DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL
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DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL
Beatbrasilis 6 HESSE, O ILUMINADO O UIVO DE ALLEN GINSBERG DRIVE-INS, O RETORNO VIDA DE AUTOR 2010, O ANO QUE DEIXOU MARCAS A SOLIDÃO DOS PAMPAS ESTRELAS DA NOITE CULTURA DIGITAL PARA SALVAR O BRASIL PLAGIAMOS GLAUBER: DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL UM RELATO SOBRE A BAHIA, UM PARAÍSO AMEAÇADO, A ANARQUIA E OUTROS CONVITES... EDITORIAL FABRÍCIO BUSNELLO E aqui nos encontramos novamente! Aproveito, meu amigo, pra te formalizar esse convite. Vem aqui! Te espero as seis da tarde de qualquer dia de abril. Esperamos o sinal vermelho para os carros e movemos nossas pernas. Aqui é assim, meu velho: já agora se apresenta a estação que ainda não veio. Da pra ver no sol ali detrás daqueles prédios. Antes não caia ali, o sol, caia lá, ó: lá pras bandas do grande lago. É por aqui, mais uma quadra de avenida e depois pegamos à direita na pequena rua. Nota as árvores? Estão com sono, veja: perdem suas folhas por pura preguiça. Recolhem seus braços de madeira pra esconder seus corpos que vão ficando mais à mostra. Enquanto antes chegaria em casa ainda dia, agora me encontra antes o escuro. Perceba, caro amigo, as diferentes cores no fim desta pequena rua: tem o azul teimoso, o amarelo bucólico, um vermelho grandioso e até mesmo um verde. Vês o verde? Lá no fim da minha cidade, a cor mais distante do sol. Seria um verde? E esse frio sem cor que de agora em diante só aumenta. Vês? Ele tem uma cor invisível que lembra uma morte que não é triste. Um sono que não é cansado. Um despertar de coisas que não chegam a dormir! É o outono aqui na minha cidade, meu amigo. E eu te saúdo e saúdo a Estação! Pega essa pequena folha de plátano e guarda ela em tua carteira de lembrança. Pra lembrares que passamos. Pra lembrares que voltamos. Dê um abraço aqui e vai-te embora. Espero-te lá mais tarde. E espero que desfrutes. Beatbrasilis # Número 6 (Abril de 2011 [OUTONO]) Colaboraram nesta Edição: Elena Caracoles; Fabrício Busnello; Felipe Fonseca; Guilherme Rocha; Jim Duran; Leandro Godinho; Luis Sales; Mauro Cassane; Morning Gump; Vitor Souza; Conselho Editorial: Fabrício Busnello; Guilherme Rocha; Jim Duran; Mauro Cassane; Vitor Souza Diagramação: Vitor Souza Sobre: Beatbrasilis é um coletivo cultural. Revista Beatbrasilis é uma publicação on-line e sazonal. Contato: [email protected] http://beatbrasilis.wordpress.com http://beatbrasilis.forum-livre.com Reprodução: Ainda não decidimos sobre que licença usar. Portanto, caso queira reproduzir qualquer texto ou parte desta edição, favor contatar o Coletivo pelo e-mail acima. REVISTA 4 BEATBRASILIS ENTREVISTA: SYLVIO PASSOS, FUNDADOR DO RAUL ROCK CLUB POR JIM DURAN Conheci Sylvio Passos num estranho ritual reservado a poucos. Começamos a nos corresponder em 1993 quando eu me filiei ao RAUL ROCK CLUB. Sempre prestativo, bem humorado e tratando a obra do amigo Raul Seixas com o carinho e o respeito que o baiano merece. Inspirado no trabalho que ele faz eu mesmo fundei um fã-clube chamado ―Equipe Sociedade Alternativa‖ em conjunto com outro amigo, Wander ―The Killer‖ Ramos Neves. Mergulhei nas leituras sobre o mago inglês Aleister Crowley e sigo o mesmo caminho ouvindo o mesmo Raul desde 1984. Essa é a segunda vez que entrevisto Sylvio Passos, a primeira foi em 1994 quando saiu o CD ―Se o Rádio Não Toca‖. Sylvio entrou para história do mercado fonográfico brasileiro ao lançar, em 1985, a coletânea que figura entre os discos oficiais ―Let Me Sing, Let Me Sing‖, um dos discos mais raros e caros do país. Nessa entrevista ele comenta como andam as coisas 30 anos após fundar o primeiro e oficial fã-clube de Raul Seixas (o primeiro de centenas). Beatbrasilis: Em que mudou sua vida a partir do momento em que o Raul entrou nela? Sylvio Passos: Putz! Realmente, foi um divisor de águas. Antes de conhecer Raul eu estava me preparando para ser jornalista ou psicólogo, e após conhecê-lo acabei abandonando os estudos e abraçando o raulseixismo como causa. Então a mudança foi em todos os sentidos. Radical mesmo. Bb: Como o Raul recebeu a notícia da criação do RRC? REVISTA 5 BEATBRASILIS S.P.: Me lembro que ele ficou surpreso, feliz e surpreso com minha ligação. Acabou por me convidar para almoçar com ele alguns dias depois, e desde então não paramos mais de nos encontrar. Nascia ali uma amizade que transcendia a relação fã-ídolo. Nascia ali, em 1981, uma amizade que durou até a fatídico 21 de agosto de 1989. Bb: Quem era o homem Raul dos Santos Seixas? S.P.: Um pessoa sensível, interessantíssimo, generoso e muito preocupado com as pessoas e o rumo da humanidade. Ou seja, embora no cotidiano Raul fosse bem diferente do artista Raul Seixas, ambos carregam as mesmas características, claro. Afinal, como ele mesmo cantou: ―Raul Seixas e Raulzito sempre foram o mesmo homem‖. Embora fosse notório um certo ―conflito‖ entre criador e criatura, entende? Bb: Como surgiu o projeto do LP ―Let Me Sing My Rock and Roll‖? S.P.: De uma necessidade se de ter aquelas gravações que Raul lançou mas não incluiu em seus álbuns de carreira. Músicas lançadas somente em compactos ou em discos especiais e trilhas de novelas. Esses discos, na época - década de 1980 - eram muito caros e difíceis de ser encontrados. Todo colecionador de Raul Seixas nutria o desejo de ter aquelas gravações. Então resolvi juntar todas num único álbum e ainda pedi ao Raul para escolher uma para fechar o repertório do disco com chave de ouro. Foram lançadas apenas 100 cópias numeradas que hoje são disputadas a ta- Raul Seixas com o amigo Sylvio Passos: anos 80 pas por fãs e colecionadores. Bb: Como você recebeu a notícia da morte de Raul? Como foi o seu dia? S.P.: Putz! Foi péssimo. Na época eu estava ainda no meu primeiro casamento e trabalhava como supervisor de vendas no saudoso Círculo do Livro. Eu estava numa reunião sendo promovido, e a gerência me mostrando tudo o que eu poderia conquistar (carro, apartamento...) se alavancasse as vendas, etc e tal. Saí da reunião por volta das 17hs e fui tomar um café e fumar meu cigarrinho quando, na padaria embaixo do escritório, uns caras do outro lado REVISTA REVISTA 6 BEATBRASILIS BEATBRASILIS do balcão me viram com a camiseta que trazia estampada no lado esquerdo o logotipo da Sociedade Alternativa e falaram: ―Ainda bem que esse filho da puta morreu‖. Engoli o café meio torto e corri pra um telefone público e a notícia se confirmou. Desci a Av. Voluntários da Pátria, em Santana, chorando e meio desnorteado e fui direto pro prédio do Raul na Frei Caneca. Chegando lá, evidentemente, não encontrei ninguém, e o porteiro não sabia me informar nada. Fui então pra casa que estava lotada de pessoas me aguardando e então fomos pro Centro de Convenções do Anhembi e lá permanecemos até a chegada do carro do Corpo de Bombeiros que levou o caixão de Raul para o aeroporto, e de lá seguiu para Salvador/Ba. Não fui para Salvador. Preferi ficar em Sampa, pois já havia sofrido demais no velório. Bb: E como foi viver esses 22 anos sem Raul? S.P.: De certa forma, o meu ídolo, o artista Raul Seixas, nunca esteve ausente. O que morreu foi meu amigo, e não o artista, entende? O artista continua vivo até hoje. Mas o indivíduo, esse se foi e não tem como não lamentar sua ausência. É a mesma falta que sinto de meu pai que também faleceu um pouco antes de Raul. Duas pessoas muito importantes na minha vida. Bb: Qual é a lembrança mais forte que você tem dele? S.P.: Da sinceridade, lealdade e o carinho que Raul tinha pelas pessoas. Nunca havia conhecido alguém tão gentil e tão preocupado com o outro como Raulzito. Realmente, uma figura ímpar. Bb: Como é subir no palco ao lado do kavernista Edy Star (músico que participou do antológico disco ―A Sociedade da Grã Orden Kavernista Apresenta Sessão das Dez‖)? Como é receber o carinho do fã raulseixista? S.P.: Conheço Edy há varias décadas. Sempre foi uma pessoa agradabilíssima e muito engraçado. Figuraça. Subir ao palco com Edy é sempre tenso e prazeroso ao mesmo tempo, afinal, a responsabilidade é grande. Gosto de STAR no palco com EDY. Para mim, receber o carinho dos fãs de Raul é como se estivesse recebendo Grammy Awards, aquele Oscar da Música, sabe? É um reconhecimento pelo meu trabalho que não há dinheiro no mundo que pague. Realmente impagável essa resposta carinhosa do público de Raul que, às vezes, me parece que não mereço tanto. Bb: Você sente a importância do seu trabalho na divulgação da obra de Raul Seixas? S.P.: Eu nunca havia parado pra pensar nisso. Mas, nos últimos 10 anos, venho recebendo tantos elogios e críticas que ambos acabaram por me fazer tomar consciência de que o que venho fazendo nesses últimos 30 anos tem alguma importância, visto a REVISTA Carteirinha do Raul Rock Clube feita para o próprio Raul 7 BEATBRASILIS resposta que tenho não só do público, mas de todos aqueles que de alguma maneira tiveram contato com Raul. Então, apesar das dificuldades e limitações, vejo que realmente existe uma importância em meu trabalho. Nada foi feito em vão. Bb: Quem são os raulseixistas? S.P.: Isso sempre gerou polêmicas. Durante muito tempo eu mesmo tratava a mim e aos fãs como raulseixistas. Depois de algum tempo me dei conta que, na verdade, somos simpazitantes do raulseixismo, pois, raulseixista mesmo era o Raul e ele defendia que cada um deveria ser autêntico, original, assim como Schopenhauer também defendia. Então desde que tive esse insght não me declaro mais como raulseixista, mas, sim, como sylvipassista. E que os fãs não são raulseixistas, mas, simpatizantes do raulseixismo. Mas, no fundo, isso não tem a menor importância. Noto que a grande maioria dos fãs de Raul Seixas sentem orgulho em se definirem como raulseixistas e é uma coisa bonita. Só que eu já não consigo mais me colocar dessa maneira. Alguns fãs mais radicais até me criticam por conta disso e me chamam de traidor do movimento. Vê se eu aguento (risos)! Bb: Raul ainda hoje tem uma legião de fãs, e a cada dia novas pessoas travam contato com suas músicas. Por que ele tem esse apelo depois de mais de duas décadas depois de sua morte? S.P.: Essa pergunta é sempre complicada de responder. Devo ter dado umas 200 mil respostas diferentes pra essa questão nos últiREVISTA 8 BEATBRASILIS Capa do vinil “Let me sing, Let me sing”: R$ 2.500,00 na internet Edy Star nos anos 70: andrógeno e psicodélico mos 20 anos. Mas, o que me ocorre agora, é que, além da atemporalidade, pluralidade e do carisma de Raul, toda sua carreira musical sempre foi carregada de muita verdade e visceralidade e isso toca fundo nas pessoas de qualquer faixa etária e classe social. Raul fala direto aos corações em suas músicas, se expunha através delas, e isso cativa todo mundo. Bb: Se o Sylvio de 2011 pudesse mandar um recado para o Sylvio de 1981, o que ele diria? S.P.: Ah, essa é fácil. Tá na ponta da língua: Vá e grite ao mundo que você está certo. Bb: Quais as principais dificuldades que você teve nesses anos todos? alguns passos, não fazendo jus ao meu sobrenome. Mas, acredito que estou no meu caminho e que a coisa deveria ser exatamente assim como foi e é. Continuo seguindo meu caminho, de passos leves, mas confiante, otimista mesmo, e segurando todas as barras e adversidades que surgem. Afinal, como diz aquele velho deitado: ―A adversidade desperta em nós capacidades que, em circunstâncias favoráveis, teriam ficado adormecidas‖. Bb: Você se arrependeu em algum momento de ter iniciado esse caminho? S.P.: Jamais. Sou extremamente feliz com tudo que fiz. Errando e acertando. Mas sempre feliz. Arrepender-se, no meu caso, seria um evidente sinal de derrota, e coisa que nunca fui foi um derrotado. Veni, vidi, vici. S.P.: Econômicos. E também com alguns oportunistas e pilantras que cruzaram meu caminho. Mas a maior de todas, é a dificuldade financeira para realizar alguns projetos e sonhos que ainda hoje estão na ordem do dia. Bb: Quais os planos para o futuro? S.P.: Não gosto muito de falar sobre o futuro por se tratar de um terreno estranho e incerto e, invariavelmente, repleto de possibilidades. Há muito tempo eu planejei e planejei e planejei o futuro que estamos vivendo agora e muito do que planejei não se realizou. Talvez eu tenha cometido erros, ou não tenha me dedicado o suficiente ou até tenha tido medo ou insegurança de dar Momento que antecedeu ao show do grande kavernista Edy Star: Killer, Sylvio e Jim REVISTA REVISTA 9 BEATBRASILIS BEATBRASILIS BIOGRAFIA BENDITO MALDITO POR JIM DURAN Ler biografias é sempre uma faca afiada demais: ou você se entrega de vez ou sofre com a leitura. O que acontece com o livro ―Bendito Maldito – Uma Biografia de Plínio Marcos‖ é justamente o caso da prazerosa entrega. Escrito pelo ator, jornalista e amigo de Plínio, Oswaldo Mendes. Mesmo tendo essa proximidade com o seu biografado, Oswaldo não comete o erro de tentar amenizar os excessos da pessoa e também não força as cores. Primeiro de tudo sente-se que é um livro que rende homenagem, mas não bajula. Escrito em terceira pessoa, o relato traz momentos de profunda emoção, como os instantes finais da vida do teatrólogo. A estrutura é a de uma peça de teatro. Dividido em três atos (o primeiro vai de 1935 a 1966, o segundo de 1967 a 1985 e o terceiro de 1985 a 1999), com diversas cenas em cada. Você não apenas lê, mas se tor- REVISTA 10 BEATBRASILIS Carlos Palma, Vera Kowalska e Oswaldo Mendes na expectador de momentos como esse ou então pode viver com Plínio toda a perseguição que teve durante a ditadura que assolou o país por vinte e cinco anos. Mesmo impedido de trabalhar ele não desistiu e correu atrás de sua história. Tornou-se um dos maiores autores teatrais de nosso tempo nadando contra a maré, falando de uma faixa da população que ninguém retratava ou, quando fazia, era uma colagem falsa feita por quem só ouviu falar das prostituas do cais, dos viciados, dos machões briguentos. Plínio os conhecia porque escolheu sujar a sola dos sapatos. Ao contrário do que muitos pensam, Plínio não teve uma vida difícil. Ele não nasceu no circo e nem nada assim, mesmo tendo posteriormente se transformado no palhaço Frajola. Filho de uma família estruturada, seu pai era bancário. Freqüentava clubes e escolas particulares, porque tinha aversão ao estudo formal. Para compensar esse distanciamento dos bancos escolares ele se afundou em leituras que formaram seu vocabulário. Lia jornais, revistas e livros, sobretudo os de cunho espírita. Oswaldo Mendes retrata então esse homem que poderia ter sido jogador de futebol, porque tinha talento para isso, ou então o que quisesse. Fica claro no livro que para Plínio não tinha situação irremediável. Agia com o coração e pagava o preço. Não se fazia de coitado, mesmo no final, já doente e acamado, o diabético Plínio pedia ao amigo Oswaldo para que ele trouxesse uns chocolates ―malocados‖: sempre um contrário. É esse homem real que é retratado no livro. Uma pessoa como qualquer outra que soube fazer a sua história calcado apenas na responsabilidade de ser ele mesmo. Não usou máscaras e não fez acordos. Pagou o preço por todas suas escolhas. Dizia que se havia sido perseguido, não havia sido mero acaso, tinha feito por merecer. Por esse compromisso firmado com a realidade dos fatos e pelo ritmo de leitura apaixonante é que ―Bendito Maldito – Uma Biografia de Plínio Marcos‖ deve figurar em sua estante, melhor ainda, ter a marca de seus dedos. Era amigo de marginais e poderosos. Exemplo disso foi sua amizade sincera com o governador Mário Covas, que inclusive autorizou sua internação no quarto reservado à autoridade paulista. Os dois ficavam discutindo sobre futebol e amenidades, coisas de amigos. Jim Duran é pseudônimo e surgiu em Salvador/BA em 2003 e marca uma guinada na vida e carreira do escritor e ator paulista Eduardo Duran. Enquanto um é baiano o outro é paulista. A escrita de Jim é REVISTA 11 BEATBRASILIS sonora e feita para ser lida em voz alta com uma dose de uísque e um cachimbo por perto. Jim Duran é formado em Letras. Hesse foi criado no seio de uma família ardorosamente protestante, que inclusive professou o cristianismo em solo indiano. Em 1904 ele escreve uma biografia de Francisco de Assis, provável fruto de seus estudos enquanto aluno do Seminário de Maulbronn, na Alemanha. No entanto, tudo mudaria dentro de Hesse quando de uma viagem à Índia realizada em 1911. Essa visita à terra de Sakyamuni fez com que despertasse nele toda a espiritualidade do oriente, que sem dúvida este genial escritor carregava latente dentro de sí desde o primeiro momento de sua vida. Este despertar oriental de Hermann pode ser provado em duas de suas mais lindas e comoventes obras: Sidarta (1922) e Viagem ao Oriente (1932). BIOGRAFIA OS OLHINHOS PUXADOS DO SENHOR HESSE POR Fabrício Busnello "É uma fraqueza natural do homem julgar que o que perdemos possui um valor exagerado e parece menos dispensável do que tudo o que possuímos.‖ Hermann Hesse, em Viagem ao Oriente Até a sua morte durante uma tranqüila noite de sono em Montagnola, na Suiça, em 1962, Hermann Hesse seguiu a ideologia oriental do budismo, deixando para nós pegadas iluminadas numa estrada aberta para todos aqueles que queiram alguma luz. Foi na cidade alemã de Calw que Hermann Hesse nasceu, no dia 02 de julho de 1877. Algumas desilusões com a família, que exigia que o filho fosse pastor, e com a pátria, cujo crescente militarismo chocava com a visão pacifista do futuro autor d‘O Lobo da Estepe, lhe levaram a naturalizar-se suíço no ano de 1923, país onde residia desde 1912. REVISTA 12 BEATBRASILIS CINEMA ACONTECEU NAQUELA NOITE Por Morning REVISTA Gump 13 BEATBRASILIS Como toda sexta-feira, estava exausta. Todos os esforços semanais para acordar cedo e manter a rotina de trabalho pesam com toda a sua realidade numa noite de sexta-feira. E naquela noite cheguei em casa e entreguei-me à minha cama. Acordei às nove com uma voz de esgoto e a cara amassada pelos lençóis; aos poucos acostumeime com a luz que deixara acesa. No celular, uma ligação perdida. Um velho amigo. Convidara-me para um drinks de final de expediente. Eis um daqueles momentos de decisão quando se está com um pé no mundo real e outro no campo dos sonhos em que você pode escolher entre a decrepitude de permanecer em casa e perder a chance de aproveitar alguns minutos de vida, ou sair e ver o que pode ser lá fora. Fiquei com a segunda opção. Às dez e meia ele passou na minha casa e fomos para mais uma bundação de sexta à noite. Rumamos para o nosso bar de sempre. Por sorte, os cantores mandavam as nossas canções favoritas. Uma daquelas coisas em que tudo parece dar certo e as baladas ficam agradáveis. Papeamos até chegar na idéia de ir ao Cine Azul para a última sessão. A noite estendia-se a cada sugestão. Pagamos, saímos e fomos ao cinema. Que sensação ao ver o cartaz: Uivo! Uau, Allen Ginsberg! É isso aí, vamos!! Umas vinte pessoas espalhadas pela sala imensa. Sessão especial, algumas turminhas mais hypes surgem para esse tipo de programa. Havia uma galerinha no maior estilo retro-chic, etc. Todos falando abobrinha com um tom de importância que era bem engraçado. Fodam-se. Mas fiquem quietos na hora do filme. Esse é o meu REVISTA 14 BEATBRASILIS grande pavor em encontrar turminhas nas salas de cinema. Hoje em dia ninguém mais cala a boca em lugar nenhum. Nem desligam celulares. Enfim, ninguém mais faz silêncio! Certo. Passaram os avisos e finalmente a abertura. O filme começa. Happening, entrevista e tribunal. Três lugares que acompanharam toda a movimentação do filme. Três ambientes entremeados por uma divertida e bem feita animação (Eric Drooker). Cara, como James Franco ficou parecido com o velho Allen. A voz, o jeito de falar, óculos, tudo o mais. Um Allen charmoso, como todas as personagens da vida real acabam se transformando quando transplantadas para os filmes 35mm. E lá estávamos nós, em um filme inteirinho sobre um poema. É, vimos as melhores mentes de nossa geração apresentar as maiores mentes zen-urbanas de outrora. No Happening estão Jack (Todd Rotondi), Neal (Jon Prescott) e Paul (Aaron Tveit), os homens de Allen, entre outros beatniks que foram ver o jovem Ginsberg proferir as palavras de libertação na Six Gallery. Na entrevista está Allen e o grande gravador, contando as peripécias e acontecimentos, os como e porquês do poema Uivo, etc. E como são bonitos os leves movimentos das mãos do ator ao adornar as explanações, ao segurar o cigarro. Neste instante, somos nós e Allen em sua casa, como convidados numa sexta à noite sem muita perspectiva, mas que se enche de esperança e fraternidade. No tribunal estão as pessoas que acham o livro obsceno, que não entenderam lhufas, que curtem um lance mais polêmico, que foram REVISTA 15 BEATBRASILIS lá ver qual é, professores – nove especialistas para darem um parecer sobre a obra-, entusiastas, advogados, júri, juiz, Ferlinghetti (Andrew Rogers) e seu advogado, Jake Ehrilch (Jon Hamm) e o outro advogado, Sr. Ralph McIntosh (David Strathairn). Os professores especialistas sobem ao púlpito para tergiversarem sobre o poema. Alguns esnobam aquilo que leram – o negócio não vai para frente -, outros, consideram o poema como a visão de mundo de Ginsberg, e por aí vai. Essa história já é sabida. O poema não é condenado ao índex social. O juiz Clayton Horn (Bob Balaban) diz que, em nome da liberdade, a obra é INOCENTE! Porque tudo é SANTO, como é ―santa a sobrenatural extra brilhante inteligente bondade da alma!‖. UIVO (Howl) Eua, 2010. Dirigido e escrito por Rob Epstein e Jeffrey Friedman; diretor de fotografia, Edward Lachman; editado por Jake Pushinsky; música por Carter Burwell; produzido por Elizabeth Redleaf, Christine Kunewa Walker, Rob Epstein e Jeffrey Friedman. Duração: 90 minutos. Com James Franco, David Strathairn, Jon Hamm, Bob Balaban, Alessandro Nivola, Treat Williams, Mary-Louise Parker, Todd Rotondi, Jon Prescott, Aaron Tyeit e Jeff Daniels. Uma produção de Werc Werk Works, RabbitBandini Productions, Telling Pictures e Radiant Cool. No final, bem, rolam surpresas. Agradável e bonita surpresa. E o jazz flui, enquanto a turminha dos hypes se dispersa, um casal se prepara para sair, e nós dois lá, com aquela cara de satisfação a olhar para os créditos. A sorrir candidamente como dois santos iluminados em nossa vadiagem noturna. O filme é o verso de Allen Ginsberg em três atos: a criação, o comentário e a reação do público. Esta é uma história de um poema. Morning Gump, a moça que partiu da Amazônia para os campos de cana-deaçúcar do sul, que curte Beatles, Rolling-Stones e Bob Dylan. Arrancou seu pseudônimo do próprio nome e daquele personagem de filme que correu a América inteira só porque quis e depois contou suas histórias. REVISTA 16 BEATBRASILIS GUILHERME ROCHA O RETORNO DOS DRIVE-INS Vejamos, o cinema drive-in foi supostamente inventado em 1933 por um vendedor de Nova Jersey chamado Richard Hollingshead. O filme exibido foi uma comédia britânica chamada ―Wife Beware‖. Dizem os registros que a parafernália consistia em um projetor Kodak montado em cima de seu carro e apontado para uma tela branca. O filme parece ter sido uma merda e os vizinhos reclamaram pra caralho do barulho. A partir dessa iniciativa, nasceu o fenômeno dos drive-ins nos Estados Unidos. Fenômeno esse que rapidamente se estabeleceu REVISTA como uma verdadeira instituição, especialmente após a segunda guerra mundial e o crescimento da cultura automobilística. Em 1958, haviam 5.000 cinemas drive-in nos Estados Unidos. Era o auge dessa cultura. Porém, por razões que apenas pesquisadores de mercado devem conhecer (meu chute é o ar-condicionado), os cinemas internos começaram a dominar o mercado lá pelos findos anos da década de 60. Já nos anos 80, com a comercialização do videocassete e da TV à cabo, o cinema drive-in levou sua maior 17 BEATBRASILIS surra. Pelo que o Wikipedia me diz, em 1995 só restavam 500 cinemas drive-in nos Estados Unidos. Caralho, Guilherme! Quem liga!?! Ah! Mas calma lá, aqui vem a história. Justamente quando pensamos que esse icônico formato de entretenimento entrou em extinção, começam a surgir, do nada, os entusiastas. Movidos a nostalgia e provavelmente tentando evitar os exorbitantes preços dos multiplex, novos drive-ins vieram surgindo nos Estados Unidos. Uma nova geração de cinéfilos começou a seguir o exemplo de Hollingshead, unindo novas tecnologias e o conceito roots do drive-in, criando experiências ao ar-livre no melhor estilo punk do ―faças-tu-mesmo‖. Tocadores de DVD e projetores digitais colocaram a tecnologia de cinema drive-in nas mãos de qualquer pessoa com uma inclinação tecnológica. ao movimento MobMov (Mobile Movies—Filmes Móveis), com ―filiais‖ espalhadas por todo o mundo, criando cinemas gratuitos em qualquer espaço aberto. O cara até ensina a organizar uma ação dessas em seu site www.mobmov.org, fornecendo detalhadas instruções técnicas e dicas para lidar com direitos autorais, polícia e toda a caralhada de legislações que sufocam os irmãos estadunidenses. Em suma, mais uma iniciativa bacana dos colegas californianos que misturaram, mais uma vez, cultura e automóveis para contribuir com a evolução (ou o abestalhamento, não sei ainda) da raça humana. Na Califórnia, o coletivo Santa Cruz Guerilla Drive-In (www.guerilladrivein.org) juntou o amor por filmes com a missão de retomar os espaços públicos, projetando filmes em lugares divulgados apenas na base do boca-a-boca. Também na Califórnia, um nerd chamado Bryan Kennedy transformou seu carro em uma unidade móvel de projeção, usando um tocador de DVD, um projetor e um transmissor de rádio que permite que todos os carros com rádio sintonizem para ouvir o filme. Essa iniciativa deu início REVISTA 18 BEATBRASILIS MAURO CASSANE MAURO CASSANE Com as facilidades instantâneas da internet, assistimos, atônitos, uma fabulosa proliferação de artistas das mais variadas vertentes. Entre todos eles, os escritores são maioria. Mas, pessoalmente, prefiro simplesmente os silenciosos leitores, estes sim, merecem meu respeito e admiração. orreu Moacyr Scliar, médico que virou escritor. Para mim é estranho dizer algo sobre este artista das letras. Não o conheço. Dele só li algumas poucas crônicas publicadas em jornais diários. E gostei. Mas, mesmo assim, de alguma maneira, sempre tive apreço por ele. Sei que era gaúcho e, nas fotos, tinha uma boa cara, com aqueles olhos tranqüilos, profundos, de quem observa o mundo com a atenção sábia dos humildes. Não vou pesquisar na internet a obra do Moacyr, mas vou tentar ler, doravante, mais de seus escritos. Nutro por ele esta simpatia irracional, sem qualquer motivação concreta, bem como, pela mesma razão, só que de maneira oposta, não gosto do Dalton Trevisan, que sempre me pareceu um falastrão recluso arrogante. Por este motivo, do Trevisan, nunca li, e penso que nunca vou ler, coisa alguma. LEIA ANTES DE ESCREVER LEIA ANTES DE M ESCREVER COM AS FACILIDADES INSTANTÂNEAS DA INTERNET, ASSISTIMOS, ATÔNITOS, UMA FABULOSA PROLIFERAÇÃO DE ARTISTAS DAS MAIS VARIADAS VERTENTES. ENTRE TODOS ELES, OS ESCRITORES SÃO MAIORIA. MAS, PESSOALMENTE, PREFIRO SIMPLESMENTE OS SILENCIOSOS LEITORES, ESTES SIM, MERECEM MEU RESPEITO E ADMIRAÇÃO. E eu gosto de agir assim, motivado unicamente pela emoção. Isso não me rende fruto algum, mas a saborosa sensação de liberdade é impagável. Fico imaginando a dura vida desesperada de ensaístas e críticos literários, que precisam conhecer obra e autor, para, sobre eles, elaborar verdadeiros tratados. E os biógrafos então. Por Deus, que vida cruel deve ser a de um biógrafo. Escarafunchar naquela lama toda da vida alheia e tirar dali, feito um garimpeiro, algum tesouro, algo que se faça algum proveito para sanar a doentia curiosidade dos desvalidos de idéias. Poucos são os casos em que a vida privada do artista seja mais interessante que sua obra. O que REVISTA 19 BEATBRASILIS OS OLHOS TRANQÜILOS E PROFUNDOS DE MOACYR SCLIAR ocorre, na esmagadora maioria das vezes, é o artista, especialmente o escritor, fazer tipo, ou seja, interpretar, na vida real, o que gostaria de ser ou como gostaria de ser visto. Os tipos bêbados desleixados ou malucos incorrigíveis são os mais comuns há décadas. Aquela máxima, cuja autoria desconheço, de que ―de perto ninguém é normal‖, eu tomo a liberdade de alterá-la para ―de perto todos somos tediosamente normais‖. O artista gosta de dar a si próprio uma aura especial, exclusiva, que o diferencie das outras pessoas. Mas somos todos espantosamente humanos previsíveis e assombrados com o mundo que nos envolve. Temos mais medo de nossos semelhantes do que de qualquer outro animal. Sim, o ser humano é assustador. Mas deixemos isto para outras páginas sociológicas. Não estas. Nestas quero falar de ser escritor. Quem é escritor? Esta é uma definição estritamente pessoal: quem, com palavras escritas, consegue encantar alguém além de si próprio. Vale, inclusive, a própria mãe. Podemos considerar namorada, amante, amigo, desconhecido ou, se o escritor for verdadeiramente talentoso, até mesmo o inimigo. Se você está neste grupo, fique certo, és um escritor genuíno. Não se aflijas, publicar um livro é outra questão. Entra aí fatores financeiros e sorte. Até mesmo ganhar um concurso literário não passa da mais pura sorte. Não há como julgar uma obra literária, nem como dizer se é melhor ou pior que outra. Diferente dos séculos anteriores, hoje em dia um escritor não deve se preocupar em publicar seu livro. Deve concentrar-se unicamente em escrevê-lo. A internet existe e, com ela, embora tenhamos uma porção de porcarias no ar, temos a liberdade de publicarmos, em blogs ou sites, o que bem entendermos. É a liberdade plena e tão REVISTA secularmente sonhada. E se nossos escritos agradarem alguém, já está valendo. Se não agradar ninguém, então, que te sirva de lição: você não é um escritor. Tente desenhar, ser ator, músico ou piadista. Há muitas opções do que podemos fazer com nossa criatividade. Se não consegues contar uma boa história, interprete- 20 BEATBRASILIS a. Ou faça uma canção. Ou dance. Sei lá. Como disse, há opções. De qualquer maneira, ter idéia, por si só, já te faz um artista. Não se preocupe muito com isto, em ser artista. Aliás, se o for, faça a si mesmo um grande favor: não cometa a tolice de fazer tipo, não force a barra, não precisa começar a encher a cara com vinho vagabundo, nem dormir em sarjetas, nem se apaixonar por uma puta. Viva sua vida. Não há nada de errado em ser naturalmente você mesmo. Mas isto não é auto-ajuda. É auto-toque. Pois não tem nada mais irritante do que gente afetada no mundo artístico. Aqueles perfeitos idiotas que se vestem como artistas. Já notaram os músicos? A maioria se veste da mesma maneira. Veja um sujeito magro com uma calça jeans colorida bem colada nas pernas, da coxa à canela, e saiba: é um músico. Se tiver um brinquinho ou um piercing protuberante, bingo: é músico mesmo. Todos se vestem da mesma maneira, fazendo um esforço hercúleo para se destacar, para serem reconhecidos. Voltemos aos escritores, não temos muito espaço para divagações. Eles, os escritores, diferente dos músicos, não se exibem pela indumentária, o fazem, por outro lado, pelas atitudes. Escritor gosta de posar com aquela cara de quem não tem mais nada o que aprender. De quem não está nem aí para o mundo, ou para os habitantes deste planeta. Escritor, enfim, é um sujeito insuportavelmente chato. Contudo, a verdadeira arte das palavras não está com os escritores, estes seres que, agora com a internet, grassam aos borbotões com seus blogs, sites e livros publicados às próprias custas. O bom livro, a boa história, o bom poema, nasce nas almas mais puras, e é composto basicamente por grandes leitores, aquela gente humilde que, mais do que a arte de escrever, professa a silenciosa arte de ler. Estes não se auto-denominam escritores, são estudantes, médicos como Céline e Scliar, jornalistas, dentistas, cozinheiros...enfim, gente brilhante! Mauro Cass é jornalista, sonha ser escritor, e há anos viaja o quanto pode, mesmo quando não pode, especialmente com sua velha Harley. Já fez poesias para conquistar garotas pelas quais se apaixonou perdidamente e depois escreveu contos infames sobre suas relações escandalosas e viagens solitárias. Tem em seus cachorros seus mais íntimos amigos e faz a eles, só a eles, todas as suas confidências. REVISTA 21 BEATBRASILIS CAPA SOBRE A BAHIA, A A NARQUIA E OUTROS CONVITES POR ELENA CARACOLES REVISTA 22 BEATBRASILIS Mas afinal de contas, por que cargas d‘água do mar não me sinto plena, realizada e radiante? Ora, se me saí de uma cidade enorme, portanto caótica, para viver num diminuto e supostamente sossegado povoado ao sul da Bahia, com suas praias recortadas por alguma ágil tesoura do senhor nosso deus, sua verde mata a deleitar-nos com seus cacaus pendurados, seus coqueiros esvoaçantes, sua deliciosa e abundante maconha em forma de crustáceo, seu azeite de dendê todo bezuntante, suas frutas que mais parecem flores e flores que mais parecem frutas, sua gente hospitaleira de um andar e falar empolgantes, a Bahia tem um jeito, mas todos os dias me pergunto por que não consigo me convencer de que o paraíso não é uma mentira das graúdas, que essa coisa de viver perto do mar e de gente que ri fácil não se trata exatamente de uma experiência celestial. Será por que o riso aqui é fácil até demais? Tão fácil que parece de mentira? Será por que a única forma que conhecem de mostrar os dentes é sorrindo, e nunca rosnando a um malfeitor, por exemplo, enquanto são, geração após geração, anulados, explorados e tratados como mulas, ejetados pra fora de seus lares sem maiores delongas, ejetados pra fora de um sistema mais feroz do que uma sabiá braba que defende seu ninho dos macacos, enquanto sua cidade, a que eles viram nascer, é engolida por tratores, investidores e pastores amadores? Sabem-se malfadados, malogrados, mal vestidos, mal educados e mal paridos, sabem-se o mal do milênio, e sabem apenas o sentido de sua existência porque tudo pode ser explicado por um ―quando deus quer...‖. Observam seu lar ser substituído por alguma torre de REVISTA 23 BEATBRASILIS mais um resort que enriquecerá algum homem de bolas tristes, e encerrará, durante 50 ou mais horas semanais, os potentes corpos de cada um dos seus escravalhadores. Observam, do alto de sua impotência, um porto prestes a suceder, um projeto astronômico para gerar ganhos e perdas igualmente astronômicos. Desigualdade astronômica, hollywoodiana, dessas que vendem muito bem. E também o é a indústria sem fim do luxo e do lixo. Não tem como surgir poesia de um lixo que fede pouco, nem de um luxo que não brilhe demais. Se não for atlanticamente grande, não haverá de estar de bom tamanho, e este é o pensamento (ou a ausência do mesmo) do brasileiro que sentou na poltrona do conformismo, a achou fofa, macia e envolvente, e de lá não quis sair nunca mais. Não conseguem sair de suas mentes para entrar em suas cabeças. Não conseguem entender que não precisam ser convencidos de nada, então passam a vida tratando de se convencer que está tudo jóia rara, pois assim tiram de letra, e mostrar os dentes sorrindo deixa de ser uma resposta genuína do rosto para tornar-se mais um produto. Sim, porque tudo nessa vida de plástico vira produto. Alguns com garantia, outros mais vagabundos com pouca vida útil, mas o escravo é sempre um produto fiel e quase sempre duradouro, pois é um produto e um cliente ao mesmo tempo, já que ele precisa ser produto para ser cliente. Pensas que está a chover, oh, pobre escravo? Pois não está a chover não, são só as gotas da tua testa que desabam sobre o teu braço cansado. Somos todos escravos, alguns com dois salários mínimos, outros com oitenta, e a grande maioria com tão somente um, os contra-cheques REVISTA metamorfoseando neurônios em células de uma planilha de excel que calcula quantas gotas de chuva do seu rosto lhe custará cada laranja que for comprar. E há que se comprar a laranja, porque o pé que havia no quintal, bem... O pé já era, o quintal virou cimento, tijolo e luminária nova. A horta continua com h, porém agora se chama hectare. A entrada da casa virou hall e os fundos, jardim de inverno (em pleno verão da Bahia, é mesmo uma falta de respeito). E ele, o contratado, virou escravo da própria terra, agora trabalhando na cozinha dos que a compraram, os senhores feudais do século XXI. E ainda tem a cara-de-pau de denominar cada escravo como um colaborador. É tudo uma questão de ordem dos fatores, e esta sim, altera o produto: antes, você, estimado escravo, estava morando num pedacinho de terra. Agora que compraram seu pedacinho de terra, você trabalha para alguém que a comprou, e inclusive já lhe convenceram que precisam de você como um instrumento, você até se sente parte da equipe, a rotina laboral tem 24 BEATBRASILIS praticamente a mesma adrenalina e desgaste físico de uma olimpíada, ponto pra eles, que agora lhe tem como qualquer outro abestalhado, anulado, hipnotizado por um pão, feito o cachorro que fita um frango dourado e crocante a girar. Eles venceram: batata frita. Mas não acostuma, que batata frita no menu do staff. Nos demais 29 dias do mês, o menu é o feijão (o mulato, que tem menos gosto que o preto, mas custa incontáveis dois centavos a menos) e arroz, aquele, juntinho feito papa de nenê, é mesmo de se lamber os beiços. Mas depois de trabalhar feito uma mula, quem é que liga para o gosto da comida, não é mesmo? A vida é assim: uns tem sala, outros tem cela, uns passam a caviar, outros a cavar um lugar no refeitório repleto de famintos. Acontece que o dinheiro é a arma mais letal da qual temos conhecimento, e como dessa arma nenhum escravo dispõe, a luta é sempre desleal. Sem essa de casa própria, sejamos diretos: o sonho é o de ter onde cair morto, de ter a possibilidade de encontrar a maldita paz de deus debaixo de algum teto, mesmo que seja um frágil, prestes a desabar no próximo temporal, o sonho da paz, a própria. Com isso, anda bastando. Qualquer um que tenha onde pelo menos ter um piripaque, já pode enfartar aliviado, vai morrer com a vida ganha. Não se dão conta de que não serve pensar num mal menor, que se seguirem com esses braços atrofiados por estarem tanto tempo cruzados, só farão diminuir mais, diminuir até despare.ser, até deixarem de ser. Nem direita, nem esquerda, nem meio: assumamos o profundo. Porque nem a esquerda, nem a direita, nem o meio - este cada vez mais desequilibrado – podem traduzir qualquer situação. E a situação é de total complicação e destruição, descaso, ignorância e manipulação, tudo sem meios termos, sem nenhuma cerimônia. Então não devemos medir as palavras, não devemos deixá-las pela metade, mudas, abreviadas, porque a dor não se abrevia, só faz doer mais se não se alivia. E para aliviar uma dor assim, grande como o próprio mundo, não basta convidar só as panelinhas, há que se convidar todos os que estiverem nas entrelinhas da engrenagem. Cada personagem é uma gota, e se não fosse por cada gota, não teríamos chuva. Não tardo em concluir que Itacaré é como o resto do mundo: um paraíso que, de tanto querer sê-lo, tornou-se artificial, e mais uma fonte de riqueza para os que, pelas leis desse sistema absurdo, REVISTA 25 BEATBRASILIS merecem mais, e para empobrecer os que, sob as mesmas leis, merecem mais é ficar com as raspas do tacho, e olhe lá. Uma mentira tão confortável quanto qualquer outro paraíso, uma mentira tão confortável quanto esperar que deus não nos abandone. Novas o.port.unidades: o projeto Porto Sul encaixou como uma camisinha XL em japonês nos planos de crescimento desordenado através de cirurgias estruturais em Itacaré: o porto haverá de trazer, trazer e trazer. Encherá a cidadezinha de green goes de todas as partes, desses que viajam em cruzeiros, logo, portam mais dinheiros, trará também a esta, que já foi um vilarejo, drogas novas, e em abundância, porque imagina se um turista quiser usar seu cartão de crédito para outros fins, e não houver? A cidade perderia clientes, e a cidade anda mais interessada em clientes do que em visitantes. Porque quando visitas uma pessoa, não deixas a casa do visitado cheia de lixo, não tratas o anfitrião com desdém, não abusas. E aqui tem certos tipos de turistas que, realmente, não encaixam no termo visitantes, pois estão mais para.sitas. Com o Porto, lá se vai outra fatia da mata atlântica, mas vejam! Não esqueçam do que nos disseram: que haverá mais emprego, REVISTA mais oportunidade. Só não deixam bem claro para quem é a oportunidade nem que tipo de oportunidade, sempre escorregam nos detalhes, que coisa, tsc. Quando ouço a palavra oportunidade tenho certos escalafrios na espinha, imagino os residentes todos na boba e perigosa ilusão de que as oportunidades serão suas. E boas. Tal qual a Pituba, rua principal daqui: deu sim muita oportunidade, especialmente para os artistas medíocres, para os mercados novos e de péssima qualidade, mas que te vendem doritos e coca-cola a qualquer hora do dia, para o subway, essa tentativa patética de um mc donald‘s saudável. Espero que Itacaré nunca tenha que ver um subway mesmo, como aquele do filme Irreversível, porque aí sim, significará que a situação estará mesmo irremediável, irreversível (e perdoem-me esta bagunca, cheguei a um filme francês por meio de uma marca de fast food). Prostituir-se não serve, nem por migalhas, muito menos por fortunas. E a prostituição, no caso deste porto, atingirá uma obra da natureza da qual até Darwin falou, uma região com uma biosfera como nos sonhos mais lindos. E mesmo que Darwin nunca tivesse alucinado por estas bandas, mesmo que a biosfera daqui fosse composta só por formigas e que a paisagem fosse de uma secura monótona, ainda 26 BEATBRASILIS REVISTA 27 BEATBRASILIS assim e sempre, a vida deveria ser respeitada, não invadida e evacuada. Quantos haverão de perder suas moradas, mesmo que financeiramente lhes digam o contrário e lhes convençam de que a vida num apartamento longe dali será bem melhor. Classe média, chega mais: miséria média, emprego médio, lar médio, tv média, vidas pela metade. Con.tratantes contam, descaradamente, a mentira de que o que estão a fazer é construir para evoluir, desenvolver, crescer, e outros termos comuns nesse tipo de conto de fadas que não deveria convencer a mais ninguém. O problema é que o mundo ainda está cheio de gente que acredita piamente na democracia, que nada mais é do que a ditadura travestida de anjo. Caem quase todos no conto, feito patos, tal qual mesmo os patinhos que estrategicamente posicionam no lago que serve de adorno para o quintal de mansões e outras aberrações feitas às custas da já tão cansada e impotente natureza (talvez não tão impotente assim, essas águas de março inundando o verão no sul do Brasil e limpando geral a terra do sol nascente, isso é um grito de parem, ou eu atiro! Ô num é?) Os lugares do mundo andam assim, deram pra permitir que detonem sua terra, escravizem sua gente, entupam seus becos, edifiquem seus morros, esfumacem sua cultura. E, como num crime perfeito, as bases deste sistema inescrupuloso e desafetuoso ainda saem na cena como necessárias, óbvias e, por que não, ótimas? Destroem qualquer possibilidade de manter vivo o que é genuíno e chamam isso de novos tempos. O pão que o diabo amassou já está, além de amassado, dormido, anestesiado, sem REVISTA sequer qualquer aspecto de pão, e muitos seguem alimentando-se desse ex-pão que chamam de comida, vivendo desse absurdo máximo que chamam de salário mínimo, morando nesses barracos que chamam de lar e vivendo nessa situação precariamente préfabricada que chamam de vida. Já me atrevi a perguntar a um legítimo escravo, que recebe a esmola de um salário mínimo para trabalhar 60 horas semanais, em condições desumanas (porque ―insalubres‖ é um termo maquiado e suave demais), por que será que aqui na Bahia a exploração grita tão mais alto e tem mais força, e ouvi uma resposta que me doeu tanto quanto o português desmoronante do pobre rapaz: ―deve dissê porque nóis tem menos capacidade‖. E não é que ele tem razão? Afinal, quem os capacita? Quem se interessa em capacitar essa gente? Uns dois gatos pingados, que não estão tão afetados pela mania de poder, talvez. Mas sim, ele tem razão: se não sabe nem ler, como poderá contribuir para o nosso belo quadro social? Ora, limpando, levantando peso, obedecendo, bajulando o patrão. Me belisca aí: 2011, certo? Ai. Aham. A tão solicitada consciência, afinal, vale ou não vale alguma coisa? E se vale, serve ela sozinha? Podemos, genuinamente, fingir que as coisas são como deveriam ser? Neil Young cantou ―o mundo está girando, esperamos que você não lhe dê as costas‖. E quando se tem consciência, será que é possível espalhá-la no céu, na água da pia, no azeite de dendê da baiana que sofre porque decidiu que ela merece mesmo sofrer e pronto? Sem mais penso, 28 BEATBRASILIS sem mais existo: não penso, logo, subexisto. Deixam que Deus ou o pastor resolvam suas questões. Deixam que lhes digam como fazer, o que fazer e quando. Deixam que lhes digam o que comer, como comer e quando. Deixam que lhes digam o que rezar, como rezar e quando. Deixam, inclusive, que lhes digam o que suportar, como suportar e sempre. Inseridos nesse sistema odioso, o exercício de pensar nos leva à inquietude, à inconformidade, e nos leva, principal e verdadeiramente, a pensar mais. Será tão desbaratinadamente despropositado pensar em convidar aos demais, como quem convida alguém a uma celebração, a exercitar o penso? Convidar a pensar e a deixar de acreditar nas vozes aveludadas que dizem as mais bárbaras asperezas, convidar a dar vazão ao que chamamos de senso crítico, a uma análise um pouco mais profunda do que o nível até onde damos pé. ... Elena Fernandes é uma trotamundos que não sossega nem geográfica nem socialmente: se mandou de Porto Alegre para Londres, de Londres voltou ao sul brasileiro após 2 anos de chuva fina e festas malucas, do sul brasileiro rumou a para Buenos Aires, onde viveu feliz e porteñamente por 3 anos, e atualmente é educadora no interior da Bahia. Sonha em ver um mundo anarquista, portanto harmônico, e em ter quatro filhos mais brilhantes do que as estrelas do logotipo desta revista. É seguidora de St. John Lennon e Godard, de Eduardo Galeano, Bakunin e Allen Ginsberg. Ultimamente, se refestela no mar quase que diariamente e está sofrendo lindas metamorfoses por essa coisa de professorar. REVISTA 29 BEATBRASILIS Vitor Souza UM ANO RELEVANTE O título acima não foi o que idealizei para esse artigo. Inicialmente o texto iria se chamar “DA LAN-PARTY À REDE CAIÇARA”, onde eu faria um relato sobre minha incursão de quinze dias pelo estado de São Paulo a fim de: (1) participar de um dos maiores eventos de tecnologia do mundo; (2) ministrar umas oficinas no Ponto de Cultura Caiçaras, em Cananéia, onde eu também aproveitaria para confraternizar e trocar um milhão de ideias com o povo de lá, coisa sempre muito agradável; (3) tentar promover um mini encontro relâmpago com alguns beatbrazucas colaboradores dessa revista. Imagem em destaque: minha mão segurando um tijolo de adobe, fabricado no Ecocentro IPEC. Pirenópolis - GO REVISTA Mas no fim, nada disso aconteceu, pois eis que meu gato resolveu desaparecer por vários dias e retornar muito doente, bem às vésperas da minha viagem, de modo que optei por ficar e cuidar 30 BEATBRASILIS dele. Por isso resolvi aproveitar os últimos dias das férias e o tempo que me sobrou para escrever sobre a importância que teve pra mim o ano de 2010, um ano de fato relevante. Antes de iniciar os próximos subtítulos, gostaria de abrir um parêntese para acrescentar que Um ano relevante também é o título de um texto que o companheiro da rede Metarec, Philipe Ribeiro, escreveu há alguns anos, que pode ser conferido em seu site e também num e-book organizado por Felipe Fonseca, de nome Metáfora 1.0. Tomei emprestado esse título porque curti bastante o texto do Philipe, mas também porque não consegui pensar em outro melhor. ITAIPAVA Durante anos eu e minha esposa passamos os feriados de carnaval em Barra de São João, onde morávamos, sempre na esperança que algo de bons tempos voltasse acontecer: a reunião de velhos amigos no carnaval barrense. As promessas vinham, os combinados eram feitos antecipadamente, mas não vingavam. No final, o resultado era sempre eu e ela sozinhos e tristes, naquele pedaço bonito de litoral, durante os dias festivos de fevereiro. Imagem em destaque: Cláudio e eu enternecidos com a paisagem de Itaipava - RJ Então neste ano de 2010 eu nem quis saber: aceitei um convite para subirmos a serra no feriadão e pra lá fomos. Coisa boa! Itaipava é sensacional, tem mesmo um clima bastante agradável. Fiz algumas REVISTA 31 BEATBRASILIS trilhas, tive tempo de pensar numa porção de coisas e concluir que uma guinada na minha vida precisa ser feita. Foi o início. CACHORRO SURTADO Meu atual blog foi criado em 2009, com o nome de Terapia Canina. Isso aconteceu logo assim que deletei o Literanua e qualquer pretensão literária que durante 10 anos alimentei. Acabei criando o Terapia porque, apesar de ter desistido da literatura, continuava sentindo aquela velha necessidade de desabafar através das palavras. Então de vez em quando recorria ao meu novo espaço virtual e a verborragia corria solta. Geralmente os posts eram queixas bastante sem importância, de coisas relacionadas a um emprego que eu não mais suportava. Mas com o tempo, aquela lamúria toda passou a me dar no saco também, e comecei a pensar num objetivo mais "nobre‖ para o Terapia Canina, objetivo que estivesse em maior sintonia com a série de reflexões que havia começado em Itaipava. E isso foi feito assim que retornei de Goiás, quando meu blog ganhou o atual nome, Cachorro Surtado, e uma nova cara. Imagem em destaque: figura usada no post “A estrada do Cachorro Surtado” de 07/09/2010 MISSÃO GOIÁS - PDC 2010 Aconteceu que numa certa manhã de sábado, ignorando compromissos e obrigações, vagabundeando pelo centro de Rio das Ostras, resolvi entrar numa banca de jornal e comprar um exemplar REVISTA 32 BEATBRASILIS da Revista Trip. Gosto das matérias da Trip, mas naquele sábado creio que a comprei por saudosismo, pois há tempos não a lia: andava lembrando da virada de 1999 pra 2000, de quando resolvi que seria um ―escritor‖, de quando, com muito custo, construí meu loft, de antigos amigos... Mas ao chegar em casa, folheando as páginas daquela edição, dei de cara com essa matéria aqui. Foi um ―peteleco na orelha‖, como diria Kerouac, ler aquele artigo. Então comecei a me interessar por Permacultura e me dispus a tentar descobrir tudo que pudesse sobre o Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado (IPEC). Levantei as informações que julguei necessárias e me inscrevi no próximo curso que eles estavam oferecendo. E assim foi que na madrugada do dia 17 de abril de 2010, prendi a respiração e dei um mergulho no escuro, partindo do interior do estado do Rio de Janeiro rumo ao sertão de Goiás. Você pode ler o relato completo da minha viagem aqui, ou então aqui. MISSÃO VALE DO RIBEIRA – CANANÉIA Imagem em destaque: grupo que encontrei na estrada, também a caminho do Ecocentro IPEC Voltei de Goiás achando minha cidade menor, minha casa menor, minha vida menor! Precisava fazer algo com uma urgência que eu nunca sentira, porém não fazia ideia do que queria exatamente. Mas sabia muito bem o que não queria! Comecei então a deletar da REVISTA 33 BEATBRASILIS minha vida situações, hábitos e rotinas. Com isso, parei de realizar certos trabalhos, suspendi minha participação num determinado projeto e me afastei de algumas pessoas. A única coisa que sobrou dessa ―limpeza‖ foi o meu emprego, que intuitivamente senti que não era hora de abandonar. Uma coisa que eu sempre recomendo às pessoas quando as coisas estão chatas ou confusas é: pegue a estrada. E pegar a estrada foi exatamente o que fiz um mês depois de voltar de Goiás, dessa vez rumo ao sul de São Paulo, beirando o litoral, Vale do Ribeira, Estância Balneária de Cananéia. Meu primo, o Luiz Mayerhofer, já estava lá há alguns meses, atuando ativamente no Ponto de Cultura Caiçaras. Vínhamos trocando ideias pela rede desde outros tempos, ele sempre me chamando para ―mochilar‖ por lá, querendo me colocar por dentro da ―vibe‖ que estava rolando. Eu não fazia ideia do que ele estava dizendo, mas naquele momento tive a sensação de que era hora de descobrir. Imagem em destaque: Luiz Mayerhofer e eu, tomando café da manhã no Bar do Miguel. Cananéia - SP REVISTA Chegando lá, o que vi foi uma verdadeira fraternidade de jovens bens intencionados e engajados numa série de projetos que, a grosso modo, objetivam transformar o mundo num lugar melhor. Uma galera muito bacana e totalmente imersa em coisas como Editais e Terceiro Setor. Era mais um universo de possibilidades que se abria. 34 BEATBRASILIS Até hoje, não sei se voltei de Cananéia mais esclarecido ou mais confuso sobre que rumo dar a minha vida. Mas pela primeira vez em anos, me sentia vivo e com gás para fazer muito. Você pode ler o relato completo da minha viagem a Cananéia aqui, ou então aqui. METARECICLAGEM Não lembro de que forma fiquei sabendo do programa Sustentáculos, da TV Brasil. Mas passei a acompanhar. Certo dia, assistindo ao programa, começou a passar uma matéria que mostrava uma espécie de ―laboratório de informática‖ situado dentro do Parque da Juventude, em São Paulo. Cheio de peças de computadores descartados, era um monte de fios, cabos, placas e carcaças das mais variadas espalhados por tudo que é canto daquele lugar. E a galera ficava lá, desmontando, remontando, consertando, revirando... E rolavam umas aulas de hardware para a comunidade também, tudo muito fraterno. Foi a primeira vez que ouvi a palavra Metareciclagem. Foi amor a primeira vista! Tratei de escrever logo para o programa a fim de obter mais informações. Foi então que fiquei conhecendo o site da Rede Metareciclagem, onde me cadastrei e passei a acompanhar a lista de discussão. De cara fui recebido muitíssimo bem por figuras de fato admiráveis. REVISTA Imagem em destaque: Oficina de metareciclagem feita na Escola EP de Barra de São João - RJ 35 BEATBRASILIS Depois fiquei sabendo que o laboratório que vi no programa da TV Brasil era um esporo da Rede Metarec. Em botânica, esporo é uma célula que sem fecundação se separa e se divide até formar um novo indivíduo. Mas naquele momento, na minha ignorância, eu não fazia ideia do que significava a palavra esporo. Assim como muitas outras palavras, neologismos, expressões e siglas que passei a ler na enxurrada de e-mails que vinham da lista Metarec todos os dias: mutgamb, mutsaz, linkania, pvt, xemelê, memelab, bricolagem, telecentro, reapropriação crítica da tecnologia... Com isso, tornei-me militante do movimento do Software Livre e adotei o Linux como ferramenta de interação com o mundo virtual. Escolhi a distribuição Ubuntu por ser considerada por muitos a mais fácil de mexer, e como feliz usuário iniciante de Linux, além de "cascudo" ex-profissional de TI com quase duas décadas de experiência, posso com clareza recomendar: Use Linux. Garanto pra você que a experiência é libertária! Imagem em destaque: foto oficial tirada ao final da primeira temporada do projeto Oficina Livre REVISTA Software Livre pressupõe compartilhamento da informação. Pressupõe fraternidade. É um movimento com profundas motivações ideológicas, anti-monopólio e anti-capitalista. Está, não por acaso, relacionado a muitos outros conceitos e ideais: educação ambiental, sustentabilidade, cyberativismo, ética hacker... 36 BEATBRASILIS PROJETO OFICINA LIVRE Ocupações que de alguma forma possam promover uma relativa transformação social. Oficina Livre começou como uma ideia pedagógica diferente para as aulas ministradas na oficina de informática da Escola EP de Barra de São João. A ideia virou projeto, o projeto virou realidade no cotidiano da escola, e esse cotidiano virou relato on-line e informação técnico-pedagógica fraternalmente compartilhada. Objetivo final desse projeto: promover cultura e educação ambiental mediante o uso de softwares e ferramentas livres. Ao final do ano letivo, minha feliz constatação foi a de que, pela primeira vez em quase sete anos à frente da Oficina de Informática daquela escola, não tive uma representativa evasão de alunos, desmotivante e triste, das minhas aulas. Terminei com praticamente o mesmo contingente que iniciou, e isso por si só representou um grande feito. Embora eu não tenha atingido todos os meus objetivos, fiquei de fato muito feliz. O trabalho foi feito e acho que foi bem feito. Voltei pra sala de aula ainda em 2010. Prefiro começar por aí. Arregaçar as mangas dá trabalho, mas também dá resultado. Sigamos! Usar a realidade como ferramenta, e não ficar me digladiando com ela. É nisso que estou focado. POST SCRIPTUM Um dia depois de terminar de escrever este relato, meu gato desapareceu novamente. Encontrei-o por acaso a três quarteirões da minha casa. Tentei levá-lo comigo, mas ele resistiu e me mordeu. NOVOS RUMOS Pra 2011, meu foco é o de tentar compreender um pouco melhor como funciona esse universo que é o Terceiro Setor. Me inteirar sobre os programas do governo para fomento de projetos nas áreas ambiental, cultural e tecnológica. Interagir com pessoas que optaram por se dedicar a ocupações que lhes façam sentido. REVISTA 37 BEATBRASILIS Vitor Souza é técnico em meio ambiente, permacultor, metarecicleiro e ilustrador. Assina o blog Cachorro Surtado, resolveu publicar tudo que já escreveu sob licença Creative Commons e sonha em ser um fiscal incorruptível quando crescer. Atende no e-mail [email protected]. É usuário de Linux e de chá de camomila LEANDRO DURAZZO Vagabundo pão-de-açúcar A gente tinha acabado de sair de um boteco de esquina meio sujo nada sofisticado onde havíamos bebido algumas cervejas graças à boavontade de um velho amigo de meu pai. Estávamos sem dinheiro, ou quase, e a única coisa que tínhamos seria para um bar mais adiante, em qualquer lugar longe dali. Era um bom amigo do meu pai meu tio praticamente que dizia ser a bebida o álcool uma bela noite pra um dia de merda. Ele compraria a Varig se pudesse por um real e embolsaria 13 milhões antes de abrir falência definitiva. Sentando no bar mais adiante longe mesmo daquele outro pedimos nossas cervejas baratas e começamos a noite novamente. Terceira garrafa virada no copo – nem isso – e senta conosco um homem bem torto de tanta bebida do dia inteiro. Alagoano, ele disse, alagoano cabra-macho que não leva desaforo e dá um murro na orelha do primeiro cachorro que se mete à besta com os amigos. Nós éramos amigos. Sentado ele e nós todos com os copos vazios cheios vazios cheios – menos o alagoano arretado que não bebia nem um gole mais – foram várias garrafas. Entre elas no intermezzo ou durante mesmo a bebedeira o cabra dizia as coisas mais envolventes certeiras. Diz que vinha de Alagoas, Pão-deAçúcar disse ele, desde antes de eu nascer ele desceu cá pra São Paulo – ilusão lugar cachorro que não tem tanto trabalho como gostam de pensar. E dizia dizia poesia de cordel falava que nem nordeste levantava a mão pro céu e ria ria e deixava a gente rindo REVISTA 38 BEATBRASILIS pelas graças que acabavam saindo de toda aquela loucura bêbada dele e nossa ao mesmo tempo. a lua surge no céu redonda que nem uma vara no dia que eu não ver ela não boto o feijão no fogo mocó é um bicho chamado preá que avisa "quiii quii" do alto da serra quando tem jibóia perigo por perto Avisa e corre se esconde no mato porque não é lá que jibóia costuma nascer, jibóia é cobra que dá em lugar úmido E ia sempre cada vez mais trazendo cerveja pra nossa mesa e contando suas proezas todas feitas no nordeste. Porque claro saibam todos que ele trabalhava lá em cima desse mapa, fazendo irrigação. E pra irrigação tinha todo um processo de cavucar a terra, separar o chão do resto, cavar bem um buraco, fazer uma dividição ―COMO?‖ uma dividição ―Como, meu amigo?‖ uma dividição oxe, deixe comigo que tô falando – colocar pra cada lado uma porção de terra justa pra fazer com que o buraco sirva bem pro que plantar – mamão melancia e o que mais aparecer. E no nordeste também ele sabia bem tinha sempre muita cobra. Cabra valente claro que era tinha mesmo muitas vezes dado cabo dessas feras. Jibóia era moleza, cobra mansa que só ela, dava pra fazer subir no braço enrolar na mão e fazer carinho. Jibóia é cobra mansa que nem sucuri, ―a gente pega ela com varinha de ripa de nambu‖. ―Como?‖ ―Varinha de ripa de nambu, cabra, me escute que tô falando‖. Varinha de nambu. As jibóias são mansas pra quem tem mão pra ripar, porque pros coitados dos bichos. REVISTA cascavel dá em lugar seco em pedreira pedra cascalho por isso "casca"vel E o cabra buscava mais cerveja e corria de volta pra mesa rindo pra já falar alguma outra besteira qualquer pra nós dois perdidos naquela noite insana meio-dia sol a pino os pássaros voando sobre as árvores sentado num banco de pau feito de pedra nu com as mãos no bolso - ele parava e perguntava pra mim, perguntava pro meu amigo quais as quatro maravilhas melhores desse mundo? - não a gente não sabe! Por favor cabra (cabra!) fale quais são - 39 BEATBRASILIS tomar cachaça, paraíso de adão, saúde e as mãos no bolso pra tirar dinheiro Pois era tudo assim como deveria ser paraíso de adão que é o colo quente no qual a gente se joga sempre que pode. lírio manjericão que enfeita meu jardim se pudesse ser assim paraíso de adão pela pura perfeição que é da planta mais vistosa até por cima do muro planto cravo nasce rosa Toda pura poesia como disse meu amigo, num outro dia seguinte louco de anotações sem fim pra poder lembrar de tudo ou o que me apetecesse e escrever esse conto louco louco porque, também, essa história de esperar muitos dias pras coisas acontecerem acabou com a desgraça da história do tal ―Tchó!‖ e o cara foi lá com um pedaço de aço pediu pro ferreiro - sabe, aqueles ferreiros que mexem com fogo e metal - e disse: "faz pra mim uma enxada pra eu cavar a terra" "claro faço sem problema. passa aqui na quinta-feira outra que não hoje, me dá oito dias" deu que se passaram os dias REVISTA e o cabra foi no forno pediu na quinta-feira e o ferreiro fez de morto disse: "e fiz que fiz o aço diminuiu, agora pra ti cabra eu faço é um enxadeco daqueles bem firmes pra cavucar a terra" "então não me aperreie mais com essa cachorrada na outra quinta-feira passo aqui e por fineza me entrega o enxadeco pra eu poder trabalhar" foi mais sete oito dias outra quinta-feira veio e o cabra arretado foi até o tal ferreiro "sabe meu amigo cabra sério enxadeco com esse aço não tem mesmo como certo o máximo que posso é te fazer um martelo" "oxe cachorro fidumapeste faça logo esse martelo que te dou três dias santos pra poder voltar aqui" e nos três dias depois uma outra quinta-feira o homem correu pro forno pra buscar o tal martelo que era pra ser enxada ou no mínimo enxadeco "sabe meu amigo, martelo mesmo não deu o que eu faço pra ti com esse aço é um 'tchó' dos mais sinceros" " 'tchó' ? mas que diabo da peste é 'tchó'?" 40 BEATBRASILIS " 'tchó te faço agora não precisa nem espera" e tomando do metal que era pra ser enxada ponta quente feito brasa queimando num fogo rubro olhou pro balde de água que servia de bacia enfiou o ferro quente e o 'tchó' que se ouvia era o mesmo do cigarro que meu camarada tinha sendo enfiado num copo de água com caipirinha Era a mais pura verdade bateu lá na consciência, num estado de ausência de qualquer futilidade que pudesse atrapalhar o gosto daqueles versos, soou como soa o sino da igreja ao meio-dia ou como o despertador que ao meio-dia acorda minha cara de ressaca depois de chegar em casa pouco antes e anotado tudo isso que falei. Ríamos ríamos ríamos claro por que não? afinal o cigarro já era e já era noite alta bem no meio madrugada e mais cerveja saía. O arretado de Alagoas que queria uma ajuda com algum advogado pra poder assumir a guarda da filha do Guarujá não bebia nem um tico do copo velho sujo quente pousado em cima da mesa. Era tanta coisa assim de parente e mulher foda – ela vinha de Sergipe também não era daqui, mas São Paulo deu à luz a menina do nordeste que agora, veja só, não ficava com o pai – saiu outro poema outro cordel outra arte. jacaré não tem tempero cabra ruim não tem parente mulher de bucho quebrado não tem vestido que assente REVISTA 41 BEATBRASILIS O Bairro Guilherme Rocha Um bairro cede. Desfaz-se. Mancebo concebe. Tabaco tosta. Risca o muro ansiando motim. Mira o sítio. Cospe em seus farrapos pretos. Homens armados escoltam seu consorte. Causa: vulgaridade traçada em praça pública. Pasmem. A revolução evoluiu. Joviais e livres, poetas soldados brincam de mudar o mundo. Um velho sentado numa mureta observa o mundo. Seus olhos precisos sabem o que admirar. Mãos enrugadas descansam em seus joelhos. De repente levanta e com no fluxo das folhas ao vento ele se desloca alguns metros até chegar a um banco, onde, uma vez sentado, volta a mirar o mundo. Contempla o tempo. Um bairro se acende. Pés estrangeiros deslizam entre as ruelas. Nadja sente pecado entre as coxas. Alcoolizada à noite faz-se fácil amar. Segreda uma terna melodia para o agrado de Susy. Dançam coladas. Luzes as seguem. Silhuetas lésbicas beijam-se em fricção. Em qualquer lugar do seu mapa mundi, sotaques distintos se misturam durante o dia, e à noite se consomem. O compasso é a marcha das ruas, sombreadas pelos fados das varandas. Onde flores sem foco enfeitam a noite, incolores, fundidas na Canção Sem Fim. Raquel, a puta mais bem servida da cidade chora escondida, mas logo engole suas lágrimas para bem acolher o prefeito. O lixo amontoado faz dela o mais belo ornamento das esquinas. Ouço suas queixas. Faço-lhe agrados. Choramos em sintonia. Nunca lhe dei flores, pois seu toque as faz murcharem. Nunca disse que a amo. O romance lhe agride. Nem em sonhos conheço seus pais. Numa tarde ensolarada roubamos uma quitanda de duas peras e uma maça. Chegados num parque, Marquito picareta de mim as frutas e com uma risada e dois pulinhos grita uma obscenidade e desaparece para sempre. Partituras voam à frente de uma criança. E enquanto criaturas contextualizam palavras, poetas vivem para poupá-las. REVISTA Trovador do asfalto cante-me sua fome. Ostente sua barba afiada, insetos e tudo, Navegue as ruas buscando seu novo mundo. Com o mais perfeito amor em um saco de beber E rugas da história nos dois calçados furados. Cerâmicas pintadas cobrem as fachadas. Límpida em história, Encanecida em vida. Azul e branco para os deuses. Creme e cor-de-rosa para os banheiros Enfeitando tapumes, esboçando passados. Passado. Cedido. Desfeito. O bairro. 42 BEATBRASILIS Guilherme Rocha demorou três dias para caminhar todo o litoral sul da Paraíba. Para muitos, bastaria dois. ANSEIOS LUIS SALES ANSEIOS SE PERDEM COM O PASSAR DE TUDO E O LOBO DA ALMA TENTA INQUIETO DEVORAR TODA A REALIDADE INÚTEIS TENTATIVAS CANSADO, VELHO, ABATIDO TEIMOSO PORÉM UIVA INCANSÁVEL PARA PERFEITA E ONÍRICA LUA SEMPRE DISTANTE TENTA, TOLO E DÉBIL ALCANÇAR O INTANGÍVEL O TEMPO E O FRACASSO LHE AÇOITAM LONGOS CHICOTES ESTALAM A LUA INDIFERENTE E IMPOSSÍVEL SE MANTÉM O LOBO FERIDO SANGRA MAS VÊ A LUA E SEUS VISLUMBRES NUM COMPLETO RESUMO DE ÁRTEMIS A CAÇA E A LUA A CAÇA PELA LUA SEU OBJETIVO MÁXIMO... DISTANTE. OS CHICOTES NÃO CESSAM O LOBO PARA A DESISTÊNCIA VEM LHE ABRAÇAR E O CONFORMISMO LHE FAZER CARÍCIAS A REALIDADE RI, GARGALHA A LUA DESAPARECE O LOBO JÁ NÃO EXISTE. LUIS HENRRIQUE É JOVEM DE PREGUIÇAS TANTAS E ALMA IDOSA, FÃ INVEJOSO DOS GRANDES REVISTA 43 BEATBRASILIS POETAS, GRANDE CONHECEDOR DE COISA NENHUMA. ESCREVE PORQUE NÃO SABE DESENHAR, MAS NÃO SABE ESCREVER. E TENTA, DE MODO UM TANTO DÉBIL, DIZER ALGUMA COISA, MAS SEM FALAR DEMAIS. FABRÍCIO BUSNELLO CANTIGA DE TEMPO E VENTO REVISTA 44 BEATBRASILIS Um tempo. E nesse tempo uma paisagem de pampa no inverno. E nessa paisagem se vai um taura sobre um cavalo, o pala negro molhado de chuva pesando sobre seus ombros e aumentando a carga do cavalo que ele monta. Alguém que os visse assim, ao longe, neste cinza invernal e chuvoso, pensaria num centauro e acertaria. O que é o homem sem o cavalo nas pradarias sul americanas? Um sagitário mutilado, uma criatura mitológica sem ninguém pra imaginá-la: é nada! Coxilha após coxilha, charco após charco, encosta após encosta. O centauro deixa cair sua solidão sobre a relva molhada como cai a chuva lá de cima. O Patrão Velho parece brabo nesses dias de revolução. Uma pequena igreja de madeira, ilhada em meio a todo um mar de verde observa o cavaleiro aumentar no horizonte lindo e triste. Parece um gigante de quatro patas, um gigante cabisbaixo, chapéu REVISTA de abas a lhe cobrir a cara que é barbuda, a cara que é trigueira e curtida pelo sol frio desse pedaço de terra, a cara que carrega dois olhos assustados pela guerra, entristecidos pelas assombrosas circunstâncias. Apeia do cavalo e o amarra na figueira que faz companhia à casa de deus naquele reino desolado e entra cuidadoso na igreja vazia fazendo o sinal da cruz apenas por hábito. Há um grande buraco no teto por onde a chuva insiste em pingar o tempo. Procura um canto livre daquela água e senta pra pensar, pra dormir, pra se terrificar com suas visões, com todos os assustadores eventos gravados dentro de sua cabeça cansada. Mesmo sentado parece ainda sentir o balançar amigo e honesto de seu cavalo, como se ainda corresse pelo deserto verde que desliza pra fronteira do Uruguai. Coxilha após coxilha, charco após charco, encosta após encosta. Que mundo é esse que ele repensa agora tiritando de frio encolhido dentro de uma igreja abandonada, destruída pela guerra como ele e como ele separada do deus para o qual nasceram pra servir? 45 BEATBRASILIS A dor de não ter resposta não é pior do que a resposta que ele poderia elaborar se a noite não chegasse voando no vento rápido que sempre vasculha os recônditos solitários do estranho campo gaúcho. E com o vento vem uma milenar canção de sono que é ouvida ali desde sempre. Desde antes dele. Desde antes da igreja. Desde antes da figueira. É uma canção escura. É uma canção que mal se escuta. E ela lhe parece sagrada, lhe parece linda. Porque a canção lhe bota um peso doce sobre as pálpebras e lhe tira todo o pensamento da cabeça. Sagrada porque não dói e linda porque ele esquece. E agora o índio velho dorme alheio às vagarosas tramas do tempo, correndo numa velocidade estranha pelos surreais areais dos sonhos. o que restara. E seguiria então vivendo, pois sempre teria uma próxima coxilha, um outro charco, uma nova encosta. Seria assim até finar-se o cavalo, seu último melhor amigo. E depois ele partiria para uma outra campereada, onde a morte lhe apontaria outras paragens com novas distâncias entre estranhos destinos, porque um quera não se perde na contagem de algum tempo, mas renova-se pra sorrir ao cavalgar o vento que desde sempre azucrina a pampa. Coxilha após coxilha, charco após charco, encosta após encosta. Nem o frio da fantasmagórica madrugada perdida o acordou, nem o Jacurutu que grita como os mortos que falam o arrancou da paz do esquecimento que permeia o sono. Só o estranho vermelho do amanhecer que encheu a velha igreja, tomando o lugar que um dia havia sido de deus, o fez notar a hora de partir de novo. O amanhecer berrou dentro da capela e o homem se fez outra vez um com seu cavalo, tocando o destino em frente com as esporas, deixando uma distância maior entre ele e o que já se olvidava na estrada. Vinha das bandas de São Miguel, das ruínas assombradas das Missões que ainda choravam os Guaranis. Vinha descendo pela terra dos Sete Povos, recebendo na cara o forte Minuano que nasce lá nos Andes. Desolado entre duas distâncias gigantes, o homem toca-se dali mui triste, sentido com o silêncio de não saber pra onde ir: cavalgar era REVISTA 46 BEATBRASILIS Fabrício Busnello não voa alto porque não precisa, pois as coisas que mais ama estão aqui embaixo. Vivo desde 1976, foi aprendendo desde cedo a amar as estradas, passando com a família pouco tempo em muitas cidades. Colorado, Gaúcho e Brasileiro, acabou por formar-se em Turismo por pura conveniência. Nasceu mestre em Vagabundagem, e tenta aprimorar esta vocação enquanto ronca em ônibus que rodem pelo sítio que mais ama nesse mundo: a América Latina! LEANDRO GODINHO OLHOS ABERTOS A última das estrelas morreu no céu. Meus olhos cinzentos na tevê e um filme demasiado pornográfico para ser sexo de verdade. Na rede, uma Lila morena e dorminhoca, nua e santa demais para aquele quarto. A atriz montava no falo e berrava a cada contração de seus quadris. Eu não acreditava em nada. O que me enchia de vontade de sexo era Lila, mas Lila precisava dormir, como eu insistia em não fazer. A última das estrelas morreu em vão. Ninguém iria chorar por ela, pelo seu brilho agora breu. Lila não iria acordar por uma estrela morta anos-luz atrás. Lila gostava das coisas quando vivas, dos homens quando sorridentes. Eu deitado na cama sozinho era um homem morto, bem o sabia. Lila dormia em paz porque não sabia, mas eu era um homem jurado de morte. Tente dormir podendo não acordar. A última das estrelas não vai nunca saber o que é uma semana sem conseguir fechar os olhos. Nem eu sabia direito, depois do segundo dia, tudo virou mancha e talvez. Lila tentava me resgatar e me colo- car para ninar em seu colo. Depois do quarto dia apelei para bolinhas e virei delírio. Em casa, vidrado, a magnun debaixo do travesseiro. Será que alcanço o gatilho a tempo? A mão é fugaz e tenho a porta da cozinha logo na mira. O revólver desliza até Lila, e até a noite. A última das estrelas é à prova de balas. Eu não sou. Há uma bala fora deste apartamento me aguardando e Lila não sabe disso. O revólver voltou para debaixo do travesseiro e a mulher suga com a força da terra a seus pés todo o sêmem que o homem da tv tem a lhe gozar. Enganei o homem que quer me matar, enganei sua esposa e engano Lila. Lila desperta, me vê morto na cama, cinza. Desliza até alcançar minha boca. E então ressuscito. A última das estrelas queimou tudo o que pôde. Lila vai me consumir por todos os seus poros. É uma questão de tempo para que ela vença a bala que me aguarda. Quando grito, ela morde. Respiro, transpiro. Não morri ainda. Não posso fechar os olhos. REVISTA 47 BEATBRASILIS também lacrimosas, pareciam – veja só minha peraltice – uma colméia de viúvas, mas não, só a moça do vestido negro, do negro véu, a mão direita sobre o caixão aberto é que havia de fato ficado sem o marido. As outras sequer possuíam um exemplar para perdêlo. LEANDRO GODINHO SANTO HOMEM Os amigos foram chegando aos poucos, trôpegos, sem ter como acreditar no bizarro da cena. Santo homem. Marido exemplar. O Marcos. Marquinhos. Entravam cabisbaixos e logo se davam com a realidade, o cheiro das coroas de flores, das velas, da gente triste, o pai do Marcos, o filho do Marcos, a viúva, sobretudo a viúva, um colosso de mulher quando em cores mais alegres e ambientes mais festivos. Ninguém sabia ao certo como havia morrido aquele homem. A mulher dissera aos peritos que encontrou seu amado agonizante no quarto de André, um amigo do casal que dava uma festa na noite anterior. Sem maiores delongas, ele morreu. Muito triste. A viúva chorava, tão novinha, ainda rija nas carnes, devia andar pelos trinta. Vestiu-se com pudor para o velório, um vestido negro e até um negro véu, uma máscara mortuária para ela também. Estava cercada pelas amigas, também professoras primárias, REVISTA Para o Inspetor Sampaio, muito conveniente também. A viúva chorava e Sampaio ia olhando, que debaixo das lágrimas, se antevia o decote farto, farto em demasia ele diria, as lágrimas também se demoravam ali. Mandou examinar o cadáver e dispensou a mulher. 48 BEATBRASILIS Marcos, amigo das piores horas. Ele vai fazer falta. Não se fazem mais homens feito Marcos, minha filha. Era um galhofeiro, um dos melhores. Marcos era um irmão pra mim. Amava como se ama um filho, minha querida. Era longa e comovente a lista dos pêsames. A viúva se comovia com cada um. Alguns dos amigos, entretanto, não deixavam de notar como as ancas da mulher venciam o luto do vestido e mostravam-se bem vivas. O André, este estava completamente apoplético. Além de num estado de pileque sem igual. Dois amigos o sustentavam de pé naquela hora dura, um em cada braço. Foi o primeiro a ver o Marcos desfalecido nos braços da esposa, tornada naquele instante viúva. Ela agachada e metida numa saia que fazia o desenho daquele corpo tão digno em seu pecado, aquela cintura impossível. Então se deu conta que seu melhor amigo estava no chão, desfalecido. Entendeu tudo num átimo antes de mergulhar naquele torpor medonho. caixão já estava sendo fechado para tomar o cortejo do túmulo quando o Inspetor Sampaio adentrou no velório, solene, fez o sinal da cruz diante do Cristo que pendia acima da cabeça do defunto e se achegou da viúva. Ela levantou o véu e ele viu a boca sem batom mas recheada de promessas que ele não poderia revelar ali. Outros dois agentes o acompanhavam e foi com muita dignidade que ele anunciou à viúva que ela estava presa, sob a acusação de assassinato da vítima Marcos Emílio Revega, o Marquinhos, o Marquinhos! REVISTA Assassinato! Matou o próprio marido, vejam só, a facínora, a cínica – chorando sobre a vítima. Ela ficou lívida a princípio, mas não ofereceu resistência. Seu único capricho foi lançar um último olhar e beijar a testa do marido morto. Algemada, foi retirada do velório que se tornou bafafá. A polícia não quis prestar maiores esclarecimentos, preferiu enfiar a moça na viatura e todos arrancaram em silêncio. Diante do inspetor na delegacia, ela, a viúva, confessou. Matei meu marido. Matei. Matei! Sampaio não era homem de convulsões e apenas acenou para um dos auxiliares, que foi buscar um copo d‘água enquanto ele emprestava à moça uma caixa de lenços de papel. Sampaio perguntou, após o copo d‘água, por que aquilo. Um santo homem. Marido exemplar. Amigo do peito. Pai dedicado. Empregado querido. A viúva então se mostrou em toda a sua imponência, a voz saiu finalmente, as lágrimas secaram, os lábios coraram outra vez. Foi o homem mais doido que eu tive, doutor. Um horror. Por ele eu fazia de tudo, apanhava na cara, de mão fechada, se fosse preciso. Na cara! Ele gostava de me submeter a si das mais diversas formas. Ele me amarrava na cama, me amordaçava, às vezes prendia meus pés juntos e me possuía assim, por trás! Por 49 BEATBRASILIS ele, tive que beber mijo certa feita, e ele delirava, chegava a desfalecer de êxtase. Só teve uma única coisa que nunca dei pra ele. Naquela festa, ele propôs um jogo. Aquele puto. Queria me deixar no quarto do melhor amigo toda amarrada, um consolo no meio dos quartos, pra me descobrirem lá no meio da festa. Foi demais, doutor. Eu posso ser muita coisa, mas dentro de casa. Na casa dos outros já era demais! Ele se exaltou e puxou o cinto para me imobilizar e eu resisti. Tomei-lhe o cinto. Ele vacilou e me vi de posse de seu pescoço, através da peça de couro. Foi assim. Sampaio suspirou longamente. A viúva então, mais bela do que nunca, deixou-se cair na cadeira. Chorava outra vez. Meu homem. Matei meu homem. Meu santo homem. 50deRegatas BEATBRASILIS Leandro Godinho, 33, é formado em Comunicação Social, calejado em torcerREVISTA para o Clube do Flamengo e mentiroso contumaz. Já morou em Belém, no Rio de Janeiro e atualmente vive em Porto Alegre. Batizou seu blog com o pomposo título Sketches from my sweetheart, the drunk. Essa virada de ano foi diferente. Não entrei muito no clima de reveillon, porque estava totalmente focado em outros assuntos - minha filha estava a caminho na longa estrada para este mundo, e acabou nascendo no dia 20 de dezembro. Nessa distração mais que justificada demorei bastante para perceber que, mais do que outro ano, a gente começaria uma nova década. A contagem do tempo é aquela coisa arbitrária - na prática não faz muita diferença se o ano é redondo ou não - mas de qualquer maneira existe uma carga simbólica associada ao espaço de dez anos. Só fui prestar mais atenção nisso quando a gangue devolts propôs o baú da década, e isso me deixou pensando em tudo que aconteceu desde 2001. Não consegui mandar muita coisa pro baú, mas esse texto vem como uma resposta àquela provocação. O texto tem duas partes. A primeira vai abaixo... O COMEÇO DO MILÊNIO Dez anos atrás, naquele começo de década que foi também começo de milênio, eu tinha acabado de decidir que continuaria em São Paulo. Havia me mudado para a capital do concreto no ano anterior para viver com a família de meu pai, mas ele estava retornando a Porto Alegre. Foi o coração que me convenceu a permanecer. O coração romântico, apaixonado por aquela que veio a se tornar minha amada e mãe da minha filha, mas também o coração da coragem, do desafio. Me incomodava a ideia de voltar a Porto Alegre sem ter realizado nada de relevante. Fiquei. Para pagar as contas vendi o carro, comecei a trabalhar em uma produtora multimídia e de internet, mudei para uma casinha pequena e simpática a dois quarteirões do trabalho. A internet era cada vez mais importante na minha vida. Eu tinha a sensação de que a vivência em rede levava a um tipo de aprendizado, REVISTA 51 BEATBRASILIS criação e sociabilidade que não tinham precedentes. Pela rede conheci outras pessoas que compartilhavam a certeza de que a internet não era só comércio, nem o mero acesso a conteúdo publicado por outras pessoas. Entendi que cada pessoa conectada à rede é também uma cocriadora, que não só acessa conteúdo (uma abstração equivocada), mas também constrói um contexto único em que interpreta e reconfigura tudo que vivencia. Inspirado pelas conversas em listas de discussão, criei meu primeiro blog em 2001. Comecei a estudar sistemas para o compartilhamento online de ideias e referências, e esse foi meu primeiro contato com software livre. Em pouco tempo, eu quase não trabalhava mais e dedicava o dia todo a essas pesquisas. Acabei demitido da produtora, mas fiquei amigo de um dos sócios, Ike Moraes. Ele tocava um projeto chamado Roupa Velha, que tinha elaborado com alguns amigos e era operacionalizado por Adilson Tavares. A gente se reencontraria alguns anos depois. Meu foco de interesses foi mudando naquela época. Acabei deixando a publicidade de lado para trabalhar numa empresa de cursos corporativos. Ali tinha um pouco (um pouquinho) mais de liberdade pra pensar em tecnologia para educação e inovação, e no tempo livre testar sistemas livres de publicação. Paralelamente, eu participava de um monte de redes abertas. Em 2002 criamos o projeto Metá:Fora, que reuniu gente interessante como Hernani Dimantas, o saudoso Daniel Pádua, Paulo Bicarato, Bernardo Schepop, Dalton Martins, Charles Pilger, Tati Wells, Marcus e Paulo Colacino, TupiNambá, Marcelo Estraviz, Drica Veloso, André Passamani, Felipe Albertão e mais algumas dezenas de pessoas. Foi um ano de muita efervescência experimentando com criatividade e aprendizado distribuídos, auto-publicação, economia da dádiva, apropriação crítica de tecnologias, conhecimento livre, mídia tática, mobilização em rede e diversas formas de ação para transformação social. Defendíamos que imaginar uma diferença entre "real" e "virtual" era um equívoco tremendo. Operávamos em ações pontuais mas informadas, inspirados pelo imaginário das zonas autônomas temporárias (TAZ) e de redes rizomáticas. Criamos muita coisa juntos até que o projeto foi encerrado, não sem antes deixar de herança para o mundo "um wiki recheadaço" e alguns projetos que tentariam se manter de forma autônoma. O mais relevante deles foi a rede MetaReciclagem. A MetaReciclagem foi concebida genuinamente em rede, e implementada de forma distribuída e totalmente livre. Ela começou como um REVISTA 52 BEATBRASILIS ENCONTRÃO METARECICLAGEM NO BAILUX: PAULO PINTANDO VISÕES DO FUTURO METARECICLADO laboratório de recondicionamento de computadores usados para projetos sociais baseado em São Paulo em parceria com o Agente Cidadão, OSCIP que era a reencarnação do projeto Roupa Velha. Em pouco tempo o foco da MetaReciclagem se tornou mais amplo. Ela se expandiu para outros lugares em projetos independentes e autogestionados. Desde o princípio, a rede MetaRecicagem adotou alguns posicionamentos que à época estavam longe de ser senso comum: a importância central do acesso à internet como condição para transformação social profunda; a viabilidade do software livre como plataforma local e remota em projetos de tecnologia para a sociedade; o caráter cultural das redes livres conectadas, a emergência de novas formas de relacionamento social e de inovação a partir delas; a urgência do debate sobre lixo eletrônico e a possibilidade da reutilização criativa de hardware; o potencial de outras formas de acesso à internet: redes comunitárias wi-fi, dispositivos móveis, etc. É importante enfatizar aqui: em 2002, nenhum desses tópicos era consenso entre os principais atores institucionais dos projetos de "inclusão digital". A prioridade no uso da internet era questionada pelos projetos que só promoviam o adestramento de manobristas de mouse. REVISTA Diziam que os coitadinhos só precisavam aprender a operar o teclado para preencher seu currículo e conseguir um emprego, e que qualquer outro uso era supérfluo. Acreditavam que era perda de tempo a garotada ficar (antes da era do Orkut) no bate-papo do UOL. Falavam que "ninguém quer computador velho, o lugar disso é no lixo". Afirmavam que o software livre era um equívoco, porque "o mercado não vai aceitar". Isso também se estendia ao mercado de TI. Eu lembro da empolgação que nos tomava a cada minúscula nota sobre software livre publicada na imprensa especializada. Eu olho hoje para projetos de tecnologia e inclusão digital em diversos contextos institucionais, partidários e geográficos. Tenho orgulho de dizer que influenciamos pelo menos meia dúzia de grandes projetos de tecnologia para a sociedade. Ganhamos algumas batalhas desde aquela época. Os princípios que defendíamos hoje são amplamente aceitos. A lista de discussão da MetaReciclagem tem mais de quatrocentas pessoas. O site, mais de mil. Alguns milhares já participaram de oficinas de MetaReciclagem, de forma radicalmente descentralizada. Fomos convidados a participar de eventos em diversos lugares do mundo, de Banff a Kuala Lumpur. E a rede continua pulsante, o que me deixa feliz todo dia. 53 BEATBRASILIS UMA CULTURA DIGITAL OVELHAS NUM PASTO: A IMAGEM ORIGINAL DA "TRAGÉDIA DOS COMUNS" DE GARRETT HARDIN Em termos de compreensão sobre o papel das novas tecnologias de informação e comunicação, o momento agora é outro. Não precisamos mais convencer as pessoas sobre a importância da internet. Das redes sociais. Do software livre. Boa parte dos figurões do mundo político, de todos os partidos, tem pelo menos um blog, usa o twitter e tem canal no facebook. Começamos essa década em um patamar muito mais alto. A internet é entendida como recurso fundamental para uma cidadania plena. Existem iniciativas como o Plano Nacional de Banda Larga, o programa Computador para Todos, o Um Computador por Aluno. A maioria dos estados tem projetos de inclusão digital com software livre. Já existem mais telefones celulares do que habitantes no Brasil. Pessoas que tinham aversão aos computadores hoje são os mais entusiásticos usuários das redes sociais. Os internautas brasileiros são os que usam a rede por mais tempo a cada mês, em comparação com outros países. Tivemos por seis anos um Ministro da Cultura que declarou-se hacker e fomentou o desenvolvimento de uma série de projetos baseados em uma Ecologia Digital. Os primeiros anos da ação cultura digital nos Pontos de Cultura, implementada por integrantes de diversas redes e coletivos independentes e orquestrada por Claudio Prado, foram um capítulo importante na construção de uma compreensão brasileira das tecnologias livres como expressão cultural legítima e extremamente fértil. Alguns dos princípios colocados naquele projeto — REVISTA descentralização integrada, autonomia, identificação de catalisadores locais para replicação das redes, incentivo a uma ecologia de publicação de conteúdos livres, educação sobre ferramentas livres de produção multimídia — foram de uma inovação profunda para o mundo institucional, mesmo que - por conta do descompasso entre a velocidade necessária e a precariedade de condições de implementação - nunca tenham chegado a se desenvolver plenamente. O Ministério precisaria de uma equipe muito maior do que é viável para gerenciar e acompanhar satisfatoriamente essa multiplicidade de contextos. Os Pontos também acabam ficando dependentes das verbas de uma só fonte (verbas estas que nunca chegam na data prevista), e não 54 BEATBRASILIS trabalham com o horizonte de sustentabilidade plena. É necessário avançar, e muito, nas questões da autogestão da rede de Pontos; dos arranjos econômicos locais; do seu impacto social, econômico e ambiental. Mas eles continuam sendo umas das experiências mais transformadoras realizadas pelo governo que acaba de se encerrar. Esperemos que a nova gestão trate de ampliar, profissionalizar e aprofundar essa experiência. LIVRE? Uma questão que ficou em aberto no meio do caminho está ligada à qualidade do engajamento em ecologias abertas e livres. O Brasil tem se tornado de fato um grande usuário, mas estamos lá atrás no que se refere ao desenvolvimento propriamente dito de software livre. De certa forma, é uma relação parasitária: estamos nos utilizando de software disponibilizado livremente, mas não estamos em retorno contribuindo com esse banco aberto de conhecimento aplicado. Não é uma situação tão desequilibrada que inviabilize o sistema como um todo (a tragédia do comum não se transfere totalmente para o contexto digital), mas investir de forma mais pesada no desenvolvimento de software livre seria a atitude mais coerente com o discurso que estamos adotando. A ideia de conhecimento livre é muito mais profunda do que a mera distribuição gratuita. Ela engendra uma economia aberta, distribuída e REVISTA descentralizada. E precisa de investimento que reflita o funcionamento dessa economia. Os novos governos federal e estaduais que assumem nesse momento de referenciais avançados em relação a oito anos atrás precisam entender o potencial e a importância de adotarem alguns princípios claros. O apoio à liberdade de circulação da informação (e publicação de dados oficiais abertos, que possibilite experiências como o transparência hackday), o fomento à emergência de soluções livres e à descentralização integrada, a orientação sobre a sustentabilidade socio-economico-ambiental da produção criativa em rede e a escolha intransigente de protocolos abertos e livres são necessários em todos os segmentos. É necessária a compreensão de que o acesso à informação não basta - precisamos é de participação, cotidianos compartilhados e aprendizado em rede. O estímulo à inovação aberta baseada nesses princípios pode promover saltos quantitativos no alcance de iniciativas das comunicações, diplomacia, educação, cidades, segurança, defesa civil, saúde, meio ambiente, transporte, turismo, direitos humanos, ciência e tecnologia, e por aí vai. Felipe Fonseca é pesquisador e articulador de projetos relacionados a redes de produção colaborativa e livre, mídia 55 BEATBRASILIS software livre e apropriação crítica de tecnologia. Foi um dos criadores da rede MetaReciclagem. independente, Escreve nos blogs efeefe, desvio, lixoeletrônico e redelabs. É integrante do conselho consultivo do DesCentro, do conselho editorial da revista A Rede e da diretoria da ACCG. @papos_beatbrasucas# ―Sempre achei a expressão ‗Propaganda Enganosa‘ uma puta redundância.‖ - Peixoto Rocker ―A vida é um conjunto de acontecimentos que se unem em prol de tornar a própria vida mais chata, entediante e triste.‖ - Mônica Khedi ―Sobre amor: assim tão intenso, só este que invento.‖ - João Firmino ―A cada dia que passa tenho mais medo da publicidade. Vou comprar vodca em busca do álcool e eles querem me vender pureza.‖ - Sânzio Barreto ―Descobri o que era meu amor Beat. Sempre vai existir o encontro, uma grande paixão, depois o desencontro, uma grande distância inalcançável, quilos de saudade... No final vai sobrar a esperança falha de que haverá um reencontro. Triste!‖ - Ramiro: Fearless Defender ―(...)Que nos enroscam para que voltemos ao ponto de partida. Para que não haja beco sem saída.‖ - Narayana Ribeiro "Pegar a highway estrelar e deliciar-me por sobre a terra, enquanto os pássaros fazem o mesmo trajeto sem cadeias de cintos de segurança e botes salva-vidas. O Caminho mais rápido (e barato) para a Amazônia que eu curto. Lá, às margens do Madeira, relembrar as conversas, rever os amigos, percorrer as ruas da juventude. Mais que tudo, afastar-me de tudo e me encontrar com tudo." - Taina Veloso "Minha avó dizia que o diabo era ruivo. Um ruivo de olhos amarelos e cigarro de palha - é importante notar que o diabo sempre fez o próprio cigarro. E essa história dele ser culto é de se duvidar. De qualquer forma ruivo feito Judas, isto é certo." - T. Dias "As praias daqui promoveram substituições atráves dos anos , tristes substituições.Faixa de areia por maré , conchinhas por lixos plásticos e pessoas civilizadas por animais. E esta tal de conscientização que nunca chega." REVISTA 56 BEATBRASILIS - Belinha Quer ser nosso colaborador ou simplesmente acompanhar as ações do Coletivo Beatbrasilis? Clique nos banners abaixo: betbrasilis.forum-livre.com betbrasilis.wordpress.com REVISTA 57 BEATBRASILIS making off... REVISTA 58 BEATBRASILIS REVISTA 59 BEATBRASILIS Vitor