Vol.39 • nº 130 jul/dez 2014
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REVISTA BRASILEIRA DE SAÚDE OCUPACIONAL - VOL. 39 N° 130 - FUNDACENTRO Vol.39 • nº 130 jul/dez 2014 Editores Científicos Assessoria estatística Eduardo Algranti – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil José Marçal Jackson Filho – Fundacentro, Curitiba-PR, Brasil Andre Luis Santiago Maia – Fundacentro, Salvador-BA, Brasil Marco Antonio Bussacos – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Ricardo Luiz Lorenzi – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Editor Executivo Secretaria Executiva Eduardo Garcia Garcia – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Editores Associados Anaclaudia Gastal Fassa – UFP, Pelotas- RS, Brasil Andréa Maria Silveira – UFMG, Belo Horizonte-MG, Brasil Ângela Paula Simonelli - UFPR ,Curitiba-PR, Brasil Carlos Machado de Freitas – Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Cézar Akiyoshi Saito – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Claudia Carla Gronchi – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Eduardo Mello De Capitani - Unicamp, Campinas-SP, Brasil Irlon de Ângelo da Cunha – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Ivan Targino Moreira - UFPB, João Pessoa-PB, Brasil José Dari Krein - Unicamp, Campinas-SP, Brasil José Prado Alves Filho – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Marco Antonio Bussacos – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Marcia Hespanhol Bernardo – PUC, Campinas-SP, Brasil Maria Aparecida da Cruz Bridi - UFPR, Curitiba-PR, Brasil Mina Kato – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Neice Müller Xavier Faria - UEL, Bento Gonçalves- RS, Brasil Norma Suely Souto Souza – EBMSP, Salvador- BA, Brasil Ricardo Luiz Lorenzi – Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Rita de Cássia Pereira Fernandes – UFBA – Salvador-BA, Brasil Roberto Verás de Oliveira - UFPB, João Pessoa-PB, Brasil Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela – USP, São Paulo-SP, Brasil Rogério Galvão da Silva –Fundacentro, São Paulo-SP, Brasil Rose Aylce Oliveira Leite – Museu Paraense Emílio Göeldi, Belém-PA, Brasil William Waissmann – Fiocruz, Rio de Janeiro- RJ, Brasil Conselho Editorial Ada Ávila Assunção – UFMG, Belo Horizonte-MG, Brasil Alain Garrigou – Université Bordeaux 1, Gradignan, França Angelo Soares – Université du Québec, Montreal, Canadá Carlos Minayo Gomez – Fiocruz, Rio de Janeiro-RJ, Brasil Francisco de Paula Antunes Lima – UFMG, Belo Horizonte-MG, Brasil Ildeberto Muniz de Almeida – Unesp, Botucatu-SP, Brasil Leny Sato – USP, São Paulo-SP, Brasil Mário César Ferreira – UnB, Brasília-DF, Brasil Raquel Maria Rigotto – UFC, Fortaleza-CE, Brasil Regina Heloisa M. de Oliveira Maciel – UECE/Unifor, Fortaleza-CE, Brasil Renato Rocha Lieber – Unesp, Guaratinguetá-SP, Brasil Selma Borghi Venco – Unicamp, Campinas-SP, Brasil Vilma Sousa Santana – UFBA, Salvador-BA, Brasil Victor Wünsch Filho – USP, São Paulo-SP, Brasil Cristina do Amaral Elena Riederer Karla Machado Vagner Souza Silva Revisão de textos, diagramação e arquivos eletrônicos Editora Cubo Produção editorial Glaucia Fernandes e Karina Penariol Sanches – Coordenação Gisele Almeida – Arte final Luiz Aparecido Mendonça – Impressão gráfica Distribuição Serviço de Documentação e Biblioteca da Fundacentro Suporte em informática Serviço de informática da Fundacentro Digitalização da coleção da RBSO Elisabeth Rossi Sítio RBSO Cristina do Amaral Indexação • • • • CAB Abstracts Directory of Open Access Journals – DOAJ Global Health International Occupational Safety and Health Information Centre / International Labor Organization – CIS/ILO • Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde – Lilacs • Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal – Redalyc • Red Panamericana de Información en Salud Ambiental / Biblioteca Virtual en Desarrollo Sostenible y Salud Ambiental – Repidisca/BVSDE • Scientific Electronic Library Online – SciELO • Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal – Latindex Copyright Os direitos autorais dos artigos publicados na Revista Brasileira de Saúde Ocupacional pertencem à Fundacentro e abrangem as publicações impressa, em formato eletrônico ou outra mídia. A reprodução total ou parcial dos artigos publicados é permitida mediante menção obrigatória da fonte e desde que não se destine a fins comerciais. Política Editorial A RBSO é o periódico científico da Fundacentro publicado desde 1973. Com frequência semestral, destina-se à difusão de artigos originais de pesquisas sobre Segurança e Saúde do Trabalhador (SST) cujo conteúdo venha a contribuir para o entendimento e a melhoria das condições de trabalho, para a prevenção de acidentes e doenças do trabalho e para subsidiar a discussão e a definição de políticas públicas relacionadas ao tema. A RBSO publica artigos originais inéditos de relevância científica no campo da SST. Com caráter multidisciplinar, a revista cobre os vários aspectos da SST nos diversos setores econômicos do mundo do trabalho, formal e informal: relação saúde-trabalho; aspectos conceituais e análises de acidentes do trabalho; análise de riscos, gestão de riscos e sistemas de gestão em SST; epidemiologia, etiologia, nexo causal das doenças do trabalho; exposição a substâncias químicas e toxicologia; relação entre saúde dos trabalhadores e meio ambiente; educação e ensino em SST; comportamento no trabalho e suas dimensões fisiológicas, psicológicas e sociais; saúde mental e trabalho; problemas musculoesqueléticos, distúrbios do comportamento e suas associações aos aspectos organizacionais e à reestruturação produtiva; estudo das profissões e das práticas profissionais em SST; organização dos serviços de saúde e segurança no trabalho nas empresas e no sistema público; regulamentação, legislação, inspeção do trabalho; aspectos sociais, organizacionais e políticos da saúde e segurança no trabalho, entre outros. A revista visa, também, incrementar o debate técnico-científico entre pesquisadores, educadores, legisladores e profissionais do campo da SST. Nesse sentido, busca-se agregar conteúdos atuais e diversificados na composição de cada número publicado, trazendo também, sempre que oportuno, contribuições sistematizadas em temas específicos. O título abreviado da revista é Rev. bras. Saúde ocup. Informações sobre a revista, instruções aos autores e acesso eletrônico aos artigos em: www.fundacentro.gov.br/rbso • www.scielo.br/rbso Vol. 39 • n° 130 jul/dez 2014 Sumário Editorial 125 Estudos de prevalência na RBSO: Como separar o joio do trigo? Eduardo Algranti, José Marçal Jackson Filho Artigos 127 A (in)visibilidade do acidente de trabalho fatal entre as causas externas: estudo qualitativo Kamile Miranda Lacerda, Rita de Cássia Pereira Fernandes, Leticia Coelho da Costa Nobre, Paulo Gilvane Lopes Pena 136 O poder de agir dos Técnicos de Segurança do Trabalho: conflitos e limitações Karina Sami Yamamoto Inoue, Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela 150 Intensificação do trabalho e saúde do trabalhador: uma abordagem teórica José Augusto Pina, Eduardo Navarro Stotz 161 Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental: potencialidades e desafios da articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais Andrezza Graziella Veríssimo Pontes, Raquel Maria Rigotto 175 Acidentes perfurocortantes e medidas preventivas para hepatite B adotadas por profissionais de Enfermagem nos serviços de urgência e emergência de Teresina, Piauí Telma Maria Evangelista de Araújo, Nayra da Costa e Silva 184 Trabalhadoras de turno noturno: relações de gênero, produção de vulnerabilidades e promoção da saúde Juliana Figueiredo Arreal, Laura Cecilia López 198 Maquinistas ferroviários: trabalho em turnos e repercussões na saúde Fernanda Veruska Narciso, Cristiane Westin Teixeira, Luciana Oliveira e Silva, Renata Guedes Koyama, Adriana Neves da Silva Carvalho, Andrea Maculano Esteves, Sérgio Tufik, Marco Túlio de Mello 210 A violência psicológica no trabalho discutida a partir de vivências de adolescentes trabalhadores Samantha Lemos Turte-Cavadinha, Edu Turte-Cavadinha, Andréa Aparecida da Luz, Frida Marina Fischer 224 Prevalência de benefícios auxílio-doença entre trabalhadores da Construção no Brasil em 2009 Thiago Antônio de Mello, Anadergh Barbosa-Branco 239 Caracterização do nexo técnico epidemiológico pela perícia médica previdenciária nos benefícios auxílio-doença João Silvestre da Silva-Junior, Flávia Souza e Silva de Almeida, Márcio Prince Santiago, Luiz Carlos Morrone Vol. 39 • n° 130 jul/dez 2014 Contents Prevalence studies in RBSO: How to sift the wheat from the chaff? 125 Editorial 127 Articles Eduardo Algranti, José Marçal Jackson Filho The (in)visibility of the fatal work-related injury as an external cause of accidents: a qualitative study Kamile Miranda Lacerda, Rita de Cássia Pereira Fernandes, Leticia Coelho da Costa Nobre, Paulo Gilvane Lopes Pena Occupational safety and health technicians’ power of action: conflicts and limitations 136 Karina Sami Yamamoto Inoue, Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela Work intensification and workers’ health: a theoretical approach 150 José Augusto Pina, Eduardo Navarro Stotz Occupational Health and Environmental Health: potentials and challenges of the relationship between the university, the Brazilian Health System and social movements 161 Andrezza Graziella Veríssimo Pontes, Raquel Maria Rigotto Accidents with sharp instruments and hepatitis B among nursing staff of emergency units in Teresina, Piaui state, Brazil 175 Telma Maria Evangelista de Araújo, Nayra da Costa e Silva Night shift workers: gender relationships, production of vulnerabilities and health promotion 184 Juliana Figueiredo Arreal, Laura Cecilia López Train drivers: shiftwork and health impacts 198 Fernanda Veruska Narciso, Cristiane Westin Teixeira, Luciana Oliveira e Silva, Renata Guedes Koyama, Adriana Neves da Silva Carvalho, Andrea Maculano Esteves, Sérgio Tufik, Marco Túlio de Mello Workplace psychological violence discussed from teenage workers’ experiences 210 Samantha Lemos Turte-Cavadinha, Edu Turte-Cavadinha, Andréa Aparecida da Luz, Frida Marina Fischer Prevalence of sickness benefits among construction workers in Brazil in 2009 224 Thiago Antônio de Mello, Anadergh Barbosa-Branco Characterization of the technical epidemiological nexus in social security sickness benefits by medical experts João Silvestre da Silva-Junior, Flávia Souza e Silva de Almeida, Márcio Prince Santiago, Luiz Carlos Morrone 239 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional ISSN: 0303-7657 (versão impressa) http://dx.doi.org/10.1590/0303-7657ED0113014 Editorial Estudos de prevalência na RBSO: Como separar o joio do trigo? Prevalence studies in RBSO: How to sift the wheat from the chaff? Eduardo Algranti 1* José Marçal Jackson Filho * 2 Fundacentro, Coordenação de Saúde no Trabalho, Serviço de Medicina. São Paulo, SP, Brasil. 1 2 Fundacentro, Centro Estadual do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. * Editores científicos da RBSO No período de janeiro/2009 a dezembro/2013 a RBSO recebeu 775 submissões. Dentre as modalidades de submissão3, 708 (91%) foram submetidas como Artigo. Calculando-se o interstício de um ano entre a submissão e a publicação, no período de 2010 a 2014 foram publicados 121 manuscritos, sendo 73 (60%) nessa modalidade. Aproximadamente 10-11% das submissões na modalidade Artigo chegam à publicação como tal. Os motivos que levam à não aceitação de artigos originais no processo de revisão, seja na triagem inicial, seja na revisão por pares, são múltiplos. Este editorial aborda especificamente a submissão de artigos quantitativos derivados de estudos retrospectivos ou da aplicação de questionários estruturados ou semiestruturados que relatam prevalências pontuais de um agravo “A” ocorrendo em um grupo exposto “X”. Normalmente, o agravo “A” é uma doença conhecida (ou sinais e sintomas compatíveis), variando o grupo exposto. Exemplos de agravos: LER/DORT, acidentes com materiais perfurocortantes, avaliação de qualidade de vida, avaliação de transtornos mentais comuns. Deixando claro que os estudos de prevalência de agravos relacionados ao trabalho em grupos distintos de expostos são de utilidade e acrescentam algum grau de novidade, temos de ponderar o que o texto nos oferece. Um número importante de submissões na RBSO derivam de monografias, dissertações e teses. A pressão para o cumprimento dos prazos de finalização de cursos em programas de Especialização, Mestrado e Doutorado exerce um efeito por vezes maléfico na qualidade da produção científica acadêmica. No nosso entender isso afeta, predominantemente, o aluno de Mestrado que, como regra, está iniciando sua formação científica. Em dois anos ele é instado a cumprir créditos, estudar, propor uma projeto, submetê-lo, caso necessário, a uma Comissão de Ética em Pesquisa, realizar as coletas das informações, analisá-las, redigir o texto, qualificar-se, apresentar o trabalho e publicar. Como consequência, a opção (inteligente) do binômio orientador/ mestrando, visando à conclusão do curso em tempo hábil, utiliza-se de métodos e instrumentos de pesquisa facilmente disponíveis e que não impliquem em grandes aborrecimentos de análise, escrita e apresentação. Com frequência a opção é a escolha de um método que empregue um instrumento validado que mensura um agravo “A”, aplicável a um determinado grupo exposto “X”, gerando dados de prevalência. O aluno cumpre a exigência do rito. As publicações submetidas a periódicos derivadas desses trabalhos normalmente 3 RBSO - Instruções aos autores. Disponível em: <http://www.scielo.br/revistas/rbso/pinstruc. htm>. Acesso em: 22 dez. 2014. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 125-126, 2014 125 são bem estruturadas mas, por vezes, pouco acrescentam ao conhecimento, por estarem desvinculadas de originalidade, análise criteriosa e aplicabilidade. Outra situação frequente em estudos de prevalência derivados de dissertações e teses é o “fracionamento” de uma determinada pesquisa, gerando mais de um manuscrito para publicação (STAHEL; MOORE, 2014). Como exemplo, citamos artigos submetidos apresentando de forma isolada prevalências pontuais, sem a inclusão de análises estatísticas multicausais existentes no trabalho original que gerou a submissão, tornando limitado o interesse para a publicação do manuscrito. A RBSO vem adotando na análise de manuscritos com metodologia quantitativa, sejam estudos de prevalência ou outros, o encaminhamento para um parecer bioestatístico, realizado em paralelo à triagem da editoria científica, antes do processo da revisão por pares. Esse procedimento tem sido valioso no fluxo da triagem inicial no que concerne à análise da metodologia empregada. Já se demonstrou que a utilização de revisão bioestatística tem um efeito significativo na melhora da qualidade das publicações biomédicas (COBO et al., 2007; VAN NOORDEN, 2014). No caso da metodologia bioestatística ser correta e os resultados adequadamente apresentados, a editoria científica deve, a seguir, responder a alguns questionamentos: Qual é a contribuição efetiva do estudo para o entendimento do agravo? O estudo resultou em achados que despertam um alerta? Os resultados do estudo levaram a uma ação prática? Na ausência de conteúdos que respondam a essas questões e na ausência de originalidade, a RBSO tem optado por sugerir aos autores a reapresentação dos dados de prevalência como Comunicação Breve ou Relato de Experiência. Referências COBO et al. Statistical reviewers improve reporting in biomedical articles: A randomized trial. PLoS ONE, v. 2, n. 3, e332, mar. 2007. Disponível em: <http://www.plosone.org/ article/info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal. pone.0000332>. Acesso em: 30 dez. 2014. http:// dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0000332 STAHEL, P. F.; MOORE, E. E. Peer review for biomedical publications: We can improve the system. BMC Medicine, v. 12, n. 179, p. 2-4, 2014. Disponível em: <http://www.biomedcentral. 126 com/1741-7015/12/179>. Acesso em: 30 dez. 2014. http://dx.doi.org/10.1186/s12916-014-0179-1 VAN NOORDEN, R. Science joins push to screen statistics in papers: New policy follows efforts by other journals to bolster standards of data analysis. Nature News, 3 July 2014. Disponível em: <http://www.nature.com/news/science-joinspush-to-screen-statistics-in-papers-1.15509>. Acesso em: 30 dez. 2014. http://dx.doi.org/10.1038/ nature.2014.15509 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 125-126, 2014 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional ISSN: 0303-7657 (versão impressa) http://dx.doi.org/10.1590/0303-7657000068112 Kamile Miranda Lacerda 1 Rita de Cássia Pereira Fernandes 1 Artigo A (in)visibilidade do acidente de trabalho fatal entre as causas externas: estudo qualitativo Leticia Coelho da Costa Nobre 2 Paulo Gilvane Lopes Pena 1 Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação Saúde, Ambiente e Trabalho. Salvador, BA, Brasil. 1 Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, Diretoria de Vigilância e Atenção à Saúde do Trabalhador. Salvador, BA, Brasil. 2 Contato: Kamile Miranda Lacerda E-mail: [email protected] Trabalho desenvolvido a partir da dissertação de mestrado de Kamile Miranda Lacerda intitulada Acidente de trabalho, precarização e desproteção social: elementos para uma discussão sobre morte e trabalho, defendida em 2012 no Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho da Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia. O presente estudo recebeu financiamento parcial para a sua realização na etapa de coleta dos dados, com recursos do Convênio do Ministério da Saúde (Fundo Nacional de Saúde)/Fundacentro (Centro Regional da Bahia), Portaria nº. 0158/2004, e da Fundacentro (Programa de Melhoria da Qualidade das Estatísticas de Acidentes e Doenças do Trabalho). Os autores declaram que não há conflitos de interesses e que o trabalho não foi apresentado em reunião científica. Recebido: 14/09/2012 Revisado: 17/05/2014 Aprovado: 20/06/2014 The (in)visibility of the fatal work-related injury as an external cause of accidents: a qualitative study Resumo Objetivo: descrever o trabalho das vítimas dos acidentes fatais e as circunstâncias desses óbitos relacionados com o trabalho ocorridos em 2004, em Salvador, Bahia. Métodos: coleta de dados realizada através de questões semiabertas obtidas em entrevista domiciliar com os familiares das vítimas, por meio da autópsia verbal (AV). A análise de conteúdo foi empregada na análise das narrativas. A reconstituição dos 91 acidentes de trabalho (AT) é apresentada em duas seções temáticas: a caracterização do trabalho do acidentado e a circunstância da morte. Resultados: evidenciou-se a presença marcante do trabalho precário mesmo entre aqueles com vínculo formal, mas essas condições são especialmente flagrantes entre aqueles não regulamentados. A extensão da jornada de trabalho não decorreu de livre escolha, mas de estratégia para auferir a renda mínima necessária. O espaço da rua emergiu como local de AT típico não apenas de AT de trajeto. A morte no trânsito e sua relação com o trabalho, fenômeno ainda pouco explorado, foi evidenciada, além da identificação de homicídio como circunstância de morte decorrente do trabalho precário. Conclusões: a prevenção da morte e da violência no trabalho requer uma ação integrada das políticas setoriais. A autópsia verbal mostrou-se técnica promissora na produção de informações sobre as causas dos AT, podendo contribuir para a superação da subnotificação. Palavras-chave: acidentes de trabalho; causas externas; trabalho precário; saúde do trabalhador; autópsia verbal. Abstract Objective: to describe the fatal accident victims’ work and the circumstances of work-related deaths in Salvador, Bahia state, Brazil, in 2004. Methods: data collection by means of semi-open questionnaires applied to the victims’ families in household interviews, through verbal autopsy (VA). Content analysis was applied to the narratives. The reconstruction of the 91 work accidents (WA) is presented in two thematic sections: the victims’ work and their death circumstances. Results: the strong presence of precarious working conditions, even among those in formal jobs, was evident, but it was especially obvious among non-registered workers. In order to earn the necessary minimum income, they worked longer hours. The streets emerged as a typical WA spot, in contrast to being classified as a commuting accident. Traffic deaths and its relation to work, a phenomenon that has not been sufficiently studied, are evidenced along with murder as circumstances of death caused by precarious working conditions. Conclusions: preventing death and violence at the workplace demands integrated actions. Verbal autopsy has proved to be a promising technique to produce information on the WA causes, and it can help decrease underreporting. Keywords: work-related accidents; external causes; precarious employment; workers’ health; verbal autopsy. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 127-135, 2014 127 Introdução das situações adversas de trabalho responsáveis pela sua ocorrência. O Acidente de Trabalho (AT) representa um grave problema de saúde pública (RUIZ; BARBOZA; SOLER, 2004) e esse fato vem se transformando e ganhando maior complexidade no cenário contemporâneo, no qual incidem condições precárias de trabalho, informalidade e trabalho no espaço da rua. Além disso, a complexa interação entre o trabalho e o fenômeno da violência torna-se relevante e tudo isso pode resultar em um panorama de exposição ocupacional com nova configuração (GOMEZ, 2005). Considerando as novas características do trabalho e a subnotificação do AT, o objetivo deste ensaio é descrever o trabalho das vítimas dos acidentes fatais e as circunstâncias desses óbitos relacionados com o trabalho ocorridos em 2004, em Salvador, Bahia. Lourenço (2009, p. 202) registra que “[...] o Brasil ainda é um recordista mundial de acidentes de trabalho, com três mortes a cada duas horas e três acidentes não fatais a cada um minuto”. Estatísticas mais recentes da Previdência Social contabilizam que, em 2012, foram consolidados os dados de 724.169 acidentes de trabalho no Brasil, sendo 2.731 casos com óbito (BRASIL, 2012). Para Nobre (2007, p. 22), o AT é um “fenômeno socialmente determinado, previsível e prevenível”. A legislação previdenciária classifica os AT em: “acidente típico – aquele que ocorre a serviço da empresa” e “[...] acidente de trajeto – aquele que ocorre no momento em que o trabalhador desloca-se para ou do local de trabalho e nos horários das refeições”. Ainda, para fins de concessão dos benefícios acidentários, equipara-se ao AT a “doença do trabalho” (BRASIL, 2009). Apesar do enquadramento legal e conceitual do AT, sua subnotificação constitui um grande problema no país. Cordeiro et al. (2005, p. 255) chegam a estimar que “[...] para cada dez acidentes de trabalho ocorridos, apenas um é notificado no Brasil”. Essa subnotificação acontece mesmo quando se trata do AT que leva à morte do trabalhador, uma vez que muitos óbitos não têm sua relação com o trabalho estabelecida e/ou registrada nos sistemas de informação (WALDVOGEL, 2003; MINAYO-GOMEZ; MACHADO; PENA, 2011). Nesse contexto, Hennington, Cordeiro e Moreira Filho (2004, p. 610) lembram que “não existe um sistema único que centralize as informações sobre o AT no país”, fato que prejudica a quantificação dos acidentes relacionados ao trabalho. Nos casos fatais, conta-se com o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde para o total dos acidentes e os registros das Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT) utilizados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) da Previdência Social, restrito à população trabalhadora coberta pelo seguro acidentário (GOMEZ, 2005). Frequentemente, esses acidentes fatais aparecem nas estatísticas oficiais somente como homicídios, mortes no trânsito ou como acidentes em geral, contribuindo para a invisibilidade 128 Métodos Neste estudo qualitativo foi utilizada como técnica para análise dos dados a análise de conteúdo, visando reconstituir as circunstâncias das mortes e sua relação com o trabalho através das narrativas de familiares, obtidas durante o inquérito domiciliar por meio da autópsia verbal (AV), em coleta realizada em 2004, em Salvador. No estudo quantitativo que descreve os 91 acidentes de trabalho identificados, abordam-se detalhadamente os aspectos metodológicos e diferentes etapas seguidas pelos autores para sua realização (LACERDA; FERNANDES; NOBRE, 2014). Embora a maior parte do questionário utilizado no estudo de base (NOBRE, 2007) fosse composto por perguntas fechadas com múltipla escolha, foram incluídas perguntas semiabertas para obterem-se informações mais completas sobre os óbitos e, assim, auxiliar na reconstituição e reclassificação da causa básica do óbito. Essa técnica, mais conhecida como autópsia verbal (AV), tem sido utilizada em áreas com elevada subnotificação de óbitos, visando esclarecimento de óbitos de causa mal definida (BRASIL, 2008). Com isso foi possível reconstituir as circunstâncias das mortes e sua relação com o trabalho, através das narrativas de familiares obtidas com as seguintes questões semiabertas: “Você poderia me contar o que aconteceu com o Sr./Sra. ... que o levou à morte?”; “O que ele estava fazendo?”; “Se você pudesse dizer ou fazer alguma coisa para evitar novas mortes como essa, o que sugeriria? O que você acha que poderia ser feito para evitar outros casos como esse?”; “Vocês procuraram algum outro órgão público? Se sim, qual, para resolver o que e como foram atendidos?” O conteúdo das respostas às questões citadas acima foi “tratado em profundidade” (MACHADO, 1991, p. 54), utilizando-se a análise de conteúdo como abordagem qualitativa e técnica de investigação. Essa técnica, através de uma descrição do conteúdo, tem por finalidade a interpretação da mensagem manifesta nos materiais escritos (BARDIN, 2009). Os discursos dos familiares, majoritariamente companheiras e cônjuges dos trabalhadores, como “meio de expressão do sujeito” (CAREGNATO; MUTTI, Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 127-135, 2014 2006, p. 682), foram analisados buscando-se descrever e interpretar os eventos acidentários nos quais os conteúdos similares foram agrupados em duas seções temáticas: a primeira trata do trabalho desenvolvido pelo acidentado durante sua vida laboral e a segunda, das circunstâncias da morte, no trânsito, por homicídio e por óbito no ambiente de empresa ou afim. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia – UFBA (registro CEP: 033-04). Resultados e discussão Entre os 91 óbitos, o maior envolvimento foi de homens casados, com idade média de 38 anos e baixa escolaridade (1º grau/grau fundamental), que morreram no exercício do trabalho ou no seu trajeto, em sua maior parte no “espaço da rua”. A descrição mais detalhada dessas características é objeto de outro artigo, de natureza quantitativa (LACERDA; FERNANDES; NOBRE, 2014). A caracterização do trabalho desenvolvido pelo acidentado Revelou-se que o vínculo empregatício com carteira de trabalho assinada não foi a experiência mais comum entre as vítimas, no entanto, embora o trabalho regulamentado fosse condição de uma pequena parte dos trabalhadores, as condições para o seu exercício são evidenciadas na fala de uma familiar: [...] meu irmão foi motoboy entregador de jornais por nove anos, com carteira de trabalho assinada [...]. A cada dia que passava, as condições de trabalho pioravam, além do acúmulo de folgas que ele não conseguia tirar por não haver pessoas para substituir ele [...]. O acidente ocorreu às 4:30 h da manhã, quando ele estava treinando uma pessoa que iria tirar a sua folga, tentou desviar do caminhão parado e colidiu com outra moto. (Caso 67) A despeito do aumento do emprego formal, como ocorreu em 2000, conforme ressalta Alves (2002, p. 82), “evidenciou-se a precarização do salariato no Brasil” no mesmo período. Para o autor, “[...] embora tenha ocorrido o crescimento do emprego formal, a tendência de precarização da estrutura ocupacional manteve-se em muitos aspectos”. E a informalidade emerge de forma relevante nas narrativas: Ele estava trabalhando na “feira do rolo”, era vendedor ambulante desde os oito anos, iniciou vendendo amendoim no “Comércio”, nunca trabalhou com carteira de trabalho [...] (Caso 91) O trabalho na informalidade se refere a diferentes atividades não regulamentadas pelo Estado (KALLEBERG, Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 127-135, 2014 2009). O trabalho informal é entendido por Nobre (2007, p. 56) como aquele no qual há “[...] ausência de relações formais de emprego, que resultam em maior vulnerabilidade dos trabalhadores inseridos em trabalhos instáveis e desprotegidos, sem segurança social e incapazes de suprir as necessidades básicas da família”. O trabalho precário e a insegurança das relações de trabalho podem ser observados na fala do familiar: [...] Meu marido era pintor de automóveis, realizava serviços de chaparia e pintura de autos. Reclamava do atraso no pagamento dos serviços prestados e por isso pensava em trabalhar por conta própria. [...] O patrão somente assinou a carteira de trabalho após o óbito, registrado como novo funcionário. O patrão não recolhia o que descontava do salário dele e só tentou regularizar a situação após o seu falecimento. (Caso 25) Essas atividades não regulamentadas incluem também sujeitos denominados trabalhadores por conta própria, em sua maior parte sem estabilidade trabalhista e/ou segurança previdenciária, tais como vendedores ambulantes, pequenos varejistas ou artesãos, taxistas, barbeiros, cabeleireiros, donos de pequenos estabelecimentos, os quais oferecem vários tipos de serviço pessoal (KALLEBERG, 2009). A fala de um familiar evidencia esse tipo de inserção: [...] minha mãe trabalhava num bar de sua propriedade, por conta própria [...], o imóvel era alugado, servia refeições e bebidas [...], ela reclamava do desgaste, pois o trabalho era bastante cansativo no bar [...], nunca trabalhou com carteira assinada. (Caso 53) Entre as vítimas houve diferentes tipos de inserção de trabalhadores, com vínculo formal ou informal de trabalho, trabalhadores por conta própria ou autônomos, servidores públicos estatutários e/ou militares, no entanto o que se evidenciou foi a marcante presença do trabalho precário, aquele realizado em condições nas quais a morte representou evento previsível. O depoimento da esposa de um trabalhador evidencia a intensificação (da exploração) e a insegurança no trabalho e os impactos desse trabalho na saúde: Estava há três dias trabalhando, cerca de 55 horas, como armador e supervisor de armação no Porto de Salvador [...]. Não tinha horas fixas, só tinha hora para sair de casa. Dependia do navio [...], ele reclamava, pois não tinha tempo para ninguém; não participava de eventos familiares [...], gostava do que fazia, mas achava estressante, tinha muita assadura, afta, não tinha horário para dormir, comer [...], a empresa é culpada [...], não respeita os limites de cada trabalhador. Ele foi esmagado por um contêiner. (Caso 65) Nesse caso acima, as condições de trabalho precárias são vistas no cotidiano do trabalho regulamentado com carteira assinada. Mas essas condições são especialmente flagrantes entre aqueles trabalhadores não regulamentados, os trabalhadores informais que, 129 segundo Ludermir (2005, p. 199), formam um grupo de trabalhadores por conta própria, sem carteira assinada, “uma categoria desprivilegiada, sem qualquer proteção da legislação trabalhista” e sem direito aos benefícios sociais e previdenciários. Evidenciou-se a presença de extensas jornadas de trabalho, adotadas no sentido de complementar os baixos salários ou melhorar a renda. Sobre esse fato, a esposa de um trabalhador afirma: Ele era motorista de táxi, autônomo, dirigia táxi de terceiro [...], pagava diária [...], trabalhava à noite, todas as noites, das 19 h às 6 h da manhã seguinte [...]. Queria voltar a ser segurança, mas não tinha curso técnico [...]. Considerava muito desgastante dirigir a noite toda. (Caso 26) Apesar de classificado como trabalhador autônomo, a extensão da jornada não era apenas uma entre muitas escolhas. Estender a jornada era a estratégia possível para auferir uma renda mínima necessária, pois embora autônomo, o trabalhador, taxista, utilizava automóvel de terceiro, a cujo proprietário ele pagava uma parte do que recebia, como “diária”. Sobre o espaço da rua como local de ocorrência dos AT, chama atenção que esse não mais se constitui apenas como principal local dos AT de trajeto, mas emerge fortemente como local de ocorrência do AT típico, o que pode configurar um fato novo no estudo dos AT. Cerqueira (2000, p. 57-58) caracteriza a rua “[...] como espaço que absorve os trabalhadores excedentes da reestruturação produtiva e reproduz a exclusão com suas teias laborais e relações de poder e legalidade”. Ilustrando essa situação, o irmão de um trabalhador descreve: Ele era segurança de rua à noite na “Sussuarana” [bairro], trabalhava como biscate; os moradores de uma rua pagavam diretamente a ele uma taxa, o vínculo era por conta própria, autônomo [...]. Ele reclamava do trabalho que era muito perigoso! [...] Saiu nota no jornal – Segurança clandestino assassinado com 12 facadas. (Caso 48) Os novos modos de trabalhar e de viver implicam a necessidade de dirigir um olhar mais atento para esses trabalhadores que ocupam as ruas como novo espaço de trabalho. Carneiro (2000) contribui com a discussão quando afirma que os trabalhadores no exercício de suas atividades no ambiente da rua sofrem mais violência no trabalho do que aqueles em ambiente de empresas. Como relata a tia de uma trabalhadora: Ela era vendedora ambulante de queijo coalho em praias de Salvador e Camaçari e fazia biscates como ajudante de cozinha em barracas de praia [...]. Nunca trabalhou com carteira assinada. Ela queria apenas um trabalho fixo [...]. Foi atropelada indo para o trabalho. (Caso 66) 130 As características ocupacionais revelam o quanto os trabalhadores são afetados pela precariedade tanto na inserção no mundo do trabalho quanto no curso do trabalho desenvolvido. A ocupação mais frequente das vítimas foi a de pedreiro, seguida da de comerciante, vigilante, motoboy, motorista e outras ocupações, incluindo vínculos informais e formais, e trabalhadores por conta própria ou autônomos (LACERDA; FERNANDES; NOBRE, 2014). Segue o relato de um familiar acerca da inserção precoce e precária no mercado de trabalho: Começou a trabalhar aos sete anos, vendia picolé no trem, era ambulante [...]. Foi encontrado na maré, onde catava siri, afogado. (Caso 1) De acordo com Alberto (2002), o trabalho precoce está relacionado a diversos fatores, sociais, políticos e econômicos, e sua origem, possivelmente relacionada à pobreza familiar. A inserção precoce do trabalhador no mercado informal ou no trabalho por conta própria surge como meio de auxiliar a sobrevivência do núcleo familiar. Uma das implicações nesse cotidiano repleto de adversidades é a invisibilidade do sujeito enquanto trabalhador. A oportunidade do trabalho precário, incerto, acaba sendo aceita sob quaisquer circunstâncias pelo trabalhador, já que essa oportunidade de trabalho, o “biscate”, pode representar a única condição para assegurar a sua sobrevivência e da sua família. Evidenciou-se nas narrativas a situação de trabalhador formal que, além desse vínculo, ocupava-se, no tempo que seria livre, com um trabalho para ajudar membro da família ou com outro vínculo informal. Nesse trabalho precário, o que se viu não foi o fenômeno contemporâneo de invasão do tempo livre pelo empregador, com o serviço em domicílio ou o serviço que não respeita a jornada de trabalho regular. O que se evidenciou para boa parte dos trabalhadores foi a ocupação de todo o tempo da vida com os trabalhos ou “biscates” que são assumidos para assegurar a sobrevivência. Não se pode falar aqui de livre escolha; o que se viu foi uma situação de vida que impõe a aceitação de qualquer oferta de trabalho, a qualquer tempo e hora, para assegurar a sobrevivência imediata. Como relata a mãe de um trabalhador: Meu filho era pedreiro [...], fazia construção de casas com pouca frequência, mas quando trabalhava era durante todo o dia [...] e fazia também biscates como carregador de mudança, por conta própria. Ele ganhava uns trocados ajudando conhecidos e no dia do acidente ele estava fazendo um desses trabalhos. Dizia que não pagavam o equivalente ao serviço dele [...]. Estava fazendo uma mudança quando atravessou a rua carregando um vidro e foi atropelado por um ônibus. (Caso 2) Nesse sentido, elimina-se a fronteira entre tempo livre e tempo ocupado. Segundo afirmam Alves Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 127-135, 2014 e Tavares (2006, p. 430), a propósito dessa força de trabalho informal, pauperizada nos períodos de acúmulo de atividades laborais como “força de trabalho eventual” e “não paga”, o tempo despendido para garantir a sobrevivência e reprodução da força de trabalho familiar nem é entendido como “[...] um tempo racional de trabalho, apesar de absorver dias úteis, fins de semana, noites e feriados”. Tal realidade pode ser observada na fala do familiar: Ele trabalhava como operador de estação de tratamento de efluentes de uma empresa terceirizada e cuidava da manutenção do tanque do aeroporto para não poluir o rio; era empregado com carteira assinada [...]. Tinha outra ocupação como servente de pedreiro [...]. Ele vinha da casa do pai, onde estava ajudando na construção de uma casa, quando foi atropelado. (Caso 20) Diante do medo confessado, do sofrimento pela perda, da exclusão social atrelada à desinformação sobre a existência de direitos previdenciários (pensão por morte), trabalhistas (direito de segurança no trabalho, seguro acidente de trabalho) e assistenciais (seguro DPVAT – seguro obrigatório de acidentes da seguradora do veículo, auxílio funeral), as famílias expressam a impotência frente ao comportamento omisso das empresas, à impunidade dos agressores, à insegurança e/ou à inoperância das instituições públicas. Tal fato pode ser constatado no depoimento da mãe de um trabalhador, destacando a informalidade e privação das leis trabalhistas e previdenciárias: Ele tinha 24 anos e trabalhava como cobrador de Topic no transporte de passageiros e também como ajudante de pedreiro; nunca trabalhou com carteira assinada; fazia biscates; não era fixo [...], reclamava do salário que era pouco [...]. Não procurei o INSS, pois ele não contribuia, não recebemos pensão [...]. Fiquei com medo de procurar a polícia, pois tenho outros filhos [...]. Ele reclamou com um rapaz que desceu de outra Topic e urinou na frente de duas moças e começou a brigar [...]. A polícia chegou, correu atrás e deu tiros [...]. Ele correu [...]. É uma dor perder um filho e ainda mais com essa perversidade [cortaram os pulsos, arrancaram unha, quebraram os dentes e deram tiro no ouvido] que foi feita. (Caso 19) A garantia social do benefício, mesmo para “aqueles que acreditavam estar protegidos” (MENDES; WÜNSCH, 2009, p. 246) são constantemente ameaçados. Ilustrando essa situação, um entrevistado afirma: Ela trabalhava há seis anos e sete meses como técnica em EEG, em consultório médico, com carteira assinada [...] e foi atropelada por um ônibus no caminho do trabalho. Ela queria conseguir alguma coisa melhor na área de saúde [...]. Não recebo pensão por morte. Alegaram que ela não estava no percurso do trabalho; os peritos não colocaram no laudo que foi acidente de trabalho e sim um atropelamento. Muita burocracia, falta de informação e de organização [...] (Caso 4) Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 127-135, 2014 Compreender a dinâmica social dos acidentes relacionados ao trabalho significa desvelar a “[...] história de vida e de morte no trabalho, de pessoas pertencentes a parcelas da sociedade que ficaram à margem das informações oficiais” (MENDES, 2003, p. 18). Circunstâncias da morte Nesta seção, as circunstâncias da morte mais frequentes são apresentadas baseando-se na sua ocorrência: acidentes de trânsito, homicídios e acidentes no ambiente de empresa ou afim. A morte no trânsito Os acidentes de trânsito são eventos de grande magnitude, tanto do ponto de vista sanitário como do ponto de vista social e econômico (BRASIL, 2005). As formas de tornar invisíveis as mortes relacionadas ao trabalho dentre as causas externas são diversificadas e a interface do acidente de trânsito com o trabalho não é simples, o que acentua a subnotificação desses eventos como AT. O local de realização do trabalho para muitos dos casos estudados foi a via pública, ou o “espaço da rua”, que não constituiu apenas a via de percurso de casa para o trabalho. Evidenciou-se a necessidade de descrever as circunstâncias dessa exposição do trabalhador nesse ambiente externo de trabalho, muitas vezes em condições precárias. A morte do trabalhador no trânsito não expressa apenas a importante questão geral de saúde pública vinculada à morte no trânsito mas revela, além disso, as condições nas quais está ocupada uma grande parte de trabalhadores e, portanto, exposta e mais vulnerável no seu cotidiano laboral, pela precariedade dos meios de deslocamento para o trabalho ou pela ausência da segurança no exercício do trabalho no “espaço da rua”. Essa abordagem do caráter ocupacional das mortes no trânsito vai ao encontro da reflexão proposta por Mendes (2003, p. 70), ao afirmar que estudar o trabalho e suas consequências “[...] implica no exame não somente de questões diretamente vinculadas a ele, mas da sua articulação com outras lógicas sociais”. Além disso, como uma nova característica do mundo do trabalho, conforme já referido, vê-se a retirada do trabalhador do espaço das fábricas e sua exposição em áreas urbanas compartilhadas com toda a sociedade (OLIVEIRA; NUNES, 2008). Em relação às vítimas e aos veículos envolvidos nos acidentes, o atropelamento do pedestre emerge em narrativas de familiares, como a que se segue, em que a mãe de um trabalhador relata sua dor: 131 Culpa do motorista, que estava dopado. O rapaz tinha 17 anos. Gostaria de ter uma arma para matar o rapaz que atropelou o meu filho e a tia dele, que comprou o carro envolvido no atropelamento. (Caso 8) Para Faria e Braga (1999), as ações voltadas para a redução de acidentes têm privilegiado o trânsito dos veículos motorizados, o que deixa os pedestres em desvantagem em relação aos programas desenvolvidos para os motoristas. De um modo geral, os familiares entrevistados afirmaram, ao serem inquiridos sobre a causa principal e responsabilidade do acidente, que o problema não é o veículo em si ou as condições da via pública, mas a imprudência e irresponsabilidade do condutor do veículo. Não se pode omitir, no entanto, que o AT no trânsito pode também resultar do estresse e fadiga física experimentados pelo motorista profissional, submetido a extensas jornadas de trabalho e relações de trabalho inadequadas. Evidenciou-se o motoboy entre as vítimas de AT, podendo representar uma ocupação no mundo do trabalho que tem se ampliado a cada dia. Os motoboys representam uma população com grande risco de envolvimento em acidentes de trânsito devido às constantes exigências do seu trabalho (SILVA et al., 2008). Daí se originam diversas insatisfações com a profissão, marcada pelos riscos, desgaste no trânsito e péssimas condições de trabalho: Queria mudar de trabalho! Reclamava dos riscos e do pouco faturamento como motoboy, ele estava desempregado há três meses, entregava refeições que a mãe fazia para vender, com motocicleta [...]. No dia do acidente, ele saiu para entregar as refeições [...] (Caso 33) O trabalhador como vítima de homicídio Refletir sobre a intensificação da violência, com destaque para os homicídios, é um exercício necessário na sociedade brasileira. Os efeitos desse fenômeno têm repercutido na Saúde do Trabalhador (MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1999). A filha de um trabalhador, agente de saúde, relata a sua experiência a respeito: “Meu pai estava dentro do ônibus, indo para o trabalho, foi vítima de bala perdida de um assalto” (Caso 5). Ele trabalhava como motorista de táxi [...], autônomo, pagava diárias em carros de terceiros. Queria ser motorista de ônibus. Reclamava da carga horária [muito acima do permitido], insegurança e brigas com colegas de trabalho na disputa de pontos [...]. Foi assassinado a tiros, vítima de assalto. (Caso 85) O risco de assalto expõe, particularmente, o agente de segurança e, concordando com Silveira et al. (2005), expõe também o motorista. Essa população de trabalhadores não possui uma proteção adequada e a relação existente entre o óbito e o trabalho que é realizado no “espaço da rua” é muitas vezes pouco clara, dificultando desvendar as reais circunstâncias do óbito do trabalhador e facilitando sua subnotificação como AT. No caso dos homicídios, constitui uma legítima demanda social o esforço para conhecimento das reais circunstâncias da morte, tendo em vista que as vítimas muitas vezes são trabalhadores inseridos no mercado informal, em atividades laborais não reconhecidas socialmente (MINAYO GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1999). Investigar essas mortes na sua relação com o trabalho evidencia, muitas vezes, a gravidade da exclusão do direito ao trabalho decente. O acidente no ambiente de empresa ou afim O estabelecimento ou ambiente específico de trabalho pode não ter sido uma empresa, mas uma obra de construção civil de um familiar, por exemplo. É possível relacionar as situações de insegurança e risco ocupacional nos espaços de trabalho no relato de um familiar: Meu marido trabalhava como operador de utilidade em uma indústria química [...], ele falava muito dos problemas com a caldeira. Falava muito da gestão da empresa. Fora que estava afetando a saúde dele; já estava prejudicada [...]. Os outros funcionários devem estar passando ou sofrendo as mesmas pressões. Nem fechar a empresa para buscar solucionar o problema que levou ao acidente... Isso serviria para eles sentirem no bolso... mas logo substituiu a caldeira e nada parou [...]. A empresa só fez a parte dela. Matou ele e enterrou. (Caso 16) O homicídio ocorrido em tentativas de assalto ou roubo evidencia-se nos dizeres de familiares, que fazem referência à situação: Nobre (2007, p. 23) alerta que embora todo AT seja uma forma de violência, essa se apresenta de duas diferentes formas na determinação daquele: o AT pode ser consequência da “violência (estrutural) explícita, urbana, expressão das desigualdades sociais, da miséria, da discriminação, do racismo e da pobreza”, ou o AT pode ser: Ele era vigilante da rua, pago pelos moradores, estava voltando do trabalho, como segurança, na madrugada [...]. Quando estava chegando em casa, mataram-no a tiros [...]. Consideramos que foi assalto. (Caso 22) [...] resultante das relações de poder desigual entre empregadores e trabalhadores; quando os primeiros, ao manter condições precárias e inseguras de trabalho e relações de trabalho autoritárias, ao privilegiar demandas econômicas, de produtividade e 132 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 127-135, 2014 lucratividade, colocam a vida dos trabalhadores em segundo plano, resultando em acidentes de trabalho no exercício de suas atividades e funções específicas. (NOBRE, 2007, p. 23) A fala do familiar ilustra a violência exercida pela manutenção de condições sabidamente adversas de trabalho. No caso, havia uma caldeira em condições irregulares de funcionamento, com grande probabilidade de causar acidente, mas a situação foi mantida sem solução pela gestão da empresa. Isso resultou na morte do trabalhador. Em relação à ocupação exercida no dia do acidente, chama atenção a inserção precária de pedreiros, ajudantes e serventes da construção civil, sem carteira assinada, o que se revela no depoimento do familiar: Estava na Travessa 11 de Janeiro, bairro do Tancredo Neves. Ele estava trabalhando, colocando longarina (liga de ferro com concreto), para armar a laje de uma casa de primeiro andar. Era o primeiro dia de serviço. Iniciou às 8 horas e por volta das 9 horas ocorreu o fato. Ele colocou a longarina molhada e a força do fio de alta tensão da rua, com 11 mil volts, puxou ele, levando-o à morte. Foi fatal! (Caso 50) Os acidentes identificados permitem reafirmar que os riscos não são inerentes ao trabalho, na verdade estão relacionados com a organização do trabalho e/ou decorrem de uma cultura que minimiza os aspectos de segurança e de preservação da vida humana. Considerações finais As circunstâncias das mortes de trabalhadores jovens, em idade produtiva, responsáveis pelo sustento da família, revelam as condições de trabalho precário. A isso se alia a relevância da violência social e sua relação com o AT. O mundo do trabalho determina novas modalidades de exposição ocupacional do trabalhador ao AT, agora não mais vinculado apenas às características dos espaços internos de trabalho e aos riscos tradicionalmente elencados, decorrentes de instalações, ferramentas, equipamentos e maquinários no mundo industrial ou no setor de serviços. O espaço da rua traz, por exemplo, a exposição à violência urbana, ao acidente de trânsito como riscos potenciais de acidente de trabalho. O exercício das ocupações nesse “espaço da rua” incorpora às ocupações mais tradicionais de condutores de veículos novas ocupações vulneráveis aos acidentes no trânsito e à violência crescente do espaço urbano. Nesse caso, ressalta-se não somente o deslocamento para o trabalho em condições precárias, mas o exercício do trabalho nas ruas, como nos casos do vendedor ambulante, do motoboy e das novas ocupações de condutores de veículos para transporte de pessoas no espaço urbano, como motoristas de Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 127-135, 2014 pequenos veículos de transporte coletivo e seus auxiliares, sem vínculos formais de trabalho e em condições precárias. O AT não é mais vinculado apenas às características dos espaços internos. A luta pela sobrevivência, no contexto de grande exclusão do mercado de trabalho formal, gera inúmeras formas de ocupação que se materializam nos “biscates”, inventados e reinventados a cada dia. A invasão de todo o tempo existente pelo trabalho, precário e informal, se associa a uma supressão da fronteira entre tempo de vida no trabalho e tempo de vida livre. Apesar do AT com óbito constituir uma relevante causa de morte da população trabalhadora, persistem sérios problemas em relação à produção e à qualidade desses dados nos sistemas de informação em saúde. A investigação de óbitos incorporando a técnica da autópsia verbal (LACERDA; FERNANDES; NOBRE, 2014) pode representar uma importante contribuição na produção de informações complementares sobre as causas externas de óbito, especialmente os acidentes de trabalho. Trata-se de um instrumento ainda pouco conhecido no âmbito da Saúde do Trabalhador, que pode contribuir para a redução da subnotificação e para desnudar as circunstâncias envolvidas na morte do trabalhador, permitindo identificar fatores condicionantes e determinantes da situação de saúde dos trabalhadores, elementos fundamentais para o planejamento das ações de promoção e proteção da saúde, bem como de outras políticas setoriais. A prevenção das mortes e violências no trabalho requer a participação dos atores sociais envolvidos, sindicatos, trabalhadores, empresas e empreendedores, além da articulação entre órgãos públicos, como da saúde, trabalho, trânsito e segurança pública. As políticas de saúde devem articular as ações de promoção à saúde dos trabalhadores com aquelas de combate à violência, bem como com as políticas de segurança pública, de planejamento e transporte urbano. Ações integradas, com a perspectiva de ampliar o diálogo entre setores, a construção de mecanismos e estratégias solidárias e cooperativas são fundamentais para a efetividade das políticas de promoção e proteção da saúde de todos os trabalhadores. Assim, o papel do poder público não se restringe à regulação das relações trabalhistas formais; devem ser garantidas ações efetivas de regulação, monitoramento e fiscalização das condições de trabalho, sejam elas de atividades formais ou informais, em ambientes delimitados ou “no espaço da rua”. Ou seja, promoção de ações que transformem o trabalho precário em trabalho decente, digno, protegido e com garantia de suporte social para o trabalhador. 133 Contribuições de autoria Lacerda, K. M. e Fernandes, R. C. P.: foram responsáveis pela concepção do estudo, pela análise dos dados, elaboração do artigo e pela revisão final do manuscrito. Nobre, L. C. C.: foi responsável pela elaboração do instrumento, pela etapa de coleta dos dados e pela revisão final do manuscrito. Pena, P. G. L.: participou da análise dos dados. Referências ALBERTO, M. F. P. A dimensão subjetiva do trabalho precoce de meninos e meninas em condição de rua em João Pessoa, PB. 2002. 305 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002. CERQUEIRA, M. B. Os guardiões do tempo sobrevivem à cidade veloz: trabalho informal e saúde, dimensões da exclusão social. 2000. 145 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. ALVES, G. Trabalho e sindicalismo no Brasil: um balanço crítico da “Década Neoliberal” (1990-2000). Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 19, p. 71-94, 2002. http://dx.doi.org/10.1590/S010444782002000200006. 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Contato: Karina Sami Yamamoto Inoue E-mail: [email protected] Trabalho baseado na dissertação de mestrado de Karina Sami Yamamoto Inoue, intitulada A atividade dos técnicos de segurança do trabalho em empresas metalúrgicas de Osasco/SP e região, defendida em 2012 no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Trabalho apresentado, no formato oral, no III Congresso Brasileiro de Saúde Mental (ABRASME), em 2012, sob o título Aspectos do sofrimento mental experienciado pela categoria Técnico de Segurança do Trabalho. Trabalho contou com financiamento da FAPESP para o desenvolvimento da pesquisa: Processo nº. 2010/03603-0. Os autores declaram não haver conflito de interesses. Recebido: 15/02/2013 Revisado: 09/06/2014 Aprovado: 10/06/2014 136 Resumo Objetivo: conhecer as vivências dos Técnicos de Segurança do Trabalho no desenvolvimento de suas atribuições nas empresas, bem como suas percepções sobre os reflexos do exercício profissional sobre a sua saúde. Métodos: pesquisa qualitativa com uso da técnica da Análise Coletiva do Trabalho, na qual trabalhadores em grupo abordam os aspectos materiais e subjetivos de seu fazer, e posterior análise de conteúdo dos relatos dos participantes. Resultados e discussão: na percepção dos Técnicos seu trabalho é caracterizado por limitações constantes no exercício de suas atividades e por conflitos com os diferentes níveis hierárquicos das empresas. O desvio de função foi apontado como prática corrente, com destaque para atividades administrativas e vigilância patrimonial. Os aspectos identificados como determinantes dessa situação foram: priorização, pelas empresas, da produção em detrimento da prevenção; inserção frágil do Técnico na política de segurança das empresas; atuação conflituosa por sua posição intermediária entre trabalhadores e gestores; ausência de proteção contra despedida desmotivada; predominância da abordagem comportamental de segurança nas empresas e entre os próprios Técnicos. Essas limitações e constrangimentos foram apontados como prejudiciais ao desenvolvimento de ações preventivas e como causa de sofrimento mental e adoecimento desses trabalhadores. Palavras-chave: técnico de segurança do trabalho; sofrimento no trabalho; ergonomia da atividade. Abstract Objective: to study Occupational Safety and Health Technicians’ experiences in developing preventive activities, as well as their awareness on the reflexes of their occupational practice on their own health. Methods: qualitative research, using the Collective Work Analysis technique, in which Technicians in group address the material and subjective aspects of their work, followed by content analysis of the participants’ reports. Results and discussion: the Technicians are aware that their work is characterized by constant limitations in their daily practices and by conflicts with different hierarchical levels within the companies. Function deviation was appointed as a current practice, especially among managerial activities and property surveillance. The determining aspects to this working condition are as follows: The enterprise’s prioritization of production to the detriment of prevention; Technicians’ fragile insertion in the companies’ safety policies; continuous conflicts due to Technicians’ intermediate position between workers and managerial level; absence of protection against unmotivated dismissal; prevalence in companies and among technicians of behavioral approach to security. These limitations and constraints were pointed as harmful to the development of preventive actions and as the cause of mental suffering and diseases among these technicians. Keywords: occupational safety and health technician; suffering at work; activitycentered ergonomics. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 Introdução No âmbito das empresas, a responsabilidade pela preservação da saúde e a garantia da segurança dos trabalhadores cabe ao Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT). O Serviço é regulado por normas estatais que se aplicam aos trabalhadores formais cujo regime de trabalho é regido pela Consolidação de Leis do Trabalho (BRASIL, 1943) O Serviço tem por objetivo maior a prevenção de acidentes de trabalho e de doenças ocupacionais e, para tanto, os profissionais de saúde e segurança do trabalho devem lançar mão de uma série de iniciativas para o desenvolvimento de ações preventivas. A legislação trabalhista vigente define como atribuições principais desses profissionais reduzir até eliminar os riscos existentes no ambiente de trabalho e, não sendo possível, determinar o uso de equipamentos de proteção coletiva ou o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) pelo trabalhador. O SESMT também deve colaborar no projeto e implantação de novas instalações da empresa, responsabilizar-se pelo cumprimento das Normas Regulamentadoras (NR) aplicáveis àquela empresa, promover atividades educativas para os trabalhadores, registrar e analisar acidentes e incidentes ocorridos (BRASIL, 1978, 1983). O dimensionamento do SESMT varia de acordo com o porte da empresa – número de trabalhadores que possua e o grau de risco oferecido pela atividade desenvolvida. A composição da equipe do SESMT pode variar, mas Técnico de Segurança do Trabalho é a categoria que sempre se faz presente. A equipe completa do SESMT pode ser composta ainda por médico e enfermeiro do trabalho, auxiliar de enfermagem, engenheiro de segurança do trabalho (BRASIL, 1978, 1987). O setor metalúrgico é um ramo que oferece elevado grau de risco aos trabalhadores. Dessa forma, a legislação trabalhista brasileira determina a implantação e manutenção de SESMT em todas as empresas metalúrgicas que possuam a partir de 50 trabalhadores. Portanto, é possível afirmar que o Técnico de Segurança do Trabalho é o profissional de saúde e segurança presente em grande parte das empresas metalúrgicas. Entretanto, em levantamento bibliográfico realizado foram encontrados poucos estudos a respeito do trabalho desses profissionais de saúde e segurança. Salazar et al. (2003) aplicaram questionário a profissionais de serviço de saúde ocupacional de dez estabelecimentos de armazenamento de armas nucleares norte-americanos, constatando problemas de comunicação nos serviços e divergência entre os riscos físicos identificados nos estabelecimentos Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 pelos profissionais e as ações protetivas oferecidas. Takaro et al. (2000) investigaram a percepção dos profissionais sobre melhoria na qualidade do serviço após mudança em procedimentos internos. Van Der Drift (2002) identificou a necessidade de melhor qualificação dos profissionais de saúde e segurança das empresas. Na realidade brasileira, Cavalheiro et al. (2011) pesquisaram o SESMT de empresa moveleira, identificando as tarefas de responsabilidade de seus membros. Pesquisando a ocorrência de quase-acidentes em empresa de construção civil, Cambraia, Formoso e Saurin (2008) descreveram as tarefas executadas pelo Técnico de Segurança de Trabalho para a prevenção desse tipo de evento. No mesmo ramo, Fonseca e Lima (2007) estudaram análises de acidentes de trabalho realizadas por Técnico de Segurança e as propostas preventivas derivadas de suas conclusões. Na maior parte das pesquisas identificadas há apenas a menção ao profissional como parte do quadro de profissionais do SESMT, havendo em número mais reduzido de estudos onde há a referência ao Técnico de Segurança como participante em uma atividade pontual (ginástica laboral, treinamento da brigada de incêndio etc.). Temos no país quase 300 mil Técnicos de Segurança do Trabalho ativos (FEDERAÇÃO NACIONAL DOS TÉCNICOS DE SEGURANÇA DO TRABALHO, 2012). Ainda que em números absolutos a categoria profissional no país não constitua volume significativo, ela tem potencial de contribuir para a prevenção de doenças e acidentes com trabalhadores de indústrias de importância crucial para a economia e o desenvolvimento do país. O Técnico de Segurança do Trabalho tem por atribuição específica identificar, avaliar e informar riscos presentes nos processos de trabalho. O profissional trabalha de forma articulada aos demais integrantes do SESMT para a elaboração e execução de medidas de proteção à saúde dos trabalhadores (BRASIL, 1985, 1986, 1989, 2008). Assim sendo, as condições de trabalho e a sua configuram-se como assunto relevante para a saúde pública, seja pelo impacto de sua atividade nas ações preventivas, seja pela necessidade de se entender como o trabalho repercute diretamente na saúde desses profissionais. Cabem alguns esclarecimentos com relação à base conceitual sobre a qual nos embasamos para realizar a discussão dos resultados obtidos com o presente estudo. Ao nos referirmos à “atividade” e “tarefa” o fazemos dentro da conceituação da ergonomia da atividade. Nessa, “tarefa” diz respeito ao que é prescrito ao trabalhador, o que se espera que seja por ele executado; por outro lado “atividade” se refere ao que verdadeiramente é realizado (ASSUNÇÃO; LIMA, 2003). 137 Considerando-se o objeto do presente trabalho, justifica-se ainda tratarmos do conceito “nocividade”, conforme nos apresentam Assunção e Lima (2003). Tal conceito transcende o olhar da higiene ocupacional – que enfoca os agentes físicos, químicos e biológicos presentes nos ambientes de trabalho – a partir do qual se define o trabalho como sendo perigoso ou de risco à saúde. Uma abordagem sistêmica do trabalho implica entender os riscos na complexidade das suas múltiplas interações com os indivíduos e não como decorrentes de fatores isolados. Segundo os autores, a nocividade do trabalho envolve a forma como o trabalhador vivencia uma organização de trabalho rígida, os constrangimentos existentes devido a uma margem de ação reduzida (ASSUNÇÃO; LIMA, 2003). Convém ainda acrescentar o contraponto com o que Clot denomina “real da atividade”, que compreende não apenas o que é executado pelo trabalhador, mas também os impedimentos e dificuldades existentes no contexto de trabalho que limitam a concretização do que lhe é previamente determinado, conceito que contribui para a explicação da relação trabalho e saúde mental (CLOT, 2007). O autor define como real da atividade aquilo que não se faz, aquilo que não se pode fazer (os impedimentos); aquilo que se busca fazer sem conseguir (os fracassos); aquilo que se teria querido ou podido fazer e aquilo que se pensa ou que se sonha poder fazer (os desejos); aquilo que se faz para não fazer (as regulações); aquilo que se faz sem se querer fazer (as imposições); aquilo que se tem de desfazer ou aquilo que se tem de refazer (o retrabalho). Dessa forma, o comportamento ou a atividade, aquilo que é feito, nada é mais do que “um conjunto de reações que venceram”. A atividade, para o autor, é uma prova subjetiva na qual cada um enfrenta a si mesmo e aos outros para ter uma oportunidade de conseguir realizar aquilo que se tem a fazer. As atividades suspensas, contrariadas ou impedidas, e mesmo as contra-atividades, devem ser admitidas na análise, ou seja, a atividade afastada, ocultada ou inibida nem por isso está ausente. “Pretender prescindir disso na análise do trabalho equivale a retirar artificialmente aqueles que trabalham dos conflitos vitais de que eles buscam libertar-se no real.” (CLOT, 2007, p. 116) A demanda para a realização da atual pesquisa partiu da Gerência Regional de Osasco (SP) do Ministério do Trabalho e Emprego. Estava em andamento no órgão a verificação da adequação de maquinário de empresas metalúrgicas à nova redação da Norma Regulamentadora 12 (Segurança na operação de máquinas e equipamentos), em especial no tocante ao gerenciamento de riscos com máquinas e equipamentos (BRASIL, 2010). Nesse contexto, havia a percepção por parte de auditores fiscais que, mesmo em empresas 138 com política definida e estruturada de gestão de saúde e segurança do trabalho, os profissionais do SESMT possuíam atuação limitada para efetivamente implantar melhorias nas condições de trabalho. O objetivo do presente artigo é apresentar o conteúdo de trabalho dos Técnicos de Segurança do Trabalho através de suas representações sobre a sua atuação profissional e compreender as dificuldades vivenciadas e os impactos do exercício profissional sobre a sua saúde. Metodologia Foi realizada pesquisa qualitativa, tendo sido utilizada a técnica da Análise Coletiva do Trabalho – ACT (FERREIRA, 1993), que consiste em reunião de grupo de trabalhadores de uma mesma categoria para apresentar sua atividade profissional a dois pesquisadores. A investigação ocorre a partir de pergunta norteadora, no caso, “Como é o trabalho do Técnico de Segurança?”. Os participantes falam e discutem sobre o conteúdo de seu trabalho, tanto em seu aspecto concreto (procedimentos, equipamentos, rotina diária) como em seu conteúdo subjetivo (relações de trabalho, estratégias, regras não escritas). Nesse contexto, a realização com grupo homogêneo (mesma categoria e nível hierárquico) permite não apenas o enriquecimento do conteúdo trazido, através da retroalimentação da discussão entre os participantes, em torno dos temas, como também a confrontação de ideias e opiniões. Vale lembrar que o intuito de compreender o trabalho do ponto de vista dos trabalhadores não significa a busca por uma verdade única, uniforme, da percepção dos elementos do trabalho pelos participantes. Na ACT não apenas cabe, mas mais que isso, promove-se espaço para as diferenças e disparidades de experiências em entendimentos (FERREIRA, 1993). É preconizado pelo método que as reuniões com os grupos devem ter duração aproximada de 90 minutos, na forma de encontros sucessivos até a saturação, ou seja, até que fiquem esclarecidos para os pesquisadores, minuciosamente, os conteúdos do trabalho, as estratégias utilizadas, as dificuldades e sucessos encontrados na realização do trabalho. Havendo o consentimento de todos os participantes, as reuniões são gravadas, utilizando-se apenas o áudio. Esse material é posteriormente transcrito, havendo leitura e escuta exaustivas para o estabelecimento de categorias empíricas, a partir dos temas mais discutidos pelos trabalhadores e de elementos mais relevantes que compõem a atividade realizada. Fazse necessário que os pesquisadores tenham domínio dos conceitos centrais da ergonomia da atividade (FERREIRA, 1993, 1998, 2011). Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 Foram realizados três grupos distintos, que envolveram, no total, 17 Técnicos de Segurança do Trabalho. Para a ACT existe a preocupação de que os trabalhadores participantes sejam voluntários e busca-se também preservar sua identidade, no intuito de evitar a identificação dos sujeitos pelas empresas contratantes, da qual poderiam derivar constrangimentos desses junto aos demais atores no interior das empresas. Os encontros para realização da ACT foram realizados em local externo às empresas. Nos meses de agosto, setembro e outubro de 2011 foram realizados eventos pelo Ministério do Trabalho e Emprego direcionados aos profissionais de saúde e segurança de metalúrgicas dos municípios da região Oeste da Região Metropolitana de São Paulo. Esses tinham por finalidade trazer esclarecimentos a respeito das alterações na Norma Regulamentadora 12 (NR12) no que tange a aspectos de risco de acidentes com máquinas e equipamentos. No encerramento do evento apresentaram-se o projeto de pesquisa e o convite aos técnicos de segurança presentes. Faz-se necessário ainda pontuar que, para o presente estudo, foi feito recorte no universo de metalúrgicas da região, optando-se por selecionar empresas de médio e grande porte que, por obrigatoriedade legal (BRASIL, 1978, 1987), contam com equipe multiprofissional de segurança (Técnico de Segurança do Trabalho, Médico e Engenheiro do Trabalho), condição que agregaria elementos – positivos ou negativos – à organização do trabalho do Técnico, sendo uma característica importante a ser considerada. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/ USP), sob o protocolo nº. 2234, bem como pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde, protocolo FR405596. Para melhor assegurar a confidencialidade e diminuir possíveis constrangimentos utilizou-se do Termo de Responsabilidade. Esse Termo assegura os esclarecimentos éticos mediante a presença de testemunha, em substituição ao uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo dispensada dessa forma a identificação, número de documento de identidade e assinatura do sujeito de pesquisa. Resultados Os Técnicos de Segurança do Trabalho (TST) que realizaram a ACT possuiam tempo de formação e de atuação variada, de dois a mais de 20 anos. Ao longo dos grupos, foi possível observar que os participantes tinham experiência em diversos ramos de atividade econômica. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 Durante os três grupos de Análise Coletiva do Trabalho, os Técnicos participantes trouxeram elementos similares e outros díspares. As semelhanças se deram especialmente quanto ao entendimento das atribuições da categoria, de acordo com o definido pela legislação trabalhista, nas descrições das rotinas de trabalho – atividades realizadas frequentemente, protocolos e procedimentos obrigatórios a serem seguidos – e quanto ao trabalho habitual. As diferenças entre os participantes se apresentaram dentro de temas específicos, como, por exemplo, a relação com agentes de fiscalização e a relação com outros atores dentro da empresa. Os conteúdos relevantes para a discussão sobre os conteúdos do trabalho dos TST serão abordados a seguir. Para a apresentação das falas dos participantes optou-se pela uniformização na forma da sigla TST seguida da numeração dos sujeitos em ordem sequencial; dessa forma é possível relacionar as verbalizações de um mesmo participante sobre os diferentes temas abordados. A atividade dos Técnicos de Segurança Ao longo dos relatos, no momento em que os TST introduziam discussão acerca das dificuldades e limitações encontradas para o cumprimento de suas obrigações, surgiu contraposição entre as determinações legais e as prescrições das empresas contratantes. A expressão da impossibilidade de realização de suas atribuições pode se dar de maneira clara e aberta: TST1: Tem empresas em que o profissional nem sala tem. Tem empresa em que o profissional tem sala, mas é proibido de entrar na sala durante o dia. A falta de estrutura material fornecida ao SESMT também foi apresentada como comum entre os participantes: TST1: Tem empresas que você chega pra trabalhar e te colocam numa salinha, digitando num computador meia boca, deixa uma luzinha ali: “Olha, isso daqui é a sua sala”. Pingando alguma coisa, faltando outra aqui. TST2: Embaixo da escada. TST1: Embaixo do almoxarifado. Na maior parte das empresas o SESMT está vinculado a um setor com o poder rebaixado. É raro o Serviço responder diretamente a uma instância decisória. TST4: Geralmente muita coisa é jogada no nosso colo. Para ter uma ideia, eu conheci um Técnico de Segurança que tinha que lavar o carro do patrão uma vez por semana. Lavar. Ele que lavava. O Técnico de Segurança. É incrível. Eu conheço uns que trabalham no RH fazendo folhas de pagamento diariamente. 139 TST5: Por exemplo: Eu meço pressão, eu tiro licença da Polícia Federal, Civil, da prefeitura. Eu não tenho que tirar licença, quem tem que tirar é a contabilidade. Até é o [meu] caso: eu estou envolvido com o meio ambiente. Mas eu levo pessoa para o hospital, eu meço pressão, até plaquinha de nome de setor eu tenho que fazer. TST2: O camarada recebe atribuições como cuidar da segurança patrimonial, cuidar de restaurante, cuidar de frota de veículo, cuidar de máquina de Xerox. TST5: Vinte por cento de segurança e 80 por cento cuidar de limpeza e jardinagem. [...] E a empresa tinha também canil, porque os cachorros cuidavam da segurança patrimonial. Então eu também tinha que dar um apoio ali na parte do canil com relação a monitoramento, saúde dos cães etc. Na percepção dos Técnicos, o setor ao qual o SESMT responde explica, em parte, a atribuição de atividades desvinculadas de qualquer prática voltada à saúde e segurança dos trabalhadores; sendo as mais comuns: atividades administrativas, participação na área de segurança patrimonial, organização de festas de confraternização de fim de ano, execução de tarefas de motorista. Fica claro, portanto, não apenas a distância entre atividade e tarefa, mas, mais do que isso, a divergência e conflitos na definição do próprio objeto de sua atuação. A fiscalização por órgão estatal O acompanhamento de agente fiscal de órgão externo é outra atividade desenvolvida pelo Técnico de Segurança que é fonte de tensão e constrangimento. A fiscalização normalmente é realizada após a ocorrência de adoecimento no trabalho ou acidente grave ou fatal e é realizada principalmente pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, podendo ainda ser efetuada por órgãos do SUS, como Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) ou Vigilâncias em Saúde do Trabalhador. No momento em que a empresa está sendo auditada, também ocorre desvio de função do Técnico, entretanto de maneira diferenciada das anteriormente mencionadas, é o chamado “desvio para cima”: TST6: A empresa não está nem aí com nada. Quando chega um auditor fiscal ou alguém do Ministério do Trabalho: “Cadê a documentação? Cadê o Técnico? Chama o Técnico lá! Agora eu quero a documentação. Quero isso, isso, isso”. [...] [Diretor da empresa:] “Esse aqui [Técnico], ele é meu vice-presidente!” “Pode usar a sala da Diretoria, usa meu notebook aí”. Daqui a pouco o cara [fiscal] vai embora, se você disse alguma coisa errada: “Para que você falou isso? Tu és louco!” Durante a fiscalização é percebida mudança da forma de tratamento por interlocutores internos à 140 empresa. O Técnico de Segurança, que até então possuía participação marginal na gestão da saúde e segurança, ganha posição central: TST1: Agora você quer ver o pessoal lembrar de você? O dia em que, infelizmente, você tem um acidente. Aí, aquelas pessoas que estavam acima de você e que falaram assim: “Não, toca a máquina. Deixa o parafuso quebrar”. Some todo mundo. Some. Some. Porque é a hora que você vai ter que evidenciar que você tomou uma postura. Ainda que a presença do auditor fiscal no interior da empresa cause tensão no ambiente da empresa – discussões, trocas de acusação etc. – os participantes manifestaram que a maior fonte de preocupação são os possíveis desdobramentos da fiscalização: processo civil e criminal por falha ou omissão do Técnico, dada sua responsabilidade sobre as condições de trabalho precárias verificadas pelo auditor. TST1: Quando está ali, no âmbito da empresa, é uma coisa. Quando isso envolve um órgão externo, por exemplo, pode estar a Delegacia. Você tem que parar na frente do delegado e explicar. Ele olha pra você e fala: “Qual é o seu papel na empresa? Por que você não tomou uma atitude? Você não tem autonomia? Por que não-sei-o-quê?” Outro motivo de constrangimento durante a fiscalização é o não reconhecimento das condições de trabalho do Técnico de Segurança pelo auditor fiscal. Foi trazido pelos participantes que o olhar do auditor se direciona exclusivamente à linha de produção. Os Técnicos não são, portanto, identificados como trabalhadores. Ao manifestar ao auditor sua condição de impedimento para agir sobre os determinantes do acidente, os Técnicos comumente ouvem réplicas como: “Se está ruim, mude de profissão”. A investigação de acidente de trabalho Dessa maneira, as tentativas do Técnico de Segurança de intervir em situações identificadas como prejudiciais à saúde e segurança dos operadores são percebidas pelos demais atores como empecilhos para o bom andamento do processo produtivo. TST1: Eu tenho um caso aqui de um acidente que eu fui investigar. [...] Eu era novo na empresa, quando eu cheguei às 14h, o RH falou: “Ó, aconteceu um negócio lá na produção, nesse momento, dá para você dar um pulinho lá?” Eu cheguei lá, quando o gerente de produção me viu ele fez assim, literalmente: “O que você quer aqui?” Desse jeito: “O que você quer aqui? O que você veio fazer aqui?” E eu com papel e caneta na mão: “Eu vim a pedido da X, de Recursos Humanos, vim ver o que aconteceu aqui, oferecer uma contribuição que eu possa trazer, uma sugestão pra resolver o problema”. [Gerente de produção:] “Não quero ouvir sua opinião e não quero nem saber!” Falei: “Espera aí, você é gerente industrial, seria coerente. Eu vim...” [Gerente de produção:] “Não quero saber o que você pensa, Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 o que vai, quem é coerente ou vai deixar de ser coerente. Se vira lá com a X, vai lá e depois eu falo com ela”. Diante disso, o quê você vai fazer? Você vira as costas e vai embora. Inclusive eu fui embora mesmo da empresa. Não dá. A dubiedade nas atribuições do TST foram inicialmente explicadas como a disparidade entre a política de Estado em saúde e segurança no trabalho e a política interna das empresas. À medida que a discussão se desenrolava, havia verbalizações sobre a coexistência de interesses contrários que se concretizavam nessas práticas. TST2: Mas o foco da investigação não deve ser apontar responsáveis. Mas é fazer a prevenção. Você elencar tudo que precisa ser feito para corrigir aquela situação, para que ela não se repita. Depende da empresa. [...] Eu estou falando em nível de providências, chega até a nível de diretoria. Agora, o andamento disso vai depender muito daquilo que acontece na empresa. Tem diretor que está se lixando da situação. Largo o relatório na mão dele, é a mesma coisa que nada. Tem outra que não. Pega, bota toda a chefia numa sala e conversa com todo mundo: “Espera aí, vamos tomar uma providência, não é por aí” e tal. Então depende muito de com quem você está mexendo e qual a cultura dele. Os Técnicos colocaram em diferentes momentos o conflito entre produção e segurança, em outras palavras, a segurança como entrave para os lucros e rendimento da empresa. Ao tratar de alteração recente em legislação, no que tange o uso de tipo específico de maquinário, um dos participantes trouxe depoimento de experiência pontual: TST7: Eu vou interditar todas as máquinas, porque todas estão fora de uso. São prensas de engate de chaveta e estão totalmente fora de uso. São máquinas de 1976. Agora, aparentemente ele achou melhor comprar prensas novas e jogar essas3. Eu fui falar pra ele [empresário] assim: “Olha, a lei determina que nós não podemos jogar. Você não pode repassar isso. Você não pode! Você não pode repassar”. Ele falou: “Não esquenta não. Eu vou repassar isso aí, não vai ter problema de nota, não vai ter problema de nada. Eu vou no toma lá dá cá e vai lá pro nordeste, vai lá não sei para onde mas eu vou repassar”. Mas eu alertei ele, eu falei: “Olha, não”. Mas... Em outras situações, o foco maior sobre a produtividade é percebido na proximidade do Técnico com o pessoal de chão de fábrica e na observação do processo produtivo, conforme ilustrado abaixo: TST2: Para você fazer uma peça tem um procedimento de como realizar. Só que se você não realizar esse procedimento da forma que é descrito, você 3 consegue aumentar a produção [...] diminuindo segurança você tem uma produtividade maior. TST8: Não adianta você querer peitar ninguém porque você não vai conseguir, por mais político que você seja. Por que, infelizmente, a nossa cultura hoje é para o quê? Produção, produção e mais produção. Se o cara estiver lá e encontrar uma situação de risco na área, se não tiver uma pessoa, um contato para chegar e mostrar que realmente a peça [Produção] tem que parar, nem sempre para. Em tais circunstâncias, sendo a lógica da produção predominante sobre a gestão de segurança, o TST passa a ser percebido como um sujeito que dita regras e cobra comportamentos, de operadores de chão de fábrica, incompatíveis com melhores resultados de produção. TST1: O Técnico ser visto como dedo-duro, como cagueta, como fofoqueiro, como puxa-saco da empresa. TST9: Ele é visto como o dedo-duro, né? “P...! Lá vem o dedo-duro. Lá vem aquele sacana. Lá vem o não-sei-o-quê.” Eu já vi caso de um funcionário querer agredir um colega meu. As falas a seguir expressam a preponderância de abordagem da segurança comportamental sobre um entendimento mais global do trabalho, desconsiderandose os aspectos imateriais e subjetivos que o compõe. TST7: Quando você recruta um empregado, você passa para ele um Termo de Responsabilidade, de obrigações: “Olha, aqui você vai ter isso, você tem que obedecer, você tem essa norma interna da empresa. Na qual você vai ter essas obrigações e responsabilidades”. Tudo bem, ele concorda. Quando você entrega os equipamentos e fala: “Olha, você vai ter que seguir”. Aí ele se retrai, ele burla, ele não quer usar o equipamento. Então acarreta nas advertências e tudo mais. [...] Muitas vezes até eu falo: “Pô, mas quando você entrou aqui, você não concordou? Não estava sabendo que você teria que usar o protetor, o óculos?” TST6: Depois que você alertar a pessoa, depois que você conversar com a pessoa, pra que você comece a punir. Mas punir, entendeu? Aí, tem o funcionário. Você não vai usar isso daqui, então eu vou ter..., vamos pedir advertência, levar a situação para o RH, para o líder, para liderança dele lá. É punir o camarada, se ele está tomando essa advertência é porque você teve uma conduta. TST1: Ele [o trabalhador] não tem cultura. Aí você vai ter que domesticar o cara [grifo nosso]. O termo até pesado pra usar, não é conscientizar, é domesticar o cara a exercer uma questão de segurança. Foi estabelecido na Convenção Coletiva de Melhoria das Condições de Trabalho em Prensas e Equipamentos Similares, Injetoras de Plástico e Tratamento Galvânico de Superfície nas Indústrias Metalúrgicas do Estado de São Paulo (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS, 2008) o Programa de Prevenção de Riscos em Prensas e Similares (PPRPS), onde está determinado que prensas obsoletas, inadequadas nos termos da nova redação da NR12, não podem ser transferidas, doadas ou vendidas a terceiros. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 141 A produtividade do Técnico de Segurança Interessante pontuar a forma como a exigência por produtividade não se aplica apenas aos operadores de linha de produção. Os participantes afirmaram ser comum o estabelecimento de metas de produção para o Técnico de Segurança, por exemplo: quantidade de inspeções por posto de trabalho durante determinado intervalo de tempo; quantidade de materiais educativos produzidos para distribuição durante a Semana Interna de Prevenção de Acidentes de Trabalho (SIPAT). Entretanto, a mensuração da produção individual do Técnico por parte das altas hierarquias da empresa não necessariamente tem por base ações e iniciativas para a prevenção de adoecimento e de acidentes. TST1: No final do mês tem que apresentar um relatório, pra questão de controle, de tudo o que você fez. A pessoa: “Ô, a taxa de acidente está aumentando. Você não é técnico de segurança? A taxa de acidente está aumentando! O que você está fazendo?” Outro “indicador” da produtividade do Técnico comumente utilizado é o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPI), a partir do acompanhamento de baixa no almoxarifado: TST3: Até no controle, se estourou um pouquinho no orçamento em 20%: “Tá dando EPI pra quem?” A alta rotatividade de profissionais da categoria Os participantes percebem entre a categoria uma alta rotatividade de profissionais e atribuem-na a uma forma de expressão das adversidades enfrentadas na realidade de trabalho dos Técnicos. TST10: Nós somos obrigados, nós estamos aqui [na empresa], nós temos que fazer. Porque se você sai de uma determinada empresa hoje, você vai pra outra, é claro que é a mesma coisa, você vai pra mesma situação. [...] O negócio é segurar. O cara [empresário] fala: “Contratei esse aqui, esse aqui não quer fazer nada, só negócio de segurança. Não quer ficar. Não dá não, o outro [TST] fazia. Pega isso aqui e vai embora. Não passou nem na experiência”. TST4: Se esse técnico falar que vai parar a máquina, ele é trocado. Ele é substituído. Por quê? Ele tem que obedecer o SESMT. A partir do relato acima depreende-se também a questão do medo do desemprego, preocupação perceptível nos relatos dos participantes. O papel do Técnico dentro da esfera familiar, como provedor do lar, compõe um fator adicional de autocobrança, onde ele se vê obrigado a se submeter às condições de trabalho da forma como se apresentam. Aspecto esse contemplado na fala abaixo: 142 TST3: Eu tenho uma família. Eu não vou pedir demissão só porque o patrão não quer que eu faça a minha função. Muitas vezes ele não quer que eu faça, tá bom, não vou fazer. Se quer que eu finja que eu trabalho? Então eu vou fingir que eu trabalho. Várias vezes eu me deparo com isso. A posição do Técnico como intermediário entre a produção e a gerência da empresa gera, no entendimento dos participantes, constrangimento pelo acesso a informações das instâncias decisórias que não podem ser compartilhadas com o setor operacional. TST1: O Técnico, ele exerce o papel de fazer o contato entre o operacional e a chefia deles. Então, ele participa junto com a chefia, ele sabe exatamente qual é a linha que a chefia está adotando, ou que vai adotar, e ao mesmo tempo ele está ali, junto com a galera, ele sabe os pontos positivos e negativos. Ele não pode levar tudo o que ele sabe lá para cima e não pode pegar tudo o que ele sabe lá de cima e trazer aqui para baixo. Então, ele fica fazendo um filtro. Pode ser que você esteja aqui agora, mas amanhã você não vai estar aqui. Mas eu tenho que levar você numa condição que você possa imaginar que vai estar aqui mais dois [anos], mas você não vai estar aqui nem mais duas horas. O trabalho e o sofrimento dos Técnicos de Segurança Ao tratarem dos reflexos do exercício profissional na vida pessoal, os TST comentaram que seu trabalho afeta momentos de descanso e lazer: TST9: Isso foi o que mais acabou comigo, o fator psicológico. De tanta preocupação. Eu saio de casa, eu não paro de pensar nos caras que tão lá trabalhando, [...] de ser prejudicado futuramente numa fiscalização ou por um acidente que venha a causar uma morte dentro da empresa. Os impactos sobre a saúde são percebidos de diferentes maneiras pelos Técnicos. Abaixo, um Técnico comenta o desenvolvimento de sintomas orgânicos em decorrência do trabalho: TST8: Eu trabalhei numa empresa muitos anos. Trabalhei em RH e depois passei [para a] Segurança. Foi feito todo um trabalho, a empresa começou a viver um nível de tensão tão forte em cima da segurança e começou toda uma pressão em cima da gente. [...] Eu tinha todos os sintomas de Diabetes. Eu cheguei muitas vezes a ir pra enfermaria com a pressão lá embaixo. O Médico do Trabalho virava e falava pra mim: “Sai daqui, vai dar palestra, vai descansar. Isso aqui está um inferno”. O próprio Médico do Trabalho. [...] Então, você vai insistindo. Você vai cada vez passando mal. Mal mesmo. Cheguei a uma época a pedir demissão. Não deixavam. Estava em vias de auditorias e tal, [...] Eu saí dessa empresa. Fui trabalhar numa outra empresa. [...] Uma empresa que tinha vontade de mudar. A gente conseguiu fazer um trabalho. Fiquei dez anos e meio lá. Nunca, depois que eu saí dessa primeira empresa, nunca mais eu sinto dores nas pernas, nunca mais eu tive Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 nenhum sintoma de Diabetes, faço o exame até hoje [...] Era a questão de stress mesmo. Nessa outra empresa que eu fui, peguei um clima muito pior em termos de funcionários, em termos de equipamentos, mudaram os equipamentos, deram recurso para que a gente treinasse o pessoal, mudasse o comportamento das pessoas, deu abertura para isso. Conseguimos fazer um bom trabalho, a coisa mudou e a minha saúde perfeita. E eu fui ficando cada vez mais velho. Os participantes constataram ainda o adoecimento como consequência do sofrimento mental. Na fala a seguir, comenta-se a respeito do desenvolvimento de alcoolismo: TST1: É muito comum camarada ficar lá esmagado o tempo todo. O colega cair até no vício de bebida por frustração de não poder desempenhar o trabalho bem desempenhado. Tenho visto aí cair no alcoolismo. O trabalho de Técnico de Segurança, ainda que permeado por fatores negativos para a saúde mental, também possui elementos positivos identificados pelos participantes. Foram mencionados momentos agradáveis, de conquistas e realizações, à parte as dificuldades e limitações enfrentadas: TST9: Eu não consegui meu objetivo, mas eu fiz alguma coisa, por menor que seja, para evitar que um colega meu de trabalho, pai de família, saia de dentro da empresa mutilado, cego, faltando uma perna, qualquer situação que venha a constranger ele e a família dele para o resto de sua vida. É muito gratificante poder fazer isso daí. TST11: Quando você vê que tudo aquilo que você muitas vezes brigou, conversou com as pessoas, mostrou a necessidade, está sendo realmente implantado. Quando você vê que no seu trabalho você começa a colher os frutos. Sempre vai ver [resultados]. Depende muito. Mas é um processo contínuo. Uma cultura de 43 anos você não muda em um, dois anos. É um trabalho de formiguinha. Conforme apresentado anteriormente, o trabalho dos Técnicos de Segurança é composto por uma diversidade de atividades a serem realizadas em meio a limitações, conflitos, contradições e impedimentos de diferentes ordens. Discussão A partir das falas dos participantes durante os grupos de Análise Coletiva do Trabalho, pode-se perceber a existência de dois “níveis” de tarefa para os Técnicos de Segurança do Trabalho: as atribuições constantes em legislação – política de saúde e segurança do trabalho, principalmente, a Norma Regulamentadora 4, do Ministério do Trabalho e Emprego (BRASIL, 1978, 1987) – e as determinações da empresa metalúrgica contratante. Ao TST é delegado um universo de Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 atribuições, entretanto a categoria possui margem de ação reduzida para o seu cumprimento. A distância entre a atividade e a tarefa do Técnico pode ser entendida por diversos prismas. Primeiramente existe a questão da origem dos SESMT. Peeters et al. (2003) e Assunção e Lima (2003) apontam a composição e manutenção do Serviço unicamente com a finalidade de dar resposta a uma obrigatoriedade legal. Sendo assim, o distanciamento da postura prevencionista antecederia a constituição concreta do próprio Serviço. A esse respeito, Lacaz (1996) aponta que alguns dos profissionais do SESMT (Médico e Enfermeiro do Trabalho) são o veículo operacional para a realização dos exames admissionais e periódicos. Sua atuação se limitaria, portanto, ao gerenciamento desses exames. No entendimento dos TST, as dificuldades e limitações encontradas em seu cotidiano de trabalho advêm principalmente da coexistência de lógicas antagônicas no interior das empresas: a segurança e a produção, estando na figura do TST o ponto de conflito entre ambas. Nesse sentido, o profissional é visto como fonte de distúrbio, por constantemente trazer às instâncias decisórias da empresa os problemas e riscos identificados no trabalho em linha de produção, além de buscar intervir sobre o processo produtivo para implantar modificações e alterações, prejudicando assim a produtividade. A insuficiência de infraestrutura e recursos materiais, o desvio de atribuição e o estabelecimento de metas de produção a partir de indicadores sem qualquer relação com a atividade desenvolvida são, na percepção dos TST, a expressão da forma como a categoria é vista nas empresas: um agente limitador da produção. Outra contradição encontrada ao se analisar o trabalho dos Técnicos de Segurança diz respeito à coexistência de abordagens contrárias, que dão suporte a entendimentos heterogêneos sobre o trabalho e quanto ao contexto em que é realizado. A saber: abordagens fundamentadas nas ciências físicas em oposição às ciências humanas (DANIELLOU, 1996). Ou, como discriminam Garrigou et al. (1999): a compreensão da segurança comportamental versus a visão centrada no homem. Na visão da segurança comportamental há direcionamento do olhar do especialista ao conteúdo visível e mensurável do que é executado pelo operador; o trabalho constituir-se-ia da sobreposição de tarefas simples e da somatória de suas partes. O papel do Técnico, nessa abordagem, é o de vigiar o cumprimento estrito de normas e punir os trabalhadores faltosos, vistos como os principais responsáveis e culpados pelas próprias ocorrências lesivas. A predominância da segurança comportamental fica bem expressa na verbalização do Técnico, ao comentar que lhe cabe “domesticar” o trabalhador. 143 Entre suas consequências imediatas, ela afasta e isola o Técnico dos trabalhadores, justamente os principais interessados e potenciais aliados do Serviço. A preponderância da visão da segurança comportamental, com o maior direcionamento da atenção dos profissionais de segurança ao conteúdo visível do trabalho e aos riscos físicos presentes no ambiente, é criticada por diversos autores (VALVERDE, 2010; VILELA, 2003, 2010; CAMBRAIA; FORMOSO; SAURIN, 2008; ALMEIDA; JACKSON FILHO, 2007; FONSECA; LIMA, 2007; VILELA; MENDES; GONÇALVES, 2007; VILELA; IGUTI; ALMEIDA, 2004; ASSUNÇÃO; LIMA, 2003; ALMEIDA, 2001; DWYER, 1994). O aspecto organizacional (divisão do trabalho entre os operadores, pressões temporais) é desconsiderado, bem como o conteúdo subjetivo das atividades (conflito entre as normatizações e a produção, processos mentais; a finitude da capacidade de o trabalhador adaptar suas funções psicológicas e fisiológicas às exigências da atividade). Pensando no trabalho dos Técnicos de Segurança em chão de fábrica, esse tipo de entendimento impede a percepção justamente dos fatores desencadeantes de sofrimento e adoecimento dos trabalhadores, o que contribui para um alcance limitado de suas intervenções e a inviabilização de seu possível papel como interlocutor válido para a compreensão e a transformação dos processos de trabalho e dos riscos. A forma como o serviço de saúde ocupacional está organizado contribui para sua funcionalidade, no sentido de que as necessidades de saúde e segurança dos trabalhadores tenham o encaminhamento adequado (ELGSTRAND, 2009). No entanto, os conceitos de risco e de acidente partilhados pela equipe do SESMT e gestores da empresa têm papel determinante na proteção à saúde dos trabalhadores. A concepção reducionista entende os riscos como sendo fatores isolados do trabalho e tem sua base em modelo tradicional de estudo de agentes físicos, químicos ou biológicos presentes no ambiente. É fortemente ligada às disciplinas clássicas, como a Medicina do Trabalho e a Saúde Ocupacional. Nessa abordagem caberia aos profissionais do SESMT identificar e controlar fatores de risco pontuais, especialmente os visíveis, gerenciar o fornecimento de EPIs, controlar o comportamento errôneo dos trabalhadores no sentido de seu disciplinamento. O conteúdo do trabalho, sua complexidade, diferenças qualitativas, relações entre seus elementos e a articulação entre etapas diferentes do processo de trabalho permanecem à margem desse tipo de análise (LAUREL; NORIEGA, 1989). A visão do especialista que sabe e que deve impor, “adestrar” e disciplinar os trabalhadores “incultos”, 4 condizente com a visão hierárquica da fábrica taylorista, desconsidera o papel central do trabalhador enquanto regulador das variabilidades e o principal agente de segurança (LLORY, 1999). Para De La Garza e Fadier (2007) a participação do trabalhador é fundamental para o sucesso do processo de produção. O êxito do sistema e seu funcionamento de modo seguro e eficaz passam justamente pelo distanciamento das prescrições. Ao se afastar do que lhe é predeterminado, o trabalhador utiliza suas competências e sua experiência acumulada e consegue prever situações e corrigir desvios percebidos. Nesse sentido, Assunção e Lima (2003) comentam ser na rigidez da organização do trabalho, em outras palavras, na redução da margem de ação do trabalhador, que se encontra a gênese da nocividade do trabalho. Depreende-se pela fala dos participantes uma semelhança entre o olhar do Técnico, como especialista que sabe da segurança, e das hierarquias superiores da empresa sobre a atividade do operador. Interessante pontuar que, ao comentarem sobre sua própria realidade de trabalho, em especial no que tange às cobranças e ao estabelecimento de metas de produção, os participantes teceram críticas a sua chefia e a alta hierarquia das empresas pela inobservância dos aspectos imateriais da atividade do Técnico de Segurança. Portanto, contraditoriamente, coexistem a crítica à invisibilidade de seu trabalho e a adesão à visão da segurança comportamental. O Técnico é vítima e algoz da mesma abordagem de que é portador: o trabalho é visto fora do contexto global da produção e o trabalhador é pressionado a atingir resultados inviáveis, dados os meios e possibilidades reais de ação que possui. Outra forma de expressão desse paradoxo é a maneira como o papel do Técnico de Segurança é visto dentro da empresa. Peeters et al. (2003), Assunção e Lima (2003) e Garrigou et al. (1999) comentam que a visão preponderante da segurança comportamental reduz o papel desses profissionais a vigilantes do comportamento dos operadores dentro das empresas, o que retroalimenta, portanto, a percepção dos operadores em relação ao TST como “cagueta”. Quando realizada com essa finalidade, a vigilância verifica apenas aspectos secundários e superficiais, mas não intervém nos determinantes organizacionais dos riscos, ou seja, aos Técnicos é permitido apenas “colocar curativos em uma perna de madeira”4. Independentemente do que é determinado ao Técnico realizar, as cobranças quanto às iniciativas para melhoria das condições de trabalho dos operadores permanecem. A exigência se concretiza diferentemente, partindo do ambiente interno, mas Expressão utilizada por M. Llory (2012) em conferência, ao se referir às recomendações fruto de investigações superficiais de acidentes industriais. 144 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 também de órgãos de Estado. Internamente, em nível hierárquico superior, é a empresa, por exemplo, que pode cobrar e responsabilizar o Técnico pela redução dos índices de acidente de trabalho, enquanto que, em níveis inferiores, os operadores do setor de produção também reivindicam resultados preventivos. Pensando em órgãos públicos, o Técnico de Segurança é chamado à responsabilidade como profissional da área de saúde e segurança pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, pelos profissionais de vigilância do SUS ou pelos peritos ou policiais que investigam algum acidente grave ou fatal. Em diferentes momentos, durante os grupos, os participantes comentavam a “falta de autonomia” do Técnico de Segurança. Clot (2007, 2010) cunhou a expressão “poder de agir”, que acreditamos ser a mais adequada, dado o universo de entendimentos possíveis para “autonomia”. O “poder de agir” diz respeito ao que é permitido e possível ao trabalhador verdadeiramente realizar dentro de seu trabalho habitual. Para o autor, esse conjunto de ações é heterogêneo e mutável, podendo se ampliar ou reduzir. No entendimento de Clot, as causas do adoecimento mental no trabalho residem no que é impedido ao trabalhador realizar e não no conteúdo da atividade efetuada. Pois, ainda que lhe seja permitido desempenhar uma pluralidade de ações e que ele o faça com sucesso, em a atividade sendo esvaziada de sentido, seus desdobramentos serão sempre insatisfatórios aos olhos do trabalhador. O “sentido” da atividade diz respeito ao que o sujeito percebe como importante e o objetivo e resultados possíveis através de determinada ação. A situação de conflito que o trabalhador vivencia ao não encontrar eco para as suas expectativas dentro do trabalho que realiza – poder de agir atrofiado – causa sofrimento intenso e pode conduzir à impossibilidade de continuação da ação por a atividade se tornar psicologicamente inviável (CLOT, 2010). Assunção e Lima (2003) comentam sobre o movimento natural do trabalhador de se ajustar às exigências do trabalho, utilizando recursos pessoais de ordem física, cognitiva, temporal e material para dar cumprimento ao que lhe é determinado. Entretanto, à medida que as demandas excedem as possibilidades individuais de que dispõe, tem-se por consequência reflexos negativos sobre a sua saúde. A organização do trabalho do Técnico, da forma como se apresenta, traz sofrimento mental intenso, expresso pelos Técnicos de variadas formas: “frustração”, “sensação de ser inútil”, “ficar feito um bobão”. Refletindo sobre o trabalho dos Técnicos, ficam claros os elementos que Clot comenta comporem a chamada “mistura explosiva” (CLOT, 2010, p. 11): atividade expropriada de sentido e sentimentos de insignificância; ambos fortemente trazidos pelos Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 participantes ao longo dos grupos. Entretanto, o mesmo autor também afirma situações de superação, onde o sujeito reconhece elementos realizáveis dentro de raio de ação. Em tais circunstâncias o indivíduo se torna psicologicamente mais disponível. A atividade então se renova de sentido a partir de um resultado positivo inesperado, que ultrapassa os objetivos da demanda e pode, inclusive, transpor as expectativas do próprio sujeito (CLOT, 2010). Quando os participantes comentam sobre elementos que os motivam e proporcionam satisfação no trabalho observa-se a perspectiva de mudança na organização do trabalho. Ao obter êxito através de seu exercício profissional e/ ou lançando mão de estratégias diversas no sentido de interferir positivamente sobre as condições de trabalho constatadas, observa-se a ampliação do poder de adir dos Técnicos. O fluxo de informações partindo dos Técnicos para as instâncias decisórias da empresa também é um fator dificultador presente no dia a dia dos TST. O Técnico identifica situações de risco à saúde dos operadores, mas se percebe impedido para efetuar as mudanças necessárias. Llory (1999), ao tratar sobre sistemas complexos, comenta o rótulo de “transmissor de más notícias” atribuído aos profissionais da prevenção pela alta hierarquia da empresa, dado que constantemente trazem as disfunções presentes no sistema, riscos, necessidade de intervenções dispendiosas etc. A comunicação deficitária, além de limitar ações preventivas, implica sobre as relações sociais de trabalho dos Técnicos, dado que a direção da empresa, ao taxá-los dessa maneira, legitima tal rótulo dentro do meio ambiente de trabalho. A partir do discurso dos participantes apreendese que, a despeito de exercer função essencial na prevenção, não há nos contratos de trabalho ou negociações coletivas medidas de proteção contra a despedida desmotivada. Cabe destaque também à rotatividade e fragilidade de seu contrato de trabalho, contrato comum regido pela Consolidação de Leis do Trabalho (CLT), por sua vez caracterizado como um contrato individual de trabalho, que mesmo regulado e protegido minimamente pelo Estado, permanece ainda um contrato unilateral, onde impera livre a vontade do empregador (FARIA, 1993; NASCIMENTO, 1991). Foram mencionados a alta rotatividade de emprego na categoria e sentimentos negativos relacionados ao medo do desemprego, constatados por todos. Tal situação fragiliza sobremaneira a autonomia e continuidade de ações de prevenção desses profissionais, havendo constrangimento profissional e também pessoal – por serem chefes de família – para aceitarem as condições de trabalho da forma como se apresentem. Pensando a esse respeito, seria interessante a mudança no vínculo empregatício dos profissionais de saúde e segurança do trabalho, dado que, da forma corrente, a atitude dos 145 profissionais os coloca em conflito social com a empresa (GUÉRIN et al., 2001), confronto no qual as objetivos privados (interesses das empresas) se sobrepõem ao benefício da coletividade. À semelhança do que se observa em outros países, o duplo vínculo – Estado e empresa – ou um vínculo protegido contra a dispensa imotivada, permitiria a ampliação da margem de ação desses profissionais em benefício da prevenção. Ao debaterem a respeito de elementos que contribuem positivamente ao bom desempenho de sua função, os participantes remetem à dimensão individual, atribuindo resultados positivos como decorrentes de características pessoais como persistência e “jogo de cintura”: “A pessoa tem que ter uma perseverança muito grande”, “Tem que tomar banho de vaselina todo dia”. Peeters et al. (2003) também encontraram entre profissionais de SST, brasileiros e franceses, definições referentes a atributos intraindividuais, tidas como de grande importância para um desempenho de sucesso. Interessante notar que o estabelecimento de metas de produtividade é mais comumente observado como parte integrante do universo de trabalho do operador de linha de produção. Em literatura, como bem discutem Assunção e Lima (2003), tentativas de aliar condições satisfatórias de trabalho e alta produtividade acabam privilegiando o segundo aspecto em detrimento do primeiro. Os sentimentos de medo e autoculpabilização decorrem em especial quando da ocorrência de acidentes de trabalho com operadores. Tanto pela sensação de impotência para intervenção nas condições de trabalho precárias dos operadores como pela responsabilidade que recai sobre o TST no caso de AT grave ou fatal. Dentro dessa problemática, o TST é substancialmente limitado para intervir sobre os processos produtivos no sentido da melhoria das condições de trabalho no chão de fábrica. Quanto à metodologia aplicada, a Análise Coletiva do Trabalho se mostrou uma técnica bastante válida para se conhecer o trabalho da categoria pesquisada. Em se tratando de uma categoria profissional com vínculo com o setor privado, consideramos importante o fato de a ACT preconizar a minimização da possibilidade de identificação dos participantes pelas empresas contratantes, com o intuito de evitar o constrangimento dos trabalhadores. Algumas medidas são adotadas nesse sentido, como a participação voluntária, garantia de anonimato e escolha de ambiente para a realização dos grupos externos ao do trabalho; oferecendo segurança aos participantes, contribuindo para o estabelecimento de confiança entre pesquisadores e sujeitos e favorecendo uma interlocução aberta. Em especial, dado que, conforme foi apresentado, a alta rotatividade de profissionais é uma característica que se faz presente na realidade da categoria. 146 Outro aspecto é a importância dada à fluidez da discussão entre os participantes, sem o estabelecimento de um roteiro fechado e com o mínimo de interferência dos pesquisadores. Nesse sentido, ainda que a técnica não tenha em absoluto caráter terapêutico, acreditamos ser interessante que os pesquisadores tenham experiência prévia em condução de grupos. Tal conhecimento prático facilita na coordenação dos grupos tanto no aspecto mais concreto – na administração do tempo de duração, por exemplo –,como na identificação de situações em que se faz necessário um redirecionamento da discussão. Este estudo apresentou algumas limitações. Os participantes do estudo tinham atuado em empresas de diversos ramos econômicos e mencionaram que os problemas e dificuldades enfrentados são semelhantes em todas as empresas. Ainda assim, para generalizar os achados do presente estudo seria necessária a realização de outros grupos de ACT, com Técnicos exercendo sua função em outras áreas, além da metalúrgica. Com relação à técnica utilizada, os grupos foram realizados após evento direcionado aos profissionais de saúde e segurança do trabalho. Tal estratégia se deveu à preocupação de preservar a identidade dos participantes. No entanto, tivemos poucos Técnicos voluntários. Uma maior adesão enriqueceria as discussões e, talvez, possibilitaria aprofundamento em alguns tópicos interessantes, como por exemplo, a questão da drogadição, trazida em um dos grupos. Considerações finais A partir do presente estudo foi possível conhecer o conteúdo material e imaterial do trabalho cotidiano dos Técnicos de Segurança e as percepções desses profissionais a respeito de seu exercício profissional. Dentre os profissionais de saúde e segurança, a categoria possui obrigatoriamente carga horária mais extensa – 40 horas semanais – o que, somado às atribuições da categoria, possibilita contato mais próximo com a linha de produção e os operadores quando em comparação com os demais membros do SESMT. Entretanto, ainda que tenha uma função técnica, é subordinado ao coordenador do SESMT em empresas de grande porte, cargo ocupado pelo Engenheiro ou Médico do Trabalho, ou responde diretamente ao proprietário, no caso de empresas menores. O fato de não possuir poder decisório foi mencionado pelos Técnicos como um elemento limitante da prática profissional. A despeito de ter seu vínculo com uma organização produtiva particular, os Técnicos de Segurança do Trabalho realizam uma atividade de caráter público, tendo por finalidade maior a saúde de uma coletividade composta não apenas por trabalhadores da empresa Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 136-149, 2014 contratante, pois um acidente ocorrido em uma empresa metalúrgica pode ter grande impacto sobre a população de toda uma localidade, não se limitando portanto ao ambiente físico da empresa. O desvio de função do Técnico de Segurança é algo corrente nas empresas, tendo sido trazido por quase que a totalidade dos participantes. Outro aspecto trazido foi a inserção do Técnico na empresa por determinação legal e não por uma autêntica política preventiva por parte dessas corporações. A prioridade dada à obtenção de lucros e resultados econômicos muitas vezes ocorre em detrimento dos aspectos de saúde, segurança e meio ambiente. Nesse sentido, a atuação preventiva implica na gestão contínua de conflitos tanto com trabalhadores como com gestores, sendo o Técnico visto como um elemento que restringe a produção. A partir dessas percepções trazidas pelos Técnicos é possível concluir que a categoria tem inserção frágil na política de segurança das empresas e que seu cotidiano de trabalho é fortemente marcado por um “poder de agir” limitado ou mesmo impedido. Na visão dos Técnicos, tal margem de ação limitada é causa de sofrimento para os profissionais da categoria. A natureza do trabalho de prevenção, por suas características conflituosas, somada à vivência constante de sentimentos de ansiedade e insatisfação, pode acarretar em adoecimento psíquico. A segurança e saúde dos trabalhadores como campo de atuação não se restringe ao ambiente interno das empresas. Ainda que o Técnico de Segurança do Trabalho seja um agente com importância singular nos ambientes de trabalho, profissionais de órgãos públicos compartilham o mesmo objetivo; não apenas auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, mas também profissionais da área da saúde como, por exemplo, os dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador. Dessa maneira, uma maior aproximação e aliança entre profissionais dos SESMT e os agentes públicos da área de saúde e segurança contribuiria para a ampliação do “poder de agir” de todos, no sentido da melhoria das condições de trabalho nas empresas. Contribuições de autoria Inoue, K. S. Y.: delineamento do projeto, levantamento e análise de dados, elaboração do manuscrito. Vilela, R. A. G.: delineamento do projeto, revisão crítica da versão enviada para publicação. Referências ALMEIDA, I. M. Construindo a culpa e evitando a prevenção: Caminhos da investigação de acidentes do trabalho em empresas de município de porte médio. 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Resumo 1 Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Departamento de Endemias Samuel Pessoa. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 2 Contato: José Augusto Pina E-mail: [email protected] Artigo elaborado com base na tese de doutorado de José Augusto Pina intitulada Intensificação do trabalho e saúde dos trabalhadores na indústria automobilística: estudo de caso na Mercedes Benz do Brasil, São Bernardo do Campo, defendida na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, em 2012. Trabalho não apresentado em reunião científica. O trabalho não contou com financiamento. Os autores declaram não haver conflitos de interesse. Recebido: 22/02/2013 Revisado: 12/03/2014 Aprovado: 13/03/2014 150 Objetivo: construir uma definição conceitual para o processo intensificação do trabalho e saúde do trabalhador enquanto um objeto de estudo. Métodos: a abordagem teórica baseia-se no materialismo histórico que, na Saúde Coletiva/ Saúde do Trabalhador, encontra sua expressão na determinação social do processo saúde-doença. A discussão se apoia na recente produção de conhecimento científico sobre essa problemática estruturada em dois eixos: intensificação do trabalho e intensificação do trabalho e saúde dos trabalhadores. Discussão: a análise mostrou que a intensificação do trabalho está implicada em práticas de exploração como o prolongamento da jornada, o intenso ritmo de trabalho e a administração por estresse e, ao mesmo tempo, de expropriação do saber do trabalhador pela gerência, isto é, de suas capacidades físicas, psíquicas e intelectuais. Esses processos determinam uma pluralidade de agravos à saúde e na manifestação do desgaste e do sofrimento difuso dos trabalhadores. Conceitualmente, o objeto intensificação do trabalho e saúde do trabalhador pode ser definido e estudado nas práticas específicas de exploração e expropriação do saber do trabalhador tendentes a enfraquecer sua capacidade coletiva para proteger a saúde e para questionar as determinações dos problemas e agravos à saúde. Palavras-chave: intensificação do trabalho e saúde do trabalhador; Saúde do Trabalhador; administração por estresse; sofrimento difuso; penosidade no trabalho. Abstract Objective: to construct a conceptual definition of the work intensification process and workers’ health as an object of study. Methods: the theoretical approach is based on the historical materialism, which, in the field of Collective Health/ Worker’s Health, is expressed on the social determination of the health-disease process. The discussion is grounded on the recent scientific knowledge production on this issue, structured on two axes: work intensification, and work intensification and workers’ health. Discussion: the analysis showed that labor intensification is associated with exploitation practices, such as longer working hours, intense work pace, management by stress and, at the same time, worker’s knowledge expropriation by the management, i.e., expropriation of their physical, intellectual and psychic capabilities. These processes determine a variety of health problems and the manifestation of wearing down and diffuse suffering among workers. Conceptually, the object “work intensification and workers’ health” can be defined and studied in the exploitation specific practices and worker’s knowledge expropriation, tending to weaken their collective ability to protect health and question the determination of health problems. Keywords: work intensification and workers’ health; Workers’ Health; management by stress; diffuse suffering; penibility at work. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 150-160, 2014 Introdução O processo de intensificação do trabalho em curso nas últimas décadas é um fenômeno global, abrange inúmeras categorias profissionais, em diversos países e setores produtivos de bens e de serviços privados ou públicos. Como problemática contemporânea, a intensificação do trabalho e saúde do trabalhador emerge enquanto um problema científico das condições históricas do desenvolvimento capitalista, a partir da crise dos anos 1970, período em que as mudanças no processo de trabalho geraram uma acentuada piora das condições de trabalho vivenciadas pelos trabalhadores nos EUA e na Europa. Nos EUA, o debate da intensificação do trabalho está relacionado à implantação na indústria do sistema Toyota de produção, criticamente denominado de Management by Stress – administração por estresse (PARKER; SLAUGHTER, 1995). O estresse emerge como instrumento gerencial para manter a pressão permanente sobre os operários e elevar a produtividade. Na Europa, o estudo da intensificação, inclusive apoiado nos inquéritos estatísticos sobre as condições de trabalho a partir da percepção dos trabalhadores, destaca múltiplos aspectos relacionados ao processo de trabalho, à organização sindical e à saúde dos trabalhadores (ASKENAZY et al., 2006). No Brasil, intensificação do trabalho implicada na saúde do trabalhador ainda não constitui um objeto de estudo na Saúde Coletiva. Apenas mais recentemente essa questão emerge como um problema de pesquisa. Registram-se duas importantes iniciativas: o seminário “O processo de intensificação do trabalho sob diferentes olhares”, organizado pela Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), em maio de 2009, e a mesa redonda “Intensificação do trabalho e saúde”, realizada pela Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET), em outubro de 2009. Dado esse contexto, esta pesquisa tem por objetivo construir uma definição conceitual para o processo intensificação do trabalho e saúde do trabalhador enquanto objeto de estudo capaz de delimitar os contornos e os traços por meio dos quais esse objeto se expressa como dimensão particular do processo de trabalho e saúde. na direção da maior complexidade, ou seja, a reflexão evolui da intensificação do trabalho situada no modo de produção capitalista (nível mais elevado de abstração ou das determinações mais gerais) para a intensificação do trabalho e saúde situada nos processos históricos reais de uma formação econômica social (nível mais baixo de abstração, com a incorporação de um número maior de determinações relativamente a um objeto de estudo). A discussão se apoia na recente produção de conhecimento científico sobre essa problemática. Na literatura internacional tomamos como principal fonte os estudos apresentados no seminário (mensal) sobre intensificação do trabalho organizado pelo Centre d’études de l’emploi da França, em Paris, de fevereiro de 2000 a janeiro de 2002, reunidos no livro Organisation et intensité du travail (ASKENAZY et al., 2006). A partir desses trabalhos, selecionamos outros títulos por referência cruzada. Na literatura nacional foram escolhidos estudos a partir do campo da Saúde Coletiva/Saúde do Trabalhador, dado o nosso interesse em demarcar a particularidade da intensificação do trabalho e saúde na problemática da determinação social do processo saúde-doença dos trabalhadores no Brasil. O desenvolvimento do estudo está organizado da seguinte forma: apresentamos um panorama do debate da intensificação do trabalho e saúde dos trabalhadores. Em seguida, analisamos a intensificação do trabalho considerando o processo de trabalho capitalista em seu conjunto, como uma unidade entre a produção imediata e a circulação do capital, com destaque para algumas de suas características contemporâneas. Na seção seguinte, discutimos a intensificação do trabalho na determinação social do processo saúde-doença dos trabalhadores, problematizando alguns limites da abordagem desgaste-reprodução. Por último, nas considerações finais, apresentamos uma síntese da definição conceitual para intensificação do trabalho e saúde do trabalhador. Um panorama do debate da intensificação do trabalho e saúde dos trabalhadores Método Um primeiro aspecto envolvido na definição da intensificação do trabalho é a necessidade de sua diferenciação da produtividade do trabalho, da intensidade do trabalho e do prolongamento do trabalho. O quadro teórico-conceitual aqui apresentado sustenta-se no materialismo histórico que, na Saúde Coletiva, encontra sua expressão na determinação social do processo saúde-doença. Nossa exposição, na esteira de Marx (1984a), encaminha o pensamento De acordo com Barisi (2006), a produtividade representa a capacidade de um determinado trabalho, dotado de intensidade definida, produzir uma quantidade de valor de uso em uma unidade de tempo. Intensidade do trabalho corresponde ao dispêndio de Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 150-160, 2014 151 energia física, mental e psíquica do trabalhador pela realização da atividade em dada unidade de tempo. Para esse mesmo autor, intensificação do trabalho consiste no aumento da intensidade do trabalho, um entendimento comum a outros autores (DAL ROSSO, 2008; FERNEX, 1998). A definição de intensificação como aumento da intensidade do trabalho é sintetizada por Dal Rosso (2008, p. 197) pela expressão “mais trabalho”. O autor invoca Marx (1984a) e argumenta que com a intensificação se obtém uma maior quantidade e/ou uma melhor qualidade dos resultados do trabalho com maior dispêndio de energia do trabalhador no mesmo tempo. Diferentemente, no aumento da produtividade se obtém mais resultados do trabalho com igual dispêndio de energia, no mesmo tempo, e no prolongamento da jornada de trabalho se produzem mais resultados do trabalho com maior dispêndio de energia decorrente da extensão da jornada. Contudo, para Marx (1984a), “mais trabalho” significa mais-valia e representa o trabalho não pago apropriado pelos capitalistas no processo de produção independentemente das modalidades de sua obtenção, a saber: intensificação, produtividade ou prolongamento. Quer dizer, “mais trabalho” representa a característica comum ao processo de exploração do trabalhador no capitalismo e, portanto, não assinala a particularidade da intensificação nesse processo. Definida como aumento do grau de intensidade do trabalho e como maior dispêndio de energia, a intensificação é caracterizada na literatura como um fenômeno puramente biológico ou biopsíquico, então pressuposto em todas as épocas sociais. Perde-se, assim, a dimensão histórica e a forma social particular, tanto do processo de exploração do trabalhador pelo capital e, nesse, da intensificação, quanto do processo saúdedoença dos trabalhadores, assim como a determinação social e histórica do segundo pelo primeiro. Por conseguinte, isoladamente, a análise quantitativa é insuficiente para caracterização da intensificação do trabalho. Para Davezies (2007) e Hatzfeld (2004), o foco principal da análise deve se dirigir às transformações qualitativas do trabalho. Segundo Davezies (2007), o processo de intensificação do trabalho tende a reduzir a capacidade de o trabalhador manter todos os critérios relativos à qualidade do produto/serviço e à qualidade do trabalho em termos do desempenho profissional: de um lado, pode aumentar o risco de acidentes; de outro, pode afetar a identidade do trabalhador manifesto em sentimento de desgosto ou fracasso pessoal com risco para desencadear adoecimento. Hatzfeld (2004) assinala tendências conflitantes quanto à carga de trabalho: as melhorias das condições ergonômicas reduziram o esforço muscular; entretanto, a diminuição do tempo de ciclo (o tempo para realização 152 de uma ou mais operações em um dado posto de trabalho) aumentou o constrangimento para o trabalhador ganhar tempo para si pela autointensificação. O mais importante, ressalta Hatzfeld (2004), é o processo de decomposição cada vez mais refinado de cada tarefa (de suas operações, ações e gestos elementares) alcançado pela gerência ao expropriar/apropriar o “saber prático” do trabalhador, isto é, as capacidades físicas, psíquicas e intelectuais do trabalhador. Expropriação/apropriação é entendida como processo contínuo de assimilação do aprendizado coletivo dos trabalhadores pela gerência para vencer a resistência e obter a mobilização operária no processo de trabalho. É esse processo que permite reduzir o tempo de ciclo, fragmentar as operações e ampliar o trabalho repetitivo. Além disso, a intensificação do trabalho também é pensada como referência a uma diversidade de elementos do processo de trabalho, tais como: a reorganização do tempo de trabalho (QUÉINNEC; BARTHE; VERDIER, 2000), o ritmo de trabalho (GOLLAC; VOLKOFF, 2007), as exigências de polivalência (GORGEU; MATHIEU; PIALOUX, 2006), a gestão por performance (desempenho) do trabalhador (BÁRTOLI; ROCCA, 2006). Esses aspectos serão retomados na próxima seção, inseridos na discussão e caracterização da intensificação do trabalho como dimensão particular do processo de exploração e expropriação do saber do trabalhador. No que se refere à saúde do trabalhador, uma acepção positiva para o trabalho intenso aparece em Clot (2006, p. 315): “[...] um trabalho mais ‘intenso’, fonte de investimentos psíquicos renovados, de reflexão, mobilizador e produtor de sentido é frequentemente um recurso para a saúde”. No entanto, mesmo o autoinvestimento gratificante do trabalhador pode compreender um sofrimento mental. O próprio Clot (2006, p. 317) apreende essa situação ao indicar uma dissociação crescente entre a “intensificação do real do trabalho” e a “intensificação do trabalho realizado”. Trata-se da distinção pela clínica da atividade entre “real da atividade” e “atividade realizada”. No âmbito da primeira se encontra a atividade não realizada, restringida ou cerceada, que não desaparece da perspectiva do trabalhador, pois requisita uma intensa mobilização psíquica que pode ocasionar adoecimento. A acepção de trabalho intenso como fonte de sofrimento e agravos à saúde dos trabalhadores é predominante na literatura. Davezies (2007, p. 32) se refere a um “tripé sintomático da intensificação do trabalho”: a) a impossibilidade de manter um trabalho de boa qualidade; b) o assédio moral ou os conflitos entre os próprios trabalhadores; e c) os múltiplos danos à saúde (acidentes, a invasão do trabalho na vida pessoal, Lesões por Esforços Repetitivos – LER e os transtornos psíquicos). Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 150-160, 2014 Mais recentemente, o estudo da intensificação parece se dirigir à temática das penosidades no trabalho. Segundo Linhart (2011), a penosidade emerge da impossibilidade de o trabalhador lidar e acompanhar as seguidas evoluções que redefinem os contextos de trabalho. Para os trabalhadores, as mudanças mantêm um estado de insegurança e de dependência da empresa e obstruem a possibilidade para vivenciar reflexivamente suas experiências no trabalho. Trata-se da tentativa empreendida pela gerência de evitar que se reconstituam coletivos próprios dos trabalhadores, potencial para ações de resistência e de contestação dos assalariados. No Brasil, pode-se dizer que, a rigor, intensificação do trabalho e saúde ainda não constitui um objeto de pesquisa na Saúde Coletiva/Saúde do Trabalhador, muito embora alguns de seus aspectos apareçam entre os resultados de estudos nessa área. O intenso ritmo de trabalho é o aspecto mais destacado pelos estudos entre os trabalhadores da indústria, especialmente por sua associação aos distúrbios músculo-esqueléticos decorrentes da situação de trabalho com altas demandas psicológicas e baixo controle (FERNANDES; ASSUNÇÃO; CARVALHO, 2010). No corte mecanizado da cana-de-açúcar, segundo Scopinho et al. (1999), o intenso ritmo de trabalho e as longas jornadas aparecem combinados ao trabalho noturno e em turno de revezamento associados às queixas de doenças relacionadas ao sistema cardiovascular e gastrointestinal, como também aos acidentes de trabalho de maior gravidade. No corte manual, o pagamento por produção está na determinação das mortes por excesso de trabalho dos cortadores de cana do Complexo Agroindustrial Canavieiro (ALVES, 2006). Entre os professores, segundo Assunção e Oliveira (2009), o trabalho intenso conforma um sofrimento relacionado a um conflito entre as expectativas por fazer bem o trabalho e as exigências de regras que restringem o tempo, aumentam o volume e a sobreposição de tarefas, além de sua maior complexidade. Esse contexto “[...] teria levado [o professor] a ultrapassar ou a deixar de reconhecer o seu próprio limite” (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009, p. 363) e pode explicar o cansaço físico, vocal e mental do docente e o afastamento por doença, especialmente a alta prevalência de transtornos psíquicos. Da pesquisa de Melo (2007) entre os trabalhadores de serviços de tecnologias da informação e comunicação, algumas dimensões da intensificação do trabalho relacionada ao desgaste mental aparecem como achados e não como ponto de partida, tais como: o aumento do ritmo de trabalho, a exigência de disponibilidade e a realização simultânea de várias atividades implicadas na ampliação da jornada. A força desses resultados faz Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 150-160, 2014 a autora ressaltar a relevância em tratar a intensificação como objeto de pesquisa na Saúde do Trabalhador, isto é, como “[...] a questão que se deveria inquirir com maior consistência, especialmente do ponto de vista dos determinantes e condicionantes das relações trabalho-saúde e do desgaste mental” (MELO, 2007, p. 213-214). Como vimos, no Brasil, a carência de estudos em que o tema da intensificação do trabalho e saúde aparece como objeto específico de investigação se opõe à abundância de estudos em que seus resultados se aproximam ou estão implicados a alguns de seus possíveis contornos. A questão é que esses resultados são tomados como dados quando se trata de problematizálos enquanto objeto de pesquisa. Além disso, a dificuldade em tratar a intensificação do trabalho e saúde enquanto um objeto de estudo está justamente em sua complexidade: nenhum elemento do processo de trabalho parece escapar à intensificação. Tanto mais, pela pluralidade de problemas de saúde implicados na intensificação do trabalho. Portanto, abordar a intensificação do trabalho e saúde como um objeto de pesquisa estruturado requer sua delimitação conceitual, de modo a torná-lo compreensível à luz dos diferentes aspectos relacionados ao processo de trabalho e saúde. Intensificação do trabalho como dimensão particular da exploração e da expropriação do saber do trabalhador Nesta seção vamos avançar na definição da particularidade da intensificação do trabalho implicada ao processo de trabalho capitalista. Intensificação pressupõe aumento da intensidade do trabalho mas sua definição não é redutível a esse aumento; o que se destaca é o processo pelo qual se obtém esse aumento em uma determinada situação concreta. No capitalismo, o processo de trabalho representa o próprio processo de exploração do trabalho. Intensificação do trabalho constitui uma dimensão social particular da exploração, distinta da força produtiva (produtividade) e do prolongamento da jornada de trabalho. Com base em Marx (1984a, b), consideramos cada uma dessas modalidades em relação ao fundamento da exploração, a saber, a mais-valia. Os resultados do processo de trabalho são produtosvalor, esses possuem, além de utilidade social, valor e, além de valor, mais-valia. A mais-valia caracteriza o modo específico segundo o qual, no próprio processo de trabalho, o capitalista constrange o trabalhador e realiza o consumo produtivo de sua capacidade de trabalho de modo a gerar um valor maior do que o valor da força de trabalho. 153 No prolongamento da jornada de trabalho, a extração e a ampliação da mais-valia decorrem da incorporação de um maior quantum de trabalho pelo aumento da grandeza extensiva da jornada expresso no aumento do produto-valor global. Na força produtiva aumentada, mantida a mesma jornada, o mesmo quantum de trabalho proporciona o aumento da mais-valia pela contração absoluta e relativa do valor da força de trabalho, isto é, do tempo de trabalho socialmente necessário para produção dos meios de subsistência para a reprodução do trabalhador. Aqui, uma parte maior da mais-valia é extraída do mesmo produtovalor global em razão da redução do valor da força de trabalho. Diferentemente, na intensificação do trabalho, o aumento da mais-valia resulta da obtenção de um maior quantum de trabalho no mesmo intervalo de tempo pela ampliação do produto-valor global e manutenção do valor absoluto da força de trabalho. A intensificação representa uma dimensão particular da exploração relativa à grandeza intensiva do trabalho e assinala a tendência à redução da porosidade da jornada. A metáfora da porosidade dá a ideia simultaneamente física/abstrata, e biopsíquica/concreta, de que a jornada de trabalho tem densidade, compreende continuidades/descontinuidades e também aberturas/fechamentos: por meio dos “poros” o trabalhador “respira na ação”, no tempo em que trabalha, torna-o mais ou menos denso. (PINA; STOTZ, 2011, p. 171) No entanto, diversas formas de aumentar a extração de mais-valia pela obtenção de um maior quantum de trabalho no mesmo intervalo de tempo seriam possíveis de se combinarem, constituírem e funcionarem. Esse é outro aspecto que limita a definição de intensificação do trabalho apenas como aumento da intensidade, pois não se pode deduzir o processo de seu funcionamento apenas por suas características formais. Assim como fez Marx (1984b, p. 34), é necessário perguntar “como o trabalho é intensificado”? O autor caracterizou a intensificação no processo contraditório e histórico em que se desenvolve e se transforma a produção capitalista. A luta dos trabalhadores pela redução da jornada e a legislação fabril impeliram o capital a acelerar o desenvolvimento das forças produtivas e a intensificação do trabalho. O aperfeiçoamento da maquinaria se desenvolve destruindo o antigo trabalho manufatureiro, bem como o trabalho artesanal. A intensificação emerge como um processo histórico correlato à superação do fundamento da divisão do trabalho manufatureiro, a saber, a expropriação técnica e social do conhecimento exclusivo do trabalhador no manejo de suas habilidades e ferramentas específicas, o que representava a dependência do capital em relação ao trabalhador coletivo combinado, constituído por muitos trabalhadores 154 parciais. Trata-se, da instituição da dinâmica tendente a ampliar a subordinação do trabalhador pelas exigências de aprendizado/reaprendizado e de sua adaptação ao movimento contínuo e acelerado dos meios e dos métodos de produção. A regulação social da jornada não impede a exploração do trabalhador pelo capital, mas impulsiona sua metamorfose. Isso sugere o entendimento da legislação do trabalho, simultaneamente, como obstáculo e como elemento motor da transformação do processo de exploração, na qual se insere a intensificação, sendo o segundo seu aspecto tendencialmente dominante. Até aqui, a discussão da intensificação em relação à extração da mais-valia considerou apenas o processo de produção imediato. A seguir, a intensificação será considerada em relação à taxa de lucro (relação entre a massa de mais-valia e dado capital global) e o estudo amplia-se para o processo de trabalho de conjunto, ou seja, deve pressupor a unidade entre a produção imediata e a circulação do capital (MARX, 1984c). Marx (1984c) mostrou como o movimento do capital se desenvolve de modo contraditório: de um lado, o aumento da força produtiva do trabalho impulsiona a elevação do grau de exploração do trabalhador e com isso da taxa média de lucro e, de outro, com a sucessiva reaplicação do capital, tende, de modo contrário, a influir na queda da taxa de lucro. Isso em razão da elevação da composição orgânica do capital, isto é, o aumento do capital constante (valor global dos meios de produção) relativamente ao capital variável (valor global da força de trabalho). E justamente o prolongamento e a intensificação do trabalho são modalidades que aumentam a exploração e atenuam os efeitos da tendência à queda da taxa de lucro. Dessa perspectiva, esboçamos algumas práticas de intensificação do trabalho como dimensão particular da exploração e expropriação do saber do trabalhador nas condições históricas pós-crise dos anos 1970. Historicamente, a redução da jornada esteve e ainda está acompanhada de injunções para intensificar o trabalho. Nas últimas décadas, os efeitos positivos da redução da jornada são questionados pela adoção de modalidades de flexibilização ou de fragmentação do tempo de trabalho (QUÉINNEC; BARTHE; VERDIER, 2000). Por exemplo, no Brasil, o instrumento legal da compensação de horas (conhecido como banco de horas) pelo período de 12 meses possibilitou promover o prolongamento da jornada e, simultaneamente, a intensificação do trabalho (PINA; STOTZ, 2011). Quer dizer, ao mesmo tempo em que representa uma dimensão particular da exploração relativa à grandeza extensiva do trabalho, portanto, distinta da intensificação, o prolongamento da jornada também pode ser considerado uma forma de intensificar o trabalho. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 150-160, 2014 Quéinnec, Barthe e Verdier (2000) também apontaram outras práticas de reorganização do tempo de trabalho implicadas ao processo de intensificação, dentre as quais: a extensão do número de horas por turno de trabalho (por exemplo, com a mudança de turma do trabalhador) e a dissociação dos tempos dos homens dos períodos de operação das máquinas, por meio da extensão da produção em tempo integral aos sábados, domingos e feriados e em horários noturnos. Nos dois casos, o prolongamento viabiliza a continuidade das operações sem interromper o fluxo produtivo e, com isso, mantém elevado o ritmo de trabalho pela redução ou eliminação dos intervalos (“poros”) intra e interturnos na virada do turno de trabalho. Entre as novas características da intensificação, Gollac e Volkoff (2007) destacam o crescimento do número de trabalhadores submetidos a elevado ritmo de trabalho pela combinação simultânea de exigência industrial, em que o ritmo de trabalho depende de um equipamento automático ou de normas ou de prazos de produção de, no máximo, um dia, e de exigência comercial, em que o ritmo de trabalho depende da demanda. Os estudos de Pina (2012) e de Hatzfeld (2004), apoiados em dados empíricos, indicam que a caracterização do ritmo de trabalho como intenso independe da demanda. Contudo a combinação entre exigência industrial e exigência comercial pode agravar a intensificação do trabalho, uma vez que as flutuações da demanda também atuam na variação do grau em que se processa o intenso ritmo de trabalho, sendo decisivo observar o desenvolvimento concreto da acumulação capitalista. Como assinala Pina (2012), para o caso do processo de trabalho no setor de veículos pesados da indústria automobilística no Brasil, na última década, o crescimento da produção de commodities agrícolas e minerais e a expansão do crédito impulsionaram e, especialmente, alteraram o perfil da demanda na direção da maior participação dos modelos de caminhões pesados e superpesados. Isso acentuou o grau de intensificação do trabalho tanto pela ampliação do prolongamento da jornada, com dias adicionais de trabalho aos sábados, domingos e feriados, quanto pela maior frequência da fabricação e montagem de peças maiores, portanto, com exigências de maior esforço contra a gravidade e postura forçada em situação de constrangimento temporal. Além disso, o estoque mínimo e o número reduzido de trabalhadores tornam o fluxo de produção mais tenso, com a redução do tempo de ciclo da produção/ circulação. Essa maior tensão é a base objetiva em que se processam práticas gerenciais de expropriação do conhecimento do trabalhador implicadas na redução do tempo de ciclo, por exemplo, por meio da interação entre os trabalhadores na forma do trabalho em equipe (CIPOLLA, 2005). De acordo com esse autor, Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 150-160, 2014 parte das funções de supervisão dos trabalhadores, antes concentradas na gerência, emerge e se encontra disseminada no interior do próprio grupo, tais como: acompanhamento do sistema de metas (volume, qualidade, custos) e a gestão de folgas, férias ou outro tipo de absenteísmo. Tarefas de supervisão emanadas do grupo que confrontam a resistência do trabalhador individual e, ao mesmo tempo, solicitam sua mobilização de modo contínuo e intenso. O fluxo tenso da produção também é a base material para a emergência do estresse como instrumento de administração das empresas. A administração por estresse, segundo Parker e Slaughter (1995), tem por objetivo assegurar a manutenção permanente da pressão em todos os pontos e momentos do processo de produção, para que os “problemas” do sistema produtivo tornem-se imediatamente visíveis para a gerência superior. Isso, além de tentar evitar ou reduzir as “folgas” que os trabalhadores conseguem criar para si na jornada, permite à gerência descobrir os pontos considerados “gargalos” e desenvolver mais rapidamente possíveis inovações, reduzir custos e perdas ao criar pressão adicional sobre os trabalhadores para sua correção. Para Gorgeu, Mathieu e Pialoux (2006), o uso intensivo do trabalho se manifesta na exigência de “polivalência”. Entretanto, na administração por estresse, em lugar de “polivalência”, seria melhor falar em rotação ou revezamento de tarefas e postos de trabalho, assim mesmo, dentro de certos limites. A rotação é adotada como treinamento suficiente para reorganizar tarefas e postos, especialmente para dificultar o trabalhador a reter para si conhecimentos de seu posto. A rotação de tarefas se conecta ao uso intensivo da força de trabalho, na medida em que permite a mobilidade interna do trabalhador pelos setores da empresa. A administração por estresse está integrada por uma gestão por performance (BÁRTOLI; ROCCA, 2006), a saber: a mobilização das competências, a gestão por objetivos e a avaliação do trabalhador. Como instrumento gerencial, o estresse solicita a mobilização do trabalhador para disponibilizar sua experiência. Esse procedimento é significativo para a avaliação das competências do trabalhador, centrada mais nos meios por ele mobilizados para realizar as atividades do que propriamente nos resultados. Pode-se dizer que a administração por estresse atualiza a “administração científica” ao enfrentar uma questão central à prática gerencial, a saber: expropriar o conhecimento do trabalhador e empreender sua ativa mobilização no processo de trabalho. Para Taylor (1966, p. 134-36), isso representaria a “publicização” do saber-fazer do trabalhador e a conquista pela gerência do “empenho criador” e da “verdadeira 155 iniciativa do operário”, subsumidos na base técnica e organizacional da empresa. Entretanto, a mobilização subjetiva do trabalhador não é simples efeito derivado da cadeia automática, nem tampouco dos métodos de administração por estresse. Trata-se, mais amplamente, das condições históricas, políticas, jurídicas e ideológicas da correlação de forças entre capital e trabalho, que se expressam concretamente na empresa. Em consequência, pode-se pensar situações nas quais o trabalhador, individual ou coletivamente, confronta a intensificação do trabalho. Para Linhart (2007), nas condições históricas da empresa taylorista-fordista, a existência de coletivos informais de trabalhadores possibilitou a abertura para a ajuda mútua, a solidariedade, o compartilhamento de valores com conotação sindical, política ou profissional vinculados a uma experiência comum. Esses coletivos escapavam das prescrições e estabeleceram outras regras e formas de fazer. Segundo Linhart (2007, p. 102), isso caracterizou uma “participação paradoxal” dos trabalhadores, uma vez que esses coletivos viabilizavam a eficácia produtiva e, ao mesmo tempo, mantinham uma desconfiança da empresa. Diferentemente, a administração por estresse empreende um esforço na direção da “[...] prescrição da subjetividade individual e coletiva dos assalariados” (LINHART, 2007, p. 121), na tentativa de suprimir dos trabalhadores o direito ao distanciamento em relação à racionalidade, à norma e à cultura da empresa. O foco recai mais nos objetivos a atingir, nas exigências de disponibilidade e na mobilização das competências do trabalhador do que na prescrição da tarefa (BÁRTOLI; ROCCA, 2006). Assim, a intensificação do trabalho se caracteriza pelo sistemático confronto às iniciativas individuais e coletivas dos trabalhadores que, de algum modo, representem uma base de resistência efetiva ou potencial à adesão do trabalhador na empresa. Isso tende a despojar a proteção dos danos à saúde e, principalmente, a despojar a capacidade de determinado coletivo de trabalhadores para questionar a determinação social dos agravos à sua saúde. Intensificação do trabalho na determinação do processo saúde-doença dos trabalhadores Como vimos, o processo de intensificação do trabalho corresponde a uma dimensão particular da exploração do trabalhador, processo contraditório e histórico de obtenção de um maior quantum de trabalho em dado período de tempo que se efetiva pela expropriação do conhecimento (experiência) do trabalhador no processo de trabalho. Nesta seção 156 procuramos caracterizar o processo de intensificação do trabalho e saúde na problemática da determinação social do processo saúde-doença dos trabalhadores implicado no processo de trabalho (BREILH, 2010). Comecemos pela contribuição de Laurell e Noriega (1989) ao estudar o processo de trabalho como um modo específico de se trabalhar e de se desgastar no âmbito da reprodução social de dada coletividade de trabalhadores. O conceito de desgaste está referido ao processo de exploração do trabalhador, por conseguinte podemos aproximar os sentidos de desgaste e intensificação do trabalho. A abordagem do desgaste-reprodução denomina de carga de trabalho os elementos que “[...] interatuam dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador” (LAURELL; NORIEGA, 1989, p. 110) e sintetizam a mediação entre o processo de trabalho e o desgaste do trabalhador. Ainda segundo os autores, desgaste é “[...] entendido como a perda da capacidade potencial e/ ou efetiva corporal e psíquica” (LAURELL; NORIEGA, 1989, p. 110). O desgaste pode ou não se manifestar em patologia e não se refere necessariamente a processos irreversíveis. Os elementos implicados no processo de intensificação do trabalho podem ser concebidos por meio da noção de exigências apresentada por Noriega (1993), com as ressalvas indicadas a seguir. Esse autor utiliza exigências para designar os elementos derivados da organização do trabalho e a noção de riscos para designar os elementos derivados dos objetos e dos meios de trabalho, ambas, em substituição à carga de trabalho. Mas, ao estabelecer a distinção entre riscos e exigências, Noriega (1993) repõe o procedimento analítico de identificar e examinar isoladamente os elementos derivados da organização do trabalho e dos objetos e dos meios de trabalho, sem estabelecer suas implicações. Diferentemente dele, sem limitar sua referência à organização do trabalho e reinserir a noção de risco, preservamos o significado mais amplo de exigências, entendidas como os requerimentos impostos aos trabalhadores, derivados dos elementos do processo de trabalho de conjunto, particularmente da intensificação do trabalho, como caracterizados na seção anterior, a exemplo do ritmo de trabalho, do prolongamento da jornada e da administração por estresse. Além disso, embora abandone a denominação carga de trabalho, em Noriega (1993) a noção de exigência ainda mantém o mesmo problema teóricometodológico presente em Laurell e Noriega (1989). Ou seja, especialmente no que se refere às cargas psíquicas, os autores admitem que [...] se pode suportar altos ritmos de trabalho sem maiores problemas enquanto a tarefa permite a Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 150-160, 2014 tomada de decisões, mas quando, pelo contrário, ela está esvaziada de um conteúdo significativo, torna-se estressante. (LAURELL; NORIEGA, 1989, p. 113-14) Essa possibilidade corresponderia ao denominado “trabalho ativo” do modelo Demanda-Controle (D-C) (KARASEK; THEORELL, 1990), inclusive considerado por Garfield (1983) por sua associação negativa com as doenças coronarianas. O modelo D-C emerge e se difunde como resposta à mobilização política dos trabalhadores, nos anos 1960-70, com questionamentos das relações entre trabalho e saúde. O modelo compreende duas dimensões básicas: demanda psicológica e controle, todavia concebidas, cada qual, de forma isolada uma da outra. Tal procedimento nubla a relação entre ambas e de ambas com o processo de trabalho de conjunto. Pelo modelo D-C, quanto mais o trabalhador utiliza suas habilidades, tanto maior seria sua latitude de decisão (controle) no trabalho. Contudo, não necessariamente esses elementos caminham no mesmo sentido. O trabalho na linha de montagem, por exemplo, embora de baixa latitude de decisão, requer muita habilidade (LACOMBLEZ; VÉZINA, 2008). No trabalho em equipe, a gerência transfere ao grupo a decisão quanto à distribuição e à realização das tarefas. No entanto, ainda segundo Lacomblez e Vézina (2008), isso pode implicar em aumento das tarefas e dos constrangimentos para cada trabalhador do grupo e, assim, em maior estresse. O “trabalho ativo” do modelo D-C pode muito bem retratar o perfil de trabalhador preconizado pela administração por estresse (PINA; STOTZ, 2011). Podemos dizer, com base em Breilh (2010), que esse modelo está situado no âmbito dos “determinantes sociais da saúde”, uma vez que sua estruturação repousa nos marcos teóricos da sociologia funcionalista, portanto, diferentemente da “determinação social da saúde”, que tem seu fundamento nas classes sociais em luta, concretizadas nas relações de exploração/resistência dos trabalhadores nas formações sociais capitalistas. Também aqui nos distanciamos da noção de trabalho alienado, definido por Garfield (1983) como a perda do controle do trabalhador em relação ao produto, ao processo de trabalho e aos demais trabalhadores, pois ela desconsidera o papel ativo das representações na prática dos indivíduos e das classes sociais. A mobilização do trabalhador na realização do trabalho se efetiva por meio de uma construção positiva e não se reduz ao constrangimento externo ou à ausência (ou presença) de controle. Subjacente à noção de alienação, as representações do trabalhador são entendidas como mero reflexo da realidade, como ilusória ou como “falsa consciência”. A reversão da alienação, um passo para a “verdadeira Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 150-160, 2014 consciência”, se daria pelo aumento do controle do processo de trabalho pelo trabalhador, por meio de sua participação na empresa capitalista, considerada uma forma embrionária na linha evolutiva em direção ao socialismo (GARFIELD, 1983). Para não limitar a discussão da intensificação do trabalho e saúde a uma eventual dimensão cognitiva sobre a falsa ou verdadeira representação da realidade pelo trabalhador, devemos adentrar o campo das ideologias. Com base em Toledo (2003), ideologia é definida pelos efeitos ou pelo papel ativo que as práticas sociais, conscientes ou não, dos indivíduos e dos agentes sociais em luta assumem na mobilização do trabalhador para legitimar ou questionar a exploração/ expropriação do seu trabalho. Portanto, estamos diante de um campo de disputas e de lutas, política, ideológica e sanitária, implicado na organização/desorganização dos coletivos próprios dos trabalhadores que integram os processos que determinam, respectivamente, seu perfil protetor e seu perfil destrutivo de saúde. Isso porque o processo de intensificação do trabalho e saúde dos trabalhadores põe em destaque, de acordo com Berlinguer (1988), a doença como um sinal, individual e coletivo, ora reprimido ora ignorado ora distorcido ou, ainda, ora parcialmente reconhecido. Para esse autor, a debilidade da ação coletiva contribui para ocultar e distorcer o sinal da doença. O ocultamento do sinal é favorecido por relações políticas, jurídicas e pelo precário domínio do conhecimento sobre determinado processo de adoecimento entre os trabalhadores. A distorção do sinal se manifesta quando a doença não pode mais ser ocultada por sua gravidade, frequência e simultaneidade dos casos e, por isso, abre-se um período de atribuir-lhe causas estranhas às situações de trabalho ou a sua determinação social. Mais amplamente, não apenas as doenças como também os diversos problemas de saúde dos trabalhadores constituem processo de desgaste, um conceito integrador para o campo da saúde mental e trabalho (SELIGMANN-SILVA, 1994). Para essa autora, o desgaste do trabalhador compreenderia três dimensões: a primeira, em termos orgânicos, decorrente dos acidentes de trabalho ou da ação de substâncias tóxicas; uma segunda, pela fadiga crônica; a terceira, pelo desgaste da esperança, que afeta a identidade do trabalhador, atinge seus valores e crenças e pode ferir sua dignidade. Cabe salientar que a identidade do trabalhador deve ser considerada no âmbito da história: projetos, valores e crenças são passíveis de orientar a vida do trabalhador, por exemplo, na direção de sua identificação afetiva com a empresa e podem servir para legitimar práticas desencadeadoras de danos à sua saúde. Portanto, o questionamento coletivo de valores e crenças relativos à racionalidade da empresa pode assumir uma conotação distinta do desgaste 157 da esperança, pois pode permitir aos trabalhadores considerarem o contexto de trabalho pela maior proteção à saúde (PINA, 2012). Além disso, persiste a dificuldade relacionada à carência de indicadores para captar as manifestações do desgaste que se antecipem ao dano à saúde, uma vez que, na maioria das vezes, o desgaste é inespecífico e não se expressa de forma direta. Na tentativa de suprir essa dificuldade, recorremos à noção de sofrimento difuso, de acordo com Fonseca (2007), expresso por meio de queixas inespecíficas e sintomas bastante variados quanto à forma, magnitude, tempo e espaço em que se manifestam e são percebidos pelos trabalhadores, mas dificilmente enquadradas pela nosologia da clínica médica ou pela classificação psiquiátrica clássica. Fonseca (2007) identifica outras nomeações que traduzem ideias semelhantes ao sofrimento difuso, em especial os chamados “transtornos mentais comuns” e o “código dos nervos”. Os “transtornos mentais comuns” podem reunir múltiplos sintomas, tais como: insônia, irritabilidade, nervosismo, dores de cabeça, fadiga, esquecimento, falta de concentração. No “código dos nervos” as fronteiras entre corpo e mente são mais difusas e não estão bem definidas. As perturbações e as queixas dos trabalhadores corresponderiam a uma representação simultânea de sintomas físicos e não físicos. Assim, ressaltamos a relevância de se refletir sobre o modo como os trabalhadores percebem o processo de intensificação do trabalho e suas implicações na saúde. As categorias de pensamento dos trabalhadores, segundo Lopes (1978), colocam em aberto algumas possibilidades: maior adesão ao discurso gerencial, formas abertas de confronto contra o capital e as que expressam formas ambíguas entre adesão e resistência, essa última predominante sobre as anteriores. Trata-se de outra importante questão teóricometodológica, qual seja: o lugar da experiência operária na investigação. Apesar da experiência dos trabalhadores, segundo Laurell e Noriega (1989, p. 310), constituir uma fonte de conhecimento válida para construção do perfil patológico da coletividade de trabalhadores, os autores dão um passo atrás em relação ao Modelo Operário Italiano quando afirmam ser “[...] útil completá-la e reforçá-la [por meio de] uma comprovação de cunho científico tradicional, ou seja, no caso da saúde, quantitativa”. A validade e o reconhecimento da experiência operária ficam subordinados à lógica e ao referencial da “ciência”, ou melhor, das teorias e métodos dominantes nesse campo. A questão é bem mais ampla e não se reduz à denominação similar dos agravos à saúde dos trabalhadores empreendida pelas teorias dominantes sobre trabalho 158 e saúde e pela experiência dos trabalhadores. Como ilustra Sato (1996), ao estabelecer as diferenças entre o que a literatura e o conhecimento dos trabalhadores identificam como trabalho penoso: [...] embora ambos focalizem os mesmos tipos de problemas de saúde – incômodo, sofrimento e esforço –, no caso do conhecimento do trabalhador, o que nucleia o conceito, ou seja, o cerne do problema, é o controle, que remete justamente à relação dos trabalhadores com os contextos de trabalho, não se reduzindo a penosidade apenas à presença desses problemas e sim à condição de sujeito na relação de trabalho, onde o incômodo, o sofrimento e o esforço estão presentes. (SATO, 1996, p. 492) Devido às implicações da noção de controle na literatura, como apontada acima na referência ao modelo D-C, o que a autora nomeia como “controle” ou a “condição de sujeito” seria mais pertinente designar como a capacidade coletiva do trabalhador para proteger sua saúde e, principalmente, para questionar as condições de determinação dos problemas e dos agravos à saúde. Também consideramos que a penosidade precisa ser pensada na dimensão do coletivo, inclusive quando se refere à ação individual. Como assinala Clot (2010), a perda, a ausência ou o enfraquecimento da dimensão coletiva na ação individual pode ser o fundamento da maioria das experiências de penosidade no trabalho atualmente suportadas pelos trabalhadores. Essas ponderações permitem entender a complexidade da intensificação do trabalho e saúde do trabalhador como objeto de estudo na Saúde Coletiva/Saúde do Trabalhador, a saber, não reduzi-lo à identificação de resultados em termos de desgaste, fadiga, acidentes ou doenças produzidas pela intensificação do trabalho. Por conseguinte, ressaltamos dois aspectos para o estudo da intensificação do trabalho e saúde do trabalhador: o primeiro, as práticas de exploração e expropriação do saber (experiência), concretizadas em exigências de intensificação do trabalho, confrontam a capacidade coletiva do trabalhador para agir em direção contrária à racionalidade, à cultura e ao poder da gestão na empresa. Cabe, portanto, observar essa dinâmica, sobretudo a percepção, mais ou menos difusa, de perda, enfraquecimento ou ausência do coletivo, dadas suas implicações para os problemas e agravos à saúde. O segundo aspecto a observar é a produção de um tipo de desgaste mental (que mereceria talvez uma denominação específica) devido à própria percepção de perda, enfraquecimento ou ausência do coletivo. Ou seja, a percepção da impotência para enfrentar as exigências gerenciais, por si só, e não apenas suas consequências deletérias Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 150-160, 2014 à saúde, está a desencadear múltiplas manifestações de sofrimento difuso. Considerações finais Neste estudo propusemos elaborar uma definição conceitual para o processo intensificação do trabalho e saúde do trabalhador enquanto objeto de estudo no campo da Saúde Coletiva, especificamente na área de Saúde do Trabalhador. Vimos que intensificação do trabalho e saúde do trabalhador como objeto de estudo está demarcado por sua complexidade: de um lado, nenhum elemento do processo de trabalho parece escapar à intensificação do trabalho e, de outro, pela pluralidade de problemas e agravos à saúde implicados na intensificação do trabalho. No desenvolvimento do estudo situamos a problemática da intensificação do trabalho e saúde do trabalhador no ponto central da determinação social do processo saúde-doença dos trabalhadores implicado ao processo de trabalho. De modo sintético, intensificação do trabalho é entendida como uma dimensão social particular da exploração do trabalhador, resultado e processo histórico de obtenção de um maior quantum de trabalho por unidade de tempo, que se efetiva pela expropriação do conhecimento técnico e social do trabalhador no processo de trabalho. Tal conhecimento é condição básica de proteção da saúde dos trabalhadores. Conceitualmente, o objeto intensificação do trabalho e saúde do trabalhador pode ser definido e estudado nas práticas específicas de exploração/expropriação tendentes a enfraquecer a capacidade coletiva do trabalhador, para proteger sua saúde e, principalmente, para questionar as determinações dos problemas e dos agravos à sua saúde. Acreditamos que este estudo contribui para o conhecimento científico do processo de trabalho e saúde por estabelecer a conexão lógica e histórica da intensificação do trabalho e saúde do trabalhador, inclusive por trazer subsídios à elaboração de futuras pesquisas empíricas para abordar essa temática a partir da percepção dos trabalhadores. Contribuições de autoria PINA, J. A.: responsável pela definição do marco teórico, planejamento, realização da pesquisa e pela redação do artigo. STOTZ, E. N.: participou da orientação geral da pesquisa, contribuiu na estruturação e na revisão do manuscrito. Referências ALVES, F. Por que morrem os cortadores de cana? 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Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 150-160, 2014 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional ISSN: 0303-7657 (versão impressa) http://dx.doi.org/10.1590/0303-7657000077113 Andrezza Graziella Veríssimo Pontes 1,2 Artigo Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental: potencialidades e desafios da articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais Raquel Maria Rigotto 2 Occupational Health and Environmental Health: potentials and challenges of the relationship between the university, the Brazilian Health System and social movements 1 Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Faculdade de Enfermagem, Grupo de Pesquisa Marcos Teóricos Metodológicos Reorientadores da Educação e do Trabalho em Saúde, Mossoró, RN, Brasil. 2 Universidade Federal do Ceará, Departamento de Saúde Comunitária, Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde - TRAMAS, Fortaleza, CE, Brasil. Contato Andrezza Graziella Veríssimo Pontes E-mail: [email protected] Este trabalho foi apresentado no X Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, em Porto Alegre, em 2012 e publicado nos anais na forma de resumo. Artigo elaborado com base na dissertação de mestrado em Saúde Pública de Andrezza Graziella Veríssimo Pontes intitulada Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental: articulando Universidade, SUS e Movimentos Sociais em território rural, defendida em 2012 na Universidade Federal do Ceará. As autoras declaram não haver conflitos de interesse e que o trabalho não foi subvencionado. Recebido: 23/04/2013 Revisado: 28/04/2014 Aprovado: 29/04/2014 Resumo Objetivo: analisar dificuldades e potencialidades da articulação entre universidade, Sistema Único de Saúde (SUS) e movimentos sociais para fomentar a incorporação de abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental nessas instâncias. Métodos: pesquisa-ação realizada em território rural do Nordeste brasileiro, com grupo de atores ligados ao SUS, à universidade e a movimentos sociais. Desenvolveram-se estudos em campo, entrevistas semiestruturadas, oficinas e seminários. Resultados: a articulação proposta mostrou-se relevante e potencializada pela oportunidade de diálogo interdisciplinar e intersetorial e de troca de experiências que contribuíram para: a identificação das relações entre produção-trabalho-ambiente-saúde e das necessidades de saúde que envolvem trabalho e ambiente em território rural; a construção coletiva de um plano de ação para intervir sobre a realidade estudada; a ressignificação do trabalho acadêmico e em saúde; e a desconstrução de mitos da ideologia do desenvolvimento junto aos atores sociais envolvidos. Identificaram-se como atores relevantes professores que desenvolvem pensamento crítico, movimentos sociais autônomos e agentes comunitários de saúde. Conclusão: a articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais mostrou ser um caminho potencial para o fortalecimento da práxis da Saúde do Trabalhador e Ambiental. Palavras-chave: Saúde do Trabalhador; Saúde Ambiental; Sistema Único de Saúde; participação social; instituições de ensino superior. Abstract Objective: to analyze the difficulties and potentials of articulation between the University, the Unified Health System (SUS) and social movements in order to promote the incorporation of integrated approach to Occupational Health and Environmental Health in these instances. Methods: action research conducted in the rural area of northeastern Brazil with a group of actors linked to the SUS, the University and social movements. Field studies, semi-structured interviews, workshops and thematic seminars were carried out. Results: the proposed articulation has proved to be relevant and enhanced by the opportunity for interdisciplinary and intersectoral dialogue, as well as by the exchange of experiences, which contributed to the identification of relationships between production-workenvironment-health and health needs that involve work and environment in rural territory; the collective construction of an action plan aiming to intervene in this reality; the redefinition of academic and health work; and to deconstruct the myths of the development ideology facing the social actors involved. Professors who develop critical thinking, autonomous social movements and community health workers were identified as relevant actors. Conclusion: The articulation between university, SUS and social movements is a potential way to strengthen the practice of Occupational and Environmental Health. Keywords: Occupational Health; Environmental Health; Unified Health System; social participation; higher education institutions. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 161 Introdução As relações dos processos produtivos com os territórios em que se inserem frequentemente trazem implicações tanto para a saúde de trabalhadores diretamente envolvidos como para o ambiente e as comunidades do entorno ou mais distantes e geram novas necessidades de saúde, pautadas no âmbito da Saúde Coletiva. Isso aponta para a importância da aproximação entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental (PORTO, 2005; RIGOTTO, 2003; TAMBELLINI; CÂMARA, 1998), construídas até agora como campos disciplinares distintos e objetos de políticas públicas específicas. Como possibilidade de promover a saúde do trabalhador e a sustentabilidade/equidade socioambiental, o Sistema Único de Saúde (SUS) e a universidade estão desafiados a incorporar uma abordagem articulada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental, com base nas categorias teóricas produção, trabalho, ambiente e saúde e na análise de suas inter-relações (PONTES, 2012). A Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT) (BRASIL, 2012) reconhece que essas categorias são indissociáveis, o que significa que a saúde dos trabalhadores e da população geral está intrinsecamente relacionada às formas de produção e consumo e de exploração dos bens naturais e aos seus impactos no ambiente, nele compreendido o do trabalho. Desde a Constituição Federal de 1988 é competência do Sistema Único de Saúde executar ações de saúde do trabalhador e colaborar para a proteção do meio ambiente (BRASIL, 2013). A partir de então, instrumentos normativos, sobretudo no campo da Saúde do Trabalhador, vêm sendo lançados com o objetivo de regulamentar a implementação da saúde do trabalhador e ambiental no SUS. Esse sistema, para garantir a atenção integral aos trabalhadores, deve transcender uma abordagem individual e curativa, propondo abordagens interdisciplinares, intersetoriais e de fortalecimento da sociedade, na perspectiva da promoção da saúde do trabalhador (LOURENÇO; BERTANI, 2007). Entretanto, apesar do avanço legal, as implicações para a saúde, o trabalho e o ambiente decorrentes dos processos de produção não estão claras para os profissionais do sistema de saúde (PESSOA, 2010; EVANGELISTA et al., 2011), o que dificulta o reconhecimento das necessidades de saúde relacionadas a processos produtivos e ambientais. Nesse sentido, a universidade, enquanto espaço de formação dos trabalhadores do SUS e de produção de conhecimento em Saúde do Trabalhador e Ambiental, tem o desafio de realizar ensino, pesquisa e extensão sobre bases teóricas e metodológicas que permitam a inserção dessa abordagem integrada. Afinal, “[...] 162 o ensino em saúde guarda o mandato público de formar segundo as necessidades sociais por saúde da população e do sistema de saúde [...]” (CECCIM; FEUERWERKER, 2004, p. 47). A compreensão dessa abordagem requer marco teórico consistente, interdisciplinaridade e intersetorialidade, de modo que é fundamental o saber dos trabalhadores (LACAZ, 2007) e de movimentos sociais implicados com questões que envolvem trabalho, saúde e ambiente (BRASIL, 2012), como se observa: [...] a construção e a implementação da Política Nacional de Saúde Ambiental devem se dar a partir de uma ampla articulação com diversos segmentos, em especial com os movimentos sociais [...] (BRASIL, 2007, p. 19) Para Pessoa e Rigotto (2012, p. 75), “[...] avançar no diálogo dos serviços de saúde com movimentos sociais e trabalhadores pode aproximar a compreensão das necessidades de saúde dos trabalhadores”. Portanto, a universidade, o SUS e os movimentos sociais são atores diretamente implicados com a Saúde do Trabalhador e Ambiental. Para que o Sistema Único de Saúde efetive práticas em consonância com seu aporte teórico-legal, carece de trabalhadores de saúde formados para esse fim, função desempenhada por ele e pela universidade. Essa, além da formação, é responsável pela produção de conhecimento que deverá, entre outros intuitos, subsidiar as práticas dos serviços de saúde desse sistema e atender as necessidades sociais da população. Essa formação e produção de conhecimento, quando partem de demandas de movimentos sociais, de trabalhadores e de comunidades, e quando são realizadas com/para eles, podem ser potencializadas e lhes voltar como estratégias de fortalecimento dos sujeitos na busca por seus direitos. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo analisar as dificuldades e potencialidades da articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais para fomentar a incorporação de abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental nessas instâncias. Metodologia Pesquisa de natureza qualitativa (MINAYO, 2010) cujo desenho de estudo foi a pesquisa-ação, definida como [...] um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo e colaborativo [...] (THIOLLENT, 2008, p. 16) Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 A pesquisa-ação encontra um contexto favorável quando pesquisadores elegem investigações nas quais as pessoas implicadas tenham algo a dizer e a fazer e quando pretendem desempenhar um papel ativo na própria realidade dos fatos observados. Porém se salienta que ela não se limita apenas à ação ou à participação; é necessário produzir conhecimentos, adquirir experiência, contribuir para a discussão, ou fazer avançar o debate acerca das questões abordadas (THIOLLENT, 2008). Nesta pesquisa, sujeitos do SUS, da universidade e dos movimentos sociais estiveram juntos, em processo de construção coletiva, para pensar e agir na transformação da realidade de grupos vulnerabilizados, e tiveram como base uma abordagem articulada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental. O local de estudo foi o território rural de um município do Nordeste brasileiro constituído por 45 comunidades rurais, que totalizavam 1.649 famílias residentes. A rede pública municipal de serviços do SUS estava distribuída em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), um hospital regional, um centro de saúde e seis equipes do Programa Saúde da Família (PSF): quatro na zona rural e duas na urbana. Apresentava uma sociedade civil rural bastante organizada, com participação ativa na vida política. Destacavam-se o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, o Fórum dos Agricultores Familiares (DANTAS et al., 2007) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) na luta pela reforma agrária em âmbito regional. O território rural estudado vivenciava um conflito socioambiental caracterizado por um contexto de resistência de movimentos sociais e camponeses que praticavam agricultura familiar de base agroecológica à instalação de um Projeto de Irrigação. Os perímetros irrigados são áreas delimitadas pelo Estado para implantação de projetos públicos de agricultura irrigada que, em geral, possuem significativo potencial agricultável, caracterizado por solos férteis, presença hídrica, clima favorável, abundante força de trabalho e por infraestrutura implementada que, entre outros elementos, comporta canais e piscinas de irrigação (PONTES et al., 2012). Esses perímetros públicos vêm contribuindo para uma dupla desterritorialização dos agricultores familiares, pelo fato de parte dos desapropriados não receberem lotes e serem expulsos de suas áreas e pela imposição do modelo de produção aos agricultores familiares com base no paradigma da revolução verde, o qual, atualmente, é protagonizado pelo agronegócio (DINIZ, 2002). Estudos demonstram as consequências do agronegócio para o trabalho, o ambiente e a saúde, tais como: a concentração de terras e os deslocamentos compulsórios da população; a violência; o comprometimento da segurança alimentar; mudanças nas práticas sociais e laços de vida comunitária; Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 imposição de novos hábitos culturais; mudanças na dinâmica de cidades vizinhas, com a formação de “favelas” rurais; uso intensivo de novas tecnologias de mecanização e de insumos (fertilizantes e agrotóxicos); relações e condições de trabalho precarizadas com baixa remuneração, descumprimento da legislação trabalhista, intensificação do trabalho, exposição a situações de risco à saúde; redução da biodiversidade e dos serviços ambientais; degradação do solo pela monocultura e risco de desertificação; elevado consumo de água; contaminação do ar e de águas superficiais e subterrâneas por fertilizantes e agrotóxicos; exposição dos trabalhadores e das comunidades do entorno das fazendas à contaminação pelos agrotóxicos utilizados de forma intensiva (RIGOTTO; TEIXEIRA, 2009). Dentro desse contexto, o grupo da pesquisa-ação constituiu-se com pessoas da universidade, do SUS e dos movimentos sociais. Os critérios de seleção desses sujeitos foram: da universidade, ser docente das universidades públicas mais próximas do local de estudo e de áreas com ligação direta ou indireta com a temática, como Enfermagem, Medicina, Biologia, Ciências Sociais, Serviço Social, Geografia, Pedagogia, Direito e Agronomia; do SUS, trabalhadores da rede de serviços do sistema público de saúde do município de estudo, como de equipes de Programa Saúde da Família, de vigilância à saúde, de hospital e da coordenação de PSF, e das instâncias de saúde do trabalhador (Centro de Referência em Saúde do Trabalhador – Cerest regional – e Núcleo Regional de Saúde do Trabalhador – NURSAT) que tivessem o local de estudo como área de abrangência; dos movimentos sociais, os que estivessem interessados e/ou envolvidos com a questão rural no território abordado. Na fase exploratória, com o intuito de identificar a viabilidade da pesquisa-ação, foram realizadas visitas de aproximação com o território do estudo e pesquisa documental sobre ele, feitos contatos com potenciais participantes, apresentações do projeto de pesquisa às instituições, para identificar o interesse e pessoas para participar do grupo de pesquisa-ação. Tais elementos possibilitaram a constituição do grupo de pesquisa, composto por: seis agentes comunitários de saúde (ACS) de uma equipe de PSF da zona rural, dois trabalhadores do CEREST, dois dirigentes do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, um membro da CPT e um professor universitário do curso de Agronomia, totalizando 12 participantes. Registra-se que, em atendimento à Resolução 466 do Conselho Nacional de Saúde, esta pesquisa foi submetida à avaliação do Comitê de Ética na Pesquisa (COMEP) da Universidade Federal do Ceará e aprovada sob Protocolo n. 244/11. Os trabalhos do grupo de pesquisa ocorreram em três meses, com realização de seis encontros 163 Quadro 1 Descrição dos passos, técnicas e instrumentos de pesquisa Encontro Técnica de pesquisa 1º Oficina Roteiro norteador Objetivou formar o grupo de pesquisa, com apresentação dos participantes, exposição de motivos e expectativas, bem como pactuação de cronograma, atividades e compromissos. 2º Estudo em campo Entrevistas semiestruturadas Roteiro norteador de territorialização em saúde, incluindo questões de produção, trabalho, ambiente e saúde. Consistiu numa visita do grupo a outro município para troca de experiências com território já transformado pelo agronegócio. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com moradores, momentos de discussão com professores e extrabalhadores do agronegócio e visita in locu ao entorno de empresas e a comunidades atingidas pelo processo produtivo. 3º Estudo em campo Roteiro norteador de territorialização em saúde, incluindo questões de produção, trabalho, ambiente e saúde. Realização de estudos em campo no território investigado na pesquisa, com visita in locu e momento de discussão com comunidades rurais residentes sobre suas condições de vida, trabalho, ambiente e saúde. 4º Oficina Roteiro norteador de territorialização em saúde, incluindo questões de produção, trabalho, ambiente e saúde. Discussão no grupo de pesquisa dos estudos em campo e sistematização das informações, para que cada integrante compartilhasse sua visão e pudesse compreender e caracterizar as inter-relações entre produção, trabalho, ambiente e saúde no território rural estudado. 5º Oficina Roteiro norteador para identificação das necessidades de saúde das comunidades rurais estudadas. Identificação, pelo grupo de pesquisa, das necessidades de saúde das comunidades rurais estudadas. Seminário Temas norteadores. Seminário em que cada ator do grupo de pesquisa descreveu suas atribuições e ações no campo da Saúde do Trabalhador e Ambiental. Oficina Roteiro norteador para a construção do Plano de Ação. Oficina de construção coletiva do Plano de Ação para contribuir com a Saúde do Trabalhador e Ambiental a partir do contexto de produção, trabalho, ambiente e saúde e das necessidades de saúde identificadas. 6º Instrumento de pesquisa Descrição Roteiro norteador com questões Avaliação coletiva do processo da pesquisa. de avaliação da pesquisa. quinzenais, que duraram, em média, oito horas cada um, conforme descrição do Quadro 1. Todos esses encontros foram gravados e transcritos, e resultaram em 180 páginas impressas em espaçamento simples, que consistiram no material de análise. A partir de leituras sucessivas, identificaram-se quatro macrocategorias analíticas: a constituição do grupo de pesquisa; as relações produção-trabalho-ambiente-saúde no território rural estudado; as necessidades de saúde de comunidades rurais; e a articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais para incorporação de uma abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Ambiental. Para analisar os resultados referentes a essa última categoria analítica, foco deste artigo, agruparam-se as falas nela classificadas visando dialogar com o referencial teórico construído, na perspectiva de realizar um movimento de articulação das partes para o todo e do todo para as partes, identificando contradições, conflitos e mediações (KOSIK, 1976). A partir disso, evidenciaram-se duas categorias analíticas: dificuldades e potencialidades para a incorporação de 164 abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental pela universidade, SUS e movimentos sociais; e os limites e potencialidades da articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais para uma abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental. Resultados e discussão Dificuldades e potencialidades para a incorporação de abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental pela universidade, SUS e movimentos sociais A possibilidade de incorporar abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental não está dada entre todos os sujeitos dos segmentos sociais analisados. A pesquisa evidenciou que, na universidade, os sujeitos com potencial são os professores, sobretudo os que desenvolvem um pensamento crítico; no SUS, Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 sobressaem os ACS; e, nos movimentos sociais, aqueles que são críticos e autônomos e que estão diretamente envolvidos com populações impactadas por processos produtivos e/ou grandes empreendimentos. O caráter contraditório da educação – de possibilitar tanto a manutenção da ordem social vigente, ocultando as contradições sociais por meio de discursos dissimuladores da realidade, como sua descoberta por parte dos dominados, pela apropriação coletiva do saber revelador do real, permitindo que as contradições sejam percebidas e pondo em perigo o saber oficial (JESUS, 1989) – coloca a importância do professor na universidade. Isso porque seus ideais, sua visão de mundo, as correntes teóricas, filosóficas e metodológicas e o tipo de ciência aos quais se filia repercutem em sua prática acadêmica de ensino, pesquisa e extensão. Em outras palavras, o docente possui e/ ou constrói certa autonomia didático-pedagógica e, como diz Tonet (2005), a todo instante está fazendo escolhas fundadas, consciente ou inconscientemente, em valores. Na pesquisa, constatou-se que o professor situado no segundo caso, ou seja, que desenvolve um pensamento crítico e possibilita a desocultação da ordem vigente, tem maior potencial de incorporar essa abordagem. Trata-se de uma decisão ética e política, que pode estar relacionada à história pessoal de cada docente, às oportunidades de acesso a autores e grupos com perspectiva crítica, à coragem de assumir determinadas posturas, à articulação com movimentos sociais, entre outros fatores. O grupo de pesquisa frisou essas questões: Quando a gente vê a preocupação da universi dade, não são nem todos os professores, são alguns. De mil, talvez, se tire 50 ou 70 professores que tenham o interesse de estar fazendo isso com os movimentos sociais. Em qualquer universidade, depende dos professores que estão dando a disciplina. (ACS) Entretanto, esses professores enfrentam uma série de dificuldades no campo científico, já que esse é um espaço de poder no qual se encontram em disputa interesses que podem ser complementares ou antagônicos (BOURDIEU, 2000), premidos pela força do capital, que tenta impor a lógica de sua reprodução (TONET, 2005). Essa assimetria de poder se expressa concretamente no restrito apoio da gestão às iniciativas de docentes filiados a correntes mais críticas; no reducionismo de uma visão da totalidade, resultante da fragmentação da ciência em diferentes campos disciplinares isolados; no pouco incentivo a pesquisas que dialoguem com as demandas de conhecimento dos grupos sociais vulnerabilizados; no distanciamento entre as atividades acadêmicas e a realidade de vida e trabalho da população; na criminalização de pesquisadores cujos estudos explicitem resultados que evidenciem impactos Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 negativos de processos produtivos para o trabalho, o ambiente e a saúde. De acordo com Pereira e Lages (2013), historicamente a formação de trabalhadores de saúde tem sido marcada por um modelo educacional centrado no professor, nas metodologias bancárias e na estrutura curricular baseada em disciplinas, evidenciando a fragmentação e a especialização do conhecimento. Esse modelo forma técnicos competentes mas pouco comprometidos com as políticas públicas de saúde. Trabalhadores da saúde com essa formação, em geral, mostram-se carentes de uma visão crítica da sociedade e da saúde, desconhecedores do SUS, resistentes às mudanças e que tendem a defender o status quo vigente, distanciados do conhecimento crítico em relação a aspectos políticos, sociais e culturais estruturantes do marco teórico da determinação social da saúde (ALMEIDA FILHO, 2013). Para um ensino superior em saúde coerente com o SUS, pensado e construído a partir da reforma sanitária brasileira, é preciso que, além da competência técnica, os sujeitos egressos tenham a oportunidade do engajamento político, do questionamento dos problemas da ordem social vigente, da compreensão das contradições e da viabilização da construção de uma práxis histórica de reestruturação social a partir de sua atuação profissional. É fundamental, portanto, uma formação em saúde orientada por uma pedagogia contra-hegemônica para pensar e agir no sentido da transformação social (PEREIRA; LAGES, 2013). A formação em saúde do trabalhador e ambiental deve estar inserida nesse contexto da formação para o SUS e esse cenário reforça a importância do professor, na universidade, e de suas escolhas teóricas, metodológicas e ideológicas nesse processo. No que se refere ao SUS, percebeu-se que há uma contradição que dificulta a incorporação dessa abordagem: o paradoxo do Estado, que, enquanto sistema público de saúde, é responsável por garantir o direito à saúde e, como condutor do modelo de desenvolvimento, é indutor de processos produtivos que ameaçam os direitos das populações nos territórios atingidos. Também é relevante o contexto de precarização do trabalho dos profissionais do SUS. Na Estratégia Saúde da Família (ESF), isso se caracteriza seja pelas formas de contratação, que geram restrições à autonomia e alta rotatividade entre as equipes, o que compromete o vínculo com o território; seja pelas relações de trabalho, que acabam por fomentar a procura, por parte dos trabalhadores, em especial, médicos e odontólogos, de outros empregos, limitando sua presença no serviço a apenas algumas vezes por semana. Outra dificuldade é a conivência da gestão do sistema com esse cenário, no qual se acrescentam as condições de trabalho precárias pela falta de infraestrutura, de recursos materiais e de trabalhadores. Identificaram-se ainda os limites da formação dos trabalhadores do PSF e de 165 profissionais do CEREST no que toca às questões do trabalho e do ambiente. Esse resultado é semelhante ao da pesquisa de Pessoa (2010), a qual evidenciou que as implicações sociais, culturais e ambientais decorrentes dos processos de produção que alteram o estado de saúde não estão claras para os trabalhadores da saúde. Isso coloca para a universidade e para o SUS o desafio de inserir adequadamente essa abordagem no ensino dos cursos de graduação e pós-graduação, na pesquisa e na extensão da área da Saúde, e na educação permanente em Saúde, como identificado estrategicamente na PNSTT (BRASIL, 2012). Com relação ao CEREST, embora tenha estado presente em toda a pesquisa, notou-se que sua atuação foi tímida diante de sua atribuição central de oferecer apoio matricial, como retaguarda técnica especializada, a toda a rede SUS. São realizadas algumas ações embasadas nas abordagenss da Saúde Ocupacional e da Medicina do Trabalho, que se distinguem da opção do SUS pela Saúde do Trabalhador, sem articulação com a Saúde Ambiental, e com restrição da atuação do órgão aos trabalhadores do setor formal. Ademais, os representantes do CEREST demonstraram falta de clareza sobre o papel da instituição, exemplificada pela incipiência de ações de vigilância em saúde do trabalhador, centrais em suas atribuições. Em parte, isso está relacionado ao receio de entrar em conflito com os gestores municipais, já que essas ações podem interferir nos interesses econômicos e políticos hegemônicos e refletir sobre a arrecadação do município e o patrocínio de campanhas eleitorais (DIAS et al., 2010). Focalizam-se as atividades nos protocolos de atenção à saúde preconizados pelo Ministério da Saúde que, embora importantes, por si somente não dão conta da complexidade dos problemas de saúde decorrentes dos processos produtivos na concretude de cada território. Sofre-se também as implicações da precarização do trabalho e dificuldades para atuar em todos os municípios de sua área de abrangência. Isso traz o desafio de repensar o papel do CEREST e o perfil de seus trabalhadores, de modo a incorporar a abordagem considerada neste artigo. Identificou-se também a necessidade de se reconsiderar os critérios de seleção e a formação dos trabalhadores que compõem essa instância do SUS, ancorando-os no paradigma da Saúde do Trabalhador, com base nos aportes teóricos da Saúde Coletiva. O agente comunitário de saúde destacou-se como o ator do SUS com maior potencial para incorporar a abordagem aqui tratada, provavelmente, pelo fato de morar nas comunidades e vivenciar, em geral, as mesmas dificuldades de vida, trabalho e saúde das pessoas do território em que atua. O vínculo empregatício estável, mediante concurso público, diferentemente de outros trabalhadores do PSF, permite-lhe maior autonomia de se envolver nos conflitos em curso no território. A baixa rotatividade no trabalho aprofunda 166 o vínculo com a comunidade, embora os ACS não estejam a salvo de sofrer pressões e represálias da gestão pública ou mesmo dos agentes econômicos que intervêm no território. Observou-se que, quando estão inseridos no desafiante contexto histórico, social, político e econômico das comunidades em que atuam, esses atores têm mais possibilidades de incorporar as questões de Saúde do Trabalhador e Ambiental e de solidarizar-se com as mobilizações sociais que envolvem diretamente o cotidiano de vida das famílias, no caso estudado, em defesa da agricultura familiar de base agroecológica. Os agentes comunitários de saúde contribuíram intensamente na caracterização dos cenários de produção, trabalho, ambiente e saúde das comunidades rurais e na identificação das necessidades de saúde, o que corroborou estudos, como o de Silva, Dias e Ribeiro (2011), que apontam o papel fundamental dos trabalhadores em questão na Saúde do Trabalhador, no SUS. O fato de ser um ator em potencial do Sistema Único de Saúde é bastante positivo, mas é preciso destacar que o ACS, de forma isolada, não tem condições de atender as necessidades de saúde que envolvem trabalho e ambiente. É preciso que todos os trabalhadores do sistema incorporem isso. Entretanto, a fala a seguir é elucidativa ao revelar o protagonismo dos ACS nesse campo, ao lado do sentimento de desvalorização e de isolamento desses sujeitos perante a equipe de PSF e das dificuldades do sistema público de saúde em trabalhar nessa perspectiva. Quem está preocupado com a saúde do trabalhador e do meio ambiente? Realmente, é o SUS? É, mas são os agentes de saúde. Quando a coisa dá certo, quem é que vai aparecer? É o SUS, é a Secretaria de Saúde, mas os agentes não. Mas, quando a coisa dá errada, são os agentes de saúde que são os culpados. Eu acho que é muito difícil para nós, do SUS. Nós vamos tentar o que for do alcance dos agentes de saúde da nossa equipe. Então, nós vamos fazer a nossa parte. Nós vamos convidar a equipe para participar? Vamos. Agora, terá momentos que vamos contar só com nós, agentes, e a comunidade. A verdade é essa, então, a gente tem que ter coragem para enfrentar [...] Porque nós somos funcionários, nós podemos dizer que vamos participar. Agora eles, que são contratados por quatro anos, eles são de ano em ano que renovam o contrato, então, eles não vão fazer. (ACS) A fala acima revela ainda a ausência, no grupo de pesquisa, embora tenham sido convidados, de outros trabalhadores do SUS e de instâncias como o NURSAT, que consiste em equipes técnicas em Saúde do Trabalhador instaladas nas Unidades Regionais de Saúde Pública (URSAP). O que fica como pano de fundo é a precarização do trabalho na Estratégia Saúde da Família, na qual enfermeiros, médicos e odontólogos têm como vínculo, geralmente, um contrato temporário de trabalho, o que permeia o receio de perder o emprego. Isso lhes confere um Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 status de subordinação direta à gestão municipal, o que proporciona uma falta de autonomia dos trabalhadores, principalmente, para atuar em questões como essa discutida na pesquisa, que dizem respeito à explicitação de consequências de processos produtivos para a saúde do trabalhador e ambiental. A atuação desses profissionais, eventualmente, poderia desocultar o que a gestão municipal pode querer esconder. É a contradição do Estado expressa no SUS. O fato de ter um vínculo permanente, ou seja, de o trabalhador do PSF ser concursado, é trazido pelos ACS como relevante para participar da problemática da Saúde do Trabalhador e Ambiental, pois, assim, tem-se uma maior autonomia, fruto da garantia de permanência no emprego. Reforça-se que isso é importante, mas, por si só, não garante a participação dos trabalhadores do SUS nessas questões. Com relação aos movimentos sociais, a dificuldade encontrada foi a falta de conhecimento no que tange à dimensão da saúde, seja a saúde do trabalhador, a saúde ambiental e/ou ao SUS. De acordo com Cleps Júnior (2011), os movimentos sociais em territórios rurais no Brasil contemporâneo resistem e atuam em vários espaços de luta cuja raiz é a resistência contra o modelo de desenvolvimento capitalista, relacionando-se principalmente aos problemas da terra e da água, à política agrícola, à questão indígena, às questões ambientais, aos Direitos Humanos, às questões trabalhistas, às populações quilombolas e, atualmente, aos embates contra as corporações do agronegócio. Percebe-se então que esses movimentos sociais já têm acúmulo de vivências, experiências, lutas e mobilizações em torno de conflitos que envolvem questões ambientais e trabalhistas decorrentes da instalação de grandes empreendimentos e de processos produtivos resultantes da expansão do capital em territórios rurais. Talvez seja por isso e pela independência em relação a vínculos empregatícios que, dos três atores, os representantes dos movimentos sociais foram os que estiveram mais à vontade em participar de todo o processo da pesquisa. Evidenciou-se que eles possuem facilidades em incorporar essa abordagem integrada, como: maior autonomia em sua organização e atuação; postura crítica em relação aos processos de transformação em curso nos territórios; envolvimento na luta contra os impactos de processos produtivos e de grandes empreendimentos, como barragens, hidrelétricas, projetos de irrigação; e o fato de pessoas dos movimentos sociais residirem no território em conflito socioambiental, vivenciando esse contexto. Destacaram-se o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e a CPT nas mobilizações sociais em defesa do homem e da mulher rurais. Tudo isso reforça a importância da participação de movimentos sociais na compreensão das relações produção, trabalho, ambiente e saúde, já que suas ações se inserem também nas problemáticas Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 de Saúde do Trabalhador e Ambiental e podem contribuir para a intervenção sobre a realidade, em defesa da saúde. Articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais para uma abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental: limites e potencialidades Abordam-se neste subitem, conforme sugere o título, os limites e as potencialidades da articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais para abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Ambiental nessas instâncias. Para tanto, faz-se relevante trazer o contexto de crise do capital globalizado: com reestruturação produtiva, neoliberalismo, desemprego, precarização do trabalho e culto ao individualismo e subjetivismo (ANTUNES, 2009), que influenciam as dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais nas quais a vida se materializa. Essa conjuntura penetra o espaço da universidade, conformando algumas características que limitam sua articulação com outros atores, como a crescente hegemonia da ciência moderna positivista (SANTOS, 1989), com o culto a especialidades em detrimento de uma visão da totalidade, o que contribui para uma formação que prioriza a técnica em vez de uma visão ética e política que, em geral, não descortina, não provoca o pensamento crítico nos estudantes sobre as desigualdades sociais e não os insere na realidade da vida, não se articula com pessoas, comunidades, trabalhadores, movimentos sociais. Somam-se ainda a disputa de poder (BOURDIEU, 2000) no âmbito da universidade; a lógica produtivista de agências de fomento à pesquisa e pós-graduação (RIGOTTO et al., 2012) e a precarização de trabalho nas universidades, que afeta, sobretudo, os professores. Disso tudo resultam, em geral, a intensificação de conteúdos fragmentados e alienados, um processo educativo mais submetido às regras do mercado e uma formação das pessoas cada vez mais unilateral, deformada e empobrecida (TONET, 2005). Sobre a área Saúde, Almeida Filho (2013) coloca que no modelo de ensino hegemônico nas universidades os currículos são fechados, com tendência a serem menos interdisciplinares e mais especializados, e quase não existe lugar para estudos mais gerais, necessários para promover uma ampla visão, pelos trabalhadores da saúde, no referencial crítico da determinação social da saúde. Por outro lado, a universidade também constitui-se como um espaço de possibilidades; de desenvolvimento da crítica a esse cenário; de produção de conhecimento pautada na realidade e que possibilite contribuir com a minimização das injustiças sociais; de formação ética e política; de criatividade; de articulação entre os saberes; de construção de uma nova ciência; 167 enfim, é um espaço no qual o pensamento crítico também emerge e busca se fortalecer na perspectiva da transformação social. No SUS, o contexto estrutural faz com que o sistema apresente algumas de suas singularidades como limitantes para a articulação com a universidade e os movimentos sociais. Destaca-se o caráter contraditório de ser parte do Estado, submetendo-se aos interesses hegemônicos do capital e ao projeto neoliberal, precarizando o trabalho dos trabalhadores da saúde e fortalecendo práticas clientelísticas, sobretudo, em municípios de pequeno porte, cenário para o qual contribui a presença de uma gestão deficiente. Somam-se a incipiência de articulação intrassetorial, intersetorial e interdisciplinar e, também, do trabalho em equipe. Contribui ainda a hegemonia de uma formação em Saúde marcada por abordagem biologicista, medicalizante e centrada em procedimentos que sobrevalorizam a técnica, a tecnologia dura, o hospital, o foco na doença, cuja atuação ocorre em especialidades e com ênfase na assistência (MIRANDA, 2010). Esses aspectos constituem, entre outros, dificuldades para a organização do SUS e para a satisfação das necessidades sociais da população. Apesar disso, a ESF aparece como potencialidade, por estar mais próxima dos territórios onde ocorrem os processos de vida e trabalho das pessoas e, com isso, amplia-se a possibilidade de vínculo entre os trabalhadores do sistema de saúde e a população, além do que permite o reconhecimento de potenciais parceiros do SUS em busca da melhoria da saúde individual e coletiva, como movimentos sociais, sindicatos, pastorais, lideranças comunitárias, entre outros. Ainda, constituem elementos que podem favorecer a articulação do SUS com outros atores: o princípio da participação da comunidade, as atividades de Educação em Saúde, ações de promoção da saúde que requerem a intersetorialidade, o conceito ampliado de saúde e o aporte teórico da Saúde Coletiva para nortear o pensar/fazer em Saúde. Quanto aos movimentos sociais, a dimensão estrutural repercute em algumas questões que limitam a articulação com outros atores. A globalização e o projeto político econômico neoliberal afetaram a política dos movimentos sociais. Por um lado, a globalização trouxe outras possibilidades, como a maior facilidade nos esforços para promover uma política de democratização não territorial de questões globais, e as novas tecnologias de comunicação, como a internet, tornaram possíveis novas formas de ativismo político à distância. Por outro lado, somada ao neoliberalismo, intensificaram-se as desigualdades sociais, redefiniram-se os terrenos político e cultural nos quais os movimentos sociais lutam e parecem terem se enfraquecido os movimentos populares e se abalado as linguagens de protesto existentes. Nesse contexto, a violência assumiu novas dimensões como modeladora do social e do cultural em muitas regiões (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000). Ocorrem 168 outras formas de dominação social, cada vez mais abstratas, impessoais, sutis e generalizantes. Uma força estrutural que se apresenta alheia aos indivíduos impõe modos de vida e de sociabilidade e se expressa concretamente na economia, na política e na cultura (CARVALHO, 2008). São tentativas do capitalismo de desestabilizar a organização popular e sindical, o que, em geral, provoca o comodismo das pessoas e gera descrédito nos movimentos sociais. Acrescenta-se a descrença no Estado, o que também se reflete no SUS – no pouco conhecimento sobre o que é o sistema e quais são os direitos dos usuários; e a violência em torno dos conflitos e de ações de resistência. Contudo, mesmo diante desse cenário, as ações de resistência persistem e, como potencialidades para a articulação dos movimentos sociais com a universidade e o Sistema Único de Saúde, encontraram-se: o fato de esses atores serem abertos ao diálogo e estarem em busca de parcerias; a resistência, que requer um maior número de aliados; a articulação política; as mobilizações; as atividades educativas; a luta em defesa de direitos; a procura por conhecimentos científicos críticos que auxiliem na compreensão da realidade. É interessante colocar que, em meio a esse cenário contraditório de limites e possibilidades de cada ator social para se relacionar com outros, evidenciou-se na pesquisa-ação que a articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais é viável, apresenta muitas potencialidades, mas não é tarefa fácil. É uma construção que ocorre num contexto de tensões e conflitos produzidos na sociedade capitalista. A relevância dessa articulação foi potencializada, especialmente, pelas oportunidades de diálogo interdisciplinar e intersetorial no bojo da pesquisaação. Esse diálogo promoveu troca de experiências que contribuiu para a construção coletiva de um olhar crítico sobre o contexto das relações produçãotrabalho-ambiente-saúde no território investigado. Por ser um objeto multifacetado, o estudo dessas relações, corroborando Rigotto e Almeida (1998), requer a necessidade de ser observado e vivenciado a partir do “cruzamento” de distintos discursos disciplinares e atores sociais diversos. Guimarães e Silva (2010) trazem a importância da incorporação de uma perspectiva de formação transdisciplinar nas ciências da saúde à medida que diversas áreas do conhecimento podem ter como ponto de convergência o enfoque na Saúde Coletiva, buscando o rompimento com a lógica de produção capitalista que coloca a saúde no rol das mercadorias. A partir da caracterização das relações produçãotrabalho-ambiente-saúde, os atores da universidade, do SUS e dos movimentos sociais puderam, coletivamente, identificar as necessidades de saúde e construir um plano de ação na perspectiva de intervir de maneira mais coerente sobre a realidade estudada. Isso sugere Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 que a abordagem das relações produção-trabalhoambiente-saúde tem poder de mobilização popular. Pode-se dizer que, nessa articulação, foi possível aproximar-se da ecologia de saberes proposta por Santos (2010), em que cada ator, tanto universidade, SUS e movimentos sociais, aprendeu e ensinou também, e se desenvolveu um saber compartilhado entre diferentes campos disciplinares, atores e setores, num processo pedagógico de desocultação da ordem vigente que contribuiu para a desconstrução dos mitos da ideologia do desenvolvimento e para dar visibilidade às necessidades de saúde que envolviam questões de trabalho e ambiente. Os relatos a seguir explicitam essas potencialidades. A experiência foi bastante válida, porque movimento, universidade, a saúde, o SUS, o pessoal do PSF, a gente sentar aqui para discutir, a gente vai, cada vez mais, ganhando conhecimentos e é nesse conjunto de atores que a gente vê que a gente tem que ter uma consistência de trabalhar junto. Ter um trabalho interdisciplinar, que é que todo mundo fale a mesma língua e que a gente possa trilhar por um caminho que busque solução. Eu acho que é muito válido esse momento de pesquisa. A pesquisa, ela não está acabada, sabe? Ela não é uma coisa fechada; está sempre aberta para essas coisas e vai encontrar caminhos para serem trilhados. Esses dias que a gente esteve reunido, trocando experiências, foi muito importante. Cada um que sabia um pouquinho e foi juntando. (MOVIMENTOS SOCIAIS, grifo nosso) Eu tive um enorme prazer de contribuir, de aprender. Eu fui vendo coisas que eu nunca imaginava. Eu aprendi mais, eu cresci, eu desenvolvi. Hoje eu tenho mais segurança de falar. (ACS, grifo nosso) A articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais é possível, principalmente, porque nós, aqui, estamos conseguindo isso. Possível e super importante. Você ir às comunidades, convidar as pessoas, convidar as organizações para estarem levantando suas necessidades, como foi colocado aí, levantando essas necessidades e até construindo um plano de ação para ser feito, são questões que ainda se vê muito pouco na academia, principalmente, na minha área (Agronomia). Importantíssimo do ponto de vista da comunidade em geral e para a academia também. Eu acho que a gente, da universidade, tem essa responsabilidade de estar fomentando isso dentro da universidade. (UNIVERSIDADE, grifo nosso) Percebe-se nas falas acima que a articulação possibilitou também o fortalecimento da capacidade/ potência argumentativa dos sujeitos, o que evidencia a força pedagógica de uma pesquisa-ação, a qual foi vista como um movimento vivo. Para alguns atores, como ACS, CEREST e universidade, o diálogo interdisciplinar e intersetorial promovido pela pesquisa permitiu reconhecer a problemática da Saúde do Trabalhador e Ambiental no território estudado; e, para outros, como os movimentos sociais, esse processo afirmou o Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 problema que eles já vivenciavam. Assim, a pesquisa contribuiu para o reconhecimento, afirmação e ampliação da visão sobre o problema analisado e possibilitou construir e visualizar a importância de uma linguagem comum entre os atores. A pesquisaação apresenta potencial para desnudar problemas relacionados à saúde do trabalhador e ambiental, fortalece a relação entre universidade e serviço (SUS), contribui para a efetivação do direito à saúde, para a participação social e para a construção de novas práticas em saúde (PESSOA et al., 2013). A troca de experiências entre universidade, SUS e movimentos sociais fez com que os representantes dessas instâncias compartilhassem suas ações e, assim, foi possível cada um reconhecer as facilidades e dificuldades de outros atores. Por exemplo, possibilitouse ao PSF compartilhar com os demais participantes da pesquisa as ações que realiza e, ao mesmo tempo, as dificuldades impostas pela precarização do trabalho que enfrenta. Nesse contexto de troca, deu-se visibilidade aos movimentos sociais e se observaram um fortalecimento da resistência e a contribuição dessa para a proteção à saúde, prevenção de doenças e promoção da saúde. Todas essas potencialidades da articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais permitiram ainda repensar o trabalho universitário e o trabalho em Saúde na perspectiva de incorporar a abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental. Para os movimentos sociais, percebeu-se que o maior aprendizado foi com relação à dimensão da saúde, em especial, à Saúde do Trabalhador. Como relatado em fala a seguir transcrita, eles já realizavam discussões sobre impactos de processos produtivos mas não tinham o enfoque da saúde e esse momento do grupo colaborou para uma maior aproximação desses atores com o tema. Isso contribui para a PNSTT (BRASIL, 2012), que considera ser importante inserir a comunidade nos programas de capacitação e educação permanente em Saúde do Trabalhador. Puderam se aproximar da realidade de trabalho dos serviços do SUS, conhecer mais sobre esse sistema, como se organiza, o que é a Saúde do Trabalhador, Saúde Ambiental e PSF, qual o papel do CEREST. Além desses conhecimentos, foi possibilitada uma articulação entre eles e o SUS e um fortalecimento da parceria entre movimentos sociais e universidade. Essa pesquisa trouxe essa novidade para a gente: de incorporar na nossa luta esse elemento que é muito essencial e que prende muito a atenção das pessoas, que é o problema da saúde humana. Se a gente falava muito que as terras foram destruídas, o rio está sendo contaminado, mas a gente não tinha alertado, a gente não tinha elementos para colocar que, além disso, tinha também a questão da saúde humana, tanto do agricultor e da agricultura que estão lá, trabalhando nas empresas, que moram próximo 169 às empresas, ou até mesmo a população urbana, que é contaminada de uma forma ou de outra por esse modelo. E, para essa luta que está se tendo aqui, tem contribuído muito essa discussão da questão da Saúde do Trabalhador, tem despertado muito a gente para atuar também em maior proporção nesse foco. (MOVIMENTOS SOCIAIS, grifo nosso) Nos ensinamentos dos movimentos sociais para os demais atores foram evidenciadas a análise de conjuntura sobre a problemática do processo produtivo em questão, bem como a articulação política, na esperança de que a transformação da realidade é possível e que é preciso mobilização popular. Algumas estratégias de atividades educativas utilizadas na militância puderam ser incorporadas pelo SUS. Os movimentos sociais contribuíram significativamente na descrição dos conflitos ambientais e das ações de resistência no território estudado. Essa parceria significou para esse ator social o fortalecimento da resistência, em especial, no conflito socioambiental em curso no território. Para o SUS, no que se refere aos ACS, talvez o maior aprendizado tenha sido com relação à Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental, mediante a abordagem das tessituras entre produção, trabalho, ambiente e saúde, e ao conhecimento do conflito socioambiental e da atuação dos movimentos sociais. Como ensinamentos, compartilharam com os outros atores a realidade do PSF, com seus problemas de precarização de trabalho, de gestão e de organização do processo de trabalho, além de contribuírem para a identificação de como vivem e trabalham as pessoas que residem nos territórios rurais e das necessidades de saúde existentes. Já para o CEREST, essa articulação possibilitou conhecer as dificuldades existentes no PSF, pensar a Saúde do Trabalhador em articulação com a Saúde Ambiental, reconhecer a importância de ações intersetoriais e interdisciplinares, a relevância de visitar os territórios e os processos produtivos existentes, de ouvir e articular-se com os movimentos sociais e trabalhadores, e de constituir parcerias com a universidade. Permitiu ao grupo conhecer o que é o CEREST, como ele vem atuando e quais os limites e as possibilidades desse serviço do SUS. A universidade pôde aprender a se aproximar das comunidades, dos movimentos sociais, da pesquisaação, a articular atores e saberes para a produção de conhecimentos, a exercitar a intersetorialidade e a interdisciplinaridade, a compreender e traçar estratégias que melhorem a saúde do trabalhador e ambiental. Nessa troca de saberes, ela encurtou a distância entre conhecimento científico e saber popular, trocou experiências metodológicas, lançou seu olhar sobre os problemas identificados e problematizou questões. 170 O fortalecimento da parceria entre universidade e movimentos sociais foi colocado como fundamental para apoiar esses movimentos e dar credibilidade a eles. Nessa relação, ainda foi destacado que não é competência acadêmica liderar um movimento social; isso é papel de lideranças comunitárias, de movimentos sociais. O que acontece nesse processo é um apoio científico da universidade. Pode-se dizer que é o capital simbólico (BOURDIEU, 2000) da universidade emprestado, ao menos por um momento, aos movimentos sociais, como se visualiza na fala a seguir: Eu tenho certeza que essa parceria com a universidade já está contactada. E, para nós, que somos movimentos sociais, vocês não sabem do tamanho que é essa articulação para nós não! Vocês não sabem como é gratificante! Anima demais porque é mais um aliado. Porque os caras acham que a gente é sozinho, um bando de coitadinho, um bando de analfabeto. Esse debate ficou isolado da sociedade durante muito tempo, por mais que a CPT, o sindicato... e sendo chamados de chatos. (MOVIMENTOS SOCIAIS) A articulação entre movimentos sociais e SUS, referindo-se aos ACS e CEREST, é mais difícil, conforme o comentário: “Pelo menos, aqui, o SUS e os movimentos sociais eu acho que não têm contato não. A realidade é essa” (ACS). Entretanto a articulação entre esses dois atores é possível e trouxe alguns pontos positivos, como o compartilhamento de saberes que possibilitou a incorporação de estratégias educativas dos movimentos sociais pelo SUS e deu um novo foco aos problemas vivenciados pelos movimentos. No caso da pesquisa, a problemática do conflito socioambiental deixa de ser uma questão só dos movimentos sociais e passa a ser de Saúde se o SUS incorpora isso. Nesse sentido, o sistema de saúde pode fortalecer os movimentos sociais. Sobre a articulação entre SUS e universidade aponta-se que ela é possível e necessária. Para a universidade, a vantagem é a articulação ensinoserviço ao se aproximar da realidade das pessoas e de serviços de saúde do SUS, com seus limites e possibilidades, realizando ensino, pesquisa e extensão na perspectiva de construir propostas de intervenção para a transformação dessa realidade, para a melhoria da Saúde do Trabalhador e Ambiental. Para o SUS, é se aproximar e compartilhar os conhecimentos científicos produzidos pela universidade, ter capacitações, educação permanente em Saúde, em consonância com sua realidade e demandas. A partir de todo o processo da pesquisa, identificouse um conjunto de elementos que ajudam a refletir acerca de uma abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental e a incorporá-la na universidade, no SUS e nos movimentos sociais. Os elementos trazidos aqui podem ser realizados articulada ou isoladamente por esses atores e sua utilização pode Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 Quadro 2 Elementos que possibilitam incorporar uma abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental na universidade, no SUS e nos movimentos sociais Articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais para abordagem da Saúde do Trabalhador e Ambiental. Problematização da dinâmica das relações produção-trabalho-ambiente-saúde e da importância da participação de sujeitos da universidade, SUS e movimentos sociais. Metodologia prática-teoria-prática. Comunicação permanente com sujeitos coletivos. Superação da invisibilidade dos processos de trabalho sob o capital. Criação de espaços de troca de saberes, experiências, informações, análises e leitura crítica do vivido. Caracterização do contexto de produção, trabalho, ambiente e saúde de comunidades dos territórios discutidos/analisados com o olhar das comunidades, da universidade, do SUS e dos movimentos sociais. Identificação das necessidades de saúde no território discutido/analisado, sobretudo as que envolvem questões de trabalho e ambiente, sob a óptica das comunidades, da universidade, do SUS e dos movimentos sociais. Realização de seminários com universidade, SUS e movimentos sociais, sobre questões que envolvam Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental. Construção conjunta de projetos de intervenção, na perspectiva de transformar a realidade e melhorar a saúde do trabalhador e a saúde ambiental no território analisado. Intervenção sobre os problemas de saúde do trabalhador e saúde ambiental, buscando parcerias intersetoriais para a implementação da proposta interventiva. Realização de pesquisa-ação sobre problemas de saúde do trabalhador e saúde ambiental a partir de territórios concretos. ser adequada à realidade de cada ator, de cada território e do processo produtivo investigado/analisado. Desse modo, podem ser desenvolvidos em conjunto, mas, também, isoladamente e, não necessariamente, na ordem aqui exposta. É válido mencionar que se trata apenas de apontamentos e não de verdades absolutas. Enfatiza-se que esses elementos podem ser importantes instrumentos teórico-metodológicos a serem utilizados em atividades de ensino, pesquisa e extensão da universidade, em especial da área da Saúde; em educação permanente na produção de serviços de saúde do SUS, sobretudo, pelo PSF e CEREST; e nas atividades educativas e de articulação desenvolvidas pelos movimentos sociais. Assim, propõem-se 12 elementos que possibilitam incorporar uma abordagem integrada entre Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental na universidade, no SUS e nos movimentos sociais, conforme o Quadro 2. Considerações finais Esta pesquisa possibilita abrir um leque de questões para debate. Para a universidade, ela permite refletir sobre o tipo de ciência que está sendo realizada e a que interesses ela está atendendo. Trata-se de uma discussão importante e atual, principalmente, porque a complexidade e a gravidade dos problemas sociais, de saúde, de trabalho, ambientais, econômicos, políticos e culturais que se vivenciam hoje enfatizam a necessidade de se fazer um novo tipo de ciência, para além da positivista “neutra” hegemônica. Mostra Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 161-174, 2014 também a potência do pensamento crítico dentro da academia; um pensamento que faça refletir, questionar, analisar, identificar conflitos, tensões e contradições e que, acima de tudo, possibilite a mobilização das pessoas para a transformação social. Traz ainda a importância de se (re)pensar a formação em Saúde, em especial, em Saúde do Trabalhador e Ambiental. O aporte teórico e metodológico aqui utilizado aponta caminhos que permitem incorporar a abordagem desses campos. Para a política pública de saúde, o SUS, a pesquisa faz refletir acerca do tipo de controle social institucionalizado. Pôde-se realizar uma participação da comunidade para além dos Conselhos e Conferências de Saúde, com espaços de discussão entre diversos sujeitos que possibilitaram a tomada de consciência de atores da universidade, do SUS e dos movimentos sociais sobre: o que é o SUS e suas fragilidades; a discrepância entre teoria/aporte jurídico e prática; o dever do Estado de garantir o direito à saúde; a percepção do conceito ampliado de saúde; o conhecimento sobre a precarização do trabalho no sistema. Enfim, várias questões foram levantadas nesses momentos e socializadas entre os atores, o que configurou espaços que contribuem para a participação da comunidade no SUS. Aponta-se também a relevância de se (re)pensar o papel dos CEREST no Brasil. A participação desse ator demonstrou suas fragilidades e chamou atenção para a necessidade de esse serviço articular a Saúde do Trabalhador com a Ambiental, realizar trabalhos conjuntos com trabalhadores e movimentos sociais, desenvolver uma maior articulação intrassetorial e 171 intersetorial e (re)configurar as capacitações realizadas com os demais trabalhadores do SUS, em especial, articulando-se com a universidade. O destaque que os agentes comunitários de saúde tiveram nesta pesquisa traz a demanda de valorização desses trabalhadores do SUS enquanto sujeitos com grande potencial de incorporar a Saúde do Trabalhador e Ambiental. Portanto é preciso (re)pensar sua formação e melhorar as suas condições de trabalho no sentido de ampliar esse potencial. Para os movimentos sociais, a pesquisa ilumina a importância da sua participação no SUS, seja no CEREST, no PSF ou em outros serviços, diretamente ou através do controle social e/ou do processo de vida em curso no território. Traz também a relevância da incorporação da dimensão da saúde na compreensão que eles têm sobre os problemas ambientais e trabalhistas decorrentes de processos produtivos. Isso chama atenção para o estabelecimento de estratégias que ampliem o conhecimento desses sujeitos acerca dessa abordagem. A importância da articulação entre movimentos sociais e universidade também foi um destaque. Em síntese, a articulação entre universidade, SUS e movimentos sociais – para identificar tanto o contexto das relações entre produção, trabalho, ambiente e saúde como as necessidades de saúde de um determinado território, construir coletivamente um plano de ação e intervir sobre a realidade na perspectiva de melhoria da saúde – apresentou-se como um caminho que pode colaborar para o fortalecimento da práxis dos campos disciplinares Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental, de modo compartilhado entre diversos atores, saberes e disciplinas, e que pode ser trilhado por universidade, SUS e movimentos sociais. Contribuições de autoria PONTES, A. G. V.: coletou e analisou o material empírico, elaborou o manuscrito e aprovou a versão final do artigo. RIGOTTO, R. M.: analisou o material empírico, elaborou, revisou criticamente e aprovou a versão final do artigo. Referências ALMEIDA FILHO, N. M. Contextos, impasses e desafios na formação de trabalhadores em Saúde Coletiva no Brasil. 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Teresina, PI, Brasil. 2 Contato: Nayra da Costa e Silva E-mail: [email protected] Trabalho baseado na dissertação de Mestrado em Enfermagem de Nayra da Costa e Silva intitulada Hepatite B: prevalência de marcadores sorológicos e fatores associados em profissionais de enfermagem de urgência e emergência apresentada ao Programa de Pósgraduação em Enfermagem da Universidade Federal do Piauí em 2010. O trabalho não foi subvencionado e não foi apresentado em reunião científica. As autoras declaram não haver conflitos de interesse. Recebido: 06/05/2013 Revisado: 23/06/2014 Aprovado: 24/06/2014 Resumo Objetivos: analisar a ocorrência de acidentes perfurocortantes e as medidas preventivas associadas à hepatite B entre profissionais de Enfermagem em serviços de urgência e emergência. Métodos: estudo transversal analítico com aplicação de questionário a 317 participantes de cinco hospitais públicos de Teresina, PI, em 2010. Resultados: 152 (47,9%) referiram ter sofrido acidente perfurocortante; entre as categorias, 27,3% dos Enfermeiros, 48,2% dos Auxiliares, 52,6% dos Técnicos de Enfermagem. A chance de um profissional de nível médio (Auxiliar ou Técnico) sofrer um acidente perfurocortante é de 2,8 (1,38-5,67) vezes maior que o de nível superior (Enfermeiros). A agulha foi o instrumento causador mais frequente (77,0%). A não notificação do acidente foi expressiva entre Técnicos (67,0%), Auxiliares (70,0%) e Enfermeiros (75,0%), assim como a não adoção de medidas profiláticas pós-exposição (84,9%, em média). As três categorias profissionais referiram uso de luvas como o EPI mais utilizado. Os Auxiliares de Enfermagem apresentaram o menor percentual (47,0%) de esquema vacinal completo para hepatite B. Discussão: um percentual expressivo de profissionais de Enfermagem sofreu acidente perfurocortante no trabalho com baixa adoção de medidas preventivas e profiláticas, reforçando a necessidade de fortalecimento de estratégias que visem à saúde do trabalhador no âmbito hospitalar. Palavras-chave: enfermagem; hepatite B; saúde do trabalhador; vacina. Abstract Objective: to analyze accidents with sharp instruments and preventive measures associated with hepatitis B in nursing professionals in emergency and urgency services. Methods: analytical cross-sectional study applying a questionnaire to 317 nursing professionals from five public hospitals in Teresina, Piauí state, in 2010. Results: 152 (47.9%) reported having suffered sharp instrument accidents; within each category: nurses (27.3%), healthcare assistants (48.2%), nursing assistants (52.6%). The chance of an undergraduate professional (healthcare or nursing assistant) suffering a sharp instrument accident is 2.8 (1.38 to 5.67) times greater than a graduated one (nurse). The needle was the most frequent causative instrument (77.0%). Lack of accident notification was substantial among nursing assistants (67.0%), healthcare assistants (70.0%) and nurses (75.0%), as well as non-adoption of post-exposure prophylactic measures (84.9% on average). The three categories reported gloves as the most used PPE. Healthcare assistants presented the lowest percentage (47.0%) of full vaccination schedule for hepatitis B. Discussion: a substantial percentage of nursing professionals has suffered sharp instrument accidents at work with low adoption of preventive and prophylactic measures, reinforcing the need for strengthening strategies aimed at improving worker’s health within hospitals. Keywords: nursing; hepatitis B; occupational health; vaccine. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 175-183, 2014 175 Introdução Estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) revelam que cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo já tiveram contato com o vírus da hepatite B (VHB), das quais 325 milhões já são consideradas pacientes crônicos. As taxas de prevalência da hepatite B, em âmbito mundial, variam de 0,1% a taxas superiores a 30% (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2006). No Brasil, em inquérito parcial realizado nas capitais de algumas regiões do país, o percentual de prevalência para hepatite B em população não vacinada foi de 0,19% para região Nordeste, de 0,47% na região Centro-Oeste e de 0,60% no Distrito Federal (PEREIRA et al., 2009). Diante desses dados, tem-se como ponto de partida que qualquer pessoa está sujeita a contrair o VHB, porém alguns grupos estão mais expostos ao vírus devido a circunstâncias, comportamentos e atividades profissionais que exercem. De acordo com Soriano et al. (2008), os profissionais de saúde estão incluídos nos grupos de risco, devido ao inter-relacionamento frequente entre os pacientes, bem como à manipulação de sangue e outros fluidos corporais contaminados com o vírus que representam acentuados fatores de risco de contágio. De acordo com o Ministério da Saúde (BRASIL, 2010), anualmente ocorrem aproximadamente 3 milhões de exposições percutâneas entre os 35 milhões de profissionais da saúde de todo o mundo. Estima-se que esses acidentes resultem em 15 mil infecções pelo vírus da hepatite C (VHC), 70 mil pelo vírus da hepatite B (VHB) e 500 pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Entre as categorias profissionais mais susceptíveis estão, entre outros, os profissionais de Enfermagem, de hemodiálise, de endoscopia digestiva, de análises clínicas, Cirurgiões e Dentistas. Dentro dessa perspectiva, uma das formas de prevenção mais utilizadas contra o VHB é a vacina, que foi considerada o maior avanço no controle da doença, eficaz na redução da sua incidência e do carcinoma hepatocelular. Sua utilização data desde o início do ano de 1980 (ATKINSON et al., 2002). Outras medidas de precaução padrão no ambiente hospitalar incluem o uso de Equipamento de Proteção Coletiva (EPC), os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), lavagem das mãos e o manejo adequado de resíduos sólidos. Os EPCs visam a proteção de forma coletiva, eles estão relacionados ao ambiente físico do trabalho, que pode compreender uma ação, dispositivo, sinalização, imagem, som, instrumento ou maquinário destinado a proteção de uma ou mais pessoas. Quando essas medidas coletivas não são suficientes para a 176 segurança adequada do trabalhador, o empregador deve oferecer outras formas de segurança, que incluem os EPIs (BRASIL, 2004). Estudo aponta que são inúmeros os benefícios da utilização adequada dos dispositivos de segurança no ambiente hospitalar tais como: maior produtividade, diminuição do absenteísmo, redução dos gastos hospitalares (BALSAMO; FELLI, 2006). Entretanto, a utilização inadequada dos EPIs não colabora no processo de prevenção da exposição ocupacional a material biológico (BERTI; MOIMAZ; AYRES, 2003). O interesse pelo tema surgiu pela vivência em uma instituição hospitalar da rede pública do estado do Piauí na qual profissionais de Enfermagem, diante de uma exposição acidental, recusaram-se a procurar os serviços de vigilância da instituição muitas vezes por medo ou por não dimensionarem as consequências negativas dos acidentes ocupacionais. Diante da magnitude da hepatite B e da complexidade que envolve a saúde do trabalhador de saúde, os objetivos deste trabalho foram analisar a ocorrência de acidentes perfurocortantes e as medidas preventivas associadas à exposição ao vírus da hepatite B entre profissionais de Enfermagem nos serviços de urgência e emergência em Teresina, Piauí. Metodologia Trata-se de um estudo transversal analítico, realizado nos cinco hospitais da Fundação Municipal de Saúde (FMS), situados nas zonas sul, sudeste, norte e leste de Teresina, PI, os quais prestam serviços de urgência e emergência no atendimento à população. A pesquisa foi composta pelo universo de profissionais de Enfermagem apenas dos serviços de urgência e emergência (n = 360), distribuídos em três categorias: Enfermeiros, Técnicos e Auxiliares. Os critérios de exclusão foram o não consentimento na participação no estudo, encontrar-se de férias ou licença no período da coleta. Obteve-se o total de 317 profissionais de Enfermagem. Após a autorização da Fundação Municipal de Saúde e do Comitê de Ética de Pesquisa da Universidade Federal do Piauí –UFPI (CAAE nº. 0163.0.045.000-08), foi realizada a coleta de dados nos cinco hospitais, no período de março a maio de 2010. Aplicou-se uma entrevista verbal, realizada por uma mesma pessoa, em sala reservada de cada hospital, nos períodos matutino e noturno, respeitando-se a escala de plantão e as atividades laborais dos sujeitos do estudo. Foi aplicado um formulário com questões predominantemente fechadas relacionadas às características sócio-epidemiológicas dos participantes da pesquisa, riscos relacionados à exposição pelo trabalho ao vírus da hepatite B e a Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 175-183, 2014 situação vacinal. Os sujeitos convidados a participar da pesquisa foram informados sobre o tema e, após a explanação, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre Esclarecido com os objetivos da pesquisa e as garantias de sigilo acerca das informações prestadas. As variáveis levantadas foram: idade, sexo, situação conjugal, categoria profissional, tempo de profissão e de atividade nos serviços de urgência e emergência, já haver sofrido acidente ocupacional perfurocortante, tipo de instrumento envolvido no acidente ocupacional, notificação do acidente ocupacional, medidas profiláticas pós-exposição, uso de EPI, número de doses de vacina recebida contra hepatite B. Para a análise dos dados, utilizou-se o software Statistical Package for the Social Science (SPSS) 17.0, o qual foi empregado para gerar análises univariadas e bivariadas. A análise univariada foi realizada por meio do cálculo de estatísticas descritivas das variáveis relacionadas à descrição da amostra, ocorrência de acidentes ocupacionais, respectivas medidas profiláticas, uso de EPIs e estado vacinal. Para a realização das análises bivariadas calculou-se o Qui-quadrado de Pearson (2), com o propósito de identificar possíveis associações entre a ocorrência dos acidentes ocupacionais com cada variável independente. A hipótese nula foi rejeitada quando o valor de p foi menor ou igual a 0,05. Os modelos de regressão logística foram empregados para determinar o risco de sofrer ou não um acidente ocupacional relacionado às variáveis categoria profissional, tempo de profissão e tempo de atividade no setor de urgência e emergência através do cálculo da RC (Razão de Chances) em um Intervalo de Confiança (IC) de 95%. Como o teste de Qui-quadrado não relaciona o tamanho do efeito da associação, utilizou-se o coeficiente V de Cramer, que é uma medida do grau de associação entre duas variáveis categóricas, no qual o efeito da associação é considerado pequeno quando r = 0,1, médio quando r = 0,3 e grande quando r = 0,5 (FIELD, 2009). Resultados Dos 317 profissionais que participaram do estudo, 121 (38,2%) estavam na faixa etária de 41 a 50 anos, com uma idade média de 43,5 anos (desvio padrão: 10,2) e amplitude variando de 20 a 68 anos. Quanto ao sexo, predominou o feminino, com 229 (72,2%), e, em relação à situação conjugal, 173 (54,6%) eram casados. Na variável categoria profissional, os Técnicos de Enfermagem eram 190 (59,9%), seguido dos Auxiliares de Enfermagem, 83 (26,2%), e Enfermeiros, 44 (13,9%). Com relação ao tempo de trabalho no Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 175-183, 2014 serviço de urgência e emergência, 80,8% tinham até 20 anos no setor, sendo a média de 11 anos. Quanto à ocorrência de acidentes de trabalho, identificou-se que, dos 317 profissionais envolvidos na pesquisa, 152 (47,9%) relataram haver sofrido algum tipo de acidente ocupacional com perfurocortantes. Dentre os tipos de instrumentos causadores de acidentes, o acidente com agulha foi o que mais se destacou (77,0%) e, dentre as categorias profissionais estudadas, a de Técnico de Enfermagem foi a que teve a maior proporção de acidentes com esse instrumento (81,0%). Observou-se, ainda, que Técnicos, Auxiliares e Enfermeiros apresentaram resultados expressivos quanto a não notificação do acidente (67,0%, 70,0% e 75,0%, respectivamente), o que também foi observado em relação à não adoção de medidas profiláticas pósexposição ao acidente perfurocoartante (85,0%, 85,0% e 83,0%, respectivamente) (Tabela 1). Quando foram questionados sobre quais EPIs eram mais utilizados como medida de proteção contra acidentes ocupacionais perfurocortantes, os profissionais referiram o uso de luvas: Enfermeiros, 97,7%; Técnicos, 87,9%; e Auxiliares, 88,0%. Os óculos foram os menos utilizados em todas as categorias (Tabela 2). Foi realizada uma análise multivariada entre a ocorrência de acidentes perfurocortantes e as variáveis categoria profissional, tempo de profissão e tempo de profissão e atividade no setor de urgência e emergência (Tabela 3). Observou-se que houve associação estatisticamente significativa (p = 0,01) entre a ocorrência dos acidentes perfurocortantes e a variável categoria profissional e com tempo de profissão. Os profissionais de nível médio foram os que mais sofreram acidentes de trabalho, 48,2% do total dos Auxiliares e 52,6% dos Técnicos de Enfermagem, enquanto que, dentre os Enfermeiros apenas 27,3% sofreram algum tipo de acidente. Em relação ao tempo de profissão houve predominância de acidentes entre os profissionais com mais de 20 anos de profissão (55,3%). Calculado a RC em um IC de 95%, verificou-se que a chance de um profissional de nível médio (Auxiliares e Técnicos de Enfermagem) sofrer um acidente ocupacional perfurocortante é de 2,8 (1,38-5,67) vezes maior que um profissional de nível superior (Enfermeiros) e os profissionais com tempo de profissão até 20 anos apresentaram uma RC de 0,58 (0,37-0,91) de sofrer uma exposição ocupacional em relação aos com mais de 20 anos. Não houve associação estatisticamente significativa entre a ocorrência de acidentes ocupacionais com o tempo de trabalho no setor de urgência e emergência e a razão de chances de ocorrer um acidente nesses locais de trabalho foi de 0,86 (0,49-1,51). 177 Tabela 1 Instrumento causador, notificação do acidente e medidas profiláticas pós-exposição entre profissionais de Enfermagem acidentados com perfurocortantes em serviços de urgência e emergência, Teresina, PI, 2010 Categoria profissional Variáveis Auxiliar de Enfermagem Técnico em Enfermagem n (%) n (%) Enfermeiro n (%) Total n (%) Instrumento causador do acidente (N = 152) Agulha 27 (67,5) 81 (81,0) 9 (75,0) 117 (77,0) Jelco 2 (5,0) 6 (6,0) 0 (0,0) 8 (5,2) Scalp 6 (15,0) 10 (10,0) 3 (25,0) 19 (12,5) Bisturi 5 (12,5) 3 (3,0) 0 (0,0) 8 (5,3) Sim 12 (30,0) 33 (33,0) 3 (25,0) 48 (31,6) Não 28 (70,0) 67 (67,0) 9 (75,0) 104 (68,4) Sem profilaxia 34 (85,0) 85 (85,0) 10 (83,3) 129 (84,9) Lavou o local 5 (12,5) 6 (6,0) 1 (8,3) 12 (7,9) Exame 0 (0,0) 2 (2,0) 0 (0,0) 2 (1,3) Vacina 1 (2,5) 4 (4,0) 1 (8,3) 6 (3,9) AZT 0 (0,0) 2 (2,0) 0 (0,0) 2 (1,3) Antibiótico 0 (0,0) 1 (1,0) 0 (0,0) 1 (0,7) 40 (100,0) 100 (100,0) 12 (100,0) 152 (100,0) Notificação do acidente (N = 152) Medidas profiláticas pós-exposição (N = 152) Total Tabela 2 Utilização de EPIs por profissionais de Enfermagem de serviços de urgência e emergência, Teresina, PI, 2010 Categoria profissional EPI* Auxiliar de Enfermagem (n = 83) Técnico em Enfermagem (n = 190) n (%) n (%) Enfermeiro (n = 44) n (%) Óculos 21 (25,3) 21 (11,1) 8 (18,2) Luvas 73 (88,0) 167 (87,9) 43 (97,7) Jaleco 50 (60,2) 132 (69,5) 39 (88,6) Gorro 37 (44,6) 71 (37,4) 16 (36,4) Propés 25 (30,1) 44 (23,2) 11 (25,0) Máscara 69 (83,1) 155 (81,6) 42 (95,5) *Resposta múltipla A situação vacinal da população do estudo contra hepatite B, segundo a categoria profissional, demonstrou que os Enfermeiros apresentaram o maior percentual de esquema vacinal completo (70,5%), seguidos dos Técnicos (48,4%) e Auxiliares (47,0%). A associação 178 estatisticamente significativa entre a variável número de doses da vacina e categoria profissional (p = 0,04) mostrou uma maior frequência de imunizados nos profissionais de nível superior completo e um grau da associação de efeito moderado (r = 0,32) (Tabela 4). Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 175-183, 2014 Tabela 3 Associação entre a ocorrência de acidente perfurocortante e as variáveis categoria profissional, tempo de profissão e de atividade no setor de urgência e emergência, Teresina, PI, 2010 Acidente perfurocortante Variáveis Sofreu Não sofreu n (%) n (%) Auxiliar de Enfermagem* 40 (48,2) 43 (51,8) Técnico em Enfermagem* 100 (52,6) 90 (47,4) 12 (27,3) 32 (72,7) Até 20 anos 74 (42,0) 102 (58,0) 21 a 42 anos 78 (55,3) 63 (44,7) Até 20 anos 121 (47,3) 135 (52,7) 21 a 42 anos 31 (50,8) 30 (49,2) 2 p-valor RC* (IC 95%)** 9,208 0,01 2,80 (1,38-5,67) Categoria profissional (N = 317) Enfermeiro 1,00 Tempo de profissão (N = 317) 5,526 0,01 0,58 (0,37-0,91) 1,00 Tempo de trabalho em urgência e emergência (N = 317) 0,249 0,61 0,86 (0,49-1,51) 1,00 * Para o cálculo da Razão de Chances agruparam-se as categorias por nível de escolaridade, no caso, nível médio ** IC: Intervalo de confiança Tabela 4 Situação vacinal contra hepatite B entre profissionais de Enfermagem de serviços de urgência e emergência,Teresina, PI, 2010 Categoria profissional N° de doses Auxiliar de Enfermagem Técnico em Enfermagem Enfermeiro Total n (%) n (%) n (%) n (%) 5 (6,0) 17 (8,9) 1 (2,3) 23 (7,3) 1 dose 10 (12,0) 24 (12,6) 3 (6,8) 37 (11,7) 2 doses 16 (19,3) 41 (21,6) 9 (20,4) 66 (20,8) 3 doses 39 (47,0) 92 (48,4) 31 (70,5) 162 (51,1) Não foi vacinado Não lembra 13 (15,7) 16 (8,4) - 29 (9,1) Total 83 (100,0) 190 (100,0) 44 (100,0) 317 (100,0) Discussão Para o Ministério da Saúde (BRASIL, 2006a), os ferimentos com agulhas e outros materiais perfurocortantes, em geral, são considerados extremamente perigosos por serem potencialmente capazes de transmitir mais de 20 tipos de patógenos diferentes, sendo o vírus da imunodeficiência humana (HIV), o da hepatite B e o da hepatite C os agentes infecciosos mais comumente envolvidos. Os profissionais da área da saúde possuem um risco maior de adquirir infecção por hepatite B, hepatite C e HIV quando comparados à população geral (MONTEIRO; BENATTI; RODRIGUES, 2009; MANETTI et al., 2006; SCHNEIDER, 1994). De acordo Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 175-183, 2014 p-valor V de Cramer 0,04 0,32 com pesquisa realizada por Mast et al. (2006), em acidentes perfurocortantes envolvendo pacientes infectados pelo VHB e com presença do HBeAg (marcador que indica replicação do vírus), o risco de contrair hepatite B varia de 22,0% a 31,0%. Os resultados encontrados neste estudo sobre os acidentes ocupacionais (47,9%) são semelhantes aos encontrados em pesquisa realizada por Rosato e Ferreira (2012) em hospitais da cidade de Santa Rosa, RS, no qual se identificou um percentual de (40,5%) de profissionais de saúde que sofreram algum tipo de acidente ocupacional perfurocortante. Os acidentes de trabalho que ocorrem com os profissionais de saúde derivam de fatores complexos e têm sido objeto de muitos estudos na área da 179 Enfermagem, não apenas de forma isolada, casual, ou como um evento particular, mas através da análise do contexto do trabalho em que esses sujeitos estão inseridos, das condições de vida e da estreita relação profissional-paciente-equipe (SÊCCO; GUTIERREZ; MATSUO, 2003). Quando comparada às outras categorias profissionais, Ribeiro e Shimizu (2007), Balsamo e Felli (2006), Pinho, Rodrigues e Gomes (2007) são unânimes em afirmar que a equipe de Enfermagem sofre acidentes com maior frequência no ambiente hospitalar. Segundo Pinheiro e Zeitoune (2008), a formação do profissional de saúde ainda é voltada para o tecnicismo, persistindo uma lacuna entre o cuidado do paciente e o autocuidado do cuidador, dificultando a promoção da saúde do trabalhador de saúde. Outro agravante é a falta de notificação dos acidentes ocupacionais, pois a subnotificação tornou-se uma prática comum nas instituições de saúde e o número de casos ocorridos é muito superior aos que são notificados (HENNINGTON; MONTEIRO, 2006). Nesta pesquisa, os dados das três categorias, Técnicos, Auxiliares e Enfermeiros, reforçam resultados semelhantes quanto à não notificação dos acidentes (67,0%, 70,0% e 75,0%, respectivamente). Os fatores referidos pelos investigados para justificar a subnotificação foram a falta de tempo, o desconhecimento sobre a que profissional recorrer, o desconhecimento sobre a ficha de notificação e o medo de notificar. A subnotificação também é encontrada no cenário mundial. Uma pesquisa de Bilski (2005) demonstrou que, da maioria das exposições sofridas com agulhas por trabalhadores de Enfermagem, (50,1%) foram relatadas verbalmente a um profissional de nível superior (Médico ou Enfermeiro). Para reafirmar essa situação, aponta-se o estudo de Ayranci e Kosgeroglu (2004), o qual demonstrou que dos 988 profissionais de saúde estudados em um hospital da Turquia, 634 haviam sido expostos a sangue e fluidos corporais pelo menos uma vez na sua vida profissional. Desses, 144 não foram notificados e não procuraram dar seguimento à investigação dos acidentes ocupacionais. Além da notificação, medidas de profilaxia devem ser adotadas, a fim de evitar danos futuros ao profissional. Nesta pesquisa, verificou-se que a maioria dos entrevistados (84,9%) não adotou nenhuma medida profilática pós-exposição diante da ocorrência de um acidente. Segundo o Ministério da Saúde, a adoção de medidas frente a um acidente biológico e com risco para hepatite B vai depender do status sorológico do paciente fonte e dos níveis de Anti-HBs do profissional acidentado. Essas medidas são: cuidados com a área exposta, avaliação e notificação do acidente, orientações e aconselhamento do acidentado, quando necessário, imunoprofilaxia e acompanhamento (BRASIL, 2006a). 180 Outra forma na prevenção contra os acidentes biológicos entre profissionais de saúde é o uso de EPIs nas atividades laborais. Os resultados aqui encontrados sobre os equipamentos mais utilizados foram semelhantes aos do estudo de Nishide, Benatti e Alexandre (2004) sobre os riscos ocupacionais entre trabalhadores de Enfermagem de uma UTI, em que se constatou que os EPIs utilizados com maior frequência pelos trabalhadores de Enfermagem são as luvas, as máscaras e os aventais. Entretanto, os óculos de proteção nem sempre são utilizados. Neste estudo, os profissionais mencionaram não utilizar os EPIs devido aos seguintes fatores: a instituição de saúde não os oferece ou o faz em quantidade insuficiente (principalmente óculos e gorros), alergia ao látex, maior habilidade das mãos sem luvas, temperatura elevada nas enfermarias e no posto de enfermagem (para justificar especificamente o não uso das máscaras e jalecos) e falta de ar (máscaras). No que se refere aos serviços de urgência e emergência, os profissionais de Enfermagem que atuam diariamente nesses setores deparam-se com situações que exigem condutas rápidas, o que pode contribuir para a ocorrência de acidentes ocupacionais. De acordo com Pereira (2007), os setores com maior percentual de acidentes ocupacionais com material biológico são as Unidades de Urgência/Emergência (UE), com 28,4%; seguidas do Centro Cirúrgico (CC) e da Central de Material Esterilizado (CME), com 25,5%; das Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs), com 18,9%; das unidades de internação de adulto, com 14,5%; pediátricas, com 9,18%; e laboratórios, com 3,3%. O Ministério da Saúde (BRASIL, 2005) recomenda a vacinação de todos os profissionais da saúde com risco iminente de contrair a doença. Neste estudo, observou-se que pouco mais da metade (51,1%) dos investigados relatou ter recebido o esquema vacinal completo, muito aquém do recomendado. De acordo com a OMS, a vacina contra hepatite B passou a ser oferecida pelo SUS a partir da década de 1990 (ARAÚJO, 2005). Entretanto, a vacina produzida pelo Instituto Butantan, encontrada nas Unidades Básicas de Saúde, até o ano de 2008, não tinha indicação para pessoas maiores de 30 anos, em função de produzir menor imunogenicidade (BRASIL, 2006b). Esse fato, provavelmente, dificultou o acesso dos profissionais participantes deste estudo à vacina destinada a sua faixa etária (41 a 50 anos), pois ela só era oferecida no Centro de Referência de Imunobiológicos Especiais (CRIE). Entretanto, é importante ressaltar que, desde 2009, a vacina contra hepatite B produzida pelo Instituto Butantan é a utilizada em larga escala nos serviços de atenção básica de saúde e já pode ser indicada para Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 175-183, 2014 pessoas de qualquer idade, desde que pertencente a algum grupo vulnerável. Ressalta-se que essa vacina tem boa imunogenicidade, com proteção em mais de 90% dos adultos jovens sadios e em mais de 95% em lactentes, crianças e adolescentes (BRASIL, 2006b). É incontestável a eficácia da vacina quando administrada nas doses recomendadas pelo Programa Nacional de Imunização (PNI). De acordo com o Ministério da Saúde (BRASIL, 2006b), a vacina contra a hepatite B, quando administrada nas três doses (0, 1 e 6 meses), confere imunidade de 90% em adultos, com títulos protetores ≥ 10 mUI/ml. Mas encontrou-se neste estudo uma considerável parcela de profissionais (39,8%) com esquema vacinal incompleto e, ainda, outros que responderam não lembrar de terem recebido alguma dose de vacina (9,1%). Estudos de Silva et al. (2011) e Soriano et al. (2008) reforçam a importância do esquema vacinal completo contra a hepatite B em profissionais de saúde. Carvalho (2008) enfatiza que a vacina vem sendo utilizada como um meio para interromper a cadeia de transmissão das doenças imunopreveníveis. O ato de vacinar, na sua dimensão individual, resulta em proteção contra determinadas doenças não só do indivíduo vacinado, mas também em proteção da coletividade. Essa atitude, mesmo quando realizada no âmbito das unidades de saúde, toma uma dimensão coletiva, visto ser voltada para indivíduos inseridos em determinado contexto social e em uma realidade epidemiológica específica (ARAÚJO, 2005). Pesquisa em um hospital universitário em Karachi, no Paquistão, constatou que no universo de 393 profissionais de saúde de todas as categorias, 86,0% de profissionais de saúde estavam completamente vacinados, 12,0% com vacinação incompleta e 2,0% sem nenhuma dose (ALI; JAMAL; QURESHI, 2005). Kosgeroglu et al. (2004), em pesquisa realizada entre Enfermeiras da Turquia acerca da exposição ocupacional e vacinação contra a hepatite B, revelaram que, das 452 (76%) Enfermeiras que enfrentavam perigos de exposição à infecção, 27,7% (125/452) não eram vacinadas contra o VHB. Pode-se inferir que o Enfermeiro, profissional com maior escolaridade que o Técnico e o Auxiliar de Enfermagem, detém possivelmente, um maior conhecimento sobre a transmissão da doença e, consequentemente, busca a imunização. Os dados dessa pesquisa, porém, divergem dos resultados encontrados por Silva et al. (2003), que revelaram um percentual semelhante de esquema vacinal completo para hepatite B entre Enfermeiros (85,7%) e Técnicos (83,7%). Como limitação deste estudo destaca-se o fato de alguns profissionais encontrarem-se de férias ou afastados por licença e de outros se recusarem a participar da pesquisa. Entretanto, a perda não comprometeu o seu desenvolvimento, pois foi prevista dentro dos critérios de exclusão. O trabalho poderá servir de subsídio para outros estudos dentro da vigilância de acidentes ocupacionais em profissionais de Enfermagem, uma vez que esse grupo é o mais vulnerável a acidentes perfurocortantes no ambiente hospitalar. Dessa forma, o desenvolvimento de pesquisas específicas para o grupo populacional estudado contribui para o diagnóstico situacional e a implementação de medidas preventivas para a promoção da saúde do trabalhador. A hepatite B é uma doença ocupacional de rápida soroconversão, por isso o estado vacinal adequado e a compreensão sobre os riscos no ambiente hospitalar constituem meios para redução das incapacidades oriundas dos acidentes ocupacionais. Conclusões A hepatite B é uma doença ocupacional relevante no ambiente de saúde e os profissionais de Enfermagem estão susceptíveis a adquiri-la se medidas de precaução, tanto coletivas quanto individuais, não forem implementadas. Assim, no decorrer da investigação desse tema, constatou-se que os acidentes de trabalho com perfurocortantes atingem quase a metade dos profissionais participantes, cerca de dois terços dos acidentes investigados não são notificados e a maioria dos profissionais estudados não realiza nenhuma medida de profilaxia pós-exposição ocupacional. Sobre o instrumento causador do acidentes, as agulhas são mais frequentes entre as categorias profissionais de Enfermagem e as luvas, o EPI mais referido para uso nas atividades laborais. Quanto à imunoprevenção de acidentes ocupacionais, das três categorias profissionais estudadas, os Auxiliares de Enfermagem apresentaram o maior percentual de esquema vacinal incompleto para hepatite B. Nesse sentido, recomenda-se a ampliação de estratégias de educação continuada, bem como o desenvolvimento de pesquisas dentro da saúde do trabalhador. Contribuições de autoria Araújo, T. M. E.: participou das etapas de treinamento do grupo, análise dos dados estatísticos e da elaboração do manuscrito. da Costa e Silva, N.: participou da elaboração do manual de procedimentos do projeto, do treinamento do grupo, da análise dos resultados desta pesquisa e da elaboração do manuscrito. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 175-183, 2014 181 Referências ALI, N. S.; JAMAL, K.; QURESHI, R. Hepatitis B vaccination status and identification of risk factors for hepatitis B in health care workers. Journal of the College of Physicians and Surgeons - Pakistan, Karachi, v. 15, n. 5, p. 257-260, 2005. PMid:15907232 ARAÚJO, T. M. E. Vacinação Infantil: conhecimentos, atitudes e práticas da população da Área Norte/ Centro de Teresina-PI. 2005. 95 p. Tese (Doutorado em Enfermagem)–Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. ATKINSON, W. L. et al. General recommendations on immunization. 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São Leopoldo, RS, Brasil. 2 Contato: Laura Cecilia López E-mail: [email protected] Trabalho baseado em dissertação de mestrado de Juliana Figueiredo Arreal intitulada “Saúde da Mulher Trabalhadora de Turno Noturno”, defendida em 2012, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. O trabalho foi apresentado no X Congresso da Abrasco, em Porto Alegre, em 2012, e publicado nos anais como resumo. As autoras declaram não haver conflitos de interesse e que o trabalho não foi subvencionado. Recebido: 27/05/2013 Revisado: 22/06/2014 Aprovado: 23/06/2014 184 Resumo Objetivo: analisar os impactos que o trabalho noturno exerce sobre a saúde de trabalhadoras do setor metal-mecânico. Métodos: a partir do olhar sobre as relações de gênero, foca-se como a organização e a divisão social do trabalho afetam a vida cotidiana dessas mulheres. Examinam-se essas experiências à luz das reflexões sobre vulnerabilidades, produzidas na relação gênero/trabalho/ saúde. Trata-se de um estudo qualitativo, realizado em 2012, empregando-se entrevistas semiestruturadas com nove trabalhadoras de turno noturno de uma empresa localizada na região metropolitana de Porto Alegre/RS. A análise dos dados foi guiada pelo método de Análise de Discurso. Foram construídos eixos analíticos com base no diálogo entre a literatura e os discursos das entrevistadas. Discussão: identificaram-se desigualdades de gênero que impactam nas condições de saúde das trabalhadoras metalúrgicas de turno noturno, apontando-se algumas especificidades das vivências dessas trabalhadoras no local pesquisado: agudo processo de subvalorização do trabalho, descanso limitado, alimentação irregular, dificuldades na organização da vida fora do ambiente de trabalho, falta de acesso a suportes sociais que apoiem as atividades femininas, sobrecarga das responsabilidades assumidas, que, muitas vezes, causam sofrimento mental e/ ou outros adoecimentos. Palavras-chave: gênero; saúde; trabalho; trabalho em turnos; turno noturno. Abstract Objective: to analyze the impacts of night shift work on the health of metalmechanical women workers. Methods: from the perspective of gender relations, this study focuses on how the organization and social division of labor affect the everyday lives of these women. It examines experiences in light of these reflections on vulnerabilities, produced in the gender/work/health relationship. It is a qualitative study, held in 2012, using semi-structured interviews with nine night shift workers of a company located in the metropolitan region of Porto Alegre, Rio Grande do Sul state. Data analysis was based in the method of discourse analysis. Analytical lines were built on the dialogue between the literature and the interviewees’ discourses. Discussion: we identified gender inequalities that may impact on night shift metal-mechanic workers’ health, pointing at some particularities of these workers’ daily lives in the researched sector, such as: acute process of work underestimation, limited rest hours, irregular eating, difficulties to organize their lives off work, lack of access to the social structures that can back their female activities, and over charge of assumed responsabilities that can cause mental suffering and/or other illnesses. Keywords: gender; health; work; shift work; night work. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 Introdução Este artigo analisa os impactos que o trabalho noturno exerce sobre a saúde de trabalhadoras do setor metal-mecânico. A partir de um olhar que leva em consideração as relações de gênero, verifica-se como a organização e a divisão social do trabalho afetam a vida das mulheres objeto deste estudo. Pretende-se examinar a experiência cotidiana feminina à luz das reflexões sobre vulnerabilidades em saúde, ao levar em consideração os efeitos das desigualdades de gênero nos processos de saúde-adoecimento. Conceituam-se as vulnerabilidades como contextos gerados a partir de condições sociais de violência cotidiana e de injustiça estrutural, que provocam uma fragilidade política e institucional na promoção, proteção ou garantia de direitos de determinados indivíduos ou grupos (AYRES et al., 2009). Nesse sentido, focaremos a relação entre gênero, trabalho e saúde, para apontar algumas lacunas na promoção de saúde no universo pesquisado. Entendemos a promoção de saúde como ações voltadas para indivíduos e coletividades, através de políticas públicas intersetoriais que incluam amplamente os direitos de cidadania (BUSS, 2000) e que possibilitem a construção intersubjetiva (ALMEIDA FILHO; CASTIEL; AYRES, 2009) entre os atores envolvidos. No Brasil, nas últimas décadas, assistimos o crescente incremento das mulheres no mercado de trabalho “[...] de forma intensa e diversificada, sem retrocesso, apesar das crises econômicas que abalaram o país” (ARAÚJO; OLIVEIRA, 2006, p. 185). As mulheres estão exercendo diferentes profissões, atingindo diversos setores, bem como estão estudando e se qualificando mais do que os homens (OLIVEIRA, 1997; BRUSCHINI, 2007). Porém, as transformações relativas ao aumento da escolaridade ainda não significam salários iguais aos dos homens, persistindo as desigualdades de gênero no mercado de trabalho (BRITO, 2011). Presencia-se uma construção social de gênero, que provoca que homens e mulheres trabalhadores sejam, desde os núcleos familiares, diferentemente qualificados e capacitados para o ingresso no mercado de trabalho. Sendo assim, muitas vezes a situação desfavorável vivenciada pelas mulheres é reforçada, já que a carreira é marcada pela descontinuidade (maternidade, criação dos filhos) e por salários menores (BRITO, 2000; HIRATA; KERGOAT, 2007; OLIVEIRA, 1997, 1999). Os processos de globalização e de expansão das políticas neoliberais e de reestruturação produtiva têm efeitos na precarização do trabalho, em concomitância com as mudanças nas condições laborais por enfraquecimento ou por perda de direitos sociais, direitos sindicais, de prevenção e de segurança no Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 trabalho. Somado à organização das relações de gênero no mercado de trabalho, esses fenômenos geram condições de maior vulnerabilidade para as mulheres (GIANNASI, 1997; BRITO, 2000). Ao analisar as condições de trabalho como mantenedoras das desigualdades de gênero, devemos considerar também a produção de desigualdades em vários contextos sociais, ligados às esferas produtivas e reprodutivas (OLIVEIRA, 1999; HIRATA; KERGOAT, 2007). Ainda, para refletir sobre os processos de saúdeadoecimento das mulheres trabalhadoras, deve-se considerar que as mulheres têm papéis sociais diferenciados, assim como experiências distintas de viver, de sofrer e de adoecer, permeadas por relações de gênero. Para contemplar essa diversidade, precisase de um conceito integral de saúde, incluindo não só os aspectos referentes aos processos de adoecimento no ambiente de trabalho, como também os impactos dos fatores que dizem respeito à reprodução social (OLIVEIRA; BARRETO, 1997; MINAYO-GOMEZ; MACHADO; PENA, 2011). A coexistência da produção e da reprodução em algumas circunstâncias pode promover a saúde, já que a oportunidade de ter seus próprios rendimentos e o apoio familiar podem compensar as dificuldades advindas dos processos de trabalho. Contudo, em outros casos, podem gerar conflitos e contradições que não conduzem à qualidade de vida e ao bemestar, gerando mais transtornos e adoecimentos para as mulheres (SCHIRMER, 1997; OLIVEIRA, 1999; BRITO, 2000, 2005). Estudos apontam que as fronteiras entre o trabalho e o lar são mais permeáveis para as mulheres do que para os homens, estando sua saúde mental e física moldada nas suas vivências como trabalhadoras e mães. Por isso, os conflitos decorrentes das relações de gênero, nas quais cabe à mulher o equilíbrio individual entre os tempos doméstico e social, podem gerar maiores incidências de vivências depressivas nas mulheres (SCHIRMER, 1997; OLIVEIRA, 1999; HIRATA; KERGOAT, 2007). Sendo assim, cabe a discussão sobre as vulnerabilidades experienciadas por trabalhadoras que exercem suas atividades empregatícias em um período de trabalho inverso ao da maioria da população – o turno noturno, em um setor que essencialmente emprega homens: o setor metal-mecânico. Esse setor constituiu-se historicamente como sendo um ambiente de trabalho masculino, no qual aptidões como força, capacidade física e conhecimentos técnicos sobre mecânica são culturalmente vinculados ao homem. No entanto, nos últimos anos, as trabalhadoras vêm adquirindo maior espaço nesse ambiente, mesmo que ainda menor que o dos homens (SARDENBERG, 2004). 185 A maioria dos estudos realizados no Brasil que abarca uma dinâmica mais ampla relativa ao turno noturno está relacionada à investigação de uma série de autores e autoras (MORENO; LOUZADA, 2004; FISCHER; LIEBER, 2007; ROTENBERG, 1997, 2004). Além disso, os trabalhos atuais sobre gênero e trabalho noturno estão mais restritos às trabalhadoras da área hospitalar, principalmente as da enfermagem e as da medicina (GASPAR; MORENO; MENNABARRETO, 1998; OLIVEIRA, 2005; MANHÃES, 2009; MEDEIROS et al., 2009; SILVA; MARTINO, 2009). Cabe citar, também, as pesquisas de cunho epidemiológico com análises de risco, que focalizam os agravos à saúde gerados a partir do trabalho noturno (RÉGIS-FILHO, 2002; CRISTOFOLETTI, 2003; MOLINO et al., 2008; MACAGNAN, 2010). Identificou-se, então, uma lacuna de conhecimento referente à saúde das trabalhadoras de turno noturno – assim como uma lacuna em relação à saúde das mulheres no setor metal-mecânico – como problemática abordada pela Saúde Coletiva, com abordagem qualitativa. O presente estudo visou contribuir com tal reflexão e dialogar com os estudos feministas que elencam a relação entre gênero, trabalho e saúde em uma perspectiva que aproxima o marxismo e o pósestruturalismo, a fim de entender como se dá a produção de desigualdades e de seus efeitos no cotidiano das mulheres (OLIVEIRA, 1997, 2008; ROTENBERG, 2004; SARDENBERG, 2004). Métodos O presente estudo parte de uma abordagem qualitativa, privilegiando a óptica dos atores envolvidos e suas experiências sociais (FLICK, 2009; MINAYO, 2010). A observação direta no ambiente de trabalho foi utilizada de maneira complementar, para melhor compreender e contextualizar as falas das entrevistadas. A principal técnica aplicada foi a entrevista semiestruturada, com questões referentes à organização da vida cotidiana das mulheres dentro e fora do trabalho. Redes sociais de apoio, cuidados com a saúde, percepções sobre a saúde, organização da jornada de trabalho e vivências no espaço de trabalho compuseram o teor do roteiro semiestruturado. Em síntese, dois eixos percorreram as questões: indagações sobre a percepção de diferenças/ desigualdades entre homens e mulheres; e relação trabalho noturno/saúde na vida das mulheres. As entrevistas foram gravadas e transcritas para melhor apreensão dos discursos. Com relação às transcrições, foram realizadas com respeito aos traços característicos de fala e às entoações expressivas de cada locutor. Em vista disso, optou-se por mantê-las o mais próximo possível da realidade de fala do entrevistado (ou seja, sem correção ortográfico-gramatical). Quanto 186 às pontuações, foram organizadas com base na apreciação (ênfase) que o locutor dava às palavras em seu discurso. O universo empírico foi constituído por mulheres trabalhadoras de turno noturno (no horário das 22 h às 5 h) que atuam no setor metal-mecânico, todas com vínculo com o sindicato da categoria – instituição procurada antes do contato com as mulheres alvo deste estudo, e que promoveu, através de uma interlocutora, as primeiras relações com as trabalhadoras. Algumas entrevistas ocorreram dentro do sindicato, e as restantes no interior de uma empresa de grande porte, conforme agendamento prévio. Ambas as instituições estão situadas na parte norte da região metropolitana de Porto Alegre/RS, denominada também como Vale do Rio dos Sinos. Essa região apresenta estrutura econômica com forte presença industrial de diversos setores, sendo considerada especializada na cadeia coureiro-calçadista. O trabalho de campo ocorreu entre abril e agosto de 2012. Foram entrevistadas nove trabalhadoras, com idade entre 21 e 45 anos, sendo oito delas casadas, das quais sete tinham filhos com idade entre 6 e 24 anos. Dentre essas, uma delas estava no início da segunda gestação, no período da pesquisa. Todas elas moravam com o cônjuge e filho, exceto uma, que ainda não tinha filhos, e outra, que não era casada e morava com a mãe. Das nove trabalhadoras, no momento da pesquisa, apenas uma já havia saído do turno noturno. A análise dos dados foi orientada pela perspectiva de Análise do Discurso (IÑIGUEZ, 2005), sendo os discursos fundamentais na (re)construção e reprodução das estruturas e da organização social. O corpus de análise foi construído a partir da transcrição das entrevistas e dos diários de campo, decorrentes das observações na empresa e no sindicato. Realizou-se a categorização dos enunciados, conforme eixos temáticos que emergiram dos discursos na triangulação entre as falas, nos diários de campo e nos achados bibliográficos (GIBBS, 2009; MINAYO, 2010). Foram construídos dois eixos analíticos: o primeiro, ancorado no conceito de gênero, analisa as maneiras como as entrevistadas lidam com as desigualdades de gênero e com a divisão do trabalho também pautada por essas desigualdades, nas esferas da produção e de reprodução sociais. O segundo examina a produção de vulnerabilidades e os processos de saúde-adoecimento experienciados por essas trabalhadoras. A pesquisa contou com a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade, através do Protocolo 11/175 - 2011. Todas as entrevistadas assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. São utilizados nomes fictícios para identificar as entrevistadas, com o objetivo de manter o sigilo de suas identidades. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 Resultados “Dormia menos, mas estava lá...”: dinâmicas na vida das trabalhadoras Usamos o termo “gênero” como categoria analítica que se torna explicativa dos atributos específicos que cada sociedade impõe ao masculino e ao feminino, a partir dos lugares social e cultural construídos hierarquicamente, como relações de poder (SCOTT, 1995). Nessa perspectiva, questiona-se o uso biológicodeterminista do termo “sexo”. Entendemos que gênero atravessa a relação trabalho-saúde por apontar a constituição dos processos de trabalho através de relações desiguais de gênero, que tem efeitos diferenciados na saúde de mulheres e de homens trabalhadores (OLIVEIRA, 1997). Nas entrevistas realizadas com as funcionárias da empresa em questão, quando perguntamos se elas percebiam algum tipo de diferença/desigualdade entre homens e mulheres dentro e fora da empresa, todas responderam que não notavam. Porém, com o avançar das entrevistas, elas relacionavam o turno noturno com as atividades ligadas à reprodução social, apontando algumas disparidades, conforme referiram Paula e Rosa3: Pelo menos o que eu vejo comentar [entre os funcionários da empresa] é “Ah, dormi o dia inteiro”, “Ah, não sei o que”, eu digo “Ah, é fácil, né? Porque [para] nós é diferente!” Eu tenho filho pequeno. Mesmo tendo filho pequeno, a roupa não pula de dentro da máquina, lavada. Eu acredito que seja mais fácil [para os homens] do que para nós (Paula). Ah, eu não sei, eu não consigo visualizar se para eles era melhor ou não. A única condição que tinha é que a gente conversava sempre entre as meninas, era que as mulheres têm mais responsabilidade, né. Eles [funcionários homens] conseguem descansar mais. (Rosa) De maneira semelhante, Bia4 relatou a facilidade que os homens encontram no ambiente domiciliar, pois os cuidados com a casa e com os filhos se restringem às mulheres, estando eles mais livres para descansar: “eu acho que tem diferença do homem, chega em casa e dorme”. Com relação ao mesmo assunto, a fala de Raquel5, a mais jovem das entrevistadas, denota a responsabilidade da mulher como cuidadora do lar, possibilitando a reflexão acerca da maneira como ela percebe o “papel 3 4 5 6 da mulher” casada, como responsável pelos cuidados com o marido, funções que ela ainda [só] não exerce por ser solteira: Ah, pra mim não é tão difícil porque eu não sou casada, não tenho compromisso. Não tenho aquela coisa de chegar e arrumar a roupa do meu marido, sabe? Eu não preciso. Se eu não lavar com certeza minha mãe vai lavar. (Raquel) Em consonância com os achados de Araújo, Picanço e Scalon (2007) ressaltamos, das falas, a expressividade de uma jornada intensiva de trabalho feminino, que é assumida socialmente como algo que diz respeito só à mulher. Conforme dados do Ministério da Saúde, as mulheres trabalham durante mais horas do que os homens e, pelo menos, metade do seu tempo é gasta em atividades não remuneradas, que acabam por restringir ainda mais o acesso delas aos bens sociais, inclusive aos serviços de saúde (BRASIL, 2011). Através das falas, percebeu-se que grande parte das mulheres se vê destinada à realização de tarefas domésticas, e que tais tarefas afetam a sua saúde na medida em que invadem e constrangem o tempo para a realização de outras atividades básicas, como sono, descanso e demais atividades associadas à sociabilidade e ao lazer. Nesse sentido, a fala de Maria6 ilustra não só as suas “obrigações” com os afazeres domésticos, quando descreve sua rotina, mas também os reduzidos períodos de sono e de descanso que usufrui: [...] quinze para as oito eu vou dormir, eu chego sete e dez. Eu durmo até onze e meia. Se eu tenho almoço pronto eu durmo até meio-dia, senão eu tenho que levantar às onze. Dependendo o que eu tenho de almoço pronto... Aí ele [marido] chega tipo meio-dia e dez com o guri do colégio. Aí nesse horário eu estou com o almoço pronto. Daí ele almoça, meu esposo sai para trabalhar e meu guri fica comigo. Aí faço o tema com ele, se ele tem tema. Já pego ele no início, já chegou do colégio já faz o tema porque depois ele fica com preguiça e não quer fazer. Aí depois estuda um pouco, e eu convenço ele a deitar um pouco e ver uma tv, ele acaba dormindo antes que eu [risos]. Porque ele levanta cedo, vai cedo para o colégio, aí eu aproveito e dou um cochilão até umas quatro, quatro e meia, daí já levanto, faço a janta, dou banho nele... (Maria) No relato de Rosa, aparece a tensão cotidiana de dedicar mais tempo aos filhos, o cansaço relativo ao turno noturno e ao acúmulo de tarefas: Era ruim pra nós [o turno noturno], puxado. Estava sempre cansada, mas era a única opção pra ficar mais tempo com o filho. E também dava tempo para fazer tudo: ir ao médico, banco. Se precisava dormia menos, mas estava lá, pelo menos. (Rosa) Paula: 26 anos, filho de 6 anos, é casada, está há 2 anos e meio no turno noturno. Rosa: 34 anos, casada, filho de 11 anos. Trabalhou no turno noturno por cerca de 6 anos. Bia: 38 anos, casada. Grávida de 4 meses; filho de 15 anos. Há 3 anos no turno noturno. Raquel: 21 anos, solteira. Há 3 anos no turno noturno. Maria: 34 anos, casada. Filho de 6 anos. Há 1 ano e meio no turno noturno. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 187 Conforme apontam os estudos, as mulheres encontram maiores dificuldades no mercado de trabalho, tanto por serem mães quanto pela idade dos filhos. Diferentemente dos homens, que, na sua grande maioria, não têm a carreira prejudicada ou modificada pela paternidade. A responsabilidade pelo cuidado e educação dos filhos e a insuficiência de creches, por exemplo, limitam a saída da mulher para o trabalho remunerado, sobretudo se os rendimentos obtidos são insuficientes para cobrir custos com formas remuneradas de cuidado infantil (ROTENBERG, 2004; BRUSCHINI, 2007; FREIRE, 2007). No trabalho noturno, a presença de algum membro da família que auxilie nos cuidados com o(s) filho(s) é fator determinante para a continuidade (MARCONDES et al., 2003; ROTENBERG, 2004). Foi evidenciado, nas falas das entrevistadas, particularmente das que têm filhos menores de 15 anos, que a presença dos filhos foi, em alguns momentos, um fator motivador para o ingresso no trabalho noturno. Como no caso de Rosa, que atualmente trabalha apenas no sindicato e não mais no turno noturno: “[...] eu optei por ficar nesse turno por isso, pela questão de que eu conseguia estar em casa, meu filho que era pequeno na época. Eu tenho um filho que agora está com 11, era menor, então eu optei por uma forma de eu conseguir ter alguns momentos com ele, né?” Tal fato se repetiu na entrevista de Bia, que referiu a mesma razão para a incursão noturna como horário de trabalho: Olha para mim, cada uma tem a sua particularidade, né? Eu vim para o terceiro [turno noturno] porque eu quis acompanhar mais meu filho durante o dia, eu ficaria mais tempo com ele durante o dia. Dá para acompanhar ele no colégio... Ah, e agora como ele já é mais um adolescente, pré-adolescente no caso, eu já fico mais por perto dele, né? Então eu optei pelo terceiro. Para mim foi mais por essa parte. (Bia) As falas das entrevistadas delinearam uma mulher disposta a alterar sua rotina, a mudar de emprego e/ou reorganizar o tempo de trabalho em prol do cuidado com os filhos, passando por cima de quaisquer formas de saúde física e psicossocial por razões maternas: Então para nós, mães, é uma coisa sacrificada porque tu tens que arrumar um tempo para dormir, tu não dormes. Barulho do dia para nós às vezes atrapalha. É uma coisa assim que tem vezes que tu estás tão cansada que chega e dorme. Tu chegas e apagas, mas tem vezes que não. É barulho do dia a dia, é vendedor, é tudo, tudo que gera em torno de ti durante o dia só que tu estás dormindo... (Bia) [...] eu tive a apresentação do meu guri e eu saí daqui no sábado de manhã. Eu tive que ir no centro no sábado de manhã, eu não consegui dormir e à tarde eu tive que ir no colégio porque tinha a apresentação. E não dormi. Aí eu sei que eu fui no centro, voltei, fiz o almoço, fui para apresentação. Não tinha dormido 188 nada. Aí quando chegou cinco horas da tarde o corpo não estava aguentando mais. E parecia que eu tinha tomado... Chapada, né? Porque meus olhos... (Maria) As dificuldades para conciliar trabalho e família são ainda maiores para as mães de filhos pequenos, não só porque eles requerem maiores cuidados, mas também em decorrência da frágil política pública para atenção às crianças de 0 a 6 anos. De acordo com o levantamento do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), entre 2008 e 2011, o Estado deixou de criar 189 mil vagas para a Educação Infantil, e não cumpriu com as metas do Plano Nacional da Educação (PNE) para o Ensino Infantil. Importante refletir que “[...] a cada 100 crianças de 0 a 3 anos do estado, apenas 23 receberam atendimento em creches, independente da rede. Entre as crianças de 4 a 5 anos, apenas 63 a cada 100 foram atendidas na pré-escola” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2012; RIO GRANDE DO SUL, 2012). Isso indica uma situação de inequidade, em que a falta de assistência às crianças reflete diretamente na ocupação da mãe. Para suprir essas carências, o que normalmente acontece é que as trabalhadoras contam, quando podem, com a ajuda de terceiros nos cuidados com os filhos, e ficam à mercê de algum auxílio prestado por alguém que mantenha algum vínculo familiar (avó, tia, filha) ou vínculo social (vizinha), ou, ainda, alteram seu trabalho ou suprimem seu descanso (BRUSCHINI, 2007; SCHIRMER, 1997; DEDECCA; RIBEIRO; ISHII, 2009). É comum que a mulher deixe de trabalhar, reduza o horário de trabalho ou altere o turno em prol do cuidado com os filhos. Porém, muitas vezes, esse contínuo “adaptar a vida aos afazeres domésticos” reitera desigualdades de gênero e acaba por naturalizar a falha dos equipamentos públicos para com a assistência às trabalhadoras e às crianças (OLIVEIRA, 1999; DEDECCA; RIBEIRO; ISHII, 2009; BRUSCHINI, 2007). Uma das entrevistadas expressou que, devido à “ausência” de alguém que cuidasse do seu filho, preferiu reorganizar o horário de trabalho, com a finalidade de atender às exigências da relação mãe e filho: Quando eu vim para o terceiro foi por necessidade, porque eu não tinha quem pegasse meu filho no colégio, porque ele estava saindo da creche, a gente criou ele sempre em creche, aí ele estava indo para o colégio para o primeiro ano e não tinha quem pegasse ele. Eu tentei alguém, ninguém queria aquele pouco tempo que era um horário das cinco às sete horas que meu esposo chega. Ninguém queria trabalhar naquele horário, sabe? Não era de graça, eu ia pagar, mas ninguém queria aquele compromisso daquele horário porque achavam muito pouco tempo. Aí não tinha quem pegasse ele, aí eu optei por trocar de turno. No início foi complicado... (Maria) Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 A partir desse ponto, a entrevistada relata que não gostou, inicialmente, da mudança. Contudo, ao perceber que o tempo que passava com o filho se tornou maior, passou a enxergá-la como positiva, independentemente do desgaste físico. Essa referência também foi mencionada por Bia: “[...] uma reunião no colégio, pegar ele no colégio, pegar o boletim, participar de alguma coisa que eles apresentam. Isso é muito importante. Faz um pouquinho de sacrifício, dorme um pouquinho menos, mas tu estás sempre lá.” A pesquisa evidenciou que os horários diurnos são ocupados, pela maioria das trabalhadoras, com o descanso (dormir), com afazeres domésticos e com obrigações vinculadas aos filhos. Quando questionadas sobre os períodos de lazer, algumas demonstraram insatisfação com a falta de momentos de distração, referiram que sentem falta de sair em horários “normais”, “sem preocupação”. Outras, no entanto, demonstraram satisfação nesse aspecto, pois associaram lazer com o cuidado materno. No que tange à representatividade feminina na empresa estudada, principalmente no turno noturno, os homens ocupam cerca de 90% dos cargos. No entanto, mesmo se tratando de um setor produtivo majoritariamente masculino, vem acompanhando a tendência mundial de aumento da força de trabalho feminino, e por isso demonstrando maior incremento de mão de obra feminina, ao longo dos últimos anos (SARDENBERG, 2004; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2006). Porém, o aumento do trabalho feminino tem sido parte de uma nova forma de trabalho, para a qual as empresas têm se reestruturado por objetivarem produzir mais, obtendo maiores lucros com menores custos (MONTAGNER, 2004; OLIVEIRA, 1999; BRITO, 2000; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2006). As tentativas de modernização e de redução de custos, em boa parte das empresas do setor metalúrgico, têm propiciado o aumento do desemprego, a precarização das condições de trabalho e a flexibilização da jornada de trabalho (OLIVEIRA, 1997; GIANNASI, 1997; DEDECCA; RIBEIRO; ISHII, 2009). Além disso, essa modificação, chamada reestruturação produtiva, aguça ainda mais a desigualdade entre os gêneros. As mulheres são submetidas a funções menos qualificadas, aos trabalhos mais intensificados e aos postos taylorizados, que ainda exigem delas qualidades vistas como essencialmente femininas, como cuidado, paciência, atenção, destreza, além de exigirem a necessidade de realizar atividades repetitivas (GIANNASI, 1997; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2006). A existência de desigualdades pôde ser percebida a partir do discurso de Maria, que demonstrou interesse em se qualificar, mas que, segundo sua avaliação, não alteraria em nada sua situação na empresa: Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 Eu queria estudar, mas agora com meu filho tenho que dar primeiro atenção para ele. Depois quando ele estiver maior... Ele cresce muito rápido. [...] como esses dias eu ainda pensei, né? Faz falta tu estudar para aprender, mas em relação ao nosso salário não vai mudar. Não vai mudar porque tem tanta gente já formada ali que não ganha a promoção, que às vezes surge uma promoção e eles pegam às vezes um de fora e não pegam do setor que está formado. Aí, tu vais estar deixando teu filho sozinho em casa e estudar para saber que teu salário vai ficar a mesma coisa. Mas é bom para aprender, mas se vai pensar em relação de aumentar o salário... (Maria) As mulheres do turno noturno da empresa estudada trabalham em apenas um setor, aquele que envolve a distribuição de peças (CDP), e não apresentam perspectivas de plano de carreira, de acréscimo de salário ou de progressão funcional, conforme foi explicitado pelas entrevistadas. Ao questionamento acerca das possibilidades de progressão para os homens, as falas tornam evidentes as desigualdades entre os gêneros. Segundo os relatos, para os homens a qualificação pode gerar novas oportunidades dentro da empresa. Nessa altura, identifica-se que, apesar de anteriormente as mulheres terem negado qualquer diferença/ desigualdade de gênero, no âmbito da progressão profissional foram apontadas as oportunidades que os homens dispõem dentro da empresa, e que elas não possuem. Tais dados conferem com os estudos já existentes, constatando que, mesmo alguns homens dividindo as mesmas funções que as mulheres, eles têm a chance de ocupar cargos que exigem conhecimentos mais técnicos e científicos, áreas mais modernas e tecnológicas, funções de chefia e de liderança, conquistando, portanto, melhores salários; já as mulheres não vivenciam as mesmas perspectivas de trabalho (GIANNASI, 1997; BRITO, 2000, 2011; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2006). A divisão do trabalho pautada nas relações desiguais de gênero atravessa a reestruturação produtiva, implicando a coexistência de um setor flexibilizado masculino e de um setor taylorizado feminino. Porém, a maioria dos estudos de análise da reestruturação produtiva acaba por apontar os aspectos positivos, dando ênfase ao trabalhador moderno, polivalente e qualificado, “esquecendo” que as mulheres não têm sido requalificadas para os novos equipamentos de base microeletrônica, e nem têm sido contempladas com aperfeiçoamentos técnicos, nem maiores rendimentos (BRITO, 2000; HIRATA; KERGOAT, 2007). Em suma, o trabalho das mulheres nas indústrias é caracterizado pela repetitividade, monotonia e pelo ritmo intenso, sem obterem melhores oportunidades (BRITO, 2000). No que se refere ao sindicato de metalúrgicos da região pesquisada, embora agregue homens e mulheres, a maioria é masculina. A representatividade 189 das trabalhadoras noturnas é ainda menor por esse turno ser ocupado quase que totalmente por homens. O processo de transformação da estrutura sindical e a incorporação política das mulheres nas estruturas de poder ainda não são suficientes para garantir a igualdade de tratamento, nas relações de trabalho e nas relações sindicais, entre mulheres e homens (COSTA, 2004). As vivências de trabalhadoras metalúrgicas em relação ao sindicato ainda estão permeadas pela exclusão feminina e pelos tratamentos sexistas (SARDENBERG, 2004). No presente estudo, a maioria das entrevistadas confirmou a importância da existência do sindicato. No entanto, transpareceu, nas falas, o desconhecimento e, ainda, o acesso restrito aos direitos trabalhistas, que poderiam ser mais bem mediados pelo sindicato, bem como a reduzida representatividade feminina, uma vez que as reivindicações são mais pensadas para os trabalhadores do que para as trabalhadoras. A saúde das trabalhadoras na penumbra: reflexões sobre vulnerabilidades Neste tópico, articulamos as falas analisadas com a reflexão de Ayres et al. (2009) sobre a produção de vulnerabilidades em saúde, e com as considerações sobre os efeitos das desigualdades de gênero nos processos de saúde-adoecimento. Ao considerar as vulnerabilidades, chamamos atenção para o “[...] conjunto de aspectos individuais e coletivos relacionados ao grau e ao modo de exposição à dada situação e, de modo indissociável, ao maior ou menor acesso a recursos adequados para se proteger das consequências indesejáveis daquela situação” (AYRES et al., 2009, p. 123). Destacam-se os aspectos da produção de vulnerabilidades que dizem respeito às dimensões individual, social e programática, para pensar a relação gênero/trabalho/saúde. Consideram-se, no plano individual, as percepções e as maneiras de agir de acordo com os saberes e as possibilidades com as quais contam os sujeitos. No plano social, referimos às práticas coletivas de enfrentamento às adversidades, conforme a disponibilidade de recursos e ao acesso a esses recursos. E no plano programático, pensamos a falta de investimentos em ações e programas, serviços sociais e de saúde de fácil acesso, com alta qualidade, democraticamente delineados; assim como a falta de adoção de mecanismos de não discriminação nas instituições. Em relação aos resultados do estudo, no plano individual das vulnerabilidades, pode-se notar que as entrevistadas encontram uma série de adversidades. Pode-se ressaltar o cansaço e a falta de sono decorrentes 7 do acúmulo de tarefas no cotidiano, para além do âmbito de trabalho, como o principal diferencial causado pelo turno noturno. Em muitos momentos, elas se referiram à privação do sono, à dificuldade ou ao pouco tempo para dormir, aos barulhos do dia e aos afazeres que comprometem o tempo de descanso. O sono não é o mesmo do que aquele realizado à noite: “não é um sono reparador”, como enfatiza uma entrevistada. Reportaram-se à dificuldade em “pegar no sono”, ao chegar a casa, devido às características do período diurno (barulho intenso), assim como às “obrigações” a elas imputadas. As trabalhadoras também relataram que, muitas vezes, se sentem agitadas, e por isso não conseguem dormir – fato já descrito como relativo às alterações fisiológicas do organismo referentes ao turno noturno, e que podem gerar adoecimentos que comprometem a saúde em geral (AVENDAÑO; GRAU; YUS, 1997; RÉGISFILHO, 2002; MARCONDES et al., 2003; MORENO; LOUZADA, 2004; ROTENBERG, 2004; FISCHER; LIEBER, 2007; RIBEIRO, 2008; MACAGNAN, 2010). Quanto a esse aspecto, Maria relatou: É que às vezes as pessoas sabem que tu trabalhas à noite, mas as pessoas não respeitam. Às vezes elas vêm trovar na frente da tua casa, sabem que tu estás dormindo. Geralmente, no inverno é ótimo que tu não vês ninguém na rua. Agora dá uma esquentadinha e todo mundo vai para a rua. Aí, é aquela barulheira. Tem dias que eu não durmo à tarde, só aquele soninho da manhã. Às vezes, eu deitei quinze para as oito e eu tive um sono só até meio-dia. E acordei renovada. Entende? O problema é que às vezes o telefone toca, aí tu te levantas para atender, porque o convencional é lá... Aí não é nada, aí tu te irritas. À tarde quando eu deito, eu estou acostumando tirar do gancho, que daí eu consigo dormir. Pela manhã não posso, vai que acontece alguma coisa com meu guri, mesmo tendo o celular, não fico tranquila. Aí às vezes toca o telefone, tu vais atender e é besteira, te oferecendo pacote... Aí tu já acordaste, para voltar tudo de novo. (Maria) Cabe ressaltar que as percepções sobre as dificuldades e adversidades relativas ao turno de trabalho foram sendo expressas ao longo das entrevistas, já que, inicialmente, elas não reportavam quaisquer incômodos. Outra queixa foi referente às alterações fisiológicas geradas pelo turno noturno, e também a repercussão que isso pode gerar em âmbitos individual e social: É que o sono do dia não é o mesmo que o sono da noite, né? Então o que acontece, que assim como as outras também, chega fim de semana, principalmente no sábado que tu não vais trabalhar tu passas a noite acordada... (Vera7) No final de semana quando tu queres aproveitar tipo como todo mundo, então no tempo que tu tens para ficar com a tua família, tu estás desmaiando. Que nem eu no final de semana que eu deitei às três horas de Vera: 45 anos, casada. Filho de 15 anos. Há 5 anos na empresa e há 4 no turno noturno. 190 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 domingo e acordei às dez da noite. Quando estava todo mundo querendo dormir eu estava bem ligada querendo conversar... (Raquel) Interessante trazer à luz a condição de trabalho vivenciada por Dulce8, vigilante noturno, que enfrenta intensa pressão psíquica por precisar estar em constante estado de alerta, pois porta arma de fogo e cuida da segurança da empresa. Além disso, agrega maior jornada de trabalho (12 horas) e, segundo ela, “[...] não tem feriado nem final de semana. É sempre um dia sim um dia não”. Ela também relata estar estressada e com dificuldades para dormir: Eu até durmo durante o dia. Eu deito quando eu chego de manhã, mas na minha noite de folga eu não consigo dormir. Eu tenho mal-dormir. Quando eu consigo dormir é um mal-dormir horrível. E ultimamente eu não consigo, não estou conseguindo dormir de dia também. Eu agora mesmo eu estou... Acho que dois dias que eu não consigo dormir. Não sei se é estresse, acho que é... Vai cansando. Acho que é o estresse. Amanhã de manhã eu vou na empresa lá e eu quero pedir alguma coisa para me ajudar a relaxar. [...] Eu preciso trabalhar. Sábado eu não consegui vir. Cheguei no meu limite. Fazia muitas e muitas horas, aí eu comecei a ter tontura. Aí não vim trabalhar. (Dulce) Um ponto que merece atenção é de caráter hormonal. Por estarem acordadas em um período em que o corpo habitualmente estaria em repouso, alguns hormônios não reagem da mesma forma, bem como o sistema digestivo dessas mulheres, comprometendo sua saúde e seu bem-estar. Associando isso à má alimentação, podem ser gerados agravos físicos, ou propiciado o agravamento de algumas doenças (CRISTOFOLETTI, 2003; ASSIS; MORENO, 2004; FISCHER; LIEBER, 2007; MACAGNAN, 2010). Através das entrevistas, algumas irregularidades puderam ser percebidas nas refeições das trabalhadoras, tanto na qualidade quanto na quantidade dos alimentos consumidos. No que tange às limitações relativas aos horários das refeições, também há dissonâncias: como ocorrem em horário não usual, se comparadas com a de grande maioria dos trabalhadores, algumas tinham o hábito de “beliscar alguma coisa”, ao invés de jantar, ou não “tinham apetite” no horário em que era servida a janta da empresa, por acharem estranho fazer uma refeição tão tarde. A aglutinação das alterações metabólicas com a fragilidade alimentar torna as trabalhadoras mais suscetíveis ao desenvolvimento de algumas doenças, como hipertensão, patologias cardíacas, dislipidemias, alterações hormonais, transtornos do apetite, gastrite crônica, sobrepeso, obesidade, diabetes e outros acometimentos que geram uma piora na qualidade de 8 9 vida dessa população (MORENO; LOUZADA, 2004; COSTA, 2004; BARRETO, 2008; MACAGNAN, 2010). No presente estudo, foi possível perceber que algumas entrevistadas estavam com excesso de peso. Além disso, no decorrer das entrevistas, algumas mulheres relataram desconforto com o peso, e apontaram o turno noturno como fator potencializador desse problema. Alice9, além de afirmar seu excesso de peso, também apontou outras funcionárias do turno noturno como tendo adquirido peso: Eu já estava gordinha, mas eu percebi que eu ganhei mais peso, porque na verdade assim eu não sou muito magra. A Teresa e a Raquel são um caso à parte, mas se tu olhar a maioria das mulheres tão todas bem fortinhas. Daí eu percebo assim, que eu nunca fui uma pessoa muito de atividade física, mas eu noto que eu estou muito mais sedentária... (Alice) Outro aspecto impactante à saúde das trabalhadoras, relacionado com a alimentação, foi expresso por Vera, visivelmente com obesidade, que relatou ser hipertensa e se sentir infeliz com seu peso. A entrevistada pretendia se submeter à cirurgia bariátrica, objetivando reduzir o peso e melhorar a qualidade de vida. No entanto, o médico não aceitou operá-la, porque entendeu não ser seguro submetê-la ao procedimento devido ao turno de trabalho e às responsabilidades exigidas no pós-operatório: Até eu ia fazer a cirurgia bariátrica. Mas daí o médico ficou muito preocupado por causa do meu horário de trabalho. Porque tudo é regrado [no pós-operatório]. Tem horário para se alimentar... Várias coisas... Aí o horário que eu trabalho ele ficou muito preocupado. A única coisa que tem em relação à cirurgia era o horário mesmo. Até eu fiquei meio assim... [...] mas daí eu estou pensando seriamente... Se é para arrumar uma coisa e estragar outra, né? (Vera) Faz-se interessante ressaltar que Dulce, aparentemente também com sobrepeso, embora já tenha realizado a citada cirurgia há alguns anos antes de aderir ao turno noturno, faz menção às dificuldades alimentares que enfrenta. Ela se refere ao fato de, por vezes, precisar se alimentar rapidamente, devido às pressões do horário de trabalho, o que a faz sentir alguns desconfortos: Eu particularmente antes, eu fiz uma cirurgia de redução de estômago há oito anos. Oito anos atrás. Eu tinha 150 kg. Ninguém diz. Tu sabes que eu me alimento muito mal, que eu não como carne, eu tenho que comer devagarinho. Então eu como quase nada, me alimento muito ruim, tenho que estar sempre tomando vitamina. É bem complicado. Se eu vou lá e janto correndo e volto correndo, chega dez para às três da manhã, que é a saída da empresa, eu chego aqui já não para no estômago. Para mim é complicado. (Dulce) Dulce: 37 anos, casada. Uma filha com 14 anos e outra com 19 anos. Há 1 ano e meio no turno noturno da empresa. Alice: 45 anos, casada. Filho de 24 anos. Na empresa, há 15 anos, e há 1 ano e meio no turno noturno. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 191 Na fala das entrevistadas, foram identificadas queixas de dores no corpo por esforços repetitivos, relacionadas não só ao cansaço, mas também ao tipo de atividade desenvolvida, conforme a função que ocupam na área de conferência. É o caso de Teresa10, que já ficou “de atestado” por um tempo devido às dores. Ela trabalha na conferência, setor que exige a execução de movimentos físicos repetitivos, e é considerado, segundo as trabalhadoras, “um trabalho bastante pesado e manual”. Raquel exerce a mesma função, e mencionou mais problemas físicos do que Teresa, ainda que seja mais jovem: “[...] tenho duas hérnias de disco, tenho escoliose, tenho tendinite, tenho bursite, tenho síndrome do carpo”. Ao ser questionada sobre as possíveis causas das doenças, ela indica a condição de vulnerabilidade vivenciada, reforçando a gravidade que essa forma de trabalho pode gerar a longo prazo: “[...] eu não tinha, eu adquiri tudo aqui dentro. Eu trabalho na área da conferência, no caso. Na separação não tem esforço repetitivo porque tu fica caminhando, né. Agora, na conferência, tu tem que ficar conferindo o que vem.” (Raquel) Vera, que trabalhava no mesmo setor, relembra que pediu para alterar sua função devido às dores relativas ao trabalho, ilustrando também a dificuldade de consultar o médico da empresa (devido ao turno noturno), além dos acometimentos à saúde relativos ao tipo de trabalho: Agora eu estou trabalhando nos kits, é mais tranquilo. Eu trabalhava na conferência e vivia em tratamento, em terapia, não dava mais. Aí tinha que estar faltando sempre porque o médico que trabalha aqui ele não atende em outro horário. Tu tens que ter o teu cartão [da empresa], aí não dava. (Vera) Pesquisas mostram que as mulheres constituem o grupo mais atingido, no trabalho, por doenças e por lesões osteomusculares relacionadas ao esforço repetitivo (LER/DORT). O setor industriário é o maior responsável por esses processos. Nessa faixa incluem-se as metalúrgicas, devido, principalmente, à concentração de mulheres nas linhas de montagem e nos postos marcados pelo ritmo intenso e por tarefas repetitivas (BARRETO, 1997; OLIVEIRA; 1999; BRITO, 2000; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2006). As entrevistadas expressaram vivências que podem ser relacionadas à noção de sofrimento mental, tratado como uma experiência vivida no cotidiano que incide na qualidade de vida. O sofrimento mental não necessariamente se converte em um estado patológico permanente, mas pode vir a se tornar, a partir das experiências: uso do tempo dentro e fora do trabalho como estruturante do sofrimento; 10 ausência de qualificação, provocando sentimento de inutilidade; e ausência de finalidade do trabalho. “Se o trabalhador não pode pensar sobre as tarefas, a relação construída com o processo de produção será sempre uma relação de inutilidade e alienação” (DEJOURS apud OLIVEIRA, 1999, p. 79). Tais fatores impactam a saúde e se tornam ainda mais deletérios quando fundados sobre a margem da desigualdade de gêneros. Esse sofrimento é definido pelas próprias trabalhadoras entrevistadas como estresse, ainda que não relatado literalmente, mas manifestado por meio de outras formas de expressão. Como mostram os estudos epidemiológicos, as trabalhadoras noturnas estão sujeitas, diariamente, a uma gama de aspectos que podem acarretar episódios de sofrimento e adoecimentos, já que as alterações de humor são, muitas vezes, reações do organismo ao estresse, que pode ser oriundo das mudanças nos horários de sono e na falta de descanso (BARRETO, 2008). Além disso, entre os potenciais impactos à saúde estão: o ambiente de trabalho, o turno de trabalho; o reduzido tempo de sono e de repouso, o horário do descanso e as intercorrências no período diurno; os hábitos alimentares dentro e fora da empresa; a realização de atividades domiciliares; o constrangimento do tempo de lazer, o isolamento social e muitos outros aspectos, todos em concomitância, propiciando o acúmulo de penosidades (ROTENBERG, 2004; OLIVEIRA, 2005). Relaciona-se um relato sobre o desconforto e a insatisfação que a supressão e a inversão dos tempos de socialização e lazer podem gerar: Minha questão, família, no caso, é complicada porque tu trabalhas no terceiro [turno noturno], aí tu ficas sempre diferente dos outros. Se alguém combina para sair, né? Porque geralmente no verão todo mundo quer sair. A partir das seis horas todo mundo está em casa: “Ah, a Bia tem que trabalhar”, “Aí, vamos marcar outro dia porque a Bia tem que trabalhar”. Aí a gente fica... [pausa] Mas tranquilo, eles aceitam numa boa, sabe? Principalmente meu marido e o Pedro, meu filho, a gente nota que eles queriam que a gente tivesse presente. (Bia) Possivelmente, de todos os impactos à saúde, talvez os problemas relativos ao sofrimento mental (estresse, tensão, irritabilidade, depressão) sejam os mais limitantes, pois, além de serem “invisíveis”, estão relacionados com todos os outros processos que podem ser gerados a partir da relação gênero e trabalho noturno (REGIS-FILHO, 2002; MARCONDES et al., 2003; MORENO; LOUZADA, 2004; ROTENBERG, 2004). Neste artigo relacionamos tais agravos à saúde com a divisão do trabalho pautada em relações desiguais de gênero, bem como apontamos a relação Teresa: 30 anos, casada. Sem filhos. Trabalha na empresa há 3 anos, sempre no turno noturno. 192 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 desses agravos com a piora na qualidade de vida dessas trabalhadoras, com as vulnerabilidades sociais produzidas por desigualdades de gênero decorrentes da responsabilização gerada pela dupla jornada de trabalho e pela falta de descanso devido ao horário noturno. Quanto à dimensão social de produção de vulnerabilidades, ressalta-se, aqui, o acúmulo de tarefas na organização dos afazeres domésticos decorrentes de relações de gênero desiguais. Com relação ao cuidado dos filhos, destacamos a não disponibilidade de creche como equipamento social para trabalhadoras de turno noturno, tendo que ser mobilizadas redes de apoio na família e, ainda, estratégias já referidas das mulheres para organizar esses cuidados. Agregando às relações de gênero o trabalho realizado à noite, tornam-se mais substanciais as vulnerabilidades devido à diferente forma de organizar o dia, que tende a ser mais complexa para as mulheres, conforme discutimos anteriormente, propiciando a intensificação das cobranças físicas e mentais. Raquel foi uma das trabalhadoras que verbalizou estresse, ao responder como seu namorado reagia ao turno em que ela trabalha: O meu namorado já sofreu mais... Agora ele está mais, assim... O meu problema é com estresse, sabe? Depois que eu passei para o turno da noite, depois que eu comecei a trabalhar à noite eu percebi que eu fiquei muito mais estressada do que eu já era, quer dizer, não sei se eu era. Eu era alegre, sabe? Têm dias que eu estou, assim, que não podem me falar um ai... (Raquel) Sobre o questionamento acerca da razão do estresse, Raquel o relaciona com a falta de convívio social e de lazer, questões que aparecem em estudos que os apontam como geradores de mais insatisfação e de intolerância ao trabalho, além de promoverem irritabilidade e outras questões psicológicas, para além da falta de descanso e das limitações do sono (OLIVEIRA, 2005; ARAÚJO; OLIVEIRA, 2006). A entrevistada relatou, ainda, que recebe atendimento psiquiátrico: Eu não sei se pelo sono. Eu me trato com uma médica, e ela diz que é pelo meu horário mesmo. Eu não participo, eu adoro esse turno, mas querendo ou não eu não participo da vida da minha família. Só nos finais de semana... [...] Eu tenho convivido muito mais, claro com todo mundo, né? Mas quem eu converso mesmo, quem eu passo mais tempo acordada é com o pessoal da empresa. E é onde eu estou menos estressada, porque eu estou saindo de casa e eu estou... Nossa! Sabe? Com muita raiva! Quando eu chego aqui começa a passar, começo a melhorar. Teve uma época pior, antes nem queria voltar para casa, mas agora está bem menos... Agora eu já estabilizei... (Raquel) Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 Raquel, a mais nova do grupo, reside com a mãe, e, conforme já exposto, não tem filhos. Diferentemente de Paula, que tem um filho de 6 anos, mora com o marido e divide o terreno onde está sua casa com sua mãe. Mesmo Paula contando com a ajuda da mãe, ainda assim enfrenta maiores atribuições domésticas do que Raquel, cujo estresse decorre do isolamento social gerado pelo turno de trabalho. Paula, além de dispender mais tempo com os afazeres domésticos, também enfrenta o turno noturno, e descansa ainda menos do que Raquel. Conforme anteriormente citado, Paula também está insatisfeita com o reduzido período de lazer: Depois que eu vim para a noite eu fiquei mais preocupada, tudo para mim estava bom, agora está tudo ruim, sabe. Muito ruim. Eu estava acostumada a trabalhar em comércio, é tudo diferente, sempre uma coisa diferente. Aqui é todo dia mesma coisa, sabe? Fechado. Aí tu vais para a rua, olha o céu... Preto, sabe? Sempre aquela mesma rotina. Até estou adorando. Eu nunca imaginei trabalhar num lugar fechado, à noite, mas tu não vive. Tu aproveitas mais, tu curtes teu filho, mas tu não vives. Enquanto está todo mundo acordado tu estás lá dormindo, quando está todo mundo dormindo tu estás lá acordada. (Paula) As constantes menções ao estresse gerado a partir das jornadas de trabalho merecem atenção. Conforme estudo epidemiológico (DORNELLES; LEHFELD; ENGLER, 2010), as mulheres que trabalham fora de casa e são responsáveis pelos cuidados de crianças e de idosos estão mais propensas a desenvolverem depressão. Além disso, ainda segundo esse estudo, mostraram-se mais vulneráveis aquelas em extremidades econômicas, ou seja, as que ocupam melhores cargos e as de baixa renda. Sendo assim, a situação familiar (presença ou não de parceiro, presença ou não de filho(s), presença de filho(s) com parceiro, presença de filho(s) sem parceiro; apoio social; e atitude positiva do cônjuge ou companheiro(a) em relação ao turno de trabalho da mulher) pode vir a ser característica determinante no processo de tolerância e de adaptação ao trabalho noturno, podendo ou não ser desencadeadora de sofrimento psíquico (OLIVEIRA, 1999; MARCONDES et al., 2003; ROTENBERG, 2004). O mesmo estudo de Dornelles, Lehfeld e Engler (2010) demonstrou que as mulheres com cônjuge e filho(s) são as que mais dedicam tempo aos afazeres domésticos, quando comparadas às solteiras. Portanto, sofrem mais com a jornada fora do local de trabalho, o que confirma os achados encontrados nesta pesquisa. Ao questionar algumas das entrevistadas com filhos sobre a possibilidade de continuar no trabalho noturno, se não tivessem apoio ou auxílio de alguém no cuidado com os filhos, todas referiram que seria inviável, e que possivelmente não trabalhariam no turno noturno. Ressalta-se, mais uma vez, a tensão e preocupação agregada à relação turno-filho(s) e 193 a falta de amparo social às trabalhadoras. Muitas vezes, nas falas, essas situações apareceram como obstáculos, mas elas demonstraram modos de lidar compensatórios. Por exemplo: dedicar mais tempo para os filhos; visto como responsabilidade atribuída à mulher, mas também como algo desejável e positivo. como fator de aguçamento das desigualdades de gênero, e como promotora de sofrimentos mentais, como, por exemplo, através do sentimento de inutilidade e incapacidade profissional. Configura-se, desse modo, mais um aspecto programático de produção de vulnerabilidades em torno do gênero. Apesar das queixas e das suscetibilidades, algumas entrevistadas demonstraram satisfação com o fato de estarem trabalhando, pois, mesmo com as adversidades nas formas de organização dos tempos, elas ainda preferem trabalhar a ficar em casa. Como notam outros estudos (OLIVEIRA, 1997, 1999; SARDENBERG, 2004; DORNELLES; LEHFELD; ENGLER, 2010), além da contribuição econômica, elas se sentem mais respeitadas e mais valorizadas pelos próprios cônjuges por estarem trabalhando remuneradamente, ainda que isso signifique uma constante batalha com os afazeres domésticos. Um aspecto unânime relatado pelas entrevistadas foi em relação à qualidade da refeição servida pela empresa. Segundo elas, a refeição parece ser constituída por “sobras” das refeições dos outros turnos e, por vezes, algumas delas não têm vontade de comer. Percebem-se vulnerabilidades decorrentes da falta de serviço adequado quanto à alimentação oferecida no âmbito da empresa. “Eu e a Paula, sabe, a gente almoça na mesma mesa. Aí a gente só se olha, ‘hoje tá feia a coisa’, aí eu já pego mais uma fruta. Eu tento pegar alguma coisa que eu vá comer depois”; diz Bia em entrevista. Se focarmos no plano programático da produção de vulnerabilidades, foram destacados, nas falas, vários aspectos, em relação à empresa, que as deixam, assim como aos trabalhadores, “desprotegidas”, por exemplo: usufruto de ginástica laboral, que, embora a empresa ofereça, nem todos participam; dificuldade de consultar o médico da empresa; alimentação insatisfatória, particularmente para os trabalhadores do turno noturno. Tais dificuldades institucionais tornam-se mais aprofundadas quando incluímos a dimensão de gênero. Maria referiu-se à alimentação como “ruim”, e acrescentou que, para as mulheres, isso não é tão importante quanto para os homens. Deixando, então, transparecer que os homens teriam certa prioridade no que concerne à alimentação em relação às mulheres, demonstrando a desigualdade de gênero já naturalizada, e ainda denotando a invisibilidade que esses funcionários experimentam através da pobreza alimentar: Notoriamente, a maioria das empresas, hoje em dia, faz uso de estratégias que possam minimizar ou evitar agravos à saúde do(a) trabalhador(a) (BARRETO, 1997; OLIVEIRA, 1999; ARAÚJO; OLIVEIRA; 2006), já que quanto mais ele adoece, maiores são as chances dele ficar afastado do trabalho, comprometendo a produtividade. A empresa em evidência oferece área de recreação e de ginástica laboral aos funcionários como mecanismos destinados a evitar a aquisição das LER, bem como de outros adoecimentos. Teresa refere gostar da atividade: “[...] tem aqui também a ginástica laboral... Eu gosto, venho todo dia. Não é assim um exercício, mas é bom pra relaxar!” Porém, se considerarmos as frequentes referências das entrevistadas aos agravos à saúde, esse empreendimento aparece como limitado. Conforme citado, na empresa estudada, os homens desenvolvem os mesmos serviços que as mulheres, portanto todos estão sujeitos aos mesmos acometimentos à saúde. Contudo, tendo por base o conteúdo das entrevistas, foi ressaltado que eles possuem um diferencial, que é a chance de mudar e de evoluir de setor, enquanto que às trabalhadoras cabe apenas a troca de função, podendo ser substituídas por um trabalhador, sendo que o contrário não acontece. Retoma-se, então, a questão da qualificação profissional 194 Não digo que eu janto aqui, às vezes eu só pego a carne e a salada. Porque às vezes a comida não tá 100%. A nossa janta é pior do que nos outros turnos. A nossa janta é o tipo “soborô”. Nossa! Tem dias que não dá. A salada tu olhas e dá nojo só de olhar por cima, ou está murcha ou está preta. Não é que a gente está reclamando, sabe? Nós não é tanto, mas os guris principalmente, né? É isso o que eu penso, que a gente ouve dos nossos colegas “Bah, eu não aguento”. Tem uns que dormem direto, comem um pão e vêm para cá, então a janta, o principal deles é ali, aí chegas e te deparas com aquela comida, né? A janta deles, a comida de sal deles que eles vão comer é aquela ali. Do dia todo. Não tem uma verdura nova... (Maria) Cabe ressaltar que a empresa localiza-se em uma região distante de qualquer comércio, tendo somente uma lancheria interna, que funciona até as 22 horas, além do refeitório, que vende apenas salgadinhos de pacotes, refrigerantes e biscoitos recheados. A alimentação é um direito de todos, e deveria ser mais bem considerada para as(os) trabalhadoras(es), independentemente do horário e do gênero, ainda mais no turno noturno, pois alguns trabalhadores e trabalhadoras preferem dormir durante o dia, e só realizar a principal refeição na empresa. É importante destacar que Bia estava entrando no terceiro mês de gravidez, quando entrevistada, e ressaltou estar passando por um período em que sentia muito enjoo durante o dia, apresentando mais apetite no horário noturno, o que dificultava, ainda mais, sua alimentação na empresa. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 184-197, 2014 Considerando em contexto mais amplo, percebe-se que os direitos à saúde das trabalhadoras de turno noturno, e ainda no setor metal-mecânico, acabam sendo determinados por legislações universalizantes, que não abrangem a dimensão das relações de gênero na produção e na reprodução social, acabando por tornar invisível a esse segmento da população. Questiona-se, ainda, o acesso dessas mulheres aos serviços de saúde, sendo que foram amplamente referidos os processos de adoecimento, que parecem não ter visibilidade nas ações em saúde, incluindo, aqui, também as práticas preventivas. Considerações finais O presente artigo buscou compreender a imbricação das dimensões sociais que afetam os processos de saúdeadoecimento das trabalhadoras de turno noturno, no setor metal-metalúrgico, entendendo a experiência de saúde dessas mulheres através de diversos aspectos da vida perpassados pelas relações de gênero. Do conjunto dos aspectos analisados, foram visualizadas situações de vulnerabilidade que podem condicionar a qualidade de vida e a saúde das trabalhadoras, tais como: processo de subvalorização do trabalho, sendo nula a progressão funcional; aguçada jornada laboral, tanto pela busca por melhores condições de sobrevivência familiar (trabalho produtivo remunerado, trabalho doméstico de cuidado das crianças e do lar) quanto pelo turno de trabalho propriamente dito (descanso limitado, alimentação irregular, dificuldades na organização da vida fora do ambiente de trabalho); falta de acesso a suportes sociais que apoiem as atividades femininas. Todas as participantes da pesquisa evidenciaram a sobrecarga das responsabilidades assumidas, que, muitas vezes, causam sofrimento mental e/ou outros adoecimentos. No entanto, algumas entrevistadas relataram gostar desse turno, pois conseguem passar mais tempo com os filhos, mesmo que descansando menos e restringindo o tempo de lazer. Ainda, percebeuse que a atuação no mercado de trabalho formal e o respeito gerado por isso criam possibilidades de empoderamento a essas mulheres. Nesse sentido, o estudo verificou algumas afinidades com os estudos que problematizam a relação gênero/ trabalho/saúde, e aportou à discussão especificidades das vivências de trabalhadoras de turno noturno do local pesquisado. Aponta-se que as desigualdades de gênero impactam nas condições de saúde das trabalhadoras metalúrgicas de turno noturno. Esses aspectos devem ser mais bem discutidos na esfera pública. Responsabilidades com a promoção da saúde das trabalhadoras devem ser assumidas, para que se alcance equidade com a melhora das condições de trabalho, no sentido de possibilitar que as mulheres exerçam sua cidadania de maneira democrática e construtiva. Para tanto, é preciso atuar de forma intersetorial, com respaldo nas vivências das trabalhadoras, visando o fortalecimento de ações da sociedade civil organizada e a formulação de políticas públicas nesse âmbito. Contribuições de autoria As duas autoras participaram do delineamento do estudo, da análise dos dados e da elaboração do artigo. A primeira autora realizou a pesquisa de campo. Referências ALMEIDA FILHO, N.; CASTIEL, L. D.; AYRES, J. R. Riesgo: concepto básico de la epidemiología. Salud Colectiva, Lanús, v. 5, n. 3, p. 323-344, 2009. http:// dx.doi.org/10.1590/S1851-82652009000300003. ARAÚJO, A. M. C.; OLIVEIRA, E. M. Reestruturação produtiva e saúde no setor metalúrgico: a percepção das trabalhadoras. 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São Paulo, SP, Brasil. 3 Contato: Marco Túlio de Mello E-mail: [email protected] O presente estudo foi apresentado no Congresso Nacional do Sono, realizado em Belo Horizonte-MG, em 2011, e seu resumo foi publicado em anais: Teixeira, C. W. et al. Sociodemographic and Health Profile of Brazilian Railway Shift Workers. Sleep Science, v. 4, n. 4, p. s131-s181, 2011. A pesquisa recebeu apoio (espaço físico e realização de exames) da Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa e do Centro Multidisciplinar em Sonolência e Acidentes. Os autores declaram não haver conflitos de interesses. Recebido: 21/08/2013 Revisado: 07/07/2014 Aprovado: 08/07/2014 198 Resumo Objetivo: descrever o impacto do trabalho em turnos na saúde, no sono e na qualidade de vida de maquinistas ferroviários. Métodos: foram avaliados 611 maquinistas (escalas de trabalho 4 x 1 e 6 x 2), por meio de polissonografia, Índice da Qualidade do Sono de Pittsburgh, Índice de Gravidade de Insônia, Questionário de Qualidade de Vida SF-36, Questionário de Horne e Östberg, Capacidade de Trabalho e Escala de Sonolência de Epworth. Resultados: os maquinistas apresentaram idade média de 36,6 ± 15,1 anos, 22% apresentaram obesidade e 38,1% risco para doenças cardiovasculares. Em relação ao sono, 64,2% dos maquinistas relataram qualidade ruim de sono, 11,6% apresentaram distúrbios do sono e 29,3% sonolência excessiva. Os resultados da polissonografia mostraram que 36,1% deles apresentaram apneia do sono e 47,2% demonstraram eficiência do sono reduzida. Além disso, os maquinistas apresentaram baixos índices de qualidade de vida, especialmente os da escala 4 x 1. Conclusão: é possível afirmar, na população estudada, que a exposição ao trabalho em turnos, a rotatividade inversa, pouco tempo dispensado às folgas e horas extras de trabalho estão associados a danos ao bem-estar, saúde, sociabilização e ao sono de qualidade desses trabalhadores e que provavelmente os fatores relacionados aos turnos de trabalho contribuem para esses danos. Palavras-chave: sono; saúde; qualidade de vida; maquinistas; trabalho em turnos. Abstract Objective: to describe the impact of shiftwork on the health, sleep and quality of life of railway drivers. Methods: six hundred eleven railway drivers (schedule 4x1 and 6x2) were evaluated by polysomnography, Pittsburgh Sleep Quality Index, Insomnia Severity Index, Work Capacity Index, Quality of Life questionnaire (SF-36), Morningness-eveningness questionnaire (MEQ), and Epworth Sleepiness Scale. Results: railway drivers assessed were 36.6 ± 15.1 years of age, 22% were obese, and 38.1% presented risks for cardiovascular disease. Poor sleep quality 64.2%, 11.6% had sleep disorders and 29.3% excessive sleepiness. The polysomnography results showed that 36.1% of them presented sleep apnea and 47.2% had significant reduction in sleep efficiency. The railway drivers showed low levels of quality of life, especially those working under the 4x1 schedule. Conclusion: it is possible to assert that exposure to shiftwork, reverse rotation schedule, few days off, and working overtime are associated with impairment to well-being, health, sociability and workers’ sleep quality, and the factors related to shiftwork probably contribute to these findings. Keywords: sleep; health; quality of life; train drivers; shiftwork. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 198-209, 2014 Introdução de trabalho no bem-estar, saúde e qualidade de vida dos ferroviários. O setor ferroviário representa uma importante atividade socioeconômica em vários países e tem sido foco de pesquisas de avaliação relativas ao impacto do trabalho em turnos e noturno na vida desses trabalhadores (HÄRMÄ et al., 2002; KOYAMA et al., 2012). Nesse contexto, torna-se importante analisar fatores relacionados à saúde e bem-estar que são passíveis de influenciar a qualidade de vida e o desempenho no trabalho de trabalhadores em turnos, especialmente os maquinistas ferroviários. Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi descrever o impacto do trabalho em turnos na saúde, no sono e na qualidade de vida de maquinistas ferroviários brasileiros. Os trabalhadores em turnos, rotineiramente, queixam-se de distúrbios do sono, fadiga e sonolência durante a jornada de trabalho, o que tem sido considerado um importante fator de erros e risco de acidentes (ÅKERSTEDT; WRIGHT, 2009; WAGSTAFF; SIGSTAD LIE, 2011). No estudo de Härmä et al. (2002), mais da metade dos maquinistas e controladores de tráfego ferroviário avaliados relatou fadiga grave durante o turno noturno. Além disso, o baixo desempenho devido à fadiga foi relatado por 21,0 a 37,0% dos maquinistas e 13,0 a 19,0% dos controladores. O estudo de Folkard e Tucker (2003) demonstrou que há redução da segurança e da produtividade durante o turno noturno de trabalho. E essa redução é refletida por diversos fatores como dessincronização do ritmo circadiano, problemas de saúde, distúrbios do sono e prejuízos nas relações sociais. Diversos estudos demonstraram a alta incidência e prevalência de distúrbios do sono em trabalhadores em turnos (LOPES et al., 2008; KOYAMA et al., 2012). Entre os mais de 80 distúrbios classificados pela American Academy of Sleep Medicine (2005), a Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) é o distúrbio mais comum entre os trabalhadores em turnos e noturno. Nena et al. (2008) encontraram elevados índices de obesidade e SAOS em maquinistas gregos comparados à população em geral. No Brasil, a prevalência de SAOS na população da cidade de São Paulo é de 32,9% (TUFIK et al., 2010). A SAOS está associada a constantes dessaturações da oxi-hemoglobina e resulta em fragmentação do sono e aumento do número de despertares devido ao esforço respiratório e, muitas vezes, é acompanhada de sonolência excessiva (GURUBHAGAVATULA, 2010; MANNARINO; DI FILIPPO; PIRRO, 2012). Para Buysse et al. (2010) e Grandner et al. (2010), dormir pouco está relacionado às doenças cardiovasculares, câncer, acidente vascular cerebral, distúrbios gastrintestinais, diabetes, hipertensão arterial, além de depressão e distúrbios do sono. Ku e Smith (2010) relataram que uma das principais causas de acidentes ferroviários é a fadiga relacionada às escalas de trabalho e aos fatores organizacionais, visto que existe uma influência da fadiga e da escala Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 198-209, 2014 Métodos Amostra O presente estudo foi realizado com uma amostra de maquinistas ferroviários de uma empresa de mineração, avaliados entre fevereiro de 2004 e fevereiro de 2005. De 712 maquinistas convidados a participar do estudo, 48 se recusaram a participar, 10 não assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e 43 deles não completaram todas as avaliações. Dessa forma, a amostra consistiu de 611 maquinistas de trem e manobristas de trem de pátio, todos do gênero masculino, que trabalhavam em turnos, em escalas rotativas 4 x 1 e 6 x 2. A escala 4 x 1 é uma escala rotativa inversa destinada aos maquinistas que trabalhavam exclusivamente com manobras de trens de pátio, sendo quatro dias consecutivos de trabalho (jornadas com duração de 8 horas) e um dia de folga (duração de 24 horas). A escala 6 x 2 é uma escala rotativa direta realizada por maquinistas que trabalhavam exclusivamente nos deslocamentos dos trens (viagens), sendo seis dias consecutivos de trabalho (jornadas com duração de seis horas) e dois dias de folga (duração de 48 horas). A escala de rotação direta ou de sentido horário acompanha o sentido da rotação do relógio, ou seja, os horários se modificam da seguinte forma: turno matutino, vespertino e noturno. Já na escala de rotação inversa ou de sentido anti-horário os horários se modificam nesse sentido: turno noturno, vespertino e matutino. Todos os maquinistas foram informados sobre os procedimentos do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo aprovou o protocolo do presente estudo (n. 1597-1503). Desenho do estudo, instrumentos e técnicas de coleta de dados Este estudo observacional e transversal abrangeu maquinistas, trabalhadores em turnos, de uma empresa de mineração que realiza suas atividades no Brasil. 199 Ao todo, foram avaliados 381 maquinistas da escala 6 x 2 e 230 maquinistas da escala 4 x 1, assim como foram comparadas as escalas de trabalho desses trabalhadores. Para tanto, os maquinistas foram convidados a comparecer ao laboratório do sono, montado em um hotel, usualmente utilizado para descanso entre as jornadas de trabalho. Todos os maquinistas realizaram individualmente o exame de polissonografia (PSG) para avaliar o padrão de sono. A massa corporal, estatura e circunferências da cintura, quadril e pescoço foram coletadas para determinar o índice de massa corporal (IMC) e o risco para doenças cardiovasculares. Ademais, todos os participantes responderam os questionários gerais para avaliação dos aspectos sociodemográficos, do estilo de vida e da rotina de trabalho. Questionários específicos foram utilizados na avaliação do padrão e qualidade do sono, qualidade de vida e capacidade de trabalho. Os instrumentos e técnicas de coleta são descritos a seguir. Exame de Polissonografia (PSG) A PSG foi realizada no período da noite, após a jornada de trabalho do turno da tarde (segundo dia de jornada), o mais próximo possível do horário habitual de sono de cada maquinista. Para a realização da PSG foi utilizado o sistema digital portátil Embla® titanium. O exame foi realizado de acordo com Rechtschaffen e Kales (1968) e os eletrodos foram colocados de acordo com o sistema 10-20 (JASPER, 1958; IBER et al., 2007). A sala utilizada para a gravação do exame tinha uma cama confortável, luz e temperatura controladas. Os seguintes canais foram incluídos: EEG (C3-A2, C4-A1, O2-A1), EOG e EMG de tibial anterior e do queixo, ECG, fluxo de ar (sensor térmico), cinta tóraco-abdominal para movimentos respiratórios, microfone na lateral do pescoço para detectar o ronco, oximetria de pulso e um sensor de posição do corpo. As 32 épocas do sono foram estageadas de acordo com critérios padronizados e visualmente inspecionadas pelo especialista do sono. Os seguintes parâmetros foram analisados: (a) o Tempo Total de Sono (TTS, em minutos), definido como o tempo de duração do sono, (b) a latência do sono (em minutos), definido como o tempo de luz apagada até o início de 3 épocas consecutivas de fase 1 do sono de ondas lentas ou sono mais profundo, (c) a eficiência do sono, definida como a porcentagem do tempo total de duração do sono durante a gravação do exame, (d) tempo de vigília após o início do sono (Waso, em minutos), definido como o tempo total entre a vigília pontuada como o início do sono e despertar final, (e) as fases 1, 2 ,3 e REM do sono, assim como a porcentagem de TTS e, (f) a latência do sono REM, 200 definida como o tempo desde o início do sono até a primeira época de sono REM. O diagnóstico de SAOS e o Índice de Apneia-Hipopneia (IAH) foram estabelecidos de acordo com os padrões da American Academy of Sleep Medicine (2005). A gravidade SAOS é definida como leve para IAH ≥ 5 e <15, moderado para IAH ≥ 15 e ≤ 30 e grave para IAH > 30/hora (IBER et al., 2007). Índice da Qualidade do Sono de Pittsburgh (IQSP) O IQSP foi utilizado como instrumento para avaliação subjetiva da qualidade do sono (CEOLIM; MENNA-BARRETO, 2000). O questionário é composto por 19 itens pontuados em uma escala de 0 a 3. Os itens são alocados em sete grupos, sendo: (1) qualidade subjetiva do sono; (2) latência do sono; (3) duração do sono; (4) eficiência habitual do sono; (5) alterações do sono; (6) uso de medicações do sono; (7) disfunção diurna. A partir do somatório dos escores dos sete grupos é determinado o IQSP. O resultado do IQSP varia entre 0 e 21, sendo classificado respectivamente como qualidade de sono boa (0 a 4), qualidade de sono ruim (5 a 10) e indicação de distúrbio do sono (acima de 10). Índice de Gravidade de Insônia (IGI) Escala autoaplicável, especificamente desenvolvida para a avaliação da percepção do paciente em relação a sua insônia. Avalia especificamente os sintomas subjetivos da insônia, bem como o grau de preocupação e as dificuldades geradas ao paciente. É composta por sete itens classificados em uma escala entre 0 e 4 cujo somatório determina a classificação da gravidade de insônia como não significativa (entre 0 e 7), limite inferior (entre 8 e 14), moderada (entre 15 e 21) e grave (acima de 22) (BASTIEN; VALLIÈRES; MORIN, 2001). Questionário de Qualidade de Vida (SF-36) O questionário SF-36 é de fácil administração e compreensão para a avaliação subjetiva da qualidade de vida. Trata-se de um instrumento multidimensional composto por 36 itens que avaliam oito fatores: capacidade funcional (10 itens); aspecto físico (quatro itens); dor (dois itens); estado geral de saúde (cinco itens); vitalidade (quatro itens); aspectos sociais (dois itens); aspectos emocionais (três itens); saúde mental (cinco itens) e uma questão para a avaliação comparativa entre as condições de saúde atual e de um ano atrás. Para avaliar os resultados, é determinado um escore para cada uma das questões que, posteriormente, são transformadas em escalas de Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 198-209, 2014 0 a 100, nas quais 0 corresponde a um pior estado de saúde e 100 a um melhor estado, onde cada fator é analisado separadamente (CICONELLI et al., 1999). Na estatística descritiva, os dados contínuos foram apresentados em média ± DP (desvio padrão) e, os categóricos, demonstrados por meio da frequência relativa (%). Escala de Sonolência de Epworth (ESE) Para a comparação das variáveis de natureza contínua (gerais, antropométricas, cronotipo e de trabalho) entre os grupos, foi utilizado o teste de Análise de Variância (ANOVA). A comparação entre os parâmetros do sono e os questionários entre as escalas de trabalho (4 x 1 e 6 x 2) foi realizada pela Análise de Covariância (ANCOVA) com o ajuste para as variáveis confundidoras: idade, IMC e IAH. O teste de ANCOVA foi utilizado também na comparação da qualidade de vida entre as escalas de trabalho, ajustado para as variáveis confundidoras: idade, IMC, IAH e anos de escolaridade. Atualmente, Epworth é a escala mais utilizada para a avaliação subjetiva da sonolência diurna e é capaz de diferenciar as pessoas com e sem sonolência daquelas com sonolência excessiva. Ela consiste em oito questões que descrevem situações cotidianas que podem induzir à sonolência. Cada questão é graduada de 0 a 3 pontos, sendo que escores acima de 10 indicam sonolência diurna significativa e acima de 15 estão associados à sonolência patológica presente em condições específicas, tais como apneia obstrutiva do sono e narcolepsia (JOHNS, 1991). Questionário de Horne e Östberg (HO) Questionário autoaplicável que foi utilizado para caracterizar a matutinidade/vespertinidade dos trabalhadores. Ele é amplamente utilizado nos estudos do ciclo vigília-sono e composto dos seguintes critérios: horários preferenciais de acordar e dormir; horários de maior disposição para atividades físicas e intelectuais; grau de dificuldade com que a pessoa executa determinadas tarefas em determinados horários e a autoclassificação da pessoa em um dos cinco tipos de cronotipo (matutino, matutino moderado, indiferente, vespertino moderado e vespertino) (HORNE; OSTBERG, 1976; BENEDITO-SILVA et al., 1990). Índice de Capacidade de Trabalho (ICT) Um dos métodos de autoavaliação realizado para determinar-se a capacidade do trabalho dos maquinistas foi o Índice de Capacidade de Trabalho. O ICT diagnostica de forma confiável as mudanças na capacidade para o trabalho nos diferentes grupos ocupacionais. Ele mostra efetividade em razão do acelerado envelhecimento da população e das consequências negativas observadas tanto na inserção quanto na manutenção, assim como nas condições de saúde dos brasileiros com mais de 30 anos (TUOMI et al., 2005). Análise estatística A análise estatística foi realizada por meio do Statistical Software Package (SPSS Statistics for Windows, versão 18.0; SPSS Inc., Chicago, IL). O teste de Kolmogorov-Smirnov foi utilizado para avaliar a normalidade dos dados. As variáveis com distribuição não normal foram transformadas usando um Z-score. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 198-209, 2014 Para a comparação das variáveis categóricas foi utilizado o teste qui-quadrado de Pearson. O nível de significância considerado foi de 5%. Resultados Na Tabela 1 são mostradas as características gerais, antropométricas, de trabalho e de sono dos 611 maquinistas avaliados nas duas escalas 6 x 2 e 4 x 1. A média etária da amostra foi de 36,6 ± 15,1 anos, sendo os maquinistas da escala 6 x 2 mais velhos (38,6 ± 17,6 anos). Ao comparar os grupos, vimos que os maquinistas da escala 6 x 2 eram de cronotipo matutino (62,5%), apresentavam maior escolaridade, tinham mais tempo de trabalho em turnos (14,5 anos) e a maioria deles realizava horas extras (96,3%). Já os maquinistas da escala 4 x 1 tinham 9,4 anos de trabalho em turnos, 41,1% apresentavam cronotipo indiferente, 13,6% realizavam horas extras de trabalho e gastavam mais tempo de deslocamento do trabalhoresidência (41,1 ± 22,6 minutos), quando comparados aos da escala 6 x 2 (24,1 ± 24,4 minutos). A maioria dos maquinistas de ambas as escalas (64,6%) era de casados e tinha filhos dependentes (75,5%). Nas avaliações do IMC, das circunferências da cintura e do pescoço dos maquinistas foram observados fatores de risco para a obesidade, doenças cardiovasculares e para a apneia obstrutiva do sono (Tabelas 1 e 2). No geral, 69,5% da amostra apresentaram sobrepeso (69,5%) e obesidade (22,0%); 13,0% eram fumantes, 33,6% ingeriam bebidas alcoólicas e 38,1% apresentavam risco de doenças cardiovasculares (dados não apresentados em tabela). Diante disso, os maquinistas da escala 6 x 2 fumavam mais, tinham maior IMC e ganharam mais massa corporal em 6 meses. Contudo, os maquinistas da escala 4 x 1 apresentaram maior circunferência da cintura e do pescoço. 201 Tabela 1 Comparação de grupos de trabalho em turnos dos maquinistas ferroviários da empresa estudada, segundo características sociodemográficas, antropométricas, de trabalho, de cronotipo e prevalência de uso de tabaco e álcool (2004-2005) Características Amostra total (n = 611) Escala 6x2 (n = 381) Escala 4x1 (n = 230) F p 36,6 (15,1) 38,6 (17,6) 33,4 (8,5) 17,3 < 0,0001† Solteiros‡ 17,9 11,8 21,8 Casados‡ 64,6 64,8 48,6 23,6 < 0,001† 17,5 23,4 29,6 Filhos dependentes (%) 75,5 72,2 48,9 38,2 0,001† Anos de escolaridade* 11,9 (2,0) 12,0 (2,0) 11,6 (2,0) 5,2 0,02† IMC (kg/m2)* 26,8 (4,1) 27,2 (4,3) 26,1 (3,6) 11,0 0,001† Circunferência da cintura (cm)* 91,6 (9,9) 97,2 (66,3) 101,9 (103,8) 0,46 0,49 Circunferência do pescoço (cm)* 38,9 (3,4) 44,5 (69,5) 50,4 (109,3) 0,67 0,41 40,4 39,4 26,1 9,12 0,003† Tempo de trabalho em turno (anos)* 12,6 (8,5) 14,5 (8,8) 9,4 (6,9) 49,0 < 0,001† Tempo de deslocamento trabalhoresidência (minutos)* 30,9 (25,2) 24,1 (24,4) 41,1 (22,6) 74,5 < 0,0001† 61,2 96,3 13,6 419,0 < 0,0001† 41,9 (5,6) 40,9 (5,6) 43,6 (5,1) 32,9 < 0,001† Ótima (%)‡ 48,5 41,5 46,8 ‡ Boa (%) 30,7 29,6 25,0 Moderada (%)‡ 20,3 28,0 27,5 Baixa (%) 0,5 0,8 0,7 58,6 (9,4) 60,0 (9,3) 56,1 (9,1) 25,0 < 0,0001† Matutino (%) 55,1 62,5 31,4 Indiferente (%)‡ 40,7 33,1 41,1 Vespertino (%) 4,2 4,4 27,5 Fumantes (%)‡ 13,0 13,4 7,9 Uso de álcool > 3x/semana (%)‡ 33,6 47,0 9,3 Sociodemográficas Idade - anos completos* Estado civil (%) Outros‡ ‡ Antropométricas Ganho de peso último semestre (%)‡ Trabalho Hora extra (%)‡ ICT* ‡ Cronotipo Cronotipo (média geral)* ‡ ‡ Tabaco e álcool * Dados apresentados em média (desvio padrão) † Diferença estatística ao comparar os grupos por meio do teste ANOVA, p < 0,05 ‡ Dados apresentados em frequência relativa (%): Teste Qui Quadrado de Pearson IMC: Índice de Massa Corporal; ICT: Índice de Capacidade de Trabalho; Cronotipo: Avaliado por meio do Questionário de Horne e Östberg Em relação à avaliação subjetiva do sono, 64,2% da amostra total relataram qualidade ruim de sono e 11,6% apresentaram distúrbios do sono (Tabela 3). Observou-se nos valores médios da arquitetura do sono (avaliação por meio da PSG), dos maquinistas de ambas as escalas de trabalho, que 36,1% deles apresentaram SAOS (Tabela 2). E, ainda, 47,2% da amostra total mostraram eficiência do sono reduzida e 202 29,3% sonolência excessiva (dados não apresentados em tabela). Ao comparar os resultados do padrão de sono aos valores de referência descritos por Carskadon e Dement (1994), verificamos que a latência do sono REM apresentou-se reduzida em 25,9% de toda a amostra, o N1 estava reduzido em 39,0% e aumentado em 16,7% dos maquinistas, 34,4% apresentaram N2 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 198-209, 2014 Tabela 2 Parâmetros da arquitetura do sono aferidos por polissonografia nos maquinistas ferroviários – amostra total e comparação entre os grupos de estudo (escala 6 x 2 e escala 4 x 1) Arquitetura do sono Amostra total (n = 611) Escala 6x2 (n = 381) Escala 4x1 (n = 230) F p 81,9 (12,7) 81,1 (15,9) 83,4 (20,6) 4,74 0,03† 357,2 (75,3) 361,1 (95,5) 345,9 (124,0) 5,45 0,02† Latência sono* 22,7 (26,0) 24,9 (33,5) 18,8 (42,8) 2,29 0,007† Latência REM* 109,3 (62,1) 116,9 (78,7) 98,4 (102,1) 11,81 0,001† % N1* 3,4 (5,1) 2,25 (5,7) 5,1 (7,4) 52,52 < 0,0001† % N2* 48,8 (21,0) 50,8 (26,9) 45,6 (34,9) 8,01 0,005† % N3* 26,7 (8,4) 26,7 (10,4) 26,9 (13,5) 0,16 0,68 % Sono REM* 20,2 (7,5) 20,0 (8,0) 20,6 (6,6) 2,82 0,63 Mínimo de vigília* 53,7 (43,3) 56,7 (54,6) 49,3 (70,8) 3,96 0,04† Índice desp/h* 11,3 (8,1) 10,5 (8,1) 12,6 (10,5) 36,1 36,1 34,1 Eficiência* Tempo Total de Sono (TTS)* SAOS IAH 5 (%) ‡ 15,1 0,25 < 0,0001† 0,61 N2: Estágio 2 do sono de ondas lentas; N3: Estágio 3 do sono de ondas lentas; Índice desp/h: Índice de despertares por hora; IAH: Índice de Apneia e Hipopneia; SAOS: Síndrome Apneia Obstrutiva do Sono * Dados apresentados em média (DP) – ANCOVA com ajuste de idade, IMC e IAH † Diferença estatística ao comparar os grupos por meio do teste ANCOVA, ajustado por idade, IMC e IAH, p 0,05 ‡ Dados apresentados em frequência relativa (%) Tabela 3 Comparação de grupos de trabalho em turnos dos maquinistas ferroviários da empresa estudada, segundo a avaliação subjetiva do sono Avaliação subjetiva do sono Epworth* Pittsburgh* Qualidade boa (%) Escala 6x2 (n = 381) Escala 4x1 (n = 230) F p 7,7 (3,5) 7,9 (4,5) 7,6 (5,8) 0,95 0,32 6,8 (3,0) 6,1 (3,6) 7,9 (4,8) 55,82 < 0,0001† 4,8 (5,2) 5,9 (7,4) 9,09 0,003† 24,2 ‡ 64,2 Qualidade ruim (%)‡ Distúrbio do sono (%) ‡ Insônia* Amostra total (n = 611) 11,6 5,1 (4,3) * Dados apresentados em média (DP) † Diferença estatística ao comparar os grupos por meio do teste ANCOVA, ajustado por idade, IMC e IAH: p 0,05 ‡ Dados representados em frequência relativa (%) reduzido e 21,9% aumentado, 67,0% deles estavam com o estágio N3 aumentado e 42,4% do estágio REM apresentaram-se reduzido. SAOS foi diagnosticada em 36,1% dos maquinistas, destes, 53,7% apresentaram SAOS leve, 26,4% moderada e 19,9% grave. um aumento do número de despertares durante o sono dos maquinistas da escala 4 x 1. Porém, os maquinistas da escala 6 x 2 apresentaram redução significativa da eficiência do sono (81,1 ± 15,9) em comparação aos maquinistas da escala 4 x 1 (83,4 ± 20,6). Ao comparar a arquitetura do sono entre os maquinistas pertencentes às escalas de trabalho 4 x 1 e 6 x 2, houve redução significativa do TTS, da latência para o início do sono e para início do sono REM, assim como do estágio N2 do sono dos maquinistas da escala 4 x 1, ajustado pelos fatores confundidores: idade, IAH e IMC. E, ainda, houve maior presença de insônia e A Tabela 4 mostra os valores médios da qualidade de vida da amostra, sendo que o domínio vitalidade apresentou baixo escore na amostra total. Contudo, os maquinistas pertencentes à escala 4 x 1 apresentaram um maior comprometimento dos domínios do questionário de qualidade de vida, com diferença estatisticamente significativa (p≤0,05). Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 198-209, 2014 203 Tabela 4 Comparação de grupos de trabalho em turnos dos maquinistas ferroviários da empresa estudada, segundo os escores dos domínios do questionário SF-36 (qualidade de vida) Domínios Total* Amostra total (n = 611) Escala 6x2 (n = 381) Escala 4x1 (n = 230) F p 75,9 (25,7) 78,2 (27,3) 72,1 (22,3) 226,94 < 0,0001† Capacidade funcional* 88,8 (15,1) 88,5 (15,4) 89,4 (14,7) 0,02 0, 87 Aspectos físicos* 89,3 (21,5) 91,5 (18,4) 85,6 (26,0) 10,22 0,001† Dor* 84,2 ( 20,0) 86,9 (17,6) 79,6 (22,5) 20,2 < 0,0001† Estado de saúde geral* 81,9 (16,7) 83,5 (14,7) 79,1 (19,3) 10,34 0,001† Vitalidade* 67,5 (20,8) 78,5 (14,3) 49,1 (16,7) 482,32 < 0,0001† Aspectos sociais* 87,7(18,8) 88,7 (16,8) 86,0 (21,8) 1,78 0,18 Aspectos emocionais* 89,5 (23,4) 91,2 (20,3) 86,7 (20,7) 4,32 0,03† Saúde mental* 76,0 (17,3) 83,4 (14,5) 63,7 (14,6) 226,94 < 0,0001† * Dados apresentados em média (DP) † Diferença estatística ao comparar os grupos por meio do teste ANCOVA, ajustado por idade, IMC e IAH e anos de escolaridade, p 0,05 Discussão No presente estudo, foi descrito o impacto do trabalho em turnos na saúde, no sono e na qualidade de vida de maquinistas ferroviários trabalhadores em turnos. Em relação ao sono, os maquinistas apresentaram eficiência reduzida e qualidade ruim do sono, assim como distúrbios do sono. Desse modo, esses resultados podem estar relacionados à curta duração do sono prevalente entre os maquinistas do presente estudo. Adicionalmente, a arquitetura do sono dos maquinistas pertencentes à escala de trabalho 4 x 1 apresentou redução significativa do TTS, latência do sono REM, latência do sono e de N2, além de aumento do número de despertares e presença de insônia, comparados aos maquinistas da escala 6 x 2, apesar destes últimos terem apresentado menor eficiência do sono. Esses achados podem ser explicados pelo conhecido desajuste do ritmo biológico, causado pela inversão do ciclo vigília-sono, pelo acúmulo de débito de sono. No caso da escala 4 x 1, ocorre maior tempo de exposição ao trabalho (8 horas), maior número de deslocamentos trabalho-residência e, pelo fato de se ter somente um dia de folga, resta pouco tempo para o lazer, o convívio sociofamiliar e, principalmente, para o descanso restaurador (ÅKERSTEDT, 2003; OHAYON; SMOLENSKY; ROTH, 2010). E ainda, com o avançar da idade e maior tempo de exposição ao trabalho em turnos, há uma diminuição da qualidade do sono devido às alterações do ritmo da temperatura central, do cortisol e da melatonina, o que pode explicar a menor eficiência do sono relacionada aos maquinistas da escala 6 x 2 e às alterações no padrão de sono dos maquinistas da escala 4 x 1 (KRIPKE et al., 204 2007; COSTA, 2010). Por outro lado, a presença de filhos dependentes pode influenciar na qualidade do sono e no tempo dispensado ao lazer e descanso (HÄRMÄ et al., 2002; OHAYON; SMOLENSKY; ROTH, 2010). O estudo de Lopes et al. (2008) reportou que as alterações na qualidade do sono podem repercutir nos aspectos cognitivos e nas relações interpessoais. Do mesmo modo, o trabalho em turnos pode interferir nas atividades domésticas, na vida familiar e social (BARNES-FARRELL et al., 2008). Além disso, a curta duração do sono, a presença de distúrbios do sono, o trabalho noturno e o excesso de horas trabalhadas podem alterar a arquitetura do sono, o ritmo vigília-sono, aumentar a fadiga física e mental, assim como afetar o estado de humor dos trabalhadores em turnos (HÄRMÄ et al., 2002; COSTA, 2010). Similarmente, no estudo de Sallinen et al. (2003) houve uma diminuição da duração do TTS, especialmente antes do início do turno manhã e noite, assim como aumento da sonolência em maquinistas trabalhadores em turnos de escalas rotativas irregulares. O estudo epidemiológico de Ohayon, Smolensky e Roth (2010) com trabalhadores do estado de Nova Iorque (EUA) observou que a duração do sono principal entre os trabalhadores com escalas rotativas e noturnas foi inferior a 6,5 horas. Além desses resultados, os dados da PSG do presente estudo mostraram uma prevalência de 36,1% e 34,1% de SAOS entre os maquinistas das escalas 6 x 2 e 4 x 1, respectivamente, similar ao estudo epidemiológico realizado com a população da cidade de São Paulo (32,9%) (TUFIK et al., 2010), porém apresentou-se mais elevada em relação a outros estudos realizados com Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 198-209, 2014 motoristas (15,8%), maquinistas (22%) e trabalhadores em turnos (20%) (HOWARD et al., 2004; NENA et al., 2008). Sabe-se que a incidência e prevalência dos distúrbios respiratórios do sono e do débito de sono estão intimamente relacionadas ao estilo de vida e às condições alteradas de saúde dos trabalhadores (HÄRMÄ et al., 2002; COSTA, 2010). Nesse aspecto de saúde e estilo de vida, vimos que os maquinistas apresentaram altos índices de IMC, fumavam e grande parte deles ingeria bebidas alcoólicas. Semelhante ao presente estudo, Koyama et al. (2012) reportaram que 9,5% dos maquinistas ferroviários avaliados eram fumantes, 54,7% relataram uso de álcool e 77,0% eram obesos (27,7 ± 4,4). Outros estudos que avaliaram motoristas e maquinistas apresentaram uma prevalência de 40,0% a 52,0% de excesso de peso, 20,0% a 65,0% de obesidade, 25,0% a 60,0% de fumantes entre maquinistas e motoristas trabalhadores em turnos avaliados (MINA; CASOLIN, 2007; BENVEGNÚ et al., 2008; NENA et al., 2008). É conhecido na literatura que todas essas condições possibilitam a instalação de doenças físicas e mentais, assim como de distúrbios do sono, especialmente a SAOS. Contudo, a literatura demonstra que a falta de sono pode provocar distúrbios hormonais e metabólicos. Por exemplo, a redução da sensibilidade à insulina, o aumento da grelina e a diminuição da leptina estão diretamente relacionados com a falta de sono e ganhos de massa corporal, contribuindo, assim, para a obesidade, distúrbios do sono e doenças cardiovasculares (MORGAN et al., 2003; SPIEGEL et al., 2004). No geral, os trabalhadores em turnos alteram a função circadiana metabólica, assim o horário e conteúdo das refeições tornam-se inapropriados e, dessa forma, há aumento da preferência por alimentos mais gordurosos, podendo levar às doenças como obesidade, diabetes e hipertensão arterial (COSTA, 2010). Segundo Mina e Casolin (2007), existe uma relação entre os distúrbios respiratórios do sono, hipertensão e obesidade, fatores estes que podem maximizar o processo de fadiga, reduzir a qualidade de vida e aumentar o risco para os acidentes. Assim, Padilha et al. (2010) reportaram que trabalhadores em turnos apresentam alta propensão em desenvolver distúrbios metabólicos e obesidade. Por outro lado, alterações do padrão de sono e do estilo de vida são também consideradas como fatores de risco para aumento de massa corporal e de massa gordurosa, perda de massa magra e aparecimento de distúrbios do metabolismo da glicose e gordura (CRISPIM et al., 2007; NEDELTCHEVA et al., 2010). Contudo, a obesidade, o fumo e a ingestão de bebida alcóolica prevalentes entre os trabalhadores em turnos podem estar associados com a alteração do Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 198-209, 2014 ritmo vigília-sono, presença de sonolência e alterações na arquitetura do sono (KAGEYAMA et al., 2005; ZHANG et al., 2006), além de apresentarem risco para doenças crônicas não transmissíveis e contribuírem para redução do desempenho psicomotor e da qualidade de vida (COSTA, 2010; OLIVEIRA e SILVA et al., 2012). Nesse contexto, os maquinistas da escala de trabalho 4 x 1 apresentaram baixo índice de qualidade de vida quando comparados aos maquinistas da escala 6 x 2, principalmente nos domínios dor, aspectos físicos, vitalidade, estado geral da saúde, aspectos emocionais e de saúde mental. Como visto, os escores de vitalidade e de saúde mental apresentaram-se ainda mais baixos, o que pode inferir um prejuízo no desempenho psicomotor e o desenvolvimento de cansaço e/ou fadiga nessa primeira amostra. Esses prejuízos da qualidade de vida dessa população podem estar diretamente relacionados à duração do turno, sentido de rotação da escala de trabalho (rotativo inverso), tempo gasto no deslocamento trabalho-residência, assim como pouco tempo livre dispensado com lazer, família e descanso durante a folga. A literatura mostra que esses fatores podem alterar os padrões de sono, induzir ou favorecer distúrbios metabólicos, diminuir o desempenho físico e mental, assim como interferir negativamente na vida pessoal e na tolerância ao trabalho em turnos (ÅKERSTEDT; WRIGHT, 2009; COSTA, 2010; ASAOKA et al., 2013). Semelhante ao nosso estudo, Nena et al. (2008) avaliaram 226 maquinistas ferroviários gregos que apresentaram sobrepeso (28,7 ± 3,7 kg/m2), 59,7% deles eram fumantes e 11,5% tinham apneia obstrutiva do sono. O índice de apneia e hipopneia do sono foi de 11-14 eventos por hora, 7,1% deles relataram sonolência, os quais apresentaram escores do questionário SF-36 diminuídos nos domínios aspectos físicos e emocionais, dor e vitalidade, comparados com os maquinistas não sonolentos. No entanto, a qualidade de vida dos maquinistas em geral, assim como do presente estudo, não foi diferente da população grega e dos maquinistas brasileiros do estudo de Oliveira e Silva et al. (2012), exceto no aspecto vitalidade, no qual a nossa amostra apresentou baixos escores relevantes e diferentes das outras duas populações. Ilmarinen, Tuomi e Klockars (1997) e Tuomi et al. (1997) relataram que o estilo de vida, as condições de saúde e características sociodemográficas são fatores que podem interferir na capacidade para o trabalho. Para Chiu et al. (2007) e Milosevic et al. (2011), existe uma alta associação entre qualidade de vida e capacidade de trabalho em trabalhadores em turnos. O estudo de Oliveira e Silva et al. (2012) reportou que baixa capacidade de trabalho, sobrepeso, ansiedade, depressão e sonolência apresentaram impacto negativo na qualidade de vida global de maquinistas, 205 assim como as alterações no sono REM e de humor impactaram negativamente na capacidade funcional desses trabalhadores. Em relação à arquitetura do sono, o tempo total do sono REM dos maquinistas daquele estudo não diferiu da nossa amostra; entretanto, os maquinistas de ambas as escalas de trabalho do presente estudo demonstraram menor eficiência do sono. Sabe-se que essas condições de sono, saúde e os aspectos socioemocionais podem afetar a qualidade de vida, o que foi demonstrado no presente estudo com os maquinistas da escala 4 x 1. No entanto, em geral, os maquinistas da nossa amostra (48,5%) referiram ótima capacidade de trabalho (41,9%) similarmente aos estudos com trabalhadores em turnos de Metzner e Fischer (2001) e Oliveira e Silva et al. (2012). E, apesar dos maquinistas da escala 4 x 1 terem apresentado maior comprometimento dos domínios de qualidade de vida e redução da qualidade do sono, 46,8% deles referiu ótima capacidade de trabalho. Entre as possíveis explicações para esse resultado encontrado, podemos destacar a presença do efeito do trabalhador saudável, que descreve um processo de seleção continuada de tal forma que aqueles que permanecem empregados tendem a ser mais saudáveis do que aqueles que deixam o emprego (ARRIGHI; HERTZ-PICCIOTTO, 1994; RICHARDSON et al., 2004). Como os maquinistas estudados já têm um tempo de exposição ao trabalho em turnos relativamente longos (9,4 ± 6,9 anos) é possível que o ICT esteja refletindo tanto o efeito do trabalhador saudável quanto as prováveis estratégias de enfrentamento desenvolvidas por esses maquinistas em relação às condições do trabalho em turnos, como relatado por Metzner e Fischer (2001). Portanto, observamos em nosso estudo que os maquinistas, em geral, especialmente os pertencentes à escala 4 x 1, apresentaram condições preocupantes de saúde e qualidade do sono, assim como maus hábitos de vida (fumo, uso de álcool, sobrepeso e obesidade) e condições ruins de trabalho (pouco tempo de folga e excesso de horas extras). Como bem relatado na literatura, a associação desses fatores pode levar a um aumento do cansaço, disfunção cognitiva, alterações emocionais e sono não restaurador, o que pode desencadear o processo de fadiga crônica e, consequentemente, uma possibilidade maior para a ocorrência de acidentes de trabalho. As limitações do presente estudo compreendem a falta de um grupo controle de maquinistas que não trabalhavam em turnos, bem como o fato das avaliações não terem permitido comparações no período de férias dos trabalhadores alvo do estudo. Além disso, não foram obtidas informações sobre a renda mensal dos maquinistas, as quais poderiam ter influenciado as diferenças ocorridas nos domínios do questionário de qualidade de vida (SF-36). Outra limitação é que o estudo de corte transversal não permite estabelecer relação de causalidade, apenas associações, o que torna impossível afirmar de forma categórica que a rotatividade inversa, a exposição ao trabalho em turnos e pouco tempo para folgas apresentam maiores danos ao bem-estar, saúde e vida social na população estudada. Entretanto, é possível afirmar, na população estudada, que a exposição ao trabalho em turnos, a rotatividade inversa, pouco tempo dispensado às folgas e horas extras de trabalho estão associados a maiores danos ao bem-estar, saúde, sociabilização e ao sono de qualidade e que provavelmente os fatores relacionados aos turnos de trabalho contribuem para esses danos. Dessa forma, requerem-se mais estudos nessa área de transportes no Brasil, que abordem esses fatores relacionados à saúde mental e física do trabalhador, os quais podem estar associados a importantes prejuízos de natureza socioeconômica e de saúde pública. Contribuições de autoria Narciso, F. V. e Teixeira, C. W.: contribuíram de forma substancial no projeto, no levantamento de dados, na interpretação dos dados e na elaboração do manuscrito. Oliveira e Silva, L. e Koyama, R. G.: contribuíram de forma substancial na análise e interpretação dos dados. Carvalho, A. N. S.: contribuiu de forma substancial no levantamento dos dados e na elaboração do manuscrito. Esteves, A. M.: contribuiu de forma substancial na análise e interpretação dos dados do manuscrito, na revisão crítica e na elaboração final do mesmo. Mello, M. T. e Tufik, S.: contribuíram de forma substancial na revisão crítica e na aprovação final da versão publicada. Agradecimentos AFIP: Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa; CEPE: Centro de Estudos em Psicobiologia e Exercício; CEMSA: Centro Multidisciplinar em Sonolência e Acidentes; CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 206 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 198-209, 2014 Referências ÅKERSTEDT, T. Shift work and disturbed sleep/ wakefulness. Occupational Medicine, London, v. 53, n. 2, p. 89-94, 2003. http://dx.doi.org/10.1093/occmed/ kqg046. PMid:12637592 ÅKERSTEDT, T.; WRIGHT JUNIOR, K. P. Sleep loss and fatigue in shift work and shift work disorder. Sleep Medicine Clinics, New York, v. 4, n. 2, p. 257-271, 2009. http://dx.doi.org/10.1016/j. jsmc.2009.03.001. PMid:20640236 AMERICAN ACADEMY OF SLEEP MEDICINE – AASM. The International classification of sleep disorders, revised: diagnostic and coding manual. Westchester: American Academy of Sleep Research; Philadelphia: WB Saunders Co., 2005. ARRIGHI, H. M.; HERTZ-PICCIOTTO, I. 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PMid:16829553 209 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional ISSN: 0303-7657 (versão impressa) http://dx.doi.org/10.1590/0303-7657000084513 Samantha Lemos Turte-Cavadinha 1 Edu Turte-Cavadinha 1 Artigo A violência psicológica no trabalho discutida a partir de vivências de adolescentes trabalhadores Andréa Aparecida da Luz 1 Frida Marina Fischer 2 Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, Programa de PósGraduação em Saúde Pública. São Paulo, SP, Brasil. 1 Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, Departamento de Saúde Ambiental. São Paulo, SP, Brasil. 2 Contato Samantha Lemos Turte-Cavadinha E-mail [email protected] Este trabalho é fruto da Dissertação de Mestrado de Samantha Lemos TurteCavadinha, sob a orientação de Frida Marina Fischer, defendida no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 2012. Trabalho apresentado no V Congresso Ibero-Americano de Pesquisa Qualitativa em Saúde, em Lisboa, em 2012 (resumo publicado nos anais) e no 18th World Congress on Ergonomics, em Recife, em 2012 (resumo expandido publicado no periódico Work (Reading, MA), v. 41, p. 5674-5676, 2012). Apoio: CNPq (Auxílio à Pesquisa – processo nº 473138/2008-5) e FAPESP (bolsa de mestrado da primeira autora – processo nº 2009/12515-0) Os autores declaram não haver conflitos de interesse. Recebido: 03/09/2013 Revisado: 03/04/2014 Aprovado: 09/04/2014 210 Workplace psychological violence discussed from teenage workers’ experiences Resumo Objetivo: identificar e discutir situações de trabalho relatadas por adolescentes trabalhadores que pudessem se constituir como violência psicológica no trabalho. Métodos: foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas com 30 jovens trabalhadores entre 15 e 20 anos de idade. As informações foram analisadas a partir da análise hermenêutico-dialética. Resultados: em geral, os participantes perceberam os “relacionamentos interpessoais” no trabalho como bons, mas relataram inúmeras situações de “mal-estar no trabalho” que incluíram humilhações, abusos de poder, constrangimentos e assédio sexual, revelando ocorrências de violência psicológica no trabalho. Os jovens mais empoderados e autônomos conseguiram enfrentar com mais firmeza as situações abusivas, fossem elas por parte de colegas de trabalho ou de superiores hierárquicos. Conclusão: os adolescentes ingressantes no mundo do trabalho estão expostos a situações que ameaçam a saúde mental e se valem, sobretudo, do apoio social como estratégia de enfrentamento. Sugere-se a inclusão de temas de Saúde Mental e Trabalho, não só em organizações de educação para o trabalho, mas também no ensino médio regular, como contribuição ao preparo dos adolescentes e para que possam identificar e desenvolver estratégias de enfrentamento à violência psicológica. Palavras-chave: saúde do trabalhador; saúde mental; aprendizes e estagiários; violência psicológica; condições de trabalho. Abstract Objective: to identify and discuss work conditions reported by young workers which could be constituted as psychological violence at work. Methods: semi-structured individual interviews were conducted with thirty adolescent workers aged 15 to 20 years old. The data were analyzed using the hermeneutic-dialectic method. Results: overall, participants perceived the “interpersonal relationships” at work as good, but they reported many situations of “malaise at work”, which included humiliation, power abuse, embarrassment and sexual harassment, revealing occurrences of psychological violence at work. Youngsters who were more empowered and autonomous were able to deal more firmly with abusive situations, whether they were produced by coworkers or superiors. Conclusion: adolescents entering the labor market are exposed to work conditions that can be harmful to their mental health, and social support is mainly their coping strategy. The mental health and work theme should be included in professional training and high school as a way to contribute to the better preparedness of teenage workers, so that they could identify and develop coping strategies to deal with psychological violence. Keywords: occupational health; mental health; apprentices and trainees; psychological violence; working conditions. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 Introdução A violência psicológica refere-se ao uso intencional de poder em qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima, que prejudique o pleno desenvolvimento ou que vise controlar comportamentos, mediante constrangimento, humilhação, isolamento, vigilância constante, ridicularização ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica (BRASIL, 2006). Esse tipo de violência é uma violação real da autonomia, da dignidade e do direito de autodeterminação dos indivíduos que pode ser tão ou mais danosa que a violência física. Manipular, ameaçar, degradar e aterrorizar são mecanismos utilizados para destruir a pessoa vitimada, sendo que os casos mais nocivos são aqueles perpetrados por pessoas em posição de autoridade sobre o atingido (GARVER, 1973). Heloani e Barreto (2010, p. 40) consideram-na “o mais poderoso e destrutivo método de controle”. Quando a violência psicológica ocorre no ambiente de trabalho torna-se um dos fatores psicossociais que constituem um risco, visível ou invisível, à saúde, provocando mal-estar. A violência no trabalho pode estar contida de forma insidiosa na cultura organizacional, sendo que o indivíduo afetado pode desenvolver inúmeras doenças, inclusive transtornos mentais, havendo alto risco de suicídio para as vítimas (HELOANI; BARRETO, 2010). A complexidade da violência psicológica exige um olhar aprofundado sobre cenários socioculturais, econômicos e profissionais, a partir dos quais as inter-relações existentes expressam-se em relações de poder que caracterizam a violência psicológica no trabalho; e é a partir da manipulação da afetividade e das emoções que o poder se configura como abuso (CALDAS; NEVES, 2008). Algumas “expressões” da violência psicológica no trabalho costumam ser apresentadas em estudos sobre o tema como: assédio moral, ameaças, intimidações, abuso de poder, humilhações, discriminações e assédio sexual (JACKSON; ASHLEY, 2005; OLIVEIRA; NUNES, 2008). Tais situações, pontuais ou não (como no caso do assédio moral, que ocorre de forma sistemática), podem se apresentar de forma individual ou em conjunto, compondo um complexo sistema ameaçador à saúde mental. Os episódios de violência no ambiente de trabalho podem também incluir comportamentos não civilizados (workplace incivility) que seriam formas mais leves de maus-tratos, como a falta de respeito com o outro, em que a intenção de causar prejuízo é mais difícil de ser determinada (CORTINA et al., 2001). A Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhece a dificuldade em precisar um conceito que relacione violência e trabalho, pois sua definição depende de uma grande variedade de comportamentos Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 que podem ou não ser considerados violentos em virtude de diferentes contextos e culturas (INTERNATIONAL LABOUR OFFICE, 2006). A literatura científica internacional contém inúmeros estudos sobre a ocorrência de violência psicológica em suas diversas formas no ambiente de trabalho (ROSPENDA; RICHMAN; SHANNON, 2009; FRONE, 2000). Silva, Coelho e Caponi (2007) afirmavam existir uma aparente indiferença dos pesquisadores brasileiros em escrever especificamente sobre a violência psicológica, sendo dada prioridade às formas de violência que provocam graves consequências físicas em detrimento das psicológicas. Esse fato explicaria, pelo menos parcialmente, a dificuldade em encontrar referências a este tema em outros âmbitos, que não o da violência doméstica. Nos últimos anos, o tema começou a ganhar relevância no Brasil, sobretudo no meio acadêmico, tendo sido publicados artigos diversos abordando a temática do assédio moral no trabalho, uma das apresentações mais comprovadamente nocivas da violência psicológica. Em geral, os artigos que tratam do assédio moral no trabalho abordam a precarização do trabalho e sua disseminação nas estruturas de gestão organizacional, comprovando a necessidade de ser repensada a lógica que permite, ou ainda incentiva, que o fenômeno ganhe força. O assédio moral é um evento com características específicas dentro do complexo espectro da violência psicológica, a qual inclui inúmeras situações disseminadas e banalizadas em nossa sociedade, afetando a saúde mental dos trabalhadores cotidianamente. Neste estudo, optamos por abordar aspectos da violência psicológica que abrangem, mas não se restringem ao assédio moral no trabalho, entendendo que a subjetividade dos trabalhadores é também afetada pela qualidade das relações interpessoais, além da configuração organizacional. Especialmente durante a adolescência, conflitos no trabalho representam um importante estressor ocupacional, pois nesta fase seriam desenvolvidas competências interpessoais, particularmente entre os 16 e 21 anos de idade. Tais conflitos empobrecem os relacionamentos e associam-se à ocorrência de violência psicológica (FRONE, 2000). É importante identificar e gerenciar as características do trabalho de jovens. As condições de trabalho podem comprometer negativamente as atitudes profissionais e a saúde mental, considerando que adolescentes que ainda estão se desenvolvendo cognitiva, emocional e socialmente podem ter menos recursos para lidar com experiências traumáticas e sofrer efeitos significativos (FRONE, 2000). Em estudo com 1.400 adolescentes trabalhadores norte-americanos com idade entre 14 e 17 anos, Rauscher (2008) verificou que aproximadamente 25% haviam sofrido ameaças verbais e 10% haviam sido assediados sexualmente. Outros estudos confirmaram 211 que, além de características específicas da adolescência, a pressão no trabalho e constrangimentos psicossociais tornam os jovens mais suscetíveis ao desenvolvimento de doenças relacionadas ao trabalho (FISCHER et al., 2003). A revisão de literatura sem delimitação temporal nas principais bases de dados, Scielo, Medline, Bireme e Lilacs, não mostrou estudos brasileiros que tenham sido realizados com adolescentes trabalhadores abordando a temática da violência psicológica no trabalho. O foco das discussões da violência psicológica no trabalho no Brasil geralmente se concentra no tema do assédio moral e organizacional. São frequentes os discursos e publicações sobre a gestão organizacional propiciando este tipo de violência (GOSDAL; SOBOLL, 2009). Entretanto, verifica-se uma lacuna no conhecimento ao se buscarem estudos cuja preocupação seja dirigida a adolescentes aprendizes e estagiários, que apresentam peculiaridades em sua inserção no mundo de trabalho. Há um numeroso contingente de adolescentes no mundo inseridos no mercado de trabalho. Na América Latina, existem 12,6 milhões de jovens estudantes trabalhadores (INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION, 2010). No Brasil são cerca de 18,2 milhões de jovens inseridos no mundo do trabalho (incluídos os que apenas trabalham e os que trabalham e estudam) dentre os 34 milhões de jovens brasileiros entre 15 e 24 anos (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2009). Acredita-se que o maior número de jovens que ingressam precocemente no trabalho sejam filhos de trabalhadores que residem em bairros populares ou favelas das médias e grandes cidades do Brasil (FRIGOTTO, 2004). Esses jovens costumam pertencer à classe ou à fração de classe “filhos de trabalhadores assalariados”, conforme aponta Frigotto (2004), isto é, que produzem a vida, a partir de uma inserção no mercado de trabalho. Esta não seria uma escolha, mas uma imposição de sua origem social e do tipo de sociedade que se construiu no Brasil. É o que este autor entende como um processo de “adultização precoce”, com uma inserção precária, em termos de condições e níveis de remuneração, no mercado formal ou “informal” de trabalho. Diferentemente, a grande maioria dos jovens de “classe média”, ou filhos dos donos de meios de produção, inicia sua inserção no mundo do trabalho após os 25 anos e em postos de trabalhos ou atividades de melhor remuneração. Os adolescentes trabalhadores seriam, assim, potencialmente mais vulneráveis à violência psicológica no trabalho por sua precocidade e imaturidade ao iniciarem a vida profissional, seja por sofrerem efeitos nocivos adicionais, seja por aprenderem a banalizá-la e reproduzi-la. Diante desse panorama, há pertinência em abordar a temática da violência psicológica nesse grupo etário. Destarte, o objetivo do estudo foi identificar e discutir situações de trabalho relatadas por jovens 212 trabalhadores que possam se constituir em violência psicológica no trabalho. Procedimentos metodológicos Buscar compreender as situações vividas e como são as relações interpessoais vivenciadas pelos adolescentes no ambiente de trabalho é tarefa que exige subsídios que privilegiem o diálogo como fonte de informação. A pesquisa qualitativa pode oferecer formas diferentes e inovadoras de produzir dados (DENZIN; LINCOLN, 2000), pois há uma diversidade de estratégias que, muitas vezes, conseguem ir até onde a pesquisa quantitativa não consegue chegar. Neste trabalho, a estratégia escolhida foi a análise hermenêutico-dialética proposta por Minayo (2008), que norteou todas as etapas da pesquisa. Essa análise permite uma reflexão que se funda na práxis, através de um processo ao mesmo tempo compreensivo e crítico de estudo da realidade social. Sendo assim, a análise hermenêutico-dialética considera que é necessário explicitar o contexto no qual determinado texto foi produzido para que se possa compreender a totalidade dinâmica das relações sociais de produção e reprodução nas quais está inserido. A união da hermenêutica com a dialética leva o intérprete a entender a fala, tanto como resultado de um processo social quanto de um processo de conhecimento, ambos resultantes de múltiplas determinações, que adquirem significados específicos (MINAYO, 2008). A análise hermenêutico-dialética utiliza níveis diversos de categorias em seu processo de compreensão. Minayo (2008 , p. 178), partindo de Marx (em Introdução à Crítica da Economia Política, 1973), esclarece que, por categorias, entende “[...] conceitos relevantes carregados de sentido que permitem expressar os aspectos fundamentais das relações dos seres humanos entre si e com a natureza”. Laperrière (2008) relembra que é essencial que a categoria constitua uma dimensão pertinente do fenômeno observado. O pesquisador deve detalhar o conteúdo das categorias através de dois movimentos: primeiramente, deve minimizar as diferenças observadas, de modo a detalhar e consolidar o conteúdo das categorias; e, num segundo momento, deve maximizar as diferenças, para apreender as condições de surgimento e de variação do fenômeno pesquisado. Para a construção do roteiro de entrevista semiestruturada, foram utilizadas categorias operacionais (MINAYO, 2008). As categorias que nortearam a construção do roteiro foram: trabalhar na adolescência, violência psicológica no trabalho, relacionamentos interpessoais e apoio social. Cada categoria abarcava questões abertas para que se pudessem sondar as vivências dos jovens no ambiente de trabalho. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 O estudo foi realizado em uma Organização Não Governamental (ONG) localizada na zona sul da cidade de São Paulo. Essa ONG tinha por base um trabalho educativo que proporciona aos adolescentes de baixa renda condições para concorrer a uma vaga no mercado de trabalho e a possibilidade de adquirir conhecimentos a respeito de seus direitos como cidadãos e deveres de convivência na sociedade. Os jovens que ingressavam no programa dessa ONG passavam por um curso de preparação para o trabalho e depois eram encaminhados para empresas, podendo na época ser contratados por até dois anos como aprendizes ou estagiários. Uma vez contratados, além das atividades laborais, os jovens também frequentavam os programas de Estágio ou de Aprendizagem na ONG, onde tinham um acompanhamento mensal (estagiários) ou semanal (aprendizes), durante o tempo de contrato, de forma a complementar sua formação de trabalhador e discutir questões surgidas na vivência cotidiana do trabalho. A pesquisa foi apresentada primeiramente à diretoria da ONG, momento em que foi solicitada a autorização para a realização do estudo. Em seguida, o estudo foi apresentado ao coordenador pedagógico, aos professores e aos alunos da ONG. Como critério de inclusão da pesquisa, foram convidados estudantes trabalhadores de ambos os sexos que faziam parte dos programas de Estágio ou de Aprendizagem há pelo menos seis meses, para que já tivessem algum tempo de contato com o ambiente profissional. Os dois grupos de jovens possuíam contrato especial de trabalho ajustado por prazo determinado, conforme legislação Lei nº. 10.097 para os aprendizes (BRASIL, 2000) e Lei nº. 8.069 Artigo 68 para os estagiários (BRASIL, 1990). O tempo máximo de contrato de trabalho nesse regime era de 24 meses. Trinta jovens que tinham entre 15 e 20 anos aceitaram voluntariamente participar da pesquisa, sendo 19 homens e 11 mulheres. A composição dos dois grupos participantes contemplou vários períodos de contrato de trabalho. Dezoito jovens entrevistados trabalhavam há menos de 12 meses. Os que trabalhavam há mais tempo (2 jovens), estavam contratados há 21 meses. Todos eles estudavam durante o período noturno – ensino médio (21), técnico (3) ou superior (6) – e trabalhavam em diferentes empresas e setores (Indústria, Comércio ou Serviços) durante o período diurno, atuando nas áreas administrativa, financeira ou comercial. De acordo com os dados referidos pelos aprendizes e estagiários, todos os participantes residiam em bairros periféricos da região metropolitana de São Paulo, com prevalência da população de baixa renda e ganhavam 1 salário mínimo. Em relação à renda familiar, quase metade do total de jovens aprendizes e estagiários possuía renda entre 1 e 3 salários-mínimos. A obtenção dos relatos foi realizada entre novembro e dezembro de 2009. As entrevistas individuais tiveram Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 duração aproximada de 30 minutos. No início de cada entrevista, o participante era questionado sobre idade, sexo, escolaridade, salário e renda familiar, tempo na ocupação, função e atividades realizadas, jornada diária e semanal de trabalho. As entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente. Primeiramente, através de leituras, foram anotadas lateralmente nas transcrições as primeiras impressões sobre os assuntos surgidos nas entrevistas e destacados os trechos que continham ideias centrais e relevantes. No segundo momento, foi feita uma divisão em subconjuntos com base nas questões de entrevista e em conjuntos maiores de acordo com o assunto (por exemplo, o conjunto ‘realidade no trabalho’ continha os subconjuntos ‘relacionamentos interpessoais e situações abusivas’; ‘prevenção e formas de enfrentamento’). Após diversas leituras transversais de cada subconjunto e do conjunto em sua totalidade, foram construídos temas reunindo os trechos das falas dos jovens. Do agrupamento desses temas, foram constituídas as categorias empíricas (MINAYO, 2008) que contêm e expressam relações e representações específicas do grupo estudado. Os temas “bons relacionamentos com apoio social no trabalho”; “relacionamentos instáveis e sem apoio social” foram contemplados na categoria empírica “relacionamentos interpessoais”. Os temas “humilhação”; “abuso de poder”; “constrangimentos” e “assédio sexual” deram origem à categoria “mal-estar no trabalho”. Por fim, as interpretações dos participantes foram fundidas com as nossas interpretações, considerando o diálogo com a literatura vigente sobre a temática. Embora tenham sido entrevistados jovens originários de diferentes programas, Estágio e Aprendizagem, as vivências demonstraram ser muito semelhantes, motivo pelo qual foram realizadas a análise e a discussão conjunta dos dados. Cabe ressaltar que o trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (COEP/FSP) sob o nº 2021/2009. Foi realizada a explanação da pesquisa para cada um dos jovens e feita a entrega e leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os jovens menores de 18 anos de idade foram orientados a entregar o documento para os pais ou responsável legal para que autorizassem sua participação no estudo. Análise e discussão dos resultados Relacionamentos interpessoais no trabalho Em geral, os participantes percebiam os relacionamentos interpessoais no ambiente de trabalho como bons. Foram diversas as falas ressaltando a satisfação relacionada à boa convivência pessoal e 213 profissional no trabalho, assim como apoio social recebido tanto de colegas de trabalho quanto por parte da chefia. O apoio social é um dispositivo de ajuda mútua, com aspectos como compartilhamento de informações, auxílio em momentos de crise e influência positiva sobre a saúde contra situações de estresse ao criar uma sensação de coerência e controle da vida (ANDRADE; VAITSMAN, 2002). De acordo com Antunes e Fontaine (1996), o apoio social é configurado nas diferentes funções que pessoas significativas ou grupos desempenham para um indivíduo estabelecendo uma rede de relações sociais, a qual permite ao indivíduo sentir-se estimado e confiante de que terá auxílio, conforto e compreensão quando necessitar. Os autores acreditam que jovens tendem a procurar amigos com mais frequência do que familiares em tais situações. Seguem abaixo falas de jovens entrevistados a respeito do apoio que recebem no trabalho: Pessoal muito legal, mesmo. [...] Se você tem alguma dúvida, mesmo se ele não é do seu departamento, e ele sabe te ajudar, ele vai te ajudar, sem problema. Eu me dou muito bem com o pessoal também, todo mundo brinca, todo mundo trabalha junto, pra manter a empresa bem legal. (estagiário, 17 anos, sexo masculino) Eu fui bem recebido, lá tem pessoas que confiam no meu potencial e isso ajuda muito, isso é uma força muito grande pra mim. Porque tem empresas que não acreditam no aprendiz, acham que o cara vai lá só pra bagunçar. E o meu gestor ele me ajuda em algumas coisas, não só como chefe, mas às vezes como um amigo também. (aprendiz, 17 anos, sexo masculino) Alguns entrevistados, no entanto, informaram viver relacionamentos interpessoais instáveis e sem apoio social da parte de colegas ou da chefia. Os relacionamentos interpessoais influenciam no cotidiano de forma significativa, seja através da formação de relações harmoniosas que propiciam o aperfeiçoamento e crescimento pessoal dos envolvidos ou através de relações desfavoráveis, tensas, que, além de provocar danos emocionais, podem dificultar o desenvolvimento e a realização das atividades na equipe (WAGNER et al., 2009). Atualmente, [com] minha chefia não está bom, mas também não está ruim. Está razoável, tem dias que está péssimo, mas tem dias que está bom. Parece um mar, vai pra lá e vem pra cá, não está estável. (aprendiz, 20 anos, sexo masculino) [...] Com a minha coordenadora, não é assim. Ela tem dias que ela está bem, tem dias que ela está mal e o dia que ela está mal, ela desconta em você. E esse fato acaba afetando sua vida profissional. [...] eu tenho essas desavenças com ela. E isso acaba afetando muito. (estagiário, 15 anos, sexo masculino) Quando o indivíduo percebe de forma acurada uma situação e suas variáveis, ele desempenha melhor o seu trabalho, além de ser mais capaz de se posicionar 214 de forma habilidosa na rede de relações interpessoais no local de trabalho, tanto com clientes quanto com outros trabalhadores da empresa (RODRIGUES; IMAI; FERREIRA, 2001). Alguns adolescentes entrevistados afirmaram preferir manter um relacionamento estritamente profissional, ainda que seja dada abertura para a informalidade no tratamento. Outros ficavam um pouco desconfortáveis com a situação de formalidade e relataram não saber lidar bem com a diferença de situação dentro e fora do ambiente de trabalho. De uma forma ou de outra, esses jovens demonstraram não conseguir harmonizar de forma satisfatória o campo profissional e pessoal; sentiam-se desconfortáveis por encontrar uma realidade diferente da que esperavam e revelam sua imaturidade no manejo das relações interpessoais nos diferentes contextos. Meu chefe, ele é bem sério. [...] Quando ele chega no serviço, é ele fechado nele, fazendo as coisas dele. Mas fora, ele chega pra conversar com a gente, só que, como a gente está acostumado com aquele jeito sério, fechado, de ser, a gente não sabe como conversar com uma pessoa assim. (aprendiz, 17 anos, sexo feminino) [...] eu evito conversa até por respeito, porque lá é assim, eles dão muita abertura e muita gente acaba se excedendo, mesmo que esteja no nível que eles permitem, mas eu já não gosto muito disso, sempre procurei ficar na minha [...] (aprendiz, 18 anos, sexo masculino) A qualidade do apoio social recebido é um importante fator que interfere no enfrentamento da violência psicológica no trabalho e pode ser determinante para minorar ou agravar os efeitos nocivos à saúde mental dos envolvidos. Apesar da maioria dos jovens afirmar perceber a vivência dos relacionamentos no trabalho como boa, no decorrer das entrevistas foram relatadas inúmeras situações que geravam mal-estar e que podem ser expressões de violência psicológica no trabalho. Mal-estar no trabalho Foram classificados na categoria “mal-estar no trabalho” relatos dos participantes a respeito de situações de humilhação, abuso de poder, constrangimentos e assédio sexual. Esses temas surgiram em momentos diversos das entrevistas, relatando situações vividas ou presenciadas pelos jovens. As situações foram relatadas por jovens com diferentes tempos de experiência, de empresas diversas e que trabalhavam em diferentes setores, não sendo neste estudo percebida maior recorrência associada a determinado tipo de ramo empregatício ou tempo de vinculação à empresa. Entre as situações de humilhação sofridas pelos jovens no ambiente de trabalho, destacam-se as agressões verbais, as quais geralmente são aplicadas como forma de punição, para corrigir algum erro Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 realizado pelo profissional ou recriminando uma situação, conforme exemplificado nas falas abaixo: Foi um fato de eu ter feito algum serviço errado e ter sido chamado de ignorante, de burro, agressividades assim, em geral. (aprendiz, 20 anos, sexo masculino) [...] Eu tinha um problema no braço. [...] eu não era acostumado a trabalhar e lá, às vezes, a gente carregava um pouco de peso, trabalhava com correio, trabalhava com caixas grandes. E aí, teve uma época que eu não conseguia carregar peso, não conseguia escrever, não conseguia digitar. E aí eu acabei ouvindo coisas que me desagradaram profundamente. (aprendiz, 17 anos, sexo masculino) [...] eu trabalho em uma central de atendimento e é como se fosse uma ouvidoria. Lá dá muito, muito problema. Então já me senti muito desrespeitada, sim. [...] mas a gente tem que entender que o cliente está xingando e desrespeitando a empresa. Não você, não o funcionário. Mas tem certas coisas que alguns clientes falam que, realmente, você se sente machucado, se sente magoado pelo que falou. (aprendiz, 17 anos, sexo feminino) dois exemplos: no primeiro, o jovem não aceitou executar a tarefa solicitada por conhecer a lei de que um adolescente não pode realizar trabalhos que representem risco à sua saúde; no segundo, a jovem acabou por se submeter à situação por não saber como enfrentá-la. Conheço só algumas leis: a lei que um aprendiz não pode correr riscos. E meu chefe pediu pra eu transportar algumas peças para outra caçamba. [...] E eu falei: “não vou fazer, porque na minha carteira está que eu sou um aprendiz administrativo, não ajudante geral”. E ele: “você tem que fazer, você é meu funcionário”. [...] E certamente eu não fiz, ele ficou meio bravo, a gente praticamente ficou uma semana sem falar um com o outro. (aprendiz, 20 anos, sexo masculino) Quando procuram que eu faça o serviço do “office boy” [...] Eu sei que aquele não é o meu serviço e que está no contrato que não pode. Mas eu acho que não é viável falar não. [...] Aí eu me sinto meio que constrangida, porque eu sei que não posso. (estagiário, 15 anos, sexo feminino) As humilhações e depreciações constantes caracterizam a violência psicológica e podem resultar em danos para os adolescentes ao minar-lhes a autoestima e a segurança (SAITO, 2010). Barreto (2003) afirma que, nas relações autoritárias, a saúde pode ser abalada, havendo manifestações de distúrbios psíquicos que podem alterar as condutas daqueles que não são reconhecidos como sujeitos. Essa forma de violência, como pode ser considerada a humilhação inerente às situações descritas, é um importante indicador da qualidade das condições de trabalho (OLIVEIRA; NUNES, 2008). Gaulejac (2007) discute os efeitos dos modos de gerenciamento na produção de sofrimento psíquico e de problemas relacionais entre os trabalhadores da empresa que, submetidos à intensa pressão, por não poderem intervir sobre as faltas cometidas pela organização do trabalho, acabam por se agredirem mutuamente. Essa reflexão do autor é extremamente pertinente e, embora não seja objeto deste trabalho aprofundar essa discussão, existem inúmeros artigos que investigam a estreita vinculação entre as condições de trabalho decorrentes das políticas de gestão e a ocorrência de assédio no trabalho (HELOANI, 2005; GOSDAL; SOBOLL, 2009). Estes relatos revelaram que os adolescentes estavam expostos a situações de abuso de poder e que conhecer a lei não era garantia de proteção, pois enfrentar uma situação abusiva cometida por um superior hierárquico remete à possibilidade de punição ou demissão. Contudo, ainda assim, o conhecimento a respeito de direitos e deveres pode ser um meio de evitar ou contornar situações claras de exploração. Atritos com a chefia também são frequentes, especialmente relacionados a situações de abuso de poder, geralmente em solicitações que contemplam desvio de função para realizar atividades perigosas ou tarefas que, por lei, não podem ser realizadas por jovens trabalhadores e menores de 18 anos (BRASIL, 1990). Alguns jovens confrontaram os chefes demonstrando que conheciam a lei e que não poderiam realizar funções diferentes daquelas constantes no contrato de trabalho. Nas situações relatadas abaixo, tem-se Em virtude de sua condição socioeconômica e cultural, segundo Asmus et al. (2005), os jovens se afastam da compreensão do significado social do trabalho e dos fatores psicossociais do trabalho associados ao adoecimento. Os autores relembram que a experiência do trabalho precoce entre as classes populares tem reflexos mascarados na saúde dos jovens, pois as doenças do trabalho geralmente aparecem somente na fase adulta. Esses fatos dificultam o desenvolvimento de políticas de proteção ao trabalho do adolescente. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 As relações de poder refletidas nas interações interpessoais no trabalho envolvendo os jovens entrevistados constroem-se e revelam-se nas desigualdades socioeconômicas e hierárquicas dos envolvidos. Superiores hierárquicos e colegas de trabalho julgam-se detentores de um saber e um poder que não é possibilitado aos jovens trabalhadores com pouco tempo de experiência profissional e ainda em formação educacional. McLaughlin, Uggen e Blackstone (2008) destacam que a origem social pode afetar a quantidade, qualidade e tipo de trabalho e, portanto, a exposição dos trabalhadores a situações de assédio. Sendo assim, jovens trabalhadores de classes baixas podem ser especialmente vulneráveis à violência psicológica no trabalho. 215 Neste estudo, a condição socioeconômica dos jovens entrevistados, originários de famílias de baixa renda e pouca escolaridade, afetara também as relações interpessoais no ambiente de trabalho, conforme demonstram os relatos, como queixas por parte dos jovens sobre insinuações implícitas e explícitas de que eles poderiam ser responsáveis por roubos (de alimentos e dinheiro) no ambiente de trabalho. Teve uma época na minha empresa que estava sumindo coisas da copa. [...] Aí chegou lá um funcionário reclamando que tinham comido coisa da geladeira que era dele [...] ele falou com a intenção de que eu me sentisse culpada, entendeu? Aí eu senti isso da parte dele. Eu achei isso muito desrespeitoso. (estagiário, 15 anos, sexo feminino) Outras situações relativas à condição social e hierárquica dos jovens dentro da empresa foram citadas, as quais, inclusive, colocavam em xeque a sua capacidade de aprender, de desempenharem bem seu trabalho e crescerem profissionalmente. Um estagiário de faculdade fez um comentário maldoso [...] e eu achei desrespeitoso. Há pessoas que, infelizmente, tentam ser melhor do que as outras por estar fazendo uma faculdade. (estagiário, 18 anos, sexo masculino) Nesse relato, o estagiário da faculdade se sentiu no direito de afirmar sua superioridade, dada sua condição de “fazer faculdade”. A desqualificação, neste caso, não apareceu apenas por uma condição presente, mas como se houvesse a impossibilidade do adolescente vir a ser igual em condições de acesso ao ensino superior ou de ocupar a mesma vaga profissional. Neste exemplo, à violência psicológica soma-se o sofrimento ético-político, conforme definido por Sawaia (2001, p. 105), que retrata a [...] vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Chaui (1998) considera que a forma como a sociedade brasileira se estrutura não só permite como propicia que esse tipo de exclusão seja legitimado e não seja, portanto, tomado como forma de violência. Segundo McLaughlin, Uggen e Blackstone (2008), para os adolescentes pobres ou da classe trabalhadora que são obrigados a trabalhar por razões financeiras, a violência psicológica no trabalho pode ter efeitos negativos de longo prazo sobre o nível socioeconômico. Os jovens trabalhadores que experimentam assédio podem também desenvolver expectativas negativas sobre os empregos futuros, sofrer consequências monetárias e terem a si negada valiosa experiência de trabalho para se prepararem para futuras carreiras. Quando não há o reconhecimento da necessidade de aprendizado que a colocação lhes deveria possibilitar, 216 esses jovens passam a ser reprodutores de tarefas simples que não lhes permitem aprender com o trabalho. É pra falar a verdade, eu não tenho tantas expectativas no meu trabalho hoje, porque onde eu trabalho é tudo muito fechado. Cada um é muito egoísta no que faz. [...] Quando uma pessoa falta, acabou o mundo. Ninguém sabe fazer nada. [...] Eu até tentei, eu juro que tentei saber um pouquinho de cada coisa, mas o pessoal não deixa. (estagiário, 16 anos, sexo feminino) Sawaia (2001, p. 9) relembra que inclusão e exclusão representam um continuum dialético em que se apresentam nuances de diferentes qualidades e dimensões. Incluem-se aí, segundo a autora, a dimensão objetiva da desigualdade social, a dimensão ética da injustiça e a dimensão subjetiva do sofrimento. Essas seriam faces de uma exclusão que pode se manifestar em “inclusão social perversa”, a partir da qual a sociedade cria uma ilusão de inclusão que determinaria um distanciamento do sujeito da possibilidade de ser igual ao “nós que o exclui, gerando o sentimento de culpa individual pela exclusão”, porquanto, ao mesmo tempo em que estes jovens são incluídos no mercado de trabalho, eles muitas vezes são discriminados por serem aprendizes ou estagiários. Os jovens trabalhadores inseridos precocemente no mercado de trabalho podem estar sujeitos a esta forma de inclusão ilusória com efeitos deletérios. Seja pelas condições precárias encontradas, na ausência de trabalho decente, ou pelos efeitos nocivos que essa inserção precoce pode ter sobre a formação e saúde dos jovens, quando a empresa não cumpre a função educativa a que se propõe, ela atua como “[...] instrumento de legitimação para a manutenção e reprodução social da pobreza e da estrutura ocupacional” (MINAYO-GOMEZ; MEIRELLES, 1997, p. 138). Os autores citados afirmam ainda que o trabalho de adolescentes [...] acaba por lhes impor um c usto social elevado: a renúncia a um grau de escolarização maior, capaz de lhes garantir, no futuro, melhor colocação no mercado de trabalho; ou uma sobrecarga de tarefas da qual resulta considerável desgaste físico e mental, pois a atividade laborativa é uma fonte de estresse emocional de origem social na infância e adolescência. (MINAYOGOMEZ; MEIRELLES, 1997, p. 138) Se, por um lado, as citações apresentadas podem ser exemplos da inclusão perversa, conforme discutida por Sawaia (2001) e Minayo-Gomez e Meirelles (1997), por outro, elas refletem no destaque a seguir, a respeito do não reconhecimento, reclamação apresentada por vários jovens trabalhadores entrevistados. Não há um reconhecimento por muitos colegas e por muitos superiores hierárquicos do momento de aprendizado que deveriam estar vivendo esses jovens na empresa. Essa falta de reconhecimento, além de afetar o Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 aprendizado, pode igualmente afetar o bem-estar psicológico desses jovens. Siqueira e Padovam (2008) entendem que o bemestar psicológico consiste no funcionamento pleno das potencialidades de uma pessoa, traduzidas em capacidade de pensar, usando raciocínio e bom senso. Além disso, outras dimensões seriam associadas ao bem-estar: autoaceitação, relacionamento positivo com outras pessoas, autonomia, propósito de vida e crescimento pessoal. Seja quando há uma repreensão exagerada por um erro cometido, seja na desconfiança sentida pelos entrevistados sobre sua capacidade profissional, ou ainda quando sua opinião sobre o próprio trabalho não é ouvida, eles querem ser “pessoas” e não somente aprendizes ou estagiários. Ao se utilizar da expressão “passar a ser uma pessoa e não um aprendiz”, o jovem revela o sentimento de desmerecimento da figura do aprendiz em relação aos outros profissionais da empresa, com menos direitos e, inclusive, menos voz que uma pessoa (profissional) reconhecida como tal tem ou deveria ter. Essa é a insatisfação que repetidas vezes os jovens entrevistados por este estudo demonstraram. Incomoda, e muito, o fato do aprendiz ser “menos” em relação aos outros, de ter um lugar “menor” na empresa e, principalmente, de não ser ensinado a ser profissional como esperavam que fosse. Ou, como diz Sawaia (2001, p. 115), a enunciação do desejo de “ser gente” não diz respeito apenas ao “[...] desejo de igualar-se, mas de distinguir-se e ser reconhecido.” Crescimento. Crescer, passar a ser uma pessoa, e não um aprendiz. [...] o menor aprendiz é meio que excluído em alguns assuntos, sendo que participa. Então você tem que correr atrás, você tem que saber. (aprendiz, 16 anos, sexo masculino) Eu não sei se é pelo nome aprendiz, se aprendiz não tem experiência, eu até concordo, porque muitas coisas precisam ser conferidas, só que tem sempre a desconfiança. [...] É como se você não pudesse errar, como se você fosse uma máquina, um robozinho, que não pudesse errar em algumas coisas. Coisas que gestores mesmo erram. (aprendiz, 16 anos, sexo feminino) E a falta de reconhecimento pode ter um efeito desastroso sobre aqueles que entraram no trabalho com tantas expectativas. A frustração, a desmotivação, os conflitos interpessoais podem surgir e levar o jovem trabalhador a perder a confiança no trabalho ou, inclusive, em si mesmo, em seu potencial criativo. Ultimamente, nesse trabalho que eu estou agora, eu estou desmotivado. Então, eu não estou conseguindo conciliar meu trabalho, eu estou tendo dificuldades. [...] eu não estou confiando muito bem no trabalho. As minhas expectativas eram ter um cargo efetivo, crescer dentro da empresa e ser um ótimo profissional. Hoje, não mais. (aprendiz, 20 anos, sexo masculino) Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 É difícil levantar pra todo dia ter que ir trabalhar, porque eu já estou meio desgastado com o ambiente, por causa de algumas coisas que eu já ouvi falarem, de algumas coisas que estão mudando lá dentro. E parece que eles não dão importância pra gente, pros funcionários. (aprendiz, 16 anos, sexo masculino) Em relação ao aprendiz fica um clima chato toda terça escutar: “ah, vai lá, passear, ficar brincando”. Nunca é levada a sério a questão do aprendiz. (aprendiz, 17 anos, sexo feminino) Brincadeiras no ambiente de trabalho também apareceram em diversas falas dos adolescentes, inclusive criando constrangimentos. Ser coagido a aceitar e gostar das brincadeiras, fazer de conta que não é atingido mesmo quando a brincadeira é vexatória são maneiras encontradas pelos jovens para se adaptarem ao ambiente de trabalho que de outra forma seria causador de mal-estar cotidiano. Nesse sentido, Saito (2010) destaca o importante aspecto que a influência do grupo pode ter sobre os adolescentes na deflagração da violência. A autora destaca sobre essa influência que: “[...] se por um lado pode trazer vivências de lideranças e valorização do trabalho em equipe, por outro pode encorajar práticas antissociais ou mesmo violentas que não seriam realizadas por um indivíduo único.” (SAITO, 2010, p. 152) [...] me mudaram de mesa e eu estou sentado aqui de costas pra porta. E todo mundo que passa, vai ali e dá um tapinha nas minhas costas, só que não é um tapinha, é um tapa [com ênfase]. Eu já falei que eu não gosto disso, mas o pessoal lá não respeita muito e eu já saí com “mor” dor nas costas por causa disso. (aprendiz, 17 anos, sexo masculino) [...] tinha um outro aprendiz, eu andava demais com ele, ele era muito meu amigo. [...] o pessoal falava que eu tinha um “casinho” com ele [...] Aí ficavam tirando foto, escrevendo coisa... [...] Uma vez, teve uma festa de casamento e que fui eu, aquele meu amigo, o pessoal todo. E tipo, esse meu amigo, ele já tinha mais de 18 anos, então ele bebia e tal. [...] Aí, ele já estava com umas caras assim meio de bêbado e foram e tiraram uma foto, e está tipo eu abaixado assim e ele em pé. E aí, essa foto ficou em alguns computadores da empresa, ficaram enviando essa foto. (aprendiz, 17 anos, sexo masculino) As brincadeiras no ambiente de trabalho podem ser consideradas violentas quando incluem maustratos verbais ou físicos, contêm palavras de agressão em tratamentos “aparentemente amistosos” que mobilizam risos e piadas no ambiente de trabalho (MARTINS; ROCHA; NASCIMENTO, 2009). Essas brincadeiras, também chamadas de “perversas” por Saladini (2007), correspondem a ironias, zombaria, sarcasmo e atitudes vexatórias, com conteúdos de humilhação e desmerecimento. Outra situação surgida nas entrevistas foi o assédio sexual, que pode ser considerado uma forma de 217 violência psicológica. O assédio sexual relaciona-se ao assédio moral, sendo frequentes os casos em que há precedência de um sobre o outro (FREITAS; HELOANI; BARRETO, 2008). A crença de que o assédio sexual só aconteça com mulheres e de que seja comum, faz com que alguns jovens, principalmente do sexo masculino, afirmem “não ser nada demais” e sintam estar livres desse tipo de situação, como relatado por um jovem que banaliza as situações de provocações e insinuações sexuais: As mulheres passam, alguns tentam mexer, e outros já colocam a cabeça no lugar “para, a mulher é casada” ou “a mulher está aí para trabalhar e você mexendo com ela”. Mas nada demais. (aprendiz, 20 anos, sexo masculino) A banalização da violência psicológica contida no assédio sexual por homens jovens é reflexo do machismo na sociedade brasileira e permite que a mulher continue sendo objeto deste tipo de atenção sexual, além de dificultar a implementação de medidas de prevenção nos ambientes de trabalho. Uma jovem relatou ter vivido em seu emprego anterior uma situação de assédio sexual. Mesmo após conversar com chefia e agressor, a situação não foi resolvida. Então, a pedido dela, a ONG conseguiu transferi-la para outra empresa, porém não houve em nenhum momento um posicionamento claro da empresa com relação à situação e nenhum tipo de consequência ao perpetrador do assédio. Foi uma agressão sexual por uma pessoa que dava em cima de mim e falava esses termos de assédio sexual, desenhava e falava pra mim que queria fazer essas coisas comigo. Eu conversei direitinho com a pessoa. Mas aí me afastaram. E a situação não parou, continuava a acontecer e aí eu saí. (estagiário, 20 anos, sexo feminino) Os jovens trabalhadores queixam-se com mais frequência do que os outros trabalhadores de terem sido objeto de atenção sexual indesejada, constatando-se que as jovens com empregos precários em hotéis e empresas prestadoras de serviços têm muito mais probabilidades de exposição a assédio sexual (AGÊNCIA EUROPÉIA PARA A SEGURANÇA E A SAÚDE NO TRABALHO, 2006). Mesmo não tendo aparecido nas entrevistas, alguns autores como Freitas, Heloani e Barreto (2008) destacam que pesquisas têm revelado que apesar de serem casos raros, o assédio sexual tem se tornado mais frequente tendo o agressor do sexo feminino e um alvo do sexo masculino e ainda situações em que tanto o agressor quanto o agredido são do mesmo sexo. Fineran (2002), em estudo sobre assédio sexual a adolescentes que estudavam e trabalhavam em tempo parcial, percebeu que enquanto garotas tendem a ser assediadas por homens, os garotos costumam ser alvo tanto de mulheres quanto de homens. A partir desse estudo realizado com 712 adolescentes com idade entre 218 14 e 19, a autora concluiu que 35% dos participantes já haviam sido assediados sexualmente no trabalho. [...] foi na Páscoa mesmo e saiu o amigo chocolate e tal, no caso o chefe da menina começou entregar algumas coisas assim... vamos dizer obscenas de chocolate [...] no momento levou na brincadeira, só que ela falou que depois ela acabou refletindo, viu que ele estava no caso com outras intenções também. (aprendiz, 18 anos, sexo masculino) Ressalta-se ainda que, segundo Fineran (2002), ser assediado sexualmente no primeiro emprego pode ter efeitos negativos sobre a autoestima e identidade em formação dos adolescentes. Essa autora concluiu também que jovens do sexo feminino e do sexo masculino têm diferentes percepções e emoções resultantes do assédio sexual, embora para ambos seja igualmente perturbador e nocivo à saúde. Enfrentando a violência psicológica no trabalho Lunardi Filho, Lunardi e Spricigo (2001) alertam que a atividade profissional é uma forma de inserção social, em que aspectos psíquicos e físicos estão fortemente implicados. Portanto, um trabalho “ideal” seria aquele capaz de satisfazer um grande número de funções vitais ao bem-estar psicológico e motivação dos indivíduos, em que os relacionamentos interpessoais fossem prazerosos e fontes de apoio. Contudo, quando o trabalho tem condições restritivas pode-se esperar um perigoso efeito negativo sobre a identidade, a saúde mental e a qualidade de vida dos indivíduos (TOLFO; PICCININI, 2007). No presente estudo os relatos dos adolescentes trabalhadores apresentaram indícios de situações de violência psicológica. Foi possível perceber que muitas das situações relatadas são banalizadas e consideradas como naturais às relações interpessoais, entretanto tais situações representam um empobrecimento dos relacionamentos, acarretando danos à formação de laços de apoio social. De acordo com Hirigoyen (2006), a violência psicológica no trabalho seria reflexo do fim da comunicação e do sentimento de superioridade entre as pessoas na sociedade contemporânea. Segundo a autora, não existe mais curiosidade nas trocas com o outro, pois as pessoas já pensariam a priori que o outro nada tem a lhes acrescentar. E continua, alertando sobre a importância do verdadeiro diálogo: “[...] para que exista diálogo, é preciso que exista uma relação entre duas pessoas que se considerem iguais em importância do ponto de vista humano, mesmo que sejam de nível hierárquico diferente.” (HIRIGOYEN, 2006, p. 42) Os jovens trabalhadores entrevistados acreditam que o enfrentamento à violência psicológica no trabalho seria mais efetivo se algumas ações partissem Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 da empresa. Entre as sugestões estão reuniões ou palestras, treinamentos, criação de normas e de um canal de denúncias anônimas, mas sobretudo diálogos. Esta foi uma sugestão recorrente entre as falas dos adolescentes entrevistados. Contudo, a organização do trabalho contemporânea, estabelecida sob a égide do sistema capitalista e suas políticas de gestão, dificulta o fortalecimento do coletivo dos trabalhadores contra situações abusivas. As mudanças sugeridas pelos jovens trabalhadores, embora pareçam de fácil aplicação, extrapolam o poder gerencial dos gestores inseridos na lógica do sistema e revelam a necessidade de uma mudança estrutural profunda. Heloani (2008) enfatiza que, ainda que seja importante a criação de um canal de denúncias pelo departamento de recursos humanos das empresas, só isso é insuficiente. A solução real estaria em humanizar o processo laboral, criando espaços de intervenção do coletivo e fortalecendo as relações de trabalho, espaço onde se aprende o exercício da democracia. Só através do coletivo é possível atingir a saúde mental individual. Dessa forma, o trabalho pode tanto nos ajudar na constituição de uma identidade emancipatória, quanto induzir à construção de uma identidade deteriorada, que seria fonte de desestabilização e de sofrimento. Segundo Gaulejac (2007), é através do coletivo que o trabalho adquire sentido, que a aprendizagem se faz possível, que os comportamentos desviantes e os julgamentos arbitrários são reprimidos, permitindo que cada um se situe em relação aos outros e construa uma escala de valores entre o prescrito e o real, entre conteúdo e finalidades do trabalho. O autor relaciona o aumento das doenças profissionais, o sofrimento psíquico, a precarização e a insegurança social à degradação das condições de trabalho pela desagregação dos coletivos. Como contribuição, ao pensarmos em “estratégias de enfrentamento” viáveis que poderiam ser incorporadas aos programas de educação para o trabalho de órgãos governamentais e não governamentais, como também em empresas, relembramos dois conceitos importantes quando se fala em promoção da saúde: empoderamento e autonomia. Westphal (2009) destaca que o empoderamento está intrinsecamente ligado à participação social, na medida em que as pessoas devem poder assumir o controle sobre os determinantes da saúde e, a partir de ações motivadoras do empoderamento coletivo, participar dos processos de tomada de decisão. Ressalta-se que são consideradas como determinantes da saúde as condições biológicas, políticas, econômicas e sociais que influenciam a saúde. A autonomia é outro conceito fundamental para a promoção da saúde. Segundo Onocko Campos e Campos (2009, p. 671), a autonomia é construída nas relações Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 interpessoais por meio da dialética, sendo o sujeito autônomo corresponsável tanto pela constituição de si quanto do mundo que o cerca . Os autores destacam que para que a autonomia se efetive o sujeito deve ser capaz de lidar com o “[...] sistema de poder, de operar com conflitos e de estabelecer compromissos e contratos com outros sujeitos para criar bem-estar e contexto mais democráticos.” Nesse sentido, os trabalhadores devem ter acesso ao conhecimento dos possíveis fatores psicossociais relacionados ao trabalho que podem afetar a saúde física e mental. Enquanto pouco se fala aos trabalhadores sobre a saúde mental, estes deveriam também ter espaços de discussão sobre a promoção da saúde mental no trabalho, para que pudessem refletir em conjunto e contribuir com suas ideias e iniciativas a serem efetivadas na organização do trabalho. Os trabalhadores devem ser protagonistas na promoção da saúde mental no trabalho, não apenas na teoria, mas em seu fazer cotidiano. Embora o conceito de promoção da saúde comporte a compreensão de integralidade da saúde humana, as referências feitas a ela no campo da Saúde do Trabalhador costumam priorizar os aspectos físicos e colocar em segundo plano a saúde mental (BORSOI, 2007). Por essa razão, importa destacar a necessidade de promoção da “saúde mental” no trabalho, para que ganhem visibilidade e viabilidade tais ações no ambiente laboral. Em nosso estudo foi possível perceber que os jovens que tinham mais conhecimento da lei e dos limites das relações interpessoais no ambiente de trabalho, portanto mais empoderados e autônomos, conseguiram enfrentar com mais firmeza situações abusivas, fossem elas por parte de colegas de trabalho ou de superiores hierárquicos. O empoderamento está relacionado ainda ao pertencimento a uma rede que fornece apoio social. Segundo Andrade e Vaitsman (2002, p. 928), o empoderamento emerge na interação com outros sujeitos, [...] gerando pensamento crítico em relação à realidade, favorecendo a construção da capacidade social e pessoal e possibilitando a transformação de relações de poder. No nível individual, refere-se à habilidade das pessoas em ganhar conhecimento e controle sobre forças pessoais, sociais, econômicas e políticas para agir na direção da melhoria de sua situação de vida. Os achados dessa pesquisa vão ao encontro da discussão feita por Harvey, Blouin e Stout (2006) a respeito da função da personalidade proativa de adolescentes trabalhadores como moderadora dos efeitos dos conflitos interpessoais no trabalho em relação ao estresse psicológico e ao desempenho escolar. De acordo com os autores, a personalidade proativa é descrita como aquela a partir da qual os indivíduos não se deixam constranger por situações condicionantes, buscam oportunidades, mostram 219 iniciativa, agem e perseveram para conseguir mudanças. Assim sendo, os indivíduos proativos seriam mais propensos a agir para lidar com conflitos e evitar que interferissem com suas vidas. A reflexividade é apontada por Gaulejac (2007) como essencial à construção do sujeito, contribuindo para que compreenda a si e ao mundo e seja capaz de se confrontar com a alteridade, se inserir em um coletivo e contribuir para o bem comum. Dessa forma, é possível relacionar o conhecimento à autonomia e ao empoderamento, na medida em que a personalidade proativa mediaria a busca por soluções alternativas aos conflitos interpessoais e, possivelmente, para o enfrentamento à violência psicológica no trabalho. Considerações finais As situações vivenciadas pelos jovens indicam que a saúde mental dos envolvidos pode estar em risco e que eles pouco conseguem fazer para enfrentar tais situações. Por outro lado, o apoio social é um mediador importante entre a violência psicológica no trabalho e a saúde mental dos trabalhadores, quando existem bons relacionamentos interpessoais. Muitos participantes, embora sendo alvo de situações de mal-estar, relataram ter boas interações pessoais no trabalho. O chamado “mal-estar no trabalho” caracteriza-se por situações pontuais de violência psicológica, considerada “invisível” porque é difícil constatar sua ocorrência, inclusive dentre os envolvidos e, portanto, prová-la. Dessa maneira, os agredidos facilmente são vistos como exagerados ou simplesmente “aqueles que não sabem brincar”. Aí reside um ponto crucial de nossas considerações, as situações limítrofes, a linha tênue entre o inocente e o perverso, entre aquilo que faz bem (em que todo mundo participa e gosta de participar) e aquilo que faz mal (a diversão à custa do sofrimento alheio). Essas situações limítrofes tornam especialmente difíceis seu enfrentamento tanto por parte dos agredidos quanto por medidas administrativas. Entendemos que o grupo laboral dos adolescentes trabalhadores pode ser mais vulnerável à violência psicológica, embora talvez não existam diferenças significativas entre as situações que enfrentam e as vividas por outros profissionais. Talvez uma diferença a ser destacada sejam as “brincadeiras” que foram trazidas reiteradamente nas entrevistas, tanto como sinal de imaturidade na forma como percebem o ambiente profissional quanto como violência psicológica mascarada. A condição socioeconômica dos participantes bem como a fase de aprendizado e, portanto, de inexperiência profissional na qual se encontravam podem também ter sido propiciadores das situações abusivas relatadas. Nesse sentido, algumas novas hipóteses poderiam ser estabelecidas e seriam necessárias novas investigações para verificar essas relações, como, por exemplo, que jovens de classe média estariam menos expostos ou 220 sofreriam outros tipos de situações abusivas, ou, ainda, que jovens trabalhadores em geral percebem e relatam situações como sendo abusivas que trabalhadores com mais idade não identificariam dessa forma. Por outro lado, situações de desrespeito, de humilhação, de constrangimentos e de assédio sexual parecem estar banalizadas, naturalizadas e disseminadas em nossa sociedade, sendo “aceitas” como parte do ambiente profissional e também das relações sociais e familiares. Daí a importância de ações efetivas da Saúde Coletiva em conjunto com outros setores da sociedade, para que a violência psicológica deixe de ser um fenômeno invisível e gerador de sofrimento/adoecimento nas diversas instâncias sociais. O trabalho de enfrentamento a esse fenômeno pode e deve ser iniciado nos ambientes de trabalho. As ações e políticas públicas possíveis para a promoção da saúde mental no trabalho e prevenção da violência psicológica devem ser elaboradas de forma interdisciplinar, contando com a contribuição de diferentes áreas de conhecimento, como da Saúde do Trabalhador, da Psicologia Social e da Promoção da Saúde. Neste estudo, percebemos que o acompanhamento profissional realizado pela ONG como parte dos requisitos de inserção de adolescentes no mercado de trabalho acaba sendo um espaço de “ouvidoria” dos acontecimentos no trabalho. É na ONG que os jovens encontram um espaço que lhes permite falar sobre sua vivência no trabalho, dúvidas, incertezas e maneiras de lidar com o cotidiano do trabalho. Contudo, inúmeros jovens ingressam no mercado de trabalho sem terem nenhum tipo de acompanhamento profissional, estes acabam não recorrendo a ninguém em situações abusivas, além de não terem acesso a informações importantes sobre saúde no trabalho. O empoderamento dos adolescentes deve compreender não só as informações transmitidas aos jovens na sala de aula, discussões entre pares e troca de experiências, como também as interações com as coordenações dos programas aos quais atendem semanalmente ou mensalmente, bem como a participação em reuniões informais e formais entre gestores das empresas e coordenadores de programas de educação para o trabalho. Esse conjunto de ações poderia, entre outros, corrigir rumos que levassem a um tratamento dos jovens com equidade e a um real aproveitamento pelos aprendizes e estagiários de sua nova situação de trabalho em que novos saberes, práticas e experiências em áreas de seu interesse sejam de fato alcançados. Deveriam também ser incluídos temas de Saúde Mental e Trabalho, não só em organizações de educação e capacitação para o trabalho, mas também no ensino médio. Entre os temas, poderiam ser abordados: formas de violência presentes no trabalho; consequências da violência para a saúde; formas de enfrentamento com destaque para leis específicas e estratégias coletivas, além de serem exploradas as iniciativas imaginadas pelos adolescentes, incentivando-os ao debate e à reflexão. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 210-223, 2014 Agradecimentos Os autores agradecem aos gestores da Organização Não Governamental que oferece cursos de aprendizagem no trabalho e que deu apoio durante a realização deste estudo, e aos jovens participantes deste estudo. Contribuições de autoria Turte-Cavadinha, S. L.: concebeu e desenvolveu o projeto de pesquisa. Fischer, F. M.: orientou a concepção e o desenvolvimento do projeto de pesquisa. Luz, A. A.: colaborou no delineamento, no levantamento e na interpretação dos dados. Turte-Cavadinha, E.: colaborou na análise, interpretação e discussão dos dados. Todos os autores trabalharam igualmente na concepção do artigo, na elaboração do texto e em sua revisão final. Referências AGÊNCIA EUROPÉIA PARA A SEGURANÇA E A SAÚDE NO TRABALHO – OSHA. Jovens trabalhadores - Factos e números: Exposição a riscos profissionais e consequências para a saúde, 2006. (Factsheet, n. 70). Disponível em: <https://osha. europa.eu/pt/publications/factsheets/70>. 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Os autores declaram que não há conflito de interesse profissional, financeiro ou benefícios diretos e indiretos que possam influenciar os resultados desta pesquisa. Recebido: 09/09/2013 Revisado: 02/07/2014 Aprovado: 07/07/2014 224 Resumo Objetivo: estimar a prevalência de Benefícios Auxílio-Doença (BAD) entre trabalhadores do ramo da Construção e a potencial influência do sexo, idade e ramo de atividade no quadro de incapacidade para o trabalho, no Brasil, em 2009. Método: estudo transversal de base populacional baseado nos BAD concedidos pela Previdência Social. Do Sistema Único de Benefícios e do Cadastro Nacional de Informações Sociais extraíram-se informações sobre ramo de atividade, sexo, idade, causa clínica e espécie de benefício. A população de estudo correspondeu à média mensal dos vínculos empregatícios declarados em 2009 (1.784.772). Resultados: foram concedidos 81.235 BAD, resultando em prevalência de 455,2/10.000 vínculos, com predomínio da espécie BAD previdenciária (Razão de Prevalência [RP] 3,1), do sexo masculino (RP 1,3) e dos ramos de atividade Obras de acabamento, Construção de obras de arte e Obras de terraplenagem. Homens caracterizaram 76,7% mais BAD acidentários que mulheres. As principais causas diagnósticas foram Lesões, Doenças osteomusculares e Doenças digestivas. As categorias clínicas mais prevalentes foram Dorsalgia, Fratura ao nível do punho e da mão, Fratura da perna e Hérnia inguinal. A prevalência aumentou com a idade. Conclusão: a prevalência mostrou-se influenciada pela espécie de benefício, ramo de atividade, sexo e idade. Os resultados sugerem potenciais mecanismos de subnotificação/demanda previdenciária. Palavras-chave: incapacidade para o trabalho; auxílio-doença; construção; atividade econômica; saúde do trabalhador. Abstract Objective: to estimate the prevalence of sickness benefits among workers in the construction industry and the potential influence of sex, age and branch of activity within the framework of incapacity for work in Brazil in 2009. Methods: a cross-sectional population study based on sickness benefits provided by the Brazilian Social Security. Information about the branch of activity, sex, age, cause and type of clinical benefit of workers was extracted from the Unified Benefits and the National Registry of Social Information. The study population corresponded to the average monthly employment relations declared in 2009 (1,784,772). Results: the study population was granted 81,235 sickness benefits, resulting in a prevalence of 455.2/10,000 bonds, predominantly non-work related benefits (Prevalence Ratio [PR] 3,1), male (PR 1,3), and branches of activity: Finishing works, Construction works of art and Earthwork. Men were granted 76.7% more sickness benefits related to work than women. The main causes were Injuries, Musculoskeletal Diseases, and Digestive Diseases. The most prevalent clinical categories were Back pain, Fracture at the wrist and hand, Fracture of the leg and Inguinal hernia. Prevalence increased with age. Conclusion: the prevalence of sickness benefits was influenced by the type of benefit, type of activity, age and sex. The results of this study suggest potential mechanisms of underreporting/social security demand. Keywords: work disability; sickness benefit; construction; economic activity; occupational health. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 Introdução E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS, 2001; RINGEN; SEEGAL; WEEKS, 1998). O absenteísmo por doença e a consequente incapacidade para o trabalho são um problema de saúde pública em todo o mundo, com considerável custo socioeconômico (ROELEN et al., 2009). Estudos internacionais têm mostrado que fatores como ocupação, condições de trabalho e nível de escolaridade são fortes determinantes de incapacidade para o trabalho (PIHA et al., 2010; LAAKSONEN et al., 2010). Empiricamente, sabe-se que os trabalhadores informais contam com menor assistência em relação à saúde do que aqueles minimamente amparados pela legislação trabalhista. Considerando-se as altas taxas de informalidade observadas no ramo da Construção (SANTANA; OLIVEIRA, 2004), é possível que esse grupo de trabalhadores apresente quadros de adoecimento mais severos do que os encontrados em trabalhadores empregados (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011). Estudo brasileiro recente, de base populacional, mostrou a importância do ramo de atividade econômica na incidência de incapacidade para o trabalho em 2008 (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011). Esse estudo apontou o ramo Construção de edifícios como a terceira maior incidência bruta de incapacidade temporária para o trabalho em geral, a quarta quando analisados separadamente os benefícios auxílio-doença previdenciário (sem nexo técnico com o trabalho) e a terceira entre os acidentários (com nexo técnico com o trabalho) (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011). Em outro estudo desenvolvido com a mesma população e com métodos semelhantes, mas considerando apenas doenças osteomusculares, os resultados em termos de distribuição das taxas de prevalência desse grupo foram semelhantes aos do estudo anterior, a saber, a quarta maior taxa de prevalência, no conjunto dos benefícios auxílio-doença, e a segunda quando considerados apenas os benefícios relacionados ao trabalho (VIEIRA; ALBUQUERQUEOLIVEIRA; BARBOSA-BRANCO, 2011). Achados em um estudo de base populacional sobre benefícios auxílio-doença devido a transtornos mentais no Brasil mostraram que, do total desses benefícios concedidos aos trabalhadores do ramo Construção, mais de 40% foram decorrentes de Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de substância psicoativa. O ramo Construção de edifícios apresentou a maior duração mediana dos afastamentos por incapacidade para o trabalho decorrentes de transtornos mentais, o que indica, potencialmente, maior gravidade e cronicidade dos casos (BARBOSABRANCO; BÜLTMANN; STEENSTRA, 2012). A ocorrência de problemas de saúde na construção civil está potencialmente associada ao grande número de riscos ocupacionais, como o trabalho em grandes alturas, o manejo de máquinas, equipamentos e ferramentas perfurocortantes, instalações elétricas, uso de veículos automotores, posturas e movimentos antiergonômicos, como na elevação de objetos pesados, além de estresse devido à transitoriedade e à alta rotatividade (SOROCK; SMITH; GOLDOFT, 1993; LIPSCOMB; DEMENT; RODRIGUEZ-ACOSTA, 2000; JEONG, 1998; CATTLEDGE; HENDRICKS; STANEVICH, 1996). Estudos internacionais mostram que nesse ramo de atividade, dentre as enfermidades mais incapacitantes para o trabalho, destacam-se as doenças musculoesqueléticas, dermatites, intoxicação por chumbo e asbestose (BURKHART et al., 1993) e que trabalhadores apresentam alta prevalência de abuso de álcool (HOFFMANN; BRITTINGHAM; LARISON, 1996), inclusive durante o horário de trabalho, contribuindo sobremaneira para o agravamento dos riscos já existentes nos ambientes laborais. Os trabalhadores desse ramo de atividade no Brasil apresentam os menores níveis salariais dentre os ramos da indústria, o que lhes impõe, com frequência, a necessidade de estender a jornada de trabalho por meio da realização de horas extras ou da adoção de regime de tarefas e, como consequência, tem-se uma maior exposição aos riscos de acidentes e doenças do trabalho (SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA, 1998). A alta rotatividade, a subnotificação dos registros de acidentes e doenças do trabalho e as elevadas taxas de informalidade nos ramos da Construção, em particular na Construção de edifícios, contribuem para a escassez de pesquisas epidemiológicas sobre incapacidade para o trabalho nesse setor produtivo (SANTANA; OLIVEIRA, 2004). A atividade da construção civil é considerada uma das mais perigosas em todo o mundo, liderando as taxas de acidentes de trabalho fatais, não fatais e de anos de vida perdidos (RINGEN; SEEGAL; WEEKS, 1998). Os acidentes de trabalho são a principal causa ocupacional de morte na construção civil (SOROCK; SMITH; GOLDOFT, 1993; BURKHART et al., 1993). O perfil do trabalhador na construção, mesmo o empregado, é de indivíduos jovens, do sexo masculino, com baixa escolaridade, reduzida qualificação profissional, além de notável contingente de migrantes (DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA Apesar dos dados disponíveis na literatura serem principalmente referentes à Construção de edifícios (Classificação Nacional de Atividades Econômicas [CNAE]-Divisão 41), o ramo da Construção (CNAESeção F) é ainda composto pelos ramos Obras de Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 225 infraestrutura (CNAE-Divisão 42) e Serviços especializados para construção (CNAE-Divisão 43). As atividades típicas realizadas, bem como os riscos ocupacionais presentes nesses três ramos da Construção, diferem sobremaneira entre si, o que nos leva a inferir que o perfil epidemiológico de adoecimento desses trabalhadores seja diferente. Dessa forma, torna-se importante avaliar essas potenciais diferenças visando melhor compreender esses processos de adoecimento, e dessa forma contribuir no estabelecimento de medidas preventivas mais eficazes. Frente a esse contexto, objetiva-se estimar a prevalência de benefícios auxílio-doença concedidos aos trabalhadores empregados no ramo da Construção e a potencial influência do sexo, da idade, da espécie de benefício e do ramo de atividade específico (CNAEclasse) no quadro de incapacidade para o trabalho no Brasil, em 2009. Métodos Trata-se de estudo descritivo, com base na análise dos Benefícios Auxílio-Doença (BAD) concedidos pelo Instituto Nacional de Seguro Social – INSS aos trabalhadores empregados no ramo da Construção (CNAE 2.0, Seção F) no Brasil, em 2009. A incapacidade para o trabalho foi avaliada pela prevalência de BAD. Para concessão de um BAD a perícia do INSS avalia a presença ou não da incapacidade para o trabalho e não apenas a presença de um agravo. Portanto, neste estudo, BAD e incapacidade para o trabalho são utilizados como termos equivalentes. Detalhes do esquema de concessão de auxílio-doença no Brasil, bem como o detalhamento das fontes de dados utilizadas neste estudo e da forma de tratamento dos dados foram descritos em estudos anteriores (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011; BARBOSA-BRANCO; BÜLTMANN; STEENSTRA, 2012). Os dados analisados neste estudo são oriundos de duas grandes bases de dados sob a responsabilidade do INSS: a) Sistema Único de Benefícios – SUB, que concentra o registro de todos os benefícios concedidos aos segurados da iniciativa privada no Brasil, e incluem os BAD, objeto desta investigação; b) Cadastro Nacional de Informações Sociais – CNIS, o qual recebe, por determinação legal, informações mensais dos vínculos empregatícios mantidos pelas empresas. Para o tratamento dos dados utilizou-se o sistema de armazenamento e gerenciamento de bancos de dados Microsoft Office Access. Do SUB foram extraídas informações sobre o ramo de atividade econômica patronal, sexo, idade, causa clínica (CID-10) e espécie de benefício (previdenciário, acidentário). Essa base constitui o numerador. Do CNIS foram coletados dados sobre o ramo de atividade econômica patronal (CNAE 226 Seção, Divisão e Classe), sexo e idade do trabalhador. Os dados dessa base foram usados como denominador para os cálculos da prevalência, que foram realizados por meio do programa de planilha eletrônica Microsoft Office Excel. As taxas de incapacidade apresentadas referem-se às prevalências e razões de prevalências (RP) obtidas para as variáveis de interesse. A população de estudo corresponde à média dos vínculos empregatícios declarados pelos empregadores na CNAE-Seção F (Construção) no Brasil, em 2009 (1.784.772), o qual corresponde a 5,4% dos vínculos empregatícios declarados no Brasil em 2009. Foi considerado caso todo benefício auxílio-doença concedido à população de estudo no período de 1/1 a 31/12/2009. Para a análise individualizada da prevalência dos agrupamentos CID-10 foi adotado o critério de corte de 2.000 casos por agrupamento, a fim de evitar distorções numéricas. Em relação ao ramo de atividade, não foram individualmente consideradas, para análise, as CNAE com menos de 1.000 benefícios concedidos no período. Foram considerados para análise individualizada os resultados para as categorias diagnósticas que apresentaram mais de 1.000 BAD em 2009, representadas em 12 categorias (40,3% da casuística). A fim de simplificar a leitura e compreensão dos resultados desta pesquisa, os nomes dos grupos diagnósticos (capítulos CID-10) foram simplificados na forma a seguir, sem prejuízo quanto aos agrupamentos e categorias neles contidos: I - Doenças infecciosas; II - Neoplasias; III - Doenças do sangue; IV - Doenças endócrinas; V - Doenças mentais; VI - Doenças do sistema nervoso; VII - Doenças do olho; VIII - Doenças do ouvido; IX - Doenças do aparelho circulatório; X - Doenças respiratórias; XI - Doenças digestivas; XII - Doenças da pele; XIII - Doenças osteomusculares; XIV - Doenças geniturinárias; XIX - Lesões; e XXI - Fatores que influenciam o estado de saúde. Com o mesmo objetivo, os seguintes ramos de atividades também tiveram sua nomenclatura CNAE-classe simplificada, sem que se alterasse para análise o rol de atividades constantes na relação original: 4211 - Construção de rodovias; 4212 - Construção de obras de arte; 4221 - Obras para energia elétrica e telecomunicações; 4222 - Construção de redes de água e esgoto; 4292 - Montagem de instalações industriais; 4322 - Instalações hidráulicas; e 4329 - Obras de instalações em construções. Com relação aos aspectos éticos, esclarecemos que foram utilizados exclusivamente dados secundários oriundos de grandes bases públicas de dados, sem que houvesse meios para a identificação dos sujeitos individualmente. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 Resultados Em 2009 foram concedidos 81.235 BAD aos trabalhadores empregados na Construção, resultando em uma prevalência de 455,2 casos para cada 10.000 vínculos empregatícios (Tabela 1). Quanto à espécie de benefício predominaram os BAD previdenciários em uma razão de 3,1 em relação aos BAD acidentários (Tabela 1). Em relação aos grupos diagnósticos (capítulos CID-10) que deram origem aos benefícios, predominaram as Lesões (180,1); Doenças osteomusculares (90,1); e as Doenças digestivas (39,4), independente da espécie de benefício (Tabela 1). O grupo das Lesões representou 39,6% dos BAD e esses três grupos juntos responderam por 68,0% dos BAD. A análise da potencial influência do sexo na prevalência de BAD mostrou que os homens, no geral (476,3), apresentaram prevalência 30,0% maior do que as mulheres (374,5) e 76,7% maior nexo técnico (relação com o trabalho) (Tabela 1). A maior diferença entre os sexos em relação à prevalência de BAD segundo os grupos diagnósticos foi observada em relação às Lesões (RP 2,7), Doenças infecciosas (RP 2,2) e Doenças do olho (RP 2,2) (Tabela 1). Entre os homens, as Lesões tiveram maior peso no quadro da incapacidade, representando 41,1% do total de BAD e 64,8% daqueles relacionados ao trabalho, enquanto que entre as mulheres essa representatividade foi de 19,1% no geral e 42,3% entre os BAD acidentários. Dentre os grupos mais prevalentes, as Doenças osteomusculares e as Doenças mentais foram mais impactantes entre as mulheres, representando juntas 34,4% do total de BAD nesse sexo, contrapondo-se a 26,3% entre os homens. Esse impacto fica ainda mais Tabela 1 Prevalência de benefícios auxílio–doença no ramo da Construção (por 10 mil vínculos)* segundo sexo, espécie de benefício e grupo CID–10 – Brasil – 2009 Sexo Cap. CID–10 Razão de prevalência Masculino Total Feminino B31 B91 B31 + B91 B31 B91 B31 + B91 XIX 117,6 78,0 195,6 46,2 25,2 XIII 63,4 29,8 93,2 59,7 25,8 XI 37,1 5,0 42,1 23,2 IX 32,6 1,5 34,1 25,4 V 31,0 1,2 32,2 M/F M/F M/F M+F B31 B91 B31 + B91 B31 B91 B31 + B91 B31/ B91 71,4 108,5 71,6 180,1 2,5 3,1 2,7 1,5 85,5 61,4 28,6 90,1 1,1 1,2 1,1 2,1 0,4 23,6 34,9 4,5 39,4 1,6 12,3 1,8 7,8 0,9 26,4 31,1 1,4 32,5 1,3 1,6 1,3 22,3 41,9 1,3 43,3 31,1 1,2 32,2 0,7 0,9 0,7 26,1 I 11,7 0,7 12,4 5,1 0,5 5,6 10,8 0,7 11,5 2,3 1,6 2,2 15,6 II 9,9 0,2 10,0 29,7 0,1 29,7 11,3 0,2 11,4 0,3 2,8 0,3 64,8 XIV 7,4 0,1 7,5 18,1 0,1 18,2 8,1 0,1 8,2 0,4 0,7 0,4 85,0 VII 7,9 0,8 8,7 3,8 0,1 3,9 7,3 0,7 8,1 2,1 6,1 2,2 9,8 VI 6,9 0,8 7,7 9,4 3,4 12,8 6,9 1,0 7,9 0,7 0,2 0,6 6,8 X 5,6 0,6 6,2 5,6 0,7 6,4 5,5 0,6 6,1 1,0 0,8 1,0 9,2 XII 5,1 0,7 5,9 3,9 0,4 4,3 4,9 0,7 5,6 1,3 1,8 1,4 7,1 XXI 3,6 0,4 4,0 4,4 0,2 4,6 3,5 0,4 3,9 0,8 2,0 0,9 9,3 IV 2,7 0,2 2,9 2,5 - 2,5 2,7 0,1 2,8 1,1 - 1,1 19,7 VIII 1,5 0,1 1,7 1,7 0,1 1,7 1,5 0,1 1,6 0,9 2,1 1,0 11,7 III 0,7 0,0 0,7 1,1 - 1,1 0,7 0,0 0,7 0,7 - 0,7 25,6 Outros 11,2 0,1 11,4 33,1 0,3 33,5 12,8 0,2 12,9 0,3 0,4 0,3 84,4 Total 355,9 120,3 476,3 314,9 59,6 374,5 343,1 112,1 455,2 1,1 2,0 1,3 3,1 * A população de estudo corresponde à média dos vínculos empregatícios declarados pelos empregadores na CNAE–Seção F–Construção no período: 1.784.772 vínculos B31: Auxílio–doença previdenciário; B91: Auxílio–doença acidentário; M: Masculino; F: Feminino; Capítulos (grupos) CID–10 – Descrição: I – Algumas doenças infecciosas e parasitárias; II – Neoplasias (tumores); III – Doenças do sangue e dos órgãos hematopoéticos e alguns transtornos imunitários; IV – Doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas; V – Transtornos mentais e comportamentais; VI – Doenças do sistema nervoso; VII – Doenças do olho e anexos; VIII – Doenças do ouvido e da apófise mastóide; IX – Doenças do aparelho circulatório; X – Doenças do aparelho respiratório; XI – Doenças do aparelho digestivo; XII – Doenças da pele e do tecido subcutâneo; XIII – Doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo; XIV – Doenças do aparelho geniturinário; XIX – Lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas; XXI – Fatores que influenciam o estado de saúde e o contato com os serviços de saúde Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 227 claro quando considerado apenas os BAD acidentários (45,5% no feminino comparado a 25,8% no masculino). grupos diagnósticos. Em todos os ramos de atividades analisados, os três maiores grupos de causa diagnóstica para os afastamentos foram as Lesões, as Doenças osteomusculares e as Doenças digestivas, exceto nos ramos Obras para energia elétrica e telecomunicações, e Instalações elétricas. Nesses ramos, o terceiro maior grupo foi o das Doenças mentais. Na análise da espécie de benefício (previdenciário e acidentário) em relação aos grupos diagnósticos, observa-se que, enquanto os BAD previdenciários seguiram a mesma tendência geral independente do sexo, os acidentários apresentaram elevadas razões de prevalência entre os sexos, principalmente para os grupos Doenças digestivas (RP 12,3), Doenças do olho (RP 6,1) e Lesões (RP 3,1) (Tabela 1). Os ramos de atividade apresentaram taxas de incapacidade heterogêneas tanto no geral quanto em relação aos grupos diagnósticos específicos. O ramo com maior prevalência de Lesões, Obras de acabamento, apresentou taxas de afastamentos 58,4% maior que a totalidade dos ramos e 81,8% maior que o ramo com menor prevalência. Chamou atenção a alta prevalência de benefícios decorrentes de Doenças da pele entre os trabalhadores de Obras de terraplenagem (Tabela 2). Nesse ramo, esse grupo de doenças que representou Ao analisar a potencial influência do ramo de atividade na prevalência de BAD segundo os grupos diagnósticos (Tabela 2) observaram-se variações importantes. Os ramos Obras de acabamento, Construção de obras de arte e Obras de terraplenagem apresentaram as maiores prevalências de BAD em geral e lideraram essa taxa em relação à maioria dos Tabela 2 Prevalência de benefícios auxílio–doença no ramo da Construção (por 10 mil vínculos)* segundo ramo de atividade econômica e grupo CID–10 – Brasil – 2009 CNAE Cap. CID–10 4120 4211 XIX 169,9 XIII 84,6 XI IX 4212 4221 4222 4292 4312 4313 4321 4322 156,9 196,7 176,1 75,9 134,2 99,0 166,7 199,8 82,7 112,1 255,9 218,9 222,6 177,0 91,9 116,5 99,9 75,9 37,8 36,7 62,2 31,9 32,7 42,6 37,2 37,1 21,1 31,8 46,5 41,3 48,6 34,8 30,5 35,3 40,1 46,6 32,2 28,5 V 29,9 28,7 42,6 41,8 25,9 39,9 33,5 39,1 35,0 4329 Total 4330 Outros 218,9 285,3 186,3 180,1 111,0 132,5 72,6 90,1 49,8 54,2 34,9 39,4 37,4 46,1 32,7 32,5 28,3 41,1 51,4 24,3 32,2 I 11,7 9,4 17,1 7,7 11,8 11,6 10,1 12,5 10,9 7,7 15,8 19,6 8,0 11,5 II 11,4 10,7 12,9 9,3 9,9 11,1 9,0 16,9 12,4 12,8 13,7 15,4 12,7 11,4 XIV 8,3 8,3 12,0 7,9 6,9 8,3 10,1 11,7 6,8 3,7 8,6 11,5 6,5 8,2 VII 7,9 6,7 14,7 7,1 8,3 8,2 7,4 8,9 7,2 4,9 9,4 9,8 11,6 8,1 VI 7,5 7,8 12,0 7,7 7,3 9,0 10,5 8,3 7,5 6,3 10,4 9,8 5,8 7,9 X 5,9 5,0 9,0 6,0 6,6 6,9 6,6 5,0 4,9 4,3 7,9 8,0 5,1 6,1 XII 5,8 3,9 9,3 3,6 5,2 6,2 6,2 10,0 5,0 3,7 6,5 8,7 5,1 5,6 XXI 3,8 3,2 4,8 3,6 3,4 4,4 4,7 5,0 4,6 5,7 4,7 5,2 3,6 3,9 IV 2,8 2,5 2,4 3,2 2,5 3,3 3,9 5,3 2,0 3,1 2,9 0,7 1,5 2,8 VIII 1,5 1,5 2,4 2,5 1,4 2,7 0,4 3,1 1,5 2,6 1,6 1,0 0,7 1,6 III 0,7 0,9 0,3 0,6 0,8 1,0 1,2 0,8 0,5 0,6 0,9 2,1 1,1 0,7 Outros 14,3 12,0 14,7 13,4 9,3 12,2 12,1 18,9 8,5 10,3 11,7 12,2 10,2 12,9 Total 435,7 402,8 590,0 447,8 417,4 518,5 544,8 576,0 496,1 405,9 552,2 673,7 422,6 455,2 * A população de estudo corresponde à média dos vínculos empregatícios declarados pelos empregadores na CNAE–Seção F–Construção no período: 1.784.772 vínculos Capítulos (grupos) CID–10 – Descrição: I – Algumas doenças infecciosas e parasitárias; II – Neoplasias (tumores); III – Doenças do sangue e dos órgãos hematopoéticos e alguns transtornos imunitários; IV – Doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas; V – Transtornos mentais e comportamentais; VI – Doenças do sistema nervoso; VII – Doenças do olho e anexos; VIII – Doenças do ouvido e da apófise mastóide; IX – Doenças do aparelho circulatório; X – Doenças do aparelho respiratório; XI – Doenças do aparelho digestivo; XII – Doenças da pele e do tecido subcutâneo; XIII – Doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo; XIV – Doenças do aparelho geniturinário; XIX – Lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas; XXI – Fatores que influenciam o estado de saúde e o contato com os serviços de saúde; Classes CNAE – Descrição: 4120 – Construção de edifícios; 4211 – Construção de rodovias e ferrovias; 4212 – Construção de obras de arte especiais; 4221 – Obras para geração e distribuição de energia elétrica e para telecomunicações; 4222 – Construção de redes de abastecimento de água, coleta de esgoto e construções correlatas; 4292 – Montagem de instalações industriais e de estruturas metálicas; 4312 – Perfurações e sondagens; 4313 – Obras de terraplanagem; 4321 – Instalações elétricas; 4322 – Instalações hidráulicas, de sistemas de ventilação e refrigeração; 4329 – Obras de instalações em construções não especificadas anteriormente; 4330 – Obras de acabamento 228 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 a quarta causa clínica de incapacidade, em termos de correlação com o trabalho (RP 7,1) (Tabela 1), teve prevalência 78,6% maior que a da população de estudo e 177,8% maior que a do ramo Obras para energia elétrica e telecomunicações (Tabela 2). Essa mesma análise quando realizada segundo o agrupamento CID-10 mostrou que, dentre os 19 maiores agrupamentos, nove destes figuram no grupo das Lesões; três de Doenças osteomusculares e três de Doenças do aparelho circulatório (Tabela 3). O ramo Obras de acabamento apresentou taxas superiores às dos trabalhadores da Construção em geral em todos os agrupamentos, exceto para Doenças hipertensivas (Tabela 3). O ramo Construção de obras de arte apresentou prevalência de Dorsopatias 48,9% maior do que a Construção em geral, enquanto o ramo Perfurações e sondagens apresentou 93,8% maior prevalência para Traumatismos do punho e da mão do que o conjunto dos trabalhadores da Construção. O ramo Construção de edifícios, CNAE divisão 41, apresentou o maior número de vínculos empregatícios dentre os ramos da Construção (dados não tabulados), e taxas de incapacidade para o trabalho, em geral, menores do que as dos demais CNAE (Tabelas 2 e 3). Tabela 3 Prevalência de benefícios auxílio–doença no ramo da Construção (por 10 mil vínculos)* segundo ramo de atividade econômica e agrupamento CID–10 – Brasil – 2009 Agrupamento CID–10 CNAE Total 4120 4211 4212 4221 4222 4292 4312 4313 4321 4322 4329 4330 Outros M40–M54 46,1 40,3 70,3 45,8 44,4 50,9 52,2 66,0 49,1 32,8 56,9 62,9 37,4 47,2 S60–S69 41,5 36,8 41,1 35,7 42,3 47,4 84,9 52,4 49,8 50,8 58,5 61,5 44,7 43,8 S80–S89 32,2 32,6 50,1 42,6 32,7 42,9 42,8 48,8 47,2 39,7 43,7 54,5 39,2 36,2 K40–K46 23,9 22,2 38,1 18,9 23,7 31,6 26,5 25,8 22,6 16,6 28,9 33,6 18,2 24,2 S90–S99 22,8 21,5 23,1 24,5 23,1 26,4 30,4 30,2 27,0 22,6 28,8 44,0 22,5 24,1 M00–M25 19,9 19,8 34,2 26,8 20,4 37,3 23,4 29,1 26,2 26,8 28,5 32,9 12,0 22,6 M60–M79 16,7 14,2 25,8 24,7 16,5 19,9 14,4 18,6 22,1 13,7 22,2 32,2 22,1 18,1 S50–S59 16,6 16,1 17,7 15,8 14,4 16,9 24,9 18,0 22,9 14,3 21,0 31,8 15,2 17,1 S40–S49 15,9 14,9 18,9 17,2 14,6 21,8 17,5 20,3 19,7 15,7 20,8 24,5 19,2 16,8 F10–F19 13,3 11,4 16,2 13,8 11,2 20,1 15,6 20,3 14,5 13,7 16,5 25,5 9,4 13,8 S00–S09 8,6 7,5 12,3 8,3 9,4 10,2 14,4 13,6 9,1 6,9 12,7 15,7 9,8 9,3 I80–I89 8,2 10,2 15,0 6,8 7,9 10,9 7,0 11,4 7,8 7,4 10,7 12,2 8,0 8,7 F30–F39 8,0 7,4 14,1 15,2 6,2 7,0 8,6 9,7 10,3 6,9 11,7 11,9 6,5 8,7 C00–C97 7,6 7,1 8,4 5,3 7,3 6,7 6,6 13,0 7,8 9,7 8,5 9,8 7,6 7,6 T90–T98 7,1 5,6 5,4 5,5 6,9 6,5 8,6 6,9 8,5 7,1 6,5 8,4 6,9 6,8 I20–I25 6,7 6,4 9,3 3,7 6,5 8,2 11,3 10,5 6,8 5,7 6,7 8,0 6,5 6,7 I10–I15 6,0 5,9 6,6 3,9 7,7 6,5 5,8 9,7 6,8 6,3 7,2 5,9 5,8 6,2 S30–S39 6,3 4,9 6,9 4,7 5,8 5,2 6,2 6,9 9,4 4,0 7,0 11,2 5,1 6,2 S70–S79 5,5 5,6 6,0 6,2 5,8 6,5 6,2 7,5 7,8 4,6 6,7 12,9 7,3 6,0 Outros 122,7 112,3 170,2 122,4 110,5 135,6 137,5 157,0 120,6 100,8 148,6 174,1 119,1 124,8 Total 435,7 402,8 590,0 447,8 417,4 518,5 544,8 576,0 496,1 405,9 552,2 673,7 422,6 455,2 * A população de estudo corresponde à média dos vínculos empregatícios declarados pelos empregadores na CNAE–Seção F–Construção no período: 1.784.772 vínculos Agrupamentos CID–10 – Descrição: M40–M54 – Dorsopatias; S60–S69 – Traumatismos do punho e da mão; S80–S89 – Traumatismos do joelho e da perna; K40–K46 – Hérnias; S90–S99 – Traumatismos do tornozelo e do pé; M00–M25 – Artropatias; M60–M79 – Outros transtornos dos tecidos moles; S50–S59 – Traumatismos do cotovelo e do antebraço; S40–S49 – Traumatismos do ombro e do braço; F10–F19 – Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de substância psicoativa; S00–S09 – Traumatismos da cabeça; I80–I89 – Doenças das veias, dos vasos linfáticos e dos gânglios linfáticos, não classificadas em outra parte; F30–F39 – Transtornos do humor (afetivos); C00–C97 – Neoplasias (tumores) malignas(os); T90–T98 – Sequelas de traumatismos, de intoxicações e de outras consequências das causas externas; I20–I25 – Doenças isquêmicas do coração; I10–I15 – Doenças hipertensivas; S30–S39 – Traumatismos do abdome, do dorso, da coluna lombar e da pelve; S70–S79 – Traumatismos do quadril e da coxa; Classes CNAE – Descrição: 4120 – Construção de edifícios; 4211 – Construção de rodovias e ferrovias; 4212 – Construção de obras de arte especiais; 4221 – Obras para geração e distribuição de energia elétrica e para telecomunicações; 4222 – Construção de redes de abastecimento de água, coleta de esgoto e construções correlatas; 4292 – Montagem de instalações industriais e de estruturas metálicas; 4312 – Perfurações e sondagens; 4313 – Obras de terraplanagem; 4321 – Instalações elétricas; 4322 – Instalações hidráulicas, de sistemas de ventilação e refrigeração; 4329 – Obras de instalações em construções não especificadas anteriormente; 4330 – Obras de acabamento Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 229 Ao se buscar um maior detalhamento das causas diagnósticas dos benefícios (categoria CID-10) e sua relação com o sexo e a idade do trabalhador incapacitado, verificou-se que a variável idade apresentou relação direta com o aumento da prevalência de BAD, independente do sexo, até a faixa etária de 50-59 anos de idade. (Tabela 4). Ao se considerar o total das categorias diagnósticas, independente do sexo, também ocorreu aumento da prevalência de BAD com a idade (dados não tabulados). Com relação à idade e às categorias do grupo Lesões, entre os homens a maior prevalência foi observada na faixa etária de 20-29 anos, com gradativa queda com o avanço da idade. Entre as mulheres a situação geral é quase que inversa no conjunto dessas categorias. Houve aumento do número de Lesões até os 59 anos. A topografia das lesões também sofreu influência do sexo; enquanto entre os homens a prevalência de lesões nos membros superiores foi 22,2% maior que nos membros inferiores, entre as mulheres ocorre o contrário, as lesões de membros inferiores foram 35,4% maior do que superiores. Esses valores são obtidos avaliando-se as relações entre as somas das prevalências das categorias relacionadas a membros superiores (S42, S52 e S62) e inferiores (S82, S83 e S92), para homens e mulheres (Tabela 4). Em razão das diferentes atividades exercidas por homens e mulheres na Construção, foram encontradas diferenças substanciais na distribuição das prevalências entre os sexos e categorias diagnósticas. No geral, a categoria mais prevalente foi a Dorsalgia, com taxa pouco superior à Fratura ao nível do punho e da mão, sendo que essas duas categorias de causas diagnósticas representaram 13,2% do total de casos (Tabela 4). Os BAD devido à Hérnia inguinal, quarta categoria mais prevalente, predominaram fortemente entre os homens, havendo aumento da prevalência com o avanço da idade em ambos os sexos (Tabela 4). A categoria mais prevalente dentre as Doenças mentais foi a dos Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas. Essa categoria prevaleceu entre homens com idade entre 20 e 40 anos, sendo que as A partir da soma das prevalências de categorias de Doenças osteomusculares por cada faixa etária e sexo, verificou-se para ambos os sexos a mesma relação observada quanto à tendência geral, aumento da prevalência de BAD até os 59 anos (Tabela 4). Tabela 4 Prevalência de benefícios auxílio–doença no ramo da Construção (por 10 mil vínculos)* segundo faixa etária e categoria CID–10 – Brasil – 2009 Sexo Categoria CID–10 < 20 Masculino Feminino Faixa etária (anos) Faixa etária (anos) 20–29 30–39 40–49 50–59 60 Total < 20 – Total 20–29 30–39 40–49 50–59 8,1 20,1 32,4 87,4 60 44,4 Total M54 2,0 8,1 24,4 46,7 76,6 79,6 32,5 22,7 30,9 S62 41,2 38,4 33,6 27,0 24,7 12,8 31,9 6,9 7,2 5,5 6,6 17,0 6,3 7,2 29,0 S82 24,3 27,3 23,7 24,5 22,3 13,0 24,5 16,1 10,6 10,5 13,6 19,6 19,0 12,1 22,8 K40 2,4 10,7 14,5 22,6 36,9 37,4 18,5 – 1,1 2,1 3,5 5,4 – 2,1 16,7 S52 17,8 16,0 15,6 16,2 16,6 9,1 15,9 – 3,4 6,7 5,9 22,3 6,3 6,3 14,6 S92 11,3 15,6 14,5 17,2 14,7 13,0 15,3 4,6 8,5 11,1 9,1 10,7 19,0 9,6 14,5 M51 1,6 3,1 11,5 21,8 31,0 34,2 14,3 – 2,0 6,9 19,5 33,0 19,0 9,4 13,6 S42 14,6 13,2 11,9 11,6 9,4 4,1 11,7 4,6 5,0 4,6 3,5 5,4 – 4,6 10,8 M23 2,8 7,2 10,5 10,7 12,3 7,4 9,6 – 2,5 1,9 5,6 10,7 – 3,4 8,8 S83 3,2 9,8 9,6 8,5 7,3 3,0 8,9 – 2,9 3,1 1,7 5,4 – 2,8 8,1 M75 – 2,0 4,7 9,8 18,6 25,3 7,3 – 2,5 7,3 20,9 32,1 25,3 10,0 7,4 F19 1,2 10,6 9,4 4,0 1,3 0,2 7,1 – 0,7 1,3 0,7 – – 0,8 6,4 Outros 113,2 170,9 229,2 332,4 505,0 571,1 278,6 46,1 169,3 268,3 436,6 582,7 506,9 283,4 271,7 Total 235,8 333,0 413,1 552,9 776,9 810,2 476,3 78,4 223,8 349,4 559,7 831,6 646,3 374,5 455,2 * A população de estudo corresponde à média dos vínculos empregatícios declarados pelos empregadores na CNAE–Seção F–Construção no período: 1.784.772 vínculos Categorias CID–10 – Descrição: M54 – Dorsalgia; S62 – Fratura ao nível do punho e da mão; S82 – Fratura da perna; K40 – Hérnia inguinal; S52 – Fratura do antebraço; S92 – Fratura do pé (exceto tornozelo); M51 – Outros transtornos de discos invertebrais; S42 – Fratura do ombro e do braço; M23 – Transtornos internos dos joelhos; S83 – Luxação, entorse e distensão das articulações e dos ligamentos dos joelhos; M75 – Lesões do ombro; F19 – Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas 230 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 prevalências em outras faixas etárias, para homens e mulheres, foram pouco expressivas (Tabela 4). Discussão O presente estudo estimou a prevalência de Benefícios Auxílio-Doença (BAD) entre trabalhadores do ramo Construção no Brasil, em 2009, analisados segundo sua relação com a causa diagnóstica, ramo de atividade econômica (no nível classe), espécie de benefício, sexo e idade dos trabalhadores que receberam benefícios. As diferentes metodologias utilizadas em estudos de incapacidade para o trabalho, além dos diversos sistemas de concessão de benefícios, dificultam a comparação desses dados com os da literatura, sobretudo no ramo Construção. A taxa de prevalência de incapacidade para o trabalho encontrada neste estudo para o ramo da Construção (4,6%) foi pouco superior à encontrada para o conjunto da população empregada no Brasil em 2008 (<4,3%), no entanto esta foi menor do que as apresentadas por ramos de atividade como Esgoto e atividades relacionadas (24,0%), Fabricação de produtos de madeira (7,6%) e Fabricação de móveis (6,3%) (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011). Considerando os riscos existentes nas atividades de Construção (SOROCK; SMITH; GOLDOFT, 1993; LIPSCOMB; DEMENT; RODRIGUEZ-ACOSTA, 2000; JEONG, 1998; CATTLEDGE; HENDRICKS; STANEVICH, 1996; BURKHART et al., 1993), os resultados deste estudo apontam para possíveis mecanismos de subnotificação/demanda previdenciária. A subnotificação no registro de agravos à saúde relacionados ao trabalho é um fenômeno mundial, tendo sido alvo de estudos científicos que registraram altas taxas nos Estados Unidos (LEIGH et al., 1997), Inglaterra (SOLOMON, 2002) e Espanha (GARCÍA GÓMEZ; GIL LÓPEZ, 1996). Estudos nacionais verificaram a subnotificação de acidentes e doenças do trabalho por meio do sistema de Comunicação de Acidentes de Trabalho – CAT (CORDEIRO et al., 2005; SOUZA et al., 2008), sendo esta estimada em 79,5% para uma cidade do estado de São Paulo (CORDEIRO et al., 2005), com destaque para a subnotificação de acidentes de trabalho típicos devidos às causas externas (SOUZA et al., 2008), principal grupo diagnóstico para incapacidade laboral de origem acidentária verificada neste estudo. Até o ano de 2007, os acidentes de trabalho e as doenças do trabalho no Brasil eram registrados por meio da CAT e se restringiam, em sua grande maioria às Lesões, uma vez que a emissão da CAT dependia, quase que exclusivamente, do empregador, o qual, em geral, somente realizava o procedimento nos casos de Lesões ocorridas durante a realização das atividades Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 laborais, por ser fato inegável. Quando o trabalhador incapacitado para o trabalho passa a receber BAD por motivo acidentário, independente da duração, este adquire direitos como a estabilidade no emprego por período mínimo de um ano após seu retorno ao trabalho, a continuidade do depósito pelo empregador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), e a continuidade da contagem de tempo de serviço para aposentadoria de forma ininterrupta durante seu afastamento do trabalho (WÜNSCH FILHO, 1999). A partir da instituição do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP), em abril de 2007, as doenças ganharam peso na caracterização acidentária dos benefícios auxílio-doença, mas é possível que o perfil dos trabalhadores da construção e a elevada predominância do sexo masculino no ramo possam ter impactado ainda mais as taxas de subnotificação, uma vez que esses trabalhadores tendem a apresentar maior resistência à procura por serviços de saúde (GOMES; NASCIMENTO; ARAÚJO, 2007). Após o aumento da caracterização de benefícios acidentários, observado com a introdução do NTEP, houve em 2008 uma aparente estabilização das taxas tanto dos benefícios previdenciários quanto dos acidentários, sendo possível que as empresas tenham adotado medidas internas visando evitar o afastamento do trabalhador pelo INSS em caso de incapacidade para o trabalho, uma vez que esses registros iriam influenciar na alíquota de impostos pagos a partir da introdução do Fator Acidentário de Prevenção (FAP), cuja metodologia já era conhecida pelos empregadores e sabia-se que o quadro epidemiológico apresentado pelos trabalhadores serviria de base para sua definição. Portanto, se antes do NTEP o desafio era combater a subnotificação do registro dos acidentes do trabalho por meio da CAT, a partir de 2009, ano de introdução do FAP, o desafio passa a ser combater a subnotificação da incapacidade para o trabalho como um todo. A hipótese de que as empresas se anteciparam à implantação do FAP é reforçada ao se analisarem os dados sobre incapacidade para o trabalho no Brasil no ano de 2008 (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011). Nesse ano a Construção de edifícios (CNAE divisão 41) apresentou a terceira maior incidência ajustada quanto às Lesões (287,9), atrás apenas dos ramos de Esgotos e Manufatura de madeira, valor bem maior que a prevalência encontrada no presente estudo. Ainda em comparação com os dados do mesmo estudo (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011), verifica-se que, em 2008, a razão de incidência para Lesões entre os sexos mostrou sobreprevalência masculina aproximadamente duas vezes maior para as CNAE-Divisão 41 e 42. As causas da ocorrência de subnotificação de incapacidade para o trabalho foram objeto de estudo internacional (UNITED STATES HOUSE OF REPRESENTATIVES, 2008), que apontou 231 associação com os seguintes fatores: grande número de trabalhadores no mercado informal; a dificuldade em se caracterizar a relação entre o adoecimento e o trabalho, em especial para as Doenças osteomusculares; o desconhecimento do sistema de benefícios por empregados e empregadores; e a relutância do trabalhador em solicitar o benefício aliada ao desencorajamento provocado pelo empregador. Esse estudo (UNITED STATES HOUSE OF REPRESENTATIVES, 2008) indica que o fator mais preocupante está ligado à atitude dos empregadores em não notificar os eventos, uma vez que baixas taxas de adoecimento e acidentes com os trabalhadores diminuem as chances de uma fiscalização trabalhista; diminuem os gastos com os afastamentos por incapacidade para o trabalho; aumentam as chances de se conseguir contratos governamentais; e melhoram a imagem da empresa perante clientes, acionistas e comunidade em geral. Nesse processo de promoção da subnotificação de incapacidade para o trabalho, os empregadores se utilizam de alguns métodos para que os registros não ocorram (CONWAY; SVENSON, 1998), entre os quais se encontram a intimidação direta ao empregado, com ameaças de perda do emprego, cortes salariais, supressão de horas extras e oportunidades de promoção, e assédio moral; o retorno precoce ao trabalho do empregado incapacitado, ainda que para o exercício de “trabalho leve”; o oferecimento de primeiros-socorros por meio de equipe médica própria, instruída a não promover o registro de acidentes de menor gravidade; políticas de abono de faltas em que os empregados dispõem de certa quantidade de dias de folga para quaisquer usos; falso incentivo às práticas laborais seguras por meio de folgas ou recompensas monetárias para as equipes de trabalho que não registraram acidentes e afastamentos; intimidação por meio de exames toxicológicos em caso de acidentes; terceirização de mão de obra para atividades de maior risco e a contratação de “autônomos” em substituição de empregados regulares, uma vez que nesse caso o registro de acidentes não estaria associado ao contratante (CONWAY; SVENSON, 1998). Essas práticas podem ser observadas no ramo da Construção e são agravadas devido ao grande número de trabalhadores em atividades não especializadas, cujo temor em perder o emprego se deve à grande facilidade de reposição. A análise da potencial influência do sexo na prevalência de incapacidade para o trabalho (benefício auxílio-doença) mostra que a maior (30,0%) prevalência de BAD concedidos ao sexo masculino nesse ramo de atividade, quando comparada aos trabalhadores femininos, vai ao encontro da maioria dos resultados nacionais (PIHA et al., 2010; LAAKSONEN et al., 2010; ILDEFONSO; BARBOSA-BRANCO; ALBUQUERQUEOLIVEIRA, 2009; BRANCO; ILDEFONSO, 2012) e internacionais (OCCUPATIONAL SAFE & HEALTH 232 ADMINISTRATION, 1999), que incluem trabalhadores da Construção no campo da incapacidade para o trabalho. Conhecendo-se a influência do ambiente de trabalho no perfil de adoecimento dos trabalhadores (LAAKSONEN et al., 2010), a maior prevalência de BAD entre os homens nesse ramo pode estar associada à maior exposição aos riscos ocupacionais comumente presentes na construção (SOROCK; SMITH; GOLDOFT, 1993; LIPSCOMB; DEMENT; RODRIGUEZ-ACOSTA, 2000; JEONG, 1998; CATTLEDGE; HENDRICKS; STANEVICH, 1996; BURKHART et al., 1993). Apesar da grande variação nas taxas de incapacidade para o trabalho apresentada em diferentes países, alguns autores (NELSON et al., 2005) concluem que, em países em desenvolvimento, os trabalhadores do sexo masculino estão mais expostos aos riscos ocupacionais, além de estarem mais expostos à violência social e acidentes de trânsito (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011). Quando analisados os grupos diagnósticos, homens e mulheres apresentaram quadros de adoecimento específicos. A elevada sobretaxa de prevalência masculina devido a Doenças digestivas relacionadas ao trabalho pode decorrer de fatores como o tipo de alimentação ofertada, condições de higiene pessoal (banheiros, pias, vestuário), pressões de ritmo de trabalho e produtividade. Esses fatores podem contribuir para os agravos digestivos nesses trabalhadores (RINGEN; SEEGAL; WEEKS, 1998; BRODKIN; LEE; REDLICH, 1994), entretanto no presente estudo nota-se que as características das atividades relacionadas ao esforço físico e carregamento de peso podem ter influenciado diretamente na maior prevalência de Hérnia inguinal entre os homens. Revisão sistemática (SVENDSEN et al., 2013) avaliando as evidências da relação entre exposição ocupacional e Hérnia inguinal em trabalhos com moderada a grande exigência mecânica conclui que apesar de ser uma doença comum entre homens, e das limitadas evidências epidemiológicas, trabalhos com grande exigência física podem aumentar os riscos de um prognóstico desfavorável. Uma importante parte dessa sobretaxa de Doenças digestivas observada no sexo masculino foi influenciada pelo elevado número de auxílio-doença decorrente de Hérnias (K40-K46), em particular, das Hérnias inguinais, mais prevalentes entre os homens (7,5:1) (SVENDSEN et al., 2013). No ramo da Construção, outro potencial fator de risco para as Doenças digestivas é a comorbidade decorrente dos Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool, também mais prevalente no sexo masculino. Apesar dos resultados do presente estudo não apresentarem os Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool entre as categorias diagnósticas mais prevalentes, estudos nacionais (BARBOSA-BRANCO; BÜLTMANN; STEENSTRA, Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 2012) e internacionais (HOFFMANN; BRITTINGHAM; LARISON, 1996; SUBSTANCE ABUSE AND MENTAL HEALTH SERVICES ADMINISTRATION, 2007; HARFORD; BROOKS, 1992) mostraram que o ramo da Construção figura entre os que mais apresentam trabalhadores com esse tipo de agravo. A baixa remuneração dos trabalhadores, como ocorre no ramo da Construção, se apresenta como fator de risco para o uso abusivo de álcool (HWANG et al., 2005). A elevada prevalência de doenças digestivas verificadas por este estudo, juntamente com a conhecida relação entre abuso de álcool e doenças digestivas (BRODKIN; LEE; REDLICH, 1994), sugere potenciais desvios de classificação diagnóstica em favor das consequências clínicas de agravos como Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool. Empiricamente, verifica-se que trabalhadores da Construção ingerem grandes quantidades de álcool, inclusive em dias de trabalho, entretanto a pressão pelo cumprimento de metas de produção faz com que, muitas vezes, haja tolerância a esse comportamento por parte de encarregados e demais membros da equipe de produção. As mais altas prevalências de Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas – principal causa clínica entre as doenças mentais na Construção – encontradas entre trabalhadores com menos de 40 anos encontram-se em concordância com os achados de Barbosa-Branco, Bültmann e Steenstra (2012) para o conjunto dos trabalhadores empregados em 2008. No ramo da Construção, trabalhadores mais jovens são mais exigidos fisicamente e, em grande parte, dependem de sua força física para a prática laboral, mas essa fase conjuga fatores sociais como a maior propensão de jovens ao uso de substâncias psicoativas e os momentos de estabelecimento no emprego e constituição familiar, estressores que podem influir no uso dessas substâncias. Estudo internacional (WEBB et al., 2005) mostrou que homens com idade entre 26 e 34 anos tem duas vezes mais chance de apresentarem um quadro de uso severo de álcool do que aqueles com idade ente 18 e 25 anos, constituindose fatores de risco para esse uso a baixa escolaridade e a relação parental com crianças. Em comparação com a prevalência de BAD para trabalhadores brasileiros em 2008 (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011), o ramo da Construção, em 2009, mostrou maior prevalência em relação às Doenças do aparelho circulatório, com destaque para Doenças das veias; Doenças isquêmicas do coração e Doenças hipertensivas. Essa maior prevalência se deve ao fato da predominância masculina no ramo, uma vez que esse tipo de adoecimento acomete mais os homens (LAAKSONEN et al., 2010; SALA; MENDES, 2010). A influência da idade no perfil epidemiológico da incapacidade laboral, de forma geral, seguiu a tendência Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 já descrita em estudos anteriores (ROELEN et al., 2009; BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011; VIEIRA; ALBUQUERQUE-OLIVEIRA; BARBOSABRANCO, 2011; ILDEFONSO; BARBOSA-BRANCO; ALBUQUERQUE-OLIVEIRA, 2009; PRANSKY et al., 2006), os quais mostraram que as taxas de afastamento aumentam com a idade, podendo influenciar na duração dos afastamentos, pois trabalhadores com maior idade podem precisar de mais tempo para se recuperar de agravos e retornarem ao trabalho (ALMEIDA; BARBOSA-BRANCO, 2011). O aumento da prevalência de Doenças osteomusculares com a idade já foi mostrado em estudos anteriores (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011; VIEIRA; ALBUQUERQUE-OLIVEIRA; BARBOSABRANCO, 2011; PRANSKY et al., 2006), entretanto a comparação da razão de prevalência desse tipo de adoecimento entre trabalhadores com idades ≥40 anos e <40 anos (RP 3,2; dados não mostrados), com o geral da população empregada no Brasil (RP 2,6) (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011), aponta para a existência de grande exigência física nas atividades da Construção. A tendência geral da prevalência de Lesões verificada neste estudo foi inversa ao comportamento apresentado pelas Doenças osteomusculares, pois a maior taxa foi encontrada entre trabalhadores com idade abaixo de 40 anos, em especial para diagnósticos relacionados aos membros superiores dos homens. Apesar da exigência física e da exposição aos riscos ocupacionais decrescer pouco com a idade, a experiência adquirida ao longo dos anos de profissão aparenta ser um fator de proteção para esses trabalhadores (ALMEIDA; BARBOSA-BRANCO, 2011), inclusive devido à maior chance destes terem recebido treinamento adequado para o exercício da tarefa. De modo geral, a maior prevalência de Lesões nos membros superiores dos homens relaciona-se ao trabalho, enquanto entre as mulheres a maior prevalência desses agravos ocorreu nos membros inferiores, e pode estar ligada aos acidentes de percurso, acidentes domésticos e quedas. A razão de incidência de Lesões em relação à idade dicotomizada encontrada em 2008 (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011) para trabalhadores da construção mostrou diferenças de até 20% para trabalhadores mais idosos, de modo que em 2009 pode ter havido maior subnotificação de Lesões em trabalhadores mais idosos, ou ainda apontar para uma mudança no perfil de contratação de trabalhadores. O setor da Construção Civil no Brasil vem passando por uma grande transformação na última década, saindo de um período de estagnação, com poucos investimentos, para um período com grandes obras em andamento e fortes investimentos imobiliários (MELLO; AMORIM, 2009), sendo possível uma maior contratação de 233 jovens para se evitarem os efeitos de adoecimentos relacionados com a idade, como no caso de Hérnia inguinal, de grande prevalência e cujo aumento da ocorrência com o avanço da idade foi exaustivamente descrito na literatura (SVENDSEN et al., 2013). Em relação à influência do ramo de atividade no quadro de adoecimento dos trabalhadores estudados, os dados sugerem relação entre os fatores de risco presentes nas atividades típicas realizadas por cada ramo e as causas diagnósticas mais prevalentes. A maior caracterização da relação dos agravos com o trabalho encontrada no ramo da Construção, quando comparada a outros ramos de atividades (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011), pode decorrer da grande contribuição das Lesões, cuja elevada prevalência tanto entre os BAD previdenciários quanto os acidentários decorre, em grande parte, das características e condições de trabalho encontradas nesses ramos de atividade (CNAE-Divisão 41, 42, 43), assim como a fatores gerais representados pelas violências urbana e no trânsito (BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011). Nesse sentido, contribuem para o aumento da prevalência de Lesões as atividades com alta demanda de esforço físico e o fato de que no Brasil os afastamentos devido a lesões ocorridas no trajeto entre casa e trabalho serem considerados como acidentários. Os dados obtidos sobre a prevalência de Lesões e Doenças osteomusculares corroboram aqueles descritos na literatura (SOROCK; SMITH; GOLDOFT, 1993; LIPSCOMB; DEMENT; RODRIGUEZ-ACOSTA, 2000; JEONG, 1998; CATTLEDGE; HENDRICKS; STANEVICH, 1996; BURKHART et al., 1993), acerca dos riscos e características desse ramo de atividade, e reforçam a necessidade de maior fiscalização quanto ao cumprimento da legislação relativa à saúde e segurança ocupacional em atividades do ramo da Construção, uma vez que o grande número de afastamentos relacionados ao trabalho devido às Lesões pode estar relacionado à ineficácia da gestão de segurança do trabalho na Construção. Estudo brasileiro (MIRANDA; DIAS, 2004) apontou a baixa qualidade técnica em programas obrigatórios de gestão de saúde e segurança ocupacional que devem ser desenvolvidos pelos empregadores, como o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO). Segundo os autores, isso decorre da ineficiência da fiscalização estatal, que não possui recursos humanos suficientes para o desenvolvimento das ações, além de que o quadro ora existente carece de treinamento adequado e atualização técnica. O estudo apontou ainda a necessidade de estimular maior controle social, a ser exercido por empregados e seus representantes no âmbito sindical. 234 Estudo avaliando as percepções de trabalhadores do ramo da Construção sobre os riscos ocupacionais a que estariam expostos (SAURIN; RIBEIRO, 2000) identificou diversas necessidades de melhoria gerencial, as quais influenciam de modo direto ou indireto a segurança no trabalho. Foi verificado que tanto gestores quanto operários, além de não possuírem sugestões para a melhoria das condições de segurança, tenderam a culpar os trabalhadores pela ocorrência de acidentes, de modo que é necessário estender as ações de treinamento e capacitação a todos os níveis da empresa. Segundo os autores, quando a segurança do trabalho é colocada em segundo plano, ocorrem implicações negativas diretas como treinamento inadequado dos trabalhadores quanto aos riscos laborais, fornecimento inadequado e utilização incorreta de equipamentos de proteção individual (EPI), bem como ineficácia da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), que, na Construção, enfrenta barreiras adicionais em razão da baixa escolaridade dos trabalhadores e da alta rotatividade no ramo (LAAKSONEN et al., 2010; BARBOSA-BRANCO; SOUZA; STEENSTRA, 2011; DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS, 2001; RINGEN; SEEGAL; WEEKS, 1998; SAURIN; RIBEIRO, 2000), e reflete a falta de controle social ao não cumprir atribuições como a produção de mapas de riscos ambientais, que em geral, quando são desenvolvidos, não contam com a participação dos empregados (MIRANDA; DIAS, 2004). O ramo Obras de acabamento, que mostrou a maior prevalência de BAD em geral, e também liderou a taxa em relação às Lesões, dedica-se aos serviços de acabamento, ou seja, todas as atividades que contribuem para a conclusão da construção bem como para a sua manutenção, tais como: pintura, revestimentos, polimento, colocação de esquadrias e vidros, limpeza de fachadas, colocação de pisos etc. Existem riscos ocupacionais de acidentes devido à utilização de ferramentas manuais, equipamentos de corte e acabamento de materiais, trabalhos em altura com utilização de andaimes e balancins, posturas antiergonômicas e manuseio de tintas e vernizes. A fase de acabamento de uma obra, que normalmente é acompanhada por pressões por parte do empregador para aceleração do prazo de entrega, pode vir a ser o momento em que o trabalhador é levado a se preocupar menos com os riscos de acidentes, e por vezes adota práticas inseguras que culminam em elevado número de acidentes com frequente incapacidade para o trabalho. A maior prevalência de Traumatismos da mão e punho no ramo Perfurações e sondagens pode estar associada à grande exigência de trabalhos manuais com ferramentas na montagem e desmontagem de sistemas de perfuração e sondagem, além da utilização essencial de trados manuais. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 O correto dimensionamento dos equipamentos de proteção coletiva (EPC), a fiscalização e o uso adequado de EPI como luvas, máscaras, calçados, capacetes e cintos de segurança e o conhecimento dos riscos específicos da tarefa (treinamento) podem contribuir positivamente para a redução desse tipo de ocorrência. Em relação às Doenças osteomusculares, a distribuição dos agrupamentos no ramo Construção foi semelhante àquela apresentada por Vieira, Albuquerque-Oliveira e Barbosa-Branco (2011), no qual predominaram as Dorsalgias, Outros transtornos de discos invertebrais, Transtornos internos dos joelhos, Sinovites e tenossinovites e Lesões do ombro. Vale ressaltar que o trabalhador da Construção comumente desenvolve atividades em condições antiergonômicas que representam importantes riscos para o desenvolvimento/agravamento das doenças osteomusculares, principalmente aquelas que afetam a coluna e as articulações. Considerando esses riscos é possível supor que essas taxas sejam ainda mais elevadas. A grande diferença encontrada entre a prevalência de Dorsopatias entre os ramos Construção de obras de arte e Instalações hidráulicas pode decorrer das diferentes atividades realizadas por essas classes. A CNAE Construção de obras de arte compreende atividades de construção e recuperação de pontes, viadutos, elevados, passarelas e outros, além da construção de túneis (urbanos, em rodovias, ferrovias, subterrâneos), sendo comum a realização de movimentos altamente repetitivos e com elevada exigência postural, principalmente em atividades de armação de ferragens, nas quais predominam movimentos de torção do punho e posturas inclinadas para frente ou totalmente inclinadas (> 90°). O ramo Instalações hidráulicas atua na instalação, alteração, manutenção e reparo em todos os tipos de construções de sistemas de aquecimento (coletor solar, gás e óleo), exceto elétricos; equipamentos hidráulicos e sanitários; ligações de gás; tubulações de vapor; de refrigeração central, quando não realizados pelo fabricante; e de ventilação mecânica controlada, de modo que o transporte manual de cargas é reduzido e predominam os movimentos finos de coordenação motora durante a utilização de ferramentas manuais. Em termos gerais, apesar do ramo Construção de edifícios ser o mais representativo em número de trabalhadores e, consequentemente, o mais estudado na totalidade dos ramos da Construção, os adoecimentos que geraram afastamentos do trabalho nesse ramo não se refletiram em taxas de prevalência acentuadas. É possível supor que esse ramo, por suas características, seja mais fiscalizado pelos órgãos competentes e, portanto, receba mais investimentos e atenção às questões de saúde e segurança ocupacional. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 A análise geral dos dados levantados por este estudo permite inferir a existência de grupos homogêneos de exposição aos riscos ocupacionais presentes em cada conjunto de atividades. Esses riscos associados à inadequada gestão dos mesmos podem estar contribuindo para o adoecimento dos trabalhadores. Um exemplo dessa constatação poderia ser verificado no ramo Obras de terraplanagem, no qual a grande exposição dos trabalhadores às poeiras e a utilização de equipamentos ruidosos e de grande porte podem ter influenciado a elevada prevalência de Doenças da pele e Doenças do ouvido nesse ramo. Este estudo utilizou-se da taxa de prevalência de benefícios auxílio-doença como indicador para avaliar a influência do sexo, da idade e do ramo de atividade específico no quadro de incapacidade para o trabalho de empregados da Construção no Brasil em 2009, contribuindo de forma inédita para o estabelecimento do perfil de morbidade desses trabalhadores no país. A relação entre as atividades realizadas e as altas prevalências de grupos diagnósticos como Lesões e Doenças osteomusculares indica haver nexos causais entre atividades específicas e o quadro de incapacidade, ainda que parte dos adoecimentos não tenha sido reconhecida como de causa acidentária para a concessão de BAD. As evidências epidemiológicas deste estudo podem contribuir para elucidar questões científicas ainda não consolidadas, como a relação entre atividades com alta exigência física e o desenvolvimento de Doenças digestivas, em especial as Hérnias. Em relação às limitações deste estudo, é possível citar a falta de controle quanto à recorrência de benefícios, que possivelmente pode ocorrer quando um mesmo trabalhador recebe um novo BAD pela mesma causa diagnóstica de benefício encerrado há mais de 60 dias. Apesar da recorrência de benefícios afetar o valor da prevalência calculada, estima-se que tal efeito seja minimizado pela magnitude dos dados analisados. Apesar das limitações, considera-se que a população de estudo foi suficientemente ampla para que, dentre os trabalhadores empregados, os resultados fossem representativos. Ressalta-se a qualidade dos bancos de dados utilizados que se destacam em termos de tamanho, homogeneidade e padronização de protocolos decorrente do sistema de concessão de benefícios. Conclusão Verificou-se influência do diagnóstico da incapacidade, do sexo e da idade do empregado sobre a prevalência e duração dos benefícios auxílio-doença previdenciário e acidentário. A forte caracterização acidentária dos afastamentos relacionados às Lesões entre os homens mostrou que 235 no âmbito ocupacional há sobre-exposição destes aos riscos do ambiente de trabalho, cujo gerenciamento tem sido ineficaz por parte dos empregadores. Estes, por sua vez, podem ter se aproveitado da ineficiente fiscalização promovida pelas autoridades competentes, que dispõem insuficientemente de recursos humanos e materiais. Apesar de a idade contribuir para o aumento da prevalência de benefícios auxílio-doença, para as Lesões de membros superiores entre homens a idade apresentou-se como fator de proteção para esses trabalhadores, podendo-se atribuir o fato à maior chance em ter recebido treinamento adequado para o exercício das tarefas. Ao se analisar o contexto legal dos benefícios auxíliodoença e as implicações (econômicas, trabalhistas, tributárias e outras) geradas, principalmente para os empregadores, a partir da adoção do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário – NTEP e da iminente adoção do Fator Acidentário de Prevenção – FAP, verificou-se a possibilidade das empresas do ramo da Construção terem buscado diversos meios alternativos objetivando evitar o afastamento legal dos trabalhadores incapacitados, inclusive com práticas já verificadas em outros países. Portanto, ao passo que o NTEP permitiu a caracterização de doenças relacionadas ao trabalho de modo independente da emissão da CAT, em parte, também pode ter contribuído para o aprimoramento de mecanismos de subnotificação dos agravos à saúde dos trabalhadores. Nesse sentido, os trabalhadores da Construção apresentam-se evidentemente vulneráveis por conta de suas características de fragilidade socioeconômica e baixa representatividade sindical. Para que se tenham melhorias no quadro de incapacidade para o trabalho dos trabalhadores estudados, torna-se indispensável desfazer os conceitos socialmente aceitos de que risco de morte, exposição ao perigo e condições de trabalho inadequadas são inerentes ao ramo da Construção. Contribuições de autoria Mello, T. A.: contribuição substancial no projeto e delineamento, levantamento de dados, análise e interpretação e elaboração do manuscrito. Barbosa-Branco, A.: contribuição substancial no projeto e delineamento, levantamento de dados, análise e interpretação; e contribuição importante na revisão crítica do manuscrito e aprovação final da versão a ser publicada. Referências ALMEIDA, P. C. A.; BARBOSA-BRANCO, A. Acidentes de trabalho no Brasil: prevalência, duração e despesa previdenciária dos auxílios-doença. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 36, n. 124, p. 195-207, 2011. http://dx.doi.org/10.1590/S030376572011000200003. BARBOSA-BRANCO, A.; SOUZA, W. 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Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 224-238, 2014 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional ISSN: 0303-7657 (versão impressa) http://dx.doi.org/10.1590/0303-7657000086513 João Silvestre da Silva-Junior 1 Flávia Souza e Silva de Almeida 2 Márcio Prince Santiago 3 Luiz Carlos Morrone 2* 1 Ministério da Previdência Social, Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. São Paulo, SP, Brasil. Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Departamento de Medicina Social. São Paulo, SP, Brasil. 2 3 Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual, Programa de Residência em Medicina do Trabalho. São Paulo, SP, Brasil. Contato: João Silvestre da Silva-Junior E-mail: [email protected] * In memorian Trabalho apresentado como tema livre no 15º Congresso Nacional da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt), em São Paulo, em 2013, com parte dos dados publicados no formato de resumo ampliado. Trabalho apresentado como pôster no 4º Congresso Brasileiro de Perícia Médica Previdenciária, no Recife, em 2013, sem publicação do material. Os autores declaram que o trabalho não foi subvencionado e que não há conflitos de interesses. Recebido: 03/10/2013 Revisado: 27/06/2014 Aprovado: 02/07/2014 Artigo Caracterização do nexo técnico epidemiológico pela perícia médica previdenciária nos benefícios auxílio-doença Characterization of the technical epidemiological nexus in social security sickness benefits by medical experts Resumo Introdução: o Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP) modificou a caracterização da etiologia ocupacional de agravo que justifica benefício previdenciário auxílio-doença no Brasil. Objetivo: descrever o perfil de requerimentos em que houve indicação de NTEP pelo sistema previdenciário e analisar fatores associados à caracterização/descaracterização do nexo pela perícia médica. Métodos: estudo retrospectivo analítico, com amostra de 822 laudos médicos periciais emitidos em São Paulo, entre 2008 e 2011. Realizada regressão logística para avaliar a associação entre a caracterização do NTEP e sexo, idade e diagnóstico incapacitante. Resultados: o perfil dos segurados foi de homens (60,6%), na faixa etária de 30-39 anos (31,8%), com lesão por causa externa (35,0%). Foi descaracterizado o NTEP em 59% das situações, a maioria devido ao relato dos trabalhadores de que a lesão não tinha ocorrido no trabalho (70,9%). Houve associação entre a caracterização do NTEP e o diagnóstico da doença incapacitante, principalmente em relação aos distúrbios osteomusculares (OR 7,45; IC 95% 4,88-11,38). Conclusão: o diagnóstico é um fator fortemente associado à aplicação do NTEP pela perícia médica. Há uma descaracterização frequente da espécie acidentária nos requerimentos, o que pode minimizar a justiça social ao trabalhador lesionado em decorrência do exercício do seu trabalho. Palavras-chave: previdência social; saúde do trabalhador; laudo pericial; notificação de acidentes de trabalho; epidemiologia ocupacional. Abstract Background: the Technical Epidemiological Nexus of Social Security (NTEP in Portuguese) has modified the characterization of occupational injuries during evaluation for sickness benefits in Brazil. Objective: to describe the profile of sickness benefit requirements when NTEP was indicated by the social security system, and to analyze the factors associated with its characterization/mischaracterization through medical evaluation. Methods: retrospective analytical study with a sample of 822 expert medical reports issued in Sao Paulo between 2008 and 2011. A logistic regression model analysis was performed to assess the association between the characterization of NTEP and sex, age, and diagnosis. Results: the profile of the beneficiaries was as follows: males (60.6%), aged 30-39 (31.8%), and presenting sickness due to injuries by external causes (35.0%). NTEP was mischaracterized in 59% of the cases, mostly because workers reported that the injury had not occurred at work (70.9%). There was an association between NTEP characterization and disabling diagnosis, mainly due to musculoskeletal disorders (OR 7.45; 95%CI 4.88-11.38). Conclusion: the disabling diagnosis is a factor strongly associated with NTEP characterization by medical experts. Commonly, there is a mischaracterization of its application, which could minimize social justice for workers with occupational injury. Keywords: social security; occupational health; expert testimony; occupational accidents registry; occupational epidemiology. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 239-246, 2014 239 Introdução A Constituição Federal brasileira estabelece o acesso ao trabalho como um direito social dos cidadãos e redução de riscos ocupacionais por meio de normas de saúde, higiene e segurança (BRASIL, 1988). A prevenção de agravos relacionados ao trabalho é um importante componente nas relações trabalhistas e há prerrogativas de reparação de dano caso inexistam ações preventivas eficazes (BRASIL, 2002)4. Outro direito social é a previdência, responsável por distribuir renda quando há incapacidade para o desempenho de atividade laborativa. No processo de avaliação do direito ao benefício previdenciário auxíliodoença, cabe ao perito médico do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) avaliar se o requerente incapaz apresenta agravo à saúde desencadeado ou agravado pelo trabalho (SOUZA et al., 2008). Todos os trabalhadores com relação de trabalho regida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) têm direito à estabilidade, com manutenção do seu contrato de trabalho na empresa, pelo prazo mínimo de 12 meses após a cessação do recebimento do auxíliodoença por agravo relacionado ao trabalho (BRASIL, 1991, art. 118). Além disso, durante a vigência do afastamento deverão ser mantidas as contribuições do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) (BRASIL, 1990, art. 15). • Nexo técnico epidemiológico previdenciário (NTEP) – aplicável quando houver significância estatística da associação entre a entidade mórbida motivadora da incapacidade e a atividade econômica da empresa na qual o segurado é vinculado. Essas relações constam na lista C do anexo II do Decreto nº 3.048/99 (BRASIL, 1999), alterado pelo Decreto nº 6.042/2007 (BRASIL, 2007). A principal ferramenta para caracterização do nexo individual é a apresentação da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT)5 pelo segurado no momento da perícia médica previdenciária. Em relação aos nexos técnicos profissional e epidemiológico, a caracterização se baseia em aspectos coletivos de adoecimento e dependem de indicação do Sistema de Administração de Benefícios por Incapacidade (SABI)6 do INSS. Em qualquer uma das possibilidades de nexo técnico o perito médico pode exercer sua autonomia decisória e negar a caracterização acidentária do requerimento. No caso do NTEP, a legislação instituiu que o ônus da prova é da empresa, pois cabe a ela demonstrar não haver fatores de risco no trabalho para o agravo incapacitante em análise (BRASIL, 2007). • Nexo técnico profissional ou do trabalho – fundamentado nas associações entre patologias e exposições ocupacionais de acordo com a profissiografia do segurado, descrito nas listas A e B do anexo II do Decreto nº 3.048/99 (BRASIL, 1999); Entre 2006-2007, a concessão de benefícios auxílio-doença acidentários (B91) teve um aumento expressivo a partir da implantação do NTEP. Estudos demonstraram que o nexo epidemiológico influenciou quadros específicos, como respiratório (BRANCO; ILDEFONSO, 2012) e neurológico (LUNARDI et al., 2011). Acerca dos transtornos mentais, houve um aumento na ordem de 1.157% no número de concessões nesse biênio (SELIGMANN-SILVA et al., 2010). Estudo mais recente demonstrou uma diminuição persistente da concessão de auxíliodoença acidentário (B91) entre 2008-2011 (SILVA JUNIOR; FISCHER, 2014). • Nexo técnico por doença equiparada a acidente de trabalho ou nexo técnico individual – decorrente de acidentes de trabalho típicos ou de trajeto, bem como de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele relacionado diretamente, nos termos do § 2º do art. 20 da Lei nº 8.213/91 (BRASIL, 1991); Considerando o NTEP um mecanismo de aplicação recente e de impacto social, este estudo tem por objetivo descrever o perfil de situações em que houve indicação de NTEP pelo sistema previdenciário e analisar os fatores associados à caracterização/descaracterização do nexo epidemiológico nas avaliações periciais de incapacidade laborativa do INSS. O critério legal para a caracterização da espécie acidentária do benefício – a relação entre o adoecimento incapacitante e as condições de trabalho – é determinado pela aplicação do nexo técnico previdenciário que pode ser de três tipos (BRASIL, 1999): 4 Código Civil, art. 950: “Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.” (BRASIL, 2002) 5 Por meio da CAT, todas as empresas são obrigadas pela Lei 8.213/91 (BRASIL, 1991) a informar à Previdência Social todos os acidentes de trabalho ocorridos com seus empregados, mesmo que não haja afastamento das atividades, até o primeiro dia útil seguinte ao da ocorrência. Em caso de morte, a comunicação deve ser imediata (MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, 2014). 6 “O SABI (Sistema de Administração de Benefícios por Incapacidade) é um conjunto de aplicações que tem por objetivo o reconhecimento inicial do direito dos benefícios que necessitam de Perícia Médica para serem concedidos e mantidos.” (MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, 2009) 240 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 239-246, 2014 Metodologia Este é um estudo retrospectivo analítico, realizado com dados coletados em uma Agência da Previdência Social (APS) localizada na região central da cidade de São Paulo. A seleção da amostra foi baseada na coleta de Comunicação de Resultado de Exame e Requerimento (CRER) emitida por conclusão da análise de requerimentos de benefícios previdenciários auxílio-doença no período 2008-2011. Foi critério de inclusão na pesquisa a presença na CRER da indicação do SABI para que a perícia médica analisasse o NTEP indicado. Os requerimentos que cumpriram tal critério tiveram os seus respectivos laudos médico-periciais acessados no sistema para montagem do banco de dados a ser analisado. Informações referentes ao sexo, idade, diagnóstico motivador da incapacidade laborativa padronizado pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde 10ª versão (CID-10) (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1996) foram acessadas nos laudos médico-periciais e tabuladas. A caracterização acidentária do benefício auxílio-doença por incapacidade laborativa pela aplicação do NTEP foi considerada desfecho de interesse. Nos casos em que houve descaracterização do nexo técnico epidemiológico previdenciário também foram tabulados o motivo, conforme SABI, e a justificativa descrita no laudo pericial pelo perito médico. O tamanho da amostra (BARTLETT; KOTRLIK; HIGGINS, 2001) foi calculado para uma estimativa confiável da proporção em população ilimitada. Considerou-se um grau de confiança de 95% ( < 0,05) e um erro máximo de estimativa de 5%. A proporção do desfecho foi baseada nos dados dos acidentes de trabalho registrados pela Previdência Social sem emissão de CAT, que totalizaram 27% no ano de 2008 (MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, 2009). É sabido que os acidentes de trabalho sem CAT são aqueles que a Previdência Social reconhece como caracterizados pelo nexo profissional e, principalmente, epidemiológico. A amostragem mínima deveria ser de 302, mas foi possível o estudo de 822 laudos. Procedeu-se com análise estatística construindose modelos de regressão logística univariada. As variáveis com p < 0,20 foram selecionadas para a regressão logística múltipla. No modelo final para o estudo da associação entre a caracterização acidentária do benefício pela aplicação do NTEP (sim/não) e as variáveis independentes – sexo, faixa etária e agravo à saúde –, considerou-se significância estatística o valor de p < 0,05. Foi utilizado o programa Epidata versão 3.1 para montagem do banco de dados. Os dados foram analisados com uso do software Epi-infoTM versão 7.1.1.14. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 239-246, 2014 O projeto de pesquisa que originou este estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo que considerou não haver necessidade de emissão de parecer, conforme ofício 423/11. Resultados Foram coletados 822 laudos médico-periciais, sendo que na maioria eram segurados do sexo masculino (60,6%) e adulto jovem na faixa etária de 20 a 39 anos (61,0%). Os agravos mais frequentes foram: lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas (Capítulo XIX – CID10 S00-T98) (35,0%); doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo (Capítulo XIII – CID10 M00-M99) (30,0%); e transtornos mentais e comportamentais (Capítulo V – CID10 F00-F99) (17,8%) (Tabela 1) (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1996). O NTEP foi descaracterizado em 59,0% das situações na qual o sistema indicou relação entre CNAE do empregador e CID-10 incapacitante. Dos grupamentos diagnósticos mais frequentes, lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas (17,4%), doenças do aparelho circulatório (Capítulo IX – CID10 I00-I99) (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1996) (40,6%) e transtornos mentais e comportamentais (44,5%) foram os agravos menos caracterizados pelos peritos como acidentários (Tabela 1). A principal justificativa descrita pelos peritos médicos previdenciários para descaracterizar o NTEP foi que o segurado periciado relatava que a lesão não ocorreu no trabalho (70,9%) (Tabela 2). Neste grupo, a principal descrição presente no laudo médico-pericial era de “acidente não aconteceu no local ou horário de trabalho” (60,8%). Também se destacam relatos de “doença não relacionada ao trabalho” (27,9%), “não trouxe CAT” ou “não sabe informar a causa” (8,4%), e mesmo “acidente de trajeto” (2,0%). Em 25,4% das negativas à aplicação do NTEP, a decisão pericial se baseou em considerar incompatível a queixa como um quadro relacionado ao trabalho (Tabela 2). A justificativa de que os quadros eram de doença autoimune, crônica, degenerativa, endêmica, idiopática, orgânica, prévia ao trabalho, motivada por fatores pessoais, gravidez ou sequela de doença de base somaram 51,2% de tais descaracterizações. Em 46,3% dos laudos desse grupo, as justificativas descritas foram “doença não ocupacional”, “não se aplica” ou “não se enquadra”. A descaracterização do NTEP por falta de evidências de exposição ocupacional a fatores de risco para o agravo incapacitante foi justificativa descrita em 2,7% dos laudos periciais (Tabela 2). Todavia, descrições 241 Tabela 1 Distribuição das informações descritas nos laudos de avaliações periciais de incapacidade laborativa de uma Agência da Previdência Social do INSS conforme sexo, faixa etária, diagnóstico do agravo incapacitante e a caracterização do nexo técnico epidemiológico previdenciário (NTEP), São Paulo, 2008-2011 NTEP sim (N = 337) % NTEP não (N = 485) % Total (N = 822) % Masculino 178 35,7 320 64,3 498 60,6 Feminino 159 49,1 165 50,9 324 39,4 2 16,7 10 83,3 12 1,5 Sexo Faixa etária 0-19 20-29 86 35,8 154 64,2 240 29,2 30-39 118 45,2 143 54,8 261 31,8 40-49 81 42,4 110 57,6 191 23,2 50-59 44 43,1 58 56,9 102 12,4 >60 7 43,7 9 56,3 16 1,9 Lesões por causas externas 50 17,4 238 82,6 288 35,0 Doenças do sistema osteomuscular 153 61,9 94 38,1 247 30,0 Transtornos mentais e comportamentais 65 44,5 81 55,5 146 17,8 Agravo à saúde Doenças do aparelho circulatório 26 40,6 38 59,4 64 7,8 Doenças do aparelho digestivo 30 58,8 21 41,2 51 6,2 Doenças do sistema nervoso 10 55,6 8 44,4 18 2,2 Outros 4 50,0 4 50,0 8 1,0 Tabela 2 Justificativas para a descaracterização do nexo técnico epidemiológico previdenciário (NTEP) indicadas nos laudos médico-periciais de requerimentos de auxílio-doença coletados em uma Agência da Previdência Social do INSS, São Paulo, 2008-2011 N % O segurado informa que a lesão não ocorreu no trabalho Justificativa 344 70,9 A queixa descrita não é compatível com lesão ocupacional 123 25,4 Não há evidência/indícios de exposição a riscos ocupacionais 13 2,7 Tempo entre o início da função/trabalho e o início da doença (DID) é insuficiente para gerar a moléstia de origem ocupacional 5 1,0 Total de vistoria em local de trabalho ou de análise de documentação técnica emitida pelo vínculo empregatício do segurado requerente eram inexistentes. Frente aos resultados da regressão logística univariada, todas as variáveis foram selecionadas para o modelo múltiplo (Tabela 3). Na análise múltipla, a variável agravo de saúde esteve associada ao desfecho. Os diagnósticos de quadros osteomusculares, doenças gastroenterológicas e doenças do sistema nervoso apresentaram maior Odds Ratio (OR) da perícia estabelecer NTEP nos requerimentos de auxílio-doença. As variáveis sexo e faixa etária ajustaram o modelo, mas não foram estatisticamente significantes. 242 485 100,0 Discussão A indicação do nexo técnico epidemiológico legalmente definido é informada ao perito médico previdenciário pelo SABI. Conforme os resultados, o perfil de requerente passível de fazer jus a um auxílio-doença de espécie acidentária por aplicação do NTEP foi majoritariamente do sexo masculino, de faixa etária inferior a 39 anos e cujo principal motivo de incapacidade foram quadros de lesão por causas externas. Entretanto, mais da metade das situações possíveis de confirmação do NTEP foram descaracterizadas. Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 239-246, 2014 Tabela 3 Análise de regressão logística univariada e múltipla acerca da associação entre caracterização do nexo técnico epidemiológico previdenciário (NTEP) e as variáveis independentes sexo, faixa etária e diagnóstico do agravo incapacitante de laudos médico-periciais de requerimentos de auxíliodoença de uma Agência da Previdência Social do INSS, São Paulo, 2008-2011 (N = 822) OR Univariada (IC 95%) p OR Múltipla (IC 95%) 0,001 1,21 (0,87-1,66) p Sexo Masculino 1 Feminino 1,72 (1,29-2,28) 1 0,253 Faixa etária 0-19 1 1 20-29 2,79 (0,60-13,04) 0,192 1,27 (0,26-6,21) 0,767 30-39 4,13 (0,89-19,20) 0,071 1,31 (0,27-6,41) 0,742 40-49 3,68 (0,79-17,26) 0,098 1,11 (0,22-5,52) 0,895 50-59 3,79 (0,79-18,19) 0,096 1,06 (0,21-5,40) 0,946 >60 3,89 (0,64-23,79) 0,141 1,19 (0,18-7,88) 0,859 Agravo à saúde Lesões por causas externas 1 1 Doenças do sistema osteomuscular 7,75 (5,20-11,54) < 0,001 7,45 (4,88-11,38) < 0,001 Transtornos mentais e comportamentais 3,82 (2,44-5,97) < 0,001 3,56 (2,22-5,69) < 0,001 Doenças do aparelho circulatório 3,26 (1,82-5,84) < 0,001 3,21 (1,73-5,95) < 0,001 Doenças do aparelho digestivo 6,80 (3,60-12,84) < 0,001 6,89 (3,62-13,10) < 0,001 Doenças do sistema nervoso 5,95 (2,24-15,83) < 0,001 5,74 (2,10-15,70) 0,001 Outros 4,76 (1,15-19,67) 0,031 4,69 (1,12-19,60) 0,034 OR = Odds Ratio; IC 95% = Intervalo de confiança de 95% A descaracterização equilibrou a frequência entre os sexos, aumentou a idade média e promoveu a ascensão dos distúrbios osteomusculares como principal agravo motivador da incapacidade acidentária. A confirmação do NTEP pela perícia médica previdenciária esteve associada ao diagnóstico do agravo que foi considerado como motivador da incapacidade laborativa nesse grupo, conforme análises estatísticas. Em contrapartida, não houve associação significante do desfecho com as variáveis sexo e faixa etária dos beneficiários. O perfil da amostragem é compatível com estudo ecológico no estado de Rondônia, o qual identificou maior prevalência de beneficiários de auxílio-doença como sendo do sexo masculino (JAKOBI et al., 2013). Os três principais grupamentos de agravos classificados como os mais frequentes motivadores de concessão do benefício auxílio-doença entre os requerentes da amostra do estudo aqui apresentado são compatíveis com dados relativos ao período entre 2008 e 2011 no país – lesões por causas externas, distúrbios osteomusculares e transtornos mentais (SILVA JUNIOR; FISCHER, 2014). O recorte do perfil dos beneficiários de auxíliodoença acidentário desta pesquisa diverge de estudos Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 239-246, 2014 regionais e nacionais que indicam as lesões por causas externas como o principal motivo de concessão dessa espécie de benefício. Em geral, os distúrbios osteomusculares são a segunda causa mais frequente (ALMEIDA; BARBOSA-BRANCO, 2011; JAKOBI et al., 2013; SILVA JUNIOR; FISCHER, 2014). Sobre a idade dos requerentes, o resultado vai ao encontro de conclusões que indicam que o envelhecimento do trabalhador diminui a frequência de lesões por causas externas relacionadas ao trabalho (ALMEIDA; BARBOSA-BRANCO, 2011). Portanto, pode-se considerar que ao haver um menor impacto desses agravos nos motivos de concessão dessa espécie de benefício pode haver um aumento da idade média dos beneficiários. Apesar de autores indicarem que quadros crônicos envolvem uma maior dificuldade para estabelecer o nexo causal (SOUZA et al., 2008), as morbidades osteomusculares, mentais, gastrointestinais, cardiovasculares e neurológicas estiveram fortemente associadas à concessão de auxílio-doença acidentário nos nossos resultados. As doenças crônicas não transmissíveis são importantes fontes de carga de adoecimento e morte no Brasil (SCHMIDT et al., 2011), e ao longo dos anos os trabalhadores vão se 243 tornando mais susceptíveis a tais agravos, inclusive por exposição a fatores de risco em ambientes de trabalho. A ausência da associação estatística com sexo e idade pode ser explicada, principalmente, pela descaracterização das relações epidemiológicas de CNAE e o grupamento CID-10 S00-T98. Esses agravos afetam essencialmente trabalhadores do sexo masculino (JAKOBI et al., 2013) e jovens (ALMEIDA; BARBOSABRANCO, 2011). Portanto, a taxa de negativa do NTEP superior a 80% pode ter influenciado na perda da significância estatística das variáveis sexo e idade no modelo final, por serem variáveis que se sobrepõem ao diagnóstico do agravo incapacitante. O presente estudo apresenta limitações, como a coleta ter sido restrita a uma unidade da Previdência Social em uma cidade urbana com seleção não aleatória da amostragem, o que inviabiliza a generalização dos achados. A falta de dados relativos aos peritos médicos previdenciários responsáveis pelas avaliações é um viés, pois a formação complementar em Medicina do Trabalho ou Legislação Previdenciária e o tempo de atividade na função podem influenciar nos critérios individuais para caracterização/descaracterização do NTEP. A ausência de outras variáveis de interesse prejudica o poder de explicação das análises de fatores associados ao desfecho. Apesar das limitações, os autores acreditam que este estudo pode trazer contribuição relevante, pois há insuficiência na literatura científica brasileira sobre o processo previdenciário de caracterização da espécie acidentária nos requerimentos de benefício auxílio-doença. Estudo brasileiro sobre dados de 2008 considerou baixas as taxas de prevalência de benefícios por acidente de trabalho quando comparadas a países desenvolvidos. Uma das justificativas seria a questão da subnotificação por parte dos empregadores, tais como a não emissão da CAT (ALMEIDA; BARBOSABRANCO, 2011). A introdução do NTEP é considerada uma possível solução ao problema apresentado, pois levou ao fim a vinculação da concessão de benefícios acidentários à entrega da CAT (CHAGAS; SALIM; SERVO, 2011). Cabe indicar que mesmo após a institucionalização do NTEP está mantida a obrigatoriedade de comunicar o acidente do trabalho à Previdência Social até o primeiro dia útil seguinte ao da ocorrência (BRASIL, 1991, art. 22). Entretanto, não cabe relacionar a presença ou ausência da CAT às análises de nexo técnico epidemiológico previdenciário, como foram descritos em laudos periciais analisados neste estudo. O NTEP traz a possibilidade de se utilizarem critérios da Epidemiologia Ocupacional na análise das relações entre adoecimento incapacitante e 244 trabalho. Essa ferramenta trouxe mudança no padrão das concessões de benefício, promovendo um novo perfil epidemiológico com diversificação dos agravos à saúde considerados ocupacionais (LUNARDI et al., 2011; BRANCO; ILDEFONSO, 2012). Essa abordagem pode facilitar o exercício da atividade médico-pericial, haja vista que nem todos os servidores possuem formação em Medicina do Trabalho. Todavia, onde a relação causal é discutível, cabe um aprofundamento da análise, com decisão fundamentada, mesmo nas situações de descaracterização do nexo. Dessa forma deve-se prezar para que a ferramenta não entre em descrédito social (SILVA-JUNIOR; ALMEIDA; MORRONE, 2012). Uma das principais modificações implantadas pelo nexo epidemiológico foi determinar que cabe à empresa provar que não foi a responsável pela doença incapacitante (TECHY; SIENA; HELFENSTEIN JUNIOR, 2009). Essa inversão do ônus da prova abre um espaço para que as empresas emitam documentação de contestação em situações legalmente estabelecidas como NTEP a serem analisadas na primeira avaliação pericial do requerimento. Dessa forma, a perícia pode se embasar em elementos técnicos formais nas situações que ensejam descaracterização do nexo. Assim, mantém-se o ônus da prova a cargo do empregador e se diminui a importância de informações verbais, como nas situações nas quais o requerente nega que a lesão tenha ocorrido no trabalho, mais susceptíveis à influência de pressões. A instituição previdenciária deve investir em treinamentos periódicos para padronizar os critérios de análise e minimizar vieses relativos a perfil técnico, administrativo e ideológico-político. Também é recomendável a realização de monitoramento periódico da qualidade técnica das atividades periciais, a fim de corrigir inconsistências e encaminhar para cursos de atualização os profissionais insuficientes. Como a aplicação do NTEP possibilita a interposição de contestação pelas partes, e tais recursos devem ser analisados pela perícia médica, levanta-se a hipótese de que as situações na qual caberia a aplicação do NTEP têm sido descaracterizadas de forma arbitrária para minimizar futura carga de trabalho aos peritos do INSS. Autores descrevem que essa categoria de servidores pode estar desmotivada pela falta de oportunidades de contribuir com o planejamento de uma política efetivamente previdenciária (PINTO JÚNIOR; BRAGA; ROSELLI-CRUZ, 2012). Na análise da etiologia ocupacional de um adoecimento, três pontos devem ser levados em consideração: evidência da doença, evidência da exposição e evidência da relação causal. Por vezes, o estabelecimento do nexo causal é uma decisão política, pois afeta muitas partes interessadas, com consequências sociais múltiplas (VERBEEK, 2012). Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 239-246, 2014 A aplicação do NTEP pode ser melhorada com a realização de anamnese focada em descrição da história ocupacional, o estímulo à avaliação do posto de trabalho e a padronização da análise do nexo por meio de diretrizes médico-periciais em doenças ocupacionais (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 1998). Algumas documentações podem aprofundar e auxiliar essa discussão da relação entre doença e trabalho, como: Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR), Programa de Controle do Meio Ambiente de Trabalho (PCMAT), Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), Laudo Técnico de Condições Ambientais de Trabalho (LTCAT), Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), relatórios e documentos médicos ocupacionais (INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, 2008). Autores consideram que a introdução do NTEP minimizou a subnotificação de acidentes de trabalho no setor formal, nos casos de longo afastamento por doença (CHAGAS; SALIM; SERVO, 2011). Todavia, estudo recente (SILVA JUNIOR; FISCHER, 2014) demonstra uma queda persistente na configuração acidentária dos benefícios previdenciários auxíliodoença no país. Os motivos dessa nova mudança nos padrões previdenciários devem motivar outras pesquisas e discussões sobre essa temática. Este estudo apresenta que o diagnóstico motivador da incapacidade é um fator fortemente associado à aplicação do NTEP pela perícia médica previdenciária. Também indicou que há uma descaracterização frequente da espécie acidentária em requerimentos em que o diagnóstico incapacitante é uma lesão por causa externa. A abordagem epidemiológica das informações previdenciárias é importante na construção de políticas públicas em Saúde do Trabalhador para promoção da saúde, prevenção de adoecimento e reabilitação profissional (PINTO JÚNIOR; BRAGA; ROSELLICRUZ, 2012; JAKOBI et al., 2013). Discutir a correta aplicação do NTEP é essencial para garantir justiça social a cada trabalhador lesionado em decorrência do exercício do seu trabalho e impedido de ser produtivo para a sociedade em decorrência da incapacidade de que foi acometido. Contribuições de autoria Silva-Junior, J. S.: participou da concepção do projeto, coleta e análise dos dados, e da redação do artigo. Almeida, F. S. S.: participou da análise dos dados, redação do artigo e revisão crítica do conteúdo intelectual. Santiago, M. P.: participou da redação do artigo e revisão crítica do conteúdo intelectual. Morrone, L. C.: participou da aprovação final da versão a ser publicada. Agradecimentos Os autores agradecem à Diretoria de Saúde do Trabalhador do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) pela autorização para realização do estudo. Referências ALMEIDA, P. C. A.; BARBOSA-BRANCO, A. Acidentes de trabalho no Brasil: prevalência, duração e despesa previdenciária dos auxílios-doença. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 36, n. 124, p. 195-207, 2011. http://dx.doi.org/10.1590/S0303-76572011000200003. BARTLETT, J. E.; KOTRLIK, J. W.; HIGGINS, C. C. Organizational research: determining appropriate sample size in survey research. 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Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial [da] República 245 Federativa do Brasil, Brasília, DF, 14 ago. 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l8213cons.htm>. Acesso em: 28 out. 2014. BRASIL. Decreto nº 3.048, de 06 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 07 maio 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/d3048.htm>. Acesso em: 28 out. 2014. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/2002/L10406.htm#art2045>. Acesso em: 28 out. 2014. BRASIL. Decreto nº 6.042, de 12 de fevereiro de 2007. Altera o Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999, disciplina a aplicação, acompanhamento e avaliação do Fator Acidentário de Prevenção – FAP e do Nexo Técnico Epidemiológico, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 13 fev. 2007. Disponível em <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6042. htm>. Acesso em 28 out. 2014. CHAGAS, A. M. R.; SALIM, C. A.; SERVO, L. M. S. (Org.). Saúde e segurança no trabalho no Brasil: aspectos institucionais, sistemas de informação e indicadores. Brasília: IPEA, 2011. Disponível em: <http://desafios2.ipea.gov.br/agencia/images/ stories/PDFs/livros/livros/livro_saudenotrabalho. pdf#page=78>. Acesso em: 01 out. 2013. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.488, de 06 de março de 1998. Dispõe de normas específicas para médicos que atendam o trabalhador. 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Saúde ocup., São Paulo, 39 (130): 239-246, 2014 Agradecimentos aos consultores ad hoc do volume 39 (n. 129 e n. 130) Ada Ávila Assunção – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil Adriano Dias – UNESP, Botucatu, SP, Brasil Amélia Cohn – Unisantos, Santos, SP, Brasil Ana Cecília Cavalcanti de Albuquerque – ASCES, Caruaru, PE, Brasil Ana Claudia Moreira Cardoso – DIEESE, São Paulo, SP, Brasil Ana Paula Lopes dos Santos – UFF, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Anadergh Barbosa de Abreu Branco – UNB, Brasília, DF, Brasil Anete Aparecida de Souza Farina – USP, São Paulo, SP, Brasil Aparecida Mari Iguti – Unicamp, Campinas, SP, Brasil Bianca de Vasconcellos Sophia – UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Candy Florencio Thome – TRT 15ª Região, Campinas, SP, Brasil Carla Sabrina Xavier Antloga – UNB, Brasília, DF, Brasil Carlos Eduardo Carrusca Vieira – PUC, Belo Horizonte, MG, Brasil Carlos Eduardo Gomes Siqueira – University of Massachusetts Boston, Boston, Estados Unidos Cássio Adriano Braz de Aquino – UFC, Fortaleza, CE, Brasil Celso Amorim Salim – Fundacentro, Belo Horizonte, MG, Brasil Cleverson Pereira de Almeida – Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM, São Paulo, SP, Brasil Cristiane Murta Ramalho Nascimento – Unesp, Botucatu, SP, Brasil Cynthia de Freitas Melo Lins – Unifor, Fortaleza, CE, Brasil Daisy Moreira Cunha – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil Débora Miriam Raab Glina – Cerest/PMSP, São Paulo, SP, Brasil Denise Alvarez – UFF, Niterói, RJ, Brasil Edith Seligman – USP, São Paulo, SP, Brasil Érica Lui Reinhardt – Fundacentro, São Paulo, SP, Brasil Eugênio Paceli Hatem Diniz – Fundacentro, Belo Horizonte, MG, Brasil Fabiana Caetano Martins Silva e Dutra – UFTM, Uberaba, MG, Brasil Fabiola Zioni – USP, São Paulo, SP, Brasil Flora Maria Gomide Vezzá – USP, São Paulo, SP, Brasil Francisco José da Costa Alves – UFSCAR, São Carlos, SP, Brasil Francisco de Paula Antunes Lima – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil Frida Marina Fischer – USP, São Paulo, SP, Brasil Geraldo de Albuquerque Maranhão – Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO, Niterói, RJ, Brasil Geraldo Lorenzi Filho – USP, São Paulo, SP, Brasil Heleno Rodrigues Corrêa Filho – Unicamp, Campinas, SP, Brasil Jandira Maciel da Silva – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil José Augusto Pina – FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil José Manoel Bertolote – Unesp, Botucatu, SP, Brasil José Roberto Montes Heloani – UNICAMP, Campinas, SP, Brasil Jussara Maria Rosa Mendes – UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil Leda Leal Ferreira – Fundacentro, São Paulo, SP, Brasil Leila Amaral Gontijo – UFSC, Florianópolis, SC, Brasil Liliana Rolfsen Petrilli Segnini – UNICAMP, Campinas, SP, Brasil Luciana Maria Maia Viana – Unifor, Fortaleza, CE, Brasil Luís Sá – UCP, Porto, Portugual Luiz Gonzaga Chiavegato Filho – UFSJ, São João Del Rei, MG, Brasil Luzia Márcia Romanholi Passos – USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil Lys Esther Rocha – USP, São Paulo, SP, Brasil Marcia Elena Rodrigues Gravina – Caixa Econômica Federal, São Paulo, SP, Brasil Marcia Faria Westphal – USP, São Paulo, SP, Brasil Marcus Alessandro de Alcântara – UFVJM, Diamantina, MG, Brasil Margarida Maria Silveira Barreto – FCMSC, São Paulo, SP, Brasil Maria Aparecida da Cruz Bridi – UFPR, Curitiba, PR, Brasil Maria Cecília Pereira Binder – Unesp, Botucatu, SP, Brasil Maria da Graça Corrêa Jacques – UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil Maria das Graças Barbosa Moulin – UFES, Vitória, ES, Brasil Maria de Jesus Mendes da Fonseca – Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Maria Dionísia do Amaral Dias – Unesp, Botucatu, SP, Brasil Maria Elizabeth Antunes Lima – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil Maria Inês Monteiro – Unicamp, Campinas, SP, Brasil Martha Suely Itaparica de Carvalho – UFBA, Salvador, BA, Brasil Milton Raimundo Cidreira de Athayde – UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Mônica Moura da Costa e Silva – EBMSP, Salvador, BA, Brasil Norma Suely Souto Souza – INSS, Salvador, Bahia, BA, Brasil Odaleia Barbosa de Aguiar – UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Paulo Gilvane Lopes Pena – UFBA, Salvador, BA, Brasil Paulo José Adissi – UFPB, João Pessoa, PB, Brasil Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel – Unifor, Fortaleza, CE, Brasil René Mendes – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil Rita de Cassia Bessa dos Santos – PMSP, São Paulo, SP, Brasil Roberta Carolina Ferreira – Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Rosemeire Aparecida Scopinho – UFSCAR, São Carlos, SP, Brasil Sacha Darke – University of Westminster, Londres, Inglaterra Selma Borghi Venco – Unicamp, Campinas, SP, Brasil Selma Lancman – USP, São Paulo, SP, Brasil Selma Maffei de Andrade – UEL, Londrina, PR, Brasil Sílvia Rodrigues Jardim – UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil Tereza Glaucia Rocha Matos – Unifor, Fortaleza, CE, Brasil Thaís Helena de Carvalho Barreira – Fundacentro, São Paulo, SP, Brasil Valquiria Padilha – USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil Wanderlei Antonio Pignati – UFMT, Cuiabá, MT, Brasil Normas para publicação Instruções aos autores Escopo e política A RBSO publica artigos originais inéditos de relevância científica no campo da SST. Com caráter multidisciplinar, a revista cobre os vários aspectos da SST nos diversos setores econômicos do mundo do trabalho, formal e informal: relação saúde-trabalho; aspectos conceituais e análises de acidentes do trabalho; análise de riscos, gestão de riscos e sistemas de gestão em SST; epidemiologia, etiologia e nexo causal das doenças do trabalho; exposição a substâncias químicas e toxicologia; relação entre saúde dos trabalhadores e meio ambiente; educação e ensino em SST; comportamento no trabalho e suas dimensões fisiológicas, psicológicas e sociais; saúde mental e trabalho; problemas musculoesqueléticos, distúrbios do comportamento e suas associações aos aspectos organizacionais e à reestruturação produtiva; estudo das profissões e das práticas profissionais em SST; organização dos serviços de saúde e segurança no trabalho nas empresas e no sistema público; regulamentação, legislação, inspeção do trabalho; aspectos sociais, organizacionais e políticos da saúde e segurança no trabalho, entre outros. As opiniões emitidas pelos autores são de sua inteira responsabilidade. A publicação de artigos que trazem resultados de pesquisas envolvendo seres humanos está condicionada ao cumprimento de princípios éticos e ao atendimento das legislações pertinentes a esse tipo de pesquisa no país em que foi realizada. Para os trabalhos realizados no Brasil, será exigida informação acerca de aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa. As informações deverão constar no conteúdo do manuscrito e na página de rosto. A RBSO apoia as políticas para registro de ensaios clínicos da Organização Mundial da Saúde – OMS (http://www.who.int/ictrp/en/) e do International Committee of Medical Journal Editors – ICMJE (http://www.wame.org/about/ policy-statements#Trial) e (http://www.icmje.org/about-icmje/faqs/clinicaltrials-registration/), reconhecendo a importância dessas iniciativas para o registro e divulgação internacional de informação sobre estudos clínicos, em acesso aberto. Sendo assim, somente serão aceitos para publicação os artigos de pesquisas clínicas que tenham recebido um número de identificação em um dos Registros de Ensaios Clínicos, validados pelos critérios estabelecidos pela OMS e ICMJE, cujos endereços estão disponíveis no site do ICMJE: http:// www.icmje.org/about-icmje/faqs/clinical-trials-registration/. O número de identificação deverá ser registrado ao final do resumo. Conflitos de interesses Autores, revisores e editores devem explicitar possíveis conflitos de interesses, evidentes ou não, relacionados à elaboração ou avaliação de um manuscrito submetido. Os conflitos podem ser de ordem financeira/comercial, acadêmica, política ou pessoal. Todas as formas de apoio e financiamento à execução do trabalho apresentado pelo manuscrito submetido devem ser explicitadas pelos autores. O revisor/avaliador também deve apresentar à editoria da revista eventuais conflitos de interesses que possam influenciar a sua análise ou opinião e manifestar, quando for o caso, a impropriedade ou inadequação de sua participação como revisor de um determinado manuscrito. Processo de julgamento dos manuscritos Os trabalhos submetidos em acordo com as normas de publicação e com a política editorial da RBSO serão avaliados pelo Editor Científico que considerará o mérito da contribuição. Não atendendo, o trabalho será recusado. Atendendo, será encaminhado a consultores ad hoc. Cada trabalho será avaliado por, ao menos, dois consultores de reconhecida competência na temática abordada. O processo de avaliação se dará com base no anonimato entre as partes (consultor-autor). Com base nos pareceres emitidos pelos consultores e avaliações realizadas por editores associados, o Editor Científico decidirá quanto à aceitação do trabalho, indicando, quando necessário, que os autores efetuem alterações no mesmo, o que será imprescindível para a sua aprovação. Nestes casos, o não cumprimento dos prazos estabelecidos para as alterações poderá implicar na recusa do trabalho. A recusa de um trabalho pode ocorrer em qualquer momento do processo, a critério do Editor Científico, quando será emitida justificativa ao autor. A secretaria da revista não se obriga a devolver os originais dos trabalhos que não forem publicados. Declaração de responsabilidade e direitos autorais A submissão de trabalhos deve ser acompanhada da “Declaração de responsabilidade e de cessão de direitos autorais”, disponível em: http://www. fundacentro.gov.br/rbso/envio-de-manuscritos . Todos os autores deverão assinar a declaração, que deverá ser encaminhada à secretaria da revista via correio. É de responsabilidade do(s) autor(es) a obtenção de autorizações, junto a pessoas, instituições, outros autores e editores, referentes a direitos autorais para uso de imagens, figuras, tabelas, métodos e outros elementos que as necessitem e/ou que tenham sido anteriormente publicados. Forma e preparação dos manuscritos Modalidades de contribuições Artigo: contribuição destinada a divulgar resultados de pesquisa de natureza empírica, experimental ou conceitual (até 56.000 caracteres, incluindo espaços e excluindo títulos, resumo, abstract, tabelas, figuras e referências). Revisão: avaliação crítica sistematizada da literatura sobre determinado assunto; deve-se citar o objetivo da revisão, especificar (em métodos) os critérios de busca na literatura e o universo pesquisado, discutir os resultados obtidos e sugerir estudos no sentido de preencher lacunas do conhecimento atual (até 56.000 caracteres, incluindo espaços e excluindo títulos, resumo, abstract, tabelas, figuras e referências). Ensaio: reflexão circunstanciada, com redação adequada ao escopo de uma publicação científica, com maior liberdade por parte do autor para defender determinada posição, que vise a aprofundar a discussão ou que apresente nova contribuição/abordagem a respeito de tema relevante (até 56.000 caracteres, incluindo espaços e excluindo títulos, resumo, abstract, tabelas, figuras e referências). Relato de experiência: relato de caso original de intervenção ou de experiência bem sucedida; deve indicar uma experiência inovadora, com impactos importantes e que mostre possibilidade de reprodutibilidade. O manuscrito deve explicitar a caracterização do problema e a descrição do caso de forma sintética e objetiva; apresentar e discutir seus resultados, podendo, também, sugerir recomendações; deve apresentar redação adequada ao escopo de uma publicação científica, abordar a metodologia empregada para a execução do caso relatado e para a avaliação dos seus resultados, assim como referências bibliográficas pertinentes (até 56.000 caracteres, incluindo espaços, excluindo títulos, resumo, abstract, tabelas, figuras e referências). Comunicação breve: relato de resultados parciais ou preliminares de pesquisas ou divulgação de resultados de estudo de pequena complexidade (até 20.000 caracteres, incluindo espaços excluindo títulos, resumo, abstract, tabelas, figuras e referências). Resenha: análise crítica sobre livro publicado nos últimos dois anos (até 11.200 caracteres, incluindo espaços). Carta: texto que visa a discutir artigo recente publicado na revista (até 5.600 caracteres, incluindo espaços). Preparo dos trabalhos Serão aceitas contribuições originais em português ou espanhol. A correção gramatical é de responsabilidade do(s) autor(es). O texto deverá ser elaborado empregando fonte Times New Roman, tamanho 12, em folha de papel branco, com margens laterais de 3 cm e espaço simples e devem conter: Página de rosto (todos os itens devem ser informados; a página de rosto deverá ser encaminhada separada do manuscrito) a) Modalidade do trabalho (ver definições acima e observar limites de caracteres). b) Título na língua principal (português ou espanhol) e em inglês. Deve ser pertinente, completo e sintético. Deve incluir informação geográfica (localidade) e temporal (período de realização do estudo), quando apropriado. c) Nome e sobrenome completo de cada autor. d) Informar a afiliação institucional completa de cada autor, incluindo cidade, estado e país (refere-se ao vínculo profissional/acadêmico do autor e não à sua formação). e) Contribuições de autoria - a contribuição de cada autor deve ser declarada. De acordo com a recomendação do International Committee of Medical Journal Editors, o critério de autoria de artigos deve necessariamente atender simultaneamente às seguintes condições: 1. Contribuição substancial no projeto e delineamento, no levantamento de dados ou na sua análise e interpretação; 2. elaboração do manuscrito ou contribuição importante na sua revisão crítica; 3. aprovação final da versão a ser publicada. Obtenção de financiamento, coleta de dados ou apenas supervisão geral do grupo de pesquisa não constituem autoria. Todas as pessoas designadas como autores devem atender aos critérios de autoria e todos que atendem aos critérios devem ser designados como autores. Cada autor deve ter participado suficientemente no trabalho para assumir a responsabilidade pública por seu conteúdo. Os colaboradores que não atendem a todos os critérios de autoria devem ser citados nos agradecimentos. f) Nome, endereço, telefone e endereço eletrônico do autor de contato, para troca de correspondência com a secretaria/editoria da RBSO. g) Nome de um dos autores, com respectivo endereço postal e endereço eletrônico, para publicação no artigo como forma de contato com os autores. h) Informar se o trabalho foi ou não subvencionado; em caso positivo, indicar o tipo de auxílio, o nome da instituição ou agência financiadora e o respectivo número do processo. i) Informar se há conflitos de interesses (ver acima). j) Informar nº de protocolo e data de aprovação do estudo por Comitê de Ética em Pesquisa. Caso o projeto não tenha sido submetido a comitê de ética, justificar. k) Informar se o trabalho é ou não baseado em tese; em caso positivo, indicar título, ano de defesa e instituição onde foi apresentada. l) Informar se o trabalho foi ou não apresentado em reunião científica; em caso positivo, indicar o nome do evento, local, data da realização e se foi publicado nos anais na forma de resumo ou integral. SILVA; ALMEIDA, 2004, p. 24). Ex.3, quando houver quatro ou mais autores - (FONSECA et al., 2003, p. 41). As citações diretas de até três linhas devem estar contidas entre aspas duplas, conforme o Ex.1 acima. As citações diretas com mais de três linhas devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, com fonte menor que a utilizada no texto e sem aspas - Ex: A teleconferência permite ao indivíduo participar de um encontro nacional sem a necessidade de deixar seu local de origem. Tipos comuns de teleconferência incluem o uso da televisão, telefone e computador... (NICHOLS, 1993, p. 181). g) A exatidão das referências constantes da listagem e a correta citação no texto são de responsabilidade do(s) autor(es) do trabalho. As citações deverão ser listadas nas referências ao final do artigo, que devem ser em ordem alfabética e organizadas com base na norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) NBR 6023, versão de 2002. Os exemplos apresentados a seguir têm um caráter apenas de orientação e foram elaborados de acordo com essa norma: Livro WALDVOGEL, B. C. Acidentes do trabalho: os casos fatais – a questão da identificação e da mensuração. Belo Horizonte: Segrac, 2002. Capítulo de livro NORWOOD, S. Chemical cartridge respirators and gasmasks. In: CRAIG, E. C.; BIRKNER, L. R.; BROSSEAU, L. Respiratory protection: a manual and guideline. 2. ed. Ohio: American Industrial Hygiene Association, 1991. p. 40-60. Artigos de periódicos BAKER, L.; KRUEGER, A.B. Medical cost in workers compensation insurance. Journal of Health Economics, Netherlands, v. 14, n. 15, p. 531-549, 1995. GLINA, D. M. R. et al. Saúde mental e trabalho: uma reflexão sobre o nexo com o trabalho e o diagnóstico, com base na prática. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 607-616, maio/jun. 2001. Artigo ou matéria de revista, jornal etc. NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 jun. 1989. Folha Turismo, Caderno 8, p. 13. Tese, dissertação ou monografia m) Local e data do envio do artigo. SILVA, E. P. Condições de saúde ocupacional dos lixeiros de São Paulo. 1973. 89 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Ambiental)–Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1973. Corpo do texto Evento como um todo a) Título no idioma principal (português ou espanhol) e em inglês. SEMINÁRIO PROMOÇÃO DA SAÚDE AUDITIVA: ENFOQUE AMBIENTAL, 2., 2002, Curitiba. Anais... Curitiba: Universidade Tuiuti do Paraná, 2002. b) Resumo: Os manuscritos devem ter resumo no idioma principal (português ou espanhol) e em inglês, com um máximo de 1400 caracteres cada, incluindo espaços. c) Palavras-chaves/descritores: Mínimo de três e máximo de cinco, apresentados na língua principal (português ou espanhol) e em inglês. Sugere-se aos autores que utilizem o vocabulário controlado DeCS (http://decs.bvs.br) adotado pela LILACS. d) O desenvolvimento do texto deve atender às formas convencionais de redação de artigos científicos. e) Solicita-se evitar identificar no corpo do texto a instituição e/ou departamento responsável pelo estudo para dificultar a identificação de autores e/ou grupos de pesquisa no processo de avaliação por pares. f) Citações: A revista se baseia na norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) NBR 10520, versão de 2002. As citações entre parênteses devem ser feitas em caixa alta (maiúsculas) e fora de parênteses em caixa baixa (minúsculas). As citações indiretas ao longo do texto devem trazer o sobrenome do autor e ano da publicação, como em Souza (1998) ou (SOUZA, 1998). Para dois autores: Lima e Araújo (2006) ou (LIMA; ARAÚJO, 2006). Quando houver três autores: Vilela, Iguti e Almeida (2004) ou (VILELA; IGUTI; ALMEIDA, 2004). No caso de citações com mais de três autores, somente o sobrenome do primeiro autor deverá aparecer, acrescido de et al., como em Silva et al. (2000) ou (SILVA et al., 2000). Tratando-se de citação direta (literal), o autor deverá indicar o(s) número(s) da(s) página(s) de onde o texto citado foi transcrito, como nos exemplos a seguir: Ex.1- ... conforme descrito por Ali (2001, p. 17): “Grande número dessas dermatoses não chegam às estatísticas e sequer são atendidas no próprio ambulatório da empresa”. Ex.2- (SOUZA; Resumo ou trabalho apresentado em congresso FISCHER, R. M.; PIRES, J. T.; FEDATO, C. The strengthening of the participatory democracy. In: INTERNATIONAL CONFERENCE OF INTERNATIONAL SOCIETY FOR THIRD-SECTOR RESEARCH (ISTR), 6., 2004, Toronto. Proceedings... Toronto: Ryerson University, 2004. v. 1, p. 1. Relatório FUNDAÇÃO JORGE DUPRAT FIGUEIREDO DE SEGURANÇA E MEDICINA DO TRABALHO. Relatório de Gestão 1995-2002. São Paulo, 2003. 97p. Relatório técnico ARCURI, A. S. A.; NETO KULCSAR, F. Relatório Técnico da avaliação qualitativa dos laboratórios do Departamento de Morfologia do Instituto de Biociências da UNESP. São Paulo. Fundacentro. 1995. 11p. CD-ROM SOUZA, J. C. et al. Tendência genética do peso ao desmame de bezerros da raça nelore. In: REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ZOOTECNIA, 35, 1998, Botucatu. Anais... Botucatu: UNESP, 1998. 1 CD-ROM. MORFOLOGIA dos artrópodes. In: ENCICLOPÉDIA multimídia dos seres vivos. [S.l.]: Planeta DeAgostini, 1998. CD-ROM 9. Fita de vídeo CENAS da indústria de galvanoplastia. São Paulo: Fundacentro, 1997. 1 videocassete (20 min), VHS/NTSC., son., color. Documento em meio eletrônico BIRDS from Amapá: banco de dados. Disponível em: <http://www.bdt.org>. Acesso em: 28 nov. 1998. ANDREOTTI, M. et al. Ocupação e câncer da cavidade oral e orofaringe. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, 2006. Disponível em: <http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci _arttext&pid=S0102--311X2006000300009 &lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 15 abr. 2006. Legislação BRASIL. Lei nº 9.887, de 7 de dezembro de 1999. Altera a legislação tributária federal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 8 dez. 1999. Constituição Federal BRASIL. Constituição (1988). Texto consolidado até a Emenda Constitucional nº 52 de 08 de março de 2006. Brasília, DF, Senado, 1988. Decretos SÃO PAULO (Estado). Decreto nº 48.822, de 20 de janeiro de 1988. Lex: Coletânea de Legislação e Jurisprudência, São Paulo, v. 63, n. 3, p. 217-220, 1998. h) Tabelas, quadros e figuras: Serão publicadas em Preto e Branco. Devem ser apresentados um a um, em folhas separadas, numerados consecutivamente com algarismos arábicos, na ordem em que forem citados no texto. A cada um deve ser atribuído um título sintético contextualizando os dados apresentados. Nas tabelas o título deve ser posicionado acima do corpo principal. Nas fotos e ilustrações, o título deve ser posicionado abaixo do corpo principal. Nas tabelas não devem ser utilizadas linhas verticais. Fontes, notas e observações referentes ao conteúdo das tabelas, quadros e figuras devem ser apresentadas abaixo do corpo principal das mesmas. As figuras (gráficos, fotos, esquemas etc.) também deverão ser apresentadas, uma a uma, em arquivos separados, em formato de arquivo eletrônico para impressão de alta qualidade (não encaminhar em arquivo Word, extensão .doc). Os gráficos devem ser executados no software Excel (extensão .xls) e enviados no arquivo original. Fotos e ilustrações devem apresentar alta resolução de imagem, não inferior a 300 dpi. As fotos devem apresentar extensão .jpg ou .eps ou .tiff . Ilustrações devem ser executadas no software Coreldraw, versão 10 ou anterior (extensão .cdr) ou Ilustrator CS2 (extensão .ai), sendo enviadas no arquivo original. A publicação de fotos e ilustrações estará sujeita à avaliação da qualidade para publicação. As figuras não devem repetir os dados das tabelas. O número total de tabelas, quadros e figuras não deverá ultrapassar 5 (cinco) no seu conjunto. Resumo de informações sobre figura: tabelas, quadros, diagramas, esquemas Word (.doc) gráficos Excel (.xls) fotografias .jpg ou .tiff ou .eps (300 DPIs mínimo de resolução) ilustrações (desenhos) Corel Draw (.cdr), versão 10 ou menor ou Illustrator CS5 (.ai) i) Agradecimentos (opcional): Podem constar agradecimentos por contribuições de pessoas que prestaram colaboração intelectual ao trabalho, com assessoria científica, revisão crítica da pesquisa, coleta de dados, entre outras, mas que não preenchem os requisitos para participar da autoria, desde que haja permissão expressa dos nominados. Também podem constar desta parte agradecimentos a instituições pelo apoio econômico, material ou outro. Envio de manuscrito Os trabalhos devem ser encaminhados para o endereço eletrônico rbso@ fundacentro.gov.br, com cóipia para [email protected], em formato Word, extensão .doc (ver detalhes nas normas para publicações). Eventuais esclarecimentos poderão ser feitos por e-mail (endereços acima), pelo telefone (55) 11 3066.6099 ou pelo fax (55) 11 3066.6060. Declaração de responsabilidade e cessão de direitos autorais: O formulário da declaração pode ser baixado de: http://www.fundacentro.gov.br/rbso/envio-de-manuscritos O envio da “Declaração de responsabilidade e cessão de direitos autorais” deverá ser feito pelo correio para: RBSO – Revista Brasileiro de Saúde Ocupacional Fundacentro Rua Capote Valente, 710 05409-002 • São Paulo/SP Brasil Sobre a publicação: Composta em ZapfEllipt BT 9/16 (artigos) e Ogirema 8,5/7 (tabelas, normas e créditos). Impressa em papel Cartão Supremo 250g/m2 (capa) e Offset reciclado 90 g/m2 (miolo), no formato 21x28cm. Tiragem: 1.500 exemplares REVISTA BRASILEIRA DE SAÚDE OCUPACIONAL - VOL. 39 N° 130 - FUNDACENTRO Vol.39 • nº 130 jul/dez 2014