Brasil-Canadá - Tomo Editorial
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Brasil-Canadá - Tomo Editorial
Encontros transculturais Brasil-Canadá © dos autores 1ª edição 2015 Direitos reservados desta edição: Tomo Editorial Ltda. A Tomo Editorial publica de acordo com suas linhas e conselho editoriais que podem ser conhecidos em www.tomoeditorial.com.br Coordenação editorial João Carneiro Tradução dos capítulos escritos originalmente em francês Patrícia Chittoni Ramos Reuillard Pascal Reuillard Revisão Moira Revisões Capa, projeto gráfico e diagramação Krishna Chiminazzo Predebon E56 Encontros transculturais Brasil-Canadá. / Organizado por Zilá Bernd e Patrick Imbert. / Porto Alegre : Tomo Editorial, 2015. 224 p. ISBN 978-85-86225-94-9 1. Cultura – Brasil. 2. Cultura – Canadá. 3. Transculturalismo. I. Bernd, Zilá. II. Imbert, Patrick. III. Título. CDU 316.72/74 (81)(71) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca Pública do Estado do RS, Brasil) Tomo Editorial Ltda. | Fone/fax: +55 (51) 3227.1021 [email protected] | www.tomoeditorial.com.br Rua Demétrio Ribeiro, 525 | CEP 90010-310 | Porto Alegre | RS | Brasil Encontros transculturais Brasil-Canadá ORGANIZADORES Zilá Bernd Patrick Imbert Porto Alegre, 2015 Agradecimentos À Fapergs – Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul, ao Centro Universitário La Salle (UNILASALLE/Canoas) à cátedra de pesquisa da Université d’Ottawa “Canada: enjeux sociaux et culturels dans la société du savoir”,pela parceria em relação ao desenvolvimento dessa pesquisa que abriu as portas da cooperação internacional e originou a presente publicação. O projeto Multi, inter, trans-culturalismo; gerenciar encontros Brasil-Canadá foi financiado pelo Projeto de Internacionalização dos Programas de Pós-Graduação das universidades do Rio Grande do Sul, da FAPERGS, tendo se desenvolvido de abril 2014 a abril 2015 com atividades no Unilasalle/Canoas e na Universidade de Ottawa no Canadá. Zilá Bernd e Patrick Imbert coordenaram o projeto. Os textos dos colegas canadenses, escritos originariamente em francês, foram traduzidos ao português por Patrícia Ramos Reuillard (UFRGS) e Pascal Reuillard. A cooperação pode ser definida, sucintamente, como uma troca em que as partes se beneficiam. Esse comportamento é imediatamente identificável nos chimpanzés cuidando uns dos outros, em crianças construindo um castelo de areia ou em homens e mulheres juntando sacos de areia para impedir uma inundação. Imediatamente identificável porque o apoio recíproco está nos genes de todos os animais sociais; eles cooperam para conseguir o que não podem alcançar sozinhos. [...]. Os brutais simplificadores da modernidade podem reprimir ou distorcer nossa capacidade de viver juntos, mas não eliminam nem podem eliminar essa capacidade. Como animais sociais, somos capazes de cooperar mais profundamente do que imagina a atual ordem social. (Richard Sennett, 2013). A dream you dream alone is only a dream. A dream you dream together is a reality. (John Lennon). Sumário Apresentação Zilá Bernd e Patrick Imbert 11 Comparando o Canadá e o Brasil: da exclusão ao transcultural Patrick Imbert 21 Análise da vocação transcultural da Revista Interfaces Brasil-Canadá (2001-2014) Zilá Bernd 41 Topologia imaginária das Américas: espaços ameríndios em romances brasileiros e quebequenses Rita Olivieri-Godet 57 Passos para uma ecologia da alteridade no Brasil e no Canadá: uma análise semiótica comparativa das representações indiciais no documentário Fernando Andacht 75 Nossa Diversidade Criadora: pretensões internacionais e interesses políticos de Brasil, Canadá e Quebec na Convenção da UNESCO Lucas Graeff e Oscar Berg 99 Obstáculos ao transculturalismo no diálogo Quebec-Brasil: do multiculturalismo de Darcy Ribeiro ao interculturalismo de Gérard Bouchard Jean-François Côté 117 O ensino das culturas afro-brasileira e indígena no Brasil: um estudo a partir da política do reconhecimento de Charles Taylor Cleusa Maria Gomes Graebin e Cristian Graebin 133 O interior da América em algumas obras de Pierre Yergeau e Milton Hatoum Simon Harel 153 Identidades transmigrantes Sergio Kokis e Patricia Kathleen Page Adina Balint-Babos 165 Passagens transculturais em autores migrantes de ascendência árabe no Brasil e no Canadá Ana Maria Lisboa de Mello 183 Experiência turística em circuitos patrimoniais: uma abordagem intercultural Canadá-Brasil Nádia Maria Weber Santos e Luciana Gransotto 197 Notas sobre os autores 219 Apresentação Zilá Bernd Patrick Imbert The concept [of culture] is characterized by three elements: by social homogeneization, ethnic consolidation and intercultural delimitation...All three elements of this traditional concept have become untenable today. (Wolfgang Welsch, 1999). Contrariamente a ti, eu me sinto em casa em qualquer lugar. (Kim Thúy e Pascal Janovjak, 2011). Apresentamos, nesta obra, encontros transculturais entre o Brasil e o Canadá, produzidos a partir de um corpus de livros de pesquisadores brasileiros, canadenses, colombianos, estadunidenses, mexicanos etc, que conseguem comparar as culturas das Américas sem passar por comparações com a Europa, o que tendia a ativar o célebre paradigma barbárie/ civilização de Sarmiento (1845), ou suas metamorfoses, centro/periferia. Hoje, comparar as Américas a partir de perspectivas culturais não se insere diretamente em um discurso histórico que sempre se ateve apenas às diferenças. As comparações tendiam a repousar em paradigmas binários que, quanto mais nos aproximamos do contemporâneo, mais avançam para o fluido e para o múltiplo. Esses paradigmas1 são evocados explícita ou implicitamente por ensaístas, escritores, artistas ou pensadores das Américas, do Facundo de Sarmiento ao Imagining Canada de Pico Iyer, do American 1 Nos últimos quinze anos, muitos pesquisadores, como Gérard Bouchard, Marie Couillard, Patrick Imbert, Yvan Lamonde, Djelal Kadir, Licia Soares de Souza, Zilá Bernd, Winfried Siemerling, Jean-François Côté, Nestor García Canclini, G. Perez-Firmat, Jean Morency, Fernando Andacht, Annette Paatz, Barbara Buchenau, Maximilien Laroche, Seymour Martin Lipset comparam os discursos literários, midiáticos e políticos nas Américas sem passar necessariamente por uma comparação com a Europa. 12 Apresentação Scholar de Emerson ao Siècle de Jeanne de Yvon Rivard, de Philosophy of Railroads de T.C. Keefer a La Globalización imaginada de Néstor García Canclini, de Zilá Bernd no Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas ou no Dicionário das mobilidades culturais a Patrick Imbert em Comparer le Canada et les Amériques. Esses paradigmas relacionam-se com o paradigma básico interior/ exterior, sinônimo de eu mesmo/os outros e até recentemente de civilização/barbárie, que fundam a problemática de encontros com a alteridade, alinhando-se ou à inclusão ou à exclusão conforme processos semelhantes às dinâmicas criadas por René Girard em Things Hidden Since the Foundation of the World. Nesta obra, os conceitos-chave são a mímesis da apropriação e o bode expiatório, que permitem fundar toda comunidade em função de uma rejeição consensual. Portanto, os paradigmas que interessam aos pesquisadores do Canadá e do Brasil de maneira implícita ou explícita estão ligados à inclusão/exclusão, alteridade única ligada à Europa/alteridades múltiplas das Américas, temporalidade longa/temporalidade breve /instante, passado/futuro, coincidência/acaso/legitimação causal, pureza/ mestiçagem/hibridação/crioulidade, frontier/fronteira,2 simultaneidade/ historicidade, proteção/encontro, jogo de soma nula/jogo de soma não nula (Imbert, 2013), fatos/promessa, contínuo/descontínuo, lógica territorial/lógica da sociedade dos saberes, pertencer/pertencer-se, resolver/não resolver as contradições, identidade estável/imagens pessoais múltiplas, imobilismo/ nomadismo, criar/gerar, órfão/bastardo, homogeneidade/relacionalidade. Deste modo, os textos desta coletânea exploram as transformações nas relações e nos encontros culturais entre as Américas, o Canadá e o Brasil, aos quais se conectam séries textuais, metáforas, argumentos, novas narrativas, vocações artísticas, intenções políticas, sociais ou econômicas. Essas transformações se abrem para dinâmicas de “glocalização” e para reflexões sobre as conexões entre o inter, o multi e o transcultural para administrar os novos encontros globalizados moldados na indeterminação, no novo Novo Mundo e na transição permanente. Evidentemente, é quando certos princípios próprios são conhecidos e percebidos como valores importantes – como a crença no pensamento 2 Observe-se que, em inglês, a frontier é um espaço aberto, sem fim e que sua significação é o oposto da fronteira em português ou frontière, em francês. Essa acepção também se encontra em certos países da América Latina: “Históricamente, la tenancia de la tierra era más amplia en Costa Rica y hasta hace poco una frontera agricola daba la posibilidad de colonizar nuevas tierras” (Hayden, 2005, p. 130). Traduzimos: “Historicamente, a propriedade da terra era mais ampla na Costa Rica e até recentemente uma frontier agrícola possibilitava colonizar novas terras”. Encontros transculturais Brasil-Canadá 13 racional, na igualdade dos homens e das mulheres e na afirmação de que existem direitos pessoais que nenhuma sociedade, Estado ou religião tem o direito de contestar, e menos ainda de suprimir – que podem se desenvolver verdadeiros encontros multiculturais, interculturais ou transculturais. A esse respeito, é bom lembrar alguns elementos básicos ligados a pesquisas, a políticas e a conceptualizações bem estabelecidas, como aquelas que tangem ao multiculturalismo, tal como analisado por Kymlicka (2007). Ele destaca a necessidade de proteger o grupo minoritário dos funcionamentos homogeneizantes do grupo majoritário e, simultaneamente, de proteger o indivíduo em relação ao grupo protegido, o que, por exemplo, o teórico muçulmano do multiculturalismo Modood (2007) recusa (Imbert, 2014a). Se um indivíduo quer ter acesso a outros funcionamentos, deve poder deixar o grupo. De fato, o pluralismo deve considerar a promessa original das Américas – pertencer-se individualmente. Mesmo levando em conta relações de poder não dualistas, Kymlicka tende a apresentar os indivíduos com uma identidade definida e estável ligada a um grupo particular, também definido por referências a conteúdos de um passado visto como relativamente homogêneo, o que é diferente do transculturalismo, que entende que os indivíduos e as culturas estão desde sempre em contato e que, portanto, são miscigenados. Além disso, na sociedade dos saberes, administrar os encontros tem a ver com a capitalização de saberes técnicos, tecnológicos e intelectuais, de diplomas e de certificados, isto é, com culturas que evoluem em função de um futuro que se inventa no presente. Nesse sentido, em uma perspectiva contemporânea, a cultura se volta cada vez mais para o futuro, para a inovação (criação + comercialização), para a competitividade na produção do novo. A dinâmica transcultural é constitutiva dessa sociedade dos saberes e insiste mais do que o multiculturalismo (ou o interculturalismo quebequense de Gérard Bouchard) na gestão da mudança percebida como permanente. Em contrapartida, multiculturalismo e interculturalismo estão frequentemente relacionados à permanência de uma ordem estabelecida que se deve defender, óptica criticada por Niel Bissoondath na obra Le marché aux illlusions. O transcultural visa à recomposição do mundo reconhecendo as exclusões cometidas pela dominação tanto dos mitos das origens quanto do mito do progresso. Segundo René Girard, esses mitos definem-se assim: “[…] myth is a text that has been falsified by the belief of the executioners in the guiltiness of their victims […]” (1987, p. 148). Tais mitos, que definem a legitimidade e a homogeneidade dos grupos que entram em acordo sobre aquele a ser excluído, transformam-se em narrativas históricas legitimado- 14 Apresentação ras dos Estados-Nações, que transmitem aos escolarizados uma narrativa homogênea hegemônica. Assim, o transcultural leva em conta a presença das narrativas de legitimação hegemônicas, mas as associa à memória da exclusão presente em cada indivíduo. Diante da longa duração das grandes narrativas míticas ou históricas de que fala Gérard Bouchard (1999), essa memória, como ressalta Girard, é o impacto do instante que contém tudo, aquele que, por exemplo, faz Jesus se calar. A transculturalidade estabelece então como base da cultura a relação como impacto do outro sobre si e de si sobre o outro, seja na violência negativa, seja naquela da sedução como paixão à primeira vista, como se vê em Alléluia pour une femme-jardin, de René Depestre, como trajetória amorosa, em El Mono gramatico, de Octavio Paz, ou como relação de aprendizagem, a exemplo da relação de Piscine Patel/tigre em As Aventuras de Pi, de Yann Martel. Assim, a transculturalidade é muito diferente de uma concepção da cultura marcada pela etnicização, comunitarização, territorialização e assepsia de qualquer relação intensa com o outro. O transcultural leva, portanto, a uma releitura e a uma recontextualização das perspectivas. Primeiro, a da crença em uma origem. Crer em uma origem é crer na unidade primordial de um mundo consensual edênico que se deveria reencontrar e que define o grupo em suas particularidades, enquanto os outros são diferentes e considerados errados. O transcultural leva a relacionar vínculos pessoais e institucionais, práticas que fazem com que pessoas diferentes tenham uma influência eficaz e positiva umas sobre as outras. O transcultural se manifesta como uma promessa. Ele não está ligado à constatação de um estado de fato, aquele que René Girard critica, isto é, a “constatação” de que a vítima é culpada da acusação, pelo viés de uma cultura mítica estabelecida tal como ligada a um grupo, a uma religião ou a um Estado-nação projetando uma estereotipia identitária sobre os povos. O transcultural implica uma promessa de vida melhor, um ato de linguagem performativo que leva a criar relações menos conflituosas, mais cuidadosas, mais atenciosas. Falar de transcultural é negociar uma relação dialógica em um ato que afirma que mesmo que eu me sirva de códigos específicos a um grupo para me expressar, assim como diz Kymlicka acerca do multiculturalismo, estou cumprindo uma promessa, a de pertencer a mim mesmo à distância dos mitos e das grandes narrativas de legitimação e a de reconhecer que os outros também se pertencem em todo seu ser. Tenho direito à minha independência e ao meu lugar ao Sol, pois eu me pertenço é a base do transcultural, que dinamiza as interações grupo/indivíduo em função de uma vitalidade expansiva em que todos merecem ter acesso aos Encontros transculturais Brasil-Canadá 15 bens deste planeta. Esse ato de linguagem, essa declaração que afirma que eu me pertenço cria uma situação bem real e nova em que as partes envolvidas se modificam por meio desse ato linguístico que escapa à vitimização pela história, assim como à memória do ato violento excludente, para abrir-se à possibilidade de inventar uma nova narrativa das Américas, como ocorre com Piscine nas Aventuras de Pi, ou com Édouard Glissant em Pour une poétique du divers, onde a crioulidade como realização do transcultural é igual à hibridização mais a imprevisibilidade. Foi a partir dessas perspectivas que os autores desta obra exploraram os encontros Brasil-Canadá. Assim, Adina Balint-Babos busca ver como uma nova identidade pode surgir do encontro com o outro sem que haja repetição completa dos dualismos: nativo/vindo de fora, local/estrangeiro, rico/pobre, interior/exterior, inclusão/exclusão. Ela analisa as produções de Sergio Kokis e de P.K. Page, ambos escritores e pintores: imigrante brasileiro no Canadá, mulher de diplomata canadense no Brasil. Interroga-se sobre a especificidade dos artistas e dos escritores da migração e da viagem e, principalmente, de surpresas negativas, superadas no entanto pela passagem a outros códigos semióticos. Assim, P.K. Page não encontra mais, no Brasil, as palavras para dizer e se dizer diante do impacto da língua portuguesa; passa então ao pictórico, oscilando entre o figurativo e o surrealismo para inventar sua transformação diante desse impacto do outro. É também uma dinâmica de recriação que o impacto de Montreal engendra sobre as instabilidades identitárias de Kokis. Ambos, como ressalta Balint-Babos, “fazem a passagem da identidade atribuída à identidade da travessia” dos limites entre o biográfico e o ficcional, a ficção e a metaficção, o texto e a imagem. Essa travessia é proposta por Simon Harel a partir de uma reflexão sobre o interior. Para ele, as literaturas quebequense e brasileira parecem demonstrar preocupações comuns, exploradas por meio de dois autores que abordam a questão do interior: Milton Hatoum e Pierre Yergeau. Simon Harel mostra então que o interior, ao invés de ser o espaço da barbárie como para Sarmiento (diante da cidade civilizada), ou de um vilarejo homogêneo protegido do poder maléfico das cidades cheias de estrangeiros, como no romance da terra no Quebec, é um lugar de encontros interculturais. É o caso da região do Abitibi, que recebe os imigrantes que trabalham nas minas. O mesmo se dá com a Amazônia e Manaus, onde a mestiçagem é a norma, o que leva à dispersão de todo ponto de referência no espaço. Essa dispersão em um espaço é explorada por Fernando Andacht a partir de Bateson e de Peirce, tentando saber “como as ideias interagem, como os signos funcionam como elementos reguladores dessa ecologia 16 Apresentação em que o Outro circula”. Para tal, Andacht analisa um filme brasileiro e um canadense, ambos explorando o mundo das pequenas ocupações em que homens e mulheres se consagram a regular os espaços sujos para tirar proveito deles pela limpeza: Lixo Extraordinário (2010, Brasil) e Ballades de Minuit (2007, Canadá). O filme brasileiro mostra o trabalho extenuante daqueles que labutam no meio de montanhas de lixo na cidade de Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro. O filme canadense explora o ambiente dos imigrantes da América Latina que limpam os prédios do centro de Montreal durante a noite e que são invisíveis para o resto do Quebec. Andacht conclui que os excluídos da sociedade brasileira podem travar um diálogo enriquecedor com o Outro, e, no filme, pela mediação do artista com o espectador. Os imigrantes da sociedade canadense são condenados a permanecer na solidão quando a câmera se afasta de seus rostos visíveis e vozes audíveis. Assim, o Outro está longe de ser sempre um interpretante no sentido peirciano, isto é, um signo que diz o que o signo produzido anteriormente quer dizer. Extrai dele sua significação. E a significação produzida está, segundo Peirce, sempre ligada às consequências provocadas pelos signos produzidos a partir de outros signos. É então que Jean-François Côté levanta o problema do encontro dilacerado entre interculturalismo, multiculturalismo e transculturalismo, analisando as posições respectivas de Gérard Bouchard e Darcy Ribeiro acerca do desenvolvimento passado e presente das Américas. Onde está o diálogo hemisférico? Ele retoma Ortiz e sua ideia de transculturação. Enquanto processo sociohistórico, ela produz formas culturais que não pertencem nem a uma nem à outra das culturas presentes nessas trocas. Mas, para Ortiz (1947), a transculturação age em um espaço em gestação em que nenhuma cultura está verdadeiramente estabelecida mesmo que, na verdade, a cultura branca sirva de ponto de referência para excluir o que não é civilizado, isto é, as culturas dos afrodescendentes. É o que salienta Mark Millington, ao comentar Ortiz e o uruguaio Rama (1982): Where Ortiz was concerned with the effects of multiple cultures all being introduced into Cuba more or less simultaneously without an established local culture, Rama is concerned with defined national situations in which there are well-established internal structures and divisions which come into contact with external practices – in other words, a clearly delineated internal/external polarity. (2005, p. 209). Como Côté ressalta, estamos agora em um mundo pleno onde as culturas estabelecidas se encontram em um ritmo cada vez maior, alcan- Encontros transculturais Brasil-Canadá 17 çando um número crescente de pessoas, educadas ou não, que sentem necessidade, pelo menos nas democracias, de produzir algo eficaz e positivo a partir desses encontros. É por isso que se tende a escolher perspectivas administráveis no âmbito de nações estabelecidas, como para Gérard Bouchard, que “privilegia o discurso das elites em função do qual as formações nacionais se construíram tanto na invenção de ‘memórias longas’ quanto do ponto de vista de inventar projetos de sociedade gerando bem-estar no competitivo”. Compreende-se então que “as questões levantadas para o transcultural devem necessariamente compor com os obstáculos de nossos limites presentes para captar sua forma e conteúdo”; com efeito, é somente em um contexto transnacional que as condições transculturais podem se esclarecer, uma ideia compartilhada não apenas por Fernando Andacht e Will Kymlicka, mas também pela maioria dos autores aqui publicados. É o caso de Patrick Imbert, que explora as modalidades dos encontros das minorias e dos excluídos, determinados por paradigmas dualistas como interior/exterior ou barbárie/civilização, mas que, no contexto da globalização, conseguem às vezes reconfigurar os códigos e mitos que os determinam. Assim, exploram-se as categorias da coincidência e do acaso, a capacidade de inventar novas narrativas e técnicas ficcionais e argumentativas que deslocam as coerências estabelecidas, a das qualidades definitivas dos personagens, por exemplo, para jogar com a reencarnação ou com o eu está no outro e o outro está no eu, retomando o famoso título de Emmanuel Lévinas (1961). Assim, percebe-se bem que as relações interamericanas no contexto da gestão das relações Brasil-Canadá levam a surpresas que transformam as culturas e as crioulizam constantemente. Zilá Bernd, idealizadora da Revista Interfaces Brasil-Canadá, que divulga, desde 2001, os projetos comparatistas Brasil-Canadá de pesquisadores das Américas, analisou cerca de duzentos artigos publicados nessa revista nas quatro línguas predominantes das Américas, buscando verificar as bases desse comparatismo. Ela concluiu que os artigos apresentaram, desde o início, uma vocação transcultural e que a polarização Brasil-Canadá não caracteriza uma oposição binária, mas um desvio em relação a trabalhos brasileiros das Ciências Humanas, que tendiam a apoiar o exercício comparativo nos paradigmas europeus. A autora conclui que o papel da revista ultrapassa largamente a divulgação dos estudos canadenses, ao assumir a função de produtor de saber e se constituir como um lugar privilegiado de interlocução inter e transamericano que estabelece as relações entre os americanos do Norte e do Sul. O texto de Rita-Olivieri Godet desenha a topologia do imaginário das Américas desvelando os espaços ameríndios tais como descritos em 18 Apresentação romances brasileiros e quebequenses. Ela foca seu trabalho na análise do Habitante Irreal (2011), do brasileiro Paulo Scott, e de Uashat (2009), do escritor quebequense Gérard Bouchard, que problematizam a questão da passagem dos indígenas dos grandes espaços dos “confins” aos espaços confinados das reservas ou da periferia das grandes cidades. Os dois autores privilegiam a descrição dos espaços reduzidos próximos das cidades ou vilarejos e abordam a problemática da convivência dos autóctones e não autóctones. Esses dois romances denunciam, portanto, o processo de exclusão e integram discursos que sustentam uma nova concepção da espacialidade. Godet conclui pela importância desses romances, que contribuem inegavelmente para transformar as relações entre as sociedades ameríndias e ocidentais, afastando-se de uma tendência do imaginário ocidental a insistir na “síndrome da extinção”. A temática da diversidade criativa e as pretensões internacionais do Brasil, do Canadá e do Quebec na Convenção da UNESCO é desenvolvida por Lucas Graeff e Oscar Berg do Centro Universitário La Salle. Eles se propõem a compreender o papel da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais sob a óptica dos interesses políticos que as delegações brasileira, canadense e quebequense representaram. Ao concluir, os autores defendem a tese de que, no caso do Brasil, o principal eixo de tensão, no que diz respeito ao dossiê das diversidades culturais, é o desejo de resolver a relação entre cultura das elites, tradicionalmente voltadas para a Europa, e cultura das classes populares, voltadas para as culturas autóctones das Américas e para seu caráter mestiço. No Canadá, a preocupação principal gira em torno das estratégias de combate ao “sentimento de inferioridade” nascido da ruptura com a mãe pátria (Inglaterra). No Quebec, as ações do dossiê da diversidade cultural se centram na construção de uma sociedade distinta que possa produzir uma identidade cultural quebequense sem romper com a “herança da mãe-pátria”, neste caso, a França. A experiência turística dos circuitos patrimoniais em cidades como Ottawa e Quebec é analisada a partir de uma abordagem intercultural por Nádia Maria Weber Santos e Luciana Gransotto. Em uma missão realizada nessas cidades, no âmbito do Programa Fapergs de internacionalização dos programas de pós-graduação, Gransotto, mestranda em Memória Social e Bens Culturais da Universidade Unilasalle, examinou um circuito patrimonial promovido pelo Ministério do Turismo do Canadá, na cidade de Ottawa, e outro oferecido aos imigrantes e turistas da cidade de Quebec. Gransotto e sua orientadora Weber Santos concluem que esses itinerários, que fazem parte do turismo cultural, têm um caráter transcultural. Encontros transculturais Brasil-Canadá 19 Ana Maria Lisboa de Mello reflete sobre as marcas da escritura de dois autores de ascendência libanesa: o brasileiro Milton Hatoum e Abla Fahroud, do Quebec, nascidos em 1940 e 1950 respectivamente. A perspectiva comparatista tenta verificar as convergências entre o trabalho de memória encetado pelos personagens dos dois romances: em Relato de um certo Oriente, de Hatoum, o processo narrativo é conduzido por uma narradora que foi adotada por libaneses e vive na cidade de Manaus entre diferentes culturas que compartilham experiências e saberes (ameríndios, libaneses e outros). A narradora de Le bonheur à la queue glissante, de Abla Fahroud, resgata sua história a partir do momento em que deixa o Líbano, seu país natal, para emigrar para o Canadá com cinco filhos. Dividida entre a cultura do país de origem e do país de acolhida, Dounia reconhece as perdas e as dificuldades na passagem de uma à outra, mas também as oportunidades do Novo Mundo para sua família. As passagens transculturais realizadas pelos personagens desses dois autores migrantes de origem árabe no Quebec e no Brasil constituem a temática de seus romances. O texto de Cleusa e Cristian Graebin aborda um tema original e crucial no contexto da cultura brasileira: o ensino das culturas afro-brasileira e indígena a partir da política de reconhecimento, desenvolvida pelo filósofo canadense Charles Taylor. Esse estudo corresponde aos objetivos do projeto de internacionalização dos programas de pós-graduação do estado do Rio Grande do Sul na medida em que ativa os encontros transculturais Brasil-Canadá, apresentando um pensador canadense ao Brasil e se servindo de suas ideias para esclarecer uma questão polêmica e de maior importância no contexto brasileiro: a introdução do ensino dos elementos culturais africanos e indígenas nas escolas e universidades brasileiras. Referências BERND, Zilá (Org.). Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas. Porto Alegre: Tomo Editorial/UFRGS, 2007. BERND, Zilá; GIRALDI, Norah Dei-Cas (Éds.). Glossaire des mobilités culturelles. Bruxelles: Peter Lang, 2014. BISSOONDATH, Neil. Le marché aux illusions. Montréal: Boréal, 1993. BOUCHARD, Gérard; Lacombe, Michel. Dialogue sur les pays neufs. Montréal: Boréal, 1999. DEPESTRE, René. Alléluia pour une femme-jardin. Paris: Folio, 1981. 20 Apresentação EMERSON, Ralph Waldo. The American Scholar. 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