O brincar-musical no cotidiano dos bebês
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O brincar-musical no cotidiano dos bebês
O brincar-musical no cotidiano dos bebês EIXO 4 - Práticas Pedagógicas, Culturas Infantis e Produção Cultural para crianças pequenas Aruna Noal Correa1 O presente artigo é proveniente de pesquisa 2 de doutorado desenvolvida através do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul pela linha de pesquisa de Estudos sobre Infâncias. A mesma encontra-se em fase de coleta dos dados e análise inicial, e visa cunhar o termo brincar-musical com bebês entre quatro meses e um ano e meio de idade, tratando de compreender como acontece cotidianamente este brincar-musical das crianças bem pequenas nos espaços de berçário de uma instituição pública no interior do Rio Grande do Sul. Tendo em vista, as modificações provenientes da Lei 11.769 de 2008 para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no que diz respeito ao trabalho com Arte nos espaços da educação básica de nosso país. Estas modificações estão relacionadas em específico a área de educação musical, que vem transformando seu reconhecimento nos espaços educativos e sociais do Brasil. Nessa direção, precisamos: tecer considerações acerca da importância da educação musical [refletindo] em primeira instância, sobre a própria “ideia de música”, ou melhor, sobre “ideias de música”: sobre as concepções vigentes, bem como, sobre as transformações que emergiram em tempos e espaços diversos, já que o ser humano faz música e reflete sobre tal fazer desde épocas muito remotas (BRITO, 2010, p. 189). Perdemos em nosso país, ainda nos tempos de ditadura, o contato com uma cultura musical pensada para e com as crianças nos espaços escolares. Tudo que possuímos hoje são relatos de como a música perpassa outras disciplinas ou momentos específicos do cotidiano da escola de educação infantil de maneira corriqueira. Mas questiono-me sobre a produção sonora das crianças e aqueles momentos em que as professoras estão fazendo música ou explorando sonora ou ritmicamente alguma situação sem compreender o quanto está se inserindo também nesta área do conhecimento em conjunto com as crianças bem pequenas. 1 Pedagoga, Mestre em Educação pelo PPGE/CE/UFSM e acadêmica do Doutorado em Educação pelo PPGEdu/FACED/UFRGS. [email protected]. 2 Órgão Financiador: CAPES/DS. O cotidiano da escola de educação infantil e a atuação das professoras pedagogas está intimamente conectado a explorações sonoras. Os bebês seja individualmente, entre eles ou com os adultos são sonoros constantemente. Suas buscas, suas explorações, estão voltadas a experimentações ligadas ao oral, a produção de sons com objetos, instrumentos e materiais, que em geral estão ao seu alcance neste ambiente/espaço de trocas consigo e com o outro. É com esta compreensão mais geral sobre música e um olhar de pedagoga, que resgato nestas poucas linhas uma preocupação com as reflexões sobre como trabalhar com música com as crianças bem pequenas, que percebem o mundo que a cerca de uma perspectiva mais ampla, mais transparente do que a dos adultos. Precisamos compreender primeiro o olhar da criança para o que é sonoro, perceber como acontecem suas experimentações cotidianas, e como torna-se possível este brincar-musical dos bem pequenos. A pesquisa que permite estes questionamentos vem se delineando desde o mestrado, pois já em 2007 ouvia das professoras unidocentes ou pedagogas, que não há como entrar em uma escola de educação infantil sem cantar com as crianças. Desde então isto tornou-se eco em minhas reflexões, pois questiono como isso acontece, como nós pedagogos compreendemos que é momento de cantar com as crianças e mais ainda, com os bebês. Pode-se mencionar instinto, mas é importante pensar no que permeia a vontade ou o impulso de cantar nos momentos em que estamos junto aos bem pequenos. Questões que sugerem uma busca por compreender como é o cotidiano sonoromusical com uma turma de berçário nos espaços de educação pública em nosso país. Espaço este, do bebê, do professor e do conhecimento. Público, porque as experiências musicais que em geral temos até então são provenientes de espaços privados e em especial, de espaços de escola de música, nos quais há o objetivo maior de formação musical, com material específico, com verbas destinadas a implementação de projetos voltados especificamente a esta área do conhecimento. E sobretudo, no qual professores, pais, crianças e comunidade em geral, buscam esta construção conjunta. Assim, a pesquisa chegou ao espaço de convívio público, da escola da infância comum a todos e gratuita em nosso país. Que pode e deve ter parâmetros semelhantes a outras instituições de ensino particulares ou àquelas que observei na Itália. Para esta pesquisa, com inserção em uma turma de berçário, o principal objetivo é compreender como acontece esse brincar-musical dos bebês de quatro meses a um ano e meio de idade no cotidiano de um berçário de creche pública no interior do estado do Rio Grande do Sul. Sobremaneira, visando acompanhar como estas descobertas e este brincar-musical são interpretados ou compreendidos pelos adultos que o cercam, como este professor identifica a motivação sonoro-musical de uma criança bem pequena, e como estes momentos são explorados. A partir de uma pesquisa intervenção longitudinal procuro captar como o brincar perpassa o musical cotidianamente nos espaços da creche, e quando as crianças bem pequenas aliam o brincar ao musical, o que e quando as professoras cantam com e para as crianças, que origem estas canções possuem, o que a música deflagra entre os bebês e quais as relações que se constroem permeadas por este brincar-musical. Tudo isto, através da inserção cotidiana com períodos intercalados de observação e períodos de intervenção com a proposta de materiais, instrumentos, objetos que proporcionem, na direção da proposta de Lóris Malaguzzi, uma intenção, seja esta a de oferecer estímulos cotidianos à curiosidade dos bebês no que se relaciona a música. Compreendendo a partir da proposta de Malaguzzi, que: Se as crianças para comunicar, para conhecer, para expressar-se, em suma no seu relacionamento com o mundo, usam não somente a linguagem verbal, mas uma infinidade de linguagens (cem linguagem, diz Malaguzzi) a escola deve então instrumentalizar, escutar e produzir uma cultura capaz de orientar, ampliar, sustentar, desenvolver com diversos instrumentos e novas competências as linguagens das crianças. (PLANILLO, 2004, p.55) A proposta da presente pesquisa de doutorado faz emergir nas crianças o sentido de exploração dos materiais. Sendo muitas destas ações, direcionadas ou organizadas anteriormente pelos próprios bebês durante os momentos de observação da pesquisa. Todas as fases da pesquisa, que duram semanalmente em geral seis a oito horas diárias junto a turma de dezessete bebês, são acompanhadas de filmagem, fotografias e um diário de campo. Num total de três meses de convivência com o grupo de bebês, vem sendo possível acompanhar as diferentes explorações, descobertas e muita intuição musical por parte das professoras pedagogas da turma. Esta incursão mais prolongada no contexto da turma de berçário I, vem gerando muitas horas de material para a pesquisa e para outras investigações futuras. Material este, focado na produção dos bebês “[...] balbuciando, tentando agarrar um chocalho, esboçando um sorriso e movimentando braços e pernas vigorosamente” (BEYER, 2005, P. 94) visa ver o bebê em sua totalidade em seus processos de construção de conhecimento nos espaços da escola da infância. Isto, em virtude de tomar como base uma proposta de trabalho musical com bebês desenvolvida até o ano de 2009 pela professora Esther Beyer. Psicóloga e educadora musical que teve sua pesquisa voltada a música para bebês no estado do Rio Grande do Sul, que refletia sobre: [...] o surgimento de novidades sonoras no processo de desenvolvimento musical do bebê [...] mesmo que [ele] não saiba ainda dizer o que sabe sobre esses sons que produz, com que objetivo sonoriza, em que etapa sonora se encontra etc. [...] não podemos abrir mão: de ouvir o bebê, de colocarmo-nos na posição de escuta e expectativa de que ele é capaz de produzir diferentes sonoridades, em situações diferentes. Isso significaria, talvez, que o olhar, a sucção da mão ou de um objeto, o movimento de braço – não necessariamente sonoros – são importantes elementos para a compreensão do balbucio musical do bebê (ibid, p. 95). Precisamos compreender que a música vai além de uma linguagem cultural, sendo observada como um fenômeno universal (PENNA, 2010, p. 22-23), passível de ser observada em diferentes culturas como a produzida pelos bebês. É possível identificar traços de musicalidade nas oralizações iniciais dos bebês. Processo esse que vai se especializando justamente por ser a música uma capacidade do ser humano, em que os processos de conhecer o mundo são permeadas por descobertas sonoras de seu entorno. No que se relaciona a este tipo de observação, Lóris Malaguzzi contemplou uma perspectiva denominada pedagogia da escuta, admitindo que falamos muito das crianças, falamos pouco com elas e muito menos as escutamos (MALAGUZZI, 1999). É imprescindível em sua perspectiva, que pratiquemos a escuta, estar atento e dar ouvidos, com todos os sentidos, a infância. Isto parte do diário, daquilo que percebemos como insciente ou como intencional no bebê. Esta, vem proporcionar ferramentas ao adulto, como o espanto, a maravilha, a reflexão e a alegria de estar com as crianças (PLANILLO, 2004 B, p. 130). Uma pedagogia da escuta além do nível da audição, que faça o ouvinte refletir, apreciar, contemplar com uma postura ética e estética. Levando-nos a questionar a maneira como as crianças elaboram seus pensamentos, desejam, etc. Uma atitude de escuta que transforma a observação, a interpretação e a aprendizagem, em vista de respeitar a cultura infantil. Na escola italiana ouve-se muito sobre a linguagem sonora, e uma das autoras que destaco com relação a proposta de um trabalho musical é Arianna Sedioli, que apresenta em uma de suas publicações um projeto desenvolvido junto a um nido, creche de zero a três anos, no qual constrói em conjunto com as crianças e a comunidade da escola uma casa de sons. Um espaço que conjuga a exigência de segurança e proteção com o desejo de explorar, de inventar, de conhecer. Um espaço que possibilita a grande riqueza de explorações tímbricas e rítmicas, que visam satisfazer a curiosidade e de exprimir criatividade musical, que partindo de diferentes atividades amplificam a sensibilidade imaginativa e interpretativa. Um lugar para a fantasia, o “maravilhamento”, onde a criança se sente envolta de uma atmosfera surpreendente. Tudo acontece através de um planejamento atento e fluido, uma experiência de aprendizagem que vai sendo internalizada pelas crianças como uma aventura cognitiva, ou uma viagem imaginária (SEDIOLI, 2009, p. 63). Neste momento, a presente pesquisa encontra-se em fase de coleta dos dados, faltando alguns dias para concluir a segunda fase de observação. Até agora foi possível encontrar muitos aspectos a serem analisados no que se relaciona a este brincar-musical dos bebês. No intenso cotidiano destas crianças bem pequenas, verifica-se que a exploração e descoberta das sonoridades permeia o todo da primeira infância e como poderíamos observar, a professora pedagoga, em geral sem formação musical ou pedagógico-musical, produz, oferece e constrói musicalmente com os bebês, mesmo sendo momentos de pura naturalidade e desprovida de intencionalidade musical. A pesquisa possui resultados parciais, que contribuem de maneira peculiar para introduzir formas de trabalhar musicalmente e instigar este brincar-musical, que a presente pesquisa busca, nos bebês. São peculiaridades que muitas vezes se repetem, como uma ação de bater os braços, de explorar o som do brinquedo ou de um objeto em diferentes superfícies da sala, o balbucio com diferentes alturas, a exploração dos materiais que estão a disposição na sala, como os móbiles sonoros que podem ser construídos pelos professores pedagogos, os instrumentos confeccionados ou originais, que provocarão cotidianamente os bebês, etc. Há uma infinidade de atividades que vão além do cantar com os bebês, como o brincar com a voz explorando timbres, alturas e intensidade, o contar uma história, porque sim, os bebês também ouvem histórias, e elas podem ser exploradas magicamente pelos sons que permeiam suas narrativas, momentos de relaxamento em que canções de ninar podem ser cantadas ou oferecidas em CD, explorando o toque, a sensibilidade, a massagem com diferentes objetos, como bolinhas, massageadores e bichinhos que tremem, brincar com o bebê sentado sobre uma bola variando com o ritmo de uma ou de várias músicas, etc. Como resultados gostaria de destacar que a pesquisa, em fase de conclusão permite ao leitor identificar maneiras de organizar uma trabalho musical com os bebês, ou ainda e simplesmente, “trocar os óculos” de quem observa os bebês, oferecendo uma visão mais ampla de pequenas inciativas para o brincar-musical. São indícios do interesse dos pequenos, e de suas necessidades também, porque explorar seu entorno faz parte de uma condição de estar no mundo. É a essência do humano, de experimentar, de organizar, de construir conhecimento em diferentes níveis e áreas. Portanto, deve-se compreender que aquela criança que já está imersa em um ambiente sonoro desde antes de seu nascimento, precisa vivenciar experiências de diferentes proporções. O olhar atento daquele que o acompanha cotidianamente constrói base para novas propostas, porque tudo parte, ou ao menos deveria partir, do interesse de quem quer conhecer, e não do que oferece ou construiu de antemão o conhecimento. Referências BEYER, Esther. Cante, bebê, que eu estou ouvindo: do surgimento do balbucio musical. In: BEYER, Esher (org.). O som e a criatividade: dimensões da experiência musical. Santa Maria: UFSM, 2005. p.93-110. BRITO, Teca A. de . Educação Musical: uma caixa de música. In: V Seminário Fala Outra Escola, 2010, Campinas. Carregando Sonhos. Campinas : GEPE/Unicamp, 2010. v. I. p. 189-198. Disponível em http-//www.fe.unicamp.br/falaoutraescola/resumos-palestrantes/TecaBrito. PENNA, Maura. Música(s) e seu ensino. Porto Alegre: Sulina, 2010. PLANILLO, Alfredo Hoyuelos. La ética en el pensamiento y obra pedagógica de Loris Malaguzzi. Barcelona: Octaedro/Rosa Sensat, 2004 B. _______. Loris Malaguzzi: biografia pedagogica. Tradução de Mara Davoli. Bolonha: Edizioni Junior SRL, 2004. SEDIOLI, Arianna. La casetta dei suoni. Ravenna: Edizioni Artebambini, 2009.