Prescrições positivistas como a necessidade de comprovação, o trato da realidade “como ela é” ecoam no pensar e no fazer jornalístico. Se o “estado positivo” de Comte era a única base possível dos conhecimentos acessíveis à verdade, as técnicas de reportagem garantiram a presença do profissional nas ruas em sua busca por informações. Assim, a imprensa ganhou com o espírito de investigação, como também em precisão, diversificação de fontes e pluralidade de opiniões. Mas a imprensa também agregou características que representam riscos. Como produto e consequência da era moderna, as empresas de comunicação – criadas e geridas pela lógica capitalista – assimilaram as “razões modernistas”, que impõem sistemas de seleção, hierarquização, distinções. Também com os riscos de reduzir o conceito de cidadania aos direitos civis e políticos, em detrimento à atenção aos direitos sociais. A imprensa enquanto instituição chega ao século XXI com equipamentos e técnicas extraordinários que atendem às necessidades deste momento acelerado da história. As tecnologias de informação e comunicação proporcionam condições de agilidade Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 940 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim e abrangência como nunca se viu. Mas a essência dos modelos e processos parece ser mantida. Como os veículos de comunicação se comportam diante dos anseios de emancipação social? Em sua dissertação, a pesquisadora Criselli Montipó observou que a revista Brasileiros assumiu em seus editoriais, desde a sua criação, em 2007, o compromisso com a promoção da cidadania. Na primeira edição, Hélio Campos Melo assinava o editorial declarando essa escolha como uma postura ideológica sobre a prática jornalística. Ao examinar 48 edições entre 2007 e 2011, Criselli selecionou uma amostra de reportagens em que pode constatar alguns dados interessantes. A Brasileiros cumpriu sua proposta de pluralidade ao focar histórias de pessoas de todas as idades – velhos, adultos, adolescentes e crianças; como também nas referências de gênero – homens, mulheres, travestis; abordou temas de todas as regiões do país. Assim, atendeu seu compromisso de abordar temas que correspondam à diversidade nacional. As reportagens de perfil e as histórias de vida foram uma marca neste período e, em geral, também estiveram atentas ao propósito de Brasileiros de procurar mostrar os brasileiros – sem distinção de sexo, idade, cor, classe socioeconômica – cujas histórias poderiam ser exemplos, pessoas que constituem modelos de luta por seus espaços na sociedade, de busca por seus direitos. Em todas as reportagens denota-se o respeito às diferenças, como também não se verifica prejulgamentos de abordagens estereotipadas. Uma inferência relevante da pesquisadora é a de que o compromisso de promoção de cidadania da revista Brasileiros traz, no fundo, é a defesa de um cidadão idealizado por seus editores. Esta idealização, no entanto, comporta os desejos, a visão de mundo, as crenças político-ideológicas desses editores. Este fato nos coloca em dúvida se, ao propor um “cidadão modelo”, na verdade a revista intenciona mostrar um “país que dá certo”, lembrando que a Brasileiros, pela linha editorial e pelo material que produz, é reconhecida como simpatizante do ex-presidente Lula. A iniciativa e as intenções desta publicação, se praticadas em sua totalidade ou não, ainda parecem louváveis. Há setores da grande imprensa brasileira, no entanto, que não agem com tal preocupação. A imprensa brasileira, originalmente de resistência, teve atuação decisiva em movimentos emancipatórios como o abolicionismo e a conquista da república. No Século XX, transformou-se em empresa de comunicação. Em especial a partir da Era Vargas (1930), esta passa a ser mais que veículo de informação para tornar-se instrumento com relações íntimas com os poderes políticos e econômicos (Sodré, 2011). Os programas desenvolvimentistas, desde Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954), passando por Juscelino Kubitschek (1956-1961) e da Ditadura Militar (19641985) favoreceram a sedimentação do regime capitalista e, no campo da comunicação, facilitaram a formação de grandes conglomerados de informação – muitos deles com estreitas relações com o poder constituído. Por isso mesmo, estes grupos têm atuado, com raras exceções, de maneira a conservar o status quo e os interesses mercantis. Os setores da imprensa a que me refiro refletem o conservadorismo da própria sociedade brasileira, ajudando a naturalizar posturas discricionárias e preconceituosas, não só tratando com descaso as minorias e grupos sociais excluídos, como também envida minimizar movimentos emancipatórios. Algumas dessas posturas podem ser notadas nos casos a seguir: Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 941 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim Exclusão - A pesquisadora Suzana Rozendo, em sua dissertação de mestrado, descreveu a vida de pessoas em situação de rua (a nomenclatura mais aceita para essas pessoas). Assim também narrou as diversas formas com que são tratadas pela população e por veículos de comunicação. Ao consultar o estudo de Cleisa Rosa, mostrou um levantamento das expressões comuns na imprensa por várias décadas em São Paulo. O tratamento da população e, consequentemente dos jornais, aludiam a essas pessoas termos como desabrigados, vadios, indigentes, mendigos e marginalizados. Depois, o vocabulário passou por moradores de rua, sem-teto, doentes mentais, bandidos, contraventores e marginais. Por fim, eram correntes habitantes de rua, maloqueiros, desocupados, desempregados, andarilhos, loucos de rua, desassistidos, excluídos, fauna de deserdados, flagelados, e velhos de rua. Nota-se, portanto, que todas as formas de tratamento ganhavam conotação de algo mau, o tom pejorativo que desqualifica o ser humano. Ainda que tenham surgido expressões mais amenas, Suzana Rozendo relata que o tom negativo permanece nestes primeiros anos do século XXI. A exclusão de um sem número de pessoas em grandes centros urbanos que vivem nessa situação é reforçada pelos estereótipos aqui mencionados. E os órgãos de comunicação, por sua vez, têm se encarregado de amplificar tais preconceitos que, pela persistência desse discurso classificatório, ao invés de promover o diálogo, afasta cada vez mais os diferentes. Essa visão discriminatória e excludente é fruto de uma cultura conservadora e moralista de segmentos sociais. Na instância parlamentar, esta postura é observada e tem ajudado a naturalizar os preconceitos aqui denunciados, como se pode notar nos fragmentos a seguir: José Paulo Carvalho Oliveira (PT do B), em discurso na Câmara Municipal de Piraí/RJ, defendeu que morador de rua não deveria votar e declarou que “mendigo tinha que virar ração de peixe”. (O Globo, 30/10/2013). A vereadora Leila do Flamengo afirmou ser hipocrisia dizer que moradores de rua têm os mesmos direitos dos cidadãos e defendeu que um abrigo de animais do município passasse a receber os mendigos, pois eles tiravam a tranquilidade dos moradores da zona sul. (O Globo, 2/11/2013) Esta naturalização ganha ênfase de modo que órgãos de imprensa, deliberadamente ou não, cometam deslizes como a notícia veiculada pelo Globo Esporte: Ex-menino de rua, Alan Patrick passou fome, foi engraxate, hoje luta no UFC (Globo Esporte – 16/06/2014) (grifos meus) Por mais que os editores quisessem valorizar a superação de Patrick, ao recorrer a expressões estigmatizadas acaba por reforçar o preconceito a grupos culturalmente excluídos. Inconvenientes – Naturais da terra muito antes da colonização europeia, os indígenas foram dizimados e encurralados em reservas. A presença europeizante nas Américas atribuiu às nações indígenas vários estigmas, como o da preguiça, da vida despreocupada, do pouco gosto pelo trabalho. Os conflitos pelas demarcações de reservas e a defesa de ecossistemas em territórios próximos de obras de infraestrutura, como a Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 942 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim duplicação da BR-101, próxima a reserva do Morro dos Cavalos (SC), ou a precariedade do modo de vida em aldeias são temas recorrentes nos meios de comunicação brasileiros. Setores da imprensa mais influentes têm privilegiado noticiar os conflitos e, em geral, caracterizando os indígenas como inconvenientes – invasores ou agressores. Em breve levantamento na imprensa regional de Santa Catarina, observa-se que o tom das matérias coloca os moradores da reserva Guarani como empecilho para a conclusão das obras de ampliação da principal rodovia federal da região sul. O projeto prevê que a duplicação ocupe uma faixa do território indígena, o que ainda não permitiu consenso entre Funai e outras autoridades envolvidas. Esta mesma comunidade indígena já foi alvo da grande imprensa, como a revista Veja que, em 2007, publicou ampla reportagem visando desqualificar e a colocar sob suspeita a origem dos índios daquela reserva. A reportagem (Made in Paraguai) chegou a denunciar, sem qualquer fundamento, que aquela população teria sido transposta da Argentina e do Paraguai para justificar a demarcação daquelas terras. O desrespeito aos povos indígenas também podem se apresentar de forma sutil, como nos títulos de reportagens: Terenas invadem outra fazenda na região do Pantanal (OESP 1/06/2013) Índios quebram acordo e invadem outra fazenda em MS (Folha de S. Paulo 02/06/2013) Índios pataxós invadem cinco fazendas no sul da Bahia (Agência Brasil 15/04/2012) (grifos meus) As disputas pela terra acontecem em várias partes do país. Após a Constituição Federal de 1988 ter determinado prazo para a demarcação dos territórios indígenas essas tensões foram acentuadas. O embate entre índios e proprietários rurais é noticiado em matérias como estas. Note-se que não se trata de simples questão semântica – a expressão invasão denota a postura desses órgãos de imprensa diante dos conflitos. Por essas razões, percebe-se que o discurso construído pela mídia privilegia e reforça o ponto de vista defendido pelos grupos econômicos, de que “as reservas abrigam poucos índios em grandes extensões territoriais”. Por isso mesmo, o índio é uma inconveniência ao “progresso”. Visibilidade dos invisíveis – Um episódio que chocou o país em março de 2014 foi o de Cláudia Silva Ferreira, de 38 anos, baleada em ação da Polícia Militar na zona norte do Rio de Janeiro. Ao socorrer a vítima, policiais a colocaram no porta-malas da viatura para transportá-la ao hospital; no trajeto, o porta-malas se abriu e Cláudia foi arrastada por 350 metros e morreu. É impressionante constatar como toda a imprensa se referiu ao acontecimento, como nesses títulos: Polícia vai ouvir outros 3 PMs no caso de mulher arrastada no Rio (G1-RJ - 20/03/2014) Mulher arrastada por carro da PM foi morta por tiro, aponta laudo (Folha de S. Paulo – 18/03/2014) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 943 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim Sérgio Cabral recebe nesta quarta família de mulher arrastada por viatura (OESP - 19 de março de 2014) (grifos meus) A “ladainha” da mídia foi exatamente esta: “mulher, moradora, morta, arrastada, arrastada, arrastada... filha de arrastada, enterro de arrastada, viúvo da mulher arrastada”. Sem nome, sem identidade, sem humanidade, apenas mais um cadáver. Cláudia da Silva Ferreira era negra, trabalhadora, pobre e moradora de comunidade carente e, por isso mesmo, invisível. E esta foi a maneira que a imprensa deu visibilidade a esta invisível. Pelos exemplos aqui apresentados, devo considerar que setores conservadores da imprensa brasileira, por um lado, cometem deslizes éticos graves. Por outro, têm colaborado para a naturalização de estereótipos e para reforçar preconceitos a minorias e grupos sociais já tradicionalmente excluídos. Ao invés de dedicar esforços para a emancipação social desses grupos, contribuem para ressaltar as distinções, ampliar o foço de desigualdades que ainda caracteriza o país. CONSIDERAÇÕES FINAIS INICIATIVAS EMANCIPATÓRIAS O Governo Federal Brasileiro instituiu, em 1977, a Secretaria de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça. Em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a elevou ao status de ministério. Esta é responsável pela articulação interministerial e intersetorial das políticas de promoção e proteção aos Direitos Humanos. No mesmo ano, foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres, encarregada de promover a igualdade entre homens e mulheres e combater o preconceito e a discriminação, assim como atuar pela valorização e a inclusão da mulher no processo de desenvolvimento social, econômico, político e cultural. A Presidência constituiu ainda a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que se preocupa com a formulação, coordenação e articulação de políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial, além de coordenar e avaliar as políticas públicas afirmativas de promoção da igualdade e da proteção dos direitos de indivíduos e grupos étnicos, afetados por discriminação racial e intolerância. Entre outras finalidades, esta Secretaria também é responsável pelo planejamento, coordenação da execução e avaliação do Programa Nacional de Ações Afirmativas, que estabelece uma política para o acesso de afrodescendentes e pessoas de baixa renda às universidades públicas. Sobre as ações governamentais que visam o respeito aos direitos humanos e a minimização das desigualdades, pode-se destacar ainda a aprovação de dois estatutos, quais sejam, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, e o Estatuto do Idoso, em 2003. Na essência, estes garantem os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. De fato, esses adventos parecem ter colaborado para o aumento do debate popular e a elevação da consciência coletiva sobre a vivência efetiva dos direitos humanos. Estes também incentivaram a criação e a sedimentação de organizações e entidades que se propõem a orientar e proteger minorias e grupos sociais excluídos. Vale a pena conhecer o trabalho de algumas delas. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 944 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim A ANDI foi criada em 1993, inicialmente como uma agência de notícias dos direitos da infância. Há poucos anos, ampliou seu raio de ação para abranger mais dois grandes temas – Inclusão e sustentabilidade, e Políticas de comunicação – quando passou a ser chamada de ANDI – Comunicação e Direito. Constitui-se como uma organização sem fins lucrativos que articula ações em mídia para o desenvolvimento. Suas estratégias visam promover e fortalecer um diálogo profissional entre as redações, as escolas de comunicação e de outros campos do conhecimento, os poderes públicos e as entidades relacionadas à agenda do desenvolvimento sustentável e dos direitos humanos. Entre suas ações relevantes está o monitoramento de mídia, pelo qual identifica eventuais incorreções ou abusos da imprensa. Assim, orienta e propõe posturas apropriadas a jornalistas e empresas de comunicação. O monitor de mídia também oferece pautas [agendas de imprensa] e sugere fontes de informação visando enriquecer e fundamentar reportagens. Este trabalho já ajudou a provocar mudanças de hábitos significativos na prática profissional. Não faz muito tempo que era comum ver no noticiário expressões como “menor”, “delinquente”, “menino de rua”. Esta atuação da ANDI em defesa da aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente foi de fundamental importância nesse sentido. Ao se preocupar com a formação “na base”, a organização tem levado programas às escolas de jornalismo, através de concursos, por exemplo, que têm promovido o aumento da discussão de temas que valorizem o ser humano. A iniciativa da ANDI fez nascer em várias partes do país instituições congêneres, como o Girassolidário, o IBIS - Instituto Brasileiro de Igualdade Social e a ASBRAD – Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude, que também têm cumprido o papel de contribuir com a elevação da consciência de jornalistas e população em geral. No mesmo sentido, podem ser encontradas no Brasil muitas outras organizações que se propõem a mobilização popular e atuar em favor dos direitos humanos, como o MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que traz como lema “Construindo a resistência urbana”; O Racismo Brasil, de caráter eminentemente educativo. De forma pouco diversa, algumas publicações especializadas buscam a valorização humana e a difusão de ideias anti-discriminatórias, como a revista Raça Brasil, e publicações que oferecem uma versão alternativa à grande imprensa, como o Brasil de fato e o Portal Desacato. Num país em que as desigualdades são extraordinárias, em que apenas 10% de pessoas concentram 42% da riqueza, conforme relatório do IBGE de 2012, e pela amostra de reportagens aqui criticadas, organizações como estas aqui citadas parecem se fazer necessárias. Estas realizam um trabalho de vigilância pela emancipação social, em outros termos a vigilância para se resguardar e evoluir a cidadania. Na ausência de um “marco regulatório da mídia”, tais instituições – ainda que de forma limitada – respondem ao desafio de sensibilizar a imprensa para que cumpra seu papel de promoção da cidadania. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 945 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim REFERÊNCIAS Cunha, I.F. (2012). Análise dos média. Coimbra/PT: Imprensa da Universidade de Coimbra. Kovach, B. e Rosenstiel, T. (2004) Os elementos do jornalismo – O que os jornalistas devem saber e o público exigir (2ª ed.). São Paulo: Geração Editorial. Marshall, T.H. (1967) Cidadania e classe social. In: Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar. Medina, C.A. (1988). Notícia – um produto à venda. (2ª ed.). São Paulo: Summus. Medina, C.A. (2008). Ciência e jornalismo – Da herança positivista ao diálogo dos afetos. São Paulo: Summus. Montipó, C. (2012). Narrativa jornalística e diversidade sociocultural: A tessitura das reportagens da revista Brasileiros. Dissertação de Mestrado. Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC. Motta, L.G. (2013). Análise crítica da narrativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. World Wide Web: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm . ROZENDO, S.S. (2012). Ocas e Hecho en Buenos Aires: Um outro tipo de jornalismo na América Latina? Dissertação de Mestrado. 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Declarações de Leila do Flamengo sobre mendigos irritam vereadores O Globo 1/11/2013 - http://oglobo.globo.com/rio/declaracoes-de-leila-do-flamengo-sobre-mendigos-irritam-vereadores-10666241#ixzz2jafQ8ETg . Ex-menino de rua, Alan Patrick passou fome, foi engraxate, hoje luta no UFC Globo Esporte – 16/06/2014 - http://globoesporte.globo.com/programas/esporte-espetacular/ noticia/2014/03/ex-menino-de-rua-alan-patrick-passou-fome-foi-engraxate-hoje-luta-no-ufc.html . Made in Paraguai Revista Veja 14/03/2007 - http://veja.abril.com.br/140307/p_056.shtml Terenas invadem outra fazenda na região do Pantanal OESP 1/06/2013 - http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,terenas-invadem-outra-fazenda-na-regiao-do-pantanal,1037653,0.htm Índios quebram acordo e invadem outra fazenda em MS Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 946 Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias Jorge Kanehide Ijuim Folha de S. Paulo 02/06/2013 - http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1288727-indios-quebram-acordo-e-invadem-outra-fazenda-em-ms.shtml Índios pataxós invadem cinco fazendas no sul da Bahia Agência Brasil - 15/04/2012 – http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/04/15/indios-pataxos-invadem-cinco-fazendas-no-sul-da-bahia.htm Polícia vai ouvir outros 3 PMs no caso de mulher arrastada no Rio G1-RJ - 20/03/2014 - http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/policia-vai-ouviroutros-3-pms-no-caso-de-mulher-arrastada-no-rio.html Mulher arrastada por carro da PM foi morta por tiro, aponta laudo Folha de S. Paulo 18/03/2014 - http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/03/1427471-mulher-arrastada-por-carro-da-pm-foi-morta-por-tiro-aponta-laudo.shtml Sérgio Cabral recebe nesta quarta família de mulher arrastada por viatura OESP - 19 de março de 2014 - http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,sergio-cabral-recebe-nesta-quarta-familia-de-mulher-arrastada-por-viatura,1142555,0.htm Organizações consultadas: FENAJ - Federação Nacional dos Jornalistas. Código de ética dos jornalistas brasileiros (2007). http://www.fenaj.org.br/federacao/cometica/codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros.pdf . Sindicato dos Jornalistas. Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses (1993). http:// www.jornalistas.eu/ Society of professional journalists. SPJ Code of Ethics http://www.spj.org/ethicscode.asp . Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR): http://www.sdh. gov.br/ Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR): http:// www.spm.gov.br/ Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR-PR): http://www.seppir. gov.br/ . Andi – Comunicação e Direitos - http://www.andi.org.br/ IBIS/MG – Instituto Brasileiro de Igualdade Social - http://www.ibismg.org.br/ Girassolidário - Agência em Defesa da Infância e Adolescência (MS) – http://www.girasolidario.org.br/home ASBRAD – Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude – http://www.asbrad.com.br/ MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - http://www.mtst.org/ Racismo no Brasil - http://racismo-no-brasil.info/ Revista Raça Brasil - http://racabrasil.uol.com.br/index.asp Brasil de fato - http://www.brasildefato.com.br/ - http://www.brasildefato.com.br/node/11605 Portal Desacato - http://desacato.info/santa-catarina/ . Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 947 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wi lq Vic en t e dos Santos 1 Resumo: Hoje o audiovisual é visto cada vez mais como um setor não restrito ao dito cinema de mercado e à indústria cultural, e também como instrumento no interior de ações culturais e sociais. Palavras-Chave: Audiovisual. Políticas Públicas. Cultura. Vídeo Popular 4. Abstract: Today the audiovisual is increasingly seen as an unrestricted sector to said film market and the cultural industry, and also as a tool within cultural and social activities. Keywords: Audiovisual. Public Policy. Culture. Video Popular. N A GRAMÁTICA de nosso espaço, para fazer inteligíveis quaisquer fenômenos atuais das cidades brasileiras, centro e periferia são flexões fundamentais. O centro não é apenas um lugar, há muito já não coincide apenas com a centralidade geográfica, é uma construção, uma operação que mobiliza recursos e políticas públicas para além das imensas especulações e capitais privados para edificar enclaves, espaços de circulação restrita a uma minoria da população. As quebradas são muitas e se espalham por todas as direções. Aparentemente, o único vínculo entre elas seria o centro que as une, na forma de um espelho que reflete, em locais de trabalho, estudo ou diversão. Há, certamente, muitas maneiras de pensar os questionamentos e enfrentamentos culturais marcados pela oposição centro/quebrada e de utilizá-los como instrumento de reflexão e criação. Entre essas diversas possibilidades, uma maneira ainda muito comum é aquela em que o centro é o lugar natural de tudo aquilo que faltaria à longínqua quebrada: trabalho, lei, informação, cultura e política. Seria o destino necessário de toda periferia, que por sua vez carrega o peso de um mal necessário, como mero resquício de um passado a ser superado pela via de uma missão civilizadora que, no entanto, nunca chega a se concretizar. Todavia, na última década, outra maneira de articular essa relação ganhou enorme força. Com ela, a posição “periferia” já aparece ligada a um conjunto de elementos positivos, como cultura, cinema e vídeo. Exemplo maior disso é que ela já não tem tanto o sentido de um lugar marcado pela ausência de acesso à “informação” e “cultura”, mas uma fonte poderosa e inovadora de produção e reprodução de informações e de uma rica diversidade cultural. Dessa diversidade, compartilhando problemas crônicos de 1. Mestrando do Programa de Estudos Culturais. Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo/USP. Emails: [email protected] ou [email protected]. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 948 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos infraestrutura urbana ou moradia precária, surge uma identidade que se reflete em uma, hoje cultuada, “cultura da periferia”, “da quebrada”. Presenciamos atualmente o momento em que essa cultura chega aos formatos do cinema e do vídeo. “Cinema de quebrada”, “vídeo comunitário”, “vídeo popular”, “vídeo periférico” e “vídeo militante” são algumas das maneiras pelas quais produtores e pesquisadores nomeiam a atividade, articulando um discurso audiovisual próprio e externando disputas, tensões e reflexões permanentes sobre as implicações políticas de diferentes modos de atuação. Diversas concepções e reflexões se apresentam, no entanto, ainda há um caminho a trilhar para que se possa, como postula Antonio Gramsci, “encontrar a identidade real sob a diferenciação e contradição aparente, e encontrar a diversidade substancial sob a identidade aparente” (GRAMSCI, 1977, p. 2268). Hoje o audiovisual é visto cada vez mais como um setor que não está restrito ao dito cinema de mercado e à indústria cultural, e também como um instrumento no interior de ações culturais e sociais. Diversas políticas públicas buscaram contemplar esse setor do audiovisual nos últimos anos, enfatizando o papel formativo e social e o estímulo à diversidade cultural. Essa noção já vinha fazendo parte da agenda política internacional desde meados da década de 1990, sendo a Unesco a principal protagonista na formulação e difusão do conceito, através do relatório Nossa Diversidade Criadora, em que aparece como motor para o desenvolvimento humano e sustentável, viabilizando o respeito às diferenças e a tolerância entre os povos. Esse estímulo acaba por atingir também a posição central da relação centro/quebrada. Se o centro não dispõe mais da velha exclusividade quando se trata de produção cultural (para não falar da produção econômica em geral), desponta agora a periferia como polo de investimento e atenção. É necessário dizer, porém, que tais iniciativas não se traduzem em alterações estruturais das políticas de investimento do Estado e na regulação do mercado. No fundo, a política da diversidade tem feito parte de um esforço em construir uma representação ideológica do Estado em que ele não aparece como um organismo de classe, mas como expressão de todas as energias nacionais. No que se refere aos aspectos político-culturais, o princípio da diversidade, fortalecido nas últimas décadas, se traduz na defesa do respeito à pluralidade das culturas e pelo reconhecimento das identidades culturais. A ideia de diversidade é mobilizada como um vetor que pode proporcionar um equilíbrio no mercado de bens culturais, que, por sua vez, é marcado por fortes desigualdades e concentração nas mãos de poucos, tanto no âmbito da produção e difusão como no do consumo de bens e serviços culturais. Tal perspectiva da diversidade vem sendo utilizada na interlocução entre o Estado e os agentes culturais que pressionam por políticas públicas para o setor, sob a ótica do direito à cultura. Nesse contexto, em que se abre campo para tais políticas, mas timidamente ainda, parte da atuação dos grupos de produção audiovisual popular foi a de reivindicar a ampliação de determinadas políticas pelo Estado. Apesar desse contexto, é possível dizer que há sempre espaço para que as contradições inerentes a esses aspectos do atual panorama político-cultural brasileiro criem, a depender da organização e formulação interna de determinados grupos, condições para algum grau de instabilidade política que possam motivar modificações. A cultura, então, aparece como um elemento fundamental na organização das classes populares, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 949 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos capaz de abrir caminhos para a construção de uma força coletiva, contrapondo-se às concepções de mundo oficiais. Nessa encruzilhada estão presentes produtores audiovisuais que, sempre entre o tempo obrigatório do trabalho e o necessário descanso, encontram cada vez mais na produção cultural seus instrumentos de luta e espaços de rara liberdade e coletividade. Mais do que o mero reconhecimento de algum “centro”, mais do que por vezes se espera com as novas “oportunidades” que estes lhes oferecem, na prática esses produtores e seus coletivos parecem estar justamente questionando e reinventando os termos do binômio centro/quebrada de uma maneira que seria improvável ao mercado audiovisual hoje. Mas, para além do olhar sobre os aspectos socioculturais de tais iniciativas, hoje podemos olhar para essa produção tal como criações artísticas. Compartilhando da ideia de André Costa, “[…] queremos questionar se o que estamos contemplando aqui não pode ser compreendido como a produção de uma experiência estética gerada por um conjunto de saberes, técnicas e atividades específicas. Esse conjunto de instrumentos (videoteca, mostras, debates, formas de vídeo participativo) não comporia um aparato técnico (e tecnológico) para uma imersão de certo público no campo estético?” (Costa, 2007, p. 78). A criação e a experiência estéticas nesse caso são indissociáveis da experiência e da ação política. Parte fundamental da expressão dessa cultura “da periferia” ou “popular” é o audiovisual como instrumento de mudança na cidade, como instrumento de criação de redes de interlocução política e cultural, por vezes articulando uma postura de luta de classes, por vezes buscando uma inserção ainda que marginal em um “mercado” audiovisual, tensão permanente nas disputas pelo significado desse campo. Os vídeos, em geral, refletem esse contexto e são pensados como instrumentos de luta por transformação, que abarcam diversos problemas sociais que a periferia escancara com mais força – a discriminação do negro, a luta por moradia, por saúde, educação e cultura são algumas das questões proeminentes. É importante destacar, porém, a necessidade de se olhar para esse conjunto para além de um “reflexo” ou “expressão” de determinada realidade. A ideia de “mediação”, tal como proposta por Raymond Williams aponta para a necessidade de se reconhecer na produção cultural um processo ativo de relação entre sociedade, arte e política. Para usar as palavras de Gramsci, há que se reconhecer que esse é um processo “longo, difícil, cheio de contradições, de avanços e de recuos, de desdobramentos e reagrupamentos” (GRAMSCI, 1999, p. 104). A pesquisadora Rose Satiko Hikiji, em texto de 20112, aponta para as transformações ocorridas na perspectiva dos grupos de São Paulo ao longo da década de 2000, vislumbrando o crescimento do engajamento político e social. Em suma, o processo pelo qual passaram alguns desses grupos explicita a procura por construir um discurso contra-hegemônico, a partir do reconhecimento de uma identidade com as classes subalternas. 2. Rose Satiko Gitirana. “Imagens da Quebrada”, Seminário Estéticas das Periferias – Arte e Cultura nas Bordas da Metrópole, 2011. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 950 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos Essa recente produção de filmes, além de continuar a servir como instrumento nas lutas socioculturais, tem se diferenciado pela adoção de um regime colaborativo e formativo sob o qual são realizadas de maneira alternativa todas as etapas que definem a cadeia de produção audiovisual, desde a formação de pessoas à distribuição e difusão dos produtos. Hoje, impulsionado pelo aumento do acesso aos instrumentos digitais, esse crescimento trouxe consigo uma nova agenda de demandas para o setor cultural e político. Certamente, dentro de um novo contexto social, político e tecnológico. APONTAMENTOS DE UM PERCURSO NA CIDADE DE SÃO PAULO Após a proliferação de movimentos sociais na década de 1980 e um contexto de enxugamento do Estado na década de 1990, as organizações não governamentais (ONGs) foram fortalecidas como forma importante de organização da sociedade civil. Temas como inclusão social, educação, diversidade cultural, infância e adolescência, grupos étnicos e de gênero não hegemônicos, ecologia, entre outros, passaram a figurar entre os principais campos de atuação das ONGs. Diferente dos movimentos sociais, em vez de organizar para reivindicar do Estado políticas e direitos, parte significativa das ONGs passaram a ocupar elas próprias o papel do Estado, atendendo pontualmente a algumas demandas em campos que estão fora do interesse do mercado e nos quais o Estado era ineficiente para atuar – ainda assim sem o acesso universal que é característico do Estado de direito. Inicialmente apoiadas por recursos de organismos internacionais e empresas privadas, a partir dos anos 2000 intensificou-se a utilização de recursos estatais. Ações culturais e educacionais de algumas ONGs se fortaleceram especialmente no início dessa década. Algumas organizações passaram a realizar oficinas de cinema, vídeo e novas mídias, principalmente com jovens de baixa-renda da periferia, com o apelo do “desenvolvimento cidadão”. Em São Paulo, em 2005, no contexto de implantação da recém-criada Coordenadoria da Juventude da Secretaria de Participação e Parceria da Prefeitura Municipal, foram criados alguns fóruns voltados para o diálogo do poder público com diferentes setores culturais da juventude, dentre eles o Fórum de Hip Hop, de Artes na Rua e de Cinema Comunitário. O Fórum de Cinema Comunitário inicialmente reuniu algumas das ONGs que ofertavam oficinas de audiovisual na cidade de São Paulo, além de participantes destas oficinas. Dentre as ONGs que compuseram o Fórum de Cinema Comunitário em seu início estavam Associação Cultural Kinoforum, Ação Educativa, Projeto Arrastão, Gol de Letra, Instituto Criar, Projeto Casulo. Também participaram das reuniões do fórum filiados da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD-SP), além de alunos do Curso de Audiovisual da USP. Dentre os jovens participantes, alguns deles integravam o fórum representando seus núcleos de produção criados posteriormente às oficinas, dentre eles Arroz, Feijão, Cinema e Vídeo, Joinha Filmes, Filmagens Periféricas, NERAMA, MUCCA, além de participantes do projeto Vídeo, Cultura e Trabalho. A maior parte desses jovens já tinha concluído as oficinas e desejavam produzir “cinema”, mas não viam estruturados caminhos institucionais de apoio para a continuidade dos trabalhos. Seguiam com a realização de vídeo, atividades de exibição e formação em suas comunidades, organizados em coletivos independentes. As ONGs logo demonstraram a limitação de Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 951 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos seu campo de atuação, não tendo como atender à demanda criada no ambiente de suas oficinas. Os realizadores passaram a buscar maior autonomia das ONGs e o fortalecimento político daquele grupo. O Fórum de Cinema Comunitário se constituiu como um conjunto de reuniões permanentes que visava multiplicar, ampliar, dar visibilidade e acesso aos meios de produção por realizadores da periferia. Um dos diagnósticos descritos pelos participantes do fórum identificava ao menos três demandas: 1) ocupar os espaços públicos de exibição; 2) viabilizar o acesso a meios e recursos para produção; 3) multiplicar e ampliar as possibilidades de formação técnica na área do audiovisual. Depois de um período de diálogo, o Fórum organizou a I Mostra Cinema de Quebrada, (outubro e novembro de 2005), em parceria com Centro Cultural São Paulo (CCSP), com o propósito de divulgar os vídeos realizados por produtores das quebradas, aprofundar e publicizar o debate que vinha ocorrendo em reuniões. Entre as atividades programadas, foram realizadas conversas entre representantes da esfera pública, educadores do audiovisual, realizadores, universidades e demais interessados e parceiros. A iniciativa pretendeu discutir demandas e soluções de continuidade para a recém-estruturada rede de agentes, envolvendo o poder público municipal e tendo em vista a participação de outras esferas públicas e organizações da sociedade civil. Foi a partir dessa mostra que o então Fórum de Cinema Comunitário passou a ser conhecido como Fórum de Cinema de Quebrada, termo que acabou permanecendo entre alguns participantes do fórum naquela fase e no meio acadêmico, por conta da aproximação de alguns pesquisadores naquele período. Em 2006 o fórum deixou de se encontrar com frequência. Entre os fatores, o custo e o tempo de locomoção dos integrantes das periferias até o centro da cidade, divergências de perspectiva, reminiscências da tutoria das ONGs, a inexistência de soluções imediatas para as demandas e a ausência de um projeto político claro do grupo. É também nesse período que alguns coletivos que integravam o fórum aprovaram seus projetos no Programa para Valorização das Iniciativas Culturais (VAI)3 da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, recém-implantado. Sancionado como lei municipal em 2003, teve seus primeiros projetos aprovados em 2005, contemplando neste e nos anos subsequentes diversos projetos de grupos participantes do fórum, entre outros projetos ligados ao audiovisual, dando novo fôlego a essa produção e revelando a contundência das iniciativas naquele contexto da produção cultural nas quebradas. Apesar de pouca movimentação do fórum, em 2007 os coletivos tocavam os trabalhos em suas comunidades, tentando se manter ativos quando não havia o apoio do VAI, naquele momento a única modalidade de apoio existente. Cada coletivo atuava segundo uma dinâmica própria, variando as formas de atuação, dentre elas produção, formação e exibição, sendo que alguns grupos trabalhavam nas três frentes. Em meados de 2007 houve uma tentativa de rearticulação entre alguns grupos, já fora do ambiente da Coordenadoria de Juventude e das ONGs. Nesse momento houve 3. O Programa para Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) foi criado pela lei 13.540 (de autoria do vereador Nabil Bonduki) e regulamentado pelo decreto 43.823/2003, com a finalidade de apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda do Município de São Paulo de regiões desprovidas de recursos e equipamentos culturais. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 952 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos uma busca pelo avanço em relação aos conceitos de “cinema comunitário” e “cinema de quebrada”, visando rever o projeto político do fórum. Não se conseguiu ali chegar em um conceito mais apropriado, mas uma nova lista de e-mails, chamada Audiovisual SP, foi criada com o propósito de rearticulação do fórum, agora em outros termos. Em 2008 o grupo conseguiu apoio da Secretaria Municipal de Cultura para participar do II FEPA – Fórum de Experiências Populares em Audiovisual, encontro ligado ao Festival Visões Periféricas, realizado no Rio de Janeiro pela ONG Observatório de Favelas e que reuniu grupos e ONGs de boa parte do Brasil. Entre as discussões, figurava o encaminhamento de uma proposta de um edital de apoio à Secretaria do Audiovisual (SAV), que teve como resultado um edital destinado a integrantes de projeto sociais. Em 2008, foi feito um levantamento que identificou 38 núcleos de audiovisual apenas na cidade de São Paulo.4 A reivindicação propunha a extensão dos editais da SAV para além das produtoras de audiovisual formalmente constituídas, com profissionais estabelecidos no mercado, visando o atendimento de núcleos populares de produção e formação audiovisual, tais como os grupos e coletivos que se via em São Paulo e outras cidades. A organização do encontro também propunha a eleição de um representante ao final dos trabalhos que seria o interlocutor do grupo com a SAV. Após embates no encontro, já assinando como Coletivo de Vídeo Popular, o grupo de São Paulo apresentou, em meados de 2009, uma “Carta de posicionamento e desligamento do FEPA”. Discordava-se, então, que houvesse unidade do grupo para que fosse legítima uma representação. Particularmente era clara a diferença entre o posicionamento institucional da maioria das ONGs (predominantemente do Rio de Janeiro) e dos coletivos de São Paulo. O Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo atuou em articulações de exibição, formação de público, difusão e prática de vídeos realizados por grupos de várias localidades do Brasil. O coletivo caminhava em busca de fortalecer os trabalhos, criar ações conjuntas entre diversos grupos, trocar experiências e pensar políticas públicas para esse setor do audiovisual. Nos anos de 2008 a 2011, o Coletivo atuou de forma mais sistematizada, com ações conjuntas de grupos na distribuição de pacotes de DVDs, publicação da Revista do Vídeo Popular e realização de algumas edições da Semana do Vídeo Popular, para destacar algumas atividades. O Circuito de Exibição de Vídeos Populares, além de programação mensal no Cine Olido, tinha inserção de seus programas também na Rede TVT, em canal UHF. O Coletivo de Vídeo Popular surgiu a partir de um resgate, feito por esse grupo que tinha suas origens no fórum de 2005, do histórico da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP). Criada em 1984, a ABVP visava atividades de formação, produção e distribuição de vídeos junto a movimentos sociais, tendo sido uma das mais expressivas experiências de comunicação alternativa na época. A entidade chegou reunir cerca de 250 organizações não governamentais, produtores independentes e usuários de diversas regiões do país, tendo produzido e distribuído em torno de 500 vídeos que versam sobre temas como educação popular, reforma agrária, sexualidade, gênero, saúde, questões 4. Wilq Vicente, “Atores sociais e o audiovisual comunitário jovem,” Relatório de Iniciação Científica, Universidade de Mogi das Cruzes, 2008. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 953 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos étnicas e raciais, meio ambiente, greves e organização dos trabalhadores, entre outros. A mudança de nome do fórum para Coletivo de Vídeo Popular sinalizava uma mudança de projeto político e um amadurecimento organizativo. A ideia de um “vídeo popular” não se dá em torno de uma concepção estética unitária da produção, mas está ancorada na participação das camadas populares no processo de feitura e no engajamento que o vídeo pode agregar às lutas sociais e às reivindicações políticas. Sem o glamour do cinema, os vídeos produzidos nos revelam dimensões conflitivas, mobilizações sociais, entre outros temas do cotidiano das classes populares. Para compreender o sentido desse resgate histórico, bem como para destacar semelhanças e diferenças entre as experiências, vale debruçar-se sobre o contexto de criação da ABVP. A análise dos dois distintos períodos poderá, ainda, iluminar aspectos importantes das transformações da produção cultural, popular e audiovisual nas últimas décadas. APONTAMENTOS DE UM REGASTE HISTÓRICO A década de 1980 foi uma “década perdida”, segundo alguns estudiosos, em relação ao desenvolvimento dos países latino-americanos e à sua inserção na nova ordem internacional. Estagnação econômica, dívida externa, concentração de renda, descaso com a cultura, entre outros. O projeto de modelo neoliberal, implantado de forma desigual pelo continente, consolidou as desigualdades internas e regionais entre os países do bloco, dificultou a igualdade de direitos e aumentou os desequilíbrios sociais, colocando a América Latina frente ao mundo internacional com uma vulnerabilidade profunda. Soma-se a isso a excessiva concentração no campo da produção e difusão audiovisual, o que atravancou profundamente o processo de democratização dos países latino-americanos. Essa demasiada concentração econômica e do controle político dos meios de comunicação de massa no continente impossibilitaram que esses meios servissem como canais de expressão e de participação popular, o que é considerado, por Regina Festa, “o pior entrave ideológico que a comunicação impõe à sociedade, definindo e estabelecendo a temática e as áreas do discurso social” (FESTA, 1986, p. 11). Em meio ao empecilho constante de uma infraestrutura acanhada e subdesenvolvimento econômico, eclodiu por todo o bloco vias alternativas de comunicação – jornais independentes, revistas universitárias, rádios comunitárias, teatro alternativo, além da produção de vídeo. É nesse contexto, com grande pressão social por mudanças, que surge a produção do que veio a ser chamado de “vídeo popular”, expressão que passou a identificar o conjunto das produções e dos modos de atuação de grupos de vídeo junto aos movimentos sociais e populares no Brasil durante a década de 1980. A produção estava então ligada aos anseios de participação e, portanto, de voz da população, que passou a ver no vídeo um canal de comunicação para ecoar suas demandas e reivindicações, entre as quais estavam aquelas de ordem política, econômica, social, e logo, também por mudanças do sistema de comunicação. Esta última particularmente impulsionada pelas novas tecnologias de comunicação da época, mais acessíveis à população em geral. O vídeo cresceu e desenvolveu-se, então, nesse momento, no âmbito da chamada comunicação alternativa. Segundo a professora Cicilia Peruzzo: Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 954 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos “A comunicação popular representa uma forma alternativa de comunicação e tem sua origem nos movimentos populares dos anos de 1970 e 1980, no Brasil e na América Latina como um todo. Ela não se caracteriza como um tipo qualquer de mídia, mas como um processo de comunicação que emerge da ação dos grupos populares. Essa ação tem caráter mobilizador coletivo na figura dos movimentos e organizações populares, que perpassa e é perpassada por canais próprios de comunicação” (Peruzzo, 2006, p. 2). Essa nova fase da realização audiovisual, via vídeo, agora nas mãos de determinados movimentos populares, teve seu início a partir de 1982, em meio ao processo de abertura democrática, contando inicialmente com o apoio de alguns setores da igreja católica (Projeto Audiovisual da Diocese de Teixeira de Freitas – BA), de centros de educação popular (Centro de Documentação e Memória Popular – RN) e de direitos humanos e ONGs (Centro de Comunicação de São Miguel – SP e Centro de Criação da Imagem Popular – CECIP – RJ). Assim, durante certo período, alguns cineastas e produtores audiovisuais forneceram diversas oficinas que buscavam capacitar os quadros dos movimentos sociais a fim de utilizarem o vídeo como estratégia de mobilização e difusão das lutas. De modo geral, os realizadores buscavam uma linguagem mais apropriada às condições precárias de produção e que fosse de encontro com o cotidiano da população em geral. “O vídeo passou a ser entendido como um novo meio de comunicação, capaz de permitir a confecção de programas para os movimentos, não considerando mais o público como uma massa indiferenciada, mas como uma soma de grupos de interesse”. (SANTORO, 1989, p. 25). Pretendia se diferenciar do entretenimento, não sendo produzida com a finalidade de servir ao lazer, e do noticiário diário dos grandes meios de comunicação. Os realizadores de vídeo passaram a problematizar temporalidades e espacialidades por meio da imagem videográfica, trazendo temas, questões, cenários e personagens ausentes nos veículos de “massa”. A produção de vídeo popular desenhou um projeto político audiovisual crítico e “conscientizador” no Brasil. No entanto, Machado provoca: “ao herdar da televisão seu aparato tecnológico, o vídeo acabou por herdar também uma certa postura parasitária em relação ao outros meios, uma certa facilidade em se deixar reduzir a simples veículo de outros processos de significação” (MACHADO, 1997, p. 188) . É difícil de identificar na produção do que se convencionou chamar de vídeo popular a procura de uma linguagem específica, de maneira que a produção em grande parte foi concentrada e praticada mais como “forma de registro ou de documentação” ou “veículo do cinema” e menos como “sistema de expressão próprio”. Os vídeos sustentavam seu apelo na densidade da situação enfocada – miséria, fome, desemprego, insegurança no trabalho, organização popular etc. Tratando de buscar uma ruptura com as narrativas tradicionais, seja televisiva ou cinematográfica, o chamado vídeo popular introduziu o “olho amador” que, fora do campo artístico, proporcionou o acesso popular ao olho da câmera, a “câmera caneta” – aquela que escreve a história. O vídeo tornou-se acessível ao sujeito mais comum. Machado aborda: Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 955 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos “O cinema novo brasileiro, herdeiro político de uma longa tradição de populismo que marcou a história do Brasil por cerca de meio século, jamais conseguiu dar palavra ao povo de cujos problemas ele tratava paternalisticamente. A multidão reduzida a uma condição de miséria era encenada pelos cineastas como uma massa amorfa, destituída de interior e de vontade (nos filmes de Ruy Guerra e Glauber Rocha, por exemplo), ou como uma coleção de indivíduos reduzidos a um estado de animalidade pura e simples (em filmes do tipo Vidas Secas/1963). Jamais passaria pela cabeça dos cineastas dos tempos utópicos do cinema novo que as pessoas simples e humilhadas pudessem ser dotadas de riqueza interior e capazes de colocar questões que muitas vezes nos deixam emudecidos” (Machado, 2001, pp. 266-267). É natural que os vídeos produzidos no período se preocupassem com a interferência e a relação direta com os processos em curso de mobilização social popular, de lutas por demandas concretas, incorporando a utilização do vídeo como tática de intervenção. Era natural que o vídeo deixasse de lado suas “especificidades de linguagem” para tomar parte direta nas lutas, que estavam no cerne do horizonte da preocupação de determinados grupos sociais. A ficção e o romance, naquele momento, não faziam tanto sentido para os realizadores de vídeo popular. Por outro lado, deu-se um passo em relação ao vínculo social com o povo que o cinema novo pretendeu estabelecer. Como afirma Jean-Claude Bernardet, “Em meados da década de 1960, algumas experiências cinematográficas ousavam não tratar do povo apenas enquanto temática e/ou realidade a ser documentada, apostando na participação de sujeitos provenientes das classes populares em algumas etapas da realização fílmica [...] o trabalho em película implicava em altos custos para a atividade cinematográfica, de maneira que o controle da representação raramente estava nas mãos do povo pobre” (Bernardet, 2003). O vídeo popular não herdou, em grande medida, a problematização estética do cinema novo, colocando-se como um “meio menor”, sem explorar todas as potencialidades artísticas do aparato. O dispositivo tecnológico da época conferia à imagem “uma definição precária […] que não aceita detalhamentos minuciosos e na qual a profundidade de campo é continuamente desmantelada pelas linhas de varredura. [...] O vídeo é uma tela de dimensões pequenas […] uma tela em que se pode colocar pouca quantidade de informação” (MACHADO, 1997, pp. 193-194).5 O vídeo popular teve pouco espaço para a exploração de linguagem. A mensagem social era mais importante e tinha contundência imediata. Mesmo assim, o vídeo se tornou um dispositivo da maior importância nas mãos dos grupos e movimentos autônomos, ao mesmo tempo que potencializou as atividades de registro e de memória, viabilizou a produção e difusão das mensagens. Nesses vídeos, as histórias de vida, experiências e o conhecimento dos entrevistados tecem as produções; por instantes, a fala de cada narração toma a cena e se transforma em tema 5. Multidões em plano geral são motivos pouco adequados ao vídeo, assim como são inadequados os cenários amplos e as decorações muito minuciosas, pois todos esses motivos se reduzem a manchas disformes quando inseridos na tela pequena. Em decorrência da baixa definição da imagem videográfica, a maneira mais adequada e mais comunicativa de trabalhar com ela é pela decomposição analítica dos motivos. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 956 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos principal. A opção por essa abordagem busca abrir o microfone e a câmera para que os protagonistas (atores sociais) deem sua visão dos fatos. Nesse sentido, o vídeo surge antes como uma prática social do que como linguagem. Esse diferencial não decorria apenas do seu conteúdo, mas dependia de vínculos que eram estabelecidos com as comunidades populares enfocadas nas produções e com o público que os assistia. A noção de pertencimento, no sentido mais amplo, compreendia a participação da coletividade na transformação das suas próprias condições de existência. Algumas dessas perspectivas foram resgatadas pelo Coletivo de Vídeo Popular no momento de sua constituição. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após um enfraquecimento em meados da década de 1990, desde dos anos 2000, constatamos uma crescente popularização da prática do vídeo. Protagonizado hoje por uma nova geração e impulsionado pelo acesso aos instrumentos de produção, bem como por um conjunto disperso de iniciativas públicas e privadas pontuais, esse crescimento atual do vídeo, agora digital, traz consigo uma nova agenda de demandas para o setor cultural e político. Essas novas manifestações podem ser identificadas, em especial, por meio de novos atores sociais, movimentos culturais que partem da periferia dos grandes centros urbanos, em pequenas comunidades populares, e que lutam pela ampliação de sua representatividade. Como característica dessas duas fases (1980-1990 e, mais recente, 2000-2014), a apropriação do dispositivo vídeo enquanto processo. De modo geral, os realizadores assumem uma trajetória comum: emitem a condição crítica da experiência cotidiana. Essa “retomada”, possibilitada pelo desenvolvimento da tecnologia da imagem digital e da viabilização da edição em computadores pessoais, transforma as possibilidades do fazer vídeo. Uma retomada, contudo, com ares de reinvenção, na medida em que se dá em um novo contexto social, político e tecnológico que favorece maior descentralização dos processos de produção e difusão. Do cinema para o VHS, do VHS para a câmera digital e, hoje, a multiplicação dos dispositivos de vídeo em aparelhos móveis. A pesquisa de Clarisse Alvarenga, Vídeo e experimentação social, de 2004, analisa a experiência de vídeos produzidos no âmbito de oficinas ministradas por ONGs, utilizando a noção de “vídeo comunitário”, propondo que esse tipo de experiência ao longo da história “substituiu” o legado do “vídeo popular”. Mas atualmente talvez seja possível usar os dois termos para denominar distintas vertentes, desenvolvidas dentro de diferentes contextos organizativos, institucionais e com outras perspectivas políticas. Desde o Fórum de Cinema Comunitário e o Fórum de Cinema de Quebrada, era premente a necessidade de se avançar na conceituação que o nome e a estrutura organizativa expressava. Era necessário avançar para que a prática e a fundamentação do grupo não se limitasse a uma política de autorrepresentação, na qual a legitimidade do discurso se coloca em uma relação de pertencimento ao universo retratado. O resgate da história da Associação Brasileira de Vídeo Popular, a estruturação como coletivo (voltado para ações e não mais para uma estrutura de diálogo institucional) e o compromisso com uma classe (para além da identidade de origem) são alguns dos elementos que revelam alguns conflitos no atual campo cultural. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 957 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos A produção de vídeo dos anos 2000 acontece em um momento de crescimento de um discurso em torno da diversidade cultural e do direito à cultura. Tais conceitos conseguem aglutinar em torno de si, por um lado o discurso oficial do Estado, por outro a sociedade civil na figura dos movimentos sociais e de cultura de hoje, mas também das ONGs. Essa ambiguidade permite que distintas perspectivas muitas vezes apareçam aglutinadas dentro das mesmas denominações, ainda que estejam dentro de um campo de grande tensão. A produção de vídeo dos anos 1980 e 1990 construiu-se em um momento de elaboração do discurso da democratização e do direito à comunicação, que, sem ter ganhado espaço para além dos circuitos militantes e sem ter implicado em mudanças estruturais nos anos posteriores, apesar de ter resultado em uma série de iniciativas práticas em todo o Brasil, recrudesceu e perdeu espaço para novas ideias e conceitos, como estes que ganham força nos anos 2000. O que está em jogo aqui, portanto, é um processo amplo de acesso das formas de democratização, que envolve não apenas a redemocratização do Estado brasileiro, mas de toda a sociedade. Se por um lado é possível ver um recrudescimento recente das atividades dos grupos que fizeram parte do Cinema de Quebrada e do Coletivo de Vídeo Popular, por outro lado é possível notar, paralelamente, por parte do poder público, certa preocupação com esse setor do audiovisual. E nesse sentido, apesar da fragilidade desse coletivo especificamente, é possível pensar que novos cenários de produção e articulação estejam sendo gestados com espírito semelhante. Nesse âmbito, um dos programas importantes é os Pontos de Cultura, ligado à Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do MinC, no qual a sociedade civil passa a ser executora de ações culturais com incentivo do Ministério, enfatizando a parceria do Estado com entidades privadas de interesse público sem fins lucrativos. Esse novo tipo de programa de parceria entre Estado e a sociedade civil é tributária da visão de que a atuação de interesse público não pode ser meramente estabelecida pelo Estado. Nota-se também certo investimento em atividades de formação, como nos projetos Revelando os Brasis – Concurso Nacional de Histórias, Nós na Tela ou Olhar Brasil, todos projetos da SAV. O audiovisual na gestão petista é visto cada vez mais como uma área que não é limitada ao dito “cinemão”, pois, além de contemplar grandes produtores, começou a integrar outros segmentos da sociedade, tais como cineclubes, coletivos e associações culturais, grupos de jovens, movimentos sociais e festivais. Ainda assim, a política cultural nos últimos anos busca construir o fortalecimento de uma indústria de cinema, uma das áreas prioritárias do investimento do governo. Também não parece razoável, no contexto político atual, a revisão mais séria de seu mecanismo chave que é a renúncia fiscal, tão forte é o lobby de produtores e investidores. Não sendo possível reestruturar o sistema de financiamento à cultura no Brasil, o caminho pelo qual se pode avançar foi o da política de editais voltados para a diversidade cultural (edital de Egressos de Projetos Sociais, Curta Afirmativo, Carmen Santos Cinema de Mulheres, entre outros). Avança também a ideia de uma política fortemente ligada à inserção no mercado, por meio do empreendedorismo sociocultural e/ou da capacitação e formação profissional, Eixo 2 do Programa Brasil de Todas as Telas (Pronatec). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 958 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos Chico Oliveira, no artigo “Hegemonia às avessas”, de 2007, questiona sobre a implicação da suposta tomada de “direção moral” da sociedade por parte das classes populares representada por Lula e sua política contra a pobreza e a desigualdade. Para Oliveira, a eleição e reeleição de Lula fez despontar “o mito da capacidade popular para vencer seu temível adversário, enquanto legitima a desenfreada exploração pelo capitalismo mais impiedoso” (OLIVEIRA, 2007, pp. 55-56). Dessa maneira atenta para a crescente complicação da política de representação das classes populares e para novas configurações na política de dominação, na qual a inserção na esfera política, midiática ou econômica desempenha um papel central. Reconhece-se que, no aparecimento dessa produção audiovisual da periferia em um cenário cultural da cidade, há um processo de restituir a essa parcela da população a fala historicamente negada na esfera pública. E se nesse processo surgem produções audiovisuais autênticas, é necessário porém tentar ir além da política de autorrepresentação e de autenticidade. A cultura da periferia passa a ser valorizada como símbolo da abertura à diversidade cultural, que se coloca como valor no mundo contemporâneo, bem como símbolo da desigualdade e, portanto, de enfrentamento da realidade social. No entanto, como aponta Shohat e Stam, a defesa do multiculturalismo que não põe em relevo os processos históricos de dominação também não contribui para a desarticulação das hegemonias de poder que conformam a opressão e desigualdade, e assim “corre o risco de se transformar em um shopping center de culturas do mundo [...], corre o risco de simplesmente inverter as hierarquias existentes ao invés de repensá-las de modo profundo” (SHOHAT E STAM, 2006, p. 474). REFERÊNCIAS Alvarenga, Clarisse Maria Castro de. Vídeo e experimentação social: um estudo sobre o vídeo comunitário contemporâneo no Brasil. Dissertação de mestrado, Instituto de Artes da Unicamp, 2004. Bernardet, Jean Claude. Cineastas e imagens do povo. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Costa, Andre. “Videografias no espaço.” Caderno Sesc Videobrasil 3, 3, São Paulo, (2007). Festa, Regina, e Silva, Carlos Eduardo Lins da, org. Comunicação popular e alternativa no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1986. Gramsci, Antonio. Cadernos do cárcere. vol. 1. Tradução de Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. Hikiji, Rose Satiko Gitirana. “Imagens da Quebrada”, artigo enviado para o site do Seminário Estéticas das Periferias – Arte e Cultura nas Bordas da Metrópole, 2011. Disponível em: www.esteticasdaperiferia.org.br (na seção artigos). Machado, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000. ______ . “A experiência do vídeo no Brasil.” In Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. 3a ed. São Paulo: Edusp, 2001. ______ . Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997. Oliveira, Chico de. “Hegemonia às avessas.” Revista Piauí 4 (jan. 2007). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 959 O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política Wilq Vicente dos Santos Oliveira, Luiz Henrique Pereira. “Transformações no vídeo popular.” Revista Sinopse de Cinema 7, 3, (2001). Peruzzo, Cicilia Maria Krohling. Comunicação nos movimentos populares: A participação na construção da cidadania. Petropólis: Vozes, 1998. ______. “Revisitando os conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária,” XXIX Intercom, Brasília, set. 2006. Santoro, Luiz Fernando. A imagem nas mãos: o vídeo popular no Brasil. São Paulo: Summus, 1989. Shohat, Ella, e Stam, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Vicente, Wilq. “Atores sociais e o audiovisual comunitário jovem.” Relatório de Iniciação Científica, Universidade de Mogi das Cruzes, 2008. Williams, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2011. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 960 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Alternative Journalism In Audiovisual: a semiotic look about the mini-documentary “Morri na Maré” K a m i l a B o ssato Fe r na n de s 1 Resumo: Mudanças recentes nas práticas jornalísticas fizeram com que fossem inclusos, entre os produtores de informação, grupos independentes que atuam em clara posição contra-hegemônica em relação aos media tradicionais. Contudo, até que ponto o viés político assumido por essas produções joga luz sobre aspectos minimizados pelos meios tradicionais? Neste artigo, proponho uma reflexão sobre a atuação da Agência Pública, um meio de comunicação alternativo, a partir de uma análise sobre o minidocumentário Morri na Maré. Análise feita sob um olhar semiótico (LANDOWSKI, 1998, 2004, IASBECK, 2012). Percebe-se que a busca por se diferenciar do jornalismo tradicional não o exclui de tal produção. Por outro lado, ao dar voz e nome a pessoas que, nas reportagens tradicionais, aparecem normalmente como personagens secundários, o minidocumentário dá relevo ao sensível, numa busca por empatia e adesão. Palavras-Chave: Jornalismo alternativo. Documentário Audiovisual. Produção de sentido. Semiótica do sensível. Abstract: Recent changes in journalistic practices included, as information producers, independent groups operating in clear counter-hegemonic position against to the traditional media. However, whither does the political bias made by these productions focus on aspects minimized by traditional media? This paper offers a reflection on the performance of the Agência Pública, an alternative communication media, from an analysis of the mini-documentary “Morri Maré”. Analysis under a semiotic look (LANDOWSKI, 1998, 2004, IASBECK, 2012). It´s noticed that the search of the alternative media to differentiate its work from the traditional journalism does not exclude it of this production. On the other hand, by giving voice and name to people whom, in traditional stories, usually appears as minor characters, the mini-documentary gives relief to sensitive, in a search for empathy and adherence. Keywords: Alternative journalism. Audiovisual documentary. Meaning production. Sensitive semiotics. 1. Mestre em Sociologia, professora assistente do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, tutora do Programa de Educação Tutorial da Comunicação Social. Email: [email protected]. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 961 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Kamila Bossato Fernandes INTRODUÇÃO DISSEMINAÇÃO DE dispositivos tecnológicos que propiciam a captação e a difu- A são de imagens de maneira quase instantânea fez com que a ideia de que todos podem ser não só consumidores de informação, mas também produtores, fosse difundida com grande intensidade nos últimos anos. Concepção possível a partir da visibilidade propiciada pelas redes sociais – em especial Facebook e Twitter –, que permitem que usuários, a partir de sua atuação virtual, passem a se constituir como fontes legitimadas de informação ou de opinião por “seguidores” que decidem acompanhar e até mesmo compartilhar o que eles produzem. Assim, a partir do uso de equipamentos móveis, como telefones celulares e tablets, com câmeras de vídeo e acesso à internet banda larga, usuários passaram a se constituir como novas fontes de notícias – as chamadas “mídias alternativas” –, com direito até mesmo a transmissões em tempo real (ao vivo). No Brasil, as mídias alternativas ganharam visibilidade durante as manifestações de junho de 2013 no país, durante a realização dos jogos da Copa das Confederações da Fifa. Ao mostrar esses protestos do ponto de vista de quem estava se manifestando, essas novas mídias se contrapuseram diretamente aos meios tradicionais, que mostraram os acontecimentos do alto de helicópteros, parcialmente e classificando os participantes entre “pacíficos” e “ordeiros” contra os “vândalos” e “mascarados”. Enquanto câmeras trêmulas, entre os manifestantes, mostravam a desproporcional ação policial, com bombas de efeito moral e balas de borracha, contra jovens desarmados, os media tradicionais seguiam pelo discurso inverso, de que a polícia apenas reagia à violência dos protestos (PERUZZO, 2013, FERNANDES, 2014a). E essa contraposição de enquadramentos, claramente opostos, mesmo se tratando do mesmo acontecimento, fez com as próprias manifestações se voltassem contra os grandes veículos de comunicação – em todo o país, profissionais da imprensa foram hostilizados e até agredidos, sobretudo os vinculados à Rede Globo, maior conglomerado comunicacional do país. Tensão evidenciada até por veículos de outros países, como o site Deutsche Welle (www. dw.de), da Alemanha, que publicou matéria em 1º de agosto de 2013, em sua versão em língua portuguesa, com o título “Ascensão da Mídia Ninja põe em questão imprensa tradicional no Brasil”2. Contudo, até que ponto o viés político (ainda que não partidário) assumido pelas produções alternativas ou independentes joga luz sobre aspectos normalmente minimizados pelos meios tradicionais? Ou esse viés pode obscurecer certos enlaces do acontecimento? A partir desses questionamentos, proponho neste artigo uma reflexão inicial sobre a atuação da Agência Pública, um portal (www.apublica.org) que se autodenomina uma “agência de reportagens e jornalismo investigativo”. Tal reflexão se dá mais especificamente sobre o minidocumentário “Morri na Maré”, disponibilizado em 11 de março de 2014 no site da agência, que busca retratar o olhar de jovens sobre a violência policial no Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro. A análise se dará sob um olhar semiótico (LANDOWSKI, 1992, 1998, 2004, IASBECK, 2012), de modo a evidenciar as tramas de sentido contidas no vídeo, a partir de uma descrição densa 2. Disponível em http://dw.de/p/19HrQ. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 962 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Kamila Bossato Fernandes e transversal, que mire não apenas nas marcas discursivas aparentes, mas também no que não é evidenciado. Nesse percurso, proponho uma discussão sobre a construção do discurso midiático, a partir da proposta de Charaudeau (2006) e Fairclough (2001), de modo a problematizar a relação entre as estratégias discursivas e a busca por certos efeitos de sentido de cunho ideológico, como prática política. A perspectiva apresentada pela sociossemiótica (LANDOWSKI, 1992, 1998) também irá contribuir como base teórico-metodológica desta discussão. DISCURSO MIDIÁTICO E PRODUÇÃO DE SENTIDO Já não é de hoje que, tanto no meio acadêmico, como nas redações, admite-se que “não há grau zero da informação” (CHARAUDEAU, 2006), derrubando-se, pelo menos em parte, os mitos da objetividade e da imparcialidade jornalísticos. Conceitos como o de enquadramento e discurso tornaram bem mais complexo o olhar sobre a produção de notícias, seja em que ambiente midiático for. Isso porque informar é enunciar, ato comunicativo que depende “do campo de conhecimentos que o circunscreve, da situação de enunciação na qual se insere e do dispositivo no qual é posto em funcionamento” (CHARAUDEAU, 2006, p. 36). Mais do que isso, enunciar é um ato discursivo, composto pelo que está dito e pelo que não está dito, além das formas utilizadas para enunciar, que indicam determinadas intenções com fins a certos efeitos. Assim, como ressalta o autor, torna-se fundamental, em qualquer análise da produção de sentido, levar em conta as condições de produção do discurso, tanto pelo lado do produtor/ enunciador como do receptor/coenunciador, já que a compreensão da fala só se dá a partir das interações – ainda que seja de cunho predominantemente assimétrico, toda produção midiática supõe um interlocutor “ideal”, e é a partir dele que a enunciação se constitui em ato. No caso do discurso midiático informativo, afirma Charaudeau (2006), há uma busca não por transpor o acontecimento tal qual ele se deu, mas sim por produzir um efeito de verdade, a partir das imagens captadas e do texto construído, de modo a conquistar credibilidade e fidelidade do público-alvo, o que é de grande interesse da empresa midiática, já que a notícia se constitui em um produto gerador de audiência e, consequentemente, de lucro. Esse efeito de verdade passa por um saber de crença muito mais do que por uma comprovação ou uma constatação científica. De acordo com o autor, o que se dá é mais o fazer crer, a partir da combinação de imagens e de um relato narrado a partir de determinados preceitos definidos em um contrato de comunicação entre o produto midiático e sua plateia. Princípios que valem tanto para o discurso jornalístico tradicional como para o alternativo, como demonstrado em análise comparativa de um mesmo evento noticioso por esses dois tipos de meios (FERNANDES, 2014b). Ambos partem de contratos de comunicação que delimitam parâmetros entre o que propõem fazer e o que seu público espera, com base sobretudo na verossimilhança, mas a partir de diferentes estratégias discursivas. No caso da produção jornalística independente, ficam pressupostos a defesa de grupos tidos como minoritários e a captação de informações que contraponham o que os media tradicionais mostram. O que, para Fairclough (2001), Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 963 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Kamila Bossato Fernandes denota uma das características de qualquer discurso, o qual é composto por restrições e componentes delimitados pela própria estrutura social, a qual também é moldada pela difusão discursiva, numa relação dialética. “O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Sob esse pressuposto, o autor propõe três funções da linguagem, as quais correspondem também a diferentes dimensões de sentido que norteiam todo discurso: a função identitária (que se refere às representações das identidades sociais dos participantes do discurso, que são estabelecidas e negociadas no ato de fala), a relacional (que se refere à maneira como as próprias relações sociais são representadas no discurso) e a ideacional (que trata do modo como o mundo e seus processos, entidades e relações são referenciados no texto). Prática social que se dá a partir de diferentes orientações, de acordo com os valores compartilhados tanto pelos produtores do discurso como pelos que se apropriam dele, o ressignificam e o difundem, especialmente sob o aspecto político e ideológico, como reforça Fairclough (2001). Tanto para manter estruturas de poder, como para transformá-las. Como se trata de um produto multimodal na sua essência, que explora linguagem verbal e imagética na composição de sua estratégia discursiva, o minidocumentário em questão será analisado a partir de um olhar semiótico, já que esta perspectiva teóricometodológica tem, cada vez mais, se debruçado sobre as complexas e dinâmicas relações que compõem o discurso (IASBECK, 2013). Mais especificamente a partir dos parâmetros da sociossemiótica defendidos por Landowski (1992), a partir de uma semiótica das experiências sensíveis, a qual se preocupa com o sentido constituído a partir das relações sociais em si e com o próprio mundo enquanto “mundo significante”, como explica Fechine (2008, p. 15). Landowski propõe uma definição das construções discursivas a partir de dois esquemas: os narrativos (actanciais e modais), que organizam as relações de direito e de poder a partir de certas configurações pré-estabelecidas, e as estratégias de enunciação, em que tais esquemas narrativos são colocados em prática em um ato comunicativo propriamente dito. O que significa que tais discursos, assim como tantos outros, são pontuados a partir de determinadas formas, ou tipos, constituídos culturalmente, assumindo certas estratégias na busca por consolidar efeitos. Tudo isso a partir de intencionalidades – tanto do enunciador como do enunciatário. Com a força de verossimilhança perpetrada pela imagem, construções midiáticas em audiovisual passam a protagonizar, cada vez com maior intensidade, as representações das relações sociais, cumprindo um papel social e político “como meio de formação de um consenso difuso sobre a própria construção dos fatos e definição de valores” (LANDOWSKI, 2004, p. 32), o que aumenta a importância em se analisar discursos midiáticos seja de que natureza forem. Em sua obra, Landowski salienta a relevância de a semiótica se ater sobretudo à gramática (sintaxe) que acaba por envolver cada tipo de discurso, num plano estrutural, de modo a “dar conta dos discursos enquanto totalidades significantes” (1992, p. 205). Neste artigo, de modo algum terei a pretensão de esmiuçar uma gramática da produção jornalística alternativa em audiovisual de maneira ampla, o que demandaria um esforço bem maior, sobre um corpus mais significativo, para que fosse possível vislumbrar regularidades que traçassem um percurso semiótico relevante. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 964 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Kamila Bossato Fernandes A intenção é tão somente dar relevo a certas características desta produção singular, o minidocumentário “Morri na Maré”, com vistas ao sentido produzido como resultado final de sua composição. Também não se pretende aqui dar uma interpretação definitiva sobre tal produção: como reforçam Rossini e Pinel (2009), citando Landowski, o sentido só se realiza “em ato”, o que significa que só se efetiva em interação, o que nos leva a concluir que não exista um sentido único e inquestionável. OBJETO A Agência Pública foi criada em 2011 e se autointitula uma “agência de reportagem e jornalismo investigativo”, que atua de forma independente – sem apoio de governos ou empresas –, num sistema que mistura financiamento por organizações nãogovernamentais e arrecadação de recursos via crowdfunding (doações virtuais feitas por seu público). Toda a produção é difundida pelo site da agência, www.apublica.org, mas também por parceiros (tanto outras agências de comunicação sem fins lucrativos3 como veículos de grande porte, nos mais diferentes suportes), que não precisam pagar para exibir a reportagem, apenas indicar sua origem. A agência tem uma equipe própria, mas também fomenta o trabalho de equipes independentes, ao promover editais de financiamento a reportagens por todo o país. Como seu canal de difusão preferencial é a internet, as reportagens publicizadas geralmente possuem características multimídia, com texto longo e inserções de vídeo, áudio, documentos inclusos como anexo, fotografias e infográficos, animados ou não. Há as reportagens que enfatizam o texto escrito, enquanto outras são norteadas por vídeos entre 10 e 20 minutos, chamados de Minidocs, ou minidocumentários. Tais vídeos são complementados por texto, em que os produtores acrescentam informações ou dão detalhes da própria experiência de realizar o filme. Os Minidocs são alojados tanto entre as reportagens como em uma aba específica nomeada “Vídeos”, podendo ser visualizados por ordem cronológica de publicação. As temáticas são as mais diversas: a relação entre empregadas domésticas e patroas; a remoção de famílias pobres pelo poder público para a construção de obras da Copa do Mundo; a mudança na vida de mulheres pobres depois da instituição do programa de renda mínima Bolsa Família. Em comum, todos partem de um enquadramento que visa expor um conflito que existe, ou existia, numa relação de poder assimétrica. Com isso, tais reportagens em audiovisual buscam denunciar abusos de poder, ao construir narrativas com informações que dão sobretudo visibilidade às pessoas ou grupos subjugados. Realiza, assim, um jornalismo politicamente engajado. E esses trabalhos têm conquistado legitimidade social, ao serem contemplados com prêmios de jornalismo, alguns deles de grande valor internacional, como o Premio Gabriel García Marques e o Latinoamericano de Periodismo de Investigación, da Fundación Instituto Prensa y Sociedad. Especificamente o filme “Morri na Maré”4 foi realizado por dois jornalistas franceses radicados no Rio de Janeiro, Marie Naudascher e Patrick Vanier, a partir de financiamento 3. No site da Agência Pública, são listados 55 republicadores, entre eles Adital, Agência Nacional das Favelas e Ecodebate, meios também considerados independentes, e UOL, IG e EBC (Empresa Brasileira de Comunicação, canal institucional do Governo Federal brasileiro), meios de grande porte. 4. Disponível em http://apublica.org/2014/03/morri-na-mare-assista-ao-minidoc/ Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 965 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Kamila Bossato Fernandes coletivo. O vídeo tem 16 minutos e 22 segundos e foi hospedado no portal de compartilhamento de vídeos Vimeo. De acordo com as estatísticas do portal, até o dia 16 de março de 2015, o filme teve 9.780 visualizações, com 53 “likes” e dois comentários. Como ponto de partida, os dois jornalistas relatam, no texto inserido em anexo ao minidocumentário, que tinham a intenção de colocar em foco a violência sofrida por crianças na Comunidade da Maré, área onde não havia a ação de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora, ação policial de combate ao crime organizado) e que era então dominada por três facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas, além de milícias (grupos paramilitares que atuam contra o tráfico, mas que também submetem a população à violência). O fato que desencadeou as gravações foi um confronto entre policiais e traficantes, que resultou na morte de 13 pessoas, no dia 25 de junho de 2013. Acontecimento com grande repercussão midiática, em que se discutiu, entre outras coisas, se houve violência contra os moradores não envolvidos com crimes. Segundo o relato dos jornalistas, feito em primeira pessoa, como forma de trazer à tona aspectos dos bastidores da produção, a intenção do vídeo era mostrar como as próprias crianças percebiam a violência sofrida por elas naquele ambiente. E o foco não se restringia à violência policial: São tantas violências: a violência urbana, do crime, cuja manifestação mais forte são os tiroteios; a violência doméstica, que acontece dentro de casa e é lembrada por crianças em situação de rua, que contam ter fugido de casa apesar de ter família na Maré; e a violência do preconceito, que é mas “invisível”, mas acaba marcando as crianças e adolescentes. (...) Essa violência pouco aparece na mídia brasileira. Mas é essa violência que faz com que a pessoa se auto-imponha limites geográficos e acabe não indo em alguns lugares da cidade para “não ter problemas”. (NAUDASCHER & VANIER, 2014) Os jornalistas franceses afirmam ainda que decidiram fazer uma imersão em uma escola da comunidade para ganhar a confiança das crianças e que houve um momento em que a coordenadora do local pediu para que cessassem as conversas sobre violência, para não “dar problemas” (o que não foi explicado). No texto, ainda buscou-se demonstrar uma preocupação em preservar a identidade e a segurança das crianças, o que denotaria uma responsabilidade social e o respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)5. No vídeo, porém, não foi o que aconteceu, como veremos adiante. O minidocumentário pode ser dividido em cinco momentos, distribuídos de maneira desigual. No primeiro, são exibidas cenas de protestos contra a violência, iniciando em uma praia, com o mar pintado de vermelho por um artista plástico, e depois em meio a moradores da Comunidade da Maré, que denunciavam a violência imposta durante a ocupação da favela, pela Polícia Militar, no dia anterior, 25 de março de 2013, em que 13 pessoas foram mortas, além de dezenas de feridos; na segunda parte, buscou-se ouvir personagens desse dia de violência: um pai de família atingido por um tiro durante essa ocupação, sua mulher e seus filhos, com relatos sobre o momento da ação e suas consequências; na terceiro ato, as cenas foram gravadas no Projeto Uerê, que atende 5. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre a proteção integral a crianças e adolescentes. Pode ser acessada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 966 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Kamila Bossato Fernandes crianças da comunidade para dar apoio escolar, com foco em entrevistas e na gravação de cenas livres; já na quarta parte, focou-se apenas em uma criança, mostrando suas brincadeiras e falas a respeito da violência; por fim, a quinta parte tratou de um protesto, realizado no Centro do Rio de Janeiro, por uma organização não-governamental que tinha como meta denunciar a violência sofrida por crianças de rua. Nesta análise, buscarei me deter à estrutura básica proposta por Landowski (1992), a partir 1º) dos esquemas narrativos e 2º) das estratégias de enunciação. ANÁLISE Esquemas narrativos Ao falar de uma produção em audiovisual, é preciso evidenciar primeiro os interlocutores que o envolvem, o que inclui produtores, personagens/actantes do filme e destinatários/receptores. Interações que se dão, em alguns casos, virtualmente, sem que haja co-presença, mas que estabelece o próprio sentido do ato comunicativo. No caso, os produtores do minidocumentário são apresentados como os jornalistas franceses Marie Naudascher e Patrick Vanier. Apenas a voz e a face de Marie aparecem no vídeo em dois momentos diferentes, mas a presença de ambos é sentida em todo o vídeo, já que eles modulam as falas captadas, direcionando toda a interlocução à questão central trabalhada pelo minidocumentário, que é a violência policial sofrida pelos moradores da Comunidade da Maré. A onipresença deles é reafirmada nos enquadramentos das entrevistas, em primeiro plano, em que os entrevistados ora olham para cima, ora miram em diagonal, na busca do olhar e da compreensão dos entrevistadores. Além de conduzirem as interlocuções em busca de um objetivo claro, os produtores se caracterizam pelo estranhamento sócio-histórico e cultural em relação àquela situação retratada. Uma postura vista com frequência no jornalismo tradicional – que assume como pauta contar a história “do outro” como meio de seu público, também estranho a tal acontecimento, ter a chance de conhecê-la e até compreendê-la melhor. O que reforça o perfil jornalístico do documentário. Entre os personagens/actantes que compõem o filme, temos três níveis de sujeitos, a partir de uma hierarquização modulada no próprio documentário: 1) enunciadores autorizados/legitimados, por ocupar postos de comando em organizações ou instituições envolvidas com a luta pelos direitos humanos e em favor de crianças e adolescentes vítimas da violência; 2) sujeitos que vivenciaram diretamente a violência; e 3) crianças e adolescentes. Não foram ouvidas autoridades ligadas ao Estado – policiais ou gestores de governo, recorrentemente preferenciais nas reportagens dos meios tradicionais. Os primeiros são tratados pelo nome e sobrenome estampados em uma legenda, e aparecem em falas como sujeitos portadores de autoridade para condenar a violência policial e demonstrar o que de fato acontece naquela comunidade. Servem, sobretudo, para legitimar a própria produção audiovisual que ali se constituía, ressaltando a omissão do poder público e dos media tradicionais diante de toda a violência vivida naquela região, sem que ninguém tome qualquer atitude. O papel social desses atores, em si, já denota uma preocupação diferenciada, reforçando os ethé6 de solidariedade e 6. Plural de ethos, conceito que se refere à construção de si no discurso. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 967 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Kamila Bossato Fernandes justiça social, que se opõem frontalmente à não-ação de órgãos oficiais, o que eleva sua atuação não apenas ao papel de cidadãos, mas à de heróis, que agem independentemente de interesses pessoais, mas pelo bem dos mais vulneráveis. Valores tais que se estendem ao próprio vídeo. Já os segundos, sujeitos que vivenciaram situações de violência, são chamados como exemplos, reforçando a própria narrativa, pelo efeito de factualidade que representam. Foi escolhido um casal, que relatou o dia em que o homem foi atingido pelo tiro de um policial, as dificuldades relacionadas ao socorro e o medo sentido após o acontecimento. Marido e mulher são apresentados com nome e sobrenome (sem situar a profissão), o que já não acontece com o filho do casal e um amigo, adolescentes, apresentados apenas pelo primeiro nome e a idade, na legenda. Ambos são questionados especificamente sobre o sentimento que tiveram após o ato de violência, com espaço para expor opinião crítica sobre o preconceito que vivenciam por morarem em uma comunidade pobre. Por fim, há o foco em crianças e adolescentes. Todos aparecem sem ter seus nomes identificados em legenda, mas a maioria tem seus rostos e falas focados em primeiro plano. Parte das crianças aparece vinculada a uma instituição – Projeto Uerê –, de onde elas falam e realizam atividades sob os olhos de adultos (professoras e produtores do vídeo). Nada espontaneamente: as crianças são levadas, pelos jornalistas, a falar sobre o medo que sentem da violência, um após o outro, o que leva a repetições após frases curtas; depois, são orientadas a realizar uma atividade em que desenham cenas da Maré, mostrando o que há de bom e o que há de ruim na localidade. Contudo, todas as imagens mostradas no vídeo referem-se a cenas negativas, como venda de drogas, mortes, presença policial fortemente armada, conflitos. Há também crianças que aparecem sem vínculos institucionais, como um menino, ainda na primeira infância (aparentemente com 4 ou 5 anos), cujo nome e idade não foram expostos, mas que protagonizou o filme por cerca de 4 minutos, sem ter seu rosto protegido – pelo contrário, quase o tempo todo o menino foi captado em primeiro plano (close) ou em superclose. Sem outros adultos por perto, o menino aparece brincando espontaneamente de bola, no quarto de uma casa, mas em seguida começa a ser guiado pelos jornalistas em uma conversa em que ele fala sobre uma possível namorada, e depois sobre violência – a jornalista pergunta se ele já havia matado um policial, e o menino respondeu que sim. O trecho segue com imagens do menino com uma arma de brinquedo, que ele lança com força sobre o chão, com golpes repetidos, até que ele fala “já matei”. A jornalista segue com essa “entrevista” perguntando ao menino “quantos” ele já havia matado, e a criança responde “três”. Em seguida, ela busca desfazer a fala do garoto, ao dizer que parecia mentira, mas o menino reafirma sua versão. Cabe reforçar que, em entrevistas, constitui-se uma interação com uma intencionalidade previamente concebida (pelo menos por parte do entrevistador), que buscava tratar da relação das crianças que vivem na Comunidade da Maré com a violência. Relação em grande parte assimétrica, já que o produtor conhece previamente as perguntas, enquanto o entrevistado, não (assimetria que, muitas vezes, é minimizada pela constituição do próprio sujeito que está sendo entrevistado, detentor de conhecimentos e de autoridade). Neste caso, constituiu-se uma situação em que o entrevistado não tinha sequer discernimento suficiente para tratar o assunto, e mesmo uma possível tentativa, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 968 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Kamila Bossato Fernandes por parte dos produtores, de mostrar como uma criança pequena espontaneamente se apropria da violência até em suas brincadeiras não foi bem-sucedida, já que toda a situação pareceu forjada, artificializada. Acima de tudo, houve a exposição indevida da criança, relacionando-a a uma situação de grave vulnerabilidade social, o que vai de encontro com o que rege o ECA, legislação máxima no Brasil que trata dos direitos relacionados a esse setor da sociedade. Os únicos que tiveram não só os nomes, mas a face protegida no documentário foram crianças de rua que aparecem no final da produção, durante manifestação contra a violência policial. Com falas curtas e entrecortadas pelos demais, meninos e meninos relatam como é difícil a vida na rua e mostram cicatrizes espalhadas pelo corpo causadas por essa violência. Quase nenhum deles é focalizado em separado: em grande parte, eles aparecem de modo coletivo, embaçado, de modo que não é possível diferenciar suas histórias de vida. Apenas no encerramento do documentário um desses meninos aparece sozinho, como se estivesse deitado no chão, de braços abertos, olhar mirando diretamente a câmera, mas de cabeça para baixo. Ele apareceu sob uma luz avermelhada, da iluminação pública, mas é possível ver bem seu rosto, já que não houve qualquer intervenção da edição para descaracterizá-lo – mais uma infração ao ECA. Entre os actantes, ainda que de forma implícita, é possível situar ainda os media tradicionais, presentes tanto como entidade a ser criticada, por não mostrar o que de fato acontece em tais comunidades, como no papel de referência e meta da própria comunidade para se sentir representada. Esse aspecto é perceptível no momento em que uma professora do Projeto Uerê mostra uma foto feita na escola durante um tiroteio na Comunidade, em que as crianças se deitaram no chão para se proteger. A foto mostrada havia sido tirada por ela, mas a professora acabou por mostrar a versão publicada em um site de notícias vinculado à Rede Globo, como modo de reforçar o quão grave foi aquela situação – já que até um veículo jornalístico tradicional o publicizou. Figuram ainda, em um pano de fundo, autoridades policiais como os principais culpados por toda a violência vivida pelos mais pobres ali retratados – não se incrimina o próprio crime. Já os destinatários/receptores inscritos discursivamente podem ser percebidos também em dois níveis: 1) pessoas e grupos ligados a direitos humanos e movimentos sociais; 2) pessoas e grupos ligados à prática comunicacional alternativa. Ambos setores bastante próximos, mas que se diferenciam pelas intencionalidades. Em relação aos primeiros, busca-se travar uma comunicação com foco na legitimidade dos relatos, de modo que a narrativa reforce uma opinião, não se restrinja a uma descrição relatorial; já aqueles vinculados à comunicação alternativa se interessam sobretudo pelos relatos de tom emocional, usados para “humanizar” as vivências ali retratadas e atrair a atenção do público, a partir de uma ética e de uma estética diferenciadas em relação aos media tradicionais – focados em dados e na fala oficial de enunciadores autorizados. A partir das marcas discursivas ali presentes, não é possível, no entanto, perceber entre os possíveis destinatários idealizados as próprias autoridades policiais ou mesmo o Ministério Público, já que a produção não apresentou um caráter investigativo ao ponto de inserir dados e provas que levassem, por exemplo, à abertura de uma investigação oficial contra os policiais envolvidos na operação que resultou em tanta violência. Em nenhum momento essa intenção ficou inscrita no discurso. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 969 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Kamila Bossato Fernandes Estratégias de enunciação Quanto à forma, cabe ressaltar o caráter híbrido da produção, já que esta foi motivada por critérios de noticiabilidade jornalística – atualidade, quantidade, intensidade –, porém o tratamento dado foi o de um documentário cinematográfico, num formato mais próximo do que Nichols (2009) chama de modelo observativo, em que o fato é exposto tal qual acontece, sem interferência de uma narração em off, mas mesclado ao modelo participativo, já que os produtores deixam claro que guiam as entrevistas, chegando a manter sua voz em alguns trechos. Com isso, construiu-se uma história narrada pelas próprias vozes dos entrevistados, os quais seguem apresentando relatos e ações a partir da proposição dos produtores do vídeo. As únicas interferências às falas são textos dispostos como legendas, usados tanto para nomear os entrevistados, como para situar o local e a data dos fatos ali narrados. Os produtores também se eximem de inserir sons externos ao ambiente (background ou BG), mantendo o som ambiente. Assim como evitou-se o uso de iluminação artificial – o que ficou evidenciado na cena em que as luzes do carro de polícia, vermelhas, alteravam todo o ambiente, o que contribuiu para dramatizar a situação narrada. Tais estratégias denotam uma busca por demonstrar um baixo nível de interferência dos produtores na realidade. Contudo, a produção se distancia de um cinema verdade ao optar pela edição de imagens e vozes, com cortes e sobreposição de falas sobre cenas captadas em momentos diferentes, com o intuito de reforçar o que estava sendo dito. Assim, ao inserir imagens de policiais fortemente armados caminhando pelas ruas cheias de lixo da Comunidade da Maré, ao longo da fala do jovem Cleiton, de 15 anos, que denunciava a violência sofrida pelo pai e por outros jovens da comunidade, a produção enfatizou o papel exclusivamente negativo do poder público sobre aquela comunidade, produzindo, assim, um efeito condenatório sobre a atuação de qualquer agente público, generalizadamente. CONCLUSÕES Como dito anteriormente, esta análise não pretende ser definitiva tampouco única e absoluta, já que a produção de sentido se faz em ato, e este depende de inúmeros fatores, tanto internos como externos ao discurso. De todo modo, segue relevante, por trazer à tona marcas e estratégias discursivas significativas, que precisam ser expostas e debatidas na busca por compreender a comunicação e as representações que têm sido produzidas sob a aura do “alternativo” ou “independente”. É importante também para propor um olhar mais crítico sobre a forma como tais produções contra-hegemônicas produzem de fato novas representações. Afinal, trata-se de um olhar diferenciado, que busca desconstruir estigmas e reconstruir identidades a partir de uma perspectiva favorável a grupos que não se sentem contemplados pelas representações midiáticas tradicionais. Nesta análise inicial, percebe-se que a busca por se diferenciar do jornalismo tradicional não o exclui de tal produção, pelo contrário: estabelece-se, na busca por constituir efeitos de verdade por um ultrarrealismo presente nas imagens e nas entrevistas com baixo nível de intervenções (sem uma narração em off e sem a inclusão de dados colhidos por outros meios), um diálogo direto com o jornalismo broadcast, o que fragiliza o caráter informativo do vídeo. Afinal, para compreender exatamente o que estava sendo ali exposto, fazia-se necessário buscar o que tinha sido informado pelos meios Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 970 Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” Kamila Bossato Fernandes tradicionais, o que ficou inscrito ora implicitamente, ora explicitamente – sobretudo pela ausência de certas informações, entre elas a versão da Polícia sobre a operação, assim como dados referentes aos mortos e feridos, que não foram explicitados. Por outro lado, ao dar voz e nome a pessoas que, nas reportagens tradicionais, aparecem normalmente como testemunhas ou personagens secundárias (quando muito), o minidocumentário dá relevo ao sensível, numa busca por empatia e adesão na troca comunicacional. Com isso, sobressaiu-se a busca por emocionar, não por informar, o que, por sua vez, demarca uma diferenciação relevante em relação às práticas jornalísticas comuns. A escolha por realizar uma produção engajada politicamente em favor da causa de vítimas da violência policial, sem a preocupação de produzir uma comunicação massiva – que tem em vista falar a um público bem mais abrangente, tanto numericamente quanto qualitativamente –, não exime os produtores alternativos de preservar identidades e a situação de grupos e pessoas que vivenciam, no cotidiano, uma forte vulnerabilidade social, com riscos de virem a sofrer violência física e até a morte. Tais produções precisam ter em vista que a busca por desempenhar um papel social diferenciado precisa estar presente não só nas intenções, mas sobretudo ao se colocar em prática a partir dos dispositivos enunciativos e narrativos, enfim, no ato da enunciação. REFERÊNCIAS CHARAUDEAU, P. (2006) Discurso das Mídias. Trad. Ângela M. S. Corrêa. 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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 971 Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental Public Journalism at local range: an alternative to environmental news Ana Carolina de A r a ú j o S i lva 1 Resumo: O grande desafio do jornalismo ambiental é mostrar aos cidadãos o quanto cada atitude individual influencia na preservação do planeta. A conscientização e adesão da população aos temas ambientais é também um objetivo dos jornalistas que trabalham com este tema. Mas ainda não há uma fórmula pronta para atingir esses objetivos. Este artigo discute uma alternativa: o jornalismo ambiental embasado nos conceitos e técnicas do jornalismo público, com notícias de temas locais e regionais. A concepção seguida no artigo é a do jornalismo de proximidade, que desperta no cidadão o interesse pela discussão dos problemas que atingem o seu entorno, com o objetivo final de conscientizá-lo para uma visão sistêmica da conservação ambiental, que leva a um resultado geral, que é a preservação da vida no planeta. O artigo não tem como objetivo apontar alternativas conceituais para tal produção, com base em bibliografia pertinente sobre o tema. Palavras-Chave: Jornalismo público. Comunicação regional. Comunicação local. Jornalismo ambiental. Abstract: The challenge of environmental journalism is to show citizens how each individual attitude influences the preservation of the planet. Awareness and adherence of the population to environmental issues is also a goal of the journalists who work with this theme. But there is still no set formula for achieving these goals. This paper discusses an alternative: environmental journalism grounded in the concepts and techniques of public journalism, with local and regional news. The ideation followed in the paper is the one about journalism of proximity, which awakes the citizen interest to the discussion of issues that affect their environment, with the final goal of raising awareness for a system view of environmental conservation, which leads to a general result, which is the preservation of life on the planet. The article aims to point conceptual alternatives for such production, based on relevant literature on the subject. Keywords: Public Journalism. Regional Communication. Local Communication. Environmental Journalism. 1. Doutoranda em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), docente do curso de Jornalismo da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). E-mail: [email protected]. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 972 Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental Ana Carolina de Araújo Silva INTRODUÇÃO M DOS principais objetivos do jornalismo ambiental é a conscientização da U população. A notícia sobre meio ambiente, além de informar, deveria promover o debate, sugerir mudanças de hábito, chamar a atenção para a preservação do planeta e o desenvolvimento sustentável com o objetivo final de preservar a vida na Terra. Pareceria simples se não fosse um objetivo tão amplo. E quanto mais geral a informação veiculada, mais distante do público ela fica. Este artigo discute uma alternativa para esse dilema: como o jornalismo pode tratar de um assunto tão amplo como meio ambiente e, ao mesmo tempo, chamar a atenção da população para que a mudança de atitudes se dê no âmbito de cada casa, da individualidade? Uma das soluções que será discutida aqui é a veiculação de notícias sobre meio ambiente em veículos locais e regionais, com apoio nos objetivos e técnicas do chamado jornalismo público. Para tanto, o artigo traz uma breve conceituação do jornalismo ambiental e seus principais objetivos e características, tratando em seguida do jornalismo público e os conceitos desta vertente que devem nortear a concepção da informação jornalística sobre meio ambiente. Por fim, o trabalho traz uma discussão sobre jornalismo local e regional e a importância da inserção da notícia ambiental neste noticiário. O artigo não tem como objetivo traçar uma análise do jornalismo ambiental produzido em âmbito local e regional, mas antes apontar alternativas conceituais para tal produção, com base em bibliografia pertinente sobre o tema. JORNALISMO AMBIENTAL: CONCEITUAÇÃO Como o tema central deste artigo é a notícia sobre meio ambiente, antes é importante que seja delimitada a concepção de jornalismo que será utilizada neste trabalho. Wilson Bueno (2008) faz uma importante e esclarecedora diferenciação entre comunicação ambiental e jornalismo ambiental. Vamos assumir a Comunicação Ambiental como todo o conjunto de ações, estratégias, produtos, planos e esforços de comunicação destinados a promover a divulgação/promoção da causa ambiental, enquanto o Jornalismo ambiental, ainda que uma instância importante da Comunicação Ambiental, tem uma restrição importante: diz respeito exclusivamente às manifestações jornalísticas (BUENO, 2008, p. 105). Bueno (2008) também acrescenta que o jornalismo ambiental é caracterizado por produtos – que podem ser jornais, revistas, sites etc. – que decorrem do trabalho de profissionais de imprensa. Além disso, diferencia-se também da comunicação ambiental por ter o compromisso com a atualidade e a periodicidade. Um folheto de conscientização sobre o uso racional da água, por exemplo, é um produto da área da comunicação ambiental e pode ser distribuído uma única vez, sem nem ter passado pelo crivo de um profissional da imprensa. Já um programa de televisão que veicule reportagens sobre meio ambiente está inserido no conjunto de produtos do jornalismo ambiental, provavelmente realizado por profissionais da imprensa e disponível na TV em dias e horários específicos em determinado canal. Bueno (2008) também apresenta sua conceituação de jornalismo ambiental. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 973 Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental Ana Carolina de Araújo Silva Podemos conceituar o Jornalismo Ambiental como o processo de captação, produção, edição e circulação de informações (conhecimentos, saberes, resultados de pesquisas, etc.) comprometidas com a temática ambiental e que se destinam a um público leigo, não especializado (BUENO, 2008, p. 109). Frome (2008) lembra que o Jornalismo Ambiental é deferente do que ele chama que jornalismo tradicional. Segundo o autor, o jornalismo ambiental [...] É jogado segundo regras baseadas em uma consciência diferente daquela predominante na sociedade. Ele é mais do que uma forma de fazer reportagens e escrever, mas uma forma de viver, de olhar para o mundo e para si próprio. Ele começa com um conceito de serviço social, dá voz à luta e às demandas e se expressa com honestidade, credibilidade e finalidade (FROME, 2008, p. 60). Esse engajamento, “essa forma de viver” diferenciada, também é apontada por Bueno (2008) e Dornelles (2008). Beatriz Dornelles, em especial, publicou um artigo que trata essencialmente sobre uma proposta de jornalismo ambiental pautado no fim da objetividade e da neutralidade. Ela assim justifica sua proposta: Estou convencida de que precisamos adotar um novo estilo de jornalismo, especialmente para o acompanhamento das questões ambientais no âmbito da sociedade. Primeiro, porque precisamos pensar não só em manter a população informada sobre os acontecimentos, especialmente sobre a ação dos homens na natureza e seus efeitos, mas porque também precisamos educá-la para que, vivendo em democracia, possa se organizar e se mobilizar para exigir ações que levem em consideração o futuro de nossos filhos e netos e de toda nossa geração (DORNELLES, 2008, p. 121). O objetivo desse novo estilo de jornalismo, segundo Dornelles, é justamente envolver a população no debate sobre as questões ambientais. O que queremos dizer é que a pauta ambiental precisa fundamentalmente desempenhar uma função pedagógica, sistematizando conceitos, disseminando informações, conhecimentos e vivências, ou seja, dando condições para que o cidadão comum participe do debate (DORNELLES, 2008, p. 122). Esse posicionamento é ratificado por Bueno (2008, p. 112), que chama a atenção para as diversas organizações e grupos de interesse que procuram influenciar esse tipo de informação. Para lidar com esse jogo tão complicado, o autor defende que o trabalho de formação do jornalista ambiental deve começar nas escolas de jornalismo, para que esse profissional do futuro tenha um compromisso com a humanidade, um compromisso que se estende além da jornada de trabalho. “Consciente e capacitado, ele será militante sempre” (BUENO, 2008, p. 112). Frome (2008) salienta que a este profissional não basta a competência e o domínio das técnicas jornalísticas. Para justificar tal posicionamento, ele cita T.H. Watkins, professor da Montana State University, que tem muitos anos de experiência em jornalismo e edição em assuntos ambientais. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 974 Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental Ana Carolina de Araújo Silva Não tente entrar nesse campo a não ser que – e até que – você o sinta em sua carne. Ele não é como contabilidade, ou vendas, ou programação de computadores (apesar de eu achar que um bom contabilista, vendedor ou programador também tenha que ter empenho pessoal em alguma medida). Parece-se mais com uma cruzada, um compromisso. Se você não se importa profundamente com o destino do mundo não-humano (uma fé que não exclui o mundo humano, mas que meramente torna cidadãs por igual todas as espécies de vida, como afirmou Leopold2), nenhuma arte ou truque pode compensar o que falta a você (WATKINS, 1997 apud FROME, 2008, p. 75). Frome (2008, p. 81) não condena as rotinas de produção jornalística no dia-a-dia do profissional que faz a cobertura sobre meio ambiente. Mas ressalta que é preciso ir além da objetividade e dos limites do profissionalismo, se utilizando dessas técnicas não para ser devorado por um sistema desgastado, mas para servir à sociedade, mesmo que isso signifique desafiar o sistema. O jornalismo ambientalista quer encontrar e sentir a Boa Nova e espalhá-la como o evangelho. É a maneira de exercer o poder em sua vida, o poder de se juntar à definição de políticas públicas e o curso da história. Com esse poder, vem uma nova consciência de direitos humanos, de liberdade política e pessoal (FROME, 2008, p. 80). No tópico a seguir, será discutido como todo esse engajamento proposto pelos estudiosos do jornalismo ambiental pode encontrar fundamentação nos preceitos do jornalismo público ou cívico. O JORNALISMO PÚBLICO E A NOTÍCIA SOBRE MEIO AMBIENTE Como foi apontado no tópico anterior, o jornalismo ambiental engajado tem como principal objetivo promover o debate das questões ambientais e a conscientização da população para a mudança de hábitos e conseqüente preservação da vida no planeta. Tal objetivo atribui à notícia ambiental um caráter cívico, com vistas ao incentivo do exercício da cidadania. É sob esse aspecto que o jornalismo ambiental se aproxima do jornalismo público. Wilson Bueno ressalta essa característica da notícia sobre meio ambiente ao salientar que “o jornalismo ambiental é, antes de tudo, jornalismo” (BUENO, 2008, p. 111). Com esta afirmação, fica explícito que os preceitos éticos do jornalismo ambiental são os mesmos de qualquer outra área do jornalismo, em especial o caráter público que a informação toma ao ser transformada em uma matéria jornalística. Segundo Bueno (2008, p; 111), assim como o jornalismo de uma maneira geral, o jornalismo ambiental deve ter comprometimento com o interesse público, com a democratização do conhecimento e com a ampliação do debate. “Não pode ser utilizado como porta-voz de segmentos da sociedade para legitimar poderes e privilégios” (BUENO, 2008, p. 111). Para explicitar tal relação, resumiremos aqui as origens, conceitos, características e objetivos do jornalismo público, que assume também diversas outras denominações, como jornalismo cívico, jornalismo cidadão, jornalismo de serviço público, jornalismo de desenvolvimento e outras muitas expressões empregadas por estudiosos do tema. 2. Watkins refere-se a Aldo Leonard (1887-1948), ecologista e ambientalista pioneiro norte-americano que exerceu uma grande influência no desenvolvimento da ética ambiental moderna. (N. do T. In FROME, 2008, p. 75) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 975 Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental Ana Carolina de Araújo Silva Quanto à origem do jornalismo público, há referências diferentes. Segundo Traquina (2003, p. 10), a primeira experiência desse novo tipo de jornalismo se deu em 1988, quando o jornal americano Columbus Ledger Enquirer, do Estado da Geórgia, “abandonou o seu papel tradicional de observador desligado e assumiu um papel de ativista na tentativa de melhorar a qualidade de vida na comunidade” (TRAQUINA, 2008, p. 10). Danilo Rothberg (2011) e Arquimedes Pessoni (2005), em trabalhos diferentes que tratam aspectos do jornalismo público, também apontam o ano de 1988 como definitivo para o início dessa prática. Os preceitos do jornalismo público procuraram, na época, desmontar uma tendência da cobertura das eleições de 1988 nos Estados Unidos, que tomavam um enquadramento de jogo. “A cobertura não teria abrangido quais propostas ou temas estavam em discussão na campanha, mas teria apenas enfocado como e por que motivo cada candidato teria mais ou menos chances de ganhar a eleição” (ROTHBERG, 2011, p. 154). Pessoni (2005), no entanto, lembra que Davis Merrit, um dos líderes do movimento, escreveu que o filósofo e jornalista Walter Lippmann, no início do século passado, guiou muitos jornalistas a ver a si mesmos como parte de uma elite, uma visão desconectada dos cidadãos normais. “Ao questionar essa conduta, Lippmann lançou dúvidas sobre o papel do jornalista como mediador nas causas públicas” (PESSONI, 2005, p. 60). Porém, se considerarmos o jornalismo público como uma vertente do jornalismo de desenvolvimento, sua origem não é os EUA. Kunczik (2002) aponta que a expressão jornalismo de desenvolvimento como tal foi criada e introduzida no foro internacional na universidade filipina de Los Baños e teve maior impulso depois da formação da Fundação Jornalística da Ásia, em 1967. [...] Nora Quebral (1975, p.2), da Universidade de Los Baños, uma das criadoras desse conceito, acha que a missão do jornalismo de desenvolvimento é a emancipação dos grupos marginais, como os pobres urbanos, os camponeses, as mulheres etc., e ajudá-los ativamente a participar no processo político, o que influenciará ativamente seus destinos (KUNCZIK, 2002, p. 134-135). Apesar das divergências sobre a origem do jornalismo público, os autores estudados concordam em um aspecto: o jornalismo público nasceu de uma necessidade de mudança na forma de se produzir notícia. Jay Rosen, um dos principais teóricos do jornalismo público, aponta seis grandes crises na imprensa americana que acabaram por gerar um movimento de mudança: econômica (jornais vendiam pouco, com queda nos índices de leitura), tecnológica (avanços tecnológicos aumentaram a oferta de informação por outros meios), política (a partir da péssima cobertura das eleições de 1988), trabalhista (jornalistas desvalorizados, querendo abandonar a profissão), espiritual (qual o sentido de se fazer jornalismo) e intelectual (interpretação e análise fracas na produção das notícias) (ROSEN apud TEIJEIRO, 2000, p. 200-201). E foi para romper com essa realidade que uma série de projetos foi colocada em prática por diversos meios de comunicação. Todos com um objetivo em comum: fazer do jornalismo um propulsor de discussões de temas que afetam a população, indo além da missão de transmitir notícias. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 976 Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental Ana Carolina de Araújo Silva O jornalismo público procura enfrentar sérias rupturas na esfera cívica e o decorrente declínio no engajamento dos cidadãos nos processos democráticos. De acordo com seus principais defensores, os jornalistas têm a responsabilidade de alimentar o compromisso cívico e a participação dos cidadãos; o jornalismo deveria promover, e até mesmo ajudar a ampliar, a qualidade da vida pública (HAAS; STEINER, 2002, p. 325 apud ROTHBERG, 2011, p. 156). Nas palavras de Davis Merrit, pode-se definir o jornalismo público como o “jornalismo feito de forma que estimule e incentive os cidadãos a voltarem a se envolver na vida democrática” [tradução nossa] (MERRIT apud TEIJEIRO, 2000, p. 210).3 Tal definição traz implícita a crise de participação política pela qual passava a humanidade na década de 80. A falta de interesse pelos assuntos da coletividade fez jornalistas repensarem o papel da imprensa. E essa não era uma discussão nova, como já foi apontado no início deste tópico. E várias dessas discussões e experiências resultaram em uma série de princípios do jornalismo público, que defende que os jornalistas [a] cubram assuntos de natureza cívica e envolvam o público na definição dos assuntos que serão objeto de reportagem [...] [b] estimulem a deliberação pública e a discussão sobre tais assuntos em todos os segmentos da população [...] [c] dêem suporte e assistência ao público na procura de soluções para os problemas da comunidade (EUROPEAN JOURNALISM CENTRE apud ROTHBERG, 2011, p. 162). Não se discute a necessidade de colocar tais princípios em prática. Mas a principal dúvida nas redações é como fazê-lo. As primeiras iniciativas nortearam as práticas de jornalismo público. O próprio Davis Merrit foi um dos pioneiros da aplicação das teorias que defendia. Traquina (2008) relata que no jornal dirigido por Merrit, o Wichita Eagle, foi lançado em 1990 um projeto de jornalismo cívico intitulado “Voter Project”. “Em consórcio com uma estação radiofônica e um operador televisivo, o jornal utilizou sondagens de opinião e focus groups para identificar as questões principais que preocupavam os cidadãos” (TRAQUINA, 2008, p. 11). As técnicas foram aperfeiçoadas, mas Rothberg (2011, p. 162-163) lembra que as ações efetivas de projetos de jornalismo público contam, até hoje, com a utilização de pesquisas de opinião a respeito de quais assuntos devem ser cobertos pelos meios de comunicação, estudos qualitativos com grupos focais, reuniões periódicas com grupos temáticos de discussão e provisão de especialistas, “geralmente com o envolvimento de universidades e institutos de pesquisa locais, para liderar encontros com representantes de segmentos sociais” (ROTHBERG, 2001, p. 163). Um dos diferenciais, então, do jornalismo público em comparação ao jornalismo tradicional, é a maneira como as pautas surgem. No jornalismo público, as notícias são pautadas no interesse público, com a participação ativa dos cidadãos na discussão das temáticas. Tal técnica, no entanto, já suscitou inúmeras críticas, principalmente no que diz respeito aos grupos de pressão infiltrados nas consultas públicas. O que teria grande potencial para suscitar uma discussão ampla pode, muitas vezes, acabar ficando restrito 3. Se podría definir al Public Journalism como periodismo hecho de forma tal que estimule y aliente a los ciudadanos a volver a involucrarse en la vida democrática. [texto original] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 977 Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental Ana Carolina de Araújo Silva a interesses particulares ou de grupos específicos. Porém, não se pode negar que trazer as discussões da redação para a população é uma alternativa ao modo de produção tradicional do jornalismo, normalmente baseado em critérios de noticiabilidade definidos dentro das redações. O jornalismo público resgata, então, um dos papéis principais da imprensa, que surgiu com as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. [...] os jornalistas são especialmente apropriados para ajudar a constituir públicos vitais para a deliberação de assuntos complexos e o engajamento em atividades de solução de problemas coletivos. Assim, o jornalismo público se compromete a ajudar membros do público a se verem como cidadãos e a se tornarem responsáveis para lidar com toda a complexidade de temas e atuar como participantes na sociedade civil, ao invés de se portarem como meros espectadores dela (NICHOLS et al., 2006, p. 78 apud ROTHBERG, 2011, p. 159). E não há, na atualidade, tema que mereça maior destaque nas pautas de discussão coletiva do que a questão ambiental. As mudanças pelas quais o planeta passa atingem, sem exceções, a todos os seres humanos que habitam a Terra. Desastres ambientais, mudanças climáticas, superpopulação, desperdício e excesso de lixo, miséria e esgotamento das fontes de energia são alguns dos temas que permeiam todas as editorias dos jornais, da capa aos cadernos de economia. Mas a falta do aprofundamento sobre as causas de tais problemas sempre relegam o jornalismo ambiental a uma editoria secundária. O jornalismo público, ao tratar das questões ambientais, traria para perto do cidadão uma discussão mais aprofundada sobre como as ações individuais de preservação interferem de modo definitivo na coletividade. Quando se trata da questão ambiental, não há ação mais eficaz que a conscientização do cidadão e o envolvimento efetivo de cada ser humano para a preservação da vida no planeta. E o jornalismo público poderia ser o catalisador desse movimento. JORNALISMO AMBIENTAL LOCAL E REGIONAL: UMA ALTERNATIVA PARA A CONSCIENTIZAÇÃO No tópico anterior, esclarecemos como o jornalismo público e o jornalismo ambiental podem se complementar na conscientização do cidadão para a melhoria da qualidade de vida no planeta. No entanto, uma questão ainda permeia esta discussão: como sensibilizar a população para este fim? Como aproximar questões que parecem distantes do cotidiano do cidadão? Como conscientizar, por exemplo, moradores do interior de Mato Grosso de que suas ações com relação ao meio ambiente podem interferir no descongelamento de geleiras nos pólos? Não há solução mágica, mas com base nas leituras que realizamos, podemos dizer que o caminho para a conscientização ambiental aponta para o jornalismo local e regional. A razão é simples: o ser humano tende a importar-se mais com o que acontece ao seu redor, próximo de seu local de convivência cotidiana. E essa seria a via mais eficaz de discussão das questões ambientais. Partindo do local, o global fará mais sentido. Mas antes de discutirmos o jornalismo ambiental na imprensa local e regional, entendamos os conceitos de local e regional. Quando se trata de tais conceitos, o senso comum os associa imediatamente a limitações geográficas. No entanto, Bourdin (2001) nos aponta outra concepção de localidade, que vai além dos limites de território. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 978 Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental Ana Carolina de Araújo Silva A localidade às vezes não passa de uma circunscrição projetada por uma autoridade, em razão de princípios que vão desde a história a critérios puramente técnicos. Em outros casos, ela exprime a proximidade, o encontro diário, em outro ainda, a existência de um conjunto de especificidades sociais, culturais bem partilhadas (BOURDIN, 2001, p. 25). Logo, o conceito de local e regional não está restrito somente a limites geográficos. O sentimento de pertença a determinado grupo social, cidade, cultura também especificam a abrangência e um determinado local. Um indivíduo pode viver em outro país e se interessar pelas questões de uma determinada cidade ou região brasileira. Bourdin (2001) também escreve sobre esse espaço de pertença: Toda espacialidade exprime a pertença a um nós, que se constrói e se manifesta em recortes territoriais. O espaço de pertença resulta do conjunto dos recortes “que especificam a posição de um ator social e a inserção de seu grupo de pertença num lugar”, o espaço de referências define o sistema de valores espaciais em que se inserem esses recortes e organiza a relação do aqui com o alhures (BOURDIN, 2001, p. 33). Esse sentimento de pertença também tem a ver com identidade. Traços culturais, hereditários, históricos e muitos outros constroem a identidade do indivíduo com determinado local ou grupo. E Hall (1987) salienta que a identidade não é estática, determinada e imutável. “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente” (HALL, 2006, p. 12-13). E isso acontece justamente porque, ao longo da história, as pessoas e o contexto social em que vivem mudam. Com elas, as identidades e, conseqüentemente, o sentimento de pertença. Segundo Peruzzo (2005), a mídia local tem como foco esse território de pertença e identidade e não apenas uma localidade específica. Não há um padrão fechado e pronto a ser seguido e sua atuação depende, inclusive, da política editorial de cada meio de comunicação. A mídia local se ancora na informação gerada dentro do território de pertença e de identidade em uma dada localidade ou região. Porém, ela não é monolítica. Não há uniformidade no tipo de vínculo dos meios de comunicação em suas regiões, pois a inserção (mais ou menos) comprometida localmente depende da política editorial de cada veículo (PERUZZO, 2005, p. 75). O principal diferencial da mídia local, que atrai o interesse do público, é a proximidade das informações veiculadas. Essa informação de proximidade, cada vez mais rara em grandes veículos de comunicação, atualiza o cidadão sobre os acontecimentos de seu cotidiano ou daquele local que lhe suscita interesse. Peruzzo (2005) define informação de proximidade da seguinte forma: Entendemos por informação de proximidade aquela que expressa as especificidades de uma dada localidade, que retrate, portanto, os acontecimentos orgânicos a uma determinada região e seja capaz de ouvir e externar os diferentes pontos de vista, principalmente Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 979 Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental Ana Carolina de Araújo Silva a partir dos cidadãos, das organizações e dos diferentes segmentos sociais. Enfim, a mídia de proximidade caracteriza-se por vínculos de pertença, enraizados na vivência e refletidos num compromisso com o lugar e com a informação de qualidade e não apenas com as forças políticas e econômicas no exercício do poder (PERUZZO, 2005, p. 81). A informação de proximidade expressa as especificidades de uma dada localidade, mas não é direcionada apenas a quem vive nessa localidade. É neste aspecto que a mídia local e regional pode atingir não só os cidadãos que compartilham uma mesma região geográfica, mas também indivíduos que tenham um sentimento de pertença com relação a essa localidade e aos assuntos que dizem respeito a ela. E, como já explanamos aqui, esse sentimento é mutável, assim como as identidades. Camponez (2002) resume essa concepção, ressaltando que o conceito de proximidade não é físico, concreto. [...] o conceito de proximidade resulta de uma geometria variável: é mais uma geometria da identidade [...] do que uma identidade geográfica propriamente dita. Por isso, o território revela-se, e cada vez mais na actualidade (sic), insuficiente para, por si só [...] explicar a imprensa regional e local. [...] A proximidade já não se mede em metros. Devemos estar preparados para conceber a produção de conteúdos que, embora longe de nossas casas, nos são próximos, bem como para assistir à produção das regiões de conteúdos tão homogeneizantes e massificadores quanto os das grandes corporações de media (CAMPONEZ, 2002, p. 128-129). É desta concepção de proximidade que o jornalismo ambiental pode se valer para buscar a atenção e adesão dos cidadãos. Ao promover a discussão sobre meio-ambiente no âmbito local ou regional, a imprensa local e regional começa por estimular o cidadão à mudança de atitudes, a pensar sobre o problema. Um exemplo claro é a questão do lixo. Números grandiosos são divulgados, de tempos em tempos, sobre a geração de lixo no planeta, no país. Mas é uma informação distante, geral. No entanto, se o jornal local tratar sobre o mau cheiro do lixão em determinada cidade, o tema torna-se mais interessante para o leitor. A partir da notícia, com base nos preceitos do jornalismo ambiental, outras pautas e ações podem surgir, como o estímulo à coleta seletiva de lixo, por exemplo. CONSIDERAÇÕES FINAIS O jornalismo público surgiu a partir de uma crise do jornalismo. Há uma longa discussão sobre o momento histórico desse surgimento, assim como dos seus objetivos e técnicas. Uma dessas discussões diz respeito às bases do jornalismo público: o estímulo do cidadão para o exercício da democracia e a busca por pautas que surjam das questões e problemas levantados pela própria população. Mas essas não seriam missões do jornalismo em si? As rotinas de produção, ao longo dos anos, apagaram esses pressupostos? Assim, entendemos que o movimento a partir do qual surgiu o jornalismo público é um movimento de retomada das bases do jornalismo nas sociedades democráticas. E é neste ensejo que o jornalismo ambiental se insere. Promover a discussão sobre os rumos da vida no planeta é obrigação de um jornalismo responsável, ético e compromissado com os cidadãos. Pois não se trata de um assunto secundário, como vem sendo tratado. A questão ambiental agrava-se a cada dia e a indiferença frente aos Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 980 Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental Ana Carolina de Araújo Silva problemas que se apresentam é preocupante. Por isso a imprensa local é importantíssima como recurso para o estímulo a essa conscientização. Camponez (2002), ao discutir as idéias do jornalista francês Dominique Gerbaud sobre as funções da imprensa local, enfatiza essa vocação da mídia neste âmbito. A imprensa local tem, assim, por função, manter e promover uma saudável vida democrática, permitindo a troca de idéias, favorecendo o debate e procurando fazer com que seus leitores se interessem pelo ambiente que os rodeia, por forma a levá-los a assumir uma atitude participativa do ponto de vista social (CAMPONEZ, 2002, p. 122). Entendemos, então, que a imprensa local e regional, sob a ótica do jornalismo público, tem papel preponderante na conscientização dos cidadãos acerca da preservação ambiental e outros temas que dizem respeito ao ambiente em que vivemos. São questões que focam a permanência da vida na Terra. E isso atinge, universalmente e sem exceções, a todos os seres humanos. REFERÊNCIAS Bourdin, A. (2001). A questão local. Rio de Janeiro: DP&A. Bucci, E. (2000). Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras. Bueno, W. C. (2008). Jornalismo ambiental: explorando além do conceito. In: Girardi, I. M. T.; Schwaab, R. T. (org.). Jornalismo ambiental: desafios e reflexões. Porto Alegre: Editora Dom Quixote. Camponez, C. (2002). Jornalismo de proximidade. Coimbra: Minerva. Dornelles, B. (2008). O fim da objetividade e da neutralidade no jornalismo cívico e ambiental. Brazilian Journalism Research. 4(2), 121-131. Recuperado em 29 de outubro, 2011, de: http://bjr.sbpjor.org.br/index.php/bjr/article/view/167. Frome, M. (2008). Green Ink: uma introdução ao jornalismo ambiental. Curitiba: Editora UFPR. Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. Kunczik, M. (2002). Conceitos de Jornalismo: Norte e Sul: Manual de Comunicação. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Peruzzo, C. M. K. (2002). Mídia regional e local: aspectos conceituais e tendências. Comunicação & Sociedade, (1)38, 67-84. Recuperado em 27 de outubro, 2011, de: http://200.144.189.42/ ojs/index.php/cs_umesp/article/viewArticle/196. Pessoni, A. (2005). Jornalismo público americano: o leitor como cidadão. 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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 981 Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web Citizenship and on-line deliberation: the debate about the project 7633/2014 at the website Vote na Web C a rolin e K r aus Lu vizot to 1 Daniel e Fer r eir a Seridório 2 Resumo: A expansão e inerência do ambiente on-line possibilitaram às assembleias de praça pública alcançar fóruns, sites e outras plataformas digitais de interação. Para o processo deliberativo foi cunhado um novo termo, a deliberação on-line. Neste contexto, este artigo pretende refletir sobre a deliberação on-line e os processos comunicativos e interativos que a envolvem para analisar a inclusividade no website Vote na Web e concluir a respeito do seu potencial deliberativo. Para a análise empírica escolhemos o debate em torno do projeto de lei complementar 7633/2014, que diz respeito ao parto humanizado. Apesar das limitações do website, fazendo parte da cultura da participação, acreditamos que o Vote na Web possa ser um passo de participação cidadã para um posterior engajamento cívico, por isso, pensamos que iniciativas como essa são fundamentais no exercício da cidadania e na discussão política no Brasil. Palavras-Chave: Participação Política. Deliberação On-line. Inclusividade. Vote na Web. Abstract: The expansion and the inherence of the cyberspace helped the public places assemblies to reach forums, sites and other digital interaction platforms. To the deliberative term it was built a new perspective, the on-line deliberation. In this context, this article aims to discuss about on-line deliberation and the communicative and interactive process that it involves, to analyses the inclusivity at Vote na Web and conclude about it deliberative potential. To the analyses we choose the debate about the law project 7633/2014, which talks about humanitarian labor. Even though the website’s limitations, being part of the participation culture, we believe that Vote na Web can be one step into the citizen participation of the way to civil engagement , that’s why, we think initiatives like that are fundamental in the citizen exercise and in the political discussion in Brazil. Keywords: Political Participation. On-line Deliberation. Inclusivity. Vote na Web. 1. Doutora em Ciência Sociais. Docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação e do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp – Universidade Estadual Paulista, Campus de Bauru. Email: [email protected] 2. Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp – Universidade Estadual Paulista, Campus de Bauru. [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 982 Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web Caroline Kraus Luvizotto • Daniele Ferreira Seridório INTRODUÇÃO MINISTÉRIO DA Saúde e a Agência Nacional da Saúde Suplementar (ANS) imple- O mentaram a resolução normativa 368 de 6 de janeiro de 2015, estabelecendo que os planos de saúde devem informar às gestantes o histórico de cesarianas do médico, da operadora e do hospital, ampliando o acesso a informações essenciais na decisão da mulher. A resolução retoma a discussão a respeito do elevado número de partos cirúrgicos realizados no Brasil. Segundos dados da pesquisa Nascer no Brasil3 52% dos partos realizados no país são cirúrgico – sendo 46% no setor público de saúde e 88% no setor privado. A recomendação da Organização mundial da Saúde (OMS) é que a taxa de cesarianas não ultrapasse os 15%. Desde 2014 tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei complementar (PLC) 7633/2014, que dispõe da humanização do atendimento à gestante e ao neonato, estabelecendo diretrizes para o atendimento médico durante a gestação e após o nascimento do bebê. O texto, ainda prevê coibir a violência obstétrica. Neste cenário, é fundamental ouvir a voz das mulheres em relação a essas medidas que diretamente lhe são destinadas. No site da Câmara dos Deputados, o PLC 7633/2014 entrou para participação popular por uma enquete – os usuários poderiam optar se concordavam ou não com a proposta. O site traz a seguinte pergunta “Você concorda com a proposta que limita o número de cesarianas no país à média recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), atualmente de 15% dos partos?”. A enquete ainda está ativa, mas até 12 de março de 2015, mais de 58% afirmaram que sim, 40% que não e 1% não tem opinião formada. Apesar de a enquete ser uma forma de participação popular, não é possível ter dados a respeito de quantas mulheres votaram, e o espaço destinado aos comentários é pouco interativo, não permitindo que um usuário responda ao outro, propondo um debate. Então, para conhecer a percepção das mulheres e conhecer argumentos em torno deste debate faz-se necessário analisar a discussão em outra plataforma. Neste contexto, temos o website Vote na Web, que traz os projetos que estão em tramitação nas assembleias legislativas para votação popular, propondo um espaço de debate e com dados a respeito do gênero, da idade e a qual unidade da federação reside o usuário que votou em determinado fórum. Portanto, a análise da inclusividade da mulher na votação do referido website traz resultados relevantes para discussão a respeito da comunicação mediada pelo computador como meio para participação política e estabelecimento de processo deliberativos on-line. “Em uma sociedade na qual a informação se torna essencial para a criação e manutenção de estratégias que visem a uma sociedade mais justa e à efetivação da democracia, a internet se apresenta como um dos principais canais de comunicação” entre os atores sociais (ROTHBERG et al, 2014: 231). Este artigo pretende refletir sobre a deliberação on-line e os processos comunicativos e interativos que a envolvem para analisar a inclusividade no website Vote na Web e concluir a respeito do seu potencial deliberativo. Para a análise empírica escolhemos o debate em torno do projeto de lei complementar 7633/2014, que diz respeito ao parto humanizado. 3. A pesquisa foi coordenada pela Escola Nacional de Saúde Pública. Mais detalhes em: http://www6. ensp.fiocruz.br/nascerbrasil/ Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 983 Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web Caroline Kraus Luvizotto • Daniele Ferreira Seridório PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E DELIBERAÇÃO ON-LINE Essa expansão e inerência do ambiente on-line chegaram às assembléias de praça pública e levaram-nas para fóruns, sites e outras plataformas digitais de interação. Para o processo deliberativo (HABERMAS 1997; DRYZEK, 2007) foi cunhado um novo termo, a deliberação on-line (JANSSEN e KIES, 2005; SAMPAIO, et al, 2012) e emergiram pesquisadores e estudos que concentram seus esforços em discutir e analisar a qualidade deliberativa dessas arenas on-line de comunicação, participação e interação. Essas arenas virtuais, além de proporcionarem espaço para o debate, dão visibilidade para questões que antes encontravam pouco espaço nas mídias tradicionais, ou que eram discutidas com baixa pluralidade de opiniões e atores. Além disso, por estarem na internet essas plataformas devem ser pensadas e programadas de maneira que auxiliem as interações reativas e mútuas (PRIMO, 2008). Portanto, além de permitir a livre conversação entre usuários, elas devem fornecer ferramentas que auxiliem no processo de participação e deliberação. Essas ferramentas relacionam-se intimamente com a arquitetura do site e com a informação disponibilizada para fomentar o debate, já que o participante também precisa ter acesso a informações que permitam a crítica e a tomada de decisão. O desenvolvimento das tecnologias digitais e interativas de comunicação introduziu o conceito de democracia deliberativa nos estudos de Comunicação, analisando e discutindo a maneira que esses meios podem reforçar a participação dos cidadãos na democracia contemporânea. As tecnologias da web 2.0 são grande atrativo para a articulação de ações individuais ou coletivas, como a dos movimentos sociais, pois a partir dessas tecnologias é possível a interação por intermédio de websites e redes formadas em torno de interesses específicos, podendo apoiar causas e discutir temas individuais ou temas de relevância coletiva, levando assim a opinião pública a reflexão e a disseminação de informações políticas e sociais (VALENTE; MATAR, 2007). Com a internet as formas de comunicação e consumo de informação se modificaram e deixaram de ser unilaterais – marca dos meios de comunicação de massa – sendo mais participativas e democráticas. Devido à interatividade, com a criação das redes sociais e blogs, por exemplo, a internet proporciona aos seus usuários a capacidade de produzir informação, ao invés de somente consumi-la. Observa-se que as plataformas on-line da web 2.0 foram tomadas por discussões e debates dos mais variados temas. Entende-se que, mesmo que de maneira limitada devido à sua infraestrutura de conectividade e a aspectos relativos como a arquitetura da informação do website, como por exemplo a acessibilidade e a usabilidade, a internet possibilita participação e interação real entre seus usuários, sendo uma forma de comunicação rápida, prática e sem barreiras geográficas e temporais. Atualmente, inúmeros sujeitos sociais articulam suas ações por meio das redes sociais na internet, um tipo de participação que se configura como ativismo social online. A infraestrutura de conectividade da rede revela-se um aparato tecnológico que permite a comunicação de atores sociais no processo de criação, organização e disseminação de demandas políticas e sociais. Esta estrutura possibilita a articulação dos atores sociais de modo inter e correlacionado. Esse novo paradigma tem, segundo Castells (2006, p. 108109), certas características essenciais: “a informação é sua matéria-prima, os efeitos das novas tecnologias tem alta penetrabilidade, predomínio da lógica de redes, flexibilidade, crescente convergência de tecnologias”. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 984 Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web Caroline Kraus Luvizotto • Daniele Ferreira Seridório As redes que integram essa lógica possuem potencial articulador e mobilizador e, segundo Scherer-Warren (2006, p. 115), “por serem multiformes, aproximam atores sociais diversificados – dos níveis locais aos mais globais, de diferentes tipos de organizações – e possibilitam o diálogo da diversidade de interesses e valores”. A participação está ligada à atividade e ao engajamento. A participação seria inata ao ser humano devido às suas necessidades criativa e racional e a democracia seria um estado da participação (BORDENAVE, 1983). Nesse sentido, podemos afirmar que o exercício da cidadania passa diretamente pela participação de um povo e suas demandas. Potencializada a participação, a deliberação também alcançou outros níveis com o advento da internet. Os textos de Habermas (1997, 2005) representam a base da discussão sobre deliberação e as relações sociais que a envolvem, já que esse filósofo propõe um modelo de democracia que ao mesmo tempo em que não abdica de uma interação forte entre cidadãos e representantes para a formação da opinião, não deixa de reconhecer direitos, liberdades e reivindicações individuais (SAMPAIO, et al, 2012). Por mais que Habermas compreenda a fundamentação da deliberação como uma ação comunicativa, o que mostra sua qualidade como referencial teórico para os estudos dos processos comunicativos da deliberação, ele próprio já reconheceu os esforços de outros teóricos para ampliar e adequar seus conceitos em busca de métodos empíricos que avaliem a qualidade do ambiente deliberativo. O que ocorre, segundo o autor, é que ao mesmo tempo em que a deliberação exige a participação, a participação massiva de um determinado grupo – ou ponto de vista – mitiga a consideração da participação e dos argumentos de outro grupo. Ressalta-se, portanto, que por mais que a participação seja essencial à deliberação, é preciso que o mecanismo de avaliação de experiências empíricas separe um do outro. Principalmente quando o ambiente deliberativo está on-line, já que o ciberespaço fornece diversas possibilidades de interação, relação e conversação. Inúmeras potencialidades são atribuídas à internet e suas características mais representativas para o processo deliberativo “vão desde a possibilidade de autoexpressão e estabelecimento da comunicação sem coerções, passando pela sua enorme capacidade interativa e de instantaneidade, ate a memória e a capacidade de armazenamento de informação” (SAMPAIO, et al, 2012, p. 474). No ambiente on-line são os processos de interação mediada por computador que vão guiar a participação e a deliberação. Existem inúmeros pontos de discussão a respeito da deliberação on-line, sendo necessário que pesquisas empíricas continuem a corroborar e a questionar a teoria a respeito do assunto, principalmente no Brasil, onde a pesquisa na área ainda é escassa. Portanto, para ilustrar a questão teórica discutida, partiremos da análise empírica de um website que se apresenta como um espaço deliberativo on-line, o Vote na Web. O VOTE NA WEB O Vote na Web se apresenta como um site de engajamento cívico e apartidário, que tem como objetivos aumentar a polarização da sociedade, e se compromete em levar os resultados da participação civil ao Congresso4. 4. Fonte: http://www.votenaweb.com.br/sobre Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 985 Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web Caroline Kraus Luvizotto • Daniele Ferreira Seridório Uma das principais características do Vote na Web são os resumos apresentados, formulados por analistas – a partir do texto do projeto de lei original – que buscam traduzir os termos utilizados para uma linguagem mais próxima a do público. Quando a lei passa por votação na Câmara e no Senado o site apresenta uma comparação entre o voto dos legisladores e dos usuários. Outros aspectos da arquitetura do referido site podem ser citados, como por exemplo, a divisão dos projetos de lei apresentados em categorias, como, economia, saúde, trabalho, cidades, cultura, esporte, transporte, entre outras. No site, também há duas ferramentas de busca, por filtros pré-estabelecidos, ou por palavras-chave. Para este artigo, no entanto, o ponto mais importante da arquitetura do webiste Vote na Web é que ele permite que se visualize a computação dos votos em um parâmetro geral dos usuários, mas também divididos em categorias de gênero, idade e estado. Deste modo, é possível ter dados da votação considerando somente a população de mulheres, podendo concluir a respeito da inclusão e do posicionamento desses indivíduos. RESULTADOS E DISCUSSÃO O projeto de lei complementar (PLC) 7633/2014 dispõe sobre a humanização do atendimento à gestante e ao neonato e estabelece diretrizes para o atendimento médico durante a gestação e após o nascimento do bebê. O texto, ainda prevê coibir a violência obstétrica. A coleta de dados foi feita de maneira sistemática no dia 18 de janeiro de 2015. As informações que procuramos foram as seguintes quantidades: mulheres que votaram; homens que votaram; habitantes de cada um dos estados de federação que votaram; e usuários por de cada faixa etária que votaram. Consideramos as faixas de 0 a 19 anos; 20 a 34 anos; 35 a 59 anos; 60 anos ou mais. Depois de coletados, os dados foram organizados em tabelas e gráficos e comparados aos números da pesquisa Censo 2010, realizada pelo Instituto Brasileiro e Geografia e Estatística (IBGE). A figura 1 apresenta a votação geral do PLC 7633/2014 no website Vote na Web5: Figura 1. Votação geral do PLC 7633/2014 no website Vote na Web. Fonte: Vote na Web/2015 5. Mais informações sobre o PLC 7633/2014 no Vote na Web podem ser acessadas em http://www.votenaweb. com.br/projetos/plc-7633-2014 Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 986 Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web Caroline Kraus Luvizotto • Daniele Ferreira Seridório Apenas 34% dos usuários que votaram se identificaram como mulher, 52% declaram-se homens e 14% não escolherem entre as opções possíveis – homem ou mulher (gráfico 1). Gráfico 1. Inclusividade na votação avaliada. Fonte: Autoria Própria/2015 Quando comparamos esse resultado aos dados da pesquisa Censo de 2010, realizada pelo IBGE, percebemos que esses números indicam baixa inclusividade das mulheres na votação. Dos mais de 190 milhões de habitantes do Brasil – residentes em domicílios - 97.348.809 são mulheres (gráfico 2). Gráfico 2. Dados do IBGE. Fonte: Autoria Própria/2015 Mesmo que todos os usuários que não escolheram opção de gênero fossem mulheres a taxa de inclusão ainda não atingiria um parâmetro ideal frente à realidade nacional, porém se aproximaria muito disso – 48%. Ainda podemos discutir o reflexo desta baixa inclusão no resultado da votação (gráfico 3). Quando separamos os resultados entre os votantes que se consideram homens (gráfico 4) e entre os votantes que se consideram mulheres (gráfico 5) temos os seguintes resultados: Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 987 Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web Caroline Kraus Luvizotto • Daniele Ferreira Seridório Gráfico 3. Votação do projeto analisado considerando todos os usuários que votaram. Fonte: autoria própria/2015 Gráfico 4. Votação do projeto analisado considerando somente os usuários homens que votaram. Fonte: autoria própria/2015 Gráfico 5. Votação do projeto analisado considerando somente os usuários mulheres que votaram. Fonte: autoria própria/2015 Isso mostra que na discussão de um projeto de lei que atinge diretamente às mulheres, se somente homens ou mulheres estivessem votando, a diferença entre os que optaram pelo “sim” ou pelo “não” chega a 10%. Outro resultado relevante a ser considerado é a grande porcentagem de usuários que não se identificaram como homens ou como mulheres – 14%. A própria pesquisa do IBGE não permite outra identificação. Outro resultado analisado foi a inclusividade por estados da federação (tabela 1). Nesta categoria, observamos que quatro estados tiveram a mesma participação percentual Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 988 Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web Caroline Kraus Luvizotto • Daniele Ferreira Seridório na votação e na composição da população brasileira, eles são: Paraíba (2%); Paraná (5%); Santa Catarina (3%); e Sergipe (1%). O estado com a menor inclusividade é a Bahia; sua população representa 7% dos habitantes no país, porém na votação no Vote na web, representa apenas 2% dos usuários. E as unidades da federação que desequilibram a votação – ou seja, tem maior representatividade no site – são: São Paulo; Rio de Janeiro e Distrito Federal. O número de usuários que não identificaram o gênero foi o mesmo que não identificou o estado. Muito estados não chegam a atingir 1% de participação nem no vote na Web e nem na população brasileira, por isso, consideramos para essas unidades da federação percentual menor que 0. Tabela 1. Comparação entre a participação dos estados no Vote na Web e na população brasileira. Fonte: Autoria própria/2015 Participação no Vote na Web Estado Participação na população brasileira 0% (0,1%) Acre 0% (0,3%) 1% Alagoas 2% 0% (0,08%) Amapá 0% (0,3%) 1% Amazonas 2% 2% Bahia 7% 2% Ceará 4% 3% Distrito Federal 1% 1% Espírito Santo 2% 1% Goiás 3% 0% (0,4%) Maranhão 3% 1% Mato Grosso 2% 0% (0,1%) Mato Grosso do Sul 1% 9% Minas Gerais 10% 1% Pará 4% 2% Paraíba 2% 5% Paraná 5% 2% Pernambuco 5% 0% (0,3%) Piauí 2% 13% Rio de Janeiro 8% 1% Rio Grande do Norte 2% 5% Rio Grande do Sul 6% 0% (0,2%) Rondônia 1% 0% (0,04%) Roraima 0% (0,2%) 3% Santa Catarina 3% 29% São Paulo 22% 1% Sergipe 1% 0% (0,4%) Tocantins 1% Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 989 Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web Caroline Kraus Luvizotto • Daniele Ferreira Seridório CONCLUSÕES O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e a própria configuração em rede da internet promoveram profundas mudanças na sociedade, desde a própria reorganização do capital para bens imateriais de informação e conhecimento – fenômeno que caracteriza a Sociedade da Informação – até a maneira como os indivíduos se comunicam e produzem mídia. A sociedade apropriou-se dessas tecnologias e formou-se uma rede que utiliza esse aparato tecnológico para interagir, comunicar-se e participar. Concluímos a partir da nossa análise que baixa inclusividade é um reflexo de dois principais fatores: inclusão digital no Brasil; diversidade e baixa aderência do website analisado. A inclusão digital é um desafio para o Brasil, e não podemos considerar somente a quantidade de aceso, mas as habilidades necessárias para manusear um computador e utilizar a internet como um meio de participação política. Dados do Comitê Gestor de Internet mostram que, em 2013, 48% dos lares brasileiros tinham acesso à internet. A maior parcela da população não é, portanto, incluída nas discussões que ocorrem na internet. Por mais que a internet seja uma plataforma com potencial para participação política e deliberação, a pequena penetrabilidade desse meio nos lares brasileiros não permite que esse potencial seja transformado em ações efetivas. Enquanto computadores com internet não chegam aos domicílios, observa-se no Brasil um fenômeno de grande adesão aos dispositivos móveis. Dados da Agência Nacional de Telecomunicação (Anatel) mostraram que o Brasil fechou o ano de 2013 com 103,11 milhões de acessos à banda larga móvel, e de janeiro a dezembro daquele ano a quantidade de acesso à rede 3G cresceu mai de 75% e a de 4G mais de 8%. Então, para que os sites que propõem um espaço de participação e deliberação política sejam mais inclusivos, é preciso explorar plataformas compatíveis aos dispositivos móveis. A empresa webcitizen desenvolveu, a partir do Vote na Web, o aplicativo para dispositivos móveis “Papo de Bouteco”. A análise deste ambiente de comunicação é fundamental para o fomento da discussão de uma democracia mais igualitária. Afinal, são discutidos projetos que podem vir a se tornar lei no país. Ademais, o Vote na Web representa um ambiente comunicacional independente, onde o fluxo parte da esfera civil, debatendo temas que em uma esfera pública eram de discussão exclusiva dos estadistas. REFERÊNCIAS Agência Nacional de Telecomunicações. Brasil fecha 2013 com 271,10 milhões de acessos móveis. Recuperado em: 26 de fevereiro, 2015 de: http://www.anatel.gov.br/Portal/ exibirPortalNoticias.do?acao=carregaNoticia&codigo=32359. Brasil (2015, Jan 7). Diário Oficial da União. Recuperado em: 11 de março, 2015 de: http://www. jusbrasil.com.br/diarios/82815223/dou-secao-1-07-01-2015-pg-38. Bordenave, J. D. (1983). O que é participação. São Paulo: Brasiliense. Castells, M. (2006) A sociedade em rede.9. ed. São Paulo: Paz e Terra. Comitê Gestor de Internet. (2013). Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e comunicação no Brasil. Recuperado em: 26 fevereiro, 2015 de: http://cgi.br/media/docs/publicacoes/2/ TIC_DOM_EMP_2013_livro_eletronico.pdf. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 990 Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web Caroline Kraus Luvizotto • Daniele Ferreira Seridório Dryzek, J. (2007). Theory, Evidence and the Tasks of Deliberation. In: Deliberation, Participation and Democracy: Can the people govern? Organização: Shawn Rosenberg. Nova Iorque: Palgrave Macmillan. Escola nacional de Saúde Pública (2014). Pesquisa Nascer no Brasil. Recuperado em: 11 março, 2015 de: http://www6.ensp.fiocruz.br/nascerbrasil/principais-resultados2/. Habermas, J. (2005). Concluding Comments on Empirical Approaches to Deliberative Politics. In: Acta Politica, vol. 40, 384-392. Habermas, J. (1997). Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro, Brasil: Tempo Brasileiro. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010). Censo 2010. 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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 991 Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste \Public communication in e-government web pages: the quality of information on the rights of people with disability in the Northeast States M a r i a n y Gr a nato 1 Resumo: O presente artigo revisa conceitos de comunicação pública, capital social, relações públicas com o objetivo de caracterizar informações presentes nos portais eletrônicos da região Nordeste, em 2013, relativas aos direitos da pessoa com deficiência. Foram analisados os sites das secretarias estaduais que cuidam do tema na ausência de uma pasta específica para a pessoa com deficiência. A metodologia utilizada foi análise de conteúdo para sustentar a indicação de 18 categorias consideradas necessárias para que o conteúdo da página web tivesse sucesso na qualidade da informação. Dentre o material analisando, segundo a bibliografia utilizada, ainda existe espaço para melhorias nas informações veiculadas. Palavras chave: comunicação pública; cidadania; democracia digital; aliança intersetorial; relações públicas. Abstract: This paper reviews concepts of public communication , social capital , public relations with the objective of characterizing information present in the homepages of the Northeast in 2013 on the rights of people with disabilities . The websites of state departments were analyzed who care about the issue in the absence of a specific folder for the disabled person . The methodology used was content analysis to support the appointment of 18 categories deemed necessary for the web page content to succeed in the quality of information. Among the material analyzed , according to the bibliography used , there is still room for improvement to the spread information. Keywords: public communication ; citizenship; digital democracy; intersectoral alliance ; public relations. COMUNICAÇÃO PÚBLICA CONCEITO DA comunicação pública, considerada direito do cidadão, permeia O definições focadas, em sua maioria, no processo em si e não na interação entre os indivíduos envolvidos. Presente em sociedades democráticas, a comunicação pública tem como função primordial a transmissão de mensagens públicas, oriundas, principalmente, de fontes como o governo ou grupos de interesse para a sociedade. 1. Mestranda bolsista CAPES do programa de Comunicação Unesp. Bacharel em Comunicação Social: Relações Públicas Unesp. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 992 Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste Mariany Granato Segundo Duarte (2009) o termo comunicação prevê o diálogo entre os atores sociais instrumentalizados em processos como o de comunicação informal ou canais que estimulem o exercício da cidadania em prol da mudança motivada pelo interesse comum, tornando os cidadãos sujeitos do processo de transformação social, materializados nos fóruns de consulta, conselhos setoriais, serviços de atendimento ao cidadão e consultas públicas. Além disso, é possível classificar instrumentos de comunicação como: massivos; segmentados e diretos. A comunicação de massa é baseada no princípio de disseminação da informação para o maior número possível de pessoas, que, por sua vez, formam um grupo heterogêneo. O ponto forte deste processo é a capacidade de estabelecer agendas na mídia e a fraqueza é a não abertura para o diálogo entre atores sociais. Para se alcançar maior domínio sobre o conteúdo e foco na parcela populacional que se deseja atingir, a comunicação segmentada é a mais indicada para a comunicação pública. A participação e o diálogo entre os atores envolvidos apontam para maiores possibilidades neste tipo de comunicação por meio do uso de ferramentas como os sites, blogs, eventos, exposições ou reuniões. Quanto à comunicação direta, o contato é face à face e personalizado, isto posto, o atendimento tanto online quanto presencial passa a ser marcado pela facilidade de interação, troca de informações e possíveis esclarecimentos às dúvidas. Antes de avançarmos para as definições de comunicação pública é necessário diferenciar o conceito de comunicação e informação. Duarte (2009) vê a possibilidade de existência dos seguintes grupos de informação: institucionais, no que se refere à projeção da imagem e identidade de instituições por meio de responsabilidades e políticas; de gestão, relativo ao processo de decisão e ação dos que trabalham com temas de interesse público, como os discursos dos agentes; de utilidade pública, temas relacionados aos serviços e orientações do dia à dia individualmente, como horários de funcionamento, campanhas de saúde, entre outros; o mercadológico, com produtos e serviços ofertados no mercado pela concorrência; a prestação de contas, informações referentes a decisões sobre determinadas políticas e uso de recursos públicos e, por fim, os dados públicos, controlados pelo Estado, como documentos históricos, estatísticas e legislações. Para Brandão (2009) a comunicação pública está intrinsecamente relacionada ao processo de cidadania e instâncias que trabalham com informações direcionadas à maioria populacional de determinada comunidade ou espaço físico. Tais como os órgãos públicos dentre associações e organizações ou empresas privadas ligadas a questões de serviço público, por exemplo. ALIANÇA INTERSETORIAL E RELAÇÕES PÚBLICAS No ambiente social brasileiro Oliveira (2009) coloca como obstáculos à crença no sistema público o cenário de violência, desigualdade, descrença política, corrupção e desconfiança generalizada. O profissional de relações públicas tem como uma de suas atribuições atuar na contribuição para a conscientização de diferentes públicos que constituem sistemas formados em instituições privadas ou públicas sobre a importância do exercício de cidadania com o intuito de estabelecer uma política social consistente. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 993 Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste Mariany Granato Alianças intersetoriais são, também, responsáveis pela união do primeiro, segundo e terceiro setor em prol de ações conjuntas com a sociedade civil. Para tornar a ação social efetiva os conflitos entre setores devem ser sanados. O reconhecimento do papel de cada setor, suas limitações e cultura são necessários para que se estabeleça uma relação de confiança e ética. Desta forma, o profissional de relações públicas visa assessorar e propor políticas públicas referentes às organizações. Dentre as táticas utilizadas para favorecer a criação de alianças setoriais, Oliveira (2009) destaca o lobby e as audiências públicas. O lobby, atividade característica de regimes democráticos, exerce pressão, influência ou persuasão para obter atitude favorável a seu posicionamento, como por exemplo, com as políticas públicas. Para Nassar (2012) o lobby é algo natural exercido pelo ser humano ao utilizar o convencimento como estratégia para atingir o objetivo, e fazê-lo é utilizar a ética na transparência de argumentos. Esta ferramenta refere-se ao processo pelo qual instituições, grupos, associações tentam influenciar a formação de políticas públicas, decisões do governo, legislação e regulação (Galan, 2012). A segunda tática refere-se às audiências públicas, previstas na Constituição Federal de 1988, ou reuniões que permitam a participação cidadã em assuntos de interesse público, ferramenta facilitadora na coleta de dados para que a tomada de decisão com subsídio nas questões debatidas ocorra e encontre na possibilidade do diálogo aberto com a sociedade o entendimento e apoio em alterações de ambiente que podem modificar a vida da comunidade, por exemplo. O profissional de relações públicas, ao atuar nesta área, desenvolve a função de assegurar a participação dos cidadãos no debate, como mediador e fomentador de diálogo plural: “As audiências públicas têm, portanto, caráter democrático, participativo e de corresponsabilidade pelas decisões, envolvendo intimamente a opinião pública” (OLIVEIRA, 2009, p.480). As duas ferramentas citadas permeiam a atividade deste profissional, pois exerce função organizacional e atividade alinhadas à legitimação do interesse público (SIMÕES, 1995). Toda ação organizacional ou institucional é consequência de decisões tomadas anteriormente, de normativas pré-estabelecidas, portanto cabe ao profissional alinhado aos interesses do público e da empresa definir as escolhas perante o cenário existente. Ao atuar frente a instituições governamentais, o profissional de relações públicas apresenta-se como recurso estratégico na disponibilização de canais para mediar o relacionamento estabelecido entre públicos. Para Novelli (2009) o diferencial da profissão está pautado em quatro principais objetivos: promover a compreensão pública adequada a respeito das funções das esferas governamentais; fornecer informações sobre atividades da administração pública de maneira contínua; criar e disponibilizar meios para oferecer ao cidadão a possibilidade de interferir e influenciar ações políticas e de governo; e estabelecer canais de comunicação pelos quais o cidadão possa ser atingido pelos gestores da administração pública. O interesse público é objetivo de todo processo de comunicação e pressuposto da atuação das relações públicas governamentais, que buscam práticas descentralizadas de comunicação para resgatar o componente político do processo comunicativo na esfera do governo em embates e negociações entre população e governo que podem garantir a eficiência na gestão pública caso entrem em consenso, e que o indivíduo note a sua Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 994 Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste Mariany Granato função política dentro da sociedade durante toda a vida, não somente em momentos pontuais, como acontece com as eleições (NOVELLI, 2009). Apesar da área não ser trabalhada com intensidade e a maioria das ações relacionadas à comunicação e governo estarem centradas em publicidade de ações políticas e organização de eventos, a área de relações públicas governamentais tem potencial para expandir a atividade da comunicação pública a favor da disponibilização de canais e instrumentos de comunicação que possibilitem a melhoria do fluxo de relacionamento entre governo em seus níveis federal, estadual e municipal e sociedade. Assim, divulgar informações relacionadas às atribuições de cada um dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário, para que as ações sejam cobradas diretamente do canal correto e que confusões em relação ao modelo de democracia brasileiro deixem de fazer parte do repertório do cidadão é atividade importante. Mesmo que aos poucos, a comunicação pública governamental, representada pelo profissional de relações públicas, apresenta potencial para realizar a atividade em conjunto com governo e sociedade, por meio de desenvolvimento de programas de comunicação que não se limitem à assessoria de imprensa e invadam o campo de propostas estratégicas e ininterruptas, independente da troca de governo a cada quatro anos, possibilitando, assim, transparência das ações tomadas para a esfera pública. METODOLOGIA A seleção das palavras e expressões, categorizadas na análise realizada pela pesquisa demonstram a intenção, na inserção ou exclusão de termos, de produzir significações acerca da mensagem exposta nos portais eletrônicos de governo, para assim, inferir interpretações sobre os resultados obtidos por meio da análise de conteúdo aplicada à amostra selecionada com o objetivo de identificar os enquadramentos simbólicos das notícias sobre os direitos da pessoa com deficiência analisadas, favorecendo ou prejudicando a consolidação do atendimento deste público. O corpus de análise da pesquisa concentra-se nos portais eletrônicos das 27 unidades federativas e da Secretaria Nacional da Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, durante o ano de 2013. Para qualificar o material coletado nesta pesquisa optou-se pela utilização da análise de conteúdo com planilhas eletrônicas criadas especificamente para o tema. Cada coluna da tabela desenvolvida representa uma página web com notícias sobre políticas públicas para pessoas com deficiência e cada linha pertence às dezoito categorias iniciais desenvolvidas para analisar o material coletado. Pelo fato de análises que abordem a qualidade da informação disponibilizada em portais eletrônicos de governo ser baixa, as categorias de análise foram desenvolvidas a partir de critérios encontrados na literatura de Trevisan & van Bellen (2008), Faria (2005), Costa & Castanhar (2003), Carvalho (2003), Souza (2003) e Arretche (1998). Os critérios aplicados para observar a disponibilização de informações são baseados nos objetivos da pesquisa, de maneira a gerar um Índice de Qualidade de Informação (IQI) presente nos portais analisados. A existência ou ausência de dados relacionados às dezoito categorias iniciais de avaliação foram relacionadas em planilhas eletrônicas por meio da atribuição de um ponto (1) para a presença de informação e de nenhum ponto (0) para a ausência. Assim, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 995 Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste Mariany Granato uma página web analisada com o máximo possível de informações obteria 18 pontos. O percentual do IQI obtido por estado e região brasileira foi calculado com base nas categorias obtidas sobre o total esperado em relação ao número de páginas analisadas, demonstrando, assim, o nível de excelência na profundidade e abrangência da informação. Para Costa e Castanhar (2003) a lista de critérios utilizados na avaliação de políticas públicas pode ser extensa e depende da intenção de cada pesquisa, do que se deseja avaliar. Os autores afirmam na metodologia de análise e avaliação dos programas sociais o envolvimento da escolha de um conjunto de critérios e indicadores, para assim, realizar o julgamento eficaz sobre o desempenho de programas. As dezoito categorias iniciais de análise de conteúdo aplicadas aos portais eletrônicos selecionados para a pesquisa são: 1. Antecedentes – Nessa categoria a análise é feita mediante as condições explícitas no texto que incentivaram a criação e execução da política pública. 2. Diagnósticos – Nessa categoria a análise é feita entre a oferta de informação e o diagnóstico que teria fundamentado a política pública. 3. Objetivos – Essa categoria envolve informações sobre os propósitos de uma política pública, expostos de maneira não caracterizada. 4. Metas – As informações nesta categoria devem se referir às expectativas reais e palpáveis do programa desenvolvido. 5. Recursos atuais – As informações analisadas nessa categoria fazem referência aos recursos disponíveis (financeiro, humano ou material) para executar uma política ou programa de governo. 6. Ações atuais – As informações analisadas nessa categoria referem-se às ações realizadas ou em andamento para a realização da política pública, muitas vezes, amparada por parcerias entre secretarias de governo ou outras instituições civis. 7. Recursos planejados – Esta categoria envolve informações sobre os recursos que seriam aplicados na execução de uma política pública ou programa de governo em um futuro determinado, com marcação temporal. 8. Ações planejadas – Essa categoria envolve informações sobre as ações programadas para o futuro determinado, com marcação temporal. 9. Eficiência – Essa categoria refere-se à avaliação da relação entre o esforço empregado e os resultados alcançados. 10. Eficácia – É a avaliação da relação entre os objetivos e instrumentos explícitos de um dado programa e seus resultados efetivos, pode ser acompanhado de estatísticas. 11. Impacto (efetividade) – Essa categoria de análise envolve informações sobre a relação entre a execução de uma política pública e seus impactos ou resultados. 12.Custo-efetividade – Essa categoria de análise observa a relação entre o que foi investido e o realizado, comparando formas da ação social e os impactos desejáveis. 13. Satisfação do usuário– Essa categoria de envolve informações sobre a qualidade do serviço prestado sob a ótica do usuário. Os instrumentos para a realização deste quesito podem ser a pesquisa de satisfação, entrevistas com o público, enquetes ou por retorno espontâneo. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 996 Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste Mariany Granato 14. Equidade – Essa categoria de análise trata de informações sobre o grau em que os benefícios foram distribuídos de maneira justa e compatível com a necessidade do usuário. 15. Públicos beneficiados – Essa categoria envolve informações sobre quem se beneficiou com a política ou ação do governo. 16. Informações legais – São observadas as leis ou decretos utilizados como base para a origem de uma política pública ou programa. 17. Cenário político/ parcerias – Essa categoria envolve informações sobre as parcerias políticas, entre secretarias, instituições para realizar a política pública. 18.Informação operacional – Essa categoria envolve informações sobre a forma de se atingir a política pública, local de cadastramento, horários disponíveis, entre outras informações pertinentes ao acesso. ANÁLISE E RESULTADOS Na região Nordeste (Apêndice I), durante o ano de 2013, observa-se que de 40% a 80% das páginas analisadas apresentaram informações classificadas nas categorias ‘ações atuais’; ‘objetivos’; e ‘cenário político’. Informações sobre ‘ações planejadas’; ‘antecedentes’; ‘públicos beneficiados’; ‘informações operacionais’; ‘diagnósticos’; ‘recursos atuais’; e ‘impacto’ estão presentes em 15% a 35% da amostra de pesquisa. As categorias ‘recursos planejados’; ‘informações legais’; ‘eficácia’; ‘equidade’; e ‘satisfação do usuário’ foram identificadas em 7% a 13%. Entre 0,86% e 5% estão as categorias ‘metas’; ‘custo efetividade’; e ‘eficiência’ (Gráfico II). Gráfico II. Percentuais de páginas web observados segundo categorias de análise de conteúdo nos portais eletrônicos dos estados da região Nordeste do Brasil Fonte: elaboração própria Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 997 Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste Mariany Granato As categorias mais presentes na análise realizada são ‘objetivos’ e ‘ações atuais’, o que indica a maioria das páginas web verificadas possuírem essencialmente informações sobre os propósitos da política e ações objetivas através de parcerias ou não, tornando-se, assim, as características mais frequentes. A representação simbólica associada à alta frequência de manifestações dessas categorias, dentre o material analisado, demonstra a insistência entre os governos estaduais e nacional quanto a reafirmação na divulgação de políticas sob o olhar prioritariamente focado em ações primárias, e na ausência dos níveis elevados de discussão pública sobre atitude a ser tomada pela representação governamental do Estado. Para Matos (2009) uma das funções da internet está relacionada à formação do capital social. No entanto, para que seja produzido, é necessário que esta ferramenta seja utilizada para transformar o espaço e diminuir a distância entre governo e cidadão, aproximando sujeitos com objetivos comuns. Mas, para isso, o indivíduo deve ser bem informado sobre ações e práticas governamentais, para que, assim, consigam estabelecer pontes densas entre a fala e ação a favor da participação cívica. A amostra analisada nos permite inferir a falta de criação de capital social a partir da premissa de que a maioria das informações privilegiada refere-se à ‘objetivos’ e ‘ações atuais’ de forma rasa, ausente de estruturas mais complexas de pensamento interligando causas e consequências de atos governamentais. Já a reduzida presença de informações nas categorias ‘eficiência’ e ‘satisfação do usuário’ indica escassez de preocupação dos gestores de conteúdo quanto à informação comparativa entre os recursos empregados para desenvolver a política e os resultados obtidos, assim como a ausência de informação sobre o feedback da política pública pelo público alvo. A representação da política com escassa informação relativa a estas categorias não contribui para o aprofundamento da comunicação pública digital como ambiente proveniente de informações relevantes e subsidiadas por características favoráveis ao debate pelo público no que se refere aos direitos da pessoa com deficiência. A categoria ‘equidade’ somente teve destaque no portal eletrônico da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. A falta de informação sobre a efetivação da comunicação pública por meio de atitudes que visem trazer a participação dos cidadãos diante de processos estabelecidos previamente de ferramentas de participação pode enfraquecer a implementação de ações públicas a favor da pessoa com deficiência. Esta informação deve estar presente para fomentar a participação cidadã e o possível engajamento em ações a favor dos direitos da pessoa com deficiência. O governo deve trabalhar a favor da criação de espaços públicos, e a comunicação pública pode ser utilizada como ferramenta para atingir este objetivo. Por espaço público pode-se prever a existência de troca de informações e mediação entre cidadãos. No entanto, percebe-se que a presença de informações na categoria ‘satisfação dos usuários’ é baixa. Pode-se concluir deste dado, a partir da reflexão realizada por Novelli (2011), que pode haver uma crise de representatividade vivenciada por sociedades democráticas contemporâneas. A disfunção da comunicação no seu papel de intermediária entre sociedade e governo ou representantes e representados pode levar ao distanciamento entre indivíduo e máquina pública. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 998 Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste Mariany Granato Pesquisas de opinião e demais ferramentas que estimulem o diálogo entre essas esferas tendem a minimizar e ocupar os espaços criados pela democracia representativa atual. Muito pode ser feito para se melhorar o ambiente compartilhado pela pessoa com deficiência a favor da garantia de seus direitos ao abrir o canal de comunicação para se entender a opinião pública acerca de determinado serviço oferecido. A categoria ‘satisfação do usuário’ prevê a informação coletada do cidadão sobre a política executada pelo governo. Com a baixa presença de inserções deste tipo de informação na amostra pesquisada, a população pode distanciar-se do fazer política e não se sentir representada. Abrir o canal de diálogo e colocar o governo como ouvinte no processo pode tornar o cidadão mais autônomo e menos submisso às ações previamente direcionadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Dentre os profissionais da área de comunicação, o relações públicas é capacitado para criar relações intersetoriais como afirma Oliveira (2009) entre Estado, governo e sociedade, habilitado a atuar na administração pública no provimento de informações referentes aos públicos e governo. Para Matos (2009) o conceito de comunicação pública está ligado intrinsecamente aos agentes envolvidos no processo comunicacional além de exigir a participação cidadã e todos os segmentos sociais como produtores ativos do processo de construção da democracia. Para Matos (2009) a comunicação pública deve ser observada como meio de alterar o comportamento do público a fim de envolvê-lo em tarefas, neste sentido a qualidade da informação prestada por agentes públicos, materializada nesta pesquisa em portais eletrônicos é interpretada como fator indissociável de sua realização. A caracterização do material coletado e as etapas concluídas nos permitiram perceber e inferir a necessidade de melhoria em relação à coleta de informações do público alvo a favor da inserção do indivíduo na política, minimizando o espaço entre governo e sociedade, a partir da consciência do papel exercido pelo poder público nas ações voltadas para a população, que, por sua vez, deve assumir o papel de cidadão. Desta forma, a comunicação pública é fator indissociável e necessário à efetivação do espaço público como meio de interação entre cidadãos bem informados e governo. REFERÊNCIAS BRANDÃO, E. Conceito de comunicação pública. In: DUARTE, Jorge (org.). Comunicação pública: Estado, mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Atlas, 2009. COSTA, F.L.; CASTANHAR, J.C. Avaliação de programas públicos: desafios conceituais e metodológicos. Revista de Administração Pública, v.37, n.5, 2003, p. 962-969. DUARTE, J. (org.) Comunicação pública: Estado, mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Atlas, 2009. GALAN, G. Relações Governamentais e Lobby: aprendendo a fazer. São Paulo: ABERJE, 2012. HALL, S. The spetacle of the other. In: ______ . (ed). Representation cultural representations and signifying practices. London: Sage, Open University, 2002. NASSAR, P. Os interesses na democracia. In: GALAN, G. Relações Governamentais e Lobby: aprendendo a fazer. São Paulo: ABERJE, 2012. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 999 Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste Mariany Granato OLIVEIRA, M. J. C. Relações Públicas Governamentais. In: Margarida M. K. Kunsch. (org.). Relações Públicas: história, teorias e estratégias nas organizações contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2009, v. , p.465-484 MATOS, H. Capital social e comunicação: interfaces e articulações. São Paulo: Summus, 2009. MATOS, H. Comunicação pública, esfera pública e capital social. In: DUARTE, Jorge (org.). Comunicação pública: Estado, mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Atlas, 2009. NOVELLI, A. L.R. As sondagens de opinião como mecanismo de participação da sociedade. In: KUNSH, M. K. (org.). Comunicação pública, sociedade e cidadania. São Paulo: Difusão, 2011. NOVELLI, A. L. R. Relações públicas governamentais. In: KUNSCH, M. K. (org.). Relações Públicas: história, teorias e estratégias nas organizações contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2009. SIMÕES, R. P. Relações públicas: função política. São Paulo: Summus, 1995. SOUZA, C. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, v. 8, n. 16, p. 20-45, 2006. Apêndice I Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1000 Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet Notes on Amerindian collective expressions in internet social networks Car mem R ejane Antunes P ereir a 1 Resumo: O artigo traz apontamentos de pesquisa em andamento sobre configurações identitárias ameríndias considerando as expressões coletivas geradas em redes sociais na Internet. Os apontamentos situam as múltiplas configurações do movimento indígena, a expansão das tecnologias de comunicação e a construção de identidades cidadãs nas ambiguidades de uma esfera pública midiatizada. A pesquisa parte dos referenciais teóricos e metodológicos dos estudos dos usos e apropriações das mídias, levando em conta a popularização da Internet, e utiliza a observação on-line para mapear perfis indígenas em redes sociais e refletir processos relacionados à visibilidade social ameríndia, à identidade e à memória, a partir de um conjunto de mediações comunicacionais, sociais, culturais e políticas no âmbito desses processos. Palavras-Chave: Movimento indígena. Expressões coletivas. Usos e apropriações das mídias. Abstract: The article presents notes of an ongoing research about the amerindian identity configurations considering the collective expressions generated in social networks on the internet. The notes locate the multiple configurations of the indigenous movement, the expansion of the communication technologies and the construction of citizen identities in the ambiguities of a mediatized public sphere.The research starts from the theoretical and methodological references of the studies about the uses and appropriations of media, taking into account the popularity of the Internet, and uses online observation to map indigenous profiles in social networks and reflect processes related to amerindian social visibility, identity and memory, from a set of communicational, social, cultural and political mediations in such processes. Keywords: Indigenous movement. Collective expressions. Media uses and appropriations. INTRODUÇÃO O ESPAÇO desse trabalho procuramos trazer apontamentos sobre configurações N identitárias ameríndias considerando os perfis em redes sociais na Internet como geradores de expressões coletivas construídas por internautas indígenas. Os apontamentos estão situados no andamento de pesquisa que investiga a visibilidade/ 1. Pós-Doutoranda no PPGICH-UFSC/Brasil, NAVI/ /UFSC; Processocom/UNISINOS e Red AMLAT. e-mail: [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1001 Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet Carmem Rejane Antunes Pereira expressão movimento indígena na Internet e os sentidos construídos pelos sujeitos que participam da rede social étnica nas ambiguidades da esfera pública midiatizada. Tal fenômeno implica situar a expansão das mídias e das tecnologias de comunicação como sistema e aparato que atravessam a produção simbólica das práticas culturais, conformando uma nova forma de atuar, em um vasto conjunto global, mas ainda em grande parte diversificado. A pesquisa parte dos referenciais teóricos e metodológicos dos estudos dos usos e apropriações das mídias, levando em conta a popularização da Internet e tendo como cenário de observação os perfis indígenas em site de redes sociais como o Facebook. Com a observação desses perfis, em perspectiva etnográfica, se procura pensar as expressões coletivas ameríndias em um conjunto de mediações comunicacionais, sociais, culturais, políticas e de matrizes ancestrais e contemporâneas no âmbito desses processos. Para essa reflexão procuramos, em um primeiro momento, resgatar marcos históricos do Movimento Indígena no Brasil, os quais são abordados em pesquisas que situam suas múltiplas configurações contemporâneas. Em um segundo momento, apontamos aspectos de pesquisa que sugerem uma noção de imagem indígena como autorepresentação dos grupos exotizados e marginalizados pelas mídias hegemônicas de massa ao longo do século XX até nossos dias, bem como os ensaios de construção da imagem ameríndia, advindos com a expansão das tecnologias de comunicação e as reconfigurações dos públicos, nos processos de visibilidade social na ambiência comunicacional contemporânea, por onde emergem as discussões sobre possibilidades de configurações de identidades cidadãs. Tais possibilidades são pensadas no âmbito da participação indígena nas construções das redes sociais étnicas e das suas expressões coletivas, considerando um conjunto de mediações tais como a organização política, a escolaridade e também o gênero, além da memória étnica dinamizada pela história, entre outras. CONFIGURAÇÕES HISTÓRICAS DO MOVIMENTO INDÍGENA NO BRASIL Configurações históricas do Movimento Indígena no Brasil vêm sendo entendidas a partir de abordagens sobre o protagonismo indígena e as relações interétnicas na sociedade nacional, situando nesse processo a expansão de organizações, a heterogeneidade das comunidades, demandas e lideranças que compõem uma realidade na qual convivem mais de duzentos e quarenta povos, com especificidades culturais, linguísticas, geográficas e organizacionais2. Sem desconsiderar a densidade histórica das lutas e resistências dos povos indígenas ao longo da colonização e dos processos de formação da sociedade nacional, Santos Bicalho (2011) aponta que o movimento indígena, como consciência coletiva, começou a tomar forma nos anos 70 do século XX, sendo resultado de mudanças ocorridas em um passado recente, tanto no Brasil como na América Latina, através dos processos de ruptura lentos e graduais de culturas políticas autoritárias rumo à construção de sociedades e Estados democráticos. 2. Fonte: Instituto Socioambiental (ISA) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1002 Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet Carmem Rejane Antunes Pereira Na primeira etapa de construção do protagonismo indígena, Santos Bicalho (2011) registra como acontecimento fundador as assembleias indígenas apoiadas por setores progressistas de igrejas cristãs e outras entidades da sociedade civil, as quais criaram as bases para uma identidade coletiva fortalecedora da autoestima e pela atuação consciente da necessidade da luta social pelos direitos indígenas no Brasil, numa perspectiva de legalidade e legitimidade. Nesse período, o movimento assume um caráter pan-indígena assim definido: “Tomar para si a consciência política da condição de minoria implicou no reconhecimento indígena de que, apesar de suas diferenças étnicas, compartilhavam uma história e um destino comuns dentro do Estado brasileiro” (Ortolan Matos, 2006, p. 40). Segundo e relevante acontecimento fundador, a Constituição Federal de 1988 garantiu o reconhecimento legal da organização social indígena e do direito dos índios, suas comunidades e organizações de ingressarem, como partes legítimas, em juízo em defesa de seus direitos e interesses (Artigos 231 e 232, Capítulo VIII - Dos Índios), o que provocou mudanças de orientação na atuação política dos indígenas no campo das relações interétnicas. Com o direito à terra assegurado, constitucionalmente, abriu-se espaço para outras reivindicações como a proteção dos territórios e a sustentabilidade socioambiental dos grupos indígenas na sociedade nacional (etnodesenvolvimento); além de várias demandas à esfera das políticas públicas, como, por exemplo, aquelas voltadas à educação e à saúde diferenciadas para as populações indígenas. Ainda na década de 90, o advento de uma macropolítica planetária levou as áreas indígenas a serem vistas como unidades de conservação; criam-se novos sentidos para mobilizar a população através de programas e projetos sociais, muitos dos quais apresentados totalmente formulados pelas agências financiadoras para atender pequenas parcelas da população (Gohn, 2011). Nesse contexto ocorre uma proliferação de organizações indígenas de natureza distinta: nacionais, regionais, locais, associações de categorias sociais e econômicas, organizações pluriétnicas ou étnicas, de caráter político e de caráter econômico, etc. Essa proliferação será vista como uma nova fase da política indígena, no cenário atual dos processos de globalização e das mudanças de retórica e de critérios dos organismos transnacionais e multilaterais (Oliveira, 2010, p.42). Nesse período, a Fundação Nacional do Índio perde sua exclusividade na definição e execução da política indigenista oficial, sendo suas responsabilidades repartidas entre diversos órgãos governamentais. Com essas novas configurações, o que vem sendo discutido como Movimento Indígena, também passa a ser vinculado à categoria de novos movimentos sociais nos contextos políticos específicos da América Latina, cuja especificidade dirigiu-se às questões étnicas, de gênero, etc.. Além de serem mais propositivos do que reivindicativos também passaram a ser avaliados pela atuação em redes locais, regionais, nacionais e internacionais, utilizando-se dos novos meios de comunicação e informação (Gohn, 2011). As novas incumbências das organizações indígenas, entretanto, atuando menos como articuladoras políticas e mais como gestoras e executoras de ações, provocaram uma reavaliação de lideranças e associações indígenas para retomar seu papel político de representação indígena e sua função de controle social das ações estatais, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1003 Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet Carmem Rejane Antunes Pereira especialmente em anos recentes, para fazer frente às ameaças aos direitos indígenas no Congresso Nacional. Assim, se o protagonismo indígena é uma realidade que vem se fortalecendo desde as últimas décadas do século passado, este se elabora num “contexto de relações interculturais assimétricas” (Secchi, 2007, p.15 citado por Santos Bicalho, 2011), em que “a predominância da cultura ocidental sugere a necessidade de mudanças nas relações entre Estado, sociedade e povos indígenas – de modo que a cultura e a vivência destes últimos sejam verdadeiramente respeitadas” (Santos Bicalho, 2011, p. 10). Tais relações podem ser melhores compreendidas no momento em que a pauta do direito à terra volta a ocupar destaque nas estratégias de ação coletiva indígena, em nível nacional, para fazer frente às ameaças a esses direitos, assim como para pressionar o Governo a criar instrumentos que possibilitem a formulação da política indigenista, visando normatizar e coordenar as ações indigenistas governamentais, atualmente dispersas entre vários instâncias ministeriais. Desse modo, pode se entender que o Movimento Indígena não tem apenas uma configuração; que ele se revela em distintos atores e contextos históricos e culturais, abrange escalas locais e globais, redes de alianças, ações coletivas de enfrentamento direto contra a autoridade estatal, e a disposição de se construir como força social no âmbito do poder estatal para atuar nas definições e execuções da política indigenista. VISIBILIDADE INDÍGENA E AMBIÊNCIA COMUNICACIONAL CONTEMPORÂNEA Considerar a multiplicidade do movimento indígena é importante para evitar “a noção simplificadora de uma voz indígena” (Oliveira, 2010, p. 45), e também estimula a refletir “expressões coletivas” oriundas da construção dos perfis indígenas nas redes sociais, levando em conta condições tecnológicas e parâmetros culturais que provocam mudanças em termos de projeção de imagem ameríndia, nas últimas décadas. Das primeiras imagens que retratavam os indígenas para fins de estudos comparativos, no final do século XIX, os registros imagéticos das culturas indígenas passaram a compor arquivos oriundos de estratégias de interiorização do Estado brasileiro, das missões religiosas, assim como etnografias realizadas por antropólogos em diversas modalidades. Contaminada pelo exotismo, a fotografia que deu base para a construção da imagem do índio no Brasil também foi reforçada nos meios de comunicação, como observa Tacca (2011). Ao final do século XX, quando a imagem fotográfica adquire novas dimensões na sua forma de reprodutibilidade técnica, abrem-se novas possibilidades para pelo menos pensar outras formas de representação indígena, a partir de um espaço público marcado pela expansão das tecnologias de comunicação e ampliação do uso da Internet. Isso não significa que as representações “convencionais” do indígena deixaram de ser construídas pelas mídias hegemônicas de massa, ou ainda por muitos especialistas de mídia que atuam na Internet, como se observa em reportagens recorrentes que procuram questionar os direitos indígenas, especialmente no âmbito dos seus territórios, relacionando a sua caracterização como consumidor de bens culturais, comuns entre a população não indígena. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1004 Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet Carmem Rejane Antunes Pereira Dessa forma, ao investigar configurações identitárias ameríndias em redes sociais procura-se compreender a participação/intervenção das diversas culturas no espaço público midiatizado e os modos pelos quais essa participação expressa a historicidade dos públicos. Isto é, o modo e as condições de inserção do sujeito em uma ambiência construída pelas mídias, buscando promover a visibilidade indígena, frente a um contexto de relações interculturais assimétricas e aos processos de inclusões excludentes de uma sociedade multicultural e desigual (Santos, 2006). Trata-se, então, de pensar possibilidades, sem descurar das limitações significativas nos processos que estruturam uma ambiência comunicativa dinamizada pela globalização, onde as mídias exercem uma ação peculiar; porém regidas por lógicas econômicas, políticas e culturais que demarcam a nova configuração societária, em que existem novos e velhos padrões de acumulação, de exclusão e inclusão, novas formas de pensar, agir, sentir e fabular o mundo (Ianni, 2003). Maldonado (2013) reflete esse momento como “ensaio de possibilidades”, considerando as tendências de aumento da população mundial que usufrui dos ambientes digitais3 e apontando a expansão de uma “cultura midiática informatizada digital”, em um momento em que: A grande mídia enuncia o mundo repetindo clichês, fórmulas, receitas para fabricar seu próprio mundo dinâmico (ao mesmo tempo estático, na sua essência), em mudança simbólica, trabalhando a voluptuosidade das formas (Barthes, 1979). Produzir um campo de efeitos simbólicos é uma necessidade estrutural do sistema de consumo para a mudança, atualização, renovação e transformação das economias em crise. Não obstante, e simultaneamente a esse processo, é significativa a popularização e consequente socialização de práticas sociais de produção tecnológica de comunicação, que expressam culturas diversas em busca de um lugar na história contemporânea (Maldonado, 2013, p.38) Nesse contexto, Tacca (2011) aponta novas possibilidades de representação da imagem indígena, de onde emerge a noção de produção endógena para pensar a produção fotográfica, das próprias etnias e culturas, “que conduz a práticas efetivas de identidades e, também dá visibilidade a outros olhares distantes”, podendo também alimentar um imaginário sedento dessas imagens míticas (Tacca, 2011). A noção é profícua para pensar a visibilidade do mundo indígena, na medida em que as imagens – e aí não somente a fotografia, mas também um conjunto de produção audiovisual4 são “feitos”, seja com valores espontâneos ou de forma organizada, pelos próprios “índios”; entretanto, além disso, pode-se pensar em uma gama de conteúdos publicizados mediante estratégias diversas, que podem ser voltadas a divulgação das culturas, mobilização, denúncia, socialização do conhecimento ou ainda como compartilhamento da memória, seja ela entendida como étnica, política, histórica ou comunitária, em sites indígenas e redes sociais. 3. Maldonado (2013, p.36) aponta que mais de 30% da população mundial usufrui dos ambientes digitais, sendo que entre 2006 e 2011, o número de internautas duplicou-se, conforme dados da União Internacional e Telecomunicações (UIT-ONU - Relatório Anual de 2011). Em relação à população indígena no Brasil, Renesse (2011), em levantamento parcial realizado até este ano, registrou 77 mídias eletrônicas com acesso público na web e 113 pontos de acesso à Internet em comunidades indígenas. 4. Nesse caso é importante citar o acervo de mais de 70 filmes documentários produzidos pela ONG Vídeo nas Aldeias. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1005 Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet Carmem Rejane Antunes Pereira Sobre essa questão, atenta-se para o fato de que a memória social é um fenômeno que faz referência aos grupos e abarca uma multiplicidade de categorias tais como lugares (Nora, 1993), marcos, identidades, culturas, interesses, atores, instituições, apagamentos e ressurgimentos (Pollack, 1992), que se enfrentam na esfera pública, competindo pela hegemonia de discursos plausíveis e relevantes dentro do conjunto da sociedade (Montesperelli, 2004, p. 15). Nesse aspecto, Martín-Barbero (2006) oferece uma contribuição ao pensar as novas figuras de cidadania para além das utopias que promovem a sociedade em rede como uma totalidade (Castells, 2002) - e o processo de reconfiguração dos públicos em meio à ambígua mediação das imagens e do uso de tecnologias informáticas na esfera pública. Pois se é certo que a crescente presença das imagens (...) na ação política epetaculariza esse mundo até confundi-lo como da farsa, dos reinados de beleza ou das igrejas eletrônicas, também é certo que pelas imagens passa uma construção visual do social, na qual essa visibilidade toma o deslocamento da luta pela representação da demanda de reconhecimento. O que os novos movimentos sociais e as minorias (...) demandam não é tanto ser reapresentados, mas, sim, reconhecidos. (Martín-Barbero, 2006, p. 68). Assim, atenta-se para um conjunto de elementos textuais, imagéticos ou audiovisuais que o/a internauta, como mantenedor de um perfil, utiliza para construir expressões coletivas na rede social étnica. Embora o termo internauta possa ser redutor em relação “a dinâmica da complexificação do processo comunicacional, no contexto de uma sociedade em rede” (Cogo; Brignol, 2010) ele aqui se refere ao usuário da internet, considerando para isso a sua trajetória como integrante de públicos diferenciados, o que significa refletir que “os públicos não nascem, mas se formam”, conforme a época em que são gerados (García-Canclini, 2008), assim como na sua historicidade (Pereira, 2010) não se reduzem a uma modalidade absoluta do meio5. OS PERFIS, AS EXPRESSÕES COLETIVAS E ALGUMAS MEDIAÇÕES RELEVANTES Para mapear os perfis indígenas desenvolvemos observação on-line com perspectiva etnográfica desde agosto de 2013. Essa perspectiva tem como propósito situar-se em um cenário social comunicativo (Geertz, 1978), observar a participação dos internautas (Fragoso, Recuero & Amaral, 2012) através da atuação de perfis e identificar mediações relevantes para compreensão das suas configurações identitárias e das expressões coletivas, assim compreendidas enquanto uma expressão indígena pública em tempos de rede sociais6. Os procedimentos de observação têm, assim, um caráter exploratório e operativo que permite pensar a própria imersão da pesquisadora nesse cenário e as dimensões de uma rede social étnica, a partir de vários elos que correspondem às 5. Isso significa que o internauta pode ser ao mesmo tempo, leitor, ouvinte e telespectador o qual se apropria da Internet, para diversas finalidades, gerando expressões coletivas, as quais são consideradas a partir de um contexto pessoal, social, grupal, político, territorial, geográfico, isto é, um sujeito historicamente situado. 6. Consideramos aqui apontamentos de Madianou e Miller (2012) sobre a inserção das redes sociais na vida cotidiana e de Lacerda (2013) sobre as distorções que algumas denominações de métodos provocam, especialmente quando se busca uma descrição aprofundada das significações e práticas comunicacionais dos sujeitos que navegam na rede mundial de computadores. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1006 Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet Carmem Rejane Antunes Pereira inúmeras relações dos atores nos seus modos de construir e se construir nas redes sociais, o que leva a pensar na possibilidade de uma rede social étnica, apenas como forma de apreender significações em um cenário que apresenta diversas modalidades de uso. Assim, ao fazer referência à rede social étnica como elemento aglutinador de sentidos nas ambiguidades da esfera pública contemporânea, não se alude a um grupo fechado ou único e sim às marcas de um sujeito comunicacional que também se utiliza da internet para construir sentidos ‘enquanto’ rede social étnica. Nessa perspectiva, procuramos tais pistas através do Facebook7, reconhecendo a sua popularização no Brasil e sem ignorar os obstáculos de acesso que caracterizam os processos de inclusão digital no país. Para essa busca consideramos a Internet em seus aspectos de banco de dados, como mídia e como ambiente de relacionamento que permite pensá-la como produto e parte da cultura contemporânea (Cogo, Brignol, 2010) para potencializar o estudo da recepção em tempos de redes sociais. Dessa forma, nesta investigação, os perfis se tornam um elemento de observação significativo na medida em que eles permitem a configuração do ator de forma personalizada, visibilizam uma lista de contatos com outros usuários que na linguagem do site podem implicar uma analogia com a amizade off-line, porém, nesse contexto, podem ser entendidos como parceiros e parentes entre várias etnias ali localizadas. Além disso, em virtude das ações de compartihamento de conteúdo produzido ou selecionado, da publicização de narrativas endógenas, das projeções identitárias, entre outros aspectos. Dessa forma, a preocupação é ampliar o conhecimento sobre os usos da Internet e as apropriações das mídias nas múltiplas significações do sujeito indígena procurando compreender suas expressões coletivas e as mediações que as constituem. O que implica articular a observação de redes sociais a partir da vivência comunicacional mediada pelos meios, através da conjunção de metodologias apropriadas, como navegação interessada no cenário on-line e entrevistas em profundidade, tematização de conteúdos, por exemplo, no contexto off-line. Nesse sentido é importante registrar que os perfis também podem ser contextualizados no espaço geográfico que denominamos de Sul do Brasil. O contexto geográfico, nas fronteiras internas brasileiras, corresponde aos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, onde estão situadas comunidades Kaingang, Guaranis, Xockleng, Charruas, além de poucos descendentes do Povo Xetá. O aspecto geográfico é aqui destacado para referir-se a continuidade da pesquisa em uma perspectiva mais ampla, através da história das vivências comunicacionais de sujeitos que participam da rede social étnica. Para essa fase de mapeamento utilizamos como critério as relações de “amizade” dos internautas com organizações indígenas sulistas, entre elas a Articulação dos Povos Indígenas do Sul do Brasil (ARPINSUL), com sede em Curitiba (PR), vinculada a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) instância de aglutinação e referência nacional, criada pelo Acampamento Terra Livre (ATL) de 2005, evento este avaliado como 7. Facebook é um site de redes sociais, fundado em 2004, e atualmente o mais popular do mundo. Em 2013 registrava 65 milhões de usuários no Brasil cf. http://www.statista.com/statistics/244936/ number-of-facebook-users-in-brazil Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1007 Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet Carmem Rejane Antunes Pereira processo fundador que serviu para renovar tradições e dar continuidade ao Movimento Indígena (Santos Bicalho, 2011). Entretanto, além desse critério, também consideramos outros elementos. Nesse caso, se encontram os perfis das “lideranças indígenas”, os quais ampliam a rede social étnica, através do estabelecimento de relações entre diferentes etnias, as quais dependendo da sua expressão e aglutinação política apresentam outras configurações do que se tem entendido por organizações indígenas, tais como os conselhos e comissões que realizam encontros nacionais e estaduais de deliberação coletiva. Importante apontar que a navegação pela rede social étnica, assim denominada como forma de pensar uma participação peculiar nas redes sociais digitais, permitiu observar a amplitude de grupos virtuais, isto é, criados a partir das próprias ferramentas da rede social, os quais nem sempre correspondem à estruturação de uma organização indígena. Inconstantes ou estáveis, essas aglutinações expressam campanhas ou questões ligadas aos territórios, à educação, à literatura, mas também se referem à política partidária ou ainda mensagens de cunho religioso evangélico. Desse modo, o mapeamento de perfis indígenas é realizado a partir de pistas oferecidas pela rede de relações, tornadas públicas pelos internautas, no âmbito dos seus vínculos com as organizações, formais ou informais, mas também daquelas que acontecem fora desse espectro, através de alguns atores com maior visibilidade, ou por terem atuado na coordenação de organizações, ou por serem reconhecidos como lideranças. Embora as organizações possam ser compreendidas como uma das principais construtoras de expressões coletivas indígenas, especialmente no que diz respeito ao contexto de mobilizações, também se considerou as entidades indigenistas; entretanto deu-se prioridade aos perfis pessoais caracterizados pela identificação étnica apresentada no nome (utilizando ou não o referencial em português) e em informações sobre a procedência ou residência. Dessa forma, sem descurar os perfis das organizações, nas suas diversas modalidades, focalizamos o olhar para os perfis, podendo ser ou não caracterizadas como lideranças, e que, ao construírem e se construírem como expressões coletivas, remetem às múltiplas configurações do Movimento Indígena. No conjunto de mediações que temos identificado através dos perfis e suas expressões coletivas considera-se relevante a faixa etária e a formação acadêmica, levando em conta ainda a presença de estudantes universitárias ou profissionais com diferentes níveis de formação acadêmica. As posições e atribuições dos perfis femininos são, desse modo, importantes para pensar a configuração de vozes empoderadas das mulheres, relacionado a outros lugares e esferas de organizações internacionais. Desse modo, o gênero também comparece como mediação relevante para pensar as configurações dos relatos e imagens que circulam na rede social étnica como manifestação das vozes indígenas, em sua dimensão informativa e gestual. A memória étnica, contudo, é uma das principais mediações a ser considerada nesse espaço mediado pelas tecnologias de comunicação, apropriadas pelos internautas em processos que demarcam sinais de diferentes temporalidades presentes nas práticas dos atores para produzir informações alternativas àquelas das mídias hegemônicas, ou àquela que é apagada nos domínios espaços da esfera pública. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1008 Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet Carmem Rejane Antunes Pereira Ainda é possível identificar essa mediação ao se observar como o conhecimento mobilizado pelo uso das tradições, seja na reprodução dos relatos míticos ou na defesa do patrimônio cultural imaterial, também comparecem nas construções das expressões coletivas indígenas. Nesse processo atenta-se para os realces identitários complementados por imagens que permitem pensar as redes sociais como um espaço, entre outros, para veicular, de forma autônoma, valores sociais e étnicos de grupos ativos. A memória étnica, como mediação, também transfigura os relatos que constroem os chamamentos à reflexão e a auto-reflexão dos atores que atuam com maior visibilidade e com reconhecimento entre os grupos ou as organizações. É o que se observa em mensagens que abordam a conjuntura das lutas indígenas e ao mesmo tempo reforçam o a herança étnica, expressada como um gesto do sentimento indígena em um contexto de denúncias e mobilizações desencadeadas no Brasil nos últimos anos. Na atuação dos perfis como construtores das expressões coletivas, o trabalho de organização da memória étnica é dinamizada pela história, por meio de compartilhamento de filmes que abordam as retomadas de terras indígenas e servem como base para situar processos que dão origem aos movimentos indígenas. Essa modalidade de uso da rede social étnica é significativa para observar e refletir sobre a ampliação dos lugares de memórias, a mobilização dos marcos de memória e a memória compartilhada, além da socialização de arquivos relevantes, como relatórios e vídeos que documentam as atrocidades e os massacres sofridos pelos indígenas durante a ditadura militar no Brasil. CONSIDERAÇÕES FINAIS Até aqui procuramos refletir sobre o uso da Internet por internautas indígenas, tendo como base observações da rede social étnica e os perfis construtores de expressões coletivas indígenas. Para essa reflexão julgamos importante resgatar alguns marcos históricos sobre o Movimento Indígena, abordados em pesquisas que situam suas múltiplas configurações contemporâneas. Também abordamos aspectos de pesquisa que sugerem uma noção de imagem indígena como autorepresentação dos grupos marginalizados pelas mídias hegemônicas de massa ao longo do século XX até nossos dias. A intenção foi refletir esses processos históricos no âmbito das mudanças provocadas pela globalização em suas configurações recentes, entre as quais aquelas que situam a expansão das tecnologias de comunicação e a produção simbólica das práticas culturais, em um vasto conjunto global, mas ainda em grande parte diversificado. Nesse contexto, situamos as redes sociais étnicas, com parte dessa configuração societária, tomando os perfis como objeto empírico e as expressões coletivas como espécie de construto para compreender as vozes indígenas em uma multiplicidade de mediações que estruturam sentidos aos conteúdos publicizados. Nesse trajeto, não se descurou que a sua atuação também implica uma linguagem oriunda de valores próprios das redes sociais, a circulação de discursos com amplos significados públicos, bem como espaço para trocas afetivas. Atentamos, entretanto, para uma variedade de conteúdos (texto, som, vídeo, imagens) que sugerem a possibilidade de refletir configurações liminares de uma esfera pública, fortalecida pelos atores que atuam na rede social étnica, buscando a propagação de demandas, direitos e valores sociais étnicos, nas confrontações históricas com o estado e com os domínios da esfera pública e nos momentos de fortalecimento da memória étnica. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1009 Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet Carmem Rejane Antunes Pereira Assim, considera-se o espaço público midiatizado como uma ambiência comunicacional heterogênea, ambígua e atravessada por relações de poder que dificultam o acesso, estruturam domínios e esmaecem as características da própria tecnologia. Entretanto, pensamos que o estudo dos perfis indígenas nas redes sociais étnicas pode contribuir para o estudo sistemático dos processos comunicacionais que dão origem e fortalecem a visibilidade social indígena na sua perspectiva cidadã, como também no âmbito das ambiguidades da esfera pública midiatizada e ampliada pelos usos da Internet em suas múltiplas modalidades. REFERÊNCIAS Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. APIB. Disponível em https://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com/. Acesso 20 de mar. de 2015. Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul. Arpin Sul. Disponível em: http://www. arpinsul.org.br. Acesso 10 de fev. de 2015. BRASIL. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Castells, M. (2002). O poder da identidade: A era da informação: economia, sociedade e cultura. v. 2 São Paulo: Paz e Terra. COGO, Denise; BRIGNOL, L. D. (2010) Redes sociais e os estudos de recepção na internet. XIX Encontro Anual da Compós- Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Rio de Janeiro. Acesso em 5 mar. de 2014. Disponível em http:// compos.com.puc-rio.br/media/gt12_denise_cogo.pdf FRAGOSO S.; RECUERO R. & AMARAL A. (2012). Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre: Sulina. GARCÍA-CANCLINI, N. (2008). Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras. GOHN, M. G. (2011) Movimentos sociais no início do século XXI. 6. ed. São Paulo: Cortez. GEERTZ, C. (1978). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar. IANNI, O. (2003). 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Acesso em 23 de nov. de 2013 em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702011000100012&lng =pt&nrm=iso Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1011 Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania Entertainment citizen: the Baile Charme do Viaduto de Madureira Facebook as a disseminator of contributions in terms of citizenship Cyn t h ia M aci el D ua rt e 1 Resumo: este artigo é apresenta um estudo de caso feito no Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira que evidenciem contribuições sociais do ambiente. Trata-se de um estudo inicial que é parte de pesquisa desenvolvida no curso de Doutorado da PUC Rio. Palavras-chave: Facebook, black music, cidadania, rede social Abstract: this paper presents a case study on Baile Charme do Viaduto de Madureira Facebook evidencing social contributions of the environment. This is an initial study that is part of research carried out in the course of Doctorate of PUC Rio. Keywords: Facebook, black music, citizenship, social network INTRODUÇÃO A S REDES eletrônicas têm ocupado cada vez mais espaço na sociedade e na vida dos indivíduos. Conforme afirma Castells (2005, p. 18), “as redes de comunicação digital são a coluna vertebral da sociedade em rede”. As redes digitais oferecem ao cidadão, em termos técnicos, uma possibilidade maior de participação social e exercício da cidadania, assim como têm feito eventos de música realizados em espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro, segundo Herschmann e Fernandes (p. 2 e 3, 2014a). Esses autores afirmam que eventos organizados em espaços públicos da cidade podem estar contribuindo com a constituição de encontros em torno da música que impulsionam uma série de outras atividades ligadas a aspectos culturais, sociais e econômicos, fazendo com que mais atores tenham papel importante na cidade. E as tecnologias digitais podem representar um aspecto importante dessa atuação, pois têm, dentre outras características, a capacidade de dar voz a um número maior de pessoas e potencializar o alcance dessas informações, não as restringindo aos frequentadores dos eventos e assim viabilizando o envolvimento de um número maior de atores sociais. Nesse contexto, o evento escolhido é o Baile Charme do Viaduto de Madureira. Conhecido não apenas pela música, mas pela preocupação em contribuir com a sociedade, por meio, dentre outras ações, de oficinas e palestras promovidas por seus 1. Graduada em Relações Públicas e Jornalismo e mestre em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj, especialista em Mídia, tecnologia e educação e Doutoranda em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1012 Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania Cynthia Maciel Duarte organizadores e apoiadores, o Baile é um dos mais antigos eventos de música com atividade ininterrupta realizados em espaço público da cidade do Rio de Janeiro. Criado há mais de 20 anos, a partir dos anos 2000 tornou-se um point da black music carioca. Todo sábado à noite, o evento transforma uma área conhecida como local de passagem e comércio - embaixo de um viaduto, tradicionalmente identificado por abrigar camelôs - em um espaço de lazer, troca de afetos, valorização da dança e da moda black e geração de renda pela atividade cultural. O Baile Charme do Viaduto de Madureira2 foi criado em 1993, então denominado Charme na Rua, idealizado pelo produtor de eventos Cesar Ataíde e realizado com a ajuda de camelôs da região. Hoje, Dutão3, como o Baile também é conhecido entre os frequentadores, reúne cerca de duas mil pessoas na noite de sábado para domingo sob o viaduto Negrão de Lima, entre as duas rampas de carros que dão acesso ao Viaduto (MAPA DE CULTURA, 2014a). Mas, seu alcance e o das atividades a ele relacionadas, pode estar sendo muito maior, graças à internet. Desde 2012, o Baile conta com a página no Facebook, objeto deste estudo, acessada pelo endereço www.facebook.com/viadutomadureira. Atualmente, tem mais de 53 mil fãs. Em conformidade com uma das características do Baile, além de auxiliar na divulgação de suas atividades, a página também abriga informações de temática social, envolvendo política, identidade e campanhas beneficentes. Para estudar a página no Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira está sendo feito um esforço de seguir as pistas dos próprios atores (GEERTZ, 2012; LATOUR, 2012). Segundo Wasserman e Faust (1994) e Degenne e Forse (1999), rede social é um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos, que são os nós da rede) e suas conexões, ou seja, suas interações. Logo, rede é uma metáfora para se referir à conexão de um grupo social. Estudar redes sociais na internet é tentar compreender como se estabelecem as estruturas sociais e suas especificidades quando a comunicação se dá através do computador. Seguindo essa lógica, é importante observar que os sites de redes sociais, em si, não são redes sociais. São apenas sistemas. São os atores sociais que usam as redes que de fato a compõem. Portanto, o estudo das redes sociais deve considerar em especial os atores, não exclusivamente o ambiente que serve de base. São os atores que estabelecem conexões sociais, aumentadas significativamente em redes sociais, que, segundo Recuero “amplificam a expressão da rede social e a conectividade dos grupos sociais” (2009, p. 108). Raquel Recuero afirma que não se pode simplesmente esperar as mesmas interações da “vida real” no “mundo virtual” (RECUERO, 2005, Introdução). Esse aspecto, no entanto, não é sinônimo de isolamento. Wellman, Boase e Chen (RECUERO, 2009, p. 43), em estudo sobre vizinhos, detectaram que a internet contribuiu com o relacionamento 2. Tendo inspirado um baile charme na novela Avenida Brasil, exibida na Rede Globo em 2012, no ano seguinte, o Baile Charme foi cadastrado como bem cultural e registrado como Patrimônio Cultural Carioca de natureza imaterial pelo Decreto nº 36.803, de 27 de fevereiro de 2013. Em 2000, a área em que o evento é realizado já tinha recebido a denominação Espaço Cultural Hip Hop Charme pela Lei nº 3087, de 8 de agosto de 2000. Atualmente, está em tramitação na Câmara Municipal do Rio de Janeiro o Projeto de Lei Nº 877/2014, que inclui o Dia do Charme no calendário oficial da cidade do Rio de Janeiro, a ser celebrado em 12 de agosto. 3. Na verdade, Dutão é o apelido do viaduto sob o qual o Baile é realizado, mas o termo muitas vezes é empregado como sinônimo do Baile. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1013 Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania Cynthia Maciel Duarte entre as pessoas, aumentando e facilitando as relações entre as que moravam mais distante, aumentando o conhecimento entre os vizinhos e a frequência de contato entre eles. Ou seja, os laços virtuais eram mantidos também no espaço off-line. Welman, segundo Recuero (2009, p. 44), chama a atenção para o fato de que muitas redes sociais na internet funcionam conectando vizinhos. Mas é importante ressaltar também o fato de que as relações pela internet mostraram às pessoas que é possível manter laços fortes mesmo a distância. Este estudo também considera os conceitos de laços fortes e fracos, de Mardens & Campbell e Granovetter. Esses conceitos podem ajudar a explicar o que faz os internautas curtirem, compartilharem, comentarem na página do Baile Charme do Viaduto de Madureira no Facebook e se envolverem em suas atividades. Uma das possíveis respostas é o fato das interações na web envolverem vínculos relacionais. É possível que o ciberespaço possibilite aos sujeitos o estabelecimento ou a retomada de laços fortes, determinados principalmente pela proximidade afetiva e intensidade emocional que nutrem relações de amizade entre pessoas que pertencem ao mesmo círculo social (MARDENS & CAMPBELL, 1984). Mas, a web é feita também, e principalmente, de uma rede de laços fracos (GRANOVETTER, 1973; 1984). Trata-se de vínculos relacionais menos densos, mais superficiais, porosos e assimétricos, mas indispensáveis para as oportunidades dos indivíduos e para a sua integração na comunidade porque permitem que o fluxo de ideias, inovações, influências e informações socialmente distantes cheguem a pessoas que, de outro modo, estariam encapsuladas em seus grupos primários, nos nós da rede. Tal característica de ponte colabora com a integração dos indivíduos e dos pequenos grupos à estrutura social maior. Kaufman (2012, p. 216) também coloca que a força dos laços fracos no ambiente do ciberespaço consiste na sua potência para criar capital social, porque amplia as possibilidades de conexão e a interação entre pessoas e a consequente circulação de conhecimentos, sejam eles diversificados ou especializados, “gerando um ativo intangível valioso na sociedade e em suas organizações”. Muniz Sodré (2001) também traz importantes contribuições. O autor tem se preocupado em desenvolver uma teoria da comunicação que explique “como se dá o vínculo, a atração social, como é que as pessoas se mantêm unidas, juntas socialmente”. Para o autor, “vinculação social” é o mesmo que “compromisso social”, “laço atrativo” que mantém os sujeitos unidos na vida em sociedade. Sodré defende que a comunicação envolve afeto, o sensível, uma motivação que nos leva a organizar as informações que fluem no seio da comunidade. “Nós nos comunicamos por disposição afetiva. É isso que nos move” (SODRÉ, 2013). Para ele, é o afeto, essa capacidade de fazer os seres entrarem efetivamente em contato, obrigando-os à relação, que faz do vínculo a força motriz da sociabilidade, agenciador da coexistência, do entendimento de comunidade (com toda a sua violência, tensão, suas lutas) e comunicação (com todo o seu poder dialógico, com sua capacidade aproximativa e diferenciadora) (PAIVA, 2013). Outros subsídios importantes vêm de Raquel Recuero (2009), que coloca que a internet e as redes sociais têm modificado profundamente as formas de organização, identidade, conversação e mobilização social. A autora defende que a internet não proporciona apenas contato, mas conexão entre as pessoas. Casos de disseminação de Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1014 Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania Cynthia Maciel Duarte informações sobre grandes eventos, catástrofes ou campanhas eleitorais são exemplos de mobilizações feitas pela web. A autora, no entanto, salienta que o fenômeno das redes não é causado pela internet, tendo sido assunto no campo científico durante todo o século XX. A diferença neste momento não é a rede, e sim a rede no mundo digital, mais especificamente, as redes sociais digitais. Nesse contexto, justifica-se a opção por considerar não apenas as postagens feitas pelos administradores da página, mas também os comentários dos fãs. Estudar os comentários auxilia na compreensão acerca da própria caracterização do ambiente como rede social, identificando se, diferente de outras páginas de organizações (DUARTE, 2011), este ambiente digital pode de fato promover a interação entre os atores, contribuindo com relações de pertença e reconhecimento. Muitos comentários são responsáveis pela inclusão de determinada postagem em uma categoria, devido às questões que levanta e que não estão necessariamente relacionadas à publicação inicial dos administradores da página. A consideração dos comentários está relacionada ainda ao esforço de estudar a página no Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira a partir dos próprios atores. ESTUDO DE CASO Figura 1. Posts analisados. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1015 Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania Cynthia Maciel Duarte Tabela 1 - Análise do Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira - 7 de janeiro de 2011 a 7 de janeiro de 2012 Ao todo, foram analisadas 131 Quantidade postagens e seus comentários, feitas no período de Identificação dos Posts Detalhamento da categoria de posts 1, 5, 6,da 7, 9, 10, 11, 12, 14, um ano, desde a criação página, em 7 de janeiro de 2011, até 7 de janeiro de 2012. 15, 16, 21, 22, 23, 25, 29, 35, 37, 40, 45, 49, 50, 53, As postagens foram analisadas tanto em função dos assuntos dos posts feitos pelos 54, 60, 66, 67, 68, 69, 72, 75, 80, 81, 87, 98, 99, 100, administradores da página quanto em relação aosagenda, comentários nesses posts pelos Fotos dos bailes, enquetes sobre artistasfeitos para se apresentarem no baile, atividades 101, 103, 105, 110, 113, oferecidas nos bailes (como telão para assistir a luta do Anderson Silva), esclarecimentos sobre 115, 117, 121, 124, 128, que não fazem parte Charme do de Madureira 129, 130 Informações o baile foram reunidos 49 bailes fãs. Ossobre posts em categorias, descritas nado Baile tabela 1 Viaduto a seguir. Os comentários 28, 30, 44, 46, 51, 52, 64, Eventos musicais ou não, com a marca do Viaduto ou não, anunciados na página, mas que são 91, 92, 100, 109, 111, 119, realizados fora do Viaduto, como shows no Parque Madureira, peça de teatro no Parque das Ruínas, relacionados com os assuntos tratados 17neste trabalho são apresentados na tabela 2. As 122, 125, 126, 127 DJs do Viaduto tocando na Ladeira dos Tabajaras, copa graffiti na Cinelândia Eventos em outros espaços 55, 56, 57, 58, 59, 61, 63, cores idênticas nas duas 73, 84,tabelas 95, 97, 106, 107,evidenciam os assuntos em comum. Categoria da postagem do administrador Vídeos de músicas que tocam no baile 118 14 2, 3, 8, 17, 18, 19, 20, 26, 32, 38, 65, 78, 79, 93, 94, 123 Relação com a imprensa Informações sobre artistas e ritmos musicais 47, 48, 62, 74, 77, 82, 86, relacionados à black music 88, 96, 102 Saudações aos internautas e brincadeiras 90, 112, 114, 116 16 10 4 Informações sobre colaboradores e parceiros 76, 89, 104, 120 Comentários sobre a própria página no 24, 33, 41, 42 Facebook 4 Aparição de DJs e dançarinos do baile em programas de TV, relação do baile com a novela Avenida Brasil, da Rede Globo, gravações no Viaduto, cantores de black music no The Voice, entrevista sobre a vizibilidade do baile com a novela Avenida Brasil, matéria sobre o estilo dos frequentadores do baile em blog. Em função da novela Avenida Brasil, o Baile foi visto por alguns como deturpado pela mídia. Outros exaltam a divulgação. Fãs também reivindicam mais prestígio por parte da mídia, reclamando, por exemplo, sobre pouco tempo da matéria a respeito do Baile no Fantástico, inclusive enfatizando que isso é comum quando se trata do baile charme, diferente do funk. Também há reclamações sobre suposto descaso do apresentador Gugu quando um bailarino do Baile que estava se apresentando no programa teve ataque epilético no ar. Há a solicitação dos administradores da página de que informem sobre pessoas que passaram a frequentar o Baile depois da novela Avenida Brasil. Morte de Michael Clarke Duncan, aniversário de Beyoncé, perfil dos Racionais MCs, a origem do hiphop, foto de Michael e Janet Jackson, foto de capa de disco de black music Mensagem de bom dia, fotos apontando semelhanças entre rostos de cantores e cachorros, agradecimento aos frequentadores do baile, , mensagem de aniversário para o DJ Michel, meme feito no Baile Divulgação da página da fotógrafa do Baile no Facebook, solicitação de colaboradores para os canais do Baile na internet, divulgação da grife DNG (Dnegro) Conquistas e superações 34, 71, 83, 108, 131 Campanhas de doação Outros veículos de comunicação do baile, como internet e rádio 31, 36, 70 4 Informações sobre números de curtidas Divulgação de notícia informando que negros já são 80% da classe média, divulgação de documentário sobre os bastidores do filme Cidade de Deus e o que os atores, que eram moradores de comunidade, fazem atualmente, atleta que conquistou boa colocação nos 100m rasos, post que 5 fala um pouco da história de Keith Sweat. Desconto de 50% no ingresso do baile em troca da doação de 1 agasalho, doação para o programa de TV Mundo Negro, patrocinado por doações coletivas, divulgação de financiamento coletivo para 3 produção de filme. 27, 43 2 Divulgação do Canal no YouTube, de matérias do blog. Informações sobre outros eventos no Viaduto 4, 13 Promoções para fãs da página e de outros canais TOTAL 2 Outros eventos realizados no Viaduto que não sejam o Baile Charme. 85 1 Promoções para fãs do Youtube ou do Twitter. 131 Tabela 2 - Comentários Postagem Posts 08, 18, 19 e 93 Posts 26, 40, 65 Post 31 Posts 36 e 126 Post 79 Posts 80, 101 e 104 Comentários pertinentes para a análise Categoria Quantidade de posts Comentários sobre matéria muito curta a respeito do Baile no Fantástico, inclusive enfatizando que isso é Relações com a imprensa comum quando se trata de baile charme, diferente do funk. Comentário sobre o caso do bailarino que teve ataque epilético no Gugu. Fãs afirmam, que, se fosse alguém famoso, o apresentador teria dado mais atenção quando o rapaz passou mal no ar. Em um dos comentários há um posicionamento criticando aqueles que afirmam que o baile charme está sendo explorado pela mídia. Reclamação de que não tocou charme na novela Avenida Brasil, apesar de usarem esse nome no programa televisivo. Posicionamento de fãs e dos administradores da página afirmando que, mesmo não tocando charme, a novela ajudou a divulgar o Baile e que pessoas que foram conhecer o evento por causa da novela, não identificaram o que passa na novela com o Baile, mas gostaram mais do Baile do que do que foi mostrado na novela. 4 Em um dos comentários, uma fã afirma que o baile é um lugar em que ela se sente ela mesma. Outro fã chama o Baile de seu mundo. Há também comentários sobre rixas entre rapers do Rio. Um fã afirma que os rapers deveriam se unir, não se separar. O administrador da página explica que há incômodo com os "modinha" e em seguida explica que são aqueles que não viveram em favelas, mas que cantam como se o tivessem feito. Outro fã coloca a importância do rap para se pensar no que acontece no mundo e ressalta a diferença do rap feito por quem conhece a favela e do que só ouviu falar. Os comentários incluem uma mensagem de apoio de uma fã em relação ao post, que divulga uma campanha de doação de agasalhos no Baile, convidando os frequentadores do Baile a fazerem sua parte em relação à campanha. Comentários sobre a afirmação do negro na sociedade. Um fã afirmou que os próprios negros não se impõem devido a preconceito ou por receio de críticas. Outro incentivou que os negros continuem lutando, sem desistir. Em um comentário, fã pede que outros fãs ajudem a denunciar uma determinada página do Facebook sob a acusação de racismo. Fã afirma que gravadoras consideram não ser comercialmente viável apostar no segmento black music. Questões de identificação pessoal 3 Campanhas de doação 1 Questões sobre o negro na sociedade 2 Questão econômica sobre black music 1 Relação do Baile com a cidade do Rio de Janeiro 3 Uma fã comenta sobre a relação do Baile Charme com a cidade: "SOMOS UM RIO". Fã coloca o Baile como lugar do "povão do Rio" se "sentir feliz". O Baile é descrito por um fã como representante de um Rio de Janeiro como "100%" suburbano. Total 14 Foram criadas 13 categorias: Informações sobre o baile, Eventos em outros espaços, Vídeos de músicas que tocam no Baile, Relação com a imprensa, Informações sobre artistas e ritmos musicais relacionados à black music, Saudações aos internautas e brincadeiras, Informações sobre colaboradores e parceiros, Comentários sobre a própria página no Facebook, Conquistas e superações, Campanhas de doação, Outros veículos de comunicação do baile, como internet e rádio, Informações sobre outros eventos no Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1016 Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania Cynthia Maciel Duarte Viaduto e Promoções para fãs da página e de outros canais. Dessas, interessam para esse estudo, devido à sua possibilidade de suscitar discussões sobre questões sociais, as três categorias descritas a seguir. Relação com a imprensa A categoria é formada por 16 posts que incluem assuntos como a aparição de DJs e dançarinos do baile em programas de TV; relação do baile com a novela Avenida Brasil, da Rede Globo; gravações no Viaduto; cantores de black music no programa The Voice; entrevista sobre a visibilidade do baile com a novela Avenida Brasil; matéria sobre o estilo dos frequentadores do baile em blog. Conquistas e superações Formada por cinco posts. Nessa categoria consta, por exemplo, um post sobre a divulgação de uma notícia informando que os negros já são 80% da classe média. Também consta a divulgação de um documentário sobre os bastidores do filme Cidade de Deus e o que os atores, que eram moradores de comunidade, fazem atualmente, assim como uma atleta que conquistou boa colocação nos 100m rasos e um post que conta um pouco da história de superação de Keith Sweat. Campanhas de doação Os três posts dão conta de desconto de 50% no ingresso do baile em troca da doação de um agasalho, doação para o programa de TV Mundo Negro, patrocinado por doações coletivas, divulgação de financiamento coletivo para produção de filme. As respostas dos administradores da página aos comentários dos fãs também precisam ser consideradas, pois mostram que o ambiente de fato tem uma das principais características de rede social: a interação entre os atores. Dos 131 posts analisados, 22 traziam em seus comentários posts dos administradores da página com respostas aos fãs sobre nomes de músicas postadas na página, valor do ingresso, esclarecimentos sobre dançarinos do Baile em eventos externos, posicionamento sobre os cantores da atualidade, dentre outros assuntos. Em relação aos comentários, esses foram reunidos em seis categorias, descritas a seguir. Relações com a imprensa A categoria envolveu comentários em quatro posts. Há comentários com reclamações sobre a duração da matéria a respeito do Baile no Fantástico, considerada muito curta, inclusive enfatizando que esse procedimento é comum quando se trata de baile charme, diferente do funk. Outro assunto é o caso do bailarino que teve um ataque epilético no programa do Gugu, na Record. Fãs afirmam, que, se fosse alguém famoso, o apresentador teria dado mais atenção quando o rapaz passou mal no ar. Em um dos comentários há um posicionamento criticando aqueles que afirmam que o Baile Charme está sendo explorado pela mídia. Também há reclamação sobre não ter tocado charme na novela Avenida Brasil, apesar de usarem esse nome no programa televisivo. Nesse ponto, há ainda o posicionamento de fãs e dos administradores da página afirmando Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1017 Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania Cynthia Maciel Duarte que, mesmo não tocando charme, a novela ajudou a divulgar o Baile e que pessoas que foram conhecer o evento por causa da novela de fato não identificaram o que passa na novela com o Baile, mas gostaram mais do Baile do que do que foi mostrado na ficção. Questões de identificação pessoal Os comentários foram feitos em três posts. Em um dos comentários, uma fã afirma que o Baile é um lugar em que ela se sente ela mesma. Outro fã chama o Baile de seu mundo. Há também comentários sobre rixas entre rappers do Rio, pois um fã afirma que os rappers deveriam se unir, não se separar. Esse comentário suscitou um posicionamento do administrador da página, que destaca a existência de um incômodo com os “modinha” e em seguida explica que são aqueles que não viveram em favelas, mas que cantam como se lá vivessem. Sobre isso, outro fã coloca a importância do rap para se pensar no que acontece no mundo e ressalta a diferença do rap feito por quem conhece a favela e do que só ouviu falar. Campanha de doação Em um post sobre uma campanha de doação de agasalho no Baile, uma fã escreve uma mensagem de apoio, convidando os frequentadores do Baile a fazerem sua parte em relação à campanha. Questões sobre o negro na sociedade Comentários em dois posts suscitaram a necessidade de afirmação do negro na sociedade. Um fã expressou que os próprios negros não se impõem devido a preconceito ou por receio de críticas. Outro incentivou que os negros continuem lutando, sem desistir. Em um comentário, um fã pede que outros fãs ajudem a denunciar uma determinada página do Facebook sob a acusação de racismo. Questão econômica sobre black music Comentando um post, uma fã afirma que as gravadoras consideram não ser comercialmente viável apostar no segmento black music. Relação do Baile com a cidade do Rio de Janeiro O assunto foi colocado em três posts. Uma fã comenta, por exemplo, sobre a relação do Baile Charme com a cidade do Rio de Janeiro: “SOMOS UM RIO”. Outra fã coloca o Baile como lugar do “povão do Rio” se “sentir feliz”. O Baile é descrito ainda como representante de um Rio de Janeiro que é “100%” suburbano. CONSIDERAÇÕES O Brasil vive um momento de importantes transformações. O maior uso do direito constitucional à manifestação evidencia um novo estágio da democracia. O governo se vangloria da mudança no perfil socioeconômico e da emergência de uma nova classe média, conforme destacado no site da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE, 2012). No entanto, o acesso a ambientes digitais ainda é um desafio. No Brasil, iniciativas como o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), o Programa Cidades Digitais, os Programas Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1018 Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania Cynthia Maciel Duarte de Telecentros, o Programa Nacional de Tecnologia Educacional (Proinfo) e o Programa Banda Larga nas Escolas (PBLE) têm ajudado na inclusão digital. Mesmo assim, menos da metade da população brasileira, 49,8%, está conectada à rede mundial de computadores (DUARTE, 2014, p. 107). Além do acesso, outro desafio é a qualidade da conexão. A possibilidade de ouvir música e visualizar vídeos, por exemplo, está relacionada à velocidade de transmissão de dados. Segundo o relatório The state of the internet (O estado da internet), da empresa de tecnologia Akamai (2013, p. 3), apesar de aumentar constantemente, a velocidade média de conexão no Brasil é de 2,4 Mbps, abaixo da média global, que está em 3.3 Mbps. Apenas 15% das conexões brasileiras são feitas por banda larga e 0,7% por banda larga de alta velocidade (DUARTE, 2014, p. 108). Apesar dos desafios, cada vez mais brasileiros têm usado a rede mundial de computadores. A maior parte dos usuários de internet do Brasil tem entre 16 e 24 anos e usa a internet para se comunicar, especialmente por meio de redes sociais, como Facebook e LinkedIn, segundo a pesquisa TIC Domicílios e Usuários 2012, do Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (DUARTE, 2014, p. 108). O Brasil ocupa a terceira posição entre os maiores usuários do Facebook, atrás de Estados Unidos e Índia, segundo o site de métricas digitais Social Bakers (DUARTE, 2014, p. 109). Em outubro de 2014, a rede social foi a segunda página mais acessada no país, atrás apenas do buscador Google, de acordo com a empresa de informações sobre a web Alexa, que reúne dados do último mês (ALEXA, 2014). Mas, apesar das atividades de entretenimento serem as mais desempenhadas, também é possível encontrar ações de ativismo via web ou incentivadas no ambiente digital e desenvolvidas fora dele. Segundo Clay Shirky (2010), as novas tecnologias viabilizam a criação em conjunto, a baixo custo e de forma extremamente fácil. Segundo Shirky, é possível encontrar cidadãos digitais hoje que se caracterizam por proatividade, protagonismo e busca de autonomia. São indivíduos motivados não por retorno financeiro, mas pela contribuição com algo que seja útil a outras pessoas. Grupos com afinidades que se reúnem em tarefas coletivas. O engajamento social também parece ser um aspecto importante da página no Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira. A análise das postagens evidencia que assuntos envolvendo a música black, o negro na sociedade e as classes sociais economicamente menos favorecidas são suscitados pelos próprios administradores da página, fazendo-a um espaço privilegiado para a colocação de questões que nem sempre ganham evidência, especialmente na dita grande imprensa. Mas, além disso, é possível identificar fãs que veem na página um ambiente aberto ao tratamento de assuntos que consideram dignas de pontuação, como a identificação que a música feita por conhecedores de favelas suscita em contraste com aqueles que não conhecem essa realidade, questões econômicas envolvendo a indústria fonográfica, como a percepção de que a black music não seria privilegiada pelas gravadoras, e a relação do baile charme com subúrbios e com o Rio de Janeiro. Na página, os fãs têm a liberdade de colocar esses assuntos e de fazer com que sejam vistos por um grande número de pessoas. A análise da página prosseguirá, considerando os demais posts do ambiente. Mas esse estudo inicial já aponta que o espaço compreende muito mais do que informações sobre o Baile. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1019 Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania Cynthia Maciel Duarte Conforme colocado inicialmente, este trabalho evidencia uma análise inicial da página no Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira, parte de uma pesquisa mais ampla em que se pretende seguir a proposta de Martín-Barbero em Ofício de Cartógrafo (2004, p. 12), ou seja, rejeitar os “mapas sínteses” e construir um mapa cognitivo do tipo “arquipélago”, com “ilhas múltiplas e diversas, que se interconectam”. A proposta é fazer um “mapa noturno”, a partir das “brechas” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 18). Um mapa que ajude a reconhecer a situação considerando as mediações e os sujeitos. Por meio de pesquisa de campo, com entrevistas em profundidade e observação participante, a pesquisa contará também com trabalho etnográfico, que terá como base a teoria ator-rede, de Bruno Latour (2012), e a postura da percepção do outro como interlocutor, de Geertz (2012). Desse modo, a investigação procurará identificar as diversas redes envolvidas, tentando perceber os sentidos imanentes dos lugares, seguindo as pistas dadas pelos próprios atores (LATOUR, 2012) para pensar “criativa e imaginativamente com eles” (GEERTZ, 2012, p. 17). Objetiva-se identificar as diversas associações realizadas em torno da página do Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira tecendo suas redes, sem a pretensão de esgotar todas as instâncias envolvidas, mas empenhando-se em compreender ao máximo sua composição a partir dos próprios atores. Tendo consciência da limitação da atividade de pesquisa, pretende-se estudar na escala da formiga, seguindo os atores, rastreando e descrevendo associações. BIBLIOGRAFIA PRELIMINAR AKAMAI. The state of the internet. 2013. Disponível em: <http://www.akamai.com/dl/documents/akamai_soti_q213.pdf?WT.mc_id=soti_Q213>. Acesso em: 23 fev. 2014. CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo (Orgs.). A sociedade em rede: do conhecimento à ação política; Conferência. Belém (Por): Imprensa Nacional, 2005. DUARTE, Cynthia Maciel. Interatividade na construção das notícias de telejornais: o caso da escola de Realengo. 2011. 50 f. Monografia. (Graduação em Comunicação Social, habilitação Jornalismo) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2. sem. 2011. DUARTE, Cynthia Maciel. A Magia da Disney no Facebook: estratégias de negócios do conglomerado na rede social. 2014. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 20 mar. 2014. FERNANDES, Cíntia SanMartin. Música e sociabilidade: o samba e choro nas ruas-galerias do centro do Rio de Janeiro. In: HERSCHMANN, Micael. Nas bordas e fora do mainstream musical: novas tendências da música independente no início do século XXI. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2011. p. 267-287. _____. Sociabilidade, comunicação e política: a experiência estético-comunicativa da Rede MIAC na cidade de Salvador. Rio de Janeiro: Ed. E Papers, 2009. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2012. GRANOVETTER, Mark. The Strength of Weak Ties. In: American Journal of Sociology, 78 (6), 13601380, 1973. Disponível em: <www.stanford.edu/dept/soc/people/mgranovetter/ documents/granstrengthweakties.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2014. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1020 Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania Cynthia Maciel Duarte HERSCHMANN, Micael. (Org.). Nas bordas e fora do mainstream musical: novas tendências da música independente no início do século XXI. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2011a. _____. Lapa, cidade da música. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. _____. Ruas que cantam: ativismo seresteiro e desenvolvimento local em Conservatória. In: HERSCHMANN, Micael. (Org.). Nas bordas e fora do mainstream musical: novas tendências da música independente no início do século XXI. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2011b. p. 235-266. HERSCHMANN, Micael; FERNANDES, Cíntia SanMartin. Ativismo musical nas ruas do Rio de Janeiro. In: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO (COMPÓS), 23., 2014a, Belém. 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Neste artigo analisamos o papel da Roda como manifestação de arte urbana, investigando os elementos que concorrem para sua construção de forma coletiva, mas também os conflitos decorrentes de sua realização. Leituras de Becker, Simmel, Maffesoli e Le Breton formam o quadro teórico sobre juventude e conflitos nos espaços urbanos. Referências do campo da comunicação sobre movimentos sociais, mídias sociais e cidadania completam o referencial. Foi realizada observação participante da Roda em 2014; análise da página do evento em uma rede social e entrevistas com organizadores. Palavras-Chave: Juventude. Produção de sentidos. Roda Viva. Petrópolis. Conflito. Abstract: The “Roda Viva” from the Cultural Center is a hip hop manifestation that happens in Petrópolis, organized by young people and supported by the city hall. The event brings together performances of street artists such as musicians, graffiti artists, poets and jugglers. In this article we analyze the role that Roda Viva plays as an urban art manifestation, investigating the factors which contribute to its construction in a collective way, but also the conflicts related to its realization. The reading of Becker, Simmel, Maffesoli and Le Breton are the theoretical framework on the youth and the conflicts in urban areas. References from the communication field, on social movements, social media and on citizenship complete the picture. A participant observation of the Roda was conducted in 2014; the event page in a social network was analysed as well as the interviews with the organizers were made. Keywords: Youth. Sense production. Roda Viva. Petrópolis. Conflict. 1. Professora do Curso Superior de Tecnologia em Gestão de Turismo do CEFET/RJ – UnED Petrópolis. Mestre em Administração pela UFMG. E-mail: [email protected] 2. Professora Associada do Programa de pós-graduação em comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em ciências da comunicação pela ECA/USP, desenvolveu pós-doc na Université Paris-Descartes. E-mail: [email protected] 3. Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ) - UnED Petrópolis. Mestre em Administração e em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. E-mail: [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1022 Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira INTRODUÇÃO ANIFESTAÇÕES CULTURAIS, palcos, cidadania e comunicação se cruzam nas M grandes metrópoles contemporâneas. Transgredindo ou reforçando valores, o palco se mostra espaço pleno de possibilidades. As manifestações artísticas e culturais podem se configurar como instigante espaço para se observar dissidências, pensamento crítico, inovador, político, mesmo se em certos períodos a história do espetáculo mostre que teatro, dança e música foram empregados pelo Estado ou por outras instituições sociais como veículos para mensagens e propaganda. Considerando a política elemento presente na vida cotidiana e as manifestações artísticas e culturais parte desse cotidiano, a dança, a música, o teatro também podem ser formas de manifestação política, de construção de cidadania e meios de comunicação. Pensadores e artistas como Boal buscaram “conquistar identidade e cidadania” através do teatro (Boal, 2003, p.156), contudo, apenas se consideraram cidadãos ao serem “[...] capazes de intervir na sociedade e transformá-la naquela que desejamos” (Boal, 2003, p. 156). Neste trabalho buscamos estudar a Roda Viva do Centro de Cultura de Petrópolis (CDC), uma manifestação cultural urbana organizada por jovens ligados ao movimento hip hop, com apoio da Prefeitura Municipal. O evento, que vem acontecendo desde 2014 na cidade serrana do estado do Rio de Janeiro, congrega performances de artistas de rua como músicos, grafiteiros, poetas e malabaristas no gramado da Praça Visconde de Mauá, no Centro Histórico do município. Nosso objetivo é analisar o papel da Roda Viva como manifestação cultural urbana, investigando os elementos que concorrem para sua construção coletiva, bem como os conflitos decorrentes de sua realização. Leituras de Becker (1977), Simmel (1983; 2005), Maffesoli (2000) e Le Breton (2002) formam o quadro teórico sobre juventude e conflitos nos espaços urbanos. Referências do campo da comunicação sobre movimentos sociais, mídias sociais e cidadania completam o referencial (Peruzzo, 2013; Cogo, 2004). Em termos metodológicos, após a revisão de literatura, foi realizada observação de edições da Roda Viva durante o segundo semestre de 2014 e posteriormente acompanhamento e análise da página do evento em duas redes sociais. Finalmente, realizaram-se duas entrevistas com organizadores do evento. Esse procedimento teve como intento levar a conhecer o movimento, entender seus conflitos e a produção de sentidos sobre a juventude construída a partir da realização da Roda. A pesquisa possibilitou observar que a Roda Viva representa para seus participantes uma plataforma coletiva de manifestação de anseios artísticos e sociais. Ao mesmo tempo, pode-se constatar a constituição de uma relação conflituosa entre os participantes da manifestação e os moradores e frequentadores da região nobre do Centro Histórico da “Cidade Imperial”. É importante destacar que Petrópolis é reconhecida por sua tradição artística associada principalmente a corais locais (Canarinhos de Petrópolis e Meninas Cantoras de Petrópolis), grupos folclóricos de dança alemã e eventos como o Festival de Inverno e o Petrópolis Jazz & Blues Festival. A Roda Viva do CDC surge como iniciativa de diversificação e de criação de atrações para públicos mais jovens em espaços públicos da cidade. Essa criação não vem sem conflitos, porém constata-se o potencial da Roda Viva como elemento catalisador de divergências capaz de gerar a busca por construção de cidadania por parte de jovens. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1023 Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira JUVENTUDE E MOVIMENTOS SOCIAIS No contexto contemporâneo em que se observa o declínio de comportamentos políticos institucionalizados e burocratizados entre as novas gerações (Castro, 2008), a expressão da cidadania parece ser cada vez mais pautada em experiências caracterizadas pelo pertencimento a múltiplas identidades e redes sociais, bem como à associação de matrizes clássicas e inovadoras de comunicação (Cogo, 2004). Maffesoli, em seu livro O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades pós-modernas, já havia escrito que a construção das identidades na pós-modernidade se dá, em grande parte, fundada por marcas como o estar-junto, o pertencimento a grupos sociais de laço intenso mesmo que efêmero, e a uma revivescência do reencantamento do mundo. Nesse sentido, «le quotidien et ses rituels, les émotions et passions collectives, symbolisées par l’hédonisme de Dionysos, l’importance du corps en spectacle et de la jouissance contemplative, la reviviscence du nomadisme contemporain, voilà tout ce qui fait cortège au tribalisme postmoderne» (2000, p. III). Isso a que o sociólogo chama de neotribalismo pós-moderno é, em grande parte, marcado pelo agrupamento ou comunhão de jovens em torno de causas ou interesses em comum, no lugar da adesão a comportamentos políticos institucionalizados. A observação que Maffesoli construiu a partir da experiência francesa encontra ecos também na realidade brasileira. Para Telles (2004), a redefinição das relações entre Estado, economia e sociedade no Brasil gerou a possibilidade de uma nova contratualidade, sendo deslocadas as práticas autoritárias que agora dão lugar a outras formas de mediar conflitos e legitimar as demandas sociais. Essas demandas, por sua vez, são manifestas e configuradas de diversas maneiras, refletindo uma variedade de possibilidades de organização dos agentes sociais envolvidos nesse contexto (Cogo, 2004). Nesse processo de reorientação da cidadania, os movimentos sociais populares se destacam como estruturas de primeira ordem para que ocorram as transformações sociais, não obstante outros fatores sejam somados para que tais mudanças se efetivem. Ora atuando junto aos Estados em projetos participativos, ora mobilizando a sociedade na contestação de projetos que lhes são antagônicos, os movimentos sociais constituem importantes elementos na organização de significados, a partir da confluência de identidades que podem ser classificadas como legitimadoras (criadas por atores que buscam preservar a dominação vigente), identidades de projeto (concebidas por atores que almejam a construção de uma nova identidade social e a redefinição de sua posição na sociedade) ou de resistência (proposta por atores que se sentem ameaçados pela estrutura de dominação) (Peruzzo, 2013). No âmbito de muitos movimentos sociais encontra-se, a construção de identidades coletivas que apresentam alto grau de complexidade. Nesse sentido, a juventude ocupa uma posição delicada, considerando-se ser essa uma fase em que se buscam elementos de pertencimento e responsabilização, a fim de que o jovem possa se assumir e encontrar seu papel dentro do contexto social. Nesse “momento de passagem” faz-se necessário encontrar novas formas de identificação com objetivos coletivos, por um lado, além do engajamento do jovem em ações e movimentos com os outros, possibilitando novas dinâmicas sociais (Castro, 2008). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1024 Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira O desinteresse dos jovens pela política tradicional, além de estar associado a mudanças de valores entre as novas gerações (Castro, 2008), pode ser relacionado ainda ao posicionamento ambíguo do Estado em relação às demandas dessa faixa etária da população. Por vezes, os jovens são vistos como um problema, uma ameaça à ordem social e, em outras perspectivas, são considerados como sujeitos sociais que precisam de atenção. Como resultado dessa ambigüidade, as políticas sociais para a juventude são muitas vezes marcadas por ações dispersas, escassas e sem claro direcionamento (Sposito; Carrano, 2003). Ciente de sua força transformadora e engajada em processos que possam diminuir as distâncias sociais, quebrar barreiras, fazer sair do estado de alienação e apatia, a juventude produz novos espaços sociais. Para Novaes e Vital (2005), esses espaços não são organizados nos moldes tidos como clássicos ou tradicionais, mas sim em novos espaços participativos e democráticos nos quais possam exercer seu protagonismo e a apresentação de suas demandas à sociedade civil, buscando estabelecer agendas de discussão em prol dos direitos com caminhos para o alcance de sua cidadania. Importante destacar que consideramos a multiplicidade e toda a gama de diferenças sociais, econômicas, culturais que o termo juventude carrega. Como Le Breton, entendemos que “la jeunesse n’est pas une, elle est multiple à l’image de la population adulte” (2002, p. 50). Nesse sentido, ao estudar as rodas, estamos estudando, na realidade, uma parcela da juventude. ARTE COLETIVA, CONFLITO E HIP HOP O entendimento da produção artística como algo que depende de elos cooperativos e de estruturas que se constroem coletivamente deve muito ao pensamento de Becker (1977), que analisa ainda a divisão do trabalho e o estabelecimento das convenções artísticas no âmbito das ações coletivas. Para o autor, o trabalho do artista é realizado, em parte, por outras pessoas ao seu redor, criando-se então uma cadeia composta de profissionais de diversas especialidades. O grupo e seus interesses também determinam o tipo de arte que se produz. Becker ressalta que essas relações de cooperação influenciam a criação artística a partir do estabelecimento de convenções às quais tanto o público quanto os próprios artistas se referem para a compreensão de um trabalho. Entretanto, o desenvolvimento artístico em seus diversos formatos demonstra muitas vezes a quebra ou a contestação dessas convenções, em ocasiões em que o artista prefere se afastar das práticas usuais, mesmo que isso resulte em redução da circulação de sua obra. Becker chama a atenção para a resistência causada por esse tipo de movimento entre os defensores das práticas convencionais, que se sentem ameaçados pela novidade. Segundo o autor, “um ataque a uma convenção torna-se um ataque à estética a ela relacionada. [...] um ataque a uma convenção e a uma estética é também um ataque a uma moralidade” (Becker, 1977, p. 218). Nesse sentido, contrariar uma convenção artística implica um movimento que carrega, por si só, grande potencial de geração de conflitos entre o apego ao status quo e a urgência da renovação. A existência de conflitos, entretanto, embora seja comumente interpretada sob uma perspectiva negativa, é fundamental na resolução de dualismos e na manutenção de Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1025 Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira uma forma de unidade, constituindo-se como força integradora de um grupo social (Simmel, 1983). Simmel trabalha com o entendimento de que « Si toute interaction entre les hommes est une socialisation, alors le conflit, que est l’une des formes de socialisation les plus actives, qu’il est logiquement impossible de réduire à un seul élément, doit absolument être considéré comme une socialisation » (2003, p. 19). Elemento de sociação, o conflito é importante na constituição das sociedades, no seu desenvolvimento e na sua transformação. É na dialética dos interesses em conflito que os grupos sociais se estruturam, se reorganizam e mesmo, buscam a paz. No âmbito dos movimentos sociais, é o conflito que vai possibilitar a mudança de paradigmas, a divisão dos poderes entre os diferentes grupos. No sentido político, a repressão ao conflito resulta em estratégia anti-democrática. Mas não será apenas por meio da política institucionalizada, partidária, que a busca por mudança vai se dar. A arte, as manifestações culturais são espaço que podem gerar conflito. Ou melhor: o conflito encontra nas manifestações culturais espaço para fala. A juventude articulada e participativa dos movimentos de hip hop expressa por meio do rap, da breakdance, de rimas e grafites suas vulnerabilidades sociais: escolarização, acesso a postos de trabalho, remuneração justa, segurança, consumo de bens e serviços culturais (Menezes; Costa, 2013). Por meio do hip hop, a juventude engajada no movimento expressa a contestação historicamente ligada à luta racial, à reivindicação de direitos civis e à melhoria das condições de existência e cidadania na sociedade. SOBRE AS RODAS CULTURAIS DO RIO DE JANEIRO As rodas culturais como forma de manifestação da juventude no espaço urbano não encontram na literatura acadêmica brasileira ou internacional um histórico de suas origens e de suas inspirações, sejam elas artísticas ou conceituais (Ribeiro, 2006; Tavares, 2010; Gonçalves; Carvalho, 2014). Contudo diversos autores que discutem o hip hop no Brasil situam o Rio de Janeiro como cenário principal de realizações que envolvem apresentações artísticas e culturais características do movimento hip hop, destacandose nesse contexto a criação do Circuito Carioca de Música e Poesia (CCRP)4. No CCRP se destaca a participação e a construção de identidades de jovens artistas motivados a expressar sua arte e ativismo em espaços públicos diversos no município do Rio de Janeiro (Gonçalves; Carvalho, 2014). No Rio de Janeiro encontram-se rodas culturais da Zona Norte à Zona Sul, podendo ser citadas as rodas do Méier, de Botafogo, do Recreio e da Lapa (Roda, 2014). O movimento hip hop na cidade apresenta reflexos também em iniciativas de outras cidades do estado. Nesse contexto, outras rodas culturais se apresentam como manifestações do enfrentamento e da contestação da juventude, tanto em relação à sua própria condição cidadã como também no que se refere ao acesso a novos espaços e expressões culturais, não inscritas nos padrões estéticos. 4. O conjunto das rodas culturais de hip hop da cidade do Rio de Janeiro formam o Circuito Carioca de Ritmo e Poesia – CCRP, rede independente de produção cultural, regida pelo Decreto nº 36.201, de 06 de setembro de 2012, em especial no Art. 3º, modificado pelo decreto nº 38.266, de 17 de Janeiro de 2014 (Diário..., 2014). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1026 Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira O município de Petrópolis, na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro, apresentase como relevante cenário para tais manifestações de arte urbana, destacando-se a realização semanal da Roda Cultural do CDC, bem como a Roda Viva, dimensão institucionalizada desse movimento. Discutiremos agora os elementos que caracterizam a Roda do CDC em Petrópolis como manifestação coletiva de arte urbana, conflito e produção cultural da juventude. A RODA VIVA DO CDC Criada em 2007, a Roda Cultural do CDC é um acontecimento semanal de caráter independente que reúne hip hop, rap, grafite, skate e outras vertentes da chamada “cultura de rua” ou das culturas urbanas no Centro Histórico de Petrópolis. Organizado pelo movimento “Nação Hip Hop”, o evento acontece nas noites de quinta-feira, na Praça Visconde de Mauá, conhecida como Praça da Águia, ao lado de dois tradicionais prédios de Petrópolis: o Centro de Cultura Raul de Leoni (CDC) e a Câmara Municipal (Palácio Amarelo), ambos espaços que compõem a agenda turística do município, situando-se próximos ao Museu Imperial, um dos principais atrativos locais. A Roda do CDC agrupa uma diversidade de expressões artísticas que vão desde performances de artistas de rua como músicos, grafiteiros, poetas e malabaristas, com a apresentação de batalhas de rima, versos de improviso ou freestyle, além de músicas de estilo variados, mantendo viva a cultura hip hop na tradicional cidade de Petrópolis (Roda, 2014). Um sábado por mês a Roda se transforma na “Roda Viva”, iniciativa que resultou do apoio da Fundação de Cultura e Turismo ao movimento da Roda Cultural, a partir do ano de 2014. Nessas ocasiões, a estrutura da Roda é incrementada com sonorização e montagem de palco, elementos que não fazem parte da Roda Cultural que acontece às quintas-feiras, sempre de modo acústico e caracterizada pelo improviso. Com programação eclética, a Roda Viva atrai principalmente jovens. Fotografia 1. Batalha de MC’s durante uma edição da Roda Cultural do CDC Fonte: Arquivo do Curso Superior de Tecnologia em Gestão de Turismo – UnED Petrópolis Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1027 Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira A Roda Viva tem lugar durante o período da tarde, um sábado ao mês, fazendo parte do calendário de eventos da cidade. Além das atrações musicais, do grafite, do skate e das batalhas de MC’s, no evento acontece a Biblioteca da Roda Cultural, projeto paralelo à Roda Viva, com o intuito de promover entre os participantes o empréstimo e a troca de livros. O ponto alto da Roda consiste na Batalha “Di Versos”, também chamada de Batalha de MC’s, quando vários competidores recitam versos improvisados em ritmo de rap desafiando seus opositores nas respostas e dividindo o público participante na torcida por cada MC. No intuito de compreender o papel da Roda Viva em termos daquilo que ela representa como arte, movimento social e resistência entre a juventude petropolitana, foram coletados fragmentos de publicações sobre o evento em duas redes sociais (Facebook e Youtube) durante o segundo semestre de 2014. No mesmo período realizouse observação participante de duas edições da Roda Cultural e da Roda Viva. Além disso, foram realizadas duas entrevistas com um dos organizadores do evento, o MC Marcelo Moraes, o “Durangokid”. Em seguida apresentamos nossa análise dos dados coletados - que também são produzidos pela interação entre o pesquisador e os entrevistados. JUVENTUDE, CIDADANIA E CONFLITOS NA RODA VIVA DO CDC Observando a organização da Roda Viva percebem-se facilmente alguns elementos que caracterizam sua realização como evento e, ao mesmo tempo, como movimento de manifestação da arte urbana em Petrópolis. Ao londo dos dias em que acontece a Roda Cultural ou a Roda Viva, é fácil encontrar, na Praça Visconde de Mauá, vários jovens que participam ou organizam o evento. De modo geral, os envolvidos trabalham voluntariamente atendendo às demandas que surgem a cada momento, a exemplo da organização da programação, da recepção de convidados especiais e da orientação aos participantes da Roda. Nesse sentido, a dinâmica de organização da Roda Viva e da Roda Cultural pode ser entendida à luz do pensamento de Becker (1977), à medida em que ali se identificam relações que convergem para a cooperação como elemento integrador e identificador dos atores sociais envolvidos em sua realização. Essa característica fica clara quando se analisam, inclusive, as falas de Durangokid ao se referir à forma de organização da Roda: “[...] a gente queria que cada um contribuísse com [...] seu peso social, com sua experiência, mas para um bem maior, para que a gente conseguisse de repente o que está conseguindo agora”5. A idéia de coletividade está presente ainda nos bordões utilizados nos comentários de organizadores e participantes da Roda nas redes sociais: “Isso aqui é nosso, é por nós, sempre por nós, acima de qualquer parada é por nós. É noiss” (Comentário em rede social). Além da característica de organização coletiva, é importante observar a presença de uma conotação militante em boa parte das falas e dos comentários analisados, o que permite interpreter a Roda Viva como algo que extrapola a simples realização de um evento que reúne a juventude do hip hop em Petrópolis. Nesse sentido, Durangokid ressalta que: 5. Entrevista concedida aos autores em 21 de janeiro de 2015. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1028 Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira Eu acho que a melhor classificação dela seria movimento, porque... ela não é assim, um evento. A gente não tem uma distinção de artista e público e... E aí você... às vezes você vai lá também pra encontrar um amigo sabe, e trocar uma idéia. Mas às vezes você vai lá porque você está querendo trocar expressão né... [...] A gente procura tornar essa coisa... tornar a Roda mais do que só um momento de lazer assim, sacou, mas de reflexão e de expressão. A gente ocupa ali, em frente à Câmara dos Vereadores. Então, a gente montar um monte de cartolina colorida e tal, falando o que a gente pensa, também é uma manifestação política, né?6 Da mesma forma, na página da rede social Facebook, a Roda Cultural é descrita como “movimento cultural que reúne jovens da cidade de Petrópolis e que incentiva a liberdade de expressão, a troca de conhecimento e o incentivo à cultura”. Essa liberdade de expressão é associada, por sua vez, à manifestação de demandas da juventude de Petrópolis, tais como o acesso a espaços públicos de lazer e cidadania. Nesse contexto, o hip hop exerce o papel de agente agregador para a juventude petropolitana proveniente de famílias com baixa renda, a qual não possui espaço, atividade ou política pública instituída para a promoção de atividades artísticas e de lazer. A expressão da juventude ligada à realização da Roda Viva é caracterizada ainda pela oposição aos elementos considerados símbolos artístico-culturais de Petrópolis, a exemplo de eventos tradicionais como a Bauernfest e a Serra Serata. Nesse sentido, os dados analisados demonstram um sentimento de inconformidade para com os padrões estéticos petropolitanos e, por outro lado, as formas inovadoras de interação entre os participantes da Roda: Sou petropolitano e a Bauernfest não me representa! A gente vem aqui para as pessoas se encontrarem, trocarem idéias, trocarem músicas, trocarem arte... tá ligado? Trocarem cultura, se conhecerem, se envolverem. Quantas pessoas nunca ouviram um cara falar uma poesia na vida, sacou? Foram ouvir na Roda, tá ligado? Quantas pessoas nunca viram uma obra de arte na vida foram ver grafite na Roda, desafio na Roda... (Comentários em redes sociais). Ao se oporem aos elementos legitimados pela tradição cultural local, propondo novas formas de manifestação e expressão, os jovens participantes da Roda Viva configuram uma plataforma alternativa de participação política e de construção de cidadania, em conformidade com o que afirmam Castro (2008) e Cogo (2004). Dessa forma, percebe-se que as demandas dessa parcela da juventude já não são mais expressas por meio dos canais tradicionais de manifestação política, mas se comunicam em formatos que são construídos a partir da dinâmica do próprio grupo, seja nas frases expostas nos varais culturais, nas poesias declamadas durante a Roda ou nas letras das músicas de hip hop. A caracterização da Roda Viva como movimento cultural da juventude petropolitana e veículo para sua expressão cultural precisa ser analisada ainda sob o ponto de vista da produção de conflitos, os quais resultam em parte do posicionamento oposicionista dos participantes da Roda. Nesse sentido, resgatando a perspectiva de Peruzzo (2013) 6. Entrevista concedida aos autores em 21 de janeiro de 2015. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1029 Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira seria coerente situar a Roda Viva como expressão de um movimento de confluência de identidades de resistência, considerando-se o sentimento frequentemente presente nas opiniões dos particiantes da Roda: [...] Entre os dois anos de atuação da Roda do CDC já vivemos alguns episódios desagradáveis, porém continuamos sempre na luta e resistência pelos nossos direitos. (Comentário em rede social) Pô, resistência a essa... sei lá, de repente à indústria cultural, ao modelo cultural que nos é imposto, não só pela cidade, pelo colégio, pela televisão, né... assim, o hip hop, ele é contracultura por essência, né... (Durangokid) Entretanto, ao se manifestarem de forma opositora e resistente aos elementos socioculturais típicos da cidade, os jovens da Roda Viva se posicionam no centro de uma série de conflitos e enfrentamentos, sejam eles relacionados ao modo como se comportam e se expressam, como também ligados à ocupação do espaço utilizado para a realização da Roda. Convém destacar que, no caso da Roda de Petrópolis, os atores sociais atuantes no cenário do hip hop não buscaram locais públicos considerados marginais ou de pouca visibilidade, ao contrário do que ocorre em outras localidades. Nesse sentido, a resistência parece estar relacionada também à escolha de um espaço que não só é central na cidade, mas que também é parte da agenda turística local: Então assim, ali no Centro de Cultura, quando a gente começou com a Roda, também a gente foi tomando um pouco mais de consciência de realmente o que viria a ser aquilo e que a gente está não só num... não é só um ponto turístico, mas é um ponto político também... a gente está na frente da Câmara dos Vereadores e na frente do Centro de Cultura (Durangokid). O apoio da Prefeitura Municipal aos organizadores da Roda, após diversos conflitos envolvendo a repressão policial e a hostilidade de moradores próximos à Praça Visconde de Mauá, resultou na consolidação da Roda Viva, que hoje consta no Calendário de Eventos de Petrópolis. Contudo, apesar de legitimada pelo poder público local, a Roda continua não sendo bem aceita pela sociedade civil que, por vezes, insiste em caracterizá-la como apologia às drogas e ao mau comportamento entre os jovens. Nesse contexto, o apoio da Prefeitura pode estar associado a uma forma de manipulação e de controle, como afirma Simmel (1983, p. 133): A oposição certamente se fortalece com essa política; elementos que de outra maneira ficariam afastados são a ela trazidos pelo novo equilíbrio; mas, ao mesmo tempo, a oposição fica assim dentro de certos limites. Ao fortalecê-la, aparentemente de propósito, o governo na verdade a modera, através dessa medida conciliadora. Valendo-nos das idéias de Simmel, é possível considerar o potencial desse conflito como gerador de uma espécie de equilíbrio social. Dessa forma devem-se levar em conta não somente as forças de “resistência” e de “contra-resistência”, como também alguns mecanismos de institucionalização desses elementos, os quais por vezes se configuram como forças de controle. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1030 Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira CONSIDERAÇÕES FINAIS As manifestações culturais contemporâneas representadas pelas rodas culturais servem como espaço para a inclusão dos jovens ligados ao movimento hip hop, que não são ainda bem vistos por alguns segmentos da sociedade civil, promovendo tanto movimentos de contestação e enfrentamento como o desenvolvimento de linguagens para uma nova forma de cidadania e engajamento político. Por meio desta pesquisa, observou-se que a Roda Viva (assim como a Roda Cultural do CDC) não é considerada somente um momento para performances artísticas e estéticas alternativas, mas, sobretudo, um espaço de caráter mais amplo e que objetiva, segundo seus organizadores, a promoção de reflexões e discussões sobre temáticas relacionadas à cidadania e à inserção social dos jovens petropolitanos. As rodas culturais, de maneira geral, convergem para a transformação e abertura de consciência a outras estéticas e expressões culturais diferentes daquelas cristalizadas dentro de um contexto social. Dessa forma, a compreensão da Roda Viva como forma de se manifestar artística e coletivamente, contestando convenções e linguagens instituídas (Becker, 1977) se mostra adequada, uma vez que o movimento é proposto como plataforma para a apresentação de uma série de idéias e práticas artísticas de contracultura. Entretanto, como pondera Becker, um estilo ou proposta estética que ataque as convenções vigentes pode se legitimar após algum tempo. No caso da Roda Viva, esse processo vem se consolidando como um ato de afirmação e posicionamento da juventude local à luz do pensamento e das demandas dos novos movimentos sociais no contexto brasileiro. A realização da Roda Viva representa a legitimação desse posicionamento a partir do apoio da Prefeitura Municipal e da inclusão do evento no calendário oficial da cidade. Contudo os mecanismos de legitimação e reconhecimento da Roda Viva não esgotam os anseios de seus participantes e não abrandam por completo a insatisfação daqueles que se opõem à sua realização. Talvez seja esse o maior mérito da Roda Viva: gerar a necessidade do equilíbrio a partir do conflito, precisando seus participantes aprimorarem suas práticas e demandando, por outro lado, que seus “opositores” também se reinventem a todo momento. Partindo do pressuposto de que em Petrópolis idéias e correntes opostas, em suas condições peculiares, fornecem oportunidades de conflito, unificação e desenvolvimento das divergências, para Simmel (2005), não cabe a qualquer um de nós o papel de julgar, mas somente o de compreender. Para quem quiser entender, a juventude da Roda Viva promete se manter resistente e atuante por um bom tempo. REFERÊNCIAS Becker, H. (1977) Arte como ação coletiva. In: ______. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, p. 205-222. Boal, A. (2003) O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond. Castro, L. R. de. (2008) Participação política e juventude: do mal-estar à responsabilização frente ao destino comum. Revista de Sociologia e Política, v. 16, n. 30, p. 253-268. Cogo, D. (2004) Mídias, identidades culturais e cidadania: sobre cenários e políticas de visibilidade midiática dos movimentos sociais. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO. XXVII. Anais... São Paulo. CD-ROM. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1031 Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira Dagnino, E. (2004) Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In: Mato, D. (Coord.). Políticas de ciudadanía y sociedad civil em tiempos de globalización. Caracas: FACES, Universidad Central de Venezuela, p. 95-110. Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro. (2014) In: Portal da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Disponível em <http://doweb.rio.rj.gov.br/ler_pdf.php?edi_id=2300&page=3>. Acesso em 29 Dez. 2014. Gonçalves, R. A.; Carvalho, F. (2014). O corpo na rua: a linguagem das performances nas Rodas Culturais. ARTEFACTUM - Revista de estudos em Linguagens e Tecnologia, n.1, p. 1-12. Disponível em <http://artefactum.rafrom.com.br/index.php/artefactum/article/ viewFile/342/274>. 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Para o desenvolvimento do trabalho, analisamos letras das músicas de sambistas cariocas, residentes nos morros do Rio de Janeiro e pouco conhecidos do público. Como se trata de um estudo exploratório, serão referenciadas entre 10 composições. Palavras-Chave: Comunidade – Música - Cidade. Abstract: The objective of this article is to analyze the meanings and community senses that appear in some letters of songs composed by Rio samba dancers in the 1960s and 1970s, realizing how this was related to the city of notion in their symbolis. The city is built in the lyrics as a hybrid territory of gestures and meanings , fragmented , becoming what we might term a community - sensitive. To develop the study, we analyzed lyrics of Rio samba dancers, residents in the hills of Rio de Janeiro and little known to the public. Since this is an exploratory study will be referred between 10 compositions. Keywords: Community - Music - City. INTRODUÇÃO PROPÓSITO DO artigo é analisar as significações e sentidos de comunidade que O aparecem em algumas letras de músicas compostas por sambistas cariocas nas décadas de 1960 e 1970, percebendo como esse sentido era relacionado a noção de cidade na sua dimensão simbólica. A cidade nas letras se constrói como um território híbrido de gestos e significações, fragmentada, se transformando no que poderíamos denominar uma comunidade do sensível. Os sentidos de comunidade recorrentes não se constituem apenas como algo físico mas também subjetivo. Sendo comunidade um aspecto da constituição do indivíduo, tendo uma relação vinculativa, ela só existe porque há um Outro. Para a construção de uma comunidade mais do que um território físico é preciso haver um território simbólico, que faz emergir o tempo vivido (Paiva e Sodré, 2013). 1. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ. E-mail: [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1034 Música, território e comunidade Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar Nas letras, ao contrário da ênfase ao isolamento marca distintiva da contemporaneidade, as situações descritas estão sempre em relação a um Outro. Há referências constantes ao modo subjetivo de vida nas cidades, às relações construídas, aos seus ritos. Atravessada pelos aparatos tecnológicos daquela época, as redes de relação mostram uma cidade dividida entre aqueles que vivem com intensidade as transformações e outros que se ressentem delas. A cidade aparece distinguida em dois territórios: um que é atravessado por vinculações (Sodré, 2011) e outro, estranho, atravessado por outras vivências. Refletir sobre comunidade e sua vinculação com o território significa também pensar em novas relações que se constituem na cidade. Caracterizando esse processo, Paiva e Sodré (2013, p. 52) afirmam que o relacionamento do sujeito com a realidade obriga a refletir sobre a tecnologia e seus modos de realização, que fornecem os principais cenários da identidade. Os autores salientam que apesar do consumo excessivo, uma sociedade tecnológica não suporta um cidadão passivo e, em contraponto, discorre sobre uma “sensibilidade cidadã” (2013, pp.54-55). E “uma das formas de contornar a sentença da razão hegemônica sobre o ‘outrodo-eu’ – ou seja, o impessoal, o natural e o sensível, figuras de um cosmos rejeitado pelo logos da modernidade ocidental – é recuperar toda essa dimensão do sensível como algo íntimo da individualidade humana”. É nesse sentido que os autores cogitam a sensibilidade cidadã, proveniente do campo dos afetos ou da dimensão do sensível que, segundo eles, “sempre esteve aí, com os artistas, os poetas, os amantes, os visionários” (p.55). Os poetas do morro com as letras de sua música vão apresentando territórios que se qualificam como comunidade, entrando em lugares proibidos, aguçando a dimensão sensível da sua própria criação, se aproximando e se distanciando do Outro. Aspectos da individualidade caracterizados por afetos e pelo sensível pontilham suas criações, a uma cidade como um lugar praticado (Certeau, 1994). O morro torna-se lugar habitado pelo cotidiano, lugar dos afetos ou da dimensão do sensível (Sodré, 2006), encravado na cidade. Nesse lugar desenvolve-se uma arquitetura peculiar, na qual se destacam gestos de comunicação. Para o desenvolvimento do trabalho, analisaremos letras das músicas de sambistas cariocas, residentes nos morros do Rio de Janeiro e pouco conhecidos do público, que construíram suas produções na década de 1960. Como critério de seleção, evidencia-se as produções que têm como temática central a referencia à cidade do Rio de Janeiro. Como se trata de um estudo exploratório, serão referenciadas entre 10 composições. Duas dimensões que são frequentes nas letras das músicas – os sentimentos expressos e as ações realizadas – no nosso entendimento deixam ver o sentido de comunidade expresso pelo ato humano (as ações) de viver o comum e os sentimentos decorrentes dessa vivencia. A comunidade, nesse sentido, mescla sentimentos e ações na busca de uma partilha do sensível (Sodré, 2006). COMUNIDADE E SENSIBILIDADE CIDADà Tomando como referência a conceituação de Paiva e Sodré (2013) sobre a comunidade é preciso percebê-la como um aspecto da constituição do indivíduo, a partir da relação vinculativa que só existe porque há um Outro. Nessa relação, a individualidade cede a vez para o commus, o comum do Outro. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1035 Música, território e comunidade Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar Percebida dessa forma a definição de comunidade amplia-se, na sua interpelação não apenas com a questão econômica ou social, mas considerando a constituição de cada um e do comum através da relação com o Outro. Portanto, para os autores, mais do que um território físico a existência da comunidade pressupõe um território simbólico, subjetivo, que permite a eclosão da experiência, do tempo vivido. Entretanto, se acrescentarmos nessa percepção a forma como se vive as relações atravessadas pelas transformações tecnológicas que marcam a vida nas cidades desde os anos 1960/70, há que se considerar o valor atribuído às transformações. É nesse sentido que os Paiva e Sodré (2013) enfatizam a construção do isolamento e da tecnologia como marca distintiva de novas ações. No texto, os autores também se referem a questão do consumo. Em relação, ao momento que estamos vendo emergir nas letras das músicas um determinado sentido de comunicação como construção ativa e diálogo em relação ao Outro (expresso muitas vezes pelos sentimentos que afloram nos letras das músicas) a questão do consumo não se faz tão presente, mas já se pode observar uma incipiente transformação tecnológica. Ainda que muitas das letras que consideramos neste trabalho para analisar os atravessamos dos fluxos nos territórios descritos se referiam a um mundo que existia nas décadas de 1960/1970, podemos observar a construção de uma narrativa que apela a valores partilhados num grupo – o dos sambistas – que se caracteriza pelo aspecto gregário e não pelo isolamento. Assim a comunidade que emerge das letras dos sambas, falam de um território visível para poucos e também de um cotidiano que existe pela experiência partilhada. Para Roberto Esposito o conceito de comunidade constitui-se numa outra perspectiva: comunidade “como fenômeno vinculativo humano e não absolutamente como formação histórico-social particular.” (Yamamoto, 2014, p.441). A comunidade que mais do que um território físico, se encontra na subjetividade, no simbólico. É a palavra Communitas que permite a Esposito pensar a comunidade como um vínculo, afetação. (...) Esposito deixa bem claro que a comunidade não é um ente, nem um sujeito coletivo, mas uma relação, o limiar em que se encontram sujeitos individuais. Sua formulação é preciosa: ‘a comunidade não é o entre do ser, mas o ser como entre: numa relação que modela o ser, mas o próprio ser com a relação. (SODRÉ, 2007, p.7) A comunidade entendida aqui não como seu significado tão caro à sociologia, isto é, sua ligação com as aldeias, a família, a escola; mas uma comunidade imaterial, onde será o vínculo o elemento capaz de materializar. Nesse sentido, o pertencimento a mesma comunidade se faz pelos vínculos e afetos que unem os que ali habitam no sentido pleno. Para filósofo Esposito “a comunidade é a exteriorização do interior” e é nesse sentido que se constitui como lugar de partida, já que é local da compartilhamento e do pertencimento. A comunidade é a exteriorização do interior. Por isto – porque oposto à ideia de interiorização, ou, principalmente, de internamento – o entre da comunidade só pode ligar exterioridades ou ‘exílios’, sujeitos debruçados sobre seu próprio fora. Este movimento de Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1036 Música, território e comunidade Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar descentramento é reconhecível na mesma ideia de ‘divisão’- que se reporta conjuntamente a ‘compartilhamento’ e ‘pertencimento’: a comunidade não é nunca um lugar de chegada, mas sempre de partida. É assim a própria partida em direção àquilo que não nos pertence e não poderá nunca nos pertencer (ESPÓSITO, 2007, p. 20). Assim, a questão da vinculação é central na construção do conceito. Estar em comunidade é estar em dívida com esse Outro. E as vinculações ocorrem por essas dívidas. Mas como remarca Muniz Sodré (2001) o vínculo depende fundamentalmente do compromisso com esse Outro. Pertencer a comunidade é, enfim, ser devedor desse Outro. Atos e atitudes que perpassam também o subjetivo. Pertencer a uma comunidade é, portanto, construir em relação ao Outro a permissão de um descentramento, sair do interno e ser levado ao externo através das vinculações, compartilhamentos de ações e sentimentos. É partilhar materialidades e imaterialidades. No quadro a seguir em que procuramos, a partir do desmembramento das letras dos sambas construídos por compositores cariocas, perceber os sentimentos e as ações que estão expressas nesses textos, vemos emergir sempre um outro que está numa dupla relação. Com o sambista, o poeta que chama o Outro para o diálogo, mas ao mesmo tempo particulariza aqueles que, como ele, habitam o mesmo território de afetações. Na primeira coluna, separamos as frases que dizem respeito aos sentimentos possíveis de serem construídos através dos vínculos comunitários existentes nesses territórios encravados nos morros da cidade. Na segunda coluna, destacamos as ações, pois o pressuposto central é que esses vínculos e vinculações são tributários de um desejo de transformação que se expressa por ações possíveis desses sujeitos que vivem uma vida em comum. Tabela 1. Comunidade: sentimentos e ações SENTIMENTOS AÇÕES “E tive uma grande decepção” (Decepção de um autor, Padeirinho) “Desci do morro com meu samba pra cidade” (Decepção de um autor, Padeirinho) “Crianças sem futuro e sem escola Se não der sorte na bola Vai sofrer a vida inteira Morro, o teu samba foi minado Ficou tão sofisticado, já não é tradicional” (Encanto da paisagem, Nelson Sargento) “E assim a região Sofre modificação Fica sendo chamada de a nova aquarela E é aí que o lugar Então passa a se chamar favela”(Favela, Padeirinho) “Cada pobre que passa por ali Só pensa em construir seu lar E quando o primeiro começa Os outros depressa procuram marcar Seu pedacinho de terra pra morar” (Favela, Padeirinho) “Você diz que me conhece Mas que agora se esquece Deve ser de algum lugar” (Rua das casas, Padeirinho) “Estou em casa aos domingos É tão fácil me encontrar” (Rua das casas, Padeirinho) “E tem gente pra cachorro Que já quer se estourar É só você levar um papo com a Etelvina Sobre o caso da Marina pra ver o rolo que dá Ela vai dizer que está por fora E quem está por dentro agora É Vandeia com Naná” (Fofoca no morro, Padeirinho) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1037 Música, território e comunidade Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar SENTIMENTOS AÇÕES “A situação do Escurinho está ruim como quê! O Zé Pretinho diz que quer saber Da mulher que ele carregou Ah meu Deus que horror!” (Situação do Escurinho, Padeirinho) “Pois o bamba espera chegar sua vez Lá no Morro do Pinto A moçada que faz samba o mês inteirinho Está esperando que o tal Escurinho Vá lá novamente fazer o que fez.” (Situação do escurinho, Padeirinho) “Se manda Mané Que daqui a pouco os “homi” vem aí E quem ficar de touca, não escapulir Vai entrar em cana se não se mandar (Não sou eu que vou ficar...)” (Se manda Mané, Padeirinho) “Como será o morro sem os barracões? Como será o Rio sem as tradições? Será que no ano 2000 as escolas de samba irão desfilar?” (Como será o ano 200º, Padeirinho) Fonte: Letras dos sambas Decepção do autor, de Padeirinho; Se manda Mané, de Padeirinho; Situação do Escurinho, de Padeirinho; Como será o ano 2000, de Padeirinho; Rua das Casas, de Padeirinho; Favela, de Paderinho; Fofoca no morro, de Padeirinho e Encanto da Paisagem, de Nelson Sargento. No quadro anterior, os personagens que habitam o morro e se transformam em comunidade pelos vínculos estabelecidos aparecem claramente nominados e são sempre grupos, tribos, pessoas que vivem em relação. Na letra das músicas são personagens fixados na sua pluralidade, tanto numérica como gramatical: são as crianças, a moçada, gente, etc. Na coluna “ações” pode-se observar o desejo de futuro que se expressa claramente em muitas das letras. Mas é um futuro que só poderá ser alcançado com uma ação conjunta. O sonho da casa ou a visão da cidade do futuro depende das ações que são produzidas em relação, de um com o Outro. E mesmo quando o personagem é apresentado na sua individualidade, a ação solidária se faz pelo grupo que avisa, por exemplo, que o Mané deve escapulir, pois os homens (ou seja, a polícia) está prestes a invadir o morro. CIDADE: TERRITÓRIO E COTIDIANO. Em relação às músicas selecionadas observamos também que ao falar do cotidiano da cidade as relações entre os sujeitos se destacam. Aparece também as transformações ocorridas naquele momento no território musical. A construção de palavras e sons dos sambas estavam sendo ultrapassadas por novos ritmos e melodias de um tempo que se transformava. A bossa nova, os ritmos sincopados para dançar, a não mais existência de “samba de ritmo quente” levara “agora tudo a ser diferente” na concepção do autor (Modificado/Padeirinho)2. As três músicas que têm como foco central caracterizar o território musical – destacando as transformações a que o samba estava submetido – fazem também referencia à cidade. Observamos também a supremacia das temáticas relacionadas diretamente 2. “Vejo o samba tão modificado/Que eu também fui obrigado/A fazer modificação/Espero que vocês não me censurem/O que eu quero é que todos procurem/Ver se eu não tenho razão/Já não se fala mais no sincopado/ Desde quando o desafinado/Aqui teve grande aceitação/E até eu também gostei daquilo/Modificando o estilo/ Do meu samba tradição/Gosto de um samba ritmado pra sambar/Também gosto de um sincopado pra dançar/ Mas agora tudo é diferente/Já não se fala mais naquele samba de ritmo quente” (“Modificado”, Padeirinho). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1038 Música, território e comunidade Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar ao cotidiano. Percorrendo as letras é possível localizar precisamente lugares existentes e significados pelas imagens construídas pelo compositor. Em Itacuruça ficava o terreiro; no Morro do Pinto e no Morro do Macaco as brigas presenciadas e no Morro da Mangueira, a música. Na tendinha do Adelino o lugar da pausa necessária para a atividade da fofoca. A cidade vista nas letras desses sambas se constrói como território híbrido de gestos e significações, fragmentada, se transformando no que poderíamos denominar uma comunidade do sensível. São as ações dos sujeitos vividas no cotidiano que vão significando o território e dando a ele outra dimensão. Do Morro da Mangueira somos transportados para o Morro do Macaco, para o Morro do Pinto ou para o Terreiro em Itacuruça3. Não há próximo, nem distante, são lugares intercambiáveis e que são significados pelos gestos que os produzem sempre em relação a um Outro. Os sentidos de comunidade se constitui não apenas como algo físico mas também como subjetivo, como já dissemos. Ainda que a questão das transformações tecnológicas produzindo mudanças na construção do vínculo da comunidade esteja presente nas letras, o isolamento destacado por Paiva e Sodré (2013) também aqui não se faz presente por razões históricas da constituição desses lugares de pertencimento. Da mesma forma é a época (anos 1960) que produz o silenciamento em relação ao consumo. As situações são descritas sempre em relação a um Outro, há referencias constantes ao modo subjetivo de vida na cidade, às relações construídas, aos seus ritos. Atravessada pelos aparatos tecnológicos daquele momento – o rádio e a televisão – as redes de relação mostram uma cidade dividida entre aqueles que vivem com intensidade essas transformações e outros que se recentem delas. Nas letras se percebe que o autor divide a cidade em dois territórios distintos: um que é atravessado por vinculações (Sodré, 2011) e outro, estranho, atravessado por outras vivências. Desci do morro com meu samba pra cidade E tive uma grande decepção No meio da alta sociedade Desfizeram da minha composição Infelizmente quem compõe no morro Não tem direito a gravação (Sem razão) Enquanto o compositor do morro Pede socorro E não encontra proteção Existem os que vivem no apogeu As custas de melodias de autores como eu (“Decepção de um autor.” Padeirinho) 3. “Me chamaram compadre /Pra ir a um terreiro /Em Itacuruçá /Veja o senhor o que eu fui arrumar / Mas tem uma coisa: /Eu nunca mais vou lá /Em Itacuruçá /Andei a noite inteira /Comendo poeira /Foi de amargar /Só de madrugada é que eu cheguei lá /No tal terreiro de Itacuruçá /Ao chegar no terreiro /O tal de cambono mandou me avisar /Eu sei que o senhor tem que ir no congá /Pedir Preto Velho pra lhe consultar /E dizer saravá /Justamente na hora /Em que eu estava salvando /A polícia chegou /Prendeu todo mundo /Eu fui logo o primeiro /Só o macumbeiro /Foi quem não entrou” (“Terreiro de Itacuruça”, Padeirinho). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1039 Música, território e comunidade Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar Observando a repetição das situações cotidianas dos morros nas letras dos sambas, Padeirinho vai construindo uma espécie de território em rede – rede de vinculações – que se instituem como comunidades. As situações se repetem, não importam os lugares físicos, se na Mangueira, no Pinto ou no Macaco. São atos vinculativos que produzem um sentido de comunidade que extrapola o território físico. O poeta do morro com as letras de sua música vai percorrendo a cidade, entrando em lugares proibidos, aguçando a dimensão sensível da sua própria criação, se aproximando e se distanciando do Outro. Aspectos da individualidade caracterizados por afetos e pelo sensível pontilham suas criações, construindo uma caracterização da cidade como lugar praticado (Certeau, 1994). O morro torna-se lugar habitado pelo cotidiano, lugar dos afetos ou da dimensão do sensível (Sodré, 2006), que encravado na cidade, nela não é situado pelo compositor. Nesse lugar desenvolve-se uma arquitetura peculiar, na qual se destacam gestos de comunicação. Na letra do samba Favela, é a habitação do espaço que torna possível a sua nomeação. Numa vasta extensão Onde não há plantação Nem ninguém morando lá Cada pobre que passa por ali Só pensa em construir seu lar E quando o primeiro começa Os outros depressa procuram marcar Seu pedacinho de terra pra morar E assim a região Sofre modificação Fica sendo chamada de a nova aquarela E é aí que o lugar Então passa a se chamar favela (“Favela”, Padeirinho) Reconhecendo as limitações do lugar, percebendo as relações complexas que ai se desenvolvem e evidenciando as práticas cotidianas de um local sem demarcações normativas fixas (os números das casas, por exemplo), vai qualificando o território a partir dos vínculos que estabelece com o lugar habitado. Interessante Você diz que me conhece Mas que agora se esquece Deve ser de algum lugar (vê se dá pra lembrar) O meu nome é aquele Que você escuta Por aí chamar Moro na rua das casas No lado oposto Do número par Já lhe dei meu endereço Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1040 Música, território e comunidade Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar Quando quiser apareça Anota bem, meu telefone Por favor não se esqueça Estou em casa aos domingos É tão fácil me encontrar Moro na rua das casas No lado oposto Do número par (“Rua das casas”, Padeirinho) Na letra do samba “Rua das casas” a construção do espaço físico – no caso a casa onde o compositor mora – como emocional e afetivo fica patente na tentativa de localização do lugar a partir de índices de subjetividades, no caso, o morro e a rua como local de pertencimento. A rua é ao mesmo tempo uma conjunção física, concreta, mas é também um lugar humano e que revela ao mesmo tempo a “alma da cidade”. O autor mora na “rua das casas”, “no lado oposto do número par”. As localizações espaciais são fluidas, imprecisas, revelando um lugar subjetivo. O que as letras de Padeirinho mostram é mais do que a vida da cidade: são as vinculações que permitem o diálogo com um Outro. A fofoca, os amantes, o terreiro, os lugares de rumores, tudo está lá, pronto para ser resignificado. Mostrando lugares de encontro, as letras revelam espaços repletos de vida e de formas de olhar. Mais uma fofoca lá no morro E tem gente pra cachorro Que já quer se estourar É só você levar um papo com a Etelvina Sobre o caso da Marina pra ver o rolo que dá Ela vai dizer que está por fora E quem está por dentro agora É Vandeia com Naná Mas é tudo papo da Etelvina É que o caso da Marina tem um para acertar Sei que na tendinha do Adelino Quem chegou com “Baratino” Foi a Rosa e a Neném Mas o que não está dando pra entender É que nesse fuzuê o seu nome figura também Pergunte a Neném (“Fofoca no morro”, Padeirinho) A letra da música Fofoca no morro talvez seja a que melhor materialize a definição de comunidade não a partir dos tradicionais laços de parentesco, consanguíneos, territoriais ou mesmo legais, como remarca Paiva (2012, p. 70). Aquí fica evidente que o que transforma os personagens citados e os que não aparecem explícitamente na música são as vinculações afetivas que os amálgama num territorio sensivel e de diálogo permanente com um Outro que vive a relação em relação. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1041 Música, território e comunidade Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar CONSIDERAÇÕES FINAIS Nas letras do samba de Padeirinho observamos que não é somente a profundidade do passado, há uma ideia de antecipar a cidade. No samba “como será o ano 2000”, o compositor alude a uma ideia de futuro, uma preocupação com os tempos que virão. Inquietação sobre a manutenção das tradições (“Como será o Rio sem as tradições?/Será que no ano 2000 as escolas de samba irão desfilar?/será que haverá carnaval?/Será?”). Com o morro, território físico, único lugar que aparece demarcado nessa perspectiva de futuro (“Como será o morro sem barracões?”). A partir dos sambas percorremos a cidade do seu passado até o futuro. Visitando um território mais simbólico, emotivo que físico. Nos aprofundando na cidade, no cotidiano desse sambista que nos apresentou o Rio de Janeiro a partir da sua sensibilidade cidadã. Mas sobretudo procuramos refletir sobre “o ser-em-comum da comunidade como partilha de realizações e não como mera substância”. Não é o território dos morros, não é o território da música, não é o patilhamento de laços consanguíneos que os transformam numa comunidade, mas as trocas (SODRÉ, 2002, p. 224) que se evidenciam nos textos que fixam uma imagem simbólica de si mesmo num passado em direção ao futuro REFERÊNCIAS BARBOSA, Juliana dos Santos. Padeirinho da Mangueira: a estética da linguagem do morro. Cadernos do CNLF, Vol. XIX, n. 4, t. 4, 2010, p. 3132-3142. BRUM, Mario Sergio. Cidade Alta: História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em História Social/PPGH-UFF, Niterói, 2011. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. DURÁN, María-Ángeles. La ciudad compartida. Conocimiento, afecto y uso. Santiago: Ediciones Sur, 2008. EPÓSITO, ROBERTO. Niilismo e comunidade. 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As estratégias sensíveis. Afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006. SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Petrópolis: Vozes, 2011. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1042 Música, território e comunidade Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar SODRÉ, Muniz. Prefácio. In: PAIVA, Raquel (org.) O retorno da comunidade: os novos caminhos do social. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007: pp.7-12. SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis. Afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006. YAMAMOTO, Eduardo Yuji. Comunidade é periferia? In: Trajectos. Revista de Comunicação, cultura e educação. Vol. 2, n. 1, outubro de 2013, Lisboa, pp. 113-122. YAMAMOTO, Eduardo Yuji. O conceito de comunidade na Comuncação. In: FAMECOS. REVISTA do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Vol.21, n.2, maio-agosto 2014. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1043 A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil Communication in radio and web radio as therapeutic device for people in mental treatment in Brazil R eginaldo Moreir a 1 Resumo: O artigo apresenta o conceito da comunicação terapeutizante. O termo é fruto da investigação da aplicabilidade da comunicação em rádio e web rádio, vivenciadas pelos usuários da saúde mental, participantes do Projeto Maluco Beleza, localizado no Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, no Brasil, na cidade de Campinas, interior do Estado de São Paulo. A experiência tem se revelado uma importante ferramenta de (re)significação de sentido de vida para os portadores de sofrimento mental. Por meio da participação, os usuários se capacitam para a comunicação, para expressarem suas ideias. Esse processo os incentiva a retomarem as redes de conexão que estavam esquecidas ou não acionadas, e restabelecerem novos meios de convívio social, estimulando e desenvolvendo a cidadania. O objetivo da pesquisa foi averiguar a comunicação em rádio e web rádio como direito e possibilidade alternativa e complementar aos cuidados da saúde mental, para a construção de uma vida digna e cidadã. Os resultados apresentados são diversos e provocam o deslocamento do estigma das pessoas participantes, que demonstram uma nova postura diante dos desafios. Percebeuse no projeto um compromisso com a verdade, que faça sentido na vida dos participantes envolvidos, que transformam suas trajetórias. Palavras-Chave: Comunicação terapeutizante. Saúde Mental. Rádio. Web Rádio. Cândido Ferreira. Abstract: The paper presents the concept of communication therapeutic. The term is the result of communication applicability of research in radio and web radio, experienced by users of mental health, participants Maluco Beleza Project located in Dr. Cândido Ferreira Health Service, in Brazil, in the city of Campinas, of São Paulo State. The experience has become an important tool of (re) signification of meaning of life for sufferers of mental disorders. Through participation, users are empowered to communicate, to express their ideas. This process encourages them to resume the connection networks that were forgotten or not taken, and restore new means of social interaction, stimulating and developing citizenship. The aim of the research was to determine the radio communication and web radio as a right and complementary and alternative 1. Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/ USP); Docente do Departamento de Comunicação, da Universidade Estadual de Londrina (UEL); email: [email protected]. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1044 A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil Reginaldo Moreira possibility to mental health care, to build a decent life and citizen. The results are different and cause the stigma of displacement of people participating, which demonstrate a new approach to the challenges. It was noticed in the project a commitment to the truth, that makes sense in the lives of participants involved, that transform their trajectories. Keywords: Communication Therapeutic. Mental helth. Radio.Web radio. Cândido Ferreira. E STE ARTIGO é parte da tese de doutorado “Projeto Maluco Beleza: a comunicação como dispositivo terapeutizante de (re)significação de sentido de vida, no contexto da reforma psiquiátrica”, por mim defendida no ano de 2011, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)2. A comunicação em rádio e web rádio tem se apresentado aos usuários3 do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira4, instituição psiquiátrica em transformação, localizada na cidade de Campinas, interior de São Paulo. A aplicabilidade de comunicação nasceu do trabalho de assessoria de imprensa desenvolvido na entidade, num projeto mais amplo de comunicação e cultura, denominado Maluco Beleza. Fazer rádio e web rádio em saúde mental, da forma como foi pensado o projeto, é uma tecnologia distinta de comunicação alternativa, pois essa comunicação está aplicada no campo da saúde mental, cujo objetivo principal é a promoção da saúde. No ano de 2002, nasce a proposta de parceria entre a instituição e a Rádio Educativa Municipal, que nos ofereceu espaço mensal para a realização de um programa de rádio protagonizado pelos usuários. Um projeto de uma revista eletrônica foi idealizado, com apresentação de diversos quadros, em que os usuários do serviço de saúde pudessem expressar seus pontos de vista para a sociedade, seus talentos, suas opiniões. Em maio do ano daquele ano foi ao ar o primeiro programa de rádio, denominado Maluco Beleza, o qual continua a ser produzido e veiculado até o momento, ou seja, há treze anos. Com o passar dos anos, os participantes do projeto sentiram a necessidade de uma emissora própria, na qual pudessem expressar seus pensamentos e formatar seus programas de forma mais diversa e singular, tanto do ponto de vista estético, como do pronto de vista do conteúdo, sem que os mesmos sofressem interferência da linha editorial de uma emissora veiculadora. Dessa forma, é inaugurada no mês de setembro, no ano de 2010, a Rádio online Maluco Beleza. 2. A tese pode ser encontrada na Biblioteca Digital da USP, pelo endereço: http://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis/27/27154/tde-23092011-203323/pt-br.php 3. O termo usuário de saúde mental substitui a palavra “louco”, doente mental, paciente psiquiátrico, ou qualquer outra terminologia. Esse novo termo de referenciação é uma exigência do Movimento da Luta Antimanicomial e dos demais participantes do II Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, ocorrido em novembro de 1995, em Belo Horizonte/MG. Apesar de atualmente existirem várias críticas com relação a essa denominação, ainda não há consenso para uma nova nomenclatura. 4. O Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira é o primeiro hospital psiquiátrico filantrópico do Estado de São Paulo. Sua fundação se dá no ano de 1924, como solução ao abandono que se encontravam as pessoas trancafiadas nos porões da Cadeia Pública de Campinas, desde que os ditos loucos e desocupados foram recolhidos, por ocasião da prática higienista adotada na implementação da República Federativa do Brasil, num período em que os negros recém libertos da escravidão ocupavam as ruas à procura de trabalho. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1045 A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil Reginaldo Moreira O presente artigo mostra a produção singular da comunicação em rádio pelas pessoas em tratamento e os caminhos que os levaram à criação de uma web emissora, revelando um novo aspecto à aplicabilidade da comunicação, aqui conceituada como terapeutizante. Devido à complexidade da pesquisa, tanto pelo encontro teórico entre a área da comunicação e da saúde, quanto pelas transformações da vida dos participantes e as novas conexões que se fizeram a partir desses processos comunicacionais alternativos; encontrou na metodologia cartográfica, de Deleuze e Guattari (2005), uma visão mais integradora, teórica-pragmático-poética (Rolnik, 2007), que desse conta das subjetividades da nova estética do viver. A comunicação em rádio, utilizada pelo Projeto Maluco Beleza, revelou-se uma importante forma de cuidado complementar alternativo no campo da saúde mental. PRODUÇÃO COLETIVA DO PROGRAMA DE RÁDIO VEICULADO NA EMISSORA EDUCATIVA Todo o processo de criação do programa de rádio é construído de maneira coletiva, a partir da apropriação dos significados dos saberes técnicos sobre rádio e jornalismo, pelos participantes. Além da apropriação cotidiana, algumas oficinas são oferecidas, para que os participantes possam criar novos repertórios para encararem os desafios inerentes à atividade de radialista. A forma participativa vem da comunicação popular e comunitária, que tem a democracia como norteador para resolução dos impasses. A cada situação de conflito ou escolha, o grupo se reúne e vota nas propostas, para que as decisões sejam as mais próximas do desejo da maioria. A participação popular implica uma decisão política e o emprego de metodologias operacionais que o favoreçam. Em matéria de comunicação, não basta incentivar o envolvimento. É necessário criar canais para tanto e mantê-los desobstruídos. Isso tem a ver com objetivos estratégicos, ou seja, aonde se quer chegar. (Peruzzo, 1998, p. 276) A participação, de forma efetiva e cotidiana, criou uma dinâmica de escolhas a partir de proposições e votos, em que os participantes argumentam e escolhem, colocando em prática o processo democrático no projeto. As decisões nem sempre agradam a todos; na falta de consenso, as escolhas por meio do voto se fazem eficazes, colocando em pauta a aceitação do desejo da maioria. No início era mais traumático para os participantes que não tinham seu desejo contemplado num momento de impasse, mas com a prática, hoje há uma maior aceitação e respeito sobre as decisões tomadas diante do desejo da maioria. Muitos instrumentos podem ser utilizados. Aqui vamos os prender aos meios de comunicação popular ou comunitários, que requerem uma metodologia condizente com a práxis da comunidade enquanto sujeito de um projeto emancipatório. (Peruzzo, 1998, p. 288) Enquanto alguns participantes não manifestam o desejo por produzir algum quadro do programa, outros gostariam de fazer o programa sozinhos. Há sempre a necessidade de lembrá-los de que todos devem participar da forma mais igualitária possível. Assim, é conduzida a produção das pautas, no tocante à distribuição das tarefas: para os que têm muita ânsia de participação, o limite; aos que se mantêm pacatos, o estímulo. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1046 A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil Reginaldo Moreira O “FAZER COM” É MUITO MAIS COMPLEXO E RICO QUE O “FAZER PARA” E O “FAZER POR” No início do projeto, os profissionais do projeto é quem elaboravam os textos e os roteiros para os usuários, para que fossem gravados pelos loucutores, como se autodenominam, pois ainda não era sabido se os participantes apresentariam capacitação suficiente para essa elaboração. Essa participação reduzida nos processo de criação de conteúdo, muitas vezes tornavam os usuários reprodutores de pautas e textos elaborados por profissionais de comunicação da instituição de saúde. Foi a partir da participação do III Fórum Social Mundial, em 2003, após a exibição do filme “Uma onda no ar”, de Helvécio Ratton, que retrata a trajetória da Rádio Favela, de Belo Horizonte/MG, que se teve a percepção do quanto se poderia delegar a produção do programa nas mãos dos participantes. A partir de então, coordenadores e usuários ficaram convencidos de que o programa poderia ficar cada vez mais à cargo dos usuários, com pautas pesquisadas e desenvolvidas por eles, com menor interferência, ou nenhuma, dos profissionais. Assim a experiência tem sido conduzida e tem funcionado muito bem. Com o tempo, deu-se conta de que o grande desafio era o já indicado por Paulo Freire, de se “fazer com”, ao invés de se “fazer por” ou “fazer para”. O “fazer com” muda todo sentido de produção do programa, aumentando os desafios, e estimulando a superá-los. “Fazer com” é um processo muito mais demorado, muito mais complexo e transversal, o que tem dado sentido ao projeto, pois valoriza o saber do outro, a sua alteridade, colocando, também, a contribuição dos profissionais envolvidos, numa via de mão dupla, de forma horizontalizada. O “fazer com” exige um exercício contínuo de usuários e profissionais envolvidos com o projeto, no sentido que um contribua com o outro, para a elaboração de um conteúdo coletivo mais ampliado e democrático. PONTO DE CULTURA Desde 2008, o projeto Maluco Beleza foi reconhecido pelo Ministério da Cultura como um dos Pontos de Cultura do Brasil. A iniciativa do governo federal foi de revelar manifestações culturais produzidas nas comunidades brasileiras, revelando a diversidade do povo deste país e investindo na continuidade dos projetos. O projeto foi um dos escolhidos para receber os investimentos federais. Desde então, as ações de rádio se ampliaram. Além de vários cursos de capacitação destinados aos usuários da saúde mental e da comunidade, um estúdio e uma sala de inclusão digital foram instalados nas dependências da instituição. A partir de então, o projeto abriu-se para a comunidade, o que possibilitou novas formas de convívio. O Ponto de Cultura Maluco Beleza já ofereceu várias oficinas de capacitação aos participantes, usuários da saúde mental e pessoas da comunidade. Todos os cursos são gratuitos, o que acabou atraindo diversas pessoas da comunidade para o projeto. Essa abertura para outras pessoas da comunidade enriqueceu a diversidade, pois deixou de ser voltado especificamente para usuários da saúde mental. Tal integração tem uma via de mão dupla que enriquece tanto as pessoas que fazem tratamento mental e outras pessoas da comunidade. Hoje o projeto não exige que se possua um diagnóstico psiquiátrico para participação, anteriormente. O diagnóstico aqui perdeu definitivamente Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1047 A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil Reginaldo Moreira a sua função primeira de categorizar as pessoas. A pesquisa junto aos participantes não apresentou os seus diagnósticos, uma vez que no Maluco Beleza o foco não está na doença, como na maioria dos modos de cuidar ainda percebidos nos tratamentos dos serviços de saúde. A WEB RÁDIO COMO NOVA POSSIBILIDADE TECNOLÓGICA DE DEMOCRATIZAÇÃO DOS MEIOS Dia 1 de setembro de 2010, a Rádio online Maluco Beleza foi inaugurada no Ponto de Cultura. O sonho de possuir a própria estação de rádio deu-se por meio da web. O projeto, inédito no Brasil, reuniu cerca de 28 programas realizados por usuários da saúde mental, familiares, funcionários, outros projetos sociais e pessoas da comunidade. A rádio fica 24 horas no ar pelo site www.radiomalucobeleza.org.br. A inauguração da rádio online foi um momento histórico para a Saúde Mental, marcando uma importante conquista dos usuários. Os programas da rádio web não são diretamente ligados à saúde mental, mas estão, impreterivelmente, relacionados à promoção dos direitos humanos e da cidadania. A rádio online é diversa, contemplando programas feitos por idosos, crianças, crianças em situação de rua, artistas populares, profissionais e usuários da saúde mental. Os programas abordam os mais variados temas e são voltados a diferentes públicos. O Programa Maluco Beleza, inspirador de todo projeto, também faz parte da grade de programação e é reapresentado em diversos horários. A rádio web não interferiu e nem interrompeu a parceria com a Rádio Educativa da cidade. A produção mensal dos programas continua a ser realizada. O programa de rádio Maluco Beleza continua a ser produzido e veiculado, sendo o projeto inspirador de outras ações que surgiram por meio dele. Os participantes do programa desejam que todas as pessoas de seus bairros tenham a possibilidade de ouvir suas mensagens pela Rádio Educativa, que é mais acessível, uma vez que a acessibilidade a computadores ainda é restrita. Se por um lado a acessibilidade à Internet ainda é pequena no país, por outro, a criação de uma rádio online possibilitou que as mensagens extrapolassem as barreiras da cidade de Campinas, inaugurando uma nova fase de veiculação dos programas, que atinjam outros lugares distantes e inesperados, que possibilitem outras trocas. A inauguração da rádio online foi um momento histórico para a Saúde Mental da cidade, marcando uma importante conquista no cenário nacional. Quem poderia imaginar há algum tempo que uma instituição psiquiátrica pudesse transformar-se de tal forma, que as pessoas em tratamento no serviço conseguissem protagonizar a inauguração de uma emissora de rádio? A Maluco Beleza online visa a anunciar boas notícias e ser um canal de comunicação dos direitos do homem e das possibilidades de transformações, criando novos modelos de comunicação em rádio para toda a sociedade. LOUCU-TORES: DOIS SIGNIFICADOS NUMA MESMA IDENTIDADE No programa Maluco Beleza, observa-se, por exemplo, que alguns participantes se autoreferenciam como loucutores. Nota-se um direcionamento de discurso do “louco”, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1048 A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil Reginaldo Moreira historicamente estigmatizado por sua alienação, periculosidade e incapacidade, para uma busca de outra identidade. Associado à referência de nominação daquilo que por anos foi a sua única característica - o louco - para a referencialidade de - locutor - um profissional de rádio. Assim, nota-se que a associação do termo louco com o locutor (e seus significados) gera uma terceira denominação: o loucutor. O loucutor traz uma soma de significados que pode representar uma busca de identidade profissional, que permita ao usuário colocar-se socialmente num outro papel, que não o de usuário da saúde mental, de paciente, ou mais estigmatizado ainda, o de louco. A autodenominação por parte dos participantes do Maluco Beleza brinca com o próprio sofrimento mental, com o próprio estigma. O projeto pesquisado transforma o discurso de vítima e sofredor, muitas vezes ainda encontrado como únicos elementos de discurso da pessoa portadora de sofrimento mental. No projeto, a lamentação acaba dando lugar ao movimento de busca por um novo discurso, pois o participante encontra espaço adequado e qualificado para essa proposta de transformação de postura diante da vida. O usuário participante do projeto possui um diagnóstico e, na realidade, na maioria das vezes, o tem. Porém, ele também possui seu potencial como comunicador, como locutor de um programa de rádio, veiculado por emissoras com abrangência municipal, pela rádio educativa, e mundial, pela Internet. O termo loucutor indica a busca por uma nova referencialidade do discurso de vítima, sofredor, morador de um manicômio, para a transformação de um discurso numa nova ordem, num outro espaço: de louco, a locutor; de morador de manicômio, a locutor de uma rádio; de um sujeito, que erroneamente já foi visto somente como portador de um diagnóstico mental, para um sujeito que pode transpor a barreira do diagnóstico e ter fazeres profissionais que extrapolem os estigmas. Esse movimento, que a própria denominação traz em si - loucutor - parece indicar as possibilidades de (re)significação de trajetória de vida possíveis que o fazer do radialista possibilita. O termo traz em si não a negação de sua condição de portador de sofrimento mental, mas o reconhecimento desse lugar, porém não estagnado no próprio sofrimento. Observa-se que a associação do “louco” com o “locutor” é que torna possível o projeto de comunicação em saúde mental, fazendo-se viáveis os programas produzidos. É provável que, sem o diagnóstico da doença mental essas pessoas talvez não estivessem atuando num programa de rádio. No projeto pesquisado, o diagnóstico traz a possibilidade do dispositivo da comunicação. A COMUNICAÇÃO COMO DISPOSITIVO TERAPEUTIZANTE No trabalho desenvolvido pelo Projeto Maluco Beleza, a comunicação é a principal ferramenta, o meio, para que pessoas que estão em tratamento mental, e recentemente, também pessoas da comunidade, possam produzir e expressar seus pensamentos por meio do rádio e da web rádio. Para a construção desse conceito proposto por este estudo, investigou-se a comunicação aplicada no projeto. O referencial teórico utilizado para a construção desse conceito, advém do livro Saúde: a cartografia do trabalho vivo, de autoria de Emerson Elias Merhy, 2002, Hucitec, e no texto Da repetição à diferença: construindo sentidos com o outro no mundo do cuidado, de autoria de Emerson Elias Merhy, Laura Camargo Macruz Feuerwerker e Maria Paula Cerqueira. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1049 A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil Reginaldo Moreira Toda a comunicação aplicada no trabalho de produção dos programas de rádio, tem como objetivo final a realização dos programas de rádio, seja para veiculação na Rádio Educativa FM, seja para veiculação na Rádio Maluco Beleza online. Esse objetivo, demarcado pela ação, prevê um produto. Também esse ato produtivo, aplicado no sentido de chegar a um produto final, faz da ação um produto tecnológico. O projeto Maluco Beleza usa o emprego da comunicação, usa o fazer rádio e web rádio, no contexto da saúde mental, porque possui um efeito para a geração de saúde, ligado ao lugar onde é produzido o ato. A comunicação contribui para o cuidado em saúde mental, para o seu tratamento. O programa e todas as ações produzidas pelo projeto Maluco Beleza são meios e não fim, pois o produto que interessa para o projeto não é um programa de rádio desenvolvido com o rigor das exigências técnicas de um outro produto jornalístico ou radiofônico de mercado. Ao contrário, o foco principal desse ato produtivo da comunicação em saúde é o usuário participante, não o programa. Os saberes técnicos aplicados na realização dos programas, desde a pauta, passando pela pesquisa, a produção, a escolha das músicas, até sua gravação e edição, respeitam as necessidades e as capacidades específicas de cada usuário participante. No projeto, ele acaba descobrindo a forma mais adequada para expressar suas ideias, seus talentos, sua sabedoria, suas opiniões, por meio do seu instrumento disponível na comunicação em rádio. O jeito peculiar como cada um estrutura seu pensamento, em busca de expressá-lo, é respeitado. A regra entre os participantes é não inibir, ou diminuir, ou não considerar a expressão do outro, mas ao contrário, acolhê-la e qualificá-la da melhor forma possível, uma vez que a consideramos única, sendo o valor de cada contribuição essencial para a realização do todo, pois enriquece o conjunto simbólico heterogêneo formado em cada programa finalizado. A edição dos programas busca manter o resultado mais próximo possível das gravações captadas, para que a expressão do loucutor não se perca pulverizada pela tecnologia, que pode equalizar, recortar, interferir de tal modo, que a comunicação ali produzida, interferiria na perda da sua originalidade, que denota o território singular de produção e subjetividades: o campo da saúde mental . A grande preocupação com uma plástica perfeita para os padrões radiofônicos poderia incidir num grave erro da perda da originalidade da forma e do conteúdo ali expressados, o que poderia levar o próprio loucutor a não se reconhecer com aquilo que produziu, ao ouvir o programa editado. A busca feita pelo Maluco Beleza é de reconhecimento e identidade, por meio da valorização da expressão singular de cada participante, que, ao apresentar os quadros do programa, acaba por compor um mosaico revelador de uma identidade coletiva, plural, que se revela a cada programa, cada um de uma forma diferenciada, pois os muitos “eus” (Rolnik, 2007) que habitam em cada um dos usuários participantes também estão em mutação e podem revelar as mais diversas facetas, em momentos distintos. O projeto Maluco Beleza é uma experiência de um modo de ação de comunicação aplicada à saúde mental por meio do uso do rádio como canal de expressão de conteúdos de usuários da saúde mental, numa emissora educativa e pela rádio online, sob frequência modulada e pela rede mundial de computadores, que veiculam as mensagens produzidas por meio de ondas eletromagnéticas, pela web, utilizando-se dos aparatos tecnológicos necessários. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1050 A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil Reginaldo Moreira Esse processo de produção do programa captura saberes acumulados pelo mundo, por meio das tecnologias e técnicas radiofônicas e jornalísticas, devora-os, numa dinâmica antropofágica, como aponta Deleuze e Guatarri (1995). Ao devorar esses saberes, emprega outros advindos do campo da saúde mental, tornando-se um novo meio de aplicabilidade da comunicação como alternativa para a criação de novos sentidos de vida. Percebemos que o processo de produção do programa Maluco Beleza se utiliza de técnicas e tecnologias inerentes ao sistema de radiodifusão e à comunicação, no sentido de dar formato para a expressão do pensamento produzido pelos participantes, transformando o conteúdo numa radiorrevista mensal e conteúdos adequados para veiculação tanto na emissora educativa, quanto na web rádio. A tecnologia empregada prioriza a expressão dos usuários participantes, pois para cada fala há uma escuta que considera e qualifica o que o outro traz para a cena. O projeto funciona de maneira horizontal, permitindo que o participante protagonize a produção dos programas, a partir dos seus desejos. Esse projeto de comunicação no campo da saúde mental, em que o ato produtivo da comunicação em saúde tem como produto o usuário participante, pode ser considerado terapêutico ou terapeutizante? Em primeiro lugar, compreendamos que a ação terapêutica pressupõe um diagnóstico. Todas as ações advindas de um projeto terapêutico visam a eliminar os sintomas de um determinado diagnóstico. Enquanto que o que consideramos terapeutizante possui um efeito terapêutico, mas como efeito secundário, pois ele não é indicado, prescrito para isso. Uma das principais participantes cartografada na pesquisa, por exemplo, participa do projeto Maluco Beleza desde o ano de 2002. Inseriu-se no projeto sem prescrição terapêutica, sem indicação médica. Veio participar do projeto porque achou interessante, porque tinha talentos para comunicação e viu no projeto um meio de expressá-los. Depois desses anos de participação no projeto, o Maluco Beleza possui um efeito valorativo para a sua vida. Em julho e janeiro, quando o projeto faz uma pausa, ela diz, por exemplo, vou tirar férias do Maluco Beleza. Tirar férias indica a característica teraupeutizante do projeto. Nenhum usuário participante diz: vou tirar férias dos medicamentos. Impossível. Os medicamentos estão prescritos de acordo com o seu diagnóstico e exigem uso continuado. Mas com relação ao Projeto Maluco Beleza eles podem tirar férias, pois é um modo de viver, e não um projeto terapêutico. O projeto nasceu dentro do contexto de saúde mental, da reforma psiquiátrica, mas nem por isso é considerado terapêutico. O terapêutico é uma ação tecnológica específica que visa a um tratamento, a uma cura. Apesar disso, podemos encontrar várias ações terapêuticas que não são terapeutizantes, como, historicamente, o uso da camisa de força, do eletrochoque; ou na atualidade, uma ação terapêutica que indique uma mediação que não funcione adequadamente. Por outro lado, existem muitas ações terapeutizantes, sem que sejam terapêuticas, como um passeio, uma ida ao cinema, o dançar num baile, entre outros. Essas ações não foram prescritas, mas podem fazer um bem muito grande na vida dos usuários. O Maluco Beleza pode ser terapêutico se for prescrito por um profissional, mas ainda, possui potencialidades ampliadas que vão além e podem trazer sentidos terapeutizantes. Se o projeto Maluco Beleza fosse reduzido somente a um projeto terapêutico, poderia não funcionar. Tal prescrição poderia não ser positiva. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1051 A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil Reginaldo Moreira A abordagem e a ação do terapêutico e do terapeutizante são diferentes. Citemos outro exemplo: um usuário pode chegar ao grupo do Maluco Beleza e dizer que é um cantor, mesmo que isso seja um delírio. Nesse grupo sua palavra terá validade e ele será convidado a cantar uma música no programa. O usuário vai, grava e nunca mais aparece. Vencido o seu delírio, o usuário percebe que nunca foi um cantor, que nem canta tão bem assim, e não volta ao Maluco Beleza. Mas, naquele momento de curta duração, o projeto pode ter sido importante para aquele usuário, que pôde se expresser: foi terapeutizante para ele. A ação terapêutica baseia-se no diagnóstico, prevendo a eliminação dos sintomas. Por outro lado, o Projeto Maluco Beleza não prevê a eliminação dos sintomas, apesar de eles poderem até diminuir por meio da participação do usuário no projeto, mas isso nunca se sabe a priori. No projeto, só sabemos, a posteriori, se a comunicação funciona ou não para aquele usuário, portanto é terapeutizante. Os programas de rádio e todas as ações das quais ele se utiliza, seja o Ponto de Cultura, as oficinas de capacitação, a veiculação na Rádio Educativa, a Rádio online; sejam os eventos que produz ou de que participa, e até os passeios que realiza, são dispositivos de encontro para aumentar as redes de conexão dos participantes, de busca de novos sentidos de vida, de novas (re)significações para existência do usuário participante, de sua trajetória, despertado por meio do emprego da comunicação no contexto de reforma psiquiátrica. O objetivo da comunicação terapeutizante é produzir mais vida, mais redes de conexão, mais plasticidade das redes, transformando sua estética de viver. Como exemplo, pode-se notar na vida de uma das participantes do projeto cartografada na pesquisa que, a partir de sua participação no Maluco Beleza abriramse muitas outras redes de conexão em sua vida, que ainda não estavam acionadas. Hoje essa participante tem uma plasticidade maior de conexões, pois transita pelo Ponto de Cultura, faz conexões com ouvintes da rádio online, com os outros produtores da rádio online, com os entrevistados dos programas da Educativa e online, estabelece conexões com outras instituições que convidado para proferir palestras, faz conexões com os ouvintes de suas palestras, faz conexões com a militância do Movimento da Luta Antimanicomial, com o movimento cultural da cidade, com outras instituições de direitos humanos, com a mídia. Torna-se um referencial de fonte para os veículos de comunicação, faz conexões com os colegas que estão em tratamento mental na instituição em que se encontra como também com usuários de outras instituições psiquiátricas, pois transita mais facilmente entre eles, tornando-se reconhecida pelo projeto de comunicação em rádio. Faz conexões com os profissionais da saúde mental, estabelece uma relação de amizade com muitos funcionários, instaurando, inclusive, uma conexão diferenciada com a própria médica psiquiatra, a qual possui o telefone celular e a considera uma amiga. O efeito terapeutizante não está restrito às medicinas, mas, sim, às relações, no modo como a vida se produz, nas opções ético-políticas do que a vida significa para nós. A vida deve produzir vida no processo das relações que se fazem no cotidiano, que vão dando sentido à trajetória das pessoas. Quanto maiores as redes de conexão, maior plasticidade e sentido de vida podemos possuir. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1052 A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil Reginaldo Moreira REFERÊNCIAS: BIBLIOGRAFIA REFERENCIADA MERHY, Emerson Elias. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. MERHY, Emerson Elias et all. Da repetição à diferença: construindo sentidos com o outro no mundo do cuidado. In: Túlio Batista Franco; Valéria do Carmo Ramos (orgs.). Semiótica, Afecção & Cuidado em Saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 2010. PERUZZO, Cicília Krohling. Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. Petrópolis, RJ : Vozes, 1998. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, Volume 1, Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. COELHO NETO, Armando. Rádio Comunitária não é crime, direito de antena: o espectro eletromagnético como bem difuso. São Paulo: Ícone, 2002. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix; Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol 1. São Paulo: Ed. 34, 1995, tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. FOCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 2003. MERHY, Emerson Elias. O conhecer militante do sujeito implicado: o desafio em reconhecê-lo como saber válido. In: Túlio Batista Franco; Marco Aurélio de Anselmo Peres; Marlene Madalena Possan Foschiera et al. Acolher Chapecó: uma experiência de mudança do modelo assistencial, com base no processo de trabalho. São Paulo: Hucitec, 2004. PASSOS, Benedito da Cruz. Retrospécto da Vida do Sanatório Dr. Cândido Ferreira (Ex-Hospital de Dementes de Campinas). Campinas, Empresa Gráfica e Editora Palmeiras Ltda, 1975. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007. TURINO. Célio. Ponto de Cultura: o Brasil de baixo pra cima. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1053 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Webradios of migrant communities: transnational practices, global citizenship and the ICTs M o h a mm e d E l H a jj i 1 J o ã o Pa u l o M a l e r b a 2 Resumo: O fenômeno migratório atual experimenta excepcional intensificação. Além das causas sociais, econômicas e políticas, contribuem fatores tecnológicos e simbólico-subjetivos. O desejo e a necessidade de produção de narrativa própria, que auxilie na manutenção dos vínculos do migrante para com a comunidade de origem e de diáspora, encontram amparo em recursos midiáticos inovadores, agrupados sob a noção de ‘webdiáspora’. Dentre eles, destacamos as webrádios comunitárias dos grupos migrantes – objeto do presente estudo, no afã de apreender algumas das modalidades de organização das comunidades migrantes, suas estratégias de conquista de cidadania global e de atuação nos espaços transnacionais. O que significa ser migrante e de que modo tal condição leva a buscar um lugar próprio de produção de sentido, mobilização e negociação do poder simbólico, superando e desconstruindo noções de cidadania, pertencimento etc.? Temos hoje uma indissociabilidade do fenômeno migratório das TICs. Tendo como baliza o estudo de caso de webrádios de comunidades migrantes, buscamos evidenciar as potencialidades e os limites da webdiáspora para a democratização dos meios e os desafios teóricos e conceituais que tais mudanças representam para os estudos de comunicação comunitária. Palavras-Chave: Webrádios comunitárias. Comunicação Comunitária. TICs. Abstract: The current migration phenomenon has experiencing outstanding intensification. Beyond its social, economic and political reasons, there are technological, symbolic and subjective issues influencing it. The will and the need of producing its own narrative in order to help the conservation of its ties with its original and diaspora communities are finding support in innovative media initiatives, clustered under the notion of ‘webdiaspora’. Among them, we highlight the webradios of migrant communities – object of our study, where we intend to apprehend some of the modes of organization of migrants communities, its strategies for acquiring global citizenship and its actuation in transnational spaces. What does it mean to be a migrant? How this condition does 1. Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ (com pós-doutorado pela UNISINOS); professor Associado da ECO-UFRJ e do PPGCOM da UFRJ; [email protected]. 2. Doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ; mestre pelo PPGCOM da UFRJ; joaopaulorj@yahoo. com.br. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1054 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba induce them to achieve their own place of production of meaning, mobilization and negotiation of symbolic power in order to overcome and deconstruct notions like citizenship, belonging etc.? There is an inseparability between the migration phenomenon and ICTs. Through the study of webradios of migrant communities we intend to evidence the potential and weaknesses of webdiaspora to the democratization of communication and the conceptual and theoretical challenges for the community communication studies. Keywords: Community webradios. Community Communication. ICTs. 1. MIGRANTES S MIGRAÇÕES são constitutivas da experiência civilizacional e até existencial A da espécie humana: não somos migrantes por opção, mas sim por natureza. A própria epopeia humana iniciou-se no impulso de ampliar seus horizontes espaciais e mentais, multiplicar suas possibilidades de vencer as adversidades do espaço e do tempo e dar forma e sentido à sua jornada real e imaginada (ELHAJJI, 2012). Migrações, transumâncias, peregrinações, mobilidade em geral e deslocamentos de todo tipo refletem a propensão humana em conhecer, descobrir, ir ao encontro do desconhecido, compartilhar com o diferente... comunicar, em suma. Mas, se desde as origens da sociedade humana não há como dissociar o fato migratório do ato comunicativo, com a chegada da modernidade a relação já íntima se tornou francamente simbiótica. Sendo a noção de comunicação aqui entendida em suas acepções materiais e simbólicas: meios de transporte, de aceleração da produção, de controle social e de difusão e troca de ideias. Trata-se de uma reconfiguração radical que não poupou nenhum dos aspectos da vida em sociedade, nos planos locais, regionais, nacionais e globais. Além das consequências sociais, terá também efeitos de ordem subjetiva e psicológica sobre o indivíduo moderno, ampliando sua capacidade autorreflexiva e reforçando a vontade de autonomia e liberdade. No nível macrossociológico, os séculos XIX e XX registraram contínuos deslocamentos populacionais rumo ao centro e às regiões mais ricas do planeta. As migrações humanas chegaram ao seu ápice, entrando numa fase de planejamento e administração verdadeiramente industriais, espelhando as técnicas de produção em massa, os ideais do fordismo e dos meios de comunicação de massa. Porém, é no plano micro e molecular e/ ou a partir de perspectivas sociológicas de proximidade que se pode realmente acessar os registros subjetivos do fenômeno – aqueles que traduzem com maior fidelidade a realidade e vivência imediata do ator principal do fato migratório: o migrante. Mas o que é um migrante? Não há dúvida que a essência do sujeito migrante reside, antes de tudo na sua estrangeiridade. Além da constatação jurídica que define a situação legal do imigrante a partir de sua condição negativa de não nacional, há de se concordar que são a diferença, a alteridade e a externalidade do forasteiro que servem de indicadores e parâmetros para situá-lo e lhe dar sentido aos olhos da sociedade na qual se encontra e dos grupos majoritários e/ou hegemônicos que o cercam: o estrangeiro é “o exterior e contrário” da sociedade e grupos dominantes (SIMMEL, 2005, p. 265). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1055 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba O migrante se revela, então, um perfeito reflexo diferencial da maioria e ‘normalidade’; um catalisador da diferença da / na estrangeiridade e da própria diferença, até então despercebida, daqueles que se colocam ou se veem como norma ou medida. A presença do estrangeiro tem esse potencial de provocar no observador estranheza e estranhamento; seja de modo positivo: maravilhamento e fascínio ou negativo: repulsa e medo. A estrangeiridade, enquanto signo e sintoma, tem o mérito de anular as fantasias de absolutismo e indiferença do sujeito central e nele insuflar o germe do relativismo crítico: “a diferença desse rosto revela um paroxismo que qualquer rosto deveria revelar ao olhar atento: a inexistência da banalidade entre os seres humanos” (KRISTEVA, 1994, p. 12). Do amor ao ódio, a presença do estrangeiro nos obriga a mostrar a nossa verdadeira natureza e revelar nosso modo verdadeiro de encarar o mundo. 2. MINORIAS Em regra geral, os migrantes são minoritários; quantitativamente menores com relação aos grupos nacionais, étnicos ou culturais que dominam numérica e politicamente a sociedade de acolhimento. Debilidade ou precariedade quantitativa que resulta, muitas vezes, em condição e/ou estatuto social e político de subalternidade. O que, não raramente, resulta em diversas formas de discriminação, racismo, xenofobia, opressão ou estigmatização do grupo minoritário e seus membros. As minorias, segundo Appadurai (2009), são uma categoria social e demográfica recente, “essencialmente vinculadas a ideias sobre nação, população, representação e enumeração, que não têm mais de que alguns séculos de idade” e se deve ao aprimoramento contemporâneo das “técnicas de contar e classificar e de participação política” intrínsecas a época moderna (p. 45). A figura minoritária do migrante corresponde, de certo modo, à noção de “pequeno número”, proposta por Appadurai e que se refere a formas contemporâneas de negativação simbólica de grupos indesejados da sociedade, a fim de positivar a totalidade da comunidade. Mas, a “pequenez” do número não se reduz ao seu aspecto formal, quantitativo e concreto. A minoria, segundo Sodré (in PAIVA e BARBALHO, 2005), se caracteriza, dentre outros aspectos, por sua vulnerabilidade jurídico-social, na medida em que o grupo minoritário, tal como é o caso dos migrantes, “não é institucionalizado pelas regras do ordenamento jurídico-social vigente” (p. 13). Do ponto de vista jurídico, o termo estrangeiro designa o indivíduo ou conjunto de indivíduos que, embora estejam vivendo num determinado Estado, “não pertencem ao círculo daquelas pessoas que possuem a nacionalidade desse Estado”. Trata-se, portanto, de um referencial negativo. Estatuto jurídico e social excepcional do migrante, apontado por Sayad (1998) como principal fonte das discriminações e injustiças por ele sofridas. Condição de não nacional que frisa o estado de não sujeito ou sujeito mínimo, dotado de direitos mínimos, no limite do não humano; apenas o necessário para garantir a sua sobrevivência imediata, sem dignidade ou expectativas a médio ou longo prazo. “Um imigrante só tem razão de ser no modo do provisório e com a condição de que se conforme ao que se espera dele”. (1998, p. 55) As consequências desse estado, todavia, não se limitam ao campo político administrativo; pelo contrário. Trata-se, na verdade, de um longo trabalho de despojo do sujeito migrante de sua própria humanidade, subjetividade e direito Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1056 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba à dignidade que se dá de modo gradativo e através de uma complexa engrenagem retórica e simbólica. Mezzadra (2012), por sua vez, considera as migrações enquanto movimento social global que não pode ser dissociado do conjunto de movimentos sociais que ocorrem pelo planeta. Radicalizando a dimensão autonomista da multidão, ele refuta as abordagens vitimizantes da figura do migrante; antes, ele adota o princípio de produção de subjetividade no capitalismo como perspectiva metodológica e conceitual. Assim, paralelamente aos dispositivos de dominação e exploração da nossa fase do capitalismo, novas práticas de emancipação e igualdade são experimentadas. O próprio princípio de cidadania, entendido pelas abordagens clássicas enquanto estatuto jurídico formal, é reinterpretado na perspectiva autonomista a partir de seus atributos combativos. A mobilização social, política e cultural dos migrantes é considerada, em si, como uma ação cidadã concreta e prática, fundada no supremo “direito de reivindicar direitos” (p. 28). Ação que acaba transformando, na prática, as noções de democracia e cidadania, e transbordando os limites do Estado-nação, para se inscrever na tradição humanista que não dissocia o ideal democrático dos direitos humanos universais. Além da vulnerabilidade jurídico-social, já exposta, Sodré (2005) qualifica os grupos minoritários pela sua identidade incompleta ou não reconhecida, a obrigação de travar lutas contra-hegemônicas e a necessidade de se organizar discursivamente para negociar seus status social político e simbólico. Luta e organização que se dão, hoje, principalmente nos espaços midiáticos, em torno e em função dos meios de comunicação. O que nos leva à questão da comunidade e da comunicação comunitária – de modo geral e no caso específico das migrações transnacionais. 3. DAS COMUNIDADES TRANSNACIONAIS À WEBDIÁSPORA No Brasil, duas autoras em especial têm trazido valiosas contribuições ao debate em torno da questão comunitária. Para Peruzzo (2002), os grupos sociais humanos precisam, para serem definidos enquanto comunidades, preencher alguns requisitos de ordem objetiva e subjetiva, tais como a existência, no seu âmbito, de uma cultura comum; sentimento de pertencimento; objetivos comuns, identidade natural e espontânea entre os interesses dos seus membros; relações e interações significativas; a participação ativa na vida da comunidade; uma língua comum; um território comum, etc. (PERUZZO et al, 2002). Já Paiva (2003), apreende a comunidade enquanto instrumento de transformação social e de autonomização dos grupos minoritários ou marginalizados. Ao mesmo tempo em que considera a comunidade, na sua forma original e tradicional, incompatível com os regimes de consumismo e individualismo que predominam em nossa época, Paiva enfatiza a sua pregnância semiótica mobilizadora. Meio de resgate da cidadania, a comunidade precisa, antes, se reinventar para se adequar ao quadro social e político atual; notadamente através de sua ação comunicativa, indissociável da própria organização comunitária. Na verdade, comunidade e comunicação remetem à mesma raiz etimológica e apontam para o mesmo horizonte filosófico. Comunicar, formar uma comunidade ou entrar em comunhão implicam no mesmo gesto existencial de troca, partilha, participação, contribuição, aproximação e vinculação. Uma comunidade é, portanto, uma comunidade Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1057 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba de sentidos, o lugar (físico / territorial ou simbólico / imaginário) onde é produzido, veiculado e compartilhado o sentido comum ao corpo do grupo na sua totalidade reflexiva. Se a comunicação é um processo de produção de sentido, a comunidade é o locus em que esse sentido é construído, transmitido, trocado, codificado e decodificado. Assim, há de lembrar que, dentre as principais atribuições de natureza social e política intrínsecas à comunicação comunitária está, em primeiro lugar, o seu caráter discursivo responsável pela enunciação e manutenção da identidade do grupo ao qual pertence. No entanto, o discurso (identitário, político e social) que atravessa os meios de comunicação comunitários não é destinado exclusivamente às estruturas organizacionais do grupo, nem é recebido apenas por seus membros. Pelo contrário, as instâncias sociais e políticas extracomunitárias são igualmente alvo da mídia comunitária. Não há dúvida, pois, que um dos principais objetivos da comunicação comunitária é permitir aos membros da comunidade de se expressarem e participarem dos debates políticos que ocorrem dentro da esfera pública, no afã de fazer ouvir as suas vozes e fazer valer seus pontos de vista. No caso específico das comunidades migrantes, o espaço migratório não pode ser reduzido à sua dimensão física tradicional: o espaço migratório se destaca, antes, pela multiplicidade dos modos de sua ‘produção’ social e simbólica (LEFEVBRE, 1974) e a natureza intrinsecamente multiterritorial tanto da sociabilidade como da subjetividade do migrante. Territórios que podem ser tanto reais e materiais como também ou apenas subjetivos, imaginários e existenciais (Cf. GUATTARI, 1992), produzidos a partir dos processos e dispositivos de enunciação da identidade coletiva do grupo ou comunidade. O que significa, em primeiro lugar, que a cartografia deste espaço não corresponde fielmente a um determinado ‘espaço social nacional’, nem pode se restringir a seus recortes estatais nacionais conhecidos e/ou suas instâncias político-administrativamente reconhecidas. Dois conceitos são centrais para essa discussão: transnacionalismo e sociedade em rede. Conforme já desenvolvido em estudos anteriores, acreditamos que a ideia de transnacionalismo deve ser examinada à luz das recentes transformações históricas responsáveis pela reconfiguração do conjunto das paisagens sociopolíticas da nossa época. Nossa definição do conceito remete aos modos de organização e ação das comunidades humanas inseridas em mais de um quadro social nacional estatal, tendo referenciais culturais, territoriais e/ou linguísticos originais comuns, e conectadas através de redes sociais transnacionais que garantem algum grau de solidariedade ou identificação além das fronteiras formais de seus respectivos países de destino. Trata-se, portanto, de um fenômeno ‘pós-estado-nacional’ inerente à realidade social e política que caracteriza o mundo contemporâneo, sendo a diversidade cultural e identitária, os pluripertencimentos, a multiterritorialidade e as formações diaspóricas cada vez mais a norma (ELHAJJI, 2013a). A característica mais importante desse quadro acima descrito é, todavia, a centralidade dos processos e tecnologias de comunicação na sua ordenação; efetivando modalidades culturais e modos de enunciação identitários propriamente transnacionais. Com o barateamento e a popularização das tecnologias de comunicação e, ao mesmo tempo a sua sofisticação, ampliação de seu campo de ação, aumento de sua acessibilidade, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1058 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba banalização de seu manuseio e sua definitiva universalização, se pode notar que a maioria das comunidades diaspóricas espalhadas pelo mundo dispõem de um impressionante arsenal de meios de comunicação comunitária – tanto local como transnacional. Consequentemente, ainda que não seja regra absoluta, as composições identitárias diaspóricas tendem a se reformular e se afirmar cada vez mais numa perspectiva propriamente transnacional. Se, originalmente, a noção de ‘diáspora’ remetia à ‘dispersão dos judeus ao longo dos séculos’, hoje, seu uso é admitido para traduzir a realidade social, cultural e política de “qualquer pessoa ou população étnica que abandona a pátria tradicional da sua etnia, estando dispersa por outras partes do mundo (OIM, 2009, p.18)”. Coincidindo com o aumento do poder da internet, no fim dos anos 1990, a questão da diáspora desencadeou o desenvolvimento de uma ampla literatura cada vez mais voltada para as relações tecidas pelas comunidades de migrantes através das TICs. O que vai acabar configurando, ao longo da década, o conceito de ‘webdiáspora’. Hoje, aceitam-se como sinônimos de ‘webdiáspora’, noções como ‘e-diáspora’, ‘web diaspórica’, ‘diáspora networks’, ‘diáspora digital’, entre outras. Entretanto, pondera Claire Scopsi (2009, p.91) que “a publicação de sites por membros de uma comunidade transnacional não pode ser vista como um critério único de classificação de webdiáspora, (...) critérios de coesão e reivindicação identitária nos ajudam a sair desse ciclo vicioso”. Assim, ela propõe como definição da ‘webdiáspora’, referências claras a: Sites produzidos pelas comunidades transnacionais a partir de um dos lugares de dispersão, organizados em torno de um ou mais elementos culturais compartilhados (língua, religião, etnia), destinado explicitamente a membros da comunidade espalhados pelo mundo pela migração e, eventualmente, à população que se manteve na terra natal, contribuindo para a consciência de uma ligação identitária, sua afirmação pública e sua implementação por ações de reivindicação, representação e desenvolvimento econômico e cultural em benefício de seus membros (SCOPSI, 2009, p.92). Em termos práticos, se pode definir a webdiáspora a partir da reapropriação das TICs pelos imigrantes e os usos sociais e subjetivos delas decorrentes. 4. ONDAS COMUNITÁRIAS A década de 1980 é a que marca a redemocratização no Brasil. Depois de mais de 20 anos de ditadura militar, a luta pela volta de eleições diretas e o processo constituinte foram importantes elementos de fortalecimento da sociedade civil brasileira. Destaca-se aí o protagonismo da comunicação popular (cf. BARBOSA, 2013). É essa mesma década que marca a consolidação de um movimento nacional e internacional de organização e apoio à luta das rádios comunitárias. É que a maioria dos países – inclusive o Brasil – não previa em suas legislações qualquer reserva de espectro para a radiodifusão não comercial ou não estatal de baixa potência. Com isso, iniciou-se um processo – ainda em curso – de fechamento sistemático de rádios sem outorga, muitas vezes com truculência policial e violação de direitos civis. No Brasil, esse movimento culminou na legalização das rádios comunitárias em fevereiro de 1998, em meio a um governo neoliberal e fruto de um Congresso zeloso Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1059 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba pelo tema: dos parlamentares membros da Comissão de Comunicação, Tecnologia e Informática, responsável pela aprovação do projeto de lei que regulamentaria a radiodifusão comunitária no Brasil, 70% eram donos ou tinham interesses indiretos em empresas de rádio e televisão. (COSTA E HERMANN JUNIOR, 2002). O resultado foi uma lei que limita o pleno desenvolvimento das comunitárias legalizadas, hoje 4.6413 em todo o país. Um estudo nosso (MALERBA, 2012), demonstra que, dentre todos os países da América do Sul, o Brasil tem a lei mais restritiva de radiodifusão comunitária no que concerne: definição legal das rádios comunitárias, potência e alcance de transmissão, reserva de espectro, possibilidades de sustentabilidade e prazo de outorga. Um elemento importante para a presente análise é o próprio entendimento de rádio comunitária em nossa legislação: ao estabelecer logo em seu primeiro artigo que o funcionamento da emissora está restrito “ao atendimento de determinada comunidade de um bairro e/ou vila”, a lei atende somente comunidades geográficas excluindo as chamadas comunidades de interesse, reconhecida em leis congêneres de países vizinhos como Argentina, Equador e Uruguai. Tal restrição é reforçada com a potência de transmissão limitada a 25 watts de potência e em FM (modulação típica para transmissões locais). Com isso, no Brasil, comunidades etnolinguísticas e migrantes que não se conformam em comunidades geográficas ficam impedidas de constituir meios eletrônicos próprios de comunicação. De acordo com os princípios de universalidade de meios e sujeitos estabelecidos no Sistema Interamericano de Direitos Humanos para o exercício do direito à liberdade de expressão, tais limitações configuram uma violação de direitos em que setores sociais estão privados de aceder a todos os meios possíveis de expressão e informação. Além disso, a elevada burocracia e a ineficiência do Estado em conceder outorgas arrastam muitas rádios comunitárias para a ilegalidade. De acordo com os dados levantados pela ONG Artigo 19 relativos a 2011, durante um período de quatro anos, o Ministério das Comunicações acumulou 11.842 processos pendentes para análise, dando conta de somente 30% dos casos (5.322 de um total de 17.164) (ARTIGO 19, AMARC e MNRC, 2013). Com isso, a espera pela outorga pode chegar a 10 anos. A outra face desse processo é o fechamento permanente de rádios sem outorga e condenação de seus comunicadores populares, cifra que ultrapassa sistematicamente o número de concessões (cf. idem). Porém, sob ausências legais, leis restritivas ou favoráveis, em todo o mundo, as rádios comunitárias seguem relevantes na luta pelos direitos humanos, em geral, e pelo direito à comunicação, em particular. Além do mais, inauguram um novo capítulo, ao acompanharem a tendência geral de hibridização, digitalização e convergência midiática. 5. DO HERTZ AOS BITS Com a digitalização e a irreversível tendência de hibridação e convergência midiática, aquele que é considerado o primeiro meio eletrônico de comunicação verdadeiramente massivo passa hoje por um interessante (novo) processo de reinvenção de suas técnicas e ampliação de suas potencialidades. Para permanecer relevante e inovador, o rádio vai incorporando técnicas, adapta sua linguagem e inaugura possibilidades no diálogo 3. Dados obtidos no site do Ministério das Comunicações, última atualização em 30.09.2014. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1060 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba com outras mídias. O resultado tem sido a ampliação de sua presença, tornando-se um veículo cada vez mais híbrido. Por conta de espaço e foco, iremos destacar três transformações que afetam mais diretamente as rádios comunitárias (e a própria Comunicação Comunitária): a digitalização do rádio, o surgimento dos podcasts e as webrádios. O chamado rádio digital faz uso do espectro eletromagnético (da mesma forma que o chamado rádio analógico, o que tradicionalmente conhecemos) para, através de ondas eletromagnéticas, transmitir informação audiofônica (e outras) em sinais digitais (bits). Entre as muitas vantagens dessa tecnologia destacam-se: a possibilidade de melhoria da qualidade do som (rádio FM com qualidade de CD e rádio AM com qualidade de FM); a incorporação de serviços adicionais, como imagens e textos a partir de letreiros digitais nos receptores, com informações como notícias, previsão do tempo e publicidade, o que implica; possibilidades de novos modelos de negócios e maior participação no mercado publicitário; dependendo do modelo e do marco regulatório correspondente, há um uso mais eficiente do espectro, o que poderia favorecer a pluralidade de emissoras, ampliando a participação de rádios comunitárias, educativas, associativas, comerciais etc.; possibilidade de interatividade; menor consumo de energia elétrica; e; possibilidade de multiprogramação (mais de uma estação transmitindo na mesma frequência do dial). Mas o que parece um mar de vantagens esconde custos, disputas políticas, comerciais e industriais, além da difícil mudança no hábito do receptor. Para adequar-se a digitalização do rádio as emissoras têm de mudar seus equipamentos de transmissão. Da mesma forma, para escutar uma emissão de rádio digital é necessário ter um aparelho receptor de sinais digitais. Tanto na transmissão quanto na recepção, os custos dependerão muito do modelo que se adote em cada país e também o desenvolvimento da indústria local. Em 2005, o Brasil iniciou os primeiros testes com dois dos quatro modelos existentes: a escolha está entre o europeu DRM (Digital Radio Mondiale) e o americano HD Radio\IBOC (High Definition Radio/In-Band-On-Channell). Porém, entre idas e vindas, passados 10 anos desde os primeiros testes, até hoje não se encontrou definição. Para as rádios comunitárias brasileiras, o rádio digital apresenta possibilidades e muitos riscos. Como já foi dito, com o melhor aproveitamento do dial, o hoje reduzido espaço para as comunitárias (um canal por região, ou seja, cerca de 2% do total) poderia ser ampliado sem a desculpa da escassez de espectro. Por outro lado, como afirma Arthur William, membro da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC Brasil) e integrante do Conselho Consultivo do Rádio Digital, “como não há permissão para publicidade do comércio local e fundo público para financiamento das rádios, as comunitárias não têm condições de se digitalizarem. Os equipamentos de transmissão são caros e, sem mecanismos de sustentabilidade, será impossível uma migração tecnológica para essas estações” (2013). Além disso, há incompatibilidade tanto dos testes realizados pelo Ministério das Comunicações quanto nos próprios padrões em disputa com a realidade legal atual das rádios comunitárias. Como foi dito, a Lei 9.612 estabelece 25 Watts de potência: “como no digital a potência é bem menor que a analógica, ruídos urbanos podem gerar um verdadeiro ‘apagão’ das rádios comunitárias que já operam em muita baixa potência nas transmissões analógicas”. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1061 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba Criado em 2004, também chamado de audiocast (PRADO, 2008), o podcast é uma modalidade assincrônica (emissor e receptor não compartilham a simultaneidade da emissão e recepção) de radiodifusão sob demanda, cujo nome resulta da junção da expressão public on demand + casting. Tratam-se de programas radiofônicos, de diferentes gêneros (jornalísticos, artísticos, musicais, científicos etc.), normalmente gravados em formato mp3 para serem facilmente baixados da internet e escutados em mp3 players, celulares ou mesmo no computador à escolha do receptor. O uso é majoritariamente amador, mas mesmo as estações de rádio aderiram, oferecendo em seus sites programas específicos de suas grades em formato de podcast. Quanto ao nosso tema, é interessante notar podcasts de temática ligada aos direitos humanos profusamente encontrados na rede. Na maioria das vezes, tratam-se de iniciativas individuais e pontuais de ativistas (ou seja, iniciativas não comunitárias, na acepção usual do termo), mas não são incomuns rádios comunitárias hertzianas e webrádios comunitárias que já disponibilizam parte da sua programação sob essa modalidade. Vemos aí interessantes tensionamentos sobre o entendimento clássico de rádio comunitária, ao mesmo tempo em que presenciamos seu dinamismo em acompanhar as inovações tecnológicas com inovações sociais. Tensionamento similar presenciamos numa modalidade de rádio existente desde o início da popularização da internet, em meados da década de 1990: as webrádios. 6. RADIOSCOPIA DO RADIOWEBCOMUNITARISMO Webrádios, rádios virtuais, e-radio, rádio via internet, rádio online: diferentes denominações para o serviço de transmissão de áudio via internet com a tecnologia streaming gerando áudio em tempo real. Assim como no rádio hertziano, aos ouvintes se apresenta uma programação continuada (sem a possibilidade de pausa ou replay), o que diferencia a webrádio do podcasting (que envolve download e não streaming). A transmissão é ao vivo, sincrônica, em caráter mundial, mas o sinal das emissoras é transmitido por quaisquer que sejam as formas de conexão à internet. As primeiras webrádios datam do início da popularização da internet, em meados dos anos 90. Segundo a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), os internautas dispunham, já em setembro de 1997, de 29 rádios virtuais nacionais (KISCHINHEVSKY, 2007, p. 78). Desde então o seu crescimento tem sido exponencial. O que atinge também as rádios comerciais que buscam a abrangência da web: em 2012, 84,1% das comerciais hertzianas brasileiras já transmitiam seus programas pela internet4. Ainda não temos números atualizados sobre a utilização da webrádio por rádios comunitárias brasileiras5. Em 20066, realizamos uma pesquisa com 100 emissoras no intuito de aferir o nível de apropriação das novas tecnologias. Naquele momento, 4. Disponível em http://www.telesintese.com.br/sem-padrao-digital-definido-radios-usam-internet-parasobreviver/. Acesso em 19.3.2014. 5. Esse é um dos objetivos de nossa pesquisa de doutoramento intitulada Rádios comunitárias no limite, que analisa as recentes transformações sociais, políticas e tecnológicas por que tem passados as rádios comunitárias brasileiras, com o apoio do CNPq. Uma pesquisa quantitativa com 100 rádios comunitárias (de diversos tipos) e uma pesquisa qualitativa com 10 emissoras pretende, entre outros objetivos, averiguar o nível de apropriação tecnológica (e suas inovações técnicas e sociais) desses atores sociais. 6. Cf. Malerba, 2006. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1062 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba verificamos que quase um quarto (23%) afirmava já transmitir on-line e 67% declaravam a intenção de fazer tal uso da Internet (somente 5% acreditavam não haver importância em transmitir via web): ou seja, 90% das emissoras em questão já transmitiam ou pretendiam transmitir on-line. Em 2005, a professora Cicília Peruzzo realizou com 94 emissoras que disponibilizavam site na internet (2005, p. 2). Ao fim da análise, conclui-se que a presença das rádios comunitárias na internet ainda é modesta, sem um “apoderamento total da tecnologia digital, de modo a usufruir todos os recursos que ela oferece” (p. 14). A entrada tímida, mas promissora das rádios comunitárias no mundo virtual se figura como uma ampliação da cidadania através do exercício do direito humano à comunicação e inaugura mais uma alternativa de as rádios comunitárias driblarem restrições legais através das possibilidades tecnológicas contemporâneas. A autora afirma também que a pesquisa revelou que a maioria das emissoras analisadas evidencia fortes laços comunitários com suas localidades de origem, apesar de os maiores beneficiários de tal apropriação serem os próprios realizadores de tais iniciativas. Num primeiro momento, apesar de tecnicamente simples, manter uma webrádio no ar era algo caro: é preciso pagar uma taxa mensal a um servidor de streaming dedicado, cujo valor depende da qualidade de transmissão e da quantidade de ouvintes simultâneos. Normalmente a emissora estabelece um teto máximo e, passado esse número, o ouvinte seguinte não consegue acessar a webrádio. Primeiramente, é preciso destacar que esse valor caiu expressivamente nos últimos anos. Além disso, em se tratando de nosso foco de análise, há projetos com o intuito de democratizar a comunicação que fornecem gratuitamente o serviço de servidor dedicado.7 Quanto às suas características, a webrádio coloca em xeque alguns dos pressupostos clássicos do veículo rádio: 1) Trata-se de um meio essencialmente desterritorializado e não massivo: o webrádio tem, potencialmente, audiência mundial e seu público tende a atender mais a uma comunidade de interesse que a uma comunidade geográfica; 2) atende um público bastante segmentado; 3) Ampliação da interatividade; 4) convergência midiática; 5) Permite a recepção a partir de qualquer parte do mundo: ligado a sua desterritorialidade, tal característica pode beneficiar diretamente populações migrantes ou demais comunidades de interesse fisicamente dispersas; 6) Desregulamentação: enquanto que para realizar legalmente o serviço de radiodifusão sonora é necessário obter uma concessão do Estado, qualquer pessoa pode ter uma rádio pela internet, sem burocracia ou constrangimento legal. Há um eminente potencial democratizante na webrádio. A webrádio se apresenta como uma alternativa viável para uma série de atores sociais que se sentem excluídos do cenário midiático e que encontram dificuldades para acessar legalmente as outorgas de radiodifusão. Como já tivemos a oportunidade de analisar em outros momentos (MALERBA, 2013, 2012, 2009), há uma série de restrições na atual lei brasileira de radiodifusão comunitária que, entre outras coisas, dificulta seu acesso por comunidades de interesse e mesmo comunidades geográficas de grande extensão: 7. É o caso do Projeto Dissonante (http://www.dissonante.org), uma iniciativa de estudantes e entusiastas do rádio livre da Universidade de Brasília. Surgido em 2007, trata-se de um braço de ação do Programa de Extensão Comunicação Comunitária (FAC/UnB) ainda que gerido por um coletivo que atua de forma colaborativa e voluntária. Tem como foco facilitar que rádios comunitárias, organizações sociais, grupos de ativistas etc., ou seja, coletivos acedam ao serviço de webradiodifusão. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1063 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba 1) Lei vinculada à comunidade territorial. Como foi tratado no tópico 4, o serviço de radiodifusão comunitária no Brasil está direcionado para comunidades geográficas, o que se reforça com a limitação de 25 watts de potência e transmissão exclusivamente em FM. Isso exclui uma série de atores coletivos, como migrantes e demais comunidades de interesse que se organizam para além do território; 2) Impossibilidade de estrangeiros acederem ao espectro eletromagnético. Somente “brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos” podem ser dirigentes de rádios comunitárias. Retomando a discussão empreendida no tópico 2, sob a pretensa proteção dos interesses nacionais, tal limitação acaba por avigorar o estatuto social e político de subalternidade do migrante; 3) Obrigatoriedade do Português nas emissoras. Existem previsões sobre a veiculação de conteúdos em português nas concessões de radiodifusão (Norma de Acessibilidade e alguns contratos para a prestação do serviço entre emissoras e União), o que virtualmente impede comunidades migrantes de acederem integralmente sua língua originária nas ondas hertzianas. Há aqui toda uma discussão sobre a artificialidade da ideia de nação, reforçada pela língua; 4) Restrições de financiamento. As rádios comunitárias estão impedidas de realizar qualquer tipo de publicidade comercial, mesmo que seu retorno seja para a própria emissora (tendo em vista que, por princípio, são entidades sem fins de lucro), apenas podendo aceder apoio cultural e doações. Ora, isso atinge o calcanhar de Aquiles das comunitárias, normalmente direcionadas a grupos social, política e economicamente desfavorecidos. No caso de comunidades migrantes vemos a dificuldades de autofinanciamento para um grupo normalmente estigmatizado e com carências econômicas. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Frente às dificuldades para se obter uma outorga, às restrições acima expostas da radiodifusão comunitária hertziana e às incertezas do futuro do rádio digital no Brasil, possibilidades tecnológicas radiofônicas como a webrádio e o podcast oferecem-se como alternativas para comunidades excluídas pelo cenário atual. No caso das comunidades migrantes, rompem-se as próprias limitações técnicas que impedem o alcance necessário para seus membros que se encontram (normalmente) dispersos geograficamente, além de darem conta de uma maior abrangência de atores e espaços (geográficos, simbólicos, políticos) interessantes de serem sincronizados com suas lutas. A perspectiva da transnacionalidade e da disputa por uma cidadania global veem aqui um horizonte de ação. Por outro lado, vislumbram-se desafios inéditos para a área de estudo da comunicação comunitária e para a própria luta pelo direito humano à comunicação, um dos elementos centrais para os meios ditos comunitários. Tal guinada tecnológica tem um impacto profundo sobre o futuro e identidade das rádios comunitárias e da comunicação comunitária em geral. Uma das consequências diretas é o próprio questionamento da noção de indispensabilidade do elemento espacial e territorial, considerado uma condição se ne qua non para a existência e sobrevivência das comunidades e da comunicação comunitária. Tanto fica difícil considerar o conceito de comunidade e de seus meios de comunicação em uma perspectiva exclusivamente espacial e local, quanto há de se considerar o surgimento de comunidades transnacionais e diaspóricas que já não se Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1064 Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba reconhecem em um único quadro social, político e afetivo. É preciso, então, conjugar as duas constatações anteriores ao fato essencial e fundamental que é a convergência dos meios de comunicação. Outro elemento é que webrádios e podcasts muitas vezes são o resultado de determinação e de iniciativas pessoais de indivíduos isolados, e não, como é geralmente o caso nas rádios comunitárias tradicionais, a consequência de decisões institucionais tomadas por instâncias representativas. Da nossa parte, acreditamos que a característica individual destas ações, todavia, não deve ser interpretada enquanto indicador de declínio ou enfraquecimento do espírito comunitário, mas sim como fato revelador do potencial de empoderamento (empowerment) político e social do sujeito comunicante, inerente às novas tecnologias. De todo modo, isso não impede o risco de personalismos e impedimentos participativos como já vimos acontecer nas comunitárias hertzianas. Para os estudos de comunicação comunitária apresenta-se o desafio de dar conta de objetos novos ao escopo inicial de seus estudos: manter a perspectiva crítica, mas aberta para iniciativas pontuais e inovadoras, porém de viés cidadão. Para tal, vemos a necessidade de buscar novos e renovar antigos marcos conceituais para dar conta desse novo ambiente. REFERÊNCIAS Appadurai, A. O medo ao pequeno número. Ensaio sobre a geografia da raiva. São Paulo: Illuminuras: Itaú Cultural, 2009. 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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1066 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Disire and Sexuality: Imperatives Representative on Black Women in “Sexo e as Negas” E m a n u e l ly S i lva F a l q u e t o 1 Resumo: As representações são construções estruturadas sobre a realidade, por mais que sejam fidedignas portam apenas efeitos de verdade. As produções audiovisuais midiáticas mesmo diante do avanço técnico das câmeras, por permitirem capturar as imagens idênticas, também são construções representativas, pois, estão sendo enquadradas conforme a perspectiva e objetivos de quem estão produzindo aquele vídeo. Partindo dessas discussões propomos a investigação sobre o vídeo de divulgação do seriado “Sexo e as Negas” que veiculou no canal da Rede Globo de Televisão nas primeiras semanas do mês de setembro deste ano. Para analisar e avaliar as representações midiáticas sobre as mulheres negras, buscando identificar os sentidos e os estereótipos contidos no discurso do vídeo. Ancorados nos pensamentos que problematizam a questão das representações midiáticas audiovisuais, encontramos no objeto de análise construções representativas sobre as mulheres negras que apontam para uma sexualidade e desejo exacerbados. Palavras-Chave: Representações Audiovisuais. Estereótiopo. Análise Televisual. Mulher Negra. Abstract: The representations are structured constructions of reality, even if they are reliable only carry real effects.The media audiovisual productions in the face of technical progress, for enabled capture images identical to what we see, are also representative buildings, because that images are being framed as the perspective and objectives of those who are producing that video. From these discussions we propose the investigation of the video to promote the show “Sexo e as Negas” that aired on channel Globo TV on first weeks of September in this year. To analyze and evaluate the media representations of black women, searching to identify the meanings and stereotypes contained in the speech in the video. Anchored in the thoughts that question the issue of audiovisual media representations, we find in the object of analysis representation buildings about black women pointing to an sexuality and exacerbated desire Keywords: Audiovisual representations. Stereotype. Televisual Analysis. Black woman. 1. Mestranda no Programa de Pós-Graduação Comunicação Midiática da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) sob orientação do professor Dr. Murilo Cesar Soares. E-mail: manufalqueto@ gmail.com. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1067 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto INTRODUÇÃO STAMOS EM meio ao “regime de visibilidade” (BECKER, 2012), as imagens estão E enraizadas nas nossas vidas, nas nossas relações e cada dia ocupam mais espaços, nos fornecendo significados sobre uma diversidade de assuntos, e estabelecendo formas de comunicação. O pesquisador Jesús Martín-Barbero (1999, p.17) argumenta que os “(...) latino-americanos estão se incorporando à modernidade não através do livro, mas a partir dos discursos e narrativas, dos conhecimentos e da linguagem, da indústria e da experiência audiovisual”. E, apesar de os veículos de comunicação se apresentar como “transmissores da realidade social” (ALSINA, 2009, p.9), eles mediam a realidade, selecionando os acontecimentos a serem veiculados para nos fornecerem discursos sobre aquilo que nos afeta pessoal, local e internacionalmente. Por vezes os veículos de comunicação são os primeiros fornecedores de referenciais, noções, ou seja, representações para podermos formular nossos significados sobre assuntos que não temos acesso direto. A partir das representações que nos circundam, interpretamos e elaboramos nossos significados que são construídos guiados por nossa bagagem de vida e cultural. “O conhecimento nunca é reflexo ou espelho da realidade, é sempre uma tradução, seguida de uma reconstrução” (BECKER, 2012, p.235). Não é somente das coisas que nunca tivemos a chance de entrar em contato diretamente que a mídia nos apresenta informações, mas também a respeito das coisas e pessoas que conhecemos, até sobre nós mesmos, sobre as noções de corpo, do significado de homem e mulher. Por isso, propomos a investigação das representações midiáticas veiculadas sobre a mulher negra na nossa sociedade a partir da análise do teaser audiovisual do seriado “Sexo e as Negas”, produzido e transmitido pela Rede Globo de televisão. O teaser é uma peça promocional de algum produto que ainda não foi lançando, feito para divulgar e criar uma expectativa no público a fim de que ele compre, assista ou se interesse. No caso, analisaremos o teaser de divulgação do seriado “Sexo e as Negas”. O programa estreou no dia 16 de setembro de 2014 e contou a história de quatro personagens negras, Zulma, Lia, Tilde e Soraia, moradoras da Cidade Alta de Cordovil, subúrbio do Rio de Janeiro pela perspectiva narrativa da personagem Jesuína, branca, que é dona de um bar freqüentado pelas quatro mulheres. O interesse em pesquisar o vídeo promocional do seriado para observar as representações midiáticas e suas construções de significados sobre a mulher negra deveu-se a polêmica de quando os teaser foram veiculados no início de setembro de 2014 nos intervalos comerciais da programação da Rede Globo para convocar os telespectadores a assistirem o seriado que estrearia. Antes mesmo da exibição do primeiro episódio, movimentos contra racismo e discriminação postaram em blogs, sites e perfis de redes sociais digitais denúncias sobre o caráter preconceituoso da produção audiovisual. Todo esse cenário despertou a vontade de compreender e desvelar as mensagens explícitas e latentes contidas nesta produção audiovisual. Para tanto selecionamos aleatoriamente um desses vídeos de promoção que foram lançados. Os objetivos desse trabalho foram levantar o debate crítico sobre a mediação realizada pelos veículos de comunicação audiovisuais com representações sobre as mulheres negras brasileiras, problematizando as ideologias, as mensagens, os preconceitos Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1068 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto presentes nessas representações. Para tanto amparamos nosso trabalho nos pensamentos sobre a as representações visuais e audiovisuais midiáticas como construções baseadas na realidade com efeitos de verdade que contem sentidos direcionados. A forma de analisar o produto audiovisual foi guiada pelo percurso estabelecido por Becker (2012) composto de três etapas: a primeira a descrição do objeto de estudo; a segunda a Análise televisual com o processamento quantitativo e qualitativo dos dados audiovisuais; e, por fim a interpretação dos resultados. “Esta opção metodológica procura dar conta das etapas de descrição do objeto de estudo, de uma análise quantitativa e qualitativa dos formatos e dos conteúdos de relatos jornalísticos e de outros gêneros que utilizam a linguagem audiovisual” (...) (BECKER, 2012, p.240). A fase da Análise televisual quantitativa foi realizada por meio da observação de seis categorias: a estrutura do texto onde descrevemos o formato, o estilo de narração, a duração do produto audiovisual e seu contexto de produção e distribuição; a categoria temática para apresentarmos os conteúdos e os temas abordados; a categoria dos enunciadores onde observamos os diálogos, os depoimentos as várias vozes trazidas pelo produto audiovisual; a visualidade que “(...) permite considerar as instâncias cênico-visuais e a maneira como são constituídos os cenários, os figurinos e os recursos gráficos e multimídia etc.” (BECKER, 2012, p.243); os aspectos do som identificando as trilhas, ruídos que integram a narrativa audiovisual; e, a categoria da edição para percebermos como foi feita a montagem da produção audiovisual. Na fase qualitativa da análise televisual são considerados três aspectos: a fragmentação da produção observando a duração do vídeo em relação ao aprofundamento e a superficialidade no tratamento dos temas; a dramatização para procurarmos desvendar o caráter dramático usado para envolver emocionalmente o telespectador; e a definição de identidades e valores que “(...) permite conhecer as marcas enunciativas da narrativa audiovisual referentes aos valores atribuídos a problemas e conflitos locais e globais e os modos como são julgados e qualificados” (BECKER, 2012, p.244). REPRESENTAÇÕES E ESTEREÓTIPOS As mediações realizadas pela mídia são representações. Os discursos midiáticos são representações da realidade, onde o emissor (o veículo de comunicação) tenta representar algo da forma mais fidedigna, então, o receptor (telespectador, leitor, audiência) lida com as mensagens transmitidas desvendando-a segundo suas práticas significantes construídas ao longo dos discursos vivenciados. “O único sentimento que alguém pode ter acerca de um evento que ele não vivenciou é o sentimento provocado por sua imagem mental daquele evento” (LIPPMANN, 2008, p.29). As representações realizadas pela mídia acabam criando novas representações baseadas no mundo sensível. Mesmo sendo éticas e coerentes, as representações, como Santos (2008) elucida são recriações de determinados conteúdo: [...] todo ato comunicacional pode ser definido com uma forma de recriação de uma dada realidade captada por aqueles que se comunicam, a partir de seus próprios conceitos e preconceitos. Quando alguém formula e transmite uma mensagem, uma informação, faz um recorte da realidade e a recria de acordo com seus princípios. (Santos, 2008, p.16) Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1069 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto Soares (2009) analisa as representações, colocando que elas “(...) fazem parte do ambiente cultural em que se dão o pensamento, julgamento e ações dos seres humanos” (p. 26). As representações fornecidas pela mediação dos meios de comunicação contêm sentidos embutidos que podem nos revelar construções significativas além do que está evidente. “A representação feita pela mídia da realidade vão muito além da própria realidade que se pode perceber” (ALSINA, 2009, p.129). Então, cabe perguntarmos qual o sentido que tendem as representações do produto audiovisual em questão? Lembrando que é necessário um esforço interpretativo para decodificar os textos, e consciência que esta analise é uma visão, outras análises com outros instrumentos investigativos teórico-metodológicos podem nos mostrar outros resultados, “(...) não extrairemos representações acabadas, mas possibilidades de significação, ou seja, possibilidades de leitura dos enunciados e das visualidades (...)” (BECKER, 2012, p.238). Assim, não negligenciarmos a complexidade dos processos comunicativos e suas relações com os componentes histórico-sociais, “(...) precisamos considerar que os fenômenos de mídia se encontram em permanente mudança, ensejando o aparecimento contínuo de problemas e exigências cada vez mais variados e complexos (...)” (RÜDIGER, 2009, p.53). Dessa maneira buscamos desvendar as representações midiáticas para não encararmos como natural algo que é construído. Pois, existem representações concebidas para simbolizar categorias/classes inteiras, como por exemplo, de determinados tipos humanos, determinados grupos étnico e seus costumes, que empregam conceitos generalizados, baseadas em crenças pré-concebidas. Lippman (2008) considera tais representações como estereótipos, por serem elaboradas julgando um todo por meio de generalizações baseadas em cima da visão de uma parte Todas estas generalizações são tiradas de amostras, mas as amostras são selecionadas por um método que estatisticamente é totalmente não confiável. (...) A tendência da mente casual é pegar ou achar por acaso uma amostra que confirme ou desafie seus preconceitos, e então fazê-la representativa de toda uma classe. (p.141) O estereotipo é uma falsificação que emerge diante da complexidade de trazer à tona todas as nuances e diversidades do mundo e dos seres humanos. “Estou argumentando que o padrão dos estereótipos no centro de nossos códigos determina largamente que grupo dos fatos nós veremos, e sob que luz nós o enxergaremos” (LIPPMANN, 2008, p.120). Por isso, na análise procuraremos interpretar nosso objeto de estudo considerando as características estereotipadas sobre mulher negra. As representações trazem textos que evocam diversos sentidos podendo enfatizar diferenças e similaridades. E, conforme viemos argumentando até o momento “(...) a veiculação das representações pelos meios de comunicação têm um inegável impacto destes na construção social dos significados partilhados (...)” (SOARES, 2009, p.7). REPRESENTAÇÕES AUDIOVISUAIS Apesar do caráter aparentemente objetivo das imagens, durante muito tempo acreditou-se que as inovações técnicas permitiram a captura de um pedaço da realidade/ verdade através das fotografias e dos vídeos, mas as imagens também são representações, “(...) não são conjuntos de símbolos com significados inequívocos, como o são as cifras: Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1070 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto não são ‘denotativas’. Imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo (...)” (FLUSSER, 2002, p.8). Como representações são produto da mediação, o que inclui a seleção de certos elementos em detrimento de outros. Por mais que as construções imagéticas representativas tenham efeitos de verdade dependendo dos objetivos dos enunciadores as (...) imagens não falam por si sós, mas expressam e dialogam constantemente com modos de vida típicos da sociedade que as produz. Nesse diálogo elas se referem a questões culturais e políticas fundamentais, expressando a diversidade de grupos e ideologias presentes em determinados momentos históricos (Novaes, 2005, p. 110). Empregando os recursos expressivos, como imagem em movimento, som, edição, grafismos, linguagens verbais, que os vídeos conseguem contar sua história. Cada elemento usado integra o sentido do texto audiovisual. Machado (2011) nos orienta para considerarmos os processos de escrita que constroem representações nos produtos audiovisuais, pois, o vídeo é “(...) para ser encarado como um sistema de expressão pelo qual é possível forjar discursos sobre o real (e sobre o irreal). Em outras palavras, o caráter textual, o caráter de escritura do vídeo, sobrepõe-se lentamente à sua função mais elementar de registro” (p.173). Assim, cabe seguir o processo de interpretarmos os significados apresentados pelas representações audiovisuais “(...) desvendando suas características enunciativas, seus modos de construir sentidos, inclusive porque, nas sociedades contemporâneas, a competência comunicativa passa por um domínio dos códigos audiovisuais” (BECKER, 2012, p.235). DESCRIÇÃO DO OBJETO DE ANÁLISE O teaser é um recurso publicitário que tem entre suas características e funções uma duração curta e o objetivo de fornecer ao telespectador a noção geral sobre o que será abordado no programa, série, jornal ou qualquer outra produção audiovisual. O teaser em questão veiculou nas primeiras semanas do mês de setembro do ano de 2014, para divulgar, apresentar e simultaneamente convidar o público a assistir o seriado “Sexo e as Negas” da Rede Globo. A peça inicia apresentando uma área com prédios, que nos lembra os conjuntos habitacionais, por meio de um grande plano geral, aquele que temos uma visão panorâmica, depois, vai aproximando até chegar a uma rua que está entre aqueles prédios mostrados na primeira imagem. Nesta primeira sequência vamos do geral para o particular através do uso dos planos. Além da iluminação, com a presença de tons amarelos e laranjas ser similar a luz do pôr-do-sol. Então, tem-se a imagem de quatros mulheres negras, vestidas com roupas coloridas e curtas e inicia a narração que apresenta cada uma das personagens. A narração é feita por uma voz masculina e diz: “Estas quatro amigas querem tudo de melhor...”, enquanto isso é narrado aparece uma sequência de imagens das personagens: sendo beijada na mão, um homem puxando outra personagem para junto de seu corpo e outra beijando veemente um homem, essas cenas são cortadas conforme o ritmo da trilha sonora, uma espécie de batida. Então, a narração retorna e diz “diversão” e mostra o rosto de uma personagem e surge sobre a imagem a palavra Tilde, o nome dela. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1071 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto O fundo dessa imagem foi saturado para ficar na cor roxa o que confere mais destaque ao rosto da personagem. Em seguida aparece a personagem Tilde falando “Eu não posso ficar fugindo de você todo o tempo” para um homem que a olha. A narração retorna com a imagem de outro rosto em close-up, a personagem é Soraia, há repetição do fundo da imagem em roxo e o nome Soraia aparece escrito sobreposto na imagem. A narração é a seguinte: “Gente falando bem”, depois corta para imagens desta personagem abraçando e beijando outro homem contra uma parede, demonstrando desejo. A próxima cena mostra os dois, Soraia e o homem, se olhando, então, ela diz “Gosta tanto do meu cabelo assim?”. E, segue a ação: ele tentando beijá-la, ela se afasta, ele sai da cena e ela vai atrás dele. A sequência seguinte é a imagem em close-up com fundo na cor roxa da terceira personagem, Zulma, enquanto o narrador diz “um cara bacana”. Corta para a personagem falando para um homem que pode ser algum parente ou conhecido, por estar sentado e ser o primeiro homem que aparece distante do corpo da personagem, ele se vira para olhá-la quando ela fala “Eu vou arrumar um homem possível pra mim”. A próxima cena é ela em um ambiente escuro olhando e gesticulando diretamente para a câmera. Corta para a introdução da última personagem que é mostrada dançando com um homem e a narração diz: “Se não for pedir demais”. Corta para imagem da personagem andando apressada enquanto o homem a segue tentando acompanhá-la e pergunta “Que pressa é essa?”, ao que ela responde: “Desculpa, tenho que resolver um problema”. Esse cenário que a personagem está andando é um corredor com vários casais se beijando encostados em ambas as paredes. Então, aparece a imagem close-up do rosto dela, também com o fundo na cor roxa e o texto que é o nome da personagem (Lia) enquanto o narrador diz: “uma boa pegada”. Seguida pela cena do homem que estava atrás da personagem a colocando contra a parede e dizendo “Também tenho um problema que eu tenho que resolver” e a beija. A sequência finaliza com uma criança vestida de pijama que se aproxima da personagem Lia, e diz “Vó?”, e o homem que a estava beijando se afasta e fala com espanto na voz: “Vó!”. A trilha sonora começa cantando “Nega, agora é...” sobre o plano geral em panorâmica dos prédios que apareceram na primeira imagem do vídeo, só que agora está de noite. Então, sobre a imagem de outro plano geral que mostra uma rua e a cidade também de noite, a narração retorna e a trilha sonora tem seu volume diminuído, falando “Agora é tudo...”. Corta para close-up que trás um quadril feminino dançando e requebrando e o narrador repete “Agora é tudo...”. Corta para o rosto de uma das personagens, Lia, que está colado com o rosto de um homem enquanto dançam e o narrador fala “... do jeito delas”. Segue a imagem da personagem Soraia apontando o dedo para um homem e dizendo “Se liga que agora o papo é reto”. Então, retorna para o enquadramento mostrando as quatro personagens em pé uma ao lado da outra, com outra voz masculina narrando “Vem aí”. Corta para uma imagem de um homem sem camisa dentro de um carro segurando e beijando a perna de uma mulher. Então, mostra um fundo rosa com logomarca do título do seriado “Sexo e as Negas” e um segundo narrador diz o nome do programa. Corta para a imagem da personagem Soraia falando: “Agora eu quero é ser feliz”. Finaliza com um fundo branco com a logomarca da Rede Globo em rosa. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1072 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto ANÁLISE TELEVISUAL QUANTITATIVA Considerando a categoria da estrutura do texto observamos que o vídeo tem duração de 40 segundos, contem elementos dinâmicos, abusando de cortes rápidos que combinam perfeitamente com o ritmo ditado pela trilha sonora tanto música quanto os efeitos sonoros. O vídeo inicia ambientando o local onde acontece a ação, e conforme mostra a rotina ou como o narrador diz o que desejam as personagens vai aproximando as imagens do ambiente e das personagens usando enquadramentos mais próximos. A narração é intercalada com ações das personagens para mostrar o que é mencionado. O tom de voz e o estilo de narrar é descontraído, com a interpretação das emoções que as palavras evocam, por exemplo, na hora que diz “Uma boa pegada” a voz transforma-se trazendo força e vontade/desejo para a entonação. Para a análise temática criamos categorias conforme a recorrência de assuntos similares, próximos e/ou idênticos, agrupando os conteúdos em: Desejo associado ao querer relacionamentos, beijos, sexo aparecem doze vezes menção a esses temas; outro grupo estruturado em torno da ideia de querer homens para namorar mencionado dez vezes; a categoria diversão, festa, baile e dança é mostrada oito vezes; e a questão da família e amizade figura quatro vezes. Consideramos para o agrupamento as imagens, as palavras que apareciam, as falas das personagens, os textos narrados e a trilha musical. Interessante notar que as três primeiras categorias do desejo sexual, do desejo por homens e da diversão aparecem juntas, na mesma cena. Na análise dos enunciadores, ou seja, a observação das vozes, diálogos presentes e ausentes identificamos a ausência de uma narradora feminina, o produto têm apenas dois narradores homens apesar de ser um programa sobre mulheres. E, ao aplicarmos a categoria da visualidade observamos que as personagens vestem roupas coloridas e curtas na maioria das vezes; a paleta de cores trabalhada nos cenários, figurinos, é composta por cores quentes como laranja, amarelo, vermelho, rosa, dourado, roxo, bronze. Ainda destacando a visualidade do vídeo percebemos que tirando os dois segundos iniciais, a ação se passa toda em cenários com pouca iluminação, escuros e de noite, o que dificulta enxergarmos as personagens por elas terem a pele negra, portanto, fundem-se com as áreas escuras das imagens. Os elementos sonoros do vídeo foram todos estruturados de forma sincrônica com as imagens, os cortes as mudanças de expressão e conteúdo do teaser. Foi um processo de elaboração meticuloso a construção da trilha sonora por meio de uma edição que não deixou escapar nada sem o uso do som, seja como fundo musical ou efeitos sonoros, tudo casado para enfatizar as expressões e ações da narrativa. Concluindo percebemos que o vídeo foi editado de forma a chamar a atenção. A edição priorizou pelo movimento e dinamismo, pois, em 40 segundos de vídeo temos 46 cortes o que dá mais de um corte por segundo, a montagem da trilha sonora também acompanha essa velocidade. Gerando uma peça audiovisual dinâmica, atrativa que explorou os recursos das cores, movimentos e com uma narrativa estruturada em torno do nome do seriado. ANÁLISE TELEVISUAL QUALITATIVA Na observação do princípio da enunciação dramática vemos que o caráter ficcional é explícito no texto audiovisual, pois, a apresentação do conteúdo não segue a forma Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1073 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto tradicional que notícias e matérias são apresentadas pelos telejornais com o apresentador aparecendo por trás do balcão sentado ou de pé. Apesar da informação do produto ser um seriado aparecer apenas no final do vídeo a produção inicia com imagens e movimentos de câmera que não são típicos da linguagem audiovisual do jornalismo e emprega uma trilha sonora com um ritmo animado. O processo usado para envolver o telespectador com o enredo é trabalhado desde as primeiras cenas. Pois, o vídeo inicia fornecendo a vista panorâmica de um conjunto de prédios faz um movimento de aproximação, e a imagem seguinte é uma parte desses prédios, outro movimento de câmera que nos leva para mais perto, e vemos uma rua com carros, motos e pessoas andando, então, teremos um plano conjunto mostrando dos pés a cabeças as quatro personagens uma do lado da outra, assim seguem imagens delas com homens em um plano próximo onde vemos parte da cintura para cima até chegarmos a aproximação total o close-up dos rostos de cada uma. Essa edição e planos de câmera foram usados conjugados com a trilha sonora para tentar trazer, chamar a atenção, do telespectador para a história o que acaba reforçando o aspecto da dramatização através trilha sonora com seus picos e acelerações reforça a sensação de movimento para as imagens. A construção da narrativa deste texto audiovisual é organizada com início, meio e fim. O início mostrando o lugar e dizendo que ali vivem quatro amigas. O meio trazendo a afirmação que as quatro amigas querem tudo de melhor da vida e aparecendo imagens delas se envolvendo ou querendo relacionamentos amorosos, esta parte é marcada pela apresentação das personagens. Então, temos o clímax que é estruturado em torno do desejo sexual das personagens, o clímax é quando uma ação interrompe o percurso crescente para inserir um entrave a obtenção do objeto de querer/ desejo, no caso, o objeto de querer é o sexo. As imagens a princípio mostram todas junto com homens, nos levando a acreditar que elas conseguirão obter seu objeto de desejo, mas a sequência da personagem Lia sendo beijada e a neta aparecendo para literalmente “quebrar o clima” entre ela e o homem que a beijava, rompe a narrativa do vídeo. E, para encerrar o enredo do teaser, temos a apresentação do nome do seriado seguida por uma cena de sexo dentro de um veículo e a fala indicando que as personagens querem mesmo é ser feliz, através da cena final da personagem Soraia dizendo isso. No princípio enunciativo da definição de identidades constatamos como valores almejados pelas personagens o desejo associado ao sexo e a diversão. Antes mesmo de mostrar quem eram as personagens do seriado, temos a narração falando que quatro amigas querem tudo de melhor na vida, e simultâneo a essa narração vemos imagens de duas mulheres sendo beijadas, a primeira na mão e a segunda na boca, e uma outra mulher sendo puxada por um homem para perto de seu corpo. Levando-nos a concluir que o que representa querer tudo de bom para a vida é querer o acontece nas imagens, deixando evidente o querer (desejo) sexo. A ideia de diversão também é associada ao desejo por ter um homem, como mostra a sequência de apresentação da personagem Tilde. A narração depois de dizer no início “Essas quatro amigas querem tudo de melhor da vida...”, retorna sobre a imagem desta personagem dizendo “... diversão” concomitante aparece a personagem falando para um homem – em um ambiente que nos lembra uma festa/baile – que não pode ficar fugindo dele o tempo todo. E, se a pessoa não quer fugir de algo significa que ela não Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1074 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto deseja ficar longe, e o contrário de ficar longe é ficar perto, portanto depois da menção da palavra diversão, aparece uma mulher dizendo que não pode ficar fugindo de um homem, podemos relacionar ao sentido de diversão apresentado nesta parte da narrativa do teaser como ficar perto de um homem. E por fim, os temas abordados são desejo associado ao querer sexo, beijos, diversão e ter um homem por perto. Mas, notamos que as cenas que trazem esses temas os apresentam como relacionados, nos indicando que se o desejo por sexo, homem e diversão, por estarem sendo mostrados juntos, significa que a diversão é satisfeita tendo os outros objetos referidos: o sexo, os beijos e homem por perto. REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA AUDIOVISUAL DAS MULHERES NEGRAS Agora podemos depreender algumas representações construídas acerca da mulher negra. A primeira e mais notória é a que estabelece a mulher negra com um desejo sexual exacerbado. Pois, se considerarmos a construção da narração dialogando com as cenas das personagens, constatamos o destaque do desejo sexual por parte das mulheres negras. Derivando desse desejo sexual por parte dessas personagens teremos a representação da mulher negra alegre, sempre com roupas coloridas, dançando e beijando. Fortalecendo a noção do desejo sexual, afinal, a mulher negra está alegre por praticar ações que podem levá-la ao ato sexual. No vídeo analisado não há um momento que nos mostre alguma das personagens trabalhando, ou conversando sobre outro assunto que não o desejo por sexo/relacionamento amorosos. Apesar de ser uma produção audiovisual de apenas 40 segundos, há uma repetição que reforça e reitera a noção da mulher negra desejando sexo. São 46 imagens dentre as quais 21, ou seja, 45,6% do vídeo mostrando as personagens sendo beijadas, abraçando, dançando com rosto e corpo colado a homens, ou fazendo referência direta, como na cena sexo dentro do carro. Será que mesmo com o tempo reduzido, se o vídeo teve a oportunidade de mostrar 21 cenas que remetem ao desejo por sexo, será que não havia espaço para outros assuntos? Tais representações dialogam com noções estereotipadas e preconceituosas construídas em torno da mulher negra ao longo da história do Brasil. Durante a escravidão, as mulheres negras, por serem escravas, eram vistas como objetos para serem usufruídos pelos seus donos como nos fala Luciano Figueiredo, “(...) mulheres escravas elas suportariam uma dupla exploração: sexual e econômica. A escravidão revelaria então uma de suas faces mais perversas (2001, p.52). A pesquisadora Rachel Soihet nos diz que as mulheres pobres do Brasil por não se encaixarem no modelo de feminilidade brasileiro no século passado acabaram sendo julgadas como mulheres que não mereciam o respeito de seus maridos e outros homens, podendo sofrer violação do seu corpo e outras formas de violência por terem cometido a indecência de saírem para trabalhar e algumas até ousando se defender de ofensas. Elas não tinham autoridade sobre seus corpos. “Assim, permaneceriam as mulheres por longo tempo sem poder dispor livremente de seu corpo, de sua sexualidade, violência que se constituiu em fonte de múltiplas outras violências” (Soihet, 2001, p.390). Considerando que o vídeo de divulgação do seriado “Sexo e as Negas” reforça o estereotipo da mulher negra pobre, pois, os cenários são compatíveis com um local de Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1075 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto moradia popular, os bailes apresentados são correspondentes ao bailes do estilo musical funk característicos favelas do Rio de Janeiro, ou seja, nos indicando que as personagens negras são pobres. Mas, o fato pejorativo de mostrar estas mulheres apenas considerando seu desejo sexual pode ser interpretado sob outra perspectiva por apresentar mulheres desejando sexo, quando no século passado sinônimo de mulher direita era mulher que não sentisse prazer na relação sexual (PRIORE, 2001). Apesar, da maioria das cenas as mulheres não serem portadoras da ação, apenas recebendo, pois, elas que estão sendo beijadas, empurrada contra parede. As ações de tomar a iniciativa pelo princípio do namoro/beijo/sexo, é do homem elas estão recebendo as ações dos homens, há uma impressão ilusória de liberdade por mostrar as personagens querendo sexo quando no passado isso era negado às mulheres, mas que é quebrada por não terem o poder da ação, são submissas as ações dos homens que irão ou não realizar seus desejos. E, como lembram Maria Izilda Matos e Rachel Soihet (2003), as mulheres negras sempre foram vistas e associadas ao desejo e sensualidade, um exemplo disso foram a representações das negras feitas pelos europeus, eram retratos de mulheres com tendência ao requebrado devido às danças praticadas dentro das senzalas pelos negros. Portanto, o que poderia ser um mote de discussão para problematizar se nossa sociedade ainda mantém os padrões de controle sobre a sexualidade e o prazer feminino é mais uma reafirmação do estereotipo da mulher negra ser tipificada como hipersexualizada. Para finalizar esses apontamentos iniciais sobre as representações do vídeo analisado, lembramos os sentidos contidos na expressão “negas” que evoca uma série de significados pejorativos. A expressão “não sou tuas negas” normalmente empregada para significar que a pessoa não quer ser tratada de maneira inferior ou com falta de respeito. É uma ideia estruturada na escravidão, onde a negra podia e devia ser usada como objeto para realização econômica e sexual ou como bem entendesse o escravocrata. Assim acaba-se resgatando um conceito mais discriminatório ainda, aquele que difundia, inclusive através da religião, que os negros podiam ser escravizados, excluídos dos direitos que todos os seres humanos tinham de liberdade, por terem a pele escura. Portanto o adjetivo racista, “negas”, ao integrar o nome do seriado retoma todos esses aspectos discriminatórios construídos historicamente. APONTAMENTOS FINAIS A analise aqui apresentada baseia-se apenas em um dos teaser de divulgação do seriado “Sexo e as Negas”, produzido e veiculado na Rede Globo de Televisão. É apenas uma amostra que foi tratada de forma qualitativa, e apresentou tantas representações estereotipadas.Por isso, temos que estar atentos às representações midiáticas. Este é um clamor que procuramos deixar nas conclusões deste trabalho. Pois, mesmo diante dos novos espaços de fala advindos com a Internet, dando mais espaço para as manifestações das pessoas consumidoras dos produtos de comunicação. Ainda, temos discursos repletos de signos e imagens preconceituosas sendo veiculados. Não é perguntar qual representação é mais real, mas entender que algumas adquirem mais autoridade do óbvio, do senso comum, mas portando-se como extração da realidade, de tal modo que se chega a esquecer seu status de representação, adquirindo valores de verdade. Estamos em pleno século XXI, e nas mídias proliferam discursos Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1076 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto sobre igualdade de gênero e racial, porém uma das maiores emissoras de televisão do Brasil perpetua estereótipos que resgatam preconceitos e discriminações do tempo da escravidão. Comprometemo-nos com a leitura crítica dos produtos midiáticos é essencial para colaborarmos com a construção de veículos de comunicação que promovam a cidadania ao trazerem a diversidade e a pluralidade em suas representações. Afinal, analisar “(...) como um grupo social é representado pode nos indicar o quanto esse grupo exercita o poder; pode nos apontar quem mais frequentemente é ‘objeto’ ou é ‘sujeito de representação’” (LOURO, 2001, p.464-465). As imagens, as representações audiovisuais estão em todos os lugares, os discursos imagéticos estão presente e nos cercam com seus discursos repletos de sentidos. Portanto, temos que ter o senso crítico, praticar pesquisas cientificas para desvendar as mensagens subliminares das representações, além de incentivar que a leitura crítica seja feita. REFERÊNCIAS Alsina, M. R. A (2009) Construção da Notícia. Rio de Janeiro: Vozes. Becker, B. (2012). Mídia e Jornalismo como formas de conhecimento: uma metodologia para leitura crítica das narrativas jornalísticas audiovisuais. MATRIZes, São Paulo, 5(2), 231250. Recuperado em agosto, 2014, de: http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/ article/view/247 Blogueiras Negras. (2014, setembro 10). Ah! Branco, dá um tempo! Carta aberta ao senhor Miguel Falabella. Recuperado em setembro, 2014, de: http://blogueirasnegras. org/2014/09/10/ah-branco-da-um-tempo-carta-aberta-ao-senhor-miguel-falabella/ Del Priore, M. (Ed.) (2001). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: UNESP and Contexto. Flusser, V. (2002) Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará. Globo.Com. Sexo e as Negas. Recuperado em outubro, 2014, de http://gshow.globo.com/ programas/sexo-e-as-negas/index.html Leon, D. P. de. (2016, setembro 16). Programa Sexo e as negas estréia nesta terça sob denúncias de racismo. Recuperado em outubro, 2014, de http://www.correiobraziliense.com.br/ app/noticia/diversao-e-arte/2014/09/16/interna_diversao_arte,447228/programa-sexo-e-as-negas-estreia-nesta-terca-sob-denuncias-de-racismo.shtml Lippman, W. (2008). Opinião Pública. Petrópolis, RJ: Vozes. Louro, G. L. (2001) Mulheres na Sala de Aula. In Del Priore, M. (Ed.), História das Mulheres no Brasil. São Paulo: UNESP e Contexto. Machado, A. (6 ed.) (2011). Pré-cinemas & Pós-cinemas. 6 ed. Campinas, SP: Papirus. Martín-Barbero, J. (1999) Novos Regimes de Visualidade e Descentralizações Culturais. In Paula, V. M. P et al.(Ed.) Mediatamente! Televisão, Cultura e Educação. (pp. 17-40). Brasília: Secretaria de Educação a Distancia. Matos, M., I., & S. Soihet, R. (Ed.) (2003). O corpo feminino em debate. São Paulo: Unesp. Neto, J. F. (2014, setembro 16). Racismo: movimento negro realiza protesto contra seriado “Sexo e as Nega”. Recuperado em outubro, 2014, de http://www.brasildefato.com.br/ node/29845 Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1077 Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas” Emanuelly Silva Falqueto Novaes, S. C. O. (2005) Uso da Imagem na Antropologia. In Samain, E. (Ed.) O Fotográfico. (3 ed.) (pp.107-113). São Paulo: Senac. Rüdiger, F. (2009). Ciência Social Crítica e Pesquisa em Comunicação: Trajetória histórica e Elementos de Epistemologia. Porto Alegre: Gattopardo. Santos, R. E. dos. (2008). As Teorias da Comunicação: Da fala à Internet. São Paulo: Paulinas. Soares, M. C. (2009). Representações, jornalismo e a esfera Pública. São Paulo: Cultura Acadêmica. Soihet, R. (2001). Mulheres Pobres e Violência no Brasil. In Del Priore, M. (Ed.), História das Mulheres no Brasil. São Paulo: UNESP e Contexto. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1078 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Memories in motion: the communitarian video in the border between reality and representation Juliana Oshim a Fr anco 1 Resumo: A investigação sobre as particularidades da imagem-som em movimento reúne hoje um complexo arcabouço teórico marcado decisivamente pelas ideias de realidade e representação. Sua natureza opaca ou transparente tem sido dilema fundamental ao processo de desenvolvimento do audiovisual enquanto linguagem artística e estratégia de representação, pondo em relevo sua importância cultural, social e política. Tal dualidade também marcou o movimento do vídeo popular e sua abertura ao vídeo comunitário contemporâneo, conceito que propõe novas posturas e expectativas em relação ao potencial transformador do audiovisual. Este artigo irá observar principalmente como, ao longo dessa passagem, o que chamamos de posição fronteiriça entre realidade e representação se reafirma enquanto traço singular do audiovisual, responsável por sua permanência e sua força enquanto ferramenta estratégica de comunicação na atualidade. É jogando com esse poder de tanto legitimar realidades, quanto construir discursos e fabulações sobre o real, que o audiovisual se estabelece enquanto lugar de processos colaborativos e experimentação de novas formas de interação social. Palavras-Chave: Comunicação. Vídeo Comunitário. Vídeo Popular. Realidade. Representação. Abstract: The research on the particularities of image-sound in movement brings together a complex theoretical framework decisively marked by the ideas of reality and representation. Its opaque or transparent nature has been a fundamental dilemma for the development of audiovisual as an artistic language and a representation strategy, emphasizing its cultural, social and political value. In Brazil, this duality also marked the popular video movement and its openness to the contemporary communitarian video, a concept that proposes new attitudes and expectations on the transforming potential of audiovisual. This article will mainly observe how, over this passage, what we call a border position between reality and representation will be revealed as a natural feature of audiovisual, responsible for its permanence and its strength as a strategic tool of communication. It is playing with this power to both legitimize realities and build speeches and fables about the real, that the audiovisual is established as a place of collaborative processes and new forms of social interaction. Keywords: Communication. Communitarian Video. Popular Video. Reality. Representation. 1. Jornalista, especialista em Comunicação Popular e Comunitária e mestre em Comunicação. É coordenadora do curso de pós-graduação (lato sensu) em Linguagem Audiovisual e Cinema do UniCesumar, e também professora colaboradora do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected]. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1079 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco INTRODUÇÃO: AS TENSÕES ENTRE REALIDADE E REPRESENTAÇÃO Qualquer estudo no campo da imagem se deparará, em algum momento, com as ideias de realidade e de representação. As tensões entre estas duas noções têm sido extremamente produtivas, e até determinantes para o desenvolvimento das representações visuais, em especial da linguagem cinematográfica e audiovisual. Por essas tensões, dispomos hoje de um importante acúmulo de propostas e experimentações estéticas e discursivas, levadas a cabo por diferentes escolas e movimentos culturais e políticos que, especialmente a partir do século XX, passaram a se apropriar da imagemsom em movimento para revelar e reinventar a forma como vemos e damos sentido às coisas que vemos. Dos pré-cinemas aos pós-cinemas, ninguém passou incólume por este debate (Machado, 1997; Xavier, 2005). Entre presença e ausência, ciência e arte, real e imaginário, transparência e opacidade, objetividade e subjetividade, não ficção e ficção, e tantos outros dilemas possíveis, o cinema e todas as linguagens audiovisuais se fortaleceram, exercendo imenso fascínio na sociedade moderna, e adquirindo cada vez mais poder e impacto sobre os acontecimentos do mundo. Ao longo dos estudos da imagem, em especial no campo do cinema e do audiovisual, boa parte dos fustigadores deste debate acabou por assumir uma postura ou outra: ou defendendo seu objetivo realismo, ou denunciando seu absoluto caráter de construção (representação). Mais recentemente, no entanto, a questão passou a ganhar novos contornos: nem tantos esforços concentrados em eleger uma ou outra vocação para o cinema ou o vídeo, e sim a necessidade de compreender como essas suas duas potencialidades continuam sendo apropriadas e reativadas nas estratégias de representação e expressão de quem os utiliza. Em síntese, partimos do pressuposto que, como toda representação, o audiovisual é tanto uma forma de registro, quanto um discurso, e não uma coisa ou outra. Ao defendermos a posição fronteiriça entre realidade e representação como sua maior especificidade, buscamos justamente observar que tal duplicidade é inerente a toda imagem-som em movimento, e que mesmo a imagem mais realista carrega um ponto de vista, assim como a imagem mais abstrata ou onírica busca estabelecer algum grau de relação com isso que chamamos realidade. Em outras palavras, queremos justamente demarcar, no emprego da palavra realidade, o aspecto objetivo e documental da imagem audiovisual. E com representação, o caráter subjetivo, de construção simbólica que coexiste nessas imagens. Não tratamos realidade e representação como termos opostos ou excludentes, mas sim como ideias complementares que demarcam a coexistência de aspectos objetivos e subjetivos em toda produção audiovisual, ou até, poderíamos dizer, em todas as produções culturais e simbólicas2. Tentamos trazer neste artigo um recorte da dissertação de mestrado (Franco, 2012) cujo objeto de estudo foi o projeto Roda Memória, iniciativa que, por meio da realização de vídeo documentários com a participação de jovens de diferentes bairros 2. Temos consciência da complexidade que as ideias de realidade e representação colocam em termos filosóficos e conceituais. Assim, remetemos ao importante trabalho de Berger e Luckmann (1985), para os quais a compreensão disso que chamamos realidade passa pelo estudo das práticas comunicativas e da produção de sentido delas decorrente, na medida em que o homem é um ser cuja sociabilidade está diretamente vinculada à linguagem (e às representações, por conseguinte) como mediadora do mundo e do conhecimento. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1080 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco de Londrina (PR), buscou valorizar memórias e histórias de vida, multiplicando olhares sobre o passado da cidade. A pesquisa teve como motivação central compreender que aspectos fazem do audiovisual uma ferramenta estratégica de representação de grupos e comunidades diversas, investigando que traços desta linguagem poderiam estar relacionados à sua crescente apropriação e disseminação na sociedade, em especial no campo da comunicação comunitária. Ao longo do estudo, uma das etapas mais importantes foi revisitar as discussões que marcaram o movimento do vídeo popular no Brasil, e verificar que os dilemas que enfrentávamos na execução do projeto Roda Memória a partir da vontade de “dar a voz ao outro”, tinham sido os mesmos a suscitar o deslocamento do vídeo popular para o vídeo comunitário contemporâneo – passagem igualmente marcada pelas tensões entre realidade e representação. VÍDEO E DESCONSTRUÇÃO: A DESCOBERTA DE UMA VOCAÇÃO Surgido em meados dos anos 1960, o vídeo3 parece ter sido projetado para superar muitos dos impedimentos que faziam do cinema um meio de expressão para poucos (seja por barreiras financeiras ou técnicas), demarcando a abertura de um novo campo de expressão e experimentação no âmbito do audiovisual, que se seguiu às inovações trazidas pelas câmeras 16 mm e Super-8 que, apesar de mais portáteis que suas antecessoras, ainda se faziam reféns dos altos custos da produção em película. Segundo Arlindo Machado (1997, pp.188-200), se inicialmente o vídeo assumiu uma postura parasitária em relação a outros meios, especialmente ao cinema, suscitando prognósticos fatalistas de que, junto à televisão, a imagem eletrônica poderia decretar o fim da sétima arte, o que de fato pudemos observar foi que os diálogos entre cinema, vídeo e televisão se mostraram muito mais profícuos e desafiadores para cada uma das partes, estimulando a reinvenção de suas linguagens. Inicialmente envolto num misto de expectativas de democratização dos meios de comunicação e desconfianças sobre seu impacto sociocultural, o fenômeno do vídeo teria ganhado amplitude através de movimentos como a nouvelle vague, o underground americano, o cinema novo e as experimentações da videoarte, vindo a contar com importantes adeptos, nomes de peso como Hitchcock, Godard, Fellini, Orson Welles, Scorsese e Rybczynski – apenas alguns exemplos de cineastas que aproveitaram o fôlego criativo desta ferramenta para experimentar e propor novos usos, formatos e estéticas. Explorado por cineastas, publicitários, comunidades, artistas plásticos, jornalistas, movimentos populares, universitários e tantos outros grupos e indivíduos, Machado (1997) acredita que o vídeo conseguiu, ao extrapolar seu programa elementar de registro documental da realidade (sua transparência), ganhar força como “sistema de expressão pelo qual é possível forjar discursos sobre o real (e sobre o irreal)”. Seu surgimento teria deflagrado uma verdadeira transformação perceptiva, “efeito de opacidade significante a que muitos atribuem hoje um caráter apocalíptico”, como se ela “praticasse alguma espécie de ‘desrealização’ do mundo visível” (p.209). O vídeo, na sua livre experimentação 3. O Betamax, da Sony, e o VHS (Video Home System), da JVC, foram os primeiros sistemas de gravação e reprodução de áudio e vídeo lançados comercialmente entre as décadas de 1970 e 1980. A ideia de vídeo está diretamente ligada a esses sistemas de matriz eletrônica e analógica, embora hoje abarque também os sistemas digitais. Neste trabalho, consideramos vídeo um termo dinâmico, que designa tanto um produto audiovisual quanto um processo de produção; tanto uma tecnologia, uma ferramenta, quanto um fenômeno cultural. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1081 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco no terreno da manipulação do realismo de sua imagem, e revelando toda a magia por traz de uma linguagem considerada até então inacessível, ganharia status de instrumento revolucionário. Os aparentes deméritos da imagem eletrônica em relação ao cinema parecem não ter impedido que o vídeo se consolidasse como importante meio de comunicação independente, uma vez que seu potencial enquanto ferramenta de expressão versátil, de baixo custo e fácil operação sempre esteve acima do compromisso com uma qualidade cinematográfica: a ideia de um instrumento “para todos”, em que basta “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, sempre foi sua pedra de toque e um de seus principais diferenciais. As experiências em vídeo no Brasil comprovariam sua importante influência na reconfiguração de padrões simbólicos consolidados, ao inserir práticas questionadoras e autônomas num ambiente tipicamente formalista e perfeccionista, herdado do cinema. Também tiveram grande impacto sobre a linguagem televisiva que, necessitando reinventar-se, abriu-se para inovações e novas propostas estéticas que eram propostas pelos videastas, e que buscavam questionar as convenções de representação e os modelos iconográficos tradicionais, intervir criticamente na realidade do país e experimentar novas formas de produção audiovisual (Machado, 2001). Para o autor, o vídeo teria se consagrado, assim, como plataforma expressiva cuja vocação está amalgamada à ideia de desconstruir: verdades, modelos, mitos, representações, discursos e padrões de produção. E ao fazer a síntese da mais intensa experimentação vanguardista com a mais arraigada representação realista, teria dissolvido as fronteiras entre imagens técnicas e imagens artesanais, analógicas e digitais, objetivas ou subjetivas e perpetuando, deste modo, sua “sintaxe visual híbrida” (Machado, 2007, pp.45-47). A partir do exposto, é possível verificar que as dicotomias transparência/opacidade, realidade/representação, não-ficção/ficção, incorporação/transgressão, também incidem sobre o fenômeno cultural do vídeo. É por isso que insistimos, mais uma vez, que o audiovisual, para além das diferenças teóricas e estéticas, é uma plataforma de expressão cujo potencial parece permanecer na fronteira entre essas duas grandes tendências, realidade e representação – ou seus conceitos correspondentes, a depender do recorte preferido – paradoxo que emerge na constatação deste seu caráter híbrido e múltiplo. Portanto, aprofundamos a seguir num nicho da produção audiovisual em que todas as potencialidades do vídeo (fácil operação, baixo custo, portabilidade, manipulabilidade, simultaneidade, transparência, opacidade, etc.) foram colocadas a serviço da mobilização, transformação e organização da sociedade, geralmente buscando romper os padrões hegemônicos de produção e distribuição dos produtos audiovisuais: num primeiro momento, como forma de engajamento político, e num segundo momento buscando reformular a própria pretensão de engajar o público. Vídeo militante, alternativo, popular, independente ou comunitário – muitas alcunhas para uma ferramenta multifacetada e paradoxal. A PROMESSA DA IMAGEM NAS MÃOS: DO VÍDEO MILITANTE AO VÍDEO POPULAR Um dos primeiros esforços de estudo e reflexão sobre o vídeo popular no Brasil foi empreendido por Luiz Fernando Santoro (1989). Como primeiro presidente da Associação Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1082 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), ele acompanhou de perto a ascensão, auge e desarticulação dessa entidade, cuja trajetória nos diz bastante sobre os objetivos e princípios que nortearam essas produções, e que repercutem até hoje nas experiências e realizações videográficas contemporâneas. O acontecimento histórico responsável por deflagrar o que chamou de vídeo militante, antecessor do vídeo popular, teria sido uma declaração de Godard feita no auge da contracultura no final da década de 1960, durante um evento sobre cinema em Montreal. Ele teria incitado os estudantes a tomarem a imagem nas mãos como forma de guerrilha contra a televisão de massa4: No início da década de 70 o vídeo passa a ser entendido, por sua potencialidade, como instrumento da contra-informação, isto é, que pode opor à informação hegemônica, veiculada pelos meios de comunicação de massa, uma outra verdade, uma outra informação que venha a preencher a lacuna deixada por esses meios pela omissão ou tratamento superficial de temas que questionem as relações de poder estabelecidas (Santoro, 1989, pp.22-23). A contra informação, a partir da perspectiva da luta de classes, teria como linhas básicas de ação a guerrilha receptiva (decodificação/leitura crítica dos meios); a utilização dos meios de comunicação tradicionais para expressão de conteúdos não usuais ou diferenciados; e a criação de circuitos específicos, de alcance reduzido – aspectos na maioria das vezes presentes nas propostas de vídeo popular, evidenciando sua forte relação com o vídeo militante (Baldelli citado por Santoro, 1989, p.23). A diferença entre esses dois tipos de práticas é que o vídeo popular é considerado pelo autor aquele que resulta especificamente da atuação de grupos de vídeo junto aos movimentos populares (associações de bairro, sindicatos e demais grupos organizados), buscando principalmente “uma maior participação política das classes populares em todos os setores da sociedade”. Seriam produções de instituições ou grupos independentes, voltadas para os interesses dos movimentos, de preferência com a participação dos grupos populares, e diferentes, deste modo, do vídeo militante, aquele que não se faria necessariamente a partir dos interesses das classes populares, abrangendo tanto a videoarte quanto as realizações de produtoras independentes para a televisão (Santoro, 1989, pp.59-61). Buscando identificar os motivos que imbuíam o vídeo deste seu caráter contraventor, Santoro elencou como vantagens a facilidade operacional, o baixo custo de produção, a circulação dirigida, a independência na produção, a facilidade de copiagem, a simultaneidade/monitoramento direto, o sincronismo de som e imagem num mesmo equipamento, enfim, tudo contribuindo para que nele se depositasse a esperança de democratização do acesso aos meios de produção audiovisual (até então monopolizados pelo cinema e a televisão), como uma importante ferramenta de intervenção e transformação social. Interessante notar, nesse sentido, que Santoro (1989), diferentemente de Machado, atribui ao vídeo vocação para o realismo e a objetividade: 4. Godard teria tido: “Quero dizer ao público, inicialmente, que ele não possui esse instrumento de comunicação – ainda na mão dos ‘notáveis’ –, mas que poderá servir-se dele se lhes derem oportunidade, para dizer e ver o que quiser, e como quiser” (Gauthier citado por Santoro, 1989, p.22). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1083 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco Outro elemento que diferencia fundamentalmente o filme do teipe é a idéia de “presença” deste último, isto é, a sua “impressão de realidade”. A imagem de televisão, seja em videoteipe, seja numa transmissão “ao vivo”, possui brilho, contraste e definição característicos, que a tornam aparentemente mais real do que a produzida por material cinematográfico, já que a imagem é, em televisão, produzida eletronicamente, e não quimicamente, como no cinema. A imagem fica “limpa”, sem ruídos, e este aspecto tem evidente vantagem numa cobertura jornalística, em sua busca constante pelo realismo e pela objetividade, mesmo que relativos, no tratamento de uma matéria (p.55, grifo nosso). Observe-se que tanto o vídeo militante quanto o vídeo popular, a partir do objetivo de desconstruir discursos e representações sobre, principalmente, o que viam como problemas do mundo, acabaram encontrando no realismo e na objetividade inerentes ao audiovisual, a estratégia necessária para construir suas novas/outras verdades. É por isso que o gênero documentário acabou sendo a via escolhida por grande parte dos grupos que se aventuraram neste terreno. E é por isso também que eles enfrentam o dilema de dar a voz ao outro, que discutimos mais à frente. O vídeo popular é fruto de um contexto histórico de luta por uma sociedade mais justa e igualitária, que buscou nessa ferramenta uma forma de democratizar os meios de comunicação, buscando tornar seus processos cada vez mais horizontais. Fortaleceu-se ao longo dos anos 1970 e 1980 através da inserção de grupos sociais no processo de produção e gestão de meios próprios, como forma de se contrapor à verticalização da televisão que, além de abrir pouco espaço para programação local, era acusada de manter distância dos movimentos populares, sempre distorcendo suas lutas. Por assumir uma demanda específica dos movimentos sociais organizados – uma demanda por autonomia e independência em seus processos comunicativos – é que o vídeo popular, diferente do militante, não cabia na estrutura da mídia tradicional (Santoro, 1989, p.62). A ABVP – inicialmente chamada de Associação Brasileira de Vídeo no Movimento Popular (ABVMP) – foi fundada em 1984, resultado de eventos e ações que vinham promovendo a valorização do vídeo enquanto ferramenta de mobilização e intervenção social, através de mostras, publicações, oficinas e debates sobre o assunto. Inicialmente formada por cerca de 50 representantes de grupos ligados aos movimentos populares ou indivíduos simpatizantes, sua constituição permitiu a organização e consolidação das prioridades e diretrizes do movimento do vídeo popular, além de ter viabilizado inúmeras iniciativas para a formação de multiplicadores e disseminação de sua metodologia diferenciada de produção videográfica, voltada à produção e circulação de conteúdos contra informativos (Santoro, 1989). A atuação da ABVP e o fortalecimento do vídeo popular realizaram a consolidação de preceitos e diretrizes que permeiam muitas iniciativas que, de forma geral, envolvem a defesa da democratização dos meios de comunicação, especificamente através do vídeo, como estratégia de organização social e mobilização, de circulação de novos conteúdos e representações. São ações pautadas principalmente pela preocupação em “dar voz aos que não têm voz”, idealizando “a imagem nas mãos” como forma de atingir não somente metas políticas, mas formas renovadas de interação social. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1084 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco Como dissemos, o aspecto fortemente contra informativo, essa postura de guerrilha, que recusa inserir-se no contexto dos meios de comunicação de massa e busca construir um aparato completo de formação, produção e exibição, marginal e independente da mídia hegemônica, aponta para um contexto em que se pensava ser impossível viabilizar o projeto político dos movimentos populares com o auxílio das instituições públicas ou privadas, muito menos utilizando da estrutura comunicacional tradicional. Mas esse cenário se transformou a partir da década de 1990. O dilema de dar voz ao povo De acordo com Henrique Luiz Pereira Oliveira (1999), o vídeo popular, na vontade de superar a separação entre produtores, protagonistas e espectadores, apostou na participação e na valorização do processo de envolvimento das comunidades nas realizações, deixando para segundo plano, no entanto, a qualidade do produto final. A defesa do vídeo-processo, com ênfase na formação de novos grupos de realizadores, tinha como principal objetivo diminuir a dependência de profissionais especializados, invertendo os padrões verticais de produção comunicativa. A participação idealizada pelo movimento do vídeo popular não teria como fim somente inserir as comunidades no processo de produção dos vídeos, mas pretendia, sobretudo, fortalecer o engajamento dos grupos sociais na transformação de suas realidades, na mudança de suas próprias condições de vida. Oliveira (2001a) ainda chama a atenção para a forma como, na maior parte das experiências, esse engajamento foi trabalhado através dos recursos videográficos ancorando-se, justamente, no traço documental do audiovisual: Para um dado mundo se tornar perceptível (uma sociedade injusta ou uma sociedade melhor, por exemplo) deve se constituir como seu correlato uma forma de percepção necessária à apreensão deste mundo, o que implica em ativar a experiência de realidade dos espectadores e em positivar determinados componentes da sua condição de agentes. A criação de um plano de realidade capaz de incitar à ação requer a delimitação do campo de observação, centrando o foco para um aspecto específico da existência, de modo a deixar patente o que está errado, o problema. A materialização de uma realidade-problema freqüentemente é efetuada pela exploração do caráter documental da imagem. A câmera é utilizada para expor a realidade na sua crueza, de modo a produzir evidências “realistas” aptas a captar o interesse e a mobilizar vontade de agir dos espectadores (pp.2-3, grifo nosso). O autor ainda sublinha como característica típica do vídeo popular sua demanda de convencer o espectador sobre a necessidade de transformar uma dada realidade, tornando os indivíduos e grupos “agentes de uma ação transformadora” (p.5). Porém, constata que o projeto de participação acabara por dar mais vazão à visão de mundo dos realizadores (dos educadores, comunicadores, e outros profissionais responsáveis pela formação dos alunos e condução das filmagens), do que aos ideais dos movimentos sociais – ou do povo – de fato, vindo a promessa de “dar voz aos que não têm voz” mostrar-se não somente utópica como frágil, o que teria arrefecido, por conseguinte, as expectativas em relação ao potencial transformador do vídeo. Jean-Claude Bernardet (1985) continua sendo uma das principais referências sobre o dilema de dar voz ao povo que, entre as décadas de 1960 e 1980, teria abalado a crença Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1085 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco no potencial de transformação social, não só do audiovisual, mas das artes e demais produções simbólicas em geral. Seu estudo tem o mérito de alertar para o potencial criador que emergia dessa crise e de suas contradições, para a importância das transformações estéticas e ideológicas que se sucederam a ela, e que repercutiram profundamente na “forma” dos filmes brasileiros do período, em especial dos documentários5. Como advertiu o autor, “as imagens cinematográficas do povo não podem ser consideradas como a sua expressão, e sim como a manifestação da relação que se estabelece nos filmes entre os cineastas e o povo” (p.8) – relação esta que extrapolaria a temática social ou popular, para acontecer principalmente no campo da linguagem. A preocupação principal do crítico ao longo da análise de cerca de vinte curtas-metragens do período foi identificar “quem era o dono do discurso”, mostrando como, apesar da pretensão de dar a voz ao povo, e das diferentes formas e recursos da linguagem audiovisual experimentados para atingir esse objetivo, tal pretensão vinha carregada de dilemas, e revelava não só encontros como desencontros entre cineastas e povo. A crise do que chamou de “modelo sociológico” de documentário – aquele que se apresenta como um discurso inquestionável de uma dada realidade, em geral utilizando do locutor onisciente, e de um sistema de generalização de dada verdade a partir do fragmento (sistema particular-geral) – teria levado à experimentação de novas formas de representação, que passaram a descentrar um olhar pretensioso sobre o outro para, num movimento de “voltar para si mesmo”, questionarem a objetividade com que o cinema vinha tratando as questões sociais. Como pressupõe Bernardet (1985, p.186), o fato de os cineastas do modelo sociológico não conseguirem fazer emergir o outro decorria das limitações da linguagem, a qual deveria ser “rompida”, transformando a visão de realidade: não mais entendida como “produção material”, mas caracterizada pelo imaginário e pela produção simbólica. Em termos de linguagem, essa passagem seria assinalada por três movimentos: (...) deixar de acreditar no cinema documentário como reprodução do real, tomá-lo como discurso e exacerbá-lo enquanto tal; quebrar o fluxo da montagem audiovisual e desenvolver uma linguagem baseada no fragmento e na justaposição; opor-se à univocidade e trabalhar sobre a ambiguidade (Bernardet, 1985, p.189). No entanto, nada disso teria sido o bastante para fazer emergir o outro. Isso porque, de acordo com autor, essa possibilidade estaria diretamente vinculada à propriedade dos meios de produção, de modo que, ao pretenderem-se “porta-vozes” do povo, mantendose sempre no comando da “palavra final”, os cineastas do período teriam, no máximo, “emprestado” a palavra ao povo. Tal dificuldade estaria relacionada diretamente à crise da esquerda e à constatação de que todos os esforços da intelectualidade teriam falhado na compreensão da sociedade brasileira. Dilemas e questionamentos que acabaram sendo abordados em diversos documentários, manifestando-se, sobretudo, na linguagem: 5. As tensões entre realidade e representação são ainda mais decisivas no campo do documentário, uma vez ser ele o gênero audiovisual cuja vocação está diretamente relacionada ao tratamento (criativo) da realidade. Toda a teoria e história do documentário gira em torno deste problema, havendo uma vasta bibliografia produzida a partir de diferentes correntes teóricas, que não cabem neste texto, mas são fundamentais, como Ramos (2008), Da-Rin (2006), e Nichols (2005). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1086 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco ao invés de voltar-se para o registro da cultura e tradições populares, como forma de definir verdades sobre a identidade nacional ou a realidade social, o documentário brasileiro passa a ser utilizado para revelar a impossibilidade de executar essa tarefa, investindo numa postura menos pretensiosa e mais reflexiva. A vontade de dar voz ao outro, no período abordado por Bernardet, encontrou um grande empecilho quando se constatou que, apesar de ser mostrado na tela, o povo continuava não “falando por si mesmo”, nem possuía de fato a “imagem nas mãos”. De modo que outras soluções precisavam ser pensadas – e experimentadas. DO VÍDEO POPULAR AO VÍDEO COMUNITÁRIO CONTEMPORÂNEO O fim do regime militar foi bastante decisivo para as transformações que aconteceram no escopo do audiovisual militante, popular e comunitário. Em meados da década de 1980, já no período de abertura política, boa parte da conjuntura opressora e cerceadora que alimentava a rebeldia contra informativa passou a ser substituída pela esperança no regime democrático e sua promessa de liberdade, igualdade e participação popular. Não por acaso, assistimos ao refluxo dos movimentos populares e ao fortalecimento do terceiro setor após a redemocratização. Segundo Henrique Luiz Pereira Oliveira (1999) tal conjuntura foi determinante para a mudança de postura em relação à questão da participação no âmbito do vídeo independente. Ele constatou que a dificuldade em definir consensos sobre a ação política ao longo da década de 1990, como reflexo da inserção de medidas neoliberais na América Latina, levou à “fragmentação do povo”, o que aconteceu no mesmo momento em que os acordos de cooperação financeira internacional recuaram, forçando a busca de outras fontes de financiamento para a produção audiovisual contra hegemônica. Tal reviravolta teria gerado “um impasse entre o compromisso social e necessidade de autofinanciamento das ONGs” (p.150), impondo a aproximação dessas iniciativas a modelos e grupos políticos e econômicos que tanto haviam sido combatidos. A deflagração desta “crise de identidade” teria contado ainda com o agravante da incorporação do povo à televisão, a qual passou a utilizar a cultura popular como forma de ampliar a audiência, vindo a simular, no mesmo sentido, a interatividade que parecia poder dar fôlego à produção independente. Assim, para galgar seu lugar no “novo espaço audiovisual latino-americano”, teria ocorrido o deslocamento do vídeo popular típico para o que o autor define como “vídeo com simulação de interatividade”, demarcando mudanças tanto na relação dos realizadores audiovisuais com os movimentos populares, quanto na maneira como pretendiam influenciar a percepção do público. Como afirma Oliveira (2001a), “a forma e o conteúdo destes vídeos incitam os espectadores a redefinir o modo de perceber a realidade” (p.14, grifo nosso). A passagem do acento na participação durante o processo de produção, que permeou o vídeo popular típico, para a ênfase na participação durante a recepção, característica dos vídeos de interatividade, corresponde a um deslocamento da incitação às ações coletivas para um exercício de desconstrução de conceitos e representações, implicando em uma mudança no modo de engajar o espectador nos problemas enfocados pelos vídeos (Oliveira, 2001b, p.441, grifo nosso). Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1087 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco Essa transformação também é indicada por Clarisse Alvarenga (2004), que identifica uma trajetória que parte do vídeo militante (anos 1960), passa pelo vídeo popular (1980) e se transforma no que designou vídeo comunitário contemporâneo (a partir da segunda metade da década de 1990). Observando uma intensa produção videográfica realizada tanto da área urbana como rural, tanto nas periferias e centros urbanos, quanto nas comunidades ribeirinhas e indígenas, a autora vincula o cenário à proliferação de projetos envolvendo oficinas de vídeo, viabilizados pela versatilidade e acessibilidade desta ferramenta comunicativa e também pela mesma utopia de dar voz ao outro que impulsionara o vídeo popular, propondo, no entanto, soluções diferentes para lidar com o nó da participação. No mesmo sentido que Bernardet, ela constata quão pretensiosa era a vontade de dar a voz ao outro, de modo que a superação deste dilema necessariamente teve de voltar seus esforços para criação de novas formas de interação através do vídeo, a partir, necessariamente, de novas posturas e expectativas em relação à sua utilização e sua função social. Como vimos observando, a tendência de combater o ilusionismo da imagem, apontando para opacidade da imagem-som em movimento, e para a relatividade e obliquidade de toda representação, acaba por suscitar justamente esse reposicionamento em relação ao audiovisual, cujas expectativas acabam sendo mais “modestas” e despretensiosas, evitando contrapor às representações dominantes outras formas de representações unívocas, herméticas ou estáveis, que pretendam registrar o real ou apreender identidades e verdades. Buscando compreender o potencial de uma câmera arraigada numa comunidade, Alvarenga (2004) notou que, apesar de tributário ao vídeo popular, o vídeo comunitário contemporâneo ganhou força arriscando outros caminhos para a representação do povo, os quais foram experimentados justamente no sentido de contribuir para que esses grupos tivessem cada vez mais autonomia e liberdade no processo de produção. Neste contexto, já não caberiam mais as mesmas expectativas, as mesmas posturas, nem as mesmas concepções estéticas que impulsionaram a geração do vídeo popular – o que nos parece uma transformação fundamental e determinante para a compreensão do nosso objeto de pesquisa que, como dissemos, herdou os mesmos dilemas e se desenvolve na mesma conjuntura. CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscamos observar como as tensões entre realidade e representação foram decisivas para o desenvolvimento da linguagem audiovisual, e também para que o vídeo ganhasse força como ferramenta de engajamento, conscientização, ação política e transformação social. Vimos como, ao invés de uma postura contra informativa e uma linguagem pretensiosa, como a que marcou o movimento do vídeo popular, caminhamos para uma postura interativa e uma linguagem mais modesta e menos agressiva, que procura equilibrar e relativizar as certezas e generalizações, aproveitando os espaços (e parceiros) existentes para, de forma estratégica, efetivamente experimentar outras formas de produção e interação através do audiovisual. Enquanto no movimento do vídeo popular a ferramenta comunicativa era pensada como estratégia de transformação da realidade – o que presumia um saber sobre aquela Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1088 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco realidade e sobre suas necessidades, e pensava-se ser viabilizado dando voz ao povo – no âmbito do vídeo comunitário contemporâneo passa a ser pensado como forma de experimentação social e mecanismo de descentramento de olhares e representações objetivas. Se o primeiro apoia-se numa postura política de confronto, contra informativa, o segundo concentra-se na diversificação de perspectivas e numa postura de composição de diferentes interesses. Enquanto o vídeo popular utiliza o efeito de realidade como estratégia de mobilização através do documentário de temática social, o vídeo comunitário utiliza modos mais fluidos, fragmentados e reflexivos para tratar seus temas, desconstruindo o mito de dar voz ao outro para apostar numa forma híbrida, em que se pensa não numa realidade objetiva, mas num constante devir de um estado a outro6. As discussões aqui travadas repercutem a influência de um período de transição paradigmática, que coloca em cheque muitas das nossas categorias analíticas. Não por acaso estamos definindo uma posição de fronteira como aspecto distintivo do audiovisual, o qual parece não estar preocupado em “sair de cima do muro”, pois é ali que conseguiu se concretizar enquanto fenômeno cultural mutante, espetáculo para as massas e estratégia de resistência. Nesse processo transitório, o vídeo parece ser ao mesmo tempo causa e consequência, ação e reação, tanto a ser influenciado pela conjuntura, quanto a transformá-la – ele joga para os dois lados. É nesse sentido que tantos valorizam seu potencial contra hegemônico, político, experimental e estético, enquanto outros alertam para o seu padrão de vigilância e banalização do visível. Ninguém está, de maneira alguma, equivocado. Na fronteira entre realidade e representação, o vídeo, também o vídeo comunitário contemporâneo, dá legitimidade a realidades e fabulações, projeta-se como espetáculo e como denúncia social, serve para disseminar discursos realistas e simulantes, reais e fictícios, pretensiosos e modestos, engajados e alienados, objetivos e subjetivos, enfim, reinventa a realidade. REFERÊNCIAS Alvarenga, C.M.C. (2004). Vídeo e experimentação social: um estudo sobre o vídeo comunitário contemporâneo no Brasil. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas. Berger, P. & Luckmann, T. (1985). A construção social da realidade. (7.ed). Petrópolis, RJ: Vozes. Bernardet, J.C. (1985). Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense. Da-Rin, S. (2006). Espelho Partido: tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. Franco, J.O. (2012) Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação - um estudo do projeto Roda Memória. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Universidade Estadual de Londrina. Londrina. Machado, A. (1997). Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus. Machado, A. (2001). As três gerações do vídeo brasileiro. Sinopse, 3(7), 22-33. Machado, A. (Org.). (2007). Made in Brasil: três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural. 6. Na bibliografia citada ao longo do texto, é possível conhecer a trajetória de inúmeras experiências e iniciativas que demonstram o que afirmamos sobre a passagem do vídeo popular ao vídeo comunitário contemporâneo. Só não abordamos essas histórias neste artigo por uma questão de espaço. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1089 Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação Juliana Oshima Franco Nichols, B. (2005). Introdução ao documentário. (Trad. Mônica Saddy Martins). Campinas, SP: Papirus. Oliveira, H.L.P. (1991). Da participação à interatividade: o vídeo popular no Brasil. Fronteiras: Revista de História, 7(1), 137-151. Oliveira, H.L.P. (2001a) Transformações no vídeo popular. Sinopse, 3(7), 1-14. Oliveira, H.L.P. (2001b). Tecnologias audiovisuais e transformação social: o movimento de vídeo popular no Brasil (1984-1995). Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica. São Paulo. Ramos, F.P. (2008). Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac. Santoro, L.F. (1989). A imagem nas mãos: o vídeo popular no Brasil. São Paulo: Summus. Xavier, I. (2005). O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. (3.ed.) São Paulo: Paz e Terra. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1090 Social Watch a construção da cidadania mundial Social Watch the construction of world citizenship M a x i m i l i a no M a rt ín Vic en t e 1 Resumo: O presente trabalho é o resultado de um estudo relacionado com a questão da cidadania na atualidade. Para isso se discute, num primeiro momento, o conceito de cidadania, a forma como foi entendia no transcorrer do tempo e seus desdobramentos na atualidade. Como exemplo dessa nova concepção se apresenta a Rede Social Watch, organização que congrega organizações não governamentais preocupadas em avaliar as políticas públicas de cunho social implementadas pelos poderes públicos instituídos. Palavras-chave: Cidadania. Social Watch. Movimentos Sociais. Internet. Abstract: This work is the result of a study related to the issue of citizenship today. For it discusses, at first, the concept of citizenship, the way it was understood in the course of time and its consequences today. As an example of this new design is presented the Social Watch Network, an organization that brings together non-governmental organizations concerned with evaluating public policies of a social nature implemented by the government. Keywords: Citizenship. Social Watch. Social Movements. Internet CIDADANIA UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO CIDADANIA É um dos problemas mais complexos enfrentados pelos regimes A democráticos. Fórmulas absolutistas e autoritárias ignoraram os procedimentos democráticos de governar nos quais a participação social nas questões públicas é levada em consideração. Apenas na contemporaneidade, portanto muito recentemente, num contexto de profundas mudanças culturais, jurídicas, éticas, políticas, econômicas e sociais, se revertem os moldes conservadores de governar para uma pequena elite em detrimento dos governados, vistos como entes passivos e incapazes de entender a “coisa pública”. Não existe um consenso em relação ao que se entende por cidadania. Numa rápida passagem pelos autores preocupados com a questão da implementação das práticas cidadãs na sociedade é possível identificar alguns momentos expressivos para a compreensão do termo cidadania. Na visão liberal clássica, principalmente entre seus representantes no século XIX, a preocupação com a cidadania se concentrou sobre as diversas formas de evitar que o poder do Estado se sobrepusesse aos diretos dos indivíduos. Dessa forma realizaram-se esforços significativos para dividir o poder estatal além de promover a criação de instituições, tanto desde o Estado como da sociedade 1. Prof. Adjunto Maximiliano Martin Vicente. UNESP – FAAC. E-mail; [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1091 Social Watch a construção da cidadania mundial Maximiliano Martín Vicente civil, para garantir a efetividade das iniciativas dos cidadãos. Desde um posicionamento oposto ao modelo liberal, o socialismo postulava que as mesmas formas que tinham conseguido certa liberdade do homem pré-moderno criaram novas maneiras de opressão das quais este só poderia liberar-se por uma emancipação social e humana, emancipação essa que deveria chegar ao Estado, responsável final pela manutenção dos direitos sociais alcançados pela luta da maioria da população. Um autor referencial na conceituação da cidadania como foi Marshall pensava que os direitos civis e os políticos, conquistados durante os séculos XVIII e XIX, não tinham eliminado a contradição entre o princípio de igualdade e o de desigualdade. (Marshall, 1967). Ademais, acreditava que os direitos sociais podiam estabelecer, de fato, um processo de igualdade social suficientemente sólido capaz de minimizar os conflitos de classe originados pelo capitalismo e a sociedade moderna por ele implantada. Nos anos 1970 e 1980, iniciou-se outro debate de caráter filosófico sobre a natureza do indivíduo e de seus direitos em relação ao Estado, à comunidade, à cultura e à questão da ética e dos fundamentos da filosofia política, ou seja, sobre as múltiplas dimensões que poderia adquirir a noção de cidadania (Dallari, 1998). A disputa congregou, principalmente, duas correntes conhecidas como comunitarista e individualistas que defendiam visões e pontos de vista antagônicos quando o assunto era a cidadania. Os comunitaristas sustentavam que os vínculos sociais determinavam às pessoas e que a única forma de entender a conduta humana seria relacioná-la a seus contextos sociais, culturais e históricos. Os individualistas, por sua vez, propunham que a comunidade se constituía a partir da cooperação para a obtenção de vantagens mútuas e que o indivíduo portava a capacidade de atuar livremente, independente do lugar e da cultura que tinham determinado sua existência. Divergências à parte, o que nos interessa extrair desse confronto se encontra na discussão criada sobre a maneira como o direito deve, ou não, regulamentar as concepções inerentes à cidadania, por exemplo, como regulamentar a propriedade privada e os bens individuais. Talvez essa seja uma das questões nevrálgicas mais discutidas e pensadas pelos que se interessam pelo tema da cidadania. Afinal, sem as garantidas para poder exercitar de maneira livre e desimpedida as manifestações sociais não se pode falar em cidadania. Por sua vez alguns dos direitos garantidos legalmente colocam entraves e limites para as reivindicações dos movimentos sociais. Ao mediar o conflito o embate passa para o campo da lei e do direito motivo pelo qual a cidadania adquire um status político. Tal problemática tem despertado o interesse pelos estudos da cidadania neste começo de século XXI, notadamente depois que as manifestações públicas, em praticamente todos os países, evidenciaram os limites da democracia como forma política capaz de dar respostas as demandas levantadas pelos movimentos sociais ativos pelas mais diversas partes do planeta. Nesse sentido, a cidadania pode ser considerada como uma construção de baixo para cima onde se utilizam as mais variadas formas de expressão, sejam os modelos tradicionais como as tecnologias da informação e comunicação. Mas, qual seria a lógica seguida pelos movimentos sociais para ampliar o conceito de cidadania? Castells (2013), um dos pesquisadores preocupados com a sociedade em rede e seus desdobramentos para a sociedade, entende que os movimentos sociais Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1092 Social Watch a construção da cidadania mundial Maximiliano Martín Vicente contemporâneos se originam de forma espontânea, ou seja, não emanam do sistema político ou de qualquer outra forma de entidade político-social como poderiam ser os partidos ou os sindicatos. Via de regra o estopim é gerado pela veiculação de alguma imagem que mostra a opressão ou a injustiça sofrida pela população. Tal imagem se espalha rapidamente nas redes virtuais originando as manifestações no espaço público onde afirmam sua presença e desafiam a ordem estabelecida procurando estabelecer um diálogo com as autoridades constituídas. No âmbito local, com frequência, a causas se direcionam na luta contra a corrupção, contra o sucateamento dos serviços públicos, a indignação pelo desemprego e contra o apoio oficial aos especuladores financeiros. Em outras ocasiões a movimentação se dá em função de assuntos de interesse mundial como a ecologia, a questão da mulher ou os direitos da criança. Castells destaca pontos em comum identificáveis nesses movimentos sociais na luta pela implementação da cidadania. Enfatiza a importância das ferramentas digitais e das redes sociais online (facebook, twitter, livestreaming e youtube) na mobilização e difusão de informação necessária para alimentar os movimentos; em muitos deles se percebe a ausência de um líder ou de uma corrente política especifica. Ao contrário, ocorrem a aglutinação de diferentes correntes sociais unidas pelo desejo de radicalizar a democracia e torná-la mais participativa e assim ampliar a cidadania. Acreditam que que somente a partir da intervenção direta de suas ações poderão ter força necessária para a promoção de mudanças sociais, econômicas e políticas. Um aspecto importante estudado por Castells diz respeito à organização dos movimentos. Se estruturam e organizam sem que exista uma liderança capaz de controlar as ações de seus comandados. Na ausência de uma liderança permanente o que vigora são os processos deliberativos onde se exercitam novas formas de democracia e de cidadania. Dessa forma se criam e facilitam os laços de solidariedade pois instituem, sobretudo, o sentimento de estar juntos. Basta estar ali para poder falar, não precisa de filiação ou representação. Nas palavras dele O que muda atualmente é que os cidadãos têm um instrumento próprio de informação, auto-organização e automobilização que não existia. Antes, se estavam descontentes, a única coisa que podiam fazer era ir diretamente para uma manifestação de massa organizada por partidos e sindicatos, que logo negociavam em nome das pessoas. Mas, agora, a capacidade de auto-organização é espontânea. Isso é novo e isso são as redes sociais. E o virtual sempre acaba no espaço público. Essa é a novidade. Sem depender das organizações, a sociedade tem a capacidade de se organizar, debater e intervir no espaço público. (CASTELLS, 2013, p. 35) Nessa mesma, mas com visão diferente, Boaventura de Souza Santos prefere interpretar os atuais movimentos sociais como uma evidência do fracasso do modelo atual de democracia uma vez que não solucionou os problemas sociais no transcorrer do tempo, aliás é repetitivo nessa questão: O modelo de democracia liberal representativa está perdendo a sua credibilidade e não funciona adequadamente para os desafios do mundo atual. Por isso insiste que a grande luta que vivemos no mundo atual envolve dois tipos de democracia: a de baixa intensidade, a que temos, e a outra de mais altas intensidades, democracias tipo participativas. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1093 Social Watch a construção da cidadania mundial Maximiliano Martín Vicente Mas a questão da nova cidadania, para Santos, implica em condenar o modelo atual capitalista, algo não muito claro na contribuição de Castells. Ao contrário do que prometeu como igualdade e solidariedade o capitalismo provocou a separação e segregação total da população. A clássica expressão “os ricos ficam mais ricos e os pobres ficam mais pobre”, pode ser considerada como a melhor definição do capitalismo globalizado no âmbito mundial. Salienta, o pensador português, a necessidade de se olhar para as práticas dos movimentos sociais e das formas criativas como reinventam o mundo no dia a dia. Obviamente algumas dessas práticas se encontram na rede mas é bom ampliar a visão e descobrir outras formas de se exercitar a democracia e a cidadania na atualidade. Um dos exemplos vivos seriam cooperativas que estão produzindo bens seguindo uma lógica não capitalista. Seriam organizações que vão além da mera visão econômica e propõem uma abordagem crítica da cultura e da própria política. Inclui, dentro dessa questão econômica o comércio justo entendido como uma prática na qual os bens que circulam pelo mercado devem de ter sido produzidos pagando um salário justo, em condições ambientais dignas marcadas pelo respeito ao meio ambiente. Uma grande novidade relacionada com a nova cidadania seria o que ele denomina de cidadania multicultural, ponto não tocado em profundidade por Castells. De forma contundente afirma que tanto o liberalismo como o socialismo apenas reconhecem a igualdade e não a diferença. Nem todos os homens e mulheres são iguais. Questões como o gênero, a diversidade cultural, as nuances de cada país ou região, determinam comportamentos e valores que nem sempre podem ser considerados universais e válidos por todas as sociedades. Esse respeito a diversidade gera o que Santos conceitua de cidadania multicultural, na qual as minorias étnicas, os povos indígenas, o movimento negro e outras múltiplas manifestações de diversidade devem ser respeitadas e ouvidas. As pessoas querem pertencer, mas querem ser diferentes. É necessário um multiculturalismo que crie novas formas de hibridização, de interação entre as diferentes culturas. Cada cultura é que deve definir até onde quer se integrar. A adoção dessas premissas no seu pensamento gera um conceito já consagrado e que se define como sendo as Epistemologias do Sul. Por esse conceito Santos (2010, p. 7) entende um conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse diálogo entre saberes chamamos ecologias de saberes. Pode ser observado nessa definição alguns dos itens virais da obra de Santos e que já traçamos brevemente nas linhas anteriores. Embora o mundo possa ser visto pela ótica da multiculturalidade prevaleceram as versões que não respeitaram a diversidade e a riqueza de povos tão diferentes espalhados pelo planeta. Com isso se tolheu qualquer forma emergente de manifestação não permitida pela visão dominante. Entretanto, sugere Santos, devemos entender o que esconde essa não proliferação das culturas e seu reconhecimento. Nada mais seria que a predominância de mundo exercido pelo mundo ocidental que precisou silenciar a humanidade diante de saberes emergentes. Essa pratica seguida hegemônica proveniente da adoção da ciência moderna executada pelo Ocidente é denomina por Santos de pensamentos abissal. Tal pensamento Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1094 Social Watch a construção da cidadania mundial Maximiliano Martín Vicente é uma característica da modernidade ocidental, que consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis que dividem a realidade social em dois universos ontologicamente diferentes. O lado de cá da linha, correspondendo ao Norte imperial, colonial e neocolonial, e o lado de lá da linha corresponde ao Sul colonizado, silenciado e oprimido. Essa linha é tão abissal que torna invisível tudo que acontece do lado de lá da linha. Este lado colonizado não tem realidade ou, se a tem, é em função dos interesses do Norte operacionalizados na apropriação e na violência. O que caracteriza este pensamento abissal é a impossibilidade de copresença entre os dois lados referidos. Como superar tal impasse? O pensador português indica um caminho bastante claro e não menos radical: a ecologia de saberes. Por esse termo deve se entender um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da globalização contra-hegemônicas e pretendem contribuir para as credibilizar e fortalecer. Assentam em dois pressupostos: 1) não há epistemologias neutras e as que clama sê-lo são as menos neutras; 2) a reflexão epistemológica deve incidir não nos conhecimentos em abstrato, mas nas práticas de conhecimento e seus impactos noutras práticas sociais. (SANTOS, 2006: p.154). De forma sucinta poderíamos dizer que na ecologia de saberes se encontram embutidos alguns dos componentes fundamentais da proposta de Santos: o reconhecimento da pluralidade de saberes heterogéneos. Mas não se aceitaria, apenas, o reconhecimento, cada um deles deveria ser considerado autônomo e articulado com os que defendem sua forma de atuação, criando, dessa forma um saber marcado pela horizontalidade e respeito pelas diferenças sem o qual nem se pode falar em cidadania. Assim se chagaria a uma emancipação desejada capaz de assentar novos parâmetros de atuação. Evidentemente as classes populares ganham protagonismo dentro dessa ótica. As colocações de Peruzzo sugerem uma outra forma de se expressar e que ela conceitua como comunicação popular e alternativa - componentes fundamentais na adoção da cidadania- entendida como expressão das lutas populares por melhores condições de vida que ocorrem a partir dos movimentos populares e representam um espaço para participação democrática do “povo”. Possui conteúdo crítico-emancipador e reivindicativo e tem o “povo” como protagonista principal, o que a torna um processo democrático e educativo. É um instrumento político das classes subalternas para externar sua concepção de mundo, seu anseio e compromisso na construção de uma sociedade igualitária e socialmente justa. (PERUZZ0, 2004, p. 4) Implícita nessa afirmação se encontra, pelo menos, uma caraterística dos movimentos populares. Os movimentos seriam forças autônomas agindo num espaço não coberto por partidos e sindicatos e, com isso, adquirem relevância por se manifestarem não nos espaços “permitidos” e regulamentados pelo poder oficial, embora possam, eventualmente, se fazer presentes em alguns deles. E assim os movimentos sociais populares, apesar de suas limitações, vão ocupando o seu lugar na sociedade, contribuindo para construir a cidadania, mas uma cidadania emanada nas bases e promovida por agentes sociais que atuam à margem do espaço público oficial. Trata-se de um processo que envolve a diversidade, porque nossa sociedade é pluralista demais para afunilar-se sob a direção de uma única organização político-partidária. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1095 Social Watch a construção da cidadania mundial Maximiliano Martín Vicente Para Peruzzo, a comunicação popular, tal como apresentada anteriormente, representa uma forma alternativa de comunicação que se origina, no Brasil, nos movimentos populares dos anos de 1970 e 1980. Ela não se caracteriza como um tipo qualquer de mídia, mas como um processo de comunicação que emerge da ação dos grupos populares. Essa ação tem caráter mobilizador coletivo na figura dos movimentos e organizações populares, que perpassa e é perpassada por canais próprios de comunicação. O sentido político é o mesmo, ou seja, o fato de tratar-se de uma forma de expressão de segmentos excluídos da população, mas em processo de mobilização visando atingir seus interesses e suprir necessidades de sobrevivência e de participação política. A cidadania na atualidade adquire uma dimensão multifacetal que não pode ignorar as questões levantadas pelos autores anteriormente citados. A questão ultrapassa a simples luta para conseguir e garantir direitos. Por um lado não podem ignorar os avanços tecnológicos utilizados como ferramentas de divulgação e congregação dos movimentos a favor de uma cidadania plena. Por outro lado, as questões culturais embutidas nas práticas cotidianas da população precisam ser levadas em consideração também. Mais ainda, devem ser decodificadas à luz da proposta de Boaventura dos Santos pois a complexidade dos fenômenos culturais ultrapassa de longe a externalização das suas manifestações. Assim, emerge a necessidade de se usar a tecnologia, a comunicação popular e a diversidade cultural como componentes fundamentais para o exercício crítico da cidadania que além de ser local tem repercussão e alcance global. Uma das organizações, com espaço reservado para essas manifestações de cidadania é Social Watch como veremos a seguir. SOCIAL WATCH: UMA APROXIMAÇÃO À CIDADANIA GLOBAL. Num mundo globalizado nada mais plausível do que podermos imaginar uma ação coordenada mundialmente para defender os direitos da sociedade civil perante a hegemonia das ações mundiais alinhadas com o modelo capitalista. Imbuídos desse espírito nasceu, em 1995, depois de vários encontros e reuniões preparatórias, a rede social Social Watch (www.socialwatch.org) concebida como um ponto de encontro para as Organizações Não Governamentais (ONGs) preocupadas com o desenvolvimento social e a discriminação de gênero e comprometidas com a monitorização das políticas que visam combater a desigualdade entre as pessoas e o combate à pobreza. Social Watch entende que a ação principal para atingir a erradicação da pobreza, a igualdade de gênero e a justiça social ocorrem principalmente a nível local e nacional e, portanto, suas atividades internacionais e suas estruturas estão ao serviço dos grupos nacionais e locais, e não ao inverso. Assim, sua organização se baseia no caráter democrático-participativo e a tomada de decisões se fundamentam em princípios igualitários e de respeito à autonomia de seus membros que se encontram presentes em mais de sessenta países interligados via Web. A rede criada se estrutura em torno de três órgãos: a Assembleia de Social Watch, o Comitê Coordenador e o Secretariado Internacional. A Assembleia Geral é o máximo órgão de governo da rede Social Watch. É o âmbito de debate político e de planejamento estratégico de médio e longo prazo, que serve como um foro de tomada de decisões. Se realiza a cada dois ou três anos e a única condição solicitada para que seus membros participem é que enviem relatórios Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1096 Social Watch a construção da cidadania mundial Maximiliano Martín Vicente descrevendo as ações e resultados nacionais exercidas pela entidade. Dessa Assembleia surgem as ações que deverão ser promovidas a médio e longo prazo além de eleger os membros do Comitê Coordenador órgão que exerce as funções de coordenar todos os intercâmbios realizados via Rede entre os membros participantes de Social Watch. Em cada Assembleia Geral se definem os princípios norteadores para o triênio que deverão fundamentar as ações dos associados. Definidos os princípios a instituição colocou como prioridades de ação as seguintes ações: reconhecer a ONU como instituição universal legítima para solucionar os conflitos; denunciar os países poderosos que insistem em aplicar de forma livre as finanças, o médio ambiente e o uso da força militar; apoiar a criação e o fortalecimento de alternativas regionais que reflitam as aspirações das populações pobres e marginadas; realizar alianças com sindicatos, organizações de agricultores, meios de comunicação independentes, movimentos sociais e outras organizações e redes da sociedade civil, em particular as que trabalhem em pró da defesa da justiça e da preservação do meio ambiente; trabalhar em pró da defesa de fontes inovadoras de financiamento para a erradicação da pobreza, incluindo impostos às transações financeiras, e a eliminação da evasão fiscal internacional e da lavagem de dinheiro; agir contra a exclusão social das comunidades migrantes e para a ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos dos Migrantes e, finalmente, defender a autodeterminação das pessoas e o pleno controle sobre seus recursos como uma forma crucial de proteger seus direitos sociais e econômicos. ANÁLISE DOS BOLETINS No total foram publicados, em agosto de 2014, cinco boletins com periodicidade semanal (dia: um, oito, quinze, vinte e dois e vinte e nove), com quinze notícias publicadas numa média de três por boletim como pode ser verificado no endereço a seguir: (http:// www.socialwatch.org/es/taxonomy/term/461). Para realizar um estudo quantitativo e qualitativo das mesmas nos inspiramos num método híbrido que congrega elementos da teoria do enquadramento e da análise do conteúdo. Em função do espaço não exploraremos esses dois métodos e sim apresentaremos a definição e o entendimento de cada método seguido nas análises. Entman (1993, p. 52) um dos autores mais citados na hora de conceituar enquadramento o define da seguinte maneira “enquadrar é selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida e fazê-los mais salientes num texto comunicativo de forma a promover uma definição particular do problema, uma interpretação causal, avaliação moral, e/ou a recomendação de tratamento”. Enquadrar envolve o ato de selecionar (escolher dentre várias alternativas) e de tornar saliente, distinguir, evidenciar aspectos relevantes das matérias. Por meio do enquadramento poderemos, portanto, definir problemas, diagnosticar causas, fazer julgamentos e sugerir medidas reparadoras. Para definir um dado enquadramento é preciso realizar análises que ponham em evidência de que forma os meios estão narrando determinado acontecimento. Já a análise de conteúdo, segundo Laurence Bardin (2009), uma das explicadoras desse método seria um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1097 Social Watch a construção da cidadania mundial Maximiliano Martín Vicente por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo das mensagens, indicadores (qualitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. Como menciona a autora, a análise de conteúdo não se baseia apenas em dados quantitativos. A análise possui uma fase qualitativa, com a interpretação dos dados coletados, ou seja, é possível fazer inferências nos materiais coletados. Para isso sugere que se criem categorias que expliquem o sentido contido nas matérias analisadas. Essa definição das categorias serviria para comprovar, ou não, se o conteúdo está coerente com os princípios anunciados pelo produtor do texto a ser avaliado. Uma leitura inicial dos boletins mostra os seguintes dados: das quinze matérias publicadas nenhuma é proveniente de agências de notícias tradicionais encontradas nos meios massivos. Predominam fontes alternativas notadamente ONGs filiadas a Social Watch. Talvez por esse motivo, numa pesquisa mais detalhada conseguimos identificar, apenas, 3 notícias veiculadas nos meios de comunicação massivos: uma relacionada aos BRICS (criação do Novo Banco do Desenvolvimento), outra envolvendo a problemática do Oriente Médio e, finalmente, a terceira ligada ao G-8 e sua preocupação em como combater a fome na África. Na nossa busca, as outras 12 restantes circularam, apenas, no Boletim de Social Watch. Diante desse quadro é possível definir algumas categorias, tal como sugerido pela metodologia utilizada, para avaliar mais analiticamente o conteúdo publicado nos informes do mês de agosto de 2014 de social Watch. Estabelecemos duas categorias por considerar que nelas se podem incluir todas as 15 matérias encontradas nos cinco boletins: cidadania (conceitos e processos que visam fundamentar uma política diferenciada, mais solidária, uma democracia mais vital, participativa, com cidadãos ativos, engajados em favor do bem comum e da criação de uma sociedade mais humana), pobreza e exclusão social (processo de mobilizações e práticas destinadas a promover e impulsionar grupos e comunidades - no sentido de seu crescimento, autonomia, melhora gradual e progressiva de suas vidas como seres humanos dotados de uma visão crítica da realidade social). Salientamos que essas categorias, em algumas ocasiões se entrecruzam mas como a intenção é ver como elas refletem e seguem uma lógica identificada com as questões sociais de Social Watch, não vemos que esse fator possa prejudicar a análise. Cidadania As notícias relacionadas com a cidadania trazem como protagonistas setores minoritários pronunciando-se sobre questões próprias do bem-estar coletivo, portanto, se posicionam claramente contra todo procedimento que não venha e leve em consideração a totalidade. Um exemplo bem paradigmático dessa práxis se encontra na matéria do Boletim de 22 de agosto de 2014, e que tem como tema a participação das mulheres hondurenhas diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Não encontramos na mídia convencional referência a essa participação. No entanto na notícia se encontram elementos que consideramos chaves na questão da defesa da cidadania e que passamos explicitar. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1098 Social Watch a construção da cidadania mundial Maximiliano Martín Vicente A participação é de coletivos hondurenhos (Foro de Mulheres pela Vida, CLADEM, Centro de Estudos da Mulher Honduras CEM-H, a Rede Nacional das Defensoras, Centro de Direitos de Mulheres CDM e de Sócias pelos Justo JASS) que tem por preocupação a situação da mulher naquele país e não de expertos ou representantes do poder instituído. As pautas levantadas envolvem desde questões pontuais como: o aumento do femicídio; o alto nível de impunidade aos agressores das mulheres; o fracasso das políticas de segurança; a pretensão de controlar o corpo das mulheres, negandolhes o direito a decidir sobre sua reprodução e sexualidade, como é o caso da proibição das Pílulas de Anticoncepcionais, até a modificação das políticas públicas vigentes em Honduras. Dentre as alterações solicitadas pelo coletivo das mulheres destacam: O Estado tem a obrigação de gerar mudanças estruturais profundos no sistema de justiça; mudar o atual enfoque da política de segurança por um que privilegie os direitos e adotar as medidas necessárias para garantir que os casos de violência contra as mulheres sejam investigados com a devida diligência, que as pessoas responsáveis sejam castigadas e as vítimas recebam reparações de acordo às recomendações além de, solicitar que o Estado hondurenho deve proceder sem demora à anulação da proibição da anticoncepção de emergência e à aprovação do projeto de Lei que legaliza seu uso e, finalmente, que o Estado respeite os direitos humanos na sua totalidade. O contraditório também se inclui na matéria veiculada no site social Watch. O governo hondurenho representado por três pessoas (o Procurador de Direitos Humanos, a embaixadora de Honduras em Guatemala, e o embaixador de Honduras em México, local onde acontecia o evento) fez questão de citar os inúmeros projetos enviados ao Congresso Nacional e que atenderiam, em parte, as demandas das associações das feministas. Temas considerados vitais pelos coletivos feministas, como a distribuição de anticoncepcionais, nem sequer foram mencionados pelos representantes do governo hondurenho. O mesmo pode ser dito em relação aos crimes contra a mulher que seriam incluídos no rol geral do combate a violência sem que se apresentasse um projeto especifico do poder público em relação a esse tema concreto. Pobreza e exclusão social Esta categoria é, de longe, a mais citada em diversas notícias de Social Watch. Parte da explicação para que isso ocorra é que por definição só podem fazer parte dessa Associação organizações que trabalhem com grupos e entidades voltadas para o combate à pobreza. Mesmo assim, com o intuito de verificar como se mostra apresentamos algumas matérias com tal inquietação. No boletim do dia 29 de agosto um assunto tratado diz respeito ao posicionamento do Congcoop guatemalteco no IV Congresso Nacional, dos Povos e das Organizações para enfrentar os graves problemas que o país enfrentava, mas via fortalecimento dos movimentos sociais. No pronunciamento realizado se encontram como esse coletivo, que congregou 756 mulheres e homens, dirigentes sociais e populares, comunidades e 180 organizações de Autoridades Ancestrais, mulheres/feministas, camponesas, juventude e ONGs, colocou como base filosófica de atuação para alcançar o Bem viver coletivo que as decisões sejam tomadas com a participação dos povos indígenas, mulheres, camponeses, organizações Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1099 Social Watch a construção da cidadania mundial Maximiliano Martín Vicente sociais para que possam agir pensando na busca de soluções sem se esquecer dos princípios da equidade, preocupação ambiental, respeito à coletividade e a divisão igualitária das riquezas obtidas dentro desse parâmetros. Ainda reivindica o direito a poder participar de lutas emancipatórias sem que sofram perseguição ou qualquer outro tipo de retaliação. Interessante observar a colocação da Congcoop. A preocupação não é, apenas, de denunciar a pobreza, a corrupção, a fuga de capitais, a destruição do meio ambiente, o desrespeito das comunidades e culturas locais. Sua demanda vai além na medida em que o combate à pobreza e a exclusão se realizariam não só com a mudança estrutural mas com a participação e inclusão de TODOS os cidadãos. Ressaltamos o termo todos porque em momento algum se fala em deixar as elites, por exemplo, fora desse processo. Ao contrário a sua inclusão deveria ser feita, mas baseada em outros moldes e princípios claramente inclusivos. No boletim do dia 15 de agosto ao se debruçar sobre os países árabes social Watch abre espaço para recolher o informa das organizações da sociedade civil para estabelecer uma sociedade menos injusta social e economicamente falando do mundo árabe. Os procedimentos seguidos na matéria pouco diferem da anterior. Se faz um apelo veemente para que, no pós-2015, toda a sociedade possa participar na elaboração das políticas públicas que beneficiem a toda a sociedade. Para isso, conclama o respeito à tradição árabe, na qual inclui, o elemento religioso. Ou seja, a inclusão social e o combate à pobreza não podem ir muito distantes do respeito dos costumes e tradições locais. CONCLUSÃO As notícias apresentadas corroboram a ideia de que Social Watch pode ser considerado um site alternativo, promotor da cidadania, por hospedar organizações e entidades que agem à margem do poder instituído e que tem como finalidade principal acompanhar e cobrar do poder público projetos destinados a fortalecer as demandas dos setores excluídos e marginalizados na sociedade. Social Watch explora ao máximo a possibilidade da Internet e cria uma rede global de entidades que se alimentam com as experiências, projetos e conteúdos de outras de outras entidades criando assim uma relação de horizontalidade no intercâmbio de experiências além de propor mudanças estruturais na e da sociedade atual. Ao defender uma política alternativa e contra hegemônica do poder estabelecido privilegia as ações que promovem a cidadania ativa por atuar demandando do poder público ações que promovam a justiça e equilíbrio social. As notícias e os conteúdos publicados se baseiam numa atitude crítica para com a realidade ao mesmo tempo que se tornam nos canais de expressão dos grupos marginais e excluídos do sistema, bem como comporta materiais com sentido social que não encontram espaço não agendados meios tradicionais. Basta lembrar que das quinze notícias apenas três foram cobertas pelos meios de comunicação massivos. Dessa maneira o que sobressai nas notícias publicadas e o que se encontra em comum a todas elas é que são temas não usuais da mídia tradicional e oferecer uma ótica diferente pois visam criar uma nova ordem mais justa e humana baseada no respeito à diversidade e na inclusão de pautas relacionadas com o meio ambiente, a ecologia, direitos humanos, minorias e questão do gênero. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1100 Social Watch a construção da cidadania mundial Maximiliano Martín Vicente REFERÊNCIAS BARDIN, Laurence. (2009) Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal; Edições 70, LDA. CASTELLS, Manuel. (2013) Redes de indignação e esperança: movimentos Sociais na era da Internet. Rio de Janeiro: Zahar Editores. DALLARI, Dalmo de Abreu. (1988) Cidadania e Direitos Humanos. São Paulo Brasiliense. ENTMAN, Robert M. (1993) “Framing: Toward Clarification of Fractured Paradigm”. Journal of Communication, 43 (4), p. 51- 58. MARSHALL, Thomas Humprey. (1967) Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar. PERUZZO, Cicilia Maria Krohling. (2004) Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. 3ª.ed. Petrópolis: Vozes. SANTOS, Boaventura de Souza. (2006) A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez. SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). (2010) Epistemologias do Sul. Porto São Paulo: Cortez. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1101 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil The Media Council and the civil participation Pa u l a C e c í l i a de Mir anda M a rques 1 M a r i a Te r e s a M i c e l i K e r b a u y2 Resumo: A regulação da radiodifusão brasileira é alvo de críticas por seu modelo de exploração comercial que propicia a homogenização da programação e dificulta a integração e representação da sociedade nos meios de comunicação. Uma das ferramentas existentes para efetivar a participação civil nos debates sobre a mídia é o Conselho de Comunicação Social (CCS). Considerando esse cenário, o CCS foi investigado para entender de que forma cumpre seu papel de representante da sociedade. A metodologia de análises bibliográfica e documental, permite compreender o contexto político – com forte influência econômica – das decisões que formataram o Conselho. Assim, o artigo percorre as seguintes etapas: 1) apresentação da regulação; 2) estudo do CCS; e 3) apontamentos sobre o potencial inclusivo do órgão. Como resultado, foi possível aferir que os assuntos delegados ao Conselho percorrem todas as temáticas abordadas pela CF, o que permitiria ao órgão ser importante ambiente de discussão da comunicação nacional, apesar de seu caráter consultivo. Entretanto, na prática, o CCS mostra-se um apêndice burocrático que, em decorrência de negociações políticas e da influência comercial, torna-se ineficaz. Palavras-Chave: Conselho de Comunicação Social. Regulação. Radiodifusão. Abstract: Regulation of Brazilian broadcasting is criticized for its commercial exploitation model that provides the homogenization of programming and hampers the integration and representation of the society in the media. One of the existing tools to carry out the civil participation in the media debates is the Media Council (CCS). Given this scenario, the CCS was investigated to understand is fulfilled its role as representative of the society. The methodology starts in bibliographical and documentary analysis in order to understand the political context - with strong economic influence - decisions that originated and directed the Council. Thus, the article goes through the following steps: 1) presentation of the regulation; 2) CCS study; and 3) discussion about inclusive organ potential. As a result, it was possible to determine that the matters delegated to the Council offer all issues addressed by the CF, which would allow the agency to be important national communication environment of discussion, despite its advisory character. However, in practice, the CCS is shown a bureaucratic appendage of the parliament as a result of political negotiations and commercial influence, it becomes ineffective. Keywords: Media Council. Regulation. Broadcasting. 1. Aluna do programa de mestrado em Comunicação, Unesp/ Bauru. E-mail: [email protected]. 2. Orientadora do projeto. Professora do programa de pós-graduação em Comunicação, Unesp/ Bauru. E-mail: [email protected]. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1102 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy A REGULAÇÃO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL 3 A RADIODIFUSÃO SURGIU como um serviço público, por ocupar o espectro de frequência. A exploração dos canais tidos como bens públicos, segundo a Constituição Federal (1988), pode ser feita em três modelos distintos – público, estatal, privado. De acordo com o decreto 52.795/63 que aprova o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, todos esses sistemas devem respeitar o interesse nacional: Os serviços de radiodifusão têm finalidade educativa e cultural, mesmo em seus aspectos informativo e recreativo, e são considerados de interesse nacional, sendo permitida, apenas, a exploração comercial dos mesmos, na medida em que não prejudique esse interesse e aquela finalidade. (Art. 3º, Capítulo II.) Contudo, a radiodifusão de sons e imagens no Brasil foi marcada pela busca de audiência e retorno comercial, majoritariamente, conforme é demonstrando desde a estruturação da regulação dos meios de comunicação eletrônica nos anos 1930, momento em que optou-se por outorgar as concessões de rádio principalmente à iniciativa privada (SPINILLO, 2011), até a aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) em um frágil momento político (BOLAÑO, 2002). Para garantir o interesse público e a finalidade educativa da radiodifusão, a regulação da comunicação no Brasil buscou estabelecer parâmetros para a programação das emissoras. Com base na lei nº 4.117/62, que institui o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) – ainda o principal instrumento regulador da radiodifusão no país, na Constituição Federal de 1988 e no conjunto de leis e decretos posteriores que tratam da regulação da radiodifusão, é possível identificar princípios para nortear a programação de rádio e televisão e definir as obrigações legais e contratuais. A lei maior que versa sobre a produção e programação de meios de comunicação eletrônica é a Constituição Federal (CF), que em seu artigo 221 estabelece: A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. (CONSTITUIÇÃO, 1988) Percebe-se pela redação do capítulo 221, que na Constituição brasileira há artigos que tratam genericamente da Comunicação Social e sua abordagem. Assim, os direcionamentos apresentados pelo CBT são ainda importante ferramenta para o cumprimento da CF, como por exemplo artigos que versam sobre: as finalidades da radiodifusão (CBT, art. 38, d)); o tempo máximo de publicidade permitida (art. 124); o mínimo de conteúdo informativo noticioso (art. 38). Além disso, a legislação estabelece limites à gestão de concessões apenas para brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos (art. 38, a)), 3. Fragmentos deste item fazem parte da íntegra de texto apresentado em congresso regional em 2014. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1103 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy impede a administração de mais de uma concessionária por pessoa em cada localidade (art. 38, g)), impede a gerência de concessionária por pessoa que goze de imunidade parlamentar (art. 38, i)), entre outros. Os parâmetros apresentados ainda são considerados bem “generosos” por Jambeiro (2008, p.91). O autor destaca que, ao estipular valores como a cota mínima de conteúdo noticioso, fica evidente que o objetivo é a maximização do lucro, contribuindo para a homogeneização de conteúdos: “Pelos cânones deste modelo, temas complexos, ou que desatendam ou questionem aqueles gostos e interesses devem ser evitados”. Mesmo com as normativas estipuladas pelo governo também após a Constituição que estipula claramente a pluralidade, a exploração de forma comercial desses espaços abriu a possibilidade para que o cidadão fosse tratado como consumidor, uma vez que este paga pela publicidade que sustenta as emissoras de rádio e televisão. Segundo Miguel (2004, p. 141), esse modelo permite que informação e cultura sejam reduzidas a elementos de disputa pela audiência, levando a uma padronização de conteúdos. A homogeneização do que é produzido contraria a finalidade educativa e cultural, pois é a diversificação que garantirá a presença de representações de cada segmento social na mídia, com suas diferentes perspectivas. Entende-se também que a padronização de conteúdos prejudica o exercício da cidadania, pois, ao mesmo tempo em que marginaliza as minorias, não permite à sociedade acesso às informações distintas para que possa construir seu repertório, entender suas possibilidades e ter ferramentas de transformação da realidade. Esse e outros temas abordados pela regulação, assim como o incentivo da produção independente e regional, são diretrizes que não têm destaque nesse modelo de exploração, já que não geram interesse do ponto de vista comercial. Outro aspecto importante é destacado por Lima (2011) ao afirmar que a exploração comercial também contribuiu para a formação de grupos empresariais familiares que “são também os mesmos grupos oligárquicos da política regional e local” e que dominam os meios de comunicação. Miguel (2004, p.131) alerta para a concentração das mídias nas mãos de um grupo de empresas, que “significa que a difusão da informação é, em grande medida, controlada por um grupo de pessoas com significativos interesses em comum”. Essas críticas convergem com o que Bolaño (2002) destaca como as principais fraquezas da regulação: o modelo comercial privilegia as ‘cabeças de rede’ em detrimento do regionalismo, favorecendo a concentração dos meios de comunicação com oligarquias familiares explorando um bem público. Jambeiro (2008) aponta como característica única da regulação brasileira o fato de ser centralizada no poder executivo com aval do congresso nacional, enquanto em outros países comissões criadas especificamente com esse fim são responsáveis pela regulação da radiodifusão. Isso causa estranhamento combinado ao fato de que parlamentares não são impedidos de ser concessionários4, a previsão legal apenas impede que estes sejam diretores ou gerentes de meios de comunicação. Bolaño e Brittos (2003, p.57) acrescentam que embora o Brasil tenha referências para a produção de conteúdo de interesse público, essas diretrizes são frouxas, não havendo 4. Segundo Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica – SSCE, do Ministério das Comunicações, em nota enviada ao Congresso em Foco. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1104 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy efetividade na cobrança do cumprimento dessas normativas. A atual regulação brasileira impõe poucas obrigações sociais às corporações, sugerindo a influência do poder econômico nas relações político-institucionais. Faltaria à legislação o objetivo de controlar o mercado, “não há, portanto, a suposta neutralidade do Estado, que seria delineada pelos imperativos da globalização capitalista”. Uma regulação das comunicações como pilar para o fortalecimento e avanço da democracia brasileira é o que sugere Lima (2011) para evitar as falhas da mídia com a sociedade. O autor aponta, ainda, que no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2003, houve um discreto avanço das políticas públicas na área, com a fundação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e com a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Uma das grandes críticas do autor é com relação à falta de influência da sociedade civil na Comunicação, classificando seus integrantes como “não atores” do setor. A situação ideal seria a garantia da maior quantidade de atores sociais com capacidade para difundir produções simbólicas. Com isso, o debate que se estabelece é sobre a possibilidade de assegurar os interesses sociais, promovendo a participação mais ativa da sociedade, de forma a tornar a mídia mais democrática. Porém, apesar de o governo sinalizar favoravelmente quanto a uma regulação mais severa aos meios de comunicação, os detentores desses veículos prontamente se blindam, afastando assim as propostas de retomar o tema, conforme relata Pieranti (2008, p. 129), ao afirmar que, “quaisquer tentativas de regulação de conteúdo ou a ela relacionadas são, em geral, consideradas pelos meios de comunicação práticas de censura”. O CONSELHO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL Considerando a necessidade de incorporar a sociedade às discussões sobre a regulação no país, este item investigará o Conselho de Comunicação Social (CCS), órgão previsto em Constituição Federal, como alternativa para inclusão social de modo que a radiodifusão alcance seu propósito como bem público, ou seja, contemple os preceitos de pluralidade, regionalismo e finalidade educativa e cultural. Discussões para a criação do Conselho No processo de formulação do capítulo Da Comunicação Social, da Constituição Federal de 1988, a discussão foi polarizada entre conservadores – representados pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) – e progressistas – representados pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). De um lado, a Abert defendia o controle da radiodifusão pelo Poder Executivo e a exploração de concessões por empresas privadas, de outro, a Fenaj propunha a exploração do espectro por entidades sem fins lucrativos e a criação do Conselho de Comunicação Social (BOLAÑO, 2010; JAMBEIRO, 2000; SIMIS, 2010). “A ideia surgiu formalmente em encontro nacional de jornalistas promovido pela Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), com o objetivo de discutir propostas a serem apresentadas no processo constituinte, em 1986” (LIMA, 2012, p.199). Da proposta inicial, o CCS seria um órgão fundamental, atuante e deliberativo, “com poderes normativos e até coercitivos” (CHAGAS, 2012, p. 99); “o conselho operaria com o objetivo de fazer reconhecer direitos à comunicação que não fossem apenas a liberdade Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1105 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy de expressão.” (BIGLIAZZI, 2007, p. 30). Segundo o relatório ‘Por Políticas Democráticas de Comunicação’, redigido pela deputada Cristina Tavares, seria um “instrumento de ação social sobre os meios de comunicação”, e atenderia três princípios: I – Promoção da cultura nacional em suas distintas manifestações, assegurada a regionalização da produção cultural nos meios de comunicação e na publicidade. II – Garantia da pluralidade e de centralização vedada a concentração da propriedade dos meios de comunicação. III – Prioridade a entidades educativas, comunitárias, sindicais, culturais e outras sem fins lucrativos na concessão de canais e exploração de serviços (ANC, 1987). Idealizou-se um conselho com quinze membros que agrupasse atribuições desde outorga e renovações até pareceres sobre a qualidade técnica da programação. Entre os representantes, com mandatos de três anos, estariam membros da área de criação cultural e escolhidos por empresas, sindicatos, comunidade científica, universidades, Ministério da Cultura, Ministério das Comunicações, Senado e Câmara dos Deputados. O relatório concluía a sua análise do papel democrático da comunicação social com uma lembrança do que seriam, na opinião da relatora, as duas principais demandas sociais apresentadas à Constituinte: “obter-se o maior controle da sociedade sobre os conteúdos dos meios de comunicação que colocam em suas casas” e “agregar um caráter social ao uso que se faz dos meios de comunicação, fazendo servir à população e ao seu real interesse” (ANC, 1987, p. 285, apud BIGLIAZZI, 2007, p.34) Tal caráter social esbarrava no interesse de exploração comercial do espectro, isso faz com que haja pressão por parte das empresas para que essa proposta seja alterada. Além da dificuldade de conciliação entre as propostas da Abert e da Fenaj, a regulação do audiovisual no país também enfrentava o desafio de passar pelo poder legislativo. A constituição de um conselho regulador representava a autoridade do órgão e a diminuição da autonomia do poder legislativo, muitas vezes com parlamentares envolvidos com concessões e exploração do serviço. Lima (2012, p.191) afirma que “Nunca foi admitida, por exemplo, a criação de um órgão regulador autônomo, com poderes para outorgar, renovar e cancelar concessões de rádio e televisão, a exemplo do que ocorre em outros países”. Devido às insatisfações com a proposta apresentada pela relatora, o deputado José Carlos Martinez propôs uma emenda supressiva, retirando do texto o Conselho Nacional de Comunicação e dividindo as atribuições entre os poderes, substituindo, assim, o Conselho pelo Congresso Nacional: Gostaria de aproveitar a oportunidade para dizer que nós deveremos construir nesta Constituinte provavelmente uns cem conselhos, um conselho para mineração, um conselho para tudo aquilo que a gente vai ter. Então entendo que o Congresso é a grande Casa para dirimir essas dúvidas. Por isso, votei pela extinção do Conselho (ANC 1987e p. 162-163, apud BIGLIAZZI, 2007). Com isso, os parlamentares legislariam e regulariam um setor do qual muitos deles se beneficiavam. A emenda Martinez, como ficou chamada, foi aprovada em meio a Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1106 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy denúncias de troca de votos por concessões de rádio e televisão, provocando um desacordo da Comissão Técnica da Comunicação na Constituinte o que impediu que um relatório final fosse aprovado (BIGLIAZZI, 2007; LIMA, 2012). Bigliazzi (2007) afirma que a ausência do relatório final da comissão permitiu um “acordo de lideranças”, do qual não constam registros, que resultou em uma mescla da emenda do deputado Martinez com a proposta de Cristina Tavares: um conselho como órgão auxiliar do Congresso Nacional, “que deveria ser ouvido apenas quando o Congresso Nacional julgasse necessário” (LIMA, 2012, p. 191), “concessão máxima feita à ala progressista” (BOLAÑO, 2010, p. 96). Chagas (2012) revela um depoimento do jornalista Carlos Chagas5 em reunião no CCS em março de 2004, que evidencia que não só os parlamentares motivaram a transformação do caráter autônomo do conselho: Apesar da simpatia com que as bancadas constituintes receberam a sugestão […], uma única frase percorreu o plenário e determinou, de forma súbita, senão o arquivamento, ao menos a distorção dos objetivos do Conselho, finalmente transformado em apêndice da Mesa do Congresso. A frase foi: ‘O dr. Roberto não gostou […].’ (CHAGAS, 2012, p.99). Desse modo, a proposta inspirada no modelo norte americano da Federal Communications Commission (FCC), resultou na complementaridade dos sistemas público, estatal e comercial (art. 223), concessões dadas pelo Executivo com aprovação do Legislativo e a redação do artigo 224 da Constituição (LIMA, 2012): “Art. 224 - Para os efeitos do disposto neste Capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei.” (CF, 1988). O artigo 224 foi regulamentado em 1991 com a Lei 8.389, sancionada pelo então presidente Fernando Collor de Mello, que institui o Conselho e estabelece suas competências - pareceres e recomendações dos seguintes temas: (a) liberdade de manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação; (b) propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias nos meios de comunicação social; (c) diversões e espetáculos públicos; (d) produção e programação das emissoras de rádio e televisão; (e) monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social; (f) finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas da programação das emissoras de rádio e televisão; (g) promoção da cultura nacional e regional, e estímulo à produção independente e à regionalização da produção cultural, artística e jornalística; (h) complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de radiodifusão; (i) defesa da pessoa e da família de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto na Constituição Federal; (j) propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens; (l) outorga e renovação de concessão, permissão e autorização de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens; (m) legislação complementar quanto aos dispositivos constitucionais que se referem à comunicação social (Art. 2). 5. Carlos Chagas é jornalista, advogado e professor. Foi representante da sociedade civil no CCS entre os anos de 2002 e 2004. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1107 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy Esta lei, projeto do senador Roberto Pompeu de Sousa Brasil, determina a composição do órgão auxiliar – deveria contar com treze membros titulares, além de treze membros suplentes, ligados às empresas, aos sindicados e à sociedade civil, sem representação dos poderes Executivo ou Legislativo. Os membros do CCS teriam mandatos de dois anos, sendo permitida a recondução. O Senado Federal, de acordo com o artigo 6, parágrafo I da mesma lei, deveria eleger os integrantes, com nomeação em sessão conjunta no Congresso Nacional, sendo eles: 1 representante das empresas de rádio; 1 representante das empresas de televisão; 1 das empresas de imprensa escrita; 1 engenheiro com notórios conhecimentos na área de comunicação social; 1 da categoria profissional dos jornalistas; 1 da categoria profissional dos radialistas; 1 da categoria profissional dos artistas; 1 das categorias profissionais de cinema e vídeo; 5 membros representantes da sociedade civil. Já em seu artigo 8, a Lei 8.389 determinou os prazos para seu cumprimento: até sessenta dias após a publicação (que ocorreu no dia 31 de dezembro de 1991) para a eleição dos membros do CCS e de até mais trinta dias, a partir da eleição para a instalação do Conselho. Entretanto, mesmo com os prazos claramente estipulados, a implantação do Conselho só aconteceu onze anos depois. Simis (2010) credita o atraso ao desinteresse de entidades representativas de algumas categorias, à resistência de parlamentares detentores de concessões da radiodifusão e também ao contexto do país na década de 1990. No Brasil, essa década representou uma fase de liberdade total de conteúdo, de modo que a programação televisiva do período, por exemplo, foi muito criticada, até que a própria sociedade civil, organizada por meio de entidades no Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, começou a pressionar para a criação de regulamentação do Conselho em 1991. (SIMIS, 2010). O CCS receberia, ainda, algumas atribuições extras – a) em 1995, com a Lei 8.977/ 1995, a Lei do Cabo, indicando o Conselho ‘como ator proeminente’ que deve ser ouvido sobre os atos, regulamentos e normas para implementação da lei e prestação de serviços do setor (BIGLIAZZI, 2007; BOLAÑO, 2010; LIMA, 2012); e, depois de sua implantação, b) a última versão do regimento interno (2004), estipulava que o Conselho estudasse também acordos internacionais e que fosse além da radiodifusão, abrigando as demais mídias, incluindo as que surgissem após a CF; e c) em 2008, com a Lei da EBC, n. 11.652, que estabelece que o Conselho Curador da empresa deveria encaminhar ao CCS todas as decisões tomadas em suas reuniões (LIMA, 2012). Cabe ressaltar que, mesmo antes de o Conselho ser instalado, a criação da Anatel em 19976 promoveu a transferência das atribuições que a Lei do Cabo estipulou ao CCS para a Agência. (BOLAÑO, 2010). Implantação do CCS Em 2002, em um acordo para aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 05, que previa a legalização da entrada do capital estrangeiro na radiodifusão nacional, o Conselho de Comunicação Social foi, por fim, estabelecido. Isso aconteceu, pois, embora as empresas temessem pela concorrência possível promovida por essa 6. Com a Lei 9.472/1997, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) foi criada para assumir a regulação das telecomunicações e de serviços de televisão privada. Com relação à radiodifusão, a Anatel ficou responsável apenas pela administração do espectro de frequência. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1108 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy abertura, as mesmas precisavam ter um aparato financeiro para fazer a transição para a tecnologia digital, com a convergência de diferentes plataformas, que surgia à época. E a Rede Globo, que sempre se posicionou contra a participação do capital internacional, migrou de lado, ao precisar quitar sua dívida externa. Assim, a PEC que alterava o artigo 222 da CF foi aprovada, “[...] num ato magnânimo do Congresso, eles concederam, em troca […] que fosse instalado o Conselho de Comunicação Social e regulado o artigo 221 da Constituição, que fala em regionalização e em produção independente” (ANDRADE, 2004, apud CHAGAS, 2012, p.101). Com a viabilização e instalação do Conselho, após a indicação dos membros do primeiro mandato em 05 de junho de 2002, o CCS contava com uma lista de designações e deveres. No primeiro mandato, as dúvidas sobre as atribuições do Conselho foram abordadas. Bigliazzi (2007) cita a discussão sobre como proceder com pedidos que fossem originados da sociedade civil ou de órgãos governamentais de fora do Congresso. Nesse caso, a característica do CCS como órgão meramente auxiliar foi evidenciada, de modo que as demandas externas deveriam passar pela presidência do Senado. O Regimento Interno foi aprovado apenas no início de 2004 e trata, por exemplo, da ausência de remuneração para membros do Conselho, das atribuições do CCS e da necessidade de tomar decisões conclusivas sobre os assuntos tratados. Possibilita também, a fim de sistematizar as verificações dos temas elencados, que o CCS estruture até cinco comissões temáticas para estudar o tema e produzir um relatório - atualmente o Conselho conta com três comissões, são elas: Marco Regulatório, Liberdade de Expressão e Produção de Conteúdo. O regimento estipula ainda o calendário do Conselho, definido com reuniões ordinárias mensais, cujas atas estão disponíveis em sítio do governo7, além de reuniões extraordinárias que devem ser convocadas pelo poder legislativo, com o intuito de discutir pautas específicas. Nesta primeira fase de atuação, entre 2002 e 2006, o CCS passou por dois mandatos e realizou quarenta e cinco reuniões ordinárias (LINS, 2012). Bigliazzi (2007, p.56) critica a pouca relevância do órgão: “O Conselho não pode se tornar competente para exercer o papel de protagonista porque o programa que fundamentaria sua atuação imaginada […] começou a ser abortado ainda durante a Constituinte e foi lentamente desativado após o encerramento da Assembléia”. Por outro lado, Lima entende que, ainda que limitado o Conselho exerce incômodo: Mesmo sendo apenas um órgão auxiliar, o CCS instalado demonstrou ser um espaço relativamente plural de debate de questões importantes do setor – concentração da propriedade, outorga e renovação de concessões, regionalização da programação, TV digital, radiodifusão comunitária etc (LIMA, 2012, p.192). Lima (2012, p.192) explica que isso seria causado pelo fato de que muitos parlamentares são ligados às empresas concessionárias de rádio e televisão (de acordo com Intervozes, em 2013, 25% dos senadores eram detentores de concessões8). “O CCS é um 7. Atas disponíveis em: <http://www.senado.gov.br/atividade/conselho/conselho.asp?con=767>. 8. Informaçãoextraída de notícia do site do Intervozes – coletivo Brasil de Comunicação Social, de 07 maio 2013. Disponível em: <http://intervozes.org.br/representacao-entregue-ao-mpf-questiona-concessoes-deradio-e-tv-para-parlamentares/>. Acesso em 23 out. 2014. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1109 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy órgão que – insisto, mesmo sendo apenas auxiliar – discute questões que ameaçam os interesses particulares desses parlamentares e dos empresários de comunicação, seus aliados. Na verdade, eles não querem debater”. Em 2006 depois do fim da segunda gestão do CCS, novos membros não foram indicados e o Conselho permaneceu inativo até 2012, quando o presidente do Senado José Sarney indicou os novos representantes. “Para muitos não há interesse na existência de um Conselho instalado dentro do parlamento capaz de cobrar e debater sobre comunicação, ainda que apenas para a consulta e não é casual que desde 2007 o CCS esteja inativo” (CHAGAS, 2012, p.102). O fato de o Conselho de Comunicação Social passar mais tempo desativado que atuante preocupa, pois, além de suas atribuições não serem cumpridas, órgãos como a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) têm suas atividades prejudicadas por depender do Conselho. Lima (2012, p.195). argumenta que, nesse intervalo, a lei está sendo descumprida e que a responsabilidade é do Congresso Nacional, pois o mesmo erra ao não convocar o CCS, uma vez que deixa, desse modo, de servir ao interesse público: “o Senado Federal se omite de suas responsabilidades e não se faz presente, nem mesmo se utilizando dos instrumentos que a Constituição já coloca a seu dispor”. Lima (2012, p.199) alerta ainda para o desinteresse da mídia em ver o órgão em atividade: “Indefensável é a cumplicidade gritantemente silenciosa da grande mídia e daqueles que nos lembram quase diariamente dos supostos riscos e ameaças que a liberdade de expressão enfrenta no Brasil e em países vizinhos da América Latina”. Após o hiato no funcionamento e uma representação da deputada Luiza Erundina em 2009 questionando sobre a eleição de novos membros, houve a retomada do CCS, que deveria trocar de representantes em 2014, entretanto, novamente o Conselho está desativado. CONSIDERAÇÕES Baseado nesse breve histórico da proposição, implantação e atuação do Conselho de Comunicação Social, pode-se ressaltar o pouco comprometimento que o Poder Legislativo demonstra com o órgão, haja visto que desde as primeiras discussões, as negociações minaram o poder regulatório da ideia inspirada na Federal Communications Commission. Com a descrição das atribuições do CCS, é possível perceber que os assuntos delegados ao Conselho percorrem todas as temáticas abordadas pela Constituição Federal, o que permite que o órgão seja importante ambiente de discussão da comunicação nacional. Apesar do caráter consultivo do Conselho, a construção dessa arena pública de debates torna-se possibilidade promissora de participação pela representação, se aliada às iniciativas populares de democratização da mídia, tais como os projetos apresentados pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação Popular (Frentecom). Contudo, é importante destacar o alerta feito por Lima (2012), sobre a falta de apoio midiática na promoção de iniciativas democráticas para a radiodifusão. As empresas de comunicação têm como seus representantes quase metade do CCS e isso dificulta a Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1110 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy tomada de decisões que estejam em desacordo com os princípios comerciais dos meios de comunicação. Além disso, se, de fato, o Conselho de Comunicação Social incomoda os setores ligados à comunicação, pode-se apreender que, mesmo consultivo, o órgão ainda exerce alguma influência na regulação do setor e, por isso, deve ser preservado, “para garantir um controle social que fiscalize e garanta o equilíbrio entre o público e o privado, respeitando os direitos do cidadão” (SIMIS, 2010, p.70). Acredita-se que seja possível ter uma sociedade civil cada vez mais presente nos processos comunicativos, uma vez que dela é o espaço utilizado para a radiodifusão e é a ela que a Constituição Federal privilegia ao defender a comunicação social de interesse público. Por fim, cabe ressaltar que, atualmente, o CCS ainda não é eficaz na finalidade de ampliar a participação social, devido ao seu caráter auxiliar e ao enfraquecimento consequente das negociações políticas que o originaram. REFERÊNCIAS Bigliazzi, R. (2007). A Constituição domada: democracia e o Conselho de Comunicação Social. 86f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília. Bolaño, C. R. S. (2010). O modelo brasileiro de regulação audiovisual em perspectiva histórica. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação, Inovação e Saúde. Rio de Janeiro, v.4, n.4, pp. 94-103, nov. Bolaño, C. R. S. (2002). Políticas de Comunicação e Economia Política das Telecomunicações no Brasil: Convergência, Regionalização e Reforma. Disponível em: <http://www.fndc. com.br/arquivos/LivroBolano.pdf>. Acesso em 27 out. 2012. Bolaño, C. R. S.; Brittos, V. C. (2003). Capitalismo, esfera pública global e o debate em torno da televisão digital terrestre no Brasil. Disponível em: <http://200.144.189.42/ojs/index.php/ contracampo/article/view/28/27>. Acesso em 28 out. 2012. Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.>. Acesso em 17 out. 2014. Brasil. (1963). Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D52795.htm>. Acesso em 30 out. 2012. Brasil. (1991). Lei 8.389. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8389. htm>. Acesso em 21 out. 2014. Chagas, G (2012). Radiodifusão no Brasil: poder, política, prestígio e influência. São Paulo: Atlas. Jambeiro, O. (2000). Regulando a TV: uma visão comparativa no Mercosul. Salvador: EDUFBA. Jambeiro, O. (2008). A regulação da TV no Brasil: 75 anos depois, o que temos? Revista Estudos de Sociologia, Araraquara, v.13, n.24, p.85-104. Lima, V. A. (2011). Regulação das comunicações: história, poder e direitos. São Paulo: Paulus. Lima, V. A. (2012). Política de comunicações: um balanço dos governos Lula [2003-2010]. São Paulo: Publisher Brasil. Lins, B. F. E. (2012). Conselho de Comunicação Social: motivação, objetivos e atuação. 2012. Disponível em: <http://www.belins.eng.br/tr01/reports/2012_17959.pdf>. Acesso em 22 out. 2014. Miguel, L. F. (2004). Modelos utópicos de comunicação de massa para a democracia. Disponível em: <http://www.cebela.org.br/imagens/Materia/2004-3%20129-147%20luis%20felipe%20 miguel.pdf>. Acesso em 15 maio 2013. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1111 O Conselho de Comunicação Social e a participação civil Maria Teresa Miceli Kerbauy Pieranti, O. P. (2008). Censura versus regulação de conteúdo: em busca de uma definição conceitual. Democracia e Regulação dos meios de comunicação de massa. SARAIVA, E., MARTINS, P. E., PIERANT, O. P. (orgs). Rio de Janeiro: Editora FGV. Senado Federal. (2004). Ato da Mesa n. 1. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/comissoes/CCS/Documentos/RegIntConsCSS.pdf>. Acesso em 18 out. 2014. Simis, A. (2010). Conselho de Comunicação Social: uma válvula para o diálogo ou para o silêncio? Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 25, n.72, pp. 59-71, fev. Spinillo, L. (2011). Controle Social na Radiodifusão: a introdução e inversão do sentido do conceito na Comunicação e sua relação com o Direito à Comunicação. Recife. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2011/resumos/R6-2234-1.pdf>. Acesso em 17 maio 2013. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1112 Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia Notes on the Campaign #ForaCoronéisDaMídia Gisel e Dan usa Sa lga do L esk e 1 Resumo: Esta pesquisa reflete acerca da manipulação e do oligopólio midiático no Brasil, com base em teóricos de Sociologia e Comunicação como Abramo (2007), Castells (2013) e Deuze (2013). Apresenta-se um breve estudo sobre a atuação da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação (ENECOS), do Coletivo Intervozes e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) Instituições envolvidas na Campanha #ForaCoronéisDaMídia, para então analisar campanha em questão e o portal Donos da Mídia (donosdamidia.com.br), o qual apresenta um panorama nacional dos veículos e redes de comunicação e identifica as relações ilegais entre políticos e os conglomerados de mídia do país. Lançada em Julho de 2014, a campanha #ForaCoronéisDaMídia tem por objetivo combater o coronelismo eletrônico no Brasil e teve seu auge na Semana Nacional pela Democratização da Comunicação (SNDC), de 13 a 24 de Outubro, com a realização de diversas atividades, incluindo protestos, debates e a coleta de assinaturas para o Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática. A análise evidencia que além de haver monopólio midiático, a radiodifusão de caráter privado e comercial favorece o coronelismo eletrônico e desrespeita a Constituição Federal. Palavras-Chave: Oligopólio midiático. Democratização da comunicação. Intervozes. ENECOS. Donos da Mídia. Abstract: This research reflects on handling and media oligopoly in Brazil, based on theoretical sociology and communication as Abramo (2007), Castells (2013) and Deuze (2013). We present a brief study on the performance of the National Executive of the Communication Students (ENECOS), the Collective Intervozes and the National Forum for Democratization of Communication (BDNF) Institutions involved in #ForaCoronéisDaMídia Campaign to then analyze the campaign in question and the portal Donos da Mídia (donosdamidia.com.br), which presents a national overview of vehicles and communication networks and identifies the illegal relationship between politicians and the country’s media conglomerates. Launched in July 2014, the campaign #ForaCoronéisDaMídia aims to combat electronic control in Brazil and had its heyday in the National Week for Democratization of Communication (SNDC), 13-24 October 2015, with the completion of various activities, including protests, debates and the collection of signatures for the People’s Initiative Bill Democratic Media. The analysis shows that in addition to having media monopoly, broadcasting of private and commercial character favors the electronic control and disrespects the Federal Constitution. Keywords: Oligopoly media. Democratization of communication. Intervozes. ENECOS. Media owners. 1. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Minas Gerais (UFJF). [email protected] Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1113 Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia Gisele Danusa Salgado Leske MÍDIA E SOCIEDADE MÍDIA SE faz presente em todos os âmbitos da vida contemporânea, e assim A se torna assunto de suma importância nos estudos sociais. É impossível, hoje, estudar o comportamento humano sem considerar as relações permeadas pela mídia e aquelas estabelecidas entre os indivíduos e a mídia de forma direta, pois ela nos cerca de maneira imperceptível e a cada evolução tecnológica molda ainda mais a visão que se tem do mundo. O professor da Universidade de Amsterdam, Mark Deuze (2010, p. 141), pesquisa especificamente sobre a relação do indivíduo com a mídia e afirma que “[as mídias] formam e estruturam a maneira como percebemos e compreendemos o mundo à nossa volta”. De acordo com seus estudos acerca da invisibilidade e da imersão midiática na contemporaneidade, [...] é preciso deixar claro que se entende por mídia não apenas tipos de tecnologias e porções de conteúdo que escolhemos e coletamos do mundo à nossa volta- uma visão que considera as mídias como agentes externos que nos influenciam de variadas maneiras. De fato, hoje temos de reconhecer como os usos e apropriações da mídia permeiam todos os aspectos da vida contemporânea (DEUZE, BLANK e SPEERS, 2010, p.140). Se anteriormente o contato com a mídia incluía unicamente a recepção, hoje, com os avanços da rede mundial de computadores os usuários interagem a todo momento com os conteúdos acessados e com outros usuários. O sociólogo Manuel Castells (2001, p.19), considerado o principal pensador das sociedades em rede, reflete sobre as relações entre internet, negócios e sociedade em sua obra A galáxia internet, na qual reconhece que “as pessoas, as instituições, as empresas e a sociedade em geral, transformam a tecnologia, apropriando-a, modificando-a e experimentando-a especialmente no caso da Internet, por ser uma tecnologia da comunicação”. E, de fato, a internet proporciona uma ampliação das possibilidades na busca de informação pelo usuário das redes, além, é claro de maior interatividade e alcance das narrativas independentes. Contudo, é preciso voltar a atenção para a televisão e o rádio que ainda representam os principais meios de comunicação em nosso país e que influenciam direta ou indiretamente a maior parte da população brasileira por meio da transcrição dos acontecimentos e transmissão de posicionamento ideológicos. Esses modelos constituem o sistema de distribuição conhecido como radiodifusão, o qual compreende a transmissão de sons (radiodifusão sonora) e a transmissão de sons e imagens (televisão) a serem direta e livremente recebidas pelo público em geral (BRASIL, 1963). O fato é que, no Brasil, muitas vezes o indivíduo só tem acesso à informação, além de seu convívio pessoal, pelos meios de comunicação de massa que possibilitam contato com histórias distantes de si no tempo e no espaço e assim, o receptor passa a acreditar na mensagem que lhe é transmitida, considerando-a como uma verdade absoluta. É a criação do que Perseu Abramo (2003, p. 24) classifica como “verdade midiática”, e uma questão importante é atentar ao modo como essa mensagem é absorvida pelos receptores, pois de acordo com o jornalista e sociólogo, “o público – a sociedade – é cotidiana e sistematicamente colocado diante de uma realidade artificialmente criada pela imprensa e que se contradiz, se contrapõe e frequentemente se superpõe e domina a realidade real que ele vive e conhece”. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1114 Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia Gisele Danusa Salgado Leske Como bem disse Guy Debord (1997, p. 177) em sua obra A Sociedade do Espetáculo, sobre a manipulação da mídia no sentido de selecionar o que tornar-se-á público e o que será desconsiderado na produção de notícias: “o espetáculo organiza com habilidade a ignorância do que acontece e, logo a seguir, o esquecimento do que, apesar de tudo, conseguiu ser conhecido. O mais importante é o mais oculto”. Sobre a o aumento da quantidade de informação diária da contemporaneidade e a seletividade da mídia, Marialva Barbosa afirma que [...] por mais que tenhamos acesso a milhões de informações, há sempre no jogo de guardar o ato de descartar. E entre guardar e descartar há também o poder sobre o que guardar e o que descartar, colocando em destaque o poder de quem pode realizar o ato de produzir memória (e esquecimento) pra o futuro (BARBOSA, 2013, p.344-345). Percebe-se assim o poder dos meios de comunicação em influenciar a população através da transmissão de notícias selecionadas e moldadas segundo as diretrizes editorias de cada veículo e do conglomerado a que este pertence, esquecendo-se por vezes do dever de levar ao conhecimento geral o que é de interesse público, podendo inclusive, alterar a memória social de determinada comunidade. MÍDIA E PODER Se a mídia constrói a realidade e molda a visão de mundo dos indivíduos a partir de sua influência cotidiana quase imperceptível, torna-se imprescindível a reflexão acerca de quem controla essa mídia. No Brasil, a expressão que melhor traduz a situação dos meios de comunicação é “oligopólio”. Trata-se da concentração de um serviço ou produto por poucos fornecedores no intuito de atender às necessidades de muitos consumidores, impondo uma relação de dependência desigual e desajustada, na qual o fornecedor torna-se apto a realizar as transformações que lhe forem convenientes em prol de seu próprio benefício. Como a Internet é vista como um meio de comunicação que, em tese, possibilita uma pluralidade de vozes e versões, esta pesquisa volta a atenção para a radiodifusão. É importante ressaltar que este sistema de distribuição de informação é regulamentado pelo Decreto n. 52.795, de 31 de Outubro de 1963, o qual define que “Concessão é a autorização outorgada2 pelo poder competente a entidades executoras de serviços de radiodifusão sonora de caráter nacional ou regional e de televisão”. No Capítulo II, § 5o alínea b deste Decreto, no que refere-se às formalidades a serem preenchidas pelos pretendentes à concessão para executar os serviços de radiodifusão, consta que deve ser obrigatória a declaração de que “não estão no exercício de mandato eletivo que lhes assegure imunidade parlamentar ou de cargo ou função do qual decorra foro especial”. Percebe-se então que não podem candidatar-se às concessões de rádio e televisão, todo e qualquer cidadão brasileiro que esteja cumprindo mandato ou candidatando-se a cargos políticos. Além deste Decreto, a própria Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 54 e 55, afirma que: 2. Outorga significa conferir o direito de executar algo ou conceder um direito, refere-se à autorização para executar um serviço público ou utilizar bens públicos para execução de determinado serviço. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1115 Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia Gisele Danusa Salgado Leske Art. 54: Os Deputados e Senadores não poderão [desde a expedição do diploma], a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes. Art. 55: Perderá o mandato o Deputado ou Senador: I - que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior (BRASIL, 1988, Art. 54). Contudo, ao observar o estudo do Coletivo Intervozes sobre Concessões de rádio e tv: onde a democracia não chegou, percebe-se que a lei não está sendo cumprida nem com relação às outorgas e menos ainda no que diz respeito às consequências para os políticos que desrespeitam a Constituição, pois neste documento do ano de 2007 afirma-se que 53 deputados possuem diretamente veículos de comunicação; 27 senadores possuem diretamente veículos de comunicação; 40 geradoras de televisão afiliadas e 705 retransmissoras da Rede Globo estão nas mãos de políticos; 128 geradoras de televisão e 1765 retransmissoras estão nas mãos de políticos; Dos 80 membros da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, pelo menos 16 têm relação direta com emissoras de rádio ou TV; Só em 2004, 10 deputados votaram na renovação de suas próprias concessões; Metade das 2.205 autorizações dadas a rádios comunitárias entre 1999 e 2004 estão sob o controle de grupos partidários (INTERVOZES, 2007, p 19). Tanto a posse de meios de comunicação por parte de políticos quanto a candidatura a cargos políticos por parte de indivíduos que possuam outorgas sobre a radiodifusão desrespeitam o Decreto de Regulamentação da Radiodifusão e ainda infringem a Constituição Nacional, ferindo consequentemente o direito do cidadão a uma comunicação democrática. É importante salientar que a regulamentação da mídia, mais especificamente das questões relacionadas a radiodifusão, tem por objetivo a proteção do direito à liberdade de expressão e democratização da mídia, não apenas no que se refere a expor os próprios posicionamentos mas, também, no sentido de receber informações que apresentem uma pluralidade de opiniões. Então a consequência do não cumprimento deste Decreto, no que tange aos detentores dos veículos de comunicação, é justamente a parcialidade da mídia, visto que por pertencer a um político, o meio de comunicação passa a defender seus interesses pessoais e não mais pode tratar os acontecimentos com o ideal jornalístico de imparcialidade. Tamanha é a importância de regularizar a mídia que a questão assume amplitude universal e é um dos temas de discussão da UNESCO, a qual elaborou em 2011 uma cartilha especifica sobre liberdade de expressão e regulação da radiodifusão, na qual afirma que A regulação da mídia caminha, portanto, pari passu com a garantia, promoção e proteção da liberdade de expressão. Na verdade, regular a mídia deve sempre ter como objetivo último proteger e aprofundar aquele direito fundamental. Não por outra razão, a matéria é tratada, a partir de diferentes perspectivas, pelos mais importantes instrumentos internacionais de direitos humanos: Carta das Nações Unidas, Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Convenções sobre os Direitos da Criança, Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1116 Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia Gisele Danusa Salgado Leske sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (UNESCO, 2011, p. 7). No âmbito nacional, diversas entidades lutam diariamente pela Liberdade de Expressão; uma delas é o Coletivo Brasil de Comunicação, conhecido como Intervozes. Trata-se de uma organização que “trabalha pela efetivação do direito humano à comunicação no Brasil, considerando-o essencial para o exercício da cidadania e da democracia”, a qual é formada por ativistas e profissionais da Comunicação Social (e de diversas áreas de formação), no intuito de alcançar a Democratização da Comunicação e o direito a voz para diversos setores da sociedade. Em relação às concessões de radiodifusão, o coletivo elabora diversos materiais informativos além de eventos em todo o país no intuito de esclarecer à população a importância do assunto e lutar, de fato, para que a legislação seja cumprida, alegando que as questões burocráticas e a falta de zelo por parte do Estado fazem com que Somados, legislação ultrapassada, burocracia leniente e desvio conceitual do que é liberdade de expressão transformam outorgas temporárias em capitanias hereditárias. O processo administrativo acoberta uma política de renovação automática das concessões, em que a sociedade não é ouvida e o Estado abre mão de seu papel de avaliador das outorgas. (...) O volume de processos e a falta de acompanhamento durante a vigência da concessão fazem com que não haja uma análise cuidadosa sobre seu uso, tornando o sistema de renovação um processo praticamente burocrático. A decisão é sempre pela renovação. (INTERVOZES, 2007, p 10) Evidencia-se que o processo de manutenção das outorgas ocorre de maneira automática e sem alcançar o conhecimento público que deveria ter, ao passo que trata-se de uma concessão pública que deve atender às necessidades da população e cumprir com determinados requisitos que estão sendo subjugados, desrespeitando as leis e os direitos do cidadão brasileiro. Também empenhada por melhorias na área, a Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social é uma entidade representativa que atua com o propósito de organizar os estudantes de comunicação de todo o Brasil em torno de pautas em comum. Criada oficialmente em 1991, atua em torno de três principais bandeiras: Democratização da Comunicação (Democom), Qualidade de Formação do Comunicador (QFC) e Combate às Opressões. Em busca de um debate com os futuros comunicólogos do país, a Executiva Nacional de Estudantes de Comunicação, levanta que [...] as perguntas que devem ser feitas são: qual liberdade de expressão tem o trabalhador da comunicação se a informação que é transferida para a sociedade reflete as vontades do patrão? Como pode o jornalismo fiscalizar o poder, se quem está no poder político é dono dos meios de comunicação? (ENECOS, 2009, p. 3) Diante desta realidade, o mito de que o Jornalismo atuaria como um quarto poder, no intuito de vigiar e cobrar resultados do Estado, torna-se volátil, ao passo que os políticos detêm o poder sobre os meios de comunicação em nosso país e assim influenciam a opinião pública a seu favor e controlam os conteúdos transmitidos a milhares de espectadores, que são também eleitores. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1117 Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia Gisele Danusa Salgado Leske Partindo do pressuposto de que “a democracia no Brasil não pode existir sem a efetiva democratização dos meios de comunicação”, inicia-se já na década de 80 uma congregação de entidades para bradar por melhorias na área. É um esforço coletivo que dá origem em 1991 a um movimento social que em 1995 transforma-se em entidade representativa: o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). A entidade participou de diversos momentos historicamente importantes para o avanço da comunicação no Brasil, inclusive na elaboração de documentos oficiais e publicações referentes a Conferências Estaduais e à I Conferencia Nacional de Comunicação que ocorreu em 2009 na cidade de Brasília. Além disso, o FNDC publicou uma pesquisa referência sobre a concentração da mídia no Brasil: Os Donos da Mídia. DONOS DA MÍDIA A partir da preocupação com a produção e controle da mídia no Brasil, surge na década de 80, inicialmente com o trabalho elaborado pelo jornalista Daniel Herz, o projeto Donos da Mídia que apresenta em sua plataforma digital artigos, gráficos e tabelas relacionados aos detentores das outorgas de comunicação no país: O Projeto Donos da Mídia reúne dados públicos e informações fornecidas pelos grupos de mídia para montar um panorama completo da mídia no Brasil. Aqui estão detalhadas diversas informações sobre os seguintes tipos de veículos: emissoras e retransmissoras de TV; rádios AM, FM, Comunitárias, OT e OC; operadoras de TV a cabo, MMDS e DTH; canais de TV por assinatura; e as principais revistas e jornais impressos (portal eletrônico DONOS DA MIDIA, 2015). A publicação do FNDC permite acesso a um panorama nacional estabelecido a partir do cruzamento de dados elaborado pelos pesquisadores que, além de quantificar os veículos e redes de comunicação (evidenciando o oligopólio nacional), identifica as relações ilegais entre políticos e as redes de comunicação do país. Esta parte do portal apresenta-se da seguinte forma: Pessoas que aparecem neste site são necessariamente sócias ou dirigentes de algum veículo de comunicação, grupos de mídia ou redes nacionais de televisão. Existem ainda senadores, deputados, governadores, prefeitos ou vereadores que possuem em seu nome - contrariando a Constituição Federal - outorgas de rádio e televisão. Aqui não está computada a relação indireta, ou seja, familiares e sócios de políticos que controlam algum veículo (portal eletrônico DONOS DA MIDIA, 2008). Referente às grandes redes privadas e nacionais de radiodifusão que compõe o Sistema Central de Mídia no Brasil – em 2008 foram citadas Globo, Band, SBT, Record e Rede TV! – o portal afirma que controlam de modo direto ou indireto, os principais veículos de comunicação do país: “Este controle não se dá totalmente de forma explícita ou ilegal. Entretanto, se constituiu e se sustenta contrariando os princípios de qualquer sociedade democrática, que tem no pluralismo das fontes de informação um de seus pilares fundamentais”. Salienta-se que as cinco empresas citadas controlam cerca de 927 veículos de comunicação no país, enquanto a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), comandada pelo Governo Federal controla 95 veículos. Com base em dados Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1118 Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia Gisele Danusa Salgado Leske recolhidos até a eleição de 2008, o portal afirma que: No Brasil, 271 políticos são sócios ou diretores de 324 veículos de comunicação. O Projeto Donos da Mídia cruzou dados da Agência Nacional de Telecomunicações com a lista de prefeitos, governadores, deputados e senadores de todo o país para mapear quais deles são proprietários de veículo de comunicação (portal eletrônico DONOS DA MIDIA, 2015). A prática de concentrar o poder relacionado aos meios de comunicação de massa nas mãos de políticos é conhecida então como coronelismo eletrônico e, A literatura política brasileira tem utilizado o termo coronelismo como uma forma peculiar de manifestação do poder privado, com base no compromisso e na troca de proveitos com o poder público. A ciência política trata como coronelismo a relação entre os coronéis locais, líderes das oligarquias regionais, que buscavam tirar proveito do poder público, no século XIX e início do século XX. Hoje, não há como deixar de se associar esse termo aos atuais impérios de comunicação mantidos por chefes políticos oligárquicos, que têm, inclusive, forte influência nacional. O compadrio, a patronagem, o clientelismo, e o patrimonialismo ganharam, assim, no Brasil, a companhia dos mais sofisticados meios de extensão do poder da fala até então inventados pelo homem: o rádio e a televisão (BAYMA, 2002). Destes 270 políticos3 citados acima: 20 são senadores, 48 são deputados federais, 55 são deputados estaduais e os que mais estabelecem relações diretas com os meios de comunicação são os prefeitos. Na época somava-se a quantia de 147 representantes máximos dos municípios como sócios ou proprietários de veículos de comunicação, conforme o gráfico a seguir: Figura I. Políticos com relação direta com meios de comunicação Fonte de dados: Portal eletrônico Donos da Mídia 3. Optou-se pelo número 270 para coincidir com a divisão apresentada pelo portal no que se refere aos cargos. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 1119 Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia Gisele Danusa Salgado Leske O portal apresenta a possibilidade de pesquisar por: Redes, Grupos, Veículos, Lugares e Pessoas. No que diz respeito às redes, o portal as identifica como “Conjunto[s] de emissoras de rádio ou de TV que transmitem, de forma simultânea ou não, uma mesma programação gerada a partir de uma ou mais estações principais (cabeças-de-rede)”. Destaca-se a rede pertencente à família Marinho, localizada no Rio de Janeiro: Maior rede de televisão em operação no Brasil, a Rede Globo encabeça o Sistema Central de Mídia nacional por vários motivos. Entre eles, sua contínua relação com empresas regionais de comunicação desde 1965. São 35 grupos que controlam, ao todo, 340 veículos. E sua influência é forte não apenas sobre o setor de TV. A relação com empresas em todos os estados permite que o conteúdo gerado pelos 69 veículos próprios do grupo carioca seja distribuído por um sistema que inclui outros 33 jornais, 52 rádios AM, 76 FMs, 11 OCs4, 105 emissoras de TV, 27 revistas, 17 canais e 9 operadoras de TV paga. Além disso, a penetração de sua rede de televisão é reforçada por um sistema de retransmissão que inclui 3305 RTVs5 (portal eletrônico DONOS DA MIDIA, 20015). Evidencia-se que a produção midiática de uma única rede alcança consumidores do país inteiro e com isso pode influenciar diretamente em suas percepções, crenças, modos de vida e visões de mundo. Reconhecer que tamanho poder social está condicionado a uma empresa privada que visa o lucro, estabelece seus próprios padrões de produção e transmissão, desrespeita ou contribui para o desrespeito à regularização da mídia e à Constituição Federal traz imenso desconforto para as entidades se almejam a Democratização da Comunicação. Cria-se então, num esforço coletivo a Campanha #ForaCoronéisDaMídia. CAMPANHA #FORACORONÉISDAMÍDIA Lançada em Julho de 2014 – pela ENECOS, Coletivo Intervozes e FNDC – a campanha #ForaCoronéisDaMídia tem por objetivo combater o coronelismo eletrônico no Brasil e mobilizar os mais diversos movimentos sociais para sensibilizar a sociedade e as esferas de poder sobre o tema. Foi organizada nacionalmente, mas com ações regionais específicas para dar ênfase aos efeitos do coronelismo eletrônico de cada região, possibilitando a identificação por parte do público local e maior entendimento sobre as pautas levantadas. O lançamento oficial da campanha foi realizado ao final do Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação, organizado pela ENECOS, em Alagoas e contou com apoio da população porém não teve cobertura midiática, visto que ia contra os interesses políticos da mídia ao criticar diretamente a prática ilegal do coronelismo na região. Consistiu em uma passeata com palavras de ordem sobre democratização da comunicação e empoderamento popular e culminou com um atear fogo em um boneco de pano que representava o senador (eleito pe