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Literatura Brasileira de Expressão Alemã
www.martiusstaden.org.br
PROJETO DE PESQUISA COLETIVA
Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa
MARIA KAHLE
1891-1975
(Priscilla Lopes D´El Rei)
2013
A Madona negra*
Maria Kahle
“Deus teve compaixão com o „povo preto‟1, com o nosso povo
preto!” disse a negra2 Filoteia ao seu primo Floriano. “Por isso, Ele
deixou a Nossa Senhora negra revelar-se.”
Os dois tinham-se encontrado durante a peregrinação a
Aparecida e estavam felizes por poderem percorrer juntos o caminho
que
leva
à
igreja
das
graças,
e,
assim,
conversarem
despreocupadamente. Floriano, que trabalhava como condutor de
bondes no Rio, fazia essa peregrinação pela primeira vez. Durante a
*
Tradução de Priscilla Lopes D´El Rei. Revisão de Celeste Ribeiro de Sousa. Kahle,
Maria. Die schwarze Madonna. In: Kahle, Maria. Das Verlorene Paradies. Legenden
und Erzählungen. Emsdetten/Westf., Verlag Lechte, 1960, p. 38-42.
OBS. O escritor morreu sem deixar herdeiros. Apesar dos esforços, não se sabe
quem são os depositários dos direitos autorais. Quem puder ajudar, entre em
contato com Priscilla Lopes D´El Rei.
As aspas simples servem para assinalar expressões ou vocábulos usados em
português no original alemão.
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Maria Kahle optou pelo uso da palavra “Negerin”, “negra” em português, porque, à
época, a palavra não carregava o cunho pejorativo, que hoje possui. Para designar
pessoas afrodescendentes, usa-se atualmente o substantivo derivado do adjetivo
“schwarz”, “preto” em português. No Brasil, porém, deu-se o inverso, tendo ficado
a palavra “preta(o)” com a carga pejorativa, dando lugar ao uso livre do vocábulo
“negra(o)”, o que hoje também é considerado politicamente incorreto, tendo-se
substituído o termo pela designação “afrodescendente”. A tradutora optou por
manter o registro do texto original. Observação da tradutora.
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viagem de trem, ele rezava e cantava com grande devoção, e
Filoteia, por vezes, olhava-o com compaixão. Ela sabia o que o levava
a Aparecida. Desde a morte de Carlota, prima de Filoteia e esposa de
Floriano, a pequena Rozita adoecera e Floriano tinha medo, muito
medo, que sua única filha viesse a morrer.
A rechonchuda Filoteia fazia a peregrinação já pela quarta vez.
Nenhuma preocupação com um parente doente a levava ao local das
graças, já que vivia sozinha; seus pais haviam falecido há muito
tempo. Mas desde os seus 30 anos, a cada peregrinação, ela
empenhava aos pés da Madona negra a mesma devoção. Sua
„patroa‟, a bondosa dona Esmeralda, brincava frequentemente com
sua cozinheira Filoteia e dizia: “Você acha que eu não saberia, por
que você reza tantos rosários? Por que você não quer se casar com o
nosso jardineiro Francisco? Ele está tão apaixonado por você.”
“Não, o Francisco é muito velho pra mim!” pensava Filoteia,
agora na companhia do garboso Floriano sob o calor escaldante do
meio-dia. Ela sentia-se abafada apesar do vestido leve de verão, e
também Floriano, parado, passava as mangas do terno branco de
algodão por sobre a testa negra molhada de suor, enquanto
perguntava: “Um cafezinho, prima, isso com certeza a gente pode
desfrutar?”
“Durante a peregrinação? O que irá Nossa Senhora pensar de
nós, Floriano! Não, jejum e oração até descermos novamente a
grande escadaria de Aparecida. Então, festejaremos a nossa visita a
Nossa Senhora. Eu trouxe uma galinha assada e pão de trigo, e
minha patroa deu-me uma garrafinha de pinga. Vou dividir tudo com
você Floriano, -- depois.”
Ela tirou da bolsa um véu branco de tule e cobriu seu cabelo
crespo curto, pois não queria adentrar o templo sagrado de Nossa
Senhora de cabeça descoberta. A meia voz, deu início a uma
ladainha. Floriano murmurou-lhe “peça por nós!” Para ele, tudo era
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tão insólito! Mas ele acomodava-se à situação e pensava maravilhado
em como sua prima era esperta e devotada.
Num certo momento, logo depois da ladainha, ele fez a
pergunta, que já há muito tempo guardava no coração: “De onde
veio essa Nossa Senhora? Você sabe, Filoteia?”
“Minha avó me contou essa história diversas vezes, sim. Ela
ainda era escrava em uma fazenda de café e, naquela época, todos
os negros eram escravos no Brasil. A pele negra era desprezada.
Assim, muitos escravos suplicavam a Deus por um sinal, mas não
recebiam nenhum.
Mas, um dia, finalmente receberam um.
Aqui, onde se ergue agora a grande igreja das graças, havia,
naquela época, uma fazenda à beira do rio. O „patrão' era um senhor
muito rigoroso, um homem mau. E, em um dia de manhãzinha,
quando as escravas lavavam roupa nas águas do rio, a imagem da
Nossa Senhora veio flutuando, trazida pelas ondas. E, de repente,
estava ali, uma escrava segurou-a nas mãos e gritou: “Ah, Ah, ai,
vejam aqui, o que é isto? Uma Nossa Senhora, mas o seu rosto é
negro, negras são suas mãos, ai, uma coroa dourada cingi-lhe os
cabelos e o manto azul é debruado a ouro puro!” Aí, correram todas
para lá e ficaram maravilhadas. Todavia, não se atreviam a dirigir-se
ao patrão. Foi o velho escravo Anselmo quem tomou coragem,
correu até o seu Senhor e exclamou: “„Patrão‟, um milagre! Uma
Nossa Senhora veio do céu, e ela é negra como nós!”
O Senhor ficou furioso, arrancou-lhe a imagem da mão,
contemplou-a e disse: “Seu „burro‟, seu burro, ela é talhada em
madeira negra, por isso, ela é tão escura”. E, em seguida, jogou a
imagem no rio. As águas voltaram a acolhê-la.
Mas, na manhã seguinte, a Madona encontrava-se, de novo, na
margem do rio. Todos os que a viram tremeram diante do milagre, e
um grande alvoroço e imenso falatório tomou corpo. O capataz,
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ouvindo a gritaria, chegou com o chicote, afastou o povo preto e
jogou fora a imagem, lançando-a ao rio, o mais longe que pode.
Ainda não era noite, quando as ondas trouxeram a Madona, de
novo, de volta à margem. O velho Anselmo foi o primeiro a avistá-la.
Ajoelhou-se, lavou as mãos nas águas do rio para poder tocar a
santa, e, em seguida, levou-a para o padre. Este já ouvira falar do
milagre e também ele se ajoelhou ao ver a Nossa Senhora,
acrescentando: “Anselmo, ela permanecerá aqui na minha igreja. Eu
a colocarei sobre o altar, e ninguém poderá tirá-la de lá!”
Nessa noite, o padre teve um sonho. A Mãe Santa estava em pé
à sua frente, com a coroa sobre os cabelos negros, e dizia-lhe:
“Padre, lá à margem do rio, onde eu apareci ao meu povo, construame um santuário. Lá, haverei de distribuir bênçãos.”
As terras à margem do rio pertenciam ao malvado senhor, que
tinha apenas um filho, um menino, a quem muito amava. Nessa
noite, em que a Nossa Senhora falou ao padre, o menino adoeceu
com febres terríveis, e em seus delírios febris gritava sempre:
“Construa uma igreja para Nossa Senhora, „papai‟! Só ela poderá me
ajudar!” E, porque o filho estivesse à beira da morte, o patrão, por
necessidade, prometeu doar as terras à margem do rio, e, sim, ele
próprio
construiria
uma
igreja
para
Nossa
Senhora.
E
assim
aconteceu.
Agora, você também já sabe, Floriano, por que se apela a
Nossa Senhora, quando uma criança adoece. Agora, você também
sabe, por que essa é a nossa mãe, a mãe do povo preto!”
Floriano orou tão fervorosamente em Aparecida como nunca
antes em sua vida. Porém, ao descer a grande escadaria, alguns
pensamentos mundanos imiscuíram-se inesperada e sorrateiramente
em seu coração. Será que foi a Grande Mãe, que lhe enviou esses
pensamentos? Floriano pensou: Se a prima, bondosa e esperta,
viesse morar comigo e cuidasse da Rozita como uma „mamãe‟, será
que minha filha não ficaria logo boa? Talvez Rozita só esteja doente,
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porque fica muito sozinha, sempre que estou no trabalho; falta-lhe
amor de mãe.
“Mas que cozinheira talentosa você é!” disse ele, mais tarde,
quando comiam a galinha assada. Filoteia ria, dando-lhe os pedaços
mais crocantes. “Como você fica bonita, quando ri, Filoteia!”
Quando, já tarde da noite, chegaram ao Rio, Filoteia caiu nos
braços de Floriano. “Em dois meses realiza-se o casamento!” pedira
Floriano, ao que a noiva retrucou: “Esperemos até o dia em que
Nossa Senhora apareceu em Aparecida. Mas, amanhã, eu já irei até
sua casa para ver Rozita. Ela é agora minha filha. Nossa Grande Mãe
irá ajudar-me, com certeza, a tratar de Rozita.”