DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

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DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL
Beatbrasilis
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HESSE, O ILUMINADO
O UIVO DE ALLEN GINSBERG
DRIVE-INS, O RETORNO
VIDA DE AUTOR
2010, O ANO QUE DEIXOU MARCAS
A SOLIDÃO DOS PAMPAS
ESTRELAS DA NOITE
CULTURA DIGITAL PARA SALVAR O BRASIL
PLAGIAMOS GLAUBER:
DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL
UM RELATO SOBRE A BAHIA, UM PARAÍSO AMEAÇADO, A ANARQUIA E OUTROS CONVITES...
EDITORIAL
FABRÍCIO BUSNELLO
E aqui nos encontramos novamente!
Aproveito, meu amigo, pra te formalizar esse convite. Vem aqui! Te espero as seis da tarde de qualquer dia de abril. Esperamos o
sinal vermelho para os carros e movemos nossas pernas. Aqui é assim, meu velho: já agora se apresenta a estação que ainda não veio.
Da pra ver no sol ali detrás daqueles prédios. Antes não caia ali, o sol, caia lá, ó: lá pras bandas do grande lago.
É por aqui, mais uma quadra de avenida e depois pegamos à direita na pequena rua. Nota as árvores? Estão com sono, veja:
perdem suas folhas por pura preguiça. Recolhem seus braços de madeira pra esconder seus corpos que vão ficando mais à
mostra. Enquanto antes chegaria em casa ainda dia, agora me encontra antes o escuro. Perceba, caro amigo, as diferentes cores
no fim desta pequena rua: tem o azul teimoso, o amarelo bucólico, um vermelho grandioso e até mesmo um verde. Vês o
verde? Lá no fim da minha cidade, a cor mais distante do sol. Seria um verde? E esse frio sem cor que de agora em diante só
aumenta. Vês? Ele tem uma cor invisível que lembra uma morte que não é triste. Um sono que não é cansado.
Um despertar de coisas que não chegam a dormir!
É o outono aqui na minha cidade, meu amigo. E eu te saúdo e saúdo a Estação!
Pega essa pequena folha de plátano e guarda ela em tua carteira de lembrança.
Pra lembrares que passamos.
Pra lembrares que voltamos.
Dê um abraço aqui e vai-te embora.
Espero-te lá mais tarde.
E espero que desfrutes.
Beatbrasilis
# Número 6
(Abril de 2011 [OUTONO])
Colaboraram nesta Edição:
Elena Caracoles; Fabrício Busnello; Felipe Fonseca; Guilherme Rocha;
Jim Duran; Leandro Godinho; Luis Sales; Mauro Cassane; Morning Gump;
Vitor Souza;
Conselho Editorial:
Fabrício Busnello; Guilherme Rocha; Jim Duran; Mauro Cassane;
Vitor Souza
Diagramação:
Vitor Souza
Sobre:
Beatbrasilis é um coletivo cultural.
Revista Beatbrasilis é uma publicação on-line e sazonal.
Contato:
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Reprodução:
Ainda não decidimos sobre que licença usar. Portanto, caso queira reproduzir
qualquer texto ou parte desta edição, favor contatar o Coletivo pelo e-mail acima.
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ENTREVISTA:
SYLVIO PASSOS,
FUNDADOR DO RAUL
ROCK CLUB
POR JIM DURAN
Conheci Sylvio Passos num estranho ritual reservado a poucos.
Começamos a nos corresponder em 1993 quando eu me filiei ao
RAUL ROCK CLUB. Sempre prestativo, bem humorado e
tratando a obra do amigo Raul Seixas com o carinho e o respeito
que o baiano merece. Inspirado no trabalho que ele faz eu mesmo
fundei um fã-clube chamado ―Equipe Sociedade Alternativa‖ em
conjunto com outro amigo, Wander ―The Killer‖ Ramos Neves.
Mergulhei nas leituras sobre o mago inglês Aleister Crowley e sigo
o mesmo caminho ouvindo o mesmo Raul desde 1984. Essa é a
segunda vez que entrevisto Sylvio Passos, a primeira foi em 1994
quando saiu o CD ―Se o Rádio Não Toca‖. Sylvio entrou para
história do mercado fonográfico brasileiro ao lançar, em 1985, a
coletânea que figura entre os discos oficiais ―Let Me Sing, Let Me
Sing‖, um dos discos mais raros e caros do país. Nessa entrevista
ele comenta como andam as coisas 30 anos após fundar o primeiro
e oficial fã-clube de Raul Seixas (o primeiro de centenas).
Beatbrasilis: Em que mudou sua vida a partir do momento em que
o Raul entrou nela?
Sylvio Passos: Putz! Realmente, foi um divisor de águas. Antes de
conhecer Raul eu estava me preparando para ser jornalista ou
psicólogo, e após conhecê-lo acabei abandonando os estudos e
abraçando o raulseixismo como causa. Então a mudança foi em
todos os sentidos. Radical mesmo.
Bb: Como o Raul recebeu a notícia da criação do RRC?
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S.P.: Me lembro que ele ficou surpreso, feliz e surpreso com minha
ligação. Acabou por me convidar para almoçar com ele alguns dias
depois, e desde então não paramos mais de nos encontrar. Nascia
ali uma amizade que transcendia a relação fã-ídolo. Nascia ali, em
1981, uma amizade que durou até a fatídico 21 de agosto de 1989.
Bb: Quem era o homem Raul dos Santos Seixas?
S.P.: Um pessoa sensível, interessantíssimo, generoso e muito
preocupado com as pessoas e o rumo da humanidade. Ou seja,
embora no cotidiano Raul fosse bem diferente do artista Raul
Seixas, ambos carregam as mesmas características, claro. Afinal,
como ele mesmo cantou: ―Raul Seixas e Raulzito sempre foram o
mesmo homem‖. Embora fosse notório um certo ―conflito‖ entre
criador e criatura, entende?
Bb: Como surgiu o projeto do LP ―Let Me Sing My Rock and
Roll‖?
S.P.: De uma necessidade se de ter aquelas gravações que Raul
lançou mas não incluiu em seus álbuns de carreira. Músicas
lançadas somente em compactos ou em discos especiais e trilhas de
novelas. Esses discos, na época - década de 1980 - eram muito
caros e difíceis de ser encontrados. Todo colecionador de Raul
Seixas nutria o desejo de ter aquelas gravações. Então resolvi juntar
todas num único álbum e ainda pedi ao Raul para escolher uma
para fechar o repertório do disco com chave de ouro. Foram
lançadas apenas 100 cópias numeradas que hoje são disputadas a ta-
Raul Seixas com o amigo Sylvio Passos: anos 80
pas por fãs e colecionadores.
Bb: Como você recebeu a notícia da morte de Raul? Como foi o
seu dia?
S.P.: Putz! Foi péssimo. Na época eu estava ainda no meu primeiro
casamento e trabalhava como supervisor de vendas no saudoso
Círculo do Livro. Eu estava numa reunião sendo promovido, e a
gerência me mostrando tudo o que eu poderia conquistar (carro,
apartamento...) se alavancasse as vendas, etc e tal. Saí da reunião
por volta das 17hs e fui tomar um café e fumar meu cigarrinho
quando, na padaria embaixo do escritório, uns caras do outro lado
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do balcão me viram com a camiseta que trazia estampada no lado
esquerdo o logotipo da Sociedade Alternativa e falaram: ―Ainda
bem que esse filho da puta morreu‖. Engoli o café meio torto e
corri pra um telefone público e a notícia se confirmou. Desci a Av.
Voluntários da Pátria, em Santana, chorando e meio desnorteado e
fui direto pro prédio do Raul na Frei Caneca. Chegando lá,
evidentemente, não encontrei ninguém, e o porteiro não sabia me
informar nada. Fui então pra casa que estava lotada de pessoas me
aguardando e então fomos pro Centro de Convenções do Anhembi
e lá permanecemos até a chegada do carro do Corpo de Bombeiros
que levou o caixão de Raul para o aeroporto, e de lá seguiu para
Salvador/Ba. Não fui para Salvador. Preferi ficar em Sampa, pois já
havia sofrido demais no velório.
Bb: E como foi viver esses 22 anos sem Raul?
S.P.: De certa forma, o meu ídolo, o artista Raul Seixas, nunca
esteve ausente. O que morreu foi meu amigo, e não o artista,
entende? O artista continua vivo até hoje. Mas o indivíduo, esse se
foi e não tem como não lamentar sua ausência. É a mesma falta que
sinto de meu pai que também faleceu um pouco antes de Raul.
Duas pessoas muito importantes na minha vida.
Bb: Qual é a lembrança mais forte que você tem dele?
S.P.: Da sinceridade, lealdade e o carinho que Raul tinha pelas
pessoas. Nunca havia conhecido alguém tão gentil e tão
preocupado com o outro como Raulzito. Realmente, uma figura
ímpar.
Bb: Como é subir no palco ao lado do kavernista Edy Star (músico
que participou do antológico disco ―A Sociedade da Grã Orden
Kavernista Apresenta Sessão das Dez‖)? Como é receber o carinho
do fã raulseixista?
S.P.: Conheço Edy há varias décadas. Sempre foi uma pessoa
agradabilíssima e muito engraçado. Figuraça. Subir ao palco com
Edy é sempre tenso e prazeroso ao mesmo tempo, afinal, a
responsabilidade é grande. Gosto de STAR no palco com EDY.
Para mim, receber o carinho dos fãs de Raul é como se estivesse
recebendo Grammy Awards, aquele Oscar da Música, sabe? É um
reconhecimento pelo meu trabalho que não há dinheiro no mundo
que pague. Realmente impagável essa resposta carinhosa do público
de Raul que, às vezes, me parece que não mereço tanto.
Bb: Você sente a importância do seu trabalho na divulgação da
obra de Raul Seixas?
S.P.: Eu nunca havia parado pra pensar nisso. Mas, nos últimos 10
anos, venho recebendo tantos elogios e críticas que ambos
acabaram por me fazer tomar consciência de que o que venho
fazendo nesses últimos 30 anos tem alguma importância, visto a
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Carteirinha do Raul Rock Clube feita para o
próprio Raul
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resposta que tenho não só do público, mas de todos aqueles que de
alguma maneira tiveram contato com Raul. Então, apesar das
dificuldades e limitações, vejo que realmente existe uma
importância em meu trabalho. Nada foi feito em vão.
Bb: Quem são os raulseixistas?
S.P.: Isso sempre gerou polêmicas. Durante muito tempo eu
mesmo tratava a mim e aos fãs como raulseixistas. Depois de algum
tempo me dei conta que, na verdade, somos simpazitantes do
raulseixismo, pois, raulseixista mesmo era o Raul e ele defendia que
cada um deveria ser autêntico, original, assim como Schopenhauer
também defendia. Então desde que tive esse insght não me declaro
mais como raulseixista, mas, sim, como sylvipassista. E que os fãs
não são raulseixistas, mas, simpatizantes do raulseixismo. Mas, no
fundo, isso não tem a menor importância. Noto que a grande
maioria dos fãs de Raul Seixas sentem orgulho em se definirem
como raulseixistas e é uma coisa bonita. Só que eu já não consigo
mais me colocar dessa maneira. Alguns fãs mais radicais até me
criticam por conta disso e me chamam de traidor do movimento.
Vê se eu aguento (risos)!
Bb: Raul ainda hoje tem uma legião de fãs, e a cada dia novas
pessoas travam contato com suas músicas. Por que ele tem esse
apelo depois de mais de duas décadas depois de sua morte?
S.P.: Essa pergunta é sempre complicada de responder. Devo ter
dado umas 200 mil respostas diferentes pra essa questão nos últiREVISTA
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Capa do vinil “Let me sing, Let me sing”: R$ 2.500,00 na internet
Edy Star nos anos 70: andrógeno e psicodélico
mos 20 anos. Mas, o que me ocorre agora, é que, além da
atemporalidade, pluralidade e do carisma de Raul, toda sua carreira
musical sempre foi carregada de muita verdade e visceralidade e
isso toca fundo nas pessoas de qualquer faixa etária e classe social.
Raul fala direto aos corações em suas músicas, se expunha através
delas, e isso cativa todo mundo.
Bb: Se o Sylvio de 2011 pudesse mandar um recado para o Sylvio
de 1981, o que ele diria?
S.P.: Ah, essa é fácil. Tá na ponta da língua: Vá e grite ao mundo
que você está certo.
Bb: Quais as principais dificuldades que você teve nesses anos
todos?
alguns passos, não fazendo jus ao meu sobrenome. Mas, acredito
que estou no meu caminho e que a coisa deveria ser exatamente
assim como foi e é. Continuo seguindo meu caminho, de passos
leves, mas confiante, otimista mesmo, e segurando todas as barras e
adversidades que surgem. Afinal, como diz aquele velho deitado:
―A adversidade desperta em nós capacidades que, em
circunstâncias favoráveis, teriam ficado adormecidas‖.
Bb: Você se arrependeu em algum momento de ter iniciado esse
caminho?
S.P.: Jamais. Sou extremamente feliz com tudo que fiz. Errando e
acertando. Mas sempre feliz. Arrepender-se, no meu caso, seria um
evidente sinal de derrota, e coisa que nunca fui foi um derrotado.
Veni, vidi, vici.
S.P.: Econômicos. E também com alguns oportunistas e pilantras
que cruzaram meu caminho. Mas a maior de todas, é a dificuldade
financeira para realizar alguns projetos e sonhos que ainda hoje
estão na ordem do dia.
Bb: Quais os planos para o futuro?
S.P.: Não gosto muito de falar sobre o futuro por se tratar de um
terreno estranho e incerto e, invariavelmente, repleto de
possibilidades. Há muito tempo eu planejei e planejei e planejei o
futuro que estamos vivendo agora e muito do que planejei não se
realizou. Talvez eu tenha cometido erros, ou não tenha me
dedicado o suficiente ou até tenha tido medo ou insegurança de dar
Momento que antecedeu ao show do grande kavernista Edy Star: Killer, Sylvio e Jim
REVISTA
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BIOGRAFIA
BENDITO
MALDITO
POR JIM DURAN
Ler biografias é sempre uma faca afiada demais: ou você se entrega
de vez ou sofre com a leitura. O que acontece com o livro ―Bendito
Maldito – Uma Biografia de Plínio Marcos‖ é justamente o caso da
prazerosa entrega. Escrito pelo ator, jornalista e amigo de Plínio,
Oswaldo Mendes. Mesmo tendo essa proximidade com o seu
biografado, Oswaldo não comete o erro de tentar amenizar os
excessos da pessoa e também não força as cores. Primeiro de tudo
sente-se que é um livro que rende homenagem, mas não bajula.
Escrito em terceira pessoa, o relato traz momentos de profunda
emoção, como os instantes finais da vida do teatrólogo. A estrutura
é a de uma peça de teatro. Dividido em três atos (o primeiro vai de
1935 a 1966, o segundo de 1967 a 1985 e o terceiro de 1985 a
1999), com diversas cenas em cada. Você não apenas lê, mas se tor-
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Carlos Palma, Vera Kowalska e Oswaldo Mendes
na expectador de momentos como esse ou então pode viver com
Plínio toda a perseguição que teve durante a ditadura que assolou o
país por vinte e cinco anos. Mesmo impedido de trabalhar ele não
desistiu e correu atrás de sua história. Tornou-se um dos maiores
autores teatrais de nosso tempo nadando contra a maré, falando de
uma faixa da população que ninguém retratava ou, quando fazia,
era uma colagem falsa feita por quem só ouviu falar das prostituas
do cais, dos viciados, dos machões briguentos. Plínio os conhecia
porque escolheu sujar a sola dos sapatos.
Ao contrário do que muitos pensam, Plínio não teve uma vida
difícil. Ele não nasceu no circo e nem nada assim, mesmo tendo
posteriormente se transformado no palhaço Frajola. Filho de uma
família estruturada, seu pai era bancário. Freqüentava clubes e
escolas particulares, porque tinha aversão ao estudo formal. Para
compensar esse distanciamento dos bancos escolares ele se
afundou em leituras que formaram seu vocabulário. Lia jornais,
revistas e livros, sobretudo os de cunho espírita.
Oswaldo Mendes retrata então esse homem que poderia ter sido
jogador de futebol, porque tinha talento para isso, ou então o que
quisesse. Fica claro no livro que para Plínio não tinha situação
irremediável. Agia com o coração e pagava o preço. Não se fazia de
coitado, mesmo no final, já doente e acamado, o diabético Plínio
pedia ao amigo Oswaldo para que ele trouxesse uns chocolates
―malocados‖: sempre um contrário.
É esse homem real que é retratado no livro. Uma pessoa como
qualquer outra que soube fazer a sua história calcado apenas na
responsabilidade de ser ele mesmo. Não usou máscaras e não fez
acordos. Pagou o preço por todas suas escolhas. Dizia que se havia
sido perseguido, não havia sido mero acaso, tinha feito por
merecer.
Por esse compromisso firmado com a realidade dos fatos e pelo
ritmo de leitura apaixonante é que ―Bendito Maldito – Uma
Biografia de Plínio Marcos‖ deve figurar em sua estante, melhor
ainda, ter a marca de seus dedos.
Era amigo de marginais e poderosos. Exemplo disso foi sua
amizade sincera com o governador Mário Covas, que inclusive
autorizou sua internação no quarto reservado à autoridade paulista.
Os dois ficavam discutindo sobre futebol e amenidades, coisas de
amigos.
Jim Duran é pseudônimo e surgiu em Salvador/BA em 2003 e marca
uma guinada na vida e carreira do escritor e ator paulista Eduardo
Duran. Enquanto um é baiano o outro é paulista. A escrita de Jim é
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sonora e feita para ser lida em voz alta com uma dose de uísque e um
cachimbo por perto. Jim Duran é formado em Letras.
Hesse foi criado no seio de uma família ardorosamente protestante,
que inclusive professou o cristianismo em solo indiano. Em 1904
ele escreve uma biografia de Francisco de Assis, provável fruto de
seus estudos enquanto aluno do Seminário de Maulbronn, na
Alemanha. No entanto, tudo mudaria dentro de Hesse quando de
uma viagem à Índia realizada em 1911. Essa visita à terra de
Sakyamuni fez com que despertasse nele toda a espiritualidade do
oriente, que sem dúvida este genial escritor carregava latente dentro
de sí desde o primeiro momento de sua vida. Este despertar
oriental de Hermann pode ser provado em duas de suas mais lindas
e comoventes obras: Sidarta (1922) e Viagem ao Oriente (1932).
BIOGRAFIA
OS OLHINHOS
PUXADOS DO
SENHOR HESSE
POR Fabrício Busnello
"É uma fraqueza natural do homem julgar que o que perdemos possui um
valor exagerado e parece menos dispensável do que tudo o que possuímos.‖
Hermann Hesse, em Viagem ao Oriente
Até a sua morte durante uma tranqüila noite de sono em
Montagnola, na Suiça, em 1962, Hermann Hesse seguiu a ideologia
oriental do budismo, deixando para nós pegadas iluminadas numa
estrada aberta para todos aqueles que queiram alguma luz.
Foi na cidade alemã de Calw que Hermann Hesse nasceu, no dia 02
de julho de 1877. Algumas desilusões com a família, que exigia que
o filho fosse pastor, e com a pátria, cujo crescente militarismo
chocava com a visão pacifista do futuro autor d‘O Lobo da Estepe,
lhe levaram a naturalizar-se suíço no ano de 1923, país onde residia
desde 1912.
REVISTA
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CINEMA
ACONTECEU NAQUELA NOITE
Por Morning
REVISTA
Gump
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Como toda sexta-feira, estava exausta. Todos os esforços semanais
para acordar cedo e manter a rotina de trabalho pesam com toda a
sua realidade numa noite de sexta-feira. E naquela noite cheguei em
casa e entreguei-me à minha cama. Acordei às nove com uma voz
de esgoto e a cara amassada pelos lençóis; aos poucos acostumeime com a luz que deixara acesa. No celular, uma ligação perdida.
Um velho amigo. Convidara-me para um drinks de final de
expediente. Eis um daqueles momentos de decisão quando se está
com um pé no mundo real e outro no campo dos sonhos em que
você pode escolher entre a decrepitude de permanecer em casa e
perder a chance de aproveitar alguns minutos de vida, ou sair e ver
o que pode ser lá fora. Fiquei com a segunda opção. Às dez e meia
ele passou na minha casa e fomos para mais uma bundação de
sexta à noite. Rumamos para o nosso bar de sempre. Por sorte, os
cantores mandavam as nossas canções favoritas. Uma daquelas
coisas em que tudo parece dar certo e as baladas ficam agradáveis.
Papeamos até chegar na idéia de ir ao Cine Azul para a última
sessão. A noite estendia-se a cada sugestão. Pagamos, saímos e
fomos ao cinema. Que sensação ao ver o cartaz: Uivo! Uau, Allen
Ginsberg! É isso aí, vamos!!
Umas vinte pessoas espalhadas pela sala imensa. Sessão especial,
algumas turminhas mais hypes surgem para esse tipo de programa.
Havia uma galerinha no maior estilo retro-chic, etc. Todos falando
abobrinha com um tom de importância que era bem engraçado.
Fodam-se. Mas fiquem quietos na hora do filme. Esse é o meu
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grande pavor em encontrar turminhas nas salas de cinema. Hoje em
dia ninguém mais cala a boca em lugar nenhum. Nem desligam
celulares. Enfim, ninguém mais faz silêncio! Certo. Passaram os
avisos e finalmente a abertura. O filme começa. Happening,
entrevista e tribunal. Três lugares que acompanharam toda a
movimentação do filme. Três ambientes entremeados por uma
divertida e bem feita animação (Eric Drooker). Cara, como James
Franco ficou parecido com o velho Allen. A voz, o jeito de falar,
óculos, tudo o mais. Um Allen charmoso, como todas as
personagens da vida real acabam se transformando quando
transplantadas para os filmes 35mm. E lá estávamos nós, em um
filme inteirinho sobre um poema. É, vimos as melhores mentes de
nossa geração apresentar as maiores mentes zen-urbanas de
outrora.
No Happening estão Jack (Todd Rotondi), Neal (Jon Prescott) e
Paul (Aaron Tveit), os homens de Allen, entre outros beatniks que
foram ver o jovem Ginsberg proferir as palavras de libertação na
Six Gallery. Na entrevista está Allen e o grande gravador, contando
as peripécias e acontecimentos, os como e porquês do poema Uivo,
etc. E como são bonitos os leves movimentos das mãos do ator ao
adornar as explanações, ao segurar o cigarro. Neste instante, somos
nós e Allen em sua casa, como convidados numa sexta à noite sem
muita perspectiva, mas que se enche de esperança e fraternidade.
No tribunal estão as pessoas que acham o livro obsceno, que não
entenderam lhufas, que curtem um lance mais polêmico, que foram
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lá ver qual é, professores – nove especialistas para darem um
parecer sobre a obra-, entusiastas, advogados, júri, juiz, Ferlinghetti
(Andrew Rogers) e seu advogado, Jake Ehrilch (Jon Hamm) e o
outro advogado, Sr. Ralph McIntosh (David Strathairn). Os
professores especialistas sobem ao púlpito para tergiversarem sobre
o poema. Alguns esnobam aquilo que leram – o negócio não vai
para frente -, outros, consideram o poema como a visão de mundo
de Ginsberg, e por aí vai. Essa história já é sabida. O poema não é
condenado ao índex social. O juiz Clayton Horn (Bob Balaban) diz
que, em nome da liberdade, a obra é INOCENTE! Porque tudo é
SANTO, como é ―santa a sobrenatural extra brilhante inteligente
bondade da alma!‖.
UIVO (Howl) Eua, 2010. Dirigido e escrito por Rob Epstein e Jeffrey Friedman; diretor de
fotografia, Edward Lachman; editado por Jake Pushinsky; música por Carter Burwell;
produzido por Elizabeth Redleaf, Christine Kunewa Walker, Rob Epstein e Jeffrey Friedman.
Duração: 90 minutos. Com James Franco, David Strathairn, Jon Hamm, Bob Balaban,
Alessandro Nivola, Treat Williams, Mary-Louise Parker, Todd Rotondi, Jon Prescott, Aaron
Tyeit e Jeff Daniels. Uma produção de Werc Werk Works, RabbitBandini Productions, Telling
Pictures e Radiant Cool.
No final, bem, rolam surpresas. Agradável e bonita surpresa. E o
jazz flui, enquanto a turminha dos hypes se dispersa, um casal se
prepara para sair, e nós dois lá, com aquela cara de satisfação a
olhar para os créditos. A sorrir candidamente como dois santos
iluminados em nossa vadiagem noturna. O filme é o verso de Allen
Ginsberg em três atos: a criação, o comentário e a reação do
público. Esta é uma história de um poema.
Morning Gump, a moça que partiu da Amazônia para os campos de cana-deaçúcar do sul, que curte Beatles, Rolling-Stones e Bob Dylan. Arrancou seu
pseudônimo do próprio nome e daquele personagem de filme que correu a
América inteira só porque quis e depois contou suas histórias.
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GUILHERME ROCHA
O RETORNO DOS DRIVE-INS
Vejamos, o cinema drive-in foi supostamente inventado em 1933
por um vendedor de Nova Jersey chamado Richard Hollingshead.
O filme exibido foi uma comédia britânica chamada ―Wife
Beware‖. Dizem os registros que a parafernália consistia em um
projetor Kodak montado em cima de seu carro e apontado para
uma tela branca. O filme parece ter sido uma merda e os vizinhos
reclamaram pra caralho do barulho. A partir dessa iniciativa, nasceu
o fenômeno dos drive-ins nos Estados Unidos. Fenômeno esse que
rapidamente se estabeleceu
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como uma verdadeira instituição, especialmente após a segunda
guerra mundial e o crescimento da cultura automobilística.
Em 1958, haviam 5.000 cinemas drive-in nos Estados Unidos. Era o
auge dessa cultura. Porém, por razões que apenas pesquisadores de
mercado devem conhecer (meu chute é o ar-condicionado), os
cinemas internos começaram a dominar o mercado lá pelos findos
anos da década de 60. Já nos anos 80, com a comercialização do
videocassete e da TV à cabo, o cinema drive-in levou sua maior
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surra. Pelo que o Wikipedia me diz, em 1995 só restavam 500
cinemas drive-in nos Estados Unidos.
Caralho, Guilherme! Quem liga!?! Ah! Mas calma lá, aqui vem a
história. Justamente quando pensamos que esse icônico formato de
entretenimento entrou em extinção, começam a surgir, do nada, os
entusiastas. Movidos a nostalgia e provavelmente tentando evitar os
exorbitantes preços dos multiplex, novos drive-ins vieram surgindo
nos Estados Unidos. Uma nova geração de cinéfilos começou a
seguir o exemplo de Hollingshead, unindo novas tecnologias e o
conceito roots do drive-in, criando experiências ao ar-livre no melhor
estilo punk do ―faças-tu-mesmo‖. Tocadores de DVD e projetores
digitais colocaram a tecnologia de cinema drive-in nas mãos de
qualquer pessoa com uma inclinação tecnológica.
ao movimento MobMov (Mobile Movies—Filmes Móveis), com
―filiais‖ espalhadas por todo o mundo, criando cinemas gratuitos
em qualquer espaço aberto. O cara até ensina a organizar uma ação
dessas em seu site www.mobmov.org, fornecendo detalhadas
instruções técnicas e dicas para lidar com direitos autorais, polícia e
toda a caralhada de legislações que sufocam os irmãos
estadunidenses.
Em suma, mais uma iniciativa bacana dos colegas californianos que
misturaram, mais uma vez, cultura e automóveis para contribuir
com a evolução (ou o abestalhamento, não sei ainda) da raça
humana.
Na Califórnia, o coletivo Santa Cruz Guerilla Drive-In
(www.guerilladrivein.org) juntou o amor por filmes com a missão
de retomar os espaços públicos, projetando filmes em lugares
divulgados apenas na base do boca-a-boca. Também na Califórnia,
um nerd chamado Bryan Kennedy transformou seu carro em uma
unidade móvel de projeção, usando um tocador de DVD, um
projetor e um transmissor de rádio que permite que todos os carros
com rádio sintonizem para ouvir o filme. Essa iniciativa deu início
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MAURO CASSANE
MAURO CASSANE
Com as facilidades instantâneas da internet, assistimos, atônitos,
uma fabulosa proliferação de artistas das mais variadas vertentes.
Entre todos eles, os escritores são maioria. Mas, pessoalmente,
prefiro simplesmente os silenciosos leitores, estes sim, merecem
meu respeito e admiração.
orreu Moacyr Scliar, médico que virou escritor. Para mim
é estranho dizer algo sobre este artista das letras. Não o
conheço. Dele só li algumas poucas crônicas publicadas
em jornais diários. E gostei. Mas, mesmo assim, de alguma maneira,
sempre tive apreço por ele. Sei que era gaúcho e, nas fotos, tinha
uma boa cara, com aqueles olhos tranqüilos, profundos, de quem
observa o mundo com a atenção sábia dos humildes. Não vou
pesquisar na internet a obra do Moacyr, mas vou tentar ler,
doravante, mais de seus escritos. Nutro por ele esta simpatia
irracional, sem qualquer motivação concreta, bem como, pela
mesma razão, só que de maneira oposta, não gosto do Dalton
Trevisan, que sempre me pareceu um falastrão recluso arrogante.
Por este motivo, do Trevisan, nunca li, e penso que nunca vou ler,
coisa alguma.
LEIA
ANTES
DE
ESCREVER
LEIA ANTES DE
M
ESCREVER
COM AS FACILIDADES INSTANTÂNEAS DA INTERNET,
ASSISTIMOS, ATÔNITOS, UMA FABULOSA PROLIFERAÇÃO
DE ARTISTAS DAS MAIS VARIADAS VERTENTES. ENTRE
TODOS ELES, OS ESCRITORES SÃO MAIORIA. MAS,
PESSOALMENTE, PREFIRO SIMPLESMENTE OS
SILENCIOSOS LEITORES, ESTES SIM, MERECEM MEU
RESPEITO E ADMIRAÇÃO.
E eu gosto de agir assim, motivado unicamente pela emoção. Isso
não me rende fruto algum, mas a saborosa sensação de liberdade é
impagável. Fico imaginando a dura vida desesperada de ensaístas e
críticos literários, que precisam conhecer obra e autor, para, sobre
eles, elaborar verdadeiros tratados. E os biógrafos então. Por Deus,
que vida cruel deve ser a de um biógrafo. Escarafunchar naquela
lama toda da vida alheia e tirar dali, feito um garimpeiro, algum
tesouro, algo que se faça algum proveito para sanar a doentia
curiosidade dos desvalidos de idéias. Poucos são os casos em que a
vida privada do artista seja mais interessante que sua obra. O que
REVISTA
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OS OLHOS TRANQÜILOS E PROFUNDOS DE MOACYR SCLIAR
ocorre, na esmagadora maioria das vezes, é o artista, especialmente
o escritor, fazer tipo, ou seja, interpretar, na vida real, o que
gostaria de ser ou como gostaria de ser visto. Os tipos bêbados
desleixados ou malucos incorrigíveis são os mais comuns há
décadas. Aquela máxima, cuja autoria desconheço, de que ―de perto
ninguém é normal‖, eu tomo a liberdade de alterá-la para ―de perto
todos somos tediosamente normais‖.
O artista gosta de dar a si próprio uma aura especial, exclusiva, que
o diferencie das outras pessoas. Mas somos todos espantosamente
humanos previsíveis e assombrados com o mundo que nos
envolve. Temos mais medo de nossos semelhantes do que de
qualquer outro animal. Sim, o ser humano é assustador. Mas
deixemos isto para outras páginas sociológicas. Não estas. Nestas
quero falar de ser escritor. Quem é escritor? Esta é uma definição
estritamente pessoal: quem, com palavras escritas, consegue
encantar alguém além de si próprio. Vale, inclusive, a própria mãe.
Podemos considerar namorada, amante, amigo, desconhecido ou,
se o escritor for verdadeiramente talentoso, até mesmo o inimigo.
Se você está neste grupo, fique certo, és um escritor genuíno. Não
se aflijas, publicar um livro é outra questão. Entra aí fatores
financeiros e sorte. Até mesmo ganhar um concurso literário não
passa da mais pura sorte. Não há como julgar uma obra literária,
nem como dizer se é melhor ou pior que outra.
Diferente dos séculos anteriores, hoje em dia um escritor não deve
se preocupar em publicar seu livro. Deve concentrar-se unicamente
em escrevê-lo. A internet existe e, com ela, embora tenhamos uma
porção de porcarias no ar, temos a liberdade de publicarmos, em
blogs ou sites, o que bem entendermos. É a liberdade plena e tão
REVISTA
secularmente sonhada. E se nossos escritos agradarem alguém, já
está valendo. Se não agradar ninguém, então, que te sirva de lição:
você não é um escritor. Tente desenhar, ser ator, músico ou
piadista. Há muitas opções do que podemos fazer com nossa
criatividade. Se não consegues contar uma boa história, interprete-
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a. Ou faça uma canção. Ou dance. Sei lá. Como disse, há opções.
De qualquer maneira, ter idéia, por si só, já te faz um artista. Não se
preocupe muito com isto, em ser artista. Aliás, se o for, faça a si
mesmo um grande favor: não cometa a tolice de fazer tipo, não
force a barra, não precisa começar a encher a cara com vinho
vagabundo, nem dormir em sarjetas, nem se apaixonar por uma
puta. Viva sua vida. Não há nada de errado em ser naturalmente
você mesmo.
Mas isto não é auto-ajuda. É auto-toque. Pois não tem nada mais
irritante do que gente afetada no mundo artístico. Aqueles perfeitos
idiotas que se vestem como artistas. Já notaram os músicos? A
maioria se veste da mesma maneira. Veja um sujeito magro com
uma calça jeans colorida bem colada nas pernas, da coxa à canela, e
saiba: é um músico. Se tiver um brinquinho ou um piercing
protuberante, bingo: é músico mesmo. Todos se vestem da mesma
maneira, fazendo um esforço hercúleo para se destacar, para serem
reconhecidos. Voltemos aos escritores, não temos muito espaço
para divagações. Eles, os escritores, diferente dos músicos, não se
exibem pela indumentária, o fazem, por outro lado, pelas atitudes.
Escritor gosta de posar com aquela cara de quem não tem mais
nada o que aprender. De quem não está nem aí para o mundo, ou
para os habitantes deste planeta. Escritor, enfim, é um sujeito
insuportavelmente chato. Contudo, a verdadeira arte das palavras
não está com os escritores, estes seres que, agora com a internet,
grassam aos borbotões com seus blogs, sites e livros publicados às
próprias custas. O bom livro, a boa história, o bom poema, nasce
nas almas mais puras, e é composto basicamente por grandes
leitores, aquela gente humilde que, mais do que a arte de escrever,
professa a silenciosa arte de ler. Estes não se auto-denominam
escritores, são estudantes, médicos como Céline e Scliar, jornalistas,
dentistas, cozinheiros...enfim, gente brilhante!
Mauro Cass é jornalista, sonha ser escritor, e há anos viaja o quanto pode, mesmo
quando não pode, especialmente com sua velha Harley. Já fez poesias para
conquistar garotas pelas quais se apaixonou perdidamente e depois escreveu contos
infames sobre suas relações escandalosas e viagens solitárias. Tem em seus
cachorros seus mais íntimos amigos e faz a eles, só a eles, todas as suas confidências.
REVISTA
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CAPA
SOBRE A BAHIA, A A NARQUIA
E OUTROS CONVITES
POR ELENA
CARACOLES
REVISTA
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Mas afinal de contas, por que cargas d‘água do mar não me sinto
plena, realizada e radiante? Ora, se me saí de uma cidade enorme,
portanto caótica, para viver num diminuto e supostamente
sossegado povoado ao sul da Bahia, com suas praias recortadas por
alguma ágil tesoura do senhor nosso deus, sua verde mata a
deleitar-nos com seus cacaus pendurados, seus coqueiros
esvoaçantes, sua deliciosa e abundante maconha em forma de
crustáceo, seu azeite de dendê todo bezuntante, suas frutas que
mais parecem flores e flores que mais parecem frutas, sua gente
hospitaleira de um andar e falar empolgantes, a Bahia tem um jeito,
mas todos os dias me pergunto por que não consigo me convencer
de que o paraíso não é uma mentira das graúdas, que essa coisa de
viver perto do mar e de gente que ri fácil não se trata exatamente de
uma experiência celestial. Será por que o riso aqui é fácil até
demais? Tão fácil que parece de mentira? Será por que a única
forma que conhecem de mostrar os dentes é sorrindo, e nunca
rosnando a um malfeitor, por exemplo, enquanto são, geração após
geração, anulados, explorados e tratados como mulas, ejetados pra
fora de seus lares sem maiores delongas, ejetados pra fora de um
sistema mais feroz do que uma sabiá braba que defende seu ninho
dos macacos, enquanto sua cidade, a que eles viram nascer, é
engolida por tratores, investidores e pastores amadores?
Sabem-se malfadados, malogrados, mal vestidos, mal educados e
mal paridos, sabem-se o mal do milênio, e sabem apenas o sentido
de sua existência porque tudo pode ser explicado por um ―quando
deus quer...‖. Observam seu lar ser substituído por alguma torre de
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mais um resort que enriquecerá algum homem de bolas tristes, e
encerrará, durante 50 ou mais horas semanais, os potentes corpos
de cada um dos seus escravalhadores. Observam, do alto de sua
impotência, um porto prestes a suceder, um projeto astronômico
para gerar ganhos e perdas igualmente astronômicos. Desigualdade
astronômica, hollywoodiana, dessas que vendem muito bem. E
também o é a indústria sem fim do luxo e do lixo. Não tem como
surgir poesia de um lixo que fede pouco, nem de um luxo que não
brilhe demais. Se não for atlanticamente grande, não haverá de
estar de bom tamanho, e este é o pensamento (ou a ausência do
mesmo) do brasileiro que sentou na poltrona do conformismo, a
achou fofa, macia e envolvente, e de lá não quis sair nunca mais.
Não conseguem sair de suas mentes para entrar em suas cabeças.
Não conseguem entender que não precisam ser convencidos de
nada, então passam a vida tratando de se convencer que está tudo
jóia rara, pois assim tiram de letra, e mostrar os dentes sorrindo
deixa de ser uma resposta genuína do rosto para tornar-se mais um
produto. Sim, porque tudo nessa vida de plástico vira produto.
Alguns com garantia, outros mais vagabundos com pouca vida útil,
mas o escravo é sempre um produto fiel e quase sempre
duradouro, pois é um produto e um cliente ao mesmo tempo, já
que ele precisa ser produto para ser cliente. Pensas que está a
chover, oh, pobre escravo? Pois não está a chover não, são só as
gotas da tua testa que desabam sobre o teu braço cansado. Somos
todos escravos, alguns com dois salários mínimos, outros com
oitenta, e a grande maioria com tão somente um, os contra-cheques
REVISTA
metamorfoseando neurônios em células de uma planilha de excel
que calcula quantas gotas de chuva do seu rosto lhe custará cada
laranja que for comprar. E há que se comprar a laranja, porque o pé
que havia no quintal, bem... O pé já era, o quintal virou cimento,
tijolo e luminária nova. A horta continua com h, porém agora se
chama hectare. A entrada da casa virou hall e os fundos, jardim de
inverno (em pleno verão da Bahia, é mesmo uma falta de respeito).
E ele, o contratado, virou escravo da própria terra, agora
trabalhando na cozinha dos que a compraram, os senhores feudais
do século XXI. E ainda tem a cara-de-pau de denominar cada
escravo como um colaborador. É tudo uma questão de ordem dos
fatores, e esta sim, altera o produto: antes, você, estimado escravo,
estava morando num pedacinho de terra. Agora que compraram
seu pedacinho de terra, você trabalha para alguém que a comprou,
e inclusive já lhe convenceram que precisam de você como um
instrumento, você até se sente parte da equipe, a rotina laboral tem
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praticamente a mesma adrenalina e desgaste físico de uma
olimpíada, ponto pra eles, que agora lhe tem como qualquer outro
abestalhado, anulado, hipnotizado por um pão, feito o cachorro
que fita um frango dourado e crocante a girar. Eles venceram:
batata frita. Mas não acostuma, que batata frita no menu do staff.
Nos demais 29 dias do mês, o menu é o feijão (o mulato, que tem
menos gosto que o preto, mas custa incontáveis dois centavos a
menos) e arroz, aquele, juntinho feito papa de nenê, é mesmo de se
lamber os beiços. Mas depois de trabalhar feito uma mula, quem é
que liga para o gosto da comida, não é mesmo? A vida é assim: uns
tem sala, outros tem cela, uns passam a caviar, outros a cavar um
lugar no refeitório repleto de famintos. Acontece que o dinheiro é a
arma mais letal da qual temos conhecimento, e como dessa arma
nenhum escravo dispõe, a luta é sempre desleal.
Sem essa de casa própria, sejamos diretos: o sonho é o de ter onde
cair morto, de ter a possibilidade de encontrar a maldita paz de
deus debaixo de algum teto, mesmo que seja um frágil, prestes a
desabar no próximo temporal, o sonho da paz, a própria. Com isso,
anda bastando. Qualquer um que tenha onde pelo menos ter um
piripaque, já pode enfartar aliviado, vai morrer com a vida ganha.
Não se dão conta de que não serve pensar num mal menor, que se
seguirem com esses braços atrofiados por estarem tanto tempo
cruzados, só farão diminuir mais, diminuir até despare.ser, até
deixarem de ser.
Nem direita, nem esquerda, nem meio: assumamos o profundo.
Porque nem a esquerda, nem a direita, nem o meio - este cada vez
mais desequilibrado – podem traduzir qualquer situação. E a
situação é de total complicação e destruição, descaso, ignorância e
manipulação, tudo sem meios termos, sem nenhuma cerimônia.
Então não devemos medir as palavras, não devemos deixá-las pela
metade, mudas, abreviadas, porque a dor não se abrevia, só faz
doer mais se não se alivia. E para aliviar uma dor assim, grande
como o próprio mundo, não basta convidar só as panelinhas, há
que se convidar todos os que estiverem nas entrelinhas da
engrenagem. Cada personagem é uma gota, e se não fosse por cada
gota, não teríamos chuva.
Não tardo em concluir que Itacaré é como o resto do mundo: um
paraíso que, de tanto querer sê-lo, tornou-se artificial, e mais uma
fonte de riqueza para os que, pelas leis desse sistema absurdo,
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merecem mais, e para empobrecer os que, sob as mesmas leis,
merecem mais é ficar com as raspas do tacho, e olhe lá. Uma
mentira tão confortável quanto qualquer outro paraíso, uma
mentira tão confortável quanto esperar que
deus não nos abandone.
Novas o.port.unidades: o projeto Porto Sul
encaixou como uma camisinha XL em japonês
nos planos de crescimento desordenado através
de cirurgias estruturais em Itacaré: o porto
haverá de trazer, trazer e trazer. Encherá a
cidadezinha de green goes de todas as partes,
desses que viajam em cruzeiros, logo, portam
mais dinheiros, trará também a esta, que já foi
um vilarejo, drogas novas, e em abundância,
porque imagina se um turista quiser usar seu
cartão de crédito para outros fins, e não
houver? A cidade perderia clientes, e a cidade
anda mais interessada em clientes do que em
visitantes. Porque quando visitas uma pessoa,
não deixas a casa do visitado cheia de lixo, não
tratas o anfitrião com desdém, não abusas. E
aqui tem certos tipos de turistas que, realmente, não encaixam no
termo visitantes, pois estão mais para.sitas.
Com o Porto, lá se vai outra fatia da mata atlântica, mas vejam!
Não esqueçam do que nos disseram: que haverá mais emprego,
REVISTA
mais oportunidade. Só não deixam bem claro para quem é a
oportunidade nem que tipo de oportunidade, sempre escorregam
nos detalhes, que coisa, tsc. Quando ouço a palavra oportunidade
tenho certos escalafrios na espinha, imagino os
residentes todos na boba e perigosa ilusão de
que as oportunidades serão suas. E boas. Tal
qual a Pituba, rua principal daqui: deu sim
muita oportunidade, especialmente para os
artistas medíocres, para os mercados novos e
de péssima qualidade, mas que te vendem
doritos e coca-cola a qualquer hora do dia,
para o subway, essa tentativa patética de um
mc donald‘s saudável. Espero que Itacaré
nunca tenha que ver um subway mesmo, como
aquele do filme Irreversível, porque aí sim,
significará que a situação estará mesmo
irremediável, irreversível (e perdoem-me esta
bagunca, cheguei a um filme francês por meio
de uma marca de fast food).
Prostituir-se não serve, nem por migalhas,
muito menos por fortunas. E a prostituição,
no caso deste porto, atingirá uma obra da natureza da qual até
Darwin falou, uma região com uma biosfera como nos sonhos mais
lindos. E mesmo que Darwin nunca tivesse alucinado por estas
bandas, mesmo que a biosfera daqui fosse composta só por
formigas e que a paisagem fosse de uma secura monótona, ainda
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REVISTA
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assim e sempre, a vida deveria ser respeitada, não invadida e
evacuada. Quantos haverão de perder suas moradas, mesmo que
financeiramente lhes digam o contrário e lhes convençam de que a
vida num apartamento longe dali será bem melhor. Classe média,
chega mais: miséria média, emprego médio, lar médio, tv média,
vidas pela metade. Con.tratantes contam, descaradamente, a
mentira de que o que estão a fazer é construir para evoluir,
desenvolver, crescer, e outros termos comuns nesse tipo de conto
de fadas que não deveria convencer a mais ninguém. O problema é
que o mundo ainda está cheio de gente que acredita piamente na
democracia, que nada mais é do que a ditadura travestida de anjo.
Caem quase todos no conto, feito patos, tal qual mesmo os
patinhos que estrategicamente posicionam no lago que serve de
adorno para o quintal de mansões e outras aberrações feitas às
custas da já tão cansada e impotente natureza (talvez não tão
impotente assim, essas águas de março inundando o verão no sul
do Brasil e limpando geral a terra do sol nascente, isso é um grito
de parem, ou eu atiro! Ô num é?)
Os lugares do mundo andam assim, deram pra permitir que
detonem sua terra, escravizem sua gente, entupam seus becos,
edifiquem seus morros, esfumacem sua cultura. E, como num
crime perfeito, as bases deste sistema inescrupuloso e desafetuoso
ainda saem na cena como necessárias, óbvias e, por que não,
ótimas? Destroem qualquer possibilidade de manter vivo o que é
genuíno e chamam isso de novos tempos. O pão que o diabo
amassou já está, além de amassado, dormido, anestesiado, sem
REVISTA
sequer qualquer aspecto de pão, e muitos seguem alimentando-se
desse ex-pão que chamam de comida, vivendo desse absurdo
máximo que chamam de salário mínimo, morando nesses barracos
que chamam de lar e vivendo nessa situação precariamente préfabricada que chamam de vida.
Já me atrevi a perguntar a um legítimo escravo, que recebe a esmola
de um salário mínimo para trabalhar 60 horas semanais, em
condições desumanas (porque ―insalubres‖ é um termo maquiado e
suave demais), por que será que aqui na Bahia a exploração grita tão
mais alto e tem mais força, e ouvi uma resposta que me doeu tanto
quanto o português desmoronante do pobre rapaz: ―deve dissê
porque nóis tem menos capacidade‖. E não é que ele tem razão?
Afinal, quem os capacita? Quem se interessa em capacitar essa
gente? Uns dois gatos pingados, que não estão tão afetados pela
mania de poder, talvez. Mas sim, ele tem razão: se não sabe nem
ler, como poderá contribuir para o nosso belo quadro social? Ora,
limpando, levantando peso, obedecendo, bajulando o patrão. Me
belisca aí: 2011, certo? Ai. Aham.
A tão solicitada consciência, afinal, vale ou não vale alguma coisa?
E se vale, serve ela sozinha? Podemos, genuinamente, fingir que as
coisas são como deveriam ser? Neil Young cantou ―o mundo está
girando, esperamos que você não lhe dê as costas‖.
E quando se tem consciência, será que é possível espalhá-la no céu,
na água da pia, no azeite de dendê da baiana que sofre porque
decidiu que ela merece mesmo sofrer e pronto? Sem mais penso,
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sem mais existo: não penso, logo, subexisto. Deixam que Deus ou
o pastor resolvam suas questões. Deixam que lhes digam como
fazer, o que fazer e quando. Deixam que lhes digam o que comer,
como comer e quando. Deixam que lhes digam o que rezar, como
rezar e quando. Deixam, inclusive, que lhes digam o que suportar,
como suportar e sempre.
Inseridos nesse sistema odioso, o exercício de pensar nos leva à
inquietude, à inconformidade, e nos leva, principal e
verdadeiramente, a pensar mais. Será tão desbaratinadamente
despropositado pensar em convidar aos demais, como quem
convida alguém a uma celebração, a exercitar o penso? Convidar a
pensar e a deixar de acreditar nas vozes aveludadas que dizem as
mais bárbaras asperezas, convidar a dar vazão ao que chamamos de
senso crítico, a uma análise um pouco mais profunda do que o
nível até onde damos pé.
...
Elena Fernandes é uma trotamundos que não
sossega nem geográfica nem socialmente: se
mandou de Porto Alegre para Londres, de
Londres voltou ao sul brasileiro após 2 anos de
chuva fina e festas malucas, do sul brasileiro
rumou a para Buenos Aires, onde viveu feliz e
porteñamente por 3 anos, e atualmente é
educadora no interior da Bahia. Sonha em ver um
mundo anarquista, portanto harmônico, e em ter
quatro filhos mais brilhantes do que as estrelas
do logotipo desta revista. É seguidora de St. John
Lennon e Godard, de Eduardo Galeano, Bakunin
e Allen Ginsberg. Ultimamente, se refestela no
mar quase que diariamente e está sofrendo lindas
metamorfoses por essa coisa de professorar.
REVISTA
29  BEATBRASILIS
Vitor Souza
UM ANO
RELEVANTE
O título acima não foi o que idealizei para esse artigo. Inicialmente
o texto iria se chamar “DA LAN-PARTY À REDE CAIÇARA”,
onde eu faria um relato sobre minha incursão de quinze dias pelo
estado de São Paulo a fim de: (1) participar de um dos maiores
eventos de tecnologia do mundo; (2) ministrar umas oficinas no
Ponto de Cultura Caiçaras, em Cananéia, onde eu também
aproveitaria para confraternizar e trocar um milhão de ideias com o
povo de lá, coisa sempre muito agradável; (3) tentar promover um
mini encontro relâmpago com alguns beatbrazucas colaboradores
dessa revista.
Imagem em destaque: minha mão segurando
um tijolo de adobe, fabricado no Ecocentro
IPEC. Pirenópolis - GO
REVISTA
Mas no fim, nada disso aconteceu, pois eis que meu gato resolveu
desaparecer por vários dias e retornar muito doente, bem às
vésperas da minha viagem, de modo que optei por ficar e cuidar
30  BEATBRASILIS
dele. Por isso resolvi aproveitar os últimos dias das férias e o tempo
que me sobrou para escrever sobre a importância que teve pra mim
o ano de 2010, um ano de fato relevante.
Antes de iniciar os próximos subtítulos, gostaria de abrir um
parêntese para acrescentar que Um ano relevante também é o título
de um texto que o companheiro da rede Metarec, Philipe Ribeiro,
escreveu há alguns anos, que pode ser conferido em seu site e
também num e-book organizado por Felipe Fonseca, de nome
Metáfora 1.0. Tomei emprestado esse título porque curti bastante o
texto do Philipe, mas também porque não consegui pensar em
outro melhor.
ITAIPAVA
Durante anos eu e minha esposa passamos os feriados de carnaval
em Barra de São João, onde morávamos, sempre na esperança que
algo de bons tempos voltasse acontecer: a reunião de velhos amigos
no carnaval barrense. As promessas vinham, os combinados eram
feitos antecipadamente, mas não vingavam. No final, o resultado
era sempre eu e ela sozinhos e tristes, naquele pedaço bonito de
litoral, durante os dias festivos de fevereiro.
Imagem em destaque: Cláudio e eu
enternecidos com a paisagem de Itaipava - RJ
Então neste ano de 2010 eu nem quis saber: aceitei um convite para
subirmos a serra no feriadão e pra lá fomos. Coisa boa! Itaipava é
sensacional, tem mesmo um clima bastante agradável. Fiz algumas
REVISTA
31  BEATBRASILIS
trilhas, tive tempo de pensar numa porção de coisas e concluir que
uma guinada na minha vida precisa ser feita. Foi o início.
CACHORRO SURTADO
Meu atual blog foi criado em 2009, com o nome de Terapia
Canina. Isso aconteceu logo assim que deletei o Literanua e
qualquer pretensão literária que durante 10 anos alimentei. Acabei
criando o Terapia porque, apesar de ter desistido da literatura,
continuava sentindo aquela velha necessidade de desabafar através
das palavras. Então de vez em quando recorria ao meu novo
espaço virtual e a verborragia corria solta. Geralmente os posts
eram queixas bastante sem importância, de coisas relacionadas a um
emprego que eu não mais suportava. Mas com o tempo, aquela
lamúria toda passou a me dar no saco também, e comecei a pensar
num objetivo mais "nobre‖ para o Terapia Canina, objetivo que
estivesse em maior sintonia com a série de reflexões que havia
começado em Itaipava. E isso foi feito assim que retornei de Goiás,
quando meu blog ganhou o atual nome, Cachorro Surtado, e uma
nova cara.
Imagem em destaque: figura usada no post “A
estrada do Cachorro Surtado” de 07/09/2010
MISSÃO GOIÁS - PDC 2010
Aconteceu que numa certa manhã de sábado, ignorando
compromissos e obrigações, vagabundeando pelo centro de Rio das
Ostras, resolvi entrar numa banca de jornal e comprar um exemplar
REVISTA
32  BEATBRASILIS
da Revista Trip. Gosto das matérias da Trip, mas naquele sábado
creio que a comprei por saudosismo, pois há tempos não a lia:
andava lembrando da virada de 1999 pra 2000, de quando resolvi
que seria um ―escritor‖, de quando, com muito custo, construí meu
loft, de antigos amigos... Mas ao chegar em casa, folheando as
páginas daquela edição, dei de cara com essa matéria aqui.
Foi um ―peteleco na orelha‖, como diria Kerouac, ler aquele artigo.
Então comecei a me interessar por Permacultura e me dispus a
tentar descobrir tudo que pudesse sobre o Instituto de
Permacultura e Ecovilas do Cerrado (IPEC). Levantei as
informações que julguei necessárias e me inscrevi no próximo curso
que eles estavam oferecendo.
E assim foi que na madrugada do dia 17 de abril de 2010, prendi a
respiração e dei um mergulho no escuro, partindo do interior do
estado do Rio de Janeiro rumo ao sertão de Goiás.
Você pode ler o relato completo da minha viagem aqui, ou então
aqui.
MISSÃO VALE DO RIBEIRA – CANANÉIA
Imagem em destaque: grupo que encontrei
na estrada, também a caminho do Ecocentro
IPEC
Voltei de Goiás achando minha cidade menor, minha casa menor,
minha vida menor! Precisava fazer algo com uma urgência que eu
nunca sentira, porém não fazia ideia do que queria exatamente. Mas
sabia muito bem o que não queria! Comecei então a deletar da
REVISTA
33  BEATBRASILIS
minha vida situações, hábitos e rotinas. Com isso, parei de realizar
certos trabalhos, suspendi minha participação num determinado
projeto e me afastei de algumas pessoas. A única coisa que sobrou
dessa ―limpeza‖ foi o meu emprego, que intuitivamente senti que
não era hora de abandonar.
Uma coisa que eu sempre recomendo às pessoas quando as coisas
estão chatas ou confusas é: pegue a estrada. E pegar a estrada foi
exatamente o que fiz um mês depois de voltar de Goiás, dessa vez
rumo ao sul de São Paulo, beirando o litoral, Vale do Ribeira,
Estância Balneária de Cananéia. Meu primo, o Luiz Mayerhofer, já
estava lá há alguns meses, atuando ativamente no Ponto de Cultura
Caiçaras. Vínhamos trocando ideias pela rede desde outros tempos,
ele sempre me chamando para ―mochilar‖ por lá, querendo me
colocar por dentro da ―vibe‖ que estava rolando. Eu não fazia ideia
do que ele estava dizendo, mas naquele momento tive a sensação
de que era hora de descobrir.
Imagem em destaque: Luiz Mayerhofer e eu,
tomando café da manhã no Bar do Miguel.
Cananéia - SP
REVISTA
Chegando lá, o que vi foi uma verdadeira fraternidade de jovens
bens intencionados e engajados numa série de projetos que, a
grosso modo, objetivam transformar o mundo num lugar melhor.
Uma galera muito bacana e totalmente imersa em coisas como
Editais e Terceiro Setor. Era mais um universo de possibilidades
que se abria.
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Até hoje, não sei se voltei de Cananéia mais esclarecido ou mais
confuso sobre que rumo dar a minha vida. Mas pela primeira vez
em anos, me sentia vivo e com gás para fazer muito.
Você pode ler o relato completo da minha viagem a Cananéia aqui,
ou então aqui.
METARECICLAGEM
Não lembro de que forma fiquei sabendo do programa
Sustentáculos, da TV Brasil. Mas passei a acompanhar. Certo dia,
assistindo ao programa, começou a passar uma matéria que
mostrava uma espécie de ―laboratório de informática‖ situado
dentro do Parque da Juventude, em São Paulo. Cheio de peças de
computadores descartados, era um monte de fios, cabos, placas e
carcaças das mais variadas espalhados por tudo que é canto daquele
lugar. E a galera ficava lá, desmontando, remontando, consertando,
revirando... E rolavam umas aulas de hardware para a comunidade
também, tudo muito fraterno. Foi a primeira vez que ouvi a palavra
Metareciclagem. Foi amor a primeira vista!
Tratei de escrever logo para o programa a fim de obter mais
informações. Foi então que fiquei conhecendo o site da Rede
Metareciclagem, onde me cadastrei e passei a acompanhar a lista de
discussão. De cara fui recebido muitíssimo bem por figuras de fato
admiráveis.
REVISTA
Imagem em destaque: Oficina de
metareciclagem feita na Escola EP de Barra de
São João - RJ
35  BEATBRASILIS
Depois fiquei sabendo que o laboratório que vi no programa da TV
Brasil era um esporo da Rede Metarec. Em botânica, esporo é uma
célula que sem fecundação se separa e se divide até formar um
novo indivíduo. Mas naquele momento, na minha ignorância, eu
não fazia ideia do que significava a palavra esporo. Assim como
muitas outras palavras, neologismos, expressões e siglas que passei
a ler na enxurrada de e-mails que vinham da lista Metarec todos os
dias: mutgamb, mutsaz, linkania, pvt, xemelê, memelab, bricolagem,
telecentro, reapropriação crítica da tecnologia...
Com isso, tornei-me militante do movimento do Software Livre e
adotei o Linux como ferramenta de interação com o mundo virtual.
Escolhi a distribuição Ubuntu por ser considerada por muitos a
mais fácil de mexer, e como feliz usuário iniciante de Linux, além
de "cascudo" ex-profissional de TI com quase duas décadas de
experiência, posso com clareza recomendar: Use Linux. Garanto
pra você que a experiência é libertária!
Imagem em destaque: foto oficial tirada ao
final da primeira temporada do projeto
Oficina Livre
REVISTA
Software Livre pressupõe compartilhamento da informação.
Pressupõe fraternidade. É um movimento com profundas
motivações ideológicas, anti-monopólio e anti-capitalista. Está, não
por acaso, relacionado a muitos outros conceitos e ideais: educação
ambiental, sustentabilidade, cyberativismo, ética hacker...
36  BEATBRASILIS
PROJETO OFICINA LIVRE
Ocupações que de alguma forma possam promover uma relativa
transformação social.
Oficina Livre começou como uma ideia pedagógica diferente para
as aulas ministradas na oficina de informática da Escola EP de
Barra de São João. A ideia virou projeto, o projeto virou realidade
no cotidiano da escola, e esse cotidiano virou relato on-line e
informação técnico-pedagógica fraternalmente compartilhada.
Objetivo final desse projeto: promover cultura e educação
ambiental mediante o uso de softwares e ferramentas livres.
Ao final do ano letivo, minha feliz constatação foi a de que, pela
primeira vez em quase sete anos à frente da Oficina de Informática
daquela escola, não tive uma representativa evasão de alunos,
desmotivante e triste, das minhas aulas. Terminei com praticamente
o mesmo contingente que iniciou, e isso por si só representou um
grande feito. Embora eu não tenha atingido todos os meus
objetivos, fiquei de fato muito feliz. O trabalho foi feito e acho que
foi bem feito.
Voltei pra sala de aula ainda em 2010. Prefiro começar por aí.
Arregaçar as mangas dá trabalho, mas também dá resultado.
Sigamos! Usar a realidade como ferramenta, e não ficar me
digladiando com ela. É nisso que estou focado.
POST SCRIPTUM
Um dia depois de terminar de escrever este relato, meu gato
desapareceu novamente. Encontrei-o por acaso a três quarteirões
da minha casa. Tentei levá-lo comigo, mas ele resistiu e me mordeu.
NOVOS RUMOS
Pra 2011, meu foco é o de tentar compreender um pouco melhor
como funciona esse universo que é o Terceiro Setor. Me inteirar
sobre os programas do governo para fomento de projetos nas áreas
ambiental, cultural e tecnológica. Interagir com pessoas que
optaram por se dedicar a ocupações que lhes façam sentido.
REVISTA
37  BEATBRASILIS
Vitor Souza é técnico em meio ambiente, permacultor, metarecicleiro e
ilustrador. Assina o blog Cachorro Surtado, resolveu publicar tudo que já
escreveu sob licença Creative Commons e sonha em ser um fiscal
incorruptível quando crescer. Atende no e-mail [email protected]. É
usuário de Linux e de chá de camomila
LEANDRO DURAZZO
Vagabundo
pão-de-açúcar
A gente tinha acabado de sair de um boteco de esquina meio sujo
nada sofisticado onde havíamos bebido algumas cervejas graças à
boavontade de um velho amigo de meu pai. Estávamos sem
dinheiro, ou quase, e a única coisa que tínhamos seria para um bar
mais adiante, em qualquer lugar longe dali. Era um bom amigo do
meu pai meu tio praticamente que dizia ser a bebida o álcool uma
bela noite pra um dia de merda. Ele compraria a Varig se pudesse
por um real e embolsaria 13 milhões antes de abrir falência
definitiva.
Sentando no bar mais adiante longe mesmo daquele outro pedimos
nossas cervejas baratas e começamos a noite novamente. Terceira
garrafa virada no copo – nem isso – e senta conosco um homem
bem torto de tanta bebida do dia inteiro. Alagoano, ele disse,
alagoano cabra-macho que não leva desaforo e dá um murro na
orelha do primeiro cachorro que se mete à besta com os amigos.
Nós éramos amigos. Sentado ele e nós todos com os copos vazios
cheios vazios cheios – menos o alagoano arretado que não bebia
nem um gole mais – foram várias garrafas. Entre elas no
intermezzo ou durante mesmo a bebedeira o cabra dizia as coisas
mais envolventes certeiras. Diz que vinha de Alagoas, Pão-deAçúcar disse ele, desde antes de eu nascer ele desceu cá pra São
Paulo – ilusão lugar cachorro que não tem tanto trabalho como
gostam de pensar. E dizia dizia poesia de cordel falava que nem
nordeste levantava a mão pro céu e ria ria e deixava a gente rindo
REVISTA
38  BEATBRASILIS
pelas graças que acabavam saindo de toda aquela loucura bêbada
dele e nossa ao mesmo tempo.
a lua surge no céu
redonda que nem uma vara
no dia que eu não ver ela
não boto o feijão no fogo
mocó é um bicho chamado preá
que avisa "quiii quii"
do alto da serra
quando tem jibóia perigo por perto
Avisa e corre se esconde no mato porque não é lá que jibóia
costuma nascer, jibóia é cobra que dá em lugar úmido
E ia sempre cada vez mais trazendo cerveja pra nossa mesa e
contando suas proezas todas feitas no nordeste. Porque claro
saibam todos que ele trabalhava lá em cima desse mapa, fazendo
irrigação. E pra irrigação tinha todo um processo de cavucar a terra,
separar o chão do resto, cavar bem um buraco, fazer uma dividição
―COMO?‖ uma dividição ―Como, meu amigo?‖ uma dividição oxe,
deixe comigo que tô falando – colocar pra cada lado uma porção de
terra justa pra fazer com que o buraco sirva bem pro que plantar –
mamão melancia e o que mais aparecer.
E no nordeste também ele sabia bem tinha sempre muita cobra.
Cabra valente claro que era tinha mesmo muitas vezes dado cabo
dessas feras. Jibóia era moleza, cobra mansa que só ela, dava pra
fazer subir no braço enrolar na mão e fazer carinho. Jibóia é cobra
mansa que nem sucuri, ―a gente pega ela com varinha de ripa de
nambu‖. ―Como?‖ ―Varinha de ripa de nambu, cabra, me escute
que tô falando‖. Varinha de nambu. As jibóias são mansas pra
quem tem mão pra ripar, porque pros coitados dos bichos.
REVISTA
cascavel dá em lugar seco
em pedreira pedra
cascalho
por isso "casca"vel
E o cabra buscava mais cerveja e corria de volta pra mesa rindo pra
já falar alguma outra besteira qualquer pra nós dois perdidos
naquela noite insana
meio-dia
sol a pino
os pássaros voando sobre as árvores
sentado num banco de pau feito de pedra
nu com as mãos no bolso
- ele parava e perguntava pra mim, perguntava pro meu amigo quais as quatro maravilhas melhores desse mundo?
- não a gente não sabe! Por favor cabra (cabra!) fale quais são -
39  BEATBRASILIS
tomar cachaça, paraíso de adão, saúde e as mãos no bolso
pra tirar dinheiro
Pois era tudo assim como deveria ser paraíso de adão que é o colo
quente no qual a gente se joga sempre que pode.
lírio manjericão que enfeita meu jardim
se pudesse ser assim
paraíso de adão
pela pura perfeição
que é da planta mais vistosa
até por cima do muro
planto cravo nasce rosa
Toda pura poesia como disse meu amigo, num outro dia seguinte
louco de anotações sem fim pra poder lembrar de tudo ou o que
me apetecesse e escrever esse conto louco louco porque, também,
essa história de esperar muitos dias pras coisas acontecerem acabou
com a desgraça da história do tal ―Tchó!‖
e o cara foi lá com um pedaço de aço
pediu pro ferreiro - sabe, aqueles ferreiros
que mexem com fogo e metal - e disse:
"faz pra mim uma enxada pra eu cavar a terra"
"claro faço sem problema. passa aqui na quinta-feira
outra que não hoje, me dá oito dias"
deu que se passaram os dias
REVISTA
e o cabra foi no forno
pediu na quinta-feira
e o ferreiro fez de morto disse:
"e fiz que fiz o aço diminuiu,
agora pra ti cabra eu faço é um enxadeco
daqueles bem firmes pra cavucar a terra"
"então não me aperreie mais com essa cachorrada
na outra quinta-feira passo aqui e por fineza
me entrega o enxadeco pra eu poder trabalhar"
foi mais sete oito dias outra quinta-feira veio
e o cabra arretado foi até o tal ferreiro
"sabe meu amigo cabra sério
enxadeco com esse aço não tem mesmo como certo
o máximo que posso é te fazer um martelo"
"oxe cachorro fidumapeste
faça logo esse martelo que te dou três dias santos
pra poder voltar aqui"
e nos três dias depois
uma outra quinta-feira
o homem correu pro forno pra buscar o tal martelo
que era pra ser enxada
ou no mínimo enxadeco
"sabe meu amigo, martelo mesmo não deu
o que eu faço pra ti com esse aço
é um 'tchó' dos mais sinceros"
" 'tchó' ? mas que diabo da peste é 'tchó'?"
40  BEATBRASILIS
" 'tchó te faço agora não precisa nem espera"
e tomando do metal que era pra ser enxada
ponta quente feito brasa queimando num fogo rubro
olhou pro balde de água que servia de bacia
enfiou o ferro quente
e o 'tchó' que se ouvia
era o mesmo do cigarro
que meu camarada tinha
sendo enfiado num copo
de água com caipirinha
Era a mais pura verdade bateu lá na consciência, num estado de
ausência de qualquer futilidade que pudesse atrapalhar o gosto
daqueles versos, soou como soa o sino da igreja ao meio-dia ou
como o despertador que ao meio-dia acorda minha cara de ressaca
depois de chegar em casa pouco antes e anotado tudo isso que falei.
Ríamos ríamos ríamos claro por que não? afinal o cigarro já era e já
era noite alta bem no meio madrugada e mais cerveja saía. O
arretado de Alagoas que queria uma ajuda com algum advogado pra
poder assumir a guarda da filha do Guarujá não bebia nem um tico
do copo velho sujo quente pousado em cima da mesa. Era tanta
coisa assim de parente e mulher foda – ela vinha de Sergipe
também não era daqui, mas São Paulo deu à luz a menina do
nordeste que agora, veja só, não ficava com o pai – saiu outro
poema outro cordel outra arte.
jacaré não tem tempero
cabra ruim não tem parente
mulher de bucho quebrado
não tem vestido que assente
REVISTA
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O Bairro Guilherme Rocha
Um bairro cede. Desfaz-se. Mancebo concebe. Tabaco tosta.
Risca o muro ansiando motim. Mira o sítio. Cospe em seus farrapos pretos.
Homens armados escoltam seu consorte. Causa: vulgaridade traçada em praça pública.
Pasmem. A revolução evoluiu. Joviais e livres, poetas soldados brincam de mudar o
mundo.
Um velho sentado numa mureta observa o mundo. Seus olhos precisos sabem o que
admirar. Mãos enrugadas descansam em seus joelhos.
De repente levanta e com no fluxo das folhas ao vento ele se desloca alguns metros
até chegar a um banco, onde, uma vez sentado, volta a mirar o mundo.
Contempla o tempo.
Um bairro se acende. Pés estrangeiros deslizam entre as ruelas.
Nadja sente pecado entre as coxas. Alcoolizada à noite faz-se fácil amar.
Segreda uma terna melodia para o agrado de Susy. Dançam coladas. Luzes as seguem.
Silhuetas lésbicas beijam-se em fricção.
Em qualquer lugar do seu mapa mundi,
sotaques distintos se misturam durante o dia,
e à noite se consomem.
O compasso é a marcha das ruas,
sombreadas pelos fados das varandas.
Onde flores sem foco enfeitam a noite, incolores,
fundidas na Canção Sem Fim.
Raquel, a puta mais bem servida da cidade chora escondida, mas logo engole suas
lágrimas para bem acolher o prefeito.
O lixo amontoado faz dela o mais belo ornamento das esquinas.
Ouço suas queixas. Faço-lhe agrados. Choramos em sintonia.
Nunca lhe dei flores, pois seu toque as faz murcharem.
Nunca disse que a amo. O romance lhe agride.
Nem em sonhos conheço seus pais.
Numa tarde ensolarada roubamos uma quitanda de duas peras e uma maça.
Chegados num parque, Marquito picareta de mim as frutas e com uma risada e dois
pulinhos grita uma obscenidade e desaparece para sempre.
Partituras voam à frente de uma criança.
E enquanto criaturas contextualizam palavras,
poetas vivem para poupá-las.
REVISTA
Trovador do asfalto cante-me sua fome.
Ostente sua barba afiada, insetos e tudo,
Navegue as ruas buscando seu novo mundo.
Com o mais perfeito amor em um saco de beber
E rugas da história nos dois calçados furados.
Cerâmicas pintadas cobrem as fachadas.
Límpida em história,
Encanecida em vida.
Azul e branco para os deuses.
Creme e cor-de-rosa para os banheiros
Enfeitando tapumes, esboçando passados.
Passado. Cedido. Desfeito.
O bairro.
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Guilherme Rocha demorou três dias para caminhar todo o
litoral sul da Paraíba. Para muitos, bastaria dois.
ANSEIOS
LUIS SALES
ANSEIOS SE PERDEM
COM O PASSAR DE TUDO
E O LOBO DA ALMA TENTA INQUIETO
DEVORAR TODA A REALIDADE
INÚTEIS TENTATIVAS
CANSADO, VELHO, ABATIDO
TEIMOSO PORÉM
UIVA INCANSÁVEL
PARA PERFEITA E ONÍRICA LUA
SEMPRE DISTANTE
TENTA, TOLO E DÉBIL
ALCANÇAR O INTANGÍVEL
O TEMPO E O FRACASSO LHE AÇOITAM
LONGOS CHICOTES ESTALAM
A LUA INDIFERENTE E IMPOSSÍVEL
SE MANTÉM
O LOBO FERIDO SANGRA
MAS VÊ A LUA E SEUS VISLUMBRES
NUM COMPLETO RESUMO DE ÁRTEMIS
A CAÇA E A LUA
A CAÇA PELA LUA
SEU OBJETIVO MÁXIMO... DISTANTE.
OS CHICOTES NÃO CESSAM
O LOBO PARA
A DESISTÊNCIA VEM LHE ABRAÇAR
E O CONFORMISMO LHE FAZER CARÍCIAS
A REALIDADE RI, GARGALHA
A LUA DESAPARECE
O LOBO JÁ NÃO EXISTE.
LUIS HENRRIQUE É JOVEM DE PREGUIÇAS TANTAS E ALMA IDOSA, FÃ INVEJOSO DOS GRANDES
REVISTA 43  BEATBRASILIS
POETAS, GRANDE CONHECEDOR DE COISA NENHUMA. ESCREVE PORQUE NÃO SABE DESENHAR,
MAS NÃO SABE ESCREVER. E TENTA, DE MODO UM TANTO DÉBIL, DIZER ALGUMA COISA, MAS SEM
FALAR DEMAIS.
FABRÍCIO BUSNELLO
CANTIGA DE TEMPO
E VENTO
REVISTA
44  BEATBRASILIS
Um tempo.
E nesse tempo uma paisagem de pampa no inverno.
E nessa paisagem se vai um taura sobre um cavalo, o pala negro
molhado de chuva pesando sobre seus ombros e aumentando a
carga do cavalo que ele monta.
Alguém que os visse assim, ao longe, neste cinza invernal e
chuvoso, pensaria num centauro e acertaria. O que é o homem sem
o cavalo nas pradarias sul americanas? Um sagitário mutilado, uma
criatura mitológica sem ninguém pra imaginá-la: é nada!
Coxilha após coxilha, charco após charco, encosta após encosta.
O centauro deixa cair sua solidão sobre a relva molhada como cai a
chuva lá de cima. O Patrão Velho parece brabo nesses dias de
revolução.
Uma pequena igreja de madeira, ilhada em meio a todo um mar de
verde observa o cavaleiro aumentar no horizonte lindo e triste.
Parece um gigante de quatro patas, um gigante cabisbaixo, chapéu
REVISTA
de abas a lhe cobrir a cara que é barbuda, a cara que é trigueira e
curtida pelo sol frio desse pedaço de terra, a cara que carrega dois
olhos assustados pela guerra, entristecidos pelas assombrosas
circunstâncias.
Apeia do cavalo e o amarra na figueira que faz companhia à casa de
deus naquele reino desolado e entra cuidadoso na igreja vazia
fazendo o sinal da cruz apenas por hábito. Há um grande buraco
no teto por onde a chuva insiste em pingar o tempo. Procura um
canto livre daquela água e senta pra pensar, pra dormir, pra
se terrificar com suas visões, com todos os assustadores eventos
gravados dentro de sua cabeça cansada. Mesmo sentado parece
ainda sentir o balançar amigo e honesto de seu cavalo, como se
ainda corresse pelo deserto verde que desliza pra fronteira do
Uruguai.
Coxilha após coxilha, charco após charco, encosta após encosta.
Que mundo é esse que ele repensa agora tiritando de frio encolhido
dentro de uma igreja abandonada, destruída pela guerra como ele e
como ele separada do deus para o qual nasceram pra servir?
45  BEATBRASILIS
A dor de não ter resposta não é pior do que a resposta que ele
poderia elaborar se a noite não chegasse voando no vento rápido
que sempre vasculha os recônditos solitários do estranho campo
gaúcho. E com o vento vem uma milenar canção de sono que é
ouvida ali desde sempre. Desde antes dele. Desde antes da igreja.
Desde antes da figueira. É uma canção escura. É uma canção que
mal se escuta. E ela lhe parece sagrada, lhe parece linda. Porque a
canção lhe bota um peso doce sobre as pálpebras e lhe tira todo o
pensamento da cabeça. Sagrada porque não dói e linda porque ele
esquece. E agora o índio velho dorme alheio às vagarosas tramas
do tempo, correndo numa velocidade estranha pelos surreais areais
dos sonhos.
o que restara. E seguiria então vivendo, pois sempre teria uma
próxima coxilha, um outro charco, uma nova encosta. Seria assim
até finar-se o cavalo, seu último melhor amigo. E depois ele partiria
para uma outra campereada, onde a morte lhe apontaria outras
paragens com novas distâncias entre estranhos destinos, porque um
quera não se perde na contagem de algum tempo, mas renova-se
pra sorrir ao cavalgar o vento que desde sempre azucrina a pampa.
Coxilha após coxilha, charco após charco, encosta após encosta.
Nem o frio da fantasmagórica madrugada perdida o acordou, nem
o Jacurutu que grita como os mortos que falam o arrancou da paz
do esquecimento que permeia o sono. Só o estranho vermelho do
amanhecer que encheu a velha igreja, tomando o lugar que um dia
havia sido de deus, o fez notar a hora de partir de novo. O
amanhecer berrou dentro da capela e o homem se fez outra vez um
com seu cavalo, tocando o destino em frente com as esporas,
deixando uma distância maior entre ele e o que já se olvidava na
estrada. Vinha das bandas de São Miguel, das ruínas assombradas
das Missões que ainda choravam os Guaranis. Vinha descendo pela
terra dos Sete Povos, recebendo na cara o forte Minuano que nasce
lá nos Andes.
Desolado entre duas distâncias gigantes, o homem toca-se dali mui
triste, sentido com o silêncio de não saber pra onde ir: cavalgar era
REVISTA
46  BEATBRASILIS
Fabrício Busnello não voa alto porque não precisa,
pois as coisas que mais ama estão aqui embaixo. Vivo
desde 1976, foi aprendendo desde cedo a amar as
estradas, passando com a família pouco tempo em
muitas cidades. Colorado, Gaúcho e Brasileiro,
acabou por formar-se em Turismo por pura
conveniência. Nasceu mestre em Vagabundagem, e
tenta aprimorar esta vocação enquanto ronca em
ônibus que rodem pelo sítio que mais ama nesse
mundo: a América Latina!
LEANDRO GODINHO
OLHOS ABERTOS
A última das estrelas morreu no céu. Meus olhos cinzentos na tevê
e um filme demasiado pornográfico para ser sexo de verdade. Na
rede, uma Lila morena e dorminhoca, nua e santa demais para
aquele quarto. A atriz montava no falo e berrava a cada contração
de seus quadris. Eu não acreditava em nada. O que me enchia de
vontade de sexo era Lila, mas Lila precisava dormir, como eu
insistia em não fazer.
A última das estrelas morreu em vão. Ninguém iria chorar por ela,
pelo seu brilho agora breu. Lila não iria acordar por uma estrela
morta anos-luz atrás. Lila gostava das coisas quando vivas, dos
homens quando sorridentes. Eu deitado na cama sozinho era um
homem morto, bem o sabia. Lila dormia em paz porque não sabia,
mas eu era um homem jurado de morte. Tente dormir podendo
não acordar.
A última das estrelas não vai nunca saber o que é uma semana sem
conseguir fechar os olhos. Nem eu sabia direito, depois do segundo
dia, tudo virou mancha e talvez. Lila tentava me resgatar e me colo-
car para ninar em seu colo. Depois do quarto dia apelei para
bolinhas e virei delírio. Em casa, vidrado, a magnun debaixo do
travesseiro. Será que alcanço o gatilho a tempo? A mão é fugaz e
tenho a porta da cozinha logo na mira. O revólver desliza até Lila, e
até a noite.
A última das estrelas é à prova de balas. Eu não sou. Há uma bala
fora deste apartamento me aguardando e Lila não sabe disso. O
revólver voltou para debaixo do travesseiro e a mulher suga com a
força da terra a seus pés todo o sêmem que o homem da tv tem a
lhe gozar. Enganei o homem que quer me matar, enganei sua
esposa e engano Lila. Lila desperta, me vê morto na cama, cinza.
Desliza até alcançar minha boca. E então ressuscito.
A última das estrelas queimou tudo o que pôde. Lila vai me
consumir por todos os seus poros. É uma questão de tempo para
que ela vença a bala que me aguarda. Quando grito, ela morde.
Respiro, transpiro. Não morri ainda. Não posso fechar os olhos.

REVISTA
47  BEATBRASILIS
também lacrimosas, pareciam – veja só minha peraltice – uma
colméia de viúvas, mas não, só a moça do vestido negro, do negro
véu, a mão direita sobre o caixão aberto é que havia de fato ficado
sem o marido. As outras sequer possuíam um exemplar para perdêlo.
LEANDRO GODINHO
SANTO HOMEM
Os amigos foram chegando aos poucos, trôpegos, sem ter como
acreditar no bizarro da cena. Santo homem. Marido exemplar. O
Marcos. Marquinhos.
Entravam cabisbaixos e logo se davam com a realidade, o cheiro
das coroas de flores, das velas, da gente triste, o pai do Marcos, o
filho do Marcos, a viúva, sobretudo a viúva, um colosso de mulher
quando em cores mais alegres e ambientes mais festivos.
Ninguém sabia ao certo como havia morrido aquele homem. A
mulher dissera aos peritos que encontrou seu amado agonizante no
quarto de André, um amigo do casal que dava uma festa na noite
anterior. Sem maiores delongas, ele morreu.
Muito triste.
A viúva chorava, tão novinha, ainda rija nas carnes, devia andar
pelos trinta. Vestiu-se com pudor para o velório, um vestido negro
e até um negro véu, uma máscara mortuária para ela também.
Estava cercada pelas amigas, também professoras primárias,
REVISTA
Para o Inspetor Sampaio, muito conveniente também. A viúva
chorava e Sampaio ia olhando, que debaixo das lágrimas, se antevia
o decote farto, farto em demasia ele diria, as lágrimas também se
demoravam ali. Mandou examinar o cadáver e dispensou a mulher.
48  BEATBRASILIS
Marcos, amigo das piores horas. Ele vai fazer falta. Não se fazem
mais homens feito Marcos, minha filha. Era um galhofeiro, um dos
melhores. Marcos era um irmão pra mim. Amava como se ama um
filho, minha querida. Era longa e comovente a lista dos pêsames. A
viúva se comovia com cada um. Alguns dos amigos, entretanto, não
deixavam de notar como as ancas da mulher venciam o luto do
vestido e mostravam-se bem vivas.
O André, este estava completamente apoplético. Além de num
estado de pileque sem igual. Dois amigos o sustentavam de pé
naquela hora dura, um em cada braço. Foi o primeiro a ver o
Marcos desfalecido nos braços da esposa, tornada naquele instante
viúva. Ela agachada e metida numa saia que fazia o desenho
daquele corpo tão digno em seu pecado, aquela cintura impossível.
Então se deu conta que seu melhor amigo estava no chão,
desfalecido. Entendeu tudo num átimo antes de mergulhar naquele
torpor medonho.
caixão já estava sendo fechado para tomar o cortejo do túmulo
quando o Inspetor Sampaio adentrou no velório, solene, fez o sinal
da cruz diante do Cristo que pendia acima da cabeça do defunto e
se achegou da viúva. Ela levantou o véu e ele viu a boca sem batom
mas recheada de promessas que ele não poderia revelar ali. Outros
dois agentes o acompanhavam e foi com muita dignidade que ele
anunciou à viúva que ela estava presa, sob a acusação de assassinato
da vítima Marcos Emílio Revega, o Marquinhos, o Marquinhos!
REVISTA
Assassinato! Matou o próprio marido, vejam só, a facínora, a cínica
– chorando sobre a vítima.
Ela ficou lívida a princípio, mas não ofereceu resistência. Seu único
capricho foi lançar um último olhar e beijar a testa do marido
morto. Algemada, foi retirada do velório que se tornou bafafá. A
polícia não quis prestar maiores esclarecimentos, preferiu enfiar a
moça na viatura e todos arrancaram em silêncio.
Diante do inspetor na delegacia, ela, a viúva, confessou. Matei meu
marido. Matei. Matei! Sampaio não era homem de convulsões e
apenas acenou para um dos auxiliares, que foi buscar um copo
d‘água enquanto ele emprestava à moça uma caixa de lenços de
papel. Sampaio perguntou, após o copo d‘água, por que aquilo.
Um santo homem. Marido exemplar. Amigo do peito. Pai
dedicado. Empregado querido.
A viúva então se mostrou em toda a sua imponência, a voz saiu
finalmente, as lágrimas secaram, os lábios coraram outra vez.
Foi o homem mais doido que eu tive, doutor. Um horror. Por ele
eu fazia de tudo, apanhava na cara, de mão fechada, se fosse
preciso. Na cara! Ele gostava de me submeter a si das mais
diversas formas. Ele me amarrava na cama, me amordaçava, às
vezes prendia meus pés juntos e me possuía assim, por trás! Por
49  BEATBRASILIS
ele, tive que beber mijo certa feita, e ele delirava, chegava a
desfalecer de êxtase.
Só teve uma única coisa que nunca dei pra ele. Naquela festa, ele
propôs um jogo. Aquele puto. Queria me deixar no quarto do
melhor amigo toda amarrada, um consolo no meio dos quartos, pra
me descobrirem lá no meio da festa. Foi demais, doutor. Eu posso
ser muita coisa, mas dentro de casa. Na casa dos outros já era
demais! Ele se exaltou e puxou o cinto para me imobilizar e eu
resisti. Tomei-lhe o cinto. Ele vacilou e me vi de posse de seu
pescoço, através da peça de couro. Foi assim.
Sampaio suspirou longamente.
A viúva então, mais bela do que nunca, deixou-se cair na cadeira.
Chorava outra vez. Meu homem. Matei meu homem.
Meu santo homem.
50deRegatas
BEATBRASILIS
Leandro Godinho, 33, é formado em Comunicação Social, calejado em torcerREVISTA
para o Clube
do Flamengo e mentiroso contumaz. Já morou em Belém, no Rio de Janeiro e atualmente vive em Porto
Alegre. Batizou seu blog com o pomposo título Sketches from my sweetheart, the drunk.
Essa virada de ano foi diferente. Não entrei muito no clima de reveillon,
porque estava totalmente focado em outros assuntos - minha filha
estava a caminho na longa estrada para este mundo, e acabou nascendo
no dia 20 de dezembro. Nessa distração mais que justificada demorei
bastante para perceber que, mais do que outro ano, a gente começaria
uma nova década. A contagem do tempo é aquela coisa arbitrária - na
prática não faz muita diferença se o ano é redondo ou não - mas de
qualquer maneira existe uma carga simbólica associada ao espaço de
dez anos. Só fui prestar mais atenção nisso quando a gangue devolts
propôs o baú da década, e isso me deixou pensando em tudo que
aconteceu desde 2001. Não consegui mandar muita coisa pro baú, mas
esse texto vem como uma resposta àquela provocação. O texto tem
duas partes. A primeira vai abaixo...
O COMEÇO DO MILÊNIO
Dez anos atrás, naquele começo de década que foi também começo de
milênio, eu tinha acabado de decidir que continuaria em São Paulo. Havia
me mudado para a capital do concreto no ano anterior para viver com a
família de meu pai, mas ele estava retornando a Porto Alegre. Foi o
coração que me convenceu a permanecer. O coração romântico,
apaixonado por aquela que veio a se tornar minha amada e mãe da
minha filha, mas também o coração da coragem, do desafio. Me
incomodava a ideia de voltar a Porto Alegre sem ter realizado nada de
relevante. Fiquei. Para pagar as contas vendi o carro, comecei a
trabalhar em uma produtora multimídia e de internet, mudei para uma
casinha pequena e simpática a dois quarteirões do trabalho.
A internet era cada vez mais importante na minha vida. Eu tinha a
sensação de que a vivência em rede levava a um tipo de aprendizado,
REVISTA
51  BEATBRASILIS
criação e sociabilidade que não tinham precedentes. Pela rede conheci
outras pessoas que compartilhavam a certeza de que a internet não era
só comércio, nem o mero acesso a conteúdo publicado por outras
pessoas. Entendi que cada pessoa conectada à rede é também uma cocriadora, que não só acessa conteúdo (uma abstração equivocada), mas
também constrói um contexto único em que interpreta e reconfigura
tudo que vivencia. Inspirado pelas conversas em listas de discussão,
criei meu primeiro blog em 2001. Comecei a estudar sistemas para o
compartilhamento online de ideias e referências, e esse foi meu
primeiro contato com software livre. Em pouco tempo, eu quase não
trabalhava mais e dedicava o dia todo a essas pesquisas. Acabei
demitido da produtora, mas fiquei amigo de um dos sócios, Ike Moraes.
Ele tocava um projeto chamado Roupa Velha, que tinha elaborado com
alguns amigos e era operacionalizado por Adilson Tavares. A gente se
reencontraria alguns anos depois.
Meu foco de interesses foi mudando naquela época. Acabei deixando a
publicidade de lado para trabalhar numa empresa de cursos
corporativos. Ali tinha um pouco (um pouquinho) mais de liberdade pra
pensar em tecnologia para educação e inovação, e no tempo livre testar
sistemas livres de publicação. Paralelamente, eu participava de um
monte de redes abertas. Em 2002 criamos o projeto Metá:Fora, que
reuniu gente interessante como Hernani Dimantas, o saudoso Daniel
Pádua, Paulo Bicarato, Bernardo Schepop, Dalton Martins, Charles
Pilger, Tati Wells, Marcus e Paulo Colacino, TupiNambá, Marcelo Estraviz,
Drica Veloso, André Passamani, Felipe Albertão e mais algumas dezenas
de pessoas. Foi um ano de muita efervescência experimentando com
criatividade e aprendizado distribuídos, auto-publicação, economia da
dádiva, apropriação crítica de tecnologias, conhecimento livre, mídia
tática, mobilização em rede e diversas formas de ação para
transformação social. Defendíamos que imaginar uma diferença entre
"real" e "virtual" era um equívoco tremendo. Operávamos em ações
pontuais mas informadas, inspirados pelo imaginário das zonas
autônomas temporárias (TAZ) e de redes rizomáticas. Criamos muita
coisa juntos até que o projeto foi encerrado, não sem antes deixar de
herança para o mundo "um wiki recheadaço" e alguns projetos que
tentariam se manter de forma autônoma. O mais relevante deles foi a
rede MetaReciclagem.
A MetaReciclagem foi concebida genuinamente em rede, e implementada
de forma distribuída e totalmente livre. Ela começou como um
REVISTA
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 ENCONTRÃO METARECICLAGEM NO BAILUX: PAULO PINTANDO VISÕES DO FUTURO METARECICLADO
laboratório de recondicionamento de computadores usados para
projetos sociais baseado em São Paulo em parceria com o Agente
Cidadão, OSCIP que era a reencarnação do projeto Roupa Velha. Em
pouco tempo o foco da MetaReciclagem se tornou mais amplo. Ela se
expandiu para outros lugares em projetos independentes e
autogestionados. Desde o princípio, a rede MetaRecicagem adotou
alguns posicionamentos que à época estavam longe de ser senso
comum:
a importância central do acesso à internet como condição para
transformação social profunda;
a viabilidade do software livre como plataforma local e remota em
projetos de tecnologia para a sociedade;
o caráter cultural das redes livres conectadas, a emergência de
novas formas de relacionamento social e de inovação a partir delas;
a urgência do debate sobre lixo eletrônico e a possibilidade da
reutilização criativa de hardware;
o potencial de outras formas de acesso à internet: redes
comunitárias wi-fi, dispositivos móveis, etc.
É importante enfatizar aqui: em 2002, nenhum desses tópicos era
consenso entre os principais atores institucionais dos projetos de
"inclusão digital". A prioridade no uso da internet era questionada pelos
projetos que só promoviam o adestramento de manobristas de mouse.
REVISTA
Diziam que os coitadinhos só precisavam aprender a operar o teclado
para preencher seu currículo e conseguir um emprego, e que qualquer
outro uso era supérfluo. Acreditavam que era perda de tempo a
garotada ficar (antes da era do Orkut) no bate-papo do UOL. Falavam
que "ninguém quer computador velho, o lugar disso é no lixo".
Afirmavam que o software livre era um equívoco, porque "o mercado
não vai aceitar". Isso também se estendia ao mercado de TI. Eu lembro
da empolgação que nos tomava a cada minúscula nota sobre software
livre publicada na imprensa especializada.
Eu olho hoje para projetos de tecnologia e inclusão digital em diversos
contextos institucionais, partidários e geográficos. Tenho orgulho de
dizer que influenciamos pelo menos meia dúzia de grandes projetos de
tecnologia para a sociedade. Ganhamos algumas batalhas desde aquela
época. Os princípios que defendíamos hoje são amplamente aceitos. A
lista de discussão da MetaReciclagem tem mais de quatrocentas
pessoas. O site, mais de mil. Alguns milhares já participaram de oficinas
de MetaReciclagem, de forma radicalmente descentralizada. Fomos
convidados a participar de eventos em diversos lugares do mundo, de
Banff a Kuala Lumpur. E a rede continua pulsante, o que me deixa feliz
todo dia.
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UMA CULTURA DIGITAL
OVELHAS NUM PASTO: A IMAGEM ORIGINAL DA "TRAGÉDIA DOS COMUNS" DE GARRETT HARDIN
Em termos de compreensão sobre o papel das novas tecnologias de
informação e comunicação, o momento agora é outro. Não precisamos
mais convencer as pessoas sobre a importância da internet. Das redes
sociais. Do software livre. Boa parte dos figurões do mundo político, de
todos os partidos, tem pelo menos um blog, usa o twitter e tem canal no
facebook. Começamos essa década em um patamar muito mais alto. A
internet é entendida como recurso fundamental para uma cidadania
plena. Existem iniciativas como o Plano Nacional de Banda Larga, o
programa Computador para Todos, o Um Computador por Aluno. A
maioria dos estados tem projetos de inclusão digital com software livre.
Já existem mais telefones celulares do que habitantes no Brasil.
Pessoas que tinham aversão aos computadores hoje são os mais
entusiásticos usuários das redes sociais. Os internautas brasileiros são
os que usam a rede por mais tempo a cada mês, em comparação com
outros países.
Tivemos por seis anos um Ministro da Cultura que declarou-se hacker e
fomentou o desenvolvimento de uma série de projetos baseados em uma
Ecologia Digital. Os primeiros anos da ação cultura digital nos Pontos de
Cultura, implementada por integrantes de diversas redes e coletivos
independentes e orquestrada por Claudio Prado, foram um capítulo
importante na construção de uma compreensão brasileira das
tecnologias livres como expressão cultural legítima e extremamente
fértil. Alguns dos princípios colocados naquele projeto —
REVISTA
descentralização integrada, autonomia, identificação de catalisadores
locais para replicação das redes, incentivo a uma ecologia de publicação
de conteúdos livres, educação sobre ferramentas livres de produção
multimídia — foram de uma inovação profunda para o mundo
institucional, mesmo que - por conta do descompasso entre a
velocidade necessária e a precariedade de condições de implementação
- nunca tenham chegado a se desenvolver plenamente. O Ministério
precisaria de uma equipe muito maior do que é viável para gerenciar e
acompanhar satisfatoriamente essa multiplicidade de contextos. Os
Pontos também acabam ficando dependentes das verbas de uma só
fonte (verbas estas que nunca chegam na data prevista), e não
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trabalham com o horizonte de sustentabilidade plena. É necessário
avançar, e muito, nas questões da autogestão da rede de Pontos; dos
arranjos econômicos locais; do seu impacto social, econômico e
ambiental. Mas eles continuam sendo umas das experiências mais
transformadoras realizadas pelo governo que acaba de se encerrar.
Esperemos que a nova gestão trate de ampliar, profissionalizar e
aprofundar essa experiência.
LIVRE?
Uma questão que ficou em aberto no meio do caminho está ligada à
qualidade do engajamento em ecologias abertas e livres. O Brasil tem se
tornado de fato um grande usuário, mas estamos lá atrás no que se
refere ao desenvolvimento propriamente dito de software livre. De certa
forma, é uma relação parasitária: estamos nos utilizando de software
disponibilizado livremente, mas não estamos em retorno contribuindo
com esse banco aberto de conhecimento aplicado. Não é uma situação
tão desequilibrada que inviabilize o sistema como um todo (a tragédia do
comum não se transfere totalmente para o contexto digital), mas
investir de forma mais pesada no desenvolvimento de software livre
seria a atitude mais coerente com o discurso que estamos adotando. A
ideia de conhecimento livre é muito mais profunda do que a mera
distribuição gratuita. Ela engendra uma economia aberta, distribuída e
REVISTA
descentralizada. E precisa de investimento que reflita o funcionamento
dessa economia.
Os novos governos federal e estaduais que assumem nesse momento de
referenciais avançados em relação a oito anos atrás precisam entender
o potencial e a importância de adotarem alguns princípios claros. O
apoio à liberdade de circulação da informação (e publicação de dados
oficiais abertos, que possibilite experiências como o transparência
hackday), o fomento à emergência de soluções livres e à
descentralização integrada, a orientação sobre a sustentabilidade
socio-economico-ambiental da produção criativa em rede e a escolha
intransigente de protocolos abertos e livres são necessários em todos
os segmentos. É necessária a compreensão de que o acesso à
informação não basta - precisamos é de participação, cotidianos
compartilhados e aprendizado em rede. O estímulo à inovação aberta
baseada nesses princípios pode promover saltos quantitativos no
alcance de iniciativas das comunicações, diplomacia, educação, cidades,
segurança, defesa civil, saúde, meio ambiente, transporte, turismo,
direitos humanos, ciência e tecnologia, e por aí vai.
Felipe Fonseca é pesquisador e articulador de projetos relacionados a redes de produção colaborativa e livre, mídia
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 software livre e apropriação crítica de tecnologia. Foi um dos criadores da rede MetaReciclagem.
independente,
Escreve nos blogs efeefe, desvio, lixoeletrônico e redelabs. É integrante do conselho consultivo do DesCentro, do
conselho editorial da revista A Rede e da diretoria da ACCG.
@papos_beatbrasucas#
―Sempre achei a expressão ‗Propaganda Enganosa‘ uma puta redundância.‖
- Peixoto Rocker
―A vida é um conjunto de acontecimentos que se unem em prol de tornar a própria vida mais chata, entediante e triste.‖
- Mônica Khedi
―Sobre amor: assim tão intenso, só este que invento.‖
- João Firmino
―A cada dia que passa tenho mais medo da publicidade.
Vou comprar vodca em busca do álcool e eles querem me vender pureza.‖
- Sânzio Barreto
―Descobri o que era meu amor Beat.
Sempre vai existir o encontro, uma grande paixão, depois o desencontro, uma grande distância inalcançável, quilos de saudade...
No final vai sobrar a esperança falha de que haverá um reencontro.
Triste!‖
- Ramiro: Fearless Defender
―(...)Que nos enroscam para que voltemos ao ponto de partida.
Para que não haja beco sem saída.‖
- Narayana Ribeiro
"Pegar a highway estrelar e deliciar-me por sobre a terra, enquanto os pássaros fazem o mesmo trajeto sem cadeias de cintos de segurança e botes salva-vidas. O Caminho mais rápido
(e barato) para a Amazônia que eu curto. Lá, às margens do Madeira, relembrar as conversas, rever os amigos, percorrer as ruas da juventude. Mais que tudo, afastar-me de tudo e me
encontrar com tudo."
- Taina Veloso
"Minha avó dizia que o diabo era ruivo. Um ruivo de olhos amarelos e cigarro de palha - é importante notar que o diabo sempre fez o próprio cigarro. E essa história dele ser culto é
de se duvidar. De qualquer forma ruivo feito Judas, isto é certo."
- T. Dias
"As praias daqui promoveram substituições atráves dos anos , tristes substituições.Faixa de areia por maré , conchinhas por lixos plásticos e pessoas civilizadas por animais. E esta tal
de conscientização que nunca chega."
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- Belinha
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Vitor