Edição 52 –
Transcrição
Edição 52 –
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA Março de 2014 — Número 52 ISSN 1518-1766 Copyright © by Academia de Letras da Bahia, 2014 ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA Avenida Joana Angélica, 198, Nazaré 40050-000 – Salvador, Bahia, Brasil Telefax (71) 3321-4308 www.academiadeletrasdabahia.org.br [email protected] Revista Anual de Literatura, Artes e Ideias Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52. mar. 2014 Salvador: Academia de Letras da Bahia, 2014. 512 p. Anual ISSN 1518-1766 1. Literatura brasileira -- Periódicos – CDU 860.0(05) Nesta revista optou-se pela flexibilização de normas de atualização e padronização de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e instituições citadas, a critério do autor de cada texto, daí a ocorrência de Ruy Barbosa, Rui Barbosa, Gregório de Mattos, Gregório de Matos, école lacanienne de psychanalyse, Liga Bahiana contra o Analfabetismo etc. Esta edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa IMPRESSO NO BRASIL SUMÁRIO 11 EDITORIAL A Revista da Academia de Letras da Bahia Aramis Ribeiro Costa ARTIGOS E ENSAIOS 15 A MORTE NA VIDA E NA POESIA DE CASTRO ALVES Aramis Ribeiro Costa 39 OS GERAIS SÃO SEM TAMANHO Cartografias do sertão rosiano Evelina Hoisel 57 AS VIAGENS DE ST. BRENDAN — A ILHA BRASIL Waldir Freitas Oliveira 73 BREVE REFLEXÃO SOBRE OS HINOS ÓRFICOS Ordep Serra 93 O PODER ERÓTICO Diário e cartas de Cristina Vasa, rainha da Suécia, e do padre Antonio Vieira Gloria Kaiser 105 POR QUE O MENINO MOZART BRINCAVA COM OS SONS? Urania Tourinho Peres 123 128 TWITTERS SOBRE MOZART, MÚSICA E PSICANÁLISE Uma resposta experimental ao texto de Urania Tourinho Peres Paulo Costa Lima 139 A POÉTICA DA CIDADE Paulo Ormindo de Azevedo 145 QUATRO AUTORES E UMA CIDADE Imagens de Salvador no conto baiano do século XXI Carlos Ribeiro 161 AS MOTIVAÇÕES HUMANAS DESNUDADAS NO CONTO DE HÉLIO PÓLVORA Gerana Damulakis 169 CARLOS NELSON COUTINHO (1943 – 2012) Um pensador cosmopolita Florisvaldo Mattos 179 CARLOS NELSON COUTINHO A empreitada intelectual de um comunista reformista Paulo Fábio Dantas Neto 187 MAJOR COSME DE FARIAS Um educador popular João Eurico Matta 195 DORIVAL CAYMMI (1914 – 2008) Joaci Góes 201 A BIBLIOTECA JORGE AMADO Comemorando o centenário do acadêmico Edivaldo M. Boaventura 209 215 POESIA, MANJAR DO DEMÔNIO Três poetas no cenário baiano João Carlos Teixeira Gomes UM GRANDE POETA: AFFONSO MANTA (1939 – 2003) Ruy Espinheira Filho POESIA 225 TRÊS SONETOS Clóvis Lima 229 CINCO POEMAS EM HOMENAGEM Florisvaldo Mattos 235 CINCO SONETOS Myriam Fraga 241 A QUE PARTIU HÁ POUCO & QUATRO SONETOS Ruy Espinheira Filho 249 TRÊS SONETOS Gláucia Lemos 253 CINCO SONETOS Luís Antonio Cajazeira Ramos 259 TRÊS POETAS BRETÕES / TROIS POÈTES BRETONS Dossiê bilíngue Dominique Stoenesco (Org.) 260 Jean-Albert Guénégan 267 274 Jean-Claude Tardif Olivier Cousin FICÇÃO 285 O RETRATO NA PAREDE Hélio Pólvora 299 O CAVALO Rinaldo de Fernandes 305 NO TEMPO EM QUE O RIO TINHA PEIXE Cyro de Mattos 317 A CASA DOS BAÚS Carlos Barbosa 325 TUPAC AMARU Gláucia Lemos DISCURSOS 331 DISCURSO DE POSSE NA CADEIRA NÚMERO 33 Mãe Stella de Oxóssi 351 MÃE STELLA DE OXÓSSI — ODÉ KAIODÊ Saudação à acadêmica Myriam Fraga 363 ARQUIABADE DOM EMANUEL D’ABLE DO AMARAL, OSB Saudação ao acadêmico Fernando da Rocha Peres 371 AFRÂNIO COUTINHO E A BAHIA Centenário do acadêmico Consuelo Pondé de Sena 387 ANTÔNIO LOUREIRO DE SOUZA Centenário do acadêmico Edivaldo M. Boaventura 399 RUBEM NOGUEIRA Centenário do acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos 409 DISCURSO DOUTOR HONORIS CAUSA Moniz Bandeira 427 MONIZ BANDEIRA Saudação ao doutor honoris causa da UFBA Ubiratan Castro 437 ANTONIO CARLOS MAGALHÃES E A CULTURA Uma relação intuitiva e apaixonada Geraldo Machado 457 CLÁUDIO VEIGA As letras por destino Aleilton Fonseca DIVERSOS 471 489 501 Efemérides 2013 Quadro social da ALB Endereços dos acadêmicos EDITORIAL A Revista da Academia de Letras da Bahia A Academia de Letras da Bahia foi fundada em sete de março de 1917. Em 16 de março daquele ano, antes mesmo da pomposa instalação a 10 de abril, publicava seus primeiros estatutos, e neles manifestava a intenção de uma revista. A instituição iniciava-se de forma privilegiada: constituída por nomes do maior prestígio; apoiada pelo Governo da Bahia, cujo governador, Antonio Moniz, era um dos fundadores; e transformada, logo em seguida, em três de julho, em instituição de utilidade pública pela Lei Estadual nº 1.198, com a promessa do governo, posta na redação dessa mesma lei, de conceder-lhe instalação permanente em um dos edifícios públicos. Entretanto, apesar de tudo isso, nas primeiras décadas não teve sede própria e enfrentou dificuldades financeiras. Em consequência, embora fosse um empenho dos fundadores, só em 1930, na presidência do historiador Braz do Amaral, é que pôde editar o primeiro número de sua ambicionada revista. Um volume de duzentas e quatorze páginas, impresso na Imprensa Oficial do Estado, que, àquele tempo, funcionava na Rua da Misericórdia, número 1, e trazendo na quarta capa propagandas dos prováveis patrocinadores: a Livraria Científica, a Livraria Progresso, Galdino Loureiro & Cia. (livreiros e editores), Papelaria e Livraria Econômica, e mais o anúncio de dois livros da época, um de Altamirando Requião e outro de Manoel Galvez, tradução de Gonçalo Moniz. No editorial desse primeiro número, que hoje é uma raridade bibliográfica até para a própria Academia de Letras da Bahia, consignava-se a grande aspiração que ali se concretizava, bem como a necessidade e a importância da revista para a instituição e para a própria cultura baiana. ►► 11 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 De lá para cá, a história repetiu-se cinquenta e duas vezes. Sempre as dificuldades, sempre o grande trabalho e o enorme esforço para a edição, sempre a consciência da importância deste periódico para a instituição e para a cultura baiana, e sempre, ao final, a satisfação do dever altamente cumprido. Há oitenta e quatro anos, daquele distante 1930, do primeiro número, a esta parte, a Revista da Academia de Letras da Bahia, com progressivas e visíveis melhoras gráficas, vem registrando não só a vida acadêmica da instituição que representa, por meio do quadro social, das efemérides, dos discursos, das comunicações das sessões ordinárias, como também perpetuando trabalhos literários ou de valor literário, como preconizam seus estatutos, no exercício da nobre e honrosa função de promover, difundir e preservar a cultura, em particular a literatura, na Bahia. Atualmente, além de impressa, a Revista da Academia de Letras da Bahia tem sido disponibilizada também em nossa página da internet, o que a coloca no mundo. Naturalmente, como no passado, revelamos, na quarta capa, o patrocinador, o Governo da Bahia. Este número, que, esperamos, se apresenta com a qualidade gráfica e o elevado nível de conteúdo que já se constituem uma tradição irreversível do periódico, além de contar com um diretor que é um dos emblemas do jornalismo baiano, o acadêmico Florisvaldo Mattos, contou com a assessoria abalizada do acadêmico Aleilton Fonseca e, na revisão — esse trabalho tantas vezes ingrato e hercúleo, mas necessário —, com o extraordinário esforço e não menor competência do acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos. Desta forma, também na Revista da ALB, cumprimos a meta dos fundadores, de “servir à pátria honrando as letras”. Aramis Ribeiro Costa Presidente 12 ◄◄ ARTIGOS E ENSAIOS A MORTE NA VIDA E NA POESIA DE CASTRO ALVES Aramis Ribeiro Costa T endo vivido tão pouco, a morte acompanhou a vida e a poesia de Castro Alves. Não aconteceu apenas com ele. Álvares de Azevedo morreu aos vinte anos; Fagundes Varela, aos trinta e três; Casimiro de Abreu, aos vinte; e Junqueira Freire, aos vinte e dois. É preciso lembrar que falamos de meados do século XIX, uma época em que a medicina, essencialmente empírica, se encontrava muitas décadas distante dos conhecimentos e dos recursos dos nossos dias. Não havia antibiótico nem vacina. Morria-se com facilidade. E não apenas nas grandes epidemias, que, uma vez iniciadas, se alastravam com rapidez e descontrole, ceifando vidas aos milhares, ante a impotência angustiante dos poderes públicos e dos médicos, ambos desarmados. Morria-se por tudo. Morria-se de parto, de pneumonia, de desidratação, de pequenas infecções ou inflamações que não podiam ser debeladas. Morria-se a morte lenta e dolorosa da sífilis. E morria-se de tuberculose, fantasma soturno que acompanhava os indivíduos de forma silenciosa e persistente, seguindo, como sombra apavorante, em particular os desnutridos e os moços boêmios em seus prazerosos excessos. Na verdade, convivia-se cotidianamente, diuturnamente com a morte, e nem mesmo a realidade destruidora da violência urbana dos grandes centros contemporâneos, dos assaltos, dos acidentes de tráfego, das drogas, das doenças degenerativas e das síndromes imunológicas de nossos dias podem dar uma ideia desse convívio macabro. ►► 15 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 A suavizar a triste realidade daquela época, talvez apenas o hoje inacreditável sentimento excessivamente romântico que tornava belo morrer de tuberculose na mocidade, com tosses persistentes, hemoptises profusas, os olhos grandes e encovados, a palidez cadavérica, o corpo descarnado. A tísica ia aos poucos minando o físico, enquanto, por algum tempo, permanecia a chama da alma acesa, ansiosa por viver, porém a arder com desespero, como a pequena labareda de um toco de vela, que teima em iluminar antes de desaparecer por completo. Por incrível que pareça isso inspirava, e não foram poucas as “damas das camélias” que despertaram paixões avassaladoras, como não foram poucos os moços boêmios, poetas ou não, que incendiaram as imaginações românticas com sua aparência e fraqueza de tísicos. É esse o quadro terrível de um tempo e de uma sociedade na qual aos quarenta anos era-se velho; aos sessenta, velhíssimo; aos oitenta, um fenômeno de longevidade. É esse o tempo e a sociedade em que nasce, vive e escreve o moço baiano Antônio de Castro Alves. Mas não era só isso. Como se não bastassem as circunstâncias da época, outras de ordem familiar ajudavam a trazer para dentro de casa a presença macabra. Catedrático de clínica interna da Faculdade de Medicina da Bahia, cirurgião, médico do Hospital de Caridade, o doutor Antônio José Alves, pai de Castro Alves, fazia de suas residências um misto de moradia e hospital, onde atendia e internava pessoas livres e escravas, e é de crer que ali se morresse bem mais que em outras casas, das outras famílias. Escaparam dessa dupla condição a bucólica Fazenda Cabaceiras e também a primeira residência da família em Salvador, na Rua do Rosário de João Pereira, número um. Mas essa última era povoada por uma lembrança trágica, a história romântica de um tresloucado amor, ainda mais romantizada pela imaginação do povo, e que iria se associar para sempre à história do poeta. Ali, o professor João Estanislau da Silva Lisboa matara — dizia o povo que com uma bala de ouro, o que seguramente não corresponde à verdade, pois era uma bala comum — a sua amada Júlia Fetal. E a história, 16 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 contada e repetida por toda a gente com enfeites e emoção, há de ter impressionado o jovem Cecéu. O misto de moradia e hospital deu-se já na residência seguinte, na Rua do Passo, número 47, próxima ao Largo do Pelourinho. E ampliou-se na espaçosa Quinta da Boa Vista, em Brotas, casarão de elevada torre encimada por campanário e amplo terreno arborizado à volta, para onde o doutor Alves levou o seu ambicioso sonho de instalar um hospital modelo. Ali, inevitavelmente, teriam morrido vários enfermos, acometidos de doenças diversas, a tuberculose predominando. Não é de estranhar, portanto, que a poesia de Castro Alves, como quase toda a poesia da época, fosse impregnada do tema e do espírito da morte, mais do que isso, da inspiração obsessiva da morte. Morte e amor. Tânatos e Eros, os deuses opostos e tantas vezes convergentes na vida e na arte. Como se fosse tão curta a existência, que fosse preciso amar intensamente — como se fosse tão intenso o amor, que matasse. Mas uma coisa são circunstâncias e sentimentos de época, e cada época os tem exacerbados e muitas vezes incompreensíveis para as épocas posteriores; uma coisa também as circunstâncias profissionais do pai médico e sua obstinação em servir aos enfermos, em particular aos desvalidos e escravos; e outra, bem outra, a dor cruel da perda muito próxima, a morte ferindo fundo, como dardo envenenado, o próprio mundo. Castro Alves conheceu esse dardo muito cedo. Tinha doze anos de idade em 10 de abril de 1859, quando a mãe, Clélia Brasília da Silva Castro, morreu tuberculosa aos trinta e quatro anos. Voltamos à doença romântica e terrível. Tanto quanto a sífilis — esta sem o caixilho da poesia, pelo contrário, emoldurada pela marca infame da promiscuidade —, um estigma do tempo. O doutor Robert Koch ainda não havia descoberto o bacilo que levaria o seu nome, o que só ocorreria em 1882. Não havia sequer a certeza da transmissibilidade da doença de pessoa para pessoa. A ignorância da época sobre contágio, e não apenas no ►► 17 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que se refere à tuberculose, era absoluta, tanto que o doutor Alves, um afamado médico e professor da Faculdade de Medicina, que havia se destacado pouco antes no combate a uma epidemia de cólera na Bahia, fazia da própria residência um lugar para tratamento de pacientes graves. É claro que, entre esses pacientes, havia portadores de doenças infectocontagiosas, incluindo a tuberculose em fase de transmissão, e é dedutível que, estando tão próximos, ainda que num andar inferior, como ocorreu na Rua do Passo, os enfermos punham em risco a sua família. Nesse ambiente naturalmente insalubre, convivendo, com a maior naturalidade, sem os cuidados atuais de prevenção de contágio, com pessoas que deviam estar afastadas do convívio social, é provável que aquele dedicado médico não se tenha preocupado, aos primeiros sintomas e sinais, em tomar medidas para o isolamento de Clélia, de modo que os filhos e ele próprio não fossem afetados. Quanto a ele, tinha a saúde comprometida desde antes do casamento. Estivera, em pelo menos três ocasiões, bastante enfraquecido e preocupado consigo próprio. Uma delas, um ano antes da formatura, quando foi ao sertão e conheceu Clélia Brasília. Outra, já formado, ao retornar da Europa, aonde fora especializar-se em cirurgia, e já se encontrava em pleno exercício profissional, tendo, mais uma vez, interrompido suas atividades para buscar nos ares sertanejos o restabelecimento da saúde. E a terceira, já casado, entre o nascimento do primeiro filho, José Antônio, e o do segundo, Antônio. Verdade que não se descreve, a seu respeito, um quadro de tuberculose, deixando-se sempre em dúvida a origem de sua enfermidade, ou desse “enfraquecimento”, que o fazia interromper tudo e partir em busca de ares puros, havendo apenas quem mencione certa “doença dos pulmões” ou “coração cansado”. Houvesse, desde essa época, um quadro instalado de tuberculose no pai do poeta, e é de crer que a progressão da doença fosse inevitável, com sinais e sintomas patognomônicos. 18 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 De qualquer forma, na distância do tempo e sem registros esclarecedores, numa sociedade em que a própria diagnose primava por desconhecimento e falta de comprovação científica, torna-se muito difícil estabelecer um diagnóstico de nomenclatura atual, sabendo-se apenas que, passada a debilitação dos primeiros anos após o casamento, ele se atirou ao exercício da profissão sem mais apresentar sinais de enfermidade ou fadiga, ao menos por um bom tempo. Quanto aos filhos, deviam ter sido protegidos desde o início da doença da mãe. E, ao menos aparentemente, não houve o isolamento materno. Se não se sabia sobre contágio, sobre o qual havia apenas uma suspeição, sabia-se perfeitamente a progressão e o fim daquela doença avassaladora, cujo quadro clínico, tão repetido em tantos clientes, era bastante conhecido, e o doutor Alves colocou, em 22 de julho de 1857, um anúncio no Jornal da Bahia à procura de “uma senhora de alguma educação” que se quisesse “encarregar de tomar conta de meninos e da direção de uma casa de família”. Dois anos antes de sua morte, portanto, Clélia Brasília já era portadora de tuberculose avançada, com sinais e sintomas evidentes e assustadores, fraca a ponto de não poder tomar conta de sua casa e de seus filhos, e o marido e médico tinha plena consciência do que seria dali por diante. Há um daguerreótipo do último ou penúltimo ano de sua vida em que Clélia — contrastando com outra foto em que se apresenta moça e saudável — se encontra envelhecida, com faces encovadas, os olhos grandes e tristes, numa antevisão da própria morte. Aqui cabe uma reflexão. O fato de a tuberculose matar lentamente acabava criando, em torno do enfermo, a expectativa do inevitável desenlace. Teria o doutor Alves prevenido os filhos da perda iminente? Teriam eles próprios, ao menos os mais velhos, pressentido o desaparecimento inevitável e breve da mãe? Eram seis irmãos (pois o segundo, João, morrera alguns dias após o nascimento): José Antônio, com treze anos; Antônio Frederico (o nome Frederico raramente aparece na denominação ►► 19 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de Castro Alves, porque ele o detestava e logo o aboliu), com doze; Guilherme, com sete; Elisa, com seis; Adelaide, com cinco; e Amélia, faltando um mês para completar quatro anos. Dos seis, o que apresentou sinais exteriores de maior abalo com a perda da mãe foi o mais velho, José Antônio. Era um rapaz fisicamente belo, de temperamento ardente e apaixonado, mas também retraído e sombrio. E era poeta. Hoje não se conhece a sua poesia, porque ele próprio a destruiu, lançando-a ao fogo num momento de alucinação. Mas, naquele tempo, aos treze anos de idade, embora o irmão mais moço, com doze anos, já ensaiasse os primeiros versos, era o poeta da família, cujo talento todos louvavam. O próprio Antônio tinhalhe grande admiração. A morte da mãe fez com que o jovem José Antônio tentasse o suicídio, atirando-se de uma janela à rua, o que além do grande susto causado à família deve ter provocado uma forte impressão em todos, inclusive no irmão mais moço. Ao partirem ambos para o Recife em janeiro de 1862 na intenção de cursarem direito, José Antônio a completar em fevereiro dezesseis anos de idade, e Antônio, em março, quinze anos, foram morar primeiro no Convento de São Francisco, depois numa república de estudantes na Rua do Hospício. Ali, segundo depoimentos, são evidentes as diferenças de personalidade dos dois irmãos poetas. Antônio, expansivo e animado, divertia-se a jogar bilhar, a desenhar (que era um de seus gostos, incentivado pelo pai, um apreciador das artes visuais) e a fazer versos, que já vinham com a fama dos outeiros do colégio de Abílio César Borges, na Bahia. Enquanto isso, José Antônio passava os dias à janela, melancólico, a ler os versos românticos de Álvares de Azevedo, que havia morrido aos vinte anos de idade dez anos antes, ou em longas conversas com os loucos do hospício vizinho, a demonstrar uma mórbida afinidade com seus interlocutores. Com eles havia outro jovem baiano, grande amigo de Antônio, e que mais tarde, após a morte do poeta, se casaria com 20 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 sua irmã Adelaide: Augusto Álvares Guimarães. Dali os três foram juntos morar num arrabalde do Recife, próximo ao Rio Capibaribe, o que devia ser bom, inclusive, porque afastava José Antônio da companhia dos loucos do hospício. Mas a diferença de comportamento entre os irmãos acentuou-se. Ao passo que Antônio, eufórico, experimentava os primeiros namoros, fazia amizades, era chamado a recitar e até se deixava vaidosamente retratar para uma publicação em jornal, envolvendo-se na agitada vida acadêmica, literária e boêmia do belo Recife, tão rico de todas as tentações para a juventude daquele tempo, José Antônio afundava numa tristeza soturna, mantendo-se taciturno e arredio, a beber conhaque, ler e escrever poesia. Assim passou todo aquele ano de 1862 e entrou por 1863. Mas a situação agravava-se. Com o aprofundamento do estado depressivo e da conduta estranha do irmão, Antônio viu-se obrigado a notificar o pai, que mandou chamar a Salvador o filho mais velho. Tudo leva a crer que, embora grandemente preocupado, o doutor Alves não tenha percebido toda a gravidade dos distúrbios de comportamento de José Antônio; pelo menos, como médico, não fez nenhum diagnóstico ou prognóstico de risco, pois, vendo nisto uma solução para o filho — mais uma, enviá-lo a estudar em Recife fora a primeira —, mandou-o dessa vez, em outubro, para o Rio de Janeiro, uma cidade ainda maior, para tentar a Escola Nacional de Engenharia. Foi pior. Regressou no mês seguinte, acompanhado do primo Dionísio Cerqueira, que viajara com ele e fora seu companheiro nos exames de admissão à escola, e do procurador do doutor Alves, Augusto César de Melo. Agora não parecia haver dúvidas: José Antônio enlouquecera. Aqui também não há um diagnóstico, e a palavra leiga é a única explicação para o desequilíbrio do rapaz. Mas tudo leva a crer numa depressão profunda. Ou seria uma crise psicótica? Levaram-no para Curralinho, na esperança de que os ares sertanejos, que, na concepção geral, eram benfazejos para tudo que se referisse à saúde, lhe trouxessem as ►► 21 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 melhoras. Porém, bastou que o deixassem sozinho um único dia, nove de fevereiro de 1864, para que o rapaz se matasse, ingerindo um remédio qualquer que encontrou. Tinha apenas dezoito anos de idade. Qual teria sido a impressão, qual o sentimento causado em Castro Alves, pela notícia, em Recife, às vésperas de sua matrícula na faculdade, dessa morte trágica do irmão mais velho e companheiro, do mano poeta que lhe havia cunhado, quando nasceu, o carinhoso apelido de Cecéu? A impressão que deixam os biógrafos mais remotos, aqueles que mais transcrevem os depoimentos de familiares e dos companheiros de mocidade do poeta, é que a trajetória de Castro Alves parecia tão solidamente traçada, que nada, nem mesmo os mais cruéis revezes, a perturbava. Não o abalara, por exemplo — a ponto de fazê-lo retornar à Bahia ou abandonar a vida que levava —, a forte hemoptise que tivera em meados do ano anterior, 1863, o que se sabe pelo testemunho do seu amigo e companheiro de república Luís Cornélio dos Santos. Abatera-se ao lançar as golfadas de sangue, deixara-se ficar, sozinho, de olhos fechados, deitado na rede onde o foram encontrar os companheiros de hospedagem, a segurar uma toalha ensanguentada à mão, a rede e a camisa também ensopadas de sangue. Mas o episódio fora superado. Não lhe interessava a faculdade, que ele parecia apenas cumprir para satisfazer aos desejos do pai e às exigências burguesas da época. Talvez jamais se visse com o anel de rubi no dedo, ainda que isso lhe desse conhecimento e legitimidade para defender injustiçados de toda ordem. Mas interessava-lhe, e muito, além de viver intensamente, voltado principalmente para os amores das mulheres que a ele prazerosamente se entregavam, a nomeada da sua poesia, que, mais e mais, o empolgava, fazendo-se o objetivo principal da sua vida. Seria por ela, pela poesia, pelo fulgor e veemência dos seus versos, pelos rasgos de ousadia diante das rígidas estruturas sociais da época, pelos conceitos emitidos, de forma direta ou metafórica, e não pela legitimidade 22 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 do diploma, que defenderia a justiça e a liberdade e que também alcançaria a notoriedade, a glória, a imortalidade. Como ocorreu com a morte da mãe, não há uma única produção poética de Castro Alves, pelo menos que tenha ficado e esteja incluída em sua obra completa, que se refira à morte do irmão. O poeta tinha o hábito de datar seus versos, portanto torna-se fácil acompanhar a sua produção por períodos e em razão de circunstâncias, ao menos na poesia publicada e hoje conhecida. De 1864, incluídos em Espumas flutuantes, seu único livro publicado em vida, há apenas dois poemas. O primeiro é “Mocidade e morte”, uma elegia cuja maior preocupação é a própria morte, contraposta à afirmação eloquente do desejo de viver. É nele que se encontra o verso famoso que retrata toda a vaidade e também toda a confiança do jovem de dezessete anos de idade no próprio talento: Eu sinto em mim o borbulhar do gênio. Mas, ao lado do otimismo (“vejo além um futuro radiante”), a certeza do breve fim: Mas uma voz responde-me sombria: Terás o sono sob a lájea fria. A convicção é expressa de forma ainda mais objetiva: E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito Um mal terrível me devora a vida. Sente-se morrendo: E eu morro, ó Deus! na aurora da existência, Quando a sede e o desejo em nós palpita...* * N. do R.: Assim no original. ►► 23 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O outro poema de 1864, sem indicação de mês, em Espumas flutuantes, “Dalila”, como num arrependimento do pensamento da morte, fala de um amor, em versos que sugerem o sentimento já inteiramente voltado para aquela que seria o grande amor da sua vida: Eugênia. E nada mais há com data de 1864 nesse livro. No conjunto de poemas de conotação social libertária que mais tarde, após a sua morte, foram publicados em volume sob o título Os escravos, não há um único poema com data de 1864. Nas poesias coligidas, que incluem originais, traduções, fragmentos e mais duas categorias denominadas pelo organizador da obra de “litigiosa” e “colegiais”, há, com data de 1864, apenas um soneto, “Ao Dois de Julho”, um poema lírico, “Recordações”, com o subtítulo “Recitativo para piano”, e um pequeno poema que recebeu o título de “Fragmento”, talvez por não possuir título, este último tendo como tema o sentimento de solidão. Não há, portanto, uma única menção, por mais leve que seja, ao irmão suicida, na sua poesia. Também não há nas poucas crônicas que escreveu para jornais, nem na correspondência, publicada e conhecida, para a família e os amigos. Entretanto, deve ter havido alguma correspondência escrita entre a família e ele sobre esse assunto, pois de que outra forma a notícia lhe teria chegado à então distante capital de Pernambuco? O poema “Mocidade e morte”, inicialmente intitulado “O tísico”, foi nitidamente motivado por seus próprios males físicos. Talvez já estivesse infectado desde os doze anos de idade pela mãe, ou tenha sido contaminado pouco mais adiante por outra pessoa qualquer, afinal havia muita gente tuberculosa circulando sem qualquer resguardo, sem sequer diagnóstico, tanto em Salvador quanto em Recife. O fato é que Castro Alves já estava doente por esse tempo, como atestava a hemoptise do ano anterior. Além disso, andava pálido e magro, tossia muito, sentia fortes dores no peito. Após escrever “O tísico”, finalmente apreensivo com o próprio estado de saúde, largou as aulas da faculdade, mesmo 24 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 sabendo que, com isso, perdia o ano por faltas, e viajou apressado para a Bahia em busca da ajuda do pai médico, um tristíssimo pai, que não se conformava com o suicídio do filho mais velho. O doutor Alves, sempre acreditando nos efeitos milagrosos dos ares do sertão, mandou-o descansar em Curralinho e, na volta, tranquilizou-o. Podia retornar aos estudos em Recife. Foi o que fez o poeta, mas o ano já estava perdido. As férias de fim de ano de 1865 para 1866, passadas na Bahia, marcariam um insuspeitado encontro do poeta com a morte. Do pai, que ele admirava. Nascido em 16 de março de 1818, o doutor Antônio José Alves contava quarenta e sete anos de idade. Desde o suicídio do primogênito, não mais tivera saúde. Continuara a trabalhar; empenhara-se particularmente nas onerosas obras da Boa Vista e do seu pretendido e, à época, quase impossível hospital modelo (porque, além de muito onerosos, hospitais não eram bem vistos pela sociedade, as pessoas de posse fazendo questão de ser tratadas em residência); fundara, com os doutores Faria e Ludgero Rodrigues Ferreira, a Sociedade Bahiana de Beneficência Médica; tivera um novo filho do segundo casamento, com dona Maria Ramos Guimarães Alves, o Cassiano. Mas seu gosto pela vida e suas forças esvaíram-se. Em novembro deixou de sair de casa, mergulhado numa tristeza profunda. A chegada de Antônio, alto, belo, encantador, com os ânimos e os sonhos da mocidade, a irradiar o fulgor de um talento incomum, alentou-o um pouco, mas não o suficiente. Foram dois meses de enfermidade, acompanhado de perto por seus colegas e amigos, Antônio Pacífico Pereira, Antônio de Cerqueira Pinto, Franco Meireles e Salustiano Ferreira Souto, ocorrendo a morte no dia 23 de janeiro de 1866. Pensou-se em beribéri, que grassava na Bahia, a filha Adelaide acreditava nisso, mas o diagnóstico do doutor Pacífico Pereira para a causa mortis foi o coração. Diagnóstico clínico, sem comprovação nem explicação fundamentada e convincente, como todos os da época. ►► 25 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Perder, aos dezenove anos de idade, um pai que apenas tinha quarenta e sete, um pai que ele amava, respeitava e admirava, podia significar uma tragédia pessoal irresgatável. Entretanto, afora todo o sofrimento que a perda lhe possa ter ocasionado, não há como identificar, na história conhecida do poeta, um grande abalo pelo acontecimento. O que lhe fica, bem mais, desse período de férias na Bahia, na sua quase lendária história de vida, é a corte, recheada de romantismo e poesia, às três irmãs judias que moravam em frente. Escreve “Hebreia”. Pura poesia, puro desejo de conquista. Sem morte alguma. Como aconteceu com a mãe e o irmão, não deixou registros escritos de seu sentimento pela morte do pai. Sempre ficará a pergunta: por quê? Teria sido, tanto quanto as outras duas perdas, a dor tão funda que inibiu a inspiração? Ou uma determinação estética de não expor na poesia um sentimento tão íntimo e tão particular, embora tivesse feito isso sempre, quando se tratava de amores? Quem sabe, ainda, a morte dos entes queridos não o inspirava poeticamente, e preferia mesmo não falar do assunto? Será, também, que a perda de familiares ainda moços era tão banal e tão comum, à época, que não fosse relevante? O fato é que abstraiu o acontecimento de sua arte, assumiu uma atitude de força e seguiu adiante — com o mesmo vigor, a mesma confiança e o ímpeto inesgotável do seu talento — o caminho que traçara para si próprio. A coragem pessoal no enfrentamento das adversidades, ainda que graves e irreversíveis, teve, como prova decisiva, o acidente que o vitimou em 11 de novembro de 1868. Aquele ano havia sido, até ali, o ponto mais alto de sua produção e de seu nome de poeta. Pode-se dizer que seus grandes poemas, os que mais fizeram a sua nomeada para a época e para os tempos seguintes, vêm desse ano, que corresponde aos seus vinte e um anos de idade. Em 1868 escreveu “O navio negreiro”, “Vozes d’África”, “O laço de fita”, “Ahasvérus e o gênio”, “O ‘adeus’ de Teresa”, “Boa noite”, “Adormecida” e “Ode ao Dous de 26 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Julho”, entre outros de menor repercussão. Poemas que bastariam para imortalizá-lo. Tinham sido daquele ano as famosas cartas, publicadas em jornal, de José de Alencar e Machado de Assis, que equivaliam a uma consagração nacional e definitiva. O drama Gonzaga ou A Revolução de Minas, que estreara com grande êxito na Bahia no ano anterior, repetiu plateias lotadas, aplausos entusiasmados e boas críticas em duas apresentações naquele ano, em São Paulo. Os novos poetas já procuravam imitá-lo, nos versos e nas maneiras. Ele era uma celebridade, e não apenas no meio acadêmico. Até conseguira, naquele ano magnífico, a aprovação de ano na faculdade com um “plenamente”, o que o habilitava à matrícula no quarto ano. A destoar desses sucessos, o insucesso do amor com Eugênia, que vinha aos tropeços dos ciúmes, tédios da parte dela e desentendimentos, querem alguns até infidelidades, também da parte dela, desde Salvador. Ao longo de 1868, o relacionamento segurava-se já quase que exclusivamente por meio das motivações do Gonzaga. Até que ela, um dia, irada, o pôs para fora, atirando-lhe pela janela os pertences. Ele foi hospedar-se numa república de estudantes na Ladeira da Conceição, onde já estava seu conterrâneo e também acadêmico de direito Ruy Barbosa. O desgosto do poeta foi grande. Não será exagero dizer que parece ter sido maior que aqueles causados pela morte da mãe, do irmão e do pai, os três juntos. Não era apenas a perda, mas também o amor-próprio ferido. A morte do amor, a decepção, a morte da alma em festa. O luto dos prazeres perdidos. Foi esse apartamento intempestivo, destruidor, que o levou a passar uma quarta-feira no arrabalde do Brás e, solitário e triste, passear de espingarda ao ombro pelos campos, menos para caçar perdizes do que para buscar a si próprio. A história é bem conhecida: levava a espingarda com o cano voltado para baixo; ao saltar uma vala, onde haveria um córrego, com o movimento brusco a arma disparou, descarregando todo o chumbo no seu calcanhar esquerdo. Caiu para diante ►► 27 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 com a bota dilacerada, sangrando muito; arrastou-se como pôde até uma casa próxima e pediu que o levassem à sua república, onde o foi acudir, a seu chamado, um seu amigo, o médico baiano Luís Lopes Batista dos Anjos, que considerou de pronto a gravidade do caso. O chumbo lesara ossos e cartilagens, e nada se podia fazer para sarar a ampla ferida, além dos curativos. Note-se que sequer se podia imaginar que, um dia, existiria uma arma terapêutica do poder extraordinário de um simples antibiótico. Além disso, havia a conhecida “fraqueza pulmonar”, que, o médico acreditava, podia se agravar com a imobilidade forçada de uma longa convalescença. O médico prestou-lhe os primeiros socorros e o transferiu imediatamente para outra república, em frente à sua casa, na Rua do Imperador, onde podia lhe dar melhor assistência. Ali, com a ajuda profissional do cirurgião e presidente da província Cândido Borges Monteiro, Barão de Itaúna, retirou-lhe vários grãos de chumbo, fez os curativos necessários, dedicou-se inteiramente à batalha da cura. O desastre ganhou o noticiário, comoveu a academia e a sociedade. A república na qual o poeta ocupava um quarto individual e amplo, em que havia uma cama larga com muitos travesseiros em que pudesse recostar-se, encheu-se. Sofrendo as dores do ferimento e do curativo, muito pálido, prostrado, viu-se confortado pelos amigos e admiradores, pelos mimos das flores e das gulodices, particularmente a cocada, o doce da moda, que lhe mandavam. Ao seu lado estavam, com assiduidade e palavras de ânimo, Carlos Ferreira, Rubino de Oliveira, Américo de Campos, Ferreira Menezes, Brasílio Machado, Campos Carvalho, Aureliano Coutinho, José Felizardo, o padre Francisco de Paula Rodrigues e, naturalmente, o doutor Lopes dos Anjos. A própria Eugênia Câmara, comovida, foi vê-lo. A filha do médico, Maria Amália Lopes dos Anjos, a Sinhazinha, que já lhe havia inspirado, pouco antes do rompimento com Eugênia, o famoso “O laço de fita”, desdobrava-se em cuidados, era a sua principal enfermeira, um bálsamo platônico e romântico para os seus sofrimentos. 28 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Apesar da extensão e do agravamento da ferida, que infectava, havia ainda o otimismo de um bom desfecho — quando sobreveio a febre, constante e alta. Seria essa hipertermia persistente, provavelmente não mensurada, causada pela infecção do pé, mas é difícil dizer, pois o poeta também tossia, respirava com dificuldade, tinha hemoptises, sentia-se exausto. Também se encontrava debilitado e exposto a viroses. Confirmando a previsão do doutor Lopes dos Anjos, a imobilidade prolongada acentuara a enfermidade pulmonar. Entre 30 de março e 1º de abril, esteve à morte, ardendo em febre, quase ao delírio, num sofrimento intenso. Certo de que se despedia da vida, escreveu o comovente “Quando eu morrer”. Era um adeus e um pedido: Quando eu morrer... não lancem meu cadáver No fosso de um sombrio cemitério... Odeio o mausoléu que espera o morto Como o viajante desse hotel funéreo. Dez estrofes, dez quartetos de versos decassílabos que lhe devem ter saído de um jato, no impulso dos tremores da febre, a pena molhada de suor entre os dedos magros, no resvalar inconformado “para as plagas sem fim do outro mundo”. Mas não concluiu, não disse onde queria que lhe pusessem seu cadáver. Ao incluir o poema em Espumas flutuantes, com uma significativa epígrafe retirada de seu conterrâneo Junqueira Freire, acompanhou-o de uma nota: Estes versos foram escritos quando julgava o autor repousar em terra estranha. A febre e o sofrimento fizeram que eles ficassem truncados. Completá-los mais tarde seria de alguma sorte tirarlhes o único mérito, que por acaso têm. O quadro deve ter sido assustador. E, de certa forma, prolongou-se pelos dias seguintes, por todo o mês de abril, início de ►► 29 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 maio. Eram já seis meses de sofrimento, prostrado num leito, a padecer dores atrozes e aguardar uma cura espontânea que, agora, se afigurava distante ou inalcançável. Os doutores Lopes dos Anjos e Cândido Borges Monteiro reuniram-se em conferência para discutir o caso. Temiam, ao mesmo tempo, a gangrena e a tuberculose. A perspectiva da amputação do pé já lhes parecia inevitável. São Paulo, além de muito fria, o que incomodava o quadro pulmonar, era uma cidade pequena e sem recursos, e o jeito era transferi-lo para a corte. No Rio de Janeiro estava o seu ex-companheiro de república no Recife e bom amigo Luís Cornélio dos Santos, com quem o poeta se correspondia e que o chamava para a sua casa. Não cabia hesitação. Conduzido da república numa marquesa para um vagão especial, foi levado com grande sacrifício para o porto de Santos, onde, na tarde de 19 de maio, depois de comovida despedida dos amigos, o vento trazendo do mar um frio cortante e triste, embarcou em companhia do colega e amigo José Rubino de Oliveira. A viagem foi dolorosa. O navio jogava muito, o pé doía terrivelmente, ele sentia-se muito fraco. Desembarcou no Rio de Janeiro às duas horas da tarde do dia 21, e o desembarque também foi muito doloroso. Foi carregado de bordo para o trapiche, colocado numa carreta preparada para isso por José Rubino, e dessa forma pôde vencer a longa ponte de desembarque. Depois foi posto num veículo que todos à época denominavam “carro”, mas que não foi descrito, e transportado para a casa de Luís Cornélio, na Rua Silva Manuel, número três, uma viagem que durou duas horas. Retornava ao Rio de Janeiro numa situação bem diversa daquela do início do ano anterior, quando ali fora para ser consagrado por Alencar e Machado. Os cirurgiões Andrade Pertence e Mateus de Andrade examinaram-no, fizeram a avaliação da ferida e os curativos necessários e deram-lhe esperanças de salvar o pé. Após alguns dias, no aconchego e no conforto da casa de Luís Cornélio, cuja família o tratava como a um parente querido, sentiu-se melhor, 30 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 tanto da ferida quanto do peito. Não teve febre nem hemoptise, melhorou da tosse e até conseguiu deitar-se sobre o lado esquerdo, o que já não conseguia. Apenas surgiu-lhe um abscesso no pé atingido, que ele mesmo drenou. Escreveu uma carta aos amigos de São Paulo, mais animado. Em princípio de junho, os doutores Pertence e Mateus de Andrade submeteram-no a uma intervenção, na qual encontraram ainda trinta e sete grãos de chumbo, fragmentos de osso e, o que era pior, um comprometimento da estrutura óssea e de toda a área atingida, indicando o início da gangrena. Diante disso, não ousaram esperar mais e determinaram a amputação imediata do pé. O poeta resignou-se. O seu estado de fraqueza não admitia a cloroformização, única anestesia da época, e a cirurgia foi realizada sem qualquer anestésico ou analgésico, o que significava uma grande dor, um enorme sofrimento. O bisturi e a serra daqueles hábeis cirurgiões encontraram, entretanto, um paciente corajoso. Ao ver que o doutor Mateus de Andrade o olhava penalizado, sorriu, enfrentando a dor física e moral da mutilação com o sarcasmo, pronunciando uma frase que se tornou famosa: — Corte-o, corte-o, doutor. Ficarei com menos matéria que o resto da humanidade. O pé foi separado em golpes rápidos no terço inferior da tíbia, sem que se saiba o quanto da tíbia e do perônio foi retirado, durando, porém, a cirurgia apenas alguns minutos. Um ato cirúrgico verdadeiramente magistral, que resultou na eliminação da incipiente gangrena e na salvação não apenas da perna, mas da própria vida. Tudo isso, dos curativos à cirurgia, foi realizado na casa de Luís Cornélio, pois, como já acentuamos linhas atrás, não era de uso que pessoas de bom nível social e que tivessem quem lhes cuidasse fossem levadas para o hospital. Já no final do mês ele sentia-se melhor até do próprio peito. À falta de Eugênia, como acontecera à filha de Lopes dos Anjos, atirava olhares e versos românticos às jovens da casa, ►► 31 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 uma cunhada de Luís Cornélio e duas outras, próximas da família. Descarnado e pálido, mutilado no corpo e na alma, era ainda o poeta dos olhos vivos, da chama do gênio no olhar em fogo, da voz cheia e sonora, dos gestos expressivos, da palavra envolvente e sedutora. E as moças que o cercavam alvoroçaram-se, deixaram o coração bater mais rápido, sorriram os sorrisos juvenis dos sonhos e das esperanças. Mas ele sentia-se ainda magoado por Eugênia e sentia, sobretudo, dentro do peito “o germe cruel de um mal terrível”. Tentou escrever um drama que se igualasse ao Gonzaga, que talvez o superasse, intitulou-o Don Juan, inspirou-se nas admiradoras enleadas à sua volta, queria esquecer o inverno, tornar à primavera. Mas não enganava ninguém. A todas, ao mundo e a si próprio afirmou: ... Eu sei que morro... É tarde! É muito tarde!... Afinal, com a ferida completamente cicatrizada, amparado em longas muletas de ébano, mas profundamente magoado, levantou-se da cama com um pé falso, foi ao teatro ver Eugênia, escreveu versos para ela, os últimos. Após seis meses na casa de Luís Cornélio, precisava atender ao chamado da família e retornar à Bahia. Francisco Lopes Guimarães, o Chico, filho de sua madrasta e seu cunhado, casado com sua irmã Elisa, foi quem o foi buscar e acompanhá-lo na viagem de volta. Em 25 de novembro, o poeta embarcou para a Bahia. Como acontecera com a volta ao Rio de Janeiro, esse retorno era bem diverso do anterior, quando, ao lado do seu grande amor, desafiando os preconceitos e os juízos da sociedade, mas cercado de aplausos e triunfos, confiante no seu gênio e no drama que ia apresentar aos baianos, buscava com altivez o reconhecimento da sua terra. Agora, alquebrado, sozinho, triste, sonhando apenas com a edição do seu primeiro livro, Espumas flutuantes, que deixaria como lembrança aos amigos, 32 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 apenas buscava, na sua terra e ao lado dos seus, a cura definitiva ou a morte. Trazia um desejo, além do livro: queria repousar. Na Bahia, no casarão do Sodré, foi acolhido com muito carinho pela família e pelos amigos, uma alegria mesclada com a preocupação de vê-lo tão abatido e tão triste. Adelaide e Guilherme, particularmente, foram os irmãos que mais dele se aproximaram. Mas, já no início do ano seguinte, em 26 de janeiro, por determinação de seu médico na Bahia, o doutor Salustiano Ferreira Souto, amigo da família e padrinho de Adelaide, por sinal que também tuberculoso desde moço, partiu para o sertão, em busca dos famosos ares que lhe poderiam melhorar a doença do pulmão. A princípio em Curralinho, depois na Fazenda de Santa Isabel, no Rosário do Orobó, tentou repousar e refazer-se, embora não abandonasse a sensação de estar diante da morte, como demonstra em “Coup d’étrier”: E se eu devo espirar... se a fibra morta Reviver já não pode a tanto alento... Companheiro! Uma cruz na selva corta E planta-a no meu tosco monumento!... Reviu parentes, amigos, escreveu muito. Os amores, seus persistentes desejos de homem e de poeta, percorreram, como sombras ou anjos da meia-noite, a lembrança de sua existência gloriosa, sofrida e curta — tão curta. Concluiu “A Cachoeira de Paulo Afonso”, com a qual pretendia pôr fecho ao projetado Os escravos, livro que não veria editado. Em 16 de setembro de 1870, pouco mais de sete meses passados, regressou a Salvador. Sentia-se melhor, mas podia ser uma sensação ilusória. Em novembro, graças à colaboração da irmã Adelaide, a copiar com dedicação os originais, ao assessoramento a distância de Luís Cornélio e, principalmente, ao empenho de Augusto Guimarães, teve o seu livro finalmente editado na Bahia pela Typographia de Camillo de Lellis Masson & C. Publisher, o editor de Junqueira ►► 33 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Freire. Os mil e quinhentos exemplares custaram setecentos réis só para imprimir; porém, com o material, mais de um conto de réis. O volume in octavo de papel linhas d’água, primeira qualidade, tipo miúdo, alcançara duzentas e dezoito páginas, e trazia uma dedicatória: À Memória de Meu Pai, de Minha Mãe e de Meu Irmão O. D. C. Seria este talvez o único registro da dor do poeta por essas três perdas. Com seu retorno, o Sodré voltou a encher-se de amigos, festas íntimas, reuniões, saraus, a tampa do piano foi mantida permanentemente aberta para os dedos de Adelaide e de quem mais quisesse tocá-lo. Tentou viver mais um amor, o último, mas o objeto de seu desejo, mesmo seduzida, o que confessaria mais tarde, fugiu de suas investidas. O pé de borracha enfiado na bota, o poeta passeou a cavalo; foi ao teatro, chegando sempre muito cedo, antes de todos, acomodando-se ao camarote para que não o vissem amparado em muletas ao andar; querem os indícios que se meteu em aventuras que aplacassem seu ardor sexual; rigorosamente trajado de preto, como costumava vestir-se, subiu a cavalo as escadarias da Associação Comercial da Bahia para declamar; autografou para amigos e pessoas ilustres exemplares de Espumas flutuantes; mandou-o a Alencar, com uma dedicatória; tentou manter a chama da alma acesa, a iluminar com desespero antes da escuridão total. Daquele final de novembro de 1869, em que retornou mutilado e sofrido à Bahia, até junho de 1871, além da conclusão de “A Cachoeira de Paulo Afonso” e uma quantidade considerável de traduções escreveu cerca de cinquenta poemas, dezoito deles fazendo parte dos cinquenta e quatro de Espumas flutuantes e dois 34 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que integrariam Os escravos. Acalentava um projeto sobre a República dos Palmares, não se sabe se um longo poema, como “A Cachoeira...”, um drama, como Gonzaga e o abortado Don Juan, ou um romance, como declarou Augusto Guimarães. Mas, como ele mesmo afirmou, quando ainda lançava olhares de amor à volta e era também desejado, era tarde, era muito tarde. Estava, de fato, muito doente. A febre, a tosse, as hemoptises, as dores no peito, os suores, a fraqueza não o deixavam. Mostrava-se extremamente magro e exausto. O doutor Salustiano Ferreira Souto já não escondia seu desânimo diante daquela tuberculose gravíssima e sem tratamento. Nada mais podia fazer, nada podia fazer a própria medicina, fosse da Bahia ou de qualquer parte. Ao final de maio, fraco, abatido, tomado de extremo desalento, sem conseguir trabalhar a poesia, ele passou a esquivar-se de tudo. Recolheu-se ao casarão do Sodré, apegou-se ao piano de Adelaide. Nos intervalos da tosse cantarolava baixinho, com tristeza, acompanhando fragmentos de árias, romanzas e fadinhos, como se a música pudesse suavizar-lhe um pouco o sofrimento do corpo e da alma. No dia 22 de junho teimou em ir ao teatro. Na noite do dia seguinte, véspera de São João, festejada ruidosamente nas casas e nas ruas de Salvador com muito foguete e muita fumaça, quis chegar à janela para apreciar um pouco a festa, mas não conseguiu. Com a fumaça que entrava das fogueiras e dos fogos, tossiu muito, recuou, sem poder se aguentar nas muletas, deixou-se abater sobre o sofá, arquejando. Adelaide, que ele e a família chamavam Sinhá, aproximou-se, ouviu-o murmurar o primeiro quarteto de um famoso poema de Álvares de Azevedo: Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã; Minha mãe de saudades morreria, Se eu morresse amanhã! ►► 35 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Sinhá viu que lhe corria uma lágrima dos olhos infinitamente tristes. Cinco dias depois, 29 de junho, já não pôde se erguer do leito. Pediu aos irmãos que lhe transportassem a cama para a sala de visitas, diante da janela de onde costumava olhar a rua. Dali podia ver os telhados do Convento de Santa Tereza embaixo, uma faixa de mar e, principalmente, o céu. Explicou que queria morrer olhando o infinito azul. E pediu que, a não ser os irmãos e os dois amigos mais íntimos, Augusto e Chico, ninguém mais o visse. Agnese Trinci Murri, a última paixão, que se esquivara, pediu, em prantos e com insistência, que a deixassem vê-lo. Adelaide comoveu-se, fez o pedido. Mas ele, com os olhos iluminados de lágrimas, tomou-lhe as mãos e implorou: — Não! Não a deixe entrar... Ela, mais do que ninguém, não deve guardar de mim uma lembrança de ruína. Que me recorde como sempre me viu, como me conheceu... Não! Não a deixe entrar... Os dias que se seguiram foram de sofrimentos atrozes, intervalados por breves momentos de alívio. À meia-noite de cinco para seis de julho, quis saber que horas eram. Ao ser informado, suspirou, dizendo: — Será possível, meu Deus, ainda um dia de dor?... Tinha a mão fina e fria nas mãos de Adelaide. Era tanta a sua aflição, que a irmã, comovida, deixou cair uma lágrima. Ao sentir pingar a lágrima em sua mão, o poeta apertou-a e murmurou: — As contas quentes senti... Poeta, sempre poeta, reportava-se a um de seus últimos poemas, “Virgem dos últimos amores”: Por que derrubas as gotas Do cacho do ouricuri? São tuas miçangas rotas Que rolam na minha frente? 36 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Teu colar estava quente... As contas quentes senti! Na manhã seguinte, seis de julho de 1871, pelas dez horas da manhã, o padre Turíbio Tertuliano Fiúza, amigo da família, chegou ao casarão para administrar-lhe os últimos sacramentos. Ele estava, entretanto, perfeitamente lúcido. Numa das ocasiões em que Sinhá, angustiada, lhe passava o lenço pela fronte umedecida, ele, com voz quase extinta, mas repassada de meiguice, murmurou-lhe: — Guarda este lenço... Com ele enxugaste o suor da minha agonia... Na cama, diante da grande janela e do infinito azul, como ele queria, imóvel, os olhos fixos na amplidão, a luz do olhar foi-se desfazendo, até se extinguir completamente às três e meia da tarde. O saimento deu-se no dia imediato, sete de julho, às nove horas da manhã. Do casarão ao alto da Rua do Sodré, o esquife foi levado à mão. Daí até o Cemitério do Campo Santo, de carro. À beira do túmulo, João de Brito recitou um poema, Rozendo Muniz fez um discurso em nome da Sociedade Libertadora Sete de Setembro. É no mínimo estranho que, contemporaneamente, médicos falem numa suposta diabete de Castro Alves, responsável por sua morte, como se não tivesse bastado a tuberculose em estado avançado e sem qualquer tratamento. Por que mais esse inútil diagnóstico, feito a distância e sem nenhuma comprovação? O corpo do poeta, contrariando o desejo expresso nos versos febris e inacabados de “Quando eu morrer”, foi lançado “no fosso de um sombrio cemitério”. Mas, cem anos depois, quando se aproximava o centenário da morte daquele moço de vinte e quatro anos de idade que se tornara o maior poeta da sua terra, seus restos mortais foram retirados, postos numa urna e levados do foyer do Teatro Castro Alves a pé, nos braços do povo, ►► 37 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 uma multidão em silêncio e reverente, pelas ruas da cidade, para serem depositados na cripta construída sob seu monumento, na praça que leva seu nome em Salvador. O gênio vencera a morte. REFERÊNCIAS ALVES, Castro. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. CALMON, Pedro. História de Castro Alves. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947. COSTA, Aramis Ribeiro. Amores e musas de Castro Alves. Revista da Academia de Letras da Bahia, Salvador, n. 46, set. 2004. COSTA E SILVA, Alberto da. Castro Alves. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. (Perfis Brasileiros). MARQUES, Xavier. Vida de Castro Alves. 3. ed. revista e comentada. Rio de Janeiro: Topbooks; Salvador: Universidade Católica do Salvador; Academia de Letras da Bahia, 1997. PEIXOTO, Afrânio. Castro Alves: o poeta e o poema. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1944.** Aramis Ribeiro Costa é médico, também graduado em letras. É escritor, autor de mais de uma dezena de livros de ficção e de poesia, entre eles Episódio em Curicica (2001), Baú dos inventados (2003), Reportagem urbana (2008) e Contos reunidos (2011). Presidiu a Academia de Letras da Bahia na gestão 2011-2013, sendo reeleito para o período 2013-2015. Desde 1999 ocupa a Cadeira nº 12 da ALB. 38 ◄◄ OS GERAIS SÃO SEM TAMANHO Cartografias do sertão rosiano Evelina Hoisel D esde que apareceu na cena cultural brasileira, a vasta produção literária de João Guimarães Rosa tem suscitado uma série de indagações que perpassa diversos campos do conhecimento e contempla as interpretações mais díspares e antagônicas. Isso se deve à própria configuração paradoxal desses textos, em que “tudo é e não é”, pois “este mundo é muito misturado”, como afirma o narrador protagonista de Grande sertão: veredas (1967), Riobaldo Tatarana. Elegendo o sertão como cenário para as suas narrativas ficcionais, é com o texto monumental de Grande sertão: veredas que João Guimarães Rosa traça uma geografia física, social e política do Brasil a partir do sertão, périplo das aventuras do personagem-narrador, o jagunço Riobaldo. Sob o aparente pretexto de informar a seu visitante, o senhor instruído e culto, sobre a geografia física e social da região, Riobaldo começa a mapear a geografia do sertão com precisão e minúcia de quem efetivamente conhece o objeto de sua narração e se põe também a delinear a sua cartografia interior, mapear as diversas zonas de sua subjetividade, buscando decifrar e interpretar os dados retidos na memória. No discurso de Grande sertão: veredas, sujeito e objeto se entrelaçam, pois é impossível para Riobaldo falar de sua travessia pelo sertão, estabelecer os limites físicos, geográficos e culturais da região, sem delimitar as zonas do seu eu. Temos assim, desde o início da epopeia, a possibilidade de traçar múltiplas cartografias, sejam elas reais, imaginárias, objetivas, subjetivas e afetivas. ►► 39 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 No Grande sertão, é a chegada do senhor-interlocutor que deflagra o diálogo-monólogo que constitui a narrativa de Riobaldo. Todavia, é a figura de Diadorim que a sustenta e a fundamenta. Riobaldo não pode falar sobre o sertão sem atravessar o corpo polissêmico de Diadorim, pois seus rastros estão inscritos na geografia física, social, cultural e mítica do sertão, recuperados pelas reminiscências de Riobaldo. A teia de acontecimentos da travessia do jagunço Riobaldo converge para a figura de Diadorim, e é a partir dela que ele terá que devassar um “mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe” (ROSA, 1967, p. 25). Os rastros de Diadorim estão no corpo físico de Riobaldo, na sua memória e na topografia do sertão — “Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza” (ROSA, 1967, p. 25). A aprendizagem de Riobaldo consiste em um processo de interpretação de si e do seu pertencimento ao bando de jagunços na travessia pelo sertão, e, nesse processo, ele está constantemente cartografando as diversas paisagens e convidando o leitor a se adentrar pelas suas trilhas para também mapear as suas veredas. O conceito-metáfora de cartografia traduz uma apropriação, uma travessia literária por um território disciplinar um tanto incomum no panorama dos discursos sobre a literatura em sua relação com os demais saberes, ou seja, a geografia. Cartografar não significa a efetiva elaboração de cartas geográficas sobre os textos literários, embora elas também existam. Cartografar refere-se a uma configuração conceitual que pressupõe o estabelecimento de territorialidades literárias, comunidades imaginárias postas a dialogar e a se relacionarem, a partir de territorialidades linguísticas e culturais semelhantes ou divergentes. Cartografar pressupõe o delineamento de espacialidades, de fronteiras, a demarcação dos limites, reais ou virtuais, objetivos ou subjetivos, simbólicos ou alegóricos. Assim, falar de cartografias do sertão rosiano implica estabelecer limites, demarcar fronteiras, estabelecer percursos, aproximações 40 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 e distanciamentos entre os espaços físicos e geográficos do sertão, ou interpretar as marcas dos espaços subjetivos dos personagens conforme configurados no texto de João Guimarães Rosa, o Grande sertão: veredas. O sertão rosiano é diverso e variado, possibilitando o delineamento de uma multiplicidade de cartografias e mantendo sempre uma relação ambivalente com a geografia física do sertão brasileiro. Se por um lado Rosa apoia-se na topografia do sertão, por outro lado inventa o espaço de acordo com seu projeto ficcional. O estabelecimento das cartografias do sertão rosiano ultrapassa o aspecto particularmente geográfico, transbordando para outras esferas, como a do mapeamento dos signos do amor de Riobaldo, a partir das relações do jagunço-protagonista-narrador com as mulheres. Existe ainda uma geografia para se compreender a problemática do bem e do mal, vez que o mal se inscreve na prosa do mundo, constitui a topografia do sertão, possibilitando a marcação de outros desenhos cartográficos. Nesta leitura, interessa assinalar como em Grande sertão: veredas a constituição de uma cartografia do sertão tal como aparece nos mapas do Brasil comporta várias significações simbólicas e várias possibilidades de leitura. Alan Viggiano foi dos primeiros estudiosos a mapear o “itinerário de Riobaldo Tatarana” (título do seu livro, publicado em 1974), procurando demonstrar que, das quase 230 localidades citadas no romance — cidades, vilas, povoados, rios, córregos, serras, acidentes geográficos —, mais de 180 podem ser localizadas no mapa e são fruto de pesquisas que Guimarães Rosa realizou, estudando a região, percorrendo muitas léguas a cavalo, acompanhando boiadas com os vaqueiros Zito e Mariano. É esse o sertão físico, origem do escritor, no qual existem laços sanguíneos e consanguíneos, mantidos e preservados, mas que também serão vivenciados em outro nível da realidade delimitada simbolicamente pela linguagem. O objetivo do estudo de Alan Viggiano é estabelecer o itinerário físico de Riobaldo Tatarana desde o momento em que ►► 41 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 ele se encontrou com Diadorim, e então começa a sua vida de jagunço, até o dia em que, no combate final com os judas, morre Diadorim, e ele, Riobaldo, deixa o cangaço. Entretanto, o próprio Viggiano salienta que é possível situar as localidades por onde andou Riobaldo antes de chegar ao Córrego do Batistério, que deságua no Rio das Velhas, à altura do município de Várzea da Palma, pouco abaixo da cidade de Pirapora. É nesse local que começa a sua vida de jagunço e também o drama amoroso que o acompanhará no cangaço. Viggiano valoriza o que se pode considerar uma espécie de fidelidade de João Guimarães Rosa à cartografia do sertão brasileiro, conforme disseminado nos mapas convencionais, como se depreende da citação abaixo: Levando-se em conta a imperfeição, ou melhor, o caráter incompleto dos trabalhos cartográficos — notoriamente justificáveis, de resto — e se se lembrar de que os lugares mudam constantemente de nome, circunstância contra a qual o próprio Riobaldo se insurge em um determinado trecho da narrativa, pode-se afirmar, sem receio de contestação, que Guimarães Rosa não inventou sequer um daqueles nomes. Todos foram tirados do seu caderninho de notas. (VIGGIANO, 1974.) Em 2004, Willi Bolle, em sua abordagem grandesertão.br, procura definir o Grande sertão como um retrato do Brasil e como um romance de formação, retomando o estudo de Alan Viggiano e reconhecendo o valor pioneiro dos mapas desenhados no Itinerário de Riobaldo Tatarana. Contudo, denuncia e procura corrigir alguns equívocos do estudo de Viggiano, no sentido de não sobrevalorizar a geografia factual em detrimento do imaginário e da imprecisão estratégica da narrativa, que faz parte do projeto literário de João Guimarães Rosa. A partir do conceito de sertão como “um labirinto, lugar por excelência do se perder e do errar”, Willi Bolle afirma 42 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que, em Grande sertão: veredas, “apagam-se todas as referências, a cartografia chega ao limite e se desfaz” (BOLLE, 2004, p. 65), demonstrando como, sintomaticamente, no mapa de Viggiano não aparece nenhuma indicação topográfica em uma longa passagem do romance de quase cem páginas. Willi Bolle chama atenção para o trecho em que Riobaldo atravessa o Ribeirão do Galho da Vida e chega ao Córrego Sucuriu e, nessa trajetória, Viggiano suprime a errância e deslocamento do jagunço para o sul, onde se localiza o povoado de Sucruiú, que, na expressão de Bolle, “não tem nada a ver com o referido córrego [ou seja, o Córrego do Sucuriu]” (BOLLE, 2004, p. 66). A passagem por Sucruiú é um dos episódios mais marcantes de Grande sertão: veredas e também uma cena de denúncia política e social dos ermos dos sertões, do fundo sem fundo do sertão, e representa também a passagem pela peste, e essa experiência faz parte do périplo do protagonista-narrador. Outro dado criticado por Willi Bolle na cartografia de Viggiano diz respeito ao fato de esse autor, no seu anseio de equacionar a paisagem ficcional à paisagem real, associar o Liso da Campina com o Liso do Sussuarão. Para Bolle, relacionar esses locais significa uma “tremenda redução” (BOLLE, 2004, p. 70), pois o Liso da Campina pode ser percorrido em poucas horas a pé, ao passo que o Sussuarão é, nas palavras de Riobaldo, “o raso pior havente”, numa extensão de cinquenta léguas de fundo e quase trinta de largura. Willi Bolle apoia-se ainda nos mapas de Marcelo de Almeida Toledo (1982), que ele considera mais bem realizados graficamente e mais exatos do que os de Viggiano, e nos mapas de Poty, que fizeram parte das primeiras edições do romance. Nos de Poty, observa-se o uso livre dos dados geográficos, misturando elementos da cartografia convencional (rios, montanhas, cidades) com desenhos ilustrativos (vegetação, animais, homens, objetos), figuração de seres fabulosos (demônios, monstros), em um processo de desrealização da paisagem física. ►► 43 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Dos diversos mapas que constam de grandesertão.br, temos as seguintes descrições: Mapa 1 (BOLLE, 2004, p. 50-51), “Os sertões do Brasil em Euclides da Cunha e em João Guimarães Rosa”. Mapa 3 (BOLLE, 2004, p. 60-61), retraça “o cenário de Grande sertão: veredas segundo Poty”, mostrando como as linhas de latitude e longitude sugerem a coexistência da geografia real com a imaginária. Mapa 4 (BOLLE, 2004, p. 68-69), “Introdução à topografia real e fictícia do Grande sertão: veredas”, está basedo nos mapas de Alan Viggiano e Poty, para configurar as geografias reais e imaginárias desenhadas pelo autor de grandesertão.br. Nesse mapa, Bolle assinala como lugares-chave da história de Riobaldo, como as fazendas São Gregório, Santa Catarina, Sempre-Verde, o povoado do Sucruiú, as Veredas-Mortas e o Liso do Sussuarão, são inventados. Por outro lado, lugares como a Serra das Araras, a Serra e Mata da Jaíba, o Rio do Sono, o Paredão e a Lagoa Sussuarana ancoram a história na geografia real do sertão. Mapa 5 (BOLLE, 2004, p. 102-103), “Topografia da jagunçagem — In media res”, Mapa 6 (BOLLE, 2004, p. 106107), “Topografia da jagunçagem — Iniciação de Riobaldo”, e Mapa 7 (BOLLE, 2004, p. 114-115), “Topografia da jagunçagem — Chefia de Riobaldo”, atêm-se, conforme esclarece o autor, às referências geográficas reais. Deve-se salientar que o livro de Willi Bolle resulta de longos anos de pesquisa. Nesse período, o autor percorreu diversas vezes o itinerário de Riobaldo, confrontando os mapas existentes e comparando a geografia literária com a geografia do sertão. Dessa comparação, pôde observar tanto as transformações ecológicas ocorridas do tempo da publicação do Grande sertão para cá, constatando a existência de “uma paisagem tecnicizada e industrial” (BOLLE, 2004, p. 71), como também pôde compreender os mecanismos de funcionamento da escrita de Guimarães Rosa no sentido de superpor a geografia do sertão à geografia imaginária. É assim que Bolle interpreta os procedimentos ficcionais do Grande sertão: 44 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O trabalho de campo nos leva, portanto, a verificar empiricamente quais são os principais procedimentos de uso ficcional da geografia por parte do romancista: as técnicas de fragmentação, desmontagem, deslocamento, condensação e remontagem. O narrador retira pedaços do sertão real e os recompõe livremente — de maneira análoga aos mapas mentais, que nascem da memória afetiva, de lembranças encobridoras, de pedaços de sonhos e fantasias, medos e desejos. (BOLLE, 2004, p. 71.) Interessa essa colocação do autor de grandesertão.br, pois ela está confirmando o caráter paradoxal do sertão rosiano, exposto desde a primeira página do romance: o sertão é um espaço simultaneamente real e imaginário, factual e ficcional, objetivo e subjetivo e, de maneira mais ampla, concreto e metafísico. Desse modo, são múltiplas as cartografias que podem ser estabelecidas no itinerário de cada leitura, dependendo do recorte efetuado por cada leitor. Assim, pode-se entender a fala de Riobaldo no início do romance: O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fecho; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele tudo dá — fazendões de fazenda, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata; madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães é questão de opiniões... O sertão está em toda parte. (ROSA, 1967, p. 9.) ►► 45 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Riobaldo estará durante o fluir da sua narrativa tentando organizar a paisagem brasileira, assumindo assim o papel de cartógrafo. Willi Bolle registra essa interação entre o narrador e o cartógrafo, afirmando que ela faz parte dos procedimentos de construção da paisagem, e compara os procedimentos utilizados pelo narrador de Grande sertão: veredas com aqueles encontrados em Os sertões, de Euclides da Cunha, estabelecendo também as diferenças: Euclides apresenta o sertão através de uma visão de cima. Seu livro inicia-se com um sobrevoo do Brasil... (BOLLE, 2004, p. 53.) O olhar de Guimarães Rosa sobre o sertão é o exato oposto das vistas euclidianas do alto: é uma perspectiva rasteira. Enquanto o ensaísta-engenheiro sobrevoa o sertão como num aeroplano, o romancista caminha por ele como por uma estrada-texto. Ou então ele atravessa o sertão como um rio. (BOLLE, 2004, p. 76.) Em termos gerais, pode-se adiantar que o narrador de Os sertões tem uma autonomia menor em relação à cartografia que o de Grande sertão: veredas. (BOLLE, 2004, p. 58.) A cartografia desenhada pelo grandesertão.br é norteada pela tese de seu autor, que pode ser sintetizada com as afirmações encontradas nas páginas 122 e 125 do livro: Assim, o projeto de Guimarães Rosa consiste em revelar o funcionamento do sistema real do poder no país, mostrando inclusive como determinadas utopias são manipuladas pela retórica dominante. (BOLLE, 2004, p. 122.) Ao focalizar o sistema de jagunço, Guimarães Rosa não retrata um poder paralelo, mas o “poder”. (BOLLE, 2004, p. 125.) 46 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Além disso, as reflexões de Bolle se orientam, como já foi salientado anteriormente, no sentido de afirmar Grande sertão como “o romance de formação do Brasil” (que é o subtítulo do livro) e também como um retrato do Brasil, exibindo as questões políticas e sociais do país — que são ainda bastante atuais, estão quotidianamente na nossa mídia — e expondo com exuberância e riqueza de detalhes a sua fauna e a sua flora, minuciosamente descritas pela fala de Riobaldo, esse narrador-cartógrafo. Como exemplo da importância do estudo da topografia do romance para se pensarem as questões que fundamentam a tese do autor, retomo aqui o trecho em que Bolle, ao tratar da jagunçagem como “sistema retórico”, demonstra que, em Grande sertão, a localização do sistema de jagunço “numa região limítrofe com os centros do poder, incluindo o território do Distrito Federal, confere ao texto o caráter de um retrato alegórico do Brasil” (BOLLE, 2004, p. 117). E, logo em seguida, ele se indaga e acrescenta: O que significa essa encenação de bandos organizando o crime e exercendo o poder no planalto central? O sistema de jagunço, enquanto instituição situada ao mesmo tempo na esfera da lei e do crime, deixa de ser um fenômeno regional e datado, para tornar-se uma representação do funcionamento atual da estrutura do país. (BOLLE, 2004, p. 117.) Diferentemente de Guimarães Rosa, o enfoque topográfico em outros autores, como Euclides da Cunha, ou em estudiosos como Rui Facó e Maria Isaura Pereira de Queiroz, mostra os jagunços e os cangaceiros como um fenômeno do Nordeste, não estando assim tão vinculados ao poder central como aparece em Guimarães Rosa. (BOLLE, 2004, p. 116.) Ora, toda leitura é interessada, diz do sujeito que lê, mas ela é potencializada pela capacidade que tem o tecido textual de mobilizar várias interpretações, por mais antagônicas que sejam. Willi ►► 47 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Bolle demonstra na sua arrojada leitura do grandesertão.br como a falta de entendimento entre a classe dominante e as classes subalternas constitui um obstáculo para a emancipação do país. Sua abordagem atravessa o território da geografia social, da história, da política e da estética. Por sua vez, o título do livro grandesertão.br faz alusão à comunicação contemporânea, remetendo à noção de hipertexto e internet, mapeando a rede de relações entre Grande sertão: veredas e outros ensaios de interpretação do Brasil — Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro. Com esse procedimento, Bolle está afirmando uma perspectiva teórico-crítica plenamente de acordo com determinados ingredientes textuais que ele encontra no romance, tendo como objetivo o mapeamento de questões políticas e sociais, utilizando como ferramenta interpretativa os dados topográficos — reais e imaginários — registrados na fala de Riobaldo. A leitura de Willi Bolle insere-se na vertente teórico-interpretativa da contemporaneidade, ao verificar as relações texto-contexto a partir da rede de discursos que ele coloca em diálogo — os discursos da história, da sociologia, da antropologia etc. — para pensar um dado efetivo: Grande sertão como um retrato do Brasil. Todavia, o sertão rosiano é, também, um sertão metafísico, espaço-tempo da intemporalidade e da atopia, da ausência de espaço, pois “o sertão está em toda parte”, “o sertão é dentro da gente”, é “o gerais.” Esse aspecto está explicitado no conjunto da obra poética de João Guimarães Rosa, porém encontra-se claramente delineado como projeto literário no diálogo com o crítico e tradutor Günter Lorenz. Ao participar do Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova, em janeiro de 1965, dois anos antes da sua morte e quase dez anos depois da publicação de Grande sertão: veredas, Rosa deixa um de seus depoimentos mais longos em uma entrevista concedida a Günter Lorenz, que está publicada com o título de “Diálogo com Günter Lorenz” (COUTINHO, 1983, p. 62-97). 48 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Conforme abordagem que realizei em Grande sertão: veredas: uma escritura biográfica (2006), no “Diálogo” o sertão mineiro é percebido através das diversas vertentes da escrita literária, principalmente Grande sertão: veredas, e é a essa obra que Guimarães recorre para cartografar o seu projeto sobre o sertão. Algumas metáforas utilizadas definem simultaneamente esse espaço como situado e dessituado geograficamente, de valor físico e metafísico. Uma metáfora que revela a mobilidade que têm os signos e as imagens de conotarem diversos significados está, por exemplo, na metáfora do vaqueiro, através da qual Guimarães Rosa se representa e constrói sua própria mitologia: Isto pode surpreendê-lo, mas sou meio vaqueiro, e como você [isto é, o interlocutor G. Lorenz] também é algo parecido com isto, compreenderá certamente o que quero dizer. [...] Eu queria que o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Então tudo andaria melhor. (COUTINHO, 1983, p. 67-68.) O vaqueiro, como o sertanejo, é uma imagem que simboliza e desvela um modo de ser e de estar no sertão-mundo, no qual Guimarães se situa, situa seu interlocutor e todos aqueles personagens que constituem sua estirpe literária: Goethe, Dostoiévski, Tolstói, Flaubert, Balzac. O que define aquilo que Guimarães denomina de parentesco anímico é a relação que cada um desses escritores mantém com a sua linguagem — a sua língua — a partir de uma determinada forma de configurar a realidade. Depois de declarar a Günter Lorenz “levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão” (COUTINHO, 1983, p. 85), Rosa prossegue: Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoiévski, Tolstói, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava no infinito. Acho que Goethe foi, em resumo, o ►► 49 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 único grande poeta da literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo. (COUTINHO, 1983, p. 85.) E, logo depois, reconsidera essa afirmação do seguinte modo: Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoiévski, Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde o interior e o exterior já não podem ser separados. (COUTINHO, 1983, p. 86.) De espaço geográfico e mundo físico, essa geografia não ficcional transforma-se em ficção, em realidade simbólica, alegórica e mitológica que não mais se desprega da não ficcional, e passa até a fornecer os parâmetros através dos quais ela pode ser pensada e experimentada, isto é, cartografada. Se a mineiridade está “inteiriça no romance”, como afirma Letícia Malard em seu artigo “Minas Gerais em Guimarães Rosa” (MALARD, 1993, p. 36), ela aparece como pretexto para instalar essa outra dimensão tão perseguida por Rosa, tanto do ponto de vista da produção poética quanto do diálogo com Günter Lorenz: o sertão como não espaço e vivência do não circunstancial, (não) lugar do atemporal e do eterno. E é nessa acepção que Guimarães pode repetir no diálogo alguma coisa que aprendeu com seu personagem no Grande sertão: veredas: “levo o sertão dentro de mim”, fazendo ecoar “o sertão é dentro da gente”, de Riobaldo Tatarana, o Urutu Branco. O valor metafísico do sertão tem sido também objeto de abordagem da crítica rosiana. Heloisa Vilhena de Araujo dedicou dois trabalhos ao tema, nos livros intitulados O roteiro de Deus (1996) e O espelho (1998). Francis Utéza elabora um estudo minucioso sobre a problemática da metafísica do Grande sertão, na obra Metafísica do grande sertão (1994). Sem negar a autenticidade da 50 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 realidade brasileira, Utéza propõe-se a cartografar a paisagem que subjaz a essa geografia de superfície, desentranhando daí as grandes tradições esotéricas do Oriente e do Ocidente que pautaram o comportamento das personagens na travessia pelo sertão, que ele traduz como Ser Tao — caminho da aprendizagem e de busca do conhecimento. Assim Utéza sintetiza e define o sertão metafísico: Incomensurável, esse espaço contém tudo — gerais. Fora e dentro, margem esquerda e margem direita, singular e plural, montanha e vale, fértil e deserto, vazio e cheio, o sertãogerais nada mais tem a ver com a geografia de Minas. [...] O termo sertão recobre o conceito metafísico da unidade caótica, plena de todos os possíveis, manifestados ou não: o Ser Tao engloba “o” Gerais. (UTÉZA, 1994, p. 66.) Destaca-se essa afirmação como uma espécie de síntese das definições do sertão rosiano, porque expõe seu caráter de indecidível paradoxo. Há aqui uma tautologia, já que o paradoxo é por sua própria constituição um elemento indecidível, pois é regido pela combinação dos contrários e das aberrantes dicotomias. Todavia, essa colocação se justifica pela exuberância da construção linguística e literária de João Guimarães Rosa, que transgride os limites estabelecidos e regidos pela racionalidade que sustenta o pensamento e as ações cotidianas, marcada pelos dualismos e pelas dicotomias. O livro de Francis Utéza é de 1994 e adota uma perspectiva esotérica, mas para isso procura compreender o sertão, mapeando aquilo que ele denomina a “geografia do sagrado” (UTÉZA, 1994, p. 23). Ou seja, procura localizar as marcas das tradições esotéricas do Oriente e do Ocidente inscritas na aventura de Riobaldo. Utéza, logo no início do seu livro — na parte II, “O pórtico do labirinto” —, analisa as ilustrações de Poty para a edição do romance, comparando o primeiro projeto do desenho das orelhas do livro com a versão definitiva, que aparecerá na segunda edição de Grande sertão: veredas. No desenho de ►► 51 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Poty, feito por sugestão do próprio Guimarães Rosa, interessa a Utéza ler os dados esotéricos que se superpõem ao traçado da geografia de Minas, pois é nessa direção que se encaminha a sua abordagem, e, segundo ele, os desenhos de Poty são a primeira pista mais evidente para o esoterismo do romance. Cito uma passagem esclarecedora do seu interesse pela geografia e pelo estabelecimento de outras possibilidades cartográficas: O filão metafísico que pudemos evidenciar se encontra submerso sob uma tal acumulação de dados geográficos, culturais, linguísticos e narrativos, que só um paciente trabalho de análise, fora do alcance do leitor não advertido, pode facultar a entrada nesse domínio. Solicitado, sobretudo, pelo superestrato folclórico e pelas premissas da narração de uma aventura heroica e de suspense, o leitor médio já tem suficientes dificuldades de reencontrar-se nele, e assim nem mesmo ser tentado a interessar-se por aquilo que lhe foi cuidadosamente escondido. (UTÉZA, 1994, p. 77.) Logo no capítulo seguinte, intitulado “III. Realismo e transcendência”, Utéza observa que os trabalhos que procuraram seguir a trajetória dos jagunços através de mapas que o Exército fez do Centro-Oeste brasileiro provaram que a metafísica do Grande sertão “repousa sobre dados geográficos concretos” (UTÉZA, 1994, p. 79), estabelecendo ao mesmo tempo os limites desse tipo de pesquisa, já que “os signos do nada são perceptíveis até no meio ambiente: pode-se assimilá-lo ao Vão do Buraco, topônimo arquétipo do vazio” (UTÉZA, 1994, p. 83). As reflexões de Utéza partem também do trabalho cartográfico de Alan Viggiano (1974), que ele considera “modesto”, e do álbum de fotos que ilustra um conjunto de mapas detalhados, publicado por Marcelo de Almeida Toledo, no seu Grande sertão: veredas: as trilhas de amor e guerra de Riobaldo Tatarana (1982), afirmando que o maior número de localizações geográficas resulta desses cotejos. Entretanto, interessa a Francis Utéza 52 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 desentranhar a realidade que subjaz a essa geografia aparente, corroborando uma declaração de Guimarães Rosa a F. Camacho, em uma entrevista: “quanto mais realista sou, você desconfie. Aí é que está o degrau para a ascensão, o trampolim para o salto” (UTÉZA, 1994, p. 82-83). Nesse aspecto, muitos lugares do Grande sertão são evocados de modo que o leitor não possa relacioná-los a nenhum dado geográfico identificado nos mapas. Assim é o Liso do Sussuarão, as Veredas Mortas e muitos outros locais atravessados pelo narrador-jagunço. Apoiando-se nas falas de Riobaldo que definem o Liso do Sussuarão como um lugar que “não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era um escampo dos infernos. [...] Que nem o Vão do Buraco [...]. Esse Liso é o mais longe — pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo”, e analisando as duas tentativas de travessia pelo Liso, onde ele aparece inicialmente como inferno e, posteriormente, como um oásis hospitaleiro, Utéza conclui da seguinte forma: O Liso do Sussuarão não é apenas um deserto nos confins de Minas e Bahia, que audaciosos guerreiros tentaram em vão atravessar: é uma boca de sombra que devora suas vítimas, uma Vagina Dentada para a qual Medeiro Vaz arrasta seus jagunços sem que eles tenham regressado ao estado embrionário. Dessa garganta infernal ressurgem homens metafisicamente regenerados pela provação. (UTÉZA, 1994, p. 91.) A abordagem metafísica de Utéza, baseando-se em símbolos da alquimia, do taoísmo e do zen presentes na narrativa de Riobaldo, engloba a travessia das veredas a partir do nada — nonada, primeira palavra do discurso — até o infinito, último hieróglifo do texto. Nesse percurso de decifração desses signos, compreende a travessia de Riobaldo pelo sertão-mundo como um processo iniciático do Ser em direção ao Tao, ao conhecimento, percurso que já está contido na palavra sertão, pois o ►► 53 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 termo sertão “recobre o conceito metafísico de unidade caótica, plena de todos os possíveis, manifestados ou não: o Ser Tao engloba ‘o’ Gerais” (UTÉZA, 1994, p. 66). Não é necessário continuar percorrendo a leitura de Utéza, pois ela é trazida aqui para atestar a capacidade que tem o texto rosiano de traçar múltiplas cartografias, até as mais excludentes. Se o sertão pode ser o retrato geográfico, social, histórico e político do Brasil, ele é também o Gerais, e “esses gerais são sem tamanho” e nada têm a ver com a geografia de Minas ou do Brasil. Apontam para uma caminhada ascensional, para uma transcendência, a travessia do homem para o infinito, como afirma o final da narrativa. Através das palavras, Rosa constrói um mundo excessivo e excepcional, isto é, criador de exceções, em que a norma se espelha em seu contrário, e onde cada palavra fulgura como se fosse pronunciada pela primeira vez. Na sua concepção, explicitada também no diálogo com Günter Lorenz, a palavra é a única porta para o infinito, e o homem vive em constante travessia para o infinito. Esse é o término da narrativa do Grande sertão: veredas: a palavra Travessia, seguida pelo símbolo do infinito, a lemniscata. Dessa perspectiva, só é possível falar de cartografias do sertão rosiano, sem jamais se fixar em um mapa ou uma paisagem previamente estabelecida. Qualquer cartografia será móvel, instável, provisória e precária. Afinal, no sertão rosiano “tudo é e não é”. REFERÊNCIAS BOLLE, Willi. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2004. (Coleção Espírito Crítico). HOISEL, Evelina. Grande sertão: veredas: uma escritura biográfica. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2006. _______. Sobre cartografias literárias e culturais. In: MESSINA, Lea; BITENCOURT, Gilda N.; SCHIMIDT, Rita Terezinha. Geografias 54 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 literárias e culturais: espaços e temporalidades. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 149-156. MALARD, Letícia. Minas Gerais em Guimarães Rosa. In: O espaço geográfico no romance brasileiro. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1993, p. 33-50. (Casa de Palavras). ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. _______. Diálogo com Günter Lorenz. In: COUTINHO, Eduardo F. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1983. (Fortuna Crítica 6). TOLEDO, Marcelo de Almeida. Grande sertão: veredas: as trilhas de amor e guerra de Riobaldo Tatarana. São Paulo: Massao Ohno, 1982. UTÉZA, Francis. JGR: metafísica do grande sertão. Trad. José Carlos Garbulio. São Paulo: Edusp, 1994. VIGGIANO, Alan. Itinerário de Riobaldo Tatarana. Belo Horizonte: Comunicação; Brasília: INL, 1974.* Evelina Hoisel é ensaísta, pesquisadora do CNPq, professora titular da Universidade Federal da Bahia, mestre em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutora em teoria da literatura e literatura comparada pela Universidade de São Paulo, já tendo publicado diversos livros, bem como artigos em jornais e revistas. Desde 2005 ocupa a Cadeira nº 34 da ALB. Palestra proferida em sessão ordinária da Academia de Letras da Bahia, na Sala de Reuniões, em 16 de maio de 2013. ►► 55 AS VIAGENS DE ST. BRENDAN — A ILHA BRASIL Waldir Freitas Oliveira S abemos muito pouco, no Brasil, sobre a história da Irlanda. E mesmo nos dias atuais, levando-se em conta o progresso das comunicações, reconhecemos continuarem os nossos conhecimentos sobre aquele país sendo escassos, pelo que, como resultado da precariedade dos registros disponíveis, poder soar aos nossos ouvidos com estranheza a notícia de ali haver vivido um São Brendan, que alguns historiadores insistem em “aportuguesar” para Brandão, tanto quanto a da existência de uma ilha chamada “Brasil”, situada em pleno oceano, a oeste daquele país, que teria sido por esse santo visitada em tempos anteriores aos das viagens de Colombo e Cabral, realizadas em 1492 e 1500. São Brendan, também conhecido como St. Brendan, the Navigator, existiu de fato, havendo nascido, provavelmente, no último quartel do século V da Era Cristã, 484, na Irlanda, em Tralee, no condado de Kerry. Tornou-se um clérigo merecedor de alto respeito pelos que com ele conviveram, tendo fundado em seu país vários mosteiros e viajado muito pelas terras e mares da Inglaterra, Irlanda, Escócia e País de Gales, havendo chegado às costas da Bretanha, no continente, onde passou a contar, para sua ação missionária, com um discípulo, de longa tradição até hoje na França — Saint Malo (Mac Law, em gaélico). Teria sido ainda abade no mosteiro de Clonfort, no País de Gales, localizado em Galway, situado, como tantos outros, à margem dos mares orientais irlandeses. ►► 57 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Tendo um dia tomado a decisão de navegar na direção do oeste em busca da Terra Prometida dos Santos (Terra Repromissionis Sanctorum), da qual lhe teriam falado, preparou uma viagem, em companhia de catorze outros monges, para ir visitá-la. E navegou, então, realizando-a durante quarenta dias sobre o oceano. Deixou-nos, felizmente, a descrição de uma das suas viagens, em um precioso documento, mais tarde intitulado Navigatio sancti Brendani abbatis, no qual mencionou, uma por uma, as ilhas por ele visitadas, entre as quais estaria, provavelmente, a de “Hy-Brasil” (devendo esclarecer-se que esse nome já era dado, havia muito, a uma ilha que nada tinha a ver com o Brasil “descoberto” em 1500 pelos portugueses, que desse modo passaram a denominar aquela “nova” terra, em razão de nela terem encontrado árvores das cascas das quais poderiam obter uma tintura vermelha, com cor semelhante a uma brasa de fogo), ainda que representasse a expressão Hy-Brasil, na narrativa de São Brendan, somente uma corruptela de O’Brasil, Isle of the Blest (Ilha da Bem-Aventurança), expressa em língua gaélica.1 Segundo nos informa Samuel Eliot Morison, ninguém cuidara, até quando escreveu ele a sua obra, de reconstituir-lhe a história. Mas acentua que a presença dessa ilha é constante na tradição oral dos irlandeses, herdada, por certo, dos celtas, sendo por eles considerada uma espécie de “campos elísios”, onde ficam as almas à espera do momento em que irão ingressar no reino dos céus, imaginando-a, pois, como uma ilha encantada, onde reinam a paz e a tranquilidade. Acreditam, no entanto, que nenhum ser humano jamais haja posto nela os pés, existindo, porém, a tradição de que, se alguém chegar a dela aproximar-se a ponto de poder avistar as fogueiras acesas em suas praias, não será hostilizado. E um poeta irlandês, Gerald Griffin (1803 – 1840), escreveu sobre ela um poema que começa com os seguintes versos: 58 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 On the ocean that hollows the rocks where ye dwell, A shadowy land has appeared, as they tell; Men thought it a region of sunshine and rest, And they called it Hy-Brasail, the isle of the blest. E mesmo sendo essa ilha considerada um lugar sagrado, foram muitos os homens de altos negócios instalados em Bristol que se dispuseram a financiar viagens buscando encontrá-la, havendo figurado entre os navegadores que partiram à sua procura o famoso João Caboto, em viagem empreendida em direção ao oeste, realizada em 1497. Nunca, porém, a ilha de Hy-Brasil foi encontrada, sendo grande, no entanto, a literatura que a ela se refere, surgida no decurso dos séculos XIX e XX. Buscando identificar os mapas e as cartas geográficas onde ela então apareceu, seguimos o texto de Samuel Eliot Morison e nele a encontramos, registrada essa sua presença em sequência cronológica, inicialmente na carta de Bartolomeo Pareto, desenhada em 1455 e reproduzida no Atlas de Kretschmer (1892), onde surge uma insula de Brazil, situada a oeste da península ibérica, em pleno Oceano Atlântico, localizada entre as ilhas de San Zorzo (São George), a de Ventura e a de Colombi (pombos), ao norte, e as de Capraria (bodes) e do Louo (lobo), ao sul, todas elas ali denominadas insulle fortunate sãct Brandawy.2 Essas ilhas de São Brendan figuraram também no primeiro globo terrestre, construído em 1492 pelo alemão Martin Behaim, nele aparecendo com o nome de Sand Branden, o que nos faz constatar o fato de haverem estado elas presentes nos mapas e cartas existentes antes da descoberta da América, ainda que hajam, a partir de então, neles aparecido cada vez com menor frequência, embora tenham ainda figurado no célebre mapa de Ortelius, desenhado no século XV. Quanto à ilha Hy-Brasil, que, por sinal, nunca foi encontrada, começou a partir do século XVI a ser mencionada como situada cada vez mais a oeste, em relação ao ponto onde antes comumente figurara, e foi com a denominação de Brasil Rock que ►► 59 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 apareceu no Jeffrey´s American Atlas, editado em Londres, em 1776, nele localizada a 51º de latitude norte e 17º14´ de longitude oeste, acompanhada, porém, da advertência de ser uma ilha “imaginária”; e também na Memorie descriptive and explanatory of the North Atlantic Ocean, obra organizada por A. G. Findlay, publicada em 1853, nela tendo figurado como situada a 51º10´ de latitude norte e 16º de longitude oeste, afirmando, contudo, esse autor não haver sido ainda comprovada a sua existência e esclarecendo haver ali incluído a Brasil Rock tomando por base informações colhidas entre os integrantes da tripulação do navio Bristowe, que afirmaram havê-la avistado em viagem realizada no ano de 1791. Foram, porém, tão numerosas as dúvidas surgidas sobre existir ou não a referida ilha, que o próprio A. G. Findlay decidiu não mais apresentá-la na edição de 1865 do seu trabalho.3 Retornemos, então, à fonte de onde manaram as primeiras informações sobre essas misteriosas ilhas — o texto da Navigatio sancti Brendani abbatis —, dele constando haver o abade Brendan recebido, certo dia, a visita de outro abade, chamado Barynth, que lhe contou como o seu filho, de nome Mermoc, viajando na direção do oeste, descobrira uma “deliciosa ilha”, habitada por monges, a que chamou de Terra Promissiones Sanctorum, havendo a seguir o levado até lá para que a conhecesse, tendo afinal convencido Brendan a também ir até aquela ilha em companhia de outros monges. Tratou então Brendan de escolher quatorze ou quinze companheiros para acompanhá-lo nessa viagem. Eles começaram a construir o barco que até lá os levaria, estando pronta a embarcação ao fim de quarenta dias, com o seu casco feito com varas de vime unidas umas às outras de forma muito justa e revestido, a seguir, “com couro de vaca curtido com óleo vegetal e com suas frestas tomadas com alcatrão”, nele tendo sido colocadas “provisões para quarenta dias de viagem e gordura suficiente tanto para untar o couro do casco, como para a proteção, contra o sol, dos monges e dos objetos que iriam ser por eles utilizados durante a viagem”.4 60 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Samuel Eliot Morison afirma ser muito boa a descrição, feita nesse texto, de um determinado tipo de barco de pequeno tamanho, usado ainda em nossos dias pelos pescadores irlandeses, por eles chamado curragh, havendo sido essa embarcação, provavelmente, uma invenção dos celtas, assinalando ser o seu casco coberto por couro e não sendo, portanto, inteiramente construído em madeira, em razão de não ser abundante a madeira na Irlanda e de ali existirem, à epoca da referida viagem, rebanhos numerosos de bovinos. Informa, concluindo o seu comentário, ser o curragh uma embarcação segura, mesmo tendo de enfrentar mares bravios. Da narrativa de St. Brendan consta, ainda, que dezoito monges (três ou quatro além dos inicialmente previstos) nele partiram na direção do poente e que, após quarenta dias de viagem, quando as provisões já estavam a findar-se, avistaram uma ilha rochosa, com montes cujas encostas mergulhavam, abruptamente, no mar em torno, onde não encontraram lugar seguro para ancorar seu barco; e que, enquanto os monges entravam, por isso, em desespero, Brendan lhes assegurou que o Senhor Deus Todo Poderoso lhes mostraria, em três dias, o ponto onde poderiam aportar, o que, de fato, veio a acontecer. E quando afinal o encontraram, logo depois de ali terem chegado e desembarcado, lhes apareceu um cão que se pôs a festejá-los. Pelo que os monges decidiram segui-lo, agradecendo ao Senhor Deus Todo Poderoso por havê-lo enviado. O cão então os conduziu para uma cidade (town), onde o principal edifício era um grande castelo, tendo as paredes dos seus salões cobertas por objetos fabricados com metais variados, entre eles aparecendo arreios e trompas com engastes de prata, ali havendo sido preparada e servida aos monges uma farta refeição, com pães e peixes para todos eles. Um dos monges, contudo, um dos que haviam pedido a Brendan, na hora da partida, que os levasse em sua viagem, roubou um dos arreios de prata presos às paredes. E Brendan viu ►► 61 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 surgir à sua frente, quando todos dormiam, um demônio, que assumiu a forma de um anão negro, mostrando nas mãos os arreios roubados e apontando na direção de quem os furtara, havendo, a seguir, Brendan os retirado do capuz onde o monge ladrão os escondera. Mas, tendo o monge, na manhã seguinte, ao ver que seu roubo havia sido descoberto, lhe implorado perdão, Brendan absolveu-o. Então o demônio voltou a aparecer-lhe, dirigindo-lhe ásperas palavras e demonstrando sua insatisfação pela absolvição que ele concedera, o que o impedia de levar a alma do monge ladrão para o inferno. E aconteceu que, naquela mesma noite, morreu o monge que furtara os arreios de prata, havendo a sua alma sido conduzida por anjos para o paraíso. Continuaram os monges visitantes a explorar a ilha, havendo nela encontrado um jovem que carregava grandes cestos com pães e uma ânfora com água para servir os viajantes, que ali permaneceram por vários dias, sendo sempre bem tratados pelo responsável pelos negócios do mosteiro, que passou a lhes fornecer os alimentos necessários à sobrevivência. Dessa primeira ilha seguiram dois dias depois para outra, que denominaram “Ilha dos Carneiros”, onde comemoraram a Páscoa, dela havendo passado para outra, que chamaram de “Paraíso dos Pássaros”, onde as aves por eles encontradas falavam e cantavam em latim, dela tendo eles partido em uma nova viagem, que durou três meses, durante a qual somente viram céu e mar, chegando então à “Ilha dos Frutos”, que era povoada por grifos e gigantes, donde seguiram para a “Ilha da Abadia da Eterna Juventude e do Silêncio”, onde se demoraram por alguns dias. Foram muitas, portanto, as ilhas por eles visitadas. E numa delas Brendan e seus companheiros encontraram um homem fortememente amarrado a um rochedo, com o seu corpo a ser atingido de modo incessante pelas ondas do mar em fúria. E, quando os monges lhe perguntaram quem ele era, ele lhes respondeu ser Judas, “o mais depravado de todos os criminosos”, 62 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 e reconheceu merecer o castigo que lhe estava sendo aplicado. Mas Brendan pediu, então, ao Senhor Deus Todo Poderoso que libertasse aquele homem durante um único dia, sendo por Ele atendido, suscitando essa curta suspensão da pena que fora imposta ao homem a fúria dos demônios que o guardavam. Muito tempo ainda estiveram os monges a navegar naqueles mares e entre aquelas ilhas, havendo eles chegado finalmente à Terra Repromissionis Sanctorum, à Terra da Promissão dos Santos, repleta de árvores frutíferas, nela havendo permanecido durante três dias, que se sucediam sem que fossem separados por noites. E antes de regressar à Irlanda visitaram, ainda, a “Ilha das Delícias”, onde vivia Mermoc, o filho do abade Barynth. Não surge contado do mesmo modo, nas várias descrições existentes desssas viagens, no que se refere à sua duração, o tempo que os monges gastaram em cada uma dessas ilhas, variando ele em cada uma das versões consultadas, registrando-se o fato de serem elas numerosas, e ainda o fato de nem sempre surgirem idênticas as narrativas sobre o que nelas viram os viajantes. A narrativa termina, contudo, em todas elas, de modo repentino, informando o regresso de Brendan e seus companheiros ao seu mosteiro, na Irlanda, havendo então os monges agradecido ao Senhor Deus Todo Poderoso o feliz retorno dessa sua longa viagem. E em certa versão da Navigatio encontra-se a informação de a morte de Brendan haver ocorrido em 577 ou 583 A. D., havendo sido ele, após o seu falecimento, canonizado, passando a figurar entre os santos irlandeses, em quarto lugar quanto à hierarquia, no culto e na aceitação, somente ficando abaixo de St. Patrick, Santa Brígida e São Columba. Sendo este um rápido resumo de uma das viagens de St. Brendan, contendo a sua narrativa as descrições das numerosas passagens com as cenas de encontro dos monges com animais fantásticos que tentaram devorá-los, de todos eles havendo os monges escapado graças à ajuda que lhes deu, de modo permanente durante a viagem, o Senhor Deus Todo Poderoso. ►► 63 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Perguntamos, então, o que haverá de verdade nesse longo relato de uma viagem fantástica, sem que tenhamos resposta adequada para a nossa pergunta. E aqui realçamos o fato de haver essa narrativa se tornado na Irlanda tão conhecida e relembrada quanto as que contam as aventuras do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda na Inglaterra; e o de essas ilhas, que ficaram ali conhecidas como Insulae Sancti Brendani, possuírem, sem dúvida, na memória popular dos irlandeses, uma existência “real”. *** Vários autores já comentaram a narrativa dessa viagem mágica, e dentre os que o fizeram, em anos relativamente recentes, deverá destacar-se, pela excelência do seu trabalho, Carl Selmer, que analisou 17 manuscritos distintos, traduziu-os, após longo estudo comparativo, do latim para o inglês e propiciou-nos, em obra hoje rara, o conhecimento de um texto que é por muitos considerado o melhor trabalho já efetuado sobre o tema.5 Sem que tivéssemos, contudo, obtido acesso a tal publicação, limitamo-nos, graças à prodigiosa ajuda da internet, à leitura da tradução do texto da narrativa, efetuada em 1893 por Denis O’Donoghue, em edição patrocinada pelo arcebispo P. F. Moran e divulgada por The Celtic Christianity e-Library; bem como à consulta a uma recente edição crítica de excepcional valor sobre essa narrativa, organizada sob a direção de Glyn Burgess, professor da Universidade de Liverpool6; e, finalmente, à leitura dos comentários feitos por Guillermo Giucci em seu livro Viajantes do maravilhoso acerca do que foi escrito por Carl Selmer, entre os quais realçamos a sua afirmativa de haver Carl Selmer destacado, na introduction por ele escrita para a Navigatio, “a importância de dois tópicos do relato hagiográfico que estruturariam a forma da narrativa, o primeiro tendo a ver com a busca da terra prometida, o segundo, com a visão do paraíso”7. Havendo comentado, logo adiante, e acentuado com 64 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 propriedade que “revelação, prodígio e experiência pessoal fundem-se na Navigatio”. E mais ainda que [...] a fusão destes elementos transforma a narração da viagem num testemunho alegórico da mediação divina, e esta mediação diminui a problemática do sofrimento dos santos em seu caminho rumo ao páraíso, pois que a insere no itinerário da vitória da fé sobre os obstáculos naturais.8 Dessa maneira, segundo afirma, nela torna-se Deus “o leme da nau”. Sendo Ele, portanto, quem “sopra as velas e inevitavelmente guia o peregrino à meta desejada”. Prossegue, afirmando que “a visão do paraíso que coroa o quadro das maravilhas do recôndito se inscreve no texto como o elemento consolidador, por excelência, do maravilhoso hagiográfico”. E, reforçando essa sua ideia, acrescenta: Engastadas na enorme muralha que protege o acesso à terra prometida, refulgem pedras preciosas, crisólitos como gotas de ouro, topázios amarelos, jaspes com ametistas, ônix, ágatas e esmeraldas. E se a muralha deslumbra com suas riquezas, dentro do recinto murado as maravilhas são indescritíveis. Bosques floridos, rios de leite, frutas perfumadas, montanhas de ouro, pedras preciosas; a visão paradisíaca recapitula, com suas imagens de abundância, valor, disponibilidade e utilidade, as virtudes de regiões extraordinárias que parecem existir à espera do viajante europeu.9 Conclui, então, que, na narrativa de São Brendan, “o maravilhoso transforma-se em intocável, num artifício dos deuses, numa fabricação lúdica de cuja estrutura não se pode retirar mais que um tijolo minúsculo sem evitar seu desmoronamento completo”.10 Levando-se agora em conta o que escreveram sobre a “ilha Brasil” autores brasileiros, iremos referir-nos, assinalando sua condição de pioneiro, a Capistrano de Abreu, quando ►► 65 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 informou haver sido de uso comum o nome Brasil em tempos anteriores à viagem do “descobrimento” de Cabral, quando, em 1907, afirmou, em Capítulos de história colonial (1500-1800), que [...] o nome do Brasil já era bem conhecido e figurado em portulanos anteriores às descobertas dos portugueses; havia um nome à procura de aplicação, exatamente como o de Antilha, e isto explicaria a rapidez com que se introduziu e vulgarizou, suplantando outras denominações, como Terra dos Papagaios, Vera Cruz, ou Santa Cruz, se a abundância de uma apreciada madeira de tinturaria até então recebida por via do Levante, e o comércio sobre ela fundado desde o começo, não colaborassem na propaganda, e talvez com maior eficácia.11 Anos depois, o jornalista e historiador Francisco de Assis Cintra publicou, em 1921, em edição da Companhia Melhoramentos de São Paulo, o livro Nossa primeira história (a de Gandavo) e, no capítulo inicial desse seu trabalho, intitulado “O precursor de Cabral”, buscando identificar a “ilha” descoberta por Pedro Álvares Cabral com a “ilha Brasil” presente na tradição oral irlandesa, criou a figura de Sancho Brandão, que teria integrado a armada do rei de Portugal Afonso IV, que reinou de 1325 a 1357, havendo descoberto o Brasil antes, portanto, de Cabral, tendo, ao regressar a Portugal, oferecido a ilha que “achara” à coroa portuguesa, passando ela a ser conhecida, desde então, como “ilha do Brasil” ou “ilha de Brandão”. Revelando-se esse autor, com sua afirmativa, bem mais um ficcionista que um historiador, por não haver sido comprovada, em qualquer tempo, a existência desse Sancho Brandão, nem ter sido registrado qualquer descobrimento no Oceano Atlântico durante o reinado de Afonso IV, estando ele a apoiar-se, em defesa de sua afirmativa, em carta enviada ao papa Clemente VI por esse rei português, a 12 de fevereiro de 1343, na qual, em sinal de protesto por haver o pontífice reconhecido as chamadas 66 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 “Ilhas Afortunadas” (as atuais Ilhas Canárias) como pertencentes ao Reino de Castela, alegava terem sido “os nossos naturais os primeiros que acharam as mencionadas ilhas ocidentais”, ilhas, aliás, onde teriam chegado, em data muito antiga, porém incerta, os cartagineses, mas que somente acabaram sendo efetivamente ocupadas por europeus em 1402, quando da viagem feita pelos normandos Jean de Béthencourt e Gadifer de la Salle, navegando a serviço da Espanha.12 Muitos anos depois, em 1942, após haver publicado, em 1930, Aquém da Atlântida, no qual se referiu a esse assunto, Gustavo Barroso (1888 – 1959) abordou de modo decisivo esse tema em seu livro O Brasil na lenda e na cartografia antiga, livro que contou com uma segunda edição em 2000, sendo essa uma obra na qual demonstrou possuir uma vasta erudição, muito havendo informado sobre as “ilhas de São Brandão”, tomando por base ampla bibliografia, sem cometer os enganos de Assis Cintra, havendo insistido, ao final do seu texto, em relacionar o nome “Brasil” ao termo gaélico brasil, este com a significação de bless (bem-aventurança), afirmando, afinal, que, “em face da documentação apresentada, é impossível deixar de reconhecer que a palavra brasil foi, antes de tudo, aplicada para denominar uma ilha do Oceano Atlântico, tendo sido utilizada, no dizer de Latino Coelho, para designar “regiões geograficamente desconhecidas ou figuradas ao sabor da fantasia dos cartógrafos”13. Havendo acrescentado que “as origens e o processo de formação do nome Brasil não podem ser outros”, indo a seguir comentar, a respeito da expressão, [...] não haver quem não prefira que o apelido do seu torrão natal signifique “terra abençoada”, “terra dos afortunados”, “terra dos bem-aventurados”, of the blest, do que recorde tão somente o utilitário e vulgar comércio do pau de tinta, exercido, nos primeiros tempos da conquista, não por portugueses idealistas que a realizaram, mas pelos cristãos-novos Loronhas e Bixordas, que tiravam real proveito da sua audácia, colhendo tranquilamente os frutos do seu destemor.14 ►► 67 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Vale, então, o registro feito aqui, com justiça, da qualidade do verbete constante do Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), editado em 2000, organizado por Ronaldo Vainfas, no qual conseguiu esse historiador resumir, de modo perfeito, tudo o que se conhece a respeito do assunto, relembrando o que antes dissera a respeito Capistrano de Abreu e citando, com propriedade, o historiador português Jaime Cortesão, quando sugeriu haver a ideia de uma “ilha Brasil” ter sido concebida pelos portugueses sob a forma de um “mito geopolítico”.15 Havendo assumido recentemente a mesma posição proposta por Latino Coelho, Capistrano de Abreu e Jaime Cortesão, referendada, como informamos, por Ronaldo Vainfas, a historiadora Laura de Melo Souza, em artigo publicado em Nossa História sob o título “O nome do Brasil”, quando afirmou que, “entre 1351 e 1500, os mapas europeus mostram o nome ‘Brasil’, bem como variantes dele — Bracir, Bracil, Brazille, Bersil, Braxili, Bruxil, Bresilge —, designando, em lugares diferentes, uma ilha ou até três, expressando um horizonte geográfico ainda mítico, como o das Ilhas Afortunadas e tantas outras miragens que a prática navegadora e a experiência acabariam por dissipar”. Donde haver ela concluído que “primeiro houve o nome, depois o lugar que foi nomeado”.16 Naquele mesmo ano de 2004, foi publicado no Rio de Janeiro o livro do jornalista Geraldo Cantarino Uma ilha chamada Brasil: o paraíso irlandês no passado brasileiro17, devendo-se a seu respeito registrar haver ele recebido severas críticas de vários historiadores brasileiros, que nele apontaram graves erros de expressão e interpretação dos fatos narrados, figurando entre os que mais o criticaram a professora doutora Luciana de Campos, da Unesp de São José do Rio Preto, São Paulo, integrante do Grupo de Estudos Celtas e Germânicos daquela universidade, que divulgou sua opinião a respeito desse livro em artigo na internet sob o título “As raízes celtas do Brasil”, nele havendo reprovado o autor não apenas por haver usado impropriamente uma “linguagem 68 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 extremamente coloquial”, como por não haver dado ao seu texto uma “seriedade documental” e, ainda mais, por ter ele insistido em transformar seu livro em claro “apelo esotérico e fantasioso”. E ela declarou, afinal, de modo impiedoso, “esperar que os estudantes universitários que ora iniciam suas pesquisas nos estudos celtas [que segundo alguns somente poucos escolhidos merecem realizá-los, o que, a nosso ver, é um erro] não se inspirem nessa obra e, muito menos, a tomem como referência”.18 Quanto a nós, aceitamos o livro de Geraldo Cantarino como sendo uma contribuição válida para a abordagem do seu tema específico: o da origem do nome Brasil. Apesar de reconhecermos terem sido justas as críticas que lhe foram feitas, especialmente quando não evitou deixar-se conduzir por hipóteses fantasiosas, chegando mesmo a admitir uma suposta presença, em tempo ignorado, dos fenícios em terras do Brasil, e por não possuir o autor uma formação de historiador, não havendo apresentado sua argumentação enquadrada nos rigorosos moldes cuja utilização se tornou costume exigir-se desses profissionais, consideramos que Uma ilha chamada Brasil concorreu para que um assunto pouco tratado na área da historiografia brasileira voltasse a ser discutido como antes o fora, nos inícios do século passado, sendo louvável o esforço realizado pelo seu autor para reunir e apresentar aos seus leitores uma vasta e oportuna bibliografia a respeito do assunto por ele tratado. Não havendo, portanto, a nosso ver, as críticas feitas ao seu livro se mostrado capazes de invalidar a importância da sua publicação, tendo ele merecido, pouco depois do seu lançamento, ser citado como referência pela prestigiosa Revista de História da Biblioteca Nacional (Ano II, n. 15, dezembro 2006), em apoio ao texto nela publicado sob o título “Todos os nomes do Brasil”, de autoria de José Murilo de Carvalho. Merecendo, ainda, Geraldo Cantarino os nossos aplausos por haver tentado retirar do esquecimento a figura do irlandês Roger Casement, cujo nome e atuação em seu tempo a singularizaram, tornando-o, inclusive, em tempos de ►► 69 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 agora, personagem central de um dos mais recentes romances do escritor peruano Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura, El sueño del celta (Buenos Aires: Alfaguara, 2010). E voltando a falar de São Brendan, assinalemos que a maioria dos historiadores modernos admite existir na lenda de sua viagem um fundo de verdade, ainda que não exista a possibilidade de descobrir-se a real identidade dessa “Terra Prometida” ou dessa “Ilha de São Brendan”, como a chamavam os historiadores medievais, alguns aceitando a ideia de a figura de São Brendan haver sido formada com base nas descrições de várias viagens realizadas por pessoas diversas, em épocas várias, desse modo explicando-se a longa duração daquela que foi descrita na Navigatio com tantos preciosos detalhes, enriquecendo, sobremodo, a literatura frequente nos tempos medievais sobre ilhas imaginárias que se achavam perdidas no oceano, impossíveis, dada a sua condição de ideia pura, de vir a ser encontradas. REFERÊNCIAS E NOTAS MORISON, Samuel Eliot. The european discovery of America: the northern voyages. A. D. 500-1600. New York: Oxford University Press, 1971, p. 103. 2 Idem. 3 Ibidem, p. 104. 4 Navigatio sancti Brendani abbatis. Trad. (para o inglês) de Denis O’Donoghue. In: Brendaniana. Archbishop P. F. Moran, 1893. 5 SELMER, Carl. Navigatio sancti Brendani abbatis from early latin manuscripts. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 1959. (Medieval Studies, XVI). 6 BURGESS, Glyn. The voyage of saint Brendan: representative versions of the legend in english translation, with indexes of themes and motifs from the stories. Exeter: University of Exeter Press, 2005. 7 GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 36. 8 Ibidem, p. 37 1 70 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ibidem, p. 37-38. Idem. 11 ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800). 4. ed. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1954, p. 78. 12 ASSIS CINTRA. Nossa primeira história. São Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1922. 13 COELHO, Latino. Vasco da Gama. Porto: 1882. 14 BARROSO, Gustavo. O Brasil na lenda e na cartografia antiga. 2. ed. São Paulo: Edições GRD, 2000, p. 149-153. 15 VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. 16 SOUZA, Laura de Melo. “O nome do Brasil”. In: Nossa História. Rio de Janeiro, ano I, n. 6, 2004. 17 CANTARINO, Geraldo. Uma ilha chamada Brasil: o paraíso irlandês no passado brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2004. 18 CAMPOS, Luciana de. “As raízes celtas do Brasil”. Disponível in: www.brathair.com.* 9 10 Waldir Freitas Oliveira é historiador, ensaísta e conferencista, professor da Universidade Federal da Bahia, com vários artigos e livros publicados. Dirigiu diversas instituições, como o Conselho de Cultura do Estado da Bahia e o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA. É sócio remido do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Desde 1987 ocupa a Cadeira nº 18 da ALB. Palestra proferida em sessão extraordinária da Academia de Letras da Bahia, na Sala Pedro Calmon, em cinco de dezembro de 2013. ►► 71 BREVE REFLEXÃO SOBRE OS HINOS ÓRFICOS Ordep Serra C omeçarei agradecendo a honra que me fez a egrégia Academia de Letras da Bahia, ao convidar-me para pronunciar aqui uma palestra. Esta casa reúne muitas pessoas que admiro e nela tenho amigos caríssimos. De um modo especial sou grato a seu presidente, Aramis Ribeiro Costa, e ao poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos, que me propiciaram a oportunidade de falar de Orfeu a seus pares, gente de Orfeu. A esta honra se soma a alegria: como baiano, orgulhoso de minha terra e de sua inteligência, fico feliz por fazer no cenáculo das nossas letras o anúncio de minha tradução ainda inédita — a primeira para a língua portuguesa — da totalidade dos famosos hinos órficos (ou seja, da syllogé completa) a partir do grego antigo. Eu a concluí recentemente. Labuto ainda na revisão do texto e dos comentários, mas em breve devo encaminhá-la a uma editora paulista, a Odysseus. Confesso que estava sentindo falta de uma avant-première em minha terra: de uma conversa sobre os hinos órficos com poetas baianos de todas as artes. Orfeu é símbolo do fazer criativo, que os gregos chamavam de poîesis, fonte da produção artística em todas as esferas da imaginação. Vê-se bem por que sua imagem atravessa os tempos e ressurge inúmeras vezes, na literatura, na música, no teatro, na dança, nas artes plásticas, na filosofia, no cinema. A invenção de Orfeu não acaba nunca: é infinita e ubíqua, segundo bem nos mostrou o nosso poeta Jorge de Lima. Vejo aqui, à minha volta, pessoas que se empenham em continuá-la, de diferentes ►► 73 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 modos. O lugar é propício, portanto: esta casa abriga a presença do herói misterioso que revive em sua gente. Convém explicar: Orfeu é misterioso no sentido original do termo, que remete a mistérios, a cultos de mistério. O adjetivo “místico” tem a mesma raiz: fala do silêncio em que se envolvia essa modalidade de culto. Ambas as palavras se viram empobrecidas, a rigor amesquinhadas, com a redução do misterioso ao enigmático, do místico ao vago e obscuro. O culto de mistérios envolvia iniciação, alentada pela esperança de comunicação direta com a divindade, promessa de uma ligação radical com deuses a um tempo queridos e temidos. A iniciação constituía um rito de passagem. Esse rito, segundo podemos vislumbrar através de testemunhos sempre incompletos, evocava a angústia da morte e sugeria um renascimento espantoso, capaz de estender-se para além dos limites da existência humana, das fronteiras que separam vida e morte. Repensando a noção segundo me sugerem os signos da experiência mística na poesia dos órficos, ouso propor uma aproximação: mistério deve chamar-se o que só o silêncio sabe dizer. Mas escutem: esse silêncio não é mudo. Canta. Deriva da música de Orfeu, música de imagens, atos dramáticos e vozes a comunicar o divino: deikhnúmena, drómena, legómena. Não há como fazer pouco da força inspiradora desses ritos: recorde-se que, segundo Paul Friedman, Platão em sua inesgotável obra filosófica fez uma transposição intelectual dos mistérios. Orfeu é um revelador que se oculta profundamente. Ele não é mencionado nos poemas de Homero nem nas obras de Hesíodo. A primeira referência a seu nome que chegou até nós se encontra no fragmento 26 do poeta Íbico de Régio, de inícios do século VI a. C. Segundo a sumária sentença de Íbico, Orfeu era um poeta de grande nomeada, portanto já consagrado naquela altura. As obras do vate assim aclamado podem ter sido compostas no século VII. Mas por que o silêncio precedente? Afinal, quem era mesmo esse grande poeta que a primeira notícia nos revela famoso? Terá ele existido como um de nós, um homem de carne e osso? 74 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Os gregos antigos acreditavam que sim. A maioria dos modernos sustenta que não. Pois a figura de Orfeu tem inegáveis contornos míticos. Seja como for, não se pode negar realidade histórica à fonte primeira dos poemas órficos — fonte, pelo visto, bem antiga, embora difícil de localizar no tempo, de assinalar no espaço. Entenda-se: várias obras foram atribuídas a Orfeu em textos que se distribuem ao longo de um milênio, pelo menos. Atribuídas, digo, de duas maneiras. Na mais simples, um determinado autor cita uma teogonia, um hino, uma sentença, um preceito ou um ensinamento de Orfeu. Às vezes, porém, sucede coisa diferente: apresenta-se como Orfeu um autor que de outro modo não se dá a conhecer, mas pode ser situado no tempo, em geral a uma distância considerável das mais antigas obras em que se lê o nome e se proclama a autoria do herói-poeta. Quem assim se apresenta situa-se, pois, bem longe do que chamei de “fonte primeira” das criações “órficas”, isto é, de remotas obras declaradas órficas pela tradição. O hinário de que trato acha-se nesse último caso. Além de oitenta e sete hinos dedicados a divindades, esse corpus encerra um proêmio, que seu título define como uma fala de Orfeu ao discípulo Museu. O título cifra-se em um endereçamento, similar ao que se faz no cabeçalho de uma carta: De Orfeu a Museu: Sê feliz, amigo! Os dois primeiros versos desdobram o apelo: Aprende, ó Museu, do rito de sagração A prece principal, de todas a mais sublime. O que o mestre ensina a seguir é uma ladainha. Museu nada diz, permanece silencioso. Um silêncio de página escrita, se é que me entendem. Mestre e discípulo comungam um traço perturbador: tanto quanto Orfeu, Museu se afigura, a nós, modernos, menos real ►► 75 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que suas obras. Delas nos chegaram apenas fragmentos, citações esparsas. Mas não as podemos ignorar. Não é só o título-endereço do proêmio que atribui o texto a Orfeu. Alguns dos hinos sugerem ser Orfeu quem neles fala. A rigor, insinua-se que é sempre o divino poeta quem se dirige aos deuses celebrados, em todas as composições do hinário. Sugerem-no diferentes passagens: se não é ele o místico Boiadeiro (Boukólos) que se apresenta no Hino a Hécate (HO 2) e no Hino aos Curetes (HO 31), não pode ser outro o filho de Calíope que saúda sua mãe tanto no Hino às nereidas (HO 23) como no Hino às musas (HO 76). Mas voltemos ao proêmio. O autor dos hinos órficos inicia seu trabalho lírico de modo dramático: pondo em cena o poeta a quem os atribui. E vestindo sua máscara. Essa atribuição vem a ser o invento fundador de sua poesia. Do ponto de vista histórico-filológico, ele produziu um apócrifo. No entanto, seria injusto considerar seu procedimento uma simples falsificação. Logo se vê o problema: que significa falar de falsificação da obra de um autor mítico? E, se mítico não era, onde encontrar o verdadeiro Orfeu? Seja como for, é inegável que o hinário em apreço constitui um apócrifo. Um apócrifo é, por assim dizer, um plágio às avessas. Ora, cá está o problema: em princípio, todas as obras ditas de Orfeu podem ser se não classificadas como apócrifas pelo menos suspeitas disso. A um cético que peça provas da alegada autoria delas, ninguém poderá satisfazer. No caso de Orfeu, não dá para identificar as produções “autênticas”. Nada tem de incomum a produção de apócrifos ou pseudoepígrafos na Antiguidade, quando a autoria era bem menos considerada do que hoje e valer-se do nome de um escritor ilustre era um meio de garantir-se a atenção de um público difícil. Temos diálogos “de Platão” que o mestre da Academia certamente não escreveu. Temos um pseudo-Aristóteles que o trabalho dos filólogos permitiu diferenciar do estagirita. Mas temos obras de 76 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Aristóteles e de Platão que a crítica histórico-filológica nos garante serem autênticas. No caso de Orfeu, nenhum filólogo, nenhum historiador ousa falar de autenticidade nos mesmos termos. Apenas sabemos com certeza, pela evidência do anacronismo, que certas obras creditadas a Orfeu não podem ser desse personagem remoto, sempre longínquo, por mais que a gente se aproxime dele. O escritor dos hinos órficos — o tardio poeta postulado por nós, seus leitores de agora — não deixa muitas pistas, não dá sinais que efetivamente o identifiquem ou permitam inferir com plena segurança a sua localização no mundo antigo. Sim, poderíamos chamá-lo de “pseudo-Orfeu”. Mas vê-se logo que esse redator (ou redatores?) não visava a pseudonímia como algum de nós poderia fazer: Orfeu não é um nome qualquer, passível de escolha entre outros. Envolve uma pessoa especial, que nosso poeta não inventou, isto é, não industriou do mesmo modo como Pessoa terá criado seus heterônimos. Se excluirmos Orfeu, o poeta fica anônimo. Mais ainda, fica nu de pessoa — e seus versos perdem o sentido. De algum modo, ele incorpora o herói cantor, ou seja, encarna o objeto de sua crença, que sua crença recria. Oculto na clareira dos hinos, o poeta ignoto assume a persona e a autoridade de Orfeu porque lhe dá o crédito da origem última de sua invenção — e porque, ao realizá-la “de novo” (com os versos que lhe escreve), misticamente se identifica com essa impalpável pessoa sagrada: identifica-se com o mestre do mistério, o poeta por excelência. Há mais. Nosso escritor — quem quer que ele tenha sido —, no belo jogo fictício no qual assim se envolve verdadeiramente, faz-se também Museu: identifica-se com o receptor inspirado do discurso mítico, procede como ele e retransmite a lição do mistério. No processo, esse poeta oculto sem dúvida se apropria também do tesouro de diferentes hinos órficos anteriores a sua lavra. O nome que ele assume lhe dá esse direito. Em seu tempo já existia uma vasta literatura creditada a Orfeu e Museu, personagens que eram ligados a uma época muito remota, para além do registro histórico. ►► 77 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O escritor dos hinos se revela oculto por um espelho ambíguo, refletido em duas figuras. É a um tempo Orfeu e Museu, pois assume ambas as imagens, ambas as pessoas: o santo poeta que recita, o poeta santo que escuta. A saudação inicial de Orfeu a Museu faz pensar no texto como uma espécie de epístola mística, uma instrução e um legado. Mas não há distância alguma entre a lição e sua prática. No redator que supomos se confundem o remetente e o destinatário. E com isso ele já está nos dizendo que para fazer-se órfico é preciso seguir-lhe o exemplo: tornar-se Orfeu. E Museu, é claro. O discurso do proêmio tem caráter mistagógico: nele a voz do mestre inicia o excelente discípulo no conhecimento de uma praxe mística. A litania do exórdio vem a ser a “prece principal”, porque ela introduz ao rito onidivino: um rito que envolve todos os deuses. O fluxo das jaculatórias sugere o percurso de um panteão. Os numes evocados entre os versos terceiro e sexto, no que pode chamar-se de moldura da litania, presentificam domínios do mundo: Terra (Gê), Céu (Zeus, Astros), Mar (Posídon) e o Reino Subterrâneo (Perséfone, Deméter). Já quase no fim da litania, no verso quadragésimo terceiro, a invocação de Princípio e Termo consuma a referência a um conjunto divino envolvente, a um cosmo sagrado. A prece augusta mostra-se assim panteológica, tal como o rito a que introduz. Nos hinos, esse rito é marcado pela invocação de oitenta e sete figuras divinas, propiciadas com incensório. Passo agora a falar brevemente do pouco que se sabe, ou melhor, se conjetura, a respeito da época e do local de redação dos hinos órficos. Muitas e diferentes datações já foram propostas, mas hoje há razoável consenso entre os estudiosos a esse respeito: tudo indica que o hinário em apreço terá sido composto entre o II e o V séculos de nossa era: segundo penso, mais provavelmente no segundo, ou, no máximo, no terceiro século. O vocabulário é típico do grego culto do período imperial e mostra coincidências significativas com a linguagem dos hinos mágicos, mas também 78 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 com o léxico da epopeia Dionisíacas, de Nono de Panópolis. O teor dos hinos, a forma de sua construção, o modo como eles se intitulam e seu encadeamento na syllogé sugerem a adequação a uma liturgia mística. Eles dão testemunho de uma piedade pagã que o cristianismo ainda não conseguira estancar, nem absorver. Algumas das divindades menos conhecidas evocadas nos hinos e o material epigráfico que a elas faz referência, assinalando seus lugares de culto, mostram com suficiente clareza que eles devem ter sido compostos na Ásia Menor, em uma cidade grega da Anatólia. O sábio Otto Kern, extraordinário filólogo, a quem devemos a compilação monumental dos Orphicorum fragmenta, formulou uma hipótese que considero muito digna de acatamento. Kern sugeriu que a composição desse hinário se deu em Pérgamo, no círculo místico ligado ao santuário de Deméter. (No ano passado, numa viagem que fiz à Turquia, estive nas proximidades de Pérgamo, mas não pude ir até lá. Tenho agora muitas saudades do sítio que não conheci, pois ele povoa minhas lembranças de estudioso do sonho órfico e das riquezas do pensamento helenístico. Espero em breve caminhar pelas ruínas da cidade sábia e já me sinto emocionado com o encontro impossível de vestígios poéticos numa biblioteca vazia, inteiramente destruída, cujas pedras imantam minha imaginação.) Aqui me falta tempo para defender meu ponto de vista, mas estou convencido de que o hinário a cuja apresentação me dedico é obra de um só autor, um homem culto e religioso, quase certamente um iniciado em mistérios órfeo-báquicos, quiçá um sacerdote de seu círculo místico. A unidade estilística e o arranjo das composições em um todo coerente me convencem de que todos os poemas dessa syllogé foram escritos por um único vate. Não me parece impossível que ele portasse o título misterioso de Boukólos (Boiadeiro) com que se identifica a voz enunciadora do Hino a Hécate. Esse poeta, além de conhecer bem a literatura órfica, era evidentemente versado em filosofia, em particular na estoica, de ►► 79 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que tirou muita inspiração. Erudito, com certeza. Mas de modo algum um puro retórico. Não estava interessado apenas na performance da escritura: hoje está superada a tese de Lobeck, que viu nos hinos órficos o exercício literário de um diletante, destinado a um pequeno círculo cultivado. Chegou-se a crer que algumas das divindades celebradas nos hinos (deuses pouco conhecidos, a exemplo de Mise, Melínoe e Hipta) fossem frutos da imaginação do poeta. Mas a arqueologia e a epigrafia comprovaram que essas divindades eram efetivamente cultuadas na Ásia Menor. Como Dieterich já sustentava, e como hoje autoridades do porte de Fritz Graf e Anne-Frances Morand reafirmam, o hinário em questão por certo se compôs para servir de instrumento a uma liturgia mística. A sábia francesa se empenhou na abordagem da ideologia do grupo religioso que se valia desses hinos, sem dar muito crédito à tese da autoria única (de que, por minha parte, estou convencido). Graf, num artigo precioso, partindo do insight de Dieterich, procurou avançar, buscando na ordem dos poemas os indicativos do processo litúrgico. É uma tese sedutora, embora me pareça que haja lacunas na sua demonstração. Tudo leva a crer que nosso escritor oculto era um religioso sincero. Há fervor em seus hinos, e de sua leitura se deduz facilmente que ele tinha especial devoção por Dioniso. Seus poemas revelam interesse de teólogo, inspirado na tradição mística do orfismo, mas também em obras filosóficas. É bem possível que fosse um aristocrata de Pérgamo, vivendo na época em que Roma já desfrutava da herança dos atálidas e a cidade ostentava em sua acrópole o magnífico altar hoje conservado no Pergamonmuseum de Berlim. Talvez o cristianismo já se aproximasse, mas não era influente, podia ser de todo ignorado naquele meio. Não basta falar desse escriba desconhecido para caracterizar o autor dos hinos órficos. É preciso que se considere o poeta com quem ele se identificou. Impõe-se estudar-lhe a máscara sagrada, a intangível pessoa de Orfeu. Eu já disse que bem poucos estudiosos o consideram um personagem da história. 80 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O mito prevalece na formação de sua imagem. De acordo com a tradição, ele seria um trácio, filho do desconhecido Eagro, ou, antes (segundo acreditava a maioria dos helenos), filho do deus Apolo. Acreditava-se que sua mãe era uma das nove musas. Nos hinos de que falo, essa musa é claramente identificada: Calíope, a Bela Voz. Mas havia quem sustentasse que foi Polínia dos muitos cantares quem o pariu. Tocamos aqui uma contradição original: esse herói grego era trácio, ou seja, um bárbaro. Só para lembrar: a Trácia corresponde a uma região histórica do sudeste da Europa, cujo território hoje se divide entre Grécia, Turquia e Bulgária. Ao leste, confina com o Mar Negro e o Bósforo; a sudeste tem por limites o estreito de Dardanelos e o Mar de Mármara; ao sul banha-se no Egeu. Todo o seu território tornou-se Macedônia quando Felipe II nela estabeleceu a hegemonia de seu povo balcânico, derrotando os súditos de Cersobleptes. Esses trácios já se achavam na área a que deram nome antes da invasão dos chamados citas: uma área atravessada na proto-história pelos helenos em ondas sucessivas no seu avanço para o Mediterrâneo, rumo ao Egeu e à Anatólia. Pelo mesmo corredor passaram, ao longo dos séculos, diferentes povos, entre os quais os hititas, os frígios e (bem mais tarde) os celtas. Pois bem: na visão dos gregos antigos, os primitivos trácios eram selvagens desumanos, de costumes bestiais. Cruéis, sanguinários, brutos, são alguns dos títulos que lhes davam. No entanto, os helenos também afirmavam que o seu poeta semidivino, seu santo músico, procedia desses terríveis bárbaros de duvidosa humanidade, ou pelo menos com eles convivia. Podemos contemplar abundantes imagens de Orfeu na pintura cerâmica grega. Algumas delas mostram o poeta das melodias irresistíveis cercado por feras que o ouvem placidamente. Outras pinturas de vasos mostram Orfeu muito sereno a tocar sua lira, rodeado por guerreiros trácios armados, facilmente reconhecíveis por suas vestes características (enquanto o poeta se distingue por sua roupagem grega). A analogia se impõe. ►► 81 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 A esse mundo bárbaro os helenos costumavam ligar ainda o deus Dioniso, embora também o considerassem grego. A Dioniso devotou-se Orfeu, o filho de Apolo. Na tensão entre os dois irmãos divinos, muito próximos e, todavia, opostos, desenhou-se a tragédia do poeta. Antes de falar dessa tragédia, farei uma aproximação que pode soar muito ousada. Aproximarei Orfeu de outro vate trácio, também mítico, que até pode ser-lhe oposto. Refiro-me a Tamíris. Peço-lhes que voltem por um momento a atenção para uma pintura desaparecida. Graças a um viajante muito atento, ela pode ainda ser contemplada — melhor dizendo, imaginada. Refiro-me a uma obra famosa de Polignoto, a Nekuyia, por ele pintada em um edifício conhecido como o Parlatório Délfico, uma oferenda dos cnídios ao deus oracular. Pausânias, no décimo livro de sua obra (10. 25,1 – 10.30, 9), descreveu esse mural em que o famoso artista figurou o reino dos mortos. No Hades pintado de Polignoto, entre outras personagens heroicas via-se Orfeu, com trajes gregos, sentado em uma espécie de colina, com a harpa em uma das mãos e a outra a tocar os ramos de um salgueiro. O lugar assim representado, diz o periegeta, era evidentemente o Bosque de Perséfone. Do outro lado do salgueiro, um personagem vagamente identificado como Promedon parecia escutá-lo embevecido. Não longe, ainda na mesma seção do mural, via-se Tamíris, cego, com expressão de profundo abatimento, longa barba desgrenhada, a lira quebrada a seus pés. A imagem se reporta a um trecho da Ilíada (Canto II, versos 594-600), em que Homero evoca o desatino e a miséria do músico soberbo: convencido de sua excelência na música, Tamíris desafiou as musas. Narram outras fontes que Tamíris queria como prêmio (se vencesse, como esperava) possuir todas as nove deusas canoras. Segundo Homero, as filhas de Zeus que brindam aos mortais tanto a verdade quanto o engano, tanto a memória quanto o esquecimento, venceram o atrevido e o privaram de sua arte, deixando-o leso, perós. A palavra perós pode 82 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 traduzir a mudez do cantor e de sua lira, mas também outros tipos de lesão: qualifica o cego (Polignoto e Sófocles representaram Tamíris cego) e também o impotente. Duro castigo, com certeza. Mas correspondia a um tremendo sacrilégio. O pintor da Nekuyia délfica aproximou para contrastá-los o poeta santo e o sacrílego. Dá-se, porém, que o contraste, nos mitos, sempre traduz parentesco, por vezes identidade. Tal como Orfeu, Tamíris era considerado filho de musa, ou senão de uma ninfa cujo nome, Argíope, também era dado a Eurídice. Tamíris empenhou-se de modo infeliz num duelo canoro com deusas. Orfeu, segundo Apolônio de Rodes, se envolveu numa espécie de combate musical com fêmeas sobre-humanas, as sereias. (A diferença é que Orfeu foi vitorioso.) Outra semelhança entre os opostos tem colorido trágico: Tamíris foi mutilado por deusas, damas sacrossantas; Orfeu foi dilacerado por damas consagradas, as bacantes. Devo ainda acrescentar outro traço comum aos dois poetas, por certo inesperado. Certas variantes de sua história mítica apresentam Orfeu também como sacrílego. Qual foi o sacrilégio desse semideus? Segundo Pausânias (IX, 30, 6), Zeus o fulminou porque o santo citaredo ousou revelar aos homens os mistérios, o culto dos mistérios. Entendase: inaugurando ritos que prometiam franquear aos humanos a beatitude, uma felicidade duradoura e lúcida nos infernos, Orfeu violou limites zelosamente guardados pelos deuses. Certas variantes também atribuem a essa façanha a sua morte terrível às mãos das mênades. Permitam-me os amigos volver a um ensaio que recentemente publiquei e citá-lo com alguma liberdade. Orfeu era considerado filho de Apolo, o senhor da medida, mas não se pode negar que o excesso o acompanhava. Quando ele cantava (reza Simônides no fragmento 27), as aves do céu voavam em bandos à volta de sua cabeça, e os peixes saltavam a seu encontro desde os abismos do mar. Bestas do campo e feras da ►► 83 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 selva seguiam-lhe os passos, mansamente, fascinadas pelo som de sua lira, pelo esplendor de sua voz, que comovia pedras e árvores, atraindo até mesmo os seres inertes. São imagens de beleza onírica, mas é evidente que essas façanhas desafiam a ordem do mundo, que a subvertem. Ora, para o pensamento religioso dos helenos é sagrada essa ordem, chamada kósmos na sua língua. E dá-se que Orfeu ainda foi mais longe no desafio às leis do Universo: desceu vivo aos infernos em busca da amada, para tentar-lhe o resgate. Poetas latinos como Virgílio, Horácio e Sêneca deleitaram-se em evocar essa passagem tremenda. Segundo eles poetaram, enquanto Orfeu cantava diante de Plutão e Proserpina, logrando comover os inexoráveis a ponto de arrancar-lhes o retorno da defunta, Cérbero, o cão medonho, se calou, a roda de Íxion ficou parada, o abutre deixou intacto o fígado de Títio, as danaides interromperam seu louco trabalho, Sísifo descansou, as Fúrias ficaram serenas, e os impassíveis juízes dos mortos choraram. Em suma, naquele mágico momento a morte se deu por vencida. Mas a esse triunfo espantoso do herói seguiu-se a frustração de uma derrota miserável, pois Orfeu rompeu o compromisso assumido com os deuses das profundezas de não olhar para trás durante a ascensão. É sacrilégio violar as leis dos infernos. O homem divino foi castigado: como Tamíris, perdeu a visão... de sua amada (não há homem apaixonado que não tema essa forma de cegueira); ficou para sempre mutilado de Eurídice. E por conta dessa perda, que um sentimento de culpa multiplicou por dores atrozes, tornou-se indiferente ao amor das mulheres — coisa que equivale à impotência. Em suma, pode-se dizer que Orfeu vivenciou um cúmulo do sagrado, abraçando os sentidos opostos que essa noção assumia no pensamento dos antigos. Foi, a um tempo, santo e sacrílego. Como acima lembrei, havia quem dissesse que seu sacrilégio consistiu justamente na sua obra mística, ou seja, na criação dos mistérios. 84 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ora, existe uma relação profunda entre as maiores proezas de Orfeu: sua catábase e sua invenção religiosa. De tudo quanto podemos vislumbrar a respeito da iniciação eleusina, depreende-se que o percurso noturno do neófito rumo à experiência da epopteia imitava, ou simulava, uma passagem pelo reino infernal, culminando com a visão a um tempo tremenda e gratificante da soberana dos mortos, ou do fruto de suas terríveis bodas. Por outras palavras, algo como une saison en enfer. Explorei temerariamente a relação entre Orfeu e Tamíris, que Polignoto contrastou na sua Nekuya. Devo agora voltar-me para outro vate que a tradição aproximou efetivamente de Orfeu: o seu silencioso ouvinte do proêmio dos hinos órficos. O nome de Museu já o relaciona com as musas. A tradição fez dele um profeta, atribuiu-lhe oráculos: um perito na mântica, nas artes de Apolo. Museu era geralmente considerado discípulo de Orfeu, às vezes dito seu filho e herdeiro de sua lira. Também se acreditava que ele descendia de Selene, a deusa Lua, e tinha por pai Antiofemo. A grande maioria dos estudiosos modernos se inclina a negar sua existência histórica, mas sua figura se fez bem viva na memória dos gregos, ganhou realidade na poesia e na religião dos helenos. Talvez em sua pessoa legendária se tenham combinado traços míticos a lembranças de um grande vate, perdido nas sombras da história. Os nomes de Orfeu e Museu frequentemente apareciam ligados em teogonias que circulavam em Atenas no século VI em meio a grupos místicos. A partir do século V, suas míticas personalidades chegaram praticamente a confundir-se. Os atenienses relacionaram Museu aos seus mais excelsos mistérios: acreditava-se que ele foi hierofante em Elêusis, e havia quem o dissesse eleusino, embora a maioria dos testemunhos lhe atribua a mesma pátria de Orfeu, ou seja, a Trácia. De acordo com o mármore de Paros, Eumolpo, filho de Museu iniciado por Orfeu, instituiu os mistérios de Elêusis. ►► 85 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Segundo observou com muita perspicácia Roxana B. Martínez-Nieto (2000, p. 142), “la pareja Orfeo-Museo presenta múltiples elementos en común y, al mismo tiempo, notables diferencias. Uno y otro parecen representar a Dioniso y Apolo, respectivamente. Mientras a Orfeo se le atribuye caracteres dionisíacos, Museo goza de los dones apolíneos”. Essa dualidade que sua ligação com Museu traduz marca a figura de Orfeu indelevelmente. O filho de Apolo não podia afastar-se de Dioniso. Escutando o que acabo de dizer, meus ilustres ouvintes por certo se lembraram logo de Nietzsche e de sua famosa tese segundo a qual é justamente na tensão entre o apolíneo e o dionisíaco que se desenha o espaço da tragédia. Ora, se é assim, não há figura mais trágica do que Orfeu, o modelo eterno dos líricos. Para comprová-lo, evocarei um drama de Ésquilo, intitulado Bassárides, peça cujo entrecho renomados filólogos se empenharam em reconstituir com base em uma citação de Eratóstenes em seu livro Catasterismos. Segundo essa reconstituição, de volta dos infernos Orfeu passou a dedicar-se unicamente ao culto do Sol, que chamava de Apolo. Mergulhado nessa devoção, acabou por esquecer Dioniso. Por isso as mênades trácias o despedaçaram. Ora, basta lembrar o mito da dilaceração do menino Dioniso pelos titãs para dar-se conta de que Orfeu, assim como Penteu, vivenciou a paixão do deus. Dizia-se que a cabeça de Orfeu esquartejado foi atirada às águas pelas bacantes, mas continuou a cantar. Segundo o poeta elegíaco Fánocles, ela chegou flutuando a Lesbos, onde foi enterrada no templo de Dioniso, enquanto a lira era guardada no santuário de Apolo. Eratóstenes acrescenta que as musas recompuseram o corpo de Orfeu, reuniram seus disjecta membra. Ele foi, portanto, reconstituído pelas filhas da Memória: reMembered, como Tom Hare diz de Osíris. Dioniso é a figura central do hinário, a divindade mais celebrada nele. De um modo geral, as teogonias órficas dão destaque a esse deus, e é constante a ligação de ritos dionisíacos 86 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 com os preceitos e as crenças relacionados à figura de Orfeu. É patente o acordo entre o acervo assim constituído e o background mítico-litúrgico do hinário. Mas faltam referências antigas a essa obra singular. Explicando melhor: em textos antigos abundam referências a várias obras atribuídas ao poeta sagrado. Em muitos textos da era clássica e da Antiguidade tardia aparecem alusões a hinos de Orfeu, por vezes citados em maior ou menor extensão. Mas não encontramos na literatura dessa época nenhuma referência ao conjunto aqui abordado. Só no século XII, na obra do diácono João Galeno, aparece uma alusão suficientemente clara a essa coletânea. Como tudo indica, o diácono a consultou de forma direta num documento que teve à mão. O texto hoje disponível transmitiu-se através de vários manuscritos, de que a maioria encerra também os hinos homéricos, os de Calímaco e os de Proclo. Os trinta e sete códices conservados se distribuem no tempo entre 1450 e 1550. Muitos derivam de um códice hoje perdido, levado de Constantinopla para Veneza por Giovanni Arispa, por volta de 1423. Segundo se conjetura, no documento de que esse códice derivou o filósofo neoplatônico Proclo (410 – 485) teria registrado, ou feito registrar, hinos de sua autoria junto aos homéricos, aos de Calímaco, à argonáutica órfica e, por fim, aos hinos órficos de que lhes falo. João Galeno, ao referir-se ao que chamamos de hinos homéricos, fala em “aromas” e “incensórios”. Ele tinha razão: quase todos os hinos da coletânea em apreço são intitulados assim: Aroma de Céu, Aroma de Noite, Aroma de Protógono, Aroma de Pan. Ou seja, eles trazem no título a indicação de uma oferenda a ser feita com recurso ao turíbulo. Especifica-se em cada caso qual o elemento que deve ser queimado para produzir o perfume conveniente ao deus: o olíbano, que para nós é o incenso tout court, às vezes em grãos, às vezes em polvilho, a mirra, o estoraque, a papoula, a resina do açafrão, favas e ervas aromáticas eram utilizadas de acordo com o cânone. A julgar pelos títulos, algumas divindades ►► 87 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 não eram propiciadas assim (as infernais, de um modo geral). Essa oferenda turiferária devia acompanhar o cântico. Com efeito, tudo indica que os hinos órficos eram cantados, provavelmente com acompanhamento de lira e de flauta, ou de um desses instrumentos, pelo menos. De sua música, não temos registro algum. Resta-nos a musicalidade dos versos, escritos em hexâmetros dactílicos (o metro da epopeia, da teogonia hesiódica, dos hinos homéricos). O hexâmetro presta-se bem à narrativa, mas os poemas em questão não são narrativos. São hinos cléticos compostos de jaculatórias. De um modo geral, eles são de fácil leitura para quem conhece o grego clássico. Os embaraços surgem em passagens em que a tradição manuscrita não é confiável, em que é preciso uma análise filológica antes de decidir pela interpretação mais provável. Naturalmente, para compreender de fato esses hinos, lendo-os na língua em que foram escritos, deve-se estar bem informado sobre a religião grega, de um modo geral, e em particular sobre os cultos de mistério da Antiguidade. Convém que o leitor, além de competente em grego, não ignore a filosofia antiga, nem se ache desinformado em matéria de orfismo. Ajuda muito se tiver algum conhecimento histórico sobre o mundo greco-romano. Saiba ou não grego, o leigo nesses assuntos precisará recorrer a obras eruditas. A versão moderna, se se quer dar acesso aos poemas a quem ignora o idioma helênico, não pode dispensar comentários e notas. Mais uma vez certifico: quem sabe o grego clássico lê facilmente os hinos órficos. A sintaxe não oferece problemas, a construção é paratática e simples. O vocabulário é rico, mas não embaraçoso, apesar da abundância de hápax legómena, isto é, de palavras que, em toda a literatura grega, só ocorrem nesses textos. Dá-se que elas, na maioria, são nomes compostos cujos termos formadores quem domina a língua clássica dos helenos logo reconhece. Mesmo um hápax legómenon não composto quase sempre pode ser logo identificado por sua raiz, pela evocação de seus cognatos. 88 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Eu disse e repeti que quem conhece o grego clássico lê os hinos órficos com certa facilidade. Mas, como sabem os amigos, ler é uma coisa, traduzir é outra. Se não estiver preparado para a compreensão das questões filológicas envolvidas no estabelecimento do texto, se não puder ter acesso ao aparato crítico de boas edições, o tradutor fará um trabalho precário, indigno de confiança. Se não tiver bom conhecimento do acervo geral da matéria órfica, com certeza fracassará, será vítima de grandes mal-entendidos. Caso não esteja munido de informação suficiente sobre a cultura religiosa e filosófica da Antiguidade tardia, do mundo greco-romano e de sua faixa anatólica, perderá nuances e cometerá enganos graves. Não pode ser ingênuo no que toca à literatura desse período. E precisará de habilidade para transpor as diferenças entre códigos semânticos, moldes categoriais e esquemas cognitivos distintos, como são os imanentes às línguas entre as quais tem de navegar. Nesse caso específico, é um grande desafio transpor os jogos estilísticos do original, de textos em que abundam anáforas, aliterações e assonâncias, em cuja construção o procedimento cumulativo, assindético, de justaposição de epítetos tem um valor quase mágico; em que a base métrica cria efeitos musicais difíceis de transpor; em que a sutileza dos engastes míticos nem sempre se deixa decalcar. No português, não temos a mesma facilidade que em outros idiomas para formar compostos, mas sempre podemos recorrer à rica base latina do nosso vocabulário. E nossa língua nos oferece vantagens preciosas: ela tem — sobretudo na forma como a falamos no Brasil — uma rica base vocálica, um tesouro de sonoridades que permite aproximação com o grego solene dos hinos: rica em paroxítonos e proparoxítonos, é uma língua que se presta a enunciados lapidares, mas também permite leveza, consegue tornar-se hierática sem se enrijecer. Isso facilita muito. Mas sabemos que esse belo instrumento precisa ser bem manipulado, e que toda a tradução envolve esforços quase desesperados para aproximar diferentes mundos. ►► 89 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Além do trabalho da tradução, é preciso acudir os leitores com comentários e notas que lhe permitam melhor fruição do texto. Nisso estou empenhado há mais de um ano, e aqui só Regina sabe o quanto ele pode tornar delirante uma criatura. Esse trabalho também me impõe viagens: de vez em quando tenho de ir a São Paulo para consultar, nas bibliotecas uspianas, o Roscher, o LIMC, a Pauly-Wissowa, o acervo do MAE. Da Europa, minha filha Marina me tem acudido copiando textos na Biblioteca de Oslo, a que fiz mais uma breve, mas proveitosa, visita na minha última viagem àquele continente. Graças também a Marina, ano passado estive na antiga Jônia e me embebi das cores mágicas do Egeu. A embriaguez dessas lembranças ajudou-me a clarear a tradução, a enriquecer os comentários. Vou contar-lhes agora, caros amigos, uma ideia maluca que me veio. Penso que o corpo místico de Orfeu é formado por todos os poetas do mundo. Através deles as musas tentam recompor o herói amado. Em vista disso, é a vocês que me dirijo, quando agora lhes digo, concluindo: — Que viva Orfeu! Três poemas órficos traduzidos HO 3. Hino à Noite (Fumigação com tochas) Eu cantarei a Noite, mãe dos deuses e dos homens (Noite de tudo origem, que Cípria também chamamos). Ouve, deusa venturosa, de escura luz, constelada, Que te comprazes, serena, em solitudes sopóreas, Ó plácida, doce amante do transnoitar, mãe dos sonhos, Tu que as angústias apagas e adormeces as dores, Amiga de todos, dadora do sono, auriga 90 ◄◄ 5 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Crepúscula, a retornar intérmina, revolvente, Terrestre e célia de novo, de vultos em leda caça, Que lanças a luz na terra e volves à profundeza Do Hades — pois tudo rege rigor de Necessidade. Ouve, propícia, a voz de quem te suplica E tenebrilhante tange pra longe de nós os medos. 10 HO 31. Hino às nuvens (Incensório de esmirna) Aéreas nuvens, celestiais, frutíferas, Ó geradoras das chuvas, que ao vento correis o mundo, Ó turbulentas, tonantes, fogosas, em vias d’água, Que em atroada nos ares criais um tremendo estrondo A repercutir o ímpeto em convulsão dos ventos, Rogo-vos, mana-rocios, brandas ao sopro das auras: Vertei sobre a madre Terra vossas frutíferas chuvas. 5 HO 38. Aroma dos Curetes (Incensório de olíbano) Curetes dos címbalos brônzeos e de marciais couraças, Celestes, terrestres, marinhos, dadores de rica fortuna, Fecundos sopros de vida, ó salvadores do mundo, Ilustres, no solo sacro da Samotrácia presentes, Que apartais os perigos dos homens no mar vagantes, Vós por primeiro aos humanos mostrastes santos mistérios, Ó imorredouros Curetes de marciais couraças. O oceano agitais, e os mares, e os arvoredos. Como atroais percutindo a terra com lépidos passos, 5 ►► 91 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ao choque de rútilas armas, todas as bestas fogem Do pavoroso estrondo que sobe ao céu, e nuvem De pó que os pés suscitam no impulso de vossa dança Cresce; e no turbilhão todas as plantas florescem. Sois vós imortais demônios, nutrícios e estruidores Pois quando sobre os humanos vos abateis irados A vida lhes arruinais e os bens, e a eles próprios, Por guerra acesa — e o mar profundo soluça E árvores de alta copa tombam desenraizadas, Com o ímpeto a esfolhar-se do raio do céu rompante. Ó coribantes Curetes, potentes e soberanos, Que em Samotrácia reinais, com os Dióscuros junto, Ó sopros inextinguíveis, das almas alento, aéreos, Que no Olimpo sois chamados também de gêmeos celestes, Inspiradores, serenos, propícios e salvadores, Das horas mestres, soprai-nos, frutíferos reis, favônios.* 10 15 20 Ordep Serra é antropólogo, pesquisador, professor, escritor e tradutor, graduado em letras e mestre em antropologia social pela Universidade de Brasília, doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo. Estuda teoria antropológica, etnobotânica, antropologia da religião e antropologia das sociedades clássicas. Publica obras de ficção, pelo que tem obtido premiações nacionais. Palestra proferida em sessão ordinária da Academia de Letras da Bahia, na Sala de Reuniões, em seis de junho de 2013. 92 ◄◄ O PODER ERÓTICO Diário e cartas de Cristina Vasa, rainha da Suécia, e do padre Antonio Vieira Gloria Kaiser D e início, quero falar sobre “um livro para uma cidade”. Em algumas cidades, como, por exemplo, em Chicago e em Berlim, existe uma iniciativa chamada “uma cidade lê um livro”. Para que um livro seja merecedor desse título de honra, é necessário que atenda a dois requisitos: o tema principal do livro tem de girar em torno da respectiva cidade (o herói ou o personagem principal precisa ter uma conexão com a cidade) e, mais importante, o autor do livro tem de ser de fora da cidade. O que se pretende é que alguém com o olhar de fora conte sobre as pessoas, a cultura e a história de uma cidade em particular. No meu livro O poder erótico, todos esses requisitos encontram-se atendidos. Meu livro trata do padre Antonio Vieira e do ano de 1689. Nessa época Antonio Vieira tinha 81 anos de idade e vivia em Salvador, na Quinta do Tanque. Estava trabalhando nos seus famosos sermões e vivia recordando (no meu texto) os cinco anos que passou em Roma (1669-1675), assim como a sua amizade com Cristina da Suécia. Uma amizade que uniu dois seres iluminados da história. A essa amizade devemos vasta correspondência, que com certeza contém algum grau de colorido erótico — o quanto, isto fica por conta da interpretação do leitor. Quanto a mim, essa obra representa um momento muito importante da minha vida profissional como pesquisadora de história, como escritora. Nesse livro eu finalmente dei vazão ao meu amor pelo Brasil, ao meu amor por Salvador. Em janeiro ►► 93 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de 1988 eu vim ao Brasil pela primeira vez, vim a Salvador pela primeira vez. Apesar de tê-la visto e vivenciado pela primeira vez, tanto a cidade quanto as pessoas me foram muito familiares. A minha afeição logo foi correspondida. Além disso, o céu me mandou de presente um conselheiro espiritual, um interlocutor muito especial — o padre Antonio Vieira. Ao começar a pesquisar sobre Antonio Vieira, eu iniciei um diálogo com ele. E trata-se de um diálogo sem fim, já que toda uma vida não é suficiente para ler, interpretar, decodificar e, quem sabe, entender toda a sua obra. Vieira nasceu em Lisboa, no dia seis de fevereiro de 1608. Aos seis anos veio para Salvador, onde frequentou o Colégio dos Jesuítas. Tornou-se teólogo, missionário, diplomata. Em dezembro de 1667 foi condenado pela Inquisição de Coimbra. A sentença determinou que ele fosse privado da liberdade de falar em público e de pregar, além de ser banido para Roma por cinco anos. Em Roma vivia Cristina Vasa, rainha da Suécia. Cristina era uma mulher que guardava em si os extremos. Ela é apresentada como uma mulher que, através de seus atos irresponsáveis, conduziu a nação inteira ao caos. Por outro lado, é admirada como cientista, gênio linguístico e filósofa, o que, entre outras coisas, levou René Descartes a Estocolmo. Até mesmo a sua aparência é descrita de forma dúbia. Fala-se apaixonadamente de uma bela nórdica de lábios carnudos, cabelo castanho-avermelhado e olhos verdes; porém, também, de uma mulher masculinizada, de voz grossa e ombros aleijados. Conta-se que Cristina nasceu em 1626 e que teria sido preparada para sua função de rainha da Suécia através de uma educação baseada em princípios protestantes e patriarcais. Cresceu falando oito línguas e dominava os cálculos astronômicos mais complicados. Era formada em retórica e foi literalmente treinada a conduzir negociações diplomáticas de forma polida. Era destemida nas artes do tiro e da esgrima. Esperava-se dela que 94 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 assumisse o trono, tivesse filhos e conduzisse a grandiosidade da Suécia de então à geração seguinte. Entretanto, todos se enganaram com Cristina, pois diversas experiências traumáticas fizeram com que ela se distanciasse interiormente de seus mestres e procurasse o seu próprio caminho. As limitações desmedidas e as lições impostas a ela eram compensadas interiormente pelo oposto: liberação, liberdade, libertinagem foram conceitos que se imprimiram na sua alma e no seu espírito e que se tornaram o fio condutor de sua vida, conferindo-lhe forças quase titânicas. Quando ela tinha seis anos, seu amado pai, o rei Gustavo II Adolfo, morreu na guerra. Aos oito anos, Cristina conviveu com a loucura da mãe, Eleonora de Brandemburgo, que, em seu amor idolatrado e doentio pelo marido, insistia em não se separar do cadáver. Por essa razão, ele foi enterrado somente um ano e meio após a morte. No quarto ao lado do de Eleonora, no Palácio de Stegeborg, ficava o caixão com o cadáver de Gustavo Adolfo. Cristina era obrigada a cumprimentar o pai morto todos os dias, num ritual cruel. Gustavo Adolfo foi finalmente enterrado, mas Eleonora exigiu que lhe extirpassem o coração, que foi colocado em uma cápsula de ouro, a qual Eleonora mantinha pendurada no dossel de seu quarto. Nessa época Cristina dormia na cama da mãe. Imagine-se a cena: uma menina de oito anos, na cama, em um ambiente escuro, frio, e, suspenso sobre a cama, o coração do pai. Cristina ficou traumatizada. Outro trauma: a guerra devastadora que também levara seu pai não terminava. A matança recíproca de católicos e de protestantes espalhava-se por toda a Europa. Sabemos hoje que Cristina definitivamente influenciou o final da Guerra dos 30 Anos, que afinal terminou em 1648. Na vida particular, Cristina manteve uma amizade especialmente significativa com Ebba Sparre e decepcionou-se amargamente com o jovem diplomata francês Gabriel de Gardier. Depois dessa decepção, Cristina decidiu que jamais se casaria: ►► 95 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 “Jamais serei um campo para um homem arar! E nunca me casarei!” Além disso, decidiu converter-se à fé católica, por encontrar mais espaço para a liberdade espiritual na igreja católica, pois encontrou ali tanto pecadores quanto santos, um Michelangelo e uma Maria Madalena. Para Cristina não havia nenhuma incongruência entre “crer” e “saber”. Ela queria ser uma filha obediente da igreja católica e, simultaneamente, continuar suas atividades como cientista. Apesar de muitas intrigas e resistências, ela realmente traçou o seu próprio caminho. Em 1654, aos 28 anos, abdicou do trono, convertendo-se à fé católica em novembro de 1655, em Innsbruck, na Áustria. Trata-se de um ato inimaginável, um ato único na história da Europa. Fata viam invenient (o destino encontra seus meios e seus caminhos): este era o seu lema — e ela o transformou em realidade. Após a sua conversão, viajou para Roma, onde passou a viver até a morte, ausentando-se somente para algumas viagens. Em 1657, Cristina experimentou a maior crise de sua vida, uma verdadeira catástrofe pessoal. Envolvera-se em uma intriga política, que culminou na sua reinvindicação do trono de Nápoles, e viajara a Paris em 1656 para negociar com Giulio Mazarin. Em Paris, acabou tendo um breve caso de amor com o conde Giovani Monaldesco, o que rapidamente se transformou num relacionamento de dependência do qual somente conseguiu libertar-se com o fracasso da sua missão política napolitana. O final trágico desse relacionamento foi a ordem de execução do conde, dada por Cristina, em novembro de 1657, no Palácio de Fontainebleu. Ninguém na Europa reagiu, ela nunca foi julgada por isso. E devia viver com a lembrança dessa horrível ação. Quando Antonio Vieira chegou a Roma em 1669, Cristina contava com 43 anos. Vieira contava 61 anos. Ela estava firmemente integrada ao tecido social de Roma, havendo sido fundadora da Accademia Reale e cofundadora do Sqadrone Volante (uma associação em defesa da eleição livre do papa), além 96 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de dar apoio a artistas, como, por exemplo, Gianlorenzo Bernini. Interiormente, Cristina era um ser dividido, que não tinha um interlocutor com quem pudesse discutir no mesmo nível. Algumas folhas de papel com cópias de sermões do padre Antonio Vieira eram o vade-mécum de Cristina, e, quando ela ouviu que esse padre teria vindo parar em Roma, imediatamente manifestou ao papa Clemente o seu desejo de que Vieira viesse a ser o seu pregador pessoal. O papa não pôde preencher o seu desejo, mas — fata viam invenient — encontrou os meios e um caminho. Na escuridão da noite, o padre Antonio Vieira passeava do Palácio dos Anjos ao Palazzo Riario, onde aprendia italiano com Cristina e onde eles conduziam as suas discussões. A correspondência entre eles retrata dois seres humanos em sofrimento, ambos tentando vencer as suas próprias batalhas interiores. Antonio Vieira tinha em mente viver uma vida de obediência, servir obedientemente à sua ordem, entretanto não conseguia de forma alguma calar-se diante de injustiças, de exploração, de decadência moral. Por essa razão a Inquisição “fechou-lhe a boca”. Cristina queria viver uma vida de cientista, livre e só. No entanto, subestimou a força do poder erótico. Foi só através do caso Monaldesco que ela se deu conta de quão intensa e elementar pode ser a ação do poder erótico. O padre Antonio Vieira definiu o poder erótico (a força, o elemento vital que Cristina subestimou): Quando sondamos até as últimas consequências tudo aquilo que nos desviou de nosso caminho, nós nos vemos nus e descobertos; então devemos refletir sobre todas as besteiras de nossa amoralidade. Nós devemos sempre ponderar: a luta contra o poder erótico não pode ser vencida, pois dessa forma estaremos lutando contra a própria vida. Quando nos rendemos a um poder assim — e isto nunca acontece sem a nossa vontade — temos de aprender essa difícil lição. Temos de lutar contra o nosso orgulho, pois ele bloqueia todos os caminhos para o nosso eu verdadeiro. O ►► 97 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 poder erótico só pode ser domesticado pelo espírito. Nós temos de rezar e lutar para que o poder erótico se transforme em força para nosso espírito. Ou ainda: Nada resta para tais pessoas durante o tempo de purificação senão sua voz interior. É preciso encontrar as palavras. Nós sabemos que por meio das palavras podemos superar tudo; com palavras nós vencemos qualquer escuridão, pois nada é mais forte e poderoso que a palavra. Nós podemos confiar que atrás da escuridão moram a luz e o amor. Para tanto, primeiro é necessário atravessar o inferno, e nós não podemos criar um atalho para esse caminho. Temos de atravessar cada uma das câmaras do nosso inferno interior e devemos permanecer em silêncio; silenciar até que tenhamos superado a escuridão. Dirigindo-se a Cristina: Minha querida Cristina, uma cama jamais deve ser mais larga do que três palmos; além disso, durante o sono, devemos manter nosso corpo reto e todas as nossas forças se deslocam para a nossa alma, para o nosso espírito, que acendem uma luz dentro de nós. Ela nos indicará o caminho. Mas é claro que eu não estou lhe escrevendo para censurar a sua cama. Eu quero dar o valor exato para o nosso abraço de ontem. “Às vezes me faz falta o cheiro de pele”— disse-me você — posso tratá-la de você, não é? — e tem razão. Se nos foi ordenado caminhar pela treva, devemos então, apesar disso, aceitar o reconforto de sentirmos um outro por alguns momentos. Uma segunda pessoa ameniza todo sofrimento. Que benção nos foi concedida, Cristina, pois sabemos que a nossa amizade foi selada com nosso abraço. 98 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Cristina responde: Antonio, eu não quero fazer nada que possa abalar a nossa amizade. Na nossa amizade não existe aquele que manda e aquele que serve; o que existe é uma unidade: em nossas conversas, em nosso silêncio, em nosso abraço. Quaisquer que sejam os acontecimentos e abalos que estejam por vir, eu persistirei e me manterei firme, pois a graça da nossa amizade e do nosso amor não me foi vetada; eu apenas a testemunho e assim me fortaleço por tudo o que ainda está por vir. Sempre sua, Cristina. Outros trechos das correspondências remetem ao assunto: Cristina, ambos estamos confusos — provavelmente permanecemos muito tempo em silêncio, de tal modo que finalmente nossos corpos tomaram a palavra e com isso, por momentos, fomos resgatados da solidão. Mas nós dois sabemos que é nosso destino caminharmos sozinhos. Cristina, nós sabemos agora que o céu não nos privou de nada e, portanto, a paz deve nos envolver. Querida Cristina — às vezes você quer fugir. Para onde? Não existe distensão e esquivamento, nós temos de cuidar de nossa missão, e sua missão é Roma. Para a nossa alma restam imagens de lugares de refúgio para respirar. Quando em minha cela, com o frio, o sangue para de correr, eu me refugio no céu tropical da Bahia e afundo o meu olhar no azul; ali permaneço por vezes durante horas, até que no meu céu tropical cintilem estrelas. Com isto eu abrando minha saudade. Querido Antonio, você me ajudou a aceitar a mim mesma. Você me ajudou nas palavras; você me ajudou a contar tudo sobre minha sombra. Eu vivo como culpada entre não tonsurados, eu vivo como culpada entre não culpados. ►► 99 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Você me explicava: o meu horror se tornaria maior ao longo dos anos; por conseguinte, a minha verdade iria me livrar do juízo arrogante e leviano sobre outros. Como eu a compreendo bem, Cristina! Também eu, às vezes, formulo perguntas: por que justamente agora, depois de ter findado a sexta década de minha vida? E agora — você percebe em minha caligrafia que eu interrompi esta carta por algumas horas — eu me esforço para encontrar as palavras certas: jamais desejamos cair em uma paixão destrutiva. A paixão transforma-se muito rapidamente em fogo-fátuo. Antonio Vieira também se manifestou em relação às circunstâncias reinantes em Roma — escreveu um discurso que foi traduzido para o italiano por Cristina: Em meu discurso sobre São Roque, este santo especial, que curou e consolou os doentes da peste, eu não citei dois aspectos da peste moral: pouca fé — pusilanimidade — e muita fé, confiança excessiva. A peste, a pior desgraça para os homens. No entanto, a peste é uma epidemia que não só arrebata corpos. A peste se move sorrateiramente em uma comunidade, em uma cidade, em um país; ela infecta tudo e mata todos. Quando o governo, a ciência, a religião, o conceito de moral são infectados pelo germe da peste, isso pode conduzir ao declínio dos homens. Peste significa catástrofe, significa decisões errôneas, catastróficas, que se disseminam como uma doença contagiosa, como uma epidemia. Saiamos e curemos — disseminar o bem pelo contágio! E Antonio Vieira sempre lembra: Nós sabemos que com palavras superamos tudo, com palavras podemos vencer qualquer escuridão, pois nada é tão forte e poderoso quanto a palavra. 100 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Isso me faz pensar em Sigmund Freud, que 230 anos depois de Vieira, em 1890, iluminou o fundo das almas com as suas análises de palavras. Tanto Antonio Vieira quanto Sigmund Freud procuraram impiedosamente a verdade. A comparação é audaciosa, eu sei disso, mas trata-se aqui de ciência e de assistência espiritual, que andam de mãos dadas, e vemos, antes de tudo, quão limitada a ciência é quando o assunto são os problemas e as angústias que moram no fundo da alma de cada um de nós, “pois nada tem tanta força quanto a palavra”, isto é certo. Entretanto, a análise fria e científica não nos ajuda a desatar os nossos nós interiores — como sofrimento, culpa, solidão. Para tanto, nós precisamos de consolo, de esperança, o que encontramos em Antonio Vieira, “pois atrás da escuridão encontra-se a luz”. Os textos de Sigmund Freud eu conheço bastante bem, eu admiro Freud como escritor, no entanto o meu conselheiro e filósofo pessoal, o meu consolador e mestre é e continuará sendo Antonio Vieira. Volto a Antonio Vieira e Cristina Vasa. Em maio de 1675, o padre Antonio Vieira definiu num discurso na Accademia Reale sua posição em relação a Cristina: Santidade, confesso minha amizade com Cristina Vasa da Suécia, confesso que a atenção dada por mim a essa mulher não diminuiu minha atenção dada a Deus, e que ao contrário a fortaleceu. Reconheço igualmente que sem a atenção de Cristina eu não teria sobrevivido os cinco anos passados sem danos à alma e ao espírito. Essa manifestação chocou o papa, que imediatamente mandou que Vieira silenciasse sobre o assunto. Não se falou mais sobre a amizade de Antonio Vieira e Cristina, e todas as provas foram trancadas em caixas. Poucos dias depois da confissão de amizade por Cristina, em maio de 1675, o papa Clemente IX libertou o padre Antonio Vieira pessoalmente de toda a culpa e da proibição de pregação e de trocar ideias. ►► 101 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ainda em maio de 1675, antes da partida de Roma, Vieira escreveu: Querida Cristina, Única! Silenciar e apagar são o que eles tentarão fazer. Eles farão tudo para silenciar e ocultar para a posteridade o que vivenciamos juntos no período de quase seis anos. Eles não conseguirão fazer isto, jamais. Em abril de 1689, catorze anos depois da sua partida de Roma, Antonio Vieira recebe uma carta de Cristina: Querido Antonio. É dezembro de 1688, um dezembro ameno em Roma, e nestes dias do ano de 1688 eu completei 62 anos de idade. Você conhece a minha profunda aversão à perda das forças, ao processo de envelhecimento. Agora estou justamente aprendendo esta lição. Algumas semanas atrás o papa Inocêncio XI visitou-me em Riario; e ele formulou um convite: “O padre jesuíta Antonio Vieira está convidado para vir a Roma! Padre Antonio morará por um ano na Companhia dos Jesuítas em Roma como padre livre, pregará na igreja, discursará nos círculos científicos.” Querido Antonio, venha para Roma! E Antonio Vieira responde: Querida Cristina, Única, eu lhe agradeço pelo gesto magnânimo do convite. Cristina, eu poderia ir e viajar, em sua ou em qualquer outra direção do céu, contudo eu não vou fazer isto. Cristina, nós sabemos que em nós a melancolia inestancável está vinculada com o fato de ser aceito — por outro, por uma comunidade. Você só desejava pertencer a si mesma, e eu desejava pertencer somente ao céu (somente a Deus). Nos anos em que se era mais jovem, a renúncia à vida em comunidade era mais fácil. No entanto, com o passar dos anos, com o 102 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 enfraquecimento físico, a necessidade de ser aceito torna-se mais forte. Quando retornei a Salvador, em maio de 1681, triste e abandonado, eu estava convencido de que se repetiria em mim o destino de São Roque. Através de orações, eu já havia me preparado para conformar-me em receber o golpe inflexível — “quem é você, nós não o conhecemos”. Contudo, para mim, algo diverso estava previsto, pois em Salvador as pessoas diziam para mim: “Você está aí, padre Antonio, venha, nós o conhecemos!” Com a minha chegada em Salvador, com o fato de ser aceito pelas pessoas de Salvador, aos 73 anos de idade, eu experimentei todas as graças da minha missão de vida: consolo, benevolência, serenidade, paz e confiança. Eu nunca mais deixarei esta cidade — Salvador — e seus habitantes. E isto eu faço espontaneamente, pois ninguém me tolhe o caminho, não importa para onde eu queira me dirigir. O que pesa mais em nossa etapa de vida avançada — amor por uma pessoa ou amor por um lugar? Qual dor é a mais suportável? Não conseguimos fazer uma opção a este respeito, nós podemos apenas nos deixar dirigir pelo céu. E eu fiz isto. A saudade me atormentará, eu sofrerei enquanto viver, mas para mim não há outro caminho — eu fico aqui em Salvador. E agora, nem mais uma palavra, tudo é muito doloroso. Em gratidão e amor infinitos, seu Antonio. Contudo, em uma previdência sábia, quando partiu de Roma, em maio de 1675, Antonio Vieira deixara uma carta ao papa com um pedido: Quando Cristina Vasa vier a falecer, ela deveria ser sepultada na Basílica de São Pedro, na Grotte Vecchie, entre os papas. Esta mulher extraordinária, que para mim significa muito mais do que a justiça terrena me concede, estaria deste modo próxima à imortalidade. ►► 103 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Cristina faleceu no dia 19 de abril de 1689, com 63 anos. Antonio faleceu no dia 18 de julho de 1697, com 90 anos. Antonio Vieira e Cristina Vasa da Suécia, uma amizade inigualável. Dois seres iluminados, cujas chamas continuam com o mesmo vigor até os dias de hoje.* Gloria Kaiser, austríaca, é historiadora e escritora brasilianista, havendo publicado diversos livros sobre temas da história do Brasil, como Dona Leopoldina: uma Habsburgo no trono brasileiro, e Pedro II do Brasil: filho da Princesa de Habsburgo. É membro correspondente da Academia de Letras da Bahia, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e do Instituto Genealógico da Bahia. Palestra proferida em sessão ordinária da Academia de Letras da Bahia, na Sala de Reuniões, em 27 de novembro de 2012, seguida do lançamento do livro O poder erótico: diário e cartas de Cristina Vasa, rainha da Suécia, e do padre Antonio Vieira (Rio de Janeiro: Reler, 2012). 104 ◄◄ POR QUE O MENINO MOZART BRINCAVA COM OS SONS? Urania Tourinho Peres H á 250 anos, em 27 de janeiro de 1756, nasceu em Salzburg o menino Mozart. Uma criança cujo brinquedo preferido, ao que tudo indica, era jogar com os sons. Ao contrário de outras crianças, que também gostam de brincar com os sons, o menino Mozart acabava por produzir, sem que intenção tivesse, é o que supomos ao menos inicialmente, peças para violino e cravo, ainda aos cinco anos de idade. É bem verdade que seu pai, Leopold Mozart, era músico e, muito cedo, quando o filho contava quatro anos de idade, o fez aprender a tocar cravo. A criança tornou-se o que chamamos criança prodígio. O menino tocava com grande mestria e, segundo dizem os biógrafos, até com o teclado coberto, mas se um gato aparecia na sala, animal de sua predileção, era capaz de abandonar o teclado e sair a saltar com o pequeno animal. Podia igualmente, como é comum entre as crianças, transformar um pedaço de pau em cavalo e ficar galopando, enquanto o instrumento musical o aguardava (BARRINGTON apud SOLLERS, 2001, p. 54). A presença da música, todavia, lhe era indispensável, mesmo quando brincava. Segundo relato de Schachtner, trompetista da corte, se não havia um instrumento para acompanhá-lo nos jogos ele pedia que houvesse o canto. “Quando levávamos os brinquedos de um quarto para o outro, aquele de nós que não carregava nada tinha de cantar uma marcha ou tocar uma flauta” (ELIAS, 1991, p. 70). Procurar as terças no piano era um grande ►► 105 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 divertimento e “nada o fazia mais feliz do que quando encontrava um acorde harmonioso” (STENDHAL, 1815, p. 14). A criança prodígio surge frequentemente na música, o que nos leva a interrogar por que a precocidade se apresenta especialmente nesse domínio. Também encontramos na matemática essa precocidade, mas a relação entre a música e a matemática é estreita. A produção musical, no entanto, não contém a pureza da abstração matemática, ou seja, é sempre um campo aberto para que possamos projetar sentimentos e pensamentos. A música chama à significação. É um polo de atração para as fantasias, ainda que não seja essa a sua intenção. A música instrumental, não acompanhada de um recitativo, carece de significação. A análise do fenômeno musical pode nos fornecer informações preciosas sobre a relação da criança com os sons, um enriquecimento para a compreensão da maneira como a entrada no mundo simbólico se efetua, com a presença e a prevalência da pulsão invocante. É verdade que Salvador Dalí, ainda bem pequeno, desenhava figuras de animais, retirando a pintura de uma mesa, chamando a atenção da mãe para a sua habilidade com o desenho, contudo suas produções desse período não se transformaram em obras de arte. Na música, a presença da precocidade do talento, sobretudo no intérprete, não é incomum. A irmã de Mozart também gozou dessa excepcionalidade como intérprete, e dizem que nessa categoria foi melhor que ele. A diferença entre o intérprete e o criador é bastante acentuada. A dinâmica psíquica, bastante distinta. Aos oito anos de idade, Mozart viaja para a Inglaterra e surpreende de tal maneira, que o magistrado inglês Daines Barrington se empenha em investigá-lo. Comunica-se com Salzburg para ter certeza de sua data de nascimento e elabora um relatório que envia à Sociedade Real de Londres. Wolfgang causa admiração pela rapidez com que lê partituras à primeira vista. 106 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Apenas põe a partitura sobre a carteira, ataca o prelúdio como um maestro, fiel à intenção do compositor no andamento e no estilo. [...] Sua voz tem um timbre fraco de uma criança, mas canta de maneira magistral e inigualável. Seu pai, que faz a voz grave, desafina uma ou duas vezes, ainda que esta não seja mais difícil do que a voz aguda. O menino demonstra, então, certo descontentamento, aponta os erros com a mão e ajuda seu pai a encontrar o caminho [...]. Ao terminar o exercício, aplaude a si próprio em razão de seu êxito e pergunta com vivacidade se não tenho outras partituras. (SOLLERS, 2001, p. 53.) O que entusiasma Barrington é a capacidade do menino ler, a rapidez com que efetua pela primeira vez a leitura de uma partitura. No nono capítulo de A proposição do fundamento: da physis à razão pura, Martin Heidegger fala de Mozart e introduz a seguinte citação, que diz ter sido retirada de uma carta do músico: Enquanto viajo, por exemplo, de carruagem, ou após uma boa refeição, enquanto passeio, ou à noite, quando não consigo dormir, é quando me vêm as melhores ideias, quando elas brotam em balbúrdia. Guardo comigo aquelas de que gosto e não as deixo de cantarolar para mim, ao menos se acreditamos no que dizem os outros. Quando as tenho de cor, o resto vem rápido, uma coisa atrás da outra; penso onde poderia utilizar o fragmento para fazer uma composição completa, seguindo as regras do contraponto, os timbres dos diversos instrumentos etc. Minha alma, então, se excita, ao menos quando não sou interrompido. A ideia cresce, eu a desenvolvo, tudo se torna cada vez mais claro, e o fragmento está quase concluído na minha cabeça, mesmo que amplo, de modo que, em seguida, posso de uma só vez vê-lo em minha imaginação como um belo quadro ou uma bela escultura. Quero dizer que, na minha cabeça, eu não escuto uma ►► 107 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 parte atrás da outra na ordem em que elas deveriam encadear-se; eu as escuto todas juntas, ao mesmo tempo! Instantes deliciosos! A descoberta e a colocação em prática ocorrem em mim como num belo sonho, com muita clareza. Porém, o mais belo é ouvir tudo ao mesmo tempo. (HEIDEGGER apud SOLLERS, 2001, p. 40.) Heidegger diz citar essa passagem para afirmar que ouvir é ver. “Ver o todo de uma só vez” e “ouvir tudo ao mesmo tempo” são um mesmo ato. Essa constatação nos conduz ao intricar pulsional entre escutar e ver, bem como nos envia à dimensão de leitura da escuta psicanalítica. É interessante, por exemplo, compararmos essa afirmativa de Mozart com o que escreve Leonardo da Vinci, outro gênio, em seu livro de anotações sobre a pintura e a música: [...] tudo o que existe no Universo, em essência, aparência, e na imaginação, o pintor tem primeiro na mente e depois na mão, e todas as coisas são de tal excelência, que podem apresentar uma visão proporcionada e harmoniosa do todo, podendo ser vista simultaneamente, de uma só vez, assim como as coisas na natureza. [...] A música pode ser chamada de irmã da pintura, pois ela é dependente da audição, o sentido que vem em segundo lugar, e sua harmonia é composta da união de suas partes proporcionais soadas simultaneamente, subindo e descendo em um ou mais ritmos harmônicos. (Da VINCI, 2004, p. 164-165, nota 460.) Tanto o músico quanto o pintor falam de uma antecipação — na cabeça, para Mozart; na mente, para Leonardo — e de uma percepção do todo, a partir do qual o processo criativo se desenvolve, ou, ainda, que essa capacidade de captação da totalidade já é o próprio ato de criação. Para Mozart, nem sempre era necessário passar de imediato para o papel. O que ele criava podia simplesmente ser guardado na cabeça. Também a simples 108 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 audição, num só golpe, sem ler a partitura, mas fazendo a leitura da escuta, não o impedia de tocar com exatidão o que havia sido escutado. Às vezes, contudo, necessitava do teclado para traduzir o que já estava escrito em seu pensamento. É dele esta afirmação: Não posso escrever um poema: não sou poeta. Não posso arrumar minhas frases artisticamente, de modo que disseminem a sombra ou a luz: não sou pintor. Tampouco posso expressar, por meio de gestos e pantomimas, minhas ideias e meus sentimentos: não sou bailarino. Mas posso fazê-lo graças aos sons: sou músico, Musikus. (MOZART apud SOLLERS, 2001, p. 60.) A sua relação com os sons é o que se encontra em jogo. Trata-se, portanto, do que nos interessa: uma escritura que não joga com o alfabeto. A nota musical produz leitura de som; na sua relação com outras notas musicais, frases se constituem obedecendo a leis, porém a leitura dessas frases não nos conduz, necessariamente, como na literatura, a enquadrá-las num imaginário. Como na pintura abstrata, somos exigidos a um exercício de contemplação sem suporte do imaginário, mas de estreita vinculação entre o simbólico e o real. A questão que nos propomos é menos a de compreender o fenômeno da genialidade do que a de tirar dele algumas informações e conclusões importantes para o campo psicanalítico. Assim sendo, não somos nós que interpretaremos Mozart; na verdade, partimos da certeza de que a precocidade desse menino traz algo de enigmático e que escapa à nossa compreensão. Uma entrada no universo simbólico por um caminho que é vedado à maioria. Não me agrada recorrer à psicopatologia para encontrar explicações que, eventualmente, poderiam ser plausíveis, mas seguramente enganosas. Nada é mais redutor da condição humana que os clichês diagnósticos. Norbert Elias, em seu livro Mozart: sociologia de um gênio, menciona ►► 109 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 um diagnóstico de psicose maníaco-depressiva para entender o genial Amadeus, mas o que, de fato, nos diz essa etiqueta sobre o seu talento criador? Nada. Se formos à sua biografia, encontraremos um pai que, para alguns, portava algo de ditador; para outros, era amoroso e entusiasmado com o filho; e para outros, ainda, não passava de um empresário em busca da própria realização, não apenas de músico como também financeira, por meio de Wolfgang. Uma mãe linda e zelosa, porém pouco atuante, que o acompanhou em sua viagem a Paris, onde faleceu, e produziu no filho um trabalho de luto que resultou na fantástica K310. E ainda uma irmã talentosa, intérprete, que o acompanhou em muitas tournées. As suas paixões, seu casamento, as disputas com o arcebispo, a luta pela independência como músico, sua alegria e suas diabruras, sua ânsia de reconhecimento e amor, que o levava a interrogar repetidas vezes se era amado, sua alma sensível, enfim, uma história de vida que é fascinante, mas, de fato, não nos responde sobre o porquê de sua genialidade. Com efeito, as biografias são muitas e cada biógrafo tenta reconstruir o seu próprio personagem, seu próprio Mozart, inspirado em fragmentos da vida ou numa extensa correspondência em que ele fala de sua genialidade, sua força criativa, mas nada revela de por que ele se tornaria o que foi. Ele próprio constata seu espanto em face disso. Segundo Stendhal, autor de uma pequena biografia sobre o músico, “o jovem Mozart acreditava firmemente que executar um concerto e fazer um milagre eram a mesma coisa” (STENDHAL, 1815, p. 16). São especulações válidas, pois necessitamos sempre preencher a novela de cada um, ocupar o vazio do enigma. Ao entrar em contato com a música, Mozart quase abandonou todos os outros divertimentos. Também os números o fascinaram e, “enquanto aprendia a fazer contas, as mesas, cadeiras, paredes e até o chão ficavam cobertos de números que escrevia a giz” (STENDHAL, 1815, p. 16). 110 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Sobre o homem Mozart sabemos alguma coisa, porém sobre o fenômeno Mozart é difícil saber... Mas o homem desapareceu tão completamente, que mesmo a certeza de um lugar onde repousariam seus restos mortais lhe foi negada. Onde há uma lápide, um nome e uma data que marcam a existência vivida, vê-se uma construção arbitrária, mais dirigida à genialidade do que ao simplesmente homem. Mozart foi enterrado numa vala pública. Seu túmulo é um tributo à imortalidade, que lhe foi conferida por sua força criativa. Sua música permanecerá sempre viva e nos entusiasmará sempre e cada vez mais. Freud falou pouco sobre a música, sendo explorada, excessivamente, uma suposta aversão de sua parte a essa manifestação artística, o que não cremos. O que ele nos disse, e creio ser essa uma afirmativa importante, é que a música constituía-se para ele num enigma que o afetava demasiadamente pelo fato de não poder dominá-la pela razão. Falou com sabedoria. Somos informados por seu filho Ernest, contudo, de que Mozart era o seu preferido. Se Freud apreciava Mozart, é porque ele sabia sobre música, apenas nada disse, e, quem sabe, por trazer a sabedoria de que sobre a música não há dizer a ser dito. Não existe uma música que possa dizer o que é a música, e as palavras, em sua tentativa, fracassam. Em carta de 16 de junho de 1931, Stefan Zweig escreve a Freud e lhe envia cartas de Mozart: Enquanto “conhecedor dos altos e baixos”, o senhor não considera totalmente supérflua, eu espero, a tiragem fora de comércio em anexo, que eu só transmito a um círculo dos mais restritos: as nove cartas de Mozart com 21 anos, das quais eu publico uma aqui in extenso, esclarecem com uma luz muito particular, no plano psicológico, a sua vida erótica, que mostra mais infantilismo e paixão pela coprolalia do que em qualquer outro grande homem. De fato, haveria aí um estudo interessante para um de seus alunos, pois todas as cartas sem exceção giram em torno do mesmo assunto. (FREUD & ZWEIG, 1991, p. 82.) ►► 111 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Freud responde 19 dias depois: Obrigado pela tiragem fora de comércio! O fato de que Mozart apreciava e cultivava o “som das porcarias” me era conhecido, não sei mais de onde. Não há nada a opor à explicação que você dá. Observei, analisando vários músicos, um particular interesse, e que remonta à sua infância, pelos barulhos que se produzem com os intestinos. Será que se trata de um dos aspectos de seu interesse geral pelo mundo sonoro, ou será preciso pensar que entra no dom pela música (que nos é desconhecido) um forte componente anal? Deixo a questão em suspenso. (FREUD & ZWEIG, 1991, p. 82-83.) Cartas preciosas para um psicanalista. É interessante lembrar também que foi por intermédio de Zweig que Salvador Dalí encontrou-se com Freud, que dizia não poder compreender o fervor que os surrealistas lhe devotavam. Ainda que Freud não tenha analisado as cartas, como pretendia Zweig, ele não deixou de fazer uma importante observação, ao situar nos ruídos do corpo o interesse pelos sons e, posteriormente, pela música. A psicanálise, por meio de sua teoria das pulsões, em especial o desenvolvimento que lhe foi dado por Jacques Lacan, que acrescentou às pulsões destacadas por Freud a escópica e a invocante, assinalando ser esta a mais próxima do inconsciente, permite-nos desenvolver algumas hipóteses1. Arriscamo-nos, então, a afirmar que a música é das construções humanas a que maior proximidade mantém com o inconsciente, e talvez por essa razão seja tão enigmática no efeito que produz. Se em nossa fala manejamos com significantes que mantêm uma relação preestabelecida com o significado, em sua remissão a um referente, na música os sons gozam de absoluta liberdade, enquanto puro som. Talvez possamos afirmar um estado nascente do significante antes da domesticação da língua 112 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 materna. Para Stravinsky: “Se, como é quase sempre o caso, a música parece exprimir algo, é apenas uma ilusão e não uma realidade” (STRAVINSKY, 1936, p. 70). Quanto a isso, vale lembrar que a música está presente entre os animais, pois os pássaros cantam, porém deixaremos de lado essa questão. Os animais cantam, mas não possuem voz. O primeiro contato do embrião com o mundo externo se realiza pelos sons, em especial os da fala materna. A sonoridade da voz materna, a “sonata materna”, favorece, já de maneira decisiva, a entrada do bebê num mundo de harmonia significativo da presença de uma lei que posteriormente se configurará como a submissão às leis do simbólico, ao universo da linguagem. Essa harmonia, contudo, também pode faltar e produzir seus efeitos. Assim sendo, é provável que a proximidade do inconsciente e a sua característica de ser o veículo de primeiro contato com o mundo externo justifiquem que a precocidade da criança se apresente na música, no manejo dos sons que envolvem o embrião. Todos acompanham o desenvolvimento do balbucio de um bebê e percebem o caráter lúdico que ele desempenha em seu desenvolvimento, assim como a possibilidade da emissão de todos os sons. Está provado, pelas pesquisas psicológicas, que nascemos com aptidão para qualquer língua. Mas o que levaria alguns a conservar, mais ou menos, essa riqueza na emissão sonora, assim como a excelência de captação e a possibilidade de reprodução dos sons ouvidos? A ideia que nos surge é que algo acontece que tapa nossas bocas e fecha nossos ouvidos. Mozart sabia distinguir, e indicar, as menores diferenças entre os sons; e qualquer som errado, ou apenas rude e não doce produzido por algum acorde, era uma tortura para ele. Foi por isso que, durante sua primeira infância, e mesmo até a idade de dez anos, teve um horror invencível ao trompete, que servia unicamente para acompanhar ►► 113 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 uma peça musical; quando o instrumento lhe foi mostrado, teve quase a mesma sensação que, em outras crianças, provoca uma pistola carregada que se vira contra ela. O pai acreditou poder curá-lo desse horror fazendo o trompete soar em sua presença, apesar dos pedidos do jovem Mozart para que não o fizesse; ao primeiro som ele empalideceu, caiu no chão e, visivelmente, teria tido convulsões, se o pai não tivesse parado de tocar. (STENDHAL, 1815, p. 21.) A criança prodígio vê acrescentarem-se ao seu jogo musical os qualificativos de obra de arte ou de grande intérprete. É o Outro que lhe confere esse estatuto. Mas não lhe confere ao acaso. A sua produção insere-se já numa categoria que lhe dá esse estatuto. E, seguramente, por certa particularidade no funcionamento pulsional. Para a psicanálise, o conceito que procura uma compreensão do fenômeno artístico é o de sublimação. Pouco explorado na obra publicada de Freud, que teve um texto inteiramente dedicado a desenvolvê-lo, mas foi perdido, recebeu da parte de Lacan atenção especial. Enquanto Freud acentuou o caráter de desvio da pulsão sexual para outros fins, Lacan centrou a leitura desse conceito em torno do vazio e, consequentemente, de um real impossível de ser dito pelo simbólico. Um vazio que o mundo das representações não preenche, mas é constitutivo da nossa condição de humanos e nos estrutura. Fruto de uma precoce relação com a mãe, marcada por um excesso ou uma carência, contudo sempre impossibilitado de ser traduzido pelo universo da linguagem. Lacan denominou esse vazio, que sempre nos compele a preenchê-lo, de das Ding, a Coisa. Um espaço ou lugar permanentemente projetado, mas nunca alcançado. E é nessa direção que Lacan situa o impulso criador e a arte. Uma transformação do objeto, exemplificada por ele mediante o objeto do colecionador, que pode ser simplesmente uma caixa de fósforos, ou ainda pelo amor cortês, no qual 114 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 a mulher é tida como inatingível e sublime. Há, portanto, uma “elevação” do objeto, e daí a definição da sublimação como a elevação do objeto à dignidade da Coisa. Tal leitura da sublimação fica muito evidente nas chamadas artes visuais, em que acompanhamos, por exemplo, Marcel Duchamp transformar um urinol em objeto de contemplação em museu. A música enquanto manifestação artística introduz uma complexidade, parece-me, que toma outro caminho, outra via na compreensão da sublimação, e talvez por isso ela seja considerada a mais sublime das artes. O fenômeno é de outra espécie. Olhar ou pintar um quadro, ler ou escrever um romance, ouvir ou compor uma música marcam diferenças no circuito das pulsões escópica e invocante. Na música, o que está em jogo é, sobretudo, a invocação: o som e sua escuta. Existe, não obstante, o que é chamado de “ouvido absoluto”, um ouvido que não apenas escuta, mas, ao mesmo tempo, faz a leitura da partitura, conformando, portanto, uma escuta que implica o intricar pulsional escópico e invocante. Uma escuta que contém uma leitura, efetuada pela escuta. De volta a Heidegger: ver o todo, ouvir a totalidade, uma mesma coisa. A poesia mantém proximidade com a música. A poesia, em verdade, é uma escrita, um uso da palavra em que a sonoridade segue na frente da significação. A significação importa pouco ao poeta, uma vez que ele cria sentidos novos, ou simplesmente ignora os já convencionados. Ainda no ato de escrever poesia, cremos que a invocação predomina, pois ela está intimamente ligada à música. Do poeta pode ser dito que é um músico aprisionado pela palavra, que luta com a palavra, que maltrata a palavra em sua ânsia de dizer o indizível. A música, como já dissemos, está fora da significação e, exatamente por isso, não apenas porta um enigma, como é o próprio enigma. Situa-se num mais além, numa transcendência. Somos nós, os ouvintes, que a carregamos de sentido. A verdade é que poucos psicanalistas se aventuraram a falar sobre a música, tendo preferido manter a ideia de que ►► 115 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 psicanálise e música nada têm em comum, como François Perrier, brilhante psicanalista da geração de discípulos de Lacan. Daniel Sibony, no entanto, procura explicar esse afastamento: Sabemos que a psicanálise e a música não se entendem bem juntas. O grande mal-entendido tem a ver com o fato de que o “psi” escuta a música como um discurso: ele se irrita então com toda essa sedução, esses impulsos narcísicos que não soltam “significantes”, e gozam de nos submergir e de se submergirem. (SIBONY, 1995, p. 308.) De tal procura do discursivo é exatamente o que o psicanalista deveria abster-se, e, assim, permanecer na dimensão musical, mas isso é difícil. A dimensão fora do discursivo é claramente expressa por Igor Stravinsky: Considero a música, por sua essência, impotente para expressar o que quer que seja: um sentimento, uma atitude, um estado psicológico, um fenômeno da natureza etc. A expressão nunca foi a propriedade imanente da música... Se, como é quase sempre o caso, a música parece expressar algo, é apenas uma ilusão, e não uma realidade. É simplesmente um elemento adicional que, por uma convenção tácita e inveterada, nós lhe emprestamos [...] e que chegamos a confundir com a sua essência. (STRAVINSKY, 1936, p. 70.) Talvez esteja aí o insuportável para o psicanalista, essa abolição do imaginário, já que ele lida permanentemente com a força e a fragilidade da palavra, abolindo seu sentido, mas em busca de novos sentidos. Didier-Weill faz uma chamada para a relação direta da música com o real. A música não é uma metáfora, será? A música, é possível supor, está próxima de “lalíngua”, neologismo criado por Lacan para nos dizer desse remanescente do balbucio, desse 116 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 som corporal abandonado quando da domesticação pela língua materna, dessa expressão singular de cada um, murmúrio visceral, fala do corpo perdida para o corpo falante ou sobre a qual uma surdez se instala. Stravinsky nos ajuda nessa direção: “Assim, uma das primeiras impressões sonoras de que eu me lembro pode parecer bastante bizarra.” Ele relata que, quando pequeno, no verão, passava férias no campo. Descreve um camponês e o estranho ruído que provocava: Ele era mudo, mas estalava com muito barulho a língua, e as crianças tinham medo dele. Eu também. A gente se aproximava dele para divertir as crianças, e ele se punha a cantar. Esse canto — eram duas sílabas, as únicas que ele podia pronunciar, desprovidas de qualquer sentido, mas que ele fazia alternar com uma destreza incrível, num movimento muito vivo. Ele acompanhava esse cacarejo da seguinte maneira: colava a palma de sua mão direita sob a axila esquerda, depois, com um gesto rápido, fazia o braço esquerdo mexer apoiando-o na mão direita. Fazia sair assim de debaixo de sua camisa uma sequência de sons bem suspeitos, mas bem ritmados, e que por eufemismo se poderiam qualificar como “beijos de babás”. Isso me divertia loucamente e, em casa, eu me punha a imitar essa música com muito zelo. (STRAVINSKY, 1936, p. 11-12.) Reproduzir o som estranho do camponês e o canto em uníssono de mulheres de um vilarejo vizinho, nesse mesmo verão em férias, indicou-lhe a “justeza” de seu ouvido. E ele acrescenta: “Foi a partir desse momento que tomei consciência de mim mesmo como músico” (STRAVINSKY, 1936, p. 12). Voltemos a nossa pergunta inicial: por que o menino Mozart brincava com os sons e produzia obras de arte? Freud, na carta em que responde a Zweig, chama a atenção para a escuta dos ruídos corporais e estabelece uma relação com a pulsão anal. Podemos também arguir a correspondência ►► 117 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de Mozart, sobretudo as cartas enviadas a Constanze, sua noiva, em que um erotismo anal se manifesta em toda sua pujança. Ocorre-nos também lembrar o relato que Robert Craft, em seu livro Stravinsky: crônica de uma amizade, faz dos cafés da manhã em que o compositor, além de gostar de relatar seus sonhos, fazia uma descrição do seu funcionamento intestinal, mencionando forma e textura, “tipo minestrone ou tipo consomé”, e até mesmo o aroma, se sulfuroso ou acre. Ainda é Craft quem diz: Igor Sravinsky encaixa-se perfeitamente no que Freud descreveu como a personalidade anal: o hábito de catalogar, poupar, acumular, reter, estocar [...], a exatidão, a precisão, a pontualidade, e também o rigor, a severidade, a exigência, a ordem e o asseio. (CRAFT, 1994, p. 39-46.) O que, todavia, nos chama a atenção no comentário de Freud é, sobretudo, a ênfase dada à escuta dos ruídos do corpo. Uma fala corporal e sua escuta. Em outro texto, levantei a hipótese de uma especularidade sonora que anteciparia a especularidade imaginária. E, quando nos detemos na descrição que Mozart faz de seu processo criativo — “na minha cabeça, eu não escuto uma parte atrás da outra na ordem em que elas deveriam encadear-se; eu as escuto todas juntas, ao mesmo tempo! Instantes deliciosos! A descoberta e a colocação em prática ocorrem em mim como num belo sonho, com muita clareza. Porém, o mais belo é ouvir tudo ao mesmo tempo” —, não podemos deixar de nos lembrar do júbilo da criança ao contemplar sua imagem unificada no espelho. Poderemos levantar, para responder a nossa pergunta inicial, a hipótese de um predomínio do especular sonoro, em que simbólico e real ganham força sobre o imaginário do sentido. A música não se propõe a um sentido, mas pode estar aberta a qualquer sentido. A música, assim como a pulsão invocante, fala de uma proximidade maior com o inconsciente. Como interpretar 118 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 essa proximidade senão dando-lhe o lugar originário dos primeiros sons escutados, “a relação mais primordial do sujeito com o Outro”, como nos diz Alain Didier-Weill, em que o sujeito, antes de receber a palavra, recebe uma raiz, uma base sobre a qual esta germinará. Tempo não memorável, mas comemorável, traço unário, nome primeiro, nota escandida, intraduzível, pois ainda não assumida pela palavra. “A música é o único domínio em que o homem realiza o presente. Pela imperfeição de sua natureza, ele está fadado a sofrer o escoamento do tempo — de suas categorias de passado e de futuro — sem jamais poder tornar real e, portanto, estável a do presente”, disse Stravinsky (1936), marcando assim o “grande mistério da música”, que consiste, ainda no dizer de Didier-Weill, na ausência de diacronia com o Outro e no estabelecimento de uma sincronia absoluta. Antes de concluir, gostaria ainda de levantar esta questão: acaso a escuta dos ruídos corporais, a placenta e seu líquido em ondas permanentes, não antecederia a escuta da voz materna? Salvador Dalí, em seu diário Vida secreta, no capítulo intitulado “Lembranças intrauterinas”, apresenta a seguinte descrição: “o paraíso intrauterino tinha a cor do inferno, isto é, vermelho, alaranjado, amarelo e azulado, a cor das chamas, do fogo; era sobretudo doce. Imóvel, quente, inacabado, duplo, pegajoso. Naquele tempo, todo prazer, todo encanto estava, para mim, em meus olhos” (DALÍ, 1942, p. 285-286). Se o menino Mozart nos trouxesse, como Dalí, uma recordação dessa fase inaugural de sua vida, será que não nos falaria de uma profusão sonora, uma sinfonia que o embalava, para então concluir que, desde aquele tempo, todo o prazer e todo o encanto lhe chegavam pelos ouvidos? ►► 119 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 NOTA Freud chama a atenção para o fato de que, ao entrarmos no mundo humano, no universo da linguagem, e, portanto, tornarmo-nos seres falantes, perdemos a possibilidade de ser guiados pelo modelo instintivo que domina nas espécies animais. Trouxe, então, o conceito de pulsão para ocupar esse lugar do instinto perdido. Assim, passamos a ser comandados pelos circuitos pulsionais, que, originando-se dos orifícios corporais, tendem sempre a objetos parciais, na medida em que não existe uma única pulsão. Freud nomeou três: oral, anal e fálica. Lacan acrescentou outras duas: escópica e invocante. Da última destacou duas particularidades: ser a mais próxima do inconsciente e dirigir-se a um objeto total e não parcial, a voz. Um orifício corporal: o ouvido; um objeto: a voz, enquanto pura sonoridade. 1 REFERÊNCIAS CASAS, Lincoln Maiztegui. Mozart por trás da máscara. São Paulo: Planeta, 2006. CINGRIA, Charles-Albert. Correspondance avec Igor Stravinsky. In: Nouvelles correspondances de Charles-Albert Cingria. Lausanne: L’Age d’Homme, 2001. CRAFT, Robert. Conversas com Igor Stravinsky. São Paulo: Perspectiva, 2004. __________. Stravinsky: crônica de uma amizade. Rio de Janeiro: Difel, 2002. DA VINCI, Leonardo. Anotações de Da Vinci por ele mesmo. São Paulo: Madras, 2004. DALÍ, Salvador. La vida secreta de Salvador Dalí. Barcelona: Empuries, 1993. DIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção do supereu e a invocação musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. FREUD, Sigmund & ZWEIG, Stefan. Correspondance. Paris: Rivages, 1991. 120 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 GAY, Peter. Mozart. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. HILDESHEIMER, Wolfgang. Mozart. Barcelona: Destino, 2005. MOZART, Wolfgang Amadeus. Cartas vienenses. São Paulo: Veredas, 2004. __________. Mozart: sua vida em cartas. Rio de Janeiro: Reler Editora, 2006. SOLLERS, Philippe. Misterioso Mozart. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica, 2003. SIBONY, Daniel. Le corps et sa danse. Paris: Seuil, 1995. STENDHAL [Henri-Marie Beyle]. A vida de Mozart. Rio de Janeiro: Revan, 1991. STRAVINSKY, Igor. Chroniques de ma vie. Paris: Denoël, 2000.* Urania Tourinho Peres é psicanalista e escritora. Fundou e dirige o Colégio de Psicanálise da Bahia. É membro da école lacanienne de psychanalyse, membro correspondente da Association Insistence, ambas de Paris, e A. E. pela Escuela Freudiana de Buenos Aires. Publicou Mosaico de letras e Depressão e melancolia, organizou coletâneas e assina artigos em livros e revistas especializadas. Palestra proferida em sessão ordinária da Academia de Letras da Bahia, na Sala de Reuniões, em 18 de abril de 2013. ►► 121 128 TWITTERS SOBRE MOZART, MÚSICA E PSICANÁLISE Uma resposta experimental ao texto de Urania Tourinho Peres* Paulo Costa Lima Quem quer que tenha descoberto Mozart, mesmo apenas um pouquinho, e tente falar algo sobre ele, cai logo num tipo de gagueira bastante visível. Karl Barth A música tem gênero. Mas não tem genitais. Pelo menos, se a ela tivesse que ser dado um falo, teria que ser construído sob a forma de discurso. Daniel Chua Eis aqui som puro, em conformidade com um cosmos sem gravidade, triunfante sobre toda essa terrenidade caótica. Alfred Einstein 1. Começo rendendo homenagem à autora, sua visão e estratégias discursivas. * N. do A.: Experimental no sentido da forma. O que acontece quando o discurso se twitteriza? Como devemos lidar com a impossibilidade pós-moderna de atenção a mais do que uma linha? Sigo aqui brincando e experimentando com essa arte de concisão forçada, tecendo outros caminhos de elaboração e desenvolvimento, oscilando entre a percepção de completude da síntese e a provisoriedade do esboço. Não esquecer que se trata de oralidade, uma performance falada, em que cada item pede exemplos e demonstrações que aqui não estão. ►► 123 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 2. Isso porque há poucos temas tão espinhosos como o que ela aborda. 3. A propósito: não é apenas um texto sobre Mozart, e sim sobre a experiência música. 4. A “experiência música” vis a vis a “experiência do inconsciente” — Mozart entra como caso exemplar. 5. E quem tem bom ouvido já sabe da polissonância contida nos dois sintagmas. 6. A experiência música é algo que dificilmente aceita tal nome de síntese. 7. Quem nos dá o direito de unificar aquilo que pigmeus e japoneses fazem com os sons, ou com o tempo? 8. Existem músicas em todos os lugares e culturas, e em todos os tempos. 9. Em algumas culturas nem existe a necessidade de uma palavra para designar isso. 10. Os índios suyá, da Amazônia, não têm canções próprias, tomam de empréstimo nos encontros. 11. Na Grécia Antiga surge uma teoria do ritmo com Aristoxenus e o seu ritiminomezon. 12. É o conceito de todos os campos ritmizáveis — fala, melodia, dança. Estamos há 2500 anos. 13. Alguns lembram que a relação entre música e sons não é necessária — som é apenas material. 14. A relação fundamental é com o tempo, não existiria música sem tempo (até que alguém faça uma). A ideia de que música é algo inerente ao campo sonoro é relativamente recente. Está em Rameau (1727). Só no século 18 é que música torna-se apenas o que pode ser ouvido. 124 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 15. Como disse Urania: a música é um campo aberto. 16. E como diz Bohlman: música pode ser o que a gente pensa que seja — e pode não ser. 17. Pode ser sentimento e sensualidade; pode não ter nada a ver com emoção e sensação. 18. Pode ser algo para o qual se dança, reza ou faz amor; mas não é sempre o caso. 19. Sendo assim, qualquer metafísica da música separa um tempo e lugar do resto todo. 20. Um tempo e lugar pensado como próprio. 21. Pensar sobre música acaba sendo uma tentativa de controle, de pertencimento. 22. O outro sintagma: a experiência do inconsciente. Como assim experiência, se é só-depois? 23. Inconsciente que carrega a marca de uma estranheza de si, de um outro em nós. 24. Uma relação de aturdimento, de um não saber pensar sobre o que se passa. 25. E especialmente de um não poder falar sobre, de uma falta em algo. 26. E aí uma relação multifacetada com a música que também aciona o não falável. 27. Seeger teve a visão de propor categorias distintas de conhecer: speech knowledge e music knowledge. 28. Ora, o não falável pode ser algo tão concreto quanto o universo do tato para o instrumentista. 29. Não estaria a música envolvida com tudo que não é música, como a fala com tudo que não é fala? 30. No meio desses sintagmas imponderáveis, uma montanha chamada música e psicanálise. 31. Uma montanha que precisa ser escalada, ou escavada por túneis de vários lados distintos. ►► 125 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Em que sentido a psicanálise oferece interesse para a teoria da música? Em princípio porque questiona justamente o chamado paradigma estrutural-organicista. Empurra o discurso sobre música na direção da própria experiência, se alia à fenomenologia. E nesse sentido tem um papel de fazer emergir “estruturas de prazer” — as cadências, por exemplo. O prazer, que nunca aparece de forma explícita na tradicional teoria da música. Mas ninguém pergunta impunemente pelo prazer. Isso porque não se percebe com clareza as linhas de transição para algo bem mais desafiador: o gozo. 32. Em 1995, com a ajuda do Freud Museum de Londres, recolhi uma bibliografia de 110 artigos sobre isso. 33. Hoje, seguramente, essa quantidade duplicou ou triplicou. O início do meu interesse pelo tema, em 1991: um musicólogo inglês visitando a Bahia (Keith Swanwick). Perguntaram a ele pela relação entre música e orgasmo. Ele pigarreou e disse que responderia a seguir. Voltou do almoço e disse: “já tenho a resposta, depende do dedilhado”. Todos riram. A resposta foi muito boa e muito inglesa ao esconder o assunto: nada se pode dizer sobre isso. Não do ponto de vista da educação musical, inspirada pela cognição. Mas o vermezinho ficou em minha cabeça. A vanguarda não pode silenciar sobre o prazer da música. Nessa história da relação entre música e psicanálise há artigos marcados pela teoria da libido, pela teoria do narcisismo (Teller), pelas etapas do desenvolvimento infantil (Sterba), pela noção de compulsão à repetição, pela noção de agressividade já com um pé nas ideias de Mellanie 126 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Klein, pela psicanálise do ego (Kohut) e pela psicanálise lacaniana (especialmente a pulsão invocante). E sobre três funções: a catarse dos desejos reprimidos, o jogo de domínio sobre as ameaças traumáticas e a submissão prazerosa ao jogo de estabelecimento de regras (LIMA, 1995). 34. Tudo isso, não sendo montanha, poderia ser enorme moinho de vento a exigir a presença de algum Quixote. 35. E aqui volto à degustação do texto de Urania — nada mais longe do quixotismo vulgar. 36. Nada de sair correndo em linha reta na direção do obstáculo. É mais uma dança de véus. 37. Uma outra espécie de heroísmo, alguns diriam feminino, outros diriam psicanalítico. 38. Então, não é verdade que a psicanálise foi criada por uma limpadora de chaminés? 39. O que quer de mim esse seu texto, Urania? 40. Como reinventar o papel de Sancho Pança no delicado contexto dessa dança de véus? 41. Os temas e personagens vão sendo tecidos por um fio suave de associação e inferência. 42. O menino Mozart, seu pai, sua mestria aos cinco anos, seu gato, suas terças no piano. 43. Tudo isso com referências biográficas de boa estirpe. Além de uma ciranda de nobres pensadores. 44. De repente, o magma: “a música chama à significação, é um polo de atração para as fantasias”. 45. O primeiro escrito sobre música e psicanálise já tocava na tecla da fantasia: Frieda Teller, 1917-19. 46. Urania vai além: a entrada no mundo simbólico com a presença e prevalência da pulsão invocante. ►► 127 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 47. Esse será um dos polos conceituais estruturantes do texto. 48. Qual Sancho Pança orgulhoso e destemido, grifo 25 umbigos temáticos oferecidos pelo texto: i. Por que a precocidade se apresenta especialmente em música? ii. A música como campo aberto para a projeção de sentimentos e pensamentos. iii. A complexa relação entre música e significação (música está fora da significação?). iv. A complexa relação entre música e fantasia. v. A pulsão invocante e a entrada no mundo simbólico. vi. As diferenças entre intérpretes e criadores. vii. O emaranhado pulsional entre escutar e ver. viii. A percepção do todo, a captação da totalidade. ix. A relação entre música e linguagem (gozam de absoluta liberdade, puro som). x. Música e pintura abstrata: exercícios de contemplação sem suporte do imaginário. xi. O trabalho de luto da Sonata K310 para piano solo. xii. O Mozart de cada biógrafo. xiii. Freud falou pouco sobre a música (apreciava Mozart). xiv. Música e componente anal. xv. Os balbucios de um bebê — o real e “lalíngua”. xvi. Música e sublimação, vazio e das Ding — elevação à dignidade da “Coisa”. xvii. Música e poesia. xviii. Música incapaz de expressar qualquer coisa (Stravinsky). xix. Música e abolição do imaginário (relação direta com o real, não é metáfora, será?). xx. A escuta dos ruídos do corpo. xxi. Uma especularidade sonora que anteciparia a especularidade imaginária... xxii. Predomínio do especular sonoro: simbólico e real ganham força sobre imaginário do sentido. xxiii. As lembranças intrauterinas. 128 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 xxiv. O enigma de Mozart. xxv. E acrescento eu: o enigma de sua música. 49. O que fazer, se cada umbigo poderia ser uma palestra ou mesmo um livro de per si? 50. Reconheço a legitimidade de todos esses temas e realçarei alguns deles em busca de diálogo.1 51. Talvez caiba aqui um pequeno salto na direção do material sonoro, da vivência musical. 52. Na verdade uma situação musical muito distinta do mundo de Mozart: o candomblé. 53. Gostaria de chamar a atenção para o celebrado toque dedicado a Xangô, o Alujá. 54. Quando concedemos alguma atenção analítica ao padrão que se repete, há nuances mil. 55. Trata-se de uma estrutura de doze pulsos, número de Xangô; abriga sete batidas do agogô. 56. Como é possível um grau tão elevado de repetição e redundância sem perda de interesse? 57. A resposta: o delicioso conflito entre expectativa métrica (6 + 6) e realidade rítmica (5 + 7). 58. O conflito garante o movimento perpétuo, uma frase com estabilidade e desequilíbrio. 59. Por que estamos abordando o candomblé? Porque achamos que o transe é um modelo importante. 60. Traz de saída a lembrança de veios temáticos que estão nos textos de Freud sobre “hipnose e estar amando”, mas também Totem e tabu... 61. Um alabê me disse: “eu só faço empurrar a pessoa para a beira do precipício, mas ela cai sozinha”. 62. Como se “levar até a beira do precipício” não fosse algo decisivo, função precípua da música? ►► 129 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 63. Na verdade ela não cai sozinha, ela cai no Outro, impulsionada pelo “supereu manda gozar”. 64. A relação entre esse conflito-precipício e a convocação de pertencimento do corpo. 65. Pertencimento ao chamado rítmico (o nosso rebolado), pertencimento à ordem divina. 66. Aproximação de uma situação de gozo absoluto, mediada pelos orixás e supervisionada. 67. Vale lembrar o papel de Olorum, pai criador primitivo, que permanece inacessível. 68. “Se Deus não existe tudo é permitido”, falso, diz Lacan: nada é permitido — aqui, Olorum autoriza. 69. Estamos em pleno espaço da pulsão invocante; e tal como colocado por Urania. 70. “A música toma outro caminho, outra via na compreensão da sublimação — a invocação”. 71. Essa atitude dispensa dezenas de pseudotextos que tratam a música como sintoma. 72. Sem, portanto, levar em conta a distinção entre sintoma e sublimação, muito bem explicada, aliás. 73. Não custa enfatizar, compartilhamos a admiração por Didier -Weill e sua recriação lacaniana. 74. A vocação de um sujeito — como responderá à voz que lhe pergunta: onde está você? 75. Na medida em que é “tocado”... descobrirá que de fato não é você que escuta. 76. A música é que o escuta, que escuta uma presença cuja existência foi esquecida... 77. Se essa presença lhe é dada é que você não pode oferecê-la a si mesmo... 78. Ela está à disposição soberana do Outro.2 130 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 79. E mais: a revelação é surpreendente; a surpresa é dispensadora de alegria. 80. O sujeito encontra aí a possibilidade de se fincar na fé de que a música é a Coisa. 81. O candomblé permite lembrar o papel de racionalidade universal da música no mundo antigo. 82. A ilustração secular — Utriusque cosmi — apresenta a ordem divina como relações sonoras: a mão de Deus afinando esse monocórdio celeste.3 83. Na modernidade, a música precisa atravessar um processo de desencantamento (vide Weber). 84. A ressistematização da música em novas bases (acústicas, científicas) é parte desse processo. 85. Mas o desencantamento empurra a música em novas direções (ópera, harmonia, Bach... Mozart). 86. Aliás, registra-se aí uma duplicidade: a tentativa de recantar (reencantar) o mundo (ópera) e a música instrumental. Registro curioso: quando penso em Smetak, não posso deixar de lembrar da afinação celeste. Como se ao apontar para o futuro Smetak trouxesse toda a ancestralidade de Boécio de volta. Com sua música “mundana”, “humana” e instrumentalis. 87. Aqui se insere algo relativo à longa duração: todos aceitamos com facilidade a noção de “episteme”. 88. A proposta de Foucault de que há uma conformação para aquilo que uma época pode saber. 89. Mas Terry Eagleton diversifica essa questão em três perguntas: i. o que podemos saber (epistemologia e cognição) ii. o que devemos fazer (ética e política) iii. e o que nos atrai (o estético-libidinal) ►► 131 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 90. Então haveria algo semelhante à episteme no campo do que “nos atrai”, o campo estético-libidinal? 91. Aliás, só a decisão de fundir estética e libido já é algo bastante instigante. 92. Não consigo achar o nome para esse conceito ou noção — essa “libideme”. 93. Vejo que Joel Birman fala em “destinos do gozo” ao lidar com o problema da longa duração. 94. Lembra que do paradigma da salvação passamos ao paradigma da cura (e da medicalização). 95. Qual seria o paralelo com o mundo do conhecimento de arte — de que espécie de cura ou remédio? 96. A música do pré-desencantamento respondendo a coisas bem distintas do que a música de hoje. Um belo exemplo seria ouvir aqui o Kyrie de Machaut. 97. A música de uma época onde a histeria é muito importante versus uma época que tende à perversão. 98. São questões que a relação com o Outro, no campo da música, parece autorizar. 99. A catedral gótica versus o corpo de Michael Jackson. 100. A catedral gótica versus o Alujá de Xangô. 101. A catedral gótica versus o shopping center — e Mozart como ponto intermediário na série. 102. A construção do sujeito da individualidade: a interioridade e o heroísmo cuidadosamente embalados em forma dramática, em forma sonata... (McClary). 103. Até que ponto o “modelo” do candomblé não teria uma série de coisas aplicáveis a diversos outros contextos musicais? 104. Até que ponto poderíamos falar num terreiro mozartiano? 132 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 105. Perfeição, pureza, graça, inocência, revelação e redenção: são palavras sempre associadas a Mozart. 106. Como se a sua música pairasse por sobre o Mal, sem exposição do conflito, ao contrário de Beethoven. 107. Como entender esse desafio de construção da experiência música como graça que transcende? Acaba de ser lançado pela Princeton University Press o livro Mozart’s grace, de Scott Burnham (2013). Resultado de 30 anos de estudos, pretende apreender a qualidade da beleza em Mozart. (Será?) 108. Beleza que parece pairar como feito acima de mãos humanas, diz o autor. 109. E que tem menos a ver com “unidade” do que com separação (apartness, untouched, untouchable). i. Sonoridade; a expressividade concentrada da linha. ii. Não é incomum descrever alguns desses efeitos com a linguagem do prazer físico, especialmente quando uma nota cromática cria um frisson isolado no âmbito de um contexto diatônico (diz Burnham!). iii. Melodia: elegância expansiva e dissonância expressiva. iv. O ideal de graça funde-se com a realidade dos sentidos. v. Mozart consegue transformar situações expressivas de sofrimento e terror em algo que choca como voluptuoso (citando Charles Rosen). vi. Os encontros com o supernatural, o demoníaco, o divino e o mais pessoal possível. vii. Saber “de dentro” da existência do que está “lá fora”. Nos melhores momentos Mozart consegue que esse espaço (exterior) reverbere no domínio interior (sublinhando dessa forma esse limite criado pela subjetividade moderna)... Essa alteridade inconhecível pode até ser convocada, mas apenas tocada en passant, nunca possuída. ►► 133 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 viii. Um sentido de inocência reconquistada — o abraço da inocência. ix. O gostar de si mesmo na presença da beleza (mozartiana). x. A beleza que resulta é tão real quanto um arco-íris. xi. A mobilidade da consciência, sua fluidez, como meio humano. xii. Parece que estamos suspensos em um momento kantiano — em que o mundo externo foi separado de nós, ficando do lado de lá da consciência; ao mesmo tempo, a consciência fica imponderada para criar sua própria realidade. xiii. A ironia da autoconsciência — não mais como emanação do Universo ou do divino. 110. E eis aí uma possível interpretação do enigma: caracterizamos com essa paráfrase do texto de Burnham a natureza desse ponto da construção de subjetividade que a música de Mozart representa. Um entrelugar que jamais será recuperado! 111. Sobre a sensação de pureza, de música pura, ou música absoluta — a força dessa ideia. 112. Todavia, temos que registrar que a tradicional relação entre música e palavra mudou. 113. Nas últimas duas décadas, com a new musicology, a ideia de música absoluta virou alvo. 114. Portanto, temos que relativizar nossa crença na independência estrutural dos sons. 115. A crença arraigada na ideia proposta por Hanslick de que a música são “formas moventes” cedeu muito. Temos que admitir as inúmeras formas de inserção sutil de discursos entre os sons, conformando a música. 116. Para Daniel Chua, foram os românticos que deram vida à ideia de música pura, música absoluta. 117. Trata-se de uma música que foi emancipada da linguagem pela linguagem. 134 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 118. Ou seja: toda a pureza que passou a ser projetada sobre essa música foi construída por discurso. 119. E, assim, uma história da música absoluta não poderá ser uma história da música, e sim de discursos. 120. Etapas do processo: i. O surgimento da música absoluta no século XIX acaba sendo um sintoma do desencantamento. ii. A sinfonia do Universo (Novalis) é pura nostalgia de encantamento num mundo em nada para encantar. iii. A unidade analógica criada por um sistema de semelhanças é substituída por sistema de representação. iv. A divisão entre música vocal e instrumental — o silêncio da música ritual por Zwingli. v. Só a palavra era espiritual (Calvino), a música é apenas sensual, para o prazer do ouvido. vi. O surgimento da ópera como esforço concentrado de reencantamento (inicialmente pastoral, idílico). vii. A ópera como manifestação do olhar do rei (sovereign eye), que tudo controla e busca reencantar. viii. O olhar soberano migra da ópera para a partitura — organizada para que um ego a veja, sem ser visto. ix. Esse poder pan-óptico vai desaguar na figura do maestro, que vê tudo, com sua batuta de hipnotizador. Comentário sobre suposta confissão de Mozart de sua capacidade de ver o todo musical inteiro e estático. [Parece haver um consenso hoje de que a carta cuja autoria foi atribuída a Mozart foi de fato uma falsificação. Sendo assim, Mozart nunca teria dito o que ali aparece e que influenciou e muito uma série de textos posteriores. O artigo de Peter Kivy analisa o sentido da adoção irrestrita que o pseudo-Mozart teve — e segue uma linha bastante parecida com a de Chua.] x. A sonata (no barroco) livre da harmonia das esferas, permite que suas melodias fluam livres nas correntes do desejo (vontade) retórico. ►► 135 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 xi. A partitura no barroco não é a obra — cada execução é diferente, a marca do intérprete, o estilo é o homem. xii. A profusão de estilos leva à ideia de combinar estilos — glückliche Melange, gemischter Goût — e é essa confusão que desemboca no estilo clássico. xiii. Para William Jones, a música de Mozart era temperada demais, poderia estragar o paladar, não tinha unidade!!!! xiv. Na virada do século XIX a música instrumental já tinha existência garantida. xv. Sem os recursos do encantamento e sem o poder de representação da linguagem, a música acaba sendo empurrada para a região dos sentidos, da sensibilidade, a Empfindsamkeit. xvi. Enquanto Bach ainda morava numa residência ancestral do contraponto, cheio das inhanhas encantadas, o seu filho Carl Philipp escrevia uma música que migrava para as profundezas erráticas da psyche. xvii. A construção da perspectiva do herói, da Eroica de Beethoven — o herói da consciência histórica, e da crise, que projeta sua sombra sobre o modernismo. 121. Na música de Mozart está em pleno vigor a presença de uma instância ficcional que detém o suposto saber / suposto gozar da obra — o protagonista composicional desse entrelugar entre subjetividade e heroísmo. 122. Metáfora e pensamento musical. 123. A cognição, o movimento e os esquemas imagéticos — o texto de Hassler sobre música e psicanálise. 124. Enquanto isso: a neuromusicologia e a música em pílulas (o futuro que virá...). 125. A curiosa série de Didier-Weill: torne-se, retorne, retorne-se... 126. A crítica a Didier-Weill e sua fixação na perspectiva da recepção — afinal, o Outro que escuta precisa ser composto. 136 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 127. Trata-se, portanto, de refletir sobre composição e inconsciente, e não sobre a recepção, sobre o “ser tomado” pela música — o ergreifen freudiano. 128. A construção da Sonata K310 de Mozart e os seus espinhos cromáticos de trágica dramaticidade em movimento. NOTAS Reconheço também a importância de conectá-los numa única narrativa como o texto faz. 2 Podemos ancorar aqui uma das poucas observações de Freud sobre música, Moisés de Michelangelo. 3 Favor conferir na rede mundial de computadores. 1 REFERÊNCIAS BARTH, Karl. Wolfgang Amadeus Mozart. Berlim: Evangelischer Verlag, 1956. BIRMAN, Joel. A biopolítica na genealogia da psicanálise: da salvação à cura. In: PEREIRA DA SILVA, José Antonio (Org.). Modalidades do gozo. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2007, p. 13-35. BOHLMAN, Philip. Ontologies of music. In: COOK, Nicholas; EVERIST, Mark (Eds.). Rethinking music. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 18-34. BURNHAM, Scott. Mozart’s grace. Princeton: Princeton University Press, 2013. CHUA. Daniel. Absolute music and theconstruction of meaning. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. DIDIER-WEILL, Alan. Os três tempos da lei. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1997. EINSTEIN, Alfred. Mozart, his character, his work. New York: Oxford University Press, 1962. KIVY, Peter. The fine art of repetition: essays in the philosophy of music. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. ►► 137 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 LIMA, Paulo Costa. Música, um paraíso familiar e inacessível: uma serenata em oito movimentos. Percurso. São Paulo, n. 15, fev. 1995, p. 55-64. __________. Música e psicanálise: uma bibliografia preliminar com 100 trabalhos de referência. ART023. Salvador, n. 23, dez. 1995, p. 39-52. NOVAES, Luis Henrique Milan. Há o inconsciente. In: nucleotavola. com.br/milannovaes. SEEGER, Charles. Studies in musicology 1935-1975. Los Angeles: University of California Press, 1977. SOLOMON, Maynard. Mozart: a life. New York: Harper Collins Publishers, 1995.** Paulo Costa Lima é músico, pesquisador, escritor e professor. Foi diretor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, pró-reitor da UFBA e presidente da Fundação Gregório de Mattos. Publicou cinco livros e vários artigos e ensaios. É membro da Academia Brasileira de Música e da Academia de Ciências da Bahia. Desde 2009 ocupa a Cadeira nº 8 da ALB. Comentários-palestra sobre a palestra proferida pela doutora Urania Tourinho Peres com o tema “Por que o menino Mozart brincava com os sons?”, ilustrados com demonstrações musicais, em sessão ordinária da Academia de Letras da Bahia, na Sala de Reuniões, em 18 de abril de 2013. 138 ◄◄ A POÉTICA DA CIDADE Paulo Ormindo de Azevedo A poética da cidade que vou aqui tentar descrever não é a poesia escrita que retrata vivências da infância em determinadas cidades, de que a língua portuguesa é tão rica. Basta citar Pessoa, sob o pseudônimo de Alberto Caeiro, em “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”, e Bandeira em sua notável “Evocação do Recife”. Senão a própria poética da cidade, que se confunde com a arte, ou até mesmo com a natureza, como bem compreendeu Mário de Andrade no seu anteprojeto do SPHAN: “são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe preservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana”. No caso dos monumentos naturais, sua poesia decorre menos do acidente geográfico em si, que dos significados que coletiva ou individualmente associamos a esses elementos e que muitas vezes se refletem na sua toponímia: Gávea, Pão de Açúcar, Corcovado, Dedo de Deus. Grande parte da poesia da cidade do Rio de Janeiro está associada a seus acidentes naturais: praias, lagoas, montanhas, florestas e cascatas. Mas sua poesia não se esgota nesses acidentes. Compreende também seu patrimônio material, arquitetônico e urbanístico, sua cultura imaterial, incluindo o modo como seus habitantes se relacionam com seus espaços. Copacabana não é apenas a praia que foi cantada em prosa e verso por Rubem Braga, João de Barros, Caymmi, Vinicius e Tom Jobim, é também sua paisagem construída e habitantes. O mesmo se diga de ►► 139 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 bairros carentes de tudo, como os morros cariocas cantados por Orestes Barbosa, Herivelto Martins, Zé Kéti e outros. Foi essa associação que permitiu ao Rio de Janeiro ser classificada pela Unesco como uma paisagem cultural universal. Quero entender a poesia que antecede e inspirou o “Tejo é mais belo”, “Evolução do Recife” ou “As cidades invisíveis” de Ítalo Calvino, esta uma reflexão poética sobre a cidade, a utopia e a fantasia humana. Em primeiro lugar, é preciso compreender que a cidade é uma obra coletiva e aberta, na conceituação de Umberto Eco. Ao contrário da poesia como gênero literário, só em raros casos uma cidade é obra autoral. Aliás, o Brasil é rico nessa modalidade, com Salvador de Miguel de Arruda e Luís Dias, Belo Horizonte de Arão Reis, Goiânia de Atílio Correia Lima e Brasília de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Mesmo assim, elas vão sendo transformadas pelas gerações que sucederam a seus riscadores, porque as cidades estão sempre se modificando e nunca podem ser consideradas acabadas. Essa dinâmica faz parte de sua poesia. Um dos grandes atrativos das cidades é que em cada oportunidade que as visitamos há sempre algo novo, uma névoa especial, árvores peladas ou floridas, uma festa popular, um teatro de rua ou uma nova galeria. Algumas cidades, ainda quando não se transformam fisicamente, sempre revelam detalhes novos que não havíamos percebido nas primeiras visitas, como os bons poemas. Nesse sentido, são particularmente interessantes as cidades islâmicas, medievais e barrocas, não sujeitas a cânones formais e métricas limitadoras. Como é linda a complexa geometria das casas, becos e escadarias de Alfama, o que restou da Lisboa islâmica e as cidades brancas de Andaluzia. Mais ao sul, no Marrocos, podemos nos perder no labirinto de barracas dos souks, situados nas almadinas de suas cidades, com encantadores de serpentes, artesãos de couro, madeira e bronze, ourives, vendedores de frutas secas e especiarias, perfumistas, tecelões e tintureiros. Estes geralmente instalados na parte mais baixa 140 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 do souk, junto ao rio ou a uma fonte, onde lavam seus coloridos véus e tapetes. Na Turquia e na Síria, o equivalente dos souks marroquinos são os bazares, verdadeiras cidades abobadadas com pequenas claraboias de onde jorra a luz. Esses espaços de sociabilidade são uma festa para os sentidos: as batidas ritmadas das bigornas dos artesãos, a melodia da flauta de um encantador de serpente, o apito e as espirais de vapor que exalam dos samovares, o perfume das especiarias e essências, os sabores das frutas secas e sementes oferecidas pelos vendedores, as cores vibrantes dos véus dos tintureiros e o caminhar macio sobre alcatifas e alfombras que precisam ser amaciadas. Protegidas por muxarabies e véus, que permitem ver sem ser visto, mulheres espreitam os turistas e locais. Tenho medo que essas sutilezas se acabem com a invasão bárbara da cultura ocidental. Mais difícil é imaginar as cidades medievais em seu tempo. Nada restou do feudalismo, por sorte. A vida nessas cidades não devia ser muito diferente da das cidades islâmicas, com a rígida separação da cidade do campo ou do deserto. Aquele amontoado de casas sem reboco, aparentemente caótico, em que paredes e telhados cor de barro se confundem, localizadas no topo das elevações e se derramando pelas encostas, esconde soluções urbanísticas e arquitetônicas surpreendentes. São rampas-escadarias em leque, sottopassaggi por onde mal passava um cavaleiro com sua lança, janelas indiscretas que vigiam todos os movimentos das ruas, sem que percebamos que estamos sendo seguidos. Torres e muralhas nos fazem sentir mais pertencentes. Sou especialmente cativo de uma cidade toscana, Siena, com sua praça em anfiteatro, tendo como fundo o palácio da senhoria com sua torre imensa. Tive a sorte de podê-la ver durante o Palio d’Assunta, com ginetes com imensas bandeiras coloridas simulando um torneio medieval entre Gibelinos locais e Guelfos de Florença. Vivi durante quase dois meses numa outra cidade medieval, Jesi, em Le Marche, perto do Adriático. ►► 141 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 No final da tarde, depois do trabalho, durante aqueles tramonti infindáveis, era um prazer sentar numa mesa em um costado da piazza e encontrar amigos e conhecidos, saboreando uma pasta asciuta regada por um verdicchio honesto, observando o enxame de andorinhas na torre do domo. Tudo ali transcorria num ritmo medieval. Gostaria de falar de uma cidade especialíssima, Veneza, misteriosa e única, encontro do Ocidente com o Oriente, onde os caminhos de terra se cruzam com os caminhos da água em ágeis pontes, mostrando quão felizes seríamos se não tivesse sido inventado o automóvel. Como o Rio de Janeiro ou Ouro Preto, impossível separá-la da natureza, daquela Laguna Sereníssima em que se espelha. Quem a viu em noite escura ou enluarada, especialmente durante a festa do Redentor com seus fogos de artifício, nunca a olvida. Mas é impossível falar de seus mistérios nos limites destas linhas. Limito-me a citar o espanto de Napoleão Bonaparte ao desembarcar na Praça de São Marcos: “Esta é a sala de visitas da Europa!” Há ainda as cidades barrocas. Vielas que desembocam em largos com imensas fontes que mal cabem em seus espaços, pontes que nos conduzem a partes insuspeitas da cidade. Portadas que escondem pátios singelos ou monumentais, mas sempre úmidos, com uma fonte gemendo em um canto e a hera subindo por suas paredes. Nenhum traçado prévio, senão reformas e intervenções pequenas ou grandes, mas com um senso cenográfico refinado. Temos belíssimas cidades barrocas em Minas Gerais e no Nordeste, mas nem as nossas, nem as fantásticas cidades do leste europeu superam Roma sob a luz dourada mediterrânea. Se quisermos captar a poética das cidades temos que seguir o conselho de Bandeira, vê-las sem história nem literatura, sem mais nada. Palmilhar essas cidades é a única forma de apreendê-las. As urbes islâmicas, medievais e barrocas provam na prática o que a física moderna só veio descobrir no início do século XX, que não se pode separar o espaço do tempo. 142 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Qual é a poesia e beleza dessas cidades? Creio que Baudelaire é quem melhor explicou, ao dizer que a surpresa e o espanto são atributos fundamentais da obra de arte. Niemeyer gostava de citar essa máxima para explicar suas formas nunca repetidas. Quão monótonas são as cidades iluministas, do absolutismo, da racionalidade e da ordem, em que vista uma parte não é preciso conhecer o resto. Mas para nós, arquitetos e urbanistas, é difícil ver a cidade contemporânea, caótica, engarrafada e violenta sem um olhar crítico, embora a poesia urbana não tenha ficado apenas no passado ou na memória. Há poesia também nas metrópoles contemporâneas, como procura resgatar a jornalista Jane Jacobs em “Morte e vida das grandes cidades norte-americanas”, ou mesmo no avesso, do avesso, do avesso paulistano, como descobriu Caetano Veloso, ao cruzar a Ipiranga e a Avenida São João. Há uma diferença fundamental na prática criativa de um poeta e do arquiteto e urbanista. Enquanto o primeiro sublima a realidade construindo um mundo ideal, o arquiteto faz o percurso inverso. Parte de uma ideia pura para construir uma realidade concreta. Isso foi muito bem descrito por um poeta em 1921. Paul Valéry, em “Eupalinos ou o arquiteto”, simula um diálogo entre Sócrates e Eupalinos de Megara, “o construtor do templo”, de quem se torna amigo. Para este a beleza não estava apenas na ideia platônica, senão na sua materialidade. Valéry desenvolve a confrontação desses dois modos de olhar o urbanismo e a arquitetura de forma lapidar. Como um discípulo de Eupalinos, posso afirmar que não há sensação mais prazerosa do que ver o projeto se transformar em construção: circular nos espaços apenas concebidos, conferir a luz que penetra por um lanternim e o enquadramento de uma paisagem por uma janela e sentir a brisa que vem de uma abertura, sentir a cor, o cheiro e a textura da pedra, do concreto, do tijolo e da madeira. Mas a poesia da arquitetura não se limita aos materiais, senão fundamentalmente à geometria, como esses elementos ►► 143 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 são ordenados. Essa geometria é geralmente menos esquemática e racional que a euclidiana. A arquitetura de Le Corbusier, que fazia a apologia da reta e do ângulo reto, pode ser sábia, mas não tem para mim poesia. Já a de seu discípulo Niemeyer, que reproduz as montanhas cariocas e o gingado da mulher brasileira em sua arquitetura, é pura poesia. Os materiais apenas adjetivam a arquitetura e o urbanismo. Catorze séculos antes de Cristo, o poeta e filósofo chinês Lao Tsé dizia: “A realidade de um edifício não consiste nas quatro paredes e no teto, senão no espaço fechado onde se vive.” No século III d. C., Plotino, um também poeta e filósofo nascido no Egito, sentenciava: “Tirai os andaimes, o saibro, a caliça, a pedra, a massa e a argamassa, fica a forma.” Podemos dizer o mesmo da cidade. A realidade de uma urbe não está necessariamente nos seus prédios, belos ou feios, nas calçadas desenhadas, na arborização, ou na sua paisagem de fundo, mas no espaço humanizado e aberto em que vivemos, circulamos e nos relacionamos. Essa é a poética da cidade e quem a faz somos nós, seus cidadãos.* Paulo Ormindo de Azevedo é arquiteto, ensaísta e professor da UFBA. É membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil e consultor da Unesco. Presidiu o Instituto dos Arquitetos do Brasil na Bahia e integrou o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o Conselho Nacional de Política Cultural. Desde 1991 ocupa a Cadeira nº 2 da ALB. Palestra proferida na mesa-redonda “A poética da cidade”, dentro da programação dos Seminários Arte e Pensamento — Transformações da Cultura no Século XXI, no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, em 24 de setembro de 2013. 144 ◄◄ QUATRO AUTORES E UMA CIDADE Imagens de Salvador no conto baiano Carlos Ribeiro E m diversos contos de autores baianos da segunda metade do século 20, fixados, por exemplo, na antologia Panorama do conto baiano, organizada em 1959 por Nelson de Araújo e Vasconcelos Maia, encontram-se frequentemente elementos relacionados aos conflitos, muitas vezes brutais, ocorridos em regiões distantes da capital, a exemplo de tragédias envolvendo índios, jagunços e tropeiros, retratadas por Adonias Filho em “O brabo e sua índia”, e a inevitável presença dos coronéis, para os quais a vida de míseros agricultores “de corpo amarelo e inchado” valia menos do que a das onças caçadas nas matas do Sul baiano, como em “A caçada do coronel”, de Camillo de Jesus Lima. Encontram-se, também, marcas vívidas de um tempo presente, numa selva urbana cuja selvageria traduzia-se no arbítrio da repressão política e da censura, na qual a caça passava a ser o homem comum, perseguido por policiais e delegados soturnos, como no Ariovaldo Matos de “A dura lei dos homens”. Há, com não pouca frequência, na citada antologia, inofensivas vacas mugindo em currais, moleques de fazenda espertos e bajuladores, serpentes traiçoeiras, emboscadas e rezas bravas; mulheres que rezavam e falavam da vida dos outros, porque não havia mais nada a fazer; intrigas mesquinhas e pecados ocultos, numa sufocante atmosfera religiosa do catolicismo predominante; mulheres sonsas e sirigaitas, que dão muito o que falar; praças e retretas, velhos pescadores na luta incansável com o mar; galos ►► 145 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 cantando na madrugada; flertes e lutos; relógios na sala, pessoas circunspectas tomando café na sala de visitas, mulheres com pernas inchadas, suspeitas de gravidezes indesejadas; lanços de escada, cheiro forte de maresia, cardumes de chicharros e pinaúnas, galos cantando nos poleiros, aragens frescas nas manhãs, folguedos, xilindrós e até “um crime de morte que abalava a cidade”. Dez anos depois, em Doze contistas da Bahia, com seleção e prefácio de Antonio Olinto, verifica-se a tendência, bem mais visível, para uma renovação no terreno ficcional, marcado, conforme observa o próprio Olinto, por uma linguagem direta, objetiva, ausência de metáforas e contenção no uso de adjetivos, além de um marcante viés social. Continua presente, nessa antologia, a prepotência do dono de terras e o constrangimento do preso, comum ou político, na prisão, no conto “A morte em tempo de estio na encruzilhada do Desterro”, de Olney São Paulo. As narrativas — fortes, duras, às vezes brutais — ganham nova roupagem, na qual são bem mais frequentes as subversões sintáticas, entre outras transgressões linguísticas. Tendências que ganhariam, nos anos seguintes, forte acento intimista, alegórico e impressionista, com o conto de tensão interiorizada e o de tensão transfigurada pela recriação do código linguístico, conforme assinala Valdomiro Santana noutra importante antologia, O conto baiano contemporâneo, de 1995. Aspectos, estes, todos verificáveis, com maior facilidade, na Antologia panorâmica do conto baiano — Século XX, de 2004, organizada por Gerana Damulakis. Nela pode-se verificar desde a prosa de autores pré-modernistas, como Xavier Marques, Afrânio Peixoto, Amélia Rodrigues e Almáquio Diniz, na qual abundavam expressões elegantes e rebuscadas, incluindo, não raramente, vocábulos franceses, como chantage, croupier, flirt, èglantines e mademoiselles, aos contemporâneos, nos quais se verifica uma forte presença de um estilo mais jornalístico — direto, objetivo, sem rebuscamentos, sem “firulas”. Lá estão expressões como “o convite mudo para o grande amor sem reservas”, encontrado no conto “Um simples farol no 146 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 mar”, de Dias da Costa, mas também “notei apenas que olhava, depois, curiosa, o filete de sangue que lhe escorria pela coxa sempre aberta”, do conto “O rabo da sereia”, de Ildásio Tavares. Mas, certamente, a grande inflexão, formal e temática, seria identificada na antologia Oitenta: poesia & prosa, edição comemorativa dos 15 anos da Coleção dos Novos, lançada em 1996, organizada por Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro. Inflexão que aponta, pela primeira vez, para uma característica do conto feito por autores que surgiram nos anos 80, 90 e no século XXI: a marcante diversidade de estilos, de visões de mundo e de concepções sobre o próprio fazer literário, formando um mosaico que resiste a uma definição unificadora. Nela estão presentes as referências cada vez mais frequentes ao universo midiático, a filmes, a ícones do cinema, da TV e da música pop, que inundam o cotidiano das personagens, com forte acento intimista. O espaço ficcional — as ruas, becos, praias, casarões e casebres de Salvador — torna-se uma espécie de usina simbólica, geradora de sentidos não poucas vezes conflituosos e contraditórios, na qual o público e o privado mesclam-se numa geleia geral, para usarmos aqui uma expressão tropicalista, cujas referências são cada vez mais indistintas. Elementos oníricos invadem o “mundo real”, a perversão insinua-se até mesmo no território até então preservado da infância; estados psicóticos sobrepõem-se a uma suposta normalidade. O sexo em suas diversas facetas, com ênfase cada vez maior no homoerotismo, apresenta-se sem meias palavras, explicitando-se. A violência política reflui, cedendo espaço para a violência urbana, que se instala no cotidiano, torna-se banal. Já vai longe, definitivamente, o tempo em que um crime de morte abalava a cidade... Oitenta, antologia pouco conhecida e, até onde sei, ainda não estudada, adianta algumas pistas da literatura que hoje prolifera na mídia eletrônica e invade os espaços mais nobres do establishment literário — as grandes editoras, as bienais do livro, os festivais literários, os simpósios e congressos acadêmicos. ►► 147 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Apresentarei, a seguir, uma rápida amostra do conto que é feito ao longo do primeiro decênio do século XXI em nosso estado e cuja ação ocorre em um único cenário: a cidade de Salvador. Para isto, escolhi quatro livros, três deles frutos do Prêmio Copene de Cultura e Arte (que depois passaria a chamar-se Braskem): Vidas de rua, do escritor mexicano, então radicado em Salvador, Alejandro Reyes, lançado em 1997; Aflitos, do jornalista, ex-BBB e atual deputado federal Jean Wyllys, lançado em 2001; e Urbanos (2001), da ficcionista, professora e doutora em literatura Alessandra Leila, que passaria logo depois a adotar o nome de Állex Leilla. O outro livro é Cada dia sobre a terra, do poeta, ficcionista, professor e doutor em literatura Marcus Vinícius Rodrigues, lançado em 2010. Composto por quatro contos — “A promessa de Onorina”, “Mariana”, “Manduca do Forte” e “A caridade” —, Vidas de rua, de Alejandro Reyes, traz o olhar de um estrangeiro não sobre a Salvador turística, vendida pela propaganda oficial, mas sobre a cidade “oculta”, dos desvalidos, configurada no território que abrange o Centro Histórico (Pelourinho, Terreiro de Jesus, Ladeira da Conceição da Praia, Santo Antônio Além do Carmo), até a Cidade Baixa, o Forte de Santo Antônio e o Porto da Barra. Suas personagens: A anciã Onorina, que vende doces de coco num tabuleiro, mergulhada na saudade, na esperança e na fantasia do reencontro com o filho Prudêncio, ausente desde os 16 anos, e que lhe pedira, num bilhete, para não morrer antes de ele voltar. Seu precário equilíbrio psicológico, emocional e existencial sustenta-se sobre essa promessa e por uma rotina marcada por pequenos, mas significativos, gestos. Rotina que seria alterada, violentamente, pelo processo de desapropriação de sua miserável moradia e ulterior ação de despejo, movidos pelo governo do estado. A menina Mariana, cuja única alegria era a boneca Julie, de cabelos loiros, pele rosada e olhos azuis, mas suja, com vestido rasgado e cabelo emaranhado, da qual lhe fora arrancado 148 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 um braço. Oriunda de uma casa, na roça, onde o pai, bêbado, espancava a mãe e os seus irmãos, mas para a qual sonhava retornar, a garota fora vendida e prostituída, violentada continuamente por homens “de sorriso guloso e repugnante”, para os quais abria as pernas, fechava os olhos e rezava a Deus para que a deixasse morrer. Manduca do Forte, o velho Manduca, exímio tocador de berimbau, capoeirista famoso, amado e respeitado por mendigos, ladrões, traficantes, guardadores de carros e vendedores de amendoim (único personagem, dentre todos dessa mostra, que guarda alguma similitude com os personagens amadianos). Pai adotivo de todas as crianças desamparadas, cuja história pregressa de malandro é aos poucos desvelada, com seus segredos e culpas terríveis. O menino Robertinho, órfão, morador de rua, guardador de carros, que recebe a promessa de ser adotado por uma bela e rica mulher; promessa não cumprida, que lhe acende uma esperança luminosa, que logo se transforma em revolta. A alegria transbordante cede ao terror desmesurado, ao ódio e ao pavor de quem se vê definitivamente condenado à miséria e ao crime. [...] e desejou com toda a alma que a morte o salvasse de volta a esse mundo do qual acreditava ter fugido e agora o engolia em sua negra perdição, e xingou ao Deus ausente que o havia enganado, e jurou que nunca mais escutaria vozes de esperança, humanas ou celestes, e perdeu-se pelas ruas miseráveis do vício, da imundícia e do desespero... e nunca mais se soube dessa criança que, com cândida alegria, havia colhido, naquele dia, uma rosa para dá-la a sua bela benfeitora. (REYES, p. 93.) Para Alejandro Reyes, as ruas de Salvador, exuberantes de vida, lânguidas, com um savoir-vivre inimitável, ou inundadas de uma alegria febril e por uns momentos desesperada, são, sobretudo, “ruas de miséria, de exploração, de sofrimento, desolação ►► 149 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 e horror”, embora nelas haja também misticismo, amor, paixão, ternura e uma magia indefinível. Nas páginas do seu livro, a humanidade encontra-se no paradoxo do amor e do vício, entre aqueles que caminham na linha que separa a pobreza, na qual há dignidade, do abismo da miséria e do desamparo, onde toda a esperança termina sendo negada. Fora disso, somente a alienação das classes mais privilegiadas e os implacáveis interesses dos poderosos. Sujeira, decadência, velhice, miséria, solidão e exploração econômica e sexual, mas também esperança, solidariedade e bravura são os ingredientes dessa baianidade, que tem um pé na visão marxista (Alejandro é um militante socialista do chamado Terceiro Mundo) e um quê da obra amadiana. O mesmo não ocorre com boa parte dos 39 contos e minicontos de Aflitos, de Jean Wyllys, nos quais se descortina um cenário de extrema violência, em bairros populares e periferia de Salvador, protagonizados por policiais e bandidos, integrantes de grupos de extermínio, com nomes hollywoodianos: Conan, Mike, Rambo, Van Damme. Aqui, tal como na tradição do cinema noir, embora sem a sua necessária sutileza, nenhuma boa intenção subsiste ao cinismo, à amoralidade e aos interesses de grupos organizados. De um assalto a um ônibus, no qual um dos assaltantes, sem qualquer motivo, introduz um cano de calibre 38 na boca de um passageiro e dispara, à invasão de uma casa por três homens, na qual um deles executa um homem com um fuzil AR-15 deixando destroços humanos sobre o chão, não há hesitações ou crises de consciência: o executor em um conto é o executado no seguinte; o parceiro de agora é o adversário de logo mais, que precisa ser eliminado — e tudo está nos conformes, desde que as vítimas pertençam à grande faixa dos desvalidos, dos “invisíveis”, conforme mostra o seguinte diálogo do conto “Cinema sem tela III — O juízo final”: Clint (nervoso): Você cagou tudo, cara! Não posso mais livrar tua cara. A imprensa não sai de cima e as passeatas 150 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 parecem que não vão acabar nunca... Rambo: Por que não pode me livrar?! Você sempre conseguiu fazer isso. Eu matava um cara desses por semana e não tinha problema nenhum. Você sempre dava um jeito de arquivar o caso, mesmo quando existia alguma prova... Também não sei por que essa gente está tão ofendida! Todo dia morre gente no Nordeste, na Palestina, nas Malvinas, no Beiru, e ninguém se importa... Clint: Acontece que o cara que você matou morava na Graça! Quantas vezes vou ter que lhe dizer que você matou o filho de um desembargador? Ainda por cima branco? (WYLLYS, p. 17.) Talvez o conto mais representativo dessa atmosfera de cinismo e amoralidade seja “O fundo do coração”. Dividido em três partes (três depoimentos prestados ao delegado de polícia, relativos ao assassinato de “um homem gordo que sua durante a noite e arrota uísque”). No primeiro depoimento, a própria mulher da vítima confessa ter encomendado a sua morte; no segundo, o criminoso, latrocida, estuprador e posterior amante de sua contratante declara ter matado o homem numa estrada do CIA; no terceiro (a verdade dos fatos), ficamos sabendo ser o delegado o verdadeiro criminoso. Trama sintetizada numa frase pichada no muro em frente à delegacia: “O fundo do coração é um depósito de lixo.” Outros contos que compõem o volume, muitos deles em forma de cartas íntimas, substituem a linguagem crua dos relatos policiais pelo registro lírico de experiências amorosas, em geral homoeróticas, pontuadas por referências a canções, filmes, cantores populares, compositores, cineastas e obras literárias. Acentuam-se, aqui, elementos marcantes na ficção pós-moderna: a do olhar mediado por câmeras de cinema ou da TV; das cenas da vida marcadas por uma trilha sonora. “Será que foram os filmes, principalmente os de Hollywood, que reeducaram nossa forma de ver a vida? Ou eles são o resultado da forma como os ►► 151 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 homens percebem o mundo? Não sei, a verdade é que sempre estou sob um fundo musical, mesmo que nenhum aparelho de som esteja ligado”, diz o narrador de “Preciso de trilha para viver” (WYLLYS, p. 27). O espaço urbano — as ruas, praças, monumentos e o sempre presente Centro de Salvador — não é agora o território da violência exacerbada, mas da solidão, do tédio, da culpa, da volúpia e do desejo de seres que vivem à deriva. O esquema, entretanto, guarda similaridades: continua havendo a caça e o caçador. Em lugar do criminoso e da vítima nos bairros da periferia, surgem os caçadores de sexo em boates, banheiros públicos e cinemas de quinta categoria. “Trata-se de um assédio mudo, baseado apenas nos gestos e olhares. [...] Circulamos como baratas e ratos no escuro, à procura de comida, em meio à imundície e o mofo. Ratos e baratas que, à menor réstia de luz, recolhem-se ao seu buraco” (do conto “Amor sem palavras, cinema mudo”, WYLLYS, p. 35). Também encontramos algo desse “desencontro radical” em Urbanos, de Alessandra Leila. Aqui, entretanto, as tonalidades sombrias do submundo dão lugar a uma paisagem solar de prazeres e desprazeres que explodem, de forma fragmentária, num amplo espectro de cores, que vão do incolor ao fosco, passando pelo “amarelo-ouro”, pelo “bege”, pelo “vinho” e pelo “verde-hortelã”, aliás, títulos da maioria dos 38 contos desse livro instigante e intrigante. A utilização frequente da metonímia, através da qual pessoas são, sem nome e sem identidade, identificadas por suas partes (cabelos, joelhos, bocas e boquinhas, peles, pelos e, sobretudo, virilhas), a descontinuidade e a fragmentação do discurso, recursos da ficção experimental, conferem aos contos e minicontos de Alessandra Leila uma adequação às vezes até surpreendente (para um livro de estreia) com seu universo temático: uma Salvador contemporânea (pós-moderna, pode-se dizer), transfigurada, cuja identidade exigirá, doravante, a montagem de 152 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 um complexo quebra-cabeça. A cidade como palco de influências, na qual as relações e as histórias perdem o fio de continuidade e os signos exigem um esforço de decifração. Que cidade é essa? Quais são os seus personagens? Que voz(es) constrói(em) as subjetividades aqui expostas? Difícil dizer. Lá estão, página após página, seus pontos de referência, sobejamente conhecidos: o Largo 2 de Julho, o Vale do Canela, as avenidas Sete de Setembro, Contorno, Ademar de Barros, Oceânica, o Corredor da Vitória, a Rua da Graça, a Miguel Calmon, a Direita da Piedade, Pelourinho, Ondina, Pituba, a Praia de Stella Maris..., aos quais acrescentam-se, como numa lente que se fecha em detalhes minimalistas, seus prédios comerciais, Santa Cruz, Oxaguian, entre outros, entre tantos; suas barraquinhas de cigarros, goma de mascar e cachorro-quente; seus espaços culturais, a Sala Walter da Silveira, do circuito de cinema de arte, o MAM, o Baiano de Tênis; os colégios Integral, Águia, Ideia; o Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, os outdoors, o TCA, as linhas de ônibus, Santa Mônica, Vale das Pedrinhas, Daniel Lisboa-Barra 2, São Cristóvão, Praça da Sé, Doron R1, Mussurunga, Itinga, Pirajá. A cidade vista pelas janelas dos prédios, pelas janelas dos ônibus, pelas lentes das máquinas fotográficas, pela tela do cinema, pelas páginas dos jornais, devoradas por um olhar faminto, irônico, crítico, que raras vezes se envolve, limitandose a registrar: Depois dos desmoronamentos das favelas das áreas de risco, as famílias se abrigam em escolas públicas ou voltam pra morrer nas próximas chuvas. A Barra anda extremamente vazia após o coronelismo, que fez do Pelô prato caro e digerível. Brancos desconscientizados e negros idem agora se sentem muito melhor, idem os gringos, tanto lá quanto na Vitória, dentro de jeans malcheirosos, pouco respeito e x dollars. (Do conto “Laranja”, LEILA, p. 26.) ►► 153 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ou: Passavam com tamanha incompetência pela Ademar de Barros, tanta roda de carro, meu Deus!, muito mais por causa das condições da pista — buracos, bocas de lobo minando, excesso de pernas querendo atravessar, sinais com defeito — do que, diríamos, dentro de nossa maravilhosa inclinação para nos mostrar no espelho mais bonitinhos e calorosos, o povo mais cordial do planeta, minha gente!, do que, do que... hum... má vontade dos motoristas, dos pedestres, da prefeitura, do sítio da cidade, essa escolha equivocada dos portugueses, oh! Da chuva, de Deus? Vá-se-entender-um-modo-de-vida-assim! (Do conto “Rosa”, LEILA, p. 27.) Ou: E o jornal caído de suas mãos só falava do delegado da polícia civil suspeito de promover chacinas nas periferias e invasões da cidade, de um homem que matara a esposa a pauladas, das famílias que morreram no desabamento das encostas, da greve do funcionalismo público, do discurso do governo tão antigo, tão barato. (Do conto “Verde-hortelã”, LEILA, p. 53.) Diversamente de Alejandro e Jean Wyllys, Alessandra pouco se arrisca, nesse livro, pelas camadas mais pobres da sociedade, e, embora a voz narradora transite com certa frequência entre os registros masculinos e femininos, nota-se certa uniformidade no tom e no seu universo de interesses. Uniformidade essa que nos permite supor um forte acento pessoal, memorialístico, nas referências culturais, inclusive ao ambiente estudantil do curso de letras e a Bom Jesus da Lapa, terra natal da autora. Mas é evidente a identificação com os dois autores acima referidos, no que diz respeito à precariedade da vida da população, cuja desesperança se deve, em grande parte, à negligência dos poderes constituídos, 154 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 estratificados, envelhecidos, que não acompanham a dinâmica da sociedade contemporânea, indefinível nas suas múltiplas faces. Os sete contos do livro Cada dia sobre a terra, de Marcus Vinícius Rodrigues, lançado em 2010, parecem reafirmar os aspectos acima referidos, embora sejam estes bem diversos no estilo sóbrio da narrativa, com períodos mais longos, marcados por uma duração que lhe permite uma sondagem psicológica mais prolongada dos seus personagens. No primeiro conto do livro, “Segunda-feira”, essa sondagem adquire o sentido de uma crítica cultural da nossa sociedade mediatizada e globalizada, através dos devaneios de uma jornalista de meia-idade, num táxi, entre o Jardim de Nazaré, no bairro central de mesmo nome, e o Largo de São Lázaro. O trajeto, descrito passo a passo pelo narrador, pontua um interminável discurso da personagem. Ela despeja sobre o motorista um rosário de queixas que traduz, em última instância, um profundo sentimento de inadequação e estranhamento, aliás bastante familiar para quem está hoje na casa dos 50 anos. Como se pode ver no seguinte trecho em que ela observa algumas pichações no muro do Hospital das Clínicas. — Aqui tinha sempre uma pichação: fora Sarney, fora Collor, fora FHC... Eles só mudavam o nome, o “fora” era o mesmo. Eles estão todos lá agora. Não tem mais luta, moço, agora é cada um por si. Eu tô cuidando de mim. Vou lá ajeitar a minha matéria, cortar tudo bem obediente. Não posso ficar sem trabalhar. Ai, ai. Sou um dinossauro. Se saio da linha, eles me notam e me mandam embora. (RODRIGUES, p. 15-16.) E continua: — Tem muita gente nova por aí. Todo mundo conectado na internet. Eu que não me cuide. O que eles não sabem é escrever, mas são superdescolados. Lá na redação tem uma ►► 155 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 novinha, toda antenada, a cadelinha. Tatuagem, roupinha descolada, magrinha, ela. Aposto que minha matéria vai abrir espaço para um perfil que ela vai fazer de uma banda de rock, ou sei lá o quê, que nem disco tem. Eles lançam as músicas na net, ela falou, toda elétrica. Uma bobagem. Eu ouvi. Uma música que não anda, toda cortada. Não gosto disso, não. Minha filha deve gostar. (RODRIGUES, p. 16.) O engarrafamento, a lentidão do trânsito, o calor intenso contribuem para uma espécie de catarse verbal, através da qual ela despeja, sobre o motorista anônimo e impessoal, toda uma carga acumulada de frustrações, a decadência econômica (“Já tive apartamento na Graça. Vendi. Muita conta, o condomínio era muito alto”), o fracasso conjugal, a dispersão da família, as regras coercitivas (“Aqui não pode fumar, né? Não pode fumar em canto nenhum desta cidade. Meu médico mandou parar. Disse que cigarro mata. Ah, se eu tivesse certeza disso?”), a violência crescente. Esse trânsito! São essas faculdades. Todo dia é isso. Antes tivessem deixado o jornal na Paralela. Pra que mudar? A gente só muda pra pior. E agora é cortar e cortar. Eu tô ficando sem espaço, eu e a cultura desta cidade. Agora é a violência, o crime, o crack... Bandido tem mais destaque que artista. Antes, era uma página pros bandidos e o jornal livre para outras notícias. Agora é só sangue. E é em todo canto, não tem mais jornal que não fale de crime. Até no horário nobre da televisão é assim. Olha só, era aqui que eu vinha comprar flores. (RODRIGUES, p. 17.) Confusa, insegura, a jornalista do conto de Marcus Vinícius encontra-se perdida na selva urbana, buscando referências para uma saída. Referências que não se traduzem mais em certezas, nem mesmo num ato de fé, ainda que more numa cidade caracterizada por um forte misticismo. 156 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Diversamente dos outros três autores aqui referidos, Marcus Vinícius traz, na grande maioria dos seus contos, algum vestígio de esperança, seja em um jovem estudante que, em confronto com a tropa de choque da PM, numa manifestação estudantil em protesto contra o aumento das passagens de ônibus, cumpre um ritual de passagem; seja no dilema de uma jovem mãe solteira abandonada pelo namorado, numa narrativa de tempos alternados, que se estende do cartório da Estação Iguatemi até áreas do Subúrbio Ferroviário, história de desencantamento amoroso com final feliz; seja na menina esquecida pela mãe num shopping, cujo retorno para casa proporciona ao leitor um suspense atroz — não pelo que diz o narrador, mas pelo que acrescentamos dos nossos próprios medos à narrativa; ou no percurso trágico de um menino para a adolescência e as circunstâncias que o levam ao crime — e a uma possível redenção, num final que não se deixa decifrar. A única exceção, talvez, seja o conto “Quinta-feira”, no qual retrata o tormento e a falta de perspectiva de Jorge, um cobrador de ônibus desempregado cuja única distração é apreciar, pela janela do barraco onde mora com a mulher e dois filhos, as águas e os orixás do Dique do Tororó — e os ônibus, lá embaixo, em fila para a Estação da Lapa, “numa romaria de gigantes”. Pareciam os dinossauros daquele filme, todos enfileirados e burros, como gado a caminho do matadouro. Iam se enfiar nos buracos da estação e despachar do estômago as vísceras, os passageiros e suas vidas corridas e ocupadas. Via de longe, apenas, da janela do seu quarto, todos os dias, da manhã até a noite, toda a noite às vezes, quando ficava acordado, sem sono, sem um amanhã esperando, sem hora de levantar e sair para o trabalho. Apenas observava lá de cima o Dique e tudo que em torno dele girava, vivo e veloz, lento e constante. Era como se toda a cidade passasse por ali. Ele, em sua janela, olhava e sentia que não fazia parte daquilo tudo. Nada lhe dizia respeito. (RODRIGUES, p. 47-49.) ►► 157 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Distanciado do mundo, do qual se afastara e no qual permanecia apenas como um observador, Jorge vê o seu sonho de reintegração social (um emprego de despachante numa empresa de ônibus urbanos) ser subitamente interrompido por um crime. Ironicamente, a sua reintegração se dará — assim podemos supor, já que o final permanece em aberto — pela via da tragédia e da violência: a única que o faz sentir-se vivo: “Uma flecha certeira e caçadora que uma vez lançada só pode ser parada pelo alvo fatal.” Numa conferência proferida na Fundação Casa de Jorge Amado, em 15 de maio de 2003, na abertura do curso A Cidade de Salvador na Literatura, o escritor Antônio Torres referiu-se à Salvador retratada nos contos de três autores baianos — Aramis Ribeiro Costa, Jean Wyllys e Carlos Ribeiro — como “uma Salvador sem farofa e sem dendê”. Podemos dizer o mesmo dos demais contistas aqui analisados, intérpretes de uma cidade que, embora perfeitamente identificada nas suas ruas, ladeiras, praças e shoppings, nos seus monumentos, clubes, colégios e até barraquinhas de cigarros e cachorro-quente, recusam enfaticamente os estereótipos da Bahia pitoresca vendida pelas agências de turismo. Em vez disso, escancaram suas dores e delícias num caleidoscópio de anseios, carências, desejos, sonhos (quase sempre desfeitos), taras, ódio, mas também generosidade e grandeza, que nos inclui (a todos nós, seus leitores) num esforço de autodecifração e de testemunho do complexo tempo que vivemos. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Nelson de; MAIA, Vasconcelos (Sel. e prefácio). Panorama do conto baiano. Salvador: Livraria Progresso Editora; Imprensa Oficial da Bahia, 1959. DAMULAKIS, Gerana (Org. e introdução). Antologia panorâmica do conto baiano — Século XX. Ilhéus: Editus, 2004. FONSECA, Aleilton; RIBEIRO, Carlos (Org.). Oitenta: poesia e prosa 158 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 — Coletânea comemorativa dos 15 anos da Coleção dos Novos. Salvador: BDA Bahia, 1996. LEILA, Alessandra. Urbanos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2001. Prêmio Copene de Cultura e Arte. (Casa de Palavras). OLINTO, Antonio (Sel. e prefácio); TAVARES, Ednalva Marques (Org.). Doze contistas da Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1969. REYES, Alejandro. Vidas de rua. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amados, 1997. Prêmio Copene de Cultura e Arte. (Casa de Palavras). RODRIGUES, Marcus Vinícius. Cada dia sobre a terra. Ilust. de Fernando Oberlaender. Salvador: EPP Publicações e Publicidade; Banco Capital, 2010. SANTANA, Valdomiro (Sel., org., prefácio e notas biográficas). O conto baiano contemporâneo. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1995. WYLLYS, Jean. Aflitos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2001. Prêmio Copene de Cultura e Arte. (Casa de Palavras).* Carlos Ribeiro é jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e professor do curso de jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Tem diversos artigos, ensaios, reportagens e livros publicados, dentre os quais Lunaris (romance) e Rubem Braga: um escritor combativo — A outra face do cronista lírico (ensaio). Desde 2007 ocupa a Cadeira nº 5 da ALB. ►► 159 AS MOTIVAÇÕES HUMANAS DESNUDADAS NO CONTO DE HÉLIO PÓLVORA Gerana Damulakis A literatura baiana tem força, tem vigor e qualidade para figurar sem favor no cenário da literatura brasileira. Para deixar os compêndios da história da literatura e voltar a circular entre leitores e estudiosos é sempre preciso haver reedições dos livros esgotados. A Coleção Mestres da Literatura Baiana, publicação conjunta da Academia de Letras da Bahia e da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, pretende justamente fazer o regaste necessário das nossas obras de valor indiscutível, já consagradas outrora, merecedoras de marcar presença no século XXI. Assim, deixando de constar apenas como uma referência histórica, para alcançar o momento presente e ter sua importância reafirmada, a Coleção Mestres da Literatura Baiana iniciou-se com a coletânea de crônicas sobre os costumes e o registro social da Bahia da primeira metade do século XX, de Hildegardes Vianna, com o título A Bahia já foi assim, título bastante sugestivo da pretensão e de um dos critérios a que os volumes devem atender. Nem por isso as obras publicadas na coleção serão de autores já falecidos, pois não visa resgatar autores que já se foram, mas o reaparecimento de obras que não estão mais no mercado editorial. Os tomos seguintes, de números 2 e 3, são Contos e novelas escolhidos do ficcionista Hélio Pólvora. Dos seus 120 textos de ficção curta, Pólvora selecionou 55, sem perseguir a linha do tempo — ele iniciou sua carreira literária em 1958 com o ►► 161 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 livro Os galos da aurora —, embora traga amostras mais recentes, como os contos de 2007. Portanto, a seleção segue suas preferências, compondo uma antologia pessoal ao modo de Jorge Luis Borges. A seleção, sendo vasta, abarca as duas vertentes da contística de Hélio Pólvora, seja a sertanista, seja a urbana. Contudo, independentemente do ambiente, são as motivações psicológicas que dão o tom de cada história. A vertente sertanista, marcada por memórias primeiras, deve-se ao pertencimento do autor ao Sul baiano, tendo nascido em fazenda de cacau e vivido ali, além de testemunhado, uma riqueza de histórias. A vertente urbana é tirada de outro armazém da memória, dos tempos passados como estudante em Salvador e também como estudante no Rio de Janeiro, onde atuou como jornalista e crítico literário. Situado, pois, o mais relevante, no entanto, nos exemplos da obra de Hélio Pólvora, está no que se dá em suas linhas e nas suas entrelinhas, quando entram em perfeita harmonia a memória — já em si invenção, como dizia Saramago — e a literatura, companheira constante, paixão que, contrariando a regra das paixões, não findou desde que as mãos infantis pegavam os folhetins que sua mãe recebia de longe e regularmente, encantando o menino. É possível, então, entrever o estado de espírito que levou o garoto leitor à escrita, mas também é possível entrever bem mais do que isso, porque os temas já começavam a acompanhar o futuro escritor desde o início de sua formação. O elemento autobiográfico é um dos componentes fundamentais da feitura do conto polvoriano, como já apontava Aramis Ribeiro Costa no texto “O caminho da eterna aurora”, estudo introdutório presente no livro Os galos da aurora & outros contos1. A memória, então, sob a técnica refinada do autor, encontra outro componente importante, a literatura. Detendo-se na técnica, Aramis Ribeiro Costa mostra como o autor de Contos da noite fechada2 amplia o fechado círculo narrativo do conto ao usar a superposição das tramas — talvez 162 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 como produtos de memórias que puxam outras memórias ligadas pelo fio do inconsciente: Ou seja: chegado ao limite máximo de extensão permitido pelo gênero — o horizontal — sem desfigurá-lo, transformando-o em novela, o autor ampliou-o verticalmente, superpondo tramas e conflitos que se cruzam e se completam como as malhas de uma mesma rede, ou espirais que sobem e descem, na expansão e no aprofundamento do próprio universo ficcional: uma história dentro da outra história, dentro da outra história, e todas na vastidão interminável das hipóteses. Naturalmente que, nessa atitude, está aquele desejo da busca da verdade “nas curvas de um acontecimento”, expresso pelo personagem-narrador do conto “Meu compadre Tirésio” e permanentemente demonstrado pelo autor. Vale repetir: “muitas vezes a verdade está escondida nas curvas de um acontecimento”. Trabalhar a memória, inventá-la ou reinventá-la, atravessando a obra de forma constante, marcante, artisticamente elaborada: eis o trabalho de Hélio Pólvora com a ficção. André Seffrin, no texto “Momentos singulares”, prefácio do livro Melhores contos3, analisa assim: “a inflexão autobiográfica presidida pela memória de infância, uma infância invadida pela violência das grandes e inevitáveis descobertas, arco da vertigem humana que vai do alvorecer (os galos da aurora) ao crepúsculo (noite fechada). Talvez aí esteja um dos principais eixos (de tema e contratema) desse contista extraordinário, que alcançou a estrada real da ficção contemporânea ao dispensar ramais e caminhos duvidosos e geralmente trilhados por legião de epígonos”. A memória do que foi vivido e a memória do que foi lido são fiéis constantes nos contos e novelas do autor. É difícil crer que um escritor possa não ser um leitor. No caso de Hélio Pólvora, um grande leitor, pois a importância da arte literária na vida cotidiana atinge tão alto patamar, que se faz bastante presente na ►► 163 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 literatura que ele cria. Não se pode esquecer que, por vezes, a música aparece, chegando a intitular um conto como “Für Elise”, além de ser citada em muitas narrativas. Mas é ela, a literatura, que, soberana, é citada, é contada, sendo base para paralelos e reflexões. O escritor argentino Ricardo Piglia, em O laboratório do escritor4, afirma que toda ficção é a soma de tudo que seu autor viu, ouviu e leu. As admirações de Pólvora se expressam nas suas linhas, quer seja a linha tchekhoviana e, por consequência, a linha mansfieldiana, quer seja a linha faulkneriana, e por tais linhas ele compõe narrativas iluminadas por vários faróis. Tantas são as narrativas que, decomponíveis, tal como “Mar de Azov” é extensível em “Pai e filho” — como também foi notado por Seffrin —, acabam por formar um universo polvoriano. Assim se dá igualmente com certos personagens. A respeito dessa peculiaridade, nas palavras do próprio Hélio Pólvora, na introdução de sua antologia pessoal, lê-se: “O Surdo, por exemplo, passou de pai aflito do conto ‘Adamastor’ para exilado, na alegoria ‘O demônio do vale’, e tentou, por fim, abrir caminhos a um vizinho taciturno e recluso, em ‘Aquela casa branca na colina’.” Temas e personagens recorrentes, como diz Pólvora, e também situações abrangendo “as fatias da vida e instantes cruciais que o fascinaram” são marcas que denunciam a paixão pela literatura, criando-a e afirmando-a sempre. Como aproveitamento do tema temos, por exemplo, “O desconhecido”, “O demônio do vale”. Quem faz a leitura literal por entretenimento lê a história. Quem aprecia os recursos literários e seu uso em uma narrativa lê a arte ali contida. Quem guarda a leitura e carrega dentro de si tudo o que leu forma seu cabedal de lembranças, e é assim que se encontram o escritor e o leitor Hélio Pólvora e sua bagagem literária. Para exemplificar como a música também se faz presente nos contos de Pólvora, a lista encontrada na narrativa intitulada 164 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 “Moldávia”, do livro Noites vivas5, dá conta do personagem sonhando com uma vitrola para ouvir Smetana (Bedřich Smetana, compositor checo cuja obra mais famosa é justamente “O Moldava”, do poema sinfônico Minha pátria), a seguir cita “Für Elise” (que mais adiante intitularia outro conto de Pólvora), assim como os concertos de Shostakowsky, os alto-falantes transmitindo dobrados e peças do repertório de Glenn Miller (músico de jazz estadunidense e bandleader na era do swing), e logo aparece um menino de boina a assobiar “Il ragazzo cativo” e o barbeiro que canta umas modinhas cujos versos estão no corpo do texto. O cinema também é uma arte do gosto de Hélio Pólvora e, portanto, volta e meia se faz presente nos textos. No conto em questão, “Moldávia”, é o filme Gilda, com Rita Hayworth e Glenn Ford, que será assistido pelo narrador e seu pai. Mas é a literatura que inaugura o primeiro parágrafo do conto, quando o narrador faz referência ao náufrago Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, depois discute sobre o personagem Amaro, do romance Clarissa, de Érico Veríssimo. A seguir, o personagem, entre outros possíveis entretenimentos, pensa em entrar na biblioteca para retomar — vale reparar que se trata de retomar, e não de tomar — as leituras programadas de ficção norte-americana, e continua olhando os títulos de livros expostos nas montras das três livrarias. Ainda há outra referência, dessa feita ao cinema Jandaia, que acolheu em sarau literopolítico uma figura ilustre, o poeta Pablo Neruda. A complexidade psicológica dá o sabor agridoce, e a variedade de tratamento e de tom faz da leitura de cada uma dessas narrativas uma incursão no inesperado. O modo de ver dos personagens rechaça clichês, porque eles seguem seus instintos e suas motivações, afastados dos ditames erguidos pela vida e pela sociedade. As motivações são sempre circunstanciais. O contista é um observador sutil das estratégias, das heroicas às mesquinhas, sem sentimentalismos, diria, mas também sem cinismo; enfim, o que há é a ousadia ao medir o que é mais importante ►► 165 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 ou mais digno. Em suma, o autor insiste na psicologia do personagem e, sem ser indulgente, chega a admirar suas obsessões e flagrar pessoas no ato involuntário de serem elas mesmas. A leitura do conto “Chuva”, de O rei dos surubins6, é exemplar como amostragem da movimentação no interior dos personagens de Pólvora. No conto em questão, o autor desnuda sem piedade a motivação da velha imóvel no galpão com os braços abertos como asas postas a secar, mãe teimosa, opiniática, que desmanchou os galpões feitos pelo filho e refez erradamente o mesmo galpão de criar aves, só para não receber orientação do dito filho. Abrir os braços sobre o parapeito, como se fossem asas molhadas, sentada à porta desse pequeno galpão, é emblemático da intenção maior que rege a literatura de Hélio Pólvora: a de considerar indivíduos específicos — personagens — como figuras representativas das motivações humanas. Ainda no mesmo conto, “Chuva”, o dono da fazenda, o pai, no auge de uma seca histórica, mandara cavar na pastagem em busca de água. Quando a água minou, ele tapou a nascente, de modo a que brotasse apenas um mísero filete — o suficiente para as necessidades de água da fazenda. Não queria dividir a água com os vizinhos. Mas a história secreta está concentrada na alusão, pois é o narrador que “acha” que ouviu um baque como o de um corpo que caiu na represa: seria o da velha? A história secreta é contada de modo elusivo. E, seguindo com Piglia mais uma vez, a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes. Sendo assim, como está supracitado, o conto de Pólvora traz duas histórias como se fossem uma só, como se dá nos contos de Tchekhov, de Mansfield, de Sherwood Anderson e do Joyce de Dublinenses, trabalhando tensões, as tais motivações humanas, construindo uma segunda história com o que não é dito — e aqui vale lembrar que tudo isso faz parte da teoria do iceberg de Ernest Hemingway: o importante nunca se conta, a história secreta fica subentendida. Nos pontos de cruzamento 166 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 das histórias que estão no mesmo conto, o alicerce da sua elaboração é a memória, consciente muitas vezes, inconsciente em outras ocasiões. O narrador literário tem a mente examinadora, tem seus juízos e seu ritmo para refletir. A memória, em Hélio Pólvora, se faz ato literário, ficção vivida e escrita com a excelência de um grande talento. NOTAS PÓLVORA, Hélio. Os galos da aurora & outros contos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2002. 2 Pólvora, Hélio. Contos da noite fechada. Ilhéus: Editus, 2004. 3 Pólvora, Hélio. Melhores contos. Sel. de André Seffrin. São Paulo: Global, 2011. (Coleção Melhores Contos). 4 Piglia, Ricardo. O laboratório do escritor. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994. 5 Pólvora, Hélio. Noites vivas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1972; 2. ed. Rio de Janeiro: Antares; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1978. 6 Pólvora, Hélio. O rei dos surubins & outros contos. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2000.* 1 Gerana Damulakis é crítica e ensaísta. Publicou O guardador de mitos (poesia), Sosígenes Costa: o poeta grego da Bahia, e O rio e a ponte: à margem de leituras escolhidas. Organizou a Antologia panorâmica do conto baiano — Século XX. É colaboradora de revistas de cultura e de jornais, tendo assinado as colunas “Leitora crítica”, no jornal A Tarde, e “Olho crítico”, na Tribuna da Bahia. ►► 167 CARLOS NELSON COUTINHO (1943 – 2012) Um pensador cosmopolita Florisvaldo Mattos S olidária e acolhedora, em gesto de humanismo pleno, a Academia de Letras da Bahia presta, em sessão especial, sentida e merecida homenagem ao saudoso escritor, cientista político, professor e pensador baiano Carlos Nelson Coutinho. Por me faltarem fundamentos de teor filosófico e confiáveis habilidades verbais, transfiro a outros mais competentes a felicidade de discorrer sobre alguém unanimemente enaltecido como um brilhante e raro intelectual, reservando-me apenas a uma evocação afetiva, como seu amigo e, por um bom tempo, seu cunhado. Em verdade, nestes rabiscos optei por lembrar o jovem de elevada estatura, tez clara, cabelos ruivos encaracolados, olhos castanho-claros, rosto pacato e voz pausada, nos prelúdios de sua caminhada para se tornar um iluminado e fecundo operário das ideias. Embora não confie em datas, creio que o conheci por volta de 1960, ele ainda um estudante que se preparava para o vestibular de filosofia na então Universidade da Bahia, mas já assumindo posturas de analista crítico e contestador de aspectos da realidade com que seu espírito juvenil perspicaz então se deparava, em nada coincidentes com a quietude civilizada de seu ambiente familiar, um oásis de calma e sensatez governado por dois símbolos: o pai, Nathan Coutinho, homem sereno e reservado, em cuja pacata imagem mesclava a figura de um político ►► 169 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 pertencente a um partido de matriz conservadora com a de um poeta forjado na tradição parnasiano-simbolista, elogiado como tradutor primoroso de Baudelaire, e sua diligente mãe, Elza Coutinho, modelo de beleza, elegância e senso prático; enfim, um manso lugar que em nada lhe travava as primeiras elucubrações intelectuais. Durante certo tempo formamos um grupo de convivência em ambiente cordial de franca camaradagem, além de mim composto por ele e por Amélia Rosa Maia, depois Amélia Rosa Maia Coutinho, Fernando da Rocha Peres, Urania Tourinho, depois Urania Tourinho Peres, Roberto Gabriel Dias, Isnaia Santana, depois Isnaia Santana Dias, e Sônia, irmã dele, depois Sônia Coutinho de Mattos, alvos todos das lufadas gentis de um vento casamenteiro. Os anos se sucediam como um alvorecer, coroando um período para nós promissor de vertiginoso pós-guerra, no bojo da guerra fria travada entre as duas principais potências, Estados Unidos e União Soviética, que por aqui, na Cidade do Salvador de então, se traduzia em arroubos de confiança e crédulo fervor, inebriante atmosfera a que o jovem, que na intimidade do convívio todos carinhosamente chamávamos pelo diminutivo Carlito, alegremente se associava. Por outro lado, também vivíamos uma quase romântica euforia suscitada pelo que haviam sido os chamados Anos JK, os dinâmicos cinco anos do governo Juscelino Kubitschek, que ele, presidente, prometia convicto valerem por 50, operando mudanças sensíveis na ordem econômica e social — e por que não também cultural? — em todo o país. E desenhava-se um cenário baiano de futuro imediato promissor, se não de epifanias. As razões se deviam a fatores diversos, tais como: o impulso advindo da produção e refino de petróleo, exigindo intervenções modernizadoras nas estruturas urbanas, especialmente metropolitanas, que repercutiam no crescimento da população e na demanda de mão de obra ativa; as aspirações que levavam a um emergente processo industrial e à reconfiguração das atividades 170 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de comércio; a plena vigência do regime democrático com os eleitos Juracy Magalhães, para governar o estado, e Heitor Dias, prefeito com planos de melhorar a cidade e, com isso, a vida de seus munícipes, que sempre reclamam; as ações de uma Geração Mapa a pleno vapor, com projetos inovadores em literatura, teatro, artes plásticas, cinema e até jornalismo, tanto quanto a presença das novas escolas de arte e institutos da Universidade da Bahia, sob o criativo reitorado de Edgar Santos; até mesmo o surgimento do Jornal da Bahia, uma novidade no ainda acanhado âmbito da imprensa local. Nessa esperançosa atmosfera de mudanças, o novo cenário só favorecia a ciência, as artes, o pensamento e, com ele, a criação e a reflexão. A tal estado de ânimo se ajustariam perfeitamente os versos iniciais de um poema de Yeats, “Velejando para Bizâncio”: “terra aquela que não serve para anciãos,/ os moços a abraçar-se, aves a cantar/ nas árvores...”. É esse o panorama com que se defronta o espírito do jovem Carlito, logo ao se diplomar em filosofia, trazendo consigo os fluidos do amadurecimento cultural que a vida universitária costuma agregar, benéfico a um projeto intelectual desde cedo nutrido e destinado a cumprir-se com sucesso mais adiante. Convivi por alguns anos com esse jovem sereno que muito estudava e a muito aspirava, leitor assíduo de filosofia, de crítica sociocultural e de romances, abraçado a ideias e princípios que priorizava, alimentando o desejo de vê-los concretizados. Jornalista de antenas voltadas para a atualidade, acompanhei de perto esse fecundo trajeto, seja como um interlocutor de temas sociopolíticos em debate, seja como poeta, envolvido com literatura e escrita, inclusive como testemunha de seu visível interesse pela obra de grandes romancistas, em que se revelavam flagrantes conflitos em sociedades surgidas com a revolução burguesa. Falava de autores, romances, ações e personagens com naturalidade, numa perspectiva de realismo crítico de inspiração marxista, que era o cosmos de ideias por onde navegava o seu espírito. ►► 171 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Se era o século 19, não poderiam faltar nomes e obras de três grandes do romance: de Stendhal, as peripécias e audácias de Julien Sorel em O vermelho e o negro, ou do Fabrício del Dongo de A cartuxa de Parma; de Balzac, as aspirações e artimanhas do Lucien de Rubempré de Ilusões perdidas, numa Paris de aglomerado urbano que a complicava, impelido pela revolução industrial; já em Flaubert, atraíam-no os rombos que as angústias de Emma Bovary assestavam na muralhada moral burguesa. Interesse semelhante se manifestava quando os romancistas eram Tolstói, com seus Guerra e paz e Anna Karênina, para logo chegar ao perturbado Raskholnikof no Crime e castigo de Dostoiévski, ou ao Nicolai Gogol de O inspetor geral e Almas mortas. No mesmo diapasão, se o foco era o século 20 não podiam faltar o Thomas Mann de Os Buddenbroock, A montanha mágica e Morte em Veneza, como ainda O leopardo, do italiano Giuseppe de Lampedusa. Em sendo o assunto teatro, fatalmente surgiam nas conversas peças a que não faltava o recorte social, como A morte de Danton, de Georg Buchner, ou A ópera dos três tostões e Mãe coragem, de Brecht. Recordo o ar folgazão com que ele, para priorizar a eficácia da narrativa literária, se referia a uma frase de Stendhal em O vermelho e o negro, ao advertir que “política no romance é como um tiro no meio de um concerto”. Recordo também o tom hilário de suas alusões a uma célebre cena de O leopardo, quando o príncipe de Salina aconselha o filho a se alistar nos exércitos revolucionários para que as coisas continuassem como estavam. Nessas tertúlias cordiais, eu, pouco enfronhado com filosofia e outras ciências humanas, conseguia perceber autores e obras cuja leitura varava suas tardes, noites e até madrugadas. Tinham presença obrigatória, além dos gregos Platão, Aristóteles e Epicuro, os sofistas e os estoicos, também Rousseau e Diderot, mas principalmente Kant, Hegel, Marx, Engels e, por fim, entre muitos outros, o italiano Antonio Gramsci, de cujas teses ele se tornaria o maior conhecedor e propagador na América Latina, 172 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 sem esquecer os nomes da Escola de Frankfurt, sendo que foi pelas mãos dele e de Amélia, sua mulher, que vim a descobrir e ler, na época, o famoso ensaio de Walter Benjamin “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, um ícone da crítica cultural dos anos 60 e 70. Neste ponto, por este rápido e incompleto esboço, me vejo com a comichão de usar um vocábulo, correndo o risco de parecer um juiz apressado, senão trôpego: penso em “sabedoria” como a palavra que mais define o destino do gênio de Carlos Nelson Coutinho, por sua atividade e pela obra de pensador consciente, reflexivo e claro que legou a seus leitores e admiradores. Ele era um sábio. Cerca de cinquenta anos depois, quase nada me ficou de suas preferências quanto ao que não se tratasse de filosofia e ficção literária. Lembro apenas que, em relação à poesia, embora não menosprezasse o estro simbolista, chegando a recitar com entonação peculiar, às vezes jocosa, sonetos do pai, Nathan, lembro-me de sua propensão em eleger obras de poetas cuja imaginação criadora mais se inclinasse para as questões sociais, sem, todavia, abominar o lirismo. Talvez por isso, ou por circunstâncias outras, inclusa a sua admiração pelo modernismo, posso dizer que me senti um felizardo, pois a poesia que eu ousava engendrar na época, com versos que pareciam insinuar utopias telúricas, cantando campos, labutas rurais e heróis rústicos, sóis benfazejos e águas redentoras a moverem rumos, parecia deslizar por remansos, no caudal de sua generosa preferência. Sentia-me lisonjeado ao vê-lo ler ou recitar, em voz alta, versos ou estrofes de poemas que mais adiante iriam compor Reverdor, meu primeiro livro, lançado pelas Edições Macunaíma em 1965. Tracei antes, a propósito desses anos de convivência com esse sereno e pacato rapaz, um retrato da Bahia em plena azáfama desenvolvimentista para livrar-se de sua incômoda carapaça provinciana. Pois bem, vivia-se esse clima saudável em várias frentes, quando de repente, para invocar um verso paradigmático ►► 173 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 do nicaraguense Rubén Darío, “un gran vuelo de cuervos mancha el azul celeste” (traduzindo, “um grande voo de corvos mancha o céu azul”), isso mesmo, de repente um imenso manto de sombra passou a cobrir nosso éden de esperanças, com o golpe militar de 1964, com seu imediato arrastão de suspeitas e violências contra tudo e contra todos os que aspiravam e lutavam por um Brasil melhor e mais feliz. Nessa avalanche de cangas discricionárias, sofrendo coações e constrangimentos inquisitoriais, mais por consciência, palavras e pensamento em defesa das liberdades públicas do que por má conduta ou delito tipificado, nosso filósofo, arauto das ideias socialistas, viu-se obrigado a transferir-se para o Rio de Janeiro, creio que em começos de 1965, ante a ameaça de perseguições e inquéritos militares. Não me tomem por presunçoso, mas estamos diante de um caso que somente os fados explicam. Como aconteceu e aconteceria a outros que viveram semelhantes vexames na ocasião, forçados a deixar a sua terra e os seus para viver em outras plagas, com outras gentes, penso em outra palavra que se encaixa perfeitamente na biografia desse nosso pensador: longe de um ser condenado a fatalidades da vida provinciana, como outros, Carlos Nelson era um “cosmopolita”, sempre o foi, desde o cotidiano infanto-juvenil dos bancos escolares. Cosmopolita, esta palavra que hoje mais reflete gozos e prazeres da modernidade, sugerindo viagens, turismo e comodidades urbanas, na verdade sempre despertou a curiosidade de etimólogos, desde que, dizem, há mais de dois mil anos foi inventada pelos estoicos, na antiga Grécia, incomodados com o fato de as pessoas trazerem no nome, como identidade pátria, um rastro de sua origem geográfica. Isso mesmo, na Grécia a pátria era a cidade onde alguém nascia. Daí os Thales de Mileto, Zenão de Eleia, Heráclito de Éfeso, Apolônio de Rodes e até Aristóteles de Esmirna, que povoaram mentes e livros. Assim, a meu ver, não foram os esbirros da ditadura que forçaram Carlos Nelson Coutinho a mudar-se, a ir-se embora daqui, pois sua vocação era a de um cosmopolita, um cidadão do 174 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 mundo, do cosmos, para seguir a convicção dos estoicos. Desde jovem, jamais ele poderia ser identificado como Carlito da Bahia, rótulo mais apropriado a designar sambistas, capoeiristas ou poetas de cordel, não a um pensador de alta estirpe. A ele dediquei um poema, escrito no calor de horas rudes, açoitadas pelo guante ditatorial nos anos 1970, e que se encontra em meu livro Fábula civil, de 1975, mas publicado antes, em 1968, num caderno semanal de cultura do jornal Tribuna da Bahia, coordenado por Bisa Junqueira Ayres, saudoso ícone intelectual da afirmação feminina entre nós, que todos aqui presentes agora ouvirão, dividindo comigo o íntimo orgulho de recordá-lo em memória do nosso ilustre homenageado: Café matinal A Carlos Nelson Coutinho Agora podemos saber o que é pior: a mente desconexa, a fome a navalhadas. Mesmo que nos reste a ferida dos signos, roto lábio sobre espigas de fel, nada nos salvará, nada será pior. A luz está no caos celebrando vontades durando nos espaços matutinos. No exato momento, ao deus que nos valeu somos gratos — e mudos nem mesmo reparamos que se fende o universo da ilusão. À lição de modéstia que renova o passado dos gestos preferimos o som metálico das vozes — ou apenas nos rendemos ao peso do silêncio. ►► 175 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 II De meu querer me liberto. Agora vejo: a verdade resiste a meu próprio consumo. E sendo credo e coisa, permaneço longe de mim e perto da verdade, canto civil engendrado nas perfídias do tempo, inscrito no muro do sono. Agora vejo claramente: a luz rompe o surdo planalto de bandeiras, favorecida pelo inédito de tudo. Desce e inaugura para sempre o instante anônimo da verdade — o súbito clarão das coisas simples. A luz está no caos. Acorde e veja. Dados biobibliográficos de Carlos Nelson Coutinho Carlos Nelson Coutinho nasceu na cidade de Itabuna, no Sul da Bahia, em 28 de junho de 1943, e faleceu no Rio de Janeiro em 20 de setembro de 2012. Graduou-se em filosofia pela Universidade Federal da Bahia em 1965, ano em que se transferiu para o Rio de Janeiro, onde se dedicou inicialmente à crítica literária e, a partir de 1967, à publicação de livros pela editora Civilização Brasileira. Militante desde jovem do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão, e da crítica cultural, entre os anos 1960 e 1970, dedicou-se ao estudo e à divulgação das obras de Georg Lukács e Antonio Gramsci, dos quais traduziu e publicou obras também pela editora de Ênio Silveira, de quem foi amigo. 176 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Sendo um dos mais destacados pensadores marxistas brasileiros, nos anos 1970 foi obrigado a exilar-se em Bolonha, na Itália, e depois em Paris, cumprindo em ambas as cidades cursos de pós-graduação. Entre os livros que traduziu para o português, encontra-se o célebre O capital, de Karl Marx. A partir de 1986, tornou-se professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aposentando-se em abril de 2012, ano em que recebeu o título de professor emérito pela UFRJ. Coutinho veio a falecer meses depois, aos 69 anos. Construída a partir de meados dos anos 1960, a bibliografia de Carlos Nelson Coutinho consta das seguintes obras: De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política, 2011; Contra a corrente, 2008; Intervenções: o marxismo na batalha das ideias, 2006; Cultura e sociedade no Brasil, 2005; Lukács, Proust e Kafka, 2005; Ler Gramsci: entender a realidade, 2003; Gramsci: um estudo sobre o seu pensamento político, 1999; Gramsci e América Latina, 1998; Marxismo e política, 1994; Democracia e socialismo, 1992; Introducción a Gramsci, México, 1986; Literatura e ideologia en Brasil, Havana, 1986; A dualidade de poderes, 1985; A democracia como valor universal, 1984; Gramsci, 1981; O estruturalismo e a miséria da razão, 2010; Georg Lukács: marxismo e teoria da literatura, 1968; Literatura e humanismo, 1967.* Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta, bacharel em direito e mestre em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia. Presidiu a Fundação Cultural do Estado da Bahia. Foi redator-chefe de A Tarde. Publicou diversos livros, como Travessia de oásis: a sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, e Poesia reunida e inéditos. Desde 1995 ocupa a Cadeira nº 31 da ALB. Palestra proferida em sessão especial da Academia de Letras da Bahia, em homenagem à memória de Carlos Nelson Coutinho, na Sala de Reuniões, em 17 de outubro de 2012. ►► 177 CARLOS NELSON COUTINHO A empreitada intelectual de um comunista reformista Paulo Fábio Dantas Neto M uitos são os ângulos a partir dos quais se poderia enfocar o intelectual Carlos Nelson Coutinho. Se a escolha fosse o ponto de vista da trajetória acadêmica, ter-se-iam que percorrer caminhos que iriam da filosofia ao serviço social, passando pela ciência política, pois ele os percorreu, como professor, pesquisador e organizador institucional, combinando respeito rigoroso aos aspectos disciplinares de cada qual desses caminhos, mas com abrangência de conhecimento e atitude epistemológica que o tornavam afeito, sem afetação de modas, a uma perspectiva genuinamente interdisciplinar. Ou melhor, a uma perspectiva universal, de permanente busca de compreensão da totalidade dialética, tal como definida por Georg Lukács, seu berço filosófico jamais renegado como porta de acesso e metro que o orientou na aproximação informada ao pensamento de Antonio Gramsci e, de um modo geral, ao tipo de marxismo crítico que orientou sua atividade intelectual, acadêmica ou não. Se a perspectiva escolhida fosse a do seu posicionamento político e social, ter-se-ia que englobar na análise as inúmeras nuances contidas na pluralidade intrínseca às noções e às experiências históricas do socialismo e da democracia; e mais nuances ainda decorrentes da intersecção desses dois conceitos e realidades históricas que, juntos ou separadamente, embasaram e emularam, a partir da modernidade, significativas tradições de práxis ►► 179 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 política e social. Esse terreno adubado pela práxis foi visitado incansavelmente por Carlos Nelson, ao longo da sua vida, seja como militante político, seja como ensaísta fortemente dedicado às controvérsias próprias à atividade publicística, seja como tradutor, organizador e divulgador de obras e autores significativos para o seu posicionamento. Um terceiro enfoque poderia ser o da sua inserção no debate sobre a cultura brasileira, no qual pôde aliar mais livremente talento ensaístico e o pendor para a polêmica à sua ampla e refinada formação intelectual nos campos da literatura e das artes. Também por aí o caminho seria exaustivo, pois são vários os enquadramentos possíveis de suas intervenções, pela diversidade de contextos e conjunturas em que interveio, desde o rescaldo dos movimentos de 1968, até mais recentes perplexidades de socialistas e marxistas ante a cultura de massas, passando pelas discussões estéticas sobre ou no âmbito de movimentos culturais contemporâneos à ditadura e à transição democrática. Incapaz de me aprofundar a contento em qualquer dessas compridas veredas, escolhi realçar, como ponto de reflexão e talvez de problematização, a avaliação que suponho ter sido feita pelo próprio Carlos Nelson a respeito do sentido da sua existência profissional, política e social. Suponho — e não só a partir do título de um dos seus livros — que ele se considerava um intelectual “contra a corrente”. Ousarei argumentar que ele foi mais do que isso: querer remar contra marés não foi impedimento, ao contrário, ajudou a que ele fosse (precisasse ser) também um intelectual de pensamento apolíneo, cujo poder de síntese fazia mentes paralisadas por dicotomias vislumbrarem novas harmonias; cujo método sóbrio sugeria equilíbrio a quem se via desesperado nas derrotas; cuja profundidade analítica incutia razão em quem se perdia nos desvãos do irracional; e cuja simplicidade expositiva punha ordem em cabeças confusas, ainda que a pretensão fosse a de arrumá-las para desarrumar o mundo. 180 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Foi assim que pude captá-lo aos poucos, mansa e processualmente, como pregava o seu incorrigível reformismo. Mesmo quando a esse reformismo o pensador acrescentava o teimoso adjetivo “revolucionário”, era o substantivo que reluzia nos seus textos. Quem se limitou a ouvi-lo, ao mesmo tempo didático e inflamado, cheio de superlativos, em palestras, conferências e debates, não acharia depois, na sua palavra escrita, um raciocínio redutor e simplista para transformar a fala em panfleto. Era forte, de modo algum aguada ou conformada, a chama ideológica que emanava da fala e do texto do reformador, mas jamais ela ameaçou queimar navios que pudessem fazer o desejo contrário à corrente navegar em mar possível. Queria reformas, mesmo que não resultassem, como também queria, em revolução; e não cria em revoluções que renegassem e revogassem reformas obtidas na paciente luta política dentro da antiga ordem. Por inspiração de Carlos Nelson e de outros intelectuais renovadores do PCB, palavras e expressões como “via prussiana”, “transições pelo alto”, “revolução progressiva” e, principalmente, democracia tornaram-se frequentes no repertório de fala de comunistas, antes emparedado pelo vocabulário dual e meramente denotativo da luta de classes. Face à sua recentíssima e sentida ausência, talvez não seja muito educado apropriar-me assim da sua obra, a partir da influência que ela exerceu sobre mim. Mas, paciência! Não posso falar de Carlos Nelson Coutinho sem denunciar esse amante inconfesso do equilíbrio e da moderação, que terminou a vida nas fileiras do PSOL. Minha percepção é de que não há nisso contradição, embora pudesse haver, como em suas duas outras opções partidárias, engano. Pois em seu otimismo de vontade buscou sempre encontrar — diria mesmo perseguir — um partido que, diferenciando-se do centro político, fosse capaz de desafiar esse centro, não, porém, para fazer do desafio ação permanente e apocalíptica, e sim para fundar um novo ►► 181 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 centro, que produzisse nova harmonia, novo equilíbrio e nova ordem, mais racional, mais justa, mais democrática, originária, por sua vez, de novos e fecundos conflitos. Nessa dimensão ele foi contra a corrente que historicamente vem condenando os partidos políticos ao veredicto antecipado pela lei de bronze da oligarquia, de Robert Michels. A democracia como valor universal, um ensaio de Carlos Nelson bastante conhecido no âmbito da esquerda brasileira, data de 1979, tempo em que ele ainda militava no PCB. Nele está presente a atitude intelectual a que me refiro, ou seja, o compromisso simultâneo com a mais acesa polêmica e com a sua conversão em novos e amplos consensos. Criticava ainda timidamente a tradição da Terceira Internacional e o marxismo-leninismo, seu produto conspícuo. Mas o fazia — e talvez daí proviesse a timidez — de uma perspectiva que incluía a esperança, que se revelou frustrada, de renovar a política de um partido extensa e intensamente marcado por aquela tradição. Esse limite não escapou ao agudo senso crítico liberal de José Guilherme Merquior, que o acusou de querer obter a quadratura do círculo ao tentar democratizar Lenin. Ao reconhecer, em 1999, validade parcial a essa crítica, Carlos Nelson não só rendeu créditos a um liberal que respeitava, mas antes de tudo expôs sua sensibilidade autocrítica, capaz de facilitar a construção — a partir, em torno ou em oposição a suas ideias — de consensos nada óbvios, sem que haja neles facilidade eclética ou adesão oportunista. Admitir, em 1999, a pouca profundidade de sua crítica, de 1979, ao marxismo-leninismo — e, mais ainda, reconhecer a pertinência desse limite ao contexto da sua inserção no PCB — não o faria, contudo, descuidar da crítica simétrica que seu senso de equilíbrio também dirigira, na versão original do texto, à perspectiva liberal sobre democracia. Os vínculos entre democracia e socialismo eram para ele de tal ordem, que punham sua reflexão teórica em certa dependência da possibilidade de 182 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 encontrar realização empírica na ação de um partido político de nítido perfil socialista. Em 1984, já desencantado com o PCB, mas ainda lhe dirigindo o esperançoso respeito de não considerar definitivo o seu fracasso histórico, Carlos Nelson deixava claro que a republicação de A democracia como valor universal tinha como objetivo contribuir para vencer o desafio de cobrir aquilo que, cinco anos após a fundação do PT, ele ainda considerava ser uma lacuna: Alguns partidos comunistas foram capazes de empreender uma profunda renovação interna que os afastou da tradição esclerosada da Terceira Internacional. [...] Não foi infelizmente, pelo menos até agora, o caso do PCB. [...] A modernidade brasileira exige a criação de um partido socialista, laico, democrático e de massas, capaz de recolher o que há de válido na herança do comunismo brasileiro, mas, ao mesmo tempo, de incorporar as novas correntes socialistas que provêm de diferentes horizontes políticos e ideológicos. [...] Se aceitei o convite [...] para publicar esta nova edição ampliada do meu livro foi por ter a esperança de que ele possa contribuir para ajudar alguns dos seus eventuais leitores a compreender a importância dessa tarefa: a de imaginar e construir um partido que, abandonando qualquer veleidade golpista ou vanguardista, assuma como parâmetro fundamental de sua organização interna e de sua linha política a aceitação do valor estratégico da democracia pluralista na luta pela transformação socialista de nosso país. Parece ter sido, pois, sem maiores ilusões que um pouco depois CNC iria se filiar ao PT, assim se mantendo por mais de duas décadas. Sem ilusões quanto à distância entre a realidade material daquele partido e o ideal revelado pelo texto acima, mas pleno, mais uma vez, de modéstia e de ímpeto de perseguição ao consenso, marca de sua conduta pública, cultivada ►► 183 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 como se fosse quase um valor estético. Apostava em instrumento existente num setor majoritário da esquerda real, representativo de um tipo de esquerda que lhe era até certo ponto filosoficamente estranha, mas que lhe parecia socialmente relevante e, portanto, mais capaz de produzir novo centro. A aposta revelou, posteriormente, seu pouco rendimento, exatamente na medida do sucesso político e eleitoral do referido partido no constituir-se em centro político, porém de uma ordem conservada, que o esforço de consenso buscava mudar. Por aí se pode entender sua passagem ao PSOL: nela se revela a mesma busca, a mesma aposta, cujo rendimento talvez ele ainda achasse cedo para avaliar ou talvez avaliasse como indicativo de que ainda era cedo para desistir. Como sempre, persistiu testando seus limites, até que agora, com a morte, o limite lhe chegasse de modo definitivo. No caso de Carlos Nelson, não apenas o ser político maduro foi, além de um intelectual contra a corrente, um perseguidor de equilíbrios novos por meio de uma razão dialética que produz consensos ao operar num debate livre de ideias conflitantes. Também assim já o fora, na juventude, o estudioso da filosofia, autor de O estruturalismo e a miséria da razão. Ao defender a razão dialética a partir do Lukács maduro, Carlos Nelson lançou mão de sua verve apolínea para interpelar, simultaneamente, o formalismo estruturalista e com ele toda a sorte de agnosticismos filosóficos, bem como formulações romanticamente humanistas ou existencialistas que, a pretexto de recusar a unilateralidade formalista, teriam incorrido, segundo a bússola dialética do nosso autor, em unilateralidade contrária, mas simétrica. Na crítica lukacsiana à destruição da razão pelos segundos, ele achou inspiração para denunciar uma “miséria da razão”, a que se chegava adotando o caminho trilhado pelos primeiros. Assim, mais do que contra a corrente, esmerava-se o jovem autor como um propositor de um tertius entre duas poderosas correntes concorrentes naquela passagem dos anos 184 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 60 aos 70: a do existencialismo e a do estruturalismo, com seus respectivos aliados e derivados. A atitude intelectual de explorar ao limite as possibilidades polêmicas de um tema e ao mesmo tempo divisar terrenos de diluição de dicotomias e de construção de novos “centros” poderá ser encontrada também em várias intervenções de Carlos Nelson em torno do tema da cultura brasileira. Além de no conhecido ensaio Cultura e democracia no Brasil, mais ou menos contemporâneo de A democracia como valor universal, há, por exemplo, suas reflexões publicadas em 1986 pela revista Presença sobre a Escola de Frankfurt e a cultura brasileira, além de outros momentos em que, no trato de temas afins, se mostra sua obsessão pela construção dialética de um tertius, termo em torno do qual, à moda de um centro político, pudessem surgir consensos geradores de novos focos de debate e de reforma intelectual e moral. Foi assim quando usou Gramsci para, por meio de formulações de “bom senso”, para além do senso comum, diluir a dicotomia entre “alta cultura” e “cultura popular”, que reduzia essa última à condição de folclore. Cuidava, porém, que a diluição não se tornasse empreendimento popularesco. Formava decididamente entre os que salientavam a dignidade e a nobreza da alta cultura, crendo, ao mesmo tempo, na possibilidade e na propriedade de levá-la às massas, para elevá-las. Esse ânimo estético e político permitiu-lhe transitar de modo ao mesmo tempo crítico e simpático por temas dados a polaridades extremadas — como o tropicalismo e as telenovelas — e a apresentar de forma inteligente e não sectária até suas compreensões carregadas de sentido doutrinário, como o seu apego um tanto tradicional à ideia de construção de uma cultura nacional-popular. Mesmo aí seu pensar não entrava em contradição com sua cultura e com seu pendor cosmopolitas. Em suma, falar do perfil intelectual de Carlos Nelson Coutinho é discorrer sobre a empreitada intelectual de um comunista ►► 185 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 reformista, crítico radical da política e político obcecado pelo centro, que executou esses seus dois desideratos com alegria e vigor de revolucionário e rigor metódico espartano. Essa é uma dimensão da saudade que ele nos deixou como complemento do seu legado.* Paulo Fábio Dantas Neto é bacharel em ciências econômicas pela Universidade Federal da Bahia, mestre em administração pela UFBA e doutor em ciências humanas (ciência política) pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Vincula-se à UFBA como professor associado e pesquisador do centro de recursos humanos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Palestra proferida em sessão especial da Academia de Letras da Bahia, em homenagem à memória de Carlos Nelson Coutinho, na Sala de Reuniões, em 17 de outubro de 2012. 186 ◄◄ MAJOR COSME DE FARIAS Um educador popular João Eurico Matta N o jornal A Tarde de 14 de março de 1970, ano em que completava 95 anos de idade o então venerado e venerando Cosme de Farias — jornalista atuante desde 1894, rábula autorizado a advogar naquele mesmo 1894, poeta publicado desde 1896, fundador, em 1915, liderando um grupo de cidadãos idealistas, da Liga Bahiana contra o Analfabetismo, vereador eleito do município de Salvador (em 1915, 1917, 1919, 1921 e 1970) e deputado estadual eleito em 1972 —, um artigo intitulado “O Major foi à Hora da Criança”, do professor Adroaldo Ribeiro Costa — famoso jornalista, criptônimo ARCO, e radialista, animador do programa radiofônico, desde os anos 1940, Hora da Criança —, revelava que foi em 1888 que o adolescente Cosme de Farias, aos 13 anos, começou a discursar em público. Se não tivesse falecido em 1972, ainda lúcido e cidadão ativo, aos 97 anos de idade, e pudesse ter vivido até os 107 anos (pois não é que o grande arquiteto e urbanista brasileiro Oscar Niemeyer faleceu recentemente, ainda lúcido e cidadão ativo, aos 104 anos?!), provavelmente, se não certamente, o Rábula do Povo — como o chamou o romancista Jorge Amado numa de suas obras-primas, Tenda dos milagres, transfigurando o Major Cosme de Farias no personagem Damião de Souza, um notável mulato autodidata, à semelhança de outro personagem daquele romance, Pedro Archanjo, metamorfose do baiano Manuel Querino da história real — teria sido, em setembro de 1982, o décimo dos nove mestres que constituíram, nessa data de 1982, o grupo de fundadores da Academia Baiana de Educação, ►► 187 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 a saber: os de saudosíssima memória professores Hermano José de Almeida Gouveia, reconhecido historicamente como “o líder da iniciativa”, Raimundo Nonato de Almeida Gouveia, Adroaldo Ribeiro Costa, Antonino de Oliveira Dias, Antônio Pithon Pinto, Raymundo José da Matta, associados aos educadores, hoje plenamente lúcidos e cidadãos ativos, o cearense José Newton Alves de Souza, nos seus 91 anos, e os septuagenários Edivaldo Machado Boaventura e Remy Pompílio de Souza. Ficou então historicamente associado o nome do baiano Cosme de Farias, nascido em dois de abril de 1875, à Academia Baiana de Educação como patrono de sua cadeira acadêmica nº 15, da qual é primeiro titular o professor João Eurico Matta, autor deste registro. Por ter concluído apenas quatro anos letivos do curso primário, num educandário de seu rincão natal, a suburbana São Tomé de Paripe, das cercanias de São Salvador da Bahia, aquele adolescente que aos 13 anos, em 1888, fez seu primeiro “discurso em público” não pôde diplomar-se professor ou bacharelar-se advogado, mas se tornou escritor como redator de imprensa e poeta aos 25 anos, publicando em 1900 duas coletâneas de poemas ou poesias intituladas Singellas e Lilazes; uma terceira em 1902, sob o título Lira do coração; uma quarta, sem data no impresso, coleção de Trovas e quadras; e em 1933, nos seus 58 anos de idade, o opúsculo Estrophes. A partir de 1915, e por cinco décadas, até os anos 1960, Cosme de Farias publicou o opúsculo intitulado (na edição de 1968 da Imprensa Oficial da Bahia, com 47 páginas) Carta de ABC, da Liga Bahiana contra o Analfabetismo, para as crianças proletárias — Distribuição gratuita, com a epígrafe ou mote “A cartilha do ABC é a chave da sabedoria”, e prefaciada com a seguinte carta: Professor Amigo: Tenha Paciência com a criança que apresentar esta CARTA. Ajude-a. Será um relevante serviço à Pátria. Muito grato, Cosme de Farias. 188 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Como um de seus traços de personalidade — de que dou testemunho por tê-lo conhecido pessoalmente, de perto, nos anos 1950, 60 e 70, como jornalista, rábula (especialmente na tribuna do júri, desde 1930 ao lado dos penalistas Edgard Matta, meu pai, de quem era compadre por ter batizado, em 1932, meu saudoso irmão Paulo Matta, e Dorival Passos, que foi secretário da educação e cultura no governo Régis Pacheco, 1951-1955), ou como militante do assistencialismo humanitário (visitei-o e à sua consorte de tantas décadas, a bondosa D. Semíramis, num de seus escritórios no Terreiro de Jesus) e militante parlamentar, bem como assíduo participante, anualmente, por décadas, do festivo desfile patriótico do 2 de Julho na Bahia, em carro aberto e segurando a trêmula bandeira da Liga Bahiana contra o Analfabetismo — foi sempre o cultivo do humor espirituoso e de risonha esperança, que expressava até com seu modo de trajar solene — colarinho, peitilho e punhos engomados (“para esconder a falta da camisa”, segundo sua primeira e melhor biógrafa, Mônica Celestino) e gravata borboleta, terno completo, ainda que surrado, e chapéu formal de palhinha, até quando pôde usá-lo —, realizou dois feitos editoriais, dotados desse humor esperançoso, nas edições de sua Cartilha do ABC das décadas de 1950 e 1960 (acompanhadas de dois cadernos anexos, o de exercício de “Caligrafia” e o de “Tabuada”, assim intitulados), para os quais se chama a atenção, a seguir. Primeiramente, o Major Cosme fez preceder a essas edições anuais a transcrição de um alegre “Hino da campanha do ABC”, de sua autoria e datado de Salvador, dois de abril de 1950 (dia de seu nascimento em 1875), em sete quadras, a segunda e a sétima ditas estribilhos, todas em redondilhas maiores, transcritas a seguir: Pelo bem de nossa Pátria, Florão Gentil do Civismo, Moços e velhos erguei-vos Contra o Analfabetismo! ►► 189 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 (Estribilho) Desfruta muitos prazeres, Uma alegria sem par, Toda pessoa que sabe Ler, escrever e contar! O gérmen da Ignorância Diversos males produz, Mate-se, pois, esse “bicho” Dentro de um jorro de LUZ! A Ciência é um Tesouro, Tesouro de Alto valor, Quem dedicar-se aos estudos Pode ser dele o senhor! O Brasil será maior, Oh! Que Nação respeitada! Quando toda a sua gente For uma gente letrada! Corações grandes e nobres, Vinde, sorrindo, ajudar A meritória Campanha Da Instrução Popular! (Estribilho) Desfruta muitos prazeres, Uma alegria sem par, Toda pessoa que sabe Ler, escrever e contar! Em segundo lugar, o autor dessa originalíssima Carta de ABC, Cosme de Farias (em dois de abril de 2014 faria 139 anos de nascido!), acrescentou, como apêndice, nas edições da década 190 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de 1960, um bem-humorado texto jornalístico daquele seu amigo, o professor Adroaldo Ribeiro Costa, assinado por ARCO, enunciando 19 chistosamente ditas “Verdades engraçadas” sobre as seguintes “profissões”: barbeiro, dentista, engraxate, advogado, alfaiate, médico, político, pedreiro, astrônomo, carpinteiro, engenheiro, datilógrafo, enfermeira, agrônomo, açougueiro, professor, carteiro, garçom e negociante (assim mesmo, enunciando “datilógrafo” — obviamente sem alusão ao digitador de teclado computacional ou eletrônico — e “enfermeira” no feminino!). Como o Major Cosme, ao inserir esses dezenove dísticos humorísticos de Adroaldo Ribeiro Costa nas páginas 44 a 46 de sua Cartilha, assume uma espécie de coautoria dos mesmos — aliás, redigidos, comicamente, com o verbo ser e outras formas verbais em tempo pretérito —, há espaço aqui para transcrever não todas as dezenove expressões, mas oito delas, selecionadas pelo critério de que algumas definem “profissões” que o próprio Cosme de Farias “praticou”, a saber: Não era turbulento mas só vivia nos barulhos dos outros. Era advogado. Não era religioso mas só vivia fazendo promessas. Era político. Não era vaidoso mas só falava quando todos os presentes ficavam em silêncio. Era professor. Não era indiscreto mas só vivia dentro dos quartos alheios. Era médico. Não era gênio mas quando trabalhava os outros ficavam de boca aberta. Era dentista. Não era ébrio mas só vivia riscando. Era engenheiro. Não era padre mas tinha freguesia. Era negociante. Não era despersonalizado mas só vivia copiando o que os outros faziam. Era datilógrafo. Todos os dezenove dizeres comunicam a profunda simpatia, eminentemente pedagógica e andragógica, e patriótica, do ►► 191 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Major Cosme por tudo o que é humano ou as atividades humanas. A partir da página 19 da edição definitiva de sua Carta de ABC, ele relaciona nomes de “brasileiros notáveis” que ele considerava músicos notáveis (D. Pedro I encabeça uma lista de 19 nomes); militares (nessa lista de 28 nomes figuram o corneteiro Luiz Lopes e a mulher e alferes Maria Quitéria de Jesus Medeiros); oradores sacros (o padre Antônio Vieira encabeça a lista de 22 nomes, entre os quais estão os do cônego Cupertino de Lacerda, do monsenhor Francisco de Paiva Marques e dos padres Antônio Cabral e Gaspar Sadoc da Natividade); oradores (18 nomes, a partir de Ruy Barbosa); jornalistas (50 nomes); poetas (50 nomes, entre eles Luís de Camões e Antônio de Castro Alves); estadistas (30 nomes, de Tomé de Sousa e dona Isabel de Bragança a Getúlio Vargas e outros presidentes do Brasil e governadores do estado da Bahia); e numerosas listas de ilustres magistrados, médicos populares, engenheiros distintos, “homens de grande coração”, marujos, “professores primários brilhantes” e professoras primárias distintas. A seguir, publicamse quatorze quadrinhas intituladas “Versos à infância”, escritos por Cosme nos seus 45 anos, porquanto datados “Bahia, dois de julho de 1920”, e mais uma lista de quinze nomes sob o título “Preito de justiça aos grandes amigos da campanha do ABC na Bahia” e as letras dos seguintes hinos, nomeados seus autores, letra e música: “Hino Nacional Brasileiro”, “Hino ao 2 de Julho”, “Hino à Bandeira Nacional”, “Hino da Proclamação da República” e “Hino da Independência do Brasil”, este com as indicações “Rio de Janeiro, 1822; música de D. Pedro I; letra do jornalista Evaristo da Veiga”. Na contracapa Cosme de Farias assina o seguinte texto: “Homenagem da Liga Bahiana contra o Analfabetismo ao grande patriota Oscar Salvador Cordeiro, o bravo descobridor do petróleo do Lobato.” Ainda em vida, já nonagenário, o Major Cosme de Farias recebeu duas homenagens muito expressivas da excelência de sua biografia de cidadão ilustre e educador popular. Primeiramente, a 192 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Câmara de Vereadores de Salvador deliberou, à unanimidade, dar o nome de Cosme de Farias ao salão nobre de reuniões plenárias da assembleia do poder legislativo municipal. E em novembro de 1967 foi o grande salão do Tribunal do Júri Popular, no Fórum Ruy Barbosa, no Campo da Pólvora, em Salvador, que recebeu, solenemente, o nome de Cosme de Farias. Salão lotado, presentes altas autoridades do poder executivo estadual e municipal, do poder judiciário e do ministério público, Cosme de Farias, 92 anos, foi homenageado por vários oradores, entre estes o presidente do Tribunal, desembargador Nicolau Calmon, e o advogado e professor Edgard Matta, falando em nome dos advogados e educadores baianos, como, entre tantos presentes, Dorival Passos. Disse Edgard, arrancando lágrimas do homenageado: “Cosme não poderia alcançar plena realização humana, como patriota, orador e amigo do povo, sem a compreensão e a personalidade de D. Semíramis, sua companheira de longos anos, que, na morada do casal, à Rua São Francisco, abrigava loucos, pessoas em desgraça e os que, absolvidos no júri pelo marido, saíam da prisão sem destino e sem perspectiva.” Esse registro está no noticiário do Diário de Notícias de 11 de novembro de 1967, onde se lê que a peroração do discurso de homenagem partiu da lembrança da frase “O Brasil é uma eternidade”, que Edgard ouvira em 1945 de um exilado francês, foragido do nazismo, em Campinas, São Paulo, para afirmar, exclamando: “Cosme de Farias não sabe que um povo e a sua cidade, Salvador, não poderiam ter a eternidade que têm se não houvessem sido beneficiados com a vida de um homem eterno — everlasting man — por sua grandeza, a um tempo um mito e um símbolo!” A professora universitária Mônica Celestino, jornalista e doutora em história social pela Universidade Federal da Bahia, publicou em 2006 sua tese/biografia intitulada Cosme de Farias, e em 2012, no volume Personalidades negras: trajetórias e estratégias políticas, publicado pela Academia de Letras da Bahia, com prefácio do acadêmico, então presidente, Edivaldo Boaventura, ►► 193 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 uma conferência sob o título “O Major Cosme de Farias, anjo da guarda dos excluídos de Salvador (BA)”, na qual podemos ler excertos que sumariam, com brilhante objetividade, a vida do educador do povo Cosme de Farias, a seguir transcritos: Cosme de Farias nasceu em dois de abril de 1875, na localidade de São Tomé de Paripe, então uma área longínqua do centro de Salvador. Tinha um irmão gêmeo (Cícero), que morreu na mais tenra idade. Filho do comerciante de madeira Paulino Manuel e de Júlia Cândida de Farias, o menino magricelo cursou apenas o ensino primário e começou sua vida laboral junto com o pai, com a venda de madeira, no final da adolescência. Depois, solidificou uma carreira profícua como rábula e jornalista, tornou-se referência em assistencialismo na Bahia, participou da vida política e cultural da cidade e conquistou fama graças à sua singular forma de vida... O jeito simples e a extensa obra assistencial motivaram uma homenagem em 1909: um grupo o presenteou com a patente de tenente R-2 da Guarda Nacional, surgindo então o codinome de Major Cosme... No dia 15 de março de 1972, morreu em Salvador. Estava a dezessete dias de celebrar os seus 97 anos de idade. Quase um século de existência de um cidadão do povo, educador popular.* João Eurico Matta é bacharel em direito, administrador, professor emérito da Universidade Federal da Bahia, crítico e ensaísta. Foi membro do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Dirigiu várias instituições públicas e privadas, como o Conselho Regional de Administração da Bahia. É membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Desde 1989 ocupa a Cadeira nº 16 da ALB. 194 ◄◄ DORIVAL CAYMMI (1914 – 2008) Joaci Góes C aymmi nasceu em Salvador, a 30 de abril de 1914, e morreu no Rio de Janeiro, em 16 de agosto de 2008, aos 94 anos, três meses e 16 dias de idade, em casa, às seis horas da manhã, vitimado por uma crise de insuficiência renal e falência múltipla dos órgãos, em consequência de um câncer renal que o perseguia há nove anos. Desde dezembro de 2007, encontrava-se sob permanentes cuidados médicos na própria casa. Seus pais foram Durval Henrique Caymmi e Aurelina Soares Caymmi. Descendente de italianos pelo lado paterno, seu bisavô Caimmi, sem o y, chegou ao Brasil para trabalhar na recuperação do Elevador Lacerda, em Salvador. O gosto de Dorival pela música nasceu dentro de casa, ao ouvir parentes ao piano. Seu pai, nas horas de folga do serviço público, tocava violão, piano e bandolim, enquanto a mãe, mestiça de africana com português, cantava durante as ocupações do lar. Sucessivamente, o fonógrafo e a vitrola estimularam-no a compor. Ainda pequeno, participava, como baixo-cantante, em coro de igreja. Aos treze anos, interrompeu os estudos para trabalhar como office boy no jornal O Imparcial. Dois anos depois, com o fechamento do jornal, passa a vender bebidas. Com a música no sangue e na alma, compõe a primeira canção, “No sertão”, aos dezesseis anos. A estreia, como cantor e violonista, ocorreu na Rádio Clube da Bahia, aos vinte anos. No ano seguinte, 1935, assumiu a apresentação de um programa musical denominado “Caymmi e suas canções praieiras”. Em 1936, ganhou o concurso de músicas de carnaval com o samba “A Bahia ►► 195 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 também dá”. Ao completar vinte e quatro anos, segue o conselho de Gilberto Martins, diretor da rádio, e vai para o Rio, com o propósito de trabalhar como jornalista e cursar direito. Nos Diários Associados, conheceu muita gente, inclusive Carlos Lacerda e Samuel Wainer. Logo começou a cantar na Rádio Tupi, duas vezes por semana, onde interpretou, pela primeira vez, o legendário “O que é que a baiana tem?”, canção com que Carmen Miranda, a Pequena Notável, vestida de baiana estilizada, alcançou o estrelato com o filme Banana da terra, de 1938. Do casamento com a cantora mineira Stella Maris (nome artístico de Adelaide Tostes) nasceram os filhos Dori, Danilo e Nana, todos artistas e Caymmi, como ele. A linguagem corporal de Caymmi é expressadora de grande tranquilidade. Na sua voz persuasiva, a morte no mar, que ele tanto amou, aparece como uma ocorrência natural, simples, suave, doce. Sua obra está impregnada da vida a um tempo romântica e trágica dos pescadores negros, como se vê em “É doce morrer no mar”, “Canoeiro”, “Pescaria”, “A jangada voltou só”, “Histórias de pescadores”, “O mar” e muitas outras composições. Com “Oração de Mãe Menininha”, de quem era filho espiritual, composta em 1972, rendeu sua homenagem maior ao candomblé. O violão foi o instrumento que acompanhou sua voz forte e calorosa, desde o início de sua vida profissional, aos vinte anos, até o alento derradeiro, setenta e quatro anos depois, na composição e execução de um cancioneiro que o imortalizou como cultor do samba e da bossa nova. Caymmi enriqueceu sua biografia artística também como pintor e ator. Os hábitos, costumes e tradições do povo baiano foram a fonte primária de sua inspiração, tendo a música negra exercido forte influência sobre ele, levando-o a desenvolver um estilo inconfundível de compor e cantar, como destacou Chico Buarque, valorizando a espontaneidade, a sensualidade e a riqueza melódica dos seus ritmos e versos. Nenhum outro compositor brasileiro 196 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 produziu tantas obras fixadas na memória popular, a exemplo de “Saudade da Bahia”, “Rosa morena”, “Maracangalha”, “O dengo que a nega tem”, “Samba da minha terra”, “Doralice”, “Marina”, “Modinha para Gabriela”, “Saudade de Itapuã”. Homenageando o grande cantor do mar que, despedindose do pai e da mãe, pegou o “Ita no Norte e foi pro Rio morar”, Gilberto Gil, amigo e ex-genro, disse, cantando, que “Dorival é ímpar, Dorival é um Buda nagô”. Caetano Veloso foi mais longe: “Eu escrevi 400 canções e Dorival Caymmi, 70. Mas ele tem 70 canções perfeitas, e eu não.” Na verdade, Caymmi deixou em torno de cem canções, em seus 94 anos. Explica-se essa produção numericamente pequena, relativamente à sua longevidade, porque seu método de compor oscilava entre a produção de um só impulso criativo e um burilar intermitente, que poderia levar anos em torno de apenas uma composição. O resultado, porém, é o que todos conhecemos: obras-primas. Tom Jobim, por sua vez, disse: “O Dorival é um gênio. Se eu pensar em música brasileira, eu vou sempre pensar em Dorival Caymmi. Ele é uma pessoa incrivelmente sensível, uma criação incrível. Isso sem falar no pintor, porque o Dorival também é um grande pintor.” Dos teóricos, apegados ao gosto de estereótipos, que tentaram enxergar na sua criação certas motivações ideológicas, Caymmi se ria, porque sua inspiração fundamental nasceu da experiência sensitiva, sua memória das pessoas da rua e da beira da praia, com quem conviveu intensamente até os 24 anos de idade, quando se mudou para o Rio. Pode-se dizer que esses primeiros anos foram a matriz inspiradora de todo seu rico processo criativo, imune às modas e às diferentes correntes partidárias ou ideológicas que tentaram atraí-lo para seu campo de influência. Nem as frequentes alusões aos negros, ao ritmo, à comida e ao candomblé de origem africana representaram qualquer tipo de engajamento. Sua motivação foi sempre de natureza afetiva, ►► 197 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 espiritual, amorosamente poética, como quando se vinculou aos terreiros de Casa Branca e Ilê Axé Opó Afonjá e quando compôs “Oração de Mãe Menininha”. Em várias canções, como em “Maracangalha”, de 1956, e “Saudade da Bahia”, de 1957, a Bahia aparece como um lugar cheio de exotismo e magia, conforme se encontra em muitos textos entre a última década do século XIX e as três primeiras do século XX, em que são frequentes as referências a elementos da cultura africana, como a religião, o vestuário, o ritmo, as danças e a comida, com um rico universo de ingredientes e iguarias, como o dendê, o acarajé, o efó, o vatapá, a farofa, componentes básicos do famoso caruru. A canção “O que é que a baiana tem?”, além de catapultar Carmen Miranda para a fama (foi dele a sugestão para que ela, vestida de baiana estilizada, incorporasse e projetasse internacionalmente o perfil da mulher baiana como a expressão máxima de dengosa feminilidade), exerceu grande influência na música popular brasileira, sendo imitada por vários compositores, como Pedro Caetano, Joel de Almeida e Raul Torres. Sem dúvida, não há quem possa rivalizar com Caymmi na fixação da boa imagem da Bahia mundo afora, ao lado de Jorge Amado no campo das letras. Os que atribuem a Caymmi a responsabilidade pela formação da imagem do baiano como preguiçoso, avesso ao trabalho, equivocam-se. Em primeiro lugar porque essa imagem é anterior a ele. Em segundo porque a valorização hedonística que faz de certos requisitos fisiológicos, como o sono, o bem comer, o amor e a alegria de viver, não exclui a dureza da vida, como se vê na perigosa labuta dos pescadores, que vão perigosamente ao mar. Seu personagem masculino mais conhecido, João Valentão, só descansa depois de cumpridos os deveres de assegurar o ganha-pão. A afetuosa relação de Caymmi com a terra natal não foi afetada por certo ressentimento que alimentou relativamente aos seus governantes. Queixava-se de não ter na terra natal, que tanto 198 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 amava e projetou através de suas canções, o reconhecimento que lhe era tributado em outros estados. A venda, porém, da casa no Rio Vermelho, que recebera da Bahia durante o governo Luís Viana Filho na década de 1970, nada teve a ver com esse ruído afetivo, como foi propagado. Ocorreu pela combinação de dois fatores: seus compromissos profissionais estarem sediados no Rio e a família da mulher, Stella, que não viajava de avião, viver em Minas Gerais. Diante da impossibilidade de conciliar os compromissos no triângulo Rio-Salvador-Belo Horizonte, Caymmi optou pela venda. Coube à neta Stella Caymmi escrever o melhor trabalho existente sobre o ilustre avô. Cancioneiro por ordem alfabética « A jangada voltou só — A lenda do Abaeté — A preta do acarajé — A vizinha do lado — Acaçá — Acalanto — Acontece que eu sou baiano — Adalgisa — Adeus — Adeus da esposa — Afoxé — Alegre menina — Aruanda — Balada do rei das sereias — Caminhos do mar (rainha do mar) — Canção da partida — Coqueiro de Itapuã — Das rosas — De onde vens — Desafio — Desde ontem — Desenredo — Dois de fevereiro — Dora — Doralice — É doce morrer no mar — Eu cheguei lá — Eu não tenho onde morar — Festa de rua — Fiz uma viagem — Francisca Santos das Flores — História pro sinhozinho — Horas — João Valentão — Lá vem a baiana — Maracangalha — Maricotinha — Marina — Milagre — Modinha para Gabriela — Modinha para Teresa Batista — Morena do mar — Na Baixa do Sapateiro — Na cancela — Na ribeira desse rio — Não tem solução — Navio negreiro — Nem eu — No tabuleiro da baiana — Noite de temporal — Nunca mais — O bem do mar — O cantador — O dengo que a nega tem — O mar — O que é que a baiana tem? — O vento — Oração de Mãe ►► 199 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Menininha — Peguei um Ita no Norte — Pescaria — Promessa de pescador — Quem vem pra beira do mar — Rainha do mar — Requebre que eu dou um doce — Retirantes — Roda pião — Rosa morena — Sábado em Copacabana — Samba da minha terra — Santa Clara clareou — São Salvador — Sargaço mar — Saudade — Saudade da Bahia — Saudades de Itapuã — Severo do Pão — Só louco — Sodade matadeira — Suíte do pescador — Tão só — Temporal — Tia Nastácia — Trezentas e sessenta e cinco igrejas — Tu — Um vestido de bolero — Vamos falar de Tereza — Vatapá — Velório — Versos escritos n’água — Vida de negro — Você já foi à Bahia? — Você não sabe amar » REFERÊNCIAS CARVALHO, Marielson. Acontece que eu sou baiano: identidade e memória cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi. Salvador: Eduneb, 2009. CAYMMI, Stella. Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001. RISÉRIO, Antônio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva, 1993.* Joaci Góes é bacharel em direito, escritor, orador, político, empresário e consultor educacional. Foi deputado federal constituinte em 1988, tendo sido o relator do Código de Defesa do Consumidor. Publicou A inveja nossa de cada dia: como lidar com ela, Anatomia do ódio e A força da vocação para o desenvolvimento das pessoas e dos povos. Desde 2009 ocupa a Cadeira nº 7 da ALB. 200 ◄◄ A BIBLIOTECA JORGE AMADO Comemorando o centenário do acadêmico Edivaldo M. Boaventura N o ciclo do centenário de Jorge Amado, aberto em 10 de agosto, estudiosos intensificaram a pesquisa da obra do grande romancista. Ao mesmo tempo, quem o conheceu mais de perto recorda o homem atencioso, educado, simples no trato e generoso no acolhimento. As comemorações dos cem anos recompõem momentos inesquecíveis, como a vinda do ministro da cultura da França, Jack Lang. Juntos, programamos a visita. Jorge ofereceu-lhe um democrático almoço no Restaurante Maria de São Pedro, no Mercado Modelo. Encarreguei-me da parte oficial, da visita ao governador, que recebeu do ministro uma bela porcelana azul-marinho com frisos dourados da Manufatura Oficial de Sèvres. No almoço, no Iate Clube, o ministro revelou-me que o governo francês outorgara a Jorge a distintíssima Ordem da Legião de Honra. Fui o primeiro a saber e pronto: comuniquei aos presentes. Voltando a morar em Salvador, na casa do Rio Vermelho, no início dos anos sessenta do século XX, Jorge Amado se reintegrou à vida da cidade e de sua gente. Com amigos de sua geração na Academia de Letras, era lógico que se cogitasse de sua entrada. Todavia, declinou, inicialmente, do convite e indicou o contista Vasconcelos Maia, que tomou posse sem discurso formal, apenas leu um conto. Jorge havia sucedido a Otávio Mangabeira, na Academia Brasileira, em 1961. Passado algum tempo, os acadêmicos insistiram pelo seu ingresso na Casa de Arlindo Fragoso. Jorge concordou em suceder ►► 201 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 a Estácio de Lima. Para a posse, submeteu-se a usar um quente e desconfortável smoking que o fez suar bastante quando lia a sua bem lançada fala. Deu total atenção à cerimônia de posse. Seguiu o ritual. Trouxe toda a família e a coorte de amigos de São Paulo e do Rio de Janeiro. A noite de sete de março de 1985 foi bela e transfigurada. Começando pelo patrono da Cadeira, Francisco Bonifácio de Abreu, Barão da Vila da Barra, tradutor da Divina comédia de Dante, preferiu evocá-lo como o romancista de Teresina e Palmira ou A ceguinha brasileira. Seguindo a tradição, procedeu ao elogio de Estácio, com destaque para a ficção de A aeromoça e outras... O procedimento elegante com os antecessores confirma que uma cadeira acadêmica é um monumento pelo que acumula de cultura e conhecimento. Prolongando aquele momento solar, falei inaugurando o seu busto, obra de Celita Vacanti, no Jardim das Esculturas. Fora do meio acadêmico, era o mesmo Jorge atencioso com os mais simples nos encontros pela vida. Às vezes em que nos deu a honra de almoçar conosco, no final não só agradecia a Solange, como ia até a cozinha cumprimentar a cozinheira. Enviou para a nossa Maria José um livro com dedicatória. Posso dizer que foi o primeiro comensal que vi cumprimentar, regularmente, a chefe da cozinha com naturalidade e afeição. Sempre que viajava, mandava-me cartão postal. Sabendo da minha opção pelo ensino, regressando de uma viagem a Cuba trouxe-me uma caixa de livros sobre a educação cubana. Quando lhe outorguei a Medalha Castro Alves, recordei a sua única experiência docente, pois foi professor visitante da muito querida Universidade do Estado da Pennsylvania. Com o erudito doutor Gerald Moser, Jorge criou o Clube do Bate-Papo. Qual não foi a forte emoção que me possuiu totalmente quando o curador de obras raras da Pattee Library mostrou-me os seus romances autografados e zelosamente guardados ao lado de requintada edição de Os lusíadas e de livros italianos dos séculos 202 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 XVI e XVII. Tive, então, a sensação e o orgulho de encontrar um brasileiro ombreado entre os maiores escritores da humanidade! Quando o abracei, já com a Medalha Castro Alves no lado esquerdo do peito, ele me disse: “Você me emocionou.” Perto de deixar o cargo de secretário, deu-me a Medalha Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras. Comemorar o centenário é relembrar leituras, passagens e encontros, incentivos para novas ponderações. No conjunto, Jorge Amado escreveu uma rapsódia com o colorido vibrante dos capitães de areia, dos coronéis, dos matadores por causa de terra, das prostitutas e dos vagabundos, das tocaias e dos feitiços. Concebeu a Bahia na sua plenitude social. A Bahia com todo o seu imponderável está em sua obra. Capitães da areia é a antevisão pioneira, humana e extraordinária dos meninos de rua. A cultura do cacau, centrada nos problemas da terra, na peleja da vida e da morte. A vinda dos sergipanos e dos árabes, sírios e libaneses, que chamávamos de turcos. Turcos, entendase, por causa do passaporte do antigo Império Otomano. Como filho de sergipano, sentiu bem profundamente a luta do pai, desbravando a mata para plantar cacau. Anos depois, morou em Estância, Sergipe, confinado pelo Estado Novo. A ditadura Vargas não brincava com ninguém, principalmente com os membros do Partido Comunista; depois, prendeu também os integralistas. Seguem-se os grandes romances urbanos dos personagens com os quais convivemos. Tipos que encontramos no nosso cotidiano. O Vadinho é o mais conhecido de todos. Baiano criado em Salvador sem maiores compromissos, a não ser com a sua própria vida. Tieta, a mulher do agreste, que fez vida em São Paulo, ganhou dinheiro e voltou. O agreste ou o sertão baiano não podia estar ausente na geografia temática do escritor. Jorge conheceu bem Salvador na juventude. Veio para a Bahia para os estudos, no Colégio Antônio Vieira, como muitos dos filhos da lavoura. Conheceu a liderança do padre Luiz ►► 203 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Gonzaga Cabral, que descobriu muito cedo o seu talento de escritor numa composição sobre o mar. O jesuíta o introduziu na literatura mundial. Mas um dia o menino grapiúna fugiu, libertou-se do internato e refugiou-se em casa dos avós paternos em Sergipe. O tio Álvaro foi buscá-lo. Retornou e estudou no Ipiranga. Segue o seu destino de jovem e adulto. Passa pelo jornal O Imparcial, como muitos da sua geração. Vai para o Rio. Milita no Partido Comunista. Enfim, dá volta pelo Brasil e pelo mundo. Pelos anos sessenta, voltou para ficar, na casa acolhedora do Rio Vermelho. Viver na Bahia com todas as misturas. Campo extraordinário de observação e percepção aguda e profunda, pátria das suas maravilhosas personagens. Há um Jorge de Ilhéus e há um Jorge da Cidade da Bahia. Por isso, há nele toda a complexa Bahia, das misturas, às vezes difícil de ser entendida por outros. Ele ajudou a entender o Brasil como um país tropical e mestiço, para tanto parte e termina na Bahia, um lugar onde há povo sofrido e alegre, como bem demonstrou. Toda a sua obra é uma tese sobre a Bahia, sua gente, seu comportamento e seus procedimentos. Vivendo na Cidade da Bahia, convive com todos. Registra tudo, não, recria. Acho sumamente importante como captou o proceder baiano. A trama de mexidos e de fuxicos, das conversas e dos ditos graciosos e picantes. Dona Flor é uma citadina possuidora de receitas de doces, que todos nós conhecemos. Gabriela é outra criação monumental. É a própria natureza indomável. Poderosa e portentosa. Em matéria de Gabriela, prefiro a languidez morena de Sônia Braga. Como Jorge captou o gosto médio de nossa gente! Para lembrar o centenário, reli de um jato O menino grapiúna. A vida de tantos outros meninos que viveram quando criança a saga do cacau. Com a vitória dos pais, vieram depois estudar na Bahia. Tive vários colegas que no colégio me contaram histórias semelhantes. 204 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Para comemorar os cem anos, revejo o cancioneiro do poeta, o ABC de Castro Alves. É a biografia do nosso poeta mais difundida no mundo. Ao terminar a sua leitura, faz um bom tempo, mandei-lhe uma carta. Gentilmente, me respondeu: “Castro Alves e Rui Barbosa são os dois polos da cultura baiana.” Enfim, da casa do Rio Vermelho passou à Casa de Góes Calmon. Juntou-se aos amigos na convivência acadêmica. Fincamos o seu busto no chão da Academia e, neste centenário, o patrocínio da biblioteca. Recordando esse inusitado encontro de Jorge na Pattee Library, propus que a biblioteca da Academia de Letras da Bahia fosse por ele titulada. A minha indicação no ano pretérito, 2011, visualizava o seu centenário, em 10 de agosto de 2012. A proposta foi aceita por unanimidade. E mais, o dedicado presidente da Academia, escritor Aramis Ribeiro Costa, efetivou a sugestão, denominando-a, oficialmente, de Biblioteca Jorge Amado, no festejado mês de agosto de 2012. A Academia seguiu, assim, o exemplo da Biblioteca Ruy Barbosa do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, da Biblioteca Anísio Teixeira da Faculdade de Educação da UFBA. Mais recentemente, o Instituto Cervantes homenageou Nélida Piñon pondo o seu nome na biblioteca. O pequeno acervo de livros da Academia, originário da antiga sede no Terreiro de Jesus, foi crescendo pelas doações individuais e, sobretudo, pela agregação de coleções e bibliotecas. Integrou a valiosa biblioteca de Odorico Tavares, rica em livros com dedicatórias, como as de Carlos Drummond de Andrade. As coleções de Waldir de Oliveira e Souza e de Álvaro Nascimento enriqueceram o acervo da Academia. Em vida, o próprio Jorge Amado muito contribuiu, enviando frequentemente caixas e mais caixas de livros para a biblioteca que hoje tem o seu nome. Essas obras não somente aumentaram o acervo, como também possibilitaram reunir autores baianos. Biblioteca aberta ao público, ela tem suscitado constantes consultas de estudiosos e de alunos. ►► 205 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 A denominação da biblioteca com o nome de Jorge Amado, posta assim sob sua proteção, não é tão somente uma maneira de assinalar o centenário. A designação quer ser mais do que uma comemoração passageira. É expressão maior do reconhecimento por sua grande obra e também pelo nosso afeto. Manifestamos, assim, a convivência, a amizade e o carinho com o querido confrade Jorge Amado. Com Jorge e com Zélia, que se uniram, na mesma Cadeira de número 21, pela continuidade da sucessão. Jorge nomeia a biblioteca cem anos depois de nascido. Antes, o perpetuamos nos jardins da Academia. Recordemos, emblematicamente, com os gregos “nos jardins de Academo”, primeira referência ao prestigioso vocábulo. Pois bem, a Academia de Letras da Bahia, honrosamente, acresceu, entre os mais altos títulos de honorificência, o de acadêmico titular da Cadeira de número 21, na memorável noite de sete de março de 1985. Desejávamos, porém, que, entre os títulos e prêmios, ficasse fincado no chão da Academia outro tributo que, solarmente, testemunhasse a nossa admiração e o nosso culto votivo e afetivo pelo legado de sua obra, engrandecedora que é de nossa terra e de nossa gente. Os seus personagens são parceiros do nosso cotidiano. Na Academia, o nosso pacto de amor e louvação, pelo excesso de beleza e lição de liberdade que recebemos desde as páginas inaugurais do País do Carnaval às derradeiras linhas da poderosa Navegação de cabotagem. O nosso pacto de amor e louvação, pelo busto, esculpido e tocado de perpetuidade pelas mãos de Celita Vacanti. O busto abre a galeria no Jardim das Esculturas. Seguiram-se para lhe fazer companhia Arlindo Fragoso, fundador do sodalício, Otávio Mangabeira, a quem Jorge sucedeu na Academia Brasileira, Pedro Calmon, Cervantes, Jorge Calmon e Góes Calmon, construtor do Solar do Caquende que nos alberga. Jorge não se encontra tão somente no jardim e na biblioteca, mas na nossa lembrança aquecida de amizade. 206 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 REFERÊNCIAS AMADO, Jorge. Discurso de posse do escritor Jorge Amado. Revista da Academia de Letras da Bahia, Salvador, v. 33, p. 231-240, 1985. BOAVENTURA, Edivaldo M. A segunda casa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. __________. Jorge Amado. In: ______ Gente da Bahia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 117-118. __________. Machado de Assis. In: ______ Gente da Bahia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 149-159.* Edivaldo M. Boaventura é ensaísta, pesquisador, professor emérito da UFBA, autor de diversos livros de ensaios, sócio de inúmeras instituições culturais no Brasil e no exterior. Foi secretário de educação e cultura do estado da Bahia, diretor-geral do jornal A Tarde e presidente da Academia de Letras da Bahia, da qual é membro benfeitor. Desde 1971 ocupa a Cadeira nº 39 da ALB. Palestra proferida em sessão especial da Academia de Letras da Bahia, na cerimônia de inauguração da Biblioteca Jorge Amado, em oito de setembro de 2012. ►► 207 POESIA, MANJAR DO DEMÔNIO Três poetas no cenário baiano João Carlos Teixeira Gomes A Bahia é terra pródiga em poetas, não fosse baiano o maior de todos eles, o moço Castro Alves. Em nossas plagas ninguém parece ter dado maior importância à opinião de um beato da igreja para o qual “as obras dos poetas são o manjar do demônio”. Conversava eu outro dia com o acadêmico Joaci Góes e concordamos em que a maior apóstrofe da literatura universal é da autoria de Castro Alves, quando, em “O navio negreiro”, dirigindo-se ao Senhor do Universo, indaga, desafiadoramente: “Deus, ó Deus, onde estás que não respondes?” Soberba frase de moço petulante! Bem podemos conceber o efeito que versos de tal força causariam em plateias arrebatadas pela voz abaritonada do belo jovem, compostas não só pela legião das donzelas apaixonadas, mas também pela presença carrancuda dos donos de escravos que aquela poesia afrontava. Não estou escrevendo estas linhas, porém, para falar de Castro Alves. Quero hoje ocupar-me de três lançamentos ocorridos em Salvador no ano findo, 2013, dando curso à saudável mania baiana de divulgar poesias. Refiro-me, pela ordem de publicação, aos volumes Estação infinita, de Ruy Espinheira Filho, Horta de poesia, de Fernando da Rocha Peres, e Antologia poética, de Affonso Manta. ►► 209 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ruy Espinheira Filho Desde o momento em que ganhou o concurso nacional Cruz e Sousa, Ruy Espinheira Filho tem sido um dos autores baianos mais pródigos e mais editados. Sabe cuidar com grande determinação do seu acervo poético, já bastante denso, pois, como ele próprio confessa num dos seus versos, Ruy costuma acordar “ouvindo a máquina de escrever/ trabalhando nítida/ cinquenta anos atrás”. Hoje um saudável setentão, Ruy trocou a máquina de escrever pelo computador, que sabe manipular como mestre e com o qual mantém diálogo permanente com poetas de todo o Brasil. A sua veia de comunicador está naturalmente condicionada pela sua vocação de jornalista e cronista do quotidiano. Do ponto de vista formal, Ruy Espinheira Filho potencializa a sua expressão poética pelo uso do verso curto, mas é também hábil no manejo do decassílabo, tanto assim que publicou um Livro de sonetos. O decassílabo costurou o prestígio do soneto na poesia brasileira. A temática do poeta é rica e variada, sempre marcada pelo sopro lírico que o torna um intérprete habitual dos estados de alma, dos legados da boemia e da alegria da noite desfrutada com intensidade, das reações emotivas, das recordações que ajudam a sedimentar no texto o patrimônio da vida, unida pelos polos extremos do fluir do tempo, como ele expressa nesta “Canção de aniversário”: De novo o Tempo me traz a este porto de dezembro que é sempre o mesmo e sempre outro em tudo que em mim relembro. 210 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Fernando da Rocha Peres Embora seja também um poeta lírico, diversos foram os caminhos buscados pelo poeta Rocha Peres. Tendo-se dedicado à pesquisa histórica e aos estudos eruditos do passado colonial baiano, de que é exemplo maior o seu minucioso levantamento da vida obscura do poeta Gregório de Mattos, Fernando da Rocha Peres foi progressivamente partindo da mensagem confessional para a elaboração de uma poesia marcada pela densidade cultural da matriz luso-baiana. Não por acaso, de longa data, o poeta se dedicou igualmente ao estudo do patrimônio urbano de Salvador, apontando, com acidez de crítico atento, as desfigurações históricas por esse patrimônio sofridas, tal como lemos no livro Memória da Sé. Em seu mais recente livro de poemas, com o belo título de Horta de poesia, Fernando da Rocha Peres confessadamente cultiva “a circunstância e a cultura portuguesas”, buscando homenagear “a minha permanente afeição aos patrícios que descobriram o Brasil”. Esse objetivo é bastante compreensível num autor que nasceu naquela que é considerada a mais lusitana das cidades brasileiras, Salvador, em função de cuja integridade histórica, bastante desfigurada por sucessivas administrações, o autor desenvolveu uma cruzada, não tendo sido por acaso que chegou a dirigir o IPHAN na Bahia. O poeta criou um neologismo — a palavra “Salvadolores” — para ironizar a decadência do acervo colonial de Salvador. No que tange à poesia recente de Fernando Peres, ele próprio confessa o desejo de ser lido e entendido pelos seus amados lusitanos: Não sei se levo este livro ao Mercado do Bolhão para vender com os vinhos que chegam no rio Douro ►► 211 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 ao porto de Vilmara Peres ou se vou apregoá-los após a missa ao domingo na praça Almeida Garret. Com certeza, pois, poesia que cabe muito bem com um bom bacalhau regado ao excelente tinto do Douro. Resta dizer que a esmerada edição de Horta de poesia levou, como é comum nas edições dos livros artesanais de Fernando Peres, o carimbo do esmero gráfico da editora que ele ajudou a fundar, nos anos 50, com Glauber Rocha e Calasans Neto, a Macunaíma. Affonso Manta Quanto ao último dos poetas citados, Affonso Manta, digamos em primeiro lugar que a edição da sua Antologia foi o prêmio de 2013 para os leitores da boa poesia. Foi através desse livro que ficamos enfim avaliando a densidade lírica desse estranho e criativo poeta, cuja vida se desenrolou quase sempre obscura e marginalizada. Bem mais que um poeta maldito, foi, sobretudo, um poeta desconhecido. Isto se deveu em parte às imperfeitas edições dos seus pequenos livros, impressos em tiragens muito limitadas por gráficas interioranas, às custas do poeta, e enviadas a uma reduzido círculo de amigos. Por essas deficientes e truncadas edições jamais teríamos percebido a importância da poesia de Affonso Manta, agora publicada com dignidade, iniciativa emérita que ficamos devendo a Ruy Espinheira Filho, como organizador, ao patrocínio de Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia, e ao deputado Marcelo Nilo, presidente da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, premiando o excelente trabalho dos editores Paulo Bina e Délio Pinheiro. A poesia original de Affonso Manta oscila entre a demência onírica de um visionário e um profeta das antevisões projetadas 212 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 do inconsciente freudiano, repletas de versos insólitos e surpreendentes. Embora os seus amigos o indiquem como um homem lido e culto, patrimônio abafado por uma existência de vagabundo disperso, o que percebemos é uma criatividade poderosa, que parece ter-se afirmado sem dívidas intertextuais. O poeta, que levava “uma luz dentro da cabeça”, era capaz “de trancar o meu soluço na gaveta”, hábil metáfora da contenção emocional de uma personalidade fragmentada. No seu magnífico soneto “O rei Affonso”, ele se confessa “restaurador do Império Agonizante” da sua vida, e todas as naus que ainda pode vislumbrar são apenas “as naus febris de um sonho morto”, desesperançado. Em o “Realejo de vinho” se confessa “um homem aos frangalhos” e “sem crédito na praça”, ou seja, um despojado na emoção interior e no bolso. O poeta sente que “tem uma coroa de alumínio sobre o crânio”, mas acrescenta: Com estrelas na testa de rapaz, Com uma sede enorme na garganta, Lá vai, lá vai Affonso Manta, Pela rua lilás. É também “o rei da extravagância, o sem maldade, o campeão da originalidade, o peregrino astral”. A leitura da poesia de Manta provoca sempre forte impacto. Mesmo quando parece ter assimilado conquistas criativas da tradição cultural, é sempre ele mesmo, como nesses versos que só exteriormente se inserem na tradição surrealista, pois são muito típicos do discurso do “rei Affonso”: Enlouqueci, um girassol nasceu na minha boca. Os pássaros já estão fazendo ninho Atrás da minha orelha. Trata-se de uma poesia assinalada também por certa compulsão da alienação e da loucura (“O louco” é o título do poema ►► 213 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 acima transcrito, no qual Manta confessa que “não há quem não ache graça/ do meu aspecto excessivo de profeta”). Muito mais haveria que dizer, é preciso porém ler Affonso Manta, bem maior do que um simples comentário poderia abarcá-lo. Uma reafirmação, enfim, do poder da poesia baiana, ou mais uma prova de que “as obras dos poetas (pelo menos dos poetas atormentados) são, realmente, o manjar do demônio”.* João Carlos Teixeira Gomes é poeta, ficcionista, ensaísta, jornalista e professor da Universidade Federal da Bahia. Tem diversos livros publicados, como A esfinge contemplada e outros poemas, O telefone dos mortos (contos), Gregório de Mattos: o Boca de Brasa, Camões contestador e outros ensaios, Glauber Rocha: esse vulcão, e Memórias das trevas. Desde 1989 ocupa a Cadeira nº 15 da ALB. 214 ◄◄ UM GRANDE POETA: AFFONSO MANTA (1939 – 2003) Ruy Espinheira Filho ome completo: Affonso Manta Alves Dias. Filho de Ary Alves Dias, médico falecido em 1980, e de Olinda Manta Dias, nasceu em Salvador, Bahia, a 23 de agosto de 1939, na Rua da Poeira, 57. Com três a quatro meses de idade, porém, passou a residir em Iguaí, onde permaneceu até janeiro de 1950, quando a família se transferiu para Poções, cidade do Sudoeste baiano. De volta a Salvador para concluir seus estudos, o poeta frequentou o curso de ciências sociais na Universidade Federal da Bahia, acabando por abandoná-lo. Trabalhou, em seguida, como guia do Museu de Arte Sacra e repórter do Diário de Notícias. Aprovado em concurso para inspetor da Empresa de Correios e Telégrafos, especializou-se durante nove meses no Centro do Treinamento da ECT, na Tijuca, Rio de Janeiro. Diplomado, trabalhou na diretoria regional da Guanabara como inspetor da seção de reclamações, que chefiou, e depois como inspetor da seção de fiscalização. Enfermo, e após internamento na Casa de Saúde Dr. Eiras, retornou a Poções, onde voltou a viver desde novembro de 1974, aposentado da ECT. Affonso Manta publicou os seguintes livros de poemas: A cidade mística, O colibri, A cidade mística e outros poemas (1980), O retrato de um poeta (1983), No meio da estrada (1991), Canção da Rua da Poeira e outros poemas (1994), O falso crente, A princesa nua, O pássaro e o poeta e O estranho na Terra (1995). Por parte de pai, o poeta N ►► 215 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 é primo em quarto grau de Castro Alves, devido à sua descedência, por linha direta, de João José Alves, o alferes, irmão do médico Antonio José Alves, pai do Poeta dos Escravos. Minha amizade com Affonso Manta começou na juventude: eu com treze ou catorze anos, ele com dezesseis ou dezessete. Todas as tardes nos sentávamos no coreto do jardim de Poções, ao lado da velha matriz, perto da qual ele viveu grande parte da vida, e conversávamos até depois do crepúsculo. Ou, mais exatamente, ele falava e eu escutava — maravilhado com aquele rapaz que já tinha lido tanto e se referia desenvoltamente a ficcionistas, filósofos, sobretudo a poetas e poesia. Nossos contatos se intensificaram a partir de 1961, quando vim estudar em Salvador, onde ele já se encontrava. Poeta respeitado, boêmio impenitente, foi quem me apresentou a pessoas brilhantes da literatura e das artes — como Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Jehová de Carvalho e Ângelo Roberto, entre outros. Quando nos separamos — ele foi morar no Rio, depois voltou para Poções — mantivemos constante correspondência, a qual (ao menos da parte dele) repousa hoje numa pasta dos meus arquivos. Poeta de densa poesia, conhecedor como poucos da arte do verso, Affonso não teve oportunidade de grande projeção. Mas, quando sua obra for bem editada e distribuída (e aqui já começamos essa viagem, pois a maior parte da edição será destinada às bibliotecas públicas), sem dúvida figurará entre as melhores produzidas no Brasil na segunda metade do século XX. Ele foi essencialmente poeta, como raros o são. João Guimarães Rosa dizia que as pessoas não morrem: ficam encantadas. Affonso Manta não esperou morrer para se encantar: foi um encantado a vida inteira. Certa vez ele me disse que, se um dia eu quisesse publicar a sua poesia, teria carta branca para agir. Num bilhete enviado de Poções, datado de 27 de setembro de 1973, escreveu-me: 216 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Meu prezado amigo Ruy: Segue para você um exemplar de Conclusões, conforme lhe prometi. Como lhe disse por telefone, Leonel Nunes, uma espécie de secretário de cultura daqui, está empenhado em publicar minhas obras completas. Lembrei-me de você para escrever um “prefácio geral”, digamos assim. Você aceita, não é? Então, meu irmão, mãos à obra. E o tempo se foi, sem que eu tivesse como cuidar da obra do poeta. Até que, em 2011, soube das publicações que seriam feitas em convênio da Academia de Letras da Bahia com a Assembleia Legislativa da Bahia, uma coleção intitulada Mestres da Literatura Baiana. De imediato, dirigi-me ao presidente da ALB, Aramis Ribeiro Costa, comunicando-lhe que estava muito interessado em participar do projeto — não com obra minha, mas organizando uma antologia de Affonso Manta. Aceita a proposta, tratei logo de pôr mãos à obra, atendendo, por fim, à convocação do poeta. Meu objetivo era repor a poesia de Affonso Manta nas mãos dos leitores — e tentar abrir espaço para um reconhecimento nacional, o que ele mais do que merece. Assim, logo que recebi os primeiros exemplares, enviados por Délio Pinheiro, um dos coordenadores editorais do convênio, iniciei o envio do volume a poetas, críticos, ensaístas, historiadores da literatura, ficcionistas e jornalistas de diversas regiões do país. Um sucesso, como eu previa, com muito espanto e admiração pela descoberta, por esses destinatários (gente como Ivan Junqueira, Miguel Sanches Neto, André Seffrin, Alexei Bueno, Roniwalter Jatobá, Carlos Machado, Sérgio de Castro Pinto, entre outros), de um poeta que sem dúvida deve figurar entre os melhores da segunda metade do século XX no Brasil. Enfim, no dia 28 de novembro de 2013, a Antologia poética foi lançada, com muito sucesso, na ALB. E agora, por sugestão do poeta Florisvaldo Mattos, diretor desta revista, apresento uma ►► 217 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 breve seleção de poemas de Affonso Manta, autor que encanta sempre por seu rigor estilístico, densa emoção e cintilante lirismo. Poemas de Affonso Manta O realejo de vinho Para Solon Barreto Para quem me queira ouvir: Sou um homem aos frangalhos. Parte por culpa de tudo. Parte por culpa de nada. E digo mais ao casual Ouvinte deste relato: Não sendo herdeiro nem rico, Não tenho crédito na praça. Amo as japonas escuras, De mangas e tudo vasto. E os colarinhos puídos Uso desabotoados. Ao pôr a minha gravata, Fabrico um laço bem largo. E acho triste andar com ela. E, mais tristes, as gravatas. Eu nunca faço questão Que uma roupa seja cara. 218 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Mas, ampla: e, sendo possível, Com certo ar desesperado. Eu prefiro, aos bons charutos, Um velho e forte cigarro. E odeio fumar cachimbo. Pois sou muito angustiado. No mais: um vento me agita, Interior e largado, E me devasta os cabelos, Rosto, sorriso e palavra. Lá vai Affonso Manta Com estrelas na testa de rapaz, Com uma sede enorme na garganta, Lá vai, lá vai, lá vai Affonso Manta Pela rua lilás. Coroa de alumínio sobre o crânio, Lapelas enfeitadas de gerânios E flechas no carcás. Manto florido de madapolão, Bengala marchetada de latão, Desfila o marechal, O rei da extravagância, o sem maldade, O campeão da originalidade, O peregrino astral. ►► 219 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Relâmpagos Para Garbogini Quaglia Lembrar-me do que fui nunca me cansa. Cansa-me andar no centro do Destino. Eu sou feliz porque já sou menino. Menino não precisa de esperança. Eu revirei a vida pelo avesso. Eu encontrei o fio da meada. Eu dei no mundo muita cabeçada. Eu sei onde é o fim e onde o começo. Quem me dera estar santo de uma vez. E enlouquecer de luzes de repente. Mas conservando toda a lucidez. Viver sem o limite, em plena graça, Na paz de uma razão incandescente Capaz de dar relâmpagos na praça. Pêndulo Para Iêda Machado Conduza meu carneiro cor de vinho Para pastar os lírios brancos do ar. Guarde meu coração devagarinho Na cômoda da sala de jantar. Tire do gaiolim meu passarinho. Ele gosta do sol e de voar. 220 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ponha no armário verde, com carinho, A roupa que eu vesti para brincar. Seja um anjo, meu anjo, de bondade. Não zombe do meu passo hesitante. Não moteje da minha enfermidade. Eu sou algo indeciso, eu vacilo, Eu cambaleio sem razão bastante E, lento como um pêndulo, eu oscilo. Porão Estarmos separados e distantes É, para mim, um triste e amargo vinho. E não ter mais agora o teu carinho São-me agonias lentas e constantes. Teus olhos, que me foram diamantes E iluminavam todo o meu caminho, Não querem ver como eu estou sozinho E me abandonam todos os instantes. Tu que eras o repouso do guerreiro, Sem pena do teu pobre companheiro, Foste embora, indomável coração. E a minha fome de ternura e afeto Ficou assim como qualquer objeto Esquecido no fundo de um porão. ►► 221 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O rei Affonso Para Fred Souza Castro Aqui, o rei Affonso, o Derradeiro, Vê naus que não são mais as naus do porto. São já as naus febris do sonho morto No mar tão vasto como traiçoeiro. Aqui, o mesmo rei, também chamado Restaurador do Império Agonizante, Perde para o inimigo, doravante, O reino duramente conquistado. O rei, flor-de-lis santa e vulnerável, Ferido pela dor inevitável, Perdoa a punhalada do assassino. E morre sem palavra de desgosto, Mostrando paz até o fim no rosto, A mesma paz dos tempos de menino...* Ruy Espinheira Filho é escritor, jornalista e professor da Universidade Federal da Bahia, graduado em jornalismo, mestre em ciências sociais e doutor em letras pela UFBA, autor de dezenas de livros de poesia, ficção e ensaios, com diversos prêmios nacionais. Recentemente lançou Estação infinita e outras estações, que reúne toda a sua poesia. Desde 2000 ocupa a Cadeira nº 17 da ALB. 222 ◄◄ POESIA TRÊS SONETOS Homenagem da Revista da Academia de Letras da Bahia ao centenário do acadêmico em 11 de março de 2014 Clóvis Lima Orfeu A Ivan Americano Quieta-se em Trácia tudo no momento em que Orfeu, lira em punho, amargurado pela saudade, tange, compassado, as cordas do seu mágico instrumento. E aos sons da lira, antes revolto, o vento transmuda-se num tom doce e magoado, os leões se abrandam, vêm ficar-lhe ao lado compungidos daquele sofrimento. Eurídice! — soluça o pobre Orfeu. E dizendo este nome estremecido, chora toda a ventura que perdeu. E assim chorando o desgraçado amor, doma os leões, doma o vento enfurecido, mas não pode domar tamanha dor. ►► 225 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Soneto dotrefoá Para Lourdes Que falamos enfim? Nada de mais. Nosso assunto varia de momento. Presos embora ao mesmo pensamento, sempre temos assuntos desiguais. Olhas o mar. Que tem o mar? O vento conturba as velas, e ondas colossais avolumam-se e vêm, de encontro ao cais, desmanchar-se num ímpeto violento. Mas contrastando com o furor do mar, cai sobre a terra a esplêndida brandura da tardinha que desce devagar. O céu, então azul, muda de cor. E olhas-me lentamente... Que doçura têm os teus lindos olhos, meu amor. 226 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O velho relógio A meu irmão Newton, com a maior saudade. Sempre o olhei sem o ver e a indiferença com que o olhava se transmuda agora numa curiosidade que me arvora o desejo de ouvir o que ele pensa. Nada lhe influi porém minha presença, pois o velho relógio, como outrora, continua a embalar-se à voz sonora, oscilando o seu gesto de descrença. Com o mesmo ritmo vai, quase cem anos, desfiando desta vida os desenganos de horas incertas na sua hora certa. Meus pais lembrando e meus irmãos lembrando, continua impassível trabalhando sem saber as saudades que desperta.* Clóvis Lima é poeta, tradutor de poesia francesa e de poesia de baianos para o francês. Colaborou com A Tarde durante anos como cronista. Poesia publicada: Apóstolos do sonho (polianteia organizada por Flávio de Paula, 1952), A poesia de Clóvis Lima (organizada por Antônio Loureiro de Souza, 1975), Figurações do Natal (coroa de sonetos, 1976), Poesia avulsa (selecionada por Cláudio Veiga, 1994) e em diversos números da Revista da ALB. Desde 1980 ocupa a Cadeira nº 22 da ALB. ►► 227 CINCO POEMAS EM HOMENAGEM Florisvaldo Mattos Memórias de boi esfolado Soltei o livro. Olhei pela janela, espesso azul e nuvens, e lembrei: faz setenta anos que morreu Soutine de uma úlcera rompida nas entranhas, como as do boi esfolado da pintura, um retrato convulso de sua arte. De novo olho a paisagem; ainda o céu de cores baças, sons da rua larga, prédios e casas, em frente à varanda, sem pasto ou campo, só distantes verdes, que suplicam o olhar de voz opaca. E eu aqui a pensar em Chaïm Soutine, pintando, dia e noite adentro, pensos quartos de boi comprados nos açougues. (Salvador, setembro/2013) ►► 229 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Tarde na várzea com chuva A João Ubaldo Ribeiro (“Não existe poesia sem infância”, ele disse) A chuva há de passar... De quando em quando, Um alarido vem pelo ar, fugidio. Na tarde bruxuleante, além do rio, Teles e Caboclinho estão jogando. Não posso ver; a chuva me atrapalha. Vestindo sedas, clamo aos ares, rogo. Avanço a rua. Minha tia ralha (Nada me ajuda): “Pare aí, é só um jogo!” Raiva. Bato três vezes na madeira. Será que vai chover a tarde inteira? Digam como lá estão os litigantes. É agosto, sim, e chove sem parar. Dentro, o menino quer comemorar Logo. Atlanta e Palestra, dois gigantes. 230 ◄◄ (Salvador, manhã de 10 de novembro de 2012) Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Retratos A todos que, na adolescência, se encantaram com o Futebol Como vemos os times do passado. Se eles são todos sombras que se movem, São retratos em céu desamparado De sol em que na mente tardes chovem? Foram só todos distração de instantes De sonhos que perduram na memória, Na minha e na geral dos habitantes, Que por imagens contam sua história, Quando se sabe que passou a voga Dos triunfos, e não mais o albor da trama E a alegria de um jovem quando joga Em campos de terra ou bendita grama. Mudas paredes nos devolvem dias Semelhantes a certas melodias. (Salvador, manhã de 27 de dezembro de 2013) ►► 231 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Foi-se uma antimedeia À memória de dona Lúcia Rocha, mãe de Glauber Rocha A matriarca dos Rocha, dona Lúcia, Na vida uma guerreira com voz de ave, Ardor por juventudes e minúcia, Com um filho de talento e rosto grave, Que se foi como um sopro em plena glória, Como o nome da mãe de luz vestido; A quem ergueu um Templo de memória, Obra de quem viveu por céus ungido, Resolveu percorrer entre as estrelas O rastro de quem foi um bem precioso, Estática tão só de ouvir e vê-las Saudar-lhe a forma do tecer bondoso: Só com cabeça e câmera na mão, Ela o filho do mundo fez irmão. 232 ◄◄ (Salvador, manhã de sábado, 4 de janeiro de 2014) Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Íntimos caminhos A Antônio Guerra Lima Não sei para onde vou — Sei que não vou por aí! José Régio: “Cântico negro”, in Poemas de Deus e do Diabo, 1925 Não. Nada de penhascos irreais, Tampouco de florestas invisíveis! Por aqui tudo fala à sensação, Ao olhar, ao aroma, à língua, ao tato, Ao som. Feliz de quem os tem. Ó vós, Que ditais pelos montes de onde venho, Por trás de sombras como que vazias? Enquanto me desfaço de meus fardos Ancestrais, meu cabedal de fadigas, Lábios trazem clarões de frescas auras, Meus pés sibilam sobre sendas rudes, Mas com promessa de horizontes novos. Se me pedes que siga o teu caminho, Descansa. Sei que não vou por aí! (Salvador, 1º de maio de 2013)* Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta, bacharel em direito e mestre em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia. Presidiu a Fundação Cultural do Estado da Bahia. Foi redator-chefe de A Tarde. Publicou diversos livros, como Travessia de oásis: a sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, e Poesia reunida e inéditos. Desde 1995 ocupa a Cadeira nº 31 da ALB. ►► 233 CINCO SONETOS Myriam Fraga Provérbio Não adianta chorar o leite derramado, Pois o que já passou nunca mais voltará. Na ciranda da vida, esse é o nosso destino, Viageiros sem rumo numa incerta jornada. Se o caminho foi longo, ao longo da estrada Fomos deixando amores, dores, sofrimentos, Que esquecidos ficaram, como se encantados, A dormir, para sempre, nas ruínas do tempo. Até que de repente, num breve momento, Ressurgem outra vez no coração aflito, Acendendo mágoas, reinventando segredos, E novamente vivos, de novo despertos, A renascer das cinzas, voltam como espectros, Assustadoramente, a assombrar nossos dias. ►► 235 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ocaso A luz que amadurece em meus cabelos Põe reflexos de cobre nos espelhos Onde a tarde se alonga como um rio A escorrer suas águas nos vazios De um passado distante que perdura Além de todo além e onde se escuta Um som de antiga flauta murmurante A despertar momentos esquecidos. No mais tudo é silêncio, tudo assombro, Ante o esplendor do sol que se apagando Deixa apenas um risco no horizonte, Como um rastro de luz que se divide Entre o esplendor do dia que se esconde E a escuridão que aos poucos se insinua. 236 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O rio Devagar, devagar, desço ao mais fundo Precipício que avisto além do escuro Patamar debruçado sobre o abismo Que é o ponto terminal desta jornada. Nesta escura descida tão funesta, Às vezes, como pássaros furtivos, Vão despontando os sonhos que ficaram Esquecidos ao longo do caminho. De degrau em degrau, na longa escada, Vou vencendo a distância que me resta Enquanto o sol se apaga no horizonte E o mundo em volta rápido escurece, Até que, finalmente, avisto o rio E o barqueiro no leme à minha espera. ►► 237 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Poente em Mar Grande Vista da ilha, ao longe, a cidade é como um sáurio, Um dragão multicor, a dormir embalado Pelas ondas do mar que docemente o afagam, Na volúpia das águas que nunca se acalmam. Na praia a alongar-se a maré mansa se espraia, Ao sabor da enchente, no estertor da vazante, À sombra dos coqueiros que esgarçam suas palmas No sopro dos ventos de um verão que se acaba. Na barra os recifes desenham um mandala Cujo centro é a ilha, santuário encantado, De uma esfinge ancestral a devorar a tarde. O sol, com seu pincel, incendeia as vidraças, Mas a chama de ouro pouco a pouco se apaga E atrás da amendoeira a luz da lua se espalha. 238 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Mandala Aos poucos, devagar, chego ao abismo, Ao fundo de mim mesma, ao precipício Onde dormem desejos impossíveis, No escondido dos sonhos mais secretos. Aos poucos vou cumprindo e desenhando, Na medida das pontas do compasso, O círculo imperfeito desta vida, Do tempo inicial do nascimento Ao centro do mistério que atravesso Sem saber onde leva a correnteza Das águas desse rio que me arrasta, Cuja foz é a nascente que adivinho E onde se encontra o fim e o recomeço No arremate das linhas que desfaço.* Myriam Fraga é poeta, diretora-executiva da Fundação Casa de Jorge Amado, conferencista no Brasil e no exterior. Publicou, dentre outros, Sesmaria (Prêmio Arthur de Sales), Femina e Poesia reunida, o ensaio Leonídia: a musa infeliz do poeta Castro Alves, e obras infanto-juvenis sobre vultos como Castro Alves, Carybé e Jorge Amado. Desde 1985 ocupa a Cadeira nº 13 da ALB. ►► 239 A QUE PARTIU HÁ POUCO & QUATRO SONETOS Ruy Espinheira Filho A que partiu há pouco A Sonia Coutinho in memoriam A que partiu há pouco há muito vinha partindo com os amigos mortos os pais mortos o irmão morto os namorados e maridos que começavam a morrer os livros que lera e escrevera morrendo nas estantes (que estalavam no meio da noite suspirando em suas mais lentas mortes) com sonhos mortos e lembranças da juventude há muito morta lembranças principalmente de Paris à qual planejava voltar em breve. ►► 241 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 A que partiu há pouco há muito procurava de certa maneira inconsciente o que pudesse fazer para enganar ao menos em parte o que se adensava com tantas mortes. Continuava ela a respirar a se mover a tecer alguns sonhos e olhava a vida e pouco a reconhecia nada mais tinha a ver com as pessoas as ruas e então voava de regresso à cidade antiga mas descobria logo que ela estava também cheia de mortos mesmo alguns que continuavam respirando e se movendo porque já não passavam de fantasmas para os quais ela era uma aparição que os assustava pois trazia consigo um cortejo de mortos e eles pensavam que ela também fazia parte dele e por isso entre ela e eles não poderia haver mais nada que justificasse o retorno à cidade antiga. E então ela voava em sentido contrário e permanecia na cidade maior com seu cortejo de mortos e de novo voava à cidade antiga indo e voltando voltando e indo e principalmente pensando em Paris. 242 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 E um dia disse a uma velha amiga que voltaria de vez à cidade antiga onde ficaria com mais sossego e não mais sentindo (esperava) os vazios que iam crescendo em seu íntimo. Antes porém iria rever Paris e pela mais bela cidade andaria longamente embora não mais aguentasse longas caminhadas ah Paris seu recanto mais cintilante da memória. E então o telefone chamava inutilmente hora após hora noite e dia e por fim foram até lá abriram a porta e ela certamente já partira na tão sonhada viagem porque ali só encontraram um corpo frio e murcho como os livros das estantes. Esta a história que posso contar da que partiu há pouco e há muito vinha partindo como todos nós que temos igualmente nossos cortejos de mortos e um dia ocuparemos o nosso lugar e também partiremos em definitivo rumo a espero eu Paris. ►► 243 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Soneto à sombra de Orfeu Ó meninos, ó noites, ó sobrados! Jorge de Lima Luas iluminavam cabeleiras de moças, debruçadas nos sobrados, que acordavam em nós fundas olheiras onde sonhavam sonhos assustados. Ó meninos, ó noites, ó sobrados! Esperanças de Gatas Borralheiras, Belas Adormecidas... Constelados, queimávamos em íntimas fogueiras. Ó luares, sobrados, cabeleiras descendo docemente em cachoeiras sobre os que não sabiam que, encantados, ainda iriam arder vidas inteiras nas chamas de enluaradas cabeleiras... Ó meninos, ó noites, ó sobrados! 244 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Soneto da luminosa ronda ou Uma visita a Mário Quintana A Sérgio de Castro Pinto E eis de volta a Memória, a de onde emana a imagem da ruazinha sossegada, já tão longe... Mas bela, enluarada, como se fosse um verso de Quintana. Como se fosse a alma de Quintana, que meu pai revelou-me: emocionada leitura; éramos jovens; constelada a vida na poesia de Quintana. E um dia apresentaram-me ao Poeta, mas já o bem conhecia pela ronda de aventuras vividas em discreta cumplicidade. A luminosa ronda em que ainda sigo meu pai e o Poeta pelo vago País de Trebizonda... ►► 245 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Soneto da alma como um rio Penso sempre tua alma como um rio em que de mim não se reflete nada agora. Antes, talvez uma apagada sombra se percebesse, mas um frio vento soprou o tempo, e eis que um vazio se fez. E então já não restou mais nada, a escassa sombra foi-se, dissipada, e tudo se apagou de mim no rio. Contou-se um conto e agora já mais nada se reflete de mim. Só há o frio cantando uma esperança naufragada. Não tem culpa tua alma desse frio lembrando-me que sou água passada, pois, como rio, é sempre outro rio... 246 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Soneto do fulgor Sempre estará em mim esta lembrança de que mal sei falar, pois que é magia de luar, de sol, de mar, de fantasia de purezas antigas de criança. Quem foi você? Quem é? Uma esperança outrora, sim. Depois, densa agonia, brisa de asas de anjo, poesia. E tudo de você. Nunca me cansa lembrar-me. Que é sonhar de novo o sonho que você foi. E é. E noite e dia, dormindo ou acordado, o mesmo sonho. Que sonho e sou. E vivo, imensamente, na dor suave e na áspera alegria de fulgurar em mim secretamente.* Ruy Espinheira Filho é escritor, jornalista e professor da Universidade Federal da Bahia, graduado em jornalismo, mestre em ciências sociais e doutor em letras pela UFBA, autor de dezenas de livros de poesia, ficção e ensaios, com diversos prêmios nacionais. Recentemente lançou Estação infinita e outras estações, que reúne toda a sua poesia. Desde 2000 ocupa a Cadeira nº 17 da ALB. ►► 247 TRÊS SONETOS Gláucia Lemos Bicho estranho Repara neste mundo diferente! Já não se sabe mais o que é saudade. Sentir saudade é crime que condena, e ri de quem a sente toda gente. Vê como a alma da pedra embrutecida, dentro, na alma das gentes, faz abrigo. E o homem, lobo do homem, incomovível, como um fardo, sem fé, carrega a vida. Mas eu sou estrangeira neste espaço. Olhe pra mim! Eu sou um bicho estranho que conhece o prazer e a dor da dor. E moro numa bolha de saudade que se abriga escondida atrás dos olhos, e carrego comigo pra onde vou. ►► 249 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Soneto do girassol Dorme, mulher, tuas noites não têm lua. Rolam os carros no rolar da rua, rolam teus sonhos no rolar do sono, e a noite é qual um teto ao abandono. A madrugada logo se avizinha vagueias no teu sono onde caminha a sombra espectral dos teus enganos a desfazer imagens dos teus sonos. A noite ri do mundo em lampadários, o tempo esvai-se, morrem calendários. Esquecem-se os prazeres malvividos! Treme em teu sono o frio dos desertos. Mas no teu peito um girassol aberto esconde o espinho que te tem ferido. 250 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Claro-escuro A luz da tarde a entrar pela janela é o sol vindo visitar a sala. Caminha na parede a sombra rala das nesgas da cortina de flanela. Meus olhos passam lentos nessa escala de claro-escuro, sombra e luz de vela. E então eu penso — reparando nela — na oscilação de alguém de quem não falo. Às vezes pode ser como a vidraça, deixar passar a luz. E a luz que passa aquecer e clarear inteira a sala. Vezes outras prefere ser cortina e, se envolvendo em nesgas pequeninas, vai reduzir-se à mera sombra rala.* Gláucia Lemos é bacharel em direito, crítica de arte, poeta, contista e romancista. É autora de mais de trinta livros de literatura adulta e infanto-juvenil, com destaque para o livro As aventuras do marujo verde. Recebeu diversos prêmios nacionais, como o II Prêmio de Literatura UBE/Scortecci 2007 pelo romance Bichos de conchas. Desde 2010 ocupa a Cadeira nº 14 da ALB. ►► 251 CINCO SONETOS Luís Antonio Cajazeira Ramos Soneto-catástrofe Sequer adormecer porque me agarro à imagem que de ti em vão persigo. Ivan Junqueira Que remédio aplicar à incurável lembrança, se ela é acne que trato e logo recidiva em meu rosto, esta máscara de temperança cuja pele é refém da ruína invasiva? Como opor ao desejo uma força contrária e, no embate, uma nova paixão ser urdida, se este mar de saudade não é água vária, mas um lago parado, isolado e sem vida? Como um totem-tabu te fincaste em meu peito, totem de adoração, tabu pelo interdito da ausência que me rasga o coração sem jeito. Não há sol que degele esta dor frigorífica. Ó lágrimas, jorrai dos abismos que habito um tsunami de amor nesta ilhota pacífica. ►► 253 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Não dá mais pra segurar Não acredites, mãe, eu não sou triste. Isso é conversa de quem não me entende. Só por isso, porque meus versos choram tanta tristeza? É tudo fingimento! Esta saudade que me dói, de quem? Qual solidão, se eu tenho a ti e a tantos? Esta lágrima impressa na garganta? Que nada, mãe, teu filho é puro encanto. Não percebes a aurora em meu sorriso? Não te gabas a quantos meus talentos? Não sou o amor que tu pariste um dia? Deixa pra lá, mamãe, tapa os ouvidos. Fecha teus olhos, vê minha alegria. Dá-me teu colo, que eu preciso tanto. 254 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Danação No dia em que me deres não e o troco por toda a angústia a que te condenei, nesse dia, meu Deus, estarei louco de feliz, como quem depõe um rei. Isso mesmo! Eu mereço até o soco e o pontapé de teu desprezo. Eu sei que a alegria virá enquanto eu sofro, e essa esperança tomarei por lei. Querias me beijar, eu dava o rosto. Querias me abraçar, eu dava a mão. Querias mais, eu sempre dava o pouco. Mas teu ódio há de impor maior vingança. Mais forte! Não me basta a solidão. É preciso matar minha esperança. ►► 255 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Aonde irá meu pensamento Lá fora é Carnaval. Estou feliz. Numa corrente elétrica, a alegria imanta-se nos corpos, irradia e arranca as solidões pela raiz. Imune às emergências, sou feliz sem me contaminar pela folia. A mim basta a nudez azul do dia cobrindo-se da noite. Por um triz, a calma me devora. E estou atento à mágica explosão deste momento: a vida escorre, sempre a acontecer de tudo ser de novo. As ruas ardem paixão e fantasia. E nunca é tarde. Em quase leveza, eu durmo. O amanhecer. 256 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Soneto da salvação Você, que se perdeu de ser feliz ao procurar desvios retilíneos, quando devia sempre, por um triz, flanar as incertezas dos caminhos, você, que foi um crédulo servil das verdades beatíficas dos líderes e dos cientistas com teorias mil em benfazejas fábricas de crimes, eu sei, o chão não mais lhe doa lírios, eu sei, o céu de estrelas não lhe banha, mas seu trem ainda pode errar os trilhos na overdose epifânica do mantra de ternuras, delícias e delírios da voz uníssona de Affonso Manta.* Luís Antonio Cajazeira Ramos é poeta, analista do Banco Central do Brasil e advogado. Publicou cinco livros de poesia, além da participação em antologias. Recebeu o Prêmio Nacional Gregório de Mattos da ALB em 2000. É sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e sócio fundador da Associação Amigos do Teatro Castro Alves. Desde 2012 ocupa a Cadeira nº 35 da ALB. ►► 257 TRÊS POETAS BRETÕES TROIS POÈTES BRETONS Dossiê bilíngue Jean-Albert Guénégan Jean-Claude Tardif Olivier Cousin Organização/Organisation Dominique Stoenesco* Tradução/Traduction Dominique Stoenesco & Odette Branco Dominique Stoenesco é francês, professor de português como opção de língua estrangeira na França. É ensaísta, editor e tradutor. Coedita a revista Latitudes — Cahiers Lusophones, dedicada à divulgação das culturas lusófonas na França. Já publicou diversas entrevistas e artigos, notadamente sobre escritores brasileiros. Desde 2009 é membro correspondente da ALB. Odette Branco é francesa, de famíla de origem portuguesa. É escritora, teatróloga e tradutora. Publicou o romance O canto das sereias (2005). Escreveu e montou em francês a peça de teatro Florbela, la soeur du rêve (2013), inspirada na obra poética de Florbela Espanca. Colabora em revistas literárias como tradutora de poesia nas línguas francesa e portuguesa. ►► 259 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Jean-Albert Guénégan Jean-Albert Guénégan nasceu em Morlaix, em 1954. Autor de vários livros de poesia, contos, memórias de infância e livros de artista. É traduzido em língua bretã, portuguesa e italiana. Mencionado em diversas revistas, como Avel IX ou À l’Index, e em antologias como Poètes de Bretagne, de Charles Le Quintrec (2008), e Nous, la multitude (2011). Participa todos os anos no Printemps des Poètes, apresenta saraus de leitura em bibliotecas ou centros culturais e também intervém nas escolas. Seus dois últimos livros de poesia são Trois espaces de liberté (2011) e Sans adresse, l’automne (2012), publicados pela editora Editinter. Os poemas de Jean-Albert Guénégan que selecionamos são excertos do seu último livro, organizado em forma de tríptico. Na primeira parte, o autor aborda humildemente o caráter efêmero da vida, partindo do choque emocional sentido na morte de seus pais. A segunda parte, sem qualquer intenção necrófila, mescla prosa e poesia para evocar alguns ilustres poetas ligados à terra bretã. Enfim, inspirado no Homem caminhando, de Alberto Giacometti, Jean-Albert Guénégan exprime a fragilidade do ser humano quando certas pragas existenciais de ordem moral ou social o encerram num estatuto incômodo. São os excluídos de uma sociedade que por vezes se esbarram com a intolerância e são empurrados para a mais profunda das solidões. Demain tu partiras libre de tes chaînes. Rien ne s’oubliera de ce moment ultime. Ton âme ouvrira la route à la quiétude de l’autre rive, je m’habillerai de noir 260 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 et passerai par la rue des souvenirs. L’instant givrera mes lèvres l’heure sera seule le ciel nu, hagard peut-être. J’aurai la terre sous les paupières le cœur penché sur les roses rouges fraîchement cueillies et mes vers en cercle ne seront que lunes d’ennui. Sans but, ficelé de mots engourdis je suivrai tes premiers instants de résignation. Je serai le point entre la vie l’inconnu et le droit d’asile. Parmi les fleurs déjà flétries pris dans le voile du long sommeil retiré dans les charmes de ce triste automne, père et mère je vous nourrirai d’amour. Amanhã partirás liberto de tuas correntes. Nada será esquecido deste derradeiro momento. Tua alma trilhará o caminho para a quietude da outra margem, me cobrirei de luto e passarei pela rua das lembranças. O instante gelará meus lábios a hora será solitária o céu nu, atordoado talvez. ►► 261 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Terei terra sob as pálpebras o coração inclinado sobre as rosas vermelhas recentemente colhidas e meus versos em círculo serão apenas luas de tédio. Sem destino, atado com palavras entorpecidas seguirei teus primeiros instantes de resignação. Serei aquele ponto entre a vida o desconhecido e o direito de asilo. Por entre as flores já murchas preso no véu do infinito sono exilado nos encantos de um triste outono, pai e mãe nutrirei-vos de amor. à John-Antoine Nau (1860-1918) cimetière marin de Tréboul À bout d’outremer et d’Amériques par la mer tu as traîné tes forces jusqu’à Tréboul. Mon regard marin auréole de ton étoile ou portemanteau du dernier soupir ici joue à pile ou face. Au port des messes basses les songes prennent en pitié le saint des saints des familles. La mer n’est qu’un crucifix le ciel croit en son état de grâce 262 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 à chaque vague qui meurt. Les âmes d’ici héritières d’éternel comme de la souveraine pensée, les vieilles feuilles et les fleurs béquilles de l’automne chaque matin se nouent à ton lit de pierre. Ne tourne pas le dos à tes voisins et voisines. Plus haut l’ami Georges joue sa mélodie en sous-sol : «Salut poète, t’es là depuis longtemps? — Ça commence à compter. Et toi? — Depuis le temps que je bâille ! Cela devient fatigant à la fin. Le pire est que je ne suis qu’au début. — Tu as fait le plus gros! — C’est quoi le plus gros pour toi? — Le temps de s’habituer à cet endroit particulièrement étroit. — C’est vrai mais il y a aussi le pire qui se renouvèle d’année en année. Le notaire ne doit pas être en possession de mon dossier. — Les hommes de loi se foutent bien des poètes. Avec ça, ils ne son pas dérangeants. De toute façon, la poésie semble morte, pour nous du moins. — Va savoir. Sûr qu’elle vit encore. — Ma Doué! Mal en point alors. Ils te connaissaient quand tu étais à la surface ? — Gast! Timidement ils m’ont donné le prix Bretagne. — C’est qui, ils? — Les bien-pensants de la littérature. Ceux qui ont le savoir le pouvoir de lire et tirer les ficelles de l’Évangile, les esthètes quoi. Et toi? — Moi? Le premier prix Goncourt et l’illustration de mes poésies antillaises en 1945-53 par Henri Matisse.» ►► 263 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 a John-Antoine Nau (1860-1918) cemitério marinho de Tréboul Cansado do além-mar e das Américas pelo mar arrastaste tuas forças até Tréboul. Meu olhar marinho sentinela de tua estrela ou amparo do último suspiro agora joga cara ou coroa. No porto dos murmúrios os sonhos têm piedade do sacrossanto cadinho das famílias. O mar é apenas um crucifixo o céu crê em seu estado de graça em cada onda que morre. As almas daqui são herdeiras do eterno como do soberano pensamento, as folhas velhas e as flores muletas do outono em cada manhã se prendem a teu leito de pedra. Não vira as costas para teus vizinhos. Mais acima o amigo Georges toca uma melodia em subsolo: « — Salve, poeta, estás aí há muito tempo? — Já perdi a conta. E tu? — Bocejando, há tanto tempo! Torna-se cansativo afinal. O pior é que estou apenas no começo. — Fizeste o mais difícil! — O que é o mais difícil para ti? — O tempo necessário para se acostumar com este lugar tão parco. — É verdade, mas também tem algo pior que acontece todos os anos. 264 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Acho que o notário desconhece meu dossiê. — Os homens de lei estão se lixando com os poetas. Isso não lhes preocupa. De qualquer forma, a poesia parece que morreu, pelo me nos para nós. — Quem sabe. Tenho a certeza que ainda vive. — Nossa ! A coisa está ruim mesmo. Eles te conheciam quando ainda estavas na superfície? — Porra! Timidamente me deram o prêmio Bretanha. — “Eles” quem? — Os bem-pensantes da literatura. Os que têm o saber, o poder de ler e de puxar os cordelinhos do Evangelho, enfim os estetas. E tu? — Eu? O primeiro prêmio Goncourt e a ilustração de meus poemas antilheses em 1945-53 por Henri Matisse. » Debout, l’homme ! d’après «Homme qui marche», d’Alberto Giacometti (extraits) Serge quitte le bar pour la ville trou et les ternes artères, la rue est son chez lui. Dans le caniveau coule son âme qu’un mal de vivre défigure. Anarchiste d’un soir il ne sait pas sur quel pied danser. ►► 265 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Pleur slow du rire? Une main levée en signe d’existence comme une balise de détresse il s’arrête repart vers personne se déhanche ajoutant la cadence à son mambo. Il bave jusqu’à terre écrase ses châteaux dans les poings et à la face du monde il ricane désabusé adresse un juron aux femmes qui lui font un flair d’amitié. Il soliloque adverbes et adjectifs confond impératif subjonctif et trop de choses vues vécues rejetées comme un torrent, mâche le chewing-gum des étoiles qui lui tirent la langue. De pé, homem! Segundo Homem caminhando, de Alberto Giacometti (excertos) Serge sai do bar vai para a baixa da cidade artérias bacentas, a rua é seu domicílio. Na vala escorre sua alma que um mal-viver desfigura. Anarquista de uma noite só ele não sabe 266 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 em que pé dançar. Lamento slow riso? A mão erguida em sinal de existência como uma boia de perigo ele para e se dirige para ninguém bamboleia dando o compasso a seu mambo. Baba até o chão esmagando seus castelos com os punhos e à face do mundo troça desenganado manda um palavrão às mulheres que lhe acenam um jeito de amizade. Vai dizendo advérbios e adjetivos confundindo imperativo conjuntivo e tantas coisas vistas e vividas arremessadas como uma torrente, vai mascando o chiclete das estrelas que lhe fazem caretas. Jean-Claude Tardif Jean-Claude Tardif nasceu em 1963, em Rennes, numa família de operários. Vive atualmente num povoado da Normandia, não longe de Le Havre. Poeta, novelista e contista, apresenta há mais de 10 anos o evento Rencontres du Livre à Dire, em Montivilliers, onde acolhe autores franceses e estrangeiros. Desde 1999, dirige a revista À l’Index. Colaborou em diversas antologias dedicadas à poesia contemporânea e alguns textos seus foram traduzidos em alemão, espanhol, italiano, farsi e lingala. Também é autor de Ordinaire et alentours, poesia (ed. Editinter, ►► 267 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 2009), La nada, contos (ed. Le temps qu’il fait, 2009), Le bestiaire improbable, poesia (ed. Editinter, 2011), com ilustrações de Claudine Goux, e La pension Candela, romance (ed. Editinter, 2012). Os poemas de Jean-Claude Tardif que aqui apresentamos são inéditos, são poemas que ressoam como uma oração a céu aberto, através da qual o poeta manifesta sua admiração de criança face ao mundo animal, perpetuando assim a tradição do bestiário poético. Existe algo parecido com a prestidigitação na escrita mágica e intensa de J-C. Tardif. A cada instante sentimos o ritmo harmonioso e o canto que se eleva de seus versos. Les oiseaux L’oiseau bleu pleure des larmes pâles le rouge a l’air cardinal dans sa cage tranquille et serein de l’aube il attend le matin. L’oiseau vert passe d’arbre en arbre de Zanzibar aux Canaries Il a si peur de la nuit qu’il en oublie son chant, ses fables. L’oiseau blanc a goût de chagrin celui de la corde et de l’usure du chêne Son œil gauche porte le ciel le droit est mort après minuit. L’oiseau noir a la tête dans ses plumes, il y cherche une étoile effondrée qui lui ressemblerait avant son dernier chant. 268 ◄◄ le 8.1.2013 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Os pássaros O pássaro azul chora lágrimas pálidas o encarnado parece um cardeal em sua gaiola tranquilo e calmo do alvorecer ele espera a manhã. O pássaro verde vai de árvore em árvore de Zanzibar até as Canárias Tem tanto medo da noite que esquece seu canto, suas fábulas. O pássaro branco tem gosto de tristeza o gosto da corda e do carvalho envelhecido Seu olho esquerdo carrega o céu o direito morreu depois da meia-noite. O pássaro negro tem a cabeça enfiada nas penas procurando uma estrela cadente que parecesse com ele antes de seu último canto. 8.1.2013 Les oiseaux attendaient la neige, leurs yeux blancs sous le ciel gris. Je marchais dans le parc la veille des hommes y avaient coupé du bois. Un vieux chêne avait perdu son âme «Trop sec!» avaient-ils murmuré convaincus qu’ils étaient d’y connaître quelque chose. Mais qui sait le cœur des arbres? ►► 269 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Les oiseaux attendaient la neige, un chat les guignait de ses yeux vairons. Il ne monterait plus dans l’arbre, jamais plus il n’y trouverait de nid; de cache pour ses mauvais instincts, ses contes que jamais on ne donne aux enfants de peur qu’ils ne l’aiment que davantage le savait-il déjà? Les oiseaux attendaient la neige. le 13.1.2013 Os pássaros esperavam a neve com olhos brancos sob um céu cinzento. Eu caminhava no parque na véspera uns homens tinham cortado árvores. Um velho carvalho perdera sua alma “Seco demais!” murmuraram convencidos de que sabiam o que diziam. Mas quem sabe do coração das árvores? Os pássaros esperavam a neve, um gato de olho ímpar olhava de soslaio. Nunca mais iria trepar naquela árvore, nem iria ver o ninho, nem encontrar esconderijo para seus maus instintos, seus contos que nunca são dados às crianças com medo que elas gostem dele ainda mais será que ele já sabia disso? Os pássaros esperavam a neve. 13.1.2013 270 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Sept poèmes au goût d’oiseau Quand la neige durcit sur le bois il vient l’oiseau avec son monde bruit ténu vers le Nord noir comme toile de Hièronymus Van Alen ombre de soie en voyage où s’endorment la rose et le poivrier Respire-t-il quand l’herbe couvre les mirabelles pour l’amour d’un songe ce corps tendre de tubéreuse qui frôle jusqu’à la cendre le bleu du miroir l’aile de sa mémoire Ses yeux sont les nerfs du vent pays lointain des grands chagrins le pavot y bruisse et fleurit en des jardins patients. L’essaim y materne la nuit et le lombric la romance avant que la terre ne le fuit. L’oiseau est une larme qui vole l’osselet léger de la fleur et sa vertu de douce absence qui fait de chaque mot un leurre. Le croiser nous donne à vieillir du silence fane les couleurs prenons garde aux tristes rumeurs. ►► 271 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Si l’oiseau niche dans la poche peut-être te saluera-t-il corps et âme comme les voleurs. Douce chanson du voyageur quand le sable s’entête fossile à faire vieillir le bonheur dans l’ombre blême de Dieu qui triche. Donne-lui le nom de la sauge il y fera dormir les anges nichée après nichée. Apprends-lui l’odeur de la pierre il y gravera son cri. Montre-lui l’oeil bleu de l’enfance, et il y puisera sa nuit. Si tu croises un oiseau enfin, donne-lui le vin du jour ce lac que tu gardais pour toi. Ne tourne pas la tête salue simplement pour qu’il te reconnaisse te nomme par ton nom. Ainsi soit-il! Sete poemas com gosto de pássaro Quando a neve endurece na madeira ele vem o pássaro com seu mundo de sons leves do Norte negro como uma tela de Hieronymus Van Alen sombra de seda em viagem onde adormecem a rosa e a pimenteira. 272 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Será que ele respira quando as ervas cobrem as mirabelas pelo amor de um sonho este corpo tenro de tuberosa que toca de leve até a cinza o azul do espelho a asa da memória. Seus olhos são os nervos do vento terra longínqua das grandes amarguras onde a papoila floresce e murmura em jardins pacientes. Aqui o enxame aconchega a noite e a minhoca romanceia-a antes que a terra não a abandone. O pássaro é uma lágrima que voa o ossículo leve da flor e sua virtude de doce ausência que faz de cada palavra um logro. Cruzá-lo nos traz a velhice do silêncio murcham as cores atenção aos tristes rumores. Se o pássaro se aninhar no bolso talvez ele te saudará de corpo e alma como os ladrões. Doce canção do viajante quando a areia fóssil teima em envelhecer a felicidade na sombra pálida de Deus que engana. Dá-lhe o nome da salva e nela os anjos dormirão ►► 273 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 ninhada após ninhada. Ensina-lhe o cheiro da pedra e ele gravará o grito. Mostra-lhe o olho azul da infância, e ele conceberá a noite. Se cruzares um pássaro enfim, dá-lhe o vinho do dia o lago que guardavas para ti. Não vires a cabeça saúda-o apenas para que ele te reconheça te nomeie pelo teu nome. Assim seja! Olivier Cousin Olivier Cousin nasceu em 1972, no departamento do Finistère-Nord, onde leciona na área das letras. Dedica o seu tempo de escrita principalmente ao romance e à poesia, mas também escreve contos e traduz. Traduziu recentemente o poeta inglês Roy Eales. Publicou Les enchaînés de Landouzan, romance (Liv’Éditions, 2009), Dans nos vies à bascule, contos (ed. CheminFaisant, 2013) e livros de poesia, entre os quais os mais recentes são Sous um ciel sans paupière (ed. La Part Commune, 2010), 77 poèmes et des poussières (ed. La Part Commune, 2012) e Étranges estrans (Les Armoricaines éditions, 2013). Nos dois primeiros poemas, excertos do livro Sous un ciel sans paupière, Olivier Cousin nos convida a umas escalas mediterrânicas, principalmente gregas, durante as quais ele quis “se despojar dos fantasmas desta Grécia multissecular”. Os outros 274 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 poemas são excertos do seu último livro, no qual a viagem continua em forma de busca de suas raízes bretãs e mediterrânicas, mas também enquanto viagem existencial, num tom irônico e numa linguagem liberta do peso das convenções. La théorie du Minotaure En théorie mon enthousiasme même s’il monte au ciel ne va jamais aux idoles Est-ce alors le soleil de Knossos qui me frappe la théière ? À moins que ce ne soit quelque dieu d’un panthéon ensoleillé qui me thermo-dynamise ? Ici à Knossos je ferais bien un avec le cosmos À la rigueur si Ovide ne se prêtait plus au jeu des métamorphoses je dirais comme Jorge de Sena : «Mais, si un jour j’oublie tout, j’espère pouvoir vieillir en prenant un café en Crète avec le Minotaure, sous le regard des dieux sans vergogne». ►► 275 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 A teoria do Minotauro Na teoria meu entusiasmo mesmo que se eleve até o céu nunca se dirige aos ídolos Será então a culpa deste sol de Knossos que me bate na cabeça? A menos que não seja um deus qualquer de um panteão ensolarado que me termodinamiza? Aqui em Knossos quero ser um com o cosmos A rigor se Ovídio não se prestasse mais ao jogo das metamorfoses eu diria como Jorge de Sena: “Mas se um dia me esquecer de tudo, espero envelhecer tomando café em Creta com o Minotauro, sob o olhar de deuses sem vergonha”. Captif de Vénus J’étais venu faire régime dégraisser mes phantasmes de cette Grèce archi-séculaire aux valises farcies de mythes aux mille yeux intimidants C’était sans compter sur toi 276 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Cachant mal tes courbes rusées le jean est chypriote les bretelles du caraco italiennes — et détendues — Chaque once de sensualité est la tienne J’ai failli rouler dans le précipice en effleurant le grain de ta peau Joues en quête sur tes cuisses fermes d’une odeur musquée n’appartenant qu’à toi ma Vénus nue parmi si peu d’autres Dévorer ta pulpe comme une olive confite et je partirai avec une nouvelle recette pour jouir partout d’humaine intempérance Cativo de Vênus Vim para fazer dieta me despojar dos fantasmas desta Grécia multissecular com malas abarrotadas de mitos de mil olhos intimidantes Era não contar com você Disfarçando mal suas curvas maliciosas a calça jeans é cipriota as alças do corpete italianas — e afrouxadas — Cada onça de ouro de sensualidade é a sua ►► 277 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Quase desabei no precipício aflorando o grão de sua pele Rosto procurando em suas coxas rijas um odor almiscarado que lhe pertence minha Vênus nua entre tão poucas outras Devoro sua polpa como uma azeitona recheada e partirei com uma nova receita para gozar em toda parte a humana intemperança Séparation de corps J’admire la salamandre qui perd sa queue sans se démonter Au moment de mourir je ne vivrai pas d’exuvie Saurai-je me laisser dépouiller sans faire d’histoire ? Un jour il faudra tout perdre en gardant son flegme Un jour je manquerai au rendez-vous je m’en irai faire corps avec le vent Je serai sans moi et personne n’oubliera de m’oublier Combien de temps avant d’être intégralement gommé même pour les siens ? 278 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Separação de corpos Admiro a salamandra que perde a cauda e nem se assusta Na hora de morrer não vou viver de exúvia Aceitarei que me esfolem sem reclamar? Um dia teremos que deixar tudo com fleuma Um dia faltarei ao encontro irei me incorporar ao vento Estarei sem mim e ninguém esquecerá de me esquecer Quanto tempo até sumir integralmente mesmo para seus entes ? Tricheur de temps Le jour les secondes paraissent vulnérables interminable colonne de fourmis se jetant une à une dans le précipice Elles n’on rien de vampiresque et pourraient passer pour des bestioles qui fractionnent doucement l’existence entre chatouilles et papouilles ►► 279 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 La nuit les trotteuses de ma montre possèdent une phosphorescence rassurante terriblement inquiétante Mais dans leur minutieux décompte à soubresauts métronomiques elles font autant de ravages que n’importe quelle arme De jour comme de nuit le temps nous leurre sans mesure ni retenue De jour comme de nuit règne un tricheur qui ne fait pas de cadeau Trapaceiro de tempo De dia os segundos parecem vulneráveis interminável coluna de formigas se atirando uma por uma no precipício Não têm nada de vampírico e poderiam passar por bichinhos que fracionam calmamente a existência entre cócegas e carícias De noite os ponteiros do meu relógio possuem uma fosforescência tranquilizadora terrivelmente inquietante Mas no minucioso desconto das horas em sobressaltos metronômicos eles causam tantos danos quanto qualquer arma 280 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 De dia como de noite o tempo nos engana sem dó nem piedade De dia como de noite reina um trapaceiro que não poupa ninguém Ancrage Une flotte complète a sombré à l’aplomb de mon existence Depuis ma naissance mes souvenirs gisent à l’ancre au fond d’un océan immémorial D’autres surnagent scintillant encore de quelques feux entre deux eaux D’autres s’étagent en partie perdus à des profondeurs différentes Une tâche éprouvante parfois m’est assignée rattacher ces souvenirs comme des balises à la surface d’aujourd’hui Ancoragem Uma frota inteira naufragou bem no prumo da minha existência Desde meu nascimento ►► 281 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 minhas lembranças jazem ancoradas no fundo de um oceano imemorial Outras flutuam cintilando ainda algumas luzes entre duas correntes Outras se sobrepõem em parte perdidas nas diversas profundezas Uma tarefa penosa por vezes é-me atribuída atar estas lembranças como balizas à superfície de hoje 282 ◄◄ FICÇÃO O RETRATO NA PAREDE Hélio Pólvora Para Ático Vilas-Boas da Mota A té hoje não sei explicar bem por que tio Angélico, que me acolheu desde a morte dos meus pais, insistiu para que o hóspede, o rábula Francisco Conde, ocupasse a cabeceira da mesa. Era costume, e ainda é em certas casas senhoriais, principalmente no interior, reservar-se o assento da cabeceira ao chefe da família, que dele tem absoluta exclusividade. Ninguém, mesmo por imitação jocosa, ousava ocupar aquele assento de madeira, alto e reto, que seria um trono não fora o incômodo causado às costas. Aquela cadeira sem abas para descanso dos braços exigia pose ereta, ombros levantados, atitudes rígidas. Exclusiva do meu avô Cesário, estava agora vazia em sua homenagem. Quando ele, que alcancei bem idoso, pousava a mão sobre a mesa, ao lado do guardanapo em prendedor de prata e dos talheres também de prata alinhados à direita, e se esticava todo, de olhos postos nos pratos e nos convivas, era sempre o comandante no leme do barco. Ninguém, nem mesmo sua mulher legítima, que não ousou suceder-lhe muito tempo aqui na terra, punha-se à mesa antes que ele entrasse, em geral de camisa fechada nos punhos, colete e colarinho duro com abotoadura de ouro. Um criado reverente, bem escanhoado e de luvas, afastava então a cadeira e a sustinha, aproximando-a da mesa no instante exato em que o patriarca baixava as nádegas. O criado retornava logo às dependências da cozinha, e o senhor da cabeceira, depois de um olhar perscrutador à família, avançava a mão para o cálice de aguardente que abria o apetite. ►► 285 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Em seguida, antes de atacar o prato de sopa, cofiava as pontas retorcidas do grosso bigode. Era o sinal para que os seus familiares, dispersos nas imediações em curtos diálogos a meia-voz ou em silêncio, se aproximassem e tomassem quase sem fazer ruído seus respectivos lugares. Nenhum deles, pelo que me lembro, arrastava a cadeira. A essa altura os cicios e sussurros cessavam, porque à mesa a iniciativa da conversa cabia ao homem da cabeceira — o anfitrião de todos os dias, chefe e provedor de todos nós. Eu era pequeno, de uns oito anos talvez, e confesso que demorei a suportar o peso do silêncio. Raramente as vozes cruzavam a mesa, de um lado a outro, da cabeceira sem assento ao espaldar do meu avô. Mastigava-se com o cuidado de não emitir ruídos de trituração ou silvos de quem suga. Não se ouviam talheres a trincar e tampouco a esgrima de frases. O avô Cesário comia devagar, sem dar mostras de fome, com uma compostura que eu, amigo dos bichos no pomar, observava nos gatos. Esses animais não se atiravam, famélicos e grosseiros, como os cães, ao alimento que lhes davam; acercavam-se de modo esquivo, cheiravam, reviravam a comida com uma pata, voltavam a cheirar, engoliam um bocado com um esgar que me parecia de nojo, recuavam. Pois bem, meu avô tinha à mesa a formalidade, esquivança e delicadeza dos gatos. Mastigava uma pequena porção, limpava a boca com o guardanapo, pousava garfo e faca, olhava-nos. Às vezes fazia perguntas a um e outro. O mais normal era lançar, em voz mansa que denotava certeza, um comentário sobre assunto recente, da véspera, ou as colheitas, ou o tempo. Ouvíamos com sinais evidentes de respeito, de cabeça inclinada e murmúrios de aprovação. Raramente ria — e quando lhe vinha o riso em borbotão, fruto de uma frase que parecia chistosa, e se prolongava em gargalhada, ele então percebia, assim eu imagino, que se excedera, e recompunha o semblante, e um tanto contrafeito alisava a negra barba cerrada. Costumava dizer que assuntos graves, penosos, deviam ser evitados à mesa, em proveito de uma digestão tranquila. E conviria também não levá-los ao leito: a hora de dormir, nunca depois das 286 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 nove da noite, para que se despertasse cedo e com forças para ganhar o pão, fora reservada às bênçãos e ao repouso reparador. Agonias, peripécias, dúvidas ficavam para o dia seguinte, à luz meridiana do Sol, quando os espíritos, imunes ao assédio das trevas, se iluminam, banem os receios, pensam com acerto. “Há pessoas condenadas à insônia”, dizia ele. “Está no Eclesiastes. De tanto ler e pensar no assunto, até decorei o versículo.” Fazia uma pausa para criar expectativa. Com o garfo e a faca espetados no ar em inútil lance de esgrima, aguardávamos o desfecho. “Capítulo 8, versículo 16”, prosseguia. “Diz assim, sem tirar nem pôr: ‘E apliquei o meu coração a conhecer a sabedoria e a notar a distração que vagueia na Terra; homem há que nem de dia nem de noite concilia sono a seus olhos’.” Dito o quê ele pregava os olhos no prato, e nós o imitávamos em gesto mecânico de robôs. Atrás da cadeira de espaldar reto perfilava-se o criado impassível. Aquela era a casa — ou casarão — dos retratos a óleo e dos pesados reposteiros de pano. As paredes, principalmente no corredor que desembocava no salão de jantar e na sala de estar, ao lado (era o fumoir do meu avô, com seus charutos perfumados em caixas de cedro, e agora de tio Angélico), cobriam-se de telas. Nada de paisagens, somente retratos. Predominavam os cavalheiros graves, de cenho carregado, peitilho engomado, barbas veneráveis e trajes negros. Estavam mortos, eu sabia. A poeira de um ou dois séculos, não satisfeita de lhes aprisionar na terra os velhos ossos, entrava pelos janelões, soprada das ruas no verão, e sobre eles espalhava leve pátina. Ainda assim, semivelados, nos espiavam, talvez nos espionassem, talvez nos seguissem com os olhos, quando passávamos. Por isso eu passava correndo. Havia censura naqueles semblantes severos, e, como é notório, está para nascer aquele menino imune a queixas e acusações. Eu corria, pois, sentindo nas costas a ardência de olhares ►► 287 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 punitivos. Havia também retratos de damas empertigadas, de pé ou reclinadas em poltronas, também vestidas de negro, também austeras à moda antiga. Todas de busto coberto, gargantilhas e penteados altos ou bandós. Nenhuma com tranças ou de cabelos corridos. O que esperar delas? Não sei por que, mas me pareciam mais impenitentes que os cavalheiros, sem vislumbres de um possível perdão. Os tons desses retratos a óleo, de uma nitidez fotográfica, eram escuros, salvo o branco imaculado das camisas e rendas e o habitual vermelho ou escarlate de reposteiros e canapés. Eu entrava correndo, como disse, ou a passo apressado por aquela galeria de vultos de um passado faustoso e cobrador. Mas não creio que os adultos, meus tios e primos, lhes dessem importância. Menos, naturalmente, o meu tio Angélico. E creio que também sua esposa, a tia Benigna, que ele, somente ele, chamava Beni. Na sala de jantar, na parede atrás da vazia cabeceira da mesa após a morte do meu avô, vazia em louvor de sua lembrança, porque somente ele poderia ocupá-la, pendia um alto retrato a óleo do falecido. De fraque, colete branco e gravata, pousava a mão direita no espaldar da cadeira, a sua cadeira na grande mesa de refeições. Conduzia uma assembleia de lugares vazios e mesa nua. O pintor concentrara toda a sua atenção e talento no retrato, que era, de fato, impressionante, transmitindo uma certeza instantânea de poder imperial. Mais que um barão, meu avô era um condottieri. Mesa posta, convivas ao redor, por pouco ele não saía da moldura para sentar-se à cabeceira e empunhar os talheres à guisa de floretes, lanças. Certa manhã tio Angélico comunicou-nos a chegada do rábula. “Quem?”, perguntou sua mulher Benigna. “Você não conhece. Francisco Conde.” E depois de curta pausa: “Ofereci-lhe hospedagem aqui.” “Aqui em casa?”, admirou-se a mulher. 288 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 “E por que não? Temos quartos de sobra. Escolha um.” “Fica por muito tempo?” “Não sei. Até alugar casa. Uns quinze dias, talvez.” “Ah, vem para morar... E quando chega?” “Amanhã. Prepare tudo.” “Traz família?” “Está sozinho, por enquanto.” “Ah.” Tia Benigna não me pareceu satisfeita. Tinha temperamento arredio, algo esquivo. Não era muito de pagar visitas e menos ainda recebê-las. Nisso ela destoava de todos os moradores de Macaúbas, cidade pequena encravada num vale cercado de montes que se aproximavam como que para montar guarda. Mas as mulheres, especialmente as casadas, primavam naquela época, ainda que a contragosto, pela submissão. O marido mandava, a palavra do marido era a lei maior na casa e nos negócios, que ele tocava a seu bel-prazer, sem dever satisfações e pedir aconselhamento. Um primo atilado lembrou mais tarde, em conversa vaga na calçada, que não havia advogado na cidade. Nenhum, sequer para remédio. Essa observação deu o que pensar: houve estalos no mecanismo das deduções e não tardou a brotar a insinuação, logo considerada certeza absoluta, de que tio Angélico trazia o rábula para desatar o nó do inventário e outros negócios emperrados. Estava explicada sua viagem a Livramento, duas semanas atrás, a cavalo. Ignoro se as mulheres da família temiam, como eu, aqueles retratos sombrios nas paredes da mansão — ou se, reverentes a exemplo de tio Angélico e tia Benigna, paravam às vezes diante deles, em muda contemplação. O que pensariam em tais instantes? O que o mergulho súbito no passado poderia significar? Talvez resíduos de um sentimento de culpa, bastante compreensível, aliás (fosse esse o caso), porque, por mais que se faça o bem a uma pessoa, restará sempre pequena margem de expectativa insatisfeita de ambas as partes, beneficiado e autor das benesses. ►► 289 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 A vida ensina que a dádiva, mesmo constante e altruísta, provoca às vezes reações de inconformismo, uns achando que poderiam dar mais, e se sobrecarregando assim com o sentimento de culpa, outros que poderiam receber mais, ainda que o provimento lhes deixasse gosto amargo na boca. Mas eu penso também que a reverência ocasional a austeros retratos a óleo de antepassados ilustres, fato raro hoje em dia, talvez seja fruto do orgulho. Orgulho, primeiro, de pertencer àquela cepa e ser o novo guia da jornada. Orgulho, depois, de se sentir mais completo, mais realizado, e diante do retrato, que o fita de olhos severos, ponderar então: “Está vendo? Semeei mais, colhi mais, não sou o indivíduo apático que o senhor (ou senhora) imaginava.” Mas, se não olhava fixamente os retratos, e com eles confabulava, tia Benigna os limpava de quando em quando. Espanada a fímbria de poeira, a barba ficava mais negra, os olhos duros fuzilavam. O bigode luzia, negro como azeviche, apesar da vaga tonalidade cinérea do cabelo escurecido sem dúvida com tinturas. As cunhadas não se importavam. Ocasionalmente fariam referências ao pai, que as governara com mão de ferro, e ao irmão, que seguia a receita. Nenhuma se casara, em parte porque a soberba do patriarca espantara possíveis pretendentes; em parte porque elas, de vontade mole, se haviam sujeitado a depender dele, da sua palavra e do conforto material que lhes dava. Tinham casa, tinham lugar à mesa, delas não se exigia trabalho caseiro pesado. Viviam para os bordados, as rendas, as missas, os convites para aniversários e batizados, dois ou três vestidos por ano, conversas sobre medicina caseira, o posto de vigilância nas janelas quando arrefecia o calor da tarde e os primeiros sinais do anoitecer se desenhavam ao longe no colorido das nuvens. Perguntas tímidas que, a princípio, arriscavam sobre a partilha dos bens do falecido esmoreceram e acabaram na gaveta da memória, cobertas de pó, furadas pelas traças e com odor a mofo. Ainda não houvera partilha, ignorava-se a existência de testamento e se o irmão, tio Angélico, fora de fato designado 290 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 inventariante, como dizia. Talvez agora as cogitações tivessem resposta com a chegada de Francisco Conde e as providências que decerto tomaria. “Pelo visto é gente importante”, comentou Cinira. “Tem de ser. Angélico trouxe-o a cavalo, de Livramento”, concordou a irmã Ambrósia. “Levou cavalo aparelhado, de arreio e tudo. Fez as despesas.” “Para deduzir depois”, volveu a irmã com um risinho de mofa. “Deduzir do quê?”, indagou a outra, distraída. “Ora, deduzir dos haveres alheios, sua tonta.” Ambrósia suspendeu o trabalho de agulha. Baços, como que de vidro fosco, seus olhos erraram no vazio próximo. Mais longe não ousavam ir, na administração dos venenos sutis. Caladas ficaram as duas mulheres, uma com panos, agulha e linha esquecidos no colo, a outra diligente, na cadeira de vime, as mãos ainda firmes ocupadas na faina de alinhavar. Tia Benigna aproximou-se, fatigada. “É hoje”, anunciou. “A novena?”, perguntou Ambrósia, a emergir do devaneio. “Não, criatura. O hóspede.” “Está chegando, é?” “A qualquer instante. Forrei a cama com um lençol branco de linho e uma colcha de matelassê. Deixei água fresca na moringa, espanei o reposteiro e bati o tapete de couro de boi. Pus também uma Bíblia no criado-mudo. Talvez o rábula seja homem de devoção.” “Você deixou a Bíblia aberta ou fechada?” “Fechada. Por que pergunta?” “Em geral deixamos aberta, nos Salmos”, disse Cinira. “Ele que escolha o Livro e a parábola”, disse Benigna, não sem certo desdém. Calaram, pois Ana Cláudia, cozinheira e faxineira a um só tempo, chegava com uma bandeja de limonadas. As mulheres ►► 291 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 tomaram um sorvo cerimonioso e suspiraram. Uma lufada de vento derrubou carambolas maduras no pomar. Uma ave grande e escura, talvez gavião, planou certeira por cima da casa e desapareceu, miúda, atrás do monte. “Ui”, gemeu Ambrósia. “O que foi?”, acudiram as duas. “Para mim era coruja.” “Coruja a esta hora do dia?”, estranhou Benigna. “Pois é”, secundou Cinira. “Rasga-mortalha só aparece à noite.” “Sei não...”, disse Ambrósia, e deixou a frase no ar. O resto da tarde foi consumido nos preparativos de cada um: o que vestir, o que calçar, o penteado, as unhas brunidas. Isso em relação às mulheres, que vieram ao mundo, como é sabido, vaidosas, presas à tirania da boa aparência. E por que não? Nem todas são belas de rosto, de gestos, de intenções. Mas o Criador as brindou com um corpo diferente do nosso, nas escarpas, sinuosidades e meandros, por menos dotadas que sejam. Quem nasceu para espelho, modelo e retrato ao mesmo tempo, obriga-se a manter limpa e nítida e atraente a superfície espelhante. Mulheres sempre enchem os olhos e cedo aprendem a seduzir com aqueles artifícios sobrepostos ao talento natural dos predadores. Quanto aos homens, ah, muitos poderiam e até desejariam, se possível, voltar às cavernas. Pratos tiniram. Louças e talheres reservados a ocasiões solenes (quase tudo legado do velho Cesário) saíam de armários e gavetões. Terrinas, bandejas, cálices e copos, compotas e licores, baixelas e banho-maria, bules e jarros. Na cozinha, onde tia Benigna entrava de vez em quando para vistoriar, Ana Cláudia se estafava e se estabanava. Felizmente as postas de peixe — salmão importado do Chile — chegaram aparadas, prontas para receber o tempero. E a sopa de legumes estava cortada. Tive de subir à mesa para encaixar mais duas lâmpadas no candelabro. Por fim as mulheres se meteram em cálidos 292 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 banhos de sais. O gluglu da água espalhava-se no casarão, refluía dos umbrais. “Esse rábula Francisco Conde está me saindo mais caro que a encomenda”, queixou-se tia Benigna. “Pois espere só. Muita água ainda vai rolar”, comentou Cinira. “Afinal, para que vem?” “Ora, filha, para legitimar.” “Legitimar... Legitimar o quê?” “As decisões já tomadas por vosso marido.” Cinira acentuou o vosso com uma ponta de arrelia. A vagar pela casa, mas distante do corredor, que já àquela hora estaria imerso em penumbra quebrada apenas pelos carvões rubros dos olhos das damas e cavalheiros dos retratos, eu escutava, eu me perguntava onde andariam os primos. Pergunta ociosa, decerto, porque Danúbio teria desaguado na mesa de bilhar e Nilo, o rapaz caçula, entrara com certeza no estuário da rapariga sua amante, mantida em pensão com alguns requintes de fidalguia bancados ninguém sabia como. Entardecia. Os estalos das rodas de ferro da charrete nas pedras irregulares do calçamento nos levaram aos janelões. A chegada de um visitante, rábula ou simples mortal, sempre fora um acontecimento. Tio Angélico, enfarpelado e de chapéu branco com cinta preta, desceu e ajudou o rábula a apear. O cocheiro, que assim chamo por fidelidade aos romances antigos, mas que para nós não passava de Manuel da Bodega, suou para abraçar a canastra e, aos tropeções, deixá-la à entrada do corredor. “Uma canastra pesada”, observou Nilo, que havia chegado pouco antes na companhia do irmão. Era dado a verificações óbvias. “O que contém? Mármore azul?”, especulou Danúbio. “Só se ele furtou dos gringos italianos”, disse Nilo. “Tanta roupa é que não é”, concluiu o mestre nas tacadas de bilhar. ►► 293 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 “Talvez livros jurídicos, embora ele não traga somente a roupa do corpo”, emendou o outro. O rábula era homem pequeno e franzino. Batia a cabeça no ombro maciço de tio Angélico. Parecia um serventuário humilde, pois trazia sob a axila uma pasta preta, sem dúvida atulhada de papéis de suma importância, que teria de vigiar o tempo inteiro. Espetava no queixo magro um cavanhaque pontudo e algo eriçado e trajava roupa simples. No entanto, andava de paletó fechado, passo ligeiro e atitude empertigada. Em tudo um rábula. As mulheres desinteressaram-se: tanto enfeite à toa! Mas, se não se impunha pelo talhe, Francisco Conde exibia modos educados, de etiqueta. Cumprimentou as senhoras com afetada inclinação do busto, um sorriso rápido, que parecia mecânico, e a simulação de um beijo na mão. Se não tinha dotes semelhantes aos dos galãs do cinema (Errol Flynn e Clark Gable estavam no auge), teria, ao menos, miolos na cabeça, do contrário o patriarca Angélico não lhe iria ao encalço e muito menos se daria ao exagero de hospedá-lo. Fizeram-no sentar na sala, serviram-lhe um aperitivo com que se recobrar das fadigas da viagem. De passagem pelo corredor, o rábula reduziu o passo, deteve-se aqui e ali diante de um quadro nas paredes. Quem era a dama, quem era o cavalheiro. Elogiou as pinturas, referiu-se a “essas famílias de nobre estirpe que são o esteio da nacionalidade”. Agradou. Após o cálice de licor foi guiado ao quarto para o cochilo reparador, o banho e a muda de roupa antes do jantar, que ali, apesar da hora adiantada, chamavam ceia. Por onde passava, Francisco Conde tinha exclamações admirativas; teria chegado a dizer, conforme depoimento de Cinira, emitido, porém, em tom de mofa: “Nota-se em cada pormenor o gosto zeloso, a mão fina da esposa prendada.” Agradou muito, o que não o impediu de ser questionado logo mais à mesa. Danúbio e Nilo continuavam a especular sobre o conteúdo da canastra. “Livros”, alvitrou Nilo, em tom de quem dá a pendência por encerrada. Manuais de direito civil, penal e, sobretudo, processual. Códigos, vade-mécuns. 294 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O irmão sorria incrédulo. “E para o quê, se a esperteza do nosso pai vence qualquer tratado jurídico?” Ficaram nisso, hesitantes e incertos, enquanto nos dias seguintes, e nas semanas subsequentes, anfitrião e hóspede, afinados, punham em dia os atrasados. Emancipados pela idade, que se aproximava dos improdutivos trinta anos, e à vista de dinheiro vivo pela primeira vez na vida, Danúbio e Nilo passaram recibos de quitação de suas porções no futuro legado. Nilo viajou com a amante para São Paulo e até hoje deve notícias de seu paradeiro; talvez esteja sepultado em cova rasa, ou então foi queimado vivo por assaltantes em busca de altas quantias, ou abatido por pistoleiro em crime de mando. O outro, Danúbio, de curso emotivo menos caudaloso, deixou-se ficar no burgo, entregue às partidas de bilhar apostadas; gastou tudo, acabou expulso de casa e trabalhou na extração de minério estratégico em Caetité. Dizem que se contaminou e morreu. É claro que a cidade comentou tudo isso, de boca em boca, de porta em porta, nas barbearias, nos bares, na feira livre, nos salões de sinuca, nos prostíbulos — e ainda hoje, passados anos, ainda há quem fale. O acerto com Cinira e Ambrósia, por exemplo. O acerto de contas com meu pai enfermo. No caso das irmãs, foi mais rápido e fácil: já moravam há anos com o patriarca, tinham cama e mesa, roupa e sapato — o básico, em suma. Havia lançamentos no “deve” e “haver” de cada uma, incluindo diárias de hospedagem, como nos hotéis. Feitos os cálculos pelo rábula, as mulheres eram devedoras; tio Angélico alegou “comunhão fraterna” e renovou o acolhimento, doravante a fundo perdido; mas, por amor à contabilidade, guardou os recibos de quitação da herança. No caso do meu pai viúvo, proprietário da Fazenda Futurosa, seiscentos alqueires, a pendência arrastou-se. É que o velho, de pele amarelada, olheiras fundas, reumatismo crônico e outras misérias físicas, demorava a morrer. Assim que soube do progresso das mazelas, que já então prendiam o desafortunado ►► 295 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 vizinho ao leito, Angélico visitou-o, acompanhado do inseparável Francisco Conde, que apenas observava, sem falar, ocupado que estava em beber palavras alheias. A princípio, forneceu-lhe dinheiro para a feira semanal, as diárias de pequenos serviços; depois, para consultas médicas, remédios, transporte. Os males agravaram-se, tio Angélico transferiu o doente para o burgo, alugou casa para ele, contratou enfermeiro, cozinheira. Antes do óbito, que era questão de semanas ou dias, a escritura fora lavrada, firmada, registrada. Estava, assim, mais do que justificada a presença do rábula, o trabalho de ir buscá-lo pessoalmente em Livramento e deixá-lo, de charrete e com a sua canastra, à porta do casarão, hospedá-lo durante semanas, antes que alugasse casa para trazer a família, e dar-lhe o melhor aposento — que outro não era senão o do meu avô Cesário, até ali resguardado e impoluto, tal e qual ele o deixara, os janelões abertos sobre o pomar, os ramos das mangueiras a sussurrar nas noites calmas: “Ergue-te e anda, Cesário.” Ou então: “Acorda, Cesário, que a Lua já vai alta no firmamento.” Vejo que entrei em atalhos. Voltemos ao dia da chegada. O rábula desceu a escada em caracol. Estava de roupa mudada e ainda mais solene; trocara o pó das estradas, na pele, por uma rosada tez oleosa. Trescalava leve perfume, talvez lavanda. O cavanhaque parecia como que encerado. Se envergasse fraque seria no mínimo mestre de cerimônias. Beijou, sem roçar os lábios, as mãos das senhoras. Curvou-se diante dos cavalheiros. E ei-lo, cerimonioso, porém atento, a entretecer conversas banais enquanto a ceia não era anunciada. Velas em castiçais de dois e três braços começaram a arder no centro da mesa; alguém desligou o candelabro. Tia Benigna dirigiu-se ao marido. “A ceia está pronta.” “Então”, disse Angélico, erguendo-se da poltrona e abrangendo a assembleia, “vamos à mesa, como convém”. Os convivas acercaram-se e pararam. Decerto aguardavam o prosseguimento do ritual. Tio Angélico encarou o hóspede. 296 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 “Sente-se à cabeceira”, apontou. O rábula enrubesceu. “É honra que não faço por merecer.” “Sente-se, eu insisto.” O atônito criado, também herança de Cesário, recuou a cadeira de espaldar alto e aproximou-a no instante certo. Os demais ocuparam sem bulha os seus lugares, eram pássaros que pousam para repouso em fios telegráficos nas migrações. Tia Benigna precedeu o cortejo oriundo dos confins da cozinha. Portava com galhardia uma terrina de sopa da qual escapavam volutas de vapor. Ao ver Francisco Conde à cabeceira da mesa, naquele assento privilegiado, até então vazio por não haver, na família e fora da família, autoridade digna de ocupá-lo, diminuiu o passo e contraiu o rosto. De repente, na superfície lisa e macia do semblante, ainda imune, apesar da meia-idade, à comichão das rugas e bolsas, formou-se uma máscara dolorosa. E eu, no meu canto encolhido, tive a impressão, suponho que falsa, de que os cabelos dela se arrepiavam como as penas das galinhas chocas — pelo menos os da crista. Em seguida, a dor daquela máscara, por enquanto contida, encheu-se de fúria. Avançou decidida, pousou a terrina com um baque que espadanou pingos na toalha rendada e bradou para o rábula: “Seu lugar é outro!” Vi — todos viram perfeitamente, apesar da penumbra — as mãos da mulher subir ao queixo, quase cerradas, mas com os polegares e indicadores livres. E estes, passando do queixo ao lábio superior, no espaço até a base do nariz, entraram a cofiar, em gestos sacudidos, as pontas eriçadas de um grosso bigode. Mas ela não tinha bigode de homem. Sequer tinha um maltraçado buço. Assim foi, assim esteve a mulher, durante quase um minuto, a torcer, a retorcer as guias enroladas do bigode. Ninguém falava. As mãos desceram, então, sendo que a direita, transformada em punho cerrado, manopla ou martelo, estrondou sobre a mesa, em ►► 297 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 porretada que fez tinir as baixelas, enquanto os olhos chamejavam na direção do rábula. “Seu lugar é outro!” Soaram as horas no grande relógio de parede. Sete precisas, sonoras, espaçadas badaladas. Calmo, sereno, sem levantar a voz, tio Angélico dirigiu-se a Francisco Conde. “Desculpe o equívoco. Troque de lugar comigo.” Os convivas entreolharam-se. A refeição começou assim que tia Benigna, refeita do ataque de cólera, foi deitando colheradas da rica sopa nos pratos que lhe eram passados, a partir do marido. Nesse instante, houve um rangido e baque estrondoso. O retrato de Cesário resvalara do pino enferrujado para o parquet, com o natural espalhafato. Quase todos se soergueram. Ambrósia engasgou-se, Cinira desatou uma risada em que havia toque histérico. O rábula passou o guardanapo na boca, olhou o homem na cabeceira e quis levantar-se. “Deixe”, comandou Angélico, contendo-lhe o ímpeto com uma pesada mão no ombro. “Antônio cuida disso.” A tela se despregara da moldura. Um assustado Antônio mostrou-a. Estava vazia, estava em branco. O retrato fora apagado — ou se apagara sem que percebessem, no lento fluxo do tempo. Sem se voltar na cadeira de alto encosto reto, o provedor Angélico levou à boca as mãos em forma de concha. Polegares e indicadores recurvos torceram então pela primeira vez as pontas do espesso bigode escuro. * Salvador, 20-25 de julho de 2013. Hélio Pólvora é jornalista, crítico literário, ensaísta, cronista, tradutor e, principalmente, ficcionista, com dezenas de livros publicados, dentre os quais os romances Inúteis luas obscenas e Don Solidon e a coletânea Contos e novelas escolhidos, em dois volumes. Possui diversos prêmios nacionais, como o Prêmio Nestlê de 1982 e de 1986. Desde 1994 ocupa a Cadeira nº 29 da ALB. 298 ◄◄ O CAVALO Rinaldo de Fernandes 1 C om a insônia, me levantei, fui até a cozinha, bebi um copo d’água. Atravessei a sala, aproximei-me da varanda do apartamento, fiquei olhando a noite. O mar, a uns oitocentos metros, atirando-se nas areias alvas. A luz do poste refletindo nas palhas da palmeira no pátio do prédio, o fundo azulado da piscina tremendo. A rua deserta, arborizada, o asfalto comido em alguns trechos. Notei que de um terreno baldio, perto de outro onde estão erguendo um edifício, saiu um cavalo do meio de alguns arbustos, veio andando na direção do meu prédio, os passos calmos, a cabeça, vez por outra, sondando ao redor. Achei que o dono de alguma carroça — as casas humildes do outro lado da avenida, não muito distante — largou-o na noite para um devido descanso. Um cavalo altivo, avermelhado. Batia um vento bom e, de repente, na esquina, apontou um carro vindo dos lados da praia, entrou na rua. O cavalo, na calçada, dobrou o pescoço, observou o carro passar com velocidade, uma leve poeira partindo dos pneus. O homem parou diante do portão de uma das casas da rua (já moro aqui há três anos, após me aposentar como advogado, mas não havia reparado no belo jardim da casa), acionou o portão eletrônico, que foi abrindo lentamente. Em pouco tempo o homem entrou com o carro na garagem. Olhei a nuvem arroxeada se aproximando da fatia de lua, lá adiante, sobre o mar. O cavalo vinha andando pela rua, apagando-se nas sombras, sempre lento. ►► 299 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O homem demorou a sair do carro e a fechar o portão. Após alguns minutos, finalmente deixou a garagem escura e, esquecendo que o portão se encontrava aberto, ficou no terraço tentando abrir devagar a porta principal da casa. Pareceu não ter meios, em certo momento, de penetrar na casa, saiu para o jardim, sentou-se na cadeira de ferro, perto de um anjo alto, pôs o rosto entre as mãos. Vez por outra olhava para o primeiro andar da casa, esquecido de vez de fechar o portão da garagem, parecendo também que poderia, a qualquer momento, sair de novo para a rua. Por que não chamava alguém? Deixou a pasta (vinha do escritório?) sobre a mesinha de centro do jardim, encoberta por algumas ramas, saiu arrodeando a casa. Enquanto o homem pesquisava ali as janelas, o cavalo veio, passou pelo portão, baixou a boca, foi arrancando tufos da grama do jardim. O homem agora estava lá nos fundos, empurrando portas, espreitando paredes. O cavalo raspou outra vez a boca no chão, apanhou mais grama e foi para debaixo da sombra da pequena árvore no canto mais escuro do jardim. O homem afinal encontrou uma janela aberta, entrou na casa, veio, abriu a porta principal, pegou a pasta na mesinha do jardim e acionou novamente o portão eletrônico, que começou a fechar com ruído. O cavalo ali na sombra, imóvel. O vento atiçando as folhas da árvore. Achei engraçado que o cavalo tivesse ficado no interior da casa. Até que, solto na rua, correndo risco de atropelamento, ele merecia mesmo um recanto mais isolado, aprazível, seu. Achei também que ele não incomodaria, pois parecia mesmo cansado, entorpecido. O homem ligou uma luz no andar superior (estava no banho?) e, após alguns segundos, vi que outra luz da casa se acendeu. Então ouvi um barulho, movimentos bruscos, objetos sendo atirados, a luz do terraço também foi acesa. Percebi logo a briga, era pois esse o receio, a indecisão de chamar alguém, ele tinha chegado muito tarde. Um sapato partiu uma vidraça. Os olhos do cavalo brilharam embaixo da árvore. 300 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 2 O casal pulou para a grama do jardim, ele ameaçando ela, ela acertando-lhe o ombro com a perna de um móvel. Ele pedindo calma, ela gritando-lhe palavrões, patife, peste, e o mais incrível é que, talvez pela hora (duas e vinte da madrugada), nenhuma luz de quarto foi acesa na rua. Ela plantando-lhe a perna do móvel nas coxas, nos braços, ele se firmando nas colunas, cadeiras, rodopiando na grama. De repente, e depois de receber um golpe firme, com as duas mãos, ele agarrou o pescoço da mulher, derrubou-a na grama, apertou-lhe a garganta, depois a socou com força, socou-a mais, até ela ficar imóvel, estendida perto do anjo. Ele aí entrou na casa, ficou três ou quatro minutos, saiu de calça e camisa trocadas, veio, abriu o portão da garagem, pegou novamente o carro. Na rua ficou um pouco da poeira. A mulher continuava estendida na grama, a casa e o portão da garagem abertos. Nada se mexia — só as folhas mais altas da árvore. O porteiro do meu prédio parecia dormir. Eu também tive vontade de ir me deitar. De repente, o cavalo deixou a sombra, deu alguns passos, coçou o pescoço na coluna, olhou calmo para a mulher caída, desgrenhada. Veio, pisou na roseira ao pé do anjo, dobrou-se, cheirou os cabelos da mulher, que continuava imóvel. O cavalo ficou ali, ameno, ao lado da mulher. Voltou a cheirar-lhe os cabelos, a orelha. Aí assoprou forte, bateu com o casco no chão. Ia partir? A mulher se moveu um pouco. Isto me aliviou. O cavalo levantou um pouco o pescoço, mas em seguida girou, foi, deitou de leve a boca nos pés da mulher, no tornozelo, e, quando olhou para o portão aberto, a mulher se ergueu, sentou-se na cadeira, as mãos nos olhos. Soluçou, deu pancadas na mesinha de centro, procurou com a mão o braço do anjo: “Porra! Patife!” O cavalo ali, observando-a. E ouvindo a mulher gritar: “Tu me paga, cretino!” O cavalo se assustou com os palavrões da mulher, deu cabeçadas, mas depois ficou quieto, parece que indeciso se saía ►► 301 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de vez ou se voltava para a sombra. Foi então que a mulher o observou. Teve um susto, saltou para o terraço, atenta nos movimentos do bicho. Mas ele a olhou com calma, torceu um pouco o pescoço, dando-lhe alguma certeza. Ela, contudo, ficou parada. Gritou: “Cachorro! Viado!” O cavalo a olhava como quem queria lamber-lhe os cabelos. A mulher afinal percebeu que o cavalo não estava ali para incomodar — e se interessou por ele, inventou um caminho por entre algumas plantas para se aproximar do animal. Sorriulhe, talvez agora com algum receio, tentando agradá-lo. Quis espantá-lo, mas ele apenas rodou sobre si próprio, voltando a observá-la com serenidade. Ela se aproximou. O cavalo mordeu a roseira como quem quer arrancar uma flor. A mulher se aproximou de vez do animal. Ele, num gesto breve, baixou a cabeça, roçou o pescoço no anjo. Ela então lhe passou a mão temerosa na testa, alisou-lhe as costas. Ele ficou parado, acolhedor. A mulher, de repente, abraçou-se ao pescoço do cavalo, apertou-o firme — e começou a chorar, os dedos prendendo-lhe as crinas: “Demônio! Patife!” O cavalo lambeu o anjo. Agora a mulher soluçava ainda mais alto, dando gemidos, a cabeça amparada no cavalo. Teve um momento em que ela, num movimento de ida e vinda agarrada ao pescoço do animal, pareceu que ia entrar com ele na casa. Mas, num passo brusco, ágil, ela subiu na cadeira e, erguendo-se com ímpeto, montou no cavalo, que a aceitou prontamente nas costas. Ela se segurou nas crinas e, batendo de leve na barriga do animal, foi indo na direção do portão. Saiu para a rua e, em poucos minutos, ainda montada, atravessava alguns quarteirões, antes de ir dar, um pouco distante, na avenida da praia, vazia às três da manhã. Por entre dois edifícios vi-a cavalgando no calçadão da orla, as sombras ao fundo. Seguiu, muito corajosa, para a outra ponta da praia, os prédios agora me impedindo um pouco de vê-la. Desapareceu entre as palhas girando dos últimos coqueiros, a luz fraca de um poste tremendo antes da curva. A casa toda aberta, um gato 302 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 preto chegou, parou no portão, lambeu o ferro do ferrolho, não quis entrar. Tive vontade de rir. Dia seguinte, viajei para o Rio de Janeiro, fui visitar meu neto. De volta, soube da notícia do desaparecimento da mulher do médico. Vi-o dando entrevista na tevê, o rosto rosado. Dizia ao repórter que a polícia tinha que ser mais ágil, que a mulher tinha sido vítima de um sequestro relâmpago, mas que já não era mais tão relâmpago assim, pois já tinham se passado oito dias. Queria sua mulher de volta. Era a coisa mais importante de sua vida. E chorava diante da câmara: “Achem minha mulher, por favor!” Observei, na manhã seguinte, do alto da minha varanda, que um carro da polícia ficava parado permanentemente na porta da casa, sempre fechada. Deu vontade de descer, de dizer para um policial, olha, posso parecer um velho imbecil, que vive ali sozinho, mas a mulher não foi sequestrada coisa nenhuma, ela fugiu montada num cavalo. Mas eu tinha receio de os policiais (tinha um gordinho alegre entre eles, sempre rindo) zombarem de mim. Aí eu ri, eu ri comigo mesmo. E resolvi que não ia me meter nisso, pra quê? Quero é meu sossego. Alguns meses depois, a mulher ainda sumida, soube pelo jornal que deram o caso por encerrado. A casa permanece ali trancada. A grama alta. O anjo, antes branco, agora amarelecido. Nas noites, olho para a árvore no canto do jardim. O cavalo me assopra ali da sombra.* Rinaldo de Fernandes, maranhense radicado em João Pessoa, é doutor em letras pela Universidade Estadual de Campinas, professor da Universidade Federal da Paraíba, articulista fixo do jornal literário Rascunho, do Paraná, antologista e escritor. Dentre outros livros, publicou O professor de piano (contos) e Rita no pomar (romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura). ►► 303 NO TEMPO EM QUE O RIO TINHA PEIXE Cyro de Mattos E dizer que esse rio já forneceu água de suas fontes puríssimas para que todos matassem a sede no bebedouro da vida. Isso foi há muito tempo, a cidade tinha uma população pequena. Talvez nem chegasse a trinta mil habitantes. Ainda não havia sido instalado o sistema de abastecimento de água encanada para servir à população. O aguadeiro trazia a água do rio nos carotes, pequenos barris feitos com madeira de putumuju, que eram carregados pelos jumentos. Cada jumento carregava quatro carotes, dois de cada lado, pendurados na cangalha. O homem anunciava na rua: “Água do Mutucugê! Água boa do Mutucugê! Água fresca do Mutucugê! Quem vai querer?” O rio tinha muita gente que vivia de sua bondade. Lavadeiras, aguadeiros, pescadores e tiradores de areia, usada nas construções residenciais, armazéns e lojas do comércio. Uma gente das camadas pobres da cidade tirava o sustento da família com o que o rio lhe fornecia, de janeiro a janeiro. O rio era chamado de pai dos pobres. Antes de ser construída perto da Ponte Velha a represa, que submergiu as inúmeras pedras pretas, espalhadas em muitos trechos do rio, o velho Cachoeira tinha um visual para agradar a quem visse. Baronesas não ficavam entulhadas no lençol de água que passou a cobrir toda a extensão do rio. Desde o bairro da Burundanga até lá onde o rio faz uma curva e se despede da cidade, conversando de dia com o sol, à noite com a lua, por entre as pedras pretas, rumo ao mar de Ilhéus. ►► 305 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Homens e meninos retiravam a areia do rio com a pá, que ia e vinha no esforço do dia. Tempo bom para a areia ser retirada era nos meses de verão. A cidade toda sabia que pelas mãos do areeiro a argamassa da casa era feita de fibra específica: calo, suor e areia. O homem passava pelas ruas, a taca silvando o ar. Caminhava apressado, tangendo os jumentos carregados de areia nas latas. Um poeta da cidade resumiu em versos que as casas cochichavam nesse momento em que o homem passava. Comentavam que a areia sem a pá não seria dádiva. Nada seria a pá sem a areia. Ajoelhando as fachadas, as casas tomavam a bênção ao velho rio. E agradeciam ao tirador de areia. A lavadeira tinha as mãos grossas de calo de tanto bater roupa na correnteza de águas límpidas. Durante a semana descia o caminho pelo barranco com a trouxa de roupas sujas na cabeça. Quando chegava à beira do rio, colocava a trouxa de roupas em uma pedra grande, junto ao areal. Não demorava e começava a tirar as roupas da trouxa. Molhava, ensaboava, esfregava, lavava e torcia. Estendia as roupas nas pedras pretas para secar ao sol. De repente as pedras pretas, cobertas de roupas estendidas, apareciam coloridas naquele trecho do rio. O rio tinha muitos peixes. Robalo, pratibu, carapeba, piau e bagre. E outros pescados: pitu, camarão e acari. Para não falar nos peixes miúdos, piaba, moreia, jundiá e beré. Pela manhã, o pescador passava com as fieiras de peixe, batia na porta e oferecia os pescados à dona da casa. “Peixe fresco do Rio Cachoeira!” Na semana, de casa em casa a cena se repetia. Na feira, aos sábados, o litro cheio de camarões era vendido por um preço barato na banca de peixe do pescador mais velho do Rio Cachoeira. Um preto magro, a cabeça branca, o nariz achatado, os lábios grossos: o rosto com rugas marcava na pele crestada que o sol havia passado por ali durante muitos anos. Vendia também pitu e acari, que ficavam expostos nas fieiras sobre o balcão da barraca. Era quem mais conhecia histórias de pescador e casos de gente afogada que o Rio Cachoeira havia levado na cheia. 306 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 *** Gosta de remar na canoa assim que a manhã desperta radiante, soprada por esse vento morno. O treinamento que faz na semana requer determinação, esforço e sacrifício. Pretende ganhar massa muscular nos membros e tronco, firmeza nos braços e pernas. E com o corpo de atleta ser admirado pelas moças quando o virem desfilar, portando uma aparência saudável, misto de beleza e força. Pensa que o corpo de atleta a se exibir com superioridade é o ideal para que se torne o rapaz mais atraente da cidade. O perfil do galã fatal tem no pimpão penteado com esmero, alisado com brilhantina, um dos pontos salientes do desfile pelo passeio da rua do comércio ou jardim da prefeitura. As moças suspiram quando ele chega com o peito estufado ao jardim da beira-rio, em tardes de domingo. Quando acaba a sessão da matinê no Cine Itabuna, é costume as moças descerem em grupos alegres para o desfile no passeio do jardim. Os rapazes permanecem parados em pontos estratégicos do passeio largo. Alguns aventuram a piscada de olho para a moça, que responde com um sorriso tímido ao sinal indicativo de afeto em um rosto jovem. O amor começa a esboçar seus primeiros riscos no rosto ingênuo de adolescente para que assim, nas verdes pulsações do coração, o namoro tenha começo. Durante a semana, cada vez mais obstinado rema na canoa, nesse ritual que se move, aos poucos, de uma margem à outra do rio. Certo prazer toma conta do corpo molhado de suor, gotejando no rosto. O coração bate forte na esperança de que será recompensado pelo esforço desprendido no treinamento, durante a semana. Nesse dia de neblina, que esvoaça das águas negras do Poço do Pau d’Alho, impregnadas com o vento do amanhecer, mal começa a remar na canoa quando é surpreendido com o salto do peixe que pula para fora d’água ►► 307 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 e abocanha o louva-a-deus. Cai dentro da canoa, onde fica se esbatendo nos costados, tentando voltar para a água. Robalo é o peixe que o pai mais gosta quando preparado na moqueca. As postas da iguaria nas tigelas recendem seu aroma ativo no caldo misturado com o dendê e o leite de coco, no tempero feito por quem sabe, com cebola, tomate e coentro. O aroma ativo do peixe na moqueca dá-lhe água na boca, vindo lá de dentro da cozinha e chegando até a mesa onde todos esperam em silêncio que a iguaria seja servida. Nada é melhor na refeição do almoço do que a moqueca de robalo, o pai não cansa de elogiar, melhor só mesmo no céu. O robalo que caiu na canoa é o melhor presente que está levando para o pai nessa manhã de verão em que o firmamento derrama sua luz nas águas mansas do rio. O pai acha engraçado ao saber do filho como o robalo foi cair dentro da canoa. O peixe ainda fresco, os olhos vítreos como se estivessem com vida por entre a liquidez das águas, as escamas cor de prata brilhando no dorso. Da janela do sobrado, o pai costuma acompanhar o pescador remando na canoa pelo entardecer. As mãos do homem de rosto rosado manipulam o remo com habilidade, cortando as águas em movimentos harmoniosos. O corpo disposto em cada remada, acostumado com os movimentos constantes que o homem faz para levar a canoa a uma das margens do rio. Dali, uma das pontas do fio grosso transportado na canoa será amarrada ao mourão fincado no pé do barranco. O fio será esticado sobre a superfície das águas, estendido até ser amarrado ao outro mourão fincado na ilhota do meio do rio. No fio esticado são instaladas as linhas com o anzol e a isca, que descem até o fundo do poço. O pai tem prazer em ficar na janela do sobrado, vendo o robalo fisgado em uma das linhas da grozeira, debatendo-se, pulando para fora da água na tentativa de se livrar do anzol. O pescador recolhe os peixes fisgados em cada linha, perto do amanhecer. Depois de concluir o trabalho de recolher o peixe 308 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 fisgado, sobe o barranco carregando o cesto pesado, cheio de robalos e piaus. O primeiro freguês a quem vai oferecer o peixe fresco é o homem do sobrado, que sempre escolhe o robalo mais pesado. O peixe conserva os olhos abertos como se ainda estivesse dentro d`água, o sangue mostra-se vermelho na guelra. O pai não havia amputado uma das pernas, nem tinha sido atacado pela catarata, quando o filho, um adolescente com ares de namorador, não tirava da cabeça aquela ideia de ter o corpo de atleta. Quando perdeu uma das pernas, em razão da diabete, teve dificuldade de se acostumar a andar com as muletas. Com esforço, resmungando, ia até a janela e dali ficava vendo os robalos debatendo-se na grozeira, saltando para se livrar do anzol iscado que engolira. As vistas foram anuviando, a catarata impedindo que enxergasse com nitidez o visual que o rio apresentava em cada estação. O filho, como o pai, aprendera a nadar e a pescar naquele rio, que descia manso em tempo de estio, enfurecido na cheia. *** Sempre preferiu ler primeiro as notícias da política local no jornal diário. Muito curioso, quer saber se o prefeito está administrando bem a cidade. Pertence ao partido da situação, fundado pelo pai, que foi seu presidente durante anos. Ao folhear o jornal, nessa manhã de verão soprando pequenas ondas de um vento fresco, como se fossem gotas de alivio sobre o peito velho abafado de calor, coberto com alguns fios brancos de cabelo, a certa altura descobre a manchete na última página do segundo caderno. A manchete na parte de cima da folha do jornal está sinalizando sobre um poeta da terra, que escreveu uns versos doloridos para expressar seu inconformismo ante o estado lastimável em que se encontra o rio. ►► 309 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Agonia do rio Cyro Lunardo Eu não me canso de dizer que estou morrendo, Gente, dê-me a mão, antes tarde do que nunca. Tenho sede, tenho fome, tenho de tudo Saudade, do tempo que fugiu da música Sempre bonita, das estações temperadas Com sol e chuva. Peixes que ofertei a tantas Bocas, água, areia de minhas moradas, Do sonho quando a lua derramava prata. Na triste descida que dia e noite faço, Em viscosas mágoas, pesadas de vômitos Que me jogam, nesse volume de detritos Contaminando-me a todo instante, no raso E no fundo, lembro, sem saber pra onde vou, Manhãs e tardes naquelas vagas do amor. A leitura do jornal prossegue com o comentário que faz o jornalista e poeta consagrado Florisvaldo Mattos sobre o poema de Cyro Lunardo: “Só eu e uns poucos mais, talvez sobreviventes, estaríamos à altura de ler este seu soneto marcado de forte ânimo sensível e fazer as devidas ilações de alma que ele suscita, como depoimento de memória sentida, mas no fundo revoltada, indignada, pois foi nesse venerável Rio Cachoeira que passei saudáveis horas de minha adolescência primeira, entre os 13 e os 17 anos, nadando com irmãos e diletos amigos, seja no Poço da Pedra do Gelo, em frente à futura Praça Camacã (não sei que nome tem hoje), seja nos poços da antiga pinguela de acesso ao Bairro da Conceição, defronte à balaustrada da Praça Olinto Leone, onde ficava a sede antiga da prefeitura. Lembrando daquele rio heroico e sentindo o canto amargo e lamurioso 310 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de seu soneto, na forma clássica, mas sem rimas, vejo que ele, o venerável Rio Cachoeira, caminha para o mesmo destino do Rio Mucambo, de Uruçuca, justamente antiga Água Preta do Mucambo, onde aprendi a nadar, nos idos da longínqua infância, hoje um triste curso de fedorento esgoto. Mas é isso, amigo, é no mais dos casos viver para sofrer... Vai o meu abraço de sentimento solidário.” O Rio Cachoeira nas cheias descia feito um réptil sem tamanho, espumando e invadindo as ruas ribeirinhas, até mesmo a do comércio, que ficava distante de uma das margens. Descia como se fosse um bicho do outro mundo, levando no lombo toro de pau, bicho morto, porta e janela. Algumas dessas enchentes ficaram na memória do povo. Um poeta popular registrou em versos a zanga do valente rio, que cresceu de repente com as chuvas fortes que caíram na cabeceira, durante a noite. O poeta popular dizia: As casas comerciais, Assim que o dono chegava, A que tinha ainda porta Quando ele a destrancava, A sua mercadoria Coberta de lama achava. Tinha gente que acordava Naquele grande alvoroço, A água levando tudo, Fazendo o maior destroço, O pobre salvava a vida Com água pelo pescoço. E saber hoje que o rio está morrendo de sede, completamente abandonado ao sabor de uma realidade triste impressa na nódoa que envergonha. Nada pode fazer para pelo menos atenuar essa situação que causa ferimentos e luto no que antigamente ►► 311 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 tinha as cores que impressionavam sob o sol brilhante e, à noite, quando a lua clareava as águas. O rio virou um grande esgoto a céu aberto. Não existe mais peixe. Borboletas nos barrancos. Os sons das manhãs e tardes na linguagem formada pelos pássaros. O grande espelho deslizando no dorso, o murmúrio entre as pedras polidas em carícia de água. A areia, a pedra preta, cantigas de lavadeira, casos de pescador. Ninguém se atreve a tomar banho no rio. De madrugada ia tomar banho com o pai nas águas frescas do rio. Quando a cheia acabava, ficava aquele grande areal em uma das margens, nas proximidades da Ilha do Jegue. Lá, jogava futebol com os queridos amigos. Parecia que as partidas disputadas no campo de areia eram mais acirradas do que as que costumava jogar no campinho da beira do rio. Mostra-se indignado com o que lê na malha fina do jornal, chamando a atenção para a falta de compromisso de vereadores na votação das contas do prefeito, em seu último ano de gestão. Elas foram aprovadas sem a menor preocupação com o dinheiro público, o cidadão, a cidade. Uma situação vexatória para um partido cujo lema era trabalho e honestidade, o que sempre foi seguido à risca pelos que ocupavam cargos importantes na administração municipal. Não é à toa que esses vereadores depois foram derrotados na eleição. As contas do prefeito foram aprovadas por eles nos últimos dias antes que eles deixassem o cargo, embora condenadas pelo Tribunal de Contas do Estado por desvio (roubo), falta de licitação e compras criminosas. Entre os motivos que pesaram para a aprovação das contas do prefeito, estavam os empregos de mulher e filhos, arranjados na prefeitura, além de dinheiro gordo que correu para o bolso de cada vereador. O ex-opositor do prefeito, vereador que é também radialista com um programa de grande audiência, disse que votou a favor porque sua análise é simplesmente política. Não importa se houve roubo e má gestão. Política para ele é não ligar para a falta de competência e responsabilidade do prefeito. 312 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Muito menos se importar com a situação de um pobre rio, que se mostra com o corpo moribundo na água viscosa, soltando miasmas das veias gangrenadas, clamando na putrefação constante: “SOS, cidade, antes tarde do que nunca.” Sem medir esforço, entrara de corpo e alma na campanha para eleger aquele prefeito como candidato do partido da situação. Como um dos membros da diretoria, seguindo os passos do pai, que pautava pelos princípios éticos na arte de governar o município, até colocara dinheiro grande na campanha para seu partido eleger um prefeito corrupto. Que decepção! *** Certamente o rio era uma canção de noite e dia. De uns tempos para cá foi forçado a esconder a face clara de antigamente nas camadas obscuras de hoje. Essa face oculta do rio vai se aclarando mentalmente nessa tarde em que novamente um sol não logra extrair com seus raios fortes algum brilho das águas. A face obscura amplifica-se aos poucos com as cores e barulhos chegados de longe, do tempo que se foi na paisagem cheia de ondas alegres. Espumas levadas pelas correntezas contornam as pedras cobertas de roupas coloridas. O céu transluz aquele azul forte por onde trafegam nuvens como grandes almofadas. Então, no areal deixado pela cheia, avista aquele menino gaiato saltando e dando cambalhotas. Menino que um dia engoliu uma piaba para aprender a nadar depressa e ter o fôlego forte. Aquele menino que sente na flor das baronesas a proposta livre da vida. Magro, esperto, traquino, dava saltos perfeitos sobre as águas para receber em troca nada mais do que o amor do velho rio, entremeado de sensações surpreendentes, sustos esplêndidos. E isso era exatamente o que lhe bastava, durante as estações temperadas com sol e chuva, ofertando todas as manhãs do mundo. ►► 313 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Nas relações naturais desse menino e o rio, nada era melhor: os dias nunca passam lá fora porque perduram intrépidos com os amantes, a cada dia que passa com mais uma aventura prazerosa da vida pelas águas. Não há lugar para as dúvidas, nem certezas, que serão trazidas anos depois pelo mundo dos adultos. Infelizmente, a paisagem luminosa, esbatendo-se nas coisas que são postas no mundo para que sejam alcançadas, um dia sai de cena. O menino sob a roupagem do sonho, tecido de amor pelas horas deliciosas da vida, saberá depois como todos aqueles dias soltos no voo, delineando com sobras momentos alegres do viver, terão o sabor de fruta que acaba. Será muito triste ver os dias cheios de brilho substituídos por ares sombrios e pegajosos, que irão cobrir sem remorso aquela ilha em definitivo, tão dele, lá no meio do rio, com o seu tesouro guardado por almas de pirata. Tesouro com bastante ouro e prata, que jamais seria descoberto, por mais que ele e os amigos vasculhem todos os cantos da ilha. Nessa manhã de banho ausente, não há sustos nos poços, correntezas e remansos. O sol não se admira nos espelhos que costuma espalhar pelas águas. Somente a amargura, nada mais, acompanhando seus passos como uma coisa oleosa, sem desgrudar da alma, permanecendo nessa atitude invariável onde justamente o silêncio faz sua morada. A tristeza consiste no seu testemunho adquirido sob o transtorno da sujeira, que lhe corta o coração em suas pulsações agudas, bate nos olhos com suas visões opacas. Vê o espetáculo nada agradável nesse volumoso entulho de baronesas, que a princípio se movem devagar quando as chuvas grossas caírem nas cabeceiras, inchando assim o curso de rios e afluentes. Quando seu curso ficar cheio, revolto, o velho rio vem empurrando as águas para que levem tudo que encontrem pela frente. Sem as cheias normais de outrora, o rio permanece encalhado no tempo cor de sombras. Dorme o sono pesado de avantajado paquiderme. Transpira e geme porque não consegue se libertar do impiedoso fardo que os humanos diariamente vêm despejando em suas águas. 314 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Esse é o preço que o velho rio paga por ter a cidade crescido sem controle, chegando hoje a mais de 250 mil habitantes, comentam os moradores. Afoga-se na agonia pelo descaso dos que se submetem à paisagem invariável, formada por bocas que despejam o que não presta. Cachoeira é o nome de um rio que chora água: anoitece e amanhece sem que nada seja feito para liberar seu pesadelo ou pelo menos amenizar essa agonia. Na bruma que atrás se esfuma, encontra um menino que esvoaça de dentro da neblina sobre as águas. Quando o brilho do verão afasta as névoas do amanhecer, tomando forma de toalhas e lençóis, o firmamento banhado de luz envolve esse menino, que, decidido, vence os desafios sérios e inúteis. Acumula incríveis conquistas na capanga entupida de indescritíveis horas. Numa coroa sem crivo de infante rei, há raios de sol que resvalam, penetram e vasculham certas águas doces. Nos remansos, ecos do céu ressurgem das vagas tão dele conhecidas, durante o verão, ora como espelho do sol, ora como uma lente enorme que tira fotos da lua. Com sua prata que derrama na rua, uma lua íntima do menino participa de brincadeiras e folguedos com a turma. Brilha no muro e na frente das casas. Desliza sobre a superfície das águas como ave branca sem ser fria. Ouvidos atentos aos ruídos das correntezas escutam risos, entre balões e cantos, soltos na crônica que os dias sem fadiga escrevem intensos de curtição pura. Sempre o rosto respingado de suor no entardecer quando retorna para casa. O coração sente nesse ponto do retorno acordes daquela música que pulsa suas notas ardentes por todas as partes do corpo. Convencido e contente, ele sabe que a mentira alimenta o pequeno coração como verdade honesta, quando os gestos inauguram a vida feita de impulsos e asneiras. Cada amanhecer acena ao menino com tudo que é posto no rio para que seja conquistado e alimente líquidos segredos da natureza em transformação, enquanto dure a aventura das estações que brotam dos verdes e sabem da queda dos maduros. ►► 315 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 A cidade pequena vive sua infância tropeçando nas ruas enlameadas quando é chegado o tempo de chuva pesada. Lateja nas veias a vontade visível de quem quer crescer através do trabalho de seu povo. Move-se com a riqueza de poucos abastados e o esforço da maioria pobre, mas sem miséria. É visível que se trata de uma cidade ainda acanhada nos gestos e nas coisas, há pouco movimento de carro na rua, os primeiros sobrados começam a ser erguidos no local onde moram as famílias ricas. Caminha sem hesitar nos passos que não cansam, tornozelos e pulsos no esforço dos que levantam coisas pesadas. Mãos rústicas arrumam maxixes, quiabos e pimentões sobre a tábua rústica da mesa armada na feira, atrás da desativada estação ferroviária. O verdureiro carrega o tabuleiro na cabeça mercando pelas ruas couve, alface e coentro, alardeando o verde na semana, feito de verduras e legumes, batido pelos raios de sol, quando o verão aquece todas as coisas através do seu brilho trazido do infinito e que se reflete pelas pedras irregulares das ruas estreitas. A pequena cidade esbanja ardor por entre os azuis do céu e os verdes que vicejam nos barrancos do rio. Podia haver dia melhor para tomar banho com os amigos nas águas do Poço da Pedra do Gelo? O rosto agitado, os gritos rasgando fendas no silêncio da natureza. Era quando mais sorria. No tempo em que o rio tinha peixe em abundância.* Cyro de Mattos é contista, novelista, ensaísta, poeta, cronista e autor de livros infanto-juvenis. Possui mais de 40 prêmios, como o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte e o Prêmio Internacional de Poesia Maestrale Marengo d’Oro, de Gênova, na Itália. É membro correspondente da ALB. 316 ◄◄ A CASA DOS BAÚS Carlos Barbosa D o corpo não afirmo com certeza nada. Se estava de bunda pra cima, em posição fetal, com alguma picada ou orifício estranho ao natural, não sei. Só posso dizer o que a respeito ouvi. Aqui me contaram que o velho foi encontrado deitado em um colchão de espuma. O colchão, curioso, estava colocado sobre uma armação composta de duas portas, dessas de compensado, empilhadas uma sobre a outra, a porta do banheiro e a da cozinha, constatou-se depois. Uma estranha cama, qualquer um acharia. Ainda mais para uma cama de doutor. Pois o velho era advogado, Dr. Mário Afonso de Oliveira Fragoso. Dotô Fonsin, como era chamado o causídico aposentado, como bem já sabia a senhora. Cheirava mal, exalando secreções de morto passado da vez de enterrar. Exsudações amareladas escorrendo da carne roxa, o que me foi dito. Também, custaram a invadir a casa... O velho não era chegado a amizades conviventes. Mais de cinquenta anos no lugar e não se contavam amigos próximos nem distantes. Só uns contraparentes, esses que acabaram por arrebentar fechaduras e entrar na casa. Isso, cinco dias passados sem que o velho fosse almoçar na pensão de Anita, a mesma em que repouso por esses dias. Comida de lá tem pouco gosto, atesto, mas de aparência boa, sem nódoas ou ranços. Voltando... Cinco dias, tempo em que se achou justo bater em portas e janelas, gritar muitas vezes “Dotô Fonsin!”, “ô de casa!”, e só depois arrombar a porta da frente. No fundo, no fundo, percebo que tinham mais medo de encontrar o velho vivo do que morto. Então, lá ►► 317 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 estava o corpo largado sobre o tal colchão, naquela trempe, em abandono de tempos, teias e fluidos fedorentos. Morte natural, concluíram. E mais não se perguntou à época, nem perguntei por agora. Na verdade, o velho era muito velho mesmo, e o que chamou a atenção de todos não foi bem a morte dele, foram os baús e as caixas. O corpo, bem, enrolaram no lençol e num piscar de olhos já estava de óbito passado, devidamente encomendado e enterrado. As atenções se voltaram então para a casa do Dotô Fonsin e o que nela se encontrava. Até a sua, nessas lonjuras paulistas, não é mesmo, minha dona? Aí é que é preciso reparar bem. Não minto nem gosto de desperdiçar meu tempo, a senhora sabe. Pois, continuando, todos se voltaram para o que se encontrou e para o que não se encontrou na casa. Digo que o espanto foi muito e demorado. Nada de nenhum móvel! Geladeira, fogão, armários, penteadeira, cama, mesa, cadeiras, guarda-roupa, rádio, televisão, quadros na parede, chapeleira, espelhos..., pergunte outro..., qualquer mobília a casa não tinha! Tinha, sim, como já disse antes, baús e caixas de madeira e de papelão. Muitos e muitas, dezenas, ocupando os cômodos da casa. Tinha, também, um cheiro ativo de DDT, BHC, sei lá o quê, que ninguém sabia o porquê, até que pacotes foram abertos e os livros, manuseados. Era um pó químico, desses para impedimentos de cupins, conservação de papel. Morava sozinho com as caixas e os baús, não precisava dizer, mas digo para ajudar no entendimento do caso. A mulher do Dotô Fonsin é falecida de muitos anos. E, anos antes de seu passamento, já havia deixado o casamento para trás. Teria dito que não dava mais para suportar a convivência com o marido, recolhido que vivia em esquisitices. Esquisitices que ela dizia existir, mas desconhecidas do povo do lugar. O fato é que dona Lenora fez a trouxa, deu “até logo!” para a vizinha e se mudou para casa de parentes no Goiás. Mesmo lugar em 318 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que veio a falecer, se soube depois, pois nada neste mundo se esconde por muito tempo. O homem vivia trancado na casa que construiu em redor dele. Soube que se apostava por aqui onde ele guardava o ouro — os que acreditavam que tinha ele ainda ouros; onde havia gastado todo o ouro — os que acreditavam que o doutor era somente aquilo que aparentava: um velho abandonado na miséria, depois de viver uma vida inteira e muito longa na abastança e na gastança. Não sei como é que a senhora foi dar importância pra isso. Nem os parentes davam... Minha dona, estou aqui ainda. Escutar, escutei; ver, vi. Parece que nada lhe interessou dessas coisas que escutei, vi e lhe contei. Não é meu papel indagar do seu interesse pelo velho advogado, nada vou perguntar. Então, dou os esclarecimentos que parecem importantes à senhora. Os livros eram muitos, de línguas estrangeiras quase todos. Coleções completas, capas duras, letras douradas. Livros da profissão jurídica dele em variadas línguas: espanhola, inglesa, italiana, alemã e latina. O povo daqui diz que o finado lia e falava essas línguas todas, embora falar, falar mesmo, ninguém nunca ouviu. Livros da arte de cinema e também de aventuras, de capa e espada, biografias de grandes vultos da história. E caixas e mais caixas de uma besteirada de revistas, almanaques e folhetins daqui e do estrangeiro. Os nomes todos desses livros, almanaques e revistas é trabalho para outro tipo de encarregado que não eu, pouco letrado que sou. Ademais, minha dona, desculpe lembrar, nem mesmo sei por que a senhora insiste que eu lhe conte, que eu conto tudo e nada serve. O que não contei ainda, por achar coisa feia, demencial, sem serventia, maléfica a Deus, apenas por sua insistência narro agora: a maioria das caixas tinha guardados pacotes e mais pacotes de diversos tamanhos. “O ouro! As joias! As moedas, os patacões! Os diamantes! Os dólares!”, foi o que se pensou. Os aparentados expulsaram o povo espião e interesseiro da ►► 319 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 casa, taparam os narizes e se trancaram lá dentro por muitos dias, abrindo pacotes. Se for por isso que minha dona esperava, fique triste. Fique triste, pois quando se abriram os pacotes, nada de pepitas, diamantes, joias, dinheiro, nada absolutamente de valor no mundo capital. Os pacotes todos muito bem feitos, bem dobrados e amarrados com cordões resistentes, às vezes um dentro do outro, continham — segundo o que se conta e que eu anotei aqui — restos de sabonete, palitos de fósforo queimados, botões, pregos tortos e sem cabeça e enferrujados, lenços puídos, gravatas cortadas, chaves imensas, cadeados inúteis, penas quebradas, espinhos de laranjeira ressequidos, cinco dentes (um canino, dois incisivos e dois molares deformados, esclareço), tufos de cabelos lisos, tufos de cabelos encaracolados, lascas de pratos, asas de xícaras, palmos de rendas, um bilro, cinco bolas de gude, três armações de óculos, dezesseis lentes de óculos quebradas, um minibinóculo, caixas de fósforo vazias, tocos de velas, dúzias de calendários de bolso, folhetos da campanha de Jânio para presidente, agulhas de gramofone, tampas de garrafa, pacotes de selos, pó de café usado, cápsulas de remédio vazias, conta-gotas de pontas curvas e de pontas retas, seringas de injeção, termômetros, pedras de açúcar mascavo, pedras diversas (de rolamento, cascalho duro, rugosas, lisas, coloridas), palitos de dentes novos e usados, folhas secas, punhados de areia, pedaços de gengibre, porções de sal grosso, cascas de arroz, sementes de melancia, espinhas de peixe, seis rabinhos de coelho, um tijolo, uma caixa de sapato vazia, um salto alto branco, um bilhete de loteria federal extração de São João, pentes de diversos tamanhos e formatos, um vidro com formol contendo tecido tumoral, um jogo pega-varetas, doze peças de dominó, camisas de vênus usadas, mais ou menos limpas, meias furadas, meias cerzidas, sapatinhos infantis (uns seis pés diferentes entre eles), bilhetes de passagens da Panair e de outras companhias aéreas nacionais e internacionais, certificado de vacinação contra febre amarela, carteira de sócio 320 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 do Clube Internacional de Cinema em Super 8, folhas de papel em branco dobradas três vezes, calcinhas, alfinetes, esponjas de banho esgarçadas, bolinhos de cera, bolos de lã natural, anzóis, ganchos de rede, mata-borrões, cadernetas de anotações financeiras ininteligíveis, caroços de jaca, dois estilingues, dois pares de sandálias de couro com as tiras rompidas, percevejos enferrujados, uma lupa pequena, duas lupas maiores, cinco gorros, cento e vinte e cinco chaveiros. Minha dona, eu me canso e a senhora se irrita comigo. Teria muito mais para enumerar dos bagulhos, restos, trastes e toda sorte de imprestabilidade encontrada nos pacotes. Nada que possa interessar a nenhum vivente, muito menos à senhora, imagino eu. Essas coisas ficaram expostas uns dias lá, pelo chão da casa e quintal. Os herdeiros tocaram fogo em tudo, envergonhados. Envergonhados, todos aqui acham isso, e não foi para menos uma herança de tal quilate. Os trastes e a loucura denunciada do Dotô Fonsin, nunca suspeitada a esse ponto. O fogo tudo queima e a tudo deve ter queimado. Os livros foram vendidos a livreiros de fora. Não, nenhum álbum de fotografias. E aqui estou, minha dona, pronto para partir sem nenhum móvel ou quadro, as antiguidades pretendidas, e a senhora querendo mais detalhes das coisas do velho. Não que eu me interesse em saber, nem vou perguntar, já disse. No entanto, seria mais fácil saber, para guiar meu caminho na conversação. A como? Não, minha dona, não vou insistir mais, conto o que falta ainda, mesmo sendo assunto indevido para uma dama. Pois bem, estive na casa de um sobrinho do Dotô Fonsin. Esse rapaz retirou umas coisas para ele, rejeitadas com veemência pelos outros, principalmente pelas mulheres, ao saberem do conteúdo. Esse material ele guarda com muito gosto e mostra aos amigos às gargalhadas. Minha dona, não vejo por que explicar melhor... O dinheiro que eu trouxe para adquirir antiguidades que porventura o velho possuísse de nada serviu, tudo foi queimado por ►► 321 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 imprestável e nojento. O que restou, minha dona, é uma safadeza só, e à senhora nada deve interessar, não é verdade? Então... Pois bem... Que Deus me perdoe... Acontece que o Dotô Fonsin, não se sabia, agora se comenta por todo canto, era sujeito dado a conchamblanças com mulheres mais jovens, bem mais jovens. Possuía uma maquininha de filmagem que usava, e muito, quando usufruía posses e grandezas de nome e linhagem. Viajava bastante, dizem. Esteve no exterior, até. Aí pra São Paulo, para o Rio de Janeiro, viajou e passou muitas temporadas, sempre sozinho — foi o que me contou aquele sobrinho — onde deve ter rodado esses filmes, bem longe da terrinha sertaneja dele. A maquininha de filmar não existe mais. Sobraram os filmes, alguns inteiros, outros aos pedaços, filmes curtos e meio embaçados, riscados — minha dona me obriga a confessar tal coisa, que não faria não fosse por sua insistência. Vi, sim, os filmes. É muita sujeira entre homens e mulheres, coisa que o sobrinho dele, se rindo, me explicou se tratar de sexo explícito, sexo grupal, e que para a época o velho era muito do adiantado. Eu acho que ele era muito do sem-vergonha, mas pouco importa a minha opinião. Ficar se amostrando assim, se filmar assim, nu, mais uma, duas mulheres, às vezes com outros homens junto, fazendo coisas que Deus reservou para os altos desígnios da povoação do mundo, de um jeito espantoso, com umas moças bonitas, muito novas, que poderiam ser até filhas dele... Ah, as moças... É de dar pena, minha dona, tão bonitas, de aparência tão decente, que uma delas, reparando bem, se poderia dizer, sem pretender ofender, uma moça com qualidades para ser filha é da senhora, de tão semelhante que se apresentava nos traços e na fidalguia. Mas essas coisas, como já disse, não devem interessar à senhora. Por aqui correm de mão em mão os pedaços de filme, nos bares, nas calçadas, nos pátios das escolas, farra de rapazes. Um comércio sujo, do qual quero distância. Negócio sem importância para uma dama feito a senhora, como se vê. 322 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Portanto, daqui parto, ainda hoje, sem nada levar das antiguidades que a senhora tanto queria, e que me impressiona demais da conta ter chegado ao seu conhecimento e, mais ainda, da senhora ter acreditado que o finado velho pudesse possuir, nesse fim de mundo, algo que valesse a pena esta minha viagem. Sigo pra Brasília, minha dona, pra posse. Lá, eu lhe presto contas mais apuradamente.* Carlos Barbosa é jornalista graduado pela Universidade Federal da Bahia e escritor. Publicou Água de cacimba (poesia), Matalotagem e outros poemas da viagem e os romances A dama do Velho Chico e Beira de rio, correnteza, além da participação em antologias. Em 2001, foi premiado pelo Ministério da Cultura no Concurso de Desenvolvimento de Roteiros com o roteiro de A dama do Velho Chico. ►► 323 TUPAC AMARU Gláucia Lemos E stavas lá, meu soberano, rodeado pela corte. A tudo eu assisti, oculta entre a folhagem. Soubesse o estrangeiro ser eu a tua amante, me sacrificaria sem cuidados. Mas assim pude ver, e tudo vi. O guarda anunciou, ele estava chegando. Um só guarda existia observando os caminhos. Era longe o tempo em que em cada ayllu havia uma sentinela, e um homem expectante em cada posto, para a troca de mensagens nas lonjuras das viagens entre as cidades do império. Há muito o estrangeiro dominara os teus avós, poucos fiéis restavam a teu redor. Mas o rei eras tu. E eu, a tua amante. Menos que tua coya — a tua estrela. Menos até que as tuas concubinas. Era eu a tua amante que deslizava em silêncio entre as pedras das paredes de pedras, a que dormia te esperando entre os mais sombrios canyons, a que te visitava cautelosa nas tendas das viagens, como mera índia serviçal. Mas, retirado o lattu — meu rei, meu Inca, meu senhor —, eras meu homem! Descansado teu cetro, ou tua clava encimada por estrelas de ouro puro, era eu a descalçar as tuas sandálias de branca lã, a desatar o galão que cingia o teu tornozelo. Era eu a te retirar a uncu que te cobria até as rijas panturrilhas. A te desamarrar do tronco a longa capa e te tocar o peito branco à luz bruxuleante. Teu peito que a ninguém era dado contemplar. Era eu a te beijar tua pele de leite e atender minha sede bebendo o teu suor. Era eu a te sentir como filho, como feto, pulsando na quentura úmida do meu ninho — o mais íntimo de mim. Era eu tua serva, a tua secreta rainha. Mais que tua estrela, tua mulher! ►► 325 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ocultei-me entre os que iam, e te vi. Eu que, te tendo mais que todos, ali só te retinha nos meus olhos. Era urgente que partisse a caravana carregando a tua fé, que aprendi e que ensinaste a meu povo na adoração ao Sol. E nos ombros dos servos, teus tesouros e tua liteira ornamentada, onde a cabeça altiva do meu soberano, batida à ventania, desenrolava os teus cabelos claros, os teus cabelos longos, que faziam a minha glória só de beijá-los. O grande rei fugia. Fugia o “grande e poderoso Sapa-Inca”, desterrado do teu reino pela justiça feita a Titu Cusi. Contigo, à parte do teu séquito, fiel, fugia disfarçada a tua amante, tua cadela, aquela que se teria feito pó, por escolha, sob os teus pés, mesmo se não fosses tão gentil, se não fosses tão nobre em teu amor. Alcançou-te, porém, o estrangeiro. Mãos opressoras te arrancaram, injustas, do trono da liteira. E eu vi, horrorizada, vi cordas atando os pulsos que eu beijava. Teus tesouros, teu deus, a múmia do teu irmão assassinado, arrebatados dos ombros dos teus guardas, passados para os homens de outro rei. Implorei a Viracocha me cegasse para não te testemunhar na humilhação diante da tua coya, diante do olhar das tuas concubinas e dos teus filhos. Diante dos guardas que te serviam. Para não ver pisando o chão imundo, das estradas que todos pisavam, os teus pés de alabastro que eu perfumava com essências de ervas em vasos de prata. Mas vi. Fizeram-te adentrar a cidade sagrada com mãos amarradas em cordas malditas, para o teu povo te ver ofendido e infeliz. E a cabeça, desnudada do lattu, eu vi quando forçaram sob as águas de um estranho batismo em outra fé que nunca foi a tua. Que tu desconhecias, e não podias ter, porque não era aquela a da tua mãe e a da tua raça. Roubaram-te, meu rei, também o teu próprio deus. Em desespero, meus vestidos rasguei para com trapos amordaçar-me a boca, pois já não suportava assistir, ferido e 326 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 desonrado, ao meu soberano, meu homem, meu motivo. Jogueime até o chão a me arrastar pedinte, ao pé do estrangeiro, para implorar em dor e aflição pela vida do imperador, que era a minha causa, mais que todas. Mas só tive, sob o couro pesado que guardava o pé do teu adversário, a ponta do meu manto, o cuspo que atirou, humilhante e cruel. Então te conduziram ao cepo do sacrifício. Eu vi. Teus cabelos de seda espalharam-se pelas espáduas nuas, nas quais, ainda ontem, as mãos e os lábios quentes do meu carinho chamavam impacientes os teus desejos. E ante o clamor surpreso e agoniado, e aflito, do teu povo, a lâmina perversa do ódio opressor, de um só golpe, alcançou tua nuca. O povo estendeu, sofrido, o choro clamoroso, que ecoou longamente, até muito além do Titicaca. E eu vi o teu rosto cor da lua caindo na poeira. Tombando com olhos semicerrados. O teu tronco — invencível rocha do Atacama — abatido, imóvel. Outra vez contemplei o encanto viril que te fazia o mais belo dos homens de tua raça. Os cabelos revoltos espalhados eram como o ouro da terra na sujeira do chão. Até que a mão do estrangeiro, desgraçadamente vitoriosa, te agarrou os cabelos para te expor, erguendo diante da turba em desespero o teu rosto vencido, a tua face morta. E então morri. Mas a dor que se avolumou dentro do meu corpo, em partículas de mim, explodiu sangrenta por todo o mundo, e permanece para sempre ecoando pelos picos dos Andes e pelas paredes de todos os canyons. Ainda hoje a minha essência vaga, viajando pelas infinitas longitudes do Universo, na tentativa de reconhecer em cada face, em cada arrogante coragem de varão com a qual se defronta, a nova imagem em que foste plasmado. Para a nossa reunião definitiva, Tupac Amaru. ►► 327 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 GLOSSÁRIO QUITCHOA Ayllu: Comunidades que existiam dentro do mesmo império. Em cada ayllu havia uma estação de nome chucla, na qual um mensageiro (chasqui) fazia as vezes de correio postal. A cada mensagem a ser transmitida ao rei, o chasqui saía a correr por quilômetros, até o próximo ayllu, onde transmitia a mensagem ao chasqui daquela estação, que, por sua vez, saía também a correr até o ayllu seguinte, assim por diante, até a mensagem chegar ao Sapa-Inca. Os autores variam quanto ao tempo que esse correio boca a boca levava até chegar ao destino. E eram muitos e muitos quilômetros. Coya: Estrela. Era como se intitulava a esposa do Sapa-Inca, escolhida por ele entre as próprias irmãs, para não abastardar o sangue da linhagem real, que se acreditava descender em linha direta do Sol. Lattu: Franja vermelha que pendia da mascapaicha. Mascapaicha: Trança colorida que cingia a cabeça do imperador, símbolo do poder que só o Sapa-Inca podia usar. Sapa-Inca: O imperador. O termo significa “chefe único”, “muito grande e poderoso senhor”. Uncu: Túnica usada pelo Sapa-Inca.* Gláucia Lemos é bacharel em direito, crítica de arte, poeta, contista e romancista. É autora de mais de trinta livros de literatura adulta e infanto-juvenil, com destaque para o livro As aventuras do marujo verde. Recebeu diversos prêmios nacionais, como o II Prêmio de Literatura UBE/Scortecci 2007 pelo romance Bichos de conchas. Desde 2010 ocupa a Cadeira nº 14 da ALB. 328 ◄◄ DISCURSOS DISCURSO DE POSSE NA CADEIRA 33 Mãe Stella de Oxóssi G ostaria muito de iniciar meu discurso de posse nesta venerável Academia de Letras dirigindo-me a todos, indistintamente, chamando-os de amigos. Entretanto, fui educada por uma religião que tem na hierarquia a sua base de resistência, o que coincide com a tradicionalidade desta Academia. Sendo assim, inicio este discurso saudando as autoridades presentes ou representadas, sentindo que estou saudando a todos que aqui vieram para engrandecer esta cerimônia. Em 1910, Mãe Aninha fundou, em Salvador, na Bahia, o terreiro de candomblé Ilé Àÿç Opo Afonjá, hoje mundialmente conhecido e respeitado. Mulher com a cabeça muito além de seu tempo, ela costumava dizer que queria ver seus filhos com anel no dedo servindo a ßàngó, oríÿa para quem consagrou sua cabeça e patrono da casa de culto aos oríÿa que criou, mas que deixou de herança para todos nós, seus descendentes espirituais. Se a cabeça de Mãe Aninha foi consagrada, sua língua ganhou axé, ganhou força. Sua fala é uma sentença que seus filhos espirituais procuram obedecer e cumprir, como manda a sabedoria ancestral. Foi isso que também eu fiz, tanto que hoje me encontro aqui, na ilustre Academia de Letras da Bahia, para ser empossada na Cadeira 33. A sentença de Mãe Aninha é mais profunda do que normalmente se costuma interpretar: receber um anel é símbolo de aceitação de um compromisso. A vanguardista senhora desejava que seus descendentes se comprometessem com as causas sociais e espirituais, desejo de Mãe Aninha que se tornou de todas as iyáloríÿa que a sucederam. ►► 331 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Esse também é meu desejo: comprometer-me com tudo que assumo, seja no âmbito social, seja no âmbito espiritual. Quando fui iniciada para o oríÿa Õÿösi pelas mãos de Mãe Senhora, uma das filhas diletas de Mãe Aninha, eu tinha apenas catorze anos de idade. Em 1939, uma pessoa com essa idade era uma criança, que apenas obedecia a ordens, sem questionar o que lhe mandavam fazer. Se minha cabeça física sentia tudo aquilo como uma grande brincadeira, minha cabeça espiritual entendia que eu estava me comprometendo com algo muito sério. Ao ser iniciada, consagrei-me a Õÿösi. Tinha, então, compromisso com essa divindade, com minha mãe de santo, de saudosa memória, e com toda a família Opo Afonjá. Meu compromisso não foi selado com um anel. Ele foi selado com correntes fininhas, que simbolizam elos de uma grande corrente que une o Àiyé e o Õrun, os homens e os deuses, o profano e o sagrado. Eu carregava elos de todas as cores: um arco-íris, uma ponte que me fazia transitar, ir e vir, da Terra ao Céu e do Céu à Terra. Em minha inocência, eu não entendia que aquelas correntes fininhas comunicavam aos deuses que eu era ainda um elo frágil, que precisava de energia, de àÿç, para me tornar um elo forte, capaz de segurar muitos outros elos. Foi assim que, aos 51 anos de idade, fui escolhida pelos búzios, consequentemente pelos deuses, para ser iyáloríÿa — mãe de oríÿa, aquela que dá nascimento à essência sagrada de algumas pessoas. Minhas guias fininhas foram substituídas por grossas, grossíssimas guias. Eu já não tinha a inocência dos catorze anos e pude compreender que eu passava a ser um forte elo, do qual se esperava que fosse capaz de segurar e apoiar todos aqueles que buscassem força para atingir degraus mais elevados na existência humana. Uma mãe, no colo de quem muitos buscam conforto, consolo e encantamentos, porque não dizer feitiços, para facilitar a caminhada por este planeta. Ninguém é empossada iyáloríÿa antes de sentar na cadeira especialmente preparada para esse mister. Corrente e cadeira, 332 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 objetos de grande valor simbólico, tanto para a religião que pratico, o candomblé, quanto para a Academia de Letras, na qual agora sou empossada. Hoje, aos oitenta e oito anos de idade, estou eu recebendo, outra vez, uma corrente, que segura uma linda medalha, e também mais uma cadeira. A medalha me faz lembrar quão honrosa devo procurar fazer minha caminhada; a corrente, o sustentáculo dessa medalha, demonstra o pacto agora firmado com os objetivos da Academia de Letras da Bahia; a cadeira deixa de ser apenas um lugar de assento, para se transformar em um trono simbólico, onde ilustres cidadãos se imortalizaram. Sou agora mais um elo dessa corrente, que me liga aos outros elos, meus confrades e confreiras, estejam eles presentes em vida ou em obra. Analisando a palavra cadeira, descubro que esta vem do latim cathedra, significando cadeira de braços, que confere uma imponência a quem nela se senta. Dessa palavra também deriva o termo catedral, local onde se encontra instalada uma autoridade religiosa. Quando se diz que alguém conhece um assunto “de cathedra”, sobre este se deseja afirmar que ele tem um domínio sobre o tema em voga. Não sou uma literata de cathedra, não conheço com profundidade as nuanças da língua portuguesa. O que conheço da nobre língua vem dos estudos escolares e do hábito prazeroso de ler. Sou uma literata por necessidade. Tenho uma mente formada pela língua portuguesa e pela língua yorùbá. Sou bisneta do povo lusitano e do povo africano. Não sou branca, não sou negra. Sou marrom. Carrego em mim todas as cores. Sou brasileira. Sou baiana. A sabedoria ancestral do povo africano, que a mim foi transmitida pelos “meus mais velhos” de maneira oral, não pode ser perdida, precisa ser registrada. Não me canso de repetir: o que não se registra o tempo leva. É por isso e para isso que escrevo. “Compromisso” continua sendo a palavra de ordem. Ela foi sentenciada por Mãe Aninha e eu a acato com devoção. Em um dos artigos que escrevi, eu ►► 333 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 digo: comprometer-se é obrigar-se a cumprir um pacto feito, tenha sido ele escrito ou não. O verbo obrigar, que tem origem no latim obligare, significa unir. Portanto, quando dizemos um “muito obrigado”, estamos sugerindo a alguém que nos fez um favor que a ele estaremos ligados, em virtude do favor que nos foi prestado. Obrigação é uma das palavras chaves do candomblé: aquela que abre muitas portas. Fazer uma obrigação, ou a obrigação, fica sendo, então, uma forma de estar cada vez mais unido aos oríÿa. Se minha parte branca estuda as origens latinas da língua portuguesa, minha parte negra estuda a língua africana de que fazemos uso no candomblé: o yorùbá arcaico. Nessa língua, comprometer-se é wulewu, palavra que tem a seguinte análise: a raiz wù (agradar), a mesma que forma a palavra wúlò, que significa útil; e lé, que é traduzida como seguir em frente, procurando não ser mais um na multidão. Para o povo yorùbá e, consequentemente, para os brasileiros que se guiam pela religião nagô, uma pessoa comprometida é aquela que é útil, pois cumpre a função que lhe foi destinada e, por isso, pode seguir em frente, distinguindo-se da massa uniforme; uma pessoa comprometida é especial, pois já encontrou sua especificidade, tornando-se, assim, imortal. É considerado imortal todo aquele que fez ou faz de sua vida uma obra a ser lida, a ser internalizada. É objetivo da Academia de Letras da Bahia manter viva, na memória de todos, a contribuição que ilustres homens e mulheres deram, no sentido de colaborar para o aperfeiçoamento da sociedade e da humanidade. Se um dia, no Ilé Àÿç Opo Afonjá, eu recebi grossas correntes que simbolizam elos de união com os oríÿa, com meus ancestrais e meus descendentes espirituais, hoje recebo uma corrente que me une a todos que um dia pertenceram e os que ainda pertencem a esta nobre instituição. Honrada estou por ter sido escolhida para sentar na Cadeira 33, que tem como patrono um ser tão especial quanto Castro Alves e que foi ocupada pelos imortais Francisco Xavier Ferreira Marques, 334 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Heitor Praguer Fróes, Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araújo. Se meu discurso tem como base o comprometimento, sigo rememorando os primeiros acadêmicos que ocuparam a Cadeira 33. Francisco Xavier Ferreira Marques foi a pedra fundamental da Cadeira 33. Imortal também pela Academia Brasileira de Letras, onde foi o segundo ocupante da Cadeira 21. No prefácio de sua obra O feiticeiro, é citada uma fala do advogado sergipano Jackson Figueredo, através da qual se pode sentir a imortalidade desse homem da política, que era autodidata em literatura: “Xavier Marques merecerá o amor de todo o povo brasileiro, na proporção em que for crescendo a nossa consciência nacional. Tê-lo-á todo, quando levarmos não só à pompa dos programas, mas às escolas, o culto do nosso passado. Quando os nossos homens públicos se derem a esta obra, com menos frases e mais seriedade, os livros de Xavier Marques irão parar às mãos da infância e educá-la para a formação da alma brasileira.” Xavier Marques foi um jornalista e político que nasceu em três de dezembro de 1861, na prazerosa Ilha de Itaparica, o que contribuiu para que sua literatura encontrasse nos temas praieiros uma fonte de inspiração. Escrever era sua grande paixão. Poeta, romancista e ensaísta, foi com a novela Jana e Joel que a crítica o consagrou. A imortalidade de uma pessoa pode estar em sua vida, em sua obra, em sua descendência. Xavier Marques partiu do planeta em que vivemos em 30 de outubro de 1942, mas aqui deixou seu neto, o músico Celso Xavier Marques, hoje com 71 anos, o qual vem dedicando grande parte de sua vida e de sua obra musical à memória do avô, a quem chama carinhosamente de “meu velho escritor itaparicano”. O neto não teve o prazer e a alegria de conhecer o avô na vida física, o que não impediu que entre eles fosse firmada uma bonita ligação espiritual. Foi, provavelmente, essa ligação que inspirou o neto de Xavier ►► 335 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Marques a escrever um hino em tributo a seu avô, o qual se constitui uma verdadeira biografia sobre o mesmo. A arte musical de Celso Xavier Marques contribui, assim, para tornar a obra de Francisco Xavier Ferreira Marques ainda mais imortal. Celso Xavier Marques traz na letra um elenco dos títulos dos livros publicados por Francisco Xavier Ferreira Marques, os quais são seus trabalhos mais conhecidos, lidos e apreciados: A cidade encantada, A arte de escrever, As voltas da estrada, Jana e Joel, O feiticeiro, Holocausto, Os praieiros, Mar azul, A boa madrasta, Maria Rosa, O arpoador, Sargento Pedro, Insulares, Terras mortas, Pindorama, Terra das palmeiras. Onde estiver, o grande político e escritor baiano há de escutar seu neto cantar: “Deus criou, tão sublime, a sua pena magistral. Fez Xavier Marques, imortal.” O imortal Xavier Marques deixou sua Cadeira para ser ocupada por Heitor Praguer Fróes. Filho da histórica e cultural cidade de Cachoeira, nascido no dia 25 de setembro de 1900, Praguer Fróes foi poeta, tradutor, médico e professor. Foi membro não apenas da Academia de Letras da Bahia, mas também de inúmeras outras instituições científicas e culturais, como a Academia de Medicina da Bahia. Praguer Fróes escrevia com sacrifício. Eu faço uso dessa palavra não no sentido comum que ela possui, como sinônimo de dificuldade, mas em seu sentido original. Escrever para Praguer Fróes era um ofício sagrado, sobre o qual ele dizia: “Quem escreve um livro e o revê e publica passa pelo paraíso e pelo inferno: pelo paraíso, quando compõe; pelo purgatório, quando retoca; pelo inferno, quando imprime. Pelo paraíso, quando compõe, porque nada é mais agradável do que criar; pelo purgatório, quando retoca, porque nada é tão fastidioso quanto modificar; pelo inferno, quando imprime, porque nada é mais enervante que estar interminavelmente a corrigir.” E foi pensando e sentindo assim que Praguer Fróes somou em sua biografia livros de poemas, contos, contrafábulas e inúmeras obras científicas. Sacralizar um ofício é um comportamento típico de 336 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 quem se preocupa e se ocupa com a humanidade. Tanto que Praguer Fróes chegou a abdicar dos direitos autorais de seu livro Lições de medicina tropical em benefício do então futuro Hospital das Clínicas. Praguer Fróes era um humanista nato, pois herdou de seus pais a consciência cidadã. Não se pode nem se deve falar de Heitor Praguer Fróes sem falar de sua família. Pai, mãe e filho, todos eles médicos que dedicaram a vida a salvar vidas. Sua mãe, Francisca Praguer Fróes, foi uma das primeiras mulheres formadas em medicina, pioneira em todas as áreas em que atuou, principalmente na defesa dos direitos femininos. Ela dizia: “Eu sou feminista por herança e convicção. A inferioridade da mulher não é fisiológica, nem psicológica: ela é social. Sua escravidão sexual determina sua dependência econômica.” O pai de Heitor Praguer Fróes, João Américo Garcez Fróes, foi tão “singular figura humana”, que, quando precisava interferir no comportamento de um estudante de medicina, de modo a impedir que este fizesse o doente sofrer desnecessariamente, delicadamente dizia em latim: Non vi, sed arte! (não pela força, sim pela arte!). O que nosso confrade o jornalista Jorge Calmon diz sobre o pai de Heitor Praguer Fróes é o princípio que faz de um membro da Academia de Letras da Bahia um imortal, é o principio que faz de qualquer pessoa, letrada ou não, um imortal. Ele diz: “Efetivamente, há homens que se tornam instituições. São poucos. Constituem exceções. A regra geral é o bitolamento medíocre dos inumeráveis componentes do rebanho humano, que a lei da vida vai tangendo, em marcha, entre o nascimento e a morte. Nessa indistinta mediania, as inteligências não brilham, o esforço não avulta, o caráter não logra atingir forma, consistência. É a grande planície dos homens comuns. Vez por outra, desse solo rasteiro sobressai uma eminência. O talento, a virtude, o mérito rompem a vulgaridade e projetam de entre a massa os indivíduos bem dotados, ou que a si mesmos se dotam, e cuja ascensão proclama as faculdades superiores da pessoa humana. Foi Garcez Fróes um desses raros indivíduos.” ►► 337 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Em 25 de outubro de 1987, Heitor Praguer Fróes seguiu seu caminho rumo ao reino divinal, para encontrar essa linda família que deixou para todos nós um exemplo de vida registrado em livros. Seguindo a lei da vida, Heitor Praguer Fróes deixou sua Cadeira para ser ocupada por Waldemar Magalhães Mattos, que nasceu na cidade de Entre Rios, em 13 de setembro de 1917, e viveu na Terra por 86 anos. Era homem de números e letras. Bacharel em ciências contábeis, ingressou na carreira literária em 1940 pelo caminho jornalístico. O conjunto de sua obra é de um valor histórico imprescindível para a compreensão da Bahia e, consequentemente, do Brasil do século XIX. Tanto que em 2011, século XXI, portanto, dois de seus livros foram reeditados: Panorama econômico da Bahia e O palácio da Associação Comercial da Bahia, no qual Waldemar Mattos narra o baile que comemorou, em 1911, o centenário da Associação Comercial da Bahia, fundada em 15 de julho de 1811: “Suntuoso no seu deslumbramento inexcedível, cheio de encantadora poesia e fulgurante pompa. Sem contestação, foi uma cerimônia de destaque excepcional, cujas impressões os anais das crônicas baianas guardarão para sempre.” Waldemar Mattos também escreveu o livro A Bahia de Castro Alves, e foi na sede da Associação Comercial da Bahia que o conclamado Poeta dos Escravos, na verdade poeta dos fracos e oprimidos, fez sua última declamação pública. Na tarde do dia 10 de fevereiro de 1871, apenas cinco meses antes de deixar esta vida, Castro Alves recitou o poema “No meeting du Comité du Pain” durante uma reunião filantrópica promovida pela colônia francesa em benefício das crianças desvalidas da Guerra Franco-Prussiana. Waldemar Mattos ligou-se ao patrono da Cadeira 33 ao escrever o livro A Bahia de Castro Alves. E ligou-se a mim, atual ocupante desta honrosa Cadeira, por ter ele escrito sobre dona Francisca de Sande, a primeira enfermeira do Brasil. Afinal, 338 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 eu hoje sou Mãe Stella, uma iyáloríÿa que orienta as pessoas no sentido de cuidarem do espírito, mas um dia fui Maria Stella de Azevedo Santos, uma enfermeira que orientava sobre os cuidados com o corpo físico. Deixei para falar por último sobre meu antecessor, Ubiratan Castro de Araújo — Bira Gordo —, e sobre o patrono da Cadeira que hora ocupo — Castro Alves, o Poeta dos Escravos —, pelos laços que nos unem. Cada um de nós lutando por honrar e glorificar um povo que, mesmo chegando escravizado ao Brasil, soube fazer história, ajudando na formação de nosso país em todas as áreas. Cada um de nós lutando por esse ideal de acordo com a época em que viveu e com os dons que recebeu do Deus Supremo. A alma poética de Castro Alves gritou clamando pela liberdade física dos negros; Bira Gordo, com sua capacidade única de contar a história e estórias, tudo fez para mostrar a contribuição indiscutível deste povo; eu, como cultuadora de divindades, rogando sempre para que o orgulho que agora estou sentindo não faça com que minha jornada espiritual seja maculada, sigo esforçando-me no sentido de fazer com que a religião trazida pelo povo africano para o Brasil seja mais bem compreendida e, assim, mais respeitada. Em um discurso tão longo, tudo fiz para não cansar os ouvintes. Não sei se estou conseguindo, mas, em respeito a meu grande amigo e antecessor na Cadeira 33, o historiador Ubiratan Castro de Araújo, tentei alcançar esse feito procurando construir meu discurso de posse narrando fatos de modo histórico, mas com a leveza de uma contadora de “causos”. Como disse anteriormente, Bira Gordo foi um grande contador da história e de estórias. Nascido em Salvador, em 22 de dezembro de 1948, o professor doutor Ubiratan Castro de Araújo foi graduado em história pela Universidade Católica do Salvador e em direito pela Universidade Federal da Bahia. Um estudioso por natureza, fez mestrado em história na Université de Paris X, Nanterre, e doutorado em história na Université ►► 339 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de Paris IV (Paris-Sorbonne). O fato de ter recebido o Troféu Clementina de Jesus, da União dos Negros pela Igualdade, e a Medalha Zumbi dos Palmares, da Câmara Municipal de Salvador, mostra o reconhecimento pelo empenho de Bira Gordo contra a discriminação racial. Foram inúmeras as vezes que nos encontramos em seminários e outros encontros de ordem semelhante, para reafirmar a grandeza histórica do povo negro e sua sabedoria ancestral, que é capaz de orientar qualquer um que dela se aposse. Afinal, sabedoria não tem cor e não pertence a nenhuma raça específica. A frágil saúde de Bira Gordo, como gostava de ser chamado, não o impediu de dar uma grande contribuição ao mundo intelectual e de transmitir alegria por onde passava e para todos com quem convivia. Sua prestimosidade era incontestável! Nunca se negava a participar de nenhum evento para o qual fosse convidado a contribuir com sua forma única de estoriar a história. Intelectual cinco estrelas, contador de “causos” de estrelas incontáveis. Bira registrou pouco seu vasto conhecimento. Foram apenas três os livros por ele escritos: A guerra da Bahia, Salvador era assim: memórias da cidade, e Sete histórias de negro. Editou pouco, mas falou muito, muito, muito... E era uma fala deliciosa de ser ouvida. Em seu único livro de ficção, Sete histórias de negro, ele conseguiu reunir muito do que era, sabia e lutava. Para dizer o que Bira era, sabia e lutava, tomarei emprestado o que seu amigo, o jornalista e escritor Emiliano Queiroz, disse sobre ele: “Quando a barra pesava, quando algum problema o atormentava, Bira punha-se a cantarolar como a se convencer de que os orixás pudessem socorrê-lo, ou simplesmente como uma maneira de afastar os maus-olhados e buscar socorro na poesia, que ela sempre ajuda — quanto mais quando a alma não é pequena, e a dele era do tamanho do mundo.” Concordo, por experiência própria, com a opinião de Emiliano Queiroz sobre Bira: “O mestre que compartilhava sua erudição como quem contasse histórias à beira da fogueira.” 340 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Um exemplo claro dessa capacidade que tinha Ubiratan Castro, um intelectual do povo, é a última história escrita em seu livro Sete histórias de negro. Intitulada “O protesto do poeta”, a referida história é muito adequada para este discurso, uma vez que narra uma conversa que acontece em uma sessão espírita entre Castro Alves e um grupo de pessoas. Como bom piadista que era, não escapou da mente criativa de Bira Gordo nem o patrono da Cadeira que ocupava na Academia de Letras da Bahia. Para Bira, a vida parecia ser uma piada; e a piada, uma coisa muito séria. Condensada de maneira irônica no “causo” do protesto do poeta, Bira conta a trajetória da libertação dos escravos no Brasil ocorrida no passado, alertando para a necessidade constante por uma luta pela liberdade, pois as correntes de ferro, antes visíveis, são, no presente, correntes imperceptíveis, que marginalizam e excluem. Bira Gordo nos deixou há pouco tempo, em três de janeiro do ano em curso. Se hoje ainda estivesse conosco, digo, fisicamente, é provável que buscasse na poesia de Castro Alves a força de que precisamos para continuar enaltecendo um povo guerreiro, ao mesmo tempo pacífico e afetuoso, que soube amar e amamentar quem o escravizou. Muitas pessoas, no passado e no presente, lutaram para que hoje eu pudesse, de maneira natural, fazer parte desta Academia. Uma delas foi o patrono da Cadeira onde me firmo. Antônio Frederico de Castro Alves entoou gritos poéticos na tentativa de despertar a sociedade brasileira para a mais cruel de todas as atitudes humanas: a privação da liberdade. Em 1868, através de seu poema “Vozes d’África”, ele clamou: Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde desde então corre o infinito... Onde estás, Senhor Deus?... ►► 341 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Qual Prometeu tu me amarraste um dia Do deserto na rubra penedia — Infinito: galé!... Por abutre — me deste o sol candente, E a terra de Suez — foi a corrente Que me ligaste ao pé... Se minha bisavó chegou ao Brasil presa a muitos outros negros africanos, amarrada por correntes que lhe tiraram o maior de todos os bens que pode ter qualquer ser vivo — a liberdade —, hoje aqui me encontro acorrentada por um adorno que me une a todos os baianos, brasileiros, humanos, letrados ou não letrados. O Poeta dos Escravos desejava ver todos os homens tratados com igualdade de condições: queria ver desacorrentados os negros escravizados. Por isso, Castro Alves escreveu um dos mais conhecidos poemas da literatura brasileira, “O navio negreiro”, no qual denunciava as atrocidades sofridas pelos africanos na travessia oceânica a que foram obrigados a se submeter: Era um sonho dantesco... O tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar do açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães; Outras, moças... mas nuas, espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs. E ri-se a orquestra, irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... 342 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Se o velho arqueja... se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! ................................ Um de raiva delira, outro enlouquece... Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri! O baiano Castro Alves nasceu em 14 de março de 1847 na Fazenda Cabaceiras, antiga freguesia de Muritiba, que é hoje a cidade de Castro Alves. Era dotado de uma constituição física frágil, mas de uma forte alma humanizada, que contestava as barbaridades típicas da época em que viveu — o século XIX. Foi corajoso o suficiente para que, com apenas 21 anos de idade, obrigasse os fazendeiros donos de escravos a escutá-lo recitar “O navio negreiro”, pois estando todos em uma comemoração cívica não seria politicamente correto retirar-se do recinto. A poesia de caráter social de Castro Alves era típica da terceira geração do romantismo brasileiro, chamada condoreira, pois o condor é uma ave símbolo de liberdade. Representante da burguesia liberal, Castro Alves foi o último grande poeta da geração condoreira, que, por meio da literatura, instigava o povo para exigir a abolição da escravidão e a proclamação da república, aproximando, assim, o romantismo do gênero literário seguinte — o realismo. Se as causas sociais eram o ideal de Castro Alves, o amor era sua fonte de inspiração. E como são lindos seus poemas de amor. Escutemos com a alma seu poema “A duas flores”, que, na Escola Nossa Senhora Auxiliadora, de propriedade da ►► 343 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 professora Anfrísia Santiago, eu costumava recitar para minhas colegas no horário de recreio. São duas flores unidas, São duas rosas nascidas Talvez do mesmo arrebol, Vivendo no mesmo galho, Da mesma gota de orvalho, Do mesmo raio de sol. Unidas, bem como as penas Das duas asas pequenas De um passarinho do céu... Como um casal de rolinhas, Como a tribo de andorinhas Da tarde no frouxo véu. Unidas, bem como os prantos, Que em parelha descem tantos Das profundezas do olhar... Como o suspiro e o desgosto, Como as covinhas do rosto, Como as estrelas do mar. Unidas... Ai quem pudera Numa eterna primavera Viver, qual vive esta flor. Juntar as rosas da vida Na rama verde e florida, Na verde rama do amor! Intensamente viveu Castro Alves a sua curta vida de 24 anos. Em seis de julho de 1871 ele não pôde mais sentir na carne os prazeres do amor. Também não pôde ver os escravos desacorrentados, não pôde assistir a seu ideal concretizado. Mas sua curta vida é longa. Estamos hoje, aqui, nos deleitando com seus versos. Uma senhora de 96 anos, falando sobre seu primo Castro 344 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Alves, um dia me disse: “Por amor ele viveu, por amor ele morreu. Mas quem morre por amor não morre: torna-se imortal.” Eu sou o quinto elo da corrente que forma a cadeia de iyáloríÿa do Ilé Àÿç Opo Afonjá. Eu sou a quinta pessoa a ocupar a Cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia. O número cinco é meu guia. Há setenta e quatro anos, nesta mesma data, eu fui iniciada para o oríÿa caçador — Õÿösi. Hoje é uma quinta-feira, dia consagrado a meu oríÿa. Nada disso foi programado, nada disso é coincidência. É magia e destino! Na Cadeira 33, e em todas as outras que compõem esta nobre instituição, cabem pessoas de todas as profissões, cores, religiões, estilos literários... Na Cadeira 33, e em todas as outras desta instituição, só não cabe vaidade, nem modéstia. Não sendo vaidosa, digo que, com certeza, não fui escolhida para ser uma acadêmica pelo fato de escrever livros com sofisticação gramatical. Não sendo modesta, tenho a convicção de que se hoje aqui estou é por escrever minhas experiências de modo a cumprir meu compromisso sacerdotal. Não se esqueçam de que compromisso e união são as bases em que meu discurso foi fundamentado. Sentar-me na Cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia era meu destino. O que escreveu meu confrade Paulo Costa Lima, quando fui escolhida para esta confraria, transmite com perfeição meus pensamentos sobre esse novo envolvimento em minha vida. Ele assim pensou e escreveu: “Hoje, 25 de abril, a Academia de Letras da Bahia jogou os búzios e o nome que apareceu foi o de Mãe Stella de Oxóssi, para ocupar a Cadeira cujo patrono é Castro Alves, sendo o grande historiador baiano Ubiratan Castro o último ocupante. A escolhida se fez presente logo após a votação para o abraço e a manifestação do compromisso. Foi uma bela cena, e muito rara. Um encontro de erudições da África e da Europa. Na verdade, um gesto inovador que não pode deixar de ser levado em conta como paradigma de abertura de horizontes e de convivência das diferenças... na luta de afirmação da tradição ►► 345 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 afro-brasileira e, portanto, pelo respeito aos direitos à alteridade e identidade própria. Diante da contribuição civilizatória que a África trouxe ao Brasil, alguns preferem calar, outros reconhecem, mas acentuam a natureza oral dos conhecimentos e saberes. Mãe Stella rompeu essas barreiras (entre tantas) e passou a defender uma representação mais sintonizada com os novos tempos, conectando oralidade e manifestações letradas...” Como já disse, sou bisneta de portugueses e africanos. Essas duas descendências não são somente minhas. São do Brasil. Quantas e quantas vezes estamos falando palavras de origem africana, pensando estar falando em português? Tôrô é chuva, görô é cachaça, gògó é garganta, todas elas palavras da língua yorùbá, que precisam ser preservadas em sua origem. Talvez muitos tenham estranhado, em alguns momentos do discurso, ser falado os oríÿa, as iyáloríÿa. Não é erro. É que na língua yorùbá as flexões gramaticais, no que se refere a número, são construídas de maneira diferente da língua portuguesa. Essa herança faz com que muitas vezes o povo fale uma mistura de português com yorùbá. Sobre os dialetos africanos, a confreira Yeda Pessoa de Castro conhece o assunto de cathedra. Escrevo com a intenção maior de salvaguardar a língua e a sabedoria de meus ancestrais africanos, pois tendo sido este povo ignorado por séculos seus conhecimentos correm o risco de ser esquecidos ou transmitidos de maneira deturpada. Ser iniciada aos catorze anos de idade fez com que eu tivesse a vantagem da inocência. Sem saber da responsabilidade que me esperava, eu brincava de caçador. Afinal, fui consagrada para o oríÿa Õÿösi — a divindade caçadora. Na minha mocidade, pude conciliar a profissão com a religião, cuidando do ser humano como enfermeira sanitarista durante trinta e cinco anos, quando então me aposentei, ao tempo em que servia também aos deuses. Curiosamente, alguns mais velhos insistiam em me repassar os conhecimentos que possuíam sobre os fundamentos do candomblé. Em uma época em que nossa 346 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 tradição era transmitida apenas oralmente, Bida de Iyemanjá, por exemplo, contrariava o costume e de maneira obstinada mandava que eu anotasse nossas conversas. Muito tímida e respeitosa, não era fácil fazer o que ela mandava. Com o passar do tempo, entendi que os mais velhos queriam munir-me de conhecimentos, pois cada dia eu recebia mais informações. Só em dezenove de março de mil novecentos e setenta e sete, quando fui escolhida iyáloríÿa do terreiro de candomblé onde fui iniciada — o Ilé Àÿç Opo Afonjá, na Bahia —, é que pude enfim compreender o porquê de toda aquela atenção para comigo. Nos anos que se seguiram, não apenas os mais velhos, mas também pessoas mais novas me enviavam importantes materiais de pesquisa sobre a religião que nos foi legada pelos africanos. As minhas atividades como iyáloríÿa são muitas e nunca me permitiram organizar tudo que eu recebia por revelação divina ou por gentileza dos homens, o que muito me preocupava. Como iniciada que sou, tenho tendência a resguardar os mistérios, evitando retirar os véus que os encobrem. Por isso, não foi uma decisão nada fácil fazer uso da tradição escrita para registrar os conhecimentos que adquiri através da tradição oral. A ousadia veio da necessidade, mas a coragem veio da permissão dos oríÿa. Diante da modernidade, essa ficou sendo minha única alternativa para evitar deturpações da essência de uma religião milenar. Não sou uma escritora! Sou uma iyáloríÿa que escreve! Sou uma iyáloríÿa que escreve com o objetivo primeiro de não deixar perder a valiosa herança de nossos ancestrais. Assim foi que optei por oferecer a todos, indistintamente, a riqueza da filosofia yorùbá, de maneira escrita, porém respeitosa, evitando expor fundamentos que interessam apenas aos sacerdotes, por serem eles responsáveis pela execução de rituais. A busca pela ampliação do conhecimento deve ter como interesse principal o aprimoramento pessoal, visando uma amplificação das capacidades enquanto ser humano. ►► 347 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Se eu chamo meus colegas de Academia de confrades e confreiras, é porque estamos juntos na mesma confraria. No Ilé Àÿç Opo Afonjá, cumprimentamos uns aos outros chamando-nos de irmãos, estamos em uma irmandade. Confraria, irmandade, comunidade... Elos unidos formando uma corrente por um objetivo comum. Na Academia de Letras da Bahia, o objetivo é cultuar para preservar a tradição escrita. No Ilé Àÿç Opo Afonjá, o objetivo é cultuar para preservar a tradição oral. Sou uma acadêmica oriunda da família Opo Afonjá, que tem como Iyá Nlá — a Grande Mãe — Ôba Biyi, Mãe Aninha, que no início do século XX escreveu um adurá (uma reza), na língua yorùbá, pedindo bênçãos para a construção do terreiro de candomblé que tem como patrono o oríÿa ßàngó, seu élédá, o dono de sua cabeça. Mãe Aninha assim rezava em yorùbá: Ôba Kawoo Ôba Kawoo Kabiesile Kö möèsi kunlè Ôba Kawoo Ôba Kawoo Kabiesile Çkùn Esse adurá, em tradução, quer dizer: “Xangô, Rei Leopardo, cuja decisão e ação ninguém poderá questionar. Dême como resposta a construção completa desta casa.” Através dessa reza em forma de cântico, Mãe Aninha pediu condições para construir o Ilé Àÿç Opo Afonjá. Ainda hoje, nós, seus descendentes espirituais, continuamos entoando sua oração, todas as quartas-feiras, na “casa de candomblé” construída por ela, pedindo forças para nos mantermos firmes em nossas decisões; pedindo humildade para mudar as ações que nos sejam questionadas, apenas quando elas forem justas. Somos descendentes de Mãe Aninha! Somos filhos de ßàngó! Somos filhos da justiça! Somos educados, polidos e firmes. Somos filhos da resistência! 348 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Se Mãe Aninha pediu a seu oríÿa, ßàngó, forças para construir seu terreiro de candomblé, eu peço a meu oríÿa, Õÿösi, que dê força, saúde e prosperidade a mim e a todos aqui presentes, principalmente aqueles cujos corações são puros. [Mãe Stella puxa o cântico em homenagem a seu oríÿa.] Olówo mo npe mi ô iye iye Ôdç mo pe mi olùbö ai pè Mo npe mi ô iye iye Ôdç mo pe mi olùbö ai pè Mo npe ni ná së ni dé na* Mãe Stella de Oxóssi (Maria Stella de Azevedo Santos, Odé Kayode) é a quinta ialorixá do Ilê Axé Opó Afonjá. É enfermeira e escritora, com vários livros publicados, como Meu tempo é agora, Epé laiyé, Opinião e Ofún. É doutora honoris causa pela Universidade Federal da Bahia e pela Universidade do Estado da Bahia e articulista do jornal A Tarde. Desde 2013 ocupa a Cadeira nº 33 da ALB. Discurso de posse da acadêmica Mãe Stella de Oxóssi na Cadeira nº 33 da Academia de Letras da Bahia, em sessão solene, no Salão Nobre da ALB, em 12 de setembro de 2013. ►► 349 MÃE STELLA DE OXÓSSI — ODÉ KAIODÊ Saudação à acadêmica Myriam Fraga E sta é mais uma dessas noites extraordinárias em que esta casa parece reverberar iluminada pelo brilho da alegria, pelo entusiasmo da celebração. Recebemos hoje em nossa confraria não apenas mais um membro eleito pelo reconhecimento de seus méritos, mas alguém cuja presença tornará ainda mais enriquecedor o nosso convívio e mais instigante o desdobramento de nossas afinidades. Porque esta é uma casa onde a convivência será sempre um passo a mais no mundo do conhecimento, uma página a ser escrita no livro da sabedoria, constituída pela diversidade, pelas trocas, pelas revelações, pela aceitação do múltiplo, pela gentileza que não prescinde da crítica, onde as divergências resolvem-se não na disputa, mas na conciliação. Porque esta Academia, antes de ser uma casa de iguais, configura-se numa união firmada no enriquecimento que se completa na soma das diferenças. E esta é também uma casa da memória, porque nela estão guardadas as reminiscências, os documentos, os escritos, as propostas e as referências que seguirão pelos tempos afora a marcar o nome e o perfil dos que nela um dia se assentaram, tornandose imortais na obrigação de seus sucessores, encarregados de preservá-los na lembrança e no reconhecimento de suas virtudes e de sua história. Na tradição que rege as ações desta Academia, ao preservarmos o culto e o respeito aos nossos antecessores temos ►► 351 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 a certeza de que, se um dia também fizermos jus à pretendida imortalidade, será tão somente por aceitarmos a máxima, tão celebrada pelos gregos, de que um homem é imortal enquanto seu nome for lembrado. Alegrias e tristezas fazem parte da existência e completam a liturgia desta casa. A cada despedida de um confrade que se afasta, levado pelos rios da eternidade, abre-se um novo caminho, apresenta-se uma nova oportunidade, para que o fluxo da existência se renove e permaneça sempre atuante na construção de uma diversa possibilidade. Cumprido o ritual das despedidas, é preciso celebrar-se o tempo da renovação e da alegria, e para isso aqui estamos reunidos, para celebrar não apenas a posse de mais um novo membro em nossa confraria, mas a chegada de um nome que vem projetar neste sodalício mais que a luz de uma estrela, a marca de uma sabedoria já muitas vezes proclamada. Recebida com a pompa e a circunstância que ditam as normas desta Academia, acolhida pelo respeitoso carinho dos confrades, no exemplo dos antecessores, Maria Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de Oxóssi, Odé Kaiodê, assume hoje seu lugar nesta confraria amparada no exemplo de uma vida dignificada nos preceitos que apontam para o caminho da revelação e dos deveres que competem aos que são escolhidos pelos deuses, pelo destino, ou por sua própria inerente vocação, para atender aos seus semelhantes no caminho das virtudes que definem o ser humano em sua trajetória. Vinda de uma linhagem de mulheres predestinadas, ou seja, condutoras de destinos, abnegadas sacerdotisas de uma religião que teimava em sobreviver às aparentemente inflexíveis regras que apontavam para a submissão e o aniquilamento de crenças ancestrais, Stella de Oxóssi construiu o seu percurso amparada nos ensinamentos que a fizeram, ao longo de sua abençoada e frutífera existência, construir um porto seguro para as dúvidas e as ansiedades de sua gente. 352 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Seu caminho vem de longe, suas origens remetem a muitos anos de resistência em defesa de uma cultura que, embora discriminada pelo preconceito, firmou-se como uma herança que nos cabe resguardar, pela importância de que se fez merecedora na construção de uma identidade cultural brasileira, notadamente na Bahia, berço da preservação de um saber que muito nos dignifica. Em livro hoje considerado clássico, a antropóloga Ruth Landes, que aqui esteve em estudos e pesquisas na década de quarenta, batizou Salvador como “a cidade das mulheres”, assinalando com admiração o poder extraordinário das mães de santo na defesa das tradições e costumes de seu povo. Na condução de um dos mais afamados terreiros da Bahia, o Ilê Axé Opó Afonjá, da matriz da Casa Branca do Engenho Velho da Federação, primeiro terreiro de culto nagô no Brasil, Mãe Stella confirma essa tradição de liderança ocupando o lugar que já pertencera, anteriormente, a figuras míticas da cultura baiana, como as ialorixás Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha, e sua sucessora, Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora, guardiãs da casa de Xangô e do culto de Yá, a mais velha Mãe das Águas. Nascida no seio de uma numerosa família no dia dois de maio de 1925, na cidade de Salvador, na Bahia, Maria Stella de Azevedo Santos é a quarta filha de Esmeraldo Antigno dos Santos e de Thomásia de Azevedo Santos. Tendo estudado no colégio Nossa Senhora Auxiliadora, dirigido pela professora Anfrísia Santiago, notável educadora, formou-se em seguida pela Escola de Enfermagem e Saúde Pública, exercendo a função de visitadora sanitária por mais de trinta anos. Mas seu destino não era cuidar do corpo, mas tratar das almas. Aos treze anos recebeu o chamado e iniciou seu caminho rumo ao Axé. A princípio, tudo levava a crer que seria iniciada no Terreiro do Gantois, onde imperava Maria Escolástica Conceição Nazaré, Mãe Menininha, uma das mais famosas e respeitadas ialorixás da Bahia, mas não era esse o desígnio dos orixás, e seu odu inclinou-se ►► 353 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 para que fosse recebida no Ilê Axé Opó Afonjá, local igualmente respeitado, fundado em 1910 por Eugênia Anna dos Santos, a lendária Mãe Aninha, na Estrada Velha de São Gonçalo do Retiro, no bairro do Cabula, em uma fazenda que se tornou, com o passar dos anos e o abnegado trabalho de seus veneráveis, num verdadeiro sítio ecológico, local de preservação da natureza no culto ao sagrado e às crenças de seus antepassados. No dia 25 de dezembro de 1937, ainda adolescente, Maria Stella foi apresentada a Mãe Aninha, que a entregou aos cuidados de Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora, para que a instruísse nos segredos e mistérios do candomblé. Com a morte de Mãe Aninha, em 1938, após um breve intervalo em que o terreiro esteve sob o comando de Mãe Bada de Oxalá, uma das fundadoras do Axé, que já muito idosa e doente faleceria logo em seguida, Mãe Senhora, após o tempo regulamentar, assumiu o trono no Ilê Axé Opó Afonjá. No ano seguinte, aos 14 anos, Maria Stella começou sua iniciação, orientada por Mãe Senhora, recebendo o nome de Stella de Oxóssi — Odé Kaiodê —, como era da tradição. Assim, ao tempo em que concluía seus estudos regulares, ia sendo introduzida no conhecimento de tudo que se relacionasse ao culto, aos rituais e às origens da crença dos ancestrais. Com a morte de Mãe Senhora em 22 de janeiro de 1967, esperava-se que, por seus altos méritos e pela vontade expressada muitas vezes por sua antecessora, Mãe Stella fosse designada para sucedê-la. Mas, feito o jogo dos búzios, contrariando as expectativas, a escolhida foi Ondina Valéria Pimentel, Mãe Ondina, também conhecida como Mãezinha, que passou a conduzir o Axé, durante sete anos, com muita dedicação. Com a sua morte procedeu-se novamente o ritual de consulta ao orixá, através dos búzios, e dessa vez Stella de Oxóssi foi eleita e confirmada, cumprindo-se finalmente o desejo de sua querida Mãe Senhora. Sobre esses fatos temos o testemunho de dois importantes documentos. A morte de Mãe Senhora e o ritual para escolha 354 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de sua sucessora foram narrados pelo escritor Jorge Amado, ogã do Axé Opó Afonjá, no livro Bahia de Todos-os-Santos, em páginas de muita emoção. No mesmo capítulo, narra também a escolha de Mãe Stella, a quem se refere como “minha irmã”, quando anos depois foi, finalmente, eleita para ocupar o trono de Xangô. Esses episódios, a morte e o enterro de Mãe Senhora, estão descritos no conto do mesmo autor intitulado “O enterro da iyalorixá”, publicado no livro Cinco histórias pela Fundação Casa de Jorge Amado. O segundo documento a que nos referimos é a transcrição da ata registrada no dia 19 de março de 1976 do livro de atas do Conselho Religioso, reunido sob a presidência de Hector Bernabó (Otun Obá Onasokum), mais conhecido como Carybé, mestre famoso das artes na Bahia, grande amigo e protetor do Ilê Axé Opó Afonjá. A consagração de Mãe Stella deu novos rumos à congregação. Passado o primeiro impacto, refeita da emoção de se ver como fiadora não só da continuidade e preservação de uma cultura, mas igualmente da administração de uma comunidade que dependia de cuidados materiais para sua sobrevivência, sentiu abater-se sobre seus ombros o peso da responsabilidade. Ainda jovem, teria de abdicar da liberdade pessoal, da simplicidade de uma vida sem maiores pretensões, das viagens que tanto apreciava, para dedicar-se inteiramente ao serviço e aos preceitos de uma crença que lhe cumpria resguardar, fazendo retornar os dias de grandeza do Terreiro de Xangô, quando a fama da pureza de seu ritual e da imponência de suas festas atraía para a Bahia estudiosos e adeptos do mundo inteiro. Porque a administração de um terreiro com a importância e a extensão do que lhe fora dado a dirigir, não só espiritualmente, mas com todas as prerrogativas de administração de bens e haveres daí decorrentes, com a função de exercer políticas de convivência não apenas com a comunidade que o frequenta, ►► 355 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 mas igualmente com o entorno que o cerca, de prover as necessidades básicas que garantam a continuidade dos rituais e a presença do sagrado, que é a força que alimenta as almas e assegura sua permanência, exige dedicação constante e integral doação. Mas não se deixou intimidar, porque para isso fora feita e preparada. Anos de estudo e de permanente convívio com Mãe Senhora, que desde o princípio se encarregara de conduzi-la para o que adivinhava ser o seu verdadeiro caminho rumo ao Axé. A tarefa era árdua. Com a força do comando e a clarividência adquirida na convivência com as regras e os ensinamentos dos preceitos, Mãe Stella sentia-se confiante para iniciar a grande empreitada de recuperar a energia que nos últimos anos, com a saúde delicada de Mãe Ondina, parecia ter arrefecido. Para isso, além de contar com a dedicação de seus filhos e filhas de santo e a colaboração dos familiares, teve ainda a confiança e a amizade de Mãe Menininha e de suas filhas Cleusa, já falecida, e Carmem, atualmente ialorixá do afamado Terreiro do Gantois. Desse modo, com muita firmeza, sempre procurando ser justa sem ser intolerante, Mãe Stella começava a pavimentar a longa estrada que a conduziria ao respeito e à veneração de que vem desfrutando, não só por parte dos filhos e filhas de sua comunidade, mas igualmente de todos que reconhecem a sua seriedade, não apenas no trato das coisas da religião, mas igualmente no esforço pelo fortalecimento da imagem do local como um centro de referência da cultura de raízes africanas e no amparo dispensado a tantos que a procuram em busca de um conselho, de um ensinamento, de um consolo em suas aflições. Ao mesmo tempo, contando com o total apoio dos obás na administração da casa e nas reformas que aos poucos foi realizando, tratava da parte material, cuidando das edificações, construindo novas casas para os orixás, murando os limites da roça, na preservação de um espaço de quase quarenta mil metros quadrados, melhorando a rede elétrica e o acesso ao centro do terreiro. 356 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Em 1981, após uma viagem à Nigéria, onde visitou templos e casas de orixás, sendo acolhida com grande emoção, apesar das barreiras linguísticas, fazendo amigos e recebendo homenagens, voltou disposta a montar um museu onde ficassem expostos objetos de valor que faziam parte da memória do Axé. Assim, foi criado o Ilê Ohun Lailai. Sua visita deixou tão boa impressão que, em 1983, o professor Wande Abimbola, à época reitor da Universidade de Ile-Ifé, fez questão de que a II Conferência da Tradição dos Orixá e Cultura, que se realizou de 17 a 23 de julho de 1983, acontecesse em Salvador. Foi nessa ocasião que Mãe Stella fez seu primeiro pronunciamento público defendendo ideias originais sobre o sincretismo religioso, assunto que a absorvia e ao qual dedicava suas atenções. Ela também teve participação destacada na III Conferência da Tradição dos Orixá e Cultura, em 1986, em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Sempre procurando divulgar e difundir o trabalho realizado em favor da história, da crença e da importância dos orixás na cultura brasileira, no ano seguinte Mãe Stella integrou a comitiva organizada por Pierre Verger para as comemorações durante a Semana Brasileira na República do Benin, onde foi recebida com honras de líder religiosa. Enquanto isso, sempre preocupada com a educação, principalmente de crianças e adolescentes, dedicava-se à criação de oficinas complementares ao ensino básico, buscando principalmente manter uma ocupação que os afastasse das tentações e dos desvios de conduta. Essas oficinas, que já receberam centenas de alunos, complementam as atividades da Escola Fundamental Eugênia Anna dos Santos, considerada referência pela Prefeitura Municipal de Salvador. Coroando seu trabalho como gestora de um espaço que abriga tantas atividades, uma nação diferenciada em seus segmentos, exemplo de organização e de eficiência em seu propósito de ►► 357 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 criar um território onde a convivência com o mistério e com o sagrado não sofram interferências que possam perturbar a paz tão necessária a seus propósitos, em 1999 Mãe Stella conseguiu o tombamento do Ilê Axé Opó Afonjá pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão ligado ao Ministério da Cultura. Tantas e tão significativas realizações vem atraindo a admiração e o respeito não só de sua comunidade, mas do povo da Bahia, que, pela mão de seus representantes, a tem cumulado de prêmios e honrarias pelo muito realizado e pela imagem que construiu ao longo dos anos e que a credencia como uma das mais distinguidas lideranças de sua terra. Desde 2001, quando ganhou o prêmio jornalístico Estadão, pelo jornal O Estado de S. Paulo, na condição de fomentadora da cultura, seguiu-se uma significativa lista de prêmios e honrarias: Medalha Maria Quitéria, pela Comuna de Salvador; Ordem do Mérito da Bahia, no grau de cavaleiro, pelo governo do estado; Comenda do Mérito Cultural, pelo Ministério da Cultura. Acrescentem-se os doutorados honoris causa, pela Universidade Federal da Bahia, em 2005, e pela Universidade do Estado da Bahia, em 2009, títulos que atestam sua qualificação e seu reconhecimento pela comunidade intelectual que a acolhe neste momento como um expoente da cultura baiana. Convencida de que religião é cultura, procurava manter viva a chama do conhecimento através de palestras, debates, oficinas e outros eventos que pudessem, segundo ela, “sacudir” o povo do candomblé, fazendo-o compreender que a sobrevivência de sua crença dependia de reflexão, estudos e entrosamento com as novas formas de convivência demandados pelos costumes dos novos tempos. Compreendendo que apenas a tradição oral não poderia atender à demanda de orientação e à necessidade de agregar novos conhecimentos ao seu povo, decidiu-se a superar a tradicional oralidade africana, passando a registrar através de seus 358 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 escritos o conhecimento que herdara de seus ancestrais, iniciando uma série de publicações que, por sua importância e objetividade, veio a tornar-se uma referência nos estudos e na pesquisa de quantos se interessem pelo conhecimento das práticas, dos ritos e, principalmente, dos mitos referentes à religião dos orixás. Entre suas várias publicações destacamos dois livros que consideramos da maior importância em sua bibliografia: Meu tempo é agora, já em segunda edição, pela Assembleia Legislativa da Bahia, e Oxóssi, o caçador de alegrias, editado pela Fundação Pedro Calmon, sob a presidência do saudoso confrade Ubiratan Castro, a quem viria a suceder, numa merecida coincidência, ocupando seu lugar na Cadeira de número 33, que por outra feliz coincidência tem como patrono o poeta Castro Alves. Fundamental sob vários ângulos, Meu tempo é agora reúne informações preciosas sobre vários aspectos ligados à organização do candomblé: não apenas os espaços físicos, mas as obrigações e preceitos que envolvem os ocupantes dos cargos, o calendário das festas e dos rituais. Contém ainda esclarecimentos sobre os mitos mais significativos, uma descrição detalhada sobre os modos e costumes, a hierarquia nas relações, vestuários e alimentação apropriados, atribuições e características principais de cada orixá, entre outros assuntos de relevância para a compreensão dos costumes da casa, o que o credencia como um verdadeiro guia das atividades aí exercidas. Sempre enfatizando a importância de suas antecessoras na preservação dos espaços sagrados e na observância das tradições, não se esquiva, todavia, de abordar alguns assuntos polêmicos na formulação de novas formas de relacionamento com a sociedade e novas políticas de divulgação de seus ensinamentos. Oxóssi, o caçador de alegrias é um livro encantador. Nele, ao tempo em que narra itans, ou histórias de Oxóssi, orixá de sua cabeça, Mãe Stella divulga seu pensamento em relação à religiosidade negra, criando um texto de grande beleza, no qual, ►► 359 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 a par dos conceitos e referências aos dogmas e às revelações que formam o complexo mundo de relações entre o Orum e o Ayê, entre o sagrado e o humano, aborda importantes questões referentes aos mitos iorubas e ao valor dos símbolos como expressões do inconsciente. Os mitos da criação do mundo, ligados ao Gênese, nos quais estão presentes Olorum, o pai supremo, que delegou a Orisanlá, o grande orixá da criação, a tarefa de criar o planeta Terra e todos os viventes que o habitam — homens, animais, plantas —, além de Iya Mi Àgba — a “grande mãe ancestral”, única divindade feminina envolvida nas narrativas de origem, que, ao receber de Olorum o poder da gestação, tornou-se a “mãe de todas as criaturas da Terra”, responsável pela criação das leis da natureza e por manter o equilíbrio ecológico que garantisse a continuidade da vida em nosso planeta. É impressionante a riqueza dos símbolos e das metáforas ligadas à vida humana, à morte e à ressurreição. Assim, quando Olorum deixa a cargo de Orisanlá a criação do corpo físico dos seres humanos a partir da lama fornecida pelo orixá Nana, este só permite o emprego do material sob a condição de que lhe seria devolvido após certo tempo de uso, estabelecendo a regra básica da existência: tudo que vive, nasce e morre um dia regressará à sua essência. Inúmeros são os ensinamentos encontrados nesse livro mágico, mas certamente uma das mais belas passagens é quando é descrito o ritual da caça e seu significado mítico na trilogia Exu-Ogun-Oxóssi. Exu simboliza o movimento; Ogun, a busca; e Oxóssi, o encontro final. Assim, com rara sensibilidade é recriado o momento inicial da humanidade, a aurora do conhecimento. Neste momento não posso resistir à tentação de reproduzir um pequeno trecho sobre esse tema, num parágrafo que me parece extremamente instigante: “Durante a caçada, Exu é o instinto de sobrevivência; Ogun, o caminho percorrido pela caça em fuga, pelo caçador na perseguição, assim como o projétil ao encontro 360 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 do alvo; Oxóssi é o animal que foge, o caçador que persegue, a flecha, o projétil lançado, assim como é o resultado final do ato.” Sabendo-se que a arte da caça é uma das mais antigas da humanidade, guardando uma estreita relação com as atividades inerentes à sobrevivência do grupo nas comunidades primitivas ao alvorecer da humanidade, quando as dificuldades enfrentadas e a precariedade da vida faziam da existência uma perigosa travessia, é preciso reconhecer que é nos mitos que se encontra a chave desse momento de compreensão de um universo que vai se desvelando aos poucos, na revelação de seus mistérios. Contar histórias talvez tenha sido um das primeiras tentativas da humanidade na busca pela preservação do passado através da memória. Da experiência compartilhada à fantasia de aventuras inventadas pela imaginação, teceram-se as mais mirabolantes narrativas, marcando os roteiros percorridos pelos habitantes deste planeta misterioso que se chama Terra. E assim fomos tecendo nossa história, processando e inventando sonhos, realidades e experiências que nos confortam com a ilusão da imortalidade. Mas apenas alguns espíritos privilegiados, marcados pelo destino — a moira, os fados, o odu — recebem de seus ancestrais essa dádiva, esse privilégio de fazer da palavra o pão da sabedoria: são os mestres, os sacerdotes, os videntes, os que aceitam o peso dessa responsabilidade como uma verdadeira missão. Das muitas contribuições ao conhecimento e à divulgação da sabedoria de seus ancestrais que devemos a Mãe Stella, à veneranda Stella de Oxóssi, soma-se o livro que reúne as crônicas publicadas semanalmente no jornal A Tarde, sob o título de Opinião, em que generosamente ela divide com o público uma parte de seu conhecimento e de sua vivência, adquiridos através de uma longa e devotada existência à missão para a qual foi um dia destinada. Conheci Stella de Oxóssi através de Jorge Amado, nos idos de 1968, quando então se implantava no Pelourinho esse outro templo de saberes, a Fundação Casa de Jorge Amado, que, ►► 361 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 segundo o desejo do escritor, deveria ser uma casa do povo e da cultura da Bahia. E assim, antes dos papéis e das cerimônias, das obras e adaptações que se fizeram no grande sobrado do Largo do Pelourinho, para que nele ficassem eternizados os livros, os escritos e os documentos, preservados para o futuro, foi implantada, bem na frente da casa, no alto das escadarias em frente ao largo, com a bênção e a autoridade de Mãe Stella, a imagem de Exu, como guardião da memória sagrada desta cidade tantas vezes proclamada de Oxum pelos seus artistas e admiradores. Muitas coisas eu aprendi com Jorge Amado, uma delas, das que mais prezo, é o respeito e a amizade dedicados a Stella de Oxóssi, Mãe Stella, por ele proclamada como uma irmã, a quem devotou sempre um afeto e uma admiração partilhados por quantos, como ele, tiveram o privilégio da convivência com essa verdadeira guardiã dos mistérios da Cidade da Bahia. Na lembrança de Jorge Amado, obá de Xangô, ogã do Ilê Axé Opó Afonjá, eu vos saúdo, Maria Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de Oxóssi — Odé Kaiodê, a estrela brilhante na preservação das crenças de seu povo, intelectual atenta na guarda dos mistérios e na renovação da cultura. Em nome dos confrades, que, neste dia exponencial de vossa biografia, me outorgaram a honra de saudá-la, eu vos recebo com alegria: sede bem vinda, a casa é vossa. Axé. Assim seja.* Myriam Fraga é poeta, diretora-executiva da Fundação Casa de Jorge Amado, conferencista no Brasil e no exterior. Publicou, dentre outros, Sesmaria (Prêmio Arthur de Sales), Femina e Poesia reunida, o ensaio Leonídia: a musa infeliz do poeta Castro Alves, e obras infanto-juvenis sobre vultos como Castro Alves, Carybé e Jorge Amado. Desde 1985 ocupa a Cadeira nº 13 da ALB. Discurso de saudação à acadêmica Mãe Stella de Oxóssi pela posse na Cadeira nº 33 da Academia de Letras da Bahia, em sessão solene, no Salão Nobre da ALB, em 12 de setembro de 2013. 362 ◄◄ ARQUIABADE DOM EMANUEL D’ABLE DO AMARAL, OSB Saudação ao acadêmico Fernando da Rocha Peres C om muita honra recebemos Vossa Paternidade, Dom Emanuel d’Able do Amaral, arquiabade do Mosteiro de São Bento da Bahia de Todos-os-Santos, como membro da Academia de Letras da Bahia. Insisto e repito que me sinto honrado, pois neste momento, com as lembranças e a palavra escrita, reporto-me ao claustro do mosteiro, nos idos de 1945, com meu pai, Octávio Peres, que aos sábados cumpria sua conversa confessional. E, ainda mais, quando nos veraneios da infância, em Ponta do Humaitá, aos domingos, assistia à missa na Igreja de Nossa Senhora de MontSerrat, a moreneta, ministrada por monges beneditinos alemães. E, desde sempre, quando criança, em nossa casa de Nazaré, conheci Dom Clemente Maria da Silva Nigra e, como adulto, fui seu colega docente na Universidade Federal da Bahia (UFBA), com quem muito aprendi sobre arte baiana, no Museu de Arte Sacra. Em 1964, Dom Clemente, no dia 11 de dezembro, na Igreja de Nossa Senhora da Graça, também beneditina, casoume com Urania Tourinho. Ao depois, foram os monges Dom Jerônimo Cavalcante e Dom Gregório Paixão que batizaram, na Graça, o meu filho Daniel e minha neta Paula. Este retorno ao passado revela a minha amizade, respeito e admiração para com os beneditinos, e, por isso mesmo, dediquei-me à eleição do arquiabade Dom Emanuel para esta ►► 363 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Academia, reconhecedor que sou dos seus méritos religiosos e culturais e do seu devotamento para com a Ordem de São Bento. Benedetto ou Bento da Nórcia nasceu em 480 d. C., na região de Úmbria, Itália central, no dia 11 de julho. De família com nobilitação e recursos, foi enviado a Roma para estudar, no ano 500, de onde foge, inconformado com a vida mundana e decadente da cidade, e torna-se um ermitão, vivendo em uma caverna nas cercanias de Subiaco, no Lácio, quando tinha cerca de 20 anos. Solitário e meditativo, Bento da Nórcia elabora suas ideias e depois a sua Regra, e começa a atrair adeptos, dando, assim, início à criação de doze pequenas comunidades monásticas, estabelecendo-se em Monte Cassino, em 529. No mosteiro que vai sendo erigido sob sua orientação e obediência, Bento dará sentido ao monaquismo cristão do século IV de grupos eremitas dispersos e retirados no deserto egípcio em busca da purificação e “perfeição”. São Bento dá um corpo a esses anseios originários dos embates interiores, orientando-os com sua Regra para a “escola do trabalho para o Senhor, em cujo desempenho esperamos não exigir nada de muito pesado ou muito rigoroso”. O que se conhece sobre a vida de Bento está perpetuado em um texto do papa Gregório I, Diálogos de São Gregório Magno, que acentua o traço miraculoso do beneditino, que morre em Monte Cassino, em 547, de pé e apoiado por seus discípulos, recebendo a comunhão e sendo sepultado no túmulo familiar, onde também jaz sua irmã gêmea, Santa Escolástica. A Ordem Beneditina expandiu-se na Europa, chegando à Península Ibérica, em Portugal, no século XI, propagando-se a sua Regra no Concílio de Coyança, a partir de 1050, como nos ensina documentadamente Fortunado de Almeida na sua História da igreja em Portugal. Um grande número de mosteiros onde se recolhiam os fiéis em Cristo, para conviverem e fugirem das adversidades e do pecado, em busca do exemplo, adota a Regra de São Bento (Benedicti regant statuta), em Alcobaça, Lorvão, Vacariça, Tibães, Pombeiro, dentre outros. 364 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Na segunda metade do século XVI, os beneditinos portugueses passaram a ter os olhos voltados para o Brasil e a cidade do Salvador. Em 1584, aqui chegaram nove monges pioneiros, que se instalaram nas proximidades da cidade, fora do seu muro, onde estava erigida uma simples capela com a invocação de São Sebastião, o mesmo lugar e sítio no qual permanecem há quatrocentos e dezesseis anos até os dias de hoje. O Dietário (1582-1815) do Mosteiro de São Bento da Bahia, livro recente publicado pela Ordem de São Bento e a Editora da UFBA, de grande interesse historiográfico e linguístico, nos ensina e aponta o nome dos nove monges que atravessaram o oceano para que “nesta quarta parte do mundo se entregassem nos exercícios de virtude e piedade, assim como estavam fazendo em toda a Europa na sucessão de tantos séculos, com grande utilidade da Igreja Católica...: Fr. Antonio Ventura, o fundador nomeado, por provisão real e seus súditos; Fr. Pedro Ferraz, Fr. João Porcalho, Fr. Plácido da Esperança, Fr. Manuel de Mesquita, Fr. José, um corista subdiácono Fr. Francisco e dois donatos, Fr. João e Fr. Bento, todos dotados de prendas com que servissem a Deus e à religião, correndo o ano de 1584”. Hoje, no dia de São Germano de Paris, fundador da Abadia de Saint-Germain-Des-Prés no século VI, aqui estamos, na Academia de Letras da Bahia, para acolher um jovem abade, nascido no Rio de Janeiro, no bairro histórico de Santa Tereza, em 1957, filho de Joaquim Dias do Amaral e Catarina Lúcia d’Able do Amaral, 373 anos depois da chegada dos monges pioneiros, com uma carreira eclesiástica que se inicia como postulante no Mosteiro de São Paulo, em 1978, com profissão solene em 1984, ordenação como diácono em 1984 e sacerdote em 1985. O menino foi batizado, em 1958, com o nome do pai, Joaquim Augusto. Quando ingressa na Ordem de São Bento, assume a identidade de Emanuel. Joaquim Augusto tem uma vida normal como criança brincalhona e traquina, apesar dos rigores de sua família paterna ►► 365 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 com tradição na Marinha de Guerra brasileira. Seu pai, Joaquim Dias do Amaral, faleceu quando o garoto tinha 11 anos. Seus tios, em princípio, pensaram que o varãozinho poderia também aprender a arte da marinhagem. Porém, na pacata e respirável cidadezinha de Paulo de Frontin, no Rio, o menino “Gugu” e seu irmão Clemente Orlando vivem na rua, com outros companheiros, andando a cavalo, tomando banho de lago, nadando na piscina, colecionando gibis e figurinhas. Por estas e outras, sua mãe, ouvido e concílio familiar, resolve interná-lo em um colégio de Valença. Já na adolescência, entra no regime do semi-internato no Colégio dos Irmãos Maristas, de muito rigor, estudo e esporte, onde abre seus olhos para a leitura e a religião e torna-se um bravo ponta-direita nas peladas, aprende a fumar escondido e tem um namorico romântico e suave — coisa dos tempos idos — com a menina Mercedes, sorveteando na praça. Nos deveres e sabatinas, Joaquim Augusto entra em contato com a literatura brasileira contida na Antologia da língua portuguesa, de Segalla, com o fichamento de um livro por semana e a declamação decorada de poemas. Em seguida, lê Raquel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade, tendo aprendido a declamar o seu antológico “José”. Aos 20 anos, como já sabemos, a Ordem de São Bento recebe Joaquim e nasce Emanuel, hoje arquiabade e acadêmico. Como apontamos acima, em sete anos Dom Emanuel estava apto para o exercício do sacerdócio na sua Ordem de São Bento e segue para Roma com o objetivo de estudar teologia bíblica na Pontifícia Universidade Gregoriana, reduto jesuíta, onde se doutorou. O caminho religioso e intelectual de Dom Emanuel, em verdade, está alicerçado na sua família, com ascendência nordestina, em União dos Palmares, Alagoas, e, especialmente, com o desvelo e atenção de sua querida mãe, dona Catarina Lúcia, recentemente falecida, que teve a alegria de saber o seu filho eleito 366 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 o 79º abade do Mosteiro de São Bento da Bahia, em 22 de junho de 1994, e membro da Academia de Letras da Bahia, em 20 de novembro de 2008. O arquiabade Dom Emanuel, presidente da Congregação Beneditina do Brasil, passa a conviver conosco na Cadeira nº 37, cujo terceiro e último ocupante foi o senador Antônio Carlos Magalhães e que tem como patrono Castro Rebelo, Almáquio Diniz como fundador e Edith Mendes da Gama e Abreu como segunda titular e primeira mulher a entrar na Academia — não sem o protesto de vários confrades. A eleição de uma dignidade eclesiástica para esta Academia, em assentos de personalidades notáveis da vida religiosa, já ocorreu quando monsenhor Manuel Barbosa, o cardeal Dom Avelar Brandão Vilela e o cardeal Dom Lucas Moreira Neves aqui estiveram por muitos anos, e como permanece até hoje monsenhor Gaspar Sadoc, aos 93 anos, dando exemplo de assiduidade e interesse. Não é somente por ser um religioso e abade de um mosteiro com raízes na história do Brasil e da Bahia que Dom Emanuel d’Able do Amaral está entre nós, mas principalmente por uma expressiva vontade acadêmica que o elegeu nosso confrade, tendo em vista a vigência na vida social e cultural da cidade de Salvador, que lhe conferiu galardões e atributos que não podem ser esquecidos: 1. Continuidade da revitalização física e administrativa do mosteiro, com a participação da Organização Odebrecht e do Governo do Estado da Bahia; 2. Inauguração do novo Colégio de São Bento; 3. Restauração da Basílica Abacial de São Sebastião; 4. Abertura da Biblioteca e do Museu São Bento; 5. Recepção da Medalha Thomé de Souza, conferida pela Câmara Municipal de Salvador; ►► 367 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 6. Eleito “personalidade de destaque no meio cultural da Bahia” pelo Conselho Estadual de Cultura; 7. Grão-chanceler da Faculdade São Bento da Bahia; 8. Título de “cidadão baiano”, conferido pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia; 9. Membro da Irmandade do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Conceição da Praia; 10.Membro teólogo do comitê de ética em pesquisa do Centro de Pesquisas Gonçalo Muniz, da Fundação Oswaldo Cruz. Dom Emanuel exerceu a docência até 1994, quando foi eleito arquiabade e assumiu obrigações gerenciais e outras, que o obrigaram a viajar constantemente como visitador apostólico pelo Brasil e exterior. Mesmo assim, nosso confrade encontrou fôlego para fundar o Instituto Teológico São Bento e a revista Análise & síntese, de teologia e filosofia, já no número décimo. Sob suas gestões, a biblioteca do mosteiro vem recebendo doações de livros, haja vista o acervo de Pedro Moacir Maia, nosso saudoso confrade, assim como a edição de publicações como A administração dos bens temporais do Mosteiro de São Bento da Bahia, de Maria Hermínia Oliveira Hernandez, o Dietário (1582-1815), uma edição diplomática, trabalho de Alícia Duhá Lose e Dom Gregório Paixão (OSB) e das estudantes Anna Paula Sandes de Oliveira e Gérsica Alves Sanches, e o Sermões do frei Domingos da Transfiguração Machado — o restaurador da Congregação Beneditina Brasileira —, coordenado por Alícia Duhá Lose, todos em coedição com a Edufba. Como docente, Dom Emanuel escreveu o livro Introdução à história monástica, Edições São Bento, 2006, resultante de suas aulas de história do monaquismo, desde as suas origens até o século XIX, única em português, que veio preencher uma lacuna e é adotado nos mosteiros e em cursos de teologia. 368 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O livro, com 31 capítulos, é uma introdução erudita e bem escrita, compreendendo as primeiras formas de vida consagrada ao cristianismo, as “virgens” e os “ascetas”, o monaquismo e sua evolução histórica, sinalizando o autor, evidentemente, a importância de São Bento e sua contribuição para o contexto medieval europeu ocidental, com os mosteiros como “[...] centro de luz e vida, em meio a um mundo estático e bárbaro. Os monges difundiram a cultura e a espiritualidade antigas. O mosteiro tornou-se peça importante na sociedade e na economia”. É consabido que muitos registros da alta cultura antiga foram retransmitidos e preservados graças aos hábeis copistas medievais dos diversos mosteiros existentes na Europa Ocidental. Sem mais delongas, quero finalizar acentuando que nesta breve saudação procurei revelar o percurso de uma personalidade visivelmente atuante em nosso meio intelectual, com o reconhecimento merecido, e que passará a conviver com seus pares, acadêmicos e acadêmicas, e poderá, com certeza, contribuir também para o engrandecimento cultural e espiritual desta Academia. Seja bem-vindo, arquiabade Dom Emanuel d’Able do Amaral, e que Deus nos proteja.* Fernando da Rocha Peres é escritor, historiador e professor da Universidade Federal da Bahia. Foi um dos criadores das Jogralescas, da Revista Mapa, das Edições Macunaíma e da Iemanjá Filmes. É autor de vários livros, como o ensaio Gregório de Mattos: o Boca de Brasa, e os de poesia Febre terçã, Bula pro nobis e Horta de poesia (poemas portugueses). Desde 1988 ocupa a Cadeira nº 25 da ALB. Discurso de saudação ao acadêmico Dom Emanuel d’Able do Amaral pela posse na Cadeira nº 37 da Academia de Letras da Bahia, em sessão solene, no Salão Nobre da ALB, em 28 de maio de 2009. O discurso de posse de Dom Emanuel d’Able do Amaral foi publicado na edição nº 51 da Revista da Academia de Letras da Bahia (2013). ►► 369 AFRÂNIO COUTINHO E A BAHIA Centenário do acadêmico Consuelo Pondé de Sena C om um atraso relativamente grande para a importância e significação do homenageado, aqui estou para, modestamente, louvar a vida e a obra de um notável baiano. Refiro-me ao conterrâneo Afrânio Santos Coutinho, cujo centenário de nascimento ocorreu a 15 de março de 2011. Ensaísta, crítico literário, professor e jornalista, Afrânio era filho do engenheiro Eurico da Costa Coutinho e de dona Adalgisa Pinheiro dos Santos Coutinho. Diplomou-se em medicina em 1931, mas nunca exerceu a profissão, passando depois de graduado a trabalhar, como bibliotecário, na biblioteca da própria Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1931, transferiu-se para o Rio de Janeiro, passando a exercer o jornalismo, como anteriormente fizera em Salvador. No Rio, onde passou a maior parte de sua vida, trabalhou intensamente, tendo falecido aos 89 anos de idade, a cinco de agosto de 2000. Em 2011 recebeu da terra que o adotara as homenagens de que era merecedor. Por isso, por menos que minha fala despretensiosa possa aqui significar, fica registrada a reverência da Academia de Letras da Bahia ao ilustre escritor, ao renovador da crítica literária no país, ao professor universitário, ao doutor honoris causa da Universidade Federal da Bahia, ao ilustre membro da Academia Brasileira de Letras. Não me intimida a grandeza do consagrado patrício, muito menos as palavras certamente eruditas que poderiam ser ►► 371 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 proferidas pelos escritores desta casa. Estou nesta condição porque me dispus a fazer um depoimento afetivo. Não sendo um profissional das letras, tive o privilégio de manter um convívio amigável e amistoso com o saudoso conterrâneo. As primeiras referências acerca de Afrânio Coutinho chegaram-me ao conhecimento por intermédio de meu pai, Edístio Pondé, que com ele convivera na Faculdade de Medicina da Bahia e cujo desvio profissional, de médico para cultor da literatura, causara certa estranheza na provinciana Cidade do Salvador. Isto porque a expectativa em torno daquele que se formava em medicina era exercer a profissão nos hospitais de Salvador ou do interior do estado. Muitos anos decorridos e assisti ao concurso de Francisco Herón de Alencar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Bahia, de cuja banca examinadora fazia parte o ilustre conterrâneo, já consagrado em todo o país. Estranha curiosidade os aproximava: ambos eram médicos diplomados pela Faculdade da Bahia e ambos jamais exerceram a profissão. Deixaram a ciência de Hipócrates pelo cultivo da literatura. Ao propor-me a escrever esta oração, privilegiei fazer alguns recortes dos depoimentos de Afrânio Coutinho sobre a sua Bahia. Entretanto, achei pertinente destacar alguns textos, pouco conhecidos, sobre o ilustre conterrâneo. Infância e mocidade Assim, valho-me, inicialmente, do depoimento de Péricles Madureira de Pinho, publicado no livro Miscelânea de estudos literários (1984) e originalmente no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro (12.4.1961), para repassar fatos da infância e da mocidade de Afrânio Coutinho. Esse é um dos poucos artigos, senão o único, que narra episódios dessa fase da vida do baiano ilustre, escrita por um colega do Colégio dos Maristas desde 1920. 372 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Afrânio era mais moço do que quase todos seus colegas, magrinho, franzino, bem tratado, destacava-se no meio daquela confusa pequena multidão. Ali dominavam os alunos internos, filhos do sertão, com as agrestes rebeldias dos campos de que provinham. Grupos de irmãos como os Prados de Nova Boipeba, os Dantas de Alagoinhas, os Catunda de Faria, do Ceará, eram respeitados e temidos. Rapazes fisicamente fortes e ásperos, bons colegas, desde que não houvesse divergência com eles. Ai de nós se disputássemos uma das saborosas mangas que caíam das árvores e das quais se julgavam donos. O interessante é que os externos, meninos da cidade, íamos ao colégio de calça curta e camisa esporte, alguns com a inefável gravata borboleta. Os internos, meninos do meio rural, trajavam como pequeninos “coronéis”, imitando os adultos do seu ambiente: calça comprida, gravata e, não raro, colete. Não havia naquele menino franzino, mais moço que os colegas, qualquer vestígio ainda do homem vigoroso, do polemista excitante, do defensor entusiasmado das próprias ideias. Já aparecia como estudante caprichoso e consciente de responsabilidades, distinguido por aqueles excelentes irmãos, nossos mestres, que adivinhavam a qualidade da inteligência e do caráter com que lidavam. Afrânio fez todos os preparatórios entre 12 e 14 anos. Parecia impossível que um menino tão pequeno desse conta de tarefas difíceis mesmo para nós outros, mais velhos e desenvolvidos fisicamente. E naquele ambiente de reprovação em massa, em que de distinções não se cogitava e um “plenamente” era um galardão, Afrânio atravessara vitorioso as “trincheiras” e aos 15 anos já está na Faculdade de Medicina. Vale lembrar que, àquela altura, a Faculdade de Medicina da Bahia era o grande celeiro da inteligência e da cultura em nosso meio. Além do mais, a tradição e o respeito que a instituição despertava na juventude baiana e na de todo o Norte e Nordeste do Brasil reafirmava o seu prestígio, sendo o seu acesso uma recomendação para os jovens que aspiravam ao sucesso profissional. ►► 373 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Na Faculdade de Medicina, onde Afrânio Coutinho matriculou-se em 1926, o jovem estudante revelou interesse pelo curso, tendo integrado uma das mais destacadas turmas de quantas que por ali passaram. Foi, nos anos iniciais, um aluno exemplar, embora nos dois anos finais houvesse se desinteressado inteiramente da carreira médica. Concluído o quarto ano, sentiu-se desmotivado para exercer a profissão. Já fora seduzido pela literatura, lendo sofregamente as obras clássicas universais que lhes caíam às mãos. Não que lhe faltassem os livros das ciências, pois o pai os fornecia largamente. Economizava, contudo, as mesadas para adquirir obras literárias. Pouco a pouco foi formando as coleções de Machado de Assis e Eça de Queirós, início da grande biblioteca que ia, aos poucos, constituindo. Apesar do desinteresse pela profissão médica, foi escolhido pelos colegas orador ao paraninfo, quando pronunciou elegante discurso, revelador da sua inclinação para as letras. O curioso é que esse gosto pela literatura foi de “geração espontânea”. Tampouco frequentou Afrânio rodas literárias, e até 1932, quando veio a conhecer Eugênio Gomes — que iria ser seu maior amigo literário e a maior influência de escritor sobre sua formação intelectual —, não teve grandes contatos com outros escritores. (MADUREIRA DE PINHO, p. 427.) Passo a seguir a sublinhar trechos significativos da fala do nosso conterrâneo, que, embora tenha passado a maior parte de sua vida fora de Salvador, sempre se refere com carinho sobre a terra não esquecida. Afrânio e a Bahia Do seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras extraio trecho em que se refere, amorosamente, ao seu estado natal. 374 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Venho de longe, senhores acadêmicos, venho da Bahia, a terra dadivosa e boa que tanto bem tem feito ao Brasil. Lá formei o espírito e o caráter, lá reuni a seiva que venho gastando pelos caminhos. Como me faz falta a minha Bahia! Tenho dela uma saudade indizível. Guardo na retentiva a imagem daquela cidade super-realista, com as suas ladeirinhas grimpando pelos morros, o encanto de seus telhados amontoados, as ruas esconsas de cheiro colonial, as igrejas majestosas, os conventos montados nas encostas, a sua colina sagrada do Senhor do Bonfim, as praias de sargaço e areia branca, as restingas, os mangais e as ilhas, as suas árvores — oh! mangueiras e cajazeiras de minha terra! —, as suas frutas capitosas, as suas comidas e doces, os seus peixes e mariscos, as tradições populares e festas feéricas de arraial, a sinfonia multicolorida de seus poentes e o infinito prateado de seus luares, a música fantástica de suas noites misteriosas, a alma encantadora e mágica de sua gente, alma aristocrática acalentada ao som misterioso de seu mar a bater caprichoso à beira das verdes praias, o palácio de cristal das mães-d’água! O texto que se segue é um trecho do discurso de recepção do acadêmico Levy Carneiro ao acadêmico Afrânio Coutinho, comentário precioso sobre o que o conhecido crítico brasileiro deixava transparecer sobre seu amor à terra natal: “Na oração conceituosa e eloquente que acabais de proferir, fizestes crítica literária de alto quilate, evocastes, com emoção, as duas cidades bem amadas, falastes de vossa própria vida.” Doutor honoris causa da UFBA Mais tarde, em 26 de março de 1981, recebe das mãos do reitor Luiz Fernando Seixas de Macedo Costa o título de doutor honoris causa, no Salão Nobre da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, no Terreiro de Jesus. Do reitor mag►► 375 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 nífico escuta as seguintes palavras: “Mestre Afrânio Coutinho retorna à Bahia, depois de glorificado lá fora, para receber da Universidade Federal a láurea maior: doutor honoris causa. A sua terra natal, orgulhosa dos méritos que o consagram, agradece-lhe os triunfos que também a exaltam, estreita-o afetuosa e envaidecida, agradecendo-lhe a bênção deste título honroso. A partir desta cerimônia os triunfos serão comuns, porque à Universidade também pertencerão os aplausos a seu eminente doutor.” Trecho do discurso de saudação do professor David Salles Não direi que seja uma honra saudá-lo, senhor professor doutor Afrânio Coutinho, por ser mais o prazer — por testemunhar maior o dever de fazê-lo. Sua presença, aqui, postado em lugar de honra, que me obriga justamente a altear os olhos para vê-lo, condiz com o regozijo de todos nós em tê-lo de volta — regozijo também meu, discípulo seu de uma terceira geração de críticos literários brasileiros, que ouviram as suas lições por uma crítica centrada na obra literária. Vê-lo aí nesse lugar é como se estivéssemos a reviver a parábola do filho pródigo, reescrita, em verdade, de um modo novo e generoso, como sói acontecer a um filho da Bahia e deste centro humanista de saber universitário. Nesta hora, senhor professor, são mormente suas as recordações. O jovem Afrânio Coutinho daqui partiu cheio de riquezas, pois era, como antigamente se dizia, doutor da Bahia. Mais ainda era doutor em Bahia. Formado pela Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus, por um lado. E também, seguramente, pós-graduado em sensibilidade artística, saber adquirido com a pátina das ruas e monumentos barrocos da cidade secular, cultura adquirida com o povo, esse povo baiano pleno de sabedoria humana, da qual, aliás, e muito bem, já falou em seus romances um seu companheiro de geração, Jorge Amado, também doutor 376 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 (sabemos) e, quem sabe?, seu companheiro de andanças e aprendizado sensível, por aqueles tempos. Longe está o ano de 1942, quando o jovem Afrânio partiu para dispersar, lá fora, as riquezas que levava da casa paterna, tal como na parábola do filho pródigo. Mas disto não tenhamos censuras. A retórica apaixonada de algumas de suas polêmicas, a destreza inteligente de sua trajetória humana e intelectual, o temperamento aberto e caloroso, são marcas vitais que comprovam a dadivosa dispersão das graças que a Bahia lhe entregou, mas nunca dará aos incrédulos dessa condição mágica e no entanto tão real: a condição da baianidade. E baiano, claro está, Afrânio Coutinho sempre soube ser. No que diz respeito à crítica literária, a ação de Afrânio Coutinho equivaleu à de um desbravador, de um combatente incansável, procurando retirar a consciência crítica dos literatos do impressionismo, da superficialidade, da dependência subserviente às demais ciências. Por isso mesmo, o professor, o scholar, o homem de letras e de front jornalístico, numa palavra o aguerrido e atualizado Afrânio Coutinho foi o primeiro crítico a levantar mais veementemente, no Brasil, a bandeira de uma crítica universitária adulta, em que o estudo do texto, da retórica literária, das formas compositivas da obra, aparecessem como “o objeto capital da função crítica”, no dizer de Alceu Amoroso Lima em seu balanço sobre a crítica literária no Brasil, em palavras escritas no fim da década de 50. Acrescentava então Amoroso Lima: “Com isto deslocou-se de novo a crítica no sentido do objeto, o que marca uma tendência decidida no sentido do abandono crítico por uma prática profissional, mais cuidada, dessa atividade.” É vasto, sem dúvida, o trabalho de Afrânio Coutinho, como é avultado o número de seus livros. Numa bibliografia recente, organizada por ele próprio, são citados 28 livros, reveladores de sua trajetória intelectual. Foi nesse pequeno ensaio que Coutinho diz palavras, em meu entender, de uma formidável clarividência para ►► 377 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 a articulação dos postulados estéticos com a consciência crítica, que não devemos perder, de que somos brasileiros. Somos brasileiros por uma específica formação, por uma específica tradição, por uma inconfundível inflexão ideológica que nos faz diversos dos padrões europeus e coloniais de nossa formação. A respeito dessa diferenciação, diz Afrânio Coutinho no ensaio “Por uma crítica brasileira”: “Por que não procuramos apurar o que de brasileiro existe em nossas letras e artes? Quando começaremos a compreender o grito de José de Alencar e o de Mário de Andrade em favor de nossa originalidade, de nossa capacidade de fazer arte e literatura realmente brasileiras? E quando os nossos críticos resolverão encarar a nossa literatura pelo que ela possui de brasileira, e não de repetição de padrões estrangeiros?” Há uma linguagem brasileira que atravessa os nossos quatro séculos, desde Anchieta a Gregório de Mattos, buscando incorporação temática brasileira e propondo projetos literários de essência nacional. Essa linhagem exige valorização crítica [...]. Resta conscientizarmos essa atitude. E, sobretudo, torná-la consciência crítica. Discurso de agradecimento de Afrânio Coutinho A vida, que é mãe e madrasta a um tempo, como diria Machado de Assis, cumulou-me de afagos, como a querer compensar-me pela ferida, ainda sangrando, que abriu em meu coração. São mil benesses que me põem atônito. Primeira de todas, fez-me nascer nesta terra, e de gente amorável. E não é em vão que se vem à vida neste recanto paradisíaco, nesta cidade altamente civilizada e de fecundo poder civilizatório. Em seguida, foi uma série de prêmios: capacidade, estímulo, tenacidade, gosto do estudo. Proporcionou-me grandes amigos, uns que me deram uns empurrões para a caminhada, outros que me embeberam do doce leite da ternura 378 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 humana, pois a amizade e o amor são os maiores prêmios que podemos ter. Deu-me uma vocação e uma carreira, colocando-me na boa trilha, com excelentes oportunidades. E como me ensinaram que a oportunidade só tem um fio de cabelo, aprendi também a agarrar-me a ele com dobrada fúria. Compreensível, agindo na qualidade de mãe, ela foi assim acumulando em mim, uma após outras, dádivas e vitórias. Concedeu-me duas cátedras de literatura — no Colégio Pedro II e na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Premiou minha atuação nestes postos com a nobreza da emerência nessas duas instituições. Deume alento para criar aquela Faculdade de Letras. Antes já me havia integrado no corpo docente da Faculdade de Filosofia da nossa Bahia. Elevou-me à mais alta honraria a que pode aspirar um puro homem de letras — a Academia Brasileira. Por acréscimo me propiciou a congênere instituição de minha terra. Recentemente, ainda me proporcionou ser membro do mais elevado tribunal do ensino entre nós, o Conselho Federal de Educação. Fez-me viajar pelo mundo, sem que jamais suspeitasse essa possibilidade, baldo de recursos como somos os trabalhadores intelectuais. Forneceu-me um jardinzinho para cultivar, e nele vi germinarem e crescerem duas plantas raras e preciosas ao aconchego de um grande amor. Um dia saí desta amada gleba e, ao meditar de mim para comigo, não consigo vislumbrar as razões que levam a migrar. Força do destino? Ânsia intelectual? Ímpeto para luta em arenas mais amplas? Ninguém saberá jamais decifrar o enigma. E eu saí. Não me faltaram desejos de voltar. Mas não se volta uma vez partido. We can´t go home again, disse o romancista americano. Fica-me o travo de haver partido. Um dia juntei os trapos e pus-me a caminho. Fui para longes terras, chamado por aquele grande brasileiro e grande baiano — Otávio Mangabeira —, a quem rendo neste instante o preito de admiração e saudade. ►► 379 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Estudei, estudei, estudei. Ganhei experiência, e nada melhor do que o estrangeiro para fazer-nos perder a ingenuidade e a timidez. A personalidade se consolida. De regresso, em doze anos era admitido na Academia Brasileira de Letras. Foi intensa a atividade intelectual. Todavia, aqui a puridade vos digo, meus caros conterrâneos e amigos. Tudo que consegui fora, todos os postos e prêmios, não foram obtidos gratuitamente. As cátedras, a Academia, eu as conquistei porque quis. Não me foram dadas. Eu as arranquei à força. Com a seiva forte de minha baianidade, que daqui levei. Por isso dou valia a este prêmio que me concedeis agora. É que ele partiu de um movimento exclusivo do coração. É uma dádiva de amor, de amizade, de fraternidade, um ato espontâneo de baianidade. São os baianos os meus companheiros e colegas que visam premiar o baiano, que se orgulha de viver baianamente. E esse gesto puro é feito com sutileza de cálida amizade pela voz desta vitoriosa Universidade Federal da Bahia, na qual comecei minha carreira no magistério superior. E com ainda maior sutil significação da parte do reitor Luís Fernando Macedo Costa, ao realizar esta festa neste augusto salão, onde assisti a alguns dos mais belos prélios do espírito, e de onde saí com o meu anel de esmeralda. Que posso dizer-vos para testemunhar-vos minha gratidão? De logo, afiançar-vos que não esqueço a Bahia. Ela vive no meu coração, no meu cérebro, nas minhas veias, no meu sangue, na minha memória. A Bahia é mágica. Conheço esta vetusta e sempre nova, esta espetacular Cidade do Salvador, como a palma da minha mão. Amo-a de todo coração. De longe, revejo em espírito as suas belezas naturais, a sua esplêndida paisagem, os seus recantos, os seus crepúsculos, as suas árvores, as suas calçadas, a sua viração gostosa, as suas praças, ah! o Campo Grande, onde nasci e que atravessei anos a fio em busca do Colégio dos Maristas. Como sinto os perfumes e ouço os 380 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 pregões antigos de nossa terra tão rica de espiritualidade. A tudo aqui minha alma é sensível. Só com esta declaração de amor filial é que posso traduzir a emoção de estar entre vós recebendo das mãos do magnífico reitor Luís Fernando Macedo Costa e do egrégio Conselho Universitário a enobrecedora comenda de doutor honoris causa que o Instituto de Letras decidiu prender ao meu peito. Em Luís Fernando Macedo Costa, como um símbolo de todos vós, eu centralizo minha gratidão. E a David Sales, que interpretou o sentimento amigo, não menor agradecimento. Do fundo de minha baianidade comovida, eu vos agradeço. Trecho do discurso de Afrânio Coutinho ao receber Eduardo Portella na Academia Brasileira de Letras em 18 de agosto de 1981 Sr. Eduardo Portella, Nascestes na Bahia, naquela Salvador barroca, cidade encantada e misteriosa, altamente civilizada e civilizadora, da qual recebestes o gosto da conversa amável e culta, da convivência gentil, das boas maneiras, da sociabilidade, do convívio familiar, da arte de bem receber e da boa mesa. Dela deriva a vossa tendência à composição sem capitulação. É que, civilização humanística a da Bahia, procura resolver os contrastes políticos e sociais pela conciliação e pelo diálogo, pela miscigenação e hibridismo, detestando os sectarismos e as posições extremas. Estou a ouvir a música celestial de seus milhares de campanários dobrando as ave-marias! Ainda escuto o batuque de seus atabaques, subindo do fundo dos vales e enchendo as suas noites de sonho e mistério. Bahia mágica! ►► 381 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O baiano Afrânio Coutinho Assim intitulou seu artigo o escritor Jorge Amado, em texto publicado no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, a 19 de março de 1961, quando Afrânio completou 50 anos. Conta-se de uma profunda e acirrada discussão entre marxistas sobre o problema seguinte: pode-se já considerar o Brasil uma “nação” dentro da conceituação marxista, ou ainda não se completaram por inteiro os elementos caracterizadores desse fenômeno? Divididos estavam os contendores, e exaltados. Num canto silencioso, sem participar, um intelectual de certa nomeada. Solicitaram-lhe os polemistas a opinião, fosse ele o juiz: era ou não era o Brasil uma nação? Com voz mansa, o interrogado, culto baiano cujo nome já se fazia conhecido no país, respondeu: — O Brasil eu não sei não... Agora, a Bahia, ah! A Bahia eu posso afirmar, sem sombra de dúvida, é uma nação... Tão de novo, homem que virou pelo avesso os conceitos da crítica e da história literária do Brasil, tão polêmico e obstinado, que, em certos momentos, até dá a impressão de ser paulista ou pernambucano. Mas só por um rápido instante, pois logo depois é o baiano mais baiano, escancarando-se na arte (tão baiana) de admirar, de estimar, de louvar. Não fora ele baiano e sua obra de renovador da crítica não poderia ganhar a amplitude a que chegou, não se tornaria obra coletiva. Essa capacidade do coletivo é extremamente baiana. O nosso samba é o samba de roda, dança coletiva (enquanto é individual o samba carioca e individual o frevo pernambucano, mesmo quando dançado por milhares de pessoas), nossa luta capoeira, também coletiva, sua A literatura no Brasil é obra de vários e importantes homens de letras. Mas é também a sua obra resultado de sua obstinada vontade. O clima de polêmica que o cerca, a esse baiano Afrânio Coutinho não chega jamais, no entanto, ao desconhecimento da importância real de seu trabalho e de sua influência. 382 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Como é minha intenção dar a palavra ao homenageado de hoje, reproduzo aqui, ipsis literis, o que escreveu sob o título de Minha Bahia, publicado no livro Afrânio Coutinho, da Fundação Casa de Jorge Amado, em 2003, após o falecimento do ilustre imortal. Minha Bahia A data é propícia à recordação. Ela não me sai da alma. Tudo me faz lembrá-la com emoção, com saudade infinda, minha Bahia amada, a cidade mágica encantada. Então dir-se-á, por que você saiu, por que foi embora? Sim, parti um dia. Mas foi para melhor recordar. Para sentir mais. Para enxergar melhor. Dentro, no dia a dia, as coisas esmaecem, não se dá atenção, importância, acostuma-se. Longe, valores, belezas, costumes, crescem, ficam vivos na memória, avultam, tornam-se carne da carne. Passam a viver a toda hora, nos vários lugares, em toda a parte. A gente vê melhor. Não me saem da memória as ruas, as casas, os casarões seculares, as ladeiras, esta esplêndida baía, os seus esplendorosos crepúsculos, com o Sol morrendo aceso por cima da Ilha de Itaparica. Até as pedras das ruas estão presentes, as pedras do caminho para os Maristas, pelo Campo Grande e Canela. Até os tiquins que caíam das árvores no Canela e que serviam para o jogo de gude nos recreios. Até as figuras da rua, como o velho Dr. Raiz, que um dia quase me acertou uma pedrada dirigida contra um moleque provocador. E a Baixa do Canela, caminho alternativo de volta para casa. Até os pregões de rua, como o da preta que percorria a cidade com uma tigela na cabeça cheia de carnes frescas a mercar “Figuê!”, ou o vendedor gritando “Geleia de araçá!”. Ou a do acarajé! Minha Bahia de meus amigos de infância, o querido Jones Seabra, o mais antigo, e os Madureiras, o Tude. E, depois, os colegas da faculdade, o Catão, o José Dias, o Galeno, ►► 383 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 o Prisco, o Novis, José Silveira, Adriano Pondé, Claudelino Sepúlveda, e as caminhadas pela Rua do Colégio, ao tempo em que estava de pé a velha Sé, antes da criminosa derrubada, a que assistimos chorando. E os longos papos na Praça do Palácio, com o saudoso e grande Eugênio Gomes, papos literários infinitos, quando ele me despertou para a literatura e crítica inglesas. E o colégio da grande Anfrísia Santiago, que me iniciou no magistério. Antes, porém, já me havia familiarizado com a língua francesa, a ponto de poder dominar os manuais de medicina. Que curso secundário nós todos recebíamos! A Bahia de meu pai, que tanto lhe serviu em obras de engenharia e arquitetura, como a antiga Biblioteca Pública e a Secretaria de Educação na Vitória, obras públicas e particulares, ruas e avenidas, tudo trabalhado com amor e dedicação, sem merecer o final sofrido e injusto, pelos homens maus, que quase o levaram ao desespero, tal como testemunhei em nossa casa do Farol da Barra, cena que ainda me amargura. Em compensação, a minha Bahia, a minha Barra, me presentearam generosamente com a felicidade que encontrei no 541 do Porto da Barra, a dádiva do amor fecundo e angelical, numa família amorável. Minha Bahia! É mentira. Não parti, lá estou para sempre, respirando a maresia de suas lindas praias, absorvendo a luz maravilhosa do seu céu, luz especialmente criada para os pintores, olhando de cima, com olhares perdidos, o fundo de sua baía, subindo as suas ladeiras calçadas de cabeça de negro, percorrendo as suas igrejas mais lindas do mundo; esta Bahia do Senhor do Bonfim na colina altaneira a proteger-nos; esta Bahia barroca, da arte barroca mais fantástica, sem igual, verdadeiro sonho; esta Bahia mulata, de alma cheia da mais bela música mestiça, de um ritmo único, que lhe deu a acoplagem com a raça trazida nos navios negreiros; esta Bahia de meus antepassados senhores de engenho; esta Bahia do Campo Grande magnífico, onde nasci, na casa do meu avô 384 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Romualdo, da Livraria Catilina; esta Bahia da convivência amável; nela adquiri o hábito de estudar 12, 14 horas por dia, e a regra de não perder tempo; esta Bahia de cujo humanismo recebi minha norma de independência de espírito: intelectual, política e ideológica; foi ela que me deu a inspiração e o élan para decidir de mim para comigo, naquela manhã na praia, sozinho, que iria fazer alguma coisa pela literatura brasileira; esta Bahia de suave lirismo interior, meigo, traduzido pela palavra de poetas; esta Bahia de nosso Castro Alves, o cantor magnífico de nossa gente, de nossa alma; esta Bahia mágica, lânguida, gostosa, dengosa, tranquila, sem pressa, porque já chegou. Chegou a um tipo de civilização e cultura própria, peculiar, que não tem que mudar. Esta Bahia, que todos, seus filhos, amamos com Deus no coração. A três amigos devo indicações preciosas, sem as quais não poderia escrever este texto. Zilma Parente de Barros indicou-me a publicação da UFBA na qual estão as palavras do reitor Macedo Costa, o discurso de saudação feito pelo professor David Sales e o agradecimento do homenageado por ocasião da outorga do título de doutor honoris causa da UFBA, publicação só obtida com sacrifício na Biblioteca Frederico Edelweiss, depois de paciente busca feita pela bibliotecária Zelinda Lopes. O amigo acadêmico Edivaldo Boaventura emprestou-me Miscelânea de estudos literários, o livro do qual extraí o depoimento de Péricles Madureira de Pinho e o texto de Dr. Eduardo Coutinho “Afrânio Coutinho: um Quixote das letras no Brasil”. Por último, João Eurico Matta, que, com sua conhecida generosidade, cedeu-me, esta semana, Afrânio Coutinho, publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado, 2003, que li com imensa satisfação, não apenas pelos artigos que nele se encontram, mas pelo texto escrito pelo próprio João Eurico, “Trajetória intelectual de Afrânio Coutinho”, e o da acadêmica Myriam Fraga, dois magistrais trabalhos sobre o saudoso conterrâneo. ►► 385 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Meu trabalho consistiu, apenas, em reunir estudos primorosos da lavra de consagrados escritores e do próprio homenageado. Minha intenção centrou-se, principalmente, em permitir que se conheça a “baianidade” de Afrânio, a fim de que seus conterrâneos saibam da sua imensa ternura por esta terra, que é de todos nós, pela qual devemos sempre nutrir o mais desvelado orgulho.* REFERÊNCIAS COUTINHO, Graça et al. Afrânio Coutinho. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2003. (Casa de Palavras. Série Bahianos). LIMA, Alceu Amoroso et al. Miscelânea de estudos literários. Homenagem a Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Pallas, 1984. Consuelo Pondé de Sena é historiadora e ensaísta, especialista em língua tupi e etnologia geral e do Brasil e mestre em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia. É presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e sócia correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História. Desde 2002 ocupa a Cadeira nº 28 da ALB. Discurso proferido em sessão ordinária da Academia de Letras da Bahia, na Sala de Reuniões, em 27 de setembro de 2012. 386 ◄◄ ANTÔNIO LOUREIRO DE SOUZA Centenário do acadêmico Edivaldo M. Boaventura O antonino dia de junho de 2013, a Academia de Letras da Bahia consagrou-o inteiramente à memória do confrade Antônio Loureiro de Souza, comemorando juntamente com a família os seus cem anos. A convivência na Academia e na Universidade Federal da Bahia possibilitou-me não somente conhecê-lo, como também admirar a dedicação a Cachoeira e o seu contributo à crônica literária, à história e ao ensino do jornalismo. Cachoeira a Salvador, passando por Castro Alves Antônio Loureiro de Souza nasceu em 13 de junho de 1913 na cidade “da Cachoeira”, como dizem os naturais daquela histórica cidade. A contração da preposição com o artigo dá mais força patronímica, telúrica, psicológica e verbal, semelhante à expressão “do Recife”. “Sou da Cachoeira” é uma relação possessiva, diria mesmo genitiva, gera, engendra, faz nascer, marca a origem, o nascimento. O professor Sérgio Mattos (2013) complementa: “Loureiro era um cachoeirano típico, que tinha orgulho de suas origens, que não perdia oportunidade para falar de sua terra natal.” Pois bem, por três vezes Antônio Loureiro de Souza foi homenageado, no dia 25 de junho, pela colenda Câmara Municipal da sua cidade, informa o advogado e jornalista Romário Costa Gomes. ►► 387 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 É uma alta distinção reservada aos seus filhos ilustres. São as filigranas afetivas das interioridades. Muito cedo manifestou a inclinação para o jornal. Ainda na infância, foi com a família morar na cidade de Castro Alves, depois se mudou para Salvador, onde estudou no Ginásio Carneiro Ribeiro. Retornou a Castro Alves como gerente do Banco de Administração e fundou o semanário O Tempo, noticioso, político e literário. Mais tarde, volvendo à sua terra, dirigiu O Social. Depois dessas incursões jornalísticas, que duraram seis anos, aceitou o desafio de enfrentar a imprensa na capital. Em 1939, Jorge Calmon publicou o seu primeiro artigo em A Tarde. Passou a colaborar com O Imparcial e com o Jornal da Ala, dirigido pelo prestigiadíssimo Carlos Chiacchio, um dos nossos. Trabalhou, então, no Diário da Bahia como redator. Até que alcançou A Tarde, ainda no tempo de Ernesto Simões Filho. Primeiramente serviu como subsecretário e, depois, como redator-secretário. Por vários anos permaneceu na redação sem, todavia, deixar a colaboração assinada, mantendo uma seção de crítica literária, intitulada “Autores e livros”. Uma parte desses ensaios e artigos formou o livro Perfis literários (SOUZA, 1977), publicação da Gráfica Universitária da Universidade Federal da Bahia. O secretário da redação de A Tarde manifestou sua inclinação para as letras, concomitantemente com o exercício do jornalismo. Muito jovem, perpetrou o soneto ainda em sua cidade natal e se decidiu pelo jornal como um meio profissional e literário. Ao entrar para esta companhia, confessou que a sua vocação foi ser jornalista: “Na imprensa do interior e na desta capital, trabalhei os melhores anos de minha vida. Sem medo, sem receio, sem curvar-me jamais, digo-o com desvanecido orgulho — identificando-me com o povo a quem servia através do jornal onde militava.” 388 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O pioneiro curso de jornalismo Entretanto, uma inovação absolutamente pioneira alterou a sua vida e de outros jornalistas. O profissional formado longamente em serviço, na prática cotidiana da redação, como era a aprendizagem na época, ingressou no primeiro curso superior de jornalismo, instituído pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFBA em 1950. A gestão inovadora do reitor Edgard Santos, que criara os cursos na área das artes — música, teatro e dança — e novos cursos em geologia e administração, atingiu também a formação universitária em jornalismo. Assim, começou pelo jornalismo o ensino da comunicação na UFBA. O curso de jornalismo foi pioneiro na Bahia e no Nordeste, comprovadamente iniciado na Universidade Federal da Bahia. Sérgio Mattos (2009, p. 295) comprova documentalmente com a aprovação do regimento da Faculdade de Filosofia da UFBA, pela sessão do Conselho Universitário de 28 de abril de 1949, nele inserido o curso de jornalismo, instalado no ano de 1950, com afluência de candidatos. Os primeiros bacharéis colaram grau em 1952, em número de 64, dos quase 120 ingressos. Segundo Germano Machado, que foi indicado para fazer o curso pelo jornal A Semana Católica, contava com mais de cem alunos. O curso foi instituído pelo então ministro da educação e saúde, Clemente Mariani, fundador dos cursos de jornalismo no Brasil. Em reconhecimento, foi o paraninfo (CUNHA, 1989). Para Germano Machado (1999, p. 255), o curso foi uma “invasão de bárbaros” na antiga Faculdade de Filosofia, criada e dirigida por Isaías Alves. Até então a Faculdade de Filosofia era predominantemente feminina, os homens pesavam pouco. Com a instalação do curso de jornalismo, começou a guerra fria de direita e esquerda, luta pelo diretório acadêmico e política estudantil. O professor Jorge Calmon, catedrático de história das Américas, ministrou técnica do jornal e recebeu a homenagem especial. Acreditou na criação, instalação e diplomação do curso, ►► 389 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 defendeu-o, inspirando-se em Rui Barbosa, pela liberdade de imprensa. Enfim, Mário Figueiredo Barbosa (2009), o orador oficial da turma, eleito por unanimidade, destaca a participação de Jorge Calmon nesse curso pioneiro de 1950-1952. Mas o pioneirismo do ensino do jornalismo, do qual participou Antônio Loureiro de Souza como aluno, não teve continuidade imediata. Anos depois, em 1962, consta que o reitor Albérico Fraga convidou Jorge Calmon, professor e jornalista profissional com anos de serviço prestado em A Tarde, para organizar o bacharelado em jornalismo, conforme Mônica Celestino (2000, p. 4). Conjecturo que, dentre os professores selecionados por Jorge Calmon, estava Antônio Loureiro de Souza. Para a oficialização desse curso pelo Ministério da Educação, houve problemas: considere-se que o Departamento de Administração e Serviço Público (DASP) enquadrou os seus docentes como professores secundários, com veemente protesto do jornalista e professor Zitelmann de Oliva. Com a reestruturação da UFBA, o curso de jornalismo não mais ficou na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Jornalismo e biblioteconomia, pela afinidade comunicativa, constituíram a Escola de Biblioteconomia e Comunicação, em 1968. Nela Antônio Loureiro ensinou história da imprensa, história do livro e história da comunicação, foi vice-diretor e diretor de 1976 a 1979 (Cinquentenário, 1992, p. 39). A propósito, colhi o depoimento do professor Sérgio Mattos (2013), jornalista diplomado, mestre e doutor em comunicação, aluno e depois colega de departamento de Antônio Loureiro: Como professor, sempre disponibilizava o acesso a sua rica biblioteca a seus alunos, principalmente aqueles que ele identificava possuir algum potencial ou que eram ligados a ele por estarem interessados em leituras que também lhe despertavam o mesmo interesse. Em suas aulas de história da imprensa, dava o seu show particular de co- 390 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 nhecimento, gesticulando para enfatizar ainda mais suas palavras, fazendo com que seus alunos prestassem atenção ao que dizia. Seu método de ensino lhe era próprio, quando na área de conhecimento que dominava. Era uma verdadeira biblioteca ambulante, respondendo de pronto a todo e qualquer questionamento. Como professor de história geral e de história da imprensa, membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, deixou contribuições valiosas para estudiosos da história da imprensa da Bahia, pois seus artigos são hoje verdadeiros roteiros para pesquisas a serem desenvolvidas. Deixou o caminho das pedras para que outros se aventurem no levantamento dos dados para escrever a história da imprensa da Bahia. A partir de 1985 até 1987, houve a separação da Escola de Biblioteconomia e Comunicação. A comunicação constituiu a Faculdade de Comunicação, enquanto biblioteconomia e arquivologia formaram o Instituto da Ciência da Informação da UFBA. O escritor, a crítica literária em jornal e a história Ao ingressar nesta companhia, Antônio Loureiro se autodefiniu como escritor: “Dediquei-me um pouco à história, um pouco à síntese biográfica, um pouco à crítica literária. Contista bissexto, poeta na juventude, continuo perlustrando o áspero caminho, cheio, no entanto, de muito encantamento, que suaviza os dissabores, porque é uma atividade que vem do sonho, criando beleza.” (SOUZA, 1973-1974, p. 68.) Observando a sua atividade de jornalista, percebe-se que é claramente concomitante com a literária. Comecemos pela história, nas suas duas variantes: a da Cachoeira e a sua contribuição para a história da imprensa baiana, em seguida a contribuição literária. ►► 391 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 História da Cachoeira e da imprensa baiana O grande interesse era a história da Cachoeira. Exercitouse em variados textos. Como livro, publicou Notícia histórica da Cachoeira (SOUZA, 1977), que saiu na coleção Estudos Baianos, da Universidade Federal da Bahia. Ocupou-se das igrejas, minas de cobre do Iguape, Belém, relacionamento com a independência e pequenas biografias de cachoeiranos famosos, que não são poucos. A vila de Belém ocupa um destacado lugar. Na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), do qual era sócio, buscou as origens, o padroeiro, o seminário fundado pelo padre jesuíta Alexandre de Gusmão, anexou planta do prédio, tratou das experiências do padre Bartolomeu de Gusmão, o Padre Voador (SOUZA, 1975, p. 63-77). Assinalou, anos depois, o tricentenário da igreja de Belém da Cachoeira (SOUZA, 1990, p. 57-68). Há outros registros na Revista do IGHB (SOUZA, 1973, 1978 e 1991). Quanto à investigação histórica da imprensa, cada vez mais se valoriza o seu contributo. Luís Guilherme Pontes Tavares, cultor dessa matéria entre nós, tem chamado a atenção para os estudos de Loureiro, em especial “Apontamentos para a história da imprensa na Bahia”, que começa afirmando: “A partir de 1911, até a época atual, nada existe sobre a história da imprensa baiana, senão artigos esparsos, enfocando alguns aspectos isolados” (SOUZA, 1972, p. 161-174). Está publicado na revista Universitas, números 12-13. O levantamento a partir de 1911 até a data da publicação é exaustivo, relacionando jornais existentes e extintos e os principais eventos, como a Revolução de 1930. A importância do contributo de Loureiro se justifica por cobrir um tempo, de 1911 a 1970, que não se encontra inventariado. O ensino da história da imprensa deve ter-lhe estimulado a pesquisar a imprensa escrita. Loureiro é, pois, um pioneiro da história da imprensa baiana. É bem de ver que a história da imprensa vem sendo trabalhada por Cibele de Ipanema, seguindo as sendas de seu marido, 392 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Marcelo de Ipanema, e outros no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Do seu lado, o Museu Nacional da Imprensa, Jornais e Artes Gráficas, sediado na cidade do Porto, dirigido pelo professor Luís Humberto Marcos, tem linha de pesquisas e publicações sobre a história da mídia impressa. A síntese biográfica e a crítica literária em jornal A síntese biográfica tem destaque na obra de Antônio Loureiro de Souza com o livro que recebeu o prêmio Carlos de Laert, em 1950, da Academia Brasileira de Letras, Baianos ilustres 1564-1925. Vale destacar a escolha das 100 e depois das 150 personalidades. Livro para consultas imediatas. Como sócio do Instituto Genealógico da Bahia, do IGHB e da nossa Academia, há mais perfis nas suas revistas: Severino Vieira, Visconde do Rio Vermelho, Frederico de Castro Rebelo, Humberto de Campos, Augusto dos Anjos (SOUZA, 1950 e 1972). Antônio Loureiro defendeu a crítica literária no jornal. Na Bahia, foi expoente desse tipo de abordagem Carlos Chiacchio. Em A Tarde, manteve a atividade de redação concomitantemente com a seção “Autores e livros”. Naquela época era comum e aceita. Era o tempo da crítica literária em jornal, hoje praticamente desaparecida. O seu livro Perfis literários (SOUZA, 1977) cobre um largo período do século XX. Antônio Loureiro (1950 e 1988) fez a reunião dos poemas de Pedro Barros em dois livros. Impressionado com esse poeta de Castro Alves desde a infância, resgatou o que dele encontrou e o editou. Com o poeta amigo Nathan Coutinho, fez o mesmo, produziu uma coletânea de sua poesia (SOUZA, 1978). Ao saudar Ivan Americano da Costa e Clóvis Lima, colocou bastantes poemas (SOUZA, 1980 e 1981). A Revista da Academia se enriqueceu com suas contribuições. Por fim, tem estudo sobre Gregório de Mattos (1950). ►► 393 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Como cidadão prestante, Antônio Loureiro de Souza compôs o Conselho Estadual de Cultura, a Associação Baiana de Imprensa, o Sindicato dos Jornalistas da Bahia, foi correspondente do Instituto Histórico de São Paulo, membro da Academia de Letras e Artes Mater Salvatoris e da Associação Brasileira de Escritores. Além da participação colegiada, dirigiu o Arquivo Histórico Municipal de Salvador, o Departamento Municipal de Turismo, a Superintendência da Difusão Cultural da Bahia e a Federação das Indústrias do Estado da Bahia. Para concluir, o ingresso de Antônio Loureiro de Souza na Academia. A consagração do jornalista escritor O jornalista bem sucedido, com obras publicadas, e o professor experiente aproximaram-se da Academia. Possuía as condições tacitamente aceitas para postular o sodalício: personalidade de líder e aceita pela comunidade, bom currículo, com passagens pelos órgãos de cultura, e publicações. Começou a cumprir o ritual das visitas formais aos acadêmicos (a mudança do estatuto terminou com essa prática tão usual na vida acadêmica). Dessa maneira, recebemos em nossa casa Antônio Loureiro de Souza, postulando a sucessão de Jayme Junqueira Aires, professor de direito, advogado e jurista. Trouxe-nos o seu bem premiado livro Baianos ilustres. A sua candidatura teve a adesão do grande eleitor, Jorge Calmon, de Edith Mendes da Gama e Abreu, do presidente, monsenhor Manoel de Aquino Barbosa, e o apoio firme do amigo Jayme de Sá Menezes. Obteve uma expressiva votação. Antônio Loureiro de Souza nasceu para a Academia em 28 de novembro de 1973, quando foi saudado por Jayme de Sá Menezes. Tomou posse na sede deste grêmio no Terreiro de Jesus, reformada na presidência de José Calasans com a ajuda financeira 394 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 e sergipana de Mamede Paes Mendonça. Loureiro de Souza fora eleito naquele mesmo ano e mês, em oito de novembro, sucedendo a Jayme Junqueira Aires. Com ele havia concorrido em 1953, portanto vinte anos depois o sucederia. Antes, em 1965, disputara à sucessão do doutor Afonso de Castro Rebelo Filho, mas na Cadeira do poeta Péthion de Villar, de número 13. Na correspondência para suceder a Castro Rebelo, encontrei anexo o curriculum vitae que arrola as suas atividades até aquela época. De 1973 a 1989, a Cadeira de número 27 pertenceu plenamente a Antônio Loureiro de Souza. É patrocinada pelo médico Francisco Rodrigues Silva, fundada por Frederico de Castro Rebelo, da ilustre dinastia de intelectuais baianos, médicos, juristas e poetas, e ilustrada por Antônio Viana. Loureiro de Souza teve uma escolha consagradora, com 33 votos, praticamente a totalidade dos acadêmicos votantes. A sua eleição confirmou antigo desejo gregário, em plena maturidade intelectual dos 60 anos. Com presença assídua, exerceu com eficiência a secretaria deste sodalício, como atesta a correspondência oficial. Recepcionou os poetas Ivan Americano da Costa e Clóvis Lima, componentes daquele grupo de poetas e intelectuais amigos: Jayme de Sá Menezes, Ivan Americano da Costa, Clóvis Lima, Fernando Diniz, Mário Cabral, Humberto Lírio e Nathan Coutinho, político de sucesso, deputado estadual, presidente da Assembleia Legislativa da Bahia, pai da escritora Sônia Coutinho e do professor Nelson Coutinho, recentemente falecido. Grupo identificado pelo presidente Aramis Ribeiro Costa. Antônio Loureiro de Souza deixou a lembrança de sua presença assídua e de sua fala expressiva e vibrante. Recordemos a sua Cachoeira, que revive hoje com a presença colorida e movimentada de universitários, e nos lembremos das coletâneas de poetas esquecidos. Uma de suas principais contribuições foi ter aberto veredas para o estudo da história da imprensa baiana. O nosso homenageado partiu em 29 de abril de 1989. ►► 395 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 A vida profissional de Antônio Loureiro de Souza demonstra a lenta passagem da aprendizagem do jornalismo em serviço para a formação em curso regular universitário de jornalismo. Em 26 de abril de 1990, o escritor James Amado recolheu a sucessão do confrade Antônio Loureiro de Souza. E em 13 de junho de 2013 arredondamos com as nossas recordações o seu primeiro centenário. REFERÊNCIAS BARBOSA, Mário F. Jorge Calmon e o curso de jornalismo. In: BOAVENTURA, Edivaldo M. (Org.). Jorge Calmon o jornalista. Salvador: Quarteto; IGHB, 2009, p. 38-40. CASTRO, Renato B. de. Breviário da Academia de Letras da Bahia: 19171994. 2. ed. Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 1994. CELESTINO, Mônica. Notas sobre a formação superior em jornalismo na Bahia: do curso pioneiro à explosão da oferta nos anos 2000. XII Encontro Nacional de Professores de Jornalismo. Belo Horizonte: 2009. (Anais... Brasília: Fórum Nacional de Professores de Jornalismo, v. 1, 2009. In: www.fnpj.org.br/soac/ocs/viewabstract.php?id=486&cf=18). CUNHA, João F. da. Lembrança de Antônio Loureiro. A Tarde, Salvador, 4 maio 1989. MACHADO, Germano. Invasão de bárbaros. In: BOAVENTURA, Edivaldo M. (Org.). UFBA: trajetória de uma universidade 1946-1996. Salvador: EGBA, 1999, p. 255-257. MATTOS, Sérgio. O contexto midiático. Salvador: IGHB, 2009. SOUZA, Antônio Loureiro de. A poesia emocional de Pedro Barros. Castro Alves (BA): Prefeitura Municipal de Castro Alves; Academia de Letras da Bahia, 1988. __________. Perfis literários: ensaios. Salvador: Gráfica Universitária, 1977. __________. Gregório de Matos e outros ensaios. Salvador: Livraria Progresso Editora, [1950?]. (Cadernos da UBE). __________. A poesia de Nathan Coutinho. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1978. 396 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 __________. A poesia de Clovis Lima. Revista da Academia de Letras da Bahia, Salvador, v. 28, p. 77-83, 1980. (Discurso de recepção). __________. A poesia de Ivan Americano da Costa. Revista da Academia de Letras da Bahia, Salvador, v. 29, p. 85-96, 1981. (Discurso de recepção). __________. Apontamentos para a história da imprensa na Bahia. Universitas: Revista de Cultura da UFBA, Salvador, v. 12-13, p. 161-174, 1972. __________. Baianos ilustres: 1564-1925. 2. ed. Salvador: Beneditina, 1973. (Edição comemorativa do sesquicentenário do Dois de Julho). __________. Belém da Cachoeira. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Salvador, v. 85, p. 63-77, 1975. __________. Discurso de posse. Revista da Academia de Letras da Bahia, Salvador, v. 23, p. 58-79, 1973/1974. __________. Notícia histórica da Cachoeira. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1972. (Coleção Estudos Baianos, n. 5). __________. Pedro Barros: esquecido poeta baiano. Salvador [s.n]: 1950. __________. Severino Vieira. Revista do Instituto Genealógico da Bahia. Salvador, v. 5, p. 129-130, 1950. __________. Tricentenário da igreja de Belém da Cachoeira (16861986). Revista da Academia de Letras da Bahia, Salvador, v. 36, p. 57-68, 1990. __________.Visconde do Rio Vermelho: os nobres do Rio Vermelho. Revista do Instituto Genealógico da Bahia, Salvador, v. 18, p. 221-227, 1972. UNIVERSIDADE FEDERAL BAHIA. Escola de Biblioteconomia e Documentação. Cinquentenário da Escola de Biblioteconomia e Documentação. Salvador: Gráfica Universitária, 1992. DOCUMENTOS Biografia Antônio Loureiro de Souza 1913-1989. Academia de Letras da Bahia, Pasta Cad. 27. Antônio Loureiro de Souza 4º titular. Arquivo. MATTOS, Sérgio. Antônio Loureiro de Souza foi um historiador nato. Salvador, maio de 2013. Depoimento. Academia de Letras da Bahia, Pasta Cad.27, Antônio Loureiro de Souza 4º titular. ►► 397 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 SOUZA, Antônio Loureiro de. Carta, Salvador, oito de julho de 1965, solicita voto a acadêmico para suceder ao doutor Castro Rebelo, na Academia de Letras da Bahia, anexa curriculum vitae. Academia de Letras da Bahia, Pasta Cad.27, Antônio Loureiro de Souza, 4º titular.* Edivaldo M. Boaventura é ensaísta, pesquisador, professor emérito da UFBA, autor de diversos livros de ensaios, sócio de inúmeras instituições culturais no Brasil e no exterior. Foi secretário de educação e cultura do estado da Bahia, diretor-geral do jornal A Tarde e presidente da Academia de Letras da Bahia, da qual é membro benfeitor. Desde 1971 ocupa a Cadeira nº 39 da ALB. Discurso proferido em sessão especial da Academia de Letras da Bahia, em homenagem ao centenário de nascimento do acadêmico Antônio Loureiro de Souza, no Salão Nobre, em 13 de junho de 2013. 398 ◄◄ RUBEM NOGUEIRA Centenário do acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos H á cem anos, em 13 de setembro de 1913, em Serrinha, cidade baiana surgida de uma fazenda de mesmo nome fundada por Bernardo da Silva no século XVIII, um descendente do fundador nasceu e foi batizado de Rubem. Como era comum até meados do século XX, ele cresceu em uma família numerosa. Era o quinto dos onze filhos de Luís Osório Rodrigues Nogueira e de Áurea Hermínia Ribeiro Nogueira. Os pais tinham sobrenomes tradicionais, porém adversários, vinculados a grupos de poder opostos na política municipal. O casal apaixonado, como se fora um Romeu e Julieta sertanejo, terminou por contradizer a tragédia shakespeariana com um casamento de mais de meio século. O Sr. Luís Nogueira abraçou inicialmente a atividade de comerciante, rapidamente bem sucedida, e por duas vezes seria um operoso e prestigiado intendente municipal, vindo a aposentar-se como fiscal do consumo após mais de vinte anos no exercício do cargo. Já dona Áurea Nogueira não se resignou à vida doméstica: primeira serrinhense a ser diplomada professora primária, manteve no maior cômodo da ampla residência, a qual até hoje se destaca na praça da cidade, uma escola para meninos, onde mais de uma geração de pequenos varões conheceu as letras e cursou o ensino básico. O menino Rubem passou a infância em sua terra natal. Aprendeu a ler e a escrever com a própria mãe, que àquela altura chegava aos últimos anos de magistério primário. Mas, nos escritos de reminiscências que o hoje centenário Rubem nos legou, ►► 399 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 ele afirma categoricamente que foi a professora Astrogilda Paiva Guimarães quem lhe proporcionou os primeiros e decisivos estímulos para que viesse a desenvolver seu amor às letras, ao tempo em que inoculava em seu espírito infantil uma admiração biográfica por grandes vultos históricos brasileiros, como Duque de Caxias, Santos Dumont, Osvaldo Cruz e, muito acima de todos, Rui Barbosa, o grande político baiano, jurista maior do Brasil e membro da dinastia dos imperadores da língua portuguesa, de quem Rubem viria a ser um fecundo estudioso. Foi também essa querida professora quem lhe proporcionou a primeira manifestação de júbilo intelectual, ao conceder um prêmio literário escolar à sua incipiente e promissora trajetória de escritor pela composição “Um batalhão em marcha”, texto que viria a ser publicado na edição dominical do jornal O Serrinhense, trazendo orgulho e alegria para seus pais e marcando de forma inesquecível os anos escolares. Mas a infância não se faz apenas no manuseio do lápis, do caderno, da cartilha e da tabuada. Foi o próprio Rubem Nogueira que, ao completar a oitava década de vida, disse lembrar-se de ter sido desde a mais tenra idade, desde sempre, um menino feliz e ter feito “tudo que uma criança costuma e deve fazer, sob pena de quando adulto sentir nostalgia das coisas próprias da idade que não foram feitas”. E o que não faltava era divertimento infantil em uma cidade interiorana do sertão baiano, com seus dias de sol tórrido e céu sempre azul, com suas noites esfriadas e silenciosas, com suas matas retorcidas e suas águas barrentas, suas árvores frutíferas e seus pequenos animais de caça, seus pastos catingueiros e seus currais, suas roças rasteiras e seus chãos batidos, sua arquitetura simples e sua vida pacata, suas brincadeiras de bola e corrida e suas festas comunitárias, suas histórias fantasiosas e suas assombrações. Nem mesmo a asma tiraria a alegria desses anos que não passaram nunca. Noites de crise asmática eram, sim, intermináveis, insones, sofridas, mas o dia se alternava entre a sala de aula e os jogos e piculas, entre as lições de 400 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 gramática e os banhos na fonte, entre as operações de aritmética e os pulos sobre muros alheios à cata de diversão. Tudo se transformou em 1928, quando o jovem Rubem Nogueira veio a se mudar para Salvador, a capital do estado, a Cidade da Bahia, a fim de fazer o curso ginasial no Colégio Antônio Vieira em regime de internato. Até a asma acabou, talvez devido aos banhos frios logo de manhã cedo, aos quais se viu obrigado diariamente. E foram muitas as obrigações na rotina escolar jesuítica. Havia hora para acordar, hora para tomar banho, para fazer refeições, para assistir às aulas, para estudar, para brincar, para conversar, para fazer silêncio, para dormir. Se, para alguns, principalmente hoje em dia, isso tudo poderia ser um imenso sacrifício e grande sofrimento, para nosso ilustre serrinhense foi um precioso aprendizado de hábitos de disciplina e um benefício para sua vida inteira, contribuindo para sedimentar sua personalidade, que já vinha talhada pelo caráter. Assim como Rubem Nogueira, muitos se beneficiaram do sistema educacional dessa secular instituição católica de ensino. Só de sua turma, ele mesmo destaca as figuras de José Antônio do Prado Valadares, Fernando Jatobá da Silva Teles, Dermival Costalima, Jorge Calmon, Newton Vacarezza Cordeiro de Almeida e Mário Risério Leite. “Um batalhão em marcha” foi a composição de sua autoria que marcara os anos impúberes com os brios de escritor e o ingresso precoce no mundo editorial, mas outros dois textos gravaram sentimentos que se opunham e eram igualmente intensos no coração ainda adolescente. Um deles, “Descrição do Farol da Barra”, foi elaborado na prova de português do exame de admissão ao ginásio. O concursando seria reprovado, porque na redação teria iniciado com a letra cê a palavra “quociente”, a qual, naquela época, admitia grafia única, com a letra quê. Mas tal palavra, com cê ou com quê, não havia sido usada pelo jovem Rubem no texto que escrevera. Assim, com a mesma determinação que o acompanharia por toda a vida, ele foi reclamar perante o diretor do Ginásio da Bahia, o doutor Aristides Maltez, ►► 401 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 e reverteu a situação vexatória, vendo seu nome publicado no dia seguinte na lista dos aprovados. O outro texto marcante foi “Almanaque”, redigido em uma prova mensal de português, no terceiro ano ginasial, na classe do professor Guilherme Azevedo. Ao devolver as provas aos alunos, o jesuíta sacou a redação de Rubem e leu-a em voz alta para todos como exemplo de texto de qualidade na forma e no conteúdo. Em 1933, Rubem Nogueira ingressou na Faculdade de Direito da Bahia, na qual iria dar vazão e leito ao manancial de sua vocação, para trilhar pelos caminhos da advocacia, do magistério, do ministério público e da política. Seu espírito de liderança rapidamente se pronunciou no meio acadêmico. Já no primeiro ano letivo, em nome da turma, juntamente com Nelson de Sousa Sampaio, foi o orador da saudação de despedida ao professor de introdução à ciência do direito, Aloísio de Carvalho Filho, que havia sido eleito para a Assembleia Constituinte. Ainda naquele ano, nas férias juninas, em companhia de estudantes veteranos, como Agostinho Pinheiro, Nathan Coutinho, Ulisses Brito e Rômulo Almeida, ele foi um representante dos calouros nas excursões realizadas pelo interior da Bahia em busca de donativos para uma almejada estátua de Rui Barbosa. E logo formou com José Mariani, Oldegar Franco Vieira, José Calasans, Reginaldo Santana e outros colegas um grupo atuante no debate político. Nos anos seguintes, enquanto absorvia os fundamentos da ciência jurídica nas aulas da faculdade, nos códigos de leis e nos livros doutos, crescia em sua consciência crítica um modo próprio de ver e de compreender as relações sociais e as ideias políticas do mundo de seu tempo. E o mundo de seu tempo de estudante de direito era um admirável mundo novo, contraditório, aturdido com a velocidade das mudanças políticas, econômicas e sociais, com a revolução científica, tecnológica e industrial, com as transformações no comportamento, no entretenimento e nas artes, com a imensa onda da virada cultural em voga. Os Estados 402 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Unidos mergulhavam na Grande Depressão, da qual emergiriam como a mais rica e poderosa potência mundial. E a Europa via naufragar a utopia da Liga das Nações, enquanto utopias à direita e à esquerda marchavam para o totalitarismo. No Brasil, a República Velha estava morta. O golpe militar de 1930 veio entornar a política café com leite de paulistas e mineiros e trazer ao poder o gaúcho Getúlio Vargas, que iria consolidarse ditador após derrotar os revoltosos de 1932 e abortar os ventos liberais constitucionalistas. À Bahia, Getúlio impôs o tenente cearense Juraci Magalhães. Mesmo naquela Salvador provinciana, a explosão urbana e a cultura de massa tinham pressa de chegar. A poesia, a literatura e as artes assumiam sua modernidade. A música popular das estações de rádio invadia todos os lares. Estrelas do cinema americano ditavam modas, gestos, caras, bocas e sentimentos. As beldades desfilavam de maiô. O futebol lotava os estádios. A nova cidade de concreto armado derrubava a igreja da sé. E as propagandas comerciais começavam a ser veiculadas para as multidões. O menino de boa família do interior, o adolescente do colégio interno de padres jesuítas e o acadêmico de direito permaneceram unidos e inseparáveis naquele mundo em turbilhão. A maioria de seus contemporâneos foi sendo cooptada por valores burgueses, pelas locações familiares e pela vida comum. Alguns outros, indignados com as injustiças sociais e a disparidade entre os privilégios da classe dominante e o sofrimento do povo, aderiram ao marxismo em suas variantes socialistas e comunistas. Os horizontes de Rubem Nogueira descortinaram-se em outra direção. Formado numa disciplina severa, senhor de uma personalidade austera e grave e de um caráter firme e honrado, desde aqueles tempos da juventude assumiu suas convicções políticas, seus valores éticos, suas ideias sobre o homem, a família, a sociedade, o estado, a religião e os mais diversos aspectos da vida humana dentro da ordem social, sob um prisma civilizatório de cunho nacionalista, ►► 403 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que encontrou seu porto seguro no pensamento e na ação do movimento integralista. Seu contato inicial com o integralismo foi ainda no primeiro ano do curso de direito. Plínio Salgado, líder nacional do movimento, tinha vindo à Bahia em meados de 1933 para divulgar suas ideias, mas Rubem Nogueira estava em caravana pelo interior do estado em prol da estátua de Rui Barbosa. No final do ano, ele pôde ouvir as palestras de outros integralistas na sede da Associação Universitária da Bahia. As palavras de Miguel Reale, Gustavo Barroso, José Loureiro Júnior e Aristóbulo Soriano de Melo ressoaram no íntimo do jovem de vinte anos. No início de 1934, leu o “Manifesto de Outubro de 1932”, texto basilar do integralismo, que o influenciou por toda a vida. Sabia de cor seu conteúdo e admirava sobremaneira alguns trechos, que diziam da criação de uma cultura brasileira genuína e de um governo de garantia da unidade federal e da harmonia das classes sociais, do incentivo às iniciativas individuais e da construção nacional, sob o primado de Deus, que dirigia o destino dos povos. Ainda em 1934, filiou-se à Ação Integralista Brasileira, de que foi um militante entusiasmado até 1937, quando o golpe getulista tornou proscritos os partidos e implantou a década de totalitarismo personalista do Estado Novo. Na vida adulta, Rubem Nogueira se destacou em diversas áreas, sendo reconhecido notadamente por três ângulos de seu multifacetado perfil: o jurista, o político e o escritor. Iniciou a carreira de advogado antes mesmo de receber o diploma de bacharel, inscrevendo-se na Ordem dos Advogados do Brasil como solicitador acadêmico, entrando para a atividade forense desde o penúltimo ano do curso, em 1936. Advogado brilhante e respeitado pelo saber jurídico e pela cultura geral, exerceu a profissão durante a vida inteira, inclusive no cargo de procurador efetivo do município de Salvador, chegando a procurador-geral. Em 1951, foi nomeado procurador-geral da justiça durante o governo de Régis Pacheco, destacando-se pela independência em relação ao executivo e pela promoção do 1º Congresso Estadual 404 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 do Ministério Público. Abraçou a docência em 1956, dedicando-se à introdução à ciência do direito, tendo sido um dos fundadores da Faculdade Católica de Direito da Bahia, da qual se formou a Universidade Católica do Salvador. Em 1979, assumiu o cargo de consultor jurídico do Ministério da Justiça, a convite de Petrônio Portela, tendo chefiado uma delegação brasileira que foi a Paris negociar cooperações na área jurídica. Depois, até aposentar-se, retornou à advocacia e ao magistério. Sua carreira política, abortada pelo golpe de 1937, deslanchou em 1945, após a queda da ditadura Vargas, que não se sustentaria no novo cenário do pós-guerra. Ao lado de velhos parceiros integralistas, lutou pela organização do Partido de Representação Popular no território baiano. Em 1947, foi eleito para a Assembleia Legislativa Constituinte, na qual votou duramente pela cassação dos deputados do Partido Comunista do Brasil e fez um mandato em defesa do ensino público, da criação de ginásios estaduais e da formação de uma polícia civil. Após quatro anos no Ministério Público, voltou à legislatura estadual em 1955, tendo, então, as iniciativas da criação das escolas normais e técnico-profissionais e da estruturação da carreira do magistério primário. Em 1959, foi o segundo suplente à Câmara Federal em sua coligação partidária. Assumiu o cargo de deputado federal em 1961, sendo eleito para mandatos sucessivos até 1971. Esses foram anos de crise política e institucional: a renúncia de Jânio Quadros, a deposição de João Goulart, o golpe militar de 1964, a promulgação do Ato Institucional nº 5, a cassação de mandatos e partidos e a perseguição feroz aos opositores do regime. O experiente parlamentar, que a vida tratara de calejar e amaciar a tolerância, não somente buscou viabilizar conquistas para Serrinha e outras cidades da Bahia, mas também se revelou um audacioso e firme defensor da legalidade e dos direitos e garantias constitucionais. O escritor Rubem Nogueira, inescapavelmente, terminaria por denunciar em seus textos a erudição de sua formação filosófica, científica e técnica e seu conhecimento jurídico, político e ►► 405 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 literário. Trouxe à luz artigos, ensaios e livros de assuntos diversos, com ênfase na teoria geral do direito, em tópicos de direito civil e, sobretudo, em direito constitucional, com destaque para o Curso de introdução ao estudo do direito. Exímio memorialista, seu livro O homem e o muro percorre a história política brasileira do século XX. Como biógrafo, traçou o perfil de autores e personalidades da história do Brasil. De sua dedicação ao estudo da vida e da obra de Rui Barbosa, surgiu sua maior contribuição à história, ao direito e às letras nacionais. Na saudação pela posse de Rubem Nogueira neste silogeu, Nelson de Sousa Sampaio comparou o estudo da atividade de Rui traçado por Rubem em O advogado Rui Barbosa ao imenso fôlego biográfico de Luís Viana Filho e à profundidade investigatória de Pinto de Aguiar sobre o pensamento econômico do Águia de Haia. Nas diversas áreas em que decidiu atuar, Rubem Nogueira acumulou vários títulos científicos, associativos e honoríficos. Bacharel pela Faculdade de Direito da Bahia e professor catedrático da Universidade Católica do Salvador, foi membro da Ordem dos Advogados do Brasil, do Instituto dos Advogados da Bahia e do Instituto Bahiano do Direito do Trabalho. Foi membro fundador do Instituto dos Advogados Brasileiros, honraria que Gérson Pereira dos Santos, no laudatio em celebração à passagem dos oitenta anos de idade do confrade, chamou de consagração, pois se tratava do mais alto órgão cultural da classe. Pela produção intelectual em ciências do direito, foi eleito para a Academia de Letras Jurídicas da Bahia. E por toda sua produção literária de inquestionável valor e de amplo alcance, bem como por sua estatura de homem notável, foi conduzido à Cadeira 35 desta Academia de Letras da Bahia. Este é o esboço aligeirado e canhestro que me vejo capaz de fazer da vida pública de Rubem Nogueira. De sua vida privada, sei muito pouco. Do primeiro casamento, na juventude, nasceu o primogênito, mas foi precoce a viuvez. Em 1948, veio o casamento definitivo com sua Gilka, a quem chamou de 406 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 “metade verdadeiramente cara e essencial de minha vida”. E mais seis filhos e os netos e os bisnetos. E nada mais sei. Não nos conhecíamos. Em 1997, o saudoso poeta Gerardo Mello Mourão veio a Salvador para uma récita e convidou-me para um drinque na varanda do hotel. Lá estavam também dois de seus ilustres amigos baianos: Oldegar Franco Vieira e Rubem Nogueira. O afável Oldegar veio a ser aquele amigo mais velho que a gente visita em fins de semana. Já Rubem Nogueira, porte ereto, gestos contidos, sorriso discreto, olhar seletivo, eu não creio que ele tenha notado minha presença. Agora, calhou de sermos ambos imortais e ocupantes da mesma cátedra neste sodalício, sentados lado a lado na Cadeira 35, mirando o vazio do horizonte, vendo secar tudo a que chamávamos de mãe, vendo ruir tudo a que chamávamos de pai. Não há como contornar a evidência de que somos irmãos, com a eternidade para chegarmos a um acordo. Haverá o dia em que, às escondidas e cúmplices, escaparemos deste orfanato para ganhar o mundo, mergulhar nas águas salobras da fonte, correr pelas ruas sem atentar à poeira grudando na pele úmida e, furtivamente, pular o muro da vizinhança para roubar mangas-rosas. Muito obrigado.* Luís Antonio Cajazeira Ramos é poeta, analista do Banco Central do Brasil e advogado. Publicou cinco livros de poesia, além da participação em antologias. Recebeu o Prêmio Nacional Gregório de Mattos da ALB em 2000. É sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e sócio fundador da Associação Amigos do Teatro Castro Alves. Desde 2012 ocupa a Cadeira nº 35 da ALB. Discurso proferido em sessão especial da Academia de Letras da Bahia, em homenagem ao centenário de nascimento do acadêmico Rubem Nogueira, no Salão Nobre, em 16 de setembro de 2013. ►► 407 DISCURSO DOUTOR HONORIS CAUSA Moniz Bandeira C om muita emoção, aqui agradeço, antes de dizer quaisquer outras palavras, a generosidade dos colegas e amigos que propuseram, apoiaram e impulsionaram a iniciativa para que a Universidade Federal da Bahia me outorgasse o título de doutor honoris causa. Dirijo-me, particularmente, aos membros da congregação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, entre os quais os professores Maria Hilda Baqueiro Paraíso, então coordenadora do programa de pós-graduação em história, Muniz Ferreira, Lina Maria Brandão de Aras, então diretora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Daniel Tourinho Peres, relator do processo, e os membros da comissão de títulos honoríficos do Conselho Universitário, presidida pelo professor Arthur de Matos Neto, do departamento de física. Não posso, evidentemente, citar todos os nomes dos professores aos quais sou muito agradecido. Seria cansativo para os ouvintes. Mas não posso deixar de lembrar o nome de alguns amigos, os professores José Góes de Araújo, Ubiratan de Castro Araújo, João Augusto Lima Rocha e Consuelo Novais Sampaio, que também se empenharam para que me fosse prestada esta homenagem. O título de doutor honoris causa, pela UFBA, reveste-se de especial relevância para mim e muito me reconforta, posto que me é conferido por uma importante universidade do meu estado natal, onde nasci e me criei, até os 18, 19 anos de idade, e onde dei meus primeiros passos na vida acadêmica. Aqui na Bahia recebi uma educação humanística, desde o Colégio da Bahia, onde fui aluno de excelentes mestres — meu saudoso amigo Milton ►► 409 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Santos, Luís Henrique Dias Tavares, Acácio Ferreira, Gelásio Farias e Sócrates Marback —, até o primeiro ano na Faculdade de Direito, no Portão da Piedade, onde tive eminentes professores, entre eles Nelson Sampaio e Josaphat Marinho, que ensinavam teoria geral do estado e introdução à ciência do direito, minhas disciplinas preferidas. Esta cidade, Salvador, fundada por Tomé de Sousa e cujo primeiro alcaide-mor, nomeado em 1554, foi Diogo Moniz Barreto, meu antepassado, era a Bahia histórica, a Bahia que sempre cultivou a cultura e deu ao Brasil grandes escritores, poetas, romancistas e também homens de ciência. Na minha adolescência, início da década de 1950, aqui viviam importantes intelectuais, como o historiador Wanderley de Araújo Pinho, o criminalista Edgard Matta, o professor (e epigramista) Lafayete Spínola, o antropólogo Thales de Azevedo, entre outros, assim como artistas do porte de Presciliano Silva, Pancetti, Genaro de Carvalho, Carybé, Carlos Bastos, Sante Scaldaferri, Mário Cravo e Genner Augusto. Outros estavam a emergir. E a vida cultural era intensa. O jornal A Tarde, o mais importante de Salvador, publicava excelente suplemento literário. Havia no Cabeça um bar, o Anjo Azul, decorado com murais de Carlos Bastos, e lá intelectuais e artistas se reuniam, conversavam e sorviam “xixi de anjo”, uma bebida alcoólica produzida pela casa. A Galeria Oxumaré, no Passeio Público, estava sempre a expor obras de artistas baianos. Alexandrina Ramalho, cantora lírica aposentada, dirigia a Sociedade de Cultura Artística da Bahia, que promovia no Instituto Normal, no Barbalho, concertos de artistas famosos, entre os quais o pianista Arthur Rubinstein, a grande pianista brasileira Magdalena Tagliaferro, os cantores Elizabeth Schwarzkopf e Todd Duncan e o Coro dos Meninos Cantores de Viena. O advogado Walter da Silveira dirigia o Clube de Cinema da Bahia e exibia películas clássicas e de arte, aos sábados, no cinema Liceu. E o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia convidava escritores de outros estados, 410 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que visitavam a Bahia para dar conferências no seu auditório. A esses eventos, João Eurico Matta, Paulo Fernando de Moraes Farias, meus dois grandes e diletos amigos de infância, hoje eminentes professores que engrandecem o nome da Bahia, e eu, ainda adolescentes, sempre juntos assistíamos. Àquela época, com 14, 15 anos de idade, comecei a escrever poemas, e submetia-os à rigorosa crítica de minha muito querida prima Isa Moniz de Aragão, que foi para mim como uma irmã mais velha. Foi ela que me iniciou no jornalismo, dando-me a tarefa de escrever uma coluna, “Letras & artes”, publicada no Diário da Bahia, e incentivou minha vocação para a literatura. Aqui a recordo com saudade. E, uma vez que estou a reviver a juventude, o tempo que morei em Salvador, lembrome de Arthur de Salles sentado na Biblioteca Pública, onde me aconselhou a ler Garcia Lorca e os surrealistas franceses, Paul Éluard e Louis Aragon, embora fosse ele consagrado poeta simbolista. Interessei-me assim pela poesia moderna, da qual os expoentes na Bahia eram José Luís de Carvalho Filho, Camillo de Jesus Lima, Sosígenes Costa e Wilson Rocha. Porém, com Elpídio Bastos e João Moniz Barreto de Aragão, este meu parente, aprendi o artesanato do verso, a virtuosidade parnasiana do soneto, o que me valeu até para os próprios versos livres e, inclusive, os textos em prosa, os livros acadêmicos que escrevi. E, no Rio de Janeiro, completei não só o curso jurídico, como também minha formação literária e filosófica, com Edmundo Ferrão Moniz de Aragão, meu tio, meu mestre, a quem estive sempre vinculado por laços de estreita amizade e afinidade de ideias, durante tantos anos de convívio, até o fim de sua existência, em 1997. Não obstante haver morado desde os 20 anos em várias cidades e países, sempre conservei o amor pela Bahia, e suas tradições humanísticas pautaram todas as minhas atividades ao longo de minha vida. A Bahia é muito peculiar, entre os estados brasileiros. Aqui foi construída a primeira cidade — Salvador — ►► 411 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 planejada, politicamente, para promover e sustentar o processo de colonização da terra novamente descoberta por Pedro Álvares Cabral e ameaçada pelo assédio dos corsários franceses, que buscavam o pau-brasil a fim de suprir as tinturarias de Flandres. E foi na Bahia que se consolidou a independência do Brasil, com a expulsão das tropas portuguesas comandadas pelo general Inácio Luís Madeira de Melo, em dois de julho de 1823. Esse dia — dois de julho de 1823 — é que pode ser considerado, realmente, a data nacional do Brasil, a data em que o grito do Ipiranga se efetivou. Não fosse a vitória da campanha militar, desencadeada a partir do Recôncavo, com o suporte da Casa da Torre de Garcia d’Ávila, o Brasil se despedaçaria em diversas repúblicas, como ocorreu com a América Espanhola. Daí que estranho e lamento — uma vergonha para a Bahia – que o nome do Aeroporto Internacional Dois de Julho, em Salvador, tenha sido mudado para Aeroporto Internacional Deputado Luís Eduardo Magalhães, nome de um político, ainda que respeitável. É doloroso ver que assim se apaga a memória histórica da Bahia, que sofreu, em 1933, um dano irreparável com a demolição da igreja da sé, a mais antiga do Brasil, construída em 1553, nos primórdios da colonização. E a memória histórica é a alma do povo, o fundamento de sua identidade, a argamassa de sua cultura, a essência da civilização. O conhecimento do passado — os marcos históricos — dá à comunidade a consciência do que ela é, no presente, e do seu destino, no futuro. Como escreveu o grande poeta T. S. Eliot: Time present and time past Are both perhaps present in time future, And time future contained in time past.1 Esses versos de T. S. Eliot refletem a concepção de tempo na mitologia germânico-nórdica, na qual três mulheres — die Nornen — personificam as deusas (die Schicksalgottheiten) que 412 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 tecem o destino dos filhos dos homens, embaixo de um freixo, Yggdrasil, conforme aparecem em Völuspá (Predição da vidente), de Edda Mayor, coletânea de poemas escandinavos escritos por volta dos séculos X e XI. Urd ou Wyrd2 é a Norn do que foi, de tudo o que passou e está a passar, e condiciona o “devenir”, o destino; Verðandi ou Verdandi, “tornando-se”, é a Norn do que é, que representa o presente, o momento de mudança, da transformação; e Skuld é a Norn do que deverá ser, o devenir, a possibilidade. Essas três Nornen não representam, esquematicamente, o passado, o presente e o futuro, como às vezes são interpretadas. O tempo, na mitologia germânico-nórdica, é indivisível. É uno. O passado continua no presente, como poderosa realidade, que permanentemente modifica o futuro, o que está para acontecer. Assim, a determinação do destino do mundo, o fim, ocorreu na sua criação. Não se pode estudar uma sociedade e um estado sem conhecer suas origens, sem saber como surgiram, como se desenvolveram ao longo da história. O médico, quando vai examinar um paciente, logo pergunta pelo seu histórico pessoal, as doenças que teve, e também o histórico familiar, a fim de verificar se seu problema de saúde também decorre de fatores genéticos. Da mesma forma, o meio mais eficaz para a compreensão de um fenômeno político é saber como começou. Os fenômenos políticos, quando se manifestam, resultam de transformações quantitativas e qualitativas de tendências históricas, razão pela qual devem ser estudados e compreendidos em seu encadeamento mediato, em sua condicionalidade essencial e em seu constante devenir. A compreensão do acontecimento, que flui, e do seu desdobramento, no futuro, requer o conhecimento do passado como substância real do presente, em que possibilidades e contingências se esboçam, suprimindo (aufheben) e, ao mesmo tempo, conservando e elevando a uma síntese superior (aufheben/ aufbewahren) as contradições intrínsecas do “processo” histórico. A ciência política, portanto, necessita da história, com a qual se ►► 413 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 deve identificar, para alcançar e conhecer a natureza íntima do fenômeno que se pretende estudar. Uma teoria é necessária, decerto, “para ligar os fatos observados e poder fazer novas observações”, assim ensinou o filósofo Antônio Ferrão Moniz de Aragão, meu antepassado, na sua obra Elementos de mathemáticas, publicada em 1858.3 Mas, do mesmo modo que os acontecimentos históricos não podem ser julgados segundo valores e critérios do presente, também não se podem aplicar integralmente teorias e conceitos elaborados em épocas antigas para analisar e estudar o que ocorre na atualidade. As relações econômicas e sociais do passado não se conservam iguais, modificaram-se, as ideias e instituições modernas são diferentes das que outrora existiram, e as contradições econômicas, as relações sociais e as lutas políticas são inteiramente distintas das que ocorreram no século XIX ou nas primeiras décadas do século XX. Assim, cada época tem de ser avaliada segundo sua própria medida, seus próprios valores, determinados pela evolução das forças produtivas. O desenvolvimento científico e tecnológico dos meios de comunicação e das ferramentas eletrônicas, aumentando a produtividade do trabalho e impulsionando ainda mais a internacionalização/globalização da economia, produziu profunda mutação no sistema capitalista mundial, na estrutura social das potências industriais e no caráter da própria classe operária, o qual não mais corresponde ao da classe operária ainda concebido, abstrata e teoricamente, por algumas tendências políticas. No curso da segunda metade do século XX, após a grande guerra de 1939-1945, capitais dos Estados Unidos e das potências industriais da Europa, buscando fatores mais baratos de produção, emigraram, em larga medida, para países da Ásia e da América Latina, bem como para os países do leste europeu, depois do colapso da União Soviética e do bloco socialista em 1989-1991. Tais países, com um terço da população mundial, adotaram a economia de mercado. E sobretudo na China e na Índia, onde 414 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 encontraram condições de investimentos mais seguras, estáveis e lucrativas, as grandes corporações instalaram suas plantas industriais e passaram a exportar a produção para os mercados das próprias potências econômicas das quais haviam emigrado. A consequência, agravada pela automação da indústria com a crescente utilização de microchips (robôs industriais), foi o aumento do desemprego, que bateu um recorde histórico, atingindo 195 milhões e duzentas mil pessoas em 2006, de acordo com os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A existência de poderoso exército industrial de reserva debilitou o poder de negociação dos sindicatos, cuja articulação política, restrita aos limites de seus respectivos estados nacionais, não acompanhou o desenvolvimento da organização transnacional capitalista, que permite às grandes corporações, com subsidiárias nos novos países industrializados, contar com amplos recursos para resistir às pressões e minimizar os efeitos de qualquer paralisação do trabalho. O deslocamento da produção para os países com níveis salariais mais baixos, as diferenças de condições sociais e políticas, bem como dos níveis de organização, obstaculizam, por exemplo, o êxito da coordenação internacional de uma greve com o objetivo de paralisar, simultaneamente, todas as unidades de produção da mesma empresa espalhadas por diversos países. E o poder dos sindicatos foi ainda mais enfraquecido pela expansão do mercado global de trabalho, com o aparecimento de um bilhão e duzentos milhões de novos trabalhadores e de outros milhões dispostos a trabalhar por qualquer salário para ter um meio de subsistência. Outrossim, a política imperialista de competição armada entre as potências industriais, visando a reproduzir as relações de produção e impor seu domínio sobre vastas regiões do planeta, evoluiu, após duas ruinosas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), para o ultraimperialismo, com a formação de uma espécie de cartel dos grandes estados capitalistas, com a adesão de outros menores. Esse cartel é conduzido pelos Estados ►► 415 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Unidos, como potência hegemônica, com alta capacidade estratégica de modelar a vontade das outras potências industriais e conduzir a política internacional de acordo com seus interesses, exportando suas ameaças para os aliados e levando-os a movimentar-se e agir em função do que pensam ser seus autênticos interesses geoestratégicos, quando, na realidade, são interesses estrangeiros.4 E a expressão militar do cartel é a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que oferece garantias mútuas de não agressão e prevê a cooperação na área de segurança, bem como ajuda mútua no caso de uma agressão por terceiros países, coletivizando a defesa, para que ela não se torne assunto nacional, e sim de interesse do sistema global capitalista. A dissolução dos regimes comunistas nos países do leste europeu, a derrubada do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha, juntamente com a desintegração da União Soviética em quinze outros estados independentes e a adesão da China à economia de mercado e à globalização, assinalaram o começo de nova época histórica e impulsionaram o processo de internacionalização/globalização da economia, acentuando a organização transnacional da produção e a expansão do consumo, em contradição com as formas nacionais de constituição das sociedades e dos estados. Tais fatores econômicos e sociais produziram, sobretudo nas potências industriais, certo esvaecimento das contradições políticas e ideológicas entre os partidos políticos, cujas iniciativas, no governo, não muito discrepam, na Alemanha, na França, na Inglaterra, muito menos nos Estados Unidos, onde o Partido Democrata e o Partido Republicano, essencialmente, pouco se diferenciam. Com razão, o grande historiador Eric Hobsbawm claramente declarou em entrevista à agência de notícias Telam, da Argentina, que “já não existe esquerda tal como era”, seja socialdemocrata ou comunista. Ou está fragmentada ou desapareceu.5 Não há contraste, não há virtualmente oposição. As diferenças consistem somente no matiz dos partidos. Não se pode dizer, portanto, que o regime democrático haja 416 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 avançado. Pelo contrário, tende a convergir, nos mais diversos países, com os regimes totalitários, na medida em que o estado de exceção torna-se a norma, tendência esta que se acentuou, sobretudo, após os atentados terroristas contra as torres gêmeas do World Trade Center, nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. O papel da sociedade civil torna-se cada vez mais irrelevante. Apesar da oposição, os governos dos Estados Unidos e de alguns países da União Europeia deflagraram a guerra, e suas tropas continuam a combater no Iraque e no Afeganistão. O desenvolvimento da tecnologia, mais e mais sofisticada, dá aos governos das potências industriais meios de controlar ainda mais a população, ameaçando as liberdades civis. O Vchip, veículo de espionagem que facilita o monitoramento das pessoas, integra os novos sistemas de televisão, computadores, telefones etc.; o PKI electronic intelligence permite, por meio de tecnologia digital, monitorar qualquer meio de comunicação eletrônica, como GSM, fax, telefone, internet e outros; os semáforos de tráfego contêm câmeras, security camera surveillance equipment, que acompanham qualquer movimento do individuo; câmaras de vigilância CCTV, instaladas nos mais diversos ambientes com objetivo de segurança, possibilitam a invasão da privacidade das pessoas; e também os governos intentam armazenar o tráfico de chamadas telefônicas e do uso de internet, a pretexto do combate ao terrorismo. Esse elevado desenvolvimento tecnológico também favoreceu a concentração de riqueza e de poder, e as disparidades sociais aumentaram ainda mais nos países da periferia do sistema capitalista, alimentando o fundamentalismo religioso, em meio à instabilidade política que se produziu no sistema internacional após o colapso da União Soviética e do bloco socialista. Os Estados Unidos tornaram-se o único polo de poder, tanto econômico quanto político, cultural e tecnológico, com um poderio militar capaz de intervir, imediata e efetivamente, em qualquer região do mundo. Sua capacidade de destruição é incomparável, ►► 417 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 não tem paralelo na história. Contudo, diferentemente de outras potências industriais, os Estados Unidos deixaram de ser exportadores líquidos de capitais e não mais lideram as compras ou o estabelecimento de firmas em outros países. Com enormes déficits comercial e fiscal, bem como na conta corrente do balanço de pagamento, converteram-se em potência devedora, sem condições de pagar sua dívida externa. Os bancos centrais de outros países detêm reservas da ordem de mais de quatro trilhões de dólares. Somente a China possui reservas que ultrapassam dois trilhões de dólares e detém um quarto da dívida pública dos Estados Unidos, cujo poderio militar, baseado, sobretudo, nas armas nucleares e nos mísseis de longa distância, mais do que nas tropas terrestres, já não pode garantir-lhes a hegemonia política. Econômica e financeiramente, será difícil sustentar, por muitas décadas, ao longo de todo o século XXI, um império com cerca 909 bases militares, ostensivas e secretas, instaladas em 46 países e territórios6, e duas guerras — Iraque e Afeganistão —, cujos custos totais sobem de dois trilhões e setecentos bilhões de dólares, em termos estritamente orçamentários, para um montante de cinco trilhões de dólares em termos econômicos, segundo os cálculos de Joseph E. Stiglitz.7 O colapso do sistema financeiro internacional, que estava previsto desde 2006, e em 2007 eclodiu, aprofundou-se na segunda metade de 2008 com a bancarrota dos maiores bancos de investimentos, Lehman Brothers e Merril Lynch, bem como das seguradoras American International Group (AIG), a maior dos Estados Unidos e do mundo, Fannie Mae e Freddie Mac, entre outras corporações. Até dezembro de 2008, o governo dos Estados Unidos teve de investir cerca de cinco trilhões de dólares para evitar o colapso de todo o sistema financeiro.8 E já no primeiro semestre de 2009 seu déficit orçamentário superou o montante de um trilhão de dólares. A previsão é de que alcance a cifra de um trilhão e seiscentos bilhões de dólares até o fim do segundo semestre, e o Congressional Budget Office estimou 418 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que, dentro de dez anos, o déficit orçamentário estará entre nove e dez trilhões de dólares.9 A dívida federal, que corresponde a 33 por cento do PIB dos Estados Unidos, em 2009, poderá saltar para 68 por cento por volta de 2019, o que representará cerca de 5,1 por cento do PIB calculado para a década, um percentual extremamente alto.10 Essa tendência não pode continuar indefinidamente. Haverá um momento em que a quantidade há de gerar uma nova qualidade, provavelmente em meio a uma crise ainda muito mais grave, muito mais profunda, sem precedente na história. O colapso do sistema financeiro, que entre 2007 e 2009 abalou a economia mundial e compeliu igualmente os governos do Reino Unido, da Alemanha e de outros países a aplicar trilhões de dólares em operações de resgate e estatização parcial dos bancos e outras empresas, desfechou forte golpe no fundamentalismo de mercado, similar ao que atingiu o comunismo stalinista com o desmoronamento do Muro de Berlim e dos regimes instalados pela União Soviética nos países do leste europeu. A mudança na arquitetura política internacional, devido ao deslocamento do centro da produção industrial para a Ásia, acelerou-se. E o grupo de estados ricos do Hemisfério Norte (Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Japão, Rússia e Canadá), o G-8, que pretendia constituir um sistema global de poder e decidir sobre todas as questões, tanto econômicas quanto políticas, ecológicas e outras, já não mais pode fazê-lo sem a participação de potências emergentes, como a China, a Índia e o Brasil. Também se torna inevitável o descongelamento do sistema de governança mundial. O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), constituído ao término da Segunda Guerra Mundial, está obsoleto. Com apenas cinco membros permanentes (as grandes potências) com direito a veto e dez membros não permanentes sem direito a veto, não tem representatividade para aplicar sanções contra um país (embargos comerciais, financeiros, de armas etc.) ►► 419 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 ou determinar uma intervenção militar com base em um julgamento político sobre situações de guerra ou de ameaça à paz. O Brasil opõe-se ao congelamento da estrutura do poder mundial, configurado pelo Conselho de Segurança da ONU, e por isso demanda sua reforma, juntamente com a Alemanha, a Índia e o Japão, importante passo para o estabelecimento de uma ordem internacional multipolar. Como disse o embaixador João Augusto de Araújo Castro, falando aos estagiários da Escola Superior de Guerra em 1971, “o Brasil está condenado à grandeza”, condenado por sua extensão territorial, por sua massa demográfica, por sua composição étnica, pelo seu ordenamento socioeconômico e, sobretudo, por sua incontida vontade de desenvolvimento e progresso. O Brasil não é imperialista, não possui bases militares em nenhum outro país, mas tem de enfrentar e vencer todos os fatores externos, superar todos os obstáculos que possam conter seu poder nacional e impedir que desempenhe um papel de maior relevância, como um global player, sem arrogância nas relações com os países mais fracos e menores e sem humildade e submissão aos desígnios das grandes potências. E daí porque o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tendo os embaixadores Celso Amorim como chanceler e Samuel Pinheiro Guimarães como secretário-geral de relações exteriores, tratou de expandir as fronteiras diplomáticas do Brasil. Entre 2003 e 2008, criou 35 novos postos no exterior, e o número de embaixadas subiu para 111, das quais 15 foram abertas ou reabertas na África. Destarte, com um total de 203 representações diplomáticas, o Brasil afirma sua presença em todas as regiões do mundo, inclusive nos países ricos em petróleo e gás — Cazaquistão, Azerbaijão, Catar e Omã — e no centro das questões sobre a estabilidade política e a paz no Oriente Médio e na Ásia Central. Um dos principais objetivos é diversificar os parceiros e ampliar os mercados para as suas exportações e investimentos, sobretudo nos setores de mineração, petróleo, agricultura e infraestrutura. 420 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 É necessário, entretanto, que o povo tenha consciência da projeção internacional do Brasil, da dimensão econômica e política que conquistou na comunidade das nações e da importância da política exterior como instrumento de afirmação do poder nacional, na medida em que preserva sua autonomia e independência. A Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), órgãos do Ministério de Relações Exteriores e dirigidos pelos embaixadores Jerônimo Moscardo e Carlos Henrique Cardim, respectivamente, estão empenhados na promoção de seminários e publicação de livros, divulgando a relevância da política exterior e o conhecimento sobre diversos países com os quais o Brasil desenvolve significativas relações econômicas, comerciais, políticas e culturais. Entretanto, a massa crítica existente ainda é precária, e as universidades podem contribuir para aumentá-la, incentivando a pesquisa e o estudo de outros países, tal como ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e França. No Brasil, em diversos estados da federação, já funcionam 84 cursos de graduação em relações internacionais, 36 por cento dos quais (a maioria) em São Paulo, 11 por cento no Rio de Janeiro e quatro por cento na Bahia. Também existem cerca ou um pouco mais de quinze centros de estudos dedicados ao estudo de política internacional e de algumas regiões, sobretudo a África, área em que a Universidade Federal da Bahia foi pioneira. Em setembro de 1959, exatamente há 50 anos, foi fundado, durante a gestão do reitor Edgard Santos, o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), sob a direção do professor português Agostinho da Silva. Esse foi o primeiro centro de estudos afro -orientais criado em uma universidade brasileira, refletindo os interesses econômicos e estratégicos, determinados pelo desenvolvimento industrial do Brasil, que no final dos anos 1950 já estava necessitando abrir mercados para suas exportações de manufaturas. Um dos membros da primeira geração desse ►► 421 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Centro de Estudos Afro-Orientais foi Paulo Fernando de Moraes Farias, que teve de sair da Bahia quando ocorreu o golpe militar de 1964 e exilou-se na África e, depois, na Inglaterra. Como professor da Universidade de Birmingham, tornou-se um dos mais importantes africanólogos do Reino Unido, e a ele a African Studies Association, dos Estados Unidos, concedeu em 2005 o Prêmio Paul Hair, pela sua obra sobre as inscrições árabes medievais e a história da República de Mali, publicada pela Universidade de Oxford e a Academia Britânica. Outrossim, devo aqui evocar a memória de dois grandes vultos da diplomacia brasileira que nasceram na Bahia: José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco, e Rui Barbosa. José Maria da Silva Paranhos, pai do Barão do Rio Branco, o patrono da diplomacia brasileira, desempenhou importante papel nos países da bacia do Prata, onde, como secretário do Marquês de Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão, negociou o tratado com o Uruguai, o Paraguai e as províncias argentinas Corrientes e Entre Rios contra o governo de Buenos Aires sob a chefia de Juan Manuel de Rosas, que o general Justo José Urquiza, presidente da Confederação Argentina, derrotou, com o suporte do Brasil, na batalha de Caseros, em 1852. O outro foi Rui Barbosa. Nos anos 1890, apoiando Eduardo Prado, ele denunciou a “ilusão americana”, o expansionismo encapado pela Doutrina Monroe, no uso diplomático, com o objetivo de reservar o continente americano aos empreendimentos futuros dos Estados Unidos, combinando “um modus vivendi adaptável à política imperialista da Casa Branca”, e previu que a Europa solicitaria necessariamente sua anulação ou modificação11. Rui Barbosa, conforme assinalou o chanceler Celso Amorim, “foi um pioneiro da diplomacia multilateral no Brasil” e “inaugurou uma linha de atuação que perdura até hoje: a defesa da igualdade entre os estados e da democratização das relações internacionais”12. “O novo sentido da política externa brasileira” — acentuou o embaixador Carlos Henrique Cardim — “afirma-se com o pensamento e a ação 422 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de Rui Barbosa”, ao defender o princípio da igualdade entre os estados, na Assembleia de Haia, em 190713. Lá, ele combateu firmemente o projeto dos Estados Unidos, que propunha a criação de uma corte permanente de arbitragem, que privilegiava as grandes potências em detrimento dos países mais fracos. E, ao defender a igualdade dos estados soberanos, proclamou que “la souveraineté est la grande muraille de la patrie”.14 Sim, a soberania é a muralha da pátria. No entanto, conforme o próprio Rui Barbosa observou, não se toma a sério a lei das nações, senão entre as potências cujas forças se equilibram. Essa lição deve pautar a estratégia de segurança e defesa do Brasil, sobretudo quando os Estados Unidos ampliam e instalam outras bases militares na Colômbia, penetrando a Amazônia, e a IV Frota navega no Atlântico Sul, à margem das enormes jazidas de petróleo descobertas nas camadas Pré-Sal, em águas profundas, entre o Espírito Santo e Santa Catarina. Essas descobertas ao longo da costa inseriram o Brasil no mapa geopolítico do petróleo. E as ameaças existem, conquanto possam parecer remotas. O perigo que representa uma grande potência, tecnologicamente superior, mas com enormes carências, sobretudo de energia, pode ser muito maior quando ela está a perder a preeminência e quer mantê-la, do que quando expande seu império. Não duvido de que a intenção do presidente Barack Obama seja, sinceramente, renovar a política internacional dos Estados Unidos e aliviar as tensões geradas pelas iniciativas bélicas, agressivas, unilaterais do seu antecessor, o presidente George W. Bush. Contudo, incoercíveis interesses econômicos alimentam poderosas forças políticas que o presidente Barack Obama não tem como controlar e até podem, eventualmente, eliminá-lo. O Brasil, portanto, deve estar preparado para enfrentar, no mar e em terra, os imensos desafios que se configuram no século XXI, a “era dos gigantes”, como o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães denominou essa era em que os grandes espaços econômicos e geopolíticos serão os principais atores da política ►► 423 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 internacional. Si vis pacem, para bellum (se queres a paz, prepara-te para a guerra). É o passado, a história, que está presente, condicionando o futuro. NOTAS ELIOT, T. S. Four quartets. London: Faber & Faber, 1972, p. 13. Urðr e Verðandi, forma substantiva de verða (germânico: werden; anglo-saxão: weorðan), tornar-se. A forma corresponde ao particípio passado, vorðinn, ou orðinn, completado. Wyrd era, como Urðr, o fado ou destino. Dela derivou o termo weird na língua inglesa e deu origem ao verbo auxiliar werden (alemão moderno), que significa ser em transformação. A outra Norn é o particípio presente, verðandi, tornando-se, acontecendo. Skuld provém de skuld, o particípio passado de skulu (sueco: skola; anglo-saxão: sculon); presente: skal (sueco: skall; dinamarquês: skal; anglo-saxão: sceal; inglês: shall); passado: skyldi (sueco: skulle; dinamarquês: skulde; anglo-saxão: sceolde; inglês: should). O nome também significa dever, obrigação (dinamarquês: skyld) e denota o caráter da deusa da morte. 3 MONIZ DE ARAGÃO, Antônio Ferrão. Elementos de mathemáticas. Bahia: Typ. e Livraria Pedroza, 1858, p. xvii. 4 GÓES, Guilherme Sandoval. O geodireito e os centros mundiais de poder. In: VII Encontro Nacional de Estudos Estratégicos. Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, Brasília, 6 a 8 nov. 2007. 5 Entrevista de Eric Hobsbawm a Martin Granovsky, presidente da agência de notícias Télam. Página 12, Buenos Aires, 29 mar. 2009. 6 LUTZ, Catherine (Ed.). The bases of empire: the global struggle against U.S. military posts. London: Pluto Press, 2009, p. 1. 7 STIGLITZ, Joseph E.; BILMES, Linda J. The three trillion dollar war: the true cost the Iraq conflict. New York: W. W. Norton, 2008. 8 MOYER, Elizabeth. Financial crisis: Washington’s $5 trillion tab. Forbes.com. 9 CALMES, Jackie. Estimate for 10-year deficit raised to $9 trillion. The New York Times, 26 ago. 2009. 10 Idem. 1 2 424 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 BARBOSA, Rui Barbosa. O continente enfermo. A Imprensa, 3 maio 1899. In: BARBOSA de Oliveira, Rui. Obras seletas. vol. 8. www.bn.br/ bibvirtual/acervo. 12 AMORIM, Celso. A diplomacia multilateral do Brasil: um tributo a Rui Barbosa. II Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional — O Brasil e o mundo que vem aí. Rio de Janeiro, Palácio Itamaraty, 5 nov. 2007. Brasília: Ministério das Relações Exteriores; Fundação Alexandre de Gusmão; Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2007, p. 5. 13 CARDIM, Carlos Henrique. A raiz das coisas: Rui Barbosa: o Brasil no mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 90-91. 14 BARBOSA, Rui A segunda conferência de paz. Obras Completas. vol. XXXIV, 1907, tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1966, p. 256-257.* 11 Moniz Bandeira é historiador, cientista político, escritor, conferencista e professor da Universidade de Brasília, especialista em política exterior do Brasil e suas relações internacionais, com vasta obra publicada. Foi adido cultural no Consulado-Geral do Brasil em Frankfurt e é cônsulhonorário do Brasil em Heidelberg. Reside na Alemanha desde 1996. É membro correspondente da ALB. Discurso proferido na cerimônia de recebimento do título de doutor honoris causa da Universidade Federal da Bahia, na Sala dos Conselhos da Reitoria da UFBA, em 16 de setembro de 2009. ►► 425 MONIZ BANDEIRA Saudação ao doutor honoris causa da UFBA Ubiratan Castro S into-me mui honrado com a missão que me foi conferida por meu diretor, professor doutor João Carlos Salles Pires da Silva, diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, de saudar o professor Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira nesta cerimônia de outorga do título de doutor honoris causa da Universidade Federal da Bahia. O homenageado, por sua própria biografia, é um exemplo de excelência em tudo o que experimentou. O homem Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira, formado em direito, é doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo e professor titular de história da política exterior do Brasil, no departamento de história da Universidade de Brasília (aposentado). Em 2006, recebeu o título de doutor honoris causa das Faculdades Integradas do Brasil (UniBrasil), de Curitiba, Paraná, e foi eleito pela União Brasileira de Escritores (UBE), por aclamação, intelectual do ano de 2005, com o Troféu Juca Pato, por causa de sua obra Formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Sua vida foi profundamente marcada pelo golpe militar que derrubou o governo do presidente João Goulart, em 1964. Perseguido devido à sua participação na resistência, teve de ►► 427 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 exilar-se no Uruguai (1964-1965), de onde regressou ao Brasil e viveu clandestinamente em São Paulo até quase o final de 1967. Depois, passou dois anos (1969-1970 e 1973) preso pela Marinha de Guerra, e somente em 1974 pôde retomar as atividades acadêmicas, assumindo a função de professor na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Moniz Bandeira, na segunda metade dos anos 1970, morou algum tempo nos Estados Unidos e na Europa, com uma bolsa pós-doutoral do Social Science Research Council e Joint Committee on Latin-American Studies of the American Council of Learned Societies, e, ao retornar definitivamente ao Brasil, em 1979, foi professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no Instituto Metodista Bennet e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, de onde passou para a Universidade de Brasília. Posteriormente foi professor visitante nas Universidades de Heidelberg, Colônia, Estocolmo, Buenos Aires, Nacional de Córdoba (Argentina) e Técnica de Lisboa, entre outras, e também conferencista em diversas universidades, no Brasil e em vários países, na América do Sul, Europa e Estados Unidos. É autor de mais de 20 obras, como Presença dos Estados Unidos no Brasil: dois séculos de história, e O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, que foram best-sellers, bem como de A expansão do Brasil e a formação dos estados na bacia do Prata; O feudo — A Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil; De Martí a Fidel: a revolução cubana e a América Latina; Fórmula para o caos: a derrubada de Salvador Allende, 1970-1973. Algumas de suas obras foram publicadas na Rússia, Alemanha, Argentina, Chile e Portugal. Luiz Alberto Moniz Bandeira é grande oficial da Ordem de Rio Branco (Brasil), comendador da Ordem do Mérito Cultural (Brasil), comendador da Ordem de Mayo (Argentina) e condecorado com a Cruz da República Federal da Alemanha, 1ª Classe (Das Verdienstkreuz — 1 Klasse — Das Verdienstorden der Budesrepublik Deutschland). Casado com Margot Bender, 428 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 há muitos anos reside na Alemanha, onde foi adido cultural no Consulado-Geral do Brasil em Frankfurt (1996-2002) e atualmente exerce a função de cônsul-honorário em Heidelberg, com jurisdição sobre o distrito governamental de Karlsruhe, norte de Baden-Württemberg. Um aristocrata de esquerda Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira é descendente das principais famílias baianas, desde a fundação da Cidade do Salvador, em 1549. Nele convergem as prestigiosas linhagens dos Monizes, dos Pires de Carvalho e Albuquerque, dos Ferrão, dos Aragão e dos Bandeiras. Elas povoaram a Bahia de negociantes, senhores de engenho, condes, viscondes e barões no tempo do Império. Na República, muitos foram parlamentares, governadores, ministros e secretários de estado. A sua filiação a essa “nobreza da terra”, no entanto, não o fez um conservador, parasitário do prestígio familiar, proprietário de instituições públicas ou beneficiário das prebendas e mimos do estado. Sua estrada foi calçada inteiramente pela excelência do seu trabalho intelectual, social e político. Suas ideias, longe de representarem os interesses das elites dominantes, pautaram-se sempre em uma das tradições dos Monizes, do amor à liberdade. Esse compromisso com a liberdade e com as causas populares lhe rendeu perseguição, prisão e exílio. Mas constituiu uma referência maior para a construção de um Brasil democrático e moderno. Seu amor à liberdade inviabiliza qualquer classificação do seu pensamento em categorias ideológicas estanques. Foi socialista, foi trabalhista, foi socialdemocrata, mas acima de tudo foi um patriota que lutou por um Brasil generoso, lugar de felicidade de todos os brasileiros. Apesar da aparente contradição nominal, é Moniz um exemplo mais eloquente na história da Bahia de um “aristocrata de esquerda”. ►► 429 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O sábio cientista O cientista Moniz Bandeira é uma das referências intelectuais do Brasil. Além da produtividade do seu trabalho intelectual, que se traduz no seu extenso currículo, sua produção intelectual destaca-se como um exemplo de excelência acadêmica. Praticou os métodos e as técnicas de várias ciências humanas, sem, contudo, incorrer nos equívocos de uma interdisciplinaridade aleatória, verdadeira salada das interpretações. Sua liberdade metodológica está firmemente ancorada no método dialético de conhecimento da realidade. Compreender a complexidade do social em contínuo movimento de transformação, este é o seu grande desafio. Presente, passado e futuro formam um continuum inseparável. Para conhecê-lo, recorremos aos conselhos do poeta José Carlos Capinan em seus poemas dialéticos: “Quis conhecer o Rio. Tornei-me navegador.” Moniz Bandeira enfrentou o desafio de compreender os fenômenos políticos e, para tanto, assumiu integralmente a teoria e a prática da política. Para cada tempo de sua observação, uma disciplina acadêmica específica, com os seus respectivos repertórios. Para o presente, a ciência política e, dentro dela, as relações internacionais, ou seja, a política entre os estados nacionais em um mundo interdependente e conflituoso. Em toda a sua vasta bibliografia, em seu magistério e em sua atuação como consultor, assessor e conferencista qualificado, contribui decisivamente para a sistematização de uma massa crítica que orienta a política externa brasileira na busca de solidariedades de nações não hegemônicas, principalmente no sentido Sul-Sul. Constitui-se hoje, com a liderança brasileira, um bloco sul-americano capaz de negociar sem subserviência com o grande Império do Norte. Participa também o Brasil das articulações com os países emergentes: África do Sul, Índia, China e Rússia, conhecidos hoje como BRICS. A teoria política produzida por Moniz Bandeira alimenta esse novo 430 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 processo de cooperação internacional, libertado das amarras ideológicas que agrupavam em blocos artificiais os chamados não alinhados, os subdesenvolvidos, os terceiros-mundos. Os novos agrupamentos são baseados nos interesses bilaterais, objetivos e não exclusivos, respeitada a soberania de cada estado nacional. Na ciência política de Moniz Bandeira, o conceito de soberania nacional é fundamental. Sem ela, a interdependência e a cooperação conduzem necessariamente ao subdesenvolvimento e ao empobrecimento das populações. Por isso, assume com entusiasmo a implantação de um sistema de defesa nacional que funcione como um verdadeiro “escudo” protetor do desenvolvimento nacional e das riquezas muitas deste paíscontinente Brasil. É preciso ter os meios tecnológicos e militares para desestimular as invejosas pretensões internacionais sobre as nossas riquezas: a Amazônia Verde, a Amazônia Azul, o Pré-Sal e o Aquífero Guarani, dentre outras. Hoje, o sábio Moniz Bandeira tem a coragem e vitalidade de levantar sua voz em defesa da soberania nacional. A luta do presente está indissoluvelmente ligada aos projetos de futuro, projetado mediante os métodos de uma outra disciplina, a geopolítica. É indispensável que as lideranças políticas e intelectuais do país estabeleçam as estratégias de desenvolvimento do Brasil para o século XXI. Nossas potencialidades naturais devem ser corretamente estimadas. Nossa capacidade científica e tecnológica deve ser sistematicamente ampliada em um padrão internacionalmente competitivo. Nossa capacidade de defesa deve ser suficientemente dissuasiva de pretensões hostis. Nossa população deve ser massivamente educada para tomar em suas mãos a defesa de nossa soberania e o aperfeiçoamento de nossa democracia. Os cientistas e sábios brasileiros, como Moniz Bandeira, são os nossos guias na projeção de um futuro auspicioso para nosso país. ►► 431 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O historiador O politicólogo e geopolítico Moniz Bandeira consolidou a sua visão da sociedade brasileira a partir da produção de uma historiografia voltada para os fenômenos políticos no Brasil. Assim, da ciência política e da geopolítica, Moniz Bandeira desenvolveu, em padrão de excelência, uma renovada história política do Brasil. Nos anos 50 do século passado, a emergência da escola dita dos Annales, de matriz francesa, deslocou da vanguarda da historiografia a tradicional história dos fatos políticos, conceituados como événements, acontecimentos singulares encadeados por uma narrativa descritiva, disciplinada pelo positivismo. Essa passou a ser une petite histoire, desprestigiada pelos grandes historiadores. Pouco a pouco, operou-se uma consistente história política, não mais descritiva, impulsionada pelas questões postas pela ciência política e seus desafios relativos ao conhecimento do “poder”, seu exercício, a gestão das sociedades e, acima de tudo, a compreensão das mudanças sociais, econômicas e culturais e suas consequências políticas. A recuperação da história política implicou também a descoberta de um novo lugar “metodológico”, que o historiador francês René Remond chama de carrefour (em bom baianês, a “encruzilhada”). No domínio da política, da luta pelo poder, todos os aspectos sociais, econômicos, religiosos, regionais e culturais atuam de maneira complexa na gestão das sociedades. Não se trata mais de buscar as determinações econômicas da política como superestrutura, e sim ter na história política um observatório da sociedade em movimento. Ainda no domínio da história política, o estudo das revoluções e das rupturas dos ritmos habituais de transformação das sociedades possibilita aos novos historiadores a percepção do todo social que se revela nos momentos de crise. Jules Michelet foi o primeiro a constatar as conjunturas revolucionárias como reveladoras da história de toda a sociedade francesa em movimento. 432 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ele diz textualmente que, na revolução de 1830, ele viu toda a França nas ruas! No Brasil, Luiz Alberto Moniz Bandeira, pelo observatório da história política, propicia, com uma visão da totalidade em movimento, a compreensão de um Brasil que lutava desesperadamente pelo desenvolvimento nos anos 60. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, além de reconstituir a história do golpe de 64, é também uma obra reveladora dos impasses do desenvolvimentismo brasileiro. Do mesmo modo podemos afirmar que o estudo de processos de ruptura da ordem em vários países, empreendido por Moniz Bandeira, ilustra essa boa história política: a queda de Allende, a revolução cubana, a queda do Muro de Berlim e a reunificação alemã. A todas essas obras clássicas, soma-se seu maior best-seller, Formação do império americano, de recorte mais ambicioso, posto que estuda a cristalização de um sistema hegemônico mundial, centrado nos Estados Unidos da América. Esse foi o grande feito metodológico, um todo mundial em movimento, o grande desafio para a dialética de Moniz Bandeira. Um ato de justiça A Universidade Federal da Bahia acerta ao distinguir com a sua maior honraria um cientista exemplar, que produz um conhecimento avançado de qualidade mundialmente reconhecida, cuja influência e orientação devem operar um salto de qualidade no ensino e na pesquisa praticada nesta instituição. Suas ideias deverão ser difundidas através da extensão universitária, de modo a melhor instrumentar os cidadãos brasileiros na luta pela consolidação da democracia e pela afirmação da necessária soberania brasileira. Esse grande cientista traz à tona uma sólida formação humanística e uma rara habilidade no uso das palavras, não ►► 433 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 somente em sua obra de historiador, mas também em sua obra literária. Esse gênio se revela desde os tempos juvenis do Central, até hoje, com a publicação da sua Poética. À razão, sua principal ferramenta de conhecimento do mundo, soma-se a paixão, pela qual vive no mundo. Sua paixão política é muito explícita no seu poema “Che”, escrito em 1967, ainda sob o impacto do fuzilamento de Ernesto Guevara na Bolívia: Guerreiro andante Sem armadura Por entre montes Por entre escarpas Guerreiro ou monge A ti resignas Em luta e povo Numa só pátria Bolívia e Congo Guerreiro andante Noites dispersas Vermelho o campo No teu escudo Nas tuas armas Guerreiro ou monge Outros te seguem Pelos caminhos Sangue e manhã Do teu martírio Sua paixão é lírica e conjugal no terno poema “Uma coroa para Margot”, sua esposa: Entre o castelo e a neve na montanha, Vi tua imagem de manhã madura, O azul vertendo sobre tua alvura, À luz do sol que os campos brancos banha. 434 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 A cicatriz dos tempos lá perdura E tua imagem a paisagem entranha Contrastando a beleza morta e estranha Que o castelo arruinado configura. Sobre ti resvalei e assim, depois, O intenso amor, que mesmo ao frio se ergue, Desvaneceu o espaço entre nós dois. Que meu corpo, que sobre o seu se vergue, Viva entre o teu ventre para sempre, pois Perdi meu coração em Heidelberg. Feliz é a Universidade Federal da Bahia, que pode contar no seu quadro de doutores honoris causa o grande baiano Luiz Alberto Moniz Bandeira.* Ubiratan Castro (1948 – 2013), historiador, gestor cultural, escritor e professor, graduado em direito na UFBA e em história na UCSAL, mestre pela Universidade de Paris (Nanterre) e doutor pela Universidade de Paris (Paris-Sorbonne). Dirigiu o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, a Fundação Cultural Palmares e a Fundação Pedro Calmon. É imortal da ALB na Cadeira nº 33. Discurso de saudação a Moniz Bandeira, membro correspondente da ALB, proferido na cerimônia de entrega ao homenageado do título de doutor honoris causa da Universidade Federal da Bahia, na Sala dos Conselhos da Reitoria da UFBA, em 16 de setembro de 2009. ►► 435 ANTÔNIO CARLOS MAGALHÃES E A CULTURA Uma relação intuitiva e apaixonada Geraldo Machado Só pode bem governar a Bahia quem tenha uma intimidade e uma perfeita identidade e compreensão do povo e da sua cultura. Antônio Carlos Magalhães A gradeço o amável convite do Instituto ACM para falar esta noite sobre o tema “Cultura e baianidade”, ao tempo em que destaco o senso de oportunidade pela escolha do novo direcionamento estratégico do instituto, centrado doravante na área cultural, e que terá como missão o fomento de estudos, análises e discussões aprofundadas sobre o setor. É importante, um trabalho necessário, que o acervo de realizações de Antônio Carlos Magalhães seja recuperado e difundido. Louvo o conjunto de iniciativas para a comemoração da passagem deste quatro de setembro, data que marca seu aniversário, que teve início com a abertura de uma exposição, sob a curadoria de Paulo Gaudenzi, cujo tema percorre e pontua a imensa contribuição das gestões de ACM à cultura baiana. Nosso encontro, hoje — bem ao estilo do homenageado —, se faz como uma alegre celebração da vida. Festeiros somos nós, os baianos — e quem mais radicalmente baiano que ACM? Um exame profundo das relações de ACM com a cultura e com o conceito de baianidade — uma obra em progresso — ►► 437 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 exigiria, para uma compreensão mais apurada do tema, estudos transdisciplinares, algumas alentadas teses de doutorado, tal a dimensão e complexidade dessa interação. Não sou expert ou acadêmico na matéria. Aceitei o convite, entretanto, a despeito de minhas evidentes limitações, por encará-lo como uma oportunidade para compartilhar apenas uma visão pessoal. Um apanhado de reflexões que venho acumulando ao longo do tempo em torno do tema. E, sobretudo, por alguns motivos de ordem pessoal: o primeiro deles, nossa longa amizade — convivi com ACM desde criança, na casa de meus pais; o segundo, pela admiração que ele me despertou como gestor e homem público; e mais, por gratidão e reconhecimento face a sua demonstração de confiança ao me convocar para cargos de governo de grande responsabilidade, que representaram algumas das minhas principais oportunidades profissionais e um aprendizado constante: o universo da política — um campo de uma vastidão vertiginosa — toca e articula tudo e a todos. Quando ainda muito jovem, fui seu oficial de gabinete na Prefeitura Municipal do Salvador. Mais adiante, estive à frente da Fundação Cultural do Estado, quando esta equivalia, em sua representatividade institucional e em suas atribuições, a uma secretaria de cultura. Sucessivamente, reestruturei e dirigi o Promo-Centro Internacional de Negócios. Participei diretamente do processo de implantação da Fundação Luís Eduardo Magalhães, de que fui o superintendente-geral durante oito anos. Também exerci por um período a função de secretário da indústria e comércio da Bahia. Meu depoimento é, portanto, forçosamente afetivo, subjetivo, fragmentado. Um compartilhamento que mistura reminiscências históricas e lembranças pessoais, resultando por formular aqui e ali algumas hipóteses e considerações, ainda que desprovidas de qualquer rigor analítico, pelo menos por enquanto. 438 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Memória coletiva Vamos retroceder ao final da década de 60, quando já era manifesta e declarada a paixão do então prefeito Antônio Carlos pela Bahia e, mais especificamente, pela cultura baiana. Repetidas vezes o ouvi afirmar que a permanência do nome de um homem público no imaginário coletivo seria tanto mais longeva quanto mais estivesse sua obra associada a uma atuação que resultasse em um legado cultural. Ele tinha já a perfeita compreensão de que a memória afetiva popular perpetua os artistas e aqueles que promovem a consolidação e o enriquecimento da cultura local. O coração do povo preferia escancaradamente os artistas, os trabalhadores da cultura e seus mecenas aos meros construtores de fortunas, fábricas ou pontes. Coisa que se repete e se comprova (pelo menos) desde a Babilônia, passando pela constituição do Egito como projeto de nação no trabalho árduo de construção da Esfinge, seu imenso orgulho, e das Pirâmides; por Atenas, de Péricles e do Partenon, cujo ethos tanto era guerreiro quanto cultural; e, num salto no tempo, pelos Médicis e o esplendor artístico de Florença. ACM tinha razão, são constantes os exemplos na história! Convivialidade Fui testemunha à época de como o jovem prefeito ACM encantou-se pelas ideias de um expert francês da Unesco, Michel Parent, que lhe foram apresentadas pelo saudoso Vivaldo da Costa Lima. Parent foi provavelmente um dos primeiros especialistas em cultura a elaborar um relatório para a Unesco no qual reconhecia a especificidade da Bahia, enaltecendo sua riqueza identitária e singularidade cultural. Afirmava ele que a Bahia, um tesouro sociocultural, pertenceria à ordem do ►► 439 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que há de mais valioso entre patrimônio material e patrimônio imaterial mundial. Recomendava um trabalho exaustivo de levantamento e preservação, sobretudo no núcleo do Centro Histórico de Salvador, conjunto arquitetônico de beleza rara e harmonia invulgar. Para arrematar, Parent aconselhava também — e foi a primeira vez que eu ouvi essa palavra — que os governos estimulassem a convivialidade como suporte de atração de visitantes, vale dizer, propunha uma relação direta de convivência e de integração deles no dia a dia da população. Em sua opinião, a despeito das visíveis sequelas e mazelas da pobreza da cidade, Salvador abrigava uma sociedade extremamente original, calorosa e acolhedora, detentora de incontáveis trunfos culturais. Suas recomendações eram, portanto, no sentido de que deveríamos promover a imersão dos visitantes no cotidiano da cidade, deixá-los maravilharem-se com a qualidade humana da gente da Bahia, mergulhados no que seria uma cultura viva e interativa, ao invés de se criar uma vitrine artificial para exibir nossa cultura na qualidade de um adorno. Importante assinalar que aqui já se lidava com um conceito amplo e moderno de cultura, e não mais um cercadinho meio parnasiano dedicado às “artes”. Mais adiante, retomaremos alguns dos gatilhos iniciais do grande interesse despertado pela Bahia no cenário da intelligentzia internacional. Impossível não suspirar, com muita saudade, ao falar da calorosa cordialidade de nossa gente e de uma Bahia com características e ritmos mais originais, criativos, humanos e hospitaleiros. Recortes Falar concisamente de ACM e de sua relação com a vida cultural da Bahia exige, é claro, alguns recortes. Para que se percebam suas grandezas e contradições, é preciso, obviamente, 440 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que ele seja situado, contrastado, compreendido a partir — e no contexto — de suas relações com o tempo em que viveu. Perceber, grosso modo, que efeitos as coordenadas daquele tempo histórico tiveram sobre ele, como interagiram, e, por sua vez, quais foram as inflexões que ele imprimiu sobre seu tempo. E mais: o que sobreviria a ele e o que sobreviveria depois dele? Para um estudo mais acurado se faria necessário, portanto, um preâmbulo crítico que pudesse esboçar o contexto histórico, sociocultural, econômico e político da época. No caso particular de ACM, esse contexto corresponderia a várias fases distintas: à de prefeito, às três como governador e àquelas atinentes aos seus mandatos como senador. Como sabemos, a cultura é um permanente vir a ser; um lento e complexo processo de construção coletiva, influenciada e revolvida por múltiplos atores e fatores das mais diversas ordens. Tanto corresponde, quanto, ela mesma, influencia e imprime seu próprio ritmo às mudanças da sociedade. Costuma-se dizer: “a cobra morde o próprio rabo”. Seus paradigmas e políticas tanto são alterados pelas constantes reorganizações sociais e urbanas, como eles próprios alteram, por sua vez, os movimentos da sociedade, numa via de mão dupla. Quais seriam, portanto, os anseios, os mitologemas do imaginário coletivo de como Salvador e Bahia se viam e seriam vistas pelo resto do país e do mundo? Para onde a destinaria o seu passado histórico internacional como capital brasileira e, enquanto cidade-porto, a mais importante das Américas? Salvador, do ponto de vista dos tempos de percurso da época, estava a um passo do burburinho das cortes de Lisboa, consequentemente da Europa, e do tráfico e comércio com a África e a Ásia. Sua capital e seu Recôncavo atraíam a cobiça de franceses e holandeses, expulsos daqui a pau, pedra e arcabuzes. Todos os ventos e correntes marítimas traziam para cá barcos e caravelas a caminho do Oriente e do continente africano. Que ►► 441 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 transportes da história ela pôde então alcançar a tempo? Quais deles ela perdeu? Quais suas fomes, quais seus transbordos? Após alguns séculos de esplendor e importância como o maior centro do Hemisfério Sul, Salvador perdeu o seu posto de capital da colônia para o Rio de Janeiro e, aos poucos, foi-se tornando uma cidade isolada. Por um período conseguiu manter ainda seu lugar de destaque nas rotas de comércio internacional. Desde as primeiras capitanias, as rixas nordestinas já se delineavam, secundadas mais tarde pelas rivalidades com o Sul do país, os centros auríferos e a nova capital. A bela adormecida, a pacata e modorrenta Salvador foi, pouco a pouco, ficando para trás, a cada dia perdendo o lustro das folhas de ouro de seus altares, como uma rainha destronada, coberta de teias de aranha e pela poeira dos séculos. Com a invenção do navio a vapor, a abertura dos canais de Suez e do Panamá e os desvios das rotas, Salvador tornou-se então completamente superada e esquecida. Essa passagem histórica foi exaustivamente estudada pelo professor Cid Teixeira. A baianidade Apeada do poder, durante quase um século nossa cidade viveu estanque, no marasmo, fechada em si mesma, envolta em nostalgias do seu passado de antiga capital do Brasil Colônia. Obrigada a voltar-se para seu próprio umbigo, foi uma guardiã zelosa de seus ritos e tradições e, qual uma estufa, conseguiu decantar e sintetizar uma forte memória coletiva. Segundo vários estudiosos, durante esse período ela foi digerindo e metabolizando suas entranhas, terminando por forjar assim uma identidade autorreferente, uma forma particular de tecido social, a matriz de um jeito de ser e de estar que viria a definir muitos dos elementos comportamentais básicos que permitem, ainda hoje, que sejamos reconhecidos como 442 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 baianos, com traços identitários muito singulares. Gerações sucessivas de filhos de portugueses — entre esses, um bom contingente de cristãos-novos — com nativas aculturadas foram-se misturando à resiliência da seiva africana. Nostalgias de Lisboa, suspiros europeus misturavam-se a meninos que se indianizavam levando o gado pelo sertão, longe da Salvador desenhada como a Lisboa dos Trópicos, a salvo de olhares controladores. Tudo isso percutido e ritmado na batida maciça da presença africana — pura ou mesclada aos portugueses e nativos. Segundo Jorge Amado, com muito bom humor, a África nos teria salvado da melancolia portuguesa. Esse cadinho fermentava, o caldo cultural engrossava, se bem que ainda meio talhado. Perto de completar “cem anos de solidão”, o isolamento e a estagnação permitiram que a Bahia mantivesse e exacerbasse características únicas de hábitos e costumes, preservando uma relação forte e viva com seu passado colonial e um apaixonado culto às tradições. Portanto, o que perdemos em oxigênio, ganhamos em condensação. Os búzios foram jogados, as sortes estavam lançadas. A Bahia, por conta de suas misturas e amálgamas — aromas, sabores, temperos, dengos e magias —, foi gradativamente acumulando prestígio no exterior, ocupando no imaginário internacional um lugar especial como uma das terras legendárias, míticas e mágicas do planeta. A grande virada Fazemos agora uma elipse, transportando-nos aos anos cinquenta. Só com a abertura da estrada Rio-Bahia, ligando o país de norte a sul, o isolamento da Bahia é rompido e se inicia um processo de reabertura e religação com o mundo. A Bahia é, por assim dizer, redescoberta. É nessa década que, apoiado nesse lastro histórico de baianidade, um personagem-chave imagina ►► 443 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 e impulsiona o que viria a ser a grande virada cultural baiana: o reitor Edgard Santos. Ele traz para Salvador artistas e pensadores de cultura, todos de grande quilate, e provoca assim uma revolução na universidade e na vida cultural baiana. Salvador, com aproximadamente 500 mil habitantes, era então uma cidade provinciana, com anacronismos empolados, reconhecidos pela elite social como a equivalência de uma vida cultural que, no pior sentido, se poderia chamar de afrancesada ou bacharelesca. Então reitor da UFBA, Edgar Santos criou, num gesto visionário, magistral, as primeiras faculdades voltadas para as formações de música, teatro e dança. Para dirigi-las, trouxe de fora personalidades inovadoras, como Martim Gonçalves, Swanka e Koellreutter. Essa grande obra do reitor atraiu para a Bahia um contingente de professores talentosos, altamente qualificados, como Ernest Widmer, Walter Smetak, Rolf Gelewski, Lina Bo Bardi, Piero Bastianelli, entre muitos outros. A vida cultural de Salvador começava a fervilhar, tornava-se intensa, de grande qualidade. Nada se esgotava em si mesmo, tudo dava origem a mais coisas e ainda tantas outras. Os resultados desse trabalho se fizeram sentir em todos os movimentos artísticos importantes e de vanguardas, acontecidos aqui na Bahia e no Brasil, nesse período e adiante, com ecos que nos chegam até os dias de hoje. A Bahia entrou assim em combustão — uma fissão cultural de grande envergadura, (re)imaginando sua rica herança identitária com a trepidação criativa dos novos tempos e injunções. A transversalidade da atuação de Edgard Santos siderou Antônio Carlos Magalhães. Já mencionamos, antes, que a política é algo que permeia tudo. O mesmo ocorre com a cultura. Não há cultura sem política e vice-versa. E Antônio Carlos Magalhães toma para si esse modelo e, nesse sentido, sempre tentará emular Edgard Santos. ACM teve a influência de várias pessoas que o inspiraram a priorizar o vetor cultural: seu pai Magalhães Netto e os 444 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 incontáveis amigos ligados à cultura, a exemplo de Odorico Tavares, Vivaldo da Costa Lima, Emanuel Araújo, entre muitos outros. Edgard Santos, no entanto, permaneceu como o seu maior inspirador. Muito por conta da celebridade do escritor Jorge Amado — no exílio no início dos anos 50 — e da força de sua literatura que então contava com o suporte da propaganda internacional comunista, não foi por acaso que a cultura da Bahia começou a atrair as atenções da intelligentzia europeia, em especial a francesa. Fomos revalorizados, cuidadosamente observados por cientistas sociais, etnólogos e antropólogos, como Roger Bastide, Levy-Strauss, Pierre Verger e tantos outros. Olhavam Salvador e viam nela uma cidade feminina. Escreviam, imaginavam novas maneiras de se habitar esse universo que se estendia como uma ponte entre a matéria e o espírito, onde se alimentam os orixás todos os dias com o nosso axé e também com deliciosas iguarias. Bahia, um holograma, um estado de espírito, uma nação que existe em muitos planos paralelos e convergentes, superando todas as suas contradições. Uma Bahia misteriosa, surpreendente e sedutora, sincrética, onde Nossa Senhora mora no mar e às vezes atende pelo nome de Oxum ou de Yemanjá. Território sagrado e profano, onde a fé e a festa acasalavam-se harmoniosamente. A celebração de uma vida, ao mesmo tempo real e mítica, em dimensões que se interpenetram, trazendo as divindades para bem perto de nós. Uma terra encantada... Uma terra em que “não se precisa dormir pra sonhar”, no dito genial de Dorival Caymmi. O olhar estrangeiro foi para nós muito importante, estruturante, por seu distanciamento crítico, por perceber melhor as coisas do lugar sem que sua visão fosse atrapalhada por uma proximidade excessiva ou por comprometimentos míopes. Nos fez acessar e reavaliar muitos pontos, cegos para nós mesmos, nos ensinaram a nos perceber, a estimular nossa capacidade de ►► 445 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 autorreconhecimento, deixando um saldo de valorização de todo o nosso rico patrimônio artístico e cultural, de todo esse patrimônio imaterial ou simbólico singular, tornando patente o consenso de que a Bahia é, inequivocamente, um tesouro muito especial. Nenhum olhar é completamente inocente, é claro. Mas a visão possibilitada por certo recuo amplia seu escopo, facilita uma melhor observação da grande cena. Permite descobrir inter-relações e intenções. Quando a Bahia se reabre para o mundo, isso se faz mediado exatamente pela cultura, sua mais poderosa força de expressão. Ressaltamos uma faceta importante da cultura baiana daquela época: todas as atividades artísticas, desde o período do Brasil Colônia, concentravam-se rigorosamente em Salvador (segundo o mestre José Calasans, vivíamos uma cultura do tipo “capitalista”, pois era absolutamente cativa da capital!). Além disso, a única possibilidade de financiamento das artes e da cultura residia no mecenato estatal. Infelizmente, isso ocorre até hoje, salvo raríssimas exceções. A Bahia nunca contou com um empresariado capaz de cumprir com a sua parte na responsabilidade social de amparar e ajudar a qualificar a vida cultural da cidade. Indo na esteira do “choque tectônico” provocado pelas inovações culturais de Edgar Santos, que trouxe inspiração e energia intelectual de alta voltagem para a então velha província, a Bahia liderou inúmeros movimentos de vanguarda que passaram desde então a vicejar no Brasil: o tropicalismo, com Gil e Caetano; o cinema novo, com Glauber Rocha; o movimento música nova com Ernst Widmer e o Grupo de Compositores da Bahia; a bossa nova, com João Gilberto; a literatura, com João Ubaldo, entre tantos e tantos outros. Foram tempos propícios à explosão de novos talentos. Inspirados assim na atuação exemplar de Edgar Santos, sucessivos governos estaduais passaram a garantir apoio privilegiado ao setor cultural. 446 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Revival Nos anos 80 e 90, a Bahia viveu um verdadeiro revival cultural. “Terra Prometida” das artes, ela passou a ser invejada por artistas e produtores de outros estados brasileiros, que fizeram daqui a sua destinação preferida. Virou pouso natural da maioria dos grandes nomes nacionais, que vinham saber o porquê de tanto talento concentrado, de tamanha criatividade. Pela primeira vez se rompeu o colonialismo cultural legitimador do Sudeste e foi interrompida a histórica migração de baianos talentosos que deixavam o nosso estado por não encontrar aqui ambiente favorável para desenvolverem sua arte enquanto também atividade sustentável. Para orgulho de todos nós, a Bahia passou a ser uma espécie de pátria cultural mítica. Sem qualquer bairrismo, o termo baiano correspondia a uma distinção, a uma grife de inteligência, grande probabilidade de um talento criador. Foi o apogeu da nossa autoestima. Passamos a ser objeto de admiração na imprensa brasileira, com nosso jeito único de ser, nossa forma dengosa e sedutora, nossa maneira de falar, de festejar... Nesse momento a Bahia é reconhecida como o mito fundador do Brasil. O legado Retomamos aqui o ingresso de Antônio Carlos na prefeitura ao final dos sessentas. Durante toda a sua vida pública, ACM irá retrabalhar esse legado: a Bahia foi sua matriz, sua amada, seu projeto de vida, o principal objeto de sua libido. ACM, do menino brigão do Campo da Pólvora ao estudante na tradicional Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus, teve sua identidade inteiramente moldada pela Bahia. Ele viveu permanentemente movido por uma visão apaixonada por esta terra e sua gente, ►► 447 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 consciente dos valores e da riqueza cultural que a distinguem. E com perfeita consciência do prestígio nacional e internacional de que ela desfrutava. Para entendê-lo, é preciso compreender bem a Bahia. ACM desejava ser como uma ponte entre o sonho grandioso de uma Bahia que não negava suas origens e tradições, de modo a cumprir seu ideal. Abria-se com coragem para abraçar sua destinação de futuro, sem refugos diante do desconhecido. Junte-se a isso uma personalidade forte, muitas vezes autoritária, centralizadora, polêmica, diretiva, complexa e visionária. Dotado de um talento excepcional e ainda de um faro e energia política rara, ele alcançou os mais altos postos da República, provocando muitas paixões, mas também muitos desafetos. Mas, como observou Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra!”. ACM foi um herdeiro direto de tudo isso. Registre-se, de passagem, que grande parte dos colaboradores nos seus sucessivos governos sempre foi composta por mulheres e homens engajados na militância de esquerda, escolhidos por mérito profissional. A propósito, cabe aqui uma observação reveladora da sua personalidade: em todos os postos executivos que ocupei, ACM nunca me pediu um só cargo. Pude escolher livremente os meus auxiliares, baseado apenas em valor e competência, sem qualquer distinção de gênero, religião, origem étnica, filiação partidária, sindical e/ou ideológica. Jorge Amado, Caymmi, Carybé e Verger Uma conjugação cósmica configura o quarteto singular — eu diria, mágico — que desenharia o “núcleo duro” de nossa baianidade: Jorge Amado, Caymmi, Carybé e Verger. São eles os verdadeiros pais fundadores de uma certa ideia de Bahia, ao conseguirem, com precisão, filtrar nosso DNA cultural da realidade das ruas, mares e campos baianos. Apaixonados, amantes, 448 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 sonharam, idealizaram, cantaram, escreveram, fotografaram e pintaram as tantas Bahias que são uma só, dividindo entre si a musa com cordialidade fraterna. E a amada devolvia e se entregava a cada dia mais parecida com o sonho, cada dia mais Bahia. Reinventava-se, tecendo uma narrativa ininterrupta sobre si mesma, uma fabulação contínua, “repetindo para fazer diferente”, secretando de seu ventre uma teia trançada de passados, presentes e futuros, toda azeitada a dendê. Seu dorso arrepiado, seu Pelourinho ruindo aos pedaços, a ferida da miséria em contraste indecente com a beleza elegante e a alegria de seu povo. Para sonhar, nenhum deles negou essa realidade ou escondeu a dureza das contradições de nossa terra. Suas narrativas espelharam — e traduzem — o que há de universal e grandioso nas tramas do cotidiano popular da Bahia. Aspecto esse que permitiu que nós nos reconhecêssemos nesse espelho. E ACM intuía perfeitamente, na carne e no coração, o que era essa Bahia, o que significava e significa “baianidade”. A gestão da cultura nos anos ACM A política não pode ser feita somente com discursos finamente elaborados, negociações intermináveis que pouco fazem e, via de regra, estacionam na estagnação. Todo discurso que não sabe encontrar o caminho da ação esgota sua sabedoria, justiça ou avanço, por não saber encontrar a prática. Por caminhos insondáveis, muitas vezes o “fazer acontecer” vem pelas mãos do colérico; o gesto exato e preciso chega pela impaciência. Serve-me de epígrafe esta frase de ACM: “Só pode bem governar a Bahia quem tenha uma intimidade e uma perfeita identidade e compreensão do povo e da sua cultura.” Vale dizer: só pode bem governar a Bahia quem, por amor, tenha com ela perfeita identidade e intimidade, quem esteja de peito aberto a lutar por ela como um leão, apto e devotado à sua ►► 449 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 paixão, sobretudo através de atos. Uma paixão tão grande que não cabe em uma só vida, só cabe no sonho sonhado por muitos, que só sabe encontrar sua voz na arte. ACM aproveitou muito bem esse período áureo da Bahia, perfeitamente sintonizado com seu tempo. Nenhum político baiano, talvez, tenha conseguido, de modo tão intuitivo, afinar essa sintonia e ouvir a canção do seu tempo. Fui testemunha de que, enquanto governador, ele apoiou praticamente todos os setores artísticos, todos os segmentos e linguagens culturais, sem exceção. Para comprovar a extensão e o valor da sua imensa contribuição à cultura baiana, basta uma simples leitura das suas realizações, na exposição do Instituto ACM. Como poucos homens públicos, ele criou condições de desenvolvimento às artes, de estímulo e fortalecimento aos processos socioculturais e de valorização/preservação do grande patrimônio histórico, artístico e monumental da Bahia. Nesse contexto, deu suporte às instituições culturais públicas e privadas, criou inúmeros novos espaços artísticos, recuperou outros tantos e apoiou, sistematicamente, os eventos da cidade e manifestações populares as mais diversas. Lembremos também da criação, no seu primeiro governo, de duas instituições que tiveram papel importantíssimo para o desenvolvimento do setor: o IPAC e a Fundação Cultural. Não tenho o menor registro de crises ou de que no seu tempo tenham faltado verbas para a cultura. Em geral, todos os grupos culturais floresceram e amadureceram nos períodos em que ele governou o estado. A Bahia assistiu a uma gradual, saudável e inédita profissionalização dos seus artistas, com espetáculos de crescente qualidade que passaram a percorrer o Brasil. Com a qualidade das produções, o público cresceu e novas plateias foram fidelizadas. Ao longo de sua vida, ACM fez da aproximação dos artistas baianos, eruditos ou populares, uma rotina. Era visto por todos como um grande catalisador, que acolhia e viabilizava as boas propostas. Os artistas confiavam nele e no “fazer acontecer” 450 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que lhe era muito próprio. A partir dessa relação e confiança, multiplicaram-se as iniciativas culturais na Bahia. Nos seus últimos anos de vida, já sentindo o peso da idade e sua saúde se fragilizar, ele manifestou, cada vez com maior frequência, a sua intensa paixão por sua terra. Uma paixão que acabou marcando indiretamente sua forma de fazer política. Virou sua principal marca registrada proclamar — reiteradas vezes, como um mantra — o seu imenso amor pela Bahia: “Esta terra é a razão da minha vida!” Acentuava, dessa maneira, o valor político implícito que esse amor comportava, pois só quem o vivesse com tamanha intensidade seria capaz de bem defender os interesses da nossa terra. Jorge Amado repetia que, mesmo com inúmeras diferenças políticas, só ACM amava tanto a Bahia quanto ele. No entanto, quem o conheceu de perto sabia que não se tratava de um amor calculista, racional, ou de marketing eleitoral. Esse seu amor era como uma respiração para ele: o seu ar. ACM teve visões e atitudes de estadista. Para implementá-las, ele se envolveu em sucessivas lutas, duras, por vezes ferozes, porém com a fibra de um guerreiro destemido, sempre defendendo e afirmando, em alto e bom som, para todo o país ouvir, o interesse maior da Bahia. Foram muitas as suas batalhas vitoriosas: a conquista do Oeste, a integração do Sul da Bahia, as avenidas de vale em Salvador, o Centro Administrativo da Bahia, o Polo Petroquímico de Camaçari, a Ford, entre tantas outras. Nunca permitiria, porém, que a Bahia, sob pretextos desenvolvimentistas, hipotecasse e matasse a “galinha dos ovos de ouro”, ou seja, sacrificasse sua própria alma. Ele nunca permitiria — como não permitiu —, por exemplo, que nosso patrimônio histórico e cultural fosse arruinado. Muito pelo contrário. Através do IPAC, foram feitas três diferentes intervenções para a recuperação do Pelourinho — uma em cada mandato como governador — que valem como provas da centralidade e da seriedade de seu compromisso e amor à nossa terra. Mesmo que alguns erros conceituais tenham sido ►► 451 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 cometidos nas complexas intervenções ligadas à revitalização do Centro Histórico, pelo menos ele fez, ele ousou, empenhou-se a fundo, e acabou realizando coisas grandiosas. Não só ACM elegeu esse desafio como prioridade do governo, alocando recursos próprios, como também agiu com máxima firmeza e audácia, liderando pessoalmente as estratégias e, sobretudo, exigindo resultados. Aplicou, assim, toda energia governamental necessária ao resgate do símbolo maior de Salvador. Para a alegria e encantamento dos baianos, os resultados foram surpreendentes, e o Pelourinho foi redescoberto em seu esplendor. A recuperação do Teatro Castro Alves foi outro exemplo emblemático dessa sua postura de respeito ao nosso patrimônio. Para aquilatar o apreço de ACM pela cultura, cito, de passagem, algumas das principais realizações quando estive à frente da Fundação Cultural do Estado. Foram realizações pioneiras, que refletiram um conceito abrangente de cultura, dentro de uma visão sistêmica e estruturante de política cultural, levando em conta as artes e as humanidades de uma Bahia multifacetada, orgânica, plena, no contexto das diversidades que lhe são próprias e que definem sua identidade singular. De 1979 a 1983, quando da minha gestão à frente da Fundação Cultural, ocorre um fato raro no estado: o orçamento cultural foi aquele que, proporcionalmente, registrou o aumento mais expressivo entre todos os setores de governo. Esse aporte substancial de recursos permitiu inúmeros avanços significativos. A título de ilustração, registro aqui apenas alguns exemplos do muito que foi realizado naquele período: — Orquestra Sinfônica e Balé do TCA — criação desses dois corpos estáveis na estrutura do Teatro Castro Alves, colocando a Bahia numa posição de destaque no cenário nacional e internacional. — Centros de cultura no interior do estado — formulação pioneira do projeto de criação dos primeiros sete CCIs na Bahia; captação de recursos específicos/aprovação de financiamento 452 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 pela Caixa Econômica Federal; doação dos terrenos e início do seu processo de construção. — Museu de Arte da Bahia (MAB) — instalação do MAB em nova sede no Corredor da Vitória, o que lhe permitiu redimensionamento e ampliação do acervo e intensificação do programa de dinamização. — Academia de Letras da Bahia — nova sede em bases qualificadas, com sua instalação no prédio Solar Góes Calmon, no bairro de Nazaré. — Museu de Arte Moderna da Bahia (MAMB) — reordenação/recuperação dos espaços; ampliação dos equipamentos e instalações; ampliação/desenvolvimento de programas socioculturais e de atividades artístico-pedagógicas através das oficinas de arte em série; implementação dos processos de dinamização e de difusão artística e cultural. — Cinema de Arte da Bahia — novo equipamento de difusão cultural instalado no prédio da Biblioteca Central do Estado, com programação seletiva de exibição de filmes de arte e de vanguarda. — Literatura e edições — amplo programa de criação de linhas editoriais, com destaque para a Coleção dos Novos (no total, 57 títulos foram editados no período, entre eles a obra seminal de Carybé, Iconografia dos deuses do candomblé da Bahia); gravação e lançamento de discos emblemáticos de compositores e artistas da Bahia, como Elomar, Smetak, Sexteto do Beco etc. — Programa de dinamização artística e sociocultural — forte apoio sistemático a eventos e produções realizados por terceiros em Salvador, a exemplo da Oficina Nacional de Dança Contemporânea, Jornada de Curta Metragem, Foto Bahia, Festival de Música Instrumental, todos de grande prestígio nacional. — Sala do Coro do TCA — instalação desse novo espaço cultural como suporte às produções artísticas de pequeno e médio portes, internas e externas, do Teatro Castro Alves. ►► 453 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 — Grandes temporadas e eventos — foram atraídos para a Bahia praticamente todos os principais eventos, shows e espetáculos internacionais que chegavam ao Brasil. — Homenagens especiais e grandes produções — a principal foi a Exposição Comemorativa dos 70 Anos de Jorge Amado — reunindo fotos, textos e documentos referenciais diversos, utilizando-se principalmente memória das capas de todas as traduções de sua obra mundo afora — dentro de uma programação itinerante apresentada no Ceará, em Brasília e, como destaque, na Bienal do Livro em São Paulo. Essa ação da Fundação Cultural acabou servindo de inspiração à criação, anos depois, da Fundação Casa de Jorge Amado. — Editais de coprodução — implantação das primeiras políticas públicas de democratização voltadas à distribuição de verbas a projetos culturais na Bahia através dos editais de coprodução, destinados a artistas profissionais. Concluindo... O conjunto de nossas realizações à frente da Fundação Cultural, constato hoje de um ponto de vista já distanciado e enriquecido por muitas experiências com as quais posso contrastá-lo, significou um divisor de águas, um salto expressivo em termos de gestão cultural frente a seu tempo. Não fizemos uma política de varejo, nem restrita às elites, como era praxe. Redesenhamos o aparato institucional e ampliamos suas atribuições e suas interfaces com a sociedade, em um crescimento exponencial da qualidade e do número de atividades e um grande avanço em termos de espaços e equipamentos recuperados e/ou inaugurados. Sobretudo, destaco, formulamos os fundamentos de um novo cenário institucional, incorporando inovação conceitual na concepção das políticas públicas, ancoradas por uma visão de caráter mais antropológico, 454 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 e não circunscrita a aspectos meramente artísticos da cultura, pontuais e/ou espetaculares. Com um extenso leque de ações socioculturais comunitárias, até então pioneiras, no interior e nas periferias, ensaiavam-se, então, em nosso estado, no início dos anos 80, de forma ainda experimental, os primeiros passos de uma descentralização espacial e da inclusão na sua dinâmica cultural de novos sujeitos — que, aliás, estavam ausentes do jogo das pressões por verbas públicas —, a exemplo dos grupos afrodescendentes, então arredios a qualquer proximidade e/ou interação com o estado. Esses movimentos de descentralização territorial foram, evidentemente, muito acentuados, alguns anos depois, pelo movimento de democratização que varreu o Brasil após 1988 e pela subsequente explosão de novas políticas públicas, criadas pari passu ao reconhecimento dos direitos sociais dos diversos extratos da sociedade brasileira. Tudo isso, é claro, viria a transformar, radicalmente, os cânones da gestão cultural em nosso país. Esse depoimento, como disse logo no início, corresponde apenas a um esboço temporal, mas declara, ao final, uma ambição. A de registrar a importância das ações de um homem público que engrandeceu a cultura da sua terra. No estado democrático, as administrações se sucedem. Infelizmente, ainda não chegamos a um patamar de equanimidade e civilidade que permita o reconhecimento tranquilo do papel histórico de pessoas tidas como adversários políticos. Procura-se sistematicamente fazer com que caiam no esquecimento, principalmente por relegarem-se ao desabrigo as áreas onde desenvolveu excelência, coisa que se pode constatar, infelizmente, em muitos períodos da nossa história. Sejam quais forem os futuros governantes, caso levem adiante, a contento, sua relação com a cultura baiana, se algum sentido de baianidade cultivarem em si mesmos, estarão lidando, a gosto ou a contragosto, com o legado de Antônio Carlos Magalhães. ►► 455 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 O legado de um homem que, acima de tudo, contra tudo e apesar de tudo, amou, como um leão, a Bahia acima de todas as coisas.* Geraldo Machado é engenheiro, mestre em gestão social e desenvolvimento pela UFBA. Foi secretário da indústria e comércio do estado da Bahia. Dirigiu instituições públicas e privadas, sendo o atual superintendente do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural da Bahia. É cavaleiro na Ordem das Artes e das Letras da França. Desde 2003 ocupa a Cadeira nº 4 da ALB. Discurso proferido em evento do Instituto ACM nas homenagens pelo aniversário de nascimento do acadêmico Antônio Carlos Magalhães, no auditório do Sheraton da Bahia Hotel, em quatro de setembro de 2013. 456 ◄◄ CLÁUDIO VEIGA As letras por destino Aleilton Fonseca S r. presidente Aramis Ribeiro Costa, senhoras acadêmicas, senhores acadêmicos, familiares do professor Cláudio de Andrade Veiga e seus amigos, senhoras e senhores. O professor e acadêmico Cláudio de Andrade Veiga teve as letras por destino — a seiva de sua vida, a glória de sua existência. Em memória, estamos mais uma vez em convívio com o nosso saudoso e inesquecível presidente, para homenageá-lo e para celebrar os seus laços afetivos e eternos com esta casa. O seu nome atribuído à sala da presidência e o seu retrato a invocar sua presença no recinto solene são ícones marcantes de sua obra ímpar, construída ao longo de quase 30 anos de imortalidade acadêmica, 26 dos quais no exercício pleno da presidência desta agremiação. Nascido em Salvador, em 28 de maio de 1927, Cláudio de Andrade Veiga nos deixou, aos 84 anos, em 29 de março de 2011. Com sua partida repentina, ficamos todos um tanto academicamente órfãos e ciosos do dever de continuar sua obra maior — que se traduz pela existência fértil e notável da Academia de Letras da Bahia. Assim como se foi, assim é que o percebemos tão presente entre nós, alvo de nossas homenagens, assunto de nossas conversas e referências constantes, uma presença simbólica em essência. Como cabe a um imortal, continua vivo na memória da cultura baiana e da sua amada Academia. E agora encantado — é ainda mais forte a sua presença, com seu nome e sua imagem nos inspirando na sala da ►► 457 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 presidência, onde exerceu seu mister por tantos anos, com o amor do sacerdócio. Três bases firmes em sua vida: a família — tendo como pilar sua esposa, a saudosa Sra. Meire Veiga —, a cultura francesa e a Academia de Letras da Bahia. A essas três entidades consagrou toda a sua vida, as suas energias, a vitalidade de sua inteligência — e o seu amor incondicional. A formação e a trajetória intelectual do professor Cláudio Veiga são exemplares, pela riqueza de sua titulação, pela produção de obras relevantes, pelo exercício seminal da docência e da administração institucional. Seus feitos estão muito bem registrados em dois discursos de homenagem, aquele proferido por sua ex-aluna, e depois colega, a professora Denise Lavalée, e o artigo do seu sucessor na presidência da ALB, professor Edivaldo M. Boaventura, ambos publicados na revista da Academia. Desde cedo determinado, Cláudio Veiga descobriu sua vocação e gosto pelos estudos clássicos, já no Seminário da Bahia, e elegeu a cultura literária francesa como base de sua sólida formação intelectual e humanista. Muito jovem, foi realizar os seus estudos na França, tendo-se formado na eficiente École de Préparation et de Perfectionnement des Professeurs de Français à l’Étranger, na secularmente prestigiosa Sorbonne Université de Paris; e aprofundou sua formação profissional no consagrado Institut de Philologie Romane, na cidade de Estrasburgo. Sua aventura estudantil na França está registrada magistralmente no livro de memórias Um estudante em Paris, publicado em 2004. Formado pelos mestres franceses, desenvolveu uma carreira brilhante de professor de francês e literatura francesa no famoso Colégio da Bahia, do qual foi diretor-geral. Por muitos anos, até se aposentar, foi professor titular de literatura francesa do fértil Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, ajudando-o a tornar-se o grande centro de formação em letras 458 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 que é hoje. No final dos anos setenta, foi diretor do Instituto de Letras da UFBA, tendo exercido interinamente o cargo de reitor em algumas ocasiões. Por sua imensa contribuição como professor e diretor, recebeu a homenagem mais alta, sendo consagrado professor emérito da UFBA, título que veio coroar sua brilhante carreira universitária. Envolvido com sonhos e projetos, presidiu a Associação Brasileira dos Professores Universitários de Francês. Sempre pronto a colaborar, foi membro do Conselho Estadual de Cultura. E abraçou a vida acadêmica na ALB, com raro senso de entrega e doação, desde 1978, quando tomou posse, depois de eleito no ano anterior. Tornou-se seu presidente em 1981 e, com o apoio constante e efetivo de seu grande amigo e inspirador Jorge Calmon, exerceu o cargo até o ano de 2007, perfazendo 26 anos de trabalho, de dedicação e de construção de uma Academia cada vez mais sólida, operante e prestigiada nos meios intelectuais no país e no exterior. Apesar da trabalhosa missão na docência e na administração institucional, nunca deixou de pesquisar e produzir artigos e ensaios. Como bem destacou Denise Lavalée em seu discurso de homenagem ao mestre: “O perfil do homenageado se inscreve sob múltiplas vertentes. Mergulhado na secularidade de um espaço social ambíguo, ele se pautou sobre uma formação clássica cujos fundamentos filosóficos, ancorados na tradição, transpareciam em seus trabalhos, norteando o criterioso reexame dos textos selecionados, em permanente busca de autenticidade e de apuro técnico, presentes nas obras que publicou.” De fato, suas obras refletem os saberes do estudioso de cultura francesa e o tirocínio do docente e, em seguida, traduzem a perícia do ensaísta e tradutor. Inicialmente, publicou trabalhos como Das pequenas cartas de Pascal (1954); A comparação e as provinciais (1957); Aspecto de Pascal escritor (1959). E logo aparece a produção do estudioso da língua e da gramática, refletindo a ►► 459 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 experiência acumulada no ensino e na pesquisa. Então publicou a Gramática nova do francês (1965), obra didática que ensinou as estruturas e a semântica francesas a diversas gerações. Já o ensaísta se afirma definitivamente com os livros Castro Alves: guia da catedral (1966); Textos franceses (1966); Camões e Ronsard (1972); Miniantologia da poesia francesa (1972); Ode ao Dois de Julho: a liberdade guiando o povo (1973); Um brasileiro soldado de Napoleão (1979); Aproximações: estudos de literatura comparada (1979); Sete tons de uma poesia maior (1984); Um retrato da Bahia em 1904 (1986); Antologia da poesia francesa: do século IX ao século XX (1991); Atravessando um século (1993); Morte de alguém (1995), uma tradução do romance Mort de quelqu’un (1911), de Jules Romains; Um brasilianista francês (1988) e Um estudante em Paris (2004), entre outros. A sua antologia da poesia francesa teve mais de uma edição e recebeu aplausos e prêmios no Brasil e na França, pela abrangência, pelo tirocínio da tradução, pela divulgação da poesia francesa em nosso país. O seu livro Um brasileiro soldado de Napoleão (1979) é uma magnífica biografia do escritor brasileiro Caetano Lopes de Moura, radicado na França, que foi médico militar nas guerras napoleônicas. Esse livro sai agora (2013) em belíssima segunda edição, como uma homenagem da ALB e da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. Eis uma obra, uma contribuição intelectual extensa e extraordinária, de grande originalidade e erudição, um legado de um grande mestre. Um trabalho de tal valor merece aplausos e reconhecimento. E eles vieram porque, mesmo num mundo de vis indiferenças, persistem ainda os meios de se fazer justiça aos homens de boa vontade. Cláudio Veiga recebeu honras e títulos, entre os quais o Palmes Académiques e o Chevalier e Officier de Lettres (ambos na França) e também a Ordem de Instrução Pública no grau de comendador (de Portugal). Foi consagrado pelo Grand Prix du Rayonnement de la Langue Française e recebeu a consagradora Médaille de Vermeil da 460 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Academia Francesa, assim como o Troféu Francisco Igreja, da União Brasileira dos Escritores, e o Prêmio Nacional de Ensaio da Academia Brasileira de Letras. Cláudio Veiga é a imagem do intelectual de formação clássica e atitude humanista, dotado de uma cordialidade exemplar, aberto ao diálogo pacífico, sempre com voz mansa e coração leve. Ao mesmo tempo, era um homem prático e objetivo, cioso de suas ideias e dos seus valores, que sabia ouvir e discordar com paciência e, sobretudo, uma elegância rara nos dias de hoje. Seu estilo de conversação encantava os interlocutores. Uma vez professor, sempre um mestre. Se com ele o interlocutor concordava, numa conversa intelectual, ouvia palavras de afirmação, exemplos, citações de autores e obras, datas, dados e relatos de situações históricas que abonavam os seus pontos de vista. Esses momentos eram aulas-primas de erudição, memória e gosto literário. Se, noutras ocasiões, o interlocutor dele discordava, via-se instado a buscar as palavras certas para um debate amistoso, tentando preencher seu silêncio altivo com argumentos que o fizessem considerar outras proposições. Convicto em suas ideias, no entanto sabia ouvir os contrários — e deixava claras suas divergências, com lisura e respeito, concluindo a tertúlia com a mesma tranquilidade, sorriso claro e comedido, com a sua clássica cordialidade. E quando o mais difícil acontecia, ou seja, se ele cedia aos argumentos do interlocutor, o fazia com inicial parcimônia, mas logo dava sinais de que acatava as ideias, passando a abraçá-las com convicção. Quantas e quantas ideias e projetos tramitaram nesta casa e passaram assim por seu juízo crítico e, uma vez aprovadas, tiveram dele as ações mais afirmativas e entusiasmadas. Não me furto a vos dar um exemplo, porque é algo muito marcante para mim. A seu convite organizei o Curso Castro Alves de 2004, quando era apenas um colaborador assíduo da Academia e nem pensava em me tornar acadêmico. Em 2006, novamente ►► 461 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 convidado a coordenar o evento, e então recém-empossado como acadêmico, propus a ampliação do modelo clássico do Curso Castro Alves — ampliando-o do formato de mesa de palestras plenárias, formadas por especialistas convidados, para um Colóquio de Literatura Baiana, evento aberto a palestras de estudiosos e a apresentação de trabalhos de estudantes, professores e pesquisadores de letras e áreas afins. A ideia precisou ser debatida em plenário, tal o seu grau de inovação. De fato, apresentei o projeto em reunião plenária e colhi apoios imediatos de alguns acadêmicos. O então presidente Cláudio Veiga, embora já me conhecesse de outras atividades na casa, foi reticente e cuidadoso diante da proposta de inovação. E até se posicionou pela manutenção do modelo clássico e consagrado. Uma vez aprovada a ideia, solicitei-lhe uma audiência para explicar os detalhes e os propósitos do colóquio, pedindo-lhe a chance de experimentar. Ele marcou dia e hora e me recebeu com alegria em seu gabinete, quando externou suas dúvidas a respeito da mudança. E depois, atento e silencioso, me ouviu explanar os detalhes e objetivos do projeto. Creio que minha convicção e meu entusiasmo o convenceram. Eu lhe garanti: “Professor, se não der certo voltaremos a fazer o modelo antigo.” E ele então me declarou: “Está bem, Aleilton, organize o colóquio conforme sua proposta. Vai dar certo.” E eu saí da reunião exultante, com a autoestima no céu, convicto de que o presidente daria espaço para que o meu entusiasmo de jovem acadêmico viesse a se tornar ação em benefício da casa. De fato, o Curso Castro Alves, acrescido do Colóquio de Literatura Baiana, foi um sucesso já em 2006, com cerca de 30 trabalhos apresentados, além das sessões de palestras dos convidados. E teve neste ano de 2013 sua oitava edição, com a apresentação de mais de 60 trabalhos de estudantes e professores da capital e de vários outros municípios, além de palestrantes convidados de outros países. Entretanto, o que desejo salientar é que a sua resistência inicial à ideia cedeu lugar, após a conversa, a um apoio sólido e 462 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 constante nos anos seguintes. O professor Cláudio Veiga compareceu sempre aos três dias do colóquio, e era dos primeiros a chegar, e presidia as mesas plenárias, e convivia em meio aos jovens estudantes de letras, posava para muitas fotos ao lado dos participantes que o abordavam com vivo interesse e veneração, o que manifestavam ao serem apresentados por mim a ninguém menos que “o professor Cláudio Veiga, o presidente da Academia”. Em 2006, após o evento, outra vez o presidente me chamou ao seu gabinete. E ali, muito satisfeito, reconheceu o acerto da ideia, elogiou o colóquio e o meu trabalho. E após os elogios, por fim me disse: “Parabéns, Aleilton. Você inovou e deu certo. De agora em diante, pode fazer dessa maneira. Você agora é o coordenador oficial do Curso Castro Alves.” Como sabem os acadêmicos, esse “decreto” do saudoso presidente continua em vigor. Até hoje exerço esse “cargo” de coordenador do Curso Castro Alves que ele confiou a mim. Assim era o presidente Cláudio Veiga que conheci mais de perto, no convívio acadêmico, nas conversas de um professor com o aluno, de um acadêmico mais experiente com o neófito em quem enxergava o potencial e a disposição necessários ao trabalho coletivo da Academia. Com este relato, quero tão somente registrar a generosidade intelectual de Cláudio Veiga, sua preocupação incessante com o futuro da ALB e a continuidade de seus eventos e projetos e a sua aposta no trabalho dos acadêmicos para o crescimento das atividades da casa. Mas eu o conheci antes, nos corredores do antigo Instituto de Letras da UFBA, prédio aqui vizinho, cuja fachada se mantém preservada e seu interior reconstruído para abrigar o Ministério Público, nesta tradicional Avenida Joana Angélica. Ele era o diretor do Instituto de Letras. Eu era então um estudante de letras vernáculas, que havia vindo da cidade de Ilhéus, terra da Gabriela de Jorge Amado, para estudar na capital. Um dia, creio que em 1983, o professor Cláudio Veiga, em seu indefectível terno branco, com passos leves e notável ►► 463 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 presença de espírito, me abordou no saguão do Instituto de Letras e me apontou o outro lado da rua. Convidava-me a ir visitar a nova sede da Academia de Letras da Bahia e me falou ligeiramente do Curso Castro Alves. Eu atendi ao chamado do mestre. Atravessei a rua e entrei nesta casa, quando nela a Academia estava ainda começando a ser instalada. E algum tempo depois me inscrevi no curso Castro Alves, como ouvinte, e mereci o primeiro certificado que a ALB me outorgou e que guardo como relíquia, com sua afável assinatura. Durante aqueles anos, sempre fui recebido com a atenção que um mestre devota ao aluno, em quem aposta nos êxitos do futuro. De certa forma, ele sempre acompanhou meus passos, minha formação, meus livros, minhas viagens. E aqui estive, aos 28 anos, em 1977, já professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, de Vitória da Conquista, para propor o lançamento da antologia poética de Camillo de Jesus Lima. Fui levado ao seu gabinete pelo saudoso poeta Carlos Cunha. E ele acolheu a proposta. E a ALB promoveu o lançamento com brilho, sendo orador o notável acadêmico Clóvis Lima. Naquele dia, ao me receber o professor Cláudio Veiga pilheriou: “Veio apresentar seu nome para entrar para a Academia?” Ao que, na altura, respondi: “Ora, quem sou eu, professor...” E ele sorriu comedido, como sempre. E depois quis saber de meus estudos, meu trabalho, meus escritos. Sempre educado e atencioso, trazia nos olhos a bondade de quem incentiva o aluno a progredir nos estudos e na profissão, demonstrando interesse pelos resultados. E, indiretamente, dava conselhos e apontava caminhos. Anos mais tarde, já acadêmico, continuei recebendo dele o incentivo de sempre. Ele me perguntava: “Tem ido à França?” Ou: “Quando retorna à França?” E ele dizia: “É preciso sempre ir à França.” Certamente seu incentivo constante me fez intensificar minhas andanças e ações na pátria de Charles Baudelaire, tendo hoje três livros publicados em francês e 464 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 tendo-me tornado amigo de alguns professores e escritores de língua francesa na França, na Bélgica e no Quebéc e feito palestras em seis universidades francesas, ao cabo de nove viagens até aqui. E tudo isso devo muito ao incentivo constante do professor Cláudio Veiga. Portanto, não é demais declarar que, sobretudo a partir de sua falta em nosso convívio, percebi cada vez mais agudamente que tenho no professor Cláudio Veiga uma importante referência acadêmica e intelectual. Indiretamente, ele orientou, em parte, a minha trajetória, e, por suas mãos, ainda que de forma espontânea e jamais premeditada, eu caminhei até esta Casa de Arlindo Fragoso, seu fundador, e, doravante, Casa de Cláudio Veiga, seu mais cioso refundador. Arlindo Fragoso fundou a casa. Claudio Veiga refundou a Academia. A fim de abonar minhas considerações, cito o acadêmico Edivaldo M. Boaventura, para quem a gestão do nosso homenageado na ALB “foi paciente e sábia na agregação de pessoas, de livros e de bens móveis”. E afirmou sabiamente o professor Edivaldo M. Boaventura: “Na gestão de Cláudio Veiga, procedeu-se à transferência da sede da Academia do Terreiro de Jesus para o nobre solar Góes Calmon. A solenidade de sete de março de 1983, aniversário do sodalício, selou a chegada ao bairro de Nazaré. A partir daquele momento, a Academia passou a ter acentuado desempenho, com a realização de atividades colegiadas e de eventos marcantes a serviço das demandas literárias e das ofertas crescentes da produção do conhecimento e de sua disseminação. Cláudio liderou a organização do novo espaço acadêmico, ambientando-o às funções dos serviços acadêmicos. Mas, do ponto de vista da manutenção, a nova bela sede foi uma preocupação constante do presidente Cláudio Veiga.” De fato, a ALB tornou-se uma verdadeira casa de cultura. Com a inestimável colaboração do saudoso poeta Carlos Cunha, seu braço direito muitas vezes e durante anos, de dona Maria do Carmo Moscovits, secretária dileta de todas as ►► 465 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 atividades e providências, e, por um bom tempo, de Tereza Veiga e demais funcionários, ele pôde transformar a Academia numa usina de eventos e ações, com cursos, palestras, visitas, seminários e concursos literários. Manteve cursos como o Castro Alves e o Colóquio de Literatura Baiana, instituiu o Curso de Folclore. Criou e fortaleceu o Prêmio Nacional Academia de Letras da Bahia, hoje uma referência no país. Passou a promover diversos lançamentos, palestras de estudiosos nacionais e estrangeiros, organizou exposições, praticamente regularizou as edições da revista da Academia, promoveu diversas publicações, dinamizou a biblioteca, aguçou a solenidade das posses e estabeleceu parcerias com instituições culturais, como os convênios com a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e com a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, parcerias indispensáveis para a manutenção da casa em atividade. E tudo isso transformou a Academia num espaço aberto a alunos, professores, escritores e leitores, movimentando assim a nossa vida cultural. Como bem acentuou o professor Edivaldo M. Boaventura: “Com o nosso confrade homenageado, manteve-se a linha de erudição que converte o grêmio em uma entidade cimeira da cultura baiana.” Cabe, como um dever, aos pósteros, render as justas e devidas homenagens àqueles que se dedicaram à construção do presente e do futuro, através de seu trabalho na educação e formação das novas gerações, na produção e divulgação da cultura, na administração dos bens simbólicos e no zelo das instituições. Esse foi o mister, esse foi o prazer do professor Cláudio Veiga. Sua trajetória e sua dedicação constituem um exemplo, um marco e um horizonte no qual nos mirarmos, para a continuação de seu ideal acadêmico, mantendo este sodalício nos rumos que ele inaugurou e pelos quais lutou incansavelmente, enfrentando e vencendo todas as dificuldades possíveis, para que fôssemos hoje, como deveras somos, uma das mais prolíficas e respeitadas academias do Brasil. 466 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Nossas homenagens eternas e nosso profundo agradecimento ao homem de letras, professor emérito, pai prestimoso, acadêmico exemplar — o verdadeiramente imortal presidente Cláudio de Andrade Veiga. Que vossos aplausos, ao final deste discurso, sejam dirigidos não a minhas palavras, mas sim à sua memória. Muito obrigado.* Aleilton Fonseca é escritor, com livros e textos traduzidos em vários países e idiomas. É professor pleno de literatura na Universidade Estadual de Feira de Santana. Publicou, dentre outros, O arlequim da Pauliceia (ensaio), Nhô Guimarães e O pêndulo de Euclides (romances), Les marques du feu (na França) e La femme de rêve (no Canadá). Desde 2005 ocupa a Cadeira nº 20 da ALB. Discurso proferido em sessão especial da Academia de Letras da Bahia, na inauguração da Sala Presidente Cláudio Veiga e do retrato a óleo do homenageado, em 24 de outubro de 2013. ►► 467 DIVERSOS Efemérides 2013 Março 07 — Sessão especial de abertura do novo ano acadêmico, com a presença do secretário de cultura do estado da Bahia, Antônio Albino Canelas Rubim, compreendendo a solenidade: 1) Apresentação pelo presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, do relatório da gestão 2011-2013. 2) Posse da nova diretoria 2013-2015, assim constituída: presidente: Aramis Ribeiro Costa; vice-presidente: João Eurico Matta; 1ª secretária: Evelina Hoisel; 2ª secretária: Gláucia Lemos; 1º tesoureiro: Paulo Ormindo de Azevedo; 2º tesoureiro: Luís Antonio Cajazeira Ramos; diretor da revista: Florisvaldo Mattos; diretor da biblioteca: Dom Emanuel d’Able do Amaral; diretor do arquivo: Joaci Góes; diretor de informática: Carlos Ribeiro; conselho editorial: Fernando da Rocha Peres, Myriam Fraga, Ruy Espinheira Filho; conselho de contas e patrimônio: Aleilton Fonseca, Paulo Costa Lima, Waldir Freitas Oliveira. 14 — Sessão especial de homenagem póstuma ao acadêmico Ubiratan Castro (1948 – 2013), sendo orador o acadêmico Edivaldo M. Boaventura. Na ocasião, agradeceu em nome da família o senhor Felipe Machado de Araújo, filho do acadêmico homenageado. O presidente Aramis Ribeiro Costa, cumprindo o regimento, declarou vaga a Cadeira nº 33, cujo patrono é Antônio de Castro Alves e cujo último ocupante era o acadêmico Ubiratan Castro. 19 — Palestra “Biblioteconomia e educação na sociedade do conhecimento”, ministrada pela bibliotecária Bárbara Coelho em comemoração ao dia do bibliotecário e em cumprimento ao programa do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. ►► 471 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Abril 04 — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro, Fernando da Rocha Peres, João Eurico Matta, José Carlos Capinan, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Myriam Fraga e Paulo Costa Lima. Pauta: discutir nomes a serem indicados para a vaga do acadêmico Ubiratan Castro, Cadeira nº 33. 18 — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Carlos Ribeiro, Edivaldo M. Boaventura, Evelina Hoisel, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos, Geraldo Machado, Gláucia Lemos, Joaci Góes, João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Myriam Fraga, Paulo Costa Lima, Roberto Santos e Waldir Freitas Oliveira. Palestras do acadêmico Paulo Costa Lima e da doutora Urania Tourinho Peres com o tema “Por que o menino Mozart brincava com os sons?”. As palestras foram ilustradas com demonstrações musicais do professor, compositor e acadêmico Paulo Costa Lima ao teclado. 25 — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro, Consuelo Pondé de Sena, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Edivaldo M. Boaventura, Evelina Hoisel, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos, Francisco Senna, Geraldo Machado, Gláucia Lemos, Hélio Pólvora, João Eurico Matta, José Carlos Capinan, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Luís Henrique Dias Tavares, Myriam Fraga, Paulo Costa Lima, Paulo Ormindo de Azevedo, Samuel Celestino, Waldir Freitas Oliveira e Yeda Pessoa de Castro, para indicação de candidatos à vaga na Cadeira nº 33, de que foi o último ocupante o acadêmico Ubiratan Castro, tendo sido eleita, por obter 22 votos, Maria Stella de Azevedo Santos, ialorixá Mãe Stella de Oxóssi. A eleita compareceu à sede da Academia e declarou aceitar a eleição. 30 — Visita guiada de alunos do Colégio Monsenhor Neiva, seguida de círculo de leitura com o professor e acadêmico 472 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Aleilton Fonseca, para roda de conversa sobre a sua obra Desterro dos mortos, em cumprimento ao programa do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. Maio 09 — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro, Edivaldo M. Boaventura, Evelina Hoisel, Hélio Pólvora, Joaci Góes, João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Paulo Costa Lima e Roberto Santos, também presentes proprietários, diretores e repórteres do jornal A Tarde, além de convidados, para as palestras dos acadêmicos Carlos Ribeiro e Edivaldo M. Boaventura com o tema “Jornal A Tarde: um século de história”, tendo sido a sessão registrada pelos repórteres do jornal A Tarde e amplamente noticiada naquele jornal no dia seguinte. 14 — Gravação do programa Soterópolis, da TV Educativa da Bahia, constando de entrevista com os acadêmicos Aleilton Fonseca e Hélio Pólvora, na sede da Academia de Letras da Bahia. 16 — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro, Edivaldo M. Boaventura, Evelina Hoisel, Gláucia Lemos, João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Myriam Fraga e Paulo Costa Lima, além de convidados, para a palestra “Os Gerais são sem tamanho: cartografias do sertão rosiano”, da acadêmica Evelina Hoisel. 17 — Gravação do programa Aprovado, da TV Bahia, na sede da Academia de Letras da Bahia, com o ator e apresentador Jackson Costa. 28 — Entrega do Prêmio Nacional Braskem/Academia de Letras da Bahia — Conto 2012, ao escritor Evaldo Balbino, seguida de lançamento do livro Amores oblíquos, ganhador do prêmio. Formaram a comissão julgadora do prêmio os acadêmicos ►► 473 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro e a crítica literária e ensaísta Gerana Damulakis. Junho 06 — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Edivaldo M. Boaventura, Gláucia Lemos, João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos e Myriam Fraga, além de convidados, para a palestra “Breve reflexão sobre os hinos órficos”, do escritor e professor Ordep Serra. 13 — Sessão especial de homenagem ao centenário de nascimento do acadêmico Antônio Loureiro de Souza, sendo orador o acadêmico Edivaldo M. Boaventura. Julho 04 — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro, Consuelo Pondé de Sena, Edivaldo M. Boaventura, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos, Gláucia Lemos, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Myriam Fraga, Roberto Santos e Ruy Espinheira Filho, além de convidados. Mesa-redonda “Rubem Braga: escritor múltiplo”, em homenagem ao centenário de nascimento do cronista mineiro Rubem Braga, com participação do acadêmico Carlos Ribeiro e da professora doutora Antônia Herrera. O evento contou ainda com o lançamento do livro Rubem Braga: um escritor combativo — a outra face do cronista lírico, de autoria do escritor e acadêmico Carlos Ribeiro. 11 — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos, Francisco Senna, Joaci Góes, João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos e Roberto Santos, além 474 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de convidados, como o professor e restaurador José Dirson Argolo, a diretora do Museu de Arte da Bahia, Sylvia Athayde, a secretária municipal de ordem pública, Rosemma Maluf, o presidente da Fundação Gregório de Mattos, Fernando Guerreiro, o gerente de operações da Guarda Municipal, João Neto e o ex-prefeito de Salvador Manoel Castro, contando ainda com a presença de uma repórter do jornal A Tarde, Cátia Lima, para discutir o grave problema da falta de segurança no bairro de Nazaré, vítima de depredação de monumentos históricos nos dias anteriores. Fala inicial do presidente Aramis Ribeiro Costa, expondo o motivo e a importância da sessão. Fala do acadêmico Francisco Senna, “Vandalismo aos monumentos do bairro de Nazaré”, seguida de ampla discussão sobre a segurança dos monumentos no bairro de Nazaré e na própria Academia. A sessão foi registrada e dada a conhecimento público no dia seguinte pela repórter de A Tarde, em ampla reportagem naquele jornal, ilustrada com fotos, sob o título “Acadêmicos reagem à depredação de monumentos”. A sessão foi registrada, igualmente no dia seguinte, pelo jornal Tribuna da Bahia. 11 — Registro histórico: em decorrência do vandalismo no bairro de Nazaré, debatido na sessão acima registrada, a placa histórica de bronze esculpido, que identificava a Academia de Letras da Bahia no muro externo da atual sede e que pertencera à antiga sede no Terreiro de Jesus, foi retirada da entrada, por motivo de segurança, e afixada na Sala dos Presidentes, no interior da sede. Na parte externa, foi afixada nova placa sem o valor histórico, sentimental e comercial da primeira, porém com mais visibilidade, mandada confeccionar para esse fim. 16 — Lançamento do livro Sosígenes Costa: melhores poemas, seleção de Aleilton Fonseca, da Coleção Melhores Poemas, da Global Editora. 18 — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro, Evelina Hoisel, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos, ►► 475 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Gláucia Lemos, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Myriam Fraga e Roberto Santos, além de convidados. Fala do acadêmico Fernando da Rocha Peres: “Meus poemas portugueses”. 25 — Seminários Arte e Pensamento — Transformações da Cultura no Século XXI, evento coordenado pelos acadêmicos Luís Antonio Cajazeira Ramos e Paulo Costa Lima, dentro da programação do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia, com apoio e transmissão direta para o público pelo Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia e apoio da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Mesa-redonda: “O corpo e suas cartografias”. Participaram da mesa a professora, dramaturga e acadêmica Cleise Mendes, o artista plástico Vauluizo Bezerra e o filósofo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Guilherme Castelo Branco, sendo mediadora a professora e acadêmica Evelina Hoisel. 29 — Abertura do curso Festival Gèlèdé: Origem, Iconografia e Significado, coordenado pela professora e acadêmica Yeda Pessoa de Castro. Conferência “The dawn of existence: uma introdução à história ioruba”, cultura, cosmologia, arte e estética, bem como as funções das máscaras em sua cultura, ministrada pelo professor doutor Babatunde Lawal, da Virginia Commonwealth University, dos Estados Unidos da América, com tradução simultânea da professora Ana Pessoa de Castro. Encerramento com a publicação n° 4 da Revista Científica Africanias.com Digital, do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros em Línguas e Culturas da Universidade do Estado da Bahia. 30 — Curso Festival Gèlèdé: Origem, Iconografia e Significado. Origem do gèlèdé (ìpilèsè gèlèdé). Um exame das tradições orais e relatos históricos sobre os primórdios da gèlèdé e sua transformação a partir de uma dança ritual por mulheres em um desempenho mascarado pelos homens. Ênfase nos contextos sociais e ritual do festival anual (odun gèlèdé). 31 — Curso Festival Gèlèdé: Origem, Iconografia e Significado. Traje da estética e iconografia (ìdira gèlèdé). Análises formais e 476 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 contextuais dos principais motivos sobre o traje gèlèdé com relação ao sexo e significado ritual. Agosto 1º — Curso Festival Gèlèdé: Origem, Iconografia e Significado. Mensagens esculpidas sobre cocares (igba gèlèdé), tipologia e iconografia dos principais motivos sobre cocares. 1º — Lançamento da Revista da Academia de Letras da Bahia nº 51. 02 — Curso Festival Gèlèdé: Origem, Iconografia e Significado. Continuidade e mudança nas gèlèdé. O impacto do comércio de escravos, o islamismo, o cristianismo, o colonialismo europeu, a educação ocidental moderna e tecnologia no espetáculo gèlèdé, bem como os fatores de facilitar a preservação de alguns aspectos da gèlèdé nas Américas, mais especialmente no Brasil. 06 — Visita guiada dos alunos do curso de arquivologia da Universidade Federal da Bahia, Instituto de Ciências da Informação, no âmbito da disciplina arquivos de engenharia, com a professora Bárbara Coelho, em cumprimento à programação do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. 08 — Reunião da diretoria a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Carlos Ribeiro, Edivaldo M. Boaventura, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos, Gláucia Lemos, João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos e Myriam Fraga, com a seguinte pauta: segurança e proteção da sede (roubo e incêndio); acesso à entrada da sede; pintura externa da sede e obtenção de mais recursos financeiros. 12 — Abertura oficial do Curso Jorge Amado 2013 — III Colóquio Internacional de Literatura Brasileira, curso anual da programação da Academia de Letras da Bahia em parceria com a Fundação Casa de Jorge Amado, neste ano encerrando o calendário oficial das homenagens em torno do centenário do escritor ►► 477 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 e acadêmico Jorge Amado, iniciadas em 2012, e em homenagem aos 80 anos do romance Cacau. Título geral do curso e do colóquio: “Cacau — A volta ao mundo em 80 anos”. Palavras iniciais do presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa. Conferência do escritor e acadêmico Hélio Pólvora: “Jorge Amado e o romance na Bahia”. Lançamento do livro Jorge Amado: 100 anos escrevendo o Brasil, organizado pelos acadêmicos Aleilton Fonseca, Evelina Hoisel e Myriam Fraga. No lançamento do livro, além de palavras do presidente Aramis Ribeiro Costa e da acadêmica Myriam Fraga, discursou o acadêmico Edivaldo M. Boaventura. 13 — Curso Jorge Amado 2013 — III Colóquio Internacional de Literatura Brasileira. 14h30 — Sessões de comunicações 1 e 2. 17h — Depoimento: Josélia Aguiar (USP), “Como contar a história do maior contador de histórias: um caminho percorrido e os vários a percorrer”. 17h40 — Mesa-redonda: Márcia Rios (UNEB), “Confissões de leitores de Jorge Amado”; Myriam Fraga (FCJA/ALB), “Pelourinho: trilhas, tramas e travessias”; Rita Godet (Université Rennes/ALB), “A matriz ética e cultural invisível no universo mestiço do romance amadiano”. Coordenação da mesa: Cássia Lopes (UFBA). Lançamento do livro A alteridade ameríndia na ficção contemporânea das Américas, de Rita Olivieri Godet. 14 — Curso Jorge Amado 2013 — III Colóquio Internacional de Literatura Brasileira. 14h30 — Sessões de comunicações 3 e 4. 17h — Conferência: Lilia Schwarcz (USP), “Tenda dos Milagres e as suas dimensões da justiça”. 17h40 — Mesa-redonda: Stella Caymmi (PUC-Rio), “A amizade de Amado e Caymmi”; Edilene Mattos (UFBA), “A literatura de cordel na obra de Jorge Amado: vozes em ficção”; Ordep Serra (UFBA), “A religião de Jorge Amado”. Coordenação da mesa: Ana Rosa Ramos (UFBA). Relançamento do livro Sosígenes Costa, da Global Editora, organizado por Aleilton Fonseca para a Coleção Melhores Poemas. 15 — Curso Jorge Amado 2013 — III Colóquio Internacional de Literatura Brasileira. 14h30 — Sessões de comunicações 5 478 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 e 6. 17h40 — Mesa-redonda: Antonia Herrera (UFBA), “Rua e liberdade, a utopia de um lugar em Capitães da areia de Jorge Amado”; Evelina Hoisel (UFBA/ALB), “A potência do múltiplo romance amadiano”; Lígia Telles (UFBA), “Pedro Arcanjo/ Ojuobá: saberes em trânsito em Tenda dos Milagres”; Biagio D’ Angelo (PUC-RS), “Cacau, o furor poético de Jorge Amado”. Coordenação da mesa: Carlos Ribeiro (ALB). Lançamento do livro Cacau: vozes e orixás na escrita de Jorge Amado, organizado por Biagio D’ Angelo e Márcia Rios. 16 — Curso Jorge Amado 2013 — III Colóquio Internacional de Literatura Brasileira. 17h — Cerimônia de encerramento na Fundação Casa de Jorge Amado, com palavras da organizadora do curso e diretora-executiva da Fundação Casa de Jorge Amado, poeta e acadêmica Myriam Fraga. Coquetel e lançamento do livro O que é que a baiana tem?, de autoria de Stella Caymmi. 22 — Seminários Arte e Pensamento — Transformações da Cultura no Século XXI, evento coordenado pelos acadêmicos Luís Antonio Cajazeira Ramos e Paulo Costa Lima, dentro da programação do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia, com apoio e transmissão direta para o público pelo Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia e apoio da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Conferência “A paz perpétua em Antonio Vieira: perspectiva e atualidade”, do filósofo e professor português Pedro Calafate, da Universidade de Lisboa, com palavras iniciais e mediação do presidente Aramis Ribeiro Costa. 26 — Encontro com o acadêmico e escritor Aramis Ribeiro Costa, na programação do Ponto de Cultura, para roda de conversa com alunos do Colégio Impacto sobre o seu romance Uma varanda para o jardim. Em seguida, visita guiada dos alunos à sede da Academia de Letras da Bahia. 28 — Oficina de cordel, com Antonio Carlos Barreto, em cumprimento à programação do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. ►► 479 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 29 — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos: Aramis Ribeiro Costa (presidente), Carlos Ribeiro, Consuelo Pondé de Sena, Edivaldo M. Boaventura, Luís Antonio Cajazeira Ramos e Roberto Santos, além de convidados, para a fala do acadêmico Edivaldo M. Boaventura com o tema “Professores portugueses na Bahia na segunda metade do século XX”. 30 — Oficina de poética baiana, com Norma Alves, em cumprimento à programação do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. 31 — Registro histórico: a sede da Academia de Letras da Bahia é assaltada durante a madrugada e são levados dois bustos de bronze de seu jardim de esculturas: o busto do fundador, engenheiro Arlindo Fragoso, e o busto do membro correspondente e historiador Pedro Calmon. Os criminosos driblaram a vigilância, as câmeras de segurança e a rede eletrificada, e o roubo teve grande repercussão na imprensa e na opinião pública. Setembro 02 — Visita guiada dos alunos do curso de biblioteconomia da Universidade Federal da Bahia, Instituto de Ciências da Informação, da disciplina bibliotecas universitárias e especializadas, ministrada pela professora Bárbara Coelho. A visita constou da programação do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. 02 — Encontro com o acadêmico e poeta Florisvaldo Mattos para roda de conversa sobre sua obra Sonetos elementais, seguida de visita guiada com os alunos do Colégio Impacto, ambos, o encontro e a visita, em cumprimento à programação do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. 05 — Sessão especial para inauguração do retrato a óleo e armário, na Sala dos Presidentes, com troféus, placas, medalhas e condecorações do ex-presidente acadêmico José Calasans, tendo como oradores, além do presidente Aramis Ribeiro Costa, os 480 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 acadêmicos Edivaldo M. Boaventura e Consuelo Pondé de Sena. A ocasião contou ainda com o lançamento da 2ª edição do livro Quase biografia de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro, de José Calasans, com prefácio de Fernando da Rocha Peres, editado pela Universidade Federal da Bahia para a Coleção Nordestina. Discursaram no ato do lançamento, além do presidente Aramis Ribeiro Costa, o acadêmico Fernando da Rocha Peres e a diretora da Editora da Universidade Federal da Bahia, professora Flávia Garcia Rosa. Agradeceu em nome da família a senhora Madalena Calasans, filha do homenageado. 12 — Sessão especial e solene de posse da ialorixá Mãe Stella de Oxóssi na Cadeira número 33, de que foi o último ocupante o acadêmico Ubiratan Castro e que tem como patrono o poeta Castro Alves. O discurso de posse da nova acadêmica foi lido, em presença da mesma, pelo acadêmico José Carlos Capinan, sendo a nova acadêmica saudada pela confreira Myriam Fraga. Estiveram presentes à solenidade, compondo a mesa alta ao lado do presidente da Academia, o senhor governador do estado da Bahia, Jaques Wagner, a senhora ministra da igualdade racial, Luíza Bairros, o senhor presidente da Assembleia Legislativa da Bahia, Marcelo Nilo, e o senhor prefeito da cidade de Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto. Compareceram ainda inúmeras outras autoridades e numeroso público. 16 — Oficina de dramaturgia, com Abílio de Mendonça, dentro do programa do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. 16 — Visita guiada dos alunos do Colégio Helena Matheus, dentro do programa do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. 17 — Abertura oficial do Curso Castro Alves 2013 — VIII Colóquio de Literatura Baiana, evento anual da Academia de Letras da Bahia, coordenado pelo acadêmico Aleilton Fonseca. 14h30 às 17h — Sessões de comunicações: estudos sobre temas e obras da literatura baiana. 17h — Palavra do presidente da Academia ►► 481 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa. 17h10 — Comunicações, com a coordenação do presidente Aramis Ribeiro Costa: “João Augusto, Jorge Amado e a paternidade de Quincas Berro d’Água: por uma historia de textos”, pela professora doutora Rosa Borges dos Santos (UFBA); “Jorge Amado e os correspondentes de guerra”, pelo professor doutor Benedito José de Araújo Veiga (UEFS). 17h45 — Conferência: “A mulata nas obras de Jorge Amado, Juan Manuel Marcos e Rubém Sapena Brugada”, pelo professor doutor Alain Saint-Saens (Universidad del Norte-Paraguai), coordenação de mesa da acadêmica Myriam Fraga (FCJA/ALB). 18h30 — Lançamento do livro Um rio en los ojos (Um rio nos olhos), do escritor e acadêmico Aleilton Fonseca. 18 — Curso Castro Alves 2013 — VIII Colóquio de Literatura Baiana. 14h30 às 17h — Sessões de comunicações: estudos sobre temas e obras da literatura baiana. 17h — Comunicações, com coordenação de mesa do acadêmico Edivaldo M. Boaventura (UFBA/ALB): “Os magros e a telúrica de Euclides Neto”, pelo professor doutor Victor Hugo Fernandes Martins (UNEB); “As filhas de Jorge: representações femininas na obra As baianas”, pelo professor Joabson Lima Figueiredo (UNEB). 17h45 — Conferência: “Las voces de las memorias en la poesia de Myriam Fraga”, pela professora doutora Maria Pugliese (Universidad de Luján Argentina) , com coordenação de mesa do acadêmico Carlos Ribeiro (UFRB/ALB). 18h30 — Lançamento dos livros Rubem Braga: melhores crônicas, seleção e organização de Carlos Ribeiro, e Aromas de fêmea (poesias), de Cléberton Santos. 19 — Curso Castro Alves 2013 — VIII Colóquio de Literatura Baiana. 14h30 às 17h — Sessões de comunicações: estudos sobre temas e obras da literatura baiana. 17h — Comunicações, com a coordenação de mesa do professor e acadêmico Aleilton Fonseca (UEFS/ALB): “Os poetas baianos e os crimes passionais: paixões e honra na poesia dos juristas Sales Barbosa e Castro Alves”, pela professora Cíntia Portugal de Almeida (UEFS); “A negritude em Sosígens Costa e Castro Alves”, pela professora Mariana Barbosa 482 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Batista (UEFS). 17h45 — Conferência: “A poética ‘sertaneja’ castroalvina: um olhar local sobre a Cachoeira de Paulo Afonso”, pelo professor Marcos José de Souza (UNEB), com coordenação de mesa do acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos (ALB). 18h45 — Encerramento do curso e do colóquio, com palavras do coordenador Aleilton Fonseca e do presidente Aramis Ribeiro Costa. 23 — Oficina de jornalismo cultural , com José Carlos, dentro do programa do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. 24 — Seminários Arte e Pensamento — Transformações da Cultura no Século XXI, evento coordenado pelos acadêmicos Luís Antonio Cajazeira Ramos e Paulo Costa Lima, dentro da programação do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia, com apoio e transmissão direta para o público pelo Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia e apoio da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Mesa-redonda: “A poética da cidade”. Participaram da mesa o poeta e ensaísta Alexei Bueno, o arquiteto, professor e acadêmico Paulo Ormindo de Azevedo e o cineasta e diretor do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia Pola Ribeiro, com mediação do professor e acadêmico Fernando da Rocha Peres. 26 — Sessão especial de homenagem ao centenário de nascimento do acadêmico Rubem Nogueira, sendo orador o poeta e acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos. 27 — Encontro poético na ALB, com celebração poética entre os noivos Gabriel Oliveira Morais e Ananda Calvalcante Muniz, ocasião em que foram oradores o vice-presidente João Eurico Matta e o acadêmico Aleilton Fonseca. Outubro 03 — Lançamento dos volumes 2 e 3 da Coleção Mestres da Literatura Baiana, parceria editorial da Assembleia Legislativa da Bahia com a Academia de Letras da Bahia: Contos e novelas ►► 483 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 escolhidos I e Contos e novelas escolhidos II, de Hélio Pólvora. Na ocasião, discursaram o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, o assessor para assuntos de cultura da Assembleia Legislativa da Bahia, professor Délio Pinheiro, e o escritor Hélio Pólvora. 04 — Visita guiada com alunos da Universidade do Estado da Bahia de Irecê, do curso de pedagogia e letras, acompanhados pelo professor Joabson Lima Figueiredo. 08 — Oficina de literatura baiana, com Pedro Alaim, dentro do programa do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia. 10 — Sessão ordinária em homenagem ao centenário de nascimento do poeta Vinicius de Moraes a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Fernando da Rocha Peres, Joaci Góes, José Carlos Capinan, Luís Antonio Cajazeira Ramos e Myriam Fraga, além de convidados, tendo como tema o poeta Vinicius de Moraes, com falas e depoimentos dos acadêmicos. As falas e os depoimentos foram gravados pelo Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia para apresentação na TV Educativa da Bahia. 17 — Palestra “Um exemplo vivo vale mais que mil palavras: proposta de educação simultânea do pensamento, do sentimento e da vontade”, sendo palestrante o professor Tomio Kikuchi, fundador do Centro Internacional de Autoeducação Vitalícia, com apresentação e coordenação do acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos. 18 — Luto oficial pelo falecimento da acadêmica Consuelo Novais Sampaio, ocupante da Cadeira número 40. Na cerimônia de cremação falou em nome da Academia de Letras da Bahia o presidente Aramis Ribeiro Costa. 21 — Seminários Arte e Pensamento — Transformações da Cultura no Século XXI, evento coordenado pelos acadêmicos Luís Antonio Cajazeira Ramos e Paulo Costa Lima, dentro da programação do Ponto de Cultura da Academia de Letras da Bahia, com apoio e transmissão direta para o público pelo Instituto de 484 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Radiodifusão Educativa da Bahia e apoio da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Conferência: “Cidadania, pertencimento e liberdade”, do poeta e ex-ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, sendo mediador da mesa o acadêmico Joaci Góes. 24 — Inauguração da Sala Presidente Cláudio Veiga, com discurso inicial do presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, sendo orador oficial da solenidade o professor e acadêmico Aleilton Fonseca. Discursaram ainda, na ocasião, a acadêmica Myriam Fraga e o senhor Cláudio Coelho Veiga, filho do homenageado, agradecendo em nome da família. Em seguida, ocorreu o lançamento da 2ª edição do livro de autoria do homenageado, acadêmico Cláudio Veiga, Um brasileiro soldado de Napoleão, patrocinado pela Assembleia Legislativa da Bahia, apresentando selos editoriais da Assembleia Legislativa da Bahia e da Academia de Letras da Bahia. No ato do lançamento discursaram o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, o presidente da Assembleia Legislativa da Bahia, deputado Marcelo Nilo, e o professor e acadêmico Fernando da Rocha Peres. Novembro 07 — 17h — Sessão ordinária (1ª sessão da tarde) a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Aleilton Fonseca, Edivaldo M. Boaventura, Evelina Hoisel, Gláucia Lemos, Joaci Góes, João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Myriam Fraga e Paulo Ormindo de Azevedo, para depoimentos em homenagem à saudosa acadêmica Consuelo Novais Sampaio. 07 — 18h — Sessão ordinária (2ª sessão da tarde) a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Aleilton Fonseca, Edivaldo M. Boaventura, Evelina Hoisel, Gláucia Lemos, Joaci Góes, João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira ►► 485 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Ramos, Myriam Fraga e Paulo Ormindo de Azevedo, para a eleição de membros correspondentes, não sendo realizadas as votações por falta de quórum. 21 — Sessão especial de homenagem ao sesquicentenário de nascimento do fundador da Academia de Letras da Bahia, engenheiro Arlindo Coelho Fragoso, tendo como orador o acadêmico Edivaldo M. Boaventura. 28 — Lançamento do 4º volume da Coleção Mestres da Literatura Baiana, parceria editorial da Assembleia Legislativa da Bahia com a Academia de Letras da Bahia: Antologia poética, de Affonso Manta, organizada pelo poeta e acadêmico Ruy Espinheira Filho. Na ocasião discursaram o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, o assessor para assuntos de cultura da Assembleia Legislativa da Bahia, professor Délio Pinheiro, o organizador e prefaciador da obra, acadêmico Ruy Espinheira Filho, e o livreiro Eduardo Sarno, representando os amigos e admiradores do poeta Affonso Manta. Ouviu-se também comovido depoimento do escritor Altamirando Borges Camacan sobre o poeta Affonso Manta. Dezembro 1º — Luto oficial pelo falecimento do acadêmico James Amado, ocupante da Cadeira número 27. Diante do corpo, falou em nome da Academia de Letras da Bahia o presidente Aramis Ribeiro Costa. 05 — Sessão extraordinária, conferência do acadêmico Waldir Freitas Oliveira: “As viagens de São Brendan — A ilha Brasil”. Em seguida, ocorreu o lançamento do livro Gaúchos e baianos, de autoria do conferencista. 12 — Sessão especial de homenagem póstuma à acadêmica Consuelo Novais Sampaio (1936 – 2013), sendo orador o acadêmico e vice-presidente João Eurico Matta. Agradeceu em nome da 486 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 família o senhor Paulo Roberto Novais Soares de Quadros, filho da acadêmica homenageada. O presidente Aramis Ribeiro Costa, cumprindo o regimento, declarou vaga a Cadeira número 40, cujo patrono é Francisco Mangabeira e cuja última ocupante era a acadêmica Consuelo Novais Sampaio. 17 — Almoço de adesão promovido pela Academia de Letras da Bahia em homenagem aos oitenta anos de vida do ex-presidente, acadêmico benfeitor e vice-decano Edivaldo M. Boaventura, quando lhe foi entregue placa comemorativa. Na ocasião, discursaram o presidente Aramis Ribeiro Costa, os acadêmicos Luís Antonio Cajazeira Ramos, João Eurico Matta e Joaci Góes, também o escritor e membro correspondente da Academia de Letras da Bahia Cyro de Mattos, além do homenageado, que agradeceu a homenagem, reafirmando o seu amor pela Academia de Letras da Bahia. 18 — Lançamento do livro Ofún, de autoria da acadêmica Mãe Stella de Oxóssi, pela coleção Odu Adajó (Coleção de destinos), editado pela Assembleia Legislativa da Bahia, com a presença do senhor governador do estado da Bahia, Jaques Wagner, da primeira dama, dona Fátima Mendonça, do presidente da Assembleia Legislativa da Bahia, deputado Marcelo Nilo, várias outras autoridades e inúmeros convidados. Na ocasião, discursaram o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, e o presidente da Assembleia Legislativa da Bahia, deputado Marcelo Nilo, havendo a autora pronunciado algumas palavras. 19 — Entrega do Prêmio Conjunto de Obra — Academia de Letras da Bahia/Eletrogóes — 2013, ao escritor Hélio Pólvora. Na ocasião, discursaram o presidente Aramis Ribeiro Costa, o acadêmico e ex-presidente Edivaldo M. Boaventura, criador do prêmio em sua presidência, o acadêmico Joaci Góes, presidente da Eletrogóes, empresa patrocinadora do prêmio, e o escritor e membro correspondente da Academia de Letras da Bahia Cyro de Mattos, representando a região grapiúna, tendo o escritor homenageado, Hélio Pólvora, agradecido a homenagem com ►► 487 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 expressivo discurso. Em seguida, o presidente Aramis Ribeiro Costa relatou, em breves palavras, as atividades da Academia de Letras da Bahia durante o ano de 2013 e prestou homenagem à dedicação dos funcionários da casa. Seguiu-se a confraternização de Natal e de final de ano entre funcionários e acadêmicos. 23 — Lançamento do Prêmio Nacional Academia de Letras da Bahia — Poesia 2013, com patrocínio da Petrobras e da Braskem. 488 ◄◄ Quadro social da ALB* Cadeira 1 Patrono: Frei Vicente de Salvador Fundador: José de Oliveira Campos 2º Titular: Júlio Afrânio Peixoto (Afrânio Peixoto), fundador da Cadeira 25, por transferência consentida pela Academia 3º Titular: José Wanderley de Araújo Pinho Titular atual: Luís Henrique Dias Tavares Posse em 14.6.1968 Cadeira 2 Patrono: Gregório de Mattos e Guerra (Gregório de Mattos) Fundador: Aloysio Lopes Pereira de Carvalho (Lulu Parola) 2º Titular: Luís Viana Filho Titular atual: Paulo Ormindo David de Azevedo (Paulo Ormindo de Azevedo) Posse em 20.6.1991 Cadeira 3 Patrono: Manuel Botelho de Oliveira Fundador: Arthur Gonçalves de Salles (Arthur de Salles) 2º Titular: Eloywaldo Chagas de Oliveira 3º Titular: Anna Amélia Vieira Nascimento VAGA * N. do E.: O quadro dos titulares da Academia de Letras da Bahia foi originalmente elaborado pelo acadêmico Renato Berbert de Castro (1924 – 1999). ►► 489 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Cadeira 4 Patrono: Sebastião da Rocha Pita Fundador: Braz Hermenegildo do Amaral (Braz do Amaral) 2º Titular: João da Costa Pinto Dantas Júnior 3º Titular: Jayme de Sá Menezes Titular atual: Geraldo Magalhães Machado (Geraldo Machado) Posse em 31.10.2003 Cadeira 5 Patrono: Luís Antônio de Oliveira Mendes Fundador: Carlos Chiacchio 2º Titular: Antônio Luís Cavalcanti Albuquerque de Barros Barreto (Barros Barreto) 3º Titular: Carlos Benjamin de Viveiros 4º Titular: José Silveira 5º Titular: Guido José da Costa Guerra (Guido Guerra) Titular atual: Carlos Jesus Ribeiro (Carlos Ribeiro) Posse em 31.5.2007 Cadeira 6 Patrono: Alexandre Rodrigues Ferreira Fundador: Manoel Augusto Pirajá da Silva (Pirajá da Silva) 2º Titular: Thales Olympio Góes de Azevedo (Thales de Azevedo) 3º Titular: Lucas Moreira Neves (Dom Lucas Cardeal Moreira Neves) Titular atual: Cleise Furtado Mendes (Cleise Mendes) Posse em 15.4.2004. Cadeira 7 Patrono: José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu Fundador: Ernesto Carneiro Ribeiro (Carneiro Ribeiro) 2º Titular: Francisco Borges de Barros 3º Titular: Aloísio de Carvalho Filho. Eleito para a Cadeira 26, permutou esta, obtendo acordo da Academia, pela Cadeira 7, com monsenhor Francisco de Paiva Marques, quando ambos ainda não empossados. 490 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 4º Titular: Nelson de Souza Sampaio 5º Titular: Pedro Moacir Maia Titular atual: Joaci Fonseca de Góes (Joaci Góes) Posse em 24.9.2009 Cadeira 8 Patrono: Cipriano José Barata de Almeida (Cipriano Barata) Fundador: Luís Anselmo da Fonseca 2º Titular: Francisco Peixoto de Magalhães Netto (Magalhães Netto) 3º Titular: Adriano de Azevedo Pondé (Adriano Pondé) 4º Titular: Ary Guimarães Titular atual: Paulo Costa Lima Posse em 17.12.2009 Cadeira 9 Patrono: Antônio Ferreira França Fundador: José Alfredo de Campos França 2º Titular: Edgard Ribeiro Sanches 3º Titular: Antônio Luís Machado Neto (Machado Neto) 4º Titular: Cláudio de Andrade Veiga (Cláudio Veiga) Titular atual: João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro (João Ubaldo Ribeiro) Posse em 22.11.2012 Cadeira 10 Patrono: José Lino dos Santos Coutinho Fundador: Antônio Moniz Sodré de Aragão 2º Titular: Altamirando Alves da Silva Requião (Altamirando Requião) Titular atual: Gaspar Sadoc da Natividade (Monsenhor Gaspar Sadoc) Posse em 16.10.1990 Cadeira 11 Patrono: Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, Visconde de Jequitinhonha Fundador: Antônio Ferrão Moniz de Aragão ►► 491 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 2º Titular: Otávio Torres 3º Titular: Oldegar Franco Vieira Titular atual: Yeda Antonita Pessoa de Castro (Yeda Pessoa de Castro) Posse em 10.4.2008 Cadeira 12 Patrono: Miguel Calmon, Marquês de Abrantes Fundador: Miguel Calmon du Pin e Almeida 2º Titular: Alberto Francisco de Assis (Alberto de Assis) 3º Titular: Affonso Ruy de Sousa (Affonso Ruy) 4º Titular: Itazil Benício dos Santos Titular atual: Aramis de Almada Ribeiro Costa (Aramis Ribeiro Costa) Posse em 25.11.1999 Cadeira 13 Patrono: Francisco Moniz Barreto Fundador: Egas Moniz Barreto de Aragão (Pethion de Villar) 2º Titular: Afonso de Castro Rebelo Filho 3º Titular: Walter Raulino da Silveira (Walter da Silveira) 4º Titular: Odorico Montenegro Tavares da Silva (Odorico Tavares) 5º Titular: Luís Fernando Seixas de Macedo Costa (Luís Fernando Macedo Costa) Titular atual: Myriam de Castro Lima Fraga (Myriam Fraga) Posse em 30.7.1985 Cadeira 14 Patrono: Francisco Gonçalves Martins, Visconde de São Lourenço Fundador: Bernardino José de Sousa (Bernardino de Sousa) 2º Titular: Alberto Alves Silva (Alberto Silva) 3º Titular: Edgard Rego Santos (Edgard Santos) 4º Titular: Raul Batista de Almeida 5º Titular: Carlos Vasconcelos Maia (Vasconcelos Maia) 6º Titular. Epaminondas Costalima 492 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Titular atual: Gláucia Maria de Lemos Leal (Gláucia Lemos) Posse em 21.10.2010 Cadeira 15 Patrono: Ângelo Moniz da Silva Ferraz, Barão de Uruguaiana Fundador: Otaviano Moniz Barreto 2º Titular: Hélio Gomes Simões (Hélio Simões) Titular atual: João Carlos Oliveira Teixeira Gomes Fonseca (João Carlos Teixeira Gomes) Posse em 8.6.1989 Cadeira 16 Patrono: José Tomaz Nabuco de Araújo Fundador: Eduardo Godinho Espínola 2º Titular: Orlando Gomes dos Santos (Orlando Gomes) Titular atual: João Eurico Matta Posse em 10.5.1989 Cadeira 17 Patrono: Antônio Ferrão Moniz Fundador: Gonçalo Moniz Sodré de Aragão (Gonçalo Moniz) 2º Titular: Leopoldo Braga 3º Titular: Carlos Eduardo da Rocha Titular atual: Ruy Alberto d’Assis Espinheira Filho (Ruy Espinheira Filho) Posse em 15.9.2000 Cadeira 18 Patrono: Zacarias de Góes e Vasconcelos Fundador: José Joaquim Seabra (J.J. Seabra) 2º Titular: Augusto Alexandre Machado 3º Titular: Avelar Brandão Vilela (Dom Avelar Brandão Vilela) Titular atual: Waldir Freitas Oliveira Posse em 27.10.1987 Cadeira 19 Patrono: João Maurício Vanderley, Barão de Cotegipe Fundador: Severino dos Santos Vieira (Severino Vieira) ►► 493 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 2º Titular: Arlindo Coelho Fragoso (Arlindo Fragoso). Fundador da Cadeira 41, criada em caráter provisório, transferiu-se para esta, após a morte de Severino Vieira, ocorrida em 27 de setembro de 1917, a fim de que fosse extinta a temporária. 3º Titular: Deraldo Dias de Morais 4º Titular: Guilherme Antônio Freire de Andrade Filho 5º Titular: Godofredo Rebelo de Figueiredo Filho (Godofredo Filho) Titular atual: Cid José Teixeira Cavalcante (Cid Teixeira) Posse em 25.3.1993 Cadeira 20 Patrono: Augusto Teixeira de Freitas (Teixeira de Freitas) Fundador: Carlos Gonçalves Fernandes Ribeiro (Carlos Ribeiro) 2º Titular: Epaminondas Berbert de Castro 3º Titular: Lafayette Ferreira Spínola (Lafayette Spínola) 4º Titular: Ivan Americano da Costa 5º Titular: Joaquim Alves da Cruz Rios (Cruz Rios) Titular atual: Aleilton Santana da Fonseca (Aleilton Fonseca) Posse em 15.4.2005 Cadeira 21 Patrono: Francisco Bonifácio de Abreu, Barão da Vila da Barra Fundador: Filinto Justiniano Ferreira Barros 2º Titular: Estácio Luís Valente de Lima (Estácio de Lima) 3º Titular: Jorge Amado 4º titular: Zélia Gattai Amado (Zélia Gattai) Titular atual: Antonio Brasileiro Borges (Antonio Brasileiro) Posse em 10.6.2010 Cadeira 22 Patrono: José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco Fundador: Ruy Barbosa de Oliveira (Ruy Barbosa) 2º Titular: Ernesto Carneiro Ribeiro Filho 3º Titular: Aloísio Henrique de Barros Porto 494 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Titular atual: Clóvis Álvares Lima (Clóvis Lima) Posse em 8.5.1980 Cadeira 23 Patrono: Antônio Januário de Faria Fundador: João Américo Garcez Fróes 2º Titular: Jorge Calmon Moniz de Bittencourt (Jorge Calmon) Titular atual: Samuel Celestino Silva Filho (Samuel Celestino) Posse em 21.8.2008 Cadeira 24 Patrono: Demétrio Ciríaco Tourinho (Demétrio Tourinho) Fundador: Luís Pinto de Carvalho (Pinto de Carvalho) 2º Titular: Luís Menezes Monteiro da Costa (Luís Monteiro) 3º Titular: Renato Berbert de Castro Titular atual: Francisco Soares Senna (Francisco Senna) Posse em 27.4.2000 Cadeira 25 Patrono: Pedro Eunápio da Silva Deiró (Eunápio Deiró) Fundador: Júlio Afrânio Peixoto (Afrânio Peixoto). Com o consentimento da Academia, transferiu-se para a Cadeira 1 após a morte de seu fundador, José de Oliveira Campos. 2º Titular: Francisco Hermano Santana (Hermano Santana) 3º Titular: Raimundo de Sousa Brito (Raimundo Brito) 4º Titular: Luís Augusto Fraga Navarro de Brito (Navarro de Brito) Titular atual: Fernando da Rocha Peres Posse em 16.6.1988 Cadeira 26 Patrono: Antônio de Macedo Costa (Dom Antônio de Macedo Costa) Fundador: José Cupertino de Lacerda (Padre José Cupertino de Lacerda) 2º Titular: Alberto Moreira Rabelo (Alberto Rabelo), único membro da Academia que faleceu antes de tomar posse. 3º Titular: Francisco de Paiva Marques (Monsenhor Paiva ►► 495 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Marques). Eleito para a Cadeira 7, permutou esta pela Cadeira 26, com Aloísio de Carvalho Filho, quando ambos ainda não empossados. 4º titular: César Augusto de Araújo (César de Araújo) Titular atual: Roberto Figueira Santos (Roberto Santos) Posse em 10.8.1971 Cadeira 27 Patrono: Francisco Rodrigues da Silva Fundador: Frederico de Castro Rabelo (Frederico Rabelo) 2º Titular: Antônio Gonçalves Vianna Júnior (Antônio Vianna) 3º Titular: Jayme Tourinho Junqueira Ayres (Jayme Junqueira Ayres) 4º Titular: Antônio Loureiro de Souza 5º: Titular: James Amado VAGA Cadeira 28 Patrono: Luís José Junqueira Freire (Junqueira Freire) Fundador: Francisco Torquato Bahia da Silva Araújo 2º Titular: Homero Pires de Oliveira e Silva 3º Titular: José Calasans Brandão da Silva (José Calasans) Titular atual: Consuelo Pondé de Sena Posse em 14.3.2002 Cadeira 29 Patrono: Agrário de Souza Menezes (Agrário Menezes) Fundador: Antônio Alexandre Borges dos Reis (Borges dos Reis) 2º Titular: Manços Chastinet Contreiras (Manços Chastinet) 3º Titular: Colombo Moreira Spínola (Colombo Spínola) 4º Titular: Jorge Faria Góes Titular atual: Hélio Pólvora de Almeida (Hélio Pólvora) Posse em 8.3.1994 Cadeira 30 Patrono: Joaquim Monteiro Caminhoá Fundador: Antônio do Prado Valadares (Prado Valadares). Permutou a cadeira com Roberto José Correia (Roberto Correia), titular da Cadeira 38. 496 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 2º Titular: Roberto José Correia (Roberto Correia) 3º Titular: Alfredo Vieira Pimentel 4º Titular: Nestor Duarte Guimarães (Nestor Duarte) 5º Titular: Josaphat Ramos Marinho (Josaphat Marinho) Titular atual: Paulo Roberto Bastos Furtado (Paulo Furtado) Posse em 24.4.2003 Cadeira 31 Patrono: Belarmino Barreto Fundador: Ernesto Simões da Silva Freitas Filho (Simões Filho) 2º Titular: José Luís de Carvalho Filho (Carvalho Filho) Titular atual: Florisvaldo Moreira de Mattos (Florisvaldo Mattos) Posse em 23.11.1995 Cadeira 32 Patrono: André Pinto Rebouças (André Rebouças) Fundador: Theodoro Fernandes Sampaio (Theodoro Sampaio) 2º Titular: Isaías Alves de Almeida (Isaías Alves) 3º Titular: Zitelmann José Santos de Oliva (Zitelmann de Oliva) 4º Titular: Gérson Pereira dos Santos VAGA Cadeira 33 Patrono: Antônio Frederico de Castro Alves (Castro Alves) Fundador: Francisco Xavier Ferreira Marques (Xavier Marques) 2º Titular: Heitor Praguer Fróes. Tomou posse em 15 de novembro de 1931 na Cadeira 34, transferindo-se para esta após a morte de Xavier Marques 3º Titular: Waldemar Magalhães Mattos (Waldemar Mattos) 4º Titular: Ubiratan Castro de Araújo (Ubiratan Castro) Titular atual: Maria Stella de Azevedo Santos (Mãe Stella de Oxóssi) Posse em 12.9.2013 Cadeira 34 Patrono: Domingos Guedes Cabral Fundador: José Virgílio da Silva Lemos (Virgílio de Lemos) ►► 497 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 2º Titular: Heitor Pragues Fróes. Transferiu-se para a Cadeira 33, depois do desparecimento de Xavier Marques 3º Titular: Adalício Coelho Nogueira (Adalício Nogueira) 4º Titular: Walfrido Moraes de Lima (Walfrido Moraes) Titular atual: Evelina de Carvalho Sá Hoisel (Evelina Hoisel) Posse em 27.10.2005 Cadeira 35 Patrono: Manoel Vitorino Pereira (Manoel Vitorino) Fundador: Antônio Pacífico Pereira 2º Titular: Afonso Costa 3º Titular: Rui Santos 4º Titular. Rubem Rodrigues Nogueira (Rubem Nogueira) 5º Titular: João da Costa Falcão (João Falcão) Titular atual: Luís Antonio Cajazeira Ramos Posse em 2.8.2012 Cadeira 36 Patrono: Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha (Fernandes da Cunha) Fundador: Afonso de Castro Rebelo 2º Titular: Manuel de Aquino Barbosa (Padre Manuel Barbosa) 3º Titular: Hildegardes Cantolino Vianna (Hildegardes Vianna) Titular atual: José Carlos Capinan Posse em 17.8.2006 Cadeira 37 Patrono: João Batista de Castro Rebelo Júnior Fundador: Almachio Diniz Gonçalves (Almachio Diniz) 2º Titular: Edith Mendes da Gama e Abreu 3º Titular. Antonio Carlos Peixoto de Magalhães (Antônio Carlos Magalhães) Titular atual: Emanuel d’Able do Amaral (Dom Emanuel d’Able do Amaral) Posse em 28.5.2009 Cadeira 38 Patrono: Alfredo Tomé de Brito (Alfredo Brito) Fundador: Oscar Freire de Carvalho 498 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 2º Titular: Roberto José Correia (Roberto Correia). Permutou sua cadeira com Prado Valadares, fundador da Cadeira 30. 3º Titular: Antônio do Prado Valadares (Prado Valadares) 4º Titular: Cristiano Alberto Müller (Cristiano Müller) 5º Titular: Wilson Mascarenhas Lins de Albuquerque (Wilson Lins) Titular atual: Armando Avena Filho Posse em 28.4.2005 Cadeira 39 Patrono: Francisco de Castro Fundador: Clementino Rocha Fraga Júnior (Clementino Fraga) Titular atual: Edivaldo Machado Boaventura (Edivaldo M. Boaventura) Posse em 6.8.1971 Cadeira 40 Patrono: Francisco Cavalcanti Mangabeira (Francisco Mangabeira) Fundador: Octavio Cavalcanti Mangabeira (Octavio Mangabeira) 2º Titular: Manoel Pinto de Aguiar 3º Titular: Consuelo Novais Sampaio VAGA Obs.: Cadeira 41 Criada em caráter provisório para que Arlindo Fragoso, idealizador e organizador da Academia de Letras da Bahia, não lhe ficasse de fora, devendo ser extinta com o falecimento de qualquer um dos 41 fundadores. Patrono: Manuel Alves Branco, Visconde de Caravelas. Fundador: Arlindo Coelho Fragoso (Arlindo Fragoso). Com a morte de Severino Vieira, em 27 de setembro de 1917, para a sua Cadeira, de número 19, foi transferido Arlindo Fragoso, sendo suprimida a cadeira provisória. ►► 499 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Membros correspondentes Antonella Rita Roscilli Antonio Carlos Secchin Ático Frota Villas-Boas da Mota Cyro de Mattos Dominique Stoenesco Franklin W. Knight Glória Kaiser Helena Parente Cunha Isa Maria Carneiro Gonçalves Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira (Moniz Bandeira) Maria Beltrão Rita Olivieri-Godet Vamireh Chacon 500 ◄◄ Endereços dos acadêmicos Aleilton Fonseca Rua Rubem Berta, 267-402 — Pituba 41820-040 — Salvador/BA ( (71) 3345-1519 / 8876-1519 [email protected] Antonio Brasileiro Rua Alto do Paraná, 300 — Bairro Sim 44042-000 — Feira de Santana/BA ( (75) 3625-8512 [email protected] Aramis Ribeiro Costa Rua Piauí, 439-1103 — Pituba 41830-280 — Salvador/BA ( (71) 3240-4969 / 9984-1165 [email protected] Armando Avena Condomínio Jardim Gantois, Rua C, 346 — Piatã 41680-170 — Salvador/BA ( (71) 3272-2960 / 9994-3000 [email protected] ►► 501 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Carlos Ribeiro Rua do Timbó, 680-503 — Caminho das Árvores 41820-660 — Salvador/BA ( (71) 3011-7019 / 9153-4908 [email protected] Cid Teixeira Rua das Violetas, 85 — Pituba 41810-080 — Salvador/BA ( (71) 3452-7402 [email protected] Cleise Mendes Rua Marechal Floriano, 357-302 — Canela 40110-010 — Salvador/BA ( (71) 3337-0312 / 9198-6165 [email protected] Clóvis Lima Avenida Sete de Setembro, 750-404 — Mercês 40060-001 — Salvador/BA ( (71) 3329-4178 Consuelo Pondé de Sena Avenida Princesa Leopoldina, 288-301 — Graça 40150-080 — Salvador/BA ( (71) 3492-6365 / 8777-5415 [email protected] Dom Emanuel d’Able do Amaral Largo São Bento, 1 — Centro 41205-220 — Salvador/BA ( (71) 2106-5272 / 8151-1053 [email protected] 502 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Edivaldo M. Boaventura Rua Doutor José Carlos, 99-801 — Acupe 40290-040 — Salvador/BA ( (71) 3276-1242 / 8818-6199 [email protected] Evelina Hoisel Rua Monsenhor Gaspar Sadoc, 48 — Jardim de Alá 41750-200 — Salvador/BA ( (71) 3343-5789 / 9968-7625 [email protected] Fernando da Rocha Peres Avenida Sete, 2901-202 (ala norte) — Ladeira da Barra 40130-000 Salvador/BA ( (71) 3336-3670 / 9956-7880 [email protected] Florisvaldo Mattos Rua Sócrates Guanaes Gomes, 107-801 — Cidade Jardim 40296-720 — Salvador/BA ( (71) 3353-9785 / 9986-2848 [email protected] Francisco Senna Rua Professor Milton Oliveira, 73-202 — Barra 40140-100 — Salvador/BA ( (71) 9967-0685 [email protected] Geraldo Machado Rua Edith Mendes da Gama e Abreu, 300-1403 — Itaigara 41815-010 — Salvador/BA ( (71) 3353-5350 / 9976-7033 [email protected] ►► 503 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Gláucia Lemos Rua Ceará, 853-203 — Pituba 4l830-450 — Salvador/BA ( (71) 3240-3688 / 8199-1803 [email protected] Hélio Pólvora Avenida Sete de Setembro, 1862-1202 — Corredor da Vitória 40080-004 — Salvador/BA ( (71) 3337-0169 [email protected] Joaci Góes Avenida Amaralina, 885, Amaralina Center, loja 9 — Amaralina 41900-020 — Salvador/BA ( (71) 3444-2308 / 8814-3631 [email protected] João Carlos Teixeira Gomes Rua Espírito Santo, 15-802 — Pituba 41830-120 — Salvador/BA ( (71) 3240-1712 [email protected] João Eurico Matta Rua Afonso Celso, 301-302 — Barra 40140-080 — Salvador/BA ( (71) 3247-0869 / 8880-0869 [email protected] João Ubaldo Ribeiro Rua General Urquiza, 147-401 — Leblon 22431-040 — Rio de Janeiro/RJ ( (21) 2239-1528 [email protected] 504 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 José Carlos Capinan Rua Tamoios, 96 — Rio Vermelho 41940-040 — Salvador/BA ( (71) 3345-2080 / 9955-1410 [email protected] Luís Antonio Cajazeira Ramos Rua Érico Veríssimo, 34-401 — Itaigara 41815-340 — Salvador/BA ( (71) 2137-1920 / 8861-1515 [email protected] Luís Henrique Dias Tavares Rua do Ébano, 159-802 — Caminho das Árvores 41820-370 — Salvador/BA ( (71) 3245-3524 [email protected] Mãe Stella de Oxóssi Rua Direta, 557 — São Gonçalo do Retiro 41185-055 — Salvador/Bahia ( (71) 3247-2967 [email protected] Monsenhor Gaspar Sadoc Rua Crisipo de Aguiar, 10-102 — Vitória 40080-310 — Salvador/BA ( (71) 3336-0346 Myriam Fraga Rua Waldemar Falcão, 761-301 — Brotas 40295-001 — Salvador/BA ( (71) 3356-4611 / 8151-1413 [email protected] ►► 505 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Paulo Costa Lima Rua Sabino Silva, 282-401 — Jardim Apipema 40155-250 — Salvador/BA ( (71) 8832-1545 /3235-5676 [email protected] Paulo Furtado Avenida Orlando Gomes, Condomínio Parque Costa Verde, quadra H, lote 3 41650-120 — Salvador/BA ( (71) 3367-9481 / 9158-3414 [email protected] Paulo Ormindo de Azevedo Rua João da Silva Campos, 1132 — Itaigara 41840-060 — Salvador/BA ( (71) 3358-7571 / 8816-5262 [email protected] Roberto Santos Rua Basílio Catalá de Castro, quadra B, lote 19 — Quinta do Candeal 40280-550 — Salvador/BA ( (71) 3276-5759 / 9115-9532 [email protected] Ruy Espinheira Filho Caixa Postal 10333 41520-970 — Salvador/BA ( (71) 3287-2225 / 9973-8711 [email protected] Samuel Celestino Rua do Ébano, 159-1301 — Caminho das Árvores 41820-370 — Salvador/BA ( (71) 3341-4485 / 3359-7741 [email protected] 506 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Waldir Freitas Oliveira Rua Tiradentes, 52 — Abrantes 42840-000 — Camaçari/BA ( (71) 3623-1434 / 9968-2989 [email protected] Yeda Pessoa de Castro Rua Antonio da Silva Coelho, 151-705 — Jardim Armação 41750-040 — Salvador/BA ( (71) 3461-9033 / 8138-4865 [email protected] Membros correspondentes: Antonella Rita Roscilli Via Giacomo Barzelloti, 7 00136 — Roma — Itália [email protected] Antonio Carlos Secchin Avenida Atlântica, 2112-801 — Copacabana 22021001 — Rio de Janeiro/RJ ( (21) 2236-1112 [email protected] Ático Frota Villas-Boas da Mota Rua Doutor Manoel Vitorino, 411 — Coité 46500-000 — Macaúbas/BA ( (77) 3473-1292 [email protected] ►► 507 Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Cyro de Mattos Travessa Rosenaide, 40-101 — Zildolândia 45600-395 — Itabuna/BA ( (73) 3211-1902 / 8846-1883 [email protected] Dominique Stoenesco 26 bis, allée Guy Mocquet 94170 — Le Perreux-sur-Marne — France ((003133) 1 48 72 16 56 / (003133) 06 08 65 50 23 [email protected] Franklin W. Knight 2902 W. Strathmore Avenue Baltimore, Maryland 21209 — USA Glória Kaiser Dr. Robert Siegerst, 15 A 8010 — Graz — Áustria [email protected] Helena Parente Cunha Rua das Laranjeiras, 280-200 — Laranjeiras 22240-001 — Rio de Janeiro/RJ [email protected] Isa Maria Carneiro Gonçalves Rua Milton Melo, 413 — Santa Mônica 44050-560 — Feira de Santana/BA ( (75) 3625-2416 [email protected] Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira Reilinger Strasse, 19, D 68789 — Deutschland 508 ◄◄ Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014 Maria Beltrão Rua Prudente de Moraes, 1179, Cobertura 1 — Ipanema 22420-043 — Rio de Janeiro/RJ ( (21) 2247-4180 mcmcbeltrã[email protected] Rita Olivieri-Godet 24, Avenue Sergent Maginot 35000 — Rennes — France ( 02 99 67 35 02 [email protected] Vamireh Chacon Universidade de Brasília — Instituto de Ciência Política 70910-900 — Brasília/DF ►► 509 A Revista da Academia de Letras da Bahia nº 52 Foi organizada, editorada e publicada em 2014 Ano do centenário do nascimento de Dorival Caymmi Ano do centenário, em vida, do poeta e acadêmico Clóvis Lima Presidente da ALB Aramis Ribeiro Costa Diretor da Revista Florisvaldo Mattos Conselho Editorial Fernando da Rocha Peres Myriam Fraga Ruy Espinheira Filho Produção editorial Aleilton Fonseca Revisão editorial e normalização Luís Antonio Cajazeira Ramos Editoração e arte final Elimarcos Santana Serviço editorial Via Litterarum Editora