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Título original: Cómo se llama James Joyce? A partir de “El Sinthoma”, de Lacan ©Robert Harari, 1995 © Ágalma e Cia de Freud, 2003 para esta edição na língua portuguesa março, 2003 Capa e projeto gráfico da coleção Homem de Melo & Troia Design Direção desta coleção Ricardo Goldenberg Tradução Francisco F. Settineri Revisão da tradução Ricardo Goldenberg Revisão tipográfica Sandra Regina Felgueiras Depósito legal Impresso no Brasil/Printed in Brazil Todos os direitos reservados Ágalma Psicanálise Editora Ltda Rua Agnelo de Brito, 187 Centro Odontomédico Henri Dunant, s/309 40.170-100 Salvador - Bahia, Brasil Tel: (0xx) 71 332-8776 Telefax: (0xx)71 245-7883 e-mail: [email protected] site: www.agalma.com.br Companhia de Freud Editora Rua Visconde de Pirajá, 577 salas 306/307 Rio de Janeiro - RJ, Brasil Telefax: (0xx) 21 2263-3960 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ H231c Harari, Roberto, 1943Como se chama James Joyce? : A partir do seminário Le Sinthome de J. Lacan / Roberto Harari ; tradução Francisco Franke Settineri ; [prefácio à edição brasileira, Aurélio Souza]. - Salvador, BA : Ágalma ; Rio de Janeiro : Campo Matêmico, 2002 325p. : . - ( Discurso psicanalítico ; 9 ) Tradução de: Cómo se llama James Joyce? : a partir de El Sinthoma de Lacan ISBN 85-85458-20-8 ISBN 85-85717-65-3 1. Joyce, James, 1882-1941 - Crítica e interpretação. 2. Lacan, Jacques, 1901-1981 - Contribuição em crítica literária. 3. Psicanálise I. Título. II. Série. 02-1589. CDD 828.99153 CDU 820(411)-3 SUMÁRIO Prefácio à edição brasileira, 09 Aurélio Souza Prólogo, 21 1. Joyce, Lacan: a heresia borromeana de quatro, 25 2. Eva, não sem Dédalo, 54 3. Epifanias, , trevo, 84 4. Gozos, responsabilidade, enigma: o saber-fazer-ali-com, 113 5. Entre o père-sonnores e a luva virada do avesso, 140 6. Jeems Jokes, a telepatia e o parasita libretista, 169 7. O sinthomem, desabonado do inconsciente, 196 8. Prelúdio para o Wake de um fauno, 230 9. Forclusões, falsos buracos, supleções, 263 10. O quadro das nominações joyceanas, 294 Para minha mulher, Diana, que com carinho, tolerância e lúcido estímulo acompanha cada letra dos meus caminhos psicanalíticos. “(bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronn tuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenhurnuk!)” J.Joyce, Finnegans Wake Mis labios que decían verdad mentían repetían afirmaban negaban mendigaban gritaban susurraban lloraban reían. Mis labios que se colocan alrededor de las pronunciadas innumerables palabras. T. Rósewicz, Poema “Je veux le blanc, le vide et l’absence de mots. mais ce sont les mots, toujour eux, qui dans ma tête parlent, ne cessent de parler.” PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA Foi com satisfação que aceitei o convite para apresentar essa tradução de “Como se chama James Joyce? … ”, na língua brasileira. Em primeiro lugar por se tratar de algo que vai consolidando uma amizade inaugurada a partir de um seminário realizado por Harari, no Espaço Moebius (Salvador), em dezembro de 1998. Em segundo lugar, por me convocar a compartir uma leitura do seminário XXIII de Lacan, “Le Sinthome”, que trata da topologia do nó borromeano, um dos fundamentos do ensino lacaniano que tenho me dedicado a estudar nos últimos anos. Além disso, também se refere às aventuras e à arte linguageira de James Joyce, de seu saber fazer com a língua que tem interessado aos psicanalistas e à psicanálise. Logo no início de seu livro Roberto Harari revela uma intimidade com nossa língua. Ele o faz, justificando a transliteração para o castelhano “sinthombre”, do significante “sinthomem”, que corresponde a uma das traduções sugeridas aqui no Brasil para “sinthome” 1. Esse significante, como disse acima, não só nomeia o seminário XXIII, como corresponde a uma noção elaborada por Lacan em seus últimos anos de ensino. 1 A tradução sinthomem, adotada neste volume, mantém a opção do autor por sinthombre, embora não corresponda às opções comumente utilizadas pelos editores brasileiros. A Cia de Freud prefere manter o conceito no original; Ágalma utiliza nas suas traduções sinthoma. (N. dos E.). 9 COMO SE CHAMA JAMES JOYCE? Em “Como se chama James Joyce? …”, Harari, além de nos oferecer um passeio erudito pelos caminhos da psicanálise e da literatura, nos conduz pelas diferentes significações que o significante “sinthome” adquire no ensino de Lacan. Algumas extraídas dos textos de Freud e outras derivadas de sua própria contribuição. Dessa maneira, não se deve esperar um sentido unívoco para o “sinthome”, uma noção que se originou de uma necessidade lógica surgida na passagem da escritura do nó borromeano de três dimansões (uma das possibilidades que sugiro para transliterar, no plural, o neologismo construído por Lacan – “dit-mention”) para o nó borromeano de quatro. A propósito, o nó borromeano é uma estrutura construída pelo enodamento do real, simbólico e imaginário, de uma maneira tal que, se um desses elementos se separa, o nó se desfaz. Trata-se de uma escritura que comporta várias ortografias. Aqui, em “Como se chama James Joyce? …”, Harari irá insistir naquela sugerida por Lacan e que é formada por quatro elementos: o real, o simbólico, o imaginário e mais um – o sinthomem. Uma “heresia borromeana de quatro” é a expressão que utiliza para designar o primeiro capítulo de seu livro. A partir desse tipo de escritura singular pode-se inferir sobre a constituição e as vicissitudes da ex-sistência do sujeito, já que o nó borromeano e mesmo a topologia ganham, na psicanálise, o estatuto de estrutura. Essa escritura borromeana aparece em “Como se chama James Joyce? …” no rigor da letra do ensino de Lacan implicado em sua própria práxis. Talvez se possa dizer que a importância do sinthomem tem surgido a partir desse determinado movimento que a psicanálise sofreu, deslocando o centro de seu discurso da dimansão simbólica para a do real. Essas noções que têm se constituído como essenciais para a psicanálise, como o real, o nó borromeano, o sinthomem entre outras, que passam a ser sustentadas no ensino de Lacan pelo estatuto da escritura e da letra, serão desenvolvidas com detalhes em “Como se chama James Joyce? …” . Mais do que isso, permitem seguir esse movimento de desconstrução que Lacan realizou na psicanálise “oficial”. 10 PREFÁCIO Por exemplo, com a estrutura borromeana modifica-se a noção de causalidade psíquica, que passa a ser determinada pela própria dimansão do real. Com essa outra escritura rompe-se a conexão racional e linear da noção de causalidade, revelando-nos outros paradigmas como a teoria das catástrofes de René Thom ou a teoria do caos, de Ilya Prigogine. Uma orientação que se fundamenta nessa passagem que vai da ficção da palavra à importância da voz. Da polissemia do significante à polifonia das palavras. Ou, ainda, como um deslizamento que vai da topologia do significante à topologia do nó borromeano. Harari nos faz ver, em “Como se chama James Joyce? …” , que um pequeno golpe, uma pequena manipulação no discurso do analisante faz ressoar algo diferente na estrutura, capaz de instituir “uma nova harmonia” para o sujeito. Um fato linguageiro que determina seu efeito a partir dessa condição em que o “sonoro deve consoar com o que é do inconsciente”, embora revelando que a práxis do analista não reside simplesmente em interpretar o inconsciente, mas em que “toque” em pedaços do real. Com a escritura do nó borromeano, o real deve ser considerado sempre como pedaços de real ou mesmo como um “caroço” do real de onde brota o pensamento. Ainda, seguindo a errância que seu texto nos convoca a fazer, uma outra questão que gostaria de assinalar é a distância que existe entre as noções do sintoma (symptôme), em seu ponto de vista tradicional, e o sinthomem. Aqui, é preciso insistir, não se trata de uma questão de gosto pelas palavras, se uma ou outra, nem mesmo que se possa estabelecer um equivalência entre estas duas noções. São estruturas diferenciadas em seus fundamentos. O sintoma não é o sinthomem. Desde que o campo da linguagem constitui-se na casa do sujeito e a função da fala se revela como o instrumento maior do discurso analítico, o sintoma (symptôme) tem, desde Freud, o estatuto de uma formação do inconsciente. Como tal, mantém relações com o recalque, com o retorno do recalcado e mesmo com a repetição. 11 COMO SE CHAMA JAMES JOYCE? Na leitura de Lacan, a princípio sustentada na topologia do significante, o sintoma não só é concebido com o estatuto de uma metáfora, mas também passa a ser visto como uma mensagem. Não se trata, contudo, de uma mensagem dirigida aos pequenos outros e que possa servir de escambo para uma suposta relação intersubjetiva, nem mesmo que se o conceba como um sintoma social. Vou insistir, o sintoma é uma mensagem cifrada que o sujeito sustenta para o grande Outro. Todavia, o que se pode considerar trágico ou mesmo tragicômico dessa condição é que o próprio sujeito ignora os termos da mensagem que porta, ainda que ela algumas vezes contenha o decreto de sua morte. Sobre essa questão, Lacan alude em certo momento ao destino de Guildenstern e Rosencrantz, em Hamlet: eles “não sabiam” que transportavam uma mensagem que os condenava a uma morte imediata, sem recursos de apelação. A análise, essa prática concebida num espaço de discurso e de transferência, tem colocado o sintoma tradicionalmente sob o estatuto de um significante que se reduz à realidade do inconsciente. Por causa disso, sempre que se realiza, ele deve ser visto como algo para ser lido e que busca uma interpretação. Todavia, Harari ainda nos faz ver que Lacan não se deteve aí. Ao desenvolver suas diversas concepções de estrutura, chegou finalmente a concebê-la com o estatuto topológico de um buraco: o grande Outro em forma de pequeno a. Aqui, talvez não seja excessivo se dizer que a noção de estrutura, ao adquirir esse estatuto de um buraco, tenha possibilitado a Lacan encontrar, “como um anel no dedo”, a própria escritura do nó borromeano. Isso quer dizer que o nó borromeano se escreve a partir de um buraco que existe em seu centro, nesse lugar onde o inconsciente faz turbilhão como um parafuso sem fim, onde no fundo está o real. Com a escritura borromeana, todavia, o sintoma ganha um novo estatuto. Passa a ser lido como um efeito do simbólico no real, um tipo de nominação simbólica que reflete no campo do real a presença de algo que não anda. Essa nova versão do sintoma vem revelar a intimidade com que está ligado ao corpo e, portanto, ao 12 PREFÁCIO imaginário, à dimansão do real através do gozo e, por fim, ao simbólico, num tipo de enodamento que possibilita ao sujeito também gozar do inconsciente, do “inconsciente que o determina”, que orienta suas escolhas e até mesmo seu destino. Como um efeito de estrutura, o sintoma não só vem se constituir numa vertente de gozo na ex-sistência do sujeito, como traz implícitos os limites de sua interpretabilidade. Esse fato linguageiro modifica a direção da cura, o sentido da interpretação e até mesmo da própria análise. Com essa outra versão do sintoma pode-se dizer que ocorre uma transmudação de sua condição patológica a ser tratada para uma estrutura que possibilita ao sujeito viver ou até mesmo se proteger da loucura durante sua ex-sistência. Assim, o que se passa a esperar de uma análise não é que o sujeito se libere de seus sintomas, mas que saiba de que maneira está implicado neles, como Harari nos faz inferir em seu livro. Diferente do sintoma (symptôme), para formalizar essa noção do sinthomem, Lacan começa a se utilizar de uma escritura do francês antigo: “sinthome”. Trata-se de um significante que vem do grego sum-ptôma, onde a partícula sum derivou para o “sin” de “sinthome” e mais tarde para “sym”, que através do latim médico veio fazer parte do significante “symptôme”. O sinthomem vem “helenizar” a psicanálise. Vou usar esse significante “helenizar” para aludir aos comentários que Sollers e Lacan fizeram à respeito de Joyce, que enxertou várias línguas no inglês. Lacan, para dar um desenvolvimento apropriado a essa questão, utilizou-se ainda de um outro significante inventado por Sollers, “l’élangues”, que faz homofonia com “les langues” e vem corresponder às diversas expansões que uma língua pode causar às outras. Um tratamento linguageiro que se encontra muitas vezes nos textos de Joyce e Lacan. O “sinthome”, elaborado a partir do seminário XXIII, constituise numa noção que vai adquirir o estatuto de uma escritura que favorece a real, simbólico e imaginário se enodarem de uma só 13 COMO SE CHAMA JAMES JOYCE? vez como superfície-tempo num nó borromeano. Além disso, deixando-se invadir pelas propriedades fonêmicas ou pela polifonia das palavras que vêm realizar uma condensação de várias línguas, o sinthomem possibilita jogos de homofonia que fazem parte da própria estrutura discursiva. Se já me referi ao grego, ao latim, ao francês, poder-se-ia ainda incluir a língua inglesa através da partícula “sin”, que é o pecado, essa primeira falta que jogou Adão e Eva para fora do paraíso. Talvez não seja excessivo se considerar que a presença de nomes como Adam, M’Adam, Madam, … Eve2 , o mito de Evie, a mãe dos viventes, em torno da qual se constrói algo menos “cretinizante” que o complexo de Édipo, como disse Lacan, o tenha levado a considerar e manter essa aproximação entre a psicanálise e a religião, já que é preciso “reconhecer o que a religião nos tem ensinado a evocar como Nome-do-Pai”3. Ainda sobre essa questão é interessante observar que Lacan em certo momento procurou instituir dois tipos de escrituras para o nó borromeano: levógira e dextrógira. Sugeriu que se poderia até mesmo considerar uma delas como idealizada, onde o real deveria sobrepassar o simbólico tocando-o em dois pontos, enquanto que o toro do imaginário viria enodá-los de uma forma borromeana. Mostrando uma equivalência entre o real, simbólico e imaginário, ele partiu da escritura RSI, que por homofonia revela a heresia (l’héresie) que ao se realizar o simbólico do imaginário vem-se definir a religião. Em seguida, tomando uma orientação levógira, que identificou com a “boa série”, chegou à IRS; aqui, ao se imaginar o real do simbólico tenta-se dar conta das matemáticas. Por fim, com SIR, à medida que se pode simbolizar o imaginário do real se alcançaria a psicanálise. 2 Esses e outros nomes, à medida que freqüentaram os textos de Joyce, o seminário XXIII, “Le Sinthome”, e mesmo alguns escritos de Lacan contemporâneos ao seminário, como suas conferências “Joyce, o sintoma” (I e II), permitem inferir sempre essa relação estabelecida em seu ensino entre a psicanálise e a religião. 3 Lacan, J., D’une question préliminaire… , Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 556. 14 PREFÁCIO É interessante observar que a aproximação entre a psicanálise e a religião4 (incluindo as matemáticas) vai ser determinada por essa categoria de escrituras levógiras do nó borromeano onde o real mantém-se sempre antecedendo o simbólico. Isso o leva a afirmar que a apreensão analítica do nó é o negativo da religião. Todavia, em “Como se chama James Joyce? …”, Harari nos revela certos caminhos que Lacan percorreu no seminário XXIII, para mais uma vez tratar dessa convergência entre a psicanálise e a religião. Como se pode observar, ele se movimenta a partir de certas relações fonéticas, ou, como preferiu também chamá-las “faunéticas”, que a letra dos textos joyceanos instituía. Nesse percurso, o próprio Lacan criou diversas palavras e expressões “jokes” ou “puns”5 , que são transcritas e comentadas por Harari em seu livro, como por exemplo nas pp. 36/39, 45, 48/49, entre outras (versão castelhana). Dessa maneira, sua leitura se orienta a partir do próprio significante “sin-thome”. Com seu toque, faz ressoar como “thom” (de René), talvez como thomé (de Michel), thonnard (o irmão Thonnard, que é citado no seminário I), como Saint Thomas, Saint Thomas d’Aquin, como “thomiste”; ou ainda nos conduz à “sainteté” de um “saint-homme”, como se referiu em relação à Joyce. Num percurso enriquecedor onde desbrava os caminhos que Lacan utiliza para comentar sobre James Joyce, que por sua vez fala de São Tomás de Aquino, Harari nos mostra mais detalhes dessa aproximação entre a psicanálise e a religião. 4 Em diversas ocasiões Lacan ainda se referiu a essa aproximação entre a psicanálise e a religião. Por exemplo, quando afirmou que “a psicanálise comporta um ato de fé” (Sem. XVI), ou que “a psicanálise é a forma moderna da fé, da fé religiosa (Sem. de L’une-bévue …). Ou ainda quando afirma em Télévision (p. 28) que o analista deve ser colocado no lugar que “no passado se chamava: ser um santo”. 5 Embora em certo momento das “Conférences et entretiens dans les universités nord-américaines” (02/12/1975) apareça no texto o significante “fun” (divertimento), a idéia que Lacan vem desenvolvendo em seus últimos seminários corresponde aos jogos de palavras, aos trocadilhos que podem ser realizados através de relações de homofonia. Isso corresponde ao significante “pun”. 15 COMO SE CHAMA JAMES JOYCE? Com efeito, um destes momentos criativos que faz ligação entre São Tomás e James Joyce o olhar de Lacan não deixou escapar. Corresponde ao desenvolvimento que Joyce promoveu de certas manifestações reveladas por São Tomás, quando esse tratou da apreensão cognitiva do objeto ou talvez de algo que viesse fazer parte de uma estética que quis elaborar. São Tomás de Aquino referiu-se a certos fenômenos que se manifestavam na relação e apreensão do objeto. Nesses casos, o objeto, além de possuir uma integridade (integritas) e uma harmonia (consonantia), também era tomado por sua “quidditté”. Essa “coisificação” do objeto manifestava-se através de um certo brilho que o iluminava de uma maneira quase alucinatória, como uma experiência inusitada que afetava o ser. São Tomás a denominou de claritas. Do lado de James Joyce, esta manifestação, que se realizava no objeto e que mantinha uma prevalência de natureza escópica em São Tomás (claritas), passava a ser considerada com um outro estatuto. Assim, desde cedo referiu-se em seus trabalhos a certos eventos que se traduziam numa “vulgaridade das palavras ou dos gestos” ou mesmo como revelações de uma natureza espiritual que se impunham ao ser. Estas manifestações, que vinham se constituir em coberturas que a voz fazia sobre o olhar, afetavam o ser de uma maneira muito singular: não só lhe colocava enigmas, mas, diante deles, era obrigado a fazer algo. Estes eventos foram chamados por Joyce de “epifanias”. Na leitura de Lacan, talvez se possa dizer que estas aparições súbitas, que se manifestavam com a “quiddité” do objeto, em São Tomás de Aquino, ressoaram como um “sinthome-madaquin” ou “sinthomadaquin”. Aqui, Harari nos convida a compartir a idéia de que essa experiência de “coisificação” do objeto, que se ilumina para o ser (claritas) ou que afeta como uma cobertura de voz num tipo de manifestação espiritual (epifanias), ganha em Lacan uma dimansão do real. Assim, constituem-se em eventos evacuados de sentido que interrogam o sujeito, como o que é do real, mas também o intimam a fazer algo com a arte de um artífice. Lacan os eqüivale ao “sinthome”. 16 PREFÁCIO Pode-se notar, em seguida, uma homofonia que se realiza entre “sinthome” e “l’homme”, que Lacan não deixa escapar. Por deslizamento chega até “LOM”. Um neologismo que inventa para se transformar numa noção alternativa àquela do sujeito dividido, do “parlêtre”. É sutil seu comentário quando afirma que o inconsciente, enodandose ao sinthomem, que é a condição mais singular de cada um, vai identificar essa noção do LOM ao “individual”. Aqui, embora Lacan tenha se referido ao “individual”, isso não quer dizer que se trate do indivíduo, esse ser que não se divide. O LOM, ao contrário, constitui-se como composto “trinitário” (“trinitaire”) formado de “elementos”, em que cada elemento faz Um e é equivalente ao traço unário. Numa de suas conferências sobre “Joyce, o sintoma”, Lacan afirmava que o LOM também é constituído pelo saber inconsciente e assim vai estar relacionado ao Um, ao S1, l’essaim, o enxame. Esse S1, mesmo que não mais faça conexão com S2, vem representar “verdadeiramente o sujeito … isso quer dizer [representálo] conforme à realidade”. Ou seja, a ex-sistência de S1 numa posição ex-cêntrica em relação à estrutura institui a divisão “trinitária” do LOM, que de acréscimo ainda passa a contar com “um corpo … e fala com seu corpo: …il ahun corps et nan-na Kun”; uma expressão que tem o estatuto de um dos “puns” que Lacan realiza. Talvez também deva dizer que essa noção do sinthomem está implicado nesse enunciado emblemático do ensino de Lacan que se afirma como “há do Um”. Trata-se de um Um que não unifica, mas que mantém uma relação com a letra, com a escritura que vem instituir um fazer que dá apoio ao pensamento, ao “appensée”. Aqui, a escritura determina uma condição que obriga o sujeito, como um dever ético, a fazer algo. A letra, a escritura faz fazer. Em certo momento, Lacan enunciou: “il faut le faire”. Esse fato de estrutura, portanto, vai estar sempre impelindo o LOM a fazer algo que não pode deixar de ser feito. Lacan o relaciona com o trabalho do artesão que inventa as coisas com sua arte, uma a uma. É preciso insistir, o sinthomem deve ser destituído de qualquer idéia que possa estar relacionada ao recalcado, ao 17 COMO SE CHAMA JAMES JOYCE? retorno do recalcado ou ainda a um significante do qual se espere uma significação fálica. É uma noção, portanto, que vem modificar o estatuto do sintoma em sua relação com o inconsciente, assim como restabelece uma nova discussão de Lacan com Freud. Para Lacan, embora o real, o simbólico e o imaginário já estivessem presentes nos textos de Freud, eles funcionavam de uma maneira independente e à deriva. Foi preciso que o próprio Freud inventasse algo para enodá-los. Ele o fez, a princípio, através da noção de realidade psíquica e, mais tarde, com o complexo de Édipo: uma invenção revelada numa tripartição histórica, mítica e trágica. Lacan, até o início do seminário XXII, RSI, não achava necessária a presença do complexo de Édipo como esse quarto elemento que viesse ligar o real, o simbólico e o imaginário, pois se tratava de uma estrutura que já fazia parte do simbólico. Embora o complexo de Édipo seja interrogado por Lacan através de uma questão essencialmente freudiana, “o que é um Pai?”, em sua leitura, ele o coloca sob um ponto de vista estrutural, numa condição equivalente à própria linguagem. Assim, não só dá uma resposta diferente de Freud, como o trata de uma maneira que não comporta uma noção unívoca. Lacan sugeriu diversos desdobramentos para essa noção do Pai. Em seus primeiros escritos, foi concebido numa vertente explicitamente religiosa. No Discurso de Roma, por exemplo, ele o apresenta através de uma alusão que faz ao nome de Deus, identificando-o, portanto, ao nome, como “nome do pai”6 . Nessa ocasião atribuiu-lhe o estatuto de uma função que vinha dar suporte à ordem simbólica. Em seguida, tratou de elaborar uma outra noção que pudesse dar conta do Pai: a metáfora paterna. Uma operação que se realiza à medida que o significante Nome-do-Pai vem substituir uma função que chamou “desejo da mãe”. Aqui, a eficácia da função paterna, 6 Lacan, J., Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse, Écrits, Seuil, Paris, 1966, p. 278. 18 PREFÁCIO como se pode inferir, fica na dependência da mãe. É ela que designa, que autoriza o lugar do Pai. Mais tarde, já nos anos sessenta, Lacan procurou relativizar o Nome-do-Pai, procurando passar de sua condição religiosa para uma interpretação científica. Assim, procurou colocá-lo como uma função lógica, passando a designá-lo de “nomes do pai”. Nessa ocasião revelou a importância que os “nomes do pai” poderiam ter como suplência para tornar a metáfora paterna eficaz. O cavalo de Hans, os ratos de Ernst, ou os lobos de Serguei vêm se constituir em elementos para uma suplência de uma carência do Nome-do-Pai. Se até aqui, de uma maneira ou de outra, a função paterna estava condicionada ao “desejo da mãe”, mais para o final de seu ensino essa noção do Pai, do Nome-do-Pai, passa a se constituir numa presença incondicional para a estrutura do nó borromeano e do sujeito. Como um quarto toro, esse elemento a mais não só adquire a função que vem diferenciar o real, o simbólico e o imaginário, como vai possibilitar que eles se articulem como um real do simbólico do imaginário, um imaginário do real do simbólico, um simbólico do imaginário do real ou ainda numa outra sucessão de escrituras dextrógiras. Se, no curso de seu ensino, Lacan interveio no complexo de Édipo, ele também o fez com a noção de realidade. Ele o fez, identificando esse mais um elemento à realidade psíquica, à realidade religiosa, mas sobretudo ao que chamou de “realidade operatória”. Uma noção que, embora retirada dos textos de Freud, encontra toda sua efetividade na topologia dos nós: a Wirklichkeit. Essa noção de “efetividade” vem determinar um outro caminho na direção do tratamento. Em “Como se chama James Joyce?”, Harari nos convoca a compartir essa noção de que as realidades, à medida que vão sendo construídas no espaço-tempo da análise, incitam o sujeito a deixar essa posição de reserva onde guarda uma esperança na realidade (Realität), para fazer com o saber uma arte que essa realidade (Wirklichkeit) operativa lhe impulsiona realizar. Dito de outra forma, o sujeito faz sua arte como um LOM “faber”. Um artífice que inventa sua arte através de um saber fazer com 19 COMO SE CHAMA JAMES JOYCE? … (“savoir-faire avec”) pedaços do real e com o saber inconsciente. Através de uma constelação de “falas impostas” que não necessitam ser elucubradas, nem mesmo compreendidas, vai produzir o sinthomem, um elemento novo que institui efeitos de estrutura. Ou seja, o “sinthome” ganha o estatuto de um “significante novo” que não está ligado à história do sujeito, à repetição e nem mesmo ao retorno do recalcado, mas a algo que o LOM produz com sua arte como uma invenção. Quero finalizar, afirmando que “Como se chama James Joyce? ...” não corresponde a uma leitura introdutória do seminário XXIII e muito menos de James Joyce. Trata-se de um convite para uma visita ao pensamento de Lacan e, acrescento, aparelhado com certos instrumentos como as matemáticas, a lógica, a literatura, a teoria psicanalítica e, sobretudo, com uma certa poesia. Ainda, nos momentos de folga, ir às locadoras pois existem indicações de filmes que enriquecem e dão consistência ao seu trabalho. Vou insistir, a leitura de “Como se chama James Joyce?…” nos intima a ir mais adiante, não só a buscar as fontes, como a inventar uma outra maneira de se fazer algo novo com o que se pratica. Não imitar nem Lacan, nem Joyce, mas seguir seus exemplos, procurar criar uma novidade com as letras, ler de outra forma aquilo que o analisante diz. Isso compete a cada um que pratica a psicanálise como ofício. Aurelio Souza 20