não se inventa o outro: uma leitura de imagens da

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não se inventa o outro: uma leitura de imagens da
NÃO SE INVENTA O OUTRO:
UMA LEITURA DE IMAGENS DA DIÁSPORA
Lídia Aparecida Rodrigues Silva Mello*
Professora Orientadora: Drª Rita Lenira de Freitas Bittencourt
RESUMO:
Neste artigo é desenvolvida uma reflexão teórica sobre a temática das diásporas e deslocamentos, por meio
do cinema diásporico – cinema feito por realizadores que abordam tais questões. A ênfase é no conteúdo dos
filmes do contemporâneo realizador alemão - de origem turca - Fatih Akin, buscando também perceber como
ele relaciona a literatura em seus filmes. Não irei, portanto, tecer uma ánalise cinematográfica. Estou
amparada por teorias de autores dos estudos pós-coloniais como: Eduard Said e Stuart Hall que dialogam
com a literatura; também pelo filósofo Gilles Deleuze e ainda por outros estudiosos que teorizam o assunto
em discussão.
PALAVRAS-CHAVE: Diáspora, Imagens, Literatura.
RESUMÉ:
Dans cet article, est développé une réflexion théorique sur les thèmes de la diaspora et le déplacement, à
travers le cinéma diasporique – cinéma réalisé par des cinéastes qui abordent ces questions. L'accent est mis
sur le contenu des films du realisateur allemand contemporain - d'origine turque - Fatih Akin, cherchent
aussi à comprendre comment il se rapporte à la littérature dans ses films. Je ne veux pas, par conséquent, à
tisser une analyse de films. Je suis soutenu par les auteurs des théories des études postcoloniales comme:
Eduard Said et Stuart Hall qui dialoguent avec la littérature, aussi par le philosophe Gilles Deleuze et encore,
par d'autres chercheurs qui théorisent au sujet en discussion.
MOTS-CLÉS: Diáspora, Images, Litterature.
Minha origem é turca e alemã. Nasci na Alemanha, porém estou
dividido entre as duas culturas. Cresci na Europa, mas meus pais
me inculcaram la cultura turca, que sempre ocupou um lugar
importante na minha vida. Quando criança, eu ia Turquía todo
verão com minha familia. Já que pertenço as duas culturas, me
parece lógico que meus filmes
também mostrem essa
ambivalência.1
Fatih Akin
A proposta deste trabalho é refletir a noção de diásporas, deslocamentos e seus
desdobramentos em diferentes culturas, e, mais especificamente, pensar como o chamado
*
Mestranda em Estudos de Literatura – Literatura Comparada no Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Cinema pela UNISINOS e Graduada
em Comunicação pela PUC MG. Roteirista e realizadora menor. Email: [email protected]
1
Todas as traduções das citações nesse artigo são minhas. A citação em epígrafe foi retirada do site
<http://origin.filmin.es/blog/al-otro-lado-notas-del-director-fatih-akin> Acesso em 22 outubro.2011.
cinema diaspórico - o cinema feito por diretores2 emigrados aborda tais questões em
filmes. A reflexão será teórica, trazendo o cinema como pano de fundo, minha intenção é
investigar como são abordados os temas citados acima, em filmes feitos por cineastas
diaspóricos - ou multiculturais. O foco é no contéudo temático da produção do
contemporâneo Fatih Akin3, para quem a relação entre alemães e turcos (ora tensa,ora não)
está presente na maioria de seus filmes, como ele próprio descreve na citação acima, em
epígrafe. Os recursos cinematográficos não me interessam nesse estudo. Sendo assim,
busco estabelecer um diálogo com o teórico dos Estudos pós-coloniais4 - o crítico literário
Edward Said5, com Stuart Hall6, Gilles Deleuze7, este último com sua noção de
deslocamento, territorialização e desterritorialização, e outros autores afins, que serão
citados no decorrer da tessitura desse estudo, por acreditar que existe entre eles uma forte
relação.
Não pretendo inventar o outro, mas fazer uma leitura de imagens de diásporas, de
diferentes culturas, como diria o poeta Arthur Rimbaud, Je est un´autre, “o eu, é um
outro”. Esse outro que tem seu lugar de expressão. Esse outro que existe, que não é uma
invenção, mas que deve ser levado em conta em sua alteridade, encontrando com esse
outro na sua diferença, respeitando-a. Tal questão, e os conflitos e tensões decorrentes
disso, Akin coloca em discussão nos seus filmes, em suas ficções.
2
Para fazer referência a cineasta, usarei também os termos diretor e realizador.
Filho de pais turcos Fatih Akin, nasceu em Hamburgo em 1973, onde ainda vive. É roteirista e
realizador, estudou na Escola Superior de Belas-Artes de Hamburgo. Com cerca de 40 anos esse cineasta, fez
sete filmes ficcionais de longa-metragem, que a meu ver, contém também muitos aspectos documentais (o
que para mim não é nenhum problema, pois não creio que exista fronteira entre documentário e ficção
cinematográfica), são eles traduzidos no Brasil como: Rápido e indolor (1998), Em Julho (2000), Solino
(2002), Contra a parede (2004), Do outro lado (2007), South Kitchen (2009), e um filme de longa-metragem
sobre a cena musical de Istambul Atravessando a Ponte - O Som de Istambul (2005). Tais filmes serão
abordados nesse estudo por ordem de realização/ano, exceto o último que, por ser mais ligado à música, optei
por não abordá-lo. Lembro que antes do filme longa-metragem de estreia, Fatih Akin fez cerca de 4 curtas,
que também não serão mencionados.
4
O termo Estudos Pós-Coloniais ("Post-Colonial Studies”), apresenta-se no âmbito acadêmico
internacional como um conjunto de práticas teóricas interpretativas voltadas para a diversidade cultural e
processos históricos que caracterizam as sociedades colonizadas ou que não são mais colonizadas, tendo
como tema central - a oposição e o antagonismo colonizador/colonizado.
5
Intelectual palestino (1935-2003), respeitado teórico dos estudos pós-coloniais e crítico literário, era
radicado nos EUA.
6
Nasceu em 1932, teórico dos chamados estudos pós-coloniais, é de origem jamaicana, radicado no
Reino Unido.
7
Filósofo francês que teorizou sobre literatura, cinema, etc. (1925-1990).
3
O cinema diaspórico ou multicultural é feito por realizadores que embora vivam
fora de seus países de descendência, retratam, a partir de seus pontos de vistas, questões
ligadas à suas regiões de origem, suas relações com seus ex-colonizadores. Um fato
curioso é que eles conseguem fazer isso, felizmente, com recursos financeiros dos países
que colonizaram seus lugares antepassados. É, pois, um cinema feito por cineastas
imigrantes que vivem em países colonizadores, oriundos de países que, em sua maioria,
foram colônias.
““Nos últimos anos, a noção de diáspora emergiu, nas ciências sociais e na história,
como uma chave de leitura para o processo massivo de migração de pessoas para além dos
limites de uma cultura ou nação.””(LOPES, 2007, p.1). Me interessa aqui pensar a noção
de diáspora no plano ficcional do cinema, relacionando quando possível com a realidade,
com questões culturais, sociais, históricas e políticas.
A partir da noção de diáspora proposta por Hall (2003), que define o
reconhecimento legítimo de uma diversidade e heterogeneidade cultural, necessária para
pensar uma concepção de identidade que vive com e através da diferença; me guio para
relacionar essa noção com o cinema diaspórico. Ainda segundo esse autor, cada vez mais
emergem identidades culturais não fixas, em constante processo de transição e movimento.
Tal visão possibilita compreender o deslocamento de diferentes povos, e pensar as
fronteiras para além de uma região cultural ou nação. E a condição diaspórica como
trajetória de quem teve ou tem que se dispersar pelo mundo afora em busca de uma nova
“pátria” - de uma nova vida, seja no campo da realidade ou nas histórias ficcionais, tornase importante área de reflexão.
A opção por uma leitura de imagens da diáspora por meio do cinema, além de ser
uma área de minha formação, deve-se também a fato de ser uma arte que dialoga com
diversas outras linguagens e por ter um caráter interdisciplinar - ou transdisciplinar. É bom
lembrar, que o cinema por si só não se sustenta, é incompleto e dependente, sua ligação
com outras áreas do conhecimento, se faz mais do que necessária. No caso específico desse
artigo, é muito enriquecedora a relação entre o cinema, a literatura e o campo dos estudos
culturais, o que me possibilita ampliar o conhecimento estético e também desviar quando
necessário, para outros lugares os focos da discussão.
Essa temática das diásporas foi incorporada ao cinema, criando o chamado cinema
diaspórico – aquele feito por sujeitos diaspóricos, cuja preocupação, para além da estética,
inclui as questões de identidade e hibridização cultural, tradição, migração, deslocamentos
de povos, territorialização, desterritorialização, e os conflitos internos e externos que
permeiam o exílio daqueles que, por diversas razões, deixaram suas culturas, espaços
familiares e sociais, suas regiões de origem. Essas razões podem ser de ordem econômica,
religiosa, social, cultural, política ou intelectual, como é o caso dos próprios teóricos Said
e Hall e dos realizadores aqui em estudo. O cinema diaspórico, se apropria de temas e
recursos ligados às questões antropológicas, culturais, literárias, psicológicas, filosóficas,
sociológicas, além daqueles cinematográficos.
Com relação às identidades culturais, Hall (2006), afirma que vem de algum lugar,
tem uma história e passam por constante transformação. Longe de estarem eternamente
fixas em algum passado essencializado, estão sujeitas ao jogo contínuo de história, cultura
e poder. Pensando nessas identidades, que estão em constante mudança, e que não se
prendem ao resgate de experiências comuns, de partilhamento de códigos simbólicos, de
busca das origens e semelhanças, não se dando como um substrato comum que unifica um
grupo, minha tendência é associar o cinema diaspórico, aos sujeitos diaspóricos - que não
pertencem à uma cultura isolada, uma vez que, neles, tudo é vivenciado duplamente, em
seu lugar de origem e de destino, em diferentes espaços compartilhados. São sujeitos cujas
identidades culturais só podem ser múltiplas, híbridas.
Percebo, então, que os realizadores diaspóricos - emigrados, deslocados de suas
comunidades locais, com imaginários pessoais e sociais permeados por experiências de
desterritorialização e reterritorialização8, se constituem de identidades multiculturais e
móveis, com elas e a partir delas constroem uma dramaturgia do exílio, baseada nas
histórias e narrativas que permeiam seus lugares de antes e os novos. Nas palavras do
indiano, que vive e trabalha nos Estados Unidos, o teórico Appadurai Arjun (2006),
não é possível pensar a condição de um sujeito diaspórico preso a tradições e convenções
8
Para o filósofo Gilles Deleuze no processo de desterritorialização e reterritorialização do sujeito, o
território tende a tornar-se simples solo ou suporte, um lugar de passagem, de trocas.
locais, estáveis, mas pensar tal sujeito com e em seus deslocamentos, trânsitos,
movimentos e implicações de um lugar para outro. Sem que isso seja um problema .
Para abordar a noção de território, trago aqui novamente a fala de Deleuze, na
entrevista O abecedário de Deleuze, (1989), quando afirma que não há território sem um
vetor de saída do território, e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem ao
mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte. E a
noção de
deslocamento, também segundo Deleuze (1997), como um movimento potente por
diferentes territórios, territórios como suporte, solo apenas, e não como lugar de posse dos
que habitam ou transitam. Nesse sentido, diria que povos que saíram de seus locais de
origem para viverem em outros, vão de certo modo reapropriando-se de novos hábitos
culturais sem porém anular totalmente os de antes. Há deslocamentos, partidas e chegadas,
que compartilham identidades móveis, com base num convívio acordado ou não de
tradições e costumes. O sujeito expatriado apropria-se do que o atrai e o afeta, e mesmo o
que é inerente às suas tradições e valores pode ser abandonado, substituído ou incorporado
por àqueles de suas novas e talvez provisórias regiões de vida. Nesse cenário, conflitos
interiores e exteriores explodem, o sujeito se confronta diante daquilo que deixou para trás
ou daquilo que é novo, sem que isso seja algo ruim, mas potente, enriquecedor. Diante de
tal descontinuidade, entre o que já se viveu o que se está vivendo, afirma Homi Bhabha
(1998), não se deve excluir os conflitos, antes, eles devem ser pensados como os de
culturas heterogêneas e de trânsitos dos povos deslocados.
Por meio da estética do cinema diaspórico, vem sendo retratado, em muitos filmes,
questões que envolvem diferentes regiões do mundo, como África, Índia, Canadá, USA,
Europa, alguns países árabes, o Brasil, entre outros, sejam por razões históricas ou
imperialistas. Efetivamente é a partir da década de 90, que o cinema diaspórico torna-se
conhecido, que alguns cineastas se concentraram e se dedicaram mais a fazer esse tipo de
cinema.
No Brasil, alguns cineastas contemporâneos abordaram temáticas diaspóricas:
o carioca Walter Salles e a paulista Daniela Thomas, por exemplo, diretores do filme Terra
Estrangeira (1995). Nesse filme, contam a história do personagem Paco (Fernando Alves
Pinto) – um brasileiro que parte do Brasil para Portugal, na intenção de chegar a San
Sebastian, terra de origem da sua recém falecida mãe, em busca de um retorno ao lugar de
origem da mãe – mas também de algo desconhecido, de um “novo mundo” e de uma nova
possibilidade de vida. O espectador não conclui se Paco consegue ou não chegar a San
Sebastian ou se ele toma o caminho de volta ao Brasil. Seu exílio dura pouco, mas no
desenrolar fílmico é possível perceber as agruras que a situação nele causam, e a sua
identidade múltipla, deslocada.
O também brasileiro, Karin Ainouz, que é um cineasta diaspórico por natureza filho de pai árabe com mãe cearense, viveu e ainda vive entre a Europa, o Brasil e os USA.
Em seu filme O céu de Suely (2006), nos faz ver a trajetória de Suely (Hermila Guedes),
personagem que sai do interior do Ceará rumo a São Paulo, em busca de trabalho e de uma
vida melhor. Depois de uma curta estada, desencantada e decepcionada com a metrópole,
ela resolve retornar a sua terra natal - à seu lugar de origem. De novo deslocada no seu
próprio lugar, resolve novamente partir, só que agora para Porto Alegre, outra região
distinta da sua, na expectativa que sua vida possa mais uma vez ter uma saída, um
recomeço nesse novo destino.
A razão das partidas da personagem Suely é diferente daquelas do personagem
Paco, mas o processo de desterritorializar, de romper com o território onde vive, e
reterritorializar-se, ou seja, de viver num novo território, embora tenha diversos caminhos
e percalços, diria Deleuze, é, para esses personagens uma ncessidade. Algumas coisas se
perdem outras se ganham, umas aprazíveis outras dolorosas, mas suas identidades, como é
de se esperar, vão mudando, a hibridização ocorre também ao mesmo tempo em que traços
culturais se dissolvem e outros ficam. Os conflitos culturais e identitários tomam diversas
formas: são incorporados, sofrem resistências, são negociados, podendo haver recuperação
e/ou perda de costumes. Hall (2006), nos traz a questão da identidade cultural como um
posicionamento assumido pelos indivíduos, como algo não fixo, mas com uma certa
identificação resultante de formações históricas específicas e mutáveis, que devem ser
vividas com todas suas peculiaridades. De outro modo, diria Said (1990), a identidade é
uma noção em constante refazimento, é um reinventar-se sem cessar.
Outros cineastas também realizam filmes com temáticas diaspóricas, como, por
exemplo, Tony Gatlyf, de etnia cigana e argelina, mas que vive na França, fez vários
filmes, dentre os quais Exílios (2004)9. Cito uma fala de Gatlyf:
Toda minha arte é de intervenção; não faria cinema se assim não fosse. Por
intervenção quero dizer pelo povo, pela justiça, contra a injustiça. É preciso
combater os estereótipos. Só conhecendo o povo de dentro — como eu conheço
— isso é possível10.
Mira Nair, que além de cineasta é crítica literária, uma indiana que vive nos USA,
fez vários filmes sobre a temática da emigração/imigração. Outro tema que a realizadora
aborda são os casamentos arranjados entre famílias da Índia, cujo exemplo é seu filme Um
casamento à indiana, (2001). Atom Egoyan, de origem Armena, que nasceu no Egito e
vive no Canadá, é diretor de Ararat (2002), esse seu filme retrata os trágicos eventos de
1915, que culminaram com o massacre de parte do povo armênio pelo exército turco.
Abderhamane Sissako, nasceu na África-Mauritânia e vive na França. Um de seus filmes é
À Espera da Felicidade (2002). O diretor cria em sua trama uma pluralidade de destinos do
protagonista, diante da dificuldade de ficar no seu lugar de origem e de sentir-se
estrangeiro no seu próprio país. O filme conta a história de Abdallah, um jovem de 17 anos
que ao visitar sua mãe antes de emigrar para a Europa, sente-se um estranho em sua
própria terra - Nouadhobou, uma pequena aldeia da Mauritânia. Sissako é um dos cineastas
de origem africana que tem utilizado o cinema para, através de seus filmes, questionar as
heranças do colonialismo, e romper com estereótipos.
Certamente existem tantos outros realizadores que abordam temáticas diaspóricas,
pelo mundo afora, mas, desse ponto em diante, me deterei em fazer uma leitura das
imagens de diásporas por meio do conteúdo da produção do cinema diaspórico do
realizador turco-alemão Fatih Akin, buscando perceber como ele relaciona a literatura em
seus filmes. Considerado no mundo inteiro um dos grandes nomes hoje do cinema alemão,
o diretor aborda em seus filmes, sobretudo, os conflitos de identidade entre as culturas de
seus descendentes – a Turquia e o lugar onde vive a Alemanha, e, além disso, a polêmica
9
Esse filme conta a história do músico Zano e sua namorada Naïma em viagem a Argélia, de onde os
pais deles emigraram décadas atrás. Eles atravessam com muitos obstáculos o mediterrâneo, e em busca da
descoberta de si mesmos chegam a Argélia.
10
Citação tirada do site < http://pt.wikipedia.org/wiki/Tony_Gatlif > acesso em 21 outubro. 2011 .
relação “Oriente-Ocidente”. Sobre essa última questão, a noção de que o Oriente poderia
ser lido como uma invenção do Ocidente, para legitimar a identidade eurocentrista do
Ocidente é o que defende o teórico Said em seu livro Orientalismo. De outro modo diria a
jovem escritora africana Chimamanda Adichie11, atentamos para o "o perigo de uma única
história", ou seja, para o modo como o Ocidente vê o Oriente e o modo que o Ocidente
quer que o Oriente veja a si mesmo.
O diretor Akin, em seus filmes não está preocupado em ser alemão ou turco, nem
em representar essa identidade que o Ocidente construiu do Oriente. O que o interessa é o
multiculturalismo, é a convivência respeitável entre os diferentes povos sobre os quais ele
constrói sua filmografia. Akin iniciou sua carreira como ator, na Alemanha, mas só
conseguia papéis estereotipados de turcos. Decepcionado com isso, ainda estudante da
Escola Superior de Belas-Artes de Hamburgo, resolveu escrever suas próprias histórias,
quando então fez seu filme de estreia, o longa-metragem Rápido e indolor, em 1998 . Nele,
Akin aborda a relação entre três amigos imigrantes, um turco, um sérvio e um grego, que
vivem na Alemanha. Os personagens Gabriel (Mehmet Kurtulus), Bobby (Aleksandar
Jovanovic) e Costa (Adam Bousdoukos) - imigrantes que tentam se integrar a sociedade, e,
como não conseguem, acabam vivendo no submundo do crime. Como se vê, desde início a
temática de seus filmes coloca em discussão a quase sempre paradoxal e nem sempre
tranquila convivência entre diferentes culturas. Já em sua estreia torna-se conhecido e
respeitado na Alemanha e fora de lá.
Em Julho (2000), um filme road movie, que Akin fez influenciado pelo cineasta
alemão Win Wenders, começou a ser filmado na Alemanha. O diretor foi montando uma
peregrinação dos personagens rumo a Istambul, atravessando diversos países, parando na
Hungria e na Romênia, foi rompendo com limites espaciais e étnicos. Daniel Bannier (o
turco-alemão Moritz Bleibtreu), Juli (a alemã Christiane Paul), e outro turco (Mehmet
Kurtulus) se encontram durante a travessia por acaso, e embarcam por razões distintas numa viagem de volta à terra de seus ascendentes a Turquia.
11
Em sua fala no vídeo “Chimamanda Adichie: o perigo da história única”:
<http://www.ted.com/talks/lang/por_pt/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html> Acesso
em 21 outubro .2011.
Nas tramas ficcionais de seu cinema, o cineasta Akin está sempre voltando a
Turquia.Nesse sentido, Bhabha (1998), diria que o passado torna-se parte da necessidade,
não da nostalgia, do viver. Sendo, o movimento incessante do presente necessário. Depois
de ter feito Em Julho, o diretor entregou seu roteiro para o escritor, também turco-alemão e
seu contemporâneo Selim Özdogan, para que este escrevesse um livro de mesmo nome,
inspirado no seu filme. Infelizmente esse livro não foi publicado no Brasil, e nem na
internet tive acesso a ele, para poder discutí-lo nesse artigo.
Em Solino, (2002), único filme em que Akin não aborda a cultura turca, sendo um
filme italiano, por assim dizer, já que foi quase todo filmado na Itália e com algumas cenas
numa “Alemanha italianizada’’. O realizador retratou a cultura italiana como se ele fosse
italiano, de modo respeitador e afetivo. O protagonista é descendente de italianos e faz
sucesso como diretor de cinema. A história se passa em 1964 - diferentemente de seus
outros filmes, é a única história que não se passa na contemporaneidade; tem no elenco
Antonella Attili, Gigi Savoia, Moritz Bleibtreu, Barnaby Metschurat e Christian Tasche.
No enredo, as personagens Rosa e Romano decidem abandonar o pacato vilarejo de Solino,
no sul da Itália, e viajar para Alemanha. O casal chega a Duisburg, levando seus dois filhos
Giancarlo e Gigi. Lá, abrem uma pizzaria, que se torna um sucesso, um dos filhos com
dificuldades se torna cineasta. Mas os problemas da família começam quando os filhos
crescem e se adaptam à vida no novo país, enquanto os pais se mantêm fiéis às tradições.
Akin trouxe-nos à tela, a alegria desse belo país nos transportando para lá através das
imagens, personagens e sons, destacando a nostalgia da terra natal. Durante o transcorrer
fílmico, por alguns instantes fiquei na dúvida se quem havia feito esse filme era mesmo um
realizador turco-alemão, tamanha afinidade que ele cria com o lugar e com a cultura
italiana. Akin traz também, nesse filme, as experiências do migrante e de seu
desenraizamento, ou não. E mostra ainda, que os discursos de identidade são de certo
modo ficções.
Uma questão importante a destacar no cinema de Akin, é a opção por atores de
diferentes culturas, não apenas turcos ou alemães, e a escolha por temas de interesse
pessoal, os que afetam sua vida, mas segundo ele não autobiográficos. Seus filmes
alternam entre drama e comédia.
No mais diaspórico de sua filmografia, a meu ver, o filme Contra a Parede (2004),
o cineasta em análise, aborda de forma intensa os conflitos entre culturas, extrapolando os
limites da tela e da ficção cinematográfica, uma vez que os impasses vivenciados pelos
personagens principais Sibel (Sibel Kekilli) e Cahit (Birol Unel)12 geraram polêmicas,
causaram um mal-estar nas sociedades turcas e alemãs atuais, pois a personagem Sibel,
nesse filme, e a própria atriz que a interpreta - Sibel, em sua vida real na Turquia, foi
deserdada pelos pais, pelo seu comportamento europeu13.
Tal polêmica promoveu a revisão de costumes muçulmanos principalmente pelas
gerações atuais desses países e mudou a noção de identidades fixas, através das ações e
transformações dos personagens dentro da trama fílmica e fora dela. Diga-se de passagem,
é no mínimo positivo que o cinema possa repercutir e estimular debates sobre questões
sociais latentes, discriminadas e preconcebidas pelas próprias culturas locais ou pela
cultura do “outro”. O sentimento de pertencimento ou de não pertencimento à cultura turca
ou alemã, do rompimento com as convenções e tradições é no filme provocado e revelado
pelo comportamento das personagens ao longo da narrativa, ao se “rebelarem”, ao
“descumprirem” regras convencionadas e compartilhadas na vida social desses povos – no
trânsito “Oriente-Ocidente”. As questões vividas por eles no filme são trazidas tanto de
fora para dentro, envolvendo valores coletivos, quanto de dentro para fora, focando em
valores individuais, vindo à tona estados contraditórios – entre aquilo que é compartilhado
socialmente, o que é próprio de cada indivíduo, e do vir a ser do devir humano, como diria
Deleuze.
Em seu filme Do outro lado, 2007, Fatih Akin conta a história de três famílias
turcas e alemã, diluída entre seus integrantes que vivem espalhados nesses dois países, ele
divide a narrativa fílmica como se fosse capítulos de um livro. As personagens Yeter
(Nursel Köse), uma mulher turca que reside na Alemanha e se prostitui pra ter como pagar
12
A trama do filme é a seguinte: Sibel - uma moça turca, mas “ocidentalizada’’, procura um turco (que
será Cahit) para se casar (de fachada), porque a família dela exigia que se casasse com um turco. Os dois
satisfa-zem a família, mas vivem dentro de si todos os conflitos entre a cultura ocidentalizada, dos dois, e a
turca, de suas famílias.
13
Tal fato aconteceu quando o filme foi lançado na Turquia e logo, tirado de cartaz, por afrontar os
costumes turcos. Momento em que os pais da atriz descobrem que a filha Sibel antes de fazer o filme Contra
Parede, era atriz de filmes pornô.
os estudos de sua filha, Ayten (Nurgül Yesilçay) - uma ativista política que mora em
Istambul. Nejat (Baki Davrak) - é um professor universitário e habita a Alemanha com seu
pai Ali, ambos turcos, quando Nejat vai para a Turquia, lá ele se torna dono de uma
livraria. O pai de Nejat é aposentado e inicia um romance com a prostituta Yeter. Lotte
(Patrycia Ziolkowska) - uma jovem estudante universitária alemã que vive com sua mãe
Susanne (Hanna Schygulla) na Alemanha. Lotte acaba conhecendo por acaso Ayten,
ajudando-a e por ela se apaixonando. A escolha do nome e personagem Lotte é uma
referência de Akin à personagem Lotte Buff, de Goethe, pois tanto no filme de Akin
quanto no romance Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774) de Goette, a personagem vive uma relação de amizade e de um amor, tempestuosa, embaraçosa, complicada, cheia
de obstáculos, e chega ao fim com sua própria morte, durante sua luta para proteger a
amada.14 Os destinos dessas três famílias se cruzam de uma forma dramática, forte e
inesperada. Ainda sobre esse filme numa entrevista dada em 200815, Fatih Akin declara:
“Como alemãs, Susanne e Lotte representam a União Europeia, enquanto que Ayten e
Yeter representam a Turquia. Tudo que ocorre entre elas em Do outro lado simboliza as
relações entre os dois sistemas políticos.” O que demonstra a preocupação desse diretor
sem seu filmes não apenas com questões estéticas – do cinema, e culturais, mas também
políticas, aliás nesse filme o diretor através dos personagens, expressa seu posicionamento
político. Aos 8´52” de duração Akin por meio de uma referência literária, coloca na fala de
um dos seus personagens uma citação, novamente demonstra sua leitura e interesse por
esse escritor: “Goette era contra a revolução, não por razões éticas, mas porque parecia
para ele ser algo incontrolável”.
Durante esse filme o diretor quase nos faz sentir turcos, reforça todo tempo seu
valor pela Turquia e nos faz desejar esse lugar que o Ocidente teme e até amaldiçoa,
dissolvendo assim a visão que o “Ocidente” tem do “Oriente”. Tal cineasta pensa como
Said (1990), não se pode inventar o outro, mas reconhecê-lo, acolhê-lo na sua diferença.
Outra referência de Akin à literatura, nesse filme, é a aparição em cena de um livro
de seu amigo turco-alemão Selim Özgodan, escritor diga-se de passagem que escreveu o
livro “ Em Julho”, mesmo título, do filme de tal cineasta.
14
Em outro filme de Akin do qual falarei mais à frente, ele novamente cita Goette.
Fala retirada do site: <http://www.decine21.com/Magazine/Fatih-Akin-216 > Acesso em 22
outubro.2011.
15
Em Soul Kitchen (2009), seu filme mais recente – o último, Akin conta a história do
protagonista - o grego Zinos (Adam Bousdoukos), ele namora uma alemã de família
tradicional que decide ir trabalhar em Xangai ou Shanghai. Zinos tem um restaurante num
bairro desvalorizado de Hamburgo e luta contra os mais diversos obstáculos para mantê-lo
em funcionamento. O cineasta declarou que a inspiração para realizar esse filme veio da
observação do comportamento dos clientes e funcionários de um restaurante que ele
conhece em Hamburgo, e também do livro Afrodite: Contos receitas e outros
afrodisíacos16, de Isabel Allende. Nesse filme, o realizador reflete sobre os problemas da
Alemanha como um país de imigração misturando, todavia, a relação do exótico, erótico e
com à culinária abordada no livro da Allende. Nas cenas do restaurante os clientes ao
comerem demonstram uma relação de amor e desejo muito forte pela comida, do outro
lado, o cozinheiro faz questão de preparar pratos exóticos e afrodisíacos, comida que
nomeia de “alimento para a alma” Soul Kitchen , nome que dá título ao filme. Para além
do lado cômico do filme, o cineasta traz às vistas também, no plano ficcional, a parte
trágica - o conflituoso convívio entre o povo alemão e os imigrantes “indesejáveis”, que
lutam para se estabelecerem nesse país. A história é contada de forma às vezes festiva mas
também tempestuosa.
Outra referência à literatura que Akin faz em Soul Kitchen, é expressa numa cena
(aos 60´3” de duração), pela boca da garçonete do restaurante: “Goethe disse: As cores são
monumentos de luz e miséria, não por acaso Van Gogh ficou louco e cortou a orelha.” Ela
também menciona o “Conde de Monte Cristo”17 quando referiu a seu namorado, que tinha
sido saído da prisão e tentado se apoderar do restaurante do seu irmão Zinos – personagem
principal de Soul Kitchen. Ainda nesse filme, aos 19´52´´, o cozinheiro que inventava
pratos exóticos cita o poeta Arthur Rimbaud: “as coisas não são vendidas, elas se vendem.”
Rimbaud que diga-se de passagem, poeta francês desterritorializado, híbrido, por assim
dizer, partiu para habitar em solo colonial, africano - lá descobriu um novo continente,
16
A autora aborda, mescla o mundo da gastronomia com o amor e o erotismo, associa o sabor e o
paladar da comida à sexualidade. Livro publicado em 2004 pela Ed. Bertrand Brasil.
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Romance da literatura francesa escrito por Alexandre Dumas em 1844 que conta a história de um
marinheiro que foi preso injustamente. Lá, conhece um clérigo de quem fica amigo. Quando o clérigo morre,
ele escapa da prisão e toma posse de uma misteriosa fortuna.
rompendo com a noção de identidade fixa e com esteréotipos. No fim da sua vida volta à
casa, a França em 1891 praticamente para morrer.
O tema do regresso, de idas e vindas sempre permeiam as ficções de Akin. Seus
personagens aparecem em sua cinematografia quase sempre com uma pluralidade de
destinos ou em trânsito, se deslocando, como se estivessem
de passagem ou não
conseguissem fixar nos lugares.
Fatih Akin aborda em seu cinema o resultado das relações turco-germânica, o
rompimento de fronteiras e de visões estereotipadas entre a cultura ocidental e as outras
culturas, a reelaboração do passado. Retrata as relações conflitantes entre pessoas
provenientes de distintas regiões culturais, e não somente da Turquia, entre pessoas que
igualmente sofrem discriminações por ex-colonizadores. Akin, para pensar seus filmes, se
baseia e valoriza as diferenças, a diversidade cultural, e constrói um cinema visceral – sem
pudores nem moralismos.
Admiro e escolhi o cinema dele, por tratar da mesma temática, mas nunca do
mesmo modo e por promover um diálogo com a cultura do seu povo e de outros, usando o
cinema para retratá-las, valorizando-as sempre, sem se preocupar com a noção de Oriente e
Ocidente. Em seu livro Siete Noches(1999), Jorge Luís Borges quando comentava sobre
“O livro das mil e uma noites”, argumenta que a noção de Oriente e Ocidente é uma ideia
generalizada, pois ninguém se sente oriental ou ocidental. Um indivíduo se sente hindu,
greco, brasileiro ou argentino. E eu acrescentaria turco, alemão ou outro.
Chego, até aqui, pensando que em toda a filmografia de Fatih Akin, a Turquia nos é
colocada como um lugar onde ele se sente bem, e não como a imagem de um lugar que o
“Ocidente” construiu do “Oriente”, temido; mas um lugar onde os turcos (assim como esse
próprio cineasta) encontram a redenção, a alegria de viver. Contudo, ele não deixa de
trazer à tela fílmica, os problemas que os habitantes da Turquia enfrentam cotidianamente,
mas como momentos de passagem que serão um dia superados. Na maioria de seus filmes,
esse realizador apresenta uma Turquia que tenta se equilibrar entre a “necessidade” de
manter valores tradicionais – culturais, religiosos e históricos; e a modernidade alemã que
“acolhe’’ as aspirações e sonhos de imigrantes turcos, diga-se de passagem do próprio
cineasta, onde ele se estabeleceu profissionalmente.18
Após ter feito uma leitura das imagens de diásporas por meio do conteúdo da
produção do cinema diaspórico de Fatih Akin, buscando perceber como ele relaciona a
literatura em seu cinema; de tentar muito brevemente, tecer uma reflexão teórica amparada
por autores ligados aos estudos pós-coloniais ou não; percebo que tal cineasta relacionou
temas e personagens de romances literários que o inspiraram na criação de algumas de suas
histórias e personagens e fez uso de citações literárias. Em suas ficções ele dá muita
importância aos sujeitos diaspóricos - imigrantes - italianos, sérvios, gregos, turcos, etc -,
que vivem fora de suas regiões ancestrais, não ficando preso à suas origens (turco-alemã),
mas dialogando, valorizando, respeitando as diferenças culturais entre distintos povos - não
inventando o “outro”. Akin busca romper com uma representação estereotipada de
imigrantes e de suas culturas, assim como com qualquer convenção do cinema, além de
expressar seu posicionamento político-estético das 1ª e 2ª gerações de imigrantes que
fazem cinema mundo afora - e que têm o privilégio de serem estrangeiros integrados nos
novos lugares que habitam.
Por fim, espero que essa curta e primeira reflexão, sobre tal temática e tal cinema,
possa despertar em mim e em outras pessoas, a produção de novos e intensos encontros,
também entre o cinema e a literatura - expressões artísticas distintas, mas que tem, a meu
ver, profundas ligações entre si. Como diria Canclini (2004), estudar diferentes culturas (e
eu completaria: e diferentes áreas do saber) requer do sujeito, buscar ser especialista nas
interseções.
REFERÊNCIAS
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http://en.wikipedia.org/wiki/Fatih_Ak%C4%B1n>. Acesso em: 02 out.2011.
18
Cito outros nomes de realizadores turcos-alemães que nasceram, cresceram e se estabeleceram
profissional-mente na Alemanha: Buket Alacus, Neco Celic e Ayse Polat.
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globalizion. Tradução: Gustavo Remedi. México: Ediciones Coyoacan,1996.
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ARARAT. Etom Goyan. (Dir.). Canadá/França, 2002. (115min), som dolby digital., color.,
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CONTRA A PAREDE. Fatih Akin (Dir.). Alemanha, 2004. (121min), som dolby digital.,
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DO OUTRO LADO. Fatih Akin (Dir.). Alemanha, 2007. (116min), som dolby SR., color.,
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