Gildo Katz - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
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Gildo Katz - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde 1992, à FEPAL e à Associação Brasileira de Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 EDITOR Gildo Katz CONSELHO EDITORIAL Ana Rosa C. Trachtenberg • Elfriede Susana Lustig de Ferrer • João Baptista Novaes Ferreira França • Leonardo Wender • Samuel Zysman • Sara Zac de Filc COMISSÃO EDITORIAL Ane Marlise Port Rodrigues • Augusta G. Heller • Heloisa Fetter • Silvia S. Katz BIBLIOTECÁRIA Geisa Costa Meirelles EDITORAÇÃO Luiz Cezar F. de Lima LAY-OUT Josimo Silva Lopes – Speed Press DIGITAÇÃO Nilza Cidade Cardarelli SECRETÁRIA Antonia Lima Iohann REVISÃO DE PORTUGUÊS Professor Antônio Paim Falcetta Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 • E-mail: [email protected] (55-51) 3333.6857 [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 1 Capa: AMENHOTEP I E AMÓSIS-NOFRETIRI 22 Egito, Novo Império (XVIII Dinastia), provavelmente de Amenhotep III, 1390-1353 a.C. Pedra-sabão, 9 x 8,3 cm 3072 A figura principal desta díade fragmentada é o deificado Amenhotep I, que é mostrado usando uma peruca núbia curta, saiote, braceletes e segurando um mangual em sua mão direita. Está ao lado de sua mãe, a rainha deificada Amósis-Nofretiri, que usa um elaborado ornamento para cabeça com a forma de um abutre, um vestido justo e um colar largo. Buracos de encaixe no topo da cabeça de cada uma das figuras tinham provavelmente a função de fixar adornos. Nas costas da peça estão gravados dois pares opostos de colunas de hieróglifos, uma coluna dupla para cada figura. No tex to atrás do rei lê-se: “O bom deus, filho de Amon, (...)/ Rei do Alto e Baixo Egito, Djeserkare (...).” A coluna atrás da rainha pode ser traduzida deste modo: “A esposa do deus, nascida de um deus, a esposa do rei (...)/ sua mãe, a mãe do rei, Amósis-Nofretiri (...).” Depois de suas mortes, tanto Amenhotep I, segundo rei da XVIII Dinastia (cerca de 1514-1493 a.C.), quanto sua mãe Amósis-Nofretiri, esposa do Rei Amósis I (cerca de 1539-1514 a.C.) foram venerados como protetores divinos da enorme necrópole de Tebas. Desfrutavam de especial popularidade entre os trabalhadores oficiais da necrópole, instalada no vilarejo de Deir el-Medina. A razão para a devoção prestada ao casal não é de todo clara, embora já se tenha especulado que Deir el-Medina teria sido fundada durante o reinado de Amenhotep I. Parece que ambos compartilharam uma sepultura em Dra Abu’l Naga, em uma tumba a princípio preparada para Amósis-Nofretiri e mais tarde ampliada para um segundo sepultamento. Em 1913-14 esta tumba foi aberta em nome do quinto Conde de Carnarvon por Howard Carter, o arqueólogo conhecido pela descoberta da tumba de Tutancâmon em 1922. Sua escultura, que talvez seja proveniente de um pequeno santuário doméstico, está ligada a um grupo de estatuetas em pedra-sabão esmaltadas que representam a própria Amósis-Nofretiri ou a Rainha Tiye, esposa de Amenhotep III, o faraó sob cujo reinado esta peça foi provavelmente esculpida.. —CNR Esta rainha-mãe, retratada afetuosa e intimamente ao lado de seu filho-rei, deve ter atraído Freud, que foi primogênito e filho favorito. “Se um homem foi, sem concorrência, o filho predileto de sua mãe, conserva ao longo da vida o sentimento triunfante, a confiança no sucesso, que não raro traz consigo o sucesso real.” (SE, 17, p.156). Ao longo de sua vida, Freud acompanhou avidamente as notícias de escavações, e certamente deve ter sabido da descoberta da tumba de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, realizada por Howard Carter. O autor do complexo de Édipo pode ter ficado intrigado com esta disposição funerária – mãe e filho, dispostos lado a lado em uma tumba comum, para toda a eternidade. —FM Sobre Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver W. Helck et al., Lexikon der Ägyptologie (Wiesbaden, 1972-), I, cols. 102-109, s.v. “Ahmose Nofretere” (M. Gitton), e ibid., cols. 201-203, s.v. “Amenophis I” (E. Hornung), com referências. Sobre o sepultamento de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver C. N. Reeves, Valley of the Kings: The Decline of a Royal Necropolis (Londers, 1990), pp.3-5. Para outras esculturas relacionadas, ver C. Aldred, “Ahmose-Nofretari Again”, Artibus Aegypti. Studia in honorem Bernardi V. Bothmer a collegis amicis discipulis conscripta (Bruxelas, 1983), pp. 7-14. P975 Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/ Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. v. 5, n. 1, 2003. Porto Alegre: SBPdePA, 2003. 1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. ISSN 1518-398X CDU: 616.891.7 Tiragem: 300 exemplares Bibliotecária Responsável: Geisa Costa Meirelles 2 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 CRB 10/1110 SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à Associação Psicanalítica Internacional DIRETORIA Presidente Dr. Leonardo A. Francischelli Tesoureiro Dr. Antônio L. Bento Mostardeiro Secretária Dra. Izolina Fanzeres Coordenador da Comissão Científica Dr. Renato Trachtenberg Vogais Dra. Silvia Stifelman Katz Dr. José Facundo Oliveira Dr. César Antunes INSTITUTO DE PSICANÁLISE Diretor Secretário Dr. Lores Pedro Meller Dr. Sérgio Dornelles Messias Coordenador de Formação Dr. New ton Aronis Núcleo de Infância e Adolescência Coordenador de Seminários Dr. Gley P. Costa Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg PSICANÁLISE – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Editor Dr. Gildo Katz BIBLIOTECA Diretora Dra. Silvia Stifelman Katz Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 3 MEMBROS FUNDADORES Alberto Abuchaim Ana Rosa Chait Trachtenberg Antonio Luiz Bento Mostardeiro David Zimmermann Gildo Katz Gley Silva de Pacheco Costa Izolina Fanzeres José Facundo Passos de Oliveira José Luiz Freda Petrucci Júlio Roesch de Campos Leonardo Adalberto Francischelli Lores Pedro Meller Luiz Gonzaga Brancher Marco Aurélio Rosa New ton Maltchik Aronis Renato Trachtenberg Sérgio Dornelles Messias MEMBRO HONORÁRIO Dr. David Zimmermann (Falecido) 4 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Revista da SBPdePA SUMÁRIO SAUDAÇÕES Palavras do Presidente • 11 Leonardo A. Francischelli EDITORIAL Palavras do Editor Gildo Katz • 17 ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES Pânico: Aspectos Psicanalíticos • 27 Marco Aurélio C. Albuquerque Figurações da Inveja – o Ódio ao Esforço • 49 Suad Haddad de Andrade Associações Livres e Pensamento Onírico de Vigília • 65 Antonino Ferro Novas Perspectivas sobre as Fantasias Inconscientes • 81 James S. Grotstein O Processo Psicanalítico na Adolescência: Metapsicologia e Clínica • 107 Luis Kancyper A Universalidade do Complexo de Édipo • 147 Paulo Marchon O Ateliê do Psicanalista • 171 Renato Trachtenberg Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 5 CONFERÊNCIA na SBPdePA Epistemologia: um Resumo Crítico sob a Ótica de um Psicanalista, para uso de Psicanalistas • 187 Paulo Cesar Sandler DIÁLOGOS PSICANALÍTICOS Os Afetos: Psicanálise e Neurociência • 221 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp ENTREVISTA da SBPdePA SBPdePA Entrevista Virginia Ungar • 245 6 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Revista da SBPdePA CONTENTS ARTICLES/ESSAYS/MEDITATIONS Panic: Psychoanalytic Aspects • 27 Marco Aurélio C. Albuquerque Configurations of Envy – the Hate to the Ef fort • 49 Suad Haddad de Andrade Free Association and the Oneiric Thought of Vigil • 65 Antonino Ferro Some New Perspectives on Unsconscious Phantasies • 81 James S. Grotstein The Psychoanalytical Process in the Adolescence: Metapsychology and Clinic • 107 Luis Kancyper The universality of the Oedipus Complex • 147 Paulo Marchon The Atelier of the Psychoanalyst • 171 Renato Trachtenberg LECTURE at SBPdePA Epistemology: a Critical Summary from a Psychoanalyst Viewpoint, for Psychoanalysts’ use • 187 Paulo Cesar Sandler PSYCHOANALYTICAL DIALOGUES Af fects: Psychoanalysis and Neuroscience • 221 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp INTERVIEW of SBPdePA SBPdePA Interviews Virginia Ungar • 245 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 7 8 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Saudações Leonardo A. Francischelli A Psicanálise – Revista da SBPdePA – prossegue seu caminho com a marca e o estilo do espírito que a fundou, ou seja, a tenacidade, a força que vence as resistências materiais de todo construtor de novas sendas. Fazendo uma retrospectiva dos temas que, de modo habitual, vieram ocupando o mundo internacional, merece destaque a violência e o terrorismo a partir do 11 de setembro de 2001, data que marca, ao que parece, um antes e um depois, nos primórdios do século XXI. Esse acontecimento representaria, talvez, sem exageros histéricos, uma derrota dos valores culturais, ou, mesmo, que a cultura não fosse continente da destrutividade natural do homem civilizado. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 11 Leonardo A. Francischelli Palavras do Presidente PALAVRAS DO PRESIDENTE Em certa medida, esse fato alberga, em si mesmo, algo daquilo que caracterizou as idéias próprias do nazismo e do estalinismo, onde os valores cultivados por séculos do existir humano explodiram como as torres de Nova York. O homem do século XXI vive a insegurança dos “tempos modernos” causada pelo fundamentalismo de toda ordem e pelo pragmatismo dominante nos movimentos sociais, onde já não existe lugar para a subjetividade, constituída ao longo da caminhada do ser na procura da sua condição de existir. Por outro lado, talvez pudéssemos trazer esse universo guerreiro, disjuntivo, onde o viver do homem é sempre ameaçado por ele mesmo, para o nosso exercício profissional – o campo da saúde psíquica, área onde haveria um profundo e intenso debate no terreno das idéias e dos conceitos que sustentam as teorias da patologia do psíquico e, conseqüentemente, daquilo que é eficaz, que cura os distúrbios da alma humana. A psicanálise afirma, desde Freud, que a neurose, como conflito pulsional, impede o homem de amar. E, sem isso o homem... As bases da saúde mental descansam, em uma classificação simples, na subjetividade, por um lado, e no pragmatismo, pelo outro, definido esse último como: “a verdade de uma proposição consiste que ela seja útil”. Seria nessa polaridade – subjetividade / pragmatismo – onde localizaríamos um forte debate, porque não uma guerra sobre aquilo que cura os distúrbios psíquicos. A subjetividade sustenta que o homem é singular enquanto o pragmatismo generaliza o homem. Os desequilíbrios psíquicos seriam “químicos, genéticos, dependeriam dos níveis de neuro-transmissores” e não da ordem do ser e do sujeito enquanto processo de subjetividade. Nessa guerra dos conceitos, como naquela das bombas, admitimos uma ideologia que defende uma ou outra das posições. O desejável seria uma integração, como em todas as relações humanas. Porém, algumas vezes surge o confronto. Apesar dele, não podemos perder de vista a identidade psicanalítica, com seus referenciais teóricos e técnicos, na dura controvérsia das idéias sobre o que melhora a saúde psíquica do homem. 12 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Leonardo Francischelli Porto Alegre, julho 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 13 Leonardo A. Francischelli Parece, portanto, que nossa responsabilidade é dupla: teríamos que abandonar nossos refúgios e dialogar com aqueles que se encontram no mesmo campo das nossas teorias e nossas técnicas, na condução de uma cura e, ao mesmo tempo, conversarmos com a comunidade sobre a potencialidade de nosso ofício; admitindo nosso compromisso com a transmissão às novas gerações, desenvolvendo uma sólida fundamentação teórica e técnica e capacitando ao aprendiz a permanecer vigente no cenário psicanalítico, em permanente exame com outras modalidades terapêuticas. No universo atual o desemprego é a ameaça. Nos incluímos, psicanalistas, nessa perspectiva? A cada geração cabe a responsabilidade de viver seu tempo histórico e na medida de suas forças, criar um futuro que não seja “o futuro de uma ilusão”. É nosso compromisso, então, tanto no processo de frear a barbárie que habita o interior do homem, como na luta das idéias e supostos teóricos de uma disciplina, privilegiar o intelecto como capaz de operar com o vigor necessário, intelecto que se desdobra em pensamentos e se expressa em palavras, pois que, quando esses se ausentam, aparecem as bombas, a violência e as explosões, a morte da cultura. Essa é a razão pela qual a Psicanálise publica trabalhos de colegas oriundos de distintos lugares do mundo, para que nossos leitores mantenham-se informados de como os autores pensam a psicanálise, hoje, nesse conturbado planeta. Editorial Gildo Katz É com muita satisfação que estamos entregando este novo número de Psicanálise – Revista da SBPdePA que, como tem sido a tradição nesses cinco anos, contém contribuições de autores brasileiros, latino-americanos, norte americanos e europeus com o objetivo de circular novas idéias, novos conceitos e experiências atuais, que podem sugerir acréscimos ao legado freudiano para que a psicanálise sobreviva e se mantenha como uma das principais disciplinas que proporcionam conhecimento e possibilidades de integração desse conhecimento com a prática clínica. Foi dentro dessa perspectiva que o nosso colega Marco Aurélio Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 17 Gildo Katz Palavras do Editor PALAVRAS DO EDITOR C. Albuquerque escreveu “Pânico: Aspectos Psicanalíticos”. Nesse excelente trabalho, busca traçar e discutir as origens intrapsíquicas das crises de pânico, sintoma encontrado em pacientes que buscam tratamentos analíticos, ou mesmo como um evento durante o tratamento. É muito oportuna a diferenciação que faz entre o modelo psiquiátrico sobre o pânico, visto como um transtorno, e a teoria psicanalítica, com ênfase na abordagem do pânico como sintoma merecedor de investigação analítica. Discute, assim, as diferentes visões etiológicas, estratégias de tratamento e prognóstico que, por vezes, confundem os psicanalistas porque vêem-se no dilema de empregar terapia medicamentosa. Às vezes, não ceder ao apelo imediato da medicação pode se constituir em um esforço muito grande no processo analítico. Aliás, é de esforço que trata a psicanalista paulista Suad Haddad de Andrade em seu artigo “Figurações da Inveja – o Ódio ao Esforço”. A autora intitula ódio ao esforço à dificuldade de se desenvolver empenho em atividade importante, seja ela física ou psíquica. Considera essa dificuldade como uma defesa perversa ligada diretamente à emergência da inveja. Sua principal característica é não ter que fazer qualquer esforço para conquistar o que deseja: tudo pode e deve ser fácil e tranqüilo. Essa incapacidade de se empenhar acarreta inevitavelmente falta de firmeza, de decisão, de entusiasmo e de autoconfiança. É bem possível que na raiz do que é invejado esteja, conforme a autora, um objeto idealizado que, ao ser reintrojetado, mantém dentro do self um objeto interno com características extremamente onipotentes. Penso que esse artigo é extremamente útil porque é essa onipotência que nos torna frágeis quando lidamos com as difíceis oscilações que ocorrem no campo transferencial e contransferencial e que paralisa a nossa capacidade de manter a atenção flutuante para sonhar e associar livremente desenvolvendo nossa criatividade. Os sonhos e as associações são os temas abordados por Antonino Ferro, eminente psicanalista italiano em seu trabalho “Associações Livres e Pensamento Onírico de Vigília”. O autor, inspirando-se nos conceitos sobre o funcionamento mental postulados por Bion, considera as associações 18 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 19 Gildo Katz livres como um “derivado narrativo” do pensamento onírico de vigília, e as rêveries, como um acesso direto às imagens desse pensamento onírico. O material clínico é utilizado para colocar em evidência como tais “derivados narrativos” podem ser utilizados pelo analista como sinalizações que continuamente o paciente fornece sobre o próprio funcionamento mental no interior do campo analítico, sinalizações que permitem ao analista modular sua atividade interpretativa de forma que esta seja fator de transformação, e não de perseguição. Além da satisfação em tê-lo pela primeira vez como colaborador em nossa revista, acredito que Ferro aborda o problema da interpretação dentro de uma perspectiva atual, ou seja, não como uma “deutung”, que fornece a explicação última para o paciente, mas de uma forma a possibilitar, através das transformações, o estabelecimento de um diálogo criativo e aberto entre os integrantes da dupla, sem perder de vista a assimetria, isto é, as funções de cada um dos integrantes. As preocupações sobre os papéis é que faz o analista Paulo Marchon, carioca radicado em Fortaleza, a refletir sobre “A Universalidade do Complexo de Édipo”. Baseado na antropologia e em sua relação com a psicanálise, mostra como a interdição ao incesto aparece nos animais e em várias culturas, apesar da forte resistência entre alguns pesquisadores. Penso que, no centro desse importante trabalho, estejam as idéias de Lacan que, seguindo os passos de Levi Strauss , acredita que a origem do problema do incesto não reside apenas em uma demanda pulsional, como assinalou Freud, mas também na cultura, a qual é estruturada pela linguagem. Dessa maneira, a proibição do incesto não se restringe sempre às estruturas elementares de parentesco, mas também à relação social que atribui a certas pessoas a representação do pai e da mãe. E, conforme Lacan, a criança só pode ter acesso ao registro simbólico se teve acesso à lei do Pai, que diz respeito a uma atitude do mesmo em desfazer a ligação mãe-filho, que é o ponto de partida para futuras relações incestuosas. Nosso colega Renato Trachtenberg, através de seu excelente trabalho intitulado “O Ateliê do Psicanalista”, parte do encontro mítico entre o bebê e a mãe, descrito como o conflito estético por D. Meltzer, para referir-se à PALAVRAS DO EDITOR fundação dos espaços públicos e privados na mente humana. As noções de mistério e segredo advindas desses espaços primordiais irão configurar as diferentes possibilidades de relação do sujeito com o mundo (interno e externo). Entre essas possibilidades, se insere a relação do homem com os seus objetos estéticos, especialmente com a obra de arte. Contando com esse “instrumental”, o autor se refere a um espaço mental, por ele denominado ateliê, uma espécie de sala interna de análise, onde é gestado o sonho. Nessa dimensão estética da psicanálise, o próprio sonho, por sua vez, é um ateliê: espaço de geração e expansão da criatividade, lugar de misteriosos renascimentos. Podemos observar como essa contribuição articula-se com as idéias desenvolvidas por Ferro e Andrade sobre a atividade onírica e a criatividade. O autor acrescenta o conflito estético de Meltzer como condição para que possa ser criado o ateliê, e foi muito feliz em denominar de ateliê esse espaço, porque a palavra evoca criatividade, que é condição necessária ao processo analítico. Como já foi consagrado em outras edições, a infância e a adolescência se fazem representar pelo profundo trabalho “O Processo Psicanalítico na Adolescência: Metapsicologia e Clínica”, do renomado psicanalista argentino Luis Kancyper. Para ele, na adolescência, múltiplos jogos de forças se contrapõem dentro de um campo dinâmico: os movimentos paradoxais do narcisismo nas dimensões intra-subjetiva e intersubjetiva, e as relações de domínio entre pais e filhos e entre irmãos. Através da descrição do processo analítico de um adolescente, enfoca alguns pontos essências para o tratamento de adolescentes: a base metapsicológica do processo; o trabalho com as auto-imagens narcisistas e com os complexos edípico e fraterno; a questão do filho-progenitor e do irmão-progenitor; o reordenamento identificatório; a confrontação geracional; e a ressignificação de traumas anteriores. Trata-se de um trabalho que merece, por sua densidade e profundidade, uma leitura atenta . Graças à gentileza do reconhecido psicanalista argentino Hugo Bleichmar que é diretor de Aperturas Psicoanalíticas – Hacia Modelos Integradores, uma revista eletrônica de grande difusão, trazemos um inte20 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 21 Gildo Katz ressante debate entre Jaak Panksepp, um neurocientista, e os psicanalistas André Green e Clifford Yorke. Com o objetivo de conciliar a psicanálise e a neurociência, dialogam tendo como pano de fundo a teoria do afeto em Freud. Penso que uma aproximação é uma experiência útil e necessária, em função das trocas que poderão ocorrer entre as duas disciplinas. Acima de tudo, fica claro em Aperturas, que prevalece o desejo de buscar o que é semelhante nessas disciplinas, e, nesse sentido, é extraordinário comprovar como alguns dos conceitos freudianos básicos da teoria do afeto se aproximam da visão atual dos neurocientistas, encontrando respaldo nos dados empíricos disponíveis. Através de uma conferência intitulada “Epistemologia: um Resumo Crítico sob a Ótica de um Psicanalista, para uso de Psicanalistas”, o psicanalista paulista Paulo César Sandler sugere que o ser humano consegue desenvolver, a partir da pura necessidade, alguns modos para se aproximar ou apreender a realidade ou verdade e a discriminá-las do que não é real ou verdadeiro, ou do que é falso. Além disso, pode comunicar o que experimentou. Pensa que a arte é o modo mais primitivo de apreender a realidade, tanto externa como interna. Tendo a concordar com ele quando afirma que o que é muito complicado em todas as teorias, é que elas dizem como “as coisas, tanto do mundo como da ciência, devem ser. Mas me parece que a ciência mesmo, e também qualquer teoria do conhecimento, como intrasessão, para o paciente conhecer-se a si e tornar-se a si mesmo, diz como as coisas são”. Conclui seu brilhante trabalho salientando que talvez não caiba aos analistas dizerem aos pacientes ou aos colegas o que eles devem ser, quais são as luzes que devem seguir, mas eles podem dizer aos pacientes quais são suas próprias luzes, considerando suas necessidades humanas e possibilidades individuais, mas não seus deveres segundo algum código externo a eles. A isso ele chama de uma contribuição da psicanálise à epistemologia e da epistemologia à psicanálise. A entrevista realizada com a nossa colaboradora Virgínia Ungar, da Argentina, revela-se de uma utilidade e de uma atualidade impressionantes. Discorre de forma clara e didática, como é a sua característica, sobre a PALAVRAS DO EDITOR sua formação, suas influências mais importantes que são Melanie Klein e Donald Meltzer, a análise de crianças e adolescentes, os motivos que levam os analistas a abandonarem essa especialidade, a importância do enquadre, as patologias atuais e a crise econômica que assola a América Latina. É interessante salientar como ela conceitua de forma diferente imaginação e fantasia inconsciente, tema, aliás, de outro trabalho muito interessante de James S. Grotstein, de San Francisco, intitulado “Novas perspectivas sobre as fantasias inconscientes”. Para Ungar, a fantasia inconsciente tem mais um caráter defensivo, mais fechado, e a imaginação como a associação livre, verdadeira, mais voltada para a conjectura da exploração do mundo, para a criatividade. Grotstein, por sua vez, tal qual uma confirmação dos conceitos de Ungar, sustenta que o principal propósito da prática psicanalítica é tratar, isto é, reparar supostas deficiências no funcionamento das fantasias inconscientes. O corolário de suas idéias é que as fantasias inconscientes constituem a primeira linha de defesa contra o impacto contínuo da evolução do indivíduo no caminho da criatividade. Ou seja, ao tratarmos as defesas envolvidas nas fantasias inconscientes, abrimos o caminho para a imaginação. Quando Virginia Ungar discorreu sobre a crise econômica, trouxe à tona um dos problemas que deveria preocupar a todos que se dedicam à formação analítica, que diz respeito à falta de pacientes para a análise, e que se reflete na “síndrome da desocupação do analista”, que descrevi em um recente trabalho. Nele, enfatizo a “necessidade” que tem um psicanalista de trabalhar em análise, isto é, de poder ser procurado por alguém para cuidar, reconstruir, reparar objetos danificados pela pessoa que pede ajuda. Ao ser “convocado” para essa tarefa, o psicanalista se sente aliviado, contente, esperançoso porque, ao mesmo tempo que através do vínculo estabelecido ajuda o seu paciente, pode continuar reparando e reconstruindo objetos do seu mundo interno. Se bem que a intenção manifesta dirigida ao paciente é vocacional e reparatória, coexiste com um objetivo não espúrio mas inconsciente e narcisista do terapeuta, que remete à sua necessidade de compreender-se compreendendo em cada ato analítico. Portanto, mais além 22 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Gildo Katz – Editor Julho de 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 23 Gildo Katz das necessidades do sustento econômico, está a falta (em um primeiro nível) da capacidade de reparação, de um reconhecimento e de uma identidade social. Se tomarmos o valor simbólico dos termos, na sutileza de suas distintas acepções, estar “des-ocupado” implica em um vazio por não ser mais possível colocar o Self no lugar de trabalho. Por essa razão, o vazio interno e a exclusão social dão lugar a um maior risco de morte psíquica. Trata-se de uma morte relativa que atinge a subjetividade, apesar de que o juízo de realidade assinale, em geral, que a crise atinge a todos. Quero deixar meus agradecimentos aos técnicos e ao pessoal de apoio, em especial à nossa bibliotecária Geisa Costa Meirelles e à nossa secretária, Antônia Lima Ihoann, que se envolveram, como de costume, com muita dedicação na organização e preparo deste número. Também agradeço aos colegas da Comissão Editorial: Augusta Heller, Heloisa Fetter, Ane Marlise Port Rodrigues e Silvia Stifelman Katz, que ao longo de quase dois anos vêm formando um grupo coeso, competente e, principalmente, com fortes laços de cooperação e amizade, que é essencial para quem exerce o trabalho psicanalítico. Desejando uma boa leitura para todos, penso que o trabalho desenvolvido por essa comissão tende a atenuar o vazio da desocupação que atinge a todos nós. Ajudam a atenuar o vazio, porque continuam pertencendo a um grupo; sentem-se úteis ao confeccionar uma revista e, de alguma forma, reparam seus objetos internos, na medida que desfrutam da satisfação de que serão procurados por ávidos leitores, e de que estimularão potenciais escritores. Dessa maneira, creio eu, mantemos, todos nós, autores, editores e leitores a esperança de que a nossa capacidade de reparação continue ativa, sem cairmos na tentação “milagrosa” dos psicofármacos, bem como nas promessas de curas rápidas como as que oferecem algumas das terapias da moda. Artigos/Ensai0s/Reflexões Introdução Marco Aurélio C. Albuquerque Médico Psiquiatra, Supervisor e Professor da Residência de Psiquiatria da Fundação Universitária Mário Martins; Psiquiatra da Divisão de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição; Candidato do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Alguns autores psicanalíticos descrevem situações de pânico em seus pacientes, em geral relacionadas a estados mentais aflitivos, que afloram em momentos de estresse ou de rompimento de um equilíbrio defensivo até então utilizado com sucesso. A psiquiatria, por sua vez, classificou e circunscreveu o diagnóstico psiquiátrico da síndrome do pânico nos últimos anos, apoiada, porém, num referencial teórico bastante diverso, de cunho fenomenológico, com acentuada ênfase nos aspectos biológicos e comportamentais das doenças mentais. Assim, relega os fatores psicológicos a elementos acessórios ou Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 27 Marco Aurélio C. Albuquerque Pânico: Aspectos Psicanalíticos PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS meros desencadeantes da crise de pânico, não atribuindo importância a fenômenos intrapsíquicos inconscientes como estando ligados etiologicamente às crises de pânico, porque simplesmente não os considera em seu referencial teórico e técnico. Num primeiro olhar sobre essa diferença, pode-se dizer que a psicanálise, como campo de investigação e abordagem dos complexos aspectos da vida mental inconsciente, nunca dedicou ao pânico o status de uma doença mental, mas sinaliza que, como sintoma, ele pode ser o indicador de que um movimento importante está se processando no mundo interno do sujeito nem sempre de forma negativa. O modelo psiquiátrico do transtorno de pânico Penso que seria interessante, para melhor esclarecer este contraste, uma breve revisão de como a psiquiatria atual define as crises de pânico. Estas são descritas como fazendo parte de um transtorno, em geral caracterizado por episódios agudos de terror acompanhados de uma súbita barragem de sintomas físicos, tais como batimentos cardíacos acelerados ou palpitações, dor torácica, tonturas, náuseas, dificuldade respiratória, calorões ou calafrios, sudorese, formigamentos ou perda de sensibilidade nas mãos, distorções perceptuais ou sensações de estar como num sonho, medo de perder o controle e fazer algo embaraçoso, medo de morrer e sensação de morte iminente. Em relação às causas, as pesquisas sugerem que o transtorno de pânico tem componentes biológicos e psicológicos em interação, e que alguma vulnerabilidade genética pode estar envolvida. Estudos sugeriram que pessoas com transtorno de pânico teriam uma tolerância mais baixa às respostas fisiológicas e psicológicas normais ao estresse. Alguns pesquisadores teorizam que alterações nos mecanismos de adaptação poderiam ser produto de repetidos estresses em indivíduos predispostos, levando eventualmente ao transtorno. Pesquisadores também sugerem que pessoas com transtorno de pânico podem não ser capazes de utilizar suas próprias substâncias redutoras de estresse. Pode ser, também, que receptores neuronais 28 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Aspectos psicanalíticos do transtorno de pânico Não há um modelo fenomenológico na psicanálise que conceitue crises de pânico como um transtorno independente, da forma como ele é descrito pela psiquiatria, e mesmo do ponto de vista psicanalítico não há, na teoria ou na clínica, um modelo único para o fenômeno. A literatura psicanalítica sobre o tema começa com Freud, que o descreve desde 1885 com o nome de neurose de ansiedade ou neurose de angústia – um quadro que tem a ansiedade como sintoma central. Daí em diante encontramos, em relatos de caso de diversos autores, descrições de crises de ansiedade muito fortes, com sintomas de pânico em pacientes em tratamento analítico. Nessas situações ele é descrito como um sintoma importante, freqüentemente relacionado a pacientes com organizações defensivas patológicas de personalidade, ou déficits estruturais significativos pela mobilização de ansiedades arcaicas e pelo rearranjo das forças defensivas dentro do ego antes ou durante o tratamento analítico. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 29 Marco Aurélio C. Albuquerque que captam essas substâncias tenham um funcionamento anormal em pessoas com esse transtorno. É preciso, no entanto, ter em mente que o que acima é chamado de “psicológico” não se refere necessariamente, como estamos acostumados a pensar em nosso meio, à psicologia psicanalítica, ou metapsicologia, para usar um termo utilizado por Freud para diferençar a psicologia que ele estava propondo das outras vigentes em sua época, conforme Sandler (1997). Quanto ao tratamento e ao prognóstico, o modelo psiquiátrico também difere radicalmente da psicanálise. A psiquiatria, notadamente em sua vertente mais biologicista, preconiza que o transtorno, uma vez reconhecido, é altamente tratável, podendo reduzir ou prevenir completamente os ataques de pânico em 70 a 90% dos pacientes – particularmente quando o transtorno de pânico é reconhecido precocemente. O critério de cura utilizado é a redução ou o desaparecimento dos sintomas, sem preocupação com causas psicodinâmicas subjacentes. Como veremos adiante, o entendimento psicanalítico é bastante diferente. PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS É preciso assinalar que Freud iniciou suas investigações psicanalíticas interessado no tratamento de sintomas clínicos da histeria (ansiedades, conversões, etc.), uma vez que eram esses sintomas que traziam os pacientes à análise. A mudança teórica e clínica mais significativa proposta por ele mesmo, à medida que ia construindo todo o arcabouço teórico-clínico da psicanálise, é que ele percebeu que não se podia apenas abordar os sintomas do ponto de vista médico, sem levar em conta a criação de uma metapsicologia, isto é, a relação entre a topografia mental, em seus níveis consciente, pré-consciente e inconsciente, e posteriormente as relações entre as diferentes estruturas mentais – id, ego e superego – em sua assim chamada teoria estrutural. Por isso, sua teoria sobre a ansiedade sofreu uma profunda revisão: se antes a ansiedade era causada pela repressão, posteriormente ele passou a acreditar exatamente no oposto, que era a ansiedade que produzia a repressão (FREUD, 1926). Mais tarde, a partir da noção de instinto de morte introduzida por Freud, Klein ampliou consideravelmente o papel da ansiedade na formação do aparelho psíquico, tomando-a como causa e conseqüência de diferentes formas de organização da vida mental, preservando a idéia freudiana do inter-relacionamento entre as instâncias estruturais (id, ego e superego), mas posteriormente – em sua teoria das posições – diferenciando as ansiedades paranóides das depressivas, origem de constelações de relações de objeto distintas, tanto externas quanto internas. Sem a intenção de fazer uma revisão exaustiva da literatura psicanalítica sobre o tema, busquei pontualmente em determinados autores algumas idéias e conceitos-chave que demonstrassem a evolução do conhecimento psicanalítico, a ponto de nos permitir hoje compreender e enfrentar melhor na clínica alguns tipos particulares de ansiedade. Busquei nesses autores um suporte à minha visão do pânico não como uma doença, mas como um sintoma clinicamente muito importante, indicativo de estados mentais mais primitivos e forma de expressão de ansiedades muito precoces, ligadas à agressividade excessiva e ao instinto de morte, representando verdadeiras ameaças à integridade do self e à vida psíquica. Sem essa compreensão dos 30 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 31 Marco Aurélio C. Albuquerque mecanismos mais primitivos envolvidos na gênese do pânico, perde-se talvez a possibilidade de um trabalho analítico que traga modificações estruturais na personalidade, em termos de uma evolução para formas de ansiedade menos primitivas e violentas, que possam finalmente ser integradas, incorporadas ao patrimônio psíquico do self, e representadas simbolicamente, abrindo caminho ao pensamento. Embora não tenha sido o primeiro a reconhecer a constelação de sintomas que hoje a psiquiatria designa como pânico, Freud (1895.) foi o primeiro a tentar abordar psicanaliticamente o problema, ainda que com as limitações teóricas e técnicas da época. Fez isso em sua descrição da neurose de ansiedade e a chamou assim porque todos os seus componentes podiam ser agrupados em torno do sintoma principal da ansiedade. Quanto à etiologia, ele dizia que em alguns casos não se descobria absolutamente nenhum fator causal e nesses casos atribuía o surgimento a fatores hereditários. Nos demais, via o quadro como sendo de origem basicamente sexual, sendo as perturbações restritivas do comportamento sexual manifesto (masturbação, coito interrompido, etc.) apontadas como causadoras do quadro de ansiedade. Fatores como o cansaço e o estresse também eram considerados causais acessórios. Essas explicações, embora distantes de causas inconscientes no sentido dinâmico, são, no entanto, coerentes com o contexto inicial da psicanálise. Caper (1990) descreve como Freud nessa época estava interessado em descobrir as causas neurofisiológicas da histeria, dentro de um paradigma das teorias físicas vigentes – especialmente as relativas à eletricidade – e estabeleceu um paralelo entre a histeria e a neurose de ansiedade, baseado em perturbações manifestas da fisiologia sexual, especialmente por sobrecarga de tensão. A excitação sexual não descarregada provocaria uma excitação cerebral que se manifestaria como ansiedade. Em sua resposta às críticas a seu artigo sobre a neurose de angústia (1895), ele resumia assim sua compreensão clínica do problema: “O quadro esquemático da etiologia da neurose de angústia me parece seguir o mesmo padrão [da tuberculose em seu exemplo]: Precondição: Heredita- PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS riedade. Causa específica: Um fator sexual, no sentido de uma deflexão da tensão sexual para fora do campo psíquico. Causas auxiliares: Quaisquer perturbações banais – a emoção, o susto, e também o esgotamento físico devido a doenças ou à estafa”. Para ele, portanto, o fator causal por excelência era de ordem sexual manifesta, ficando todos os demais estados emocionais relegados a meros desencadeantes, encarados como perturbações associadas perifericamente a este fator primordial. Embora posteriormente tenha mudado sua concepção sobre a origem da ansiedade, Freud nunca associou a agressividade e a destrutividade internas à neurose de ansiedade, e, portanto, seu modelo etiológico para a neurose de ansiedade permaneceu incompleto em sua teorização. Isso é particularmente visível no caso do pequeno Hans (FREUD, 1909), em que a agressividade deste em relação a seus objetos não foi percebida por Freud como fundamental na gênese de sua fobia, e apenas as causas sexuais foram levadas em conta por se encaixarem na teoria da origem sexual das neuroses. Klein (1946) via a ansiedade sob um prisma diferente, embora alicerçado na teoria freudiana a respeito do instinto de morte. Ela concebia a ansiedade como intimamente ligada a este instinto, e um dos primeiros movimentos mentais do bebê seria então a sua deflexão, dando início às ansiedades paranóides pela instalação dos objetos ameaçadores à vida fora do ego, por via da projeção. Para ela, a ansiedade mais básica era a de desintegração desse ego rudimentar, com o seu conseqüente aniquilamento, vítima da força do instinto de morte. Como sabemos, em termos de sintoma, o elemento principal no ataque de pânico é a ansiedade intensa experimentada pelo paciente, que chega à sensação de morte iminente. Essa intensidade da ansiedade é um ponto chave para o diagnóstico e corresponde, em termos psicanalíticos, a uma ansiedade bastante primitiva, do tipo de desintegração (os diversos órgãos corporais que parecem estar falhando) ou de aniquilamento (a sensação de morte iminente). Klein propõe que essa ansiedade esteja intimamente ligada ao instinto de morte. 32 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 33 Marco Aurélio C. Albuquerque Para lidar com essa ansiedade, o bebê usa mecanismos de defesa primitivos, dos quais um é a negação da realidade. Exemplo disso em relação ao sintoma de pânico são as inúmeras visitas a serviços de emergência e a médicos de diversas especialidades que, após entrevistas e exames laboratoriais, por vezes exaustivos, excluem a existência de doença orgânica, mas mesmo assim o paciente não acredita e segue tendo a impressão avassaladora de que há algo de muito grave acontecendo com seu corpo ou seus órgãos, talvez até com sua mente, mas continua temendo fortemente a morte por causas orgânicas, e não psicológicas. De fato, quando lhes é dito pelos clínicos que seu problema pode ser de ordem emocional, muitos pacientes demonstram não entender como isso poderia ser possível, que relação poderia haver entre seus sintomas, experimentados como orgânicos, e suas emoções (numa espécie de desarticulação completa entre o subjetivo e o objetivo, uma incapacidade de representação muito importante). Isso é tomado por alguns pesquisadores como a prova de uma base fisiológica, e não psicológica, para o transtorno. Outros mecanismos de defesa primitivos descritos por Klein, como a cisão e a identificação projetiva, estão igualmente presentes e atuantes nas crises de pânico. Como resultado de uma cisão do ego com propósitos defensivos (proteger o self da desintegração), fragmentos do ego relacionados à agressividade e à destrutividade, sentidos como intoleráveis, são projetados para dentro dos órgãos (ou, melhor dizendo, da representação mental desses órgãos), que passam então – identificados projetivamente com esses fragmentos – a hospedar estes perseguidores. Estes fragmentos do ego, portadores de aspectos persecutórios, também são postos, por via da identificação projetiva, nos objetos externos e no mundo externo em geral, que então identificado com estes fragmentos se torna também um local ameaçador, produzindo como resultado a agorafobia comumente encontrada nesses casos e que é explicada psiquiatricamente de uma forma comportamental como um medo aprendido e evitado daí em diante. Assim o paciente é perseguido por sensações corpóreas assustadoras, mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo refugia-se nelas em PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS busca de uma explicação médica e socialmente aceitável para o que experimenta de inaceitável dentro de si. Agarra-se tenazmente nos aspectos objetivos dos sinais e sintomas físicos para assim aumentar a distância dos sentimentos inaceitáveis. O medo de ser atacado e destruído pelas próprias projeções, expresso na sensação de morte iminente, corresponde à projeção maciça da própria agressividade e destrutividade temida, que agora retorna ameaçadoramente. Uma das formas utilizadas para lidar com esse retorno do inaceitável projetado é a evitação, uma defesa típica dos pacientes fóbicos. Hanna Segal (1955a) examinou o papel dos mecanismos esquizóides subjacentes à formação de fobias, mostrando haver uma íntima conexão entre as ansiedades primitivas e um sintoma neurótico comum. Ela demonstrou como os mecanismos da posição esquizo-paranóide, especialmente a cisão e a identificação projetiva, estão presentes nas fobias. Analisando uma mulher com fobias múltiplas e severas, ela pôde perceber o quanto esta estava ligada à mãe por identificação projetiva e, portanto, incapaz de separar dela. Por causa disso funcionava transferencialmente nas sessões como se a analista soubesse tudo dela sem que precisasse falar. As pessoas numa multidão representavam sua própria desintegração e maldades projetadas, tornando-se perseguidoras em potencial e constituindo-se assim a agorafobia. Ela conclui mostrando como a formação de uma fobia está a serviço de proteger contra uma psicose, vinculando ansiedades muito primitivas e catastróficas a situações externas conhecidas, que podem então ser evitadas. Para ela, é importante então analisar as ansiedades primitivas para dissolver manifestações neuróticas. Em outro trabalho de 1955, Segal (1955b) nos permite, através de seu artigo sobre a formação de símbolos, compreender uma outra característica típica do paciente com pânico, isto é, a concretude extrema que os sintomas adquirem, sem qualquer possibilidade de simbolização que os transforme numa metáfora para um acontecimento do mundo interno. Isto se dá através do que ela chamou de equação simbólica, em vez do uso do símbolo propriamente dito. 34 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 35 Marco Aurélio C. Albuquerque Ela descreve dois pacientes para os quais o violino tinha conotações sexuais, mas para um ele era o pênis, e, portanto, não podia ser tocado em público, e para o outro representava o pênis, o que não impedia sua execução. De acordo com ela, pacientes com uma relação muito falha com seus objetos originais, especialmente pai e mãe, não foram capazes de estabelecer as bases para a criação de símbolos, utilizando-os concretamente no lugar do objeto, em lugar de representar o objeto na ausência deste. Isso é exatamente o que ocorre numa crise de pânico, em que não há lugar para o símbolo propriamente dito – o sintoma é tomado pelo seu valor concreto, que está ali, e não como algo que está em lugar de outra coisa, ausente mas simbolizada. Pacientes cujo coração é hígido, e eles objetivamente sabem disso, sentem de forma violenta uma morte iminente de “ataque do coração”, numa completa desarticulação entre o coração-órgão e o coraçãosímbolo. Além disso, o termo freqüentemente utilizado para denominar as crises – “ataque” – dá uma idéia da agressividade projetada que retorna persecutoriamente para cobrar seu preço. Edna O’Shaughnessy (1981) mostra como, do ponto de vista da organização defensiva, a combinação de um ego fraco com ansiedades assoladoras agudas impede a constituição de uma boa organização defensiva, fazendo com que haja uma constante oscilação entre períodos de exposição e de restrição. Quando a organização defensiva falha, esses pacientes ficam expostos a uma intensa ansiedade, originária de seus objetos. Ela relata extensamente o caso de um paciente que, num primeiro momento dentro do tratamento, ficava em situação de grande desespero quando sua organização defensiva falhava e ele se sentia exposto a grandes quantidades de ansiedade que não podia manejar. Segundo ela, há pacientes que procuram análise num momento em que têm a expectativa não de ampliar seu contato consigo mesmos ou com seus objetos, mas ao contrário, para refugiar-se deles, restabelecendo uma organização defensiva perdida, estabelecida contra objetos internos e externos causadores de uma ansiedade esmagadora. Acrescenta que esses PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS pacientes experimentam ansiedades infantis que não foram modificadas, isto é, não foram atenuadas e permaneceram intensamente persecutórias. Esse parece ser exatamente o caso dos pacientes que apresentam sintomas de pânico que se mostram enormemente perseguidos por seus objetos. Nesse sentido, o tratamento muitas vezes é buscado para erigir novamente as defesas que ruíram, o que não é necessariamente negativo no curso de uma análise, podendo inclusive se constituir em uma das fases do tratamento, antes de evoluir para etapas mais avançadas em que seja possível algum abandono dessa estrutura defensiva tão arraigada. Pela mesma razão, o tratamento psiquiátrico medicamentoso concomitante algumas vezes tornase necessário, no sentido de aliviar temporariamente esse estado de catástrofe interna, para que o paciente possa beneficiar-se do tratamento analítico. Fica evidente a importância dessas estruturas defensivas para a sobrevivência do self, assim como seu grau de tenacidade e de organização, o que inevitavelmente tornará o seu abandono um processo lento e difícil. É necessário todo um processo de reconstrução do mundo interno na análise, permitindo a existência de objetos menos persecutórios e mais confiáveis, para que um passo evolutivo seja dado em direção à integração depressiva. No entanto, quando isso acontece, os resultados são compensadores, e o processo analítico como um todo fica mais enriquecido para ambos e mais tolerável pelo paciente. Steiner (1997), estudando mais profundamente as organizações defensivas patológicas, descreve a utilização de refúgios psíquicos pelos pacientes, que assim procuram estabelecer uma organização defensiva que os proteja tanto das ansiedades persecutórias quanto depressivas. Esse refúgio funciona como uma armadura ou esconderijo do qual é muito difícil sair. Ele usa o termo para se referir a uma família de sistemas defensivos caracterizados por defesas rígidas que procuram uma fuga da ansiedade pela evitação do contato com os outros e com a realidade. Isto leva, se pensarmos em termos de sintomas, à evitação fóbica e ao enclausuramento não apenas psíquico de muitos desses pacientes, que desenvolvem uma 36 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 37 Marco Aurélio C. Albuquerque agorafobia importante, vivendo no concreto uma impossibilidade interna de sair de um refúgio defensivo. Sob essa perspectiva, a crise de pânico pode ser entendida como um momento de perda ou de ameaça de perda desse refúgio psíquico, com a conseqüente exposição a uma ansiedade avassaladora, persecutória ou depressiva, que faz com que imediatamente haja uma retração para dentro da concha protetora. Ogden (1989) descreve nitidamente uma dessas perdas do refúgio descritas por Steiner através do relato de uma paciente esquizóide que, em seu quarto ano de tratamento analítico, depois de um fim de semana, chega em estado de extrema agitação, acusando-o pesadamente. Ela diz que não sabia o que estava acontecendo, mas que tudo a assustava e que sua mente estava fora de controle. No final de semana, ela não havia saído de seu apartamento e tinha ficado aterrorizada de algo entrar ou sair dele. Desligou o telefone, o rádio e a televisão. Não comeu nem bebeu nada, exceto água mineral, por medo de estar sendo envenenada. Também ficara aterrorizada de ter que urinar ou defecar e imaginara que se fizesse isso iria ver sangue e intestinos no vaso. Ela contou que ficava apavorada quando estava num cubículo que ficava no porão de uma livraria onde ela costumava se trancar e passar horas lendo, retirada do mundo, em perfeita paz. Começou a temer que alguém trancasse a porta, e ela ficaria então aprisionada lá. Também temia que apagassem as luzes e a esquecessem lá, o que a faria morrer de fome sem que ninguém soubesse. Ela não conseguia evitar as imagens horríveis que tinha de estar se decompondo lá, em sua escrivaninha. Essa crise de ansiedade de desintegração intensa e fobia deveu-se à sensação de perda do refúgio esquizóide e a um maior contato com o analista e a realidade após anos de trabalho analítico árduo. Danielle Quinodoz (1995), falando da vertigem e dos sintomas neurovegetativos que a acompanham (os mesmos descritos para uma crise de pânico), ressalta a ligação dessa com as vicissitudes nas relações objetais do paciente, desde a capacidade de se diferenciar dele e depois de PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS se separar dele. Nisso ela acompanha os demais autores citados, naquilo que poderíamos assinalar como outra característica comum aos pacientes com pânico, isto é, as falhas nas relações precoces com seus objetos, deixando como saldo a incapacidade de lidar bem com os aspectos agressivos, por falta da instalação no ego de um objeto amoroso reconfortante, do qual seja possível se separar, conservando-o internalizado ao mesmo tempo. Essa dificuldade de separação pode ser observada na clínica pela existência do acompanhante fóbico, alguém de quem o paciente não consegue se separar, às vezes até fisicamente. Diz ainda que, para ela, o estudo da vertigem é mais importante do que a observação ou a descrição de um sintoma, mas uma dimensão prototípica da relação de objeto. Assinala que é fascinante tentar compreender como uma experiência de sensações sem possibilidade aparente de elaboração psíquica, que se apresenta como um acúmulo de tensões físicas, pode se organizar em um plano psíquico ao longo de um tratamento analítico. Se para o analista é fascinante, para o paciente não o é menos, à medida que lhe abrem possibilidades de articular o até então desarticulado dentro de si, dando-lhe acesso a um outro nível de funcionamento psíquico. Material clínico Descrevo a seguir três breves vinhetas clínicas de pacientes com pânico apenas para melhor assinalar a importância dos fatores intrapsíquicos na gênese dos sintomas de pânico. Mulher de 24 anos procura atendimento psiquiátrico dizendo que há um mês não consegue engolir nada sólido, apenas líquidos, com medo de morrer sufocada pelo alimento, e que já foi a vários médicos que constataram a ausência de doença orgânica. Há um mês, também, no dia em que os sintomas começaram, por volta de uma e meia da manhã, sentiu fome e foi comer, não conseguindo deglutir e tendo uma sensação crescente de sufocação, que da garganta se espalhou para o peito, dando-lhe falta de ar, tonturas, amortecimento dos membros e a sensação de morte iminente. Procurou o setor de Emergência de um grande hospital, onde, após os exames 38 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 39 Marco Aurélio C. Albuquerque de praxe, foi diagnosticada como tendo Transtorno de Pânico, medicada e orientada a procurar um psiquiatra, porque o problema da não-deglutição seria de ordem emocional. Não entendeu nem acreditou muito no que o médico lhe disse, mas procurou ajuda, mais por estar apavorada com o que tinha lhe acontecido do que por ter relacionado os sintomas a aspectos emocionais de sua vida atual. No entanto, ao longo da primeira entrevista, contou que o marido trabalhava à noite e que nos últimos tempos começara a chegar em casa até cinco horas depois de sua hora habitual. Acreditava que ele a estava traindo. Juntava-se a isso o fato de que sua casa ficava próxima a um ponto de tráfico de drogas, disputado a tiros por gangues rivais, e num desses tiroteios, por si só já assustadores para ela, foi morto um amigo de infância seu, de quem gostava muito. Essa morte precedeu em poucos dias o início dos sintomas. No velório não conseguira chorar, mas sentira-se presa de imensa angústia, com muito medo de também ser morta por um tiro. Acrescenta que ela ficava sozinha à noite em casa, apenas com uma filha de um ano de idade, e que por diversas vezes ouvira apavorada os tiros trocados em frente de casa, ouvira barulho de pessoas pulando seu muro, em fuga da polícia, e esta mesmo já havia batido em sua porta em plena madrugada pedindo licença para inspecionar o terreno em busca de marginais. O marido dizia que ela estava exagerando essas preocupações, não fazendo menção de trocar seu turno de trabalho ou esboçar desejo de mudar daquela vizinhança, além de negar de forma frouxa e não-convincente a existência de uma relação extraconjugal, o que a deixava cada dia mais furiosa com ele, motivos pelos quais vinham tendo brigas diárias. Sua queixa, até então orgânica, de não conseguir engolir, ficava mais completa à medida que a entrevista seguia seu curso: “Eu não consigo engolir é essa situação que estou vivendo, de ser deixada em casa pelo meu marido, só com a nossa filha pequena e correndo risco de morrer por uma bala perdida, enquanto ele está por aí comendo alguma vagabunda, chega quase ao meio-dia como se nada tivesse acontecido, sem dar qualquer importância aos meus sentimentos, exigindo almoço, e eu, quando me sento para comer com ele, estou PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS tão furiosa que a comida nem me desce na garganta”. Formulada essa interpretação, bem recebida pela paciente, o resultado foi uma diminuição imediata e acentuada da ansiedade até ali dominante, com a paciente relaxando na poltrona e parecendo começar de novo a consulta, aliviada e intrigada com esta nova relação existente entre os elementos antes desconexos de sua história, atenta agora a uma nova possibilidade de entender sua situação, que não lhe era clara até então. Outro paciente, um homem de 28 anos de idade, passou a ter crises de pânico associadas à depressão há um ano e meio. Em sua história conta que, aos 14 anos, levou um tiro no braço defendendo o pai, alcoolista, numa briga numa boate. No início do ano passado foi novamente alvejado numa perna, dentro de sua casa, com um tiro que era dirigido ao seu irmão mais velho, alcoolista como o pai, que tinha comprado briga com marginais que usavam drogas na praça em frente à casa deles. Dois meses depois, após uma noite em que ele e o pai beberam muito, encontrou pela manhã o pai morto no quarto dele, ao lado do seu. O pai era alcoolista pesado, tendo perdido tudo o que tinha com a bebida, passando depois disso a maltratar a mulher e os filhos e morrendo aos 49 anos. No dia da morte do pai passou a ter dores nas pernas e a senti-las fracas, como se tivesse levado um choque elétrico, sintoma que persiste até hoje. Diz que, ao encontrar o pai morto, duro, com os olhos abertos lhe fitando, ficou em pânico, desesperado, e tentou inutilmente arrumar o braço esquerdo do pai, caído para fora da cama, o que não conseguiu pelo estado de rigidez cadavérica. Ressalta que aquele pânico era diferente do que sente hoje. Um mês depois da morte do pai, após beber demais novamente (identificado com o pai), acordou de manhã tendo a primeira crise de pânico, com parestesias na face, no braço esquerdo, dores no peito, falta de ar. Achando estar morrendo exatamente igual ao pai, que tinha vindo buscálo, ficou tão assustado que saiu correndo de casa só de bermuda e camiseta e foi a um hospital, onde foi medicado para pânico no setor de emergências. Não acreditava em reencarnação, mas temia que o pai quisesse levá-lo junto, isto é, matá-lo. Esse episódio, pelas fantasias envolvidas, revela a 40 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 41 Marco Aurélio C. Albuquerque imensa ambivalência quanto ao pai, a quem amava e buscava proteger, inutilmente, e ao mesmo tempo odiava e desejava que morresse, pelos maus-tratos a que submetia sua mãe e a família. Desse dia em diante passou a ter crises freqüentes de ansiedade e pânico, associadas à depressão. Procurou atendimento recentemente, pois sua mulher está grávida e ele quer parar de beber, melhorar da depressão e parar de ter as crises de pânico, mas principalmente fugir de uma morte igual à do pai, agora que também vai se tornar pai (reforçando as identificações que já tem com ele). Ainda não elaborou esse luto, e o pai – objeto morto-vivo dentro dele – vive lhe ameaçando de sorte igual. Quando pôde ligar um pouco esses fatos todos aos seus sintomas de pânico, sentiu alívio e evidenciou melhora clínica significativa a seguir, necessitando medicação concomitante. Outra paciente, uma mulher de 40 anos, contava que havia sido separada contra sua vontade pela mãe, na adolescência, de um namorado por quem havia sido apaixonada, mediante a mudança da família para outro estado. Muitos anos depois, já de volta ao estado, reencontrou-o ao tomar um ônibus urbano. Nessa época ela já estava casada, com filhos, mas se sentia mal casada, com um homem pobre, sexualmente desinteressante, morando com a mãe a quem detestava desde o episódio da separação do namorado. Por causa desse ódio, não conseguia se desligar da mãe, com fantasias de que esta iria morrer se isso acontecesse, tendo que controlá-la de perto, para que suas fantasias assassinas não se realizassem. Nesse breve encontro, o antigo namorado contou-lhe que estava separado, disponível, e deu mostras de querer revê-la, pedindo seu telefone, o que foi sentido por ela como um convite claramente sexual, que a deixou extremamente excitada. Nesse exato instante teve a primeira crise de pânico de sua vida. Este reencontro, carregado de significados inconscientes, reativou nela antigas fantasias agressivas e de ódio contra a mãe, a quem culpava por toda a sua infelicidade, pessoal e conjugal. A instalação dos sintomas de pânico e agorafobia do dia desse encon- PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS tro em diante impedia-a de sair de casa e andar novamente de ônibus e, portanto, de reencontrar este ex-namorado. Em seus devaneios gostaria de fugir com ele, deixar toda sua vida medíocre para trás e reviver o romance interrompido da adolescência, mas o surgimento dessa idéia na consciência a punha em estado de grande ansiedade, seguida de uma crise de pânico, que a imobilizava. O pânico, exigindo toda sua atenção, a impedia também de entrar em contato com o ódio violento que sentia da mãe, obrigando-se a se submeter a ela para aplacar a culpa, e exigindo a presença constante da mãe como forma de controle, para ver se ela não morreria, vítima das fantasias destrutivas da filha. Impossibilitada de acessar e processar psiquicamente todos esses conteúdos mentais, vivia-os na concretude como sintomas de pânico e agorafobia. Assim, evitou qualquer novo encontro com esse exnamorado, bem como nunca mais foi capaz de andar de ônibus. Por um instante todo o precário equilíbrio que havia conquistado para a sua vida esteve a ponto de ruir; quando fantasiava por instantes fugir com o exnamorado e nunca mais voltar para casa, pensava imediatamente no desgosto que daria à mãe (não ao marido ou aos filhos), e que esta poderia morrer por causa disso. O pânico, mantendo-a em casa, com medo de sair à rua, resolveu esse problema às custas, no entanto, de profundas limitações. A proximidade com a mãe permitia controlá-la, porém assim sentia-se também controlada por ela de forma absoluta, o que aumentava sua raiva e produzia um círculo vicioso aprisionante, perpetuando os sintomas. Conclusão O material clínico acima, embora condensado e incompleto, reflete e representa inúmeros outros pacientes com histórias similares e que têm sua vida – no âmbito pessoal, social, profissional – profundamente prejudicada pelo pânico que sentem, uma sensação de morte iminente acompanhada de intensa ansiedade que vem quando menos esperam, para a qual não há nenhuma explicação plausível, a não ser a falência iminente de algum órgão vital, e que deixa uma marca de expectativa ansiosa pela próxima crise. 42 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 43 Marco Aurélio C. Albuquerque Talvez a psiquiatria tenha lhe dado um nome próprio, porque sabemos que terrores sem nome costumam ser infinitamente mais assustadores do que terrores com nome. Estes, de certa forma, ficam relativamente circunscritos e localizados ao serem nomeados, enquanto que os terrores disformes e inominados das fantasias mais primitivas vagueiam soltos pela mente, motivo pelo qual necessitam defesas muitas vezes radicais, ou o estabelecimento de rígidas organizações defensivas para dar conta deles. Acredito que os pacientes que apresentam o sintoma de pânico achamse entre aqueles que, devido a problemas precoces e importantes no relacionamento com seus objetos primários, especialmente a mãe, ficam à mercê de ansiedades muito primitivas pouco modificadas pela experiência de continência, ou atenuadas pela existência de um objeto bom e apaziguador introjetado, e por isso constróem poderosas organizações defensivas – de natureza esquizo-paranóide – ou refúgios psíquicos para lidar com tais ansiedades, ligadas principalmente à agressividade contra estes objetos, sentidos como maus e persecutórios. Nesse sentido, o funcionamento mental de tais pacientes pode ser mais bem entendido à luz das ansiedades psicóticas do que das ansiedades neuróticas, definindo um nível de gravidade maior do que se pensava anteriormente, quando estes pacientes eram considerados neuróticos comuns. Neuróticos talvez, mas com importantes áreas de funcionamento psicótico, e esta é uma diferença vital para a compreensão, escolha da abordagem e prognóstico do tratamento. O comum às vinhetas clínicas descritas acima, além da gênese do pânico localizar-se no mundo interno, mais especificamente nas suas relações com seus objetos internos, é a nítida ligação existente entre um colapso emocional que mobilizou grande quantidade de ansiedade, ligada a ameaças à integridade física ou emocional dos pacientes, à eclosão logo a seguir de uma crise de pânico, como resultado dessa ruptura das estratégias defensivas até ali utilizadas. A idéia dos fatores intrapsíquicos na gênese das crises de pânico não é incongruente nem excludente com o surgimento de fenômenos orgânicos concomitantes (taquicardia, sudorese, etc.), po- PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS rém a ênfase nas causas psicológicas e não nas biológicas é uma importante diferença entre as visões psiquiátricas e psicanalíticas sobre o fenômeno. Outro ponto a ser realçado é a importância do papel da agressividade excessiva na gênese do pânico e o estabelecimento de organizações defensivas patológicas para lidar com ela. As organizações defensivas são basicamente utilizadas nesses casos para manter essa agressividade e o ódio pelo objeto sob controle. Para isso, utilizam-se mecanismos de defesa tais como a cisão, a fragmentação e a expulsão, via identificação projetiva, dos fragmentos identificados com os elementos ruins ou destrutivos rechaçados. Assim, a integridade do self é preservada, embora às custas de considerável enfraquecimento do ego e empobrecimento da personalidade. Porém, quando sobre esse ego enfraquecido e essa personalidade empobrecida recaem exigências pesadas demais, oriundas da realidade interna ou externa (crises em relacionamentos significativos, perdas, situações de grande estresse emocional, etc.), há um fracasso das organizações defensivas até então relativamente bem-sucedidas, com o conseqüente retorno avassalador daquilo que era mantido cindido e projetado, processos estes controlados até então pela organização defensiva funcionante. Essa ruptura, como conseqüência, deixa o ego à mercê de uma grande carga de ansiedade em estado bruto, para a qual ele não está aparelhado para manejar satisfatoriamente, em razão do seu empobrecimento e enfraquecimento pelo uso maciço e continuado das defesas contra essas mesmas ansiedades. O ego experimenta também esse retorno como uma retaliação por parte dos objetos, contendo suas partes destrutivas projetadas, como uma ameaça real de desintegração do self, que explodirá violentamente sob o ataque desses objetos maus. Esse conjunto de ansiedades é experimentado então na forma de sintomas de pânico, verdadeiros ataques retaliatórios dos objetos contendo os fragmentos destrutivos anteriormente projetados, agora identificados com órgãos doentes, pessoas perigosas ou lugares inseguros e violentos, sentidos como ameaças letais à integridade do self como um todo. Privado momentaneamente da organização defensiva anteriormente 44 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 45 Marco Aurélio C. Albuquerque funcionante, sem possibilidades de conter e processar essa ansiedade (quantitativamente excessiva, qualitativamente persecutória), impedido de novas cisões e projeções pelo retorno avassalador do projetado, a saída encontrada pelo ego, para proteger o que resta da integridade do self, é a florida sintomatologia da crise de pânico, com sua poderosa descarga emocional e física. O papel da sexualidade genital, inicialmente tido como a hipótese central para a etiologia do pânico (coito interrompido, falta de prazer sexual genital), não está ausente, embora não da forma proposta por Freud. Obviamente havia questões sexuais presentes nos casos descritos acima, porém desempenhavam papel secundário ao da agressividade no desencadear os sintomas de pânico. Havia em pelo menos dois desses pacientes evidências de um mau funcionamento na esfera sexual genital, porém como conseqüência de perturbações mais profundas nas relações de objeto, e não como causa última dos distúrbios mais globais. O funcionamento psicossexual, se levarmos em conta a evolução da libido como proposta por Freud, revela que estes pacientes não atingiram etapas mais maduras de funcionamento sexual, ficando fixados a formas de satisfação libidinal mais regressivas. Para concluir, penso que são necessárias mais algumas observações em relação às profundas diferenças nas visões psiquiátricas e psicanalíticas a respeito do tratamento do pânico, bem como de seu prognóstico. Essas divergências se devem às diferentes concepções quanto à etiologia, à nosologia e aos parâmetros de tratamento e melhora utilizados. Numa, o desaparecimento do sintoma em curto espaço de tempo é considerado critério de boa resposta aos tratamentos preconizados, e um consenso sobre o transtorno de pânico recomenda inclusive a interrupção dos tratamentos com referencial analítico ou psicodinâmico, se não houver progresso em seis a oito semanas (Steiner, 1997). Mais atualmente, tem-se questionado, a partir de estudos de follow-up, as visões mais otimistas com o uso de medicamentos e terapia cognitivo-comportamental, mostrando que a melhora dos sintomas não melhora necessariamente a qualidade de vida a longo prazo dos pacientes tratados dessa forma. PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS Enquanto a psiquiatria tem uma idéia bastante otimista quanto ao pânico ser altamente tratável, a visão psicanalítica nos sugere que pacientes com crises de pânico necessitam de um longo e penoso trabalho psíquico de elaboração para, no dizer novamente de Danielle Quinodoz, passar da sensação de vazio ao sentimento de vazio, acompanhado de representações. De completo acordo com essa idéia, acredito que a psicanálise ainda é a melhor e mais completa ferramenta para a compreensão e o tratamento do pânico, o que não supõe que seja a única existente ou que não possa contar com o auxílio da psiquiatria no realizar esta longa e penosa tarefa. Sinopse O presente trabalho busca traçar e discutir as origens intrapsíquicas das crises de pânico, sintoma encontrado em pacientes que buscam tratamentos analíticos ou psicoterapias de orientação analítica, seja como motivo de busca do tratamento ou como um evento durante o tratamento. Nele é feita brevemente a diferenciação entre o modelo psiquiátrico sobre o pânico, visto como um transtorno, e a teoria psicanalítica, com ênfase na abordagem do pânico como sintoma merecedor de investigação analítica. Discutem-se assim as diferentes visões etiológicas, estratégias de tratamento e prognóstico. Summary Panic: Psychoanalytic Aspects This work wants to trace and discuss the intrapsychic origins of panic crisis, symptom found in patients of analytic treatment or psychodynamic psychotherapy, as a cause of seeking treatment or as an event during it. A differentiation is made about psychiatric model of panic disorder and the psychoanalytical theory, with its emphasis in the approach of the panic as a symptom. Different etiologic visions, treatment strategies and prognosis are discussed. Sinopsis Pánico: Aspectos Psicoanalíticos El presente trabajo busca trazar y discutir los orígenes intrapsíquicos de las crisis de pánico, síntoma encontrado en pacientes que buscan tratamientos analíticos o psicoterapias de orientación analítica, sea como motivo de búsqueda o del 46 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Palavras-chave Pânico; Etiologia do pânico. Key-words Panic; Etiology of panic. Palabras-llave Pánico; Etiologia del pánico. Referências AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (1995). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-IV). Porto Alegre: Artes Médicas. 1995. CDROM. CAPER, R. Fatos imateriais. Rio de Janeiro: Imago, 1990. FREUD, S. (1895). Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia. In: ______. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 3. ______. (1909). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In: ______. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 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PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS NATIONAL INSTITUTES OF HEALTH; Consensus Development Conference Statement, 1991. Treatment of Panic Disorder, v. 9, n. 2, , Sept., 25-27, 1991, p. 1-24. O’SHAUGHNESSY, E. (1981). Um estudo clínico de uma organização defensiva. In: SPILLIUS, E. B. Melanie Klein hoje: desenvolvimentos da teoria e da técnica: artigos predominantemente teóricos. Rio de Janeiro: Imago, 1991. v..1, cap. 6, p. 297-315. OGDEN, T. (1989). The schizoid condition. In: ______. The primitive edge of experience. New Jersey: Jason Aronson, 1989. cap. .4, p. 83-108. QUINODOZ, D. (1995). O que é a vertigem? In: ______. A vertigem: entre a angústia e o prazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. cap.1, p. 5-22. SANDLER, J. et. al. (1997). Freud’s models of the mind: an introduction. Madison, Connecticut: International Universities Press, 1997. SEGAL, H. (1955). Mecanismos esquizóides subjacentes à formação de fobias. In: ______. 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Não só a mãe, também a criança tem que desenvolver uma parcela significativa de esforço para conseguir nascer e continuar vivendo. Não sabemos com precisão quando começa essa luta, mas sabemos que a batalha pela sobrevivência biológica e psíquica só acaba com a própria vida. No entanto, o que verificamos na clínica é que nem sempre o esforço é aceito ou vivido com naturalidade; acontece mesmo de nos surpreendermos muitas vezes com o fato, evidente, de toda uma história de sofrimentos e infelicidades serem simplesmente decorrentes da reação do paciente de não poder ou, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 49 Suad Haddad de Andrade Figurações da Inveja – o Ódio ao Esforço FIGURAÇÕES DA INVEJA – O ÓDIO AO ESFORÇO aparentemente, se negar a empenhar-se quando necessário. Estou me referindo ao desempenho natural, espontâneo, que nos mobiliza a crescer. Há uma natural vitalidade interna psíquica e uma energia orgânica sempre nos colocando em movimento, verdadeiro fator de sobrevivência do homem na terra. Estou considerando a resistência a essa mobilização como uma expressão de ataque aos impulsos naturais e fundamentais para a preservação da vida. É diferente do esforço por obrigação, do esforço superegóico que não respeita as possibilidades de cada um e representa um ataque às nossas condições naturais e individuais. A exigência de crescer a todo custo, de “vencer”, de superar o pai em força, capacidade e poder expressa a presença de uma distorção da vivência edípica que compromete o processo de desenvolvimento. Estou intitulando ódio ao esforço à dificuldade bem específica de a pessoa empenhar-se em alguma atividade importante, seja ela física ou psíquica. Tento pesquisar um fenômeno que estou considerando um desvio perverso, mas num sentido muito restrito. Não falo de estrutura perversa nem de desordem de caráter perverso; também estou me afastando totalmente do conceito de perversão ligado exclusivamente à sexualidade, no sentido de desvios da atividade sexual. Fico mais próxima do que se considera hoje defesas perversas, à medida que o ódio ao esforço me parece ligado diretamente à emergência da inveja e representa uma forma de lidar com ela. Trata-se de uma negação defensiva de um aspecto da realidade que pode ocorrer em diferentes personalidades, em diferentes situações, com maiores ou menores conseqüências para a personalidade como um todo. Examino então como os aspectos destrutivos, que se manifestam através da inveja e da idealização, podem contribuir para prejudicar a capacidade de construção do mundo interno e a percepção do mundo externo, enfocando apenas este sintoma, que é a dificuldade em fazer esforços. A inveja Para os kleinianos (1991), as diferentes distorções da realidade são 50 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 51 Suad Haddad de Andrade manifestações da pulsão de morte, e a inveja é o representante direto do instinto de morte. Nada ameaça mais do que a inveja – ela é o grande mal, à medida que é o mal instalado internamente e acionado, atacando quando menos se espera. Na inveja, o objeto bom incomoda pelo simples fato de existir; este é o aspecto paradoxal freqüentemente presente na relação com o psicanalista; o analista incomoda porque oferece rèverie, porque tem condição de acolhimento. Esta condição preciosa do analista é muito incomodativa porque é a mais desejada pelo paciente que busca fundamentalmente conter seus próprios conteúdos mentais. Estamos freqüentemente nos protegendo de sentir inveja; nos defendemos dela quando denegrimos o objeto bom e o destituímos de qualidades para não termos por que invejá-lo. O refúgio no narcisismo é uma solução para não se viver a inveja do objeto bem dotado e necessitado e pode trazer deformações importantes na percepção da realidade. A inveja primária é esta que surge na relação com o seio materno. Segundo Steiner (1997), as perversões narcisistas estariam situadas na dinâmica da relação dual e diretamente relacionadas à inveja primária. Os sentimentos de ciúme emergem quando da percepção do pai e dos irmãos e correspondem à inveja secundária. O reconhecimento da cena primária e o complexo de Édipo estariam relacionados à inveja secundária – as dificuldades na elaboração da situação edípica são as que levariam às perversões sexuais. As negações fundamentais, nesta constelação, são as das diferenças entre os sexos e entre as gerações; é quando vão ocorrer as idealizações do ânus e a criação de um mundo anal em que as diferenças são abolidas. Steiner fala também das perversões românticas da realidade e do tempo. Estes grupos de perversões que ele descreve têm a ver com a proposta de Money-Kyrle de destacarmos três situações básicas – fatos da vida – que são negados ou cujo reconhecimento é, muitas vezes, obstruído. A negação da realidade das perdas e de nossas limitações humanas (passagem do tempo e certeza da morte) seriam as distorções importantes neste terceiro tipo de perversão. Essa demarcação precisa entre as experiências narcisistas na relação FIGURAÇÕES DA INVEJA – O ÓDIO AO ESFORÇO com o seio e a situação edípica levando a diferentes tipos de perversões não parece dar conta dos fenômenos clínicos e, por isso, tem sido ampliada. A situação triangular precoce, com a presença do pai na fantasia da criança desde as primeiras experiências com a mãe, torna difícil a distinção precisa entre os dois primeiros grupos de perversões descritos: narcisista e sexual. É nesta intersecção, quando predomina a relação com o seio (narcisismo), mas a presença do pai já se configura como uma interdição ou um perigo (situação triangular), que eu penso podermos localizar os transtornos perversos, eventuais ou não, a que estou me referindo. Na situação de desprezo pelo esforço ocorre também a negação das vicissitudes da condição humana e negação do fato de que não contamos com recursos que nos protejam de danos e perdas. O que quero assinalar é que é muito difícil delimitar o fenômeno que descrevo a um único quadro, já que se trata de uma reação patológica que emerge em diferentes configurações, como a própria inveja. A criação do objeto idealizado A inveja é responsável pela criação de um objeto onipotente, fortemente idealizado (o objeto invejado) que, ao ser reintrojetado, cria, dentro do self, um tipo de objeto interno com características muito peculiares e que leva também a comportamentos muito específicos. Falo de pacientes identificados com um objeto idealizado, que tudo podem conseguir no diaa-dia sem se empenharem; esses pacientes não suportam fazer esforço para pensar, para alcançar conhecimento ou para conseguir desenvolver qualquer atividade. Tudo tem que ser fácil, espontâneo. Acreditam que não deveriam passar pelas dificuldades de um grande empenho (como para emagrecer, por exemplo, no caso de obesos, para deixarem drogas ou bebidas, ou para dominarem um conhecimento novo ou uma nova tarefa. A própria adição a alimentos, bebidas ou drogas é a expressão da necessidade de atender ao prazer sem qualquer limite e inclui a crença de que têm direito a tudo). Um grande esforço, uma aplicação de si mesmo numa tarefa é inaceitável, porque tudo deveria ocorrer com facilidade, naturalidade e ale52 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 53 Suad Haddad de Andrade gria. E se não conseguem dessa maneira, sentem-se lesados. Só que a desvantagem que sentem não é acompanhada de uma avaliação ponderada, de uma apreciação válida dos recursos de cada um ; é apenas a afirmação de uma injustiça que é amparada em sentimentos muito hostis. Na verdade estão impossibilitados de preservarem a capacidade de reflexão e de percepção da realidade externa e das próprias condições pessoais. Esses pacientes consideram as pessoas que são bem-sucedidas pessoas privilegiadas, e sempre encontram justificativas para explicar que o outro foi ou está sendo beneficiado de alguma forma. Esta é uma maneira de denegrir a capacidade do outro e o trabalho imenso que cada tarefa bem realizada exige. Se o outro consegue é porque tem facilidades e não porque se empenha e assume as conseqüências de uma escolha. Não conseguem ver que, se existe uma opção, deve corresponder a ela uma energia que possibilitará levar adiante o projetado. No âmbito social, essas pessoas podem infringir princípios éticos, à medida que fazem escolhas, mas não se sentem obrigadas a lutar por elas. É necessário muito esforço para enfrentar as cesuras, os rompimentos; para tolerar as frustrações, tolerar a não-representação até que ela seja possível; para tolerar o sofrimento sem tentar se evadir para um narcisismo empobrecedor. É necessário esforço para agredir e se indignar sempre que isto se faça necessário como forma de preservar valores. É preciso força para suportar agressões, discordâncias, dúvidas; para suportar a atividade mental elaborativa e trabalhosa; para alcançar objetivos; para manter um espírito de luta requer confiança em si e nos objetos externos, incluindo o dar importância a si próprio e aos outros. Há muito esforço no trabalho de luto, na elaboração das perdas. Suportar o conflito edípico e desenvolver a capacidade de aprender da experiência emocional também exigem muito esforço. Fazendo força e nos empenhando é que nos tornamos fortes. O esforçado é vigoroso, animado, confiante – é o próprio Ulisses da epopéia grega. Para estes pacientes que idealizam uma vivência sem empenho vital, o FIGURAÇÕES DA INVEJA – O ÓDIO AO ESFORÇO pensar é uma tarefa difícil, pesada, para a qual eles estão despreparados. Para eles, o pensar fica equacionado a ceder ou enfraquecer, à perda de algo bom; não é para fortificar, para alcançar uma aquisição. Para eles, os conflitos não deveriam existir. Estes pacientes poderiam ser representados pelo outro herói grego: Achiles. Os dois poemas homéricos, Ilíada e Odisséia, são considerados, de certo modo, antagônicos, no sentido do ideal que eles expressam. A Ilíada conta as glórias militares da guerra de Tróia; o ideal, neste canto, é a fama. A Odisséia, o retorno, narra a volta de Ulisses a sua terra. De um lado a busca da glória eterna, de outro a volta ao lar. O helenista Trajano Vieira (1999) mostra como Achiles, que preferiu a glória longa e a vida breve, representa o ideal guerreiro; sua escolha foi viver a vida eterna no panteon dos heróis mortos pela pátria. Ulisses faz a opção inversa: glória breve e vida longa; escolhe envelhecer junto aos seus. Ulisses representa a retomada de consciência, a reeducação em termos humanos. Lutando contra as intempéries e os diferentes obstáculos infringidos pelos deuses, desenvolve seus recursos práticos, sua inteligência e as mais variadas habilidades para poder sobreviver. “Curiosidade, versatilidade, mobilidade são alguns dos atributos desse herói avesso à melancolia, que irá simbolizar o pensamento especulativo no Ocidente.” Enquanto vai amadurecendo sua personalidade, nesse difícil retorno, Ulisses vai tomando consciência de quanto os feitos heróicos da guerra nada mais são que idealizações. Sua descida ao inferno representa o encontro consigo próprio – é a demanda da posição depressiva, como nos mostra bem Rezende (1999). Esse percurso interno é tão penoso e difícil em cada um como a viagem do herói grego. Escolher a glória, como Achiles, é escolher a morte: ela representa a rejeição e a fuga dos sentimentos penosos de perda, ausência e fragilidade. A satisfação plena traz sempre um bem-estar que exclui a possibilidade de avanços. A gratificação não exige a mobilização de novos recursos. É a experiência da falta que nos leva a pensar, recordar, usar da experiência: “A experiência da falta não é um acidente de percurso, mas ela é 54 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 55 Suad Haddad de Andrade constitutiva do ser humano” (REZENDE, 1999). Achiles, intitulado O Divino, só poderia realizar seus desejos de glória e imortalidade com a própria morte. Em termos psíquicos, é a morte da capacidade de pensar que ocorre sempre que a onipotência, a voracidade e a inveja nos afastam do contato com nossa realidade interna. A dificuldade em suportar as frustrações leva ao ódio, ao esforço que é exigido para suportá-las. A mobilização que ocorre sempre que sentimos uma frustração pode nos levar a buscar soluções – é o pensar, como mostra Bion (1966). Ou a pessoa se empenha para suportar as frustrações e consegue alcançar novas soluções que se provarão enriquecedoras, ou ela deixa de fazer o esforço necessário. Estou falando que há uma incapacidade em fazer esforço por comprometimento ou falta de competência para lidar com as exigências da vida; trata-se, portanto, de um movimento inconsciente, ditado pela inveja. A atuação invejosa acarreta dificuldades de contenção e de elaboração do pensamento e pode provocar distúrbios na atividade da função alfa de difícil reversibilidade. O bloqueio na construção da barreira de contato é uma das conseqüências. A barreira de contato, segundo Bion, “delimita o ponto de contato e de separação entre os elementos conscientes e inconscientes, e dá origem à distinção entre eles. Da natureza da barreira de contato depende o intercâmbio de elementos do consciente para o inconsciente e vice versa”. A possibilidade de fazer conexões mentais, de poder associar livremente, de se deixar levar pela imaginação está ligada à crença de que se pode sonhar sem medo de se perder nos sonhos; existe a crença de que não se vai enlouquecer, ou ser lançado no infinito informe e sem limites, de onde não se pode voltar. Esta capacidade de sonhar e de criar um mundo interno rico e sempre em movimento é protegida pela barreira de contato; ela é a garantia de que o inconsciente não vai invadir todo o espaço mental. A proteção da barreira de contato permite o mundo das fantasias, dos sonhos e da criação imaginativa. Quando alguém se esforça, está sonhando que vai conseguir alcançar FIGURAÇÕES DA INVEJA – O ÓDIO AO ESFORÇO seus objetivos; confia em que algo novo vai surgir e luta para realizar seus sonhos. Na análise temos a experiência viva dessa confiança, presente no analista e no paciente. A confiança maior é a de ser capaz de suportar as mudanças catastróficas, sempre muito penosas, mas também essenciais, sempre um passo a frente no processo de desenvolvimento. Quando não confio e não me empenho, o que está basicamente abalada é a capacidade de sonhar. A descrença em si próprio e na importância dos esforços a serem feitos é substituída pela certeza de que nada valioso se vai conseguir. Passa a existir, então, uma crença, a crença de que se sabe o que vai ocorrer; sabese do insucesso, sabe-se da desvantagem do empenho, sabe-se, enfim, de tudo o que virá. Não se vive mais o sonho, vive-se as certezas, senhor que se torna, agora, das “previsões”. Nesta situação não existe a possibilidade de se defender da loucura, porque ela já está instalada através desse processo alucinatório de tudo saber, do presente e do futuro. Por que o empenho é tão difícil? A necessidade do esforço é prova da existência da fragilidade e dos limites. A fantasia de uma condição idealizada de poder e força e, principalmente, de um prazer ininterrupto, que nos protegeria dos sentimentos desagradáveis decorrentes de faltas e frustrações, sempre existe. Se esta criação fantástica predomina ou é muito forte, pode se transformar em uma maneira de se relacionar com o mundo. Nesses pacientes passa a não existir o desejo de desenvolver recursos para enfrentarem-se as dificuldades. A tendência inata, que nos leva para a frente, é a busca permanente de conhecimento; esta tendência natural fica estancada, e todos os aspectos que mobilizam vida e criatividade são desconsiderados ou tomam uma conotação negativa. A realidade de nossa impotência é ao mesmo tempo aceita e negada, como já nos mostrava Freud no seu trabalho sobre o fetichismo (1927). Na distorção infantil, a criança sabe que a mãe não tem pênis, mas cria teorias para negar isso e com astúcia concilia a sua crença à realidade. Então: ela 56 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 57 Suad Haddad de Andrade sabe da verdade, mas faz de conta que não sabe. As perversões seguem esse modelo; para fugir à culpa e à responsabilidade, o perverso não reconhece o seu ódio e seus ataques e considera o que faz natural. A negação de sua dependência em relação ao objeto é acompanhada da negação de sua dependência aos esquemas internos que o mantêm afastado da realidade. Embora todas as experiências, desde o nascimento, sejam experiências de luta para sobreviver, para se desenvolver, para aprender, existe a negação dessa obviedade e a afirmação da possibilidade de viver descuidadamente. E a perversão consiste em se ficar provando a superioridade desse esquema sobre o outro, do esquema da fragilidade e inércia sobre o do empenho que leva para a frente. Quando Meltzer (1991) descreve a idealização das fezes da mãe pelo bebê, em que as nádegas e os seios do bebê e da mãe são confundidos um com o outro, e ambos são equacionados ao seio da mãe, ocorre então uma idealização do reto: “idealização do reto como fonte de alimento e uma identificação projetiva delirante com a mãe interna – o que apaga a diferenciação entre criança e adulto no que se refere às capacidades e prerrogativas”. Nas situações que estou descrevendo, a constatação da incapacidade natural da criança em relação aos pais também é negada; o paciente acredita que pode ter tudo o que ambiciona, pode ter todas as capacidades, direitos e facilidades. A percepção do estrago interno decorrente dessa idealização fica afastada da consciência, e só quando, na análise, tentamos ajudar o paciente a se aproximar desses aspectos nocivos ao seu desenvolvimento é que o caráter violento deste objeto interno pode ser vislumbrado. São as identificações com figuras internas fictícias e fascinantes; identificações com a figura combinada ao mesmo tempo poderosa e ameaçadora. É também uma forma perversa de lidar com a dependência, sejam as dependências infantis presentes no adulto, sejam as dependências próprias da condição humana. O que o ódio ao esforço traz, inevitavelmente, é a falta de firmeza, de decisão, de entusiasmo, de autoconfiança. Essas pessoas são queixosas, insatisfeitas e se sentem vítimas do infortúnio. Reclamam da vida, quase FIGURAÇÕES DA INVEJA – O ÓDIO AO ESFORÇO sempre de uma forma imprecisa, mas podem ter também uma queixa bemestruturada de um objeto ou de vários. A criança que aceita ser criança tem alegria com o crescimento; cada aquisição sua é festejada por ela mesma e exibida aos pais e irmãos. Na sua satisfação consigo própria ela está invariavelmente expondo também sua satisfação com seus pais, os propiciadores de recursos e de amparo. Já a criança invejosa não quer aprender a se cuidar, não quer crescer e fica tiranizando os adultos, que têm que supri-la em tudo. Estas crianças sentem o crescimento como um prejuízo, uma perda. O ter que se responsabilizar por si mesmas traz a angústia de não serem capazes, de se descobrirem sem os recursos necessários para se equipararem aos demais. Uma forma de se protegerem das frustrações que a percepção das desvantagens traz é o estancamento; e passam a cobrar eficiência dos outros, principalmente dos pais, que elas precisam expor ao mundo como maus pais. Na análise, essa situação é muito comum: o paciente não pode se desenvolver, não pode superar dificuldades porque isto seria uma prova do bom trabalho analítico. E o analista seria o único a se beneficiar disto! No adulto, uma forma de fugir ao empenho é o excesso de compromissos; pessoas que têm sempre muitas atividades diferentes e vivem divididas, aceleradas entre as múltiplas tarefas. O não fazer discriminações, o não ter uma escolha precisa do que querem para si é uma forma de encobrir sua grande fragilidade e seu medo do confronto. O temor maior é de se empenharem ao máximo e não conseguirem os melhores resultados, aqueles resultados que os colocariam em destaque. Outro exemplo é o do paciente que tem que dar solução a tantos problemas antes de chegar à análise que não consegue chegar na hora “Não tem importância, são só cinco minutos”. Considera-se muito sério, empenhado, mas foge do esforço necessário que é o de lidar com o que realmente importa: o sentir-se sufocado pela análise, para a qual transfere as pressões e as exigências internas. A capacidade de desenvolver recursos para lidar com seus entraves internos passa a ser vivida como dificuldade para chegar à análise – então chegar na hora ou “só com cinco minutos de atra58 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Situação clínica O material que estou transcrevendo para ilustrar estas idéias é de uma colega, que permitiu, gentilmente, que eu o utilizasse. A paciente é uma jovem estudante universitária; em virtude dos estudos mora fora de casa, em uma cidade próxima; retorna todos os fins de semana para a casa dos pais. Na sessão relatada ela traz uma fala queixosa, quase desesperada . Sente-se perdida, pedindo à analista que encontre uma solução para suas dificuldades, que são inúmeras: está muito gorda e não consegue perder peso; o irmão e a mãe reclamam que ela passa o fim de semana em casa trabalhando no computador e não se preocupa com os gastos de papel e tinta. Ela alega que sai sempre triste de casa e não tem como se preocupar com as queixas que fazem dela; na verdade fica muito decepcionada com o fato de eles não reconhecerem sua tristeza e desamparo. Sempre traz o namorado para casa nos fins de semana e não entende por que eles reclamam ou por que se sentem constrangidos com o fato de ele dormir em seu quarto. Ela precisa de mais dinheiro do pai (que não mora com a família), e ele tem que entender suas necessidades. A paciente vai fazendo suas queixas enquanto vai argumentando, muito chorosa, que não sabe o que fazer. Para cada acusação dos familiares ela reage afirmanSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 59 Suad Haddad de Andrade so” se torna a solução mágica para suas dificuldades internas. E basta falar do problema, basta discorrermos sobre isto e tudo estará solucionado: nada se perdeu, nada mais existe de importante com que se preocupar. Outra reação comum é aquela que ocorre quando mostramos a dificuldade do paciente em se interessar e se empenhar no trabalho analítico, ao que ele reage dizendo que sua presença já é prova de interesse. Basta ter enfrentado o trânsito, estar aplicando tanto dinheiro na análise, chegar no horário todos os dias já são provas suficientes. Esses esforços são realmente feitos, mas servem mais para impedir do que para buscar a verdade interna, à medida que o cuidar é concreto e diz respeito apenas ao setting externo. FIGURAÇÕES DA INVEJA – O ÓDIO AO ESFORÇO do que faz o máximo que pode e que são eles os intolerantes e incompreensivos. Ela narra um sonho em que o namorado mostrava que a amava muito e a paparicava; era muito carinhoso, mas no momento seguinte não queria mais saber dela; era uma situação horrível. A analista se sente desconcertada, sem saber o que dizer, e seu desconforto dura toda a sessão. Inicialmente se comove com o choro e a tristeza da paciente, mas aos poucos vai ficando irritada e acaba tendo uma fala superegóica, em que cobra da paciente mais maturidade e responsabilidades. Em seguida, a analista percebe a inadequação de sua intervenção e se sente ainda mais impotente e constrangida. A paciente termina a sessão triunfante: “Sabe, realmente mudou tudo de repente, como é possível? Eu pensei agora: minha mãe, meu pai, meu irmão são como são, têm coisas boas e têm coisas ruins; não são eles que têm que mudar, sou eu que tenho que aceitá-los como são, nos momentos bons, nos momentos ruins. Isto tudo veio na minha cabeça. Não foi ruim a sessão, foi bom”. Com esse final inesperado a analista ficou ainda mais angustiada. Era esse o objetivo principal da paciente nessa sessão: tornar a analista incompetente e triunfar sobre ela. Ao provar sua independência em relação à analista e às outras pessoas de seu ambiente, ela realiza seu triunfo narcísico. O vínculo se reverte no final da sessão, quando é a paciente que tranqüiliza a analista ao lhe dizer: “não foi ruim a sessão, foi bom”. É a paciente que alimenta a analista, tornada fraca e desamparada. Nesse trabalho de reversão, a paciente fez bem a sua parte: inundou a analista com suas descargas de queixas e rancores, deixou também para ela o confronto com seus aspectos críticos e superegóicos. Ficar no relato queixoso das dificuldades transcritas é, na sua versão, o máximo que ela pode ou deve fazer. Seu final de sessão registra a eficiência de suas manobras e a vantagem e utilidade de não ter que elaborar ou viver suas dificuldades. O confronto com sua realidade interna-externa que a situação analítica poderia 60 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 61 Suad Haddad de Andrade propiciar foi anulado; a paciente criou uma situação típica, perversa, em que ficou protegida de examinar e enfrentar suas deformações. A distorção que ela faz no final da sessão é característica das soluções “astutas” denunciadas por Freud: “Eles têm coisas boas e ruins; não são eles que têm que mudar, sou eu que tenho que aceitá-los como são”. A analista ficou danificada: não pôde fazer a parceria interna frutífera com seus conhecimentos psicanalíticos e não pôde instrumentar a identificação projetiva. A eficiência do ataque invejoso da paciente visava exatamente a isso: impedir uma relação prazerosa e produtiva da analista com seus recursos psicanalíticos. O final da sessão, com a negação e o triunfo da paciente sobre a analista, revela o aspecto sadomasoquista presente nas suas relações, tanto nas que ela relata na sessão como a relação com seus objetos internos; é o predomínio da negação e dos aspectos destrutivos e hostis da personalidade. A paciente acha mesmo que os outros têm que cuidar do seu computador, de suas finanças e de seu conforto sexual e material. Ela se sente com todo o direito de não ser molestada, e de fato não o é; permanece na sua onipotência e na sua infertilidade. Até mesmo a perda de peso não expressa uma preocupação com sua incapacidade de emagrecer, mas é, antes, uma queixa, como se ela fosse vítima da condição de estar gorda. O sonho da paciente expressa bem sua maneira de se instalar no mundo: o outro é sempre o responsável pelo seu conforto ou desconforto. Na verdade, o namorado do sonho é a parte dela que ora se mobiliza para atender suas necessidades, ora se nega a assumir responsabilidades. Não ocorre à paciente que seu bem-estar depende dela mesma. Permanece, o mais das vezes, numa passividade hostil que encobre uma intensa atividade interior extremamente destrutiva, da qual ela é a mais importante vítima. Faz “vista grossa”, na expressão de Steiner, à sua realidade interior pobre e dependente e vive dentro de uma situação circular sadomasoquista, em que, ao anular a analista, anula também sua possibilidade de desenvolvimento. Essas situações de triunfo, superioridade e descaso para com o perma- FIGURAÇÕES DA INVEJA – O ÓDIO AO ESFORÇO nente esforço que a sobrevivência psíquica exige mostram a distorção típica das perversões; o desprezo ao crescimento, imperativo inexorável do instinto de vida, e a valorização da permanência e da inércia próprias do instinto de morte. Sinopse A autora intitula ódio ao esforço à dificuldade de se desenvolver empenho em atividade importante, seja ela física ou psíquica. Considera essa dificuldade como uma defesa perversa ligada diretamente à emergência da inveja. Ela acarreta a negação de aspectos da realidade externa e interna. Não é o objeto real que é invejado, mas o objeto idealizado, dotado de extraordinários recursos e que ao ser reintrojetado mantém dentro do self um objeto interno com características extremamente onipotentes. Sua principal característica é não ter que fazer qualquer esforço para conquistar o que deseja: tudo pode e deve ser fácil e tranqüilo. Qualquer esforço é odiado e desprezado. Essa incapacidade de se empenhar acarreta inevitavelmente falta de firmeza, de decisão, de entusiasmo e de autoconfiança. São pessoas queixosas e insatisfeitas que se sentem lesadas diante de qualquer dificuldade. Summary Configurations of Envy – the Hate to the Effort The author defines hate towards the effort as the difficulty of committing to an important activity, either physical or psychic. She considers this difficulty as a perverse defense directly linked to the envy emergence. It brings about the denial of aspects of the external and internal reality. It is not the real object that is envied, but the idealized object, endowed with extraordinary resources and that, when it is re-introjected, keeps within the self an internal object with extremely omnipotent characteristics. Its main characteristic is that no effort is required to conquer what one desires: everything can and must be easy and peaceful. Any effort is hated and despised. This incapacity of committing to anything inexorably brings about lack of self-confidence and enthusiasm, decision, and determination. These people are plaintive and unsatisfied, feeling injured before any difficulty. 62 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Figuraciones de la Envidia – el Odio al Esfuerzo La autora intitula odio al esfuerzo a la dificultad de desarrollarse empeño en actividad importante, sea ella física o psíquica. Considera esta dificultad como una defensa perversa relacionada directamente a la emergencia de la envidia. Ella acarrea la negación de aspectos de la realidad externa e interna. No se envidia al objeto real y sí al objeto idealizado, dotado de extraordinarios recursos y que al ser reintroyectado mantiene dentro del self un objeto interno con características extremadamente omnipotentes. Su principal característica es no tener que hacer cualquier esfuerzo para conquistar lo que desea: todo puede y debe ser fácil y tranquilo. Se odia y desprecia cualquier esfuerzo. Esta incapacidad de empeñarse acarrea inevitablemente falta de firmeza, de decisión, de entusiasmo y de autoconfianza. Son personas quejosas e insatisfechas que se sienten perjudicadas delante de cualquier dificultad. Palavras-chave Perversão; Inveja; Cisão do ego; Objeto interno; Idealização. Key-words Perversion; Envy; Splitting of the ego; Internal object; Idealization. Palabras-llave Perversión; Envidia; Clivaje del yo; Objeto interno; Idealización. Referências BION, W.R. (1966). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. FREUD, S. (1927). O fetichismo. In: ______. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 21. KLEIN, M. (1991). Inveja e gratidão: e outros trabalhos, 1946-1963. Rio de Janeiro: Imago, 1991. MELTZER, D. (1991). A masturbação anal e sua relação com a identificação projetiva. In: SPILLIUS, E. B. Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e da técnica: artigos predominantemente teóricos. Rio de Janeiro: Imago, 1991. v.1. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 63 Suad Haddad de Andrade Sinopsis FIGURAÇÕES DA INVEJA – O ÓDIO AO ESFORÇO REZENDE, A.M. (1999). Ser e não ser sob o vértice de O. Taubaté. São Paulo: Cabral E.U., 1999. STEINER, J. (1997). Refúgios psíquicos. Rio de Janeiro: Imago, 1997. VIEIRA, T. (1999). A identidade de Ulissses. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 abr. 1999. Caderno Mais. Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Dra. Suad Haddad de Andrade Av. Presidente Vargas, 2001 – Conj. 128 14020-260 – Ribeirão Preto – SP – Brasil Fone/fax: (55) 166353289 / (55) 166230842 E-mail: [email protected] 64 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Antonino Ferro Membro Titular da Sociedade Psicanalítica Italiana. Os conceitos de associações livres e de rêverie podem ser repensados fazendo-se referência a um modelo da mente inspirado em Bion (1962, 1963, 1965) e em alguns desenvolvimentos de seu pensamento (Ferro 1998, 1999a, 2002a, 2002b). Podemos considerar as associações livres como a forma mais adequada para entrar em contato com o pensamento onírico de vigília, sempre operante dentro de cada mente: por parte do paciente, é a forma de permitir que “os derivados narrativos” (Ferro, 1999b; 2001) tenham o menor grau possível de deformação; por parte do analista, é a maneira de se sintonizar com os derivados narrativos de seu pensa- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 65 Antonino Ferro Associações Livres e Pensamento Onírico de Vigília ASSOCIAÇÕES LIVRES E PENSAMENTO ONÍRICO DE VIGÍLIA mento onírico. Considero as rêveries como um daqueles momentos felizes nos quais há o acesso direto à imagem, sem nenhuma mediação (Ferro, 2000). Ao longo do meu texto farei referência sempre ao aspecto visual, tanto no que se refere à seqüência de elementos alfa, quanto ao que se refere aos seus derivados narrativos, assim como para as rêveries. Mas o mesmo poderia ser dito, levando-se em consideração todos os outros vértices de formação dos elementos alfa: acústicos, olfativos, gustativos, sinestésicos e táteis (Bion, 1962, Di Benedetto, 2000). Dentre as várias formas possíveis de nos aproximarmos deste tema, prefiro propor uma reflexão sobre as contínuas sinalizações que os pacientes nos fornecem para que possamos encontrar o caminho mais adequado para alcançá-los. A formulação interpretativa, suas diferentes formas e o grau de exaustividade não podem derivar do nosso “casamento” com uma teoria forte de interpretação, e sim de uma capacidade cada vez mais afiada de captar as respostas, o colorido emocional que o paciente introduz no campo após as nossas intervenções (Nissim Momigliano, 2000). A “escuta da escuta” (Faimberg, 1996) não deve somente nos fazer refletir sobre como funcionou a mente do paciente após o nosso “estímulo” interpretativo, mas também nos fazer refletir sobre como nós funcionamos e como podemos funcionar “aquele dia, com aquele paciente” para favorecer um número cada vez maior de transformações possíveis. Este modo de interagir de forma “flexível” com o paciente tem, por trás, uma teoria forte, que é uma expansão das reflexões de Bion referentes ao funcionamento onírico da mente também no estado de vigília. A mesma comunicação de um paciente: “Quando eu era criança, meu pai nunca me dava a mão, pretendia somente que eu fosse bem na escola e, se isso não acontecia, eram aulas particulares que não acabavam mais e, às vezes, tapas” pode ser vista, dependendo do modelo predominante do analista, como uma cena da infância que ajuda a reconstruir o romance familiar, como uma fantasia inconsciente persecutória em relação a um objeto 66 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 1. A palavra studio, em italiano, tem duplo significado: estudo e consultório. (N. do T.) Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 67 Antonino Ferro interno frio e prepotente (que na ocasião poderia, também, ser “projetado” no analista e, desta forma, interpretado) ou então como a descrição pontual do que está acontecendo na sala de análise naquele momento a partir do vértice do paciente. Em uma ótica essencialmente relacional, isto poderia ser explicitamente interpretado como referente ao aqui e agora, o que achataria a cena analítica, a “esticaria” num plano atual, tornando-a bidimensional, num eixo horizontal, tirando-lhe a profundidade referente ao eixo vertical da história (Di Chiara, 2001). Segundo minha maneira atual de pensar, eu, sem dúvida, consideraria esta comunicação como atinente ao aqui e agora, e como decorrente do sonho de vigília que o paciente está fazendo naquele instante relacional (Ferro, 2001). Mas eu me colocaria uma série de perguntas: – Como posso intervir, para operar uma transformação, de tal forma que eu não seja mais visto como um pai pouco afetivo, que olha somente para os resultados, sem dar uma trégua? – Como posso modificar minha maneira de interpretar, de me colocar e, também, o meu eixo interno para que esta transformação comece a se “dar”? – De onde provém a percepção que o paciente tem de mim? Provém da “história” do paciente e pode implicar um “assumir o papel” de minha parte, provém das suas identificações projetivas, provém de um enactment, provém, de qualquer forma, de uma maneira minha de ser ou de me colocar com ele. Isto posto, optarei por uma interpretação que será na aparência “reconstrutiva” ou centrada “na fantasia inconsciente”, ou “na relação”, ou então simplesmente “enzimática”, prestando a máxima atenção à “resposta” do paciente que virá em seguida à minha intervenção. Digamos que eu fale: “Ter perto um pai assim não é certamente algo que favoreça amar o ‘estudo’1, aliás coloca em um estado de constante preocupação”. É obvio que eu estou “colocando na mesa” uma interpreta- ASSOCIAÇÕES LIVRES E PENSAMENTO ONÍRICO DE VIGÍLIA ção transferencial: “se eu fico ao seu lado desta forma, com certeza não facilito o trabalho neste consultório”. O paciente poderia responder: “Ontem fui a uma exposição de fotografias mas achei que todas as fotografias estavam pouco nítidas”, e eu não poderia deixar de pensar que na minha interpretação faltou “incisividade”, e eu deveria, então, me preocupar em ter uma maior “nitidez”. Se, ao contrário, o paciente dissesse: “Ontem estive na casa da minha tia, onde come-se muito bem, mas sempre em demasia, e é necessário um dia inteiro para fazer a digestão”, então eu deveria deduzir que aquela formulação, que do meu ponto de vista era suficientemente leve e não saturada, para o paciente constituía algo ainda “muito pesado”. Como alternativa, eu poderia considerar útil – em um momento diferente da análise – uma explicitação “forte” de transferência, do tipo: “Você me sentiu pouco afetivo, mais interessado nos progressos de sua análise do que em você mesmo, e que não o deixo em paz até que realize estes progressos”. Aqui também o paciente poderia ter respondido das mais diferentes formas, desde: “Mas era bom quando eu percebia que meu pai me entendia”, até: “Vi na televisão uma reportagem de como é feito o foie-gras; enfiam comida goela abaixo, através de uma espécie de funil, naqueles coitados dos patos até que o fígado deles fica enorme”. O que eu quero dizer é que, quando estas sinalizações são acolhidas, permitem progressivos ajustes. Naturalmente, desde a primeira formulação do paciente, seriam possíveis dezenas de diferentes intervenções por parte do analista, desde: “Podemos compreender agora uma das raízes da sua inibição ao estudo”, até: “Bem, certamente hoje você prefere estudar com o colega que nunca o apressa e respeita seus horários”. Portanto, infinitos os percursos possíveis e infinitos os “mundos” que podem se abrir. Entretanto, por trás de qualquer escolha interpretativa, está subentendido um modelo de fator de cura, “tirar o véu do recalcamento”, “captar o 68 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 69 Antonino Ferro ponto de emergência da angústia”, descrever “os fantasmas originários” e, no meu caso, desenvolver a capacidade de pensar do paciente, no sentido de desenvolver aqueles instrumentos mentais que servem para produzir processos de pensamento e de formação de emoções a partir de estímulos sensoriais de qualquer tipo. Preciso usar um jargão – inspirado em Bion – que me leva a dizer que o objetivo de uma análise é o desenvolvimento da função alfa do paciente e, portanto, da capacidade de produzir elementos alfa; o desenvolvimento de e, portanto, da possibilidade de tecer pensamentos e emoções; o desenvolvimento da oscilação PS↔D e, portanto, daquela originalidade criativa e do luto; o desenvolvimento da oscilação entre capacidade negativa ↔ fato selecionado e, portanto, da espera que um sentido se realize e da renuncia a todos os outros sentidos possíveis em favor de um escolhido. Se retornássemos aos exemplos citados, poderíamos imaginar que a primeira formulação do paciente: “Quando eu era criança, meu pai nunca me dava a mão, pretendia somente que eu fosse bem na escola e, se isso não acontecia, eram aulas particulares que não acabavam mais e, às vezes, tapas” pode ser pensada como um dos derivados narrativos (Ferro, 2001; 2002a; 2000b) (entre os vários possíveis) de uma seqüência de elementos alfa que poderíamos imaginar pictografada desta forma: criança no bosque ---- condenado a trabalhos forçados ---- cachorro espancado. O importante é considerar que a formação dos pictogramas emocionais é contínua (e forma o pensamento onírico de vigília) e que os “derivados narrativos” podem ser os mais diversos possíveis, com o único requisito de que sejam compatíveis com a seqüência de elementos alfa. Por exemplo, o mesmo “clima” emocional poderia ser trazido por um paciente que tivesse começado a sessão dizendo: “Ontem vi na televisão aquele filme no qual havia um terrível capitão de navio que tratava muito mal todos os marinheiros, infligindo-lhes contínuas punições”; ou então: “Fazer amor com Martina é extenuante porque não circula nenhum afeto, ela fica toda tomada em alcançar o próprio prazer e nada mais lhe interessa”. De tudo isso derivam duas conseqüências, a meu ver, importantes: ASSOCIAÇÕES LIVRES E PENSAMENTO ONÍRICO DE VIGÍLIA que “as associações livres” são, na realidade, “associações obrigadas”, no sentido que derivam, instante após instante, dos fotogramas visuais (ou pictogramas emocionais) que a função alfa gera continuamente, dando vida ao “pensamento onírico da vigília”, e que, por outro lado, são absolutamente livres no que se refere “ao gênero narrativo escolhido”, que pode ir “pescar” em uma infinidade de gêneros expressivos (filmes, lembranças de infância, pequenos fatos, diário íntimo, etc.). Os “gêneros literários” são, portanto, infinitos; obrigatória é a coerência entre cada um deles e a seqüência de elementos alfa do pensamento onírico da vigília que pode ser expressa através desses diferentes gêneros. Também o sonho narrado na sessão pode ser – quase paradoxalmente – considerado como um “derivado narrativo” (uma livre associação obrigada) em relação ao momento no qual o sonho é narrado: isto é, como algo que dá expressividade ao pensamento onírico de vigília que se formou naquele momento. Merece um aprofundamento a comparação entre seqüências de elementos alfa e o conceito de travail de la figurabilité de C. e S. Botella (2001), proposto como meio de acesso do analista às “memórias sem lembrança” e como forma de revelar o “negativo do trauma”, isto é, o aspecto não representável de todo trauma infantil. Um analista faz uma interpretação refinada e complexa, o paciente responde dizendo que lembrou de um sonho: estava na escola, e a professora escrevia fórmulas no quadro-negro desenhando figuras que reproduziam algumas murrine2. Ele não entendia, então queria quebrá-las, cheio de raiva. Este sonho é, justamente, algo que permite dar expressão às emoções do paciente no momento no qual ele o conta, é portanto escolhido como derivado narrativo da sua seqüência alfa. Valor semelhante teria uma comunicação do tipo: “Ontem ouvi uma televisão árabe, sem entender uma só palavra”, ou então: “Lembro que, quando era criança, nunca conseguia entender as explicações do professor e ficava muito bravo”. 2. Murrine – preciosas jóias em cristal fabricadas em Murano (Veneza), com desenhos policromados. (N. do T.) 70 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 71 Antonino Ferro Merece uma reflexão também a profunda diferença entre o sonho que é narrado espontaneamente e aquele que é narrado a pedido do analista (prática esta com certeza não correta, mas bastante freqüente: o analista, que em um momento de cansaço, de silêncio, pergunta “Você teve algum sonho?”). No primeiro caso, o sonho tem um duplo ou triplo valor, isto é: o valor de testemunhar uma disponibilidade num nível mais profundo de comunicação; o valor da elaboração que foi realizada no sonho; e o valor de ser, também, um derivado narrativo do pensamento onírico de vigília daquele momento e, portanto, permitir uma avaliação, em tomada direta, do campo emocional atual. A certa altura de uma sessão (a última da semana), Rossella relata que recebeu, à noite, um estranho telefonema: alguém que dizia ser um antigo namorado e que lhe perguntava, também, quanto ela calçava; depois relata ter tido um sonho: havia alguém para o qual o seu cachorro não latia, e ela, aliás, continuava dormindo; essa pessoa desmontava a maçaneta de uma porta-janela e, assim, penetrava na casa; depois ela está deitada com esse “desconhecido na cama”... Tinha muito medo. O sonho acontece num momento no qual Rossella tinha iniciado a análise, mas “cara a cara”, não tendo ainda aceitado deitar-se no divã, “porque precisava olhar e permanecer atenta” (pouco valeram as interpretações sobre isto). Próximo ao fim da semana, ela se encontra perdida pelo novo clima emocional que vive: telefonemas inesperados, um interesse que teme possa ser mórbido (ou é o príncipe encantando?). Ela não está mais tão vigilante (o cachorro dorme), alguém desmonta suas defesas, e ela se encontra com uma intimidade não prevista que a assusta, e com a idéia da cama (analítica) que se aproxima. Isso tudo descreve tanto a elaboração do “tema” quanto a atualidade do clima relacional: o sonho é também um derivado narrativo do pensamento onírico de vigília, isto é, em outra linguagem, o sonho é também uma associação livre em relação ao “pensamento onírico de vigília ao qual permite dar expressão”. Na segunda-feira seguinte, ao contrário, nossa conversa é muito difí- ASSOCIAÇÕES LIVRES E PENSAMENTO ONÍRICO DE VIGÍLIA cil, longos silêncios, tentativas minhas de interpretar o longo distanciamento, sem que Rossella dê ganchos, aliás ostentando somente modalidades de oposição. Neste ponto pergunto-lhe – para retomar um diálogo – se teve algum sonho; é como dizer: “Você quer, ou não, retomar a comunicação comigo?”. Rossella responde que sim e conta: estava se separando do namorado depois de um certo tempo juntos; entrava em casa e o pai via televisão, depois saía com a intenção – talvez – de um gesto autodestrutivo, voltava para casa porque esquecera algo, mas nesse momento a mãe retornava, indo para a cozinha com as compras e era carinhosa com ela. Acrescenta que o sonho não lhe traz nada à mente; Eu poderia interpretá-lo pelo menos em relação a alguns significados que me parecem evidentes (a separação, o sentimento de desespero experimentado, o reencontro), mas me parece uma leitura intrusiva e decodificatória, uma operação “fria”, feita sobre o relato do sonho e não sobre o sonho espontâneo e quente. Fico aguardando até que Rossella, após ter olhado à sua volta, pergunta: “Foi o senhor que pintou este quarto? Está cheio de borrões, como se quem o pintou estivesse com pressa”. (Eis aqui a associação “quente” ao sonho; associação que é, por sua vez, um derivado narrativo do pensamento onírico da vigília.). Pergunto-lhe se achou que eu fui pouco profissional e atrapalhado, especialmente impaciente, ao ter sido “eu” a lhe perguntar se havia sonhado, a que responde que sim, e acrescenta que está se lembrando agora de um outro sonho: encontrava uma pessoa que tinha um cachorro, com a qual falava do próprio cão labrador e das complicações que tinha tido ao decidir cuidar dele: a cadelinha tinha sido abandonada, tinha apanhado, fôra maltratada e, portanto, não confiava mais em ninguém, era impossível chegar perto dela. Ela tinha tido muito trabalho para conseguir trazê-la para casa e fazer com que, aos poucos, pudesse confiar. Digo-lhe que me lembra a situação do filme “Dança com lobos”, de todo o tempo e cuidado que o soldado tinha tido para conseguir fazer com que o lobo, que apareceu perto da sua casa, pudesse ter confiança, até à cena comovente na qual come a comida que ele lhe oferece, finalmente 72 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 A cadeira de rodas de Stefano: associações livres e rêverie Com Stefano, um jovem e bem-dotado advogado, um leve atraso de minha parte em responder ao interfone e em abrir o portãozinho que dá acesso ao meu consultório leva a uma sessão muito intensa, na qual Stefano “descobre” os afetos de profunda ternura e preocupação que, quando era pequeno, sentia pelo seu pai: os mesmos que sentiu no breve, mas significativo, intervalo entre o seu tocar a campainha e o meu abrir a porta. Falamos, no final da sessão, da capacidade de Stefano de se vincular muito às pessoas, mesmo em breve tempo, como está acontecendo ali comigo. Uma imagem final é aquela da utilidade de um guindaste no prédio onde está o meu consultório, e de como pelo menos um elevador seria útil caso alguém “tivesse uma perna quebrada ou a necessidade de uma cadeira de rodas”. Mesmo sendo um clima emocional bom, com Stefano emocionado e descobrindo sentimentos de afeto que sente em relação a mim, a imagem que se forma em minha mente, em relação à “cadeira de rodas”, é aquela de Tony Perkins no filme Psycho. Naturalmente só posso manter comigo essa imagem porque não tenho nenhum gancho narrativo, ainda que seja um personagem que já surgiu em outras sessões. Antes da sessão do dia seguinte me pergunto o que fazer com Stefano, em relação à mudança “lira-euro” e se arredondo o câmbio a meu favor, visto que já faz um certo tempo que não faço aumento de honorários. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 73 Antonino Ferro sem medo ou desconfiança. Rossella prossegue dizendo: “E não é preciso nem dizer quem é a cadelinha abandonada, maltratada, e que aos poucos está aprendendo a confiar”. Enquanto o primeiro sonho, “extraído”, remete, sim, ao trabalho onírico e abre em direção a uma retomada da comunicação, o segundo, “espontâneo”, testemunha também os novos elementos alfa do pensamento onírico de vigília que estão se formando e cuja produção continua nos derivados que são a minha “associação-interpretação” e a resposta da paciente. ASSOCIAÇÕES LIVRES E PENSAMENTO ONÍRICO DE VIGÍLIA Na sessão seguinte, Stefano inicia dizendo que dormiu muito pouco, tendo ficado acordado até tarde: teve que atender, como advogado criminalista, o jovem que tinha, justamente naquele dia, matado uma prostituta negra por questões de dinheiro; acrescenta que o juiz havia permitido que voltasse para casa, não havendo nem o risco da fuga nem o de poluição das provas: era uma pessoa normal, casada há três anos, com um filho, e que tinha agido em um estado de “embriaguêz patológica”. Stefano alonga-se muito no relato deste “caso” que o deixou pensativo, pelo medo de que, mais do que machucar alguém, ele pudesse machucar a si mesmo pela culpa, talvez envolvendo também seus familiares. Imediata é, para mim, a ligação com a minha rêverie do dia anterior relativa à cena da cadeira de rodas do filme. Nesse meio tempo, Stefano acrescenta que, “quando era pequeno, tinha quebrado o braço da professora”, e que uma “análise profunda” do caso lhe parecia inevitável. Eu pergunto a mim mesmo como avançar. Não posso com certeza dizer-lhe: “O senhor está me falando de uma parte de si mesmo que...”. Isto corresponderia àquelas interpretações que Guignard (1999) chamou de interpretations-buchon, cujo efeito é aquele de saturar o sentido e impedir outros desenvolvimentos narrativos. Decido então enfrentar o problema “pelas bordas” e digo: “Estou me lembrando do livro de Perec, A vida: instruções de uso, no qual, em um condomínio, moram muitas pessoas diferentes e que, no fundo, somente em dois dias nós estamos passando do mundo dos afetos mais tenros e intensos àquele de quem perde a cabeça e mata”. Stefano responde dizendo que conhece “o livro”. Eu continuo dizendo que é verdade aquilo que nós dizíamos algum tempo atrás, de que a alma humana é uma harpa com “n” cordas. “Sim, e não como aquela dos romanos”, responde, “que tinha somente duas ou três cordas; a propósito, como se chamava?”. “Lira”, respondo e, nesse ponto, sinto-me autorizado a prosseguir: “Entre as cordas podemos encontrar a do afeto e a da ternura em relação a mim, como aconteceu 74 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Na situação analítica, os diversos elementos sobre os quais opera o pensamento (pensamentos, emoções, fantasias) correspondem a um “Campo” comum. Como conseqüência disso, a transformação referese contemporaneamente a todos os elementos: quando um se modifica, modifica-se todo o conjunto. Uma imagem que dá conta da globalidade da transformação com a qual opera o pensamento de grupo é aquela do “berço de barbante”. A brincadeira do “berço de barbante” é praticada com um barbante Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 75 Antonino Ferro ontem, mas também a que soa dizendo ‘filho da puta, eu mato você por tudo aquilo que você me custa’ ” e sentado na “cadeira de rodas, podemos fazer subir no guindaste Tony Perkins com sua ira”. “Eu pensava que me conhecia”, diz após um breve silêncio, “mas nunca teria imaginado estas coisas de mim; mas é bom acrescentar também estas ruas à nossa cidade” (retomando uma metáfora nossa). Esta última situação clínica permite refletir a respeito de todo o arco das possibilidades em relação à forma pela qual as mentes do analista e do paciente podem entrar em contato com o “pensamento onírico de vigília” do campo: há uma cisão que tende a se recompor. De um lado e de outro temos os “derivados narrativos” do analista e paciente, e do outro também a rêverie do analista (que testemunha um contato sem mediações com o pensamento onírico) e que tem que encontrar um tecido narrativo para poder ser traduzida em palavras e compartilhada. O equivalente da rêverie do analista poderia ser uma rêverie do paciente (“não sei por que, mas surgiu na minha mente a imagem de...”) ou, em casos mais raros, a projeção ao externo de um fotograma do pensamento onírico de vigília, através da formação de um flash visual (“Vejo na parede em frente...”) que testemunharia um adequado funcionamento da função alfa e, ao mesmo tempo, uma falha da capacidade da contenção das imagens (seria como um primeiro degrau em relação às possíveis transformações em alucinose). A capacidade narrativa de ambas as mentes encontra uma forma sem cesuras de integrar “narrativamente” a cisão, como no belíssimo exemplo de Neri (2000) do jogo do “berço de barbante”, que merece ser descrito por extenso: ASSOCIAÇÕES LIVRES E PENSAMENTO ONÍRICO DE VIGÍLIA de aproximadamente cinqüenta centímetros cujas pontas foram amarradas. O primeiro jogador entrelaça o barbante entre os dedos das duas mãos, compondo uma primeira figuração. O segundo jogador (geralmente se joga com dois jogadores, mas podem ser também mais de dois) utiliza o mesmo barbante, recuperando-o do anterior e, segundo a maneira como ele faz isso, trará modificação à figuração que lhe é passada. A partir do que foi dito, deriva um conjunto de reflexões a respeito das associações livres. Estas não seriam assim tão livres como poderia parecer num primeiro momento. No meu dialeto, portanto, considero as associações livres do paciente como derivados narrativos de seu pensamento onírico de vigília, com diferentes gradientes de transformações e camuflagem dos mesmos. Uma jovem e bem dotada analista faz uma interpretação complexa a uma paciente. Esta “responde” à interpretação dizendo que, na noite anterior, havia pensado em ir a uma pizzaria com os amigos; estes, ao contrário, haviam insistido para ir a um restaurante de luxo onde, inclusive, serviam porções que a assustavam; depois tinha ficado desorientada na hora de pagar a conta. Na mesma sessão, em outro momento, a analista recolhe, antes resumindo aquilo que a paciente havia dito, depois colhendo a emoção dominante na comunicação e, finalmente, propondo-a na transferência. A paciente “responde” falando a respeito de um tio que havia chorado ao voltar para casa após um longo período de ausência. Em outro momento da sessão, a paciente diz que sente que o namorado só a considera quando ele “a vê e lhe telefona”. Estes breves trechos de sessão permitem sublinhar o fato de que é somente o paciente – quando pode ser ouvido – que nos fala continuamente como devemos falar com ele para alcançá-lo. No primeiro caso, quando a paciente, após a interpretação do analista – e não foi por acaso que eu chamei isto de “resposta” – fala de como a sua expectativa de um alimento simples, compartilhado com os amigos (a pizza), tinha sido frustrada e de como tinha sentido a interpretação “excessiva” e por demais complexa, ficando atrapalhada. A interpretação não foi, neste caso, um fa76 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sinopse O autor, inspirando-se nos conceitos sobre o funcionamento mental postulados por Bion, considera as associações livres como um “derivado narrativo” do pensamento onírico de vigília e as rêveries como um acesso direto às imagens deste pensamento onírico. O material clínico é utilizado para colocar em evidência como tais “derivados narrativos” podem ser utilizados pelo analista como sinalizações que continuamente o paciente fornece sobre o próprio funcionamento mental no interior do campo analítico, sinalizações que permitem ao analista modular sua atividade interpretativa de forma que esta seja fator de transformação, e não de perseguição. Summary Free Association and the Oneiric Thought of Vigil The author, inspired by the concepts on mental functioning postulated by Bion, considers the free associations as a “narrative derivative” of the paradoxical sleep thought in vigil and the reveries as a direct access to the images of this paradoxical sleep thought. The clinical material is used to evidence how such “narrative derivatives” can be used by the analyst as signals, which are continuously provided by the patient, about his own mental functioning in the inside of the analytical field; signals that allow the analyst modulating his interpretative activity in order to make it a factor of transformation instead of a persecution one. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 77 Antonino Ferro tor de crescimento ou de transformação. No segundo caso, ao contrário, a “resposta” à interpretação exprime o sentimento de encontrar-se novamente em casa, sendo compreendida e ouvida. O terceiro exemplo nos fala o que, por enquanto, deve “passar” através da interpretação, “o ser visto e o ser alcançado”. Para concluir, creio que o trabalho no cotidiano, através das transformações narrativas (Corrao, 1991) que pela sua própria natureza são instáveis e reversíveis, permite não somente expandir os conteúdos pensáveis (desenvolvimento de conteúdo), mas enriquece os próprios instrumentos do pensar (desenvolvimento de continente) e permite também a progressiva evolução das microtransformações do aqui e agora em transformações estáveis e irreversíveis do mundo interno (transformações dos objetos internos) e na re-escrita da História (romance familiar) ASSOCIAÇÕES LIVRES E PENSAMENTO ONÍRICO DE VIGÍLIA Sinopsis Asociaciones Libres y Pensamiento Onirico de Vigilia El autor, inspirándose en los conceptos sobre el funcionamiento mental postulados por Bion, considera las asociaciones libres como un “derivado narrativo” del pensamiento onírico de vigilia y las reveries como un acceso directo a las imágenes de este pensamiento onírico.El material clínico se utiliza para colocar en evidencia cómo tales “derivados narrativos” pueden ser utilizados por el analista como señalizaciones que continuamente el paciente da sobre el propio funcionamiento mental en el interior del campo analítico, señalizaciones que permiten al analista modular su actividad interpretativa de forma que esta sea factor de transformación y no de persecución. Palavras-chave Pensamento onírico; Sonho; Associação livre; Interpretação; Revêrie. Key-words Oneiric thought; Dream; Free associaiton; Interpretation; Revêrie. Palabras-llave Pensamiento onirico; Sueño; Asociación libre; Interpretación; Revêrie. Referências CORRAO, F. (1991). Trasformazioni narrative. In: Orme. Milano: R. Cortina, 1998. BION, W.R. (1962). Learning from experience. London: Heinemann. ______. (1963). Elements of psycho-analysis. London: Heinemann. ______. (1965). Transformations. London: Heinemann. ______. (1992). Cogitations. Roma: Armando, 1997. BOTELLA, C.; BOTELLA, S. (2001). La figurabilité psychique. Lausanne, Paris: Delachux et Niestlé. DI BENEDETTO, A. (2000). Prima della parola: l’ascolto psicoanalítico del non detto attraverso le forme dell’arte. Milano: Franco Angeli. DI CHIARA, G. (2001). Comunicação pessoal. FAIMBERG, H. (1996). Listening to listening. Int. J. Psycho-Anal., v.77, p.667677. 78 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Tradução: Marta Petricciani (Membro associado da SBPSP) Revisão da tradução: Augusta G. Heller Dr. Antonino Ferro Via Cardano, 77 27100 – Pavia – Itália Fone: 390382 – 304190 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 79 Antonino Ferro FERRO, A. (1998). Antonino Ferro em São Paulo. Seminários. Orgs. M. O. de A. França e M. Petricciani. São Paulo: Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. ______. (1999a). A psicanálise como literatura e terapia. Rio de Janeiro: Imago, 2000. ______. (1999b). Narrative derivatives of alpha elements: clinical implications. Congresso de IPA. Santiago, Chile, jul. 1999. Em breve publicado no International Forum of Psychoanalysis. ______. (2000). Prima altrove chi. Roma: Borla. ______. (2001). Rêve de la veille et narration. Revue Française de Psychanalyse, v.LXV, p.285-297. ______. (2002a). Some implications of Bion’s thought: the waking dream and narrative derivatives. Int. J. Psycho-Anal., 83, p.597-607 _____ (2002b). O pensamento clínico de Antonino Ferro. Conferências e seminários em Ribeirão Preto e São Paulo. Orgs. M. O. França e M. Petricciani. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. (no prelo) GUIGNARD, F. (1999). L’interpretation des configurations oedipiennes en analyse d’enfants. Bulletin de la FEP, v.50. NERI, C. (2000). Gruppo. Roma: Borla. NISSIM MOMIGLIANO, L. (2000). L’ascolto rispettoso. Milano: R. Cortina. Introdução O meu objetivo com este trabalho é apresentar a idéia de que o principal propósito da prática psicanalítica é tratar, i.e., reparar supostas deficiências no funcionamento das fantasias 1 inconscientes. O corolário desta idéia é que as fantasias inconscientes constituem nossa primeira linha de defesa contra o impacto contínuo do eterno evoluir de “O” (Bion, 1965, 1970). Como tal, elas constituem, usando uma James S. Grotstein Membro Titular da Associação Psicanalítica Americana (APsaA). Membro Titular do Centro Psicanalítico da Califórnia (PCC). 1. No original em inglês, o autor preferiu empregar a escrita kleiniana phantasy do que a clássica fantasy, sendo que a primeira designa suas raízes no sistema Inc. e a última, no sistema Pcs. e Cs. Chegou-se a essa distinção como uma convenção durante Controversial Discussions (King e Steiner, 1992). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 81 James S. Grotstein Novas Perspectivas sobre as Fantasias Inconscientes NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES metáfora de Alexander Pope, “a brigada ligeira do inferno” (the light militia of the lower sky). A fim de explicar essa idéia, passarei por outros aspectos do funcionamento inconsciente para revelar novas perspectivas no panorama das fantasias inconscientes. Parte I: Notas sobre o inconsciente Os psicanalistas são treinados, tradicionalmente, para “tratar” o ego às custas das fantasias inconscientes, as quais se acredita serem a fonte de distorções onipotentes e de leituras mal-interpretadas da realidade. Essa linha de pensamento retorna ao posicionamento de Freud como um observador, ele mesmo, do sistema Ics. a partir do ponto de vista do sistema Cs. Espero demonstrar que se obtém uma leitura diferente e contrária quando se inverte esse processo e se visualiza o sistema Cs. do ponto de vista do sistema Ics. O corolário dessa hipótese é que a psicopatologia é primordialmente uma patologia do id e só secundariamente uma patologia do ego por falha. Em outras palavras, desde as formulações de Bion da função alfa (1962, 1965, 1970), de conteúdo/continente e de “transformações em, de e desde ‘O’ ”, toda a psicopatologia deve ser considerada originária da nossa habilidade de, com a ajuda de nossos objetos (primeiro externos e depois internos), conter e sustentar as evoluções de “O” como emoções toleráveis de serem sentidas. Bion sugeriu mas nunca explicou claramente que uma das tarefas da função alfa é a de gerar fantasias inconscientes, i.e., sonhos sobre “O”, a fim de transformar o registro infinito de “O” em trocas binárias opostas controláveis, tais como “boas” ou “más”, etc., em forma de um mito pessoal ou de uma fantasia onírica. Ele também sugeriu que a função alfa pode depender de mitos coletivos para desempenhar sua tarefa de ligar a ansiedade como resultado da confrontação com as evoluções de “O” (Bion, 1992). Vitalismo, Teleologia e Enteléquia Antes de entrar na discussão deste tema, entretanto, gostaria de preparar o caminho para apresentar algumas visões preliminares sobre o incons82 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 83 James S. Grotstein ciente, anfitrião e panorama das fantasias inconscientes. Desejo sobrepor as perspectivas de vitalismo e teleologia, especialmente daquele aspecto conhecido como enteléquia, à concepção tradicional de inconsciente a fim de emprestar novas dimensões e perspectivas à nossa compreensão sobre o tema. O conceito de vida mental inconsciente adquire um brilho transcendental mais apropriado quando é contemplado sob a óptica do vitalismo, em vez do cientismo, i.e., impulsos, afetos, etc. O vitalismo afirma que o inconsciente é uma entidade orgânica, como “Gaia” é para a Terra, e é uma morada habitada por presenças numinosas, fantasmas e/ou demônios indivisíveis, que constituem o elenco permanente de uma seqüência dramática e contínua de um repertório, também conhecida como fantasias, que realçam e encenam temas ontológicos dos “cotidianos” de nossas vidas normais em um verdadeiro “quarto de bagunça” cinematográfico. Neste “quarto de bagunça”, também conhecido como pré-consciente, uma dessas presenças, a do “editor de filme existencial”, mistura os exemplos do cotidiano ou os ensaios de nossa existência com seus correspondentes simétricos do nosso coletivo, assim como com os bancos de dados históricos – tudo contra a tela de fundo de “O”, o pseudônimo arriscado mas mortal de Bion (1965, 1970) para a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última, as coisas em si, os númenos, as pré-concepções inatas, as Formas Ideais, o caos, o infinito, os elementos beta, Ananke (Necessidade, ou, como traduzi do grego, “a indiferença da circunstância”), a divindade – todos convergem para “A Vida – Como Ela É”. A Teleologia afirma que há um destino inato que o indivíduo se sente predestinado a cumprir, o qual se torna aparentemente confirmado no nascimento via identificação primária com a mãe (Lichtenstein, 1961). A Enteléquia é a realização desse destino. A vergonha é a consciência de nossa privação disso. Nós sabemos como a enteléquia inexoravelmente a realiza como crescimento, desenvolvimento e maturação. Portanto, a teleologia é a fantasia aproximadamente mais constante sobre o destino, e a enteléquia, a sua realização fantasiada. Nós experimentamos o sentido da enteléquia em nossos objetos internos e em nossas orga- NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES nizações patológicas defensivas à medida que acreditamos que, uma vez criadas, desenvolvem uma vida (enteléquia) própria, externa à corrente de progressão do amadurecimento (enteléquia) de nossas vidas. Fantasia Inconsciente e Lógica Consciente como um Processo Paralelo e Binocular Seguindo Bion (1970, 1992), darei a noção de que o sonhar e o fantasiar inconscientes constituem ambos um processo paralelo em relação a devaneios e a processos cognitivos lógicos. Essa idéia de complementaridade é conseqüência da revisão radical de Bion (1970, 1992) do funcionamento da mente, o qual difere significativamente do de Freud. Freud contempla a eterna existência do conflito entre o id e o ego, enquanto Bion os imagina como parceiros complementares, embora opostos, a mediar “O”. Portanto, em vez de visualizar a relação entre Sistemas Ics. e Cs. como conflituosos e ambos se relacionando exclusivamente entre si, emerge uma nova perspectiva na qual eles são parceiros opostos e complementares na interceptação das evoluções de “O” – o último em termos de pensamento racional e o primeiro em termos de sonhos (diurnos e noturnos), i.e., fantasias ou mitos. Meu tema principal é que a psicopatologia pode ser pensada como uma quebra no funcionamento dessa complementaridade, principalmente devido a uma rigidez no fluxo das fantasias inconscientes, i.e., as fantasias fracassaram, se tornaram “náufragas” e, portanto, afastaram-se do fluxo da corrente mítica que flui constantemente. Em outras palavras, elas foram “feridas em combate” e necessitam de reparo – ou confrontaram-se a uma esmagadora amostra de “O” (como a trajetória de “O” e de seu emissor, o instinto da verdade2) e necessitavam fantasiar mais. Uma outra maneira de expressar essa questão é considerar que a função alfa, geradora de fantasias, estragou e necessita de reparo. Esse reparo é suprido pelo funcionamento auxiliar da função alfa da mãe para o bebê, e do analista para o 2. Bion (1992) postulou a existência do instinto de verdade (truth instinct), que suplanta a importância dos impulsos instintivos de Freud. 84 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Os Dois Inconscientes: Um Consenso sobre o que Denominamos de “O Inconsciente” Antes de prosseguir, gostaria de comentar a respeito do que se descreve como “o inconsciente”. Freud (1915b) o define como tendo dois maiores componentes, o Sistema Inconsciente e o Pré-consciente, e como funcionando em dois campos, o inconsciente dinâmico e o não-reprimido. Todas as especificações de Freud sobre o inconsciente pressupõem a existência de um “mundo interno” para a psique individual. Lacan (1966) fez no mínimo duas importantes revisões desse conceito: (a) o inconsciente é constituído como uma linguagem e é sócio-histórico-cultural; i.e., “o bebê nasce em uma ordem simbólica da linguagem em nome do pai”, e essa ordem simbólica se torna o seu inconsciente; em outras palavras, um inconsciente que é primeiramente externo ao indivíduo, i.e., socio-históricocultural; (b) o Outro é aquele aspecto prematuramente dissociado do self desde o nascimento que é, em última instância, indistinguível do objeto Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 85 James S. Grotstein analisando. Quando o último interpreta as fantasias inconscientes relevantes do primeiro, é como se ele(a) reparasse o funcionamento alfa próprio do analisando e permitisse um fluxo mais constante da corrente míticafantasmástica interna. A psicanálise trabalha, paradoxalmente, não pela exposição das fantasias a fim de serem corrigidas vis-à-vis realidade externa de modo a desacreditá-las, mas para confirmar sua atividade completando-as e/ou expandindo-as, empregando verbalizações ao imaginário pictórico, nãoverbal – de modo que possam reunir seu destino ao ciclo mítico que produz a coreografia de seu futuro. A partir desse ponto de vista, a psicanálise é principalmente, se não exclusivamente, preocupada com o destino das fantasias inconscientes e do funcionamento alfa do ponto de vista de sua coerência interna. Colocado de outro modo, é como se, usando uma metáfora cinematográfica, uma fantasia inconsciente particular ficasse trancada e precisasse ser “reeditada”, ou seja, uma função reparadora que a interpretação promove. NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES primário. O Outro é o inconsciente também. Sandler e Sandler (1984, 1987) propuseram a idéia de um inconsciente passado em contraste a um inconsciente presente, mas, em minha opinião, a sua descrição se aplica somente ao sistema Pcs., uma vez que o inconsciente exposto por Freud é atemporal. Orange, Atwood e Stolorow (1997), seguindo Husserl, Lévi-Strauss e Piaget, postulam um “inconsciente pré-reflexivo”, bem como um “inconsciente dinâmico” e um “inconsciente não-validado”. Lacan (1966) nunca se conformou com o fato de que, quando Freud se interessou mais pelo ego, o agente da repressão, do que pelo reprimido, ele tinha tudo, mas abandonou a sua maior descoberta, a do inconsciente reprimido. Tenho a impressão de que o que divide significativamente os psicanalistas kleinianos dos psicólogos de ego, dos psicólogos do self, dos relacionais, dos interpessoais e dos intersubjetivistas é que o inconsciente nãoreprimido caracteriza, principalmente3, o pensamento kleiniano, enquanto que o inconsciente reprimido ou dinâmico caracteriza os analistas das outras escolas. Colocando de outro modo, o “bebê kleiniano” não é somente o bebê do passado, mas sim, “o-bebê-de-uma-vez-para-sempre” do presente eterno, como se fosse um “bebê virtual”. As reconstruções, conseqüentemente, são menos características das análises kleinianas. Como Bion muitas vezes dizia (comunicação pessoal), “o passado é boato e é nãoanalisável”. Aqui posso apenas sugerir o que eu exponho em qualquer outro lugar – que o inconsciente não-reprimido é o inconsciente kantianoplatônico de categorias transcendentais a priori que se modelam à medida que antecipam nossas experiências iminentes. Além disso, penso que o inconsciente dinâmico pode ser equiparado ao inconsciente passado de Sandler e Sandler, e esses, por sua vez, podem ser entendidos sob a égide do Sistema Pcs., que foi subestimado, mesmo por Freud. Para mim, ele é o “quarto da bagunça” e busca energia nas duas fronteiras, entre o Sistema 3. Eu digo “principalmente” porque os objetos internos kleinianos, que se formam como resultado da identificação projetiva e, depois, introjetiva, pertencem, claramente, ao inconsciente dinâmico (reprimido) porque são produtos da experiência real. 86 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sistemas Cs. e Ics. Quando Vistos “Binocularmente” Bion (1970, 1992) propôs a noção de visão binocular, com a qual ele designara o que eu chamei de “caminho de mão dupla” para a percepção e a concepção de fenômenos (Grotstein, 1978). Aqui está como eu concebo o funcionamento do seu modelo estereoscópico para o inconsciente: primeiro, reduzamos os impulsos de um status primário para um status intermediário – pois eles medeiam algo mesmo mais profundo do que eles próprios, o instinto da verdade, a que inexoravelmente ambos se lançam à procura de seu encontro com “O”, a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última, etc. – ao que eu acrescentaria aquele aspecto de “O” que é próprio da enteléquia, que também inexoravelmente se apresenta como “O”. Eu acredito, em outras palavras, que podemos equiparar a enteléquia com as intercepções emocionais das evoluções de “O” do indivíduo. O Sistema Ics. se torna um braço* do julgamento de “O” (e gera fantasias inconscientes tanto para se aproximar de como para disfarçar “O”, enquanto o contém). O Sistema Cs., que idealmente é cooperativo e complementar ao Sistema Ics., estende o outro braço para que entre esses dois braços entrelaçados o sujeito que percebe possa obter uma “leitura” informativa, tridimensional do objeto. O braço do Sistema Ics. é a emoção, e do Sistema Cs., os sentimentos – em última análise, as emoções (Damasio, 1999). Os impulsos medeiam as leituras da emoção no Sistema Pcs. Em outras palavras, “O” (a Verdade Absoluta sobre a Realidade [interna e externa] Última), bem como o inexorável aumento da enteléquia, constitui a fonte máxima de desestabilização dentro do inconsciente. Os sonhos e as fantasias * O autor usou os termos pincer or caliper-blade e sugeriu que se traduzisse a partir de arm (N. do T.). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 87 James S. Grotstein Ics. e o Sistema Cs., respectivamente, aos quais ele se interpõe. Com relutância, renunciarei à discussão de um fascinante e importante tema corolário ao inconsciente, que é o da repressão primária, que merece um estudo à parte. NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES inconscientes o interceptam e o processam como a primeira linha de defesa antes do pensamento racional. Mas há outro grupo de braços, aquele do conceito de Bion (1965) da inter-relação dialética entre as posições esquizo-paranóide e a depressiva (EP↔D). Daquela sugestão de Bion, acredito que EP e D constituem uma função binária oposta, na qual cada uma colabora com e complementa a outra ao confrontar as inexoráveis evoluções de “O”. Vitalismo e o Inconsciente: “Algo é perdido na tradução” Uma paciente de muitos anos afirmou o seguinte: “Eu gostaria de me permitir escrever para publicar. Eu posso escrever muito bem para os outros, para relatórios ou dissertações da escola, escritos técnicos quando trabalhava em um emprego que exigia isso, etc. Eu tenho muito medo de escrever como eu escrevo para mim mesma e me sujeitar à possibilidade de críticas daqueles que lerão o que eu escrevo. Será muito auto-revelador”. Devido ao fato de que repetidamente nos ocupamos com os sentimentos de vergonha e seu conseqüente medo de auto-revelação, adotei uma tática diferente dessa vez. Eu disse: “É como relatar um sonho. O sonho que tu experimentas é maravilhoso, indescritível, inefável. Quando, então, tu tens de contar o sonho para mim, te sentes frustrada por não poder reproduzir o sonho como ele foi. Teu senso estético agudo sente-se, então, tão traído, principalmente quando tu transferes essa metáfora à tua escrita, que dizes para ti mesmo, ‘Para que serve?’ Tu és a crítica invisível que, com vergonha, critica tua falha em ter feito justiça à tua visão interna”. A paciente respondeu: “Exatamente!” O que estou querendo dizer é que a mente e seu funcionamento são holísticos e holográficos, i.e., vitalistas, mas, para compreendê-los e discuti-los, somos forçados a “analisá-los”, ou melhor, dividi-los em particularidades lineares reconhecíveis. Portanto, o sistema Cs., à revelia, deve recor88 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 4. Deve-se lembrar que esses fantasmas e demônios podem ser primários e inatos (arquetípicos) ou reconstruções fantasmáticas de seus modelos atuais da realidade. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 89 James S. Grotstein rer a técnicas científicas não-vitalistas para demolir e arrasar com a estrutura contínua, vital e bela dos sonhos e das fantasias inconscientes, e desumanizar os fantasmas, demônios e presenças, retirando-os de seus contextos etéreos para fins de “biópsia”. Ao comentar o trabalho de Julien Jaynes (1976), The origin of consciousness in the breakdown of the bicameral mind (A origem da consciência na ruptura da mente bicameral), Heward Wilkinson (comunicação pessoal, 2000) manifestou uma opinião que, para mim, se constituiu em uma epifania. Ele disse: “Enquanto Freud via o inconsciente do ponto de vista da consciência, Klein via o mundo externo da consciência do ponto de vista do inconsciente”. Agora, usando o instrumento de visão binocular de Bion (ou meu “caminho de mão dupla”), podemos dizer que cada perspectiva é válida e complementar à outra. Portanto, quando vemos o inconsciente do ponto de vista da consciência, formulamos a hipótese dos “impulsos instintivos” e dos “objetos internos”, enquanto que, quando vemos os objetos da consciência a partir do domínio do inconsciente, estamos face a face com “fantasmas”4, “demônios” (ambos positivos e negativos), “anjos” e com todo um léxico de “presenças” sobrenaturais numinosas, todas holograficamente incluídas dentro do abraço-sobreposto aos objetos externos. Ao elenco desses cidadãos internos eu acrescentaria, ainda, outra entidade vitalista, o “sujeito supra-ordenado do ser”, cujo aspecto inconsciente é o “sujeito inefável do inconsciente” e que é contraposto ao “sujeito fenomenal da consciência”. Afetando-os e mediando-os está o “sujeito supra-ordenado do ser” (Grotstein, 1997, 2000). Eles são complementares e se intercomunicam através de uma rede mística de continuidade descontínua, como na fita de Möbius. Em meu trabalho mais recente, propus pseudônimos para o sujeito inefável, tais como “o sonhador que sonha o sonho”, “o sonhador que entende o sonho”, “o sonhador que torna o sonho compreensível”, “o geômetra infinito”, “o dramaturga numinoso” e, seguindo Bion (1965, 1970, 1992), “divindade” (imanente, não transcendente) (Grotstein, 2000). NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES Nesse trabalho, também postulo que o que tem sido tradicionalmente chamado de “objetos internos” constitui, realmente, “alienígenas” cindidos – ou “subjetividades desgarradas”, ocultas como em mimetismo dentro da camuflagem da imagem do objeto externo – e cada um tingido por sua própria força vital (enteléquia). Além disso, cada “objeto interno” constitui, ipso facto, a experiência do encontro do sujeito com um continente falho. Conseqüentemente, cada objeto subjetivo internalizado é composto de: (a) não só da imagem do objeto per se, e (b) daqueles aspectos do sujeito que são projetados dentro do (na imagem do) objeto, mas (c) os resultados da experiência com o objeto como um continente falho da experiência de “O” (a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última, i.e., beta elementos) do sujeito. Vitalismo Continuado Vitalismo é uma escola de pensamento que surgiu com Aristóteles, se não antes, e foi continuada por Leibniz. Contrapõe-se ao mecanicismo e ao organicismo e explica a natureza da vida como um resultado da força vital que é única aos organismos vivos e diferente de todas as outras forças fora das coisas vivas. Essa força vitalista controla a forma e o desenvolvimento dos organismos vivos. Acredito que o vitalismo é um modo melhor de lidar com a subjetividade e a intersubjetividade do que a teoria psicanalítica mecanicista. O vitalismo defende que existe em todas as coisas vivas um fator intrínseco – ilusório, inestimável e imensurável – que ativa a vida. Freud (1913) compreendeu os aspectos vitalistas do mundo interno quando se referiu às características do animismo nos rituais primitivos. Animismo e personificação (Klein, 1929) são caracterizados pelos cidadãos que habitam o mundo interno da psique. Enteléquia Antes de entrar na discussão sobre enteléquia, citarei um verbete sobre ela da Enciclopédia Britânica: 90 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Enteléquia = “O” Minha intenção, ao invocar tais conceitos aristotélicos arcanos como vitalismo, enteléquia e teleologia, é a de empregá-los como instrumentos para compreender o funcionamento do inconsciente de um outro ângulo. Freud (1915b) se referiu ao inconsciente como um “caldeirão fervente”, com o que ele queria dizer o potencial explosivo do id e de seus impulsos dentro da consciência. Eu afirmaria, agora, que os Sistemas Ics. e Cs. opeSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 91 James S. Grotstein Um fator que pertence ao vitalismo é conhecido, desde Aristóteles, como enteléquia, o potencial inerente a todos os sistemas vivos que, por fim, se submete à realização. De acordo com a famosa definição de Aristóteles, a alma humana é “a enteléquia de um corpo natural com seus potenciais dentro dele” (On the Soul, II, 412a, 20). A enteléquia é considerada uma força inerente diretiva e reguladora no desenvolvimento e funcionamento de um organismo, a realização de uma causa que dá forma, em contraste com a existência potencial (com a qual a orientação do futuro está fortemente associada). Derivada do grego, enteléquia é um tipo particular de motivação para autodeterminação, uma força interna e uma força vital dirigindo a vida e o crescimento para se tornar tudo que alguém é capaz de ser ... Para Aristóteles, a enteléquia era, efetivamente, “o fim em si” – o potencial das coisas vivas de se tornarem elas mesmas, e.g., o que uma semente tem que faz com que ela se torne uma planta, isto é, realidade, em vez do que poderia, mais tarde, ser expresso de modo frutífero ... Seguindo Aristóteles, alguns vêem a parte racional da alma como a que abastece as pessoas com seus mais altos propósitos, isto é, sua enteléquia – parte racional ativa ... é a mais alta enteléquia, mas existe só como um potencial em muitas pessoas (p.2). Outras definições incluem: “Segundo Aristóteles: a realização ou completa expressão de alguma função; a condição na qual a potencialidade se tornou uma realidade” (Oxford University Dictionary, Oxford University Press, 1933). “Enteléquia é também um termo técnico usado por Leibniz para a força ativa primitiva em cada mônada” (Cambridge Dictionary of Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge, 1995). NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES ram em oposição dialética um com o outro, diretamente e de modo complementar contra a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última, “O”, como eu já afirmei. O conteúdo do reprimido não são os impulsos per se, mas emoções não processadas sobre a Verdade da Realidade Última. Além disso, entretanto, o conteúdo do reprimido pode ser entendido como o inexorável movimento para frente e para cima da enteléquia vitalista de nosso potencial final – sempre na confrontação contínua com a Circunstância (Realidade Última), a qual eu reúno e igualo a “O”. A “semente” não nos incomoda até que ela esteja estranhamente em seu momento de se tornar uma “planta”. Essa força vitalista pode ser independente da capacidade inicial do organismo de permitir essas transições explosivas de fase. Tenho a noção de que é isso que Freud (1915c) queria dizer por realização do desejo, determinismo psíquico e intencionalidade inconsciente. Desse ponto de vista, o significado do investimento libidinal (catexia) é a atribuição ontológica, vitalista da “importância” para o objeto, i.e., que o objeto importa. Também acredito que é isso que o conceito de Bion (1962) de conteúdo-continente significa – que o continente materno deve ser movido a funcionar como um mediador e um regulador acessório das ondas de crescimento independente do bebê e de suas fases de transição. Quando uma discrepância muito grande se desenvolve entre a enteléquia do bebê e a capacidade sentida por ele – e a capacidade do continente de aprovar esse movimento vital e vitalista – ocorre a mudança catastrófica. O fenômeno da vergonha, em última análise, reflete nosso veredicto emocional a respeito da discrepância que sentimos entre o que achamos que conseguimos e o que a nossa enteléquia conseguiu realizar por nós. De um ponto de vista mais pragmático, uma maneira mais óbvia de compreender a enteléquia expressa-se pelo fenômeno do crescimento, do desenvolvimento e do amadurecimento normal, podendo, cada um deles, ser entendido como tropismos inexoráveis em expansão que irrompem do inconsciente. 92 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Quando o bebê nasce e, aproximadamente, até os dois anos, o seu inconsciente consiste principalmente do inconsciente não-reprimido, uma vez que a repressão primária (Freud, 1915a), que estabelece a separação entre o funcionamento do inconsciente não-reprimido e do inconsciente (dinâmico) reprimido, ainda não se estabeleceu. Durante essa fase precoce, também, o hemisfério cerebral direito5, que é predominantemente visual, prevalece (Jaynes, 1976, Schore, 1994; Shlain, 1998). Interpreto o significado do que precede da seguinte maneira: o inconsciente não-reprimido é visual em seu funcionamento; portanto, sonhos e fantasias são codificados em imagens visuais. Quando o hemisfério esquerdo auditivo (verbal) se desenvolve, suprime o funcionamento do hemisfério direito e transforma as imagens visuais do último em imagens verbais (auditivas), como pensamentos. Por questão de espaço, não entrarei em detalhes sobre essa linha de pensamento. O que eu quero enfatizar com essa articulação, entretanto, é a pouca importância que foi dada, até agora, à imagem, tanto visual como auditiva (verbal), na compreensão dos processos inconscientes. Segal (1957, 1981) aplica o termo “equação simbólica” à imagem visual que é usada concretamente, enquanto que a imagem verbal designa a capacidade do bebê de evocar a imagem do objeto na sua ausência. As fantasias, em geral, e as fantasias inconscientes, especificamente, incluindo os devaneios e os sonhos noturnos, geralmente são visuais, mas podem envolver outros sentidos também. As contribuições de Matte-Blanco As contribuições de Ignacio Matte-Blanco (1975, 1981, 1988), que era um eminente matemático e psicanalista, alteraram, fundamentalmente, nossa concepção do inconsciente. Tentarei resumir suas principais idéias. Matte-Blanco enfatizou, primeiro, a diferença entre o inconsciente não5. O hemisfério cerebral direito é dependente de campo, i.e., é orientado espacial e contextualmente, enquanto que o hemisfério esquerdo é orientado em direção a detalhes. O último é a “figura” que se assenta sobre o primeiro enquanto “fundo”. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 93 James S. Grotstein O Inconsciente e a Lateralização do Hemisfério NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES reprimido e o inconsciente dinâmico, afirmando que o primeiro é o mais importante. Ele afirmou, então, que os indivíduos, como tais, não existem no inconsciente, apenas como construções. Depois, formulou a hipótese de que o que realmente constitui a substância do inconsciente não são tanto os impulsos, como foi postulado por Freud (que Matte-Blanco relega a uma categoria inferior), mas sua natureza infinita e sua lógica matemática única. Em outras palavras, o inconsciente consiste de grupos mentais infinitos e emprega um tipo de lógica que ele denomina de “bi-lógica”. Há dois tipos de lógica: a lógica bivalente aristotélica (que afirma a operação do meio excluído6), e a bi-lógica, que agora passarei a definir. Junto ao conceito de infinito e de grupos infinitos, Matte-Blanco apresenta as idéias de simetria e de assimetria, sendo que a primeira constitui a vida mental inconsciente, e a última, a vida mental consciente – com algumas exceções. Consideremos o seguinte: imaginemos duas pilhas de discos arrumados verticalmente. Então, imaginemos que o disco da base esteja programado para caracterizar uma simetria absoluta. Imaginemos, depois, que o disco de cima caracterize uma absoluta assimetria. Podemos, agora, imaginar um desenvolvimento ascendente de relações recíprocas que mudam progressivamente as propriedades de simetria e de assimetria a cada disco sucessivo. De modo inverso, quanto mais penetrássemos nas profundezas do inconsciente, mais campos simétricos encontraríamos. Suponhamos, também, que essa pilha de discos constitua uma estrutura variável, que é caracterizada pela oposição binária (simetria↔assimetria), mas que está sob o domínio do Princípio da Simetria. Isso é bi-lógica. A seguir, imaginemos uma outra pilha vertical similar de discos, com razões variadas entre simetria e assimetria, mas funcionando sob o domínio do Princípio da Assimetria. Isso é lógica bivalente. As similaridades na lógica bivalente se tornam idênticas na bi-lógica. O pensamento é um produto da lógica bivalente. As distinções, bem como as comparações lógicas, 6. O conceito de meio excluído poderia ser exemplificado com a seguinte afirmação: “Se um indivíduo é um homem, então ele não pode ser uma mulher”. Em bi-lógica, um homem pode ser uma mulher. 94 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Parte II: Notas sobre fantasias inconscientes Isaacs (1952) explicou a teoria das fantasias de Klein. Afirmou que elas constituíam as representações mentais dos instintos. Em uma contribuição mais recente, Spillius (2001) esclareceu as diferenças entre Freud e Klein a respeito da compreensão das fantasias. Ela afirmou: Na visão de Freud, embora haja fantasias no sistema inconsciente, a unidade básica do sistema inconsciente não é a fantasia, mas o desejo instintivo inconsciente. A formação do sonho e a formação da fantasia são processos paralelos; poderíamos falar de ‘trabalho da fantasia’ comparanSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 95 James S. Grotstein devem ser claramente compreendidas. Em bi-lógica, as comparações se misturam às semelhanças. Os sonhos empregam as perspectivas simétricas em relação aos objetos. Qualquer ser humano pode representar um outro ser humano. Alguma assimetria é necessária, entretanto, para dar textura e distinção à paisagem e à narrativa do sonho. Os afetos tendem, originalmente, a serem infinitos na sua natureza e devem ser transformados em representações simbólicas (por continência materna ou analítica), de modo a se tornarem emoções que possamos tolerar sentir. A importância do que antecede para o tema global que estou desenvolvendo é que o conteúdo do reprimido que garante repressão é menos os impulsos do que os afetos, que emergem do infinito e dos grupos infinitos de emoções sobre grupos infinitos de objetos – uma situação que anuncia o caos. O “caldeirão fervente” de Freud é uma designação mais relevante para o domínio da simetria e do infinito de Matte-Blanco do que para os impulsos. Além disso, é congruente com o conceito de “O” de Bion (1965, 1970). Se nós confrontarmos a capacidade de formação de imagens do hemisfério cerebral direito com a bi-lógica de Matte-Blanco, com todas as permutações e combinações concebíveis entre o infinitésimo e o infinito, entre a primeira, a segunda e a terceira dimensões e as dimensões infinitas, começaremos a entender a extensão das possibilidades mitopoéticas do inconsciente. NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES do-o ao ‘trabalho do sonho’; ambos envolvem a transformação do conteúdo inconsciente primário, e os sonhos são uma transformação disso. Para Freud, o principal impulsionador, por assim dizer, é o desejo inconsciente; os sonhos e as fantasias são, ambos, os seus principais derivativos disfarçados. Para Klein, o principal impulsionador é a fantasia inconsciente. Klein desenvolveu a sua idéia de fantasia gradualmente, de 1919 em diante, enfatizando particularmente: os prejuízos da inibição da fantasia no desenvolvimento da criança; a ubiqüidade das fantasias sobre o corpo da mãe e seus conteúdos; a variedade de fantasias sobre a cena primária e o complexo de Édipo; a intensidade de ambas as fantasias, agressivas e amorosas; a combinação de várias fantasias para formar o que ela chamou de posição depressiva ... a posição esquizo-paranóide viria depois ... Basicamente, penso que Klein via a fantasia inconsciente como sinônimo de pensamento e de sentimento inconscientes, e que ela deve ter preferido o termo fantasia em vez de pensamento porque os pensamentos de seus pacientes infantis eram mais imaginativos e menos racionais do que se espera que seja o pensamento do adulto (p.364). A partir do relato de Spillius pareceria que Klein concedera um papel mais central às fantasias inconscientes, acreditando que as mesmas constituíam o pensamento inconsciente. Além disso, ela acreditava que todos os relacionamentos e comunicações fundamentais entre self e self (internamente) e self e os outros (interna e externamente) são conduzidos por fantasias inconscientes – e que mesmo todos os mecanismos de defesa são, em si, fantasias aproximadamente mais constantes (concretizadas), sejam eles os mecanismos esquizóides (cisão, identificação projetiva, idealização e negação mágica onipotente) ou as defesas maníacas (triunfo, desprezo e controle) e as defesas obsessivas – mesmo a repressão. As Camadas Arquitetônicas da Fantasia Há três camadas na vida de fantasia. A mais profunda é aquela da corrente mítica contínua dentro de nós, um arquétipo, que Jung (1934) denominou de inconsciente coletivo. Lá, sobrevivemos às limitações que os 96 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Parte III: “O Estranho Dentro de Vós” Os Fantasmas do Inconsciente Em 1759, em seu trabalho Conjectures on Original Composition, Edward Young deu este conselho aos autores iniciantes: “Nós não somos ignorantes apenas a respeito das dimensões da mente humana em geral, mas até mesmo da nossa própria ... Portanto, penetrai profundamente em vosso peito; conhecei-vos ... aprendei sobre a profundidade, a extensão, a tendência e a força total da vossa mente; estabelecei uma plena intimidade com o Estranho dentro de vós”. [Citado em Cox (1980). “The Stranger Within Thee”: Concepts of the Self in Late Eighteen-Century Literature. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, p.3]. Durante os séculos XVIII e XIX, os romancistas e os psiquiatras expressaram um grande interesse a respeito do misterioso duplo, o Doppelgänger, o alter ego, o second self, que foi considerado como sendo o nosso self mais demoníaco e/ou sobrenatural. O Duplo, de Dostoievski, O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, e Dr. Frankenstein e Seu Monstro, de Mary Shelley, são apenas alguns de muitos exemplos. Ao mesmo tempo, os psiquiatras que estudavam a histeria descobriram o fator da dissociação que caracterizou essa entidade. Breuer e Freud (1893-1895), em sua monumental monografia sobre o sujeito, incluíram a “dupla consSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 97 James S. Grotstein mitos colocam sobre nós, e.g., “Gênese”, “A Torre de Babel”, o “Complexo de Édipo”, e outros. São arquetípicos no sentido platônico e categorias a priori no sentido kantiano. Bion (1992) os visualiza como conjunções constantes. O segundo nível é aquele da fantasia inconsciente pessoal, que é construída em si mesma como uma narrativa autolimitada em seu próprio sentido mítico pessoal. É o diálogo contínuo dos objetos parciais. O terceiro nível da fantasia é aquele de nossa percepção e experiência dos objetos reais que se tornaram sujeitos por direito próprio. NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES ciência” como uma característica constante das histéricas. Mais tarde, depois de formular os princípios originais da psicanálise, Freud formulou a teoria topográfica na qual fez uma rotação no eixo dos dois sistemas paralelos de consciência, do vertical para o horizontal, colocando o Sistema Cs. em cima do Sistema Ics., com o Sistema Pcs. interposto. Depois, quando ele formulou a teoria estrutural (Freud, 1923), concebeu o id, o ego e o superego, e o conceito de alter ego ou segundo self como um sujeito por conta própria ficou completamente perdido na onda do positivismo mecanicista analítico. Devemos a Lacan, à pesquisa da lateralidade hemisférica cerebral e à intersubjetividade o declínio dessa onda positivista em favor de uma concepção mais numinosa, animista e vitalista dos cidadãos do inconsciente. Podemos também imaginar os habitantes do inconsciente, como afirmei acima, como sendo arquetípicos tanto no sentido platônico como no sentido junguiano. Cada objeto externo que encontramos, particularmente a mãe e o pai, não são meramente pessoas por si só que por acaso são nossos pais. Eles são os “titulares” atuais das funções arquetípicas (Formas Eternas ou Ideais) apresentadas desde o início dos tempos. As preconcepções básicas de Platão e os númenos de Kant e/ou as coisas-emsi-mesmas (Bion, 1962) antecipam o seu aparecimento e os designam como seus complementos fenomenológicos na experiência atualizada/realizada. Eu já havia aludido a outras presenças ou inteligências no inconsciente, o “sujeito inefável do inconsciente”, que é também o “sonhador que sonha o sonho”, o “sonhador que entende o sonho” e o “dramaturgo”, mas esses são apenas alguns dos inúmeros papéis que essa entidade numinosa desempenha. O Inconsciente como o “Retrato do Artista” Llinás (2001), um cientista neurocognitivista, afirmou, com efeito, que os processos conhecidos como introjeção ou incorporação são factícios. Ele teoriza que, quando encontramos objetos no mundo externo, nós não os “colocamos para dentro”. Nós os recriamos de modo imaginário 98 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 “O Pigmento da Imaginação” Gostaria de dizer algo mais sobre “o pigmento da imaginação”. Primeiro, permitam-me reintroduzir a teoria de Platão das “Formas Eternas”, que pode ser entendida como os protótipos para todos os objetos fenomenais, vivos e não-vivos. Então, consideremos o processo de metátese, que pode ser entendido como uma série de transformações dialéticas desconstrutivas↔construtivas. Consideremos uma solução química que contenha HCl (ácido clorídrico) e NaOH (hidróxido de sódio). Suponhamos, então, a decomposição do HCl em H+ e Cl-, e NaOH em Na+ e OH-. A seguir, imaginemos uma recombinação entre H+ e OH– para criar HOH ou H2O (água), e uma recombinação entre Na+ e Cl para criar NaCl (sal). Esse processo de metátese de decompor Formas Ideais e de uma recombinação imaginativa é apenas um aspecto de como eu imagino que os processos criativos de sonhar e de fantasiar acontecem no inconsciente. Parte IV: “Papai, me conta uma história”: A Psicanálise como “Reparadora de Sonhos” Estamos agora na época de Harry Potter e o senhor dos anéis e não precisamos nos perguntar porque essas fantasmagorias maravilhosamente criadas estão desfrutando de uma aclamação e de uma popularidade sem iguais. Aqueles de nós que são pais conhecem bem o eterno apelo das crianças que suplicam: “Papai (ou Mamãe), me conta uma história”. Histórias, lendas, contos de fadas, fábulas, parábolas e mitos são todos versões de sonhos ou fantasias. Todos eles são narrativas que dão um significado linear (hemisfério esquerdo) aos extravasamentos não-lineares, caóticos do inconsciente (hemisfério direito). Mais especificamente, se empregarmos Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 99 James S. Grotstein a partir do barro cru de nossa própria substância interna. Portanto, o inconsciente é um “retrato do artista” que usa os pigmentos da imaginação e as formas numinosas pré-figuradas, de modo arquetípico, para construir imagens que finalmente são modelados pela percepção da experiência com modelos vivos. NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES a minha versão do modelo binocular de Bion, como aludi anteriormente, podemos propor a seguinte imagem: já mencionei a idéia de braços dos Sistemas Ics. e Cs. e de P-EP↔D que emocionalmente interceptam a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última, i.e., elementos beta (devido ao funcionamento do instinto da verdade). Se pudermos também presumir que o Sistema Ics. e a P-EP funcionam para estabelecer uma barreira de fantasia inconsciente ou de mito para refrear e, então, miticamente, transformar os beta elementos de “O”, e o outro procura dar uma versão mais realista da Verdade, seguindo a fantasmalização (mitificação) inicial da Verdade, nós obteremos, então, um modelo para a importância das histórias para o bem-estar do inconsciente e para o bem-estar do indivíduo. Histórias, fantasias ou sonhos são a primeira linha de defesa (“a brigada ligeira do inferno”) contra sermos dominados. Devemos, em primeiro lugar, ser capazes de falsificar (alterar) ou atenuar a Verdade a fim de tolerá-la, e, a seguir, devemos personalizá-la como nossa própria experiência subjetiva que (re-)criamos dentro de nós mesmos a fim de conceder nosso sentido de ação (Grotstein, 2000), após o que, graças à objetividade oferecida pela posição depressiva, podemos objetivar sua Alteridade (Otherness). Permitam-me reafirmar o que eu recém-expliquei de um outro ângulo. Tradicionalmente, quando os psicanalistas interpretam fantasias inconscientes aos analisandos, o ponto de vista predominante tem sido sempre aquele da realidade factual externa, ex., “Quando tu estavas na sala de espera e me ouviste ao telefone, tu pensaste que eu estava falando com a minha amante” (na fantasia7) – sugerindo que, na realidade, eu não estava. Em outras palavras, as fantasias eram entendidas como as principais causas da patologia, e um desmascaramento das mesmas constituía a cura, i.e., através de uma restituição segura da realidade. Acredito que, embora aquela premissa possa ser válida, exista uma outra maneira, oposta, de compreender o papel das fantasias. Eu as conce7. Aqui, no original em inglês, o autor escreveu (é a única vez) fantasy com “f”, em vez de com “ph”, porque está sendo usado em sentido consciente ou pré-consciente, e não inconsciente. 100 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 101 James S. Grotstein bo como a primeira linha de defesa contra a evolução dos elementos beta (proto-experiências não-mentais não processadas, “O”). As fantasias capturam o seu impacto, mitificando-os e convertendo-os em narrativas pessoais que flutuam e cascateiam na correnteza mítica do inconsciente. Interpretando fantasias, estamos confirmando a sua importância e a sua verdade interna – como uma preparação para o processo seguinte, aquele de permitir aos mecanismos da posição depressiva transformar fantasias em afirmações da realidade objetiva. Portanto, uma interpretação de uma fantasia inconsciente (hemisfério esquerdo) completa verbalmente e, por conseguinte, confirma a fantasia, levando em conta uma transformação da imagem sensual em abstração verbal. Em outras palavras, deve haver um alinhamento entre a fantasia inconsciente e seu descendente consciente, o pensamento. Além disso, quando Shakespeare disse “O sono tece a manga desfiada do cuidado” (Sleep knits up the raveled sleeve of care), ele bem poderia ter dito “os sonhos e/ou as fantasias tecem a manga desfiada do cuidado” – em preparação para um processo emocional e uma digestão mental que felizmente culminará no pensamento abstrato ou em transformações ocultas pelo “serviço silencioso” do mundo interno. O que eu disse acima, provavelmente, é bem conhecido de bebês e crianças em termos de sua preocupação com contos de fadas e fábulas – que eles precisam que os pais repitam várias vezes. Sonhos, fábulas, lendas, mitos e/ou fantasias são a linguagem primordial perdida do imaginário que dominou a vida pré-verbal dos bebês. Eles carregaram as lágrimas da dor e do cuidado e preservaram a inocência do bebê. Subseqüentemente, submergiram e cederam ao domínio das palavras, mas podem ainda ser localizados no mundo inferior de nosso ser como nosso “serviço silencioso”, imagisticamente tocando nossas feridas e ficando à disposição de todos os nossos ritos de passagem e de nossos erros nas mãos da circunstância. NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES Conclusão Os Sistemas Cs. e Ics. não funcionam em conflito, mas de modo complementar como oposições binárias. O Sistema Ics. tem dois maiores componentes, o Ics. não-reprimido e o Ics. reprimido ou dinâmico, sendo o primeiro o Ics. platônico inato, e o último, o domínio das memórias reprimidas das experiências reais. O autor postula que o último é o depósito do processamento mental via sonhos e fantasias que se originam das atividades do primeiro. Os Sistemas Ics. e Cs. funcionam como braços opostos e cooperativos para interceptar “O” (a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última). A formação da fantasia inconsciente, i.e., o funcionamento da função alfa constitui o pensamento inconsciente. Os “atores” que desempenham as fantasias inconscientes são fantasmas ou demônios diversificados (ambos positivos e negativos) que representam um papel dramático esperando que, enquanto isso, alguém esteja lá para interpretar a sua pantomima, de modo que eles possam, como a esfinge em Oedipus Rex, ficar livres e retornar ao repertório. A interpretação psicanalítica da fantasia inconsciente os confirma e os completa, portanto, não desacreditando-os meramente. Sonhos e fantasias inconscientes são o nosso “serviço silencioso”. Sinopse O autor propõe novas perspectivas sobre as fantasias inconscientes. Procura demonstrar que os Sistemas Cs. e Ics. não funcionam em conflito, mas de modo complementar como oposições binárias. O Sistema Ics. tem dois maiores componentes, o Ics. não reprimido e o Ics. reprimido ou dinâmico, sendo o primeiro o Ics. platônico inato, e o último, o domínio das memórias reprimidas das experiências reais. O autor postula que o último é o depósito do processamento mental via sonhos e fantasias que se originam das atividades do primeiro. Os Sistemas Ics. e Cs. funcionam como braços opostos e cooperativos para interceptar “O” (a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última). A formação da fantasia inconsciente, i.e., o funcionamento da função alfa, constitui o pensamento inconsciente. Os “atores” que desempenham as fantasias inconscientes são fantasmas ou demônios diversificados (ambos positivos e negativos) que representam um papel dramático esperando que, enquanto isso, alguém esteja lá para interpretar a sua pantomima, de modo que eles possam, como a esfinge em Oedipus Rex, ficar livres e 102 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Summary Some New Perspectives on Unsconscious Phantasies The author proposes some new perspectives on unconscious phantasies. He tries to demonstrate that Systems Cs. and Ucs. do not function conflictually but rather complementarily as binary oppositions. System Ucs. has two major components, the unrepressed Ucs. and the dynamic or repressed Ucs., the former of which is the inherent platonic Ucs. and the latter of which is the domain of repressed memories of actual experiences. The author postulates that the latter is the storehouse for mental processing via dreams and phantasies that originate from the activities of the former. Systems Ucs. and Cs. function as cooperative oppositional pincers to intercept “O” (the Absolute Truth about Ultimate Reality). Unconscious phantasy formation, i.e., the workings of alpha functioning, constitutes unconscious thinking. The “actors’ who enact unconscious phantasies are variegated phantoms or demons (both positive and negative) who perform a dramatic role hoping all the while that someone is there who can interpret their pantomime so that they can, like the sphinx in Oedipus Rex, be released and return to repertory. Psychoanalytic interpretation of unconscious phantasy confirms and completes them, not merely discrediting them. Dreams and unconscious phantasies are our “silent service”. Sinopsis Nuevas Perspectivas sobre Fantasías Inconscientes El autor propone nuevas perspectivas sobre las fantasías inconscientes. Procura demostrar que los Sistemas Cs. e Ics. no funcionan en conflicto, pero de modo complementar como oposiciones binarias. El Sistema Ics. tiene dos mayores componentes, el Ics. no reprimido y el Ics. reprimido o dinámico, donde el primer Ics. es platónico inherente y el último, el dominio de las memorias reprimidas de las experiencias reales. El autor postula que el último es el depósito del procesamiento mental vía sueños y fantasías que se originan de las actividades del primero. Los Sistemas Ics. y Cs. funcionan como pinzas opuestas y cooperativas para interceptar “O” (la Verdad Absoluta sobre la Realidad Última). La formación de la fantasía inconsciente, o sea, el funcionamiento de la función alfa, constituye el pensamiento inconsciente. Los “actores” que desempeñan las fantaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 103 James S. Grotstein retornar ao repertório. A interpretação psicanalítica da fantasia inconsciente os confirma e os completa, portanto, não desacreditando-os meramente. Sonhos e fantasias inconscientes são o nosso “serviço silencioso”. NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AS FANTASIAS INCONSCIENTES sías inconscientes son fantasmas o demonios diversificados (ambos, positivos y negativos) que representan un papel dramático esperando que, mientras tanto, alguien esté allá para interpretar su pantomima, de modo que ellos puedan, como la esfinge en Oedipus Rex, ser libertados y retornar al repertorio. La interpretación psicoanalítica de la fantasía inconsciente los confirma y los completa, por lo tanto, no desacreditándolos meramente. Sueños y fantasías inconscientes son nuestro “servicio silencioso”. Palavras-chave Fantasia inconsciente; Função alfa; Inconsciente; Evoluções de “O”; Sonho. Key-words Unsconscious phantasy; Alpha-function; Unconscious; Evolutions of “O”; Dream. Palabras-llave Fantasia inconsciente; Función alfa; Inconsciente; Evoluciónes del “O”; Sueño. Referências BION, W.R. (1962). Learning from experience. London: Heinemann. ______. (1965). Transformations. London: Heinemann. ______. (1970). 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Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Trabalho originalmente apresentado no painel “Unsconscious Process & Fantasy: The Other Within & Without” para “Relational Analysts at Work: Sense and Sensibility”, conferência em memória de Stephen A. Mitchell, New York, NY, 20 de janeiro de 2002 (Revisado em 30 de abril de 2002). Tradução: Silvia Stifelman Katz Dr. James S. Grotstein 522 Dalehurst Avenue Los Angeles, CA 90024-2516 USA Fone: 1-310-276-3456 Fax: 1-310-474-8075 E-mail: [email protected] 106 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 1. Introdução Luis Kancyper Membro Titular da Associação Psicanalítica Argentina. Não é correto o apotegma: simplex sigillum veri (A simplicidade é o selo da verdade). A adolescência requer uma explicação teórico-clínica de maior complexidade. Nela se contrapõem múltiplos jogos de forças dentro de um campo dinâmico: os movimentos paradoxais do narcisismo nas dimensões intra e intersubjetiva e as relações de domínio entre pais e filhos, e entre irmãos. O que caracteriza a adolescência é o encontro do objeto genital exogâmico, a eleição vocacional, independente dos mandatos parentais, e a recomposição dos vínculos sociais e econômicos. O que particulariza metapsicologi- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 107 Luis Kancyper O Processo Psicanalítico na Adolescência: Metapsicologia e Clínica O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA camente esse período é que representa a etapa da ressignificação retroativa por excelência (KANCYPER, 1992b). A instrumentação do conceito do a posteriori possibilita efetuar fecundas considerações clínicas. Nesse sentido, o período da adolescência seria, ao mesmo tempo, um ponto de chegada e um ponto de partida fundamentais. Como ponto de chegada, podemos inferir retroativamente as inscrições e traumas que, em tempo anterior, permaneceram adormecidos em forma caótica e latente e adquirem, recém nesse período, significação e efeitos patogênicos. Por isso mantenho que “aquilo que se silencia na infância pode manifestar-se aos gritos durante a adolescência” (KANCYPER, 1997). Como ponto de partida, é o tempo que possibilita a abertura de novas significações e conquistas, dando origem a imprevisíveis aquisições. Nessa fase, por um lado, ressignificam-se as situações de traumas anteriores, e, por outro, desenvolve-se uma modificação estrutural em todas as instâncias do aparelho anímico com o reordenamento identificatório no ego, no superego, no ideal de ego e no ego ideal. Com a elaboração de intensas angústias pelas quais necessariamente deverá tramitar o adolescente, seus pais e irmãos, possibilita-se o desdobramento de um processo fundamental para ascender à formação da identidade: a confrontação geracional e fraterna (KANCYPER, 1997). Essa requer, como precondição, a admissão da alteridade1, do reconhecimento de si mesmo e da semelhança, tanto nos progenitores como no filho e entre os irmãos. Cada um desses integrantes necessita atravessar inevitáveis e variados lutos nas dimensões narcisista, edípica e fraterna. Essas trocas de objeto originam elevadas tensões caóticas e desprazerosas devido à simultânea ressignificação da história infantil no adolescente e dos capítulos congelados e reanimados do passado infantil e adolescente em seus irmãos e progenitores. 1. Natureza ou condição do que é outro, do que é distinto, que marca a diferença. (N. do T.) 108 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 2. O processo analítico: metapsicologia e clínica Dentro do vasto leque que esse tema evoca, centrarei esse estudo especificamente nos indicadores clínicos e nos fundamentos metapsicológicos que orientam sobre a existência de um processo ou de um não-processo na psicanálise com adolescentes. A mola propulsora do processo analítico se define como uma repetição transferencial cuja interpretação permite uma rememoração do reprimido e escindido, e sua eventual elaboração. Também ocorre uma alternância de momentos de processo e de não-processo, como um trabalho de recuperação de obstáculos que determina seu fracasso ou seu êxito. O não-processo analítico é quando o processo tropeça ou se detém, sendo essas manifestações mais complexas de descobrir. Indicadores positivos são utilizados para dissimular a existência de um processo que, na realidade, permanece estereotipado mas se disfarça de movimento. O processo analítico aponta para uma mudança estrutural do adolescente, para a reestruturação da personalidade por meio da elaboração. Essa elaboração representa o essencial do processo analítico. Confere ao tratamento seu selo distintivo. Ainda que o método psicanalítico reconheça como objeto fundamental “o fazer consciente o inconsciente”, esse, em realidade, é o ponto de partida. Convém não confundir esse começo com a análise toda. A mola propulsora e o andar do processo de análise ocorrem pelo trabalho de elaboração, pela Durcharbeiten. Freud o considera como o principal fator da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 109 Luis Kancyper Neste trabalho desenvolverei os seguintes temas, que serão ilustrados através de um caso clínico: – O processo psicanalítico: metapsicologia e clínica; – As auto-imagens narcisistas; – Os complexos de Édipo e fraterno; – O filho-progenitor e o irmão-progenitor; – O reordenamento de identificações e a confrontação geracional. Esses temas serão ilustrados através de um caso clínico. O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA eficácia terapêutica (Recordar, repetir e elaborar, 1914). Laplanche e Pontalis definem a elaboração como: “processo em virtude do qual o analisando integra uma interpretação e supera as resistências que essa suscita. Trata-se de uma espécie de trabalho psíquico que permite ao sujeito aceitar certos elementos e livrar-se do domínio da insistência dos mecanismos repetitivos” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1971). A necessidade da reelaboração baseia-se em poder vencer a força da compulsão à repetição e a força de atração que exercem os protótipos inconscientes sobre o processo pulsional reprimido. Perguntamo-nos se parte da elaboração também ocorre no analista como meio de ajudar a adquirir o insight de forma mais duradoura, porque todos sabemos que um insight isolado não faz verão (BRAIER, 1990). É necessário o trabalho silencioso e prolongado da elaboração. Essa pergunta nos leva à confrontação dos diferentes esquemas referenciais teóricos que originam profundas distinções entre os analistas: como cada um enfoca a situação analítica na adolescência e os papéis do analisando, de seus pais e do analista na mesma, e o interjogo que se estabelece entre as realidades externa e psíquica e, dentro dessa última, como entende a dialética entre o intra-subjetivo e o intersubjetivo. Alguns analistas privilegiam exclusivamente a dimensão intersubjetiva sobre a intra-subjetiva, tornando sem efeito um postulado freudiano fundamental: o postulado que formula que o sintoma é um produto transacional, um efeito do conflito entre os sistemas psíquicos; o conflito, sendo definido pela repressão e, em última instância, pelo caráter das representações sexuais que operam atacando constantemente o sujeito sob a forma de compulsão à repetição, ou seja, sob forma de pulsão de morte. Outros enfatizam em excesso os influxos da realidade externa, podendo chegar à desconsideração total do caráter intra-subjetivo do conflito psíquico que dá lugar ao sintoma. 110 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Segundo Freud, os indicadores que informam sobre a existência ou não de um processo analítico se revelam pela recuperação da amnésia infantil, pela recuperação das lembranças reprimidas e escindidas e pela análise sistemática das resistências. Além disso, não esqueçamos que o sentido da história constitui um indicador essencial do que tem de ser descoberto em psicanálise. O conceito de campo analítico criado por Willy e Madé Baranger (BARANGER, 1961) aporta valiosos indicadores clínicos para a avaliação da existência ou não de um processo. Assinalam que “a fluidez de um discurso não basta se não for acompanhada da presença de uma circulação afetiva dentro do campo”. A vivência pura não cura. Só a convergência de ambos indicadores (variação do relato e circulação afetiva) nos informa cabalmente sobre a existência do processo, no qual o analista necessita escutar o analisando com sua mente e com seus afetos (BARANGER, 1992). A dialética entre produção e resolução da angústia e as transformações qualitativas desta limitam o processo. O indicador mais valioso são os momentos de insight, mas ainda resta diferenciar o verdadeiro do pseudo-insight, que visa ao auto-engano do sujeito e também nos enganar acerca de seu progresso. O insight verdadeiro se acompanha de uma nova abertura da temporalidade. A temporalidade circular da neurose se abre para o futuro. A clínica e a metapsicologia são interdependentes. As tentativas de simplificação provocam uma severa limitação no alcance explicativo da vasta complexidade dos processos anímicos. A adolescência nos convida à busca e à reformulação da metapsicologia a partir dos questionamentos que provoca a partir de nossa prática analítica. Em continuação, com base em meu esquema referencial teórico, exporei os quatro eixos metapsicológicos mais importantes que me orientam na detecção da existência de um processo ou de um não-processo na psicanálise com adolescentes. Esses guias metapsicológicos ajudam-me a avaliar se foram suficientemente elaborados os seguintes temas: Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 111 Luis Kancyper 2.1. Indicadores clínicos e fundamentos metapsicológicos O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA a) os auto-imagens narcisistas; b) os complexos materno, paterno e fraterno; c) o reordenamento das identificações; d) a confrontação geracional. a.1) As auto-imagens narcisistas As auto-imagens narcisistas são suportes figurativos que representam o “sentimento de si”, o sentimento da própria dignidade (Selbstgefühl) (FREUD, 1914). Operam como os pontos de partida desde os quais o adolescente se relaciona consigo mesmo, com o outro e com a realidade externa. Intervêm como referenciais constantes que, de um modo contínuo, participam, mediante o a posteriori, na estruturação e desestruturação de sua singularidade. Essas imagens persistem e insistem de uma maneira autônoma em relação à vontade, não cessam de funcionar, ficando o adolescente paradoxalmente girando ao redor de suas próprias auto-imagens, como dando voltas preso a uma nora2, pois as auto-imagens narcisistas são desconhecidas, fundamentais e singulares para cada sujeito. Desconhecidas por estarem constituídas por uma multiplicidade de processos inconscientes que permanecem vigentes, obscurecendo, portanto, seu valor dinâmico; fundamentais por serem estruturantes do aparato psíquico; singulares porque nelas se resume a história psicanalítica que particulariza cada sujeito. Esse assimila as auto-imagens e se transforma total ou parcialmente sobre o modelo das mesmas, ou seja, se identifica: ele é tais imagens. As auto-imagens narcisistas são representações-encruzilhadas que satisfazem o ego em sua necessidade de encontrar e organizar uma figurabilidade de convergência-coerência. No ano de 1909, Freud emprega o termo imagem viva de si mesmo, extraído de Fausto, de Goethe, parte I, cena 5: “Ele vê no ratão inchado, claro está, a viva imagem de si mesmo”. Descreve, então, o “Homem dos 2. Aparelho para tirar água dos poços, cisternas, rios, cuja peça principal é uma grande roda de madeira em volta da qual passa uma corda. (N. do T.) 112 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 113 Luis Kancyper ratos” que “freqüentemente havia sentido compaixão desses pobres ratos. O mesmo era um tipo asqueroso e mesquinho, que ao ficar furioso podia morder os demais e ser por isso açoitado terrivelmente. Real e efetivamente podia achar no rato a viva imagem de si mesmo” (FREUD, 1909.). Considero que todo processo analítico requer que se ponham em evidência e se elaborem as auto-imagens narcisistas que particularizam cada analisando e suas flutuações, revelando os processos inconscientes que intervieram na constituição das mesmas e o núcleo de verdade histórica, no singular ou no plural, em torno dos quais foram construídas. O trabalho analítico requer desmontar as auto-imagens narcisistas e a polissemia ligada a elas e revelar as crenças psíquicas subjacentes às mesmas. Essas são condições essenciais de nossa tarefa analítica para que o analisando, ao desativá-las, alcance reestruturar sua biografia. Assim, transforma-se, em grande medida, em autor suficientemente responsável, e não em um espectador passivo e inerme, vítima de um imutável destino (KANCYPER, 1989). Adrián via no “burro de carga” (burrito carguero) a viva imagem de si mesmo. Essa era uma de suas auto-imagens narcisistas mais privilegiadas, na qual convergiam uma multiplicidade de processos inconscientes que revelavam e mantinham, por sua vez, seu Selbstgefühl, seu sentimento de autovalorização e de dignidade que satisfazia suas moções narcisistas e masoquistas. Ele era o que suportava estoicamente o sobrepeso dos mandatos parentais e obrigações fraternais para redimir as angústias e culpas do meio familiar; ele era o feitor martirizado (LACAN, 1982). As auto-imagens narcisistas são de complexa edificação e de esclarecimento difícil. Adrián havia me procurado aos 18 anos, a partir da reiterada insistência de sua mãe devido ao recrudescimento dos acessos asmáticos que já não respondiam aos tratamentos médicos. Além disso, estava desorientado em sua escolha vocacional. Cursava naquele momento o último ano de seus estudos secundários. Havia também a incontrolável violência familiar que, segundo a versão de ambos pais, se apresentava numa escala de O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA agressividade entre Adrián e Flávia, sua irmã mais velha três anos. Alejandra, que tinha 12 anos, não participava aparentemente da vida familiar, “ficava de lado” (FREUD, 1921), inibindo de um modo eloqüente seu crescimento. O pai (50 anos) e a mãe (48 anos) eram profissionais exitosos e exigentes consigo mesmos. Atarefados pelas demandas econômicas e por elevadas aspirações intelectuais, não podiam governar a violência familiar que se originava, na maioria das ocasiões, a partir da conduta provocativa, desestruturada e desestruturante da filha mais velha. Faltava uma função parental estruturante para sustentar e regular a angústia transbordante e as passagens ao ato que costumavam precipitar-se de modo súbito nos progenitores e entre os irmãos. O conflito fraterno teve efeitos muito relevantes na história do “burro de carga”. A presença de uma filha e irmã perturbada alterou profundamente a vida anímica de todos os integrantes, ocupando e inundando a economia libidinal dos espaços mentais parentais e, como conseqüência, alterando a estruturação psíquica de Adrián e Alejandra. O desafio tanático fraterno havia sido um dos eixos temáticos mais repetitivos e conflitivos ao longo de todas as fases desse processo analítico. Esse caso reafirma que o complexo fraterno não é um mero derivado do complexo de Édipo, nem tampouco um simples deslocamento das figuras parentais sobre os irmãos. Apresenta sua própria envergadura estrutural. Representa uma “via régia” para ascender a elucidação e processamento das conflitivas edípica e narcisista com as quais também se articula. Assim como cada sujeito possui uma estrutura edípica singular-particular, caso misto da combinação da forma chamada de Édipo positivo e negativo, configura também um complexo fraterno único, com seus componentes destrutivos e construtivos (FREUD, 1920). A psicodinâmica da fratria se fez presente desde as primeiras sessões. Seu trabalho de elaboração se estendeu ao longo de todas as fases do processo analítico, eclipsando o centro da atenção de Adrián. 114 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Eu tenho bronca com os meus pais. Permitem tudo a Flávia, e ela todo o tempo exige coisas. Eu pago todas as minhas coisas. Minha irmã passa todo o tempo incomodando, exigindo e pedindo. Minha mãe toma uma atitude tão trouxa! Não a enfrenta. Jamais lhe diz nada. Ou então briga horrores com ela, mas depois acaba comprandolhe tudo. Eu vejo uma injustiça com eles mesmos. Quando, às vezes, propõem a Flávia algo que ela não aceita, a discussão pode terminar em agressão. Creio que muitas vezes não lhe explicam as coisas para não brigar e então é sempre igual. Termina obtendo o que quer e depois eu fico furioso com ela e com eles. Sinto que meus pais não conseguem dizer não a ela. Eu trato de tomar parte, mas é muito pouco. Com minha irmã guardo um conjunto de sentimentos que não consigo expressar. É algo especial. Não descarrego, nem me alivio. Interpreto-lhe até que ponto ele, à semelhança daquilo que critica em seus pais, termina finalmente afogando seus sentimentos e pensamentos e se submete também aos caprichos de sua irmã, postergando a si mesmo. Tenho um sentimento de impotência com todos. Como quando tu vês que no governo conchavam, conchavam e subornam e roubam. Sinto que cada vez que digo algo a meus pais, é como se não lhes tivesse dito nada, e minha irmã é impossível. Quando tens uma irmã famosa, que ocupa muito espaço, te dá inveja. Mas quando tens uma como a minha, que cria uma situação tóxica, te dá vontade que desapareça, ou que vá para bem longe. Me dá também um pouco de pena por ela, porque está perdendo tudo. Não estuda, não consegue se ligar afetivamente com ninguém, não toca mais música, sei lá, anda com essa loucura da indiferença. Quando estamos bem, compartilhamos muitas coisas. Assim oscilo com ela, na luta entre a paixão e o ódio. Eu sinto que gosto dela, mas ela é tóxica, dá para entender? É como um material radioativo que emana constantemente radioatividade e contamina tudo. Que queres que te diga? Sinto-me impotente com ela e com os meus pais. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 115 Luis Kancyper a.2) Os anúncios em cartaz O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA Assinalo-lhe que talvez seu estado de impotência tenha certa relação com etapas anteriores compartilhadas com sua irmã, quando ambos eram pequenos e quando a diferença de três anos de idade marcava também uma diferença muito grande de poderes e direitos. Desde pequeno minha irmã me batia muito. Meus pais às vezes intervinham e às vezes não. Eu nunca fiquei de braços cruzados quando ela me batia. Mas ela era maior e mandava em mim. Lembro-me que tinha que correr de manhã para ir ao colégio muito cedo porque ela queria sempre ser a primeira. No quarto ano fiquei sabendo que entravam em aula às oito e vinte e ela me dizia que era às oito e, se não saíamos bem cedo, fazia um escândalo, dizendo que por minha culpa ia chegar tarde e eu saía botando o avental com medo e correndo pela rua. Minha irmã me submetia, me castigava. Ela era muito grande, mas agora não a vejo mais tão grande e sim como um centro habilidoso de domínio. Dá e tira habilmente para ter tudo controlado. Ainda é ela quem toma as rédeas em algumas situações. Agora a situação é completamente diferente de como era antes. Já posso escapar mais de seu domínio, é uma arte que estou aprendendo aos poucos e sinto que vou conseguir. Estou entendendo melhor sua forma de exercer o domínio sobre os demais. (Pausa). Flávia ganhou a fama de que para ela não se pode pedir nada. Conseguiu isso cagando em todo o mundo. Eu tenho a fama de ser o burro de carga que se encarrega e soluciona tudo. A minha irmã Alexandra é outra intocável, não se pode contar com ela para nada. Se intitulou “pequenina e boba” e não é nem pequena e nem boba. E os meus pais ainda estimulam essa imagem. Muda o tom de voz e, com uma mistura de resignação e angústia, diz: Parece que meus pais não vão mudar a situação das minhas irmãs, mas eu vou mudar a minha. Sinto-me no meio de um redemoinho e a única solução é sair dele porque senão vou me afundar. Nessa sessão, destacam-se a especificidade e a articulação do complexo fraterno com as dinâmicas narcisista e edípica. Seus reflexos se faziam sentir inclusive na estruturação da hiperseveridade de seu superego e na 116 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 117 Luis Kancyper determinação da eleição vocacional. O leit motiv de seus pensamentos era não ser como Flávia, opondo-se reativamente a ela, em lugar de buscar ativamente um projeto de desejo próprio. Como a minha irmã eu não quero ser, repetia em várias sessões. Antes eu agia em oposição ao jeito de Flávia. Me lembro de até conscientemente me propor a fazer algo completamente diferente do que ela fazia. O pior que o meu pai fazia era dizer: tu és igual a tua irmã. Outra variante da mesma coisa era quando me misturava com ela. Creio que meu pai se enganou ao misturar-nos. Acho que era um mau recurso para tentar restaurar sua relação com minha irmã. Minha irmã passa o tempo todo pedindo dinheiro e não reconhece nada. É tão cretino o que faz que a mim me dá muita raiva! Se eu fosse o meu pai, daria uma surra nela. Meu pai não sabe o que fazer. Se não dá dinheiro, ela diz que vai embora. Se lhe dá, ela questiona porque recém agora foi dar. Então meu pai faz esta colocação: não há dinheiro para ninguém; há uma economia de guerra para todos. Acho que aí fica uma dívida conosco. Não porque nos deva algo, mas porque merecemos o reconhecimento da diferença. Alexandra sofre a mesma situação que eu. Isso me desperta muita raiva, muito rancor com meus pais. Eu entendo, mas não está certo. Sei que é uma postura difícil a deles, porque estão sempre querendo resolver. Tratam de melhorar a relação com ela e há momentos em que ela se tranqüiliza. Mas, ante qualquer situação, corre e sai de casa. Está no fim do mundo, telefona dizendo que está morrendo de fome e meus pais vão onde ela está ou mandam o cartão de crédito e, ainda por cima, ela diz que é a excluída da família. Gera sentimentos de merda e usufrui da situação. Adora filosofar que é um anexo da família. Mas é ela quem tem um funcionamento totalmente à parte. Vem, entra, sai. É como um parasita, com a diferença que ainda pede dinheiro. Já faz anos que luto para me livrar dela, mas ainda não me livrei totalmente. Sempre me sobrecarrego com um sentimento de culpa por todos. No terceiro ano do processo analítico, os pais me anunciam que, independentemente do tratamento individual de Adrián, decidiram começar uma terapia familiar porque a situação estava insustentável. Concordo com O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA a proposta, mas Adrián, inicialmente, resiste a participar. Acho que meus pais pedem essa terapia porque é uma maneira de generalizar a situação para não ver que há problemas pontuais. Provavelmente seu problema nos afeta a todos, mas pertence a ela. Ela é muito intrusiva, se mete em tudo e não dá a mínima atenção para o que eu faço. Eu sou como o meu pai, muito impulsivo. Quando fico bravo, fico muito violento. Minha irmã é muito sutil para me tirar do sério. Me exaspera, me violenta e depois o violento pareço eu. Após poucos meses de terapia familiar, Adrián decide, independente de Alejandra, não participar mais das sessões e me relata como enfrentou Flávia e seus pais na presença do analista. Então disse a Flávia: não quero que te metas mais no meio, não me mistures contigo. Tu ficas ignorando os problemas e vives te comparando a mim. O pai empresta o carro para mim porque sabe que eu o cuido e que pode confiar em mim. Mas tu o deixas atirado em qualquer lugar, já bateste duas vezes e não assumes as responsabilidades. Então vens para casa e começas a fazer escândalos: que é injusto, que para mim me dão o carro e para ti não. Começas a me misturar contigo até que o pai acaba não emprestando também para mim. Então lhe disse: olha, Flávia, se queres ter as tuas coisas, briga por elas para ti e assume o que é teu, mas não me metas no meio. Minha relação com o pai é problema meu. Se queres chegar a um acordo com ele, trata de solucionar sozinha. Por favor, nunca mais me incluas em uma conversação desse tipo. Por favor, não me fodas mais. Depois, fui embora com meus pais e lhes disse: vocês me dão a responsabilidade de proteger Flávia e Alejandra. Me sinto uma má pessoa quando não quero assumir essas obrigações. A confusão com tudo isso me tira do foco. Não quero seguir sendo o responsável por elas. Elas não se responsabilizam pelo que lhes corresponde. Seguem lavando as mãos e finalmente me sinto eu um lixo, uma bosta. Eu aqui não venho mais. A oposição de Adrián em continuar a terapia familiar (Alejandra continuou participando por mais dois anos) despertou ofensas e resistências, principalmente no pai, começando a atrasar o pagamento do tratamento, 118 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 b) Os complexos materno, paterno e fraterno Outra das funções básicas do processo analítico é fazer consciente o inconsciente e fomentar o trabalho de elaboração dos complexos materno, paterno e fraterno no quebra-cabeça mental de cada analisando – no sentido de como se apresentam, se articulam e se protegem entre si, destacandoSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 119 Luis Kancyper precisamente num período fecundo de seu processo analítico individual, quando começava a desidentificar-se da missão redentora do infans – de carregar sobre suas costas culpas e responsabilidades de outros que não lhe cabiam. Desidentificação essa que possibilita liberar e “matar” essa criança marmórea que garante a imortalidade própria e a dos outros, para alcançar assim a desidentificação de identificações alienantes. A “morte” da imortalidade condiciona o nascimento do ego. Leclaire, ao referir-se a esse assassinato diz que “é necessário e impossível daquela criança maravilhosa ou terrorífica que fomos nos sonhos dos que nos fizeram ou nos viram nascer. Para viver devo matar a representação tanática do infans em mim, a fim de que outra lógica apareça, regida pela impossibilidade de efetuar esse assassinato de uma vez por todas e pela necessidade de perpetuá-lo em toda oportunidade que se fale verdadeiramente, em todo o instante em que se começa a amar” (LECLAIRE, 1975). A morte do infans reanima sentimentos de desvalimento e raiva pela perda da fantasia que assegura a ilusão de alcançar, através da fusão, o amor de eternidade imutável. Com efeito, a desidentificação do infans põe à prova a estabilidade dos sistemas narcisistas nos planos intra-subjetivo ou intersubjetivo. Isso ocorre porque a ameaça de desprendimento, implícito no processo de desidentificação em ambos sistemas, reativa nos pais e no filho adolescente os lutos do passar do tempo ante a perda do neném que cresce e dos pais que envelhecem (temporalidade linear). Ao mesmo tempo e fundamentalmente se ressignifica, de forma retroativa, a assunção das próprias incompletudes que evitavam assumir devido ao filho “tapa-buraco” sempre presente e/ou aos pais protetores e imortais. O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA se o valor estruturante e permanente dos mesmos. “Um homem” – escreveu Freud a Ferenczi – “não deve lutar para eliminar seus complexos e sim para reconciliar-se com eles, pois são legitimamente os que dirigem sua conduta no mundo”. O processo analítico requer que se enfatize, o mais detalhada e exaustivamente possível, a interpretação, a construção e a elaboração das distintas posições adotadas pelo adolescente no assumir e no resolver questões referentes a estruturas fundantes da subjetividade. b.1) Filho progenitor-irmão progenitor “Porque estamos muito próximos, e a criança é o progenitor de quem o tomou em suas mãos de adulto uma manhã e o alçou no consentimento da luz.” Yves Bonnefoy (1997) “O processo de identificação congela o psiquismo em um ‘para sempre’ característico do inconsciente que se qualifica de atemporal. O processo de desidentificação libera o ‘para sempre’ de uma história que aliena o sujeito da regulação narcisista. Constitui assim a condição que possibilita liberar o desejo e construir o futuro” (FAIMBERG, 1985). Durante a desidentificação, é produzida a defusão da pulsão de morte, pois se dissolvem – desestruturação implícita e transitória em toda elaboração do processo desidentificatório – os laços afetivos com determinados objetos para possibilitar sua passagem para outros objetos, o que reabre o acesso à configuração de novas identificações em uma reestruturada dimensão afetiva, espacial e temporal (FREUD, 1923). A desidentificação pode ser vivenciada em todas as etapas da vida, mas de maneira mais patética durante o período da adolescência, como um desgarramento daquela pessoa que foi uma parte do si-mesmo próprio. Esse processo leva consigo a ameaça para o sentimento de si-mesmo, tanto do filho como dos pais, de perder a sustentação que conserva a regulação da estrutura narcisista. Essa sustentação se nutre a partir da imagem de pais salvadores e supervaloriza120 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 121 Luis Kancyper dos que o filho tem e da imagem de filho idealizado e messiânico que os pais têm. Ambas as partes se conservam mediante uma envolvente administração de oferecimentos e ameaças verbais, materiais e afetivas, numa prolongada pseudo-individuação de negociações narcisistas com temporalidade ambígua. Esse ideal de onipotência, que oscila entre o filho adolescente e seus pais, põe em cena as técnicas de afastamento e aproximação entre credores e devedores, em seu movimento pendular condicionado às tendências da agressividade. Enquanto que a agressividade a serviço de Eros tende à discriminação do outro, a agressividade a serviço de Tanatos promove a indiscriminação nefasta com o outro e apaga as fronteiras entre o ego e o não-ego, entre a realidade psíquica e a realidade material. A pulsão de morte, liberada durante o processo de desidentificação, pode sofrer dois destinos: o primeiro seria ligar-se a novas identificações; o segundo seria permanecer livre e se distribuir para que uma parte fosse assumida pelo superego, acrescentando sua severidade e se voltando assim contra o ego, e outra parte exercitando sua atividade muda e nefasta como pulsão livre no ego e no id. Tanto as partes ligadas como as não ligadas da pulsão de morte se manifestam em sentimentos de culpa e de necessidade inconsciente de castigo, acompanhados de um halo inquietante de sentimentos de pânico, horror, incerteza, inércia, orfandade, vazio e morte. Isso corresponde precisamente ao Unheimlich do acionado setor de Tanatos que se subtraiu do domínio logrado mediante a ligação a complementos libidinosos e que segue tendo como objeto o próprio ser. A mistura e a combinação muito vastas e de proporções variáveis entre os sentimentos de culpa e de raiva que sobrevem necessariamente como resultado do processo da desidentificação durante a adolescência podem expressar-se na clínica como remorsos, ressentimentos, culpa e vergonha, manifestos e latentes, pré-edípicos e edípicos, básicos e fraternos, primários e secundários (KANCYPER, 1991a, 1991b). O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA O estado de mortificação psíquica, implícito em todo o processo desidentificatório, adquiriu uma maior dramaticidade durante o terceiro ano do processo analítico de Adrián. Houve momentos de depressão em conseqüência do processamento dos lutos narcisistas ante a desidealização de seu ego ideal e ideal de ego por depor uma relação de poder, desejada e ao mesmo tempo temida, o que reanimava seu sentimento de onipotência infantil, enquanto exercida a paradoxal e revertida dependência de seus pais para com ele (GOLDSTEIN, 1994). Adrián tinha sido elevado pelas mãos de seus pais à categoria de “a luz” que ilumina e os mantém: o filho progenitor dos próprios pais a quem devia fornecer vitalidade e esperança, mas dos quais requeria, por sua vez, ser mantido e cuidado. Criava-se uma situação paradoxal na qual superinvestia o seu idealismo com fantasias de autogeração e de neogeração, às expensas da pulsão. Como conseqüência, sua agressividade, necessária para confrontar os pais e irmãos, permanecia sufocada, e seus afetos, hibernados e/ou voltados contra si mesmo, costumavam exteriorizar-se através de sintomas psicossomáticos e tormentos mentais. Além disso, recaía sobre o “burro de carga” o peso de outra crença inconsciente, até esse momento imovível e não questionada: ele, como o “filho varão e sadio”, tinha a missão de atuar ante suas irmãs como um vicário duplo parental; era o irmão progenitor. Ambas elogiáveis posições identificatórias reanimavam a hiperseveridade de seu superego e a desmedida criação de ideais de redenção, perfeição e domínio (KANCYPER, 1992a). A troca de papéis se mantinha em grande medida pela manutenção de uma particular fantasia que circulava entre todos os integrantes da família e que denominei “a fantasia dos vasos comunicantes”. b.2) Os vasos comunicantes (KANCYPER, 1997) Essa fantasia está baseada no modelo físico de um sistema hidrostático composto de dois ou mais recipientes que se comunicam por sua parte inferior. 122 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 123 Luis Kancyper Nos vasos comunicantes é possível verificar, experimentalmente, o fato de que, em todos os tubos de formas diferentes, a água ou o líquido vertido toma o mesmo nível em todos os vasos, já que, na realidade, os vasos e o tubo de comunicação formam um só recipiente cheio de líquido. A aplicação desse funcionamento à fantasia fisiológica de consangüinidade configura a representação dos irmãos como se fossem vasos comunicantes, relacionados entre si por laços de sangue e unidos ao tubo de comunicação parental que opera como uma fonte inesgotável que nutre e que distribui, de modo unitário, a todos os integrantes do sistema, para que finalmente tudo se mantenha em perfeito equilíbrio. Esse sistema premia a nivelação e condena a diferença. Nivelação não é solidariedade. É a negação da alteridade e do direito de ser a si mesmo. Eclipsa o direito ao desacordo e a abertura de imprevisíveis possibilidades e realizações que podem surgir a partir da confrontação geracional e fraterna. Mas toda confrontação requer como condição primária a admissão do desnível do arco de tensões que marca a diferença de gerações entre pais e filhos e entre cada um dos irmãos. Mas o princípio da nivelação dessa fantasia hidrostática bipessoal ou multipessoal dos vasos comunicantes, baseado no intercâmbio “arterial e venoso” e no empréstimo mútuo de “órgãos” entre os componentes do sistema, pode desencadear intensos sentimentos de culpa e necessidade de castigo quando se quebra sua homeostase. Aquele que faz essa quebra se desnivela dos restantes, podendo situar-se – se houver uma elaboração masoquista – na posição da “privilegiada vítima” que permanece presa, à espreita, esperando a desforra do outro ou dos outros ressentidos que, como vítimas privilegiadas, poderiam conspirativamente vingar-se dele. Estabelece-se, assim, um pêndulo retaliativo de recriminações e ocultamentos, de queixas e remorsos. Esses vínculos conflitivos entre irmãos podem deslocar-se para a relação com os amigos e com o cônjuge. Pode presentificar-se, além disso, dentro do próprio sujeito, flutuando de um modo repetitivo entre ambas as posições: de vítima privilegiada a privilegiada vítima com pensamentos e O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA atos de contrição. Uma preocupação permanente nesse processo era evitar a interpretação e elaboração excessivas da dimensão intersubjetiva sobre a intra-subjetiva. O postulado freudiano fundamental formula que o conflito psíquico que dá lugar ao sintoma é um produto transacional entre os sistemas e estruturas psíquicas e, em última instância, é a manifestação do enlace e do desenlace das pulsões de vida e de morte. Adrián pedia para ser liberado de suas representações obsessivas. A luta contra essas idéias o impedia de concentrar-se em seus estudos. Argumentos e contra-argumentos em relação à escolha vocacional brigavam entre si. Assaltavam-no de novo dúvidas sobre se deveria seguir esforçando-se no estudo da mesma profissão que exercia seu pai. Já estava cursando o segundo ano da faculdade de biologia, mas havia fracassado em várias matérias. Não podia manter o ritmo de estudo de seus companheiros e, no fundo, assediava-o continuamente um conflito de lealdades em relação ao complexo paterno. Sentia que devia ser como o epígono do pai e, por sua vez, se revoltava. Terminava martirizado com toda classe de pensamentos obsessivos e, simultaneamente, apareciam sanções que tinha que infligirse pelo não cumprimento dos deveres e ideais para a satisfação de suas necessidades de castigo. Sempre tenho a sensação de estar fazendo um pouco menos do que poderia fazer e que posso fazer um pouco mais. A atitude de meu pai me ativa o dedo com a fita vermelha (era a representação figurativa com que denominava o acionar da hiperseveridade de sua instância superegóica) (KANCYPER, 1991b). Entra meu pai e me diz, o que estás fazendo? Nada, lhe digo. Como não estás fazendo nada? E ali sinto a pressão e começo a ficar obcecado porque, na verdade, não estou fazendo nada. Estou perdendo meu tempo e no momento aparece o dedo com a fita vermelha, sinalizando que é proibido não fazer nada. Ao contrário, a mãe não é assim. Quando me vê sem fazer nada me pergunta: que estás fazendo? Nada. Ah que sorte, me diz. Meu pai acredita 124 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 125 Luis Kancyper que sua pressão é o melhor. Meu pai e meu tio são de se desesperar pelas coisas. Começam aos gritos e assim andam os dois, com a pressão alta e com estresse. Eu também sou assim. Começo a me chicotear. Quando algo não me sai bem, me recrimino muito. Me mortifico. O que acontece é que às vezes é a única maneira que tenho para carregar as pilhas. Sem desespero não tem motor e, se não me desespero, não faço nada. Não encontro o ponto médio. Ontem não pude estudar nada e me puni. Não me permiti dormir a sesta por levantar-me tarde. Antes era pior comigo mesmo. Me castigava, não me permitindo sair no sábado à noite por não haver estudado o suficiente. Não suporto que as coisas me saiam mal. Fico mal. Fico me torturando mentalmente. Interpreto que ele impõe a si um controle tão severo que acaba asfixiado e cansado e, ao não cumprir com seus próprios ideais de perfeição, vai para o canto das penitências, tornando-se um verdugo de si mesmo. (Ele ri.) Sim, muito boa essa. Mas agora estou me aliviando de coisas. Eu era um fervedouro por dentro e não colocava nada para fora. Agora estou mais tranqüilo por dentro. Mas ainda sigo sendo muito severo comigo. Não me perdôo, me castigo. Às vezes mordo o meu dedo porque não consegui tirar alguma coisa na guitarra; ou bato na cabeça com o punho quando não entendo o que leio, quando a ficha não cai. Aplico um corretivo em mim, um pequeno golpe de ânimo (ri). Às vezes, bato forte com uma régua de madeira e a cabeça fica doendo. Outras vezes, bato nas portas que são de carvalho, duras. Elas agüentam porque já foram muito sacudidas. É uma forma de descarregar tensões, dando golpes nas portas. Mas minha irmã descarrega em todos os que estão ao seu redor. Ela é como um vulcão que está apagado e deixa sair um fiozinho de fumaça, mas a gente não sabe quando pode entrar em erupção. Interpreto que dentro dele existem também certas situações de angústia que, como um vulcão, não as pode dominar e que, quando entram em erupção, o fazem mais por implosão do que por explosão (KONONOVICH, 1999), até o extremo de ficar exausto e envolvido por O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA uma avalanche de sanções, de auto-reprovações e de acessos de asma brônquica. A flexibilização gradual da figura feroz e cruel de seu superego foi resultado da análise e da elaboração exaustiva acerca de sua posição na dialética subjetiva das relações estruturais, acerca de seu posicionamento ao desejo do desejo do Outro (LACAN, 1999), tanto no Édipo como complexo nuclear da neurose, quanto no complexo fraterno e na dinâmica narcisista do duplo no complexo do semelhante (Nebenmensch). Agora não me reprovo tanto. Faço as coisas mais de forma consciente e não por obediência. Faz muito tempo que não tenho notícias do dedo com a fita vermelha. Vou lhe tirar a fita. Vou trocá-lo por uma agenda. Nem faço tanto drama pelas coisas. Estou tomando a atitude de não criar tanto problema, a não ser que seja necessário. Antes me preocupava muito mas não me ocupava. Agora trato de procurar a solução. Estou mais tranqüilo comigo mesmo. No domingo pude tomar mate sem fazer a lista do que tinha para fazer. Quisera merecer ter gratificações não como um prêmio, mas como algo natural. Finalmente Adrián decidiu abandonar a faculdade de biologia e escolheu, depois de vários meses de incerteza, ingressar na faculdade de arquitetura. Essa mudança foi respeitada e apoiada por seus pais. Só aí começou a desfrutar o estudo, e suas inibições intelectuais cederam. Sua vida afetiva e social não apresentava maiores dificuldades. Mantinha há alguns anos um relacionamento estável com Mariela, “sua princesinha de sempre”, com ternura e satisfação sexual. Não temia amar e permitia ser amado, ao mesmo tempo em que conservava uma relação fluida com seus pares. Praticava esportes e com dois amigos constituiu uma pequena sociedade. Em pouco tempo surgiram conflitos com o sócio mais velho, reeditando com ele sua relação de tormento com Flávia. Dissolveuse a sociedade, mas continuou com o outro companheiro e com bons resultados. Agora me referirei aos outros dois dos quatro eixos metapsicológicos 126 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 c) O reordenamento das identificações d) A confrontação geracional O reordenamento das identificações durante a cura analítica atravessa vários processos e subprocessos de desidentificação e reidentificação, vários subprocessos de desligamento e de novas ligações que se acompanham inexoravelmente de angústias, de fantasias nefastas e de recrudescimentos sintomáticos. Esses subprocessos, inerentes aos processos de reordenamento do complexo sistema das identificações, facilitam a emergência conjunta de intensas angústias e fantasias também no analista, que deverá avaliar, segundo seu marco referencial teórico, os movimentos regressivos e progressivos dessas fases elaborativas. Para adotar um exemplo que consiga ilustrar de que modo a metapsicologia e a observação clínica se fecundam reciprocamente, empregarei um conceito teórico relacionado com a temporalidade analítica: o a posteriori, a ressignificação retroativa. Esse conceito teórico funciona como um guia que tem um valor heurístico nos processos elaborativos de certas identificações alienantes e que incide, além disso, na avaliação das diferentes resistências que se opõem às mudanças, resistências que provêm da realidade psíquica e da realidade externa avassalando o ego. c.1) Ressignificação e memória [A memória,] “essa sentinela da alma”. Shakespeare (1953) A ressignificação ativa uma memória particular, aquela relacionada às cenas traumáticas da história secreta reprimida e cindida do sujeito e, por sua vez, entremeada com as histórias inconscientes e ocultas reprimidas e cindidas de seus progenitores e irmãos. Essas histórias e memórias entrecruzadas participaram da gênese e da manutenção de certos processos identificatórios alienantes. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 127 Luis Kancyper de referência que me orientam acerca da existência de um processo ou de um não-processo no tratamento analítico com adolescentes. O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA A memória da ressignificação, “essa sentinela da alma”, abre, em um momento inesperado, as portas do esquecimento e dá saída para uma vulcânica emergência de um caótico conjunto de cenas traumáticas que foram longamente suprimidas e não significadas durante anos e inclusive gerações. A ressignificação do traumático acontece durante todas as etapas da vida – porque o trauma tem sua memória e a conserva –, mas explode fundamentalmente durante a adolescência, etapa culminante, caracterizada pela presença de caos e de crises inevitáveis. Nessa fase do desenvolvimento, precipita-se a ressignificação do não-significado e do traumático de etapas anteriores à remoção das identificações, para assim poder alcançar o reordenamento identificatório e confirmar a identidade (KANCYPER, 1985). É durante a adolescência que as investiduras narcisistas parento-filiais e fraternais que não foram resolvidas e nem abandonadas entram em colisão. Essas requerem ser confrontadas com o depositado pelos outros significativos, para que o sujeito logre reordenar seu sistema múltiplo de identificações, aquele que o alienou no projeto identificatório original. O identificado (identificação projetiva para uns, depósito e especularidade para outros) responde sempre ao desmentido, tanto para o depositante quanto para o depositário (ARAGONÉS, 1999). Todo sujeito terá de, inexoravelmente, atravessar a angústia de confrontação com seus pais e irmãos nas realidades externa e psíquica para libertar-se daqueles aspectos desestruturantes de certas identificações. Terá de defrontar-se com o que o outro (mãe, pai, irmão) nunca alcançou confrontar. A confrontação coloca o outro (do qual o sujeito depende) na situação de perder seu depositário, ou seja, acarreta o perigo de desestruturar a organização narcisista do outro. A desestruturação do vínculo patológico narcisista arrasta e desencadeia a desestruturação narcisista do outro. Esse processo, que ameaça com uma dupla ruptura narcisista, pode ir acompanhado de intensos sintomas e angústias de despersonalização ou desrealização 128 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 129 Luis Kancyper por ambas partes do vínculo (KANCYPER, 1992b). As fantasias de morte que se desencadeiam antes e durante o ato da confrontação podem ser a manifestação da morte dessas instalações narcisistas e de certas idealizações e ilusões; podem ser a manifestação da queda em definitivo de sobre-investiduras maravilhosas, e isso pode subjetivar-se como momentos de tragédia na lógica narcisista. Aragonés considera que as investiduras narcisistas alteram os papéis na trama familiar, alterando a configuração do tabuleiro de parentesco (1). Os filhos não chegam a ocupar o lugar simbólico de filho e de irmão, e os progenitores não logram libertar-se do primitivo lugar de filho ou de irmãos, dando lugar a identificações alienantes. O filho pode chegar a carregar a sombra de um luto não resolvido por um objeto dos progenitores. O autor considera que “esse objeto é duplamente inconsciente” (tanto para o depositário como para o depositante), situação que somente a reconstrução da história (primeiro na mente do analista) pode dar a sua verdadeira representação. O não confrontado dessas identificações alienantes da adolescência, permanece cindido e, portanto, ativo como costuma estar aquilo que é inconscientemente cindido. A resolução dessas identificações alienantes requer ser apreendida desde o conjunto do campo dinâmico parento-filial e fraterno, fato que se poderá traduzir na teoria da técnica, em alguns tipos de intervenção com os pais e/ou irmãos para processar os efeitos do cindido. Nesses processos e subprocessos do reordenamento das identificações se reativam múltiplas e variadas resistências que se opõem à continuidade do trabalho elaborativo. Em primeiro lugar, essas resistências requerem um estudo, o mais preciso possível, para distinguir as cinco formas clássicas da natureza das mesmas assinaladas por Freud, ao final de Inibição, sintoma e angústia (FREUD, 1926). Três delas são atribuídas ao ego: a repressão, a resistência de transferência e o ganho secundário da doença, que se baseia na integração do sintoma no ego, além da resistência do id e do superego. Em segundo lugar, temos as outras resistências que chegam a constituir-se no campo dinâmico por uma cumplicidade que engloba tanto O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA a resistência do analisando como a contratransferência do analista; essas são comunicadas inconscientemente entre si e operam juntas. Em terceiro lugar, temos a participação de certas resistências geradas pela pressão atuante na realidade externa de certos influxos desestruturantes que avassalam o ego. São momentos pontuais que demandam uma mudança técnica na estratégia terapêutica clássica. Essa mudança aponta para a inclusão de outros significativos da realidade material para dentro do trabalho clínico, com ou sem a presença do analisando, através da implementação de sessões vinculares de casal, entre irmãos, entre pais e filhos e/ou familiares. Em função disso, cabe ao analista, que é forçosamente como “o ego mesmo, uma criatura de fronteira” (FREUD, 1923), revisar separadamente o acionar da origem e natureza de cada uma dessas resistências – e portanto necessita fazer um esforço para concebê-las em conjunto – e investigar, ao mesmo tempo, a íntima relação existente entre elas. Assim, como resultado, fundamenta metapsicologicamente suas modificações técnicas, segundo o particular momento que atravesse esse processo ou não-processo analítico. No quarto ano do processo analítico, resolvi convidar ambos os pais a algumas sessões com Adrián, porque a continuidade do tratamento começava a correr riscos. Havia se configurado um prolongado conflito de lealdades parento-filial e comigo, em que participavam resistências geradas pelos pais e por Adrián. Minha proposta foi inicialmente rejeitada por Adrián. Não queria incomodá-los. Considerava que ia poder solucionar a determinação do pai de um prazo para o pagamento das suas sessões, o que aumentava a dívida comigo, obstaculizando o prosseguimento do processo, e as dívidas e culpas nele, porque sua diferenciação era equiparada a uma traição que afetava a tradição da ideologia de sacrifício, mantida pela fantasia familiar dos vasos comunicantes. Suas resistências se exteriorizaram através de reiterados esquecimentos, de momentos de tédio e de silêncios prolongados durante as sessões e também por sua insistente oposição à inclusão dos pai, o que possibilitou colocar em evidência na reedição transferencial como ten130 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 131 Luis Kancyper tava posicionar-se ante mim sendo um filho e um irmão progenitor. Possuidor de uma ilimitada capacidade de transformar o outro e agüentá-lo todo sobre suas costas como um “burro de carga”, não avaliava o preço do sofrimento nem o perigo que lhe proporcionava essa missão redentora (STEINER, 1991). Assinalei-lhe que a mim não tinha de salvar e nem cuidar e que eu considerava que, para manter a continuidade de nosso trabalho conjunto, era necessário convidar os pais com a finalidade – dentro do possível – de esclarecer certos obstáculos que estavam atuando no campo analítico. Finalmente Adrián aceitou minha proposta. Convidei os pais, e ambos compareceram. O pai, tenso, começou a falar com irritação, argumentando que, antes de começar a terapia, seu filho era diferente. Ainda que reconhecesse e agradecesse que ele quase não apresentava mais acessos asmáticos e que a troca de faculdade havia sido uma medida adequada, porque estudava com entusiasmo e com bons resultados, considerava inadmissível seu crescente egoísmo. Levantou o tom de voz e me disse: Perdoe-me, doutor, se posso chegar a ofendê-lo com o que vou dizer, mas será que o senhor não influi para que nosso filho tome essa atitude com sua irmã e conosco? Em minha família, mesmo que fossem outros tempos, todos dávamos uma mão quando alguém necessitava. Eu continuo fazendo isso com meu irmão, e minha mulher, nem lhe conto, ela muito mais do que eu, com sua irmã, com amigos. Mas Adrián não considera a presença do outro. Logo ambos os pais me comentaram acerca da profunda dor que tinham com a filha mais velha pelas viagens intempestivas e ausências reiteradas e relataram suas cenas de angústia. Assinalei-lhes que essa entrevista era para falar das dificuldades que ultimamente se haviam apresentado no tratamento de Adrián pelo atraso do pagamento e porque talvez esse adiamento mantivesse certo nexo com a brabeza e com o afã de represália ao filho e a mim, por sua oposição em participar da terapia familiar, mas que eles conheciam os sentimentos soli- O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA dários que Adrián tinha com todos e que sua luta por ser diferente não significava ser oponente nem inimigo. Nesse momento me ocorreu perguntar-lhes se conheciam a parábola do filho pródigo, porque supus que através do seu relato poderia fazer-se visível o invisível do terreno secreto em que transitam as fantasias, os afetos e as relações de poder entre pais e filhos quando um de seus integrantes adoece e desestrutura os demais. Não a conheciam. Então me dirigi à minha biblioteca, busquei o Novo Testamento e comecei a ler. c.2) Parábola do filho pródigo “Também disse: Um homem tinha dois filhos. E o mais moço disse a seu pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me corresponde; e o pai repartiu os bens. Não muitos dias depois, juntando tudo, o filho mais moço se foi para uma província distante; e ali desperdiçou os bens vivendo perdidamente. E quando havia gasto tudo, veio uma grande fome naquela província e começou a faltar-lhe. E foi e se apoiou em um dos cidadãos daquela terra o qual o enviou à sua fazenda para que criasse porcos. E desejava encher seu ventre com as alfarrobas que comiam os porcos, mas ninguém lhe dava. E caindo em si disse: Quantos empregados na casa do meu pai têm abundância de pão e eu aqui padeço de fome! Me levantarei e irei até meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e contra ti. Já não sou digno de ser chamado de teu filho; faz-me como um de teus jornaleiros. E levantando-se veio a seu pai. E quando estava longe, viu seu pai e foi movido pela misericórdia e correu e se atirou sobre seu pescoço e o beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e contra ti, e já não sou digno de ser chamado de teu filho. Mas o pai disse a seus servos: Peguem as melhores vestes e vesti-o; e ponham um anel em sua mão e 132 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 133 Luis Kancyper sapato em seus pés. Tragam o bezerro gordo, matem-no e comamos e façamos festa. Porque este meu filho estava morto, e reviveu; se havia perdido, e foi achado. E começaram a regozijar-se. E seu filho mais velho estava no campo; e quando veio, e chegou perto da casa, ouviu a música e as danças; E chamando um dos criados lhe perguntou o que era aquilo. Ele lhe disse: Teu irmão voltou; E teu pai mandou matar o bezerro gordo por tê-lo recebido bom e são. Então se enfureceu, e não queria entrar. Saiu, portanto, seu pai e lhe rogava que entrasse. Mas ele, respondendo, disse ao pai: Eis me aqui, tantos anos te sirvo, não tendo te desobedecido jamais, e nunca me deste nem um cabrito para divertir-me com meus amigos. Mas quando veio este teu filho, que consumiu teus bens com prostitutas, mandaste matar para ele o bezerro gordo. Ele então lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todas minhas coisas são tuas. Mas era necessário fazer festa e regozijar-nos, porque este teu irmão estava morto, e reviveu; se havia perdido, e se achou.” (S. Lucas, XV). O pai entendeu imediatamente a mensagem dessa dinâmica particular que se tramava entre os irmãos e entre o filho mais velho e ele. Compreendia intelectualmente, mas não aceitava a posição de Adrián, enquanto que a mãe, depois de secar as lágrimas, me olhou com desesperança e disse: Compreenda, doutor, que nossa situação é muito difícil e às vezes terrível. Assinalei-lhes que compreendia e admitia a dolorosa e preocupante situação, mas que Adrián se opunha a continuar girando ao redor do eixo de Flávia e das angústias que esta gerava nos pais, pois lhe atribuíam excessivas responsabilidades e culpas que o afetavam mental e fisicamente. Mas que isso não significava, de nenhuma maneira, uma ruptura de seus laços solidários para com os componentes da família. Os pais me cumprimentaram com amabilidade e com dor. O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA Tive mais duas sessões a sós com eles e inferi que lhes resultava quase impossível processar o luto narcisista, devido ao perigo que acarretava para a homeostase familiar o abandono da instalação narcisista depositada no filho homem como o vicário duplo especular deles. Quando fechei a porta do meu consultório, voltaram a ressoar em mim as palavras da mãe de Adrián: Compreenda, doutor, que nossa situação é muito difícil e às vezes terrível. Nesse momento despertou em mim o desejo de escrever, como um intento de dar corpo à minha experiência clínica e a às inferências metapsicológicas acerca dos efeitos que, em certas vidas, pode exercer a presença de um filho-irmão perturbado ou morto. Recordei a importância que tiveram os complexos fraternos nos processos identificatórios e sublimatórios em três eminentes criadores: Vincent Van Gogh, Salvador Dali e Ernesto Sábato. Lembrei das marcas que deixaram em suas vidas e em suas obras o infausto acontecimento de terem nascido logo e para substituir um irmão morto e serem, além disso, os portadores do mesmo nome do duplo consangüíneo falecido, esse ser ominoso e maravilhoso, mortal e imortal. Perguntei-me, parafraseando Freud quando asseverava que a anatomia é o destino, se a ordem do nascimento dos irmãos também era um destino. Como resposta me veio uma citação de Freud à mente: “a posição de uma criança dentro da série dos filhos é um fator relevante para a conformação de sua vida ulterior e sempre é preciso tomá-la em conta na descrição de uma vida” (FREUD, 1916). Os meses transcorriam, e as resistências do pai cediam muito pouco. Cada pagamento mensal representava uma batalha que desgastava Adrián e o processo analítico. No começo do quinto ano da análise, ele recorda em uma sessão: Eu quando pequeno tinha uma roupa do Zorro. Era o que impunha a ordem, a paz e a justiça. Ontem encarei meu pai em um round (ri). Estive treinando à tarde, socando o saco. Gritamos bastante. Apenas me escutou, mas creio que já é suficiente. Minha mãe está do meu lado. Não quer que eu deixe o tratamento. Eu 134 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 135 Luis Kancyper quero seguir um pouco mais, mas não muito. Ele segue me fodendo com o dinheiro. Eu sei que não é o dinheiro, mas quem o controla é ele. Muda o tom de voz e, enquanto manipula seu chaveiro, reflete: Antes havia seres mais ou menos intocáveis, meus pais e minha irmã. E agora, olhas para trás e vês que, na realidade, o gigante é um anãozinho. Vês o verdadeiro ser que estava escondido por de trás desse boneco grandão e intocável. Eu me sentia impotente, principalmente com minha irmã, que era tão autoritária e tão monopolizadora. Ela segue sendo e meus pais lavam as mãos. Foi como descobrir que são todos seres vulneráveis com seus prós e seus contras. Antes, eram meio superiores a mim; tinham uma tática para cada situação. Já peguei o jeito deles. E pensar que estava obstinado com a idéia de que iria mudá-los. Como podemos apreciar no fragmento dessa sessão, põe-se em evidência a desidealização gradual e não paroxística do objeto, do ego e do vínculo, processo fundamental sem o qual não existe mudança psíquica ou crescimento possíveis. O processo de desidealização conduz à prova de realidade mediante a retirada do elevado investimento (maravilhoso ou ominoso) que havia recaído tanto sobre o objeto supervalorizado (positiva ou negativamente) quanto sobre a onipotência do ego, com a conseqüente reestruturação do vínculo objetal. A prova de realidade permite diferenciar o que é “simplesmente representado” do que é percebido e, portanto, institui a diferenciação entre o mundo interior e o mundo exterior. Além disso, possibilita comparar o objetivamente percebido com o representado, com vistas a retificar as eventuais deformações desse último (LAPLANCHE; PONTALIS, 1971) . A retificação do valor do objeto, do ego e do vínculo entre ambos, que surge como efeito do processo da desidealização, pode apresentar-se de forma abrupta (paroxística) ou instalar-se de um modo lento e progressivo (gradual) (KANCYPER, 1990). O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA c.3) Desidealização paroxística A desidealização paroxística, produzida quando o processo da desidealização atinge o que anteriormente tinha papel defensivo para neutralizar o sentimento persecutório, pode levar a um desmoronamento melancólico do Selbstgefühl. Nesses casos, a desidealização acaba por denegrir totalmente o objeto e o ego e não prepara o caminho para aceitar um novo processo, o da reparação, que conduziria a saldar as dívidas internas e externas que se personificam nos ressentimentos e remorsos. c.4) Desidealização gradual O pagamento dessas dívidas está condicionado a um trabalho prévio, a um processo de desidealização gradual que implica a discriminação e o reordenamento da valorização do ego e do objeto. Essa mudança na atribuição de valores se produz quando o sujeito consegue assumir que na realidade efetiva aquele objeto original, outrora supervalorizado e deslocado para múltiplos objetos atuais (o devedor externo), carece dos atributos de perfeição de que o próprio sujeito o havia investido desde seu princípio do prazer infantil. Ao mesmo tempo, atenuam-se os sentimentos de culpa e as condutas autopunitivas ante os representantes do ideal do ego-superego (credores internos). A desidealização do poder ilimitado do ego se produz a partir de que o sujeito aceita resignar-se à inalcançável missão de dar cumprimento aos ilimitados ideais de perfeição e de completude que provêm de sua autoimagem idealizada e dos ideais parentais, conservando o vínculo com o objeto segundo pautas mais realistas e estáveis. Antes havia seres mais ou menos intocáveis, meus pais e minha irmã ... e pensar que estava obstinado com a idéia de que iria mudá-los. As condições para atingir a desidealização se produzem somente depois que o sujeito tenha vencido múltiplas batalhas de ambivalência, alcançando desprender-se das amarras provenientes das capturas narcisistas de seu ego ideal e do ideal de ego, batalha nas instâncias psíquicas ideais da personalidade onde moram os restos da onipotência divina nos homens 136 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 3. Final de análise Falar sobre o final da análise na adolescência atualiza uma problemática complexa. Implica considerar os conceitos explícitos e implícitos de doença e de cura, de analisabilidade e do processo analítico em geral, nesta fase em particular. Esse conjunto de fatores se reflete na maneira de categorizar os elementos que se consideram pertinentes como indicadores clínicos sobre o final da análise. A literatura dos últimos anos tem se ocupado mais com interrupções e situações de impasse do que com términos propriamente ditos, quando se trata de análise com adolescentes. As teorias clássicas sobre o final da análise, em geral, se centravam em questões referentes ao analisando e ao analista, mas, ao incluir-se o conceito de campo analítico na adolescência, entram em cena os pais do analisando. Antes de mais nada, o final da análise com adolescentes impõe a exigência de um trabalho psíquico adicional pela necessidade de processar uma multiplicidade de lutos em três dimensões: narcisista, edípica e fraterna, no analisando, nos seus pais e também no analista. Podem-se distinguir dois critérios que não são excludentes em relação ao final da análise: o critério que privilegia o modelo “médico de tratamento”, que supõe a supressão de sintomas e mudanças dos achados patológicos de caráter, e o critério que prefere utilizar o modelo de “processo”, que aponta a uma modificação estrutural concebida como o essencial do mesmo, em que ocorre a aquisição de novas estruturas de funcionamento que jamais seriam conquistadas sem a análise. Não só os indicadores clínicos variam conforme seu lugar de origem. Também os conceitos teórico-clínicos se modificam de acordo com o nível escolhido para sua conceitualização. Para considerar a noção de fim de análise creio ser pertinente fazê-lo desde a noção de processo de mudança psíquica estrutural, coerente com a perspectiva desde a qual abordo essa Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 137 Luis Kancyper incumbidos da missão de criar e/ou remodelar o objeto e o ego à sua imagem e semelhança. O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA relação, processo que é um conjunto interminável. O interminável é a permanente reestruturação que enfrenta o analisando em todas suas instâncias psíquicas em inter-relação permanente com a realidade material e social. O interminável seria a infinitude do processo, a busca de crescimento mental e de integração através da análise e da auto-análise ulterior. No capítulo VII de Análise terminável e interminável, Freud dizia: “Não tenho o propósito de asseverar que a análise como tal seja um trabalho sem conclusão. O término de uma análise é, opino eu, um assunto prático. Não nos proporemos como meta limitar todas as peculiaridades humanas em favor de uma normalidade, nem demandará que os ‘analisandos a fundo’ não registrem paixões nem possam desenvolver conflitos internos de nenhuma índole. A análise deve criar as condições psicológicas mais favoráveis para as funções do ego, com isso sua tarefa terá seguido todos os trâmites” (FREUD, 1937). Por fim, não esqueçamos que a relação entre analista e paciente se baseia no amor à verdade, ou seja, na aceitação da realidade, livre de toda ilusão e engano. A busca da verdade e a tolerância à dor psíquica produzida pelo rechaço de toda ilusão ou engano seriam então uma meta geral da psicanálise. Essa divisão instrumental entre metas curativas e transformações estruturais, relacionada à verdade, à dor, ao conhecimento, à aprendizagem e à identificação, poderia dispor de dados avaliáveis e processáveis. Mas, no mesmo capítulo VII de Análise terminável e interminável, Freud mantinha que, além da constituição egóica do paciente, também a peculiaridade do analista demanda seu lugar entre os fatores que influenciam as perspectivas da cura analítica, facilitando ou dificultando a cura, tal como o fazem as resistências. Nesse sentido, seria útil levar em consideração o concernente à personalidade do analista, seus remanescentes neuróticos e/ou psicóticos, o papel da contratransferência e as vicissitudes na interação da dupla pacienteanalista. Seria útil, por exemplo, poder detectar as motivações inconscientes que atuam no analista: seja para querer “reter’ o analisando, prolongan138 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Final da análise como um momento de passagem diferenciado durante o processo analítico Sempre que analista e analisando possam estar livres de todo tipo de pressões, o tema do término surgirá, de forma espontânea e somente no momento oportuno, como conseqüência natural da interação dinâmica desenvolvida entre ambos os participantes ou da evolução alcançada no processo analítico. Isso requer uma atitude de atenção flutuante frente ao problema do término da análise, já que deverá ser como todo momento do processo ao qual se chega sem que ninguém o proponha, algo que não está sujeito a nenhum outro saber que não seja o da escuta. Isso nos confronta com o fato de determinar a data de finalização da análise a partir do material que nos apresenta o paciente. Partimos da suposição de que existiu um momento desencadeante a partir do qual se inicia um período qualitativamente diferente, que inaugura um segmento específico do processo analítico: um período de término. O desencadeador do processo de término seria como um salto qualitaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 139 Luis Kancyper do sua análise, seja para desejar o término prematuro desta para “livrar-se” daquele, ou para apressar o término de uma análise considerada “satisfatória” por razões narcisistas. Analisar significa etimologicamente des-ligar, des-atar, romper algum falso enlace, revelar um auto-engano, destruir uma ilusão ou uma mentira. O que caracteriza o processo analítico é o movimento conjunto de aprofundamento dentro do passado e de construção do futuro. Se um trabalho analítico se torna possível, é porque o sujeito e o analista pensam que a exploração do passado permite a abertura do futuro; pensam que as séries complementares não constituem um determinismo mecânico e que se pode sair das fantasias inconscientes pela via da interpretação e de construção do eterno presente atemporal. Não esquecer que a história do sujeito constitui uma dimensão essencial do que deve ser revelado em uma análise. O término da análise aponta por si mesmo a um conceito relacionado à temporalidade (BARANGER, 1961). O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA tivo que se expressa mediante uma mudança fenomenológica observável tanto na variação do relato como na diferente circulação afetiva. Coincide com um clima afetivo muito mais afrouxado e expressivo do que o dos primeiros anos de tratamento. O relato aponta para experiências que se “fecham” ou se “terminam”, não expostas de forma manifesta em relação ao tratamento. Além disso, o analisando retira funções egóicas que havia depositado no analista e as recria dentro de si, exercendo-as na própria sessão; reflete, além disso, sobre o transcurso de sua análise (LIBERMAN et al, 1985). O final da análise é uma dura prova para o narcisismo do analisando, dos pais do analisando e do analista e reativa, por sua vez, antigos sintomas. No mês de maio do seu quinto ano de análise, Adrián manifesta seu estado de bem-estar e começa a efetuar um olhar retrospectivo acerca de seu processo analítico. Aos doze anos tive um forte ataque de asma sem internação e aos dezoito tive outro episódio agudo, quando me internaram e me deram corticóides. Foi nesse momento que minha mãe me intimou a me analisar. Eu não queria, tinha preconceitos. Para mim, os que faziam psicanálise eram loucos. Agora, depois de cinco anos de tratamento, sinto que está se fechando um ciclo. É uma sensação, o ciclo se cumpriu e está chegando ao seu fim. Ultimamente me dá um pouco de preguiça de vir, não sinto necessidade, me sinto bem. Eu também percebo uma mudança. Existe uma variação no caráter dinâmico da situação analítica nos dois níveis: o conteúdo ideativo por um lado e a circulação afetiva pelo outro. Lembro como ele havia chegado deformado pela ingesta de corticóides e comparo com sua atual expressão alegre e diáfana. Concordo que podemos começar a pensar acerca da finalização dessa fase e começo a perceber os movimentos inaugurais do trabalho do luto concernente à finalização de nosso vínculo na tarefa psicanalítica. Começo 140 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 141 Luis Kancyper a interrogar-me se eu me modifiquei a partir de nossa relação e evidentemente advirto que Adrián gerou mutações em mim. Sair de casa e me emancipar é toda uma decisão. Necessito conseguir emancipar-me economicamente. Tenho vontade de fazer um projeto junto com Mariela. Tenho vontade de ir morar com ela e assumir uma série de responsabilidades, mas também não sei se quero assumir. Não sei se quero primeiro ir com Gabriel à Europa por dois ou três meses. Não sei bem o que quero. Pergunto-lhe se talvez ele não saiba bem se quer terminar o tratamento comigo. Ir embora daqui é como começar uma nova carreira e não é tão definitivo. A gente pode dar marcha a ré, creio que aqui posso voltar, não é irreversível. Essa situação é diferente que sair e voltar para casa; não gostaria de voltar a morar com meus pais e com minhas irmãs. Sentiria isso como uma derrota, enquanto que voltar aqui não o seria, e sim uma mudança de estratégia simplesmente. Entretanto, não é pouco o que me custa assumir-me mais adulto; gostaria de me sentir ainda adolescente. Ri com ar velhaco: Eu ainda sou um adolescente porque quero ser, franca e simplesmente. A gente passa a ser adulto quando chega a ser adulto e não podes evitá-lo e é irreversível. Não sei, é preferível que nos separemos antes que a rotina nos coma. A rotina é destruidora. Interpreto que hoje começa uma série de despedidas e que talvez ele prefira pular por cima desse período. Creio que sim. O problema é que não me resta outro caminho. Sinto que o ciclo aqui está se fechando, e eu estou tratando de evitá-lo o máximo possível. São etapas que a gente passa, como te acontece no secundário. Quando estás no último ano, dizes “quero terminar”, e quando terminas dizes “quero voltar”, mas tenho esses vaivéns também aqui. Minha vida é como um barco que vai e vem, conforme o jeito que me acordei. Assinalo-lhe que hoje concordamos em transitar pela última etapa do processo analítico. Etapa que se estendeu ao longo de quatro meses nos O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA quais se elaboraram alguns dos lutos inerentes à finalização da análise, tanto nele, quanto em seus pais e em mim. Duas semanas após a combinação de iniciar a fase do término, a mãe foi internada em um hospital por uma séria doença. Como encerramento da apresentação do processo psicanalítico de Adrián, transcrevo a seguir um fragmento de uma sessão na qual se põe em evidência o trabalho elaborativo e a superação da fantasia familiar dos vasos comunicantes e a desativação da auto-imagem narcisista do “burro de carga”. Uma coisa é ter de dar conta de uma situação, e outra coisa é carregála. Minha mãe adora carregar culpas alheias. Qualquer culpa que ela vê por aí, a carrega nas costas e a leva como se fosse um burro carregado de culpa. Ela é muito generosa, não pode dizer não. O máximo que pode dizer é: vamos ver. Tem um instinto de dizer sim para todos. A gente tem papéis na medida em que os aceita. Quando esse papel não satisfaz mais, não devemos nos deixar carregar com todas as culpas. Eu não quero mais me encarregar dos problemas de minha irmã. Em casa, entramos em uma confusão na qual, de saída, todos somos culpados de tudo. Eu quero terminar com esse conluio. Quero ser direto. Hoje disse à minha mãe: tu estás doente porque te coube estar, mas não és culpada de estar doente. Até se sente culpada porque cuidamos dela e estamos tristes. Eu creio que foi a excessiva preocupação que a deixou doente. Por isso fico brabo com ela, uma vez que não queria que seguisse se preocupando tanto. Se preocupa com tudo e segue se preocupando. Minha mãe é o burro de carga da família. Eu já não sou mais. Acabou-se. Não sou responsável pelas atitudes dos outros e sim pelas minhas. Antes qualquer culpa que flutuava e que não tinha dono eu agarrava. Desta vez não tenho nada que ver. Basta. Terminou. 142 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Na adolescência, múltiplos jogos de forças se contrapõem dentro de um campo dinâmico: os movimentos paradoxais do narcisismo nas dimensões intra-subjetiva e intersubjetiva e as relações de domínio entre pais e filhos e entre irmãos. Através da descrição do processo analítico de um adolescente com duração de cinco anos, o autor mostra seu começo, sua fase intermediária e sua finalização. São enfocados, através do caso clínico: a base metapsicológica do processo; o trabalho com as auto-imagens narcisistas e com os complexos edípico e fraterno; a questão do filho-progenitor e do irmão-progenitor; o reordenamento identificatório; a confrontação geracional; e a ressignificação de traumas anteriores. Summary The Psychoanalytical Process in the Adolescence: Metapsychology and Clinic In the adolescence, multiples games of power oppose to each other within a dynamic field: the paradoxical movements of the narcissism in the intra and intersubjective dimensions and the relations of ascendancy between parents and children and among siblings. Through the description of the 5-year analytical process of an adolescent, the author portrays its beginning, intermediate phase and its end. The clinical case focuses on the metapsychological base of the process; the work with the narcissistic self-images and with the oedipal and fraternal complexes; the issue of the son-forefather and the brother-forefather; the re-arrangement of the identity; the confrontation between generations; and the new significance for previous traumas. Sinopsis El Proceso Psicoanalítico en la Adolescencia: Metapsicología y Clínica En la adolescencia, múltiples juegos de fuerzas se contraponen dentro de un campo dinámico: los movimientos paradójicos del narcisismo en las dimensiones intrasubjetiva y intersubjetiva y las relaciones de dominio entre país e hijos y entre hermanos. A través de la descripción del proceso analítico de un adolescente con duración de cinco años, el autor muestra su inicio, su fase intermediaria y su finalización. Se enfocan, a través del caso clínico: la base metapsicológica del Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 143 Luis Kancyper Sinopse O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA: METAPSICOLOGIA E CLÍNICA proceso; el trabajo con las autoimágenes narcisistas y con los complejos edípico y fraterno; la cuestión del hijo-progenitor y del hermano-progenitor; el reordenamiento identificatorio; el confronto generacional; y la resignificación de traumas anteriores. Palavras-chave Adolescência; Processo psicanalítico; Fronteiras geracionais; Complexo fraterno; Clínica; Metapsicologia; Ressignificação. Key-words Adolescence; Psychanalytic process; Gerational frontiers; Fraternal complex; Clinic; Metapsychology; Resignification. Palabras-llave Adolescencia; Proceso psicanalítico; Fronteras geracionales; Complejo fraterno; Clínica; Metapsicología; Resignificación. Referências ARAGONÉS, R.J. (1999) Comentario al libro. In: KANCYPER, L. La confrontación generacional. Barcelona, 8-2-1999. 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Ela poderia colocar-se no lugar de seu pai, à maneira masculina, e ter relações com a mãe, como tinha o pai, caso em que teria sentido o último como um estorvo; ou poderia querer assumir o lugar de sua mãe e ser amada pelo pai, caso em que a mãe se tornaria supérflua.” (Freud, 1924, p.176). Paulo Marchon Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, da Sociedade Psicanalítica do Recife e do Núcleo Psicanalítico de Fortaleza. Uma pergunta natural que direciona os estudos dos antropólogos e também nossa curiosidade seria a de saber como viveram nossos antepassados, como sobreviveram naquele meio; claro, como não po- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 147 Paulo Marchon A Universalidade do Complexo de Édipo A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO deria deixar de ser, com o olho no buraco da fechadura, inquisitivamente, estaríamos tentando perscrutar a vida sexual deles – afinal, eles são nossos pais. Iremos começar, então, antes de quando begin the beginning, na companhia de Charles Darwin e de sua lei de seleção natural. Esta lei exprimiria o objetivo, a meta de todos os seres vivos, que é a de, simplesmente, fundamentalmente, essencialmente, produzir filhos e, através deles, eternizar a espécie e, assim, nos tornarmos imortais – deuses. Contrariando totalmente Vinícius de Moraes, maktub, estaria escrito: “Filhos! Melhor tê-los”. Além de tê-los, dotá-los, se possível, de alguma mutação favorável a sua vitória e sobrevivência no ambiente. Tal fato explicaria o surgimento de novas espécies, e, então, a imortalidade associarse-ia ao Criador por excelência – um Deus especialíssimo. À Eternidade somar-se-ia a Criatividade. Os indivíduos que não tiveram pais dotados do gene encompridador de pescoço-corpo-e-pernas não conseguiram atingir os brotos do alto das árvores e morreram sem conseguir ser girafas. Estas mereciam um poema diferente do que Alberto de Oliveira dedicou às palmeiras, um antiepitáfio: “Ser palmeira, viver num píncaro azulado...”. Ser girafa, eternizar-se lamarckianamente comendo brotos... A aspiração premente de produzir filhos é uma forma de comportamento que “evolui em virtude do que os biólogos chamam de comportamento adaptável, ou seja, aquele que capacita o indivíduo a sobreviver e a se reproduzir com maior sucesso” (LEAKEY; LEWIN, 1978, p.202). Estudaremos a relação entre os animais e suas crias. Entre os sapos não há maior problema em cumprir o destino prolífero. O macho e a fêmea depositam em algum lugar as células germinais e dão tchau às ditas células. Não é necessário nenhum cuidado com os girinos-filhotes. O problema surge quando se torna necessário aos animais cuidar da cria. Se levarmos em consideração a lei de Darwin, cada um deles só pensaria em largar para o consorte tal função e “se mandar” para fertilizar outro parceiro: mais filhos, maior garantia da Imortalidade! No mundo animal, as fêmeas perdem esta corrida para os machos. Exceção notável: os 148 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 149 Paulo Marchon peixes! Os peixes machos têm que aguardar as fêmeas depositarem seus óvulos, que são bem mais pesados que os espermatozóides deles. Já se viu, no meio da água – lei da gravidade em ação, densidade maior do óvulo em relação ao espermatozóide – a triste situação do peixe macho se declara: o pobre coitado sabe que, se quiser filhos, terá que esperar a esperta consorte depositar sua parte e, só então, ele poderá lançar a parte dele, enquanto ela... some! O biólogo Robert Trivers chama esta situação de “enrascada cruel”. Como se vê, é um pensamento tipicamente machista, afinal ele se chama Robert Trivers e não Roberta... O peixe macho não pode fugir, pois precisa de descendência. E, então, algo de extraordinário se passa: abandonado pela fêmea, passa a cuidar dos peixinhos. Dessa forma, a seleção natural favorece o desenvolvimento da afeição paterna em vários tipos de peixes. E, então, como diz a canção, algo notável se dá: o amor acontece na vida... O cuidado cria o amor! Nos pássaros, observam-se algumas diferenças: se eles querem, realmente, ter filhos, em muitos casos, eles têm que ser solidários mesmo, pois alimentar um filhote é tarefa para dois. Um só não suporta. Por este motivo, o macho coopera, e a monogamia é comum. Antes de tudo, o macho providencia belas roupagens para conquistar uma consorte. Faz uma corte à amada com requintes da Belle Époque e, após longo namoro, parece que, para certificar-se de que ela não esteja grávida de outro, eles se casam. Afinal, ele precisa ser pai e ter certeza de que ele é o pai; por isso o namoro seria longo. Vejam como esses bichos sabem de coisas extraordinárias... Mas o comum mesmo, no reino animal, não é a monogamia – um só cônjuge –, e muito menos a poliandria – uma fêmea com vários machos. A natureza, ou Deus, marcou a todos os seres com o “crescei e multiplicaivos”, mas às fêmeas impôs um ônus especial, através de óvulos que contêm uma contribuição energética e protéica bem maior do que o reles e microscópico espermatozóide e ainda exigiu que elas não pudessem fazer como os machos, isto é, correr da cena e “se mandar” para continuar a cumprir o preceito bíblico e darwiniano. Quanto maior o número de filhos, mais certeza de que um deles irá sobreviver e, assim, você será eterno. A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO Poucas fêmeas tiveram a sorte de ser peixe e deixar o macho na “enrascada cruel”. Disso resultou o predomínio da poliginia, um macho com diversas fêmeas. Saibam que entre os primatas somente os gibões acrobatas e os siamangos são monógamos – gloriosa exceção! É bom esclarecer que estes símios têm o mesmo tamanho das fêmeas. Eis o motivo da exceção: parece que tamanho é documento. Daí meu conselho ao sexo frágil: torne-se forte! Lendo Jane Goodall – Uma janela para a vida – 30 anos com os chimpanzés da Tanzânia –, qualquer um ficará comovido com o cuidado de Melissa, a amorosa mãe-chimpanzé, para com sua família, bem como com as atenções dos irmãos entre si, e as diversas e diferentes famílias convivendo. Há também as rivalidades entre os chimpanzés que se tornam adultos, e começam longas lutas para tomar o posto de chimpanzé dominante. Apesar dessas lutas, vê-se igualmente o reconhecimento da ajuda e participação grupal, uma razoável união entre eles e, por vezes, a partilha de alimentos. Percebe-se a inventividade deles na solução de alguns problemas de sobrevivência, criando, por exemplo, utensílios. Além disso, Jane Goodall observa, também, a taxativa proibição, por parte de Melissa – e de todas as mães chimpanzés –, dos desejos incestuosos do filho. Lendo o livro da corajosa pesquisadora, pode-se ver, também, um distanciamento na relação entre Melissa e filho após a investida incestuosa do mesmo. Os chimpanzés não têm noção de paternidade, pois são sexualmente promíscuos. A promiscuidade provoca certos problemas, tais como o sofrimento dos pequenos chimpanzés, quando vêem suas mães, nas épocas do cio, terem relações sexuais com diversos machos. Nessas ocasiões, eles lutam contra os chimpanzés, tentando, inutilmente, separá-los das mães. Mas vamos ao tratado de Etologia, de Eibesfeldt (1978, p.428), no qual ele afirma taxativamente que entre os macacos japoneses o incesto entre mãe e filho é tabu, forbidden, proibido. O autor comenta a possibilidade de uma base biológica para a interdição do incesto e diz que Bischof (1972) investigou o assunto, indicando haver uma base inata para tal fato, universal na espécie humana. Vendo agora a perspectiva dos fatores ambientais, observa-se inibição 150 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 * Plural de kibutz, fazenda coletiva em Israel. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 151 Paulo Marchon sexual entre pessoas que cresceram juntas, ou mesmo, nos kibutzim* de Israel, entre seus habitantes, que não são irmãos. Deixemos os chimpanzés e examinemos agora nossos outros parentes mais próximos – os gorilas –, uma vez que o elo que nos une aos nossos ancestrais não foi encontrado ainda. Na escala animal, contentemo-nos como primos. Então, observando os gorilas, percebe-se que vivem em “grupos de 8 a 10 indivíduos, dominados por um grande macho. Os jovens solteiros perambulam em torno, sozinhos ou em grupos de machos como eles, aguardando a chance de possuir algumas fêmeas”. Leakey e Lewin (1978) fazem esta descrição e colocam uma nota: “obviamente, este modelo é muito semelhante àquele imaginado por Freud” (p.209). Este gorila macho tem o dobro do tamanho da fêmea. Por isto, tome poliginia! Já entre os chimpanzés-gibões, cujas fêmeas são tão fortes quanto os machos e têm o mesmo tamanho deles, instaura-se a monogamia. Reforço o que disse há pouco: tamanho é documento. E ainda complementaria para o sexo frágil: fundamentalmente, crescei e não tanto multiplicai-vos... Como seria a vida do homem primitivo? A fêmea do hominida – o nosso homem da aurora do mundo – provavelmente continuara, com algumas modificações, o que as primas gorilas e chimpanzés faziam e fazem. Ela fora mobilizada afetivamente em relação ao seu filhote. A ligação entre mãe e filho fora o núcleo social da pequena família. Ela tivera que carregá-lo às costas na sua atividade de coleta de vegetais, frutos e tubérculos, enquanto o pai se empenhara na caça. Os dois pais se uniriam, portanto, para cuidar do filho. A partilha dos alimentos – um passo fundamental na economia humana – fora realizada através da coleta exercida pela mãe e da caça realizada pelo pai. Este foi – insistimos – um passo fundamental para a evolução do ser humano. Como continuou o compromisso paterno? Pois, convenhamos, de certa maneira, o hominida macho foi pescado pela fêmea e pelo filhote e, de alguma forma, virou peixe... Daí adveio a monogamia? Não sabemos. Porém vê-se em povos primitivos modernos uma afinidade que engloba pai, mãe e filho. A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO O estudo desses povos primitivos que sobrevivem atualmente permitiu o conhecimento de um intrincado conjunto de regras para o casamento. A instituição da exogamia, isto é, do fato de o casamento não poder ser realizado entre pessoas do mesmo bando ou clã, mas sim entre as de um bando e outro, tornou-se uma regra reinante em todas as regiões. Os membros do clã sabem perfeitamente quais são seus parentes e, assim, com quem podem, ou não, se casar. Os babuínos e os chimpanzés são, preferentemente, exógamos, mas seria exigir demais deles imaginar que elaborassem uma cartilha detalhada de parentesco. Evidentemente a exogamia nos humanos constitui um meio para evitar o incesto. As regras exogâmicas eram e continuam sendo, entre os povos primitivos, muito estritas e limitantes. Tal se deveria, provavelmente, ao desejo incestuoso que estaria rodeando a todos e sempre presente na alma humana. Em Totem e tabu (1913, p.10), entre inúmeras referências aos povos primitivos, Freud relata o costume de um povo na Melanésia. Lá, um jovem menino, quando crescia, não podia mais conviver na mesma casa com sua mãe e suas irmãs. Não podia mais vê-las, embora pudesse estar, livremente, com o pai. Não podia sequer falar o nome delas. Freud retirou esse exemplo e outros, inúmeros outros, semelhantes ou mais severos ainda, da monumental obra de James Frazer, Totemismo e exogamia, obra de quatro volumes, totalizando 2.200 páginas!!! Embora o totemismo esteja hoje desacreditado, e as hipóteses de Freud sobre o princípio da humanidade estejam muito questionadas, o estímulo que ele deu à antropologia foi tal que o admirado mestre da dessa ciência Franz Boas, em 1938, afirmou: “É amplamente devido a Sigmund Freud que nós compreendemos a importância destes esquecidos incidentes da infância, que permanecem uma força viva através da vida e, quanto mais intensamente são esquecidos, mais potentes se tornam”. Logo após a publicação de Totem e tabu, porém, o grande antropólogo Westermach condenou de forma esmagadora a obra, dizendo, entre outras coisas: “Que pai ameaçará seu filhinho com a castração porque abraça e beija sua mãe?” e depois: “Não existe razão alguma para atribuir os atri152 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 A verdadeira solidariedade, no entanto, existe apenas entre os membros de cada subclã. O subclã é uma divisão local do clã; seus membros reivindicam ascendência comum e, portanto, verdadeira identidade de substância corpórea, estando também ligados ao local de onde emergiram seus antepassados. É a esses subclãs que se aplica a noção de categoria hierárquica... No que diz respeito ao parentesco, o principal fato que devemos manter em mente é que os nativos são matrilineares, e que tanto a sucessão na hierarquia como a participação nos grupos sociais e a herança dos bens materiais são transmitidos em linha materna. O tio materno de um menino é considerado seu verdadeiro guardião; há, entre o tio e o sobrinho, uma série de mútuos deveres e obrigações que estabelece um relacionamento muito estreito e importante entre ambos. O verdadeiro parentesco, a verdadeira identidade de substância, supõe-se que exista apenas entre o indivíduo e os parentes de sua mãe. Dos parentes de primeira linha, irmãos e irmãs são considerados os mais próximos. No momento em que sua irmã ou irmãs se tornam adultas e se casam, o homem passa a trabalhar para elas. Apesar disso, porém, entre eles existe o tabu mais rigoroso que tem início na infância. Nenhum homem pode gracejar ou falar livremente Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 153 Paulo Marchon tos entre pai e filho a uma rivalidade sexual”. Marret, outro famoso antropólogo, disse: “é pura história” – “just so story”. E esse comentário desagradou imensamente a Freud, porque ele pensou que fosse feito por um outro antropólogo, ex-paciente seu. Muitos anos depois, em 1955, Kluchkoln, um dos mais importantes antropólogos americanos, escreveu para Ernest Jones: “Estou convencido de que a universalidade do complexo de Édipo e a rivalidade entre crianças já ficaram confirmadas pelos trabalhos antropológicos”. Vamos retroceder, no entanto, ao ano de 1922, quando Malinowski publicou a obra Argonautas do Pacífico Ocidental, após um ano de bemelaborada estadia entre os povos da Ilha Trobriand, vivendo como “um nativo entre nativos”, segundo a frase de James Frazer, no prefácio. Vamos ler as próprias palavras do famoso antropólogo: A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO quando na presença da irmã; nem mesmo lhe é permitido olhar para ela. A menor alusão a assuntos sexuais, ilícitos ou matrimoniais, referentes a um irmão ou irmã, feita em presença do outro, constitui grave insulto e motivo de grande mortificação. Quando um homem se aproxima de um grupo com o qual sua irmã está conversando, ou a irmã se retira ou ele deve imediatamente afastar-se. O relacionamento entre pai e filhos é notável. A paternidade fisiológica é desconhecida: não se supõe existir nenhum laço de parentesco entre pai e filho, a não ser aquele entre o marido da mãe e o filho da esposa. Apesar disso, o pai é o amigo mais próximo e afetuoso de seus filhos. Em muitas ocasiões, pude claramente observar que, quando a criança – menino ou menina – estava doente ou em apuros, ou ainda quando era necessário que alguém se expusesse a algum perigo ou se desse a algum trabalho em benefício da criança, era sempre o pai que se preocupava em tomar as devidas providências, nunca o tio materno. Essa regra é claramente reconhecida pelos nativos, que a expõem de maneira explícita. Em questões de herança e transmissão de bens materiais, um homem sempre demonstra tendência a fazer o máximo que pode pelos filhos, levando em consideração seus deveres para com a família de sua irmã. É muito difícil resumir em apenas uma ou duas sentenças as diferenças existentes entre os dois tipos de relacionamento – de um lado, as relações entre pai e filhos; de outro, as relações entre a criança e seu tio materno. O melhor modo de resumi-las é dizer que o estreito relacionamento entre a criança e o seu tio materno é considerado válido por lei e por tradição, enquanto que o interesse e afeição do pai pelos filhos são devidos a questões afetivas e ao relacionamento pessoal mais íntimo existente entre eles. É o pai que os vê crescer, é ele quem auxilia a mulher em muitos dos pequenos e carinhosos cuidados dispensados à criança, é ele quem carrega os filhos pela aldeia, é ele quem lhes proporciona a instrução que obtêm observando os mais velhos no trabalho e aos poucos juntando-se a eles. Em questões de herança, o pai dá aos filhos tudo o que pode – e isso ele faz espontaneamente e com prazer. O tio materno sob compulsão do costume dá ao sobrinho aquilo que não lhe é permitido reservar para os seus próprios filhos (p.67-68) (grifos nossos). 154 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Por dois anos, o menino da Ilha Trobriand dorme com a mãe e é nutrido por ela. Além do mais, a mãe estando submetida ao tabu sexual neste tempo pode estar obtendo considerável satisfação libidinal deste arranjo e a sedução inconsciente poderia não ser improvável. Então, quando o menino atinge três anos – rua! Ao mesmo tempo ela desmama-o e não mais permite que ele durma com ela. Daí decorre a conclusão de Whiting de que essa situação induziria o menino a desenvolver um forte desejo de matar e comer a mãe. O artigo de Wax tem o sugestivo título de Malinowski, Freud and Oedipus. Apenas sua parte inicial é informativa e interessante. Nós não precisaríamos, porém, do que Whiting escreveu. Bastaria o que Malinowski deixou claro, ao descrever o povo da Ilha Trobriand: há o tabu em relação às irmãs; o pai é o marido da mãe; o pai é o amigo mais próximo e afetuoso dos filhos; é sempre o pai e não o tio materno – o avúnculo – que trata as doenças dos filhos; na hora da herança o pai procura “fazer o máximo” pelos filhos; é o pai quem cuida do rebento e o vê crescer, auxilia a mulher, etc. Precisa mais? Wax acrescenta que a jovem da Ilha Trobriand, ao se casar, mudava-se para onde residia o marido, ou seja: avúnculo – tio materno – fora! Só depois dos 6 anos de idade da criança, o tio materno será chamado a ajudá-la. A autoridade de guardião é do tio, porém o que nos interessa é a rivalidade erótica entre adulto e criança, e, nesse aspecto, afetivamente, para a criança que Malinowski descreve, o pai era o pai. Malinowski e seus seguidores ancoravam-se apenas no fator autoridade como sendo o único a considerar. Logo, se era o avúnculo – tio materno – que a exercia, Malinowski concluía que não havia complexo de Édipo. Restringia a função de pai a uma autoridade a partir dos seis anos. É pouco... Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 155 Paulo Marchon Tendo em vista o exposto, Malinowski declarou alto e bom som: os povos da Ilha Trobriand não têm complexo de Édipo; logo, o famoso complexo não é universal. Acrescentemos o que diz J. Whiting, em um trabalho de 1960, “Totem e tabu, uma reavaliação”, transcrito por Murray Wax (1990. p.51): A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO Dois anos depois do livro de Malinowski, Ernest Jones é convidado a pronunciar uma conferência na Sociedade Britânica de Antropologia com o título “Psicanálise e Antropologia”. Ela provocou uma discussão acalorada, a tal ponto que um dos antropólogos não queria admitir nem ao menos a publicação da conferência nos Anais da Sociedade, publicação esta que era tradição da casa. Meio século depois, em 1977, o antropólogo Meyer Fortes apresentou um magnífico trabalho com o título “Costume e consciência na perspectiva antropológica”, a convite da Sociedade Britânica de Psicanálise, na “Conferência em memória de Ernest Jones”. Com uma grande autoridade conquistada através do valor de seus estudos em Antropologia, Meyer Fortes afirma, no princípio do trabalho, que a “Antropologia Social não seria o que é hoje sem o desafio da Psicanálise”. Malinowski desejava substituir o Complexo de Édipo freudiano pelo “complexo nuclear familiar”, malinowskiano. Segundo este último, por organizar-se matrilinearmente, a família não se veria submetida às forças infantis inconscientes de amor e ódio ao pai, com suas raízes no desejo sexual reprimido pela mãe, fenômenos estes que, então, existiriam apenas na família comum, a patriarcal. Meyer Fortes declara taxativamente que trinta anos de trabalhos de campo, efetuados por diversos antropólogos em muitas partes do mundo, em famílias do sistema matrilinear, tendem a dar apoio às teses de JonesFreud e não às interpretações de Malinowski. Ele cita especificamente a pesquisa de Gough entre os Nayars, do sul da Índia, de linhagem matrilinear, que apresentam o complexo de Édipo “normal”, dirigido para os pais. Ele menciona também suas próprias pesquisas entre os Ashanti, também matrilineares, que amplamente confirmaram o trabalho anterior. Meyer Fortes considera que Malinowski falhou quando interpretou erradamente o papel do pai-Trobriand na socialização de seu filho, daí resultando não conseguir ele compreender o tipo de autoridade moral e responsabilidade investida no genitor. Porém Meyer Fortes abre o leque do problema e entroniza a questão da verificação: “Como pode ser indiscutivelmente mostrado que o costu156 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 157 Paulo Marchon me manifesto é um produto de, ou é gerado por, ou mesmo corresponde diretamente a mecanismos mentais do tipo que é revelado pela Psicanálise?” Trata-se de uma questão importante que nós deixamos aqui em aberto. Logo após, Meyer Fortes afirma taxativamente: “a principal conclusão é que a mente do homem trabalha essencialmente da mesma maneira em todas as sociedades humanas. As diferenças seriam devidas ao contexto das relações sociais e ao material cultural à disposição do indivíduo” (grifo nosso). Na opinião dele, o grande resultado da discussão de Jones versus Malinowski, em 1924, foi que “o recurso às percepções, aos ‘insights’ psicológicos e psicanalíticos tornaram-se indispensáveis”. Depois cita um estudo de Freeman para comprovar o que dissemos agora. Trata-se do estudo de um culto do povo Semang, o culto do “Deus Trovão”, deus este cuja raiva se expressaria através de tempestades terríveis e devastadoras. Freeman se perguntava: por que a raiva do Deus Trovão e sua mulher – friso bem, os dois juntos – era imaginada como sendo provocada pelo incesto ou outro pecado sexual? Por que a brincadeira de certos animais ou simplesmente o fato de se ferir um parasita, algo que poderia ser visto como uma coisa natural, trivial, também despertaria a ira do Deus Trovão em forma de tempestades aterrorizantes e mortíferas? Freeman dá uma interpretação psicanalítica ao fato, dizendo que o Deus Trovão era o “Deus Pai” que representaria “as ameaçadoras e terrificantes figuras de um superego agressivo”. Em outros termos, Freeman correlaciona o fato de o povo Semang imaginar que o incesto seria o fator desencadeante da tragédia, a uma terrificante perseguição efetuada por um superego demoníaco. Meyer Fortes comparou essa interpretação de Freeman a uma outra, elaborada por um antropólogo sem luzes psicanalíticas, a respeito do mesmo culto ao Deus Trovão. Esta última apelava para uma vaga e imprecisa, insípida e inodora “noção de ‘símbolos naturais’ despertados pelas reações afetivas primordiais diante de impressionantes fenômenos naturais”. Meyer Fortes continua seu trabalho apresentando diversas pesquisas feitas em diferentes lugares do mundo. Em primeiro lugar, aponta o estudo do A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO antropólogo Tambiah sobre o ritual da entrada de um monge em um mosteiro budista. Meyer Fortes mostra a interpretação antropológica limitada de Tambiah e a sua, que explicita uma problemática edipiana: submissão à castração simbólica, através da renúncia à mulher, ao entrar para o mosteiro. Depois, Meyer Fortes descreve longamente seu trabalho de 1934, na tribo dos Talensi, do Nordeste de Gana. Sobre aquele povo ele diz: “O incesto com a própria mãe é impensável”. Lévi-Strauss, sem dizer o nome do “santo”, critica essa posição de Meyer Fortes, dizendo que, em suas polêmicas com a Psicanálise, ele, LéviStrauss, objetivava evitar que antropólogos, sociólogos ou historiadores se deixassem levar pelas explicações tipo chave-mestra de que, segundo ele, a Psicanálise é farta. Nesse sentido, Meyer Fortes teria ouvido o canto da sereia freudiana... Lévi-Strauss afirma também que Freud e Marx tiveram um papel capital na sua formação intelectual, mas que se desligou do Marx político, ficando apenas com o filósofo. Com Freud aprendeu que “mesmo os fenômenos mais ilógicos podiam ser submetidos a uma análise racional” (LÉVI-STRAUSS; ERIBON, 1990, p.140). Não obstante suas críticas à Psicanálise, e o fato de ele considerar Totem e tabu como um mito construído por Freud, “mito belíssimo, aliás”, segundo suas palavras, a Etnologia é para Lévi-Strauss, antes de mais nada, uma psicologia: “O que saímos a procurar ... são meios suplementares de saber como o espírito humano funciona” (p.141). E saber como o espírito humano funciona é, segundo o grande etnólogo francês, “fundamentalmente, tarefa para a Psicologia”, ou seja, nossa também, diria eu. Em seu extraordinário livro As estruturas elementares do parentesco, Lévi-Strauss reflete sobre a oposição fundamental entre natureza e cultura, que seria, para ele, marcada pela interdição, pela proibição do incesto. Comenta que, à época em que publicou o livro, em 1949, não se conhecia nenhum estudo que mostrasse, entre os animais, a existência de algo que pudesse ser equiparado à evitação do incesto, porque se raciocinava em termos de animais domésticos e estes não o evitavam. Ultimamente surgiram os estudos sobre animais em estado selvagem, e Lévi-Strauss comen158 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 159 Paulo Marchon tou: “os grandes símios – e outras espécies também – parecem estabelecer que as uniões consangüíneas [incestuosas] entre eles são raras, quando não tornadas impossíveis por determinados mecanismos reguladores” (p.131). No entanto, pensa que é conclusão prematura o fato de etnólogos considerarem a interdição do incesto como tendo suas raízes na natureza. Ele é cético quanto a isso e acha que as interpretações dos fatos observados é antropomórfica, ou seja, deturpada pela visão do homem. Considera verdadeiros os fatos narrados pelos pesquisadores, como Jane Goodall. Discorda é da interpretação dos mesmos. Segundo o grande etnólogo francês, por exemplo, “a tendência a expulsar os animais jovens do grupo pode não se dever a uma ‘proibição do incesto’ e sim a vários outros motivos, entre eles a competição pelos alimentos, que parece a mais provável” (p.131). Perguntado, decênios depois, se ele manteria a idéia central de sua obra de que a proibição do incesto mostra que “o domínio da cultura é o universo da regra”, ele respondeu: “Se a proibição do incesto tivesse um fundamento natural, não compreenderíamos bem como as sociedades humanas foram obcecadas por ela e empenharam-se com uma preocupação maníaca em divulgá-la” (p.131-132) (grifo nosso). Pois bem, apesar desta “preocupação maníaca”, Lévi-Strauss continua: “Poderíamos organizar um florilégio dos provérbios e ditos que, nas sociedades sem escrita, revelam a freqüência dos desejos incestuosos” (p.132). E depois, ao comentar “a paixão endogâmica nas sociedades européias tradicionais”, ele afirma, peremptório: “na França, no decorrer do século XIX, a proporção de casamentos contraídos num raio de 5 km, no campo, era mais de 80%” (p.132). Aquelas pesquisas sobre os kibutzim de Israel, que mencionamos há pouco, ele as aniquila, dizendo que há estudos outros que as contradizem e acrescenta que, além do mais, pode haver uma orientação prévia sobre o direcionamento da sexualidade entre os jovens moradores dos kibutzim. O que permanece para nós, de todos esses estudiosos, e eu privilegiei, entre eles, os antropólogos, é que o problema do incesto está nas proximidades da superfície da consciência e o mito de Édipo é a sua tradu- A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO ção mais elaborada. Antes de prosseguirmos, porém, no estudo da terrível tragédia de Sófocles, motivada pelo incesto, caberia aqui fazer uma pergunta no mínimo sacrílega: por que existe a interdição do incesto? Podemos iniciar recorrendo a um grande antropólogo, James Frazer, na sua famosa obra The golden bough (1978) – O ramo de ouro –, monumentais treze volumes, resumidos pelo autor em um conjunto de “apenas” mil páginas. A antropologia evoluiu muito, e tal obra, hoje, não tem a expressão que teve outrora. O que nos importa, no entanto, é a opinião de alguém que pensou sobre o incesto e apresentou uma hipótese. Ei-la: “comumente se supõe que o incesto causa a morte” (p.186). Frazer não diz uma palavra mais, porém depreende-se, só pode ser a morte do pai. A sociedade humana estaria, assim, exposta a este perigo. Se não houvesse esse freio, a interdição, a desordem e o caos imperariam. Não haveria obstáculo a todo e qualquer prazer, o que culminaria na eliminação da vida: matar e morrer. Mas essa solução implicaria, também, não haver medo da morte, fato que não nos parece ser real. Mesmo ateus convictos, que têm certeza absoluta, total, de que não existe vida após a morte e, assim, vivem em sua forma mais pura o prazer de viver, evidentemente, exibem, pelo fato de se manterem vivos, o medo de ver esse prazer interrompido. Seria uma solução ligada ao princípio do prazer-desprazer de Freud: o prazer de viver que nos permite estar aqui dando nossa solução ao monólogo de Hamlet, “to be or not to be”, ou seja, mui sabiamente, mui vivamente, vivendo. “Ave, Cæsar, morituri non te salutant”. Modificamos as palavras dos gladiadores da Arena Romana que, ao passarem diante do Imperador, diziam: “Ave, Cæsar, morituri te salutant” – “Salve, César, os que vão morrer te saúdam”. Nós seríamos antigladiadores e diríamos, pelo menos como protesto: “Salve, César, os que vão morrer não te saúdam”. Por outro lado, há aqueles que acreditam na possibilidade de “bem-aventurança eterna”, mesmo que tenham que realizar um breve estágio no Purgatório. Tais crentes, então, experimentam esse duplo prazer na vida, o atual e o post mortem. Se a morte vai permitir a bem-aventurança celeste, a vida nos garante este 160 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 161 Paulo Marchon atual prazer de viver. De qualquer maneira, vamos nos agarrar ao certo, pois mais vale um pássaro na mão... Em função disto tudo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em nome da Ordem, da Vida, do Estatuto da Condição Humana, o incesto – o prazer dos prazeres – exige a criação da regra das regras... Se vocês quiserem atacar esta hipótese aqui delineada, poderão dizer: mas, Paulo, você não contou o caso da mãe-chimpanzé, Dona Melissa, uma senhora de vida sexual normal, e que, por isso, não aceitou as investidas sexuais do seu filho? Você não falou também de outros casos semelhantes apontados por etólogos e pesquisadores de diferentes origens? A fim de responder a vocês, poderei acrescentar ainda que este filho rejeitado da Melissa tornou-se o chefão do grupo, derrotando os outros chimpanzés após quatro anos de lutas memoráveis e botando para correr o chefe anterior, que era seu antigo protetor. Isso tudo foi realizado sem nenhum assassinato. Pois bem, nem quando o filho se tornou o comandanteem-chefe do bando, ele ousou voltar a tocar na Dona Melissa. Não havia pai, nem houve assassinato. A mãe resolveu o problema sozinha. A regra das regras, então, não se deverá a um tipo de amor especial que se desenvolve, um amor como aquele do peixe que se torna pai porque virou pai mesmo, no momento em que a fêmea foi para outros portos, outros mares, deixando-o na “enrascada cruel”? Passemos, agora, dos chimpanzés para os humanos, abordando o que transcrevemos de Freud em nossa epígrafe, quando lembramos do Édipo invertido. Então, vamos ao conceito de Complexo de Édipo mais desprezado, o invertido: será que essa maneira de pensar de Freud poderia nos permitir concluir que o incesto, o incesto verdadeiro, verdadeiro mesmo, da mulher, seria a sua relação homossexual com a mãe, e não a relação sexual com o pai? Vocês já ouviram falar de algum caso deste tipo? Incesto mãefilha? Eu não. Isto é inimaginável, não obstante toda intimidade que mãe e filha desfrutam. Claro que o inimaginável pode existir. A realidade da vida ultrapassa a arte e a imaginação. Mas, realmente, o marcante mesmo é a relação inicial entre a mãe e a criança. Não podemos deixar de lembrar a A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO impregnação dos noves meses de gestação, que valem tanto para o menino quanto para a menina. Poderíamos brincar um pouco e dizer que o peixe macho, provavelmente, mostraria os primórdios de algum “sentimento” desse tipo, do tipo da mãe que gera e cuida. Será que isto nos permitiria compreender, não obstante ser uma terrível patologia, a ocorrência mais comum de incesto entre pai e filha? O incesto entre irmãos era permitido para os faraós egípcios, a realeza havaiana e também para os príncipes maias. Extraordinário, no entanto, é saber que o Papa Júlio III, a pedido dos Reis Católicos da Espanha, autorizou a celebração de um casamento entre um príncipe maia e sua irmã. Ugh! Argh! Se vocês quiserem transformar essa hipótese em algo de pé quebrado, poderão dizer: Paulo, o incesto homossexual entre pai e filho também é inimaginável e, não obstante isso, pai não carrega o filho durante nove meses, nem cuida dele com a mesma intensidade com que a mãe o faz... Este fato nos levaria a ampliar os estudos. Vejam se não é engenhosa a hipótese paralela do antropólogo francês Godelier, descrita por Green (1991, p.27-28). Ele vê a interdição como algo que vem, aos pouquinhos, ascendendo pela escala animal, como alguns pesquisadores pensam também. A centelha que ilumina a hipótese dele surge quando ele equipara a interdição do incesto ao despertar do interesse dos machos pelas fêmeas e vice-versa. Perceberam? Lá pelas tantas, dentro da evolução, após um período de indiferenciação, em que os animais podem estabelecer tanto relações homossexuais quanto heterossexuais, passa a se desenvolver um interesse pelo sexo oposto, possivelmente ligado ao princípio bíblico e darwiniano: “Crescei, multiplicai-vos e tenham filhos!”. Godelier equipara essa modificação de interesse ao paulatino desenvolvimento da interdição do incesto. A restrição, portanto, já começou antes. Primeiro teria havido uma interdição ao mesmo sexo e depois uma proibição à mãe. Será que estes fatores, apontados pelo antropólogo Godelier, poderiam ter a ver com o fato da provável inexistência de incestos homossexuais? Nunca pesquisei a existência de bibliografia a respeito, mas o que 162 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 A história e a realidade têm mostrado que a agressividade e sua forma deturpada, a destrutividade, é parte inerente do ser humano. Acompanhando, porém, inúmeros autores e, especificamente, a Konrad Lorenz, criador da Etologia e Prêmio Nobel de Fisiologia, afirmaríamos, com ele, que “se não existissem predisposições inatas para nosso comportamento ético, se não existissem umas normas obrigatórias a respeito do que é basicamente bom ou mau para nós como espécie, programadas por adaptações filogenéticas, nos encontraríamos em uma situação muito perigosa. A conseqüência seria o relativismo cultural e qualquer norma cultural – incluída aí a mais horrorosa – seria obrigatória, se a maioria da sociedade a considerasse apropriada (EIBESFELDT, 1978, p.524). Transcrevendo as idéias do próprio Lorenz, em A agressão – uma história natural do mal (1979), podemos ler, na página 258, a referência ao primeiro “Caim” humano que, segundo o autor, após ter ferido um companheiro, teria ficado “embaraçado com as conseqüências do seu ato”. Teria havido, então, uma consciência e uma forma primitiva de responsabilidade. Continuando com Lorenz: O homem não é verdadeiramente mau de nascença, como afirma o Gênesis. Pode mesmo agir muito razoavelmente, quando a situação é tensa, com a condição de situações semelhantes se terem apresentado suficientes vezes na época paleolítica para terem criado normas soSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 163 Paulo Marchon chama a atenção é que, nestes decênios de existência, nada tenha me caído nas mãos sobre tal assunto. Estas hipóteses podem nos ajudar a compreender certos fatos, porém não nos autorizam a desrespeitar, a desconsiderar a opção homossexual como escolha legítima e autêntica. De maneira geral, poderíamos dizer que a psicanálise trata de todas as opções conflitivas, sejam elas sexuais ou não. Portanto, é preciso, de alguma forma, estar estabelecido o conflito. A limitação dos direitos dos homossexuais é uma triste nódoa a empanar o mundo atual. A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO ciais, filogeneticamente adaptadas, que lhes correspondam. Amar o próximo como a nós mesmos e arriscar a vida para salvar a dele é normal se o nosso amigo é o nosso melhor amigo e já nos salvou a nossa muitas vezes; até o fazemos sem pensar. Mas a situação é completamente diferente se a pessoa pela qual é suposto arriscarmos a nossa vida ou fazermos outros sacrifícios é um contemporâneo anônimo que nunca vimos sequer. Neste caso, não é o amor por outro ser humano que ativa, em tal circunstância, o nosso comportamento de abnegação, mas o amor de uma norma tradicional de comportamento social evoluída com a cultura. Como se observa, Lorenz amplia muito o conceito de inato, incluindo nesta nova conceituação, segundo Eibesfeldt, toda uma série de situações que afetam os nossos juízos de valor, estéticos e éticos, que seriam despertados por mecanismos desencadeadores inatos. “Isto pode ser visto no fato de que a literatura e a arte de todos os povos contêm temas clichês de situações que se repetem sucessivamente: a fidelidade à amizade, o amor à pátria, o amor ao esposo e à esposa e o amor aos pais são os motivos nobres básicos das ações humanas e os realizamos seguindo uma disposição interna” (p.524). Tal ocorre desde a Antigüidade até os nossos dias. Diante dessa ampliação que Lorenz realiza, vamos pedir um pouco de espaço para a Psicanálise. Freud e os psicanalistas observaram e observam, no tratamento dos pacientes, a constância de alguns princípios organizadores da realidade psíquica. Vamos logo citá-los: o Complexo Edipiano, a Cena Primária e o Complexo de Castração. É um conjunto que se articula e podemos considerá-lo como fonte que determinaria a predominância das fantasias ligadas a eles e, o que é de muitíssima maior importância, determinaria também a ação ou omissão humana que lhe é, inexoravelmente, afeta. Se não aceitarmos esta proposta amplificadora, vejamos uma perspectiva diferente, a de Lévi-Strauss. Ela nos parece exprimir a idéia de que uma criança pequena, nascida não importa onde, sendo criada, por exemplo, numa aldeia yanomami, será ou tornar-se-á um yanomami. Diz ele: 164 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Voltemos, agora, àquela que, como já dissemos anteriormente, é a tradução mais elaborada do problema do incesto: o mito de Édipo. É importante se consignar que, na história, Édipo não foi perdoado porque praticou o parricídio e o incesto sem saber. A condenação a Édipo foi clara, soubesse ele ou não, conscientemente do que estava fazendo. André Green, em sua obra O desligamento (1994, p.70), encosta Lévi-Strauss na parede quando comenta: Parece curioso que os helenistas mais particularmente ligados à análise dos mitos, e que adotam um grande número de idéias de LéviStrauss, repitam que o mito de Édipo não passa de um entre tantos outros, embora não invalidem a tese central do antropólogo que vê na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 165 Paulo Marchon Nós não sabemos nada, e jamais saberemos algo, sobre a origem primeira de crenças e costumes cujas raízes se aprofundam num passado longínquo; mas, em relação ao presente, é certo que as condutas sociais não são desempenhadas espontaneamente por cada indivíduo, sob o efeito de emoções atuais. Os homens não agem, enquanto membros de um grupo, de acordo com aquilo que cada um sente como indivíduo: cada homem sente em função da maneira pela qual lhe é permitido ou prescrito comportar-se. Os costumes são dados como normas externas antes de engendrar sentimentos internos e estas normas insensíveis determinam os sentimentos individuais, assim como as circunstâncias em que poderão, ou deverão, se manifestar. Além disso, se as instituições e os costumes aumentassem sua vitalidade pelo fato de serem continuamente refrescadas e revigoradas por sentimentos individuais, semelhantes àqueles em que se encontrava sua primeira origem, elas deveriam conter uma riqueza afetiva continuamente renovada, que seria seu conteúdo positivo. Sabemos que não é assim e que a fidelidade que se lhe atribui resulta, mais comumente, de uma atitude convencional. Qualquer que seja a sociedade a que pertença, o sujeito raramente é capaz de indicar uma causa para este conformismo: tudo o que sabe dizer é que as coisas sempre foram assim, e que age como se agiu antes dele. Este tipo de resposta nos parece perfeitamente verídico. A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO proibição do incesto “a regra das regras”, uma verdadeira divisória entre natureza e cultura. O psicanalista pergunta, então, a estes antropólogos: “O fato de um mito concentrar o essencial do seu poder de representação na conjunção da transgressão dessa regra de todas as regras com o parricídio não merece uma atenção particular, quanto à sua eficácia simbólica?” Ao final, André Green conclui, de maneira brilhante: “O fato de ter que pôr em primeiro lugar a condição da proibição da relação sexual com os consangüíneos [incesto] aparece nessa interpretação como uma cláusula que remete toda a sexualidade à natureza e faz da proibição do incesto um efeito da cultura” (p.71). E nós podemos concluir que, por isto, a regra das regras seria universal – ela exprimiria a condição humana. Sófocles descreve em Édipo o que ele considerou a história do “grande celerado, o mais execrável e odiado pelos deuses, entre os mortais”, porque, no dizer do próprio personagem, “minha desgraça nenhum mortal pode suportar, exceto eu”, ou seja, ela extrapola os limites do humano. Shakespeare, em Hamlet, apresenta a versão inconsciente desses desejos e a luta incessante com os mesmos, culminando naquele morticínio brutal. O feito extraordinário de Freud foi haver extraído esta descoberta do fundo de sua alma: “Descobri também, em meu próprio caso, o fenômeno de me apaixonar por mamãe e ter ciúmes de papai e agora considero-o um acontecimento universal, do início da infância” (1986, p.273). Desse mergulho freudiano decorre, provavelmente, ele ter alçado o vôo da universalidade, transformando a tragédia de Édipo em destino humano comum, “como embrião, na imaginação” de todo ser humano. E este destino a Psicanálise procura transformar em meio de tratamento dos conflitos emocionais. Vamos tentar trazer o complexo de Édipo de dentro da sua universalidade para uma de suas expressões mais comuns. Todos sabemos que Édipo matou o pai e casou-se com sua mãe. Não há outra maneira de dizê-lo. Ele estava inconsciente deste fato. Ele não sabia disto. Como po166 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 167 Paulo Marchon derei dizer a vocês o que não sabemos? Afinal, todos nós somos inconscientes de que desejaríamos estar casados ou que pretenderíamos casar com nossa mãe, perseguidos pelas fantasias de morte ao nosso pai. Dizer como isto interferiria em nossas vidas, na minha vida, na vida de vocês, na vida de nossos pacientes, como dizê-lo se eu sou inconsciente disto? Mas tentemos examinar uma condição de todo ser humano que, por ser humano, não pode escapar à sua humanização e está mergulhado, além do pescoço, na regra das regras. Imaginemos que o ser humano comum, João ou Maria, no caminho entre Corinto e Tebas, deixe sua amada mãe Mérope e consiga não cometer o parricídio e, assim, não se casar com a mãe Jocasta. Imaginemos que ele consiga encontrar uma Mérope que não seja sua própria Mérope e sim uma Rosa ou Maria qualquer. E, além disto, imaginemos que João possa permanecer ali, satisfeito, com sua Maria, numa felicidade que possa se tornar “mais do que prometia a força humana” e, juntos, possam edificar “novo reino”. Podemos deixar Camões de lado, neste momento, e dizer que, simplesmente, João e Maria consigam construir um lar, uma realização que exprima a evolução, o clímax do sentimento dos dois. É possível que isto não impeça a admiração às Jocastas e Laios, e o poder ver-lhes a beleza e a inteligência, porém, em virtude desta evolução emocional, desta satisfação interior construída a dois por João e Maria, talvez eles se permitam não desejar ir para a encruzilhada do caminho entre Delfos e Daulis assassinar o pai para tomar-lhe nossa mãe. Pois, se vocês acreditam mesmo em Édipo, se ele é universal mesmo, ele estaria dentro de nós e a nós caberia lidar com ele em todos os momentos de nossa vida. Repetirei agora as palavras do grande antropólogo Franz Boas, expressas em 1938, e também nas páginas iniciais deste meu trabalho: “É amplamente devido a Sigmund Freud que nós compreendemos a importância destes esquecidos incidentes da infância, que permanecem uma força viva, dentro de nós, através da vida, e, quanto mais intensamente são esquecidos, mais potentes se tornam”. A UNIVERSALIDADE DO COMPLEXO DE ÉDIPO Eu complementaria: mais potentes eles se tornam e mais impotentes nos tornamos. Sinopse O autor faz uma breve referência à lei de Seleção Natural de Darwin e suas conseqüências nos diferentes modos de relacionamento de algumas espécies animais. Estuda mais demoradamente os gorilas, utilizando as pesquisas de Jane Goodall. Ela e outros pesquisadores mostraram que, nos grandes símios e em outras espécies animais, as uniões incestuosas seriam raras. Detalha a célebre divergência entre Malinowski e Jones, com dados mais recentes trabalhados pelo grande antropólogo Meyer Fortes e enfatiza a engenhosa hipótese do antropólogo Godelier em relação à interdição do incesto. Summary The universality of the Oedipus Complex The author briefly reports Darwin’s Natural Selection Theory and its implications in the different types of relationships among some animal species. He pays closer attention to gorillas, using research conducted by Jane Goodall. She and other researchers have shown that big apes and other animals rarely have incestuous practices. He details the famous divergence between Malinowski and Jones with more recent data by the great anthropologist Meyer Fortes and emphasises the ingenious hypothesis by the anthropologist Godelier concerning the interdiction of incest. Sinopsis La universalidad del complejo de Edipo El autor hace una breve referencia a la ley de Selección Natural de Darwin y sus consecuencias en los diferentes modos de relación de algunas especies animales. Estudia más lentamente a los gorilas, utilizando las investigaciones de Jane Goodall. Ella y otros investigadores mostraron que en los grandes simios y en otras especies animales, las uniones incestuosas serían raras. Detalla la célebre divergencia entre Malinowski y Jones, con datos más recientes trabajados por el gran antropólogo Meyer Fortes y enfatiza la ingeniosa hipótesis del antropólogo Godelier con relación a la interdicción del incesto. 168 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Complexo de Édipo; Incesto; Etologia; Antropologia. Key-words Oedipus complex; Incest; Ethology; Anthropology. Palabras-llave Complejo de Édipo; Incesto; Etología; Antropología. Referências BOAS, F. (1938).The mind of primitive man, revised edition. In Malinowsky, Freud and Oedipus. The International Review of Psychoanalysis. New York: Collier Book, v. 17, p.47-60, 1963. EIBESFELDT, I. (1978). Etologia. Barcelona. Omega, 1978. FORTES, M. (1977). Custom and conscience in anthropological perspective. The International Review of Psychoanalysis, v. 4, p.127, 1977. FRAZER, J. (1978). The golden bough. London: MacMillan Press, 1978. FREUD, S. (1913). Totem and taboo. In: ______. Standard edition. v. 13. ______. (1924). 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Apesar disso, Mona Lisa é de fato uma das mais belas criações da arte da pintura. Raras vezes um pintor logrou fixar sobre uma tela imagem tão plenamente realizada e tão carregada de significações... Uma interação muda e mágica entre o homem e o mundo Renato Trachtenberg O Ateliê do Psicanalista O ATELIÊ DO PSICANALISTA visível, de que resultou, sobre a superfície material da tela, uma pele tênue de poesia, de expressão humana – a imagem que penetrará a alma de quem a veja e lá se manterá para sempre, tal é a força dessa obra onde a figura humana e a natureza, como num sonho, parecem revelar sua identidade profunda, a sua origem insondável – o mistério da existência que, nos lábios de Mona Lisa, sorri. Sorri para nós? Sorri de nós? Sorri conosco.” Ferreira Gullar Mona Lisa e o renascimento a) Um gosto de sonho, ou como foi o meu primeiro encontro com a Mona Lisa Numa certa manhã parisiense de um outono que começava a dar seus primeiros sinais de aproximação, me sentia empurrado por estranhas e incontroláveis forças ao percorrer corredores e salas de um Louvre apinhado de turistas, tentando chegar a tempo para o meu primeiro e tão aguardado encontro com a Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Ao entrar na sala onde há muitos anos me esperava, meu olhar, apesar da incomensurável distância que nos separava, imediatamente capturou, e capturado foi, por aqueles olhos que me sorriam enigmáticos. Apesar de ofuscados ambos pelos flashes voyeuristas de máquinas japonesas, publicamente desafiadoras de proibições privadas, constatei, surpreso, que nossos olhos nem piscavam. Ao contrário, como se aquele espoucar de luzes tão brilhantes deixasse intacta uma trilha, uma clareira de sombras entre nós dois. Não sei como ocorreu, mas, como que movida por divinos desígnios, a multidão ruidosa e iluminada parecia haver magicamente desaparecido. Aquele olhar que me buscava aflito, fascinado e fascinante, saboreando cada centímetro ganho entre nós, ficou registrado para sempre em algum negativo de minha memória. Agora, como um Rosebud* (entre-nós), retorna despertado do sono profundo das minhas lembranças. * Cidadão Kane (Orson Welles). 172 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 O impacto e o conflito estético Essa conjetura imaginativa nos fala de um encontro primordial do bebê com os olhos-seios-corpo-mente da mãe como um objeto estético produzindo no bebê (e também na mãe), um impacto estético, gerando um conflito fundante/funda-mental: o conflito estético (MELTZER, 1986, 1988). “No começo era o objeto estético, o objeto estético era o seio, o seio era o mundo” (MELTZER, 1986). Esse conflito é produzido pelo contraste entre o que pode ser conhecido, a beleza exterior da mãe, e o mistério de seu interior, o desconhecido de seu corpo e de sua mente. O bebê humano é capaz de responder ante a beleza do mundo (corpo/mente da mãe) e ante sua inevitável fragilidade, despertando sua sede de conhecimento tanto como a de leite. É, na verdade, um objeto combinado, materno e paterno, continente e conteúdo. Esse encontro entre o que está à disposição dos sentidos e o interior enigmático, que deverá ser construído/intuído mediante a imaginação criadora, produz a grande e terrível dor da incerteza na área da tridimensionalidade. Existiria correspondência entre esse belo exterior, captado pela sensorialidade, e aquilo que está oculto? Que podemos saber de suas intenções, seus sentimentos, sua durabilidade? Seu poder para provocar emocionalidade só é igualado à sua condição de gerar angústia, dúvida, desconfiança. O interior do objeto presente, mais que o objeto ausente, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 173 Renato Trachtenberg b) As associações, ou de como me dei conta de que o primeiro não era o primeiro Recordei (re-cordare: lembrar com o coração) instantaneamente as idéias de Meltzer sobre o impacto estético, do encontro mítico, primordial, entre os olhares do bebê e sua mãe. Assim, me dei conta de que o meu suposto e admirado (olhar/mirar novamente) encontro primeiro com o olhar da Mona Lisa não era na verdade o primeiro. Adquiriu significado emocional, então, uma hipótese teórica (impacto/conflito estético) bastante conhecida por mim ao ligar-se, significativamente, aos tesouros fundadores há tanto tempo guardados nos espaços cósmicos dos sonhos ainda não sonhados: re-natus, renascimento (Leonardo da Vinci). O ATELIÊ DO PSICANALISTA passaria a ser o mais forte estímulo para o pensar, sendo, em sua natureza, mais apaixonado que ansioso. Enquanto as angústias engendradas pela ausência tendem a despertar violência a serviço da dominação e controle do objeto, a paixão ligada ao interior oculto do objeto estético promove o fazer o amor, convida à exploração/investigação. A tolerância balanceada, o limite possível, o registro da diferença entre o acessível e o inacessível será o nosso guia na possibilidade de aproximação daquilo que jamais conheceremos em sua plenitude. Suportar a ausência dessa resposta ao enigma, registrando “apenas” esse mistério essencial do interior do outro, irá definir nossa escolha pelo caminho do crescimento mental. Reciprocamente, o bebê deve ser sustentado como objeto estético da mãe para que a experiência de seu ato de amor reverbere e aumente em intensidade. O envolvimento mútuo na experiência estética provavelmente é o que permite que seja tolerável por longo tempo para ambos. As primeiras noções espaciais, corporais e mentais surgem exatamente a partir desses encontros primordiais em que o exterior perceptível se contrasta com um interior misterioso, devendo esse outro significativo suportar a construção progressiva das condições de pensabilidade. Bion (1962a; 1962b) descreve em forma detalhada o papel que joga a mãe pensante, permitindo que o bebê comece a desempenhar a função de pensar e, com o correr do tempo, chegar a praticá-la, em forma autônoma, através da internalização de um objeto pensante. As angústias e emoções primitivas do bebê deverão ser pensadas pela mente pensante da mãe antes de lhe retornarem com significados passíveis de digestão/assimilação, inaugurando um modelo metacomunicativo. Em outras palavras, o conhecimento é uma parte do processo e pode ser ensinado/comunicado; porém, a função essencial parece ser a de transmissão de um modelo. O conhecimento, ao contrário do pensar, pode ser público/publicado. Esses encontros que irão delineando espaços públicos e privados, radicalmente idiossincráticos, configuram, além desses, um terceiro espaço, uma terceira zona, diz Winnicott (1971) – a terceira margem do rio, diria Guimarães Rosa. Espaço esse em que o interno e o externo não são e não 174 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 175 Renato Trachtenberg devem ser discriminados, suportando o paradoxo. Área do jogo e do brincar, espaço primeiro da criatividade. No dizer de Bion, elos de ligação, espaços de trânsito, barreiras de contato. Sonho co-gestado, em que o público/cotidiano (restos diurnos) se fertiliza com o desejo privado, singular. Momento/ponte em que o meu e o teu dão lugar ao nosso de uma construção compartilhada, na qual o inconsciente é vinculo, intersubjetivo, e o sonho é cópula. Pensar por si mesmo é a rigor um processo de pensar-com, um com-pensar, modelizando uma conjunção criativa continente/conteúdo, geradora de novos pensamentos/bebês. Os símbolos assim nascidos se tornam cada vez mais poéticos e idiossincráticos, em contraste com o emprego de símbolos clonados, recebidos. Nos sonhos de indivíduos criativos, a novidade dos símbolos e a complexidade dos entrelaçamentos de elementos visuais e verbais produzem um verdadeiro impacto estético naquele que se deixa banhar pela sua narrativa. Nos sentimos profundamente agradecidos pela oportunidade de estarmos ali naquele momento, escutando-a. Existe uma tal interpenetração entre as áreas públicas e privadas que separá-las é, muitas vezes, uma missão impossível. Chegaremos sempre a um ponto de indecidibilidade em que deveremos renunciar a toda tentativa de definição. Como se isso fosse pouco, ainda temos os tais Big Brother que, como o personagem de Orwell, voyeuristicamente invadem nossos espaços privados e nos colocam numa posição de passividade, “assistidos” pelo instrumento público de dominação. Essa é, talvez, a dimensão mais perversa: nossa casa privada é seqüestrada pela coisa pública, que se postula como privada, pervertendo o próprio conceito de casa. Por outro lado, a experiência cotidiana nos mostra constantemente que a necessidade de delimitação entre esses espaços, ainda que imprecisa, é parte essencial da condição humana. Esses limites irão variar de acordo com as diferenças culturais, geográficas ou históricas e, especialmente, com a singularidade última do indivíduo. Todos nós temos um perímetro de relação com o mundo que deve ser respeitado, pois, a partir de determinado ponto, sons, cheiros, toques ou olhares alheios adquirem a condição de molestos invasores. O ATELIÊ DO PSICANALISTA A ruptura da barreira do contato possível nos estimula a reivindicar o restabelecimento peremptório das fronteiras: “no pasarán!” Como acentua Meltzer (1986), no espaço privado qualquer ingresso deve ser precedido de um convite. Conseqüentemente, os espaços nos quais ficamos mais expostos, por uma troca de roupas ou fazer sexo, tendem a ser limitados, trancáveis, permitindo que haja uma atividade silenciosa e isenta de perturbações externas. Podemos desligar nossos televisores e impedir que os reality shows penetrem nossas frágeis retinas; podemos resistir à intrusão telefônica deixando o aparelho desligado; podemos folhear os livros de um amigo em sua biblioteca, mas não vamos espiar dentro das gavetas de sua escrivaninha. Batemos à porta antes de entrar, mesmo que sejam as portas fechadas dos banheiros de nossos próprios lares. O estabelecimento dessas fronteiras do privado é convencional e quando as ultrapassamos, sem ter consciência imediata disso, logo desviamos o olhar e rapidamente retrocedemos pedindo desculpas. Na esfera pública de nossas vidas no mundo exterior movemo-nos e adaptamo-nos em conformidade a essas convenções de quando ultrapassar, e quando não, o privado de outros indivíduos. Tais convenções lubrificam o movimento social e permitem-nos manter relações casuais com um mínimo de atrito ou de incerteza atormentante. A partir de Bion, Meltzer (1986) nos diz que, sem nenhuma implicação pejorativa, pareceria razoável rotular essa área de adaptação casual/contratual como sendo uma área caracterizada pela ausência de mente, ou protomental, no sentido de que operamos nessa esfera com signos e não com símbolos formados autonomamente a partir da operação da função alfa e do pensamento onírico inconsciente sobre as nossas experiências emocionais. Ao diferenciarmos os espaços públicos dos privados que cada indivíduo possui, continua Meltzer (1988), achamo-nos em posição de fazer a distinção entre o privado e o secreto, a partir do ponto de vista da intenção: ou seja, o segredo se dirige a uma audiência externa, enquanto a privacidade indica funções mundanas internas. Desejamos entender mais a respeito da pessoa privada, mas também desejamos detectar seus segredos. Essas 176 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 177 Renato Trachtenberg duas tendências podem ser tomadas como forças agindo em direção à intimidade ou à violência, conforme o caso. Violência entendida, então, como violação de espaços privados. Também constitui uma dimensão significativa o grau em que o limite da privacidade se demonstra socialmente. Enquanto a privacidade demonstra discretamente suas fronteiras sociais de classe e status, de tal modo que elas fiquem perceptíveis às pessoas interessadas, uma demonstração mais exuberante de evidências da inserção social provavelmente dirige-se à curiosidade intrusiva, aparecendo de forma projetada uma provocação às transgressões das fronteiras. Com isso, podemos detectar também uma diferença entre o mistério e o segredo. Este último deriva a maior parte de seu prazer do fato de ser secreto. “Afinal de contas”, pergunta Meltzer (1988), “qual é o prazer de se ter um segredo se ninguém souber que você tem um segredo?” As crianças, menos sutis que os adultos, demonstram isso de um modo mais ostensivo, proclamando: “Você não sabe o que eu fiz”. Já a postura do adulto é melhor expressa com frases do tipo: “Me pediram para guardar segredo, se não, te contaria...”. De qualquer modo, o convite à invasão dificilmente passará despercebido pelo intruso de plantão. Ao contrário do segredo, que pede para ser visto, revelado, iluminado, o mistério ocorre na área das relações humanas íntimas – experiências emocionais capazes de desencadear o pensamento – e aí deverá ser suportado. Intrínseco ao conflito estético, o mistério é o negativo, o crer para ver, apenas imaginável e conjeturável. Isso nos conecta com o conceito formulado pelo poeta J. Keats (1987) de capacidade negativa, quando diz que um homem de gênio, como Shakespeare, deve se manter num estado de tolerância/paciência às incertezas, dúvidas, meias-verdades, sem a procura precipitada/angustiada do fato e da razão/explicação. Espaços vazios, não saturados, como viajantes paradoxais que, quanto mais estendem suas viagens, menos bagagens deverão carregar. Sustentação dos silêncios eternos dos espaços infinitos que nos amedrontam, como disse Pascal (2001), esperando emergir do infinito vazio e sem forma, nas palavras de Milton (1994). O ATELIÊ DO PSICANALISTA A apreciação estética ou de sonhadores e sonhados todos nós temos um pouco Depois desse longo passeio através dos espaços públicos, privados, secretos e misteriosos, lhes proponho uma nova visita ao Louvre da minha experiência emocional, na tentativa de entendermos um pouco mais esses sonhos assombrados em que somos sonhadores e sonhados pelos nossos objetos estéticos. Solicito a Meltzer (1988) que continue como nosso guia. A essência da apreciação estética através da congruência simbólica, ou seja, o encaixe da mente individual com o objeto estético implica uma diluição de fronteiras ao mesmo tempo que uma afirmação da integridade independente dos dois parceiros do drama (os mundos interno e externo) com irradiação de significado. A resposta estética é descrita por Stokes (MELTZER, 1988) como lembrando e mantendo o “gosto” de um sonho: “a apreciação é uma maneira de reconhecimento: reconhecemos, mas não podemos nomear, não podemos relembrar por meio de um esforço de vontade: os conteúdos que nos alcançam em termos de formas estéticas têm o ‘gosto’ de um sonho que de outra maneira fica esquecido ...”. No centro da apreciação estética está o problema de se poder manter/ sustentar, reconhecer o gosto do sonho que fica evocado entre o sonhador e o objeto estético. Esta nuvem diáfana de não-saber parece composta de elementos sólidos com forma e textura, que esperam ser capturados por uma correspondência simbólica. Assim, manter o sonho tem a ver com uma congruência ou reciprocidade entre os objetos internos e os externos: “com pleno reconhecimento de espaço” (MELTZER, 1988). Aquele que entra em contato com a obra de arte terá, como pré-requisito, uma capacidade negativa que tolere, como o artista criador, a incerteza advinda da nuvem de desconhecimento originada pelo confronto com o objeto estético, sem uma tentativa irritável de alcançar o fato e a razão; alguma capacidade de olhar flutuantemente para o objeto até que um padrão eventualmente possa emergir. Na psicanálise, denominamos atenção livremente flutuante essa função do analista quando, na sessão analítica, está apreciando esteticamente 178 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 179 Renato Trachtenberg o sonho a ser sonhado entre-mentes. É necessário evitar tanto a curiosidade intrusiva – que converte o objeto estético em um segredo – como também apoiar-se no julgamento e avaliação – como se fôssemos o guardião auto-escolhido do objeto. A penumbra de significados, contornos derretidos do objeto, ao mesmo tempo que reverenciado em seu inviolável mundo próprio, misturados com seu próprio estado de-mente (confusão/excitação/angústia/espanto/adoração/perturbação), começa a se impor ao observador à medida que ele deixa de ser um mero observador e adquire a condição de observado/participante. Sentindo-se arrastado para e pelo objeto estético e respondendo às tensões psíquicas capturadas pelas suas qualidades formais, modifica-se inevitavelmente sua própria estrutura mental interior. Como diz Stokes (MELTZER, 1988): “Silêncio rodeia a grande obra de arte. Ela se mantém palpavelmente ‘lá fora’, mas apesar disto ela nos envolve; não apenas a absorvemos, mas ficamos absorvidos”. Os dois modos, ou melhor, aspectos da resposta estética – incorporação e envolvimento, observar e ser observado, manter e ser mantido – são complementares e mutuamente enriquecedores. Isso significa renunciar a explicações, a desenterrar segredos, a decifrar mistérios, a diagnosticar causas ou a psicopatologia do autor, etc. A obra de arte exige-nos que a conheçamos de um modo mais essencial; ela existe para que a humanidade a utilize, para despertar e dar forma à nossa necessidade de sermos conhecidos e nos conhecermos. A experiência emocional despertada nesse encontro com a obra de arte precisa ser integrada dentro da mente sob a forma de um símbolo recíproco tal que seu significado possa se tornar conhecível/reconhecível. Entretanto, antes de mais tudo, é necessário encontrar um espaço capaz de conter e pensar essa experiência. Sugiro denominar ateliê esse espaço onde o pensar e, portanto, o criar encontrarão as melhores condições de germinação. O ATELIÊ DO PSICANALISTA Casa de artistas “A estrada me conduziu aos arredores de Budapeste, até um palacete escondido na vegetação, soberbamente isolado, como num quadro. O aposento onde somos recebidos é iluminado de tal forma que acreditamos estar num ateliê de pintura. Lá fora, as rosas de julho são embaladas pelo vento. Numa grande poltrona de couro escuro, de costas para a janela, está sentado Freud. Seus olhos sombrios, tão inteligentes e que, além da inteligência, deixam adivinhar uma generosidade discreta que prefere se retirar na solidão; estão aí os sinais de uma aristocracia da alma, da verdade límpida da infância.” Dessa forma poética, Zsofia Denes (SOUZA, 1995) inicia sua entrevista com Freud em agosto de 1918, na casa de Anton von Freund. Nos fala de um lugar “soberbamente isolado como num quadro”, onde o psicanalista fundador, na sua esplendida solidão, parece encontrar o ambiente propício para o repouso e a criação. Esse espaço, por ela denominado ateliê, nos fala de um continente fecundante em que a obra poderá encontrar sua possibilidade de gestação. A sala de análise, freqüentemente chamada de consultório, sala de esperar o inesperado, o inusitado, o inédito e o inaudito, é o ateliê do psicanalista. Aí aguardamos, como nos sonhos, os visitantes da noite, nossos pensamentos selvagens ainda não, e talvez jamais, domesticáveis. Os artistas, não os da alma, parecem encontrar nesses espaços significações semelhantes. Para alguns, o ateliê é “extensão do pensamento” ou algo “alojado na própria cabeça”, “campo de batalha selvagem”, “quarto de brinquedos” (SOARES, 2001). Nas palavras de Guto Lacaz: “As paredes de meu ateliê eram muito ocupadas na minha época de formação ... gostava de conviver com um lugar saturado, cercado de informações ... Hoje prefiro um espaço despojado ... Meu ateliê é o ecossistema que me permite materializar minhas concepções” (SOARES, 2001). “Apesar de técnico, meu ateliê é um espaço simbólico. Procuro no 180 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sinopse O autor parte do encontro mítico entre o bebê e a mãe, descrito como o conflito estético por D. Meltzer, para referir-se à fundação dos espaços públicos e privados na mente humana. As noções de mistério e segredo advindas desses esSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 181 Renato Trachtenberg meu trabalho o máximo de silêncio, de equilíbrio, de introspecção ... Além de facilitar o meu trabalho, ele é uma metáfora de um espaço mental de repouso e reflexão. Procuro criar um espaço de sensibilidade, num trabalho que parte de pequenos estímulos”, nos diz Luiz Paulo Baravelli (SOARES, 2001). “Meu ateliê é um lugar fora da vida cotidiana, é um estado de suspensão. É o meu duplo, a expansão da minha cabeça, a amplificação de um espaço mental. Tem mais a ver com a fermentação das idéias, a formulação de projetos, do que com a execução técnica...”, assim o descreve Carmela Gross (SOARES, 2001). Para outros, quem sabe, um porão, um sótão, onde as velharias se misturam com o novo ainda não nascido, os achados com os perdidos. “Gosto de guardar em meu ateliê objetos curiosos, abandonados, descartados; essas coisas significam para mim um renascimento, uma segunda chance, o ato de fazer com que existam de novo”, diz com gosto de sonho Rochelle Costi (SOARES, 2001). Ateliê, casa de artistas, espaço onírico onde se escorrem as fronteiras do eu, deslocando as divisórias que fragilmente separam os diferentes mundos que habitamos, no árduo caminho da simbolização. Criação concebida nesses ateliês em que vivemos tantas vidas sem sabê-las, o sonho é, em si mesmo, um ateliê. É contido e continente numa relação complementar a nunca se completar. Lugar de criação, que se recria nova-mente em cada criação, transformando o próprio criador. Espaço privilegiado onde nossas experiências emocionais, desejos e tempestades deverão encontrar abrigo e significação, acolhimento e transformação, recepção e narratividade. Sonho: dormitório parental, renovada esperança de misteriosos renascimentos. O ATELIÊ DO PSICANALISTA paços primordiais irão configurar, junto com os mesmos, as diferentes possibilidades de relação do sujeito com o mundo (interno e externo). Entre essas possibilidades se insere a relação do homem com os seus objetos estéticos, especialmente com a obra de arte. Contando com esse “instrumental”, o autor se refere a um espaço mental, por ele denominado ateliê, uma espécie de sala interna de análise, onde é gestado o sonho. Nessa dimensão estética da psicanálise, o próprio sonho, por sua vez, é um ateliê: espaço de geração e expansão da criatividade, lugar de misteriosos renascimentos. Summary The Atelier of the Psychoanalyst The author departs from the mythical encounter between the baby and his/ her mother, described by D. Meltzer as the aesthetic conflict, to refer to the foundation of public and private spaces in the human mind. The notions of mystery and secret resulting from these cardinal spaces will configure, along with them, the different possibilities in the relationship between the subject and the world (internal and external). The relation between men and their aesthetic objects, especially works of art, is among such possibilities. Counting with these “instruments”, the author refers to a mental space he has named “atelier”, a type of internal analysis room, where dreams are conceived. In this aesthetic dimension of psychoanalysis, the dream itself, on its part, is an atelier: a space for generating and expanding creativity, the venue of mysterious regenerations. Sinopsis El Taller del Psicoanalista El autor parte del encuentro mítico entre el bebé y su madre, descrito como el conflicto estético por D. Meltzer, para referirse a la fundación de los espacios públicos y privados en la mente humana. Las nociones de misterio y secreto venidas de esos espacios primordiales configurarán, junto con los mismos, las diferentes posibilidades de relación del sujeto con el mundo (interno y externo). Entre esas posibilidades se inserta la relación del hombre con sus objetos estéticos, especialmente con la obra de arte. Contando con ese “instrumental”, el autor se refiere a un espacio mental, por él denominado taller, una especie de sala interna de análisis, donde se gesta el sueño. En esa dimensión estética del psicoanálisis, el propio sueño, a su vez, es un taller: espacio de generación y expansión de la creatividad, lugar de misteriosos renacimientos. 182 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Renato Trachtenberg Palavras-chave Espaço; Estético; Sonho. Key-words Space; Aesthetic; Dream. Palabras-llave Espacio; Estético; Sueño. Referências BION, W. (1962a). Uma teoria sobre o processo de pensar. In: ______. Estudos psicanalíticos revisados: (second thoughts). Rio de Janeiro: Imago, 1988. ______. (1962b). Aprendiendo de la experiencia. Buenos Aires: Paidós, 1975. GULLAR, F. (2003). Relâmpagos. São Paulo: Cosac; Noify, 2003. KEATS, J. Poemas. São Paulo: Art Editora, 1987. MELTZER, D. (1986). Metapsicologia ampliada. Buenos Aires: Spatia, 1990. ______. (1988). A apreensão do belo. Rio de Janeiro: Imago, 1995. MILTON, J. O paraíso perdido. Belo Horizonte: Villa Rica, 1994. PASCAL, B. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. SOARES, C.C. Casa de artistas. Folha de São Paulo, 23 dez. 2001. Cad. Mais SOUZA, P.C. de (1995). Freud, Nietzsche e outros alemães. Rio de Janeiro: Imago, 1995. WINNICOTT, D. (1971). Realidad y juego. Barcelona: Gedisa, 1979. Artigo Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Versão modificada do trabalho apresentado na mesa-redonda “Espaços públicos e espaços privados” do I Congresso Internacional de Psicanálise e Intersecções – Arquitetura: Luz e Metáfora: um olhar sobre espaços e significados (promovido pelo GEA), 24/05/2002. Dr. Renato Trachtenberg Rua Florêncio Ygartua, 391/402 90430-010 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (0xx51) 3330-6453 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 183 Conferência na SBPdePA Paulo Cesar Sandler Utilizo o termo epistemologia como o estudo das teorias a respeito do conhecimento1. Penso que é fundamental discernir: i. uma epistemologia psicanalítica (métodos psicanalíticos de conhecimento): os estudos sobre a mente humana de Freud, G. Devereux, E. Erickson, B. Malinowsky, G. Rohem, F. Redlich, G. Bachelard e muitos outros, nos campos que eram tanto psicanálise aplicada como uma aferição epistemológica (antropológica) de concepções psicanalíticas prove- Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. 1. Diferenciando episteme de doxa (o conhecimento e o discurso sobre ele). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 187 Paulo Cesar Sandler Epistemologia: um Resumo Crítico sob a Ótica de um Psicanalista, para uso de Psicanalistas EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM nientes do método clínico; ii. uma epistemologia da psicanálise (métodos de validação das proposições, hipóteses, métodos e conclusões em psicanálise), desenvolvido por Freud de modo notável; na década de quarenta, por K. Menninger e teve seu impulso principal com Bion; recentemente, Wallerstein, Kernberg (na trilha aberta por Menninger) e Green (em parte aproveitando a obra de Bion e em parte tendo uma visão própria) retomam a questão; iii. estudos transdisciplinares de epistemologia, entendida como filosofia da ciência, e psicanálise, com avaliações críticas mútuas; parte-se da pergunta: será útil a nós analistas, saber algo da história da filosofia e da epistemologia, para não repetirmos certos enganos que, no meu ponto de vista, talvez já tenham destruído a possibilidade dos filósofos fazerem filosofia, ou feito com que ela tenha se mudado para outros domínios? Conversar a respeito de teoria do conhecimento e de filosofia segundo a experiência (e parcialmente a ótica) de um clínico praticante, para clínicos praticantes (iii com vistas a incrementar ii) faz parte da história do movimento psicanalítico2; iv. epistemologia difere de avaliação de resultados de psicanálise (que 2. Foi feito por S. Freud, Theodor Reik, Wilfred Bion, Donald Winnicott, Roger Money-Kyrle e J. Wisdom. Eles sabiam que os problemas enfrentados pelo epistemólogo, e pelo próprio cientista, são os mesmos problemas enfrentados pelo psicanalista. Em nosso meio, destaco Virgínia Bicudo e Lygia Amaral, com sua precisão terminológica e respeito às posturas originais dos autores psicanalíticos, sempre acompanhada de ausência de preconceito em relação ao novo; Laertes Ferrão e Frank Philips, que trouxeram a essência da epistemologia psicanalítica de Bion, mostrando o nãocientista que existe em cada paciente, quando mergulha em alucinose, e o analista sendo um cientista at work; Isaías Melsohn, que trouxe contribuições de grandes scholars da teoria do conhecimento, como Ernst Cassirer; Cecil Rezze, Deocleciano Alves, Felix Gimenez, Pérsio Nogueira e Odilon de Mello Franco, que ampliaram as contribuições de Ferrão ao trazerem o vértice clínico de observação das condições peculiares no aqui-e-agora da sessão; Fábio Herrmann, com sua teoria de campos e rompimento destes na tentativa de descrever o ethos psicanalítico e discriminá-lo de qualquer outro; Ignácio Gerber, com tentativas críticas transdisciplinares; Antonio Rezende, com suas contribuições em torno da obra de Bion e J. Derrida; e Paulo Duarte, trazendo as contribuições de Lakatos, entre aqueles que têm esta preocupação epistemológica, ou seja, criticar (no sentido do criticismo de Kant) nossos métodos de fazer afirmações, no sentido de verificar seu valor-verdade. Cito apenas alguns dos autores paulistas; a lista ficaria longa se incluísse autores de outros centros. 188 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 3. Na série que forma atualmente três volumes e constitui reuniões (“curso”) na SBPSP aos sábados, desde 1994, e durante quase dois anos, em Curitiba também. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 189 Paulo Cesar Sandler pode ser uma avaliação científica); foram populares na década de trinta, até a de sessenta. Creio que a postura de autocrítica e auto-avaliação de resultados passou a ser uma atitude ética de cada analista, por meio de análise pessoal e supervisões. Pessoalmente penso ser notável que não sejam citadas hoje; v. uma escola epistemológica com o todo da teoria do conhecimento, ou com suas bases. É comum eleger-se alguma corrente dentro da epistemologia em função de moda, autoridade, contemporaneidade. Pessoalmente me tem sido mais útil perceber as origens e o que é básico e depois estudar o que de tempos em tempos é apresentado como “a última palavra”, ou “o melhor”. Em iv e v penso valer a observação de Bacon de que toda novidade não passa de esquecimento. Tenho sugerido3 que o ser humano consegue desenvolver, a partir da pura necessidade, alguns modos para se aproximar ou apreender a realidade ou verdade e a discriminá-las do que não é real ou verdadeiro, ou o que é falso. Além de apreender isto, pode comunicar o que experimentou. Penso que a arte é o modo mais primitivo de apreender a realidade, tanto externa como interna. Dentro dos modos artísticos, que se desenvolveram em métodos, penso que a Música é o mais antigo, seguindo-se a Pintura, a Escultura e depois os modos verbais: Mitos, Poesia e Literatura. Estes se sofisticaram com o Teatro, filho direto dos mitos, e com a Filosofia. O modo mais recente me parece ser a Ciência. Minha investigação sugere fortemente que a obra de Freud tem sua origem na de Kant, embora isso não tenha sido ressaltado na literatura até Bion trazer Kant aos psicanalistas. Pude observar (e este dado não se encontra disponível na literatura) que Klein, Bion e Winnicott têm sua origem em Hegel; e as influências de Pascal, Poincaré, Whitehead (um filósofo e matemático do final do século passado), Russell, Berlin (um epistemólogo de talento comunicacional ainda sem igual), Wittgenstein e Buber sobre a obra de Bion são patentes, formando o ambiente que ele respirou. Não vou expandir estas influências EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM no momento – se houver interesse, talvez haja tempo para isto durante o nosso próximo encontro. Moda, a ardilosa vestimenta do demônio4 Quando não se fica perdido em modas temporais e crenças dependentes de grupos nacionais, religiosos ou culturais, establishments ou autoridades de qualquer tipo, percebe-se a existência de Atemporalidade em algumas apreensões universais-particulares que formam o ethos da atividade científica e filosófica. Formam bases atemporais por pertencerem ao domínio do belo ou do real. Muitos, como Ítalo Calvino, chamam estas bases de “clássicos”. Em termos filosóficos dos gregos antigos, principalmente Platão, e resgatados por alguns, dentre os quais destaco Spinoza e Kant, há “imanências” e/ou “transcendências”. Não é “ou”, é “e/ou” – o paradoxo da simultaneidade. O que é “Transcendência”? Aquilo que transcende, ultrapassa o tempo, a cultura, o espaço, o inter e transgrupal, o inter e transtemporal, profundamente ligado a certos mistérios mais íntimos da vida, atuantes e utilizáveis, que são intuíveis em sua existência (intui-se que existem), comunicáveis por experiência e formação, mas não por formulação, não são redutíveis a nenhuma forma ou formulação humana. Em contraste, diverso mas indissolúvel, formando o paradoxo a ser tolerado, “Imanência” diz das formas assumidas por estes “mistérios”, através dos tempos: formulações verbais, acústicas, sensorialmente formuláveis e apreensíveis, culturais, intragrupais. Séculos de tentativas formaram muitos termos para “cercar” estes fatos, todos eles condenados ao fracasso, pois não se fala ou nomeia o que requer intuição e experiência para ser percebido5. Esta impossibilidade de nomeá-los e o fato de nós, seres humanos, parecermos pouco capazes de tolerar tal insatisfatoriedade 4. Fashion – the cunning livery of hell (William Shakespeare, Measure for Measure, III, i, 95). 5. Por exemplo, nos termos de Marx, superestrutura e infra-estrutura; nos termos de Freud, conteúdo manifesto e latente. Há muitas outras formulações que foram resgatando de quando em quando, da escuridão do esquecimento, aquilo que é real. As mais originais que conheci (isto não quer dizer que não haja outras anteriores) foram formuladas por Platão: transcendências pertencem ao “domínio” das formas ideais e imanências, ao trabalho de Demiurgo. Nos (continua p.191) 190 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 (continuação p.190) termos gregos resgatados por Kant, noumena e phaenómena. Einstein e Poincaré captaram algo disto (“velocidade da luz”, transformação de matéria em energia, e a natureza ao mesmo tempo de partícula e de onda da luz, entre outros). 6. “Little learning is a dangerous thing” (Pouco saber é algo perigoso) (Alexander Pope). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 191 Paulo Cesar Sandler epistemológica, acrescida da intolerância do paradoxo “monista” que estes dois fatos são unos e indivisíveis, talvez contribua para que se viva tentando clivá-los para entendê-los. Quando se tenta separá-los, comete-se um “crime ecológico”. Cinza é a teoria e verde a árvore da vida, na formulação de Goethe, tão querida de Freud; poucos percebem, como uma analista praticante, que ambos são necessários e fazem estudos em verde e cinza, sem clivá-los (Ester H. Sandler, 1997). Embora o campo numênico das transcendências tenha sido re-estabelecido por Kant, ele não adentrou no mesmo; creio que a psicanálise o fez. Parece-me que uma concepção de Aristóteles, mais desenvolvida por Locke, a de senso comum, trazida para a psicanálise por Bion, é de enorme auxílio: temos mais de um sentido em comum, e se um ou mais sentidos, pontos de vista, apontam para um fato, pode ser que este fato seja verdadeiro. Penso que não se deve confundir senso comum com lugar comum ou banalização (confusão feita por grandes pensadores, como Bachelard). Houve alguns problemas sérios com os usos do termo transcendência e da realidade a que ele tenta se aproximar, dentre os quais destaco a degeneração do Místico para o Misticismo, que nada mais é que uma confusão entre a invariância transcendente que permeia o fato humano e as idéias de “verdades eternas e absolutas”, crença religiosa anticientífica e anticonhecimento. Vivemos tempos onde há uma busca por modelos alternativos à psicanálise; já vi antes a moda positivista, a moda behaviorista, a moda sociologista, a moda biologista. Um povo que não conhece sua história está condenado a repetí-la, observou Santayana; a compulsão à repetição está na base de fantasias transferenciais, observou Freud. Regados por pouco saber, são perigosos6. Parece-me que pretensões à novidade não passam de onipotência. Estas várias correntes revivem, e por vezes muito fragmentária e parcialmente, meias-verdades e falso aprendizado, algo que já se EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM conhecia, mas foi olvidado. Modas maravilham o leigo e fazem sorrir o perito. A primeira e a segunda “grandes clivagens mundiais” Aristóteles observou que o homem tem uma “ânsia de saber”, fato depois desenterrado por Kant. Freud denominou isto “instinto epistemofílico”, expressado pela mente ao investigar e pensar a respeito de si mesma e do mundo. A mente pensando sobre si mesma é o nous, uma espécie de Psicanálise Primeva. Penso que Psicanálise é herdeira tanto de Platão (onde as formas Ideais e o trabalho do Demiurgo formam a realidade psíquica e material descrita por Freud inicialmente na p. 620, Interpretation of Dreams) como de Aristóteles (onde o nous é obtido através do exercício da consciência, o órgão sensorial para apreensão da qualidade psíquica, ou da visão binocular conforme formulada depois por Bion). Eu estou aqui propondo que consideremos Ciência como um dos modos de apreender a realidade, na possibilidade aberta por Platão e desenvolvida por Aristóteles – este último, geralmente considerado como pai da Ciência moderna – e que se re-aviva com Francis Bacon, com o Iluminismo e se firma com o Movimento Romântico. Aristóteles não prosseguiu amorosamente o trabalho de seu mestre – como o próprio Platão fizera com Sócrates. Inaugurou um tipo de rivalidade: frente à Academia de Platão, resolveu fundar um Liceu, e frente a observações abrangentes de Platão, julgou, por bem, introduzir umas tantas clivagens que, a meu ver, se inseriram de modo tão violento no pensar ocidental que até hoje sofremos seus efeitos. Estou me referindo a algo que chamo, na falta de outro nome, de “Primeira Grande Clivagem Mundial” na história das vicissitudes da apreensão da Realidade. Ele se revoltou sobremaneira com a Teoria das Formas de Platão. Com isto, separou mente de matéria. São Tomás de Aquino, Maimônides e Avicena usaram essa separação, que lhes serviu como uma luva para as suas finalidades religiosas (provar a existência de Deus). Nos séculos seguintes, mentes robustas como a de um Descartes sucumbiram a esta grande clivagem entre 192 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 7. Isto tem lá sua utilidade ou talvez sabedoria, pois a alternativa seria ficarmos muito confusos ou nublados ou poluídos, caso enxergássemos as ondas de FM, telefones celulares e TV que povoam nosso ambiente. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 193 Paulo Cesar Sandler matéria e mente; a semente do divórcio das humanidades com a ciência natural estava produzindo um enorme capinzal, mas não uma bela grama, penso eu. Uma ciência que se acreditou única e real por se apoiar em dados vistos como objetivos, pois apreensíveis através daquilo que pode apreender algo visto como matéria: o sistema sensorial humano, composto, acreditava-se, de cinco sentidos básicos. Extensões que aumentavam o poder do aparato sensorial foram criadas: telescópios, microscópios e outros. Os sentidos pareciam muito confiáveis, e, realmente, o que se baseava neles produziu muitos resultados para se apreender a realidade: construiu-se toda uma Matemática de números naturais e inteiros e uma geometria de base sensorial por Thales, Euclides e outros. Inicialmente atendendo necessidades, mas logo usada para satisfazer desejos, desgarrada da realidade natural, esta abordagem “fisicalista” não cria sonho – produz alucinação. O “positivismo” é só uma crença: que o ser humano pode apreender a realidade, restringindo-se aos seus órgãos sensoriais. Teria enorme sucesso, em parte real, por ser capaz de lidar com aquilo que é inanimado de modo razoavelmente eficaz. Serviu para dividir terras ao longo das margens do Nilo, para calcular forças que movem os corpos, para fabricar ferramentas e utensílios, para mandar foguetes e satélites ao espaço muito próximo da Terra, e quase tudo que serve para destruir, para promover, rápida e eficientemente, o retorno ao inanimado, como máquinas de guerra (há uma hoje que destrói vida e mantém edificações: a bomba de nêutrons) e para construir coisas inanimadas de todo tipo. Há um sucesso momentâneo na satisfação do desejo que se consegue por meio de objetos inanimados. Contribui esta satisfação para que se esqueça que os órgãos sensoriais humanos têm um espectro limitadíssimo de apreensão. Vai do vermelho ao violeta, no caso da visão7. “Vemos” uma estrela, mas ela não existe mais. Não “vemos” bactérias, mas elas existem. Estes obstáculos foram iluminados pela psicanálise, permitindo-nos discriminar o “ver” (aparato sensorial) do “en- EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM xergar” (realidade psíquica). Mas muitos analistas parecem se satisfazer com o “ver”, por exemplo, quando se restringem a contar palavras ou tipos de palavras durante uma sessão de psicanálise, em sua aplicação mais recente, ou ao gravar sessões com aparelhos de videoteipe. Aristóteles “separou” mente de matéria, entre aspas, pois a separação é um artefato mental. Seus seguidores, muito tempo depois, autodenominaram-se “positivistas”. Nome muito apto, pois esta clivagem negou o par complementar, paradoxal, antitético, do positivo, o par “negativo”. Os positivistas adquiriram o hábito de se julgarem donos da única e absoluta Ciência e costumam rotular os que respeitam o “negativo” de algo pejorativo, inferior, como sendo místicos, psicologizantes, anticientíficos e outros que tais. Abominou-se o motor da ciência e da vida: a falta, a nãolocupletação, a frustração, a não-resposta, a não-explicação, o que não pode ser nomeado, palpado, cheirado, mas existe e pode ser intuído e “usado”. Mais ou menos como o navegador “usa” correntes marinhas ou aeronáuticas, ou como o físico usa os pacotinhos de energia quântica no mundo subatômico ou de energia estelar no grande universo dos buracos negros8, ou como o ser humano um dia usou o fogo. Aristóteles resolveu escrever os produtos de sua mente em um capítulo especial, cujo nome, dado por um editor e não por ele, foi “Depois da Física” (Metafísica) na linguagem da época9. Talvez tenha sido a primeira epistemologia, a primeira teoria sobre o conhecimento que surgiu de modo explícito. Esta separação artificiosa tem conseqüências sérias para o clínico praticante e principalmente para a saúde de seu paciente e da psicanálise. O clínico praticante pode não percebê-la, pois, inconscientemente, ela se manifesta agregando dificuldades do praticante quanto à sua 8. Um engano comum, sempre dependente da clivagem e intolerância de paradoxos a que me refiro, é pensar que os fenômenos descritos pela mecânica quântica são atinentes ao domínio submicroscópico das micropartículas subatômicas; na verdade, as descobertas da mecânica quântica servem para o grande universo, para energias tão grandes que não podem ser medidas mas são conhecidas em sua existência e que formaram o próprio sistema estelar. 9. Um nome senso-concretizado, referente à posição ordinal de um capítulo em um livro, viria a assumir uma conotação tão diversa... 194 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 10. Esta afirmação talvez demande evidências que não posso expandir agora. Ver A apreensão da realidade psíquica, v.IV (no prelo); Conversas 9, 10 e 11 do curso com este nome; e também Bion, o último romântico? – Ribeirão Preto, 1997. 11. Isto já havia ocorrido na década de trinta e, depois, na de sessenta. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 195 Paulo Cesar Sandler própria relação com o seio materno (explicitada por Bion no cap. V de Aprendendo da Experiência), com hábitos “cartesianos” da mente, localizatórios, senso-concretificantes, causais, preditivos, manipulando engenhosamente símbolos. Penso que Freud e muito mais claramente Bion, e, até certo ponto, Jung e Lacan, foram os autores que mais tentaram apontar os riscos desta atitude intra-sessão. A crítica aos modos de conhecer e algumas de suas limitações estavam implícitas em Platão. A psicanálise redescobriria com Freud, Bion e Green, sem os exageros alucinados do Idealismo Alemão que a gerou10, o “negativo”, claramente descrito por Kant, quando ele mostrou a natureza negativa dos númena. Não posso expandir isto agora e remeto o leitor tanto ao texto de Kant (Crítica da Razão Pura), como ao meu texto sobre as origens da psicanálise na obra de Kant (Imago, 2000, p.43). Demoraria muito tempo para o ser humano perceber – principalmente com a Física pós-Einstein – que matéria, que “positiva”, é apenas uma ilusão. Kant, Goethe, Hegel e Freud percebiam isto; Freud formula uma forma específica de existência, que denominou “realidade psíquica”. Mas, como ocorrera no Idealismo Alemão, e sem aproveitar esta experiência, e tampouco os alertas de Freud a respeito, nova clivagem ocorreu e pendeu-se para uma hipervalorização dos produtos da mente, da imaginação e dos sentimentos. Como reação ao idealismo ingênuo que se abateu sobre o movimento psicanalítico, apareceram fortes tendências institucionais fascinadas, outra vez11, pelo realismo ingênuo. Sem fazer jus aos poderosos insights de observadores como Bacon, Locke e Hume, que jamais depreciaram o valor da intuição e já apontavam as falácias dos métodos indutivos, estes profissionais tentam quantificar a sessão analítica, lançando mão de registros inanimados, contagem de palavras, interpretações mecanicistas, às vezes baseadas em uma semiótica analógica, em correspondências bi-unívocas entre EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM palavras e significados. Talvez alguém estranhe que eu tenha colocado as tendências atualmente não só aprovadas, mas estimuladas por setores da IPA, lado a lado com setores da escola francesa. Creio que as duas possuem a mesma rationale subjacente: uma senso-concretificação do ethos psicanalítico, eivada de racionalidade advocatícia e de relações de causa-efeito. Desprezadas a investigação clínica e a experiência clínica, a esperança é que algum tipo de máquina, de engenharia e de estatística possa substituir por “entendimentos” e explicações algo que a falta de intuição e experiência psicanalítica pessoal não conseguem apreender. Talvez falte considerar que “a mente é um fardo excessivamente pesado, que a besta dos sentidos não consegue carregar” (Bion, 1975). Temos aqui uma reedição da proliferação de teorias e suas manipulações ad hoc engenhosas, ocorrida nas décadas de cinqüenta e sessenta. Advogou-se ativamente que se jogasse a metapsicologia fora (Modell, Kohut). Racionalização, causalidade e predição Uma das manifestações mais notáveis da clivagem mente/matéria me parece ser o Racionalismo, a doutrina que diz que a Razão pode e deve prevalecer sobre algo que é difícil nomear, pois todas as denominações estão muito desgastados (sentimento, instinto, emoção). Apelando para o que me parece ser o útero da psicanálise, o movimento romântico alemão12, diria que se advoga que a Razão é superior ao Wille – um tipo de instinto, de impulso, a origem da intuição. Após estudar o caso do Juiz Schreber, Freud percebeu origens deste modo de funcionar, a “racionalização”. Os racionalistas, desde Aristóteles, me parecem ter começado a perceber a necessidade de disciplinar a “alma concupiscente”, o desejo e a busca incessante e imperiosa de prazer e a evasão do desprazer, nos termos de Bion e Freud. Mas confundiram Necessidade com Obrigação e confundiram, como ainda se confunde, desejo com instinto (no sentido da psicanálise). A 12. Esta afirmação também não se encontra disponível na literatura e compõe os volumes IV e V da série A apreensão da realidade psíquica; um grupo francês, em 1998, começou a investigar esta relação. 196 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 197 Paulo Cesar Sandler Obrigação, ao tomar o lugar da percepção de Necessidades, criou enorme obstáculo à ciência e à verdade: o Juízo de Valor. O “Desejo” passou a ser visto religiosamente, ora como amigo a ser defendido, ora como inimigo a ser combatido. Predição científica é uma crença religiosa do pseudocientista, subserviente ao desejo e que foi demonstrada como falsa. Este problema persiste no movimento psicanalítico, impedindo que nele se constituam atividades científicas. Grande parte dos artigos publicados em periódicos de psicanálise se faz em torno de uma episteme subjacente, a teoria de causa e efeito traumática, que Freud abandonou em 1898/99. Ocorrem, também, despercebidas, explicações racionais a priori, onde o analista entra na sessão com um armamentarium de teorias prévias e enxerga o que já está predisposto a enxergar, ou as teorias a posteriori (ad hoc), onde se encaixa racionalmente o fato clínico em teorias que estão à mão. O racionalismo traz intrínseco o juízo de valor, manifesto por critérios de cura, de certo e errado, de bom e mau, e infindáveis clivagens que abominam o paradoxo. São “manipulações engenhosas de símbolos”, ou “formalismo”, um sério problema que quase destruiu a matemática no final do século passado, como apontaram Whitehead, Russell e Gödel, e que Bion trouxe aos analistas. Freud percebeu que isto iria acontecer, mas não penso que seus alertas, contidos por exemplo na Interpretação dos Sonhos, tenham sido levados muito a sério em termos do movimento psicanalítico. A Racionalização é o triunfo da filosofia do consciente; é pré e, às vezes, antipsicanalítica, na medida em que nega o inconsciente. Ela se tornou muito popular. A origem do termo é matemática. Os números podiam ser reduzidos a raízes, e isto criou a palavra que até hoje é brandida como bandeira e prova de ciência: “racional” – sem que os auto-intitulados “racionais” se perguntem, de onde veio esta palavra, o que ela significa? Descartes, um médico e filósofo, um dos maiores da humanidade, paradoxalmente não agüentaria a dúvida filosófica, que ele mesmo formulou, quando sucumbiu e afirmou o lema dos racionalistas, brado de guerra do formidável exército daqueles que são a favor do consciente, contra a existência do inconsciente: “Penso, logo existo”. Atrasaria toda uma evolução, até EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM que surgisse um Rousseau, um Hammann – “Sinto, logo existo” – e um Kant – “O não sei é meu existo?”. Várias clivagens artificiosas, entre louco e sadio, certo e errado, bem e mal, ímpio e crente, surgiriam. Bion, que compôs entre aqueles que não tomavam os escritos dos grandes mestres como verdade absoluta, leu o Discurso do Método e foi verificar uma coisa que Descartes “provou” ser absurda: se havia “pensamentos sem pensadores” – e com isto retornou às formas Ideais de Platão. Esta verificação de Bion foi feita na prática psicanalítica. No mundo material, ela é facilmente constatável; por exemplo, na história das invenções, elas são geralmente feitas por pessoas diferentes, em diferentes épocas e lugares, em conhecimento mútuo. Mas os racionalistas imaginam que por lógica, dedução e indução, apesar das iluminações feitas por Hume e Kant, caminha a ciência. Na minha analogia, a Primeira Grande Clivagem Mundial deu margem a uma complicação ainda mais séria e destrutiva para a mente, para a ciência e para a busca de realidade ou verdade: a Segunda Grande Clivagem, onde se passou a negar a própria existência de transcendências e, conseqüentemente, da própria realidade. Eu tenho chamado os dois “partidos” em guerra de “Realismo Ingênuo e Idealismo Ingênuo”, intolerantes do paradoxo epistemológico e mental básico. Realismo ingênuo e idealismo ingênuo Kant cunhou o termo “Realismo Ingênuo” quando criticava a obra de Bacon e Locke. Refere-se a uma tendência que se geraria nos positivistas: a crença que podemos apreender a nós mesmos e ao mundo apenas através do aparato sensorial. Ernst Cassirer e Gaston Bachelard popularizaram o termo. Penso ter percebido o aparecimento de um “Idealismo Ingênuo”, cujos adeptos descambaram para a alucinação e tornaram quase impossível aquilo que tenho proposto denominar, inspirado em Winnicott e Bion, de “intolerância a paradoxos”. Disfarçados idealismos de nosso século, a meu ver, inspiram-se em um fragmento das postulações de Kant. Segundo ele, o observador impõe dimensões de espaço e tempo sobre o fenômeno obser198 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 13. A expansão destas constatações e investigações, feitas ao longo dos últimos 30 anos, aliando uma certa informação filosófica à prática diária com fenômenos psicóticos em psicanálise, encontra-se nos capítulos “Idealismo” e “Contribuições da Psicanálise para dirimir a controvérsia”, texto que vai da p.76 até a p.109 do volume III - “As origens da Psicanálise na obra de Kant”, da série A apreensão da realidade psíquica, Imago, 2000. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 199 Paulo Cesar Sandler vado. Com o passar do tempo deu combustível ao idealismo que Kant tanto combateu, como se o observador impusesse sua mente e assim legislasse sobre o fenômeno e sobre a própria realidade. Acho que isto tem dominado dois movimentos aparentemente contrários em nosso século, mas que me parecem unidos: o da pseudociência positivista e o da pseudofilosofia dissociada da prática. Sua união paradoxal me parece se dar na sua origem e no seu resultado final: teorias pseudocientíficas de cunho ingenuamente realista ou ingenuamente idealista13. No Realismo Ingênuo, origem do Positivismo, a pessoa crê não somente no poder do aparato sensorial, mas crê que existam relações – sempre concretas – de causa e efeito; crê que possa se localizar fenômenos (no espaço euclidiano bidimensional ou cartesiano tridimensional) segundo valores absolutos, como tempo e espaço; que o mundo se resume ao espaço cartesiano e que se possa prever o desfecho de fenômenos. Talvez seja útil manterse em mente que a noção de causa presume uma seqüência temporal de eventos e que as causas antecedem os efeitos; a primeira exposição detalhada disto me parece ter sido de Kant. O problema que vejo aqui é o desprezo ao acaso (ou probabilidade) e o desprezo à escolha inconsciente; o determinismo é entendido na mais rígida ordem estabelecida segundo “leis científicas”; acredita-se que o universo obedeça às leis do funcionamento mental do “observador”, visto como lógico, e presume-se que este observador seja neutro. Wittgenstein, tomado pelos neopositivistass como modelo em sua análise de linguagem para testar seu valor verdade, separou-se do grupo. Parece-me que Wittgenstein tinha uma base mais sólida em Kant, pois ele pensava que os “objetos” foram a substância do mundo e são elementares, simples; pertencem ao que é transcendente, mas a “configuração”, alcançável pela linguagem, consiste no mutável, no imanente. Ele vai buscar relações entre lin- EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM guagem e pensamento e acha que as proposições da linguagem não parecem ser figurações da realidade, que poderia ser intuível ou alcançável, caso fizéssemos certas análises da linguagem. É destas análises que surgem idéias sobre as “proposições mais elementares”. Tanto a percepção da relação entre pensamento e linguagem como o trabalho de isolar “elementos básicos”, quase-atomísticos, um projeto que remonta aos alquimistas e aos gregos antigos e aparece na obra de Freud, Klein e Bion. Parece-me que Bion deixa isto mais explícito em seus estudos sobre a origem do pensamento verbal (em Second Thoughts e Learning from Experience) e na sua busca do “objeto psicanalítico” e dos “elementos de psicanálise”14. Como Wittgenstein, Bion também abandona este caminho em sua obra posterior. Bion observou que o estado de mente deste tipo de cientista equivale ao estado de mente do psicótico, que dispensa ao animado um tratamento pertinente ao inanimado. O advento simultâneo da psicanálise (em 1900), da física quântica (em 1905) e da teoria da relatividade (em 1907) mostrou que este cientista não era nem mesmo cientista real. Esta situação faz com que se “senso-concretifique” (Sandler, 1997) tudo aquilo que não é sensorialmente apreensível e nem concreto. Este me parece ser um formidável obstáculo para a apreensão da realidade. Não descobri até agora se Bion conhecia a obra de Wittgenstein, mas ele conhecia bem a obra de Popper, Braithwaite e Carnap, e era crítico ao ponto de rejeitá-las. Uma última crença positivista é a “neutralidade axiólogica do observador”, usando as palavras de Adorno, Horkheimer e Habermas. Enfatizo a questão da predição de fenômenos, que encontrou em um aspecto muito parcial da física, a cinemática da época de Newton, sua única possibilidade teórica de realização. Curiosamente, o desenvolvimento da ciência para mais além do realismo ingênuo coincidiu com o fato de cientistas serem novamente, como nos tempos dos antigos sábios gregos e dos renascentistas, pessoas que pensavam sobre sua prática e que se tornaram 14. Dou uma idéia sintetizada destes dois conceitos no apêndice do estudo “Um desenvolvimento e aplicação clínica do instrumento de Bion, o Grid”. Rev .Bras. Psicanál., v.33, p.13, 1999. 200 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Neopositivismo Ex-físicos, como Ernest Mach, Moritz Schlick e Philip Frank, outros interessados em economia, como Otto Neurath, e filósofos na mais estrita acepção do termo, como Wittgenstein, voltaram-se para verificar o valorverdade contido na linguagem, com um projeto epistemológico, de teoria do conhecimento, que se auto-intitularia “Neo-Positivismo Lógico”. Seus expoentes seriam, pouco depois, Rudolph Carnap, Karl Popper e seu discípulo Imre Lakatos. Eles não eram cientistas praticantes, mas comentadores e críticos da ciência. Os que haviam tido prática científica, a interromperam. Por exemplo, Mach jamais aceitou o trabalho de Max Planck e de Einstein, pois se recusava a aceitar que a ciência se baseasse em intuições de cientistas específicos; pois por intuição, mas não por dedução, indução ou racionalidade lógica, é que podemos lampejar transitoriamente a coisaem-si, os númena, a realidade. Mach parece ter sido o primeiro a afirmar que a Ciência estudava relações entre as coisas, e não as coisas. O projeto epistemológico neopositivista, que certa tradição acadêmica erroneamente vincula aos erroneamente chamados empiristas ingleses como Bacon, Locke e Hume e à Física, apareceu na realidade com Auguste Comte, que entronizou de vez as crenças em causas e efeitos relacionadas por linearidade direta, predições e senso-concretificações. Os neopositivistas tinham uma atitude honesta cientificamente: de corrigir sua rota à medida que os dados empíricos indicassem esta necessidade, o que me parece ser o ponto mais importante de todos quando se fala em postura científica, expressando consideração com a verdade além da opiniática esquizo-paranóide ou idealista; o que acabou caracterizando sérias dificuldades teóricas deste movimento, com dissensões entre seus memSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 201 Paulo Cesar Sandler depositários de filosofia, talvez tanto ou mais do que os filósofos. Planck, por exemplo, assim como Heisenberg, Einstein, Schrödinger, Dobzhansky e, em certa medida, Wittgenstein, que planejava ser engenheiro aeronáutico, e Freud, que havia sido médico, parecem ter abrigado a filosofia com mais segurança do que a filosofia oficial. EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM bros. Seu projeto não se realiza e às vezes nega a partir dos pontos de partida em alguns casos, como ocorreu com Carnap. Isto é bem ilustrado também pelo trabalho de divulgadores como Hempel (que retorna a Hume) e Braithwaite. Moritz Schlick pensava poder usar certos critérios lógicos de testagem. Ele acreditava, como Mach, que todo conhecimento deve ser verificável e refere-se à experiência. Como descrevê-los? Em primeiro lugar, com rigor terminológico: Schlick esperava construir uma linguagem unificada da ciência15. Em segundo lugar, tanto a descrição quanto a investigação requerem instrumentos lógicos. Ele não acha que a filosofia tenha fracassado, mas simplesmente que seja algo impossível. Pode-se descobrir o que é real, diz ele, quando se reduz as proposições até se descobrir tudo aquilo que seja confirmado como falso, que seria rejeitado. O problema que vejo aqui é que ele acha que pode, no final, assenhorar-se de “O”, à medida que vai desbastando as falsidades. Trata-se de uma evolução curiosa de sua obra, talvez contraditória, pois em outros momentos ele havia reservado à filosofia, como Wittgenstein, a tarefa de indicar aquilo que é inexprimível e nunca a tarefa de ser uma teoria que possa exprimir os fatos. Como alvo, talvez esta proposta se mantenha, mas como atividade possível, faz equivaler este projeto ao projeto religioso e ao idealista, de posse da verdade absoluta, pois ele diferencia filosofia de positivismo. Schlick acaba tentando descobrir uma linguagem lógica com concordâncias lógicas internas às propostas. Não lhe interessam os objetos de estudo (na linha de Mach), mas sim a linguagem usada para designar hipóteses e propostas que os designam. Estudar linguagem e gramática seria o passo para unificar a ciência; era um pouco inspirado na primeira obra de Wittgenstein (que, por sua vez, jamais aprovou o uso que os neopositivistas tentaram fazer de seu Tractatus Logico-philosophicus). Ciência seria algo cujas propostas mantivessem uma coerência lógica interna, voltando a an15. Em função disto, sugeri na reunião anterior deste ciclo que o Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luís Alberto Hanns, é um trabalho científico. Modificações terminológicas sem respaldo empírico são, ao contrário, anticientíficas. 202 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 16. Esta expressão – “fatos tais como eles são” – parece-me ter sido criada por Francis Bacon e foi extensamente usada por Shakespeare, Samuel Johnson, Kant, Hammann, Von Herder, Goethe e Freud. Parece-me constituir o alvo do trabalho de cientistas como Watson, Crick, Einstein e Schrödinger, entre vários de outros. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 203 Paulo Cesar Sandler tigas posturas de John Locke, para quem o conhecimento era a concordância entre idéias. Schlick, como Popper, acabou ficando pré-Kant. Pois, na luta desesperada de Kant – e o tempo demonstraria, inglória – contra o idealismo, e no seu respeito à experiência, aos fatos tais como eles são16, o solitário mestre de Königsberg percebia que o conhecimento não era a concordância entre idéias, mas sim a concordância entre a idéia e o objeto. Hume já percebera isto ao questionar: se o conhecimento era a concordância entre idéias, como diferenciar o louco do pensador? A busca de lógicas racionais e coerências internas em teorias, e sua forma mais atual, de concordâncias entre autores, haveria de ressurgir, acriticamente não observada, nas obras de Kuhn e Lakatos. O que, para mim, configura uma regressão aos tempos pré-Kant e um não aproveitamento de sua contribuição ao conhecer. Algo será mesmo científico, caso seja coerente com uma lógica interna a uma determinada teoria? Em psicanálise, tem-se produzido “vastas paramnésias para preencher o vazio de nossa ignorância” (Bion, 1976, 1976, 1977) – inclusive intra-sessão, ou “engenhosas manipulações de símbolos” (Bion, 1975, p.102). O que me parece ter ficado da contribuição de Schlick é sua postura inicial em que o significado de uma proposição, para ser considerado científico, consiste no conjunto de suas condições empíricas de verificação. Seu rigor nas definições e o evitar ambigüidades nelas me parece fundamental na ciência. Em psicanálise, rigor semântico e condições empíricas de verificação fazem a clínica: são as reações do paciente às nossas afirmações, em termos de associações livres. Parece-me que tanto Bion como Money-Kyrle (que foi aluno de Schlick) mantêm esta postura, assim como Freud a usou para abandonar algumas de suas conclusões iniciais. Na obra de Money-Kyrle, pode-se ver este caminho no estudo Desenvolvimento Cognitivo, de 1968. Eu penso que os aspectos que não ficaram e nem podem ser usados em psicanálise são o caminho lógico- EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM racional que ele advogou e o reducionismo a uma gramática como instrumento de verificação de cientificidade. O caminho “gramatical”, o exame da linguagem científica, continuaria, apesar da desaprovação de Wittgenstein que se usassem suas idéias para tanto. Carnap, inspirado por Russell, que via muitos dos problemas filosóficos clássicos como resultados de análise lógicas defeituosas, toma de empréstimo do grande matemático uma noção: a de definição contextual. Ela se refere ainda a uma tentativa que chamo de gramatical, ou seja, de traduzir a linguagem da experiência imediata em uma linguagem da ciência. Este projeto se complica na medida em que a linguagem da ciência se transforma em chavão ou jargão e tem os campos semânticos das palavras muito alterados pelo uso contínuo e pelo descuido. Este fato foi apontado por Bion em estudos como Evidência (1976). Usando uma frase de Shakespeare, é como uma cadeira de barbeiro, que serve a qualquer traseiro. Isto nem sempre é um problema da formulação inicial, mas talvez, quando elas são realmente muito felizes, contendo contrapartes na realidade e sendo cientificamente válidas na mediada “kantiana” em que o conceito coincide com o objeto (traduz a linguagem da experiência em linguagem de ciência), incitem mais ódio e inveja. Se não houver respeito pelas formulações iniciais, os discípulos, muitas vezes motivados por rivalidade não analisada ou por simples falta de compreensão e experiência, ou detratores, mudam o conceito e a comunicação, e o valor da formulação vai se perdendo. O common ground e o common sense se perdem. Carnap tenta, como Wittgenstein, encontrar proposições primitivas e elementares, e com estas proposições constrói uma série pequena que descreveria qualidades e sensações. Ele parece respeitar “O”, ou os númena, e pensa que a linguagem referente a dados sensorialmente apreensíveis não é comunicável. Equivale dizer que a coisa em si não é passível de nomeação total. Mas estes dados podem ser vistos em uma estrutura ou em uma ordenação e suas relações podem ser estudadas logicamente, ele acreditava, como Schlick também acreditava. Curiosamente, esta construção, uma vez mais, aproxima os neopositivistas dos idealistas, pois a linguagem, a construção, 204 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 205 Paulo Cesar Sandler toma o lugar dos objetos observados. Creio que o “burocrata” da ciência, sem ser um cientista, acaba tendo com objeto de estudo apenas os métodos usados para se conhecer algo (como Kant), mas não os próprios objetos. Talvez apenas a Psicanálise, a Física, a Matemática e a Biologia mantenham a possibilidade de unir uma prática que estude tanto os métodos de estudar os objetos como os objetos de estudo. Será a epistemologia, quando usada como fim-em-si-mesmo, um corpo que se engendra a si mesmo também? Carnap desenvolve algumas “concepções protocolares”, como ele as denomina, e abandona qualquer discussão entre “positivistas” e “fisicalistas” ou “realistas”, como eram chamados. Os “realistas” são aqueles que afirmam que existem objetos além da experiência sensorialmente apreensível – como Kant, Freud, Klein, Bion –, e agora os positivistas, que nasceram da experiência sensível, recusam-se a estudá-los, na comunhão final que tento apontar entre realismo ingênuo e idealismo ingênuo. O mundo passa a ser aquilo que a pessoa vê e não aquilo que é considerado como inacessível. Carnap tenta verificar como os conceitos científicos mantêm conexões lógicas com a experiência. Ele tenta, como Hume, deixar de lado a descrição de como tais conceitos são obtidos psicológica ou intuitivamente por um observador ou cientista individual. Os neopositivistas jamais se livrariam do problema que eles mesmos criaram: que os conceitos (enunciados) e os fatos aos quais eles se referem são de espécies diferentes. Assim, não pode haver correspondência (contrapartes, na linguagem de Bion) entre eles, mas apenas escolhas de conveniência do observador – novo apelo ao idealismo. Carnap acabaria abandonado esta posição; ela me parece estar bem iluminada para os psicanalistas à p.73, cap. VI, Transformações (1965), no que tange a Necessidades Lógicas e Psicológicas. O racionalismo a serviço das paixões não observadas volta a imperar, provocando um distanciamento em relação aos objetos de estudo. Podemos ver algumas influências de Carnap em uma fase do trabalho de Bion, principalmente na construção do “Grid”, em que me parece haver uma aplicação de idéias contidas no livro Sintaxe Lógica da Linguagem, principalmente no que ele chamou de “regras de EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM formação” e “regras de transformação”. A filosofia é considerada como uma metalinguagem, uma linguagem que cuida da linguagem. No final de sua vida, ele preserva sua crença inicial: que a epistemologia tem valor como estudo destas metalinguagens e que assim teria relevância teórica; mas que tanto a epistemologia como a filosofia ficam irrelevantes teoricamente caso pretendam competir com a ciência no conhecimento do mundo. Ele jamais abandonaria sua confiança na lógica dedutiva, que permitiria demonstrar cabalmente que uma proposição é verdadeira, a partir da verdade de outras proposições das quais ela é uma conseqüência lógica: o auto-engendramento circular a que me refiro e que expando na p.105-117 de A apreensão da realidade psíquica, v.I. Creio que o neopositivismo jamais escapa do formalismo, da “manipulação engenhosa de símbolos” alertada por Whitehead na matemática e por Bion na psicanálise. Karl Popper seria aquele neopositivista que gozaria de maior popularidade. Ele levou adiante o projeto de Schlick, que tentou critérios de verificabilidade das propostas, hipóteses e achados científicos. Estes critérios ficam mais sofisticados e específicos e dividem-se em dois: critérios de falseabilidade e de reprodutibilidade. Só seria ciência algo que pudesse ser provado como falso e pudesse ser reproduzido. A boa intenção e as promessas libertárias contidas em juras conscientes (Popper escreveria um livro sobre a sociedade aberta) escondem a grande clivagem de sua obra, a “segunda grande clivagem mundial”, uma profunda negação da realidade contida na negação das transcendências. Pois se toda boa teoria, para ser teoria científica, tem que cair, não há liberdade. O tem que é o grilhão, seja lá do que for. Muito ao contrário, as boas teorias, ao alcançarem transcendências, mesmo que tosca e parcialmente, não caem. Se cair, é porque já era falsa, e sua falsidade simplesmente emergiu ou não era percebida. A roda ou a teoria que a descreve (círculos, cilindros, o número p) não caíram, continuam vivas, úteis e robustas. Da roda de madeira desenvolveram-se pneumáticos, rolamentos de esferas e outros, mas a transcendência ou a forma Platônica “roda” está aí. Ao contrário do que o pouco saber afirma, a Geometria Euclidiana ou a Física formulada por 206 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 207 Paulo Cesar Sandler Newton não caíram, foram apenas suplementadas pela Geometria de Riemann e Lobachewsky, e pela Física formulada por Einstein. Se a Psicanálise for verdadeira, ela não vai cair, embora possa se desenvolver. Édipo vai cair? Talvez quando houver alguma mutação genética que prove ser mais apta para a sobrevivência, e a reprodução dependente de fêmeas, machos e filhos venha a ser substituída. A bestialidade mudou, dos sáurios até Hitler? Ou a sublimidade, de Sócrates até Beethoven? Popper, inimigo acerbo da Psicanálise, percebia que ela não é falseável, mas o seu critério de reprodutibilidade parece ser “obedecido” por ela. As contribuições de Popper – como seus alertas sobre constructos ad hoc – me parecem reais; mas não todas. Imre Lakatos, nascido Lipsitz, segue as tentativas lógico-racionais de Popper quanto a delimitar o que é ciência em relação à pseudociência e apela para um tipo de dialética lógico-discursiva (penso que criativa em sua forma, de diálogo entre personagens imaginários, como em Sócrates, Goethe, Diderot e Bion) para examinar certos conhecimentos matemáticos. Ele não chegou a realizar um corpo epistemológico além de um uso muito particular da palavra “Heurística” – para ele, o raciocínio dialético em que os conceitos centrais vão mudando à medida que o diálogo progride (o sentido mais comum da palavra “heurística” é um dispositivo psicológico que ajuda a mente humana, muito limitada, a compreender algo muito difícil). Esta concepção de mudança de conceitos acaba adquirindo um sentido próximo ao historicismo dialético de Hegel e dá um tom antitranscendência e antiverdade ao projeto de Lakatos. Uma de suas aplicações foi o que ele chamou de “programa de investigações” (research program), talvez limitado pelo apelo à lógica e à racionalidade conscientes. Ele não completou seus projetos, pois faleceu muito jovem. Talvez seja necessário enfatizar que seu estudo mais completo – Proofs and refutations – se dá como uma epistemologia da matemática, através de uma tentativa de dar um cunho histórico às posturas científicas. Voltaremos mais adiante a algo de sua contribuição, que tem pontos de contato, jamais reconhecidos por ele, com a obra de Thomas Kuhn. EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM Tenho a impressão que os positivistas e o neopositivistas, os advogados da hard science causal, baseada na apreensão sensorial e na concretização do pensar e do seu modo de ver o mundo, têm tido um outro hábito mental baseado em uma fantasia de superioridade: eles costumam dizer que sua abordagem é a única e a verdadeira ciência. Desprezam, no entanto, a existência da própria realidade e de uma realidade que não é dada diretamente ao aparato sensorial; desprezam a ciência física e matemática modernas e, obviamente, desprezam a psicanálise. A epistemologia que não seguiu este programa do círculo de Viena, neopositivista, desaguou em algumas vertentes. Penso que as principais delas compuseram uma teoria do conhecimento integrada à própria ciência, com a Psicanálise, a Física Moderna e a Matemática, além de um ramo nas Ciências Sociais de cunho fortemente crítico-epistemológico, a Escola de Frankfurt. Mas vamos examinar agora outra vertente, que ficou mais popular, pelo menos em setores da intelligentsia que se dedica à Epistemologia: o caminho que denomino “Idealismo Ingênuo”. O que é isto de Idealismo Ingênuo? Criei este termo ao percebê-lo como par antitético existente, porém ainda não nomeado do primeiro. Classicamente, na filosofia e na epistemologia, o Idealismo é a idéia de que se apreende o mundo através das idéias da mente; o mundo e o universo e a própria mente, a realidade mesma, não teriam sua existência própria, “lá fora”, mas seriam criações da própria mente. Com o tempo, no Idealismo (também chamado de subjetivismo) abrigou-se a oposição à idéia de que se apreende o mundo e a mente através do uso dos órgãos sensoriais. Não havia e nem há para os que assim pensam uma “realidade lá fora” que possa ser apreendida, mas ela é criada pelo ser humano, individual ou socialmente. A história aqui é caracterizada por surpreendentes contradições e seria engraçada caso socialmente não tivesse sido trágica: tanto o stalinismo como o nazismo são os exageros do Idealismo. Hitler costumava dizer: “a imaginação forma a base do conhecimento”. Kant, por exemplo, assim como Hume, lutaram muito por desmistificar o idealismo de sua época representado principalmente por 208 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 209 Paulo Cesar Sandler pensadores como o Bispo Berkeley e Leibniz. Eram dois grandes físicos, mas parecem ter clivado sua percepção da realidade e recaído no mais individualista idealismo. O termo ‘idealização’, no sentido psicanalítico, de um objeto idealizado, talvez ilumine o significado filosófico – estar convencido que a mente constrói o mundo. Psicanaliticamente falando, a idealização origina-se do ódio à realidade, ódio ao objeto real tal como é. Portanto, alguém alucina e, alimentado por onipotência, sente que pode criar – alucinar – outro objeto, um objeto não-frustrante. Kant e Hume se interessaram pelos métodos humanos de conhecimento, ultra e infra-sensoriais, “metafísicos”, além do objeto a ser conhecido. Este último é o trabalho da ciência. A imaterialidade e o criticismo que caracterizaram seu trabalho levaram muitos a tacharem os dois de místicos e céticos. E, talvez pelo ódio ao conhecimento, a aguda percepção que ambos tiveram, depois desenvolvida pela Psicanálise e pela Física quântica, de que o observador interfere no fenômeno observado, pois impõe certas limitações ou características de seus métodos de observação, levaria a uma negação da própria possibilidade de conhecer e, principalmente, como hoje se pensa, que nem há nada de real para ser conhecido, pois tudo é obra da mente. O mundo – externo ou interno – seria o que a mente diz que ele é. Sob a ótica da experiência psicanalítica, percebe-se uma igualdade essencial do idealismo com o realismo ingênuo. Tal postura, embora aparentemente não sensorializada nem concretizada, é igualmente típica do psicótico. Pode-se traçar uma linha que, exacerbando certos aspectos da obra de Kant, clivando-os do todo, deságua no Idealismo Alemão, em Fichte e muitos outros, como Beck. Vai ressurgir em solo insuspeito, o solo francês, numa evolução, ou talvez involução: parte de Bachelard, desvia-se para Derrida e para Canguilhem. Pessoalmente, estes três pensadores me parecem ter escapado de um mergulho total no idealismo ingênuo, mas descambou-se para tal confusão entre inacessibilidade ao domínio numênico, ou incognoscibilidade da coisa em si, ou de “O”, para um princípio da ignorância que legaliza o produto da mente individual. O princípio da incerteza observado por Heisenberg seria transformado em EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM um princípio da ignorância; a crítica à linguagem, que vinha desde Voltaire e se sofistica com Nietzsche e Wittgenstein, desemboca num textualismo pós-moderno que idolatra a metáfora como substitutiva da realidade. Em termos de autores, os epistemólogos que submergiram nestas águas tão turvas quanto as do realismo ingênuo haveriam de se tornar autores muito populares em nosso meio, provavelmente devido àquilo que o Professor Paulo Arantes chama de “um departamento francês em Ultramar”: Lyotard, Althusser, Deleuze e, em algumas obras, Michel Foucault. Mais recentemente ainda, esta linhagem, usando um tipo de historicismo quase-hegeliano e culpadamente marxista, se corporificou nas tentativas de Thomas Kuhn – que haveria de tentar remendar sua própria obra e as de Lakatos. Como assinalei acima, ele tentou uma integração entre o historicismo de Hegel com as verificabilidades e falseabilidades de Popper, criando um sistema um tanto confuso e inacabado, em parte pelo seu precoce falecimento. Thomas Kuhn adquiriu enorme popularidade na década de setenta. Para ele, a mudança científica não passa de uma conversão mística, que não é e nem pode ser governada por leis racionais e que se situa totalmente no âmbito da “psicologia social da descoberta”. Ele teve treinamento em Física, e parece-me ter tido uma especial sensibilidade histórica, mas o uso que fez dela é uma outra questão. Tenho a impressão que Kuhn despreza a diferença entre aquilo que em filosofia da ciência é chamado de “contexto da descoberta” e aquilo que é chamado de “contexto das justificativas”. O contexto da descoberta é o processo psicológico pelo qual um cientista se depara com ou intui uma conjectura: Poincaré o descreveu como fato selecionado, Bion como invariância, e muitas vezes tem sido resultado de um sonho ou percepção de uma conjunção constante (no sentido de Hume). O contexto das justificativas compõe-se das argumentações e experimentações segundo uma conjectura é provada como falsa ou verdadeira – caminhos lógico-racionais na esperança de neopositivistas, às vezes acrescidos de experimentação empírica, segundo outros. Kuhn despreza isto tudo e distingue ciências maduras de ciências imaturas; nestas últimas, os cientis210 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 211 Paulo Cesar Sandler tas se envolvem em debates metafísicos e metodológicos, que compõem escolas rivais e facções delas. Muitos dados empíricos são coletados, mas ficam desconexos, pois não há um quadro de referência sob acordo geral que pudesse distinguir fatos, curiosidades, irrelevâncias e verdades. Diz Kuhn que, no momento em que surge uma concepção unificada a respeito de quais são as questões e princípios e hipóteses realmente importantes e que métodos delas derivados vão valer, uma ciência passa de imatura para madura. O campo científico se legitima e estabelece problemas e métodos de um campo de pesquisa. A isto Kuhn denomina “Paradigma”. Eu estou citando aquele que me parece o conceito mais claro e mais comum desta palavra na obra de Kuhn, mas na verdade há muitos outros ao longo dela. Uma pesquisadora, Margareth Masterman, descobriu 22 acepções diferentes do termo! Kuhn acabaria criando um outro termo para resolver esta confusão, “matriz disciplinadora”, mas eu não estou seguro que ele tenha mesmo resolvido o problema. De qualquer modo, independe disto uma conseqüência que eu acho muito séria desta idéia que a teoria de Kuhn traz. Trata-se dessa admiração temporal, pontual, de grupos de cientistas por uma teoria destituída de valor verdade, é criar a crença que cada ciência e cada escola ou paradigma cria seus próprios problemas. Esta crença de cada ciência, cada escola ou paradigma cria seus próprios problemas ficou popular, mas apresenta uma situação hipotética e dependente de raciocínios, de plausibilidade e não se encontra na prática. Por exemplo, Freud não modificou suas teorias em três ocasiões porque ele ou os psicanalistas resolveram, ou para achar socialmente novos paradigmas, mas porque os fatos, a realidade clínica, mostraram esta necessidade. Mas talvez a mente onipotente, o bebê que insiste que o seio tem que ser o seio que ele imagina, e, por extensão, na vida adulta, a realidade tem que se adequar às leis de seu funcionamento mental, imagina uma ciência criada na mente das pessoas e uma realidade que se adaptaria a ela. O caminhar da ciência não se faz pela imposição das leis da ciência à Natureza, mas por um respeito à Natureza, à Realidade, seja lá como se denomine “O”, que tem precedência temporal, espacial e existencial sobre nós. No dizer de Fernando Pessoa, “a EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM realidade não precisa de nós”, em flagrante oposição às teorias de Kuhn. O único modo de a ciência progredir, bastante parecido com Popper, é quando um paradigma entra em crise, até que outro paradigma unificador surja; a crise, novamente, não é devida a fatos reais, mas a problemas ou peculiaridades historicamente determinadas. Note-se que a concepção de realidade, aqui, é um acordo entre pessoas em torno de uma ótica comum, e não se chega em nenhuma realidade ou fato “lá fora”, como diz o matemático Martin Gardner, ou não se lida com nenhuma transcendência como as que descrevi muito brevemente sob as formulações “roda” ou “Édipo”, ou a apreensão e a captação de um fato real, ou um “pensamento sem pensador”, no dizer de Bion. Kuhn reivindica que a coerência de uma ciência madura é devida a uma admiração compartilhada de cientistas por algum exemplo do paradigma e de sua determinação para produzir mais, da mesma coisa. Os cientistas seriam pessoas que se entretêm, aí, em ficar replicando (no sentido de Popper) o já sabido, que por sua vez foi fruto de uma escolha social, psicológica, política, cultural ou de mera conveniência que pode ser estética, por exemplo, ou ideológica. Aliás, esta foi a maior diatribe entre Lakatos e Popper contra Kuhn, pois os primeiros viram com clareza as implicações autoritárias do tipo stalinista ou nazista envolvidas na teoria de paradigmas de Kuhn. Este tentou contornar o problema, com o êxito que cada leitor pode julgar. Laertes Ferrão, em seu estudo Eu vi um balão no céu, oferece uma percepção psicanalítica desta postura, que me parece um idealismo redivivo e uma defesa do establishment, de autoritarismos e um ódio à verdade. Popper e Lakatos criticaram com certa violência a posição de Kuhn, por terem uma mente libertária e julgarem que as diferenças políticas e sociais jamais poderiam ser resolvidas por força física ou retórica. Mas Popper achava que a disputa poderia ser resolvida por lógica e plausibilidade e, intrinsecamente, também se afastava de verificações empíricas da realidade. Embora Kuhn tenha pessoalmente se desentendido seriamente com Popper e Lakatos, sua obra, caso percebamos que ela faz parte da “segunda grande clivagem mundial”, negando a realidade e o domínio numênico das 212 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 213 Paulo Cesar Sandler transcendências, parece-me em essência ter mais pontos de contato com estas do que os três possam ter reconhecido ou que as aparências indicam. O ponto de contato me parece estar na negação da transcendência, da realidade mesma. Ambos acharam que ciência era uma espécie de acordo temporal entre colônias e sociedades de cientistas, da mente deles e da moda vigente. Tenho evidências que, paradoxalmente, eles brigaram por acreditar na mesma falácia: que a verdade não existe e que Ciência é algo descartável e renovável, dependente de discursos e retóricas e acordos válidos para certos momentos históricos. Este historicismo reducionista restringe os avanços da ciência a interesses de classe, crenças momentâneas, distantes de fatos. Tanto em Popper como em Kuhn, embora com terminologias diversas, a essência é que uma boa ciência é aquela que pode ser demonstrada ser falsa, ou que uma boa ciência é aquela que permite a formação de “paradigmas” que um dia vão cair. O realismo ingênuo iguala-se ao idealismo ingênuo, na medida em que ambos negam a verdade e a transcendência intuível, mas jamais alcançável por lógica, racionalidade, estratégias, acordos entre grupos, explicações, ideologias, teorias a priori ou ad hoc. Ambos se perderam em imanências retóricas, culturais, discursivas, de símbolos ou de valores temporais de grupos dominantes, lugares, etc. Tenho a impressão que as contribuições de Kuhn são pertinentes a uma crônica de costumes de certas comunidades científicas e, neste sentido, ela é aguda e útil. Muitas vezes fica difícil julgar se, numa determinada revolução cientifica, a eleição de um paradigma é um incremento no conhecimento humano real ou se aconteceu por se privilegiar arbitrariamente uma série de padrões em detrimento de outros. Bion, por exemplo, comenta sobre o triunfo da teoria geocêntrica numa época em que houve um sério ataque à Mulher; mas chamar pseudociência de ciência me parece confundir as coisas. Kuhn não oferece nenhum progresso em direção à verdade, pois a nega implicitamente. Verdade aqui é o que a mente ou um grupo dominante quer dizer que é verdade. Difere de Popper no sentido de dizer que a ciência cai não por ser provada cientificamente falsa, mas por sair de EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM moda, moda essa histórica e culturalmente condicionada. Penso que Kuhn funda um negro relativismo, que será também desenvolvido pelas meias-verdades e aproveitamentos superficiais do pós-modernismo em relação à Física Quântica, como demonstraram Sokal, Brickmont, Norris, Callinicos e alguns outros autores. Para Kuhn, os cientistas jamais formulam questões fundamentais, ficam apenas realizando um projeto neopositivista de resolver coerências internas, resolvem enigmas em sistemas simbólicos circulares, criados por um campo fechado que de vez em quando é substituído – o novo paradigma. “Inconsciente”, neste sentido, seria uma invenção de um tal de Freud e aceito por alguns de seus contemporâneos. Harold Bloom, no campo da crítica literária, aplica este “kuhnismo” quando diz que Shakespeare inventou a personalidade humana, o conceito de personalidade. Lakatos, o discípulo de Popper, parece ter percebido que a sensibilidade histórica de Kuhn poderia ser útil, caso fosse casada com um empirismo que a livrasse do irracionalismo idealista. Tanto os “programas de pesquisas” de Lakatos como os critérios de falseabilidade e reprodutibilidade de Popper e os paradigmas de Kuhn me parecem padecer de uma limitação de base. Seus proponentes negam a ciência ao não praticá-la. Como o burocrata que administra algo que não domina tecnicamente, talvez os epistemólogos tenham se perdido em tentar algo que não praticam ativamente. Comparemos a trajetória diferente de outros filósofos que aliaram prática ao seu pensar epistemológico, como Planck, Heisenberg, Freud, Einstein, Schrödinger, Dobszhanky, Eddington, Whitehead, Russell, Penrose, Hawking, Sokal, Brickmont, ou outros que jamais se comprometeram ideologicamente, como comentadores como Isaiah Berlin, ou historiadores como Arnold Toynbee, ou filósofos como Wittgenstein e Santayana. Não vamos nos alongar na obra de Saussure (da qual se originou o chamado estruturalismo, com Lévi-Strauss e Merleau-Ponty), nem na de Wittgenstein, que jamais se deixaram levar por um textualismo autoengendrante e autovalidante, pois nosso tempo é limitado. A menção a eles é porque diferem do exagero quase niilista de negação da existência da 214 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 215 Paulo Cesar Sandler verdade que penso existir na obra de Thomas Kuhn, parcialmente na obra de Lakatos e de modo exagerado na obra de Feyerabend. Eles – e nisto me parecem diferir de Popper – parecem fazer parte de uma vertente que, em parte, sai da obra de Saussure e dos estruturalistas do início do século, ou “textualistas”, que consideram a linguagem e o texto com estruturas autoportantes e parecem julgar que retórica, moda e acordo grupal – em psicanálise, algo indistinguível de conluio alucinatório – definiriam o que é um “paradigma científico”. E, assim, ciência seria algo sempre renovável, sempre descartável, na negação mais profunda de transcendências, de verdade. Seria sempre um eterno esquecimento, e estaríamos negando a história e os avanços anteriores. Parece-me que a arrogância do Realismo Ingênuo, ao desprezar qualquer outra forma de Ciência, originou reação igual e contrária, a do Idealismo Ingênuo, que diz que a ciência não existe porque a realidade não existe. Um dia, em Londres, li em uma camiseta (t-shirt) vistosamente ostentada por um jovem: “Deus está morto – disse Nietzsche. Nietzsche está morto – disse Deus”. O common ground buscado por Wallerstein, conforme eu o entendo, me parece ser muito semelhante à busca de “invariâncias” que Bion observou nos materiais aparentemente dispersos cuja aparência é diversa e sofre transformações, mas conserva algo que transcende às formas. No entanto, este common ground pode ser entendido também como uma espécie de “pax romana”, conforme propuseram tanto Lakatos como Kuhn, embora com terminologias diversas. Talvez se tenha esquecido, nas “revoluções científicas” atrás de paradigmas aceitos por grupos ou nos “programas de pesquisa”, algo que Francis Bacon observou no seu ensaio On the unity of religion: “all colours agree in the dark”. O acordo obtido por agrupamentos de psicanalistas através de profundas modificações que descaracterizam as definições originais de contratransferência e identificação projetiva, conforme formuladas originalmente por Freud e Klein, me parece um perigo contra o valor científico (de apreensão de uma realidade clínica, empiricamente observável por meio da Observação Participante) das for- EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM mulações e contra a própria psicanálise, configurando muito mais um acordo atinente à política e à alucinação compartilhada do que à ciência. Pós-modernismo O nome “era pós-moderna” foi cunhado por um observador científico da História, Arnold Toynbee, durante os anos trinta (Toynbee, 1947). Talvez inadvertidamente, aproveitando que toda novidade não passa de esquecimento, e sem citar a fonte, durante os anos sessenta, a mesma expressão foi reutilizada com um sentido muito diverso e originou um “-ismo” profundamente cético, para colocar o assunto de modo suave, e talvez cínico. Questiona-se a existência de algo verdadeiro em particular e da Verdade mesma. A realidade seria inabordável e sempre construída; ela não existe sob forma de fatos observáveis, por “observação participante” (como é feita em psicanálise e em física) ou qualquer outra e demanda então ser deconstruída, em constante denúncia (Lyotard, 1979). Apenas para exemplificar os usos que os pós-modernos textualistas fazem de descobertas, podemos citar o princípio da incerteza de Heisenberg, o teorema de Gödel e a teoria da relatividade de Einstein. Eles consideram um princípio da incerteza como um princípio da ignorância, que nada pode ser sabido, nunca. Mas isto está longe da demonstração de Heisenberg, que se refere apenas ao cálculo preciso de duas variáveis (a velocidade angular e a posição no espaço de uma carga energética intra-atômica). O cálculo pode ser preciso para uma das variáveis, como demonstrou Schrödinger, mas não para as duas simultaneamente. Os pós-modernistas distorceram isto, afirmando em complicados constructos idealistas que os cálculos quânticos nunca podem ser precisos, de forma alguma. Einstein demonstrou que a velocidade da luz independe do observador, mas os pós-modernistas usaram sua teoria para um relativismo lugar-comum, como a pessoa mal-informada que afirma “tudo é relativo”. Infelizmente, creio que as leituras pós-modernas fizeram com estes achados de grandes cientistas o mesmo que a irmã de Nietzsche e os nazistas fizeram com sua obra: tomaram partes do texto fora do todo e as distorceram para seus usos particulares. Os 216 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 217 Paulo Cesar Sandler textualistas querem que a psicanálise seja uma análise semiótica de textos e não uma atividade científica que inclua respeito aos fatos. Fatos sequer existem, então não há por que alcançá-los. A versão mais recente destes acordos textualistas, baseados em coerências internas lógicas ao discurso e entre grupos políticos, me parece ressurgir com a obra de Richard Rorty. Ele talvez tenha sido o pensador que mais se esforçou por introduzir o pós-modernismo nos Estados Unidos. A exemplo de Feyerabend, supõe que verdade e realidade sequer são problemas do filósofo. Para ele, realidade reduz-se a acordos retóricos historicamente determinados. Bachelard, Canguilhem, Derrida e, até certo ponto, Althusser jamais se deixaram levar totalmente por estas tendências extremas de negação da existência da própria realidade, mas certos momentos de suas obras criaram condições para que isto ocorresse. Parece repetir-se o fato ocorrido na obra de Kant, que volta e meia tinha que reiterar o valor da experiência, ficou ambivalente quanto a ela e deu margem que fosse justamente dela que ressurgissem os dois pólos cujos perigos ele tanto alertou, o realismo ingênuo e também o idealismo ingênuo. O que me parece muito complicado em todas estas teorias tanto do realismo ingênuo como do idealismo ingênuo, que quase sempre concordam sem sabê-lo, é que elas dizem como as coisas, tanto do mundo como da ciência, devem ser. Mas me parece que a ciência mesmo, caso não se divorcie da Natureza, e também qualquer teoria do conhecimento, como intra-sessão, para o paciente conhecer-se a si e tornar-se a si mesmo, diz como as coisas são. Neste sentido, Platão, Dante, Shakespeare, Bacon, Kant, Newton, Johnson, Goethe, Freud, Planck, Einstein, Heisenberg, Wittgenstein, Klein, Winnicott, Bion me parecem que ajudam. Não me parece que caiba aos analistas dizerem ao paciente ou aos colegas o que eles devem ser, quais são as luzes que devem seguir, mas eles podem dizer aos pacientes quais são suas próprias luzes, transcendentes, a um só tempo deles individualmente e da espécie humana, considerando suas necessidades humanas e possibilidades individuais, EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS DE UM mas não seus deveres segundo algum código externo a eles, social, de desejo, conveniência ou estético. A isto eu chamaria uma contribuição da psicanálise à epistemologia e da epistemologia à psicanálise. Conferência Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Dr. Paulo Cesar Sandler Rua Joinville, 157 04008-010 São Paulo – SP – Brasil Fone: (0xx11) 3884-0239/5533-9105 Fax: (0xx11) 5543-6733 E-mail: [email protected] 218 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Diálogos Psicanalíticos André Green Membro Titular da Sociedade Psicanalítica de Paris. S.C.B Yorke Membro Titular da Sociedade Psicanalítica Britânica. Jaak Panksepp Professor Pesquisador de Psicobiologia, do Departamento de Psicologia, Bowling Green State University, Ohio. O reconhecido psicanalista argentino Hugo Bleichmar1 , residente em Madrid, autor de inúmeras publicações, é Diretor de Aperturas Psicoanalíticas – Hacia Modelos Integradores2, revista eletrônica de grande difusão que, nas edições de 1. Médico. Menção Honrosa – UBA. Psiquiatra e Doutor – UBA. Professor da Universidade Pontifícia Comillas (Madrid). Psicanalista. Membro da Associação Psicanalítica Argentina (APA). Membro da Associação Regiomontana de Psicanálise (México). Diretor do Curso de Especialista universitário em clínica e psicoterapia psicanalítica (Madrid). Presidente da Sociedade “Fórum” de Terapia Psicanalítica. Diretor de Elipsis e Diretor de Aperturas Psicoanalíticas. 2. www.aperturas.org. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 221 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp Os Afetos: Psicanálise e Neurociência OS AFETOS: PSICANÁLISE E NEUROCIÊNCIA abril de 2001 (n. 7) e de julho de 2001 (n.8), promoveu um espaço de interlocução entre a psicanálise e a neurociência. Com o objetivo de trazer aos seus leitores esse diálogo, que tem a teoria do afeto em Freud como pano de fundo, a Revista Psicanálise contatou com a Aperturas Psicoanalíticas. Começamos incluindo a síntese da teoria do afeto em Freud, retirada do trabalho de Solms y Nersessian, seguida de um resumo do trabalho de Panksepp, que é uma tentativa de conciliação entre a psicanálise e a neurociência, para, finalizando, reproduzir os diálogos Green-Panksepp e Yorke-Panksepp. Concordamos com o Dr. Bleichmar que existem dificuldades comuns a ambas disciplinas, pela falta de uma mesma linguagem, decorrente do desconhecimento mútuo entre elas. Também consideramos que uma aproximação é uma experiência útil e necessária, em função das trocas que poderão ocorrer entre as duas disciplinas. Acima de tudo, fica claro em Aperturas que prevalece o desejo de buscar o que é semelhante, antes das diferenças e, nesse sentido, é extraordinário comprovar como alguns dos conceitos freudianos básicos da teoria do afeto se aproximam da visão atual dos neurocientistas, encontrando respaldo nos dados empíricos disponíveis. O propósito da revista Psicanálise é enriquecer os leitores com uma possível compreensão de ambas disciplinas. Boa leitura! Teoria freudiana do afeto: perguntas para a neurociência Mark Solms3 e Edward Nersessian4 Os autores elegem para este primeiro intercâmbio um resumo didático da teoria clássica freudiana do afeto, na tentativa de classificar os correlatos 3. Professor Honorário, Departamento Acadêmico de Neurocirurgia, St. Bartholomew’s and Royal London School of Medicine. Membro Associado da Sociedade Britânica de Psicanálise. 4. Psicanalista supervisor e formador, Instituto Psicanalítico de New York. Professor clínico associado de Psiquiatria. 222 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 223 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp anatômicos e fisiológicos das idéias básicas e os conceitos mais gerais da psicanálise. Evitam, intencionalmente, assinalar desenvolvimentos posteriores e controvérsias teóricas atuais na compreensão psicanalítica do afeto (centrando-se nos processos emocionais mais elementares). Além disso, assinalam que, com freqüência, dita teoria está infra-representada e não se compreende adequadamente, por sua forma de aparição em pequenas partes, ao longo de um extenso período de tempo e que suas diversas formulações nem sempre foram consistentes. Os autores sintetizam em treze pontos as principais conclusões da teoria freudiana do afeto: 1. As emoções são uma forma de percepção, ou seja, as emoções conscientes são representações perceptivas de processos mentais mais profundos que são, em si mesmos, inconscientes. 2. A modalidade afetiva da consciência difere de outras modalidades perceptivas (visual, auditiva, somatossensorial, gustativa, olfativa) em um aspecto crucial: as percepções afetivas registram o estado interno do sujeito, enquanto as outras formas de percepção refletem aspectos do mundo externo. Inclusive se um afeto se desencadeia por algo que sucede no mundo externo, o que de fato se percebe na modalidade afetiva é a reação do sujeito ao estímulo externo em questão, não o estímulo em si. 3. A afirmação “O afeto registra o estado do sujeito” significa que registra a valência pessoal (valor ou significado) para o sujeito de uma situação concreta, interna ou externa. 4. Dita consignação de valor se calibra em graus de prazer e desprazer, segundo uma fórmula na qual “mais prazer” equivale a “mais provável que satisfaça minhas necessidades internas”, e vice-versa. As necessidades em questão são de vários tipos, mas, em última instância, são reduzíveis a umas poucas universais, que se agrupam conjuntamente sob a epígrafe do que Freud denominou “pulsões”. 5. Definem-se as pulsões como “os representantes psíquicos dos estímulos que surgem do interior do organismo e que alcançam a mente, como uma medida da exigência de trabalho em conseqüência de sua conexão OS AFETOS: PSICANÁLISE E NEUROCIÊNCIA com o corpo” (1915a). Assim, pois, as emoções são percepções de “oscilações na tensão das necessidades instintivas” (1940). Independentemente da origem de ditas oscilações, as oscilações em si são um evento interno. 6. Quanto ao aspecto motor da teoria freudiana do afeto, está relacionado à expressão das emoções. Segundo o princípio do prazer, as percepções de incremento na tensão pulsional (sensações de desprazer) resultam em uma descarga de dita tensão. As percepções geradas por esse padrão de descarga formam parte integral do mecanismo do afeto. Quer dizer, as percepções emocionais (de situações que previamente evocaram as sensações primárias de prazer ou desprazer) estão conectadas, por associação, a padrões de descarga característicos, que dão lugar a sensações específicas, que por sua vez caracterizam as emoções básicas. 7. As descargas motoras são de dois tipos: 1) as descargas internas (processos secretores e vasomotores) que produzem mudanças viscerais; e 2) a motilidade fina (descarga músculo-esquelética) esboçada para efetuar mudanças no mundo externo, ambas, intimamente conectadas e freqüentemente indistinguíveis. 8. As manifestações externas das descargas internas (p.ex., choro, rubor) têm uma importante função secundária, a de alertar os observadores externos do estado interno do sujeito (função comunicativa, por mais que não seja intencional). 9. Um terceiro aspecto implicado nessa teoria seria o mnêmico. Com respeito à origem dos padrões de descarga motora, Freud propôs que eram ou bem uma predisposição hereditária (“memória filogenética”), ou bem se forjavam no desenvolvimento precoce através de eventos de significação universal. 10. Freud ligou ditas experiências, que “unem firmemente as sensações (de afeto) com suas manifestações (motoras)” e que funcionam como símbolos mnêmicos, com as “reminiscências” que fundamentam os ataques histéricos. Em outras palavras, ele considerava as emoções básicas como sintomas de conversão universais, típicos ou inatos. 11. Um aspecto final da teoria seria o executivo ou inibitório. Os pa224 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 225 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp drões estereotipados de descarga motora regulados pelo princípio do prazer eram originalmente reações a eventos significativos pessoalmente (e biologicamente) relevantes, funcionando a partir de então como “símbolos mnêmicos” e desencadeando-se cada vez que se apresenta uma situação similar (o qual não é sempre adequado). Por isso, com o amadurecimento do ego, se desenvolvem mecanismos inibitórios que permitem ao sujeito retardar a resposta motora. Isso produz um estado de tensão dinâmica, em que a energia ligada pode empregar-se a serviço do pensamento (em vez de ser descarregada de forma reflexa). O pensamento redunda em uma descarga diferente, delineada para servir a um propósito útil com relação à situação real atual. 12. O resultado do pensamento, que Freud entendia como uma “forma experimental de ação” (atividade motora imaginada) está determinado de maneira crucial pelas descargas afetivas antecipatórias (expressão imaginada das emoções): sinais de afeto que assinalam uma valência prazerdesprazer às diferentes ações motoras potenciais. Isso supõe descargas experimentais de pequenas quantidades de afeto, o que se torna possível pelo estado de inibição das energias pulsionais subjacentes. 13. Os afetos que provêm de idéias reprimidas não podem inibir-se por esse mecanismo. Por isso, desempenham um importante papel na psicopatologia e são capazes de produzir ataques afetivos completos e não passíveis de serem inibidos. Finalizando, esclarecem sobre suas intenções de abrir uma segunda perspectiva de observação das funções subjacentes (inconscientes) que possa levar a reconsiderar algumas, ou talvez muitas das conclusões teóricas de Freud; mas o valor da original perspectiva de observação da psicanálise não deveria diminuir em nenhum sentido por tal possibilidade. A perspectiva subjetiva da psicanálise pode (e para os autores deve) suplementar-se por outras perspectivas de observação, mas nunca poderá ser substituída pelos métodos das ciências físicas, pelo singular fato de que as emoções só existem como tais na forma de experiências subjetivas. OS AFETOS: PSICANÁLISE E NEUROCIÊNCIA Referências BRODAL, A (1981). Neurological anatomy in relation to clinical medicine. 3. ed. New York: Oxford University Press, 1981. DAMASIO, A. (1994). Descarte’s error: emotion, reason, and the human brain. New York: Putnam, 1994. FREUD, S. (1900). The interpretation of dreams. In: ______. S.E. 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A polaridade existente até a atualidade se põe de manifesto pelo escasso número de trabalhos com abordagens psicanalíticas e cerebrais (40 trabalhos de um total de mais de 240.000 citações) e curiosamente nenhum em revistas dedicadas à neurociência. Ao contrário, parece que dentro da psicanálise está se buscando uma aproximação à neurociência sem muita reciprocidade. 5. Nota: Os termos afeto, sentimento e emoção são utilizados por Panksepp indistintamente. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 227 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp emotional life. London: Weidenfeld ; Nicholson, 1998. MESULAM, M-M. (1985). Patterns in behavioral neuroanatomy: association areas, the limbic system, and hemispheric specialization. In: ESULAM, M-M. (Ed.). Principles of behavioral neurology. Philadelphia: F.A. Davis, 1985. NUNBERG, H.; FEDERN, E. (eds.) (1967). Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society. New York: International Universities Press. v. 2. SCHORE, A. (1994). 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Um século depois do abandono da aspiração inicial de Freud de uma psicobiologia coerente, talvez tenha chegado o momento de se tentar uma adequada síntese entre o pensamento psicanalítico e a neurociência (Bilder, 1998). Panksepp defende que a falha em submeter suas idéias à avaliação empírica continua sendo a crítica principal à psicanálise, ainda que ditas idéias também não possam ser descartadas. Segundo ele, as teses de Freud ainda não foram avaliadas, o que só poderá realizar-se de maneira efetiva a partir dos avanços da neurociência, desde a neuro-imagem à psicofarmacologia. Mesmo assim, propõe distinguir claramente entre as teses sobre o funcionamento do psiquismo e a teoria da técnica, pois para Panksepp o fato de que a psicanálise não consiga aliviar certos sintomas psiquiátricos (como os associados à esquizofrenia ou certos transtornos autísticos) não limita sua credibilidade no momento de entender a emoção humana. Discorre sobre o assunto, dividindo-o em partes intituladas: – Uma orientação geral à teoria moderna da emoção: premissas e mudanças prevalentes; – O afeto é um processo neurodinâmico gerado internamente, provavelmente relacionado de forma estreita com os circuitos emocionais subcorticais; – Os afetos básicos podem refletir diferentes ressonâncias neurodinâmicas do self primitivo; – Os sistemas neuroafetivos cerebrais comandam diversas expressões internas e externas chamadas afetos básicos. 228 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Panksepp oferece uma série de pressupostos básicos, harmônicos com os de Freud: os valores biológicos e os processos afetivos neurais por meio dos quais se manifestam e penetram todas as estruturas cognitivas do cérebro-mente dos mamíferos. O comportamento emocional observável modula-se provavelmente por um efeito de fundo das emoções de nível inferior (estado de ânimo), e é dentro dessas influências, a longo prazo, que a experiência emocional pode resultar crucial. Durante as fases precoces da evolução cerebral, criaram-se diversos mecanismos neurais que permitiram aos animais enfrentar um conjunto limitado de situações ameaçadoras. Muitos estavam localizados na medula espinhal e na parte baixa do tronco do encéfalo. Sobre essas capacidades, relativamente reflexas e previsíveis, a evolução acrescentou funções orquestrais para propósitos mais gerais que puderam coordenar diversas funções corporais para poder enfrentar de forma mais flexível os aspectoschave para a sobrevivência. Alguns desses sistemas de coordenação são os circuitos emocionais básicos e prototípicos que compartilham todos os mamíferos, concentrados na linha média do mesencéfalo e diencéfalo e em zonas mais elevadas, tradicionalmente denominadas de sistema límbico. À medida que a competição pelos recursos se fez mais intensa, os mecanismos de aprendizagem gerais desenvolveram extratos de flexibilidade cognitiva, permitindo aos animais conceitualizar suas circunstâncias de poder comportar-se com graus variáveis de antecipação e reflexão. Essas capacidades biológicas sutis derivam dos desenvolvimentos evolutivos mais recentes do cérebro dos mamíferos, como o neocórtex. No cérebro humano, com um grau muito destacado de desenvolvimento encefálico, os mecanismos reguladores da emoção de ordem elevada (as funções superegóicas) desenvolveram-se tanto, que constitui um desafio tentar extrair os extratos resultantes de influência e contra-influência. Não obstante, os valores emocionais que foram estabelecidos nas primeiras fases da evolução cerebral permaneceram intimamente coordenados com as funções recentemente adquiridas (em termos evolutivos), entre Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 229 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp Conclusão OS AFETOS: PSICANÁLISE E NEUROCIÊNCIA elas, as tendências emocionais construídas socialmente que devem sua existência a funções cognitivas. É impossível imaginar sentimentos como o ciúme ou a culpa sem a existência de certos pensamentos, por conseguinte, o trabalho de memórias no cérebro. Por outro lado, as emoções básicas podem sentir-se sem atividade cognitiva que as preceda (ao menos sem participação cortical), ainda que se produzam numerosas modificações cognitivas quando se experimenta uma emoção. O autor assinala a necessidade de que a neurociência moderna incorpore a noção freudiana de que os diversos tipos de afeto são funções intrínsecas de atribuição de valor dos sistemas neurais. Freud fez uma distinção entre a qualia emergente das modalidades exteroceptivas e os afetos. Panksepp denomina essas funções cerebrais afetivas de qualia emocional ou evolutiva (equalia abreviado). As áreas cerebrais que geram as respostas afetivas devem ser anatomicamente diferentes dos sistemas tálamocorticais que medeiam a qualia básica que deriva das sensações exteroceptivas. Esses sistemas interatuam com múltiplas zonas do cérebro, permitindo aos valores biológicos permeabilizar as percepções, à medida que os estímulos externos acedem aos sistemas internos de valoração para ajudar a estabelecer padrões de conduta apreendidos mais complexos. Na amígdala foi onde mais se estudou as conexões adquiridas (LeDoux, 1996), mas podem-se antecipar numerosas áreas onde esses fenômenos têm lugar. Por exemplo, grande parte da aprendizagem social e da regulação emocional se dá dentro do córtex frontal e da área anterior do cíngulo, especialmente para a frustração e perdas sociais (Devinsky, Morrel e Vogt, 1995; Drevets et al., 1997). Documentos recentes apontam que a psicoterapia pode melhorar a hiperativação de ditas áreas cerebrais (Schwartz et al., 1996). Panksepp acredita que a natureza primitiva das emoções, conscientes e inconscientes, deve partir da premissa de uma compreensão dos processos neurais subcorticais que coordenam certos tipos de disposição à ação, como, por exemplo, os que se põem de manifesto em diversas descargas emocionais. Nos humanos, as elevadas funções do ego e do superego po230 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 231 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp dem controlar a expressão externa dessas forças eruptivas, mas seu controle quanto à expressão interna é muito menor. A “grande rede intermediária” do cérebro só poderá ser compreendida com uma abordagem conjunta desde o molecular à psicodinâmica global. Para tanto, a psicanálise necessita investir mais intensamente no estudo das manipulações experimentais, especialmente as psicofarmacológicas, estudando os informes subjetivos das dinâmicas e as experiências internas sob a indução sistemática de mudanças no grau de ativação de sistemas cerebrais específicos. Para isso, existem instrumentos (técnicas de transcrição computadorizada, análise espectral e processamento dos dados acústicos...). Quanto ao esboço de situações experimentais, as hipóteses deveriam basear-se em linhas de trabalho em investigação animal que sugerissem formas particularmente claras e seguras de modificar a reatividade emocional. (Nesse sentido, propõe a realização de estudos com opiácios como a naloxona e sua antagonista, a naltrexona, que foram provados clinicamente seguros em humanos e com dados procedentes da investigação animal em que os opióides desempenham um papel fundamental de um “princípio do prazer” cerebral.) Os cérebros humanos estão desenhados para projetar afeto (assim como percepções) de volta ao mundo externo, e inclusive os animais de estudo parecem envolver-se em eventos ambientais neutros com elementos afetivos, já que exibem um condicionamento contextual com marcada facilidade. Quanto ao progresso da investigação, propõe duas linhas paralelas: por um lado, tentar entender como o cérebro dos animais gera os afetos, que progridem lentamente, segundo Panksepp, pela cegueira conceitual auto-imposta por alguns neurocientistas, “os animais não podem sentir”; por outro, realizar estudos fenomenológicos das experiências emocionais subjetivas em humanos, em que se choca com o papel “encobridor” que desempenha o hemisfério esquerdo na comunicação verbal, muito influenciado por fatores sociais. É nesse sentido que a psicanálise pode resultar OS AFETOS: PSICANÁLISE E NEUROCIÊNCIA uma bênção para os empenhos empíricos nessa área. Avaliar situações em que os indivíduos estão desejando confiar sua intimidade pode ajudar a ver mais claramente os sentimentos profundos sob a superfície do que é desejável socialmente. De fato, aponta que estudos desse tipo poderiam ajudar a definir a especificidade de ação e a eficácia de agentes psicofarmacológicos. Na opinião do autor, a compreensão de como a mente emerge das funções cerebrais requer conceitualizar novas entidades coerentes como o self que ele propõe. Deve-se considerar que o cérebro de todos os mamíferos pode gerar diversos sentimentos básicos, incluída a alegria. A partir de aceitar ditas possibilidades, descobriram o que parece uma forma de riso primitivo em ratos de laboratório (Panksepp e Burgdorf, 1998). Chegou o momento para os neurocientistas considerarem seriamente a evidência que aponta para a existência de estados afetivos internos que são eficazes no domínio da conduta. Deveria procurar-se uma nova conciliação entre todas as disciplinas que buscam verdadeiramente revelar os estratos mais profundos da natureza humana, tarefa na qual a psicanálise deve ocupar um lugar destacado, dada a complexidade do funcionamento da mente que escapa às tecnologias da neurociência. Panksepp critica o conceito hidráulico de pulsão por considerá-lo vago, o que dificulta que os neurocientistas trabalhem com ele para relacioná-lo com os componentes inespecíficos, ao dispor de descrições mais específicas de como esses sistemas operam no cérebro. Opina que há demasiadas influências diferentes para resumi-las dentro de um conceito único, exceto como um identificador de classe geral. Além disso, assinala que o termo foi usado de forma excessiva na história da psicologia para ressuscitá-lo como um conceito explicativo principal em qualquer sistema. O uso tradicional do termo caiu em desuso quando se percebeu que era intrinsecamente ambíguo e podia carecer de poder explicativo (Bolles, 1975). Numa recente revisão, o autor (Panksepp, 1998b) o relegou àquelas funções motivacionais regulatórias específicas como a fome, a sede, a termoregulação, com elementos detectores 232 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 233 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp interoceptivos específicos nos estratos mediais do diencéfalo. Não obstante, o autor reconhece que o uso do termo que Freud fazia é diferente do seu (diversos estados cerebrais que surgem diretamente de detectores de necessidades corporais). Para Freud, a pulsão representa uma tensão ou ativação generalizada que acompanha os diferentes desequilíbrios homeostáticos. Assim caso se pretendesse reforçar o conceito freudiano com os dados da neurociência moderna, teria que se concentrar nos sistemas de ativação e inibição gerais (glutamato e gaba) e também nos circuitos ascendentes da DA, NA e 5-HT bem conhecidos e outros menos estudados como os histaminérgicos. O maior legado de Freud pode ser, segue Panksepp, seu desejo de conceitualizar quão profundamente os sentimentos se entrosam em nosso ser e a intensidade com que os processos inconscientes influenciam as experiências conscientes. É uma pena que suas idéias não puderam ser comprovadas empiricamente no momento em que se desenvolveram, mas apontaram na linha correta deixando um mapa teórico de uma psicologia profunda com a qual se pode chegar à compreensão dos grandes mistérios das mentes humana e animal. Para aqueles que crêem que nunca se compreenderá a natureza da experiência subjetiva, já que a “distância explicativa” é simplesmente demasiado grande, Panksepp faz notar que a “distância previsível” continuará diminuindo marcadamente, à medida que for crescendo o conhecimento neurocientífico. A psicanálise pode resultar em um apoio inestimável para a neurociência, se puder clarificar cientificamente padrões consistentes no aspecto experiencial da vida. Ao contrário, a neurociência pode proporcionar um conhecimento dos fundamentos, essencial para se compreender o funcionamento da mente. Certamente, o ingrediente crítico para todas as modalidades de pensamento será sua capacidade para gerar previsões que possam ser apoiadas ou descartadas por meio de metodologias cientificamente aceitáveis. Para a psicanálise, o desafio existirá à medida que puder renovar a teoria freudiana em um modo de pensamento moderno e dinâmico que continue rejuvenescendo a partir da evidência acumulada. OS AFETOS: PSICANÁLISE E NEUROCIÊNCIA Referências BILDER, R. (Ed.). (1998). Centennial of Freud’s Project for a Scientific Psychology. New York: New York, Academy of Sciences, 1998. BOLLES, R.C. (1975). Theory of motivation. New York: Harper; Row, 1975. CLARK, A. (1997). Being there: putting brain, body and world together again. Cambridge, MA: MIT Press, 1997. DAMASIO, A.R. (1994). Descarte’s error: emotion, reason and the human brain. New York: GP Putnam, 1994. DEVINSKY, O.; MORRELL, M.J.; VOGT, B.A. (1995). Contribution of anterior cingulate cortex to behaviour. Brain, v. 118. p. 279-306, 1995. DEVRETS, W.C. et al. (1997). Subgenual prefrontal cortex anormalities in mood disorders. Nature, v. 386, p. 824-827, 1997. GEORGE, M.S. et al. (1996). What functional imaging has revealed about the brain basis of mood and emotion. In: PANKSEPP, J. (ed.). Advances in biological psychiatry. Greenwich, CT: JAI Press. v. 2, p. 63-114, 1996. LeDOUX, J. (1996). 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Menciona ainda a admissão da utilidade do conceito de energia ligada, as referências às funções do id e a defesa da influência, a longo prazo, da afetividade. Salienta também o fato de Panksepp, em seu trabalho, mostrar-se aberto a algumas das opiniões mais especulativas de Freud sobre a relação entre o afeto e a filogênese. Prossegue assinalando o alívio que alguns psicanalistas podem experimentar com a crítica que Panksepp realiza a seus colegas: “mostram em geral certo orgulho de ignorar aspectos de um alto nível de integração, especialmente alguns como os ‘estados centrais’, que só podem ser medidos de maneira indireta ... etc.”. Pessoalmente, seus pontos de acordo com Panksepp (ainda que assinale, inclusive nesses escassos, pontos de acordo, numerosas ambigüidades) reduzem-se à idéia de que os afetos são processos internos. A diferenciação entre energia livre e energia ligada, a oposição entre ego e id, a ênfase nos afetos e na influência moduladora dos afetos a longo prazo e em sua insistência na organização motora do cérebro. Assim mesmo, mostra sua aceitação do conceito de self que Panksepp coloca. Aí acaba a conciliação e começa a intransigência. Green critica o apelo de Panksepp aos psicanalistas para que avaliem as teorias a fim de adaptá-las aos dados científicos. Aponta o rechaço que Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 235 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp Diálogo Green-Panksepp: conciliação e rigor OS AFETOS: PSICANÁLISE E NEUROCIÊNCIA Freud mostrava por estabelecer um paralelismo psicofísico. Opina que ambas disciplinas são independentes e que não podem reduzir-se a uma ou outra, descartando qualquer esperança de um conhecimento integrado. Continua assinalando que Solms e Nersessian em seu trabalho recuperam as principais idéias de Freud, omitindo as numerosas contradições que se encontram em sua obra. O resultado, diz Green, é uma aproximação às idéias de Freud, acusando-os, além de tudo, de tentar complementar Freud com a neurociência (incluindo, em cada ocasião possível, referências tomadas da neurobiologia). Para Green, os textos freudianos têm sua própria consistência, e ainda deve provar-se que preenchê-lo com material da neurobiologia vai melhorá-lo. Além disso, duvida da compatibilidade das terminologias de Freud e de Panksepp. Indica que, por trás dos comentários elogiosos, no fundo, Panksepp rechaça praticamente toda a teoria psicanalítica, em particular as críticas ao conceito de pulsão que Panksepp realiza. E, falando de terminologias, critica a ambigüidade de algumas expressões da neurobiologia, como, por exemplo, “as dinâmicas emocionais surgem dos tecidos neurais...”, “ressonâncias neurodinâmicas”, ou o termo “valores biológicos”. Green propõe a forma em que considera que se deveria ler a obra de Freud. Tentar ficar com a consistência interna ao invés de considerar os fatos isolados a que dedicou sua atenção. Para Green, essa é “a verdadeira precisão, em lugar de tentar encontrar, às pressas, correndo, compromissos impossíveis entre métodos incompatíveis”. Finalmente, e como corolário, aponta o que os psicanalistas podem esperar do diálogo com a neurociência: “Ajuda para compreenderem os padrões gerais do funcionamento cerebral. Não é que isso vá modificar muito suas formas de trabalhar (a análise), mas pode ampliar suas visões e satisfazer suas curiosidades, se possuem alguma, sobre o tópico que sempre será de interesse para eles: o problema cérebro-mente”. Em sua resposta, Panksepp se mostra “comovido pela paixão de Green por manter as tradições freudianas em sua forma original”. Frisa a necessi236 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Referência PAKSEPP, J. (1998). Affective neuroscience: the foundations of human and animal emotions. New York: Oxford University Press. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 237 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp dade da relação entre ambas disciplinas, por mais que o diálogo seja difícil, e reconhece uma atitude de negação entre alguns neurocientistas (com o rechaço da investigação das emoções em animais, aspecto que Panksepp considera essencial para qualquer progresso do conhecimento nesta área), que compara com a de Green. Reage, “com perplexidade ante a frustração de Green quando diz: praticamente tudo o que Freud escreveu parece duvidoso de fato aos olhos da neurociência”. Realça o sentido de algumas de suas afirmações que mais rechaço produziram em Green. Assim, com respeito ao conceito de pulsão, indica que, ao propor que se deixasse como um conceito seminal, desde que se desenvolvessem outras alternativas, tratava de fazer referência às dificuldades em tentar manter os conceitos freudianos em sua forma original. Esta seria a forma de alcançar uma conciliação substancial entre neurociência e psicanálise. No entanto, ainda que acredite que em sua forma original acabará convertido em algo assim como um identificador de classe sem mais (ao menos desde a perspectiva da neurociência), afirma que algo como a pulsão existe sem dúvida no cérebro. Panksepp propõe, assim mesmo, a estratégia para avançar no conhecimento científico nessa área, baseada na tríade composta pelo estudo das mudanças comportamentais, das funções cerebrais e dos processos psicológicos em animais, para tentar comprovar se existe uma triangulação teórica entre essas linhas de evidência que possam revelar relações previsíveis entre diferentes espécies. Qualifica os resultados até a data como esperançosos e cita seu trabalho de 1998 para uma revisão da literatura (Panksepp, 1998). Finalizando, congratula-se pela ressonância de Green com sua conceitualização, “preliminar e altamente hipotética”, de self. OS AFETOS: PSICANÁLISE E NEUROCIÊNCIA Diálogo Yorke-Panksepp: afetos, psicanálise e neurociência Yorke inicia seu comentário assinalando que Freud – em particular seu conceito de pulsão – é mal compreendido dentro da psicanálise e mal ensinado devido à escassez de analistas que o compreendam suficientemente para orientar os estudantes através de sua biografia e obra. Em muitos casos se passa por alto a opinião do autor, argumentando que suas concepções têm sido substituídas por contribuições posteriores à psicanálise, mesmo que os princípios básico de sua teoria do afeto se mantenham, surpreendentemente, apesar de transcorridos sessenta anos de sua morte. Mais ainda, insiste Yorke, Freud é visto de maneira ambivalente por muitos psicanalistas, para os quais ele representa uma figura paterna na função psicanalítica. Alguém a quem amam e de quem, ao mesmo tempo, querem livrar-se. Por tudo isso, conclui que muitos dos críticos freudianos são, essencialmente, destrutivos não por uma evolução científica desinteressada. Segue valorizando muito positivamente o esforço dos editores na síntese e compilação da teoria do afeto em Freud, “que reúne todo o material psicanalítico que os neurocientistas devem ter na mente (diretamente a investigação sobre as emoções)”. Nesse contexto, refere-se à crítica de Panksepp ao conceito de pulsão, afirmando que ele parte de uma compreensão incompleta do sentido e da significação do mesmo, para em continuidade repassar em detalhes tal conceito na obra freudiana (em trabalhos de 1911, 1915, 1920, 1923 e 1940), com o objetivo de resolver dita falta de compreensão. Mais adiante, Yorke aponta seu ponto de vista sobre a ansiedade em relação ao desenvolvimento, ao entender que pode ser um terreno de interesse mútuo para ambas disciplinas. Comenta como, em 1915, Freud defendia que, quando os representantes das pulsões libidinais eram reprimidos, os derivados pulsionais se transformavam em ansiedade. Existem evidências clínicas que apóiam essa pressuposição e, de fato, alguns analistas consideram que a posterior teoria da ansiedade de 1926 não substituía completamente a anterior (Freeman, 1998), ainda que Freud assim o pensasse. Freud considerava, segue dizendo Yorke, as excitações difusas, opres238 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 239 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp soras para o organismo no ato do nascimento, como o protótipo do estado de ansiedade. No entanto, Spitz demonstrou que nos partos normais o neonato só mostra um ligeiro estresse, sobretudo se o deixam tranqüilo nesse momento, atribuindo à participação do restante do pessoal e de familiares a maior intensidade da resposta do infante. A partir desse momento, a mãe tem de interpretar e/ou antecipar os sinais de ansiedade e responder de acordo. Yorke descreve uma linha de desenvolvimento (segundo a definição de Anna Freud, de 1963) da ansiedade. Começaria com as excitações difusas (e em grande medida somáticas) do neonato; posteriormente uma fase de “ansiedade automática”, quando o infante é colocado em um estado indefeso, seguida por uma “ansiedade persistente”, quando o infante teme o estado indefeso, e termina com uma restrição crescente da ansiedade à ansiedade sinal descrita por Freud em 1926. As flutuações da ansiedade em idade precoce significam mudanças desde um nível quase insuportável (indefeso) à tranqüilidade. A ansiedade ante o estranho aparece aos oito meses, evidenciando que as flutuações somáticas de excitação proporcionaram um terreno abundante para as experiências mentais de ansiedade, ainda que as vias de descarga somáticas permaneçam ao longo da vida. Porém, esses e outros passos subjacentes ao longo dessa linha de desenvolvimento demandam as interações entre o id e o ego, à medida que esses se desenvolvem e se diferenciam paulatinamente: a aquisição do processo secundário de pensamento; a capacidade concomitante de descarga pulsional retardada através do “ensaio de ação”; e outras aquisições de desenvolvimento assegurarão uma capacidade crescente de controle sobre a ansiedade. No ponto seguinte, Yorke critica a desafortunada equação que equipara o empirismo (baseado unicamente na observação e experimentação) com os métodos de investigação que implicam quantificação, elemento que pode ou não formar parte do processo. Nesse sentido, as limitações da quantificação em psicologia são óbvias para Yorke, especialmente quando se tenta medir o que não pode ser medido. Este ponto de vista representaria um reducionismo nomotético, enquanto que, na opinião de Yorke, o méto- OS AFETOS: PSICANÁLISE E NEUROCIÊNCIA do idiográfico é de uma aplicação mais ajustada nessa área. Yorke propõe que os neurocientistas e os psicanalistas, ao explorar os pontos de encontro entre ambas disciplinas, devam respeitar a abordagem que parece melhor para uma tarefa dada, e recordar que ambos métodos aparentemente antagônicos são empíricos. Rechaça superficialmente as sugestões de Panksepp quanto a manipulações experimentais, por considerá-las incompatíveis com o método psicanalítico. “Para expô-los graficamente, não podes “envenenar” teu paciente e em seguida analisar as vicissitudes de sua agressividade.” Por último, com relação às conclusões de Panksepp, Yorke achou alentador que ele seja bastante receptivo às formulações freudianas em geral e acredita que tais idéias “podem ser relacionadas, de maneira aceitável, com a neurociência moderna”. Afirma ainda que a compreensão de Panksepp provavelmente contribuirá para o avanço da tarefa comum que abordam ambas disciplinas. Panksepp começa sua resposta a Yorke pela sua última colocação, o rechaço ao emprego de psicofármacos (Venenos?, pergunta-se Panksepp) na situação analítica. Como o mesmo Yorke aponta, a abordagem psicanalítica tem o potencial de capturar a mente de maneira mais profunda e significativa que as simples escalas de lápis e papel, que são os instrumentos preferidos dos psicólogos experimentais. Na opinião de Panksepp, nesta era de psiquiatria biológica necessita-se estudar a fundo como os psicofármacos, tão amplamente utilizados, modificam as dinâmicas emocionais da personalidade humana e o resto das dimensões da mente. Reforça ainda que os psicanalistas poderiam ajudar a delinear os instrumentos necessários para tal tarefa. Seria uma pena, segue Panksepp, que a complexidade da vida emocional não fosse explorada em sua totalidade, à medida que vai se dispondo de mais e mais agentes químicos recentes. São escassos os estudos sobre o modo como responde a mente humana a agentes neuroativos específicos em diversas situações de interesse do ponto de vista emocional. Panksepp acredita que certas visões emergentes da mente podem en240 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Referência FREEMAN, T. (1998). But facts exist. London: Karnac. Diálogos Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Tradução e revisão: Augusta G. Heller e Heloísa Helena Poester Fetter Dr. André Green 9 Avenue de L’Observatoire, 75006 Paris – France Fone: 33143293104 – Fax: 33146339644 E-mail: [email protected] Dr. S.C.B. Yorke Fieldings, South Moreton, Near Didcot Oxon OX119AH England – UK Fone/fax: 441235814555 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 241 André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp tender-se como uma mescla dos melhores achados das abordagens idiográficas e nomotéticas. Para Panksepp, seu próprio esforço de integração, a “neurociência afetiva”, constitui uma tentativa de estabelecer pontes entre aqueles que “dividiriam a realidade em seus componentes elementares” e aqueles que reconhecem a importância de aceitar a complexidade do organismo completo. A combinação de ambas visões pode levar a um materialismo sem nenhum fisicalismo reducionista. De qualquer maneira, Panksepp lembra que nessas tentativas interdisciplinares deveria-se ter presente que inicialmente é preciso se buscar traços comuns necessários mais que suficientes entre os níveis de compreensão. Com relação à quantificação, Panksepp assinala o efeito facilitador de um impacto na comunidade intelectual em sentido amplo. Igualmente recomenda tentar aproveitar da psicanálise a experiência dos psicólogos experimentais, desenvolvendo escalas para quantificar praticamente qualquer elemento da vida mental. Finalizando, Panksepp responde aos esclarecimentos sobre o conceito de pulsão que Yorke faz em seu comentário, insistindo nos problemas que, a seu ver, persistem, e repete a maior parte dos argumentos já expostos no presente artigo, propondo uma revisão do termo partindo, talvez, como conceito de partida, das energias do id. Entrevista da SBPdePA SBPdePA – Para começar a nossa entrevista, gostaríamos que nos falasse um pouco sobre a sua trajetória pessoal e profissional. Virginia Ungar Membro Titular da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA). V. Ungar – O primeiro que me ocorre dizer é que sou filha de um médico radiologista que tem 82 anos e que sempre me disse que havíamos escolhido especialidades parecidas porque somos ambos fotógrafos de interiores. Estudei medicina, mas, em realidade, antes de começar queria me dedicar ao campo das ciências sociais; por isso comecei o curso de antropologia, tendo estudado dois anos. Foi quando meu país atravessou uma época politicamente muito Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 245 SBPdePA Entrevista Virginia Ungar SBPdePA Entrevista Virginia Ungar SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR complexa, que começou com uma ditadura militar. Nesse momento, a faculdade em que eu estudava, que era de filosofia e letras, ficou devastada. Aí, voltei-me para um primeiro desejo, que era o de estudar medicina – que creio que em realidade me metia muito medo. Frente ao que ocorrera com a minha faculdade, decidi então começar de novo e realizar meu desejo, com a idéia de dedicar-me à psiquiatria. Para minha surpresa, entretanto, apaixonei-me pelo estudo da medicina, da vida nos hospitais, e realmente aquele para mim foi um dos períodos mais felizes da minha vida. Na Argentina, não sei se aqui é igual, os últimos anos da faculdade são feitos em um hospital. Fazemos os mesmos horários dos médicos. Tive dúvidas sobre a especialidade a seguir até que percebi que gostava de psicanálise, que comecei a estudar em grupos quando estava no terceiro ano de medicina. Iniciei minha primeira análise pessoal aos 17 anos, à qual fui levada por meu pai, que detectara eu estar atravessando um momento difícil da minha vida, pelo que vou agradecer-lhe sempre. Tive a fortuna de conhecer quem me fez a primeira entrevista e que me deixou uma marca muito particular, que foi José Bleger. Uma marca para toda a minha vida. Comecei muito jovem a minha formação, tendo entrado para a sociedade psicanalítica de Buenos Aires no ano em que foi criada, em 1978. Sou da primeira turma da APdeBA, e vocês vão me entender, porque também são de uma sociedade jovem. Foram anos de uma formação excelente e de um entusiasmo intenso, e eu creio que é uma oportunidade única que se tem de fazer parte de um projeto e de uma aventura desse tipo. Havia, nessa época, um espírito fantástico de convicção psicanalítica, e digo isso sem nostalgia, vendo hoje as coisas um pouco diferentes. Tive grandes professores como David Libermman, Horacio Etchegoyen, Fernando Gaiard, Benito Lopes, Elena Evelson, e muitos outros com quem se consolidaram grandes amizades. Desde o início comecei trabalhando com crianças, e em razão disso me aproximei muito da escola inglesa e do pensamento kleiniano, porque o meu começo havia sido diferente. Quando me formei, era o auge, e segue sendo, de alguma maneira, da teoria lacaniana, então comecei a estudar 246 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 247 SBPdePA Entrevista Virginia Ungar com analistas lacanianos antes de ingressar na APdeBA. Quando me dei conta, estava criticando Melanie Klein sem conhecer nada de sua teoria. Então comecei a estudar o pensamento kleiniano e a trabalhar, como faço até hoje, com crianças, adolescentes e adultos, e acredito que uma parte importante da minha identidade como psicanalista está ligada ao fato de ser psicanalista de crianças. Concorri para a residência de psiquiatria, mas não cheguei a fazê-la, porque tive meus filhos quando era ainda muito jovem e, quando fui aprovada para fazer a residência no hospital italiano, meu filho tinha cinco meses. Então decidi que não ia fazer. Comecei minha formação com 28 anos e terminei com 31. Fiz minha análise didática com Fernando Gaiard, que foi um analista extraordinário e morreu muito jovem. Fiz a primeira supervisão da formação com Dario Sor e a segunda, de crianças, com Ana Kaplan; depois segui fazendo supervisões sempre, e ainda hoje as faço. Uma influência muito importante na minha vida foi Benito Lopes, com quem estive 11 anos trabalhando. Foi meu supervisor, professor e foi quem me apresentou a Donald Meltzer. Ele tinha uma generosidade muito particular e também morreu jovem, e é uma circunstância bastante dolorosa que na APdeBA tenhamos tido perdas de personalidades muito importantes em psicanálise que morreram muito jovens. Isso foi muito difícil para mim. Outra influência grande em minha vida foi Horacio Etchegoyen, uma mente brilhante, com quem sigo estudando, supervisionando, trocando e trabalhando. A supervisão me parece importante como um espaço de discussão do trabalho clínico que se liga ao aprendizado, o qual eu creio que não termina nunca. Pensamos que vai terminar quando findam os seminários, mas quando isso acontece apenas ficamos com uma visão panorâmica de tudo o que nos falta aprender. Meltzer assumiu uma influência muito forte na minha vida não só profissional como também pessoal. Conhecê-lo me mudou muito, porque ele tem uma visão que abrange não só a psicanálise, mas também a vida; uma visão psicanalítica não só ligada à cura do aspecto patológico que SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR possa haver em um paciente ou na gente mesmo como paciente, mas também que aposta na possibilidade de desenvolvimento de um ser humano, como ele mesmo o diz, no Processo Psicanalítico, o que justamente estávamos estudando hoje. Isso faz com que se tenha uma determinada posição ética de certo compromisso no trabalho e na vida também. Com Meltzer tenho uma relação pessoal, pois tenho supervisionado muitas vezes com ele. Na Argentina esteve cinco vezes, sendo que quatro delas na APdeBA. Fiz parte da comissão organizadora das visitas e cada vez que posso vou vê-lo em Londres. Com Betty Joseph também supervisionei várias vezes. Minha influência teórica forte tem sido da escola inglesa. Gosto, sempre que posso, de ir à Inglaterra – não porque nós na Argentina ou na América não tenhamos analistas capacitados, mas me parece interessante também ter uma visão de outra parte do mundo e fazer contato com isso. SBPdePA – Gostaríamos que nos dissesse, no seu entender, qual a motivação que leva alguns analistas a se dedicar ao atendimento de crianças. V. Ungar – Eu creio que a motivação é altamente pessoal. No meu caso, sempre me interessou o trabalho com crianças e não pude fazê-lo porque não era professora. Parece que tenho uma particular disposição de poder interatuar com elas. Eu me divirto muito brincando e atendendo em uma sessão de análise infantil. Creio que o dia em que isso mudar vou deixar de atender crianças. Acho que vai chegar um momento em que a idade não vai mais me permitir, mas, por enquanto, enquanto achar que posso, que tenho disposição, quero continuar fazendo. O trabalho com crianças me ajudou muito como analista de pacientes adultos – posso falar mais do que me acrescentou do que de minhas motivações. Deu-me uma possibilidade de simplificar bastante, sobretudo o aspecto da linguagem: tenho uma capacidade de falar muito mais diretamente com os pacientes adultos e de estar mais atenta a tudo o que seja a transferência infantil deles. Estou bastante dedicada também à tarefa de observação de bebês. 248 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 V. Ungar – Com 81 anos, Betty Joseph continuava atendendo, há quatro anos, quando a visitei; coisa que me chamou muito a atenção. Vou lhes dizer que em parte penso que a idade é um estado mental. Isso não quer dizer que eu vou atender até os 81 anos, porque creio que não vou fazê-lo. Não é uma crítica que faço a Betty Joseph, mas acho que temos de ter uma agilidade e uma possibilidade de estar próximos dos movimentos da criança, de tolerar questões que quem sabe mais adiante não vou ter. Quando me der conta que não vou poder fazer mais isso, vou deixar. Mas creio que a deserção não tem tanto a ver com a idade. Acho que tem mais a ver com as dificuldades de se analisar uma criança. No início, pensamos que atender crianças é mais fácil. Nunca vou me esquecer do meu primeiro paciente infantil. Quando me perguntaram quanto tinham de me pagar, e eu lhes respondi, tanto..., me disseram: Mas a senhora cobra tudo isso por uma criança? Então eu creio que a dificuldade tem a ver com o impacto na contratransferência, que é muito mais agudo e mais forte do que na análise de adultos neuróticos. Parece-me que outra questão que complica é a dos pais. Além da criança, temos de ter relações com eles, com os professores, com as escolas, tudo isso leva muito mais tempo, temos de ter uma disposição muito particular. Acho, também, que a criança tem muito mais facilidade de despertar as resistências do analista à análise. Mobiliza-as com muito mais facilidade, por isso penso que todos os analistas deveriam passar, uma vez ao menos, pela experiência de atender uma criança, ainda que depois não se dediquem, porque acho que acrescenta muitíssimo ao trabalho com adultos. Nesse sentido, minha sociedade tem algo que me parece importante e que conseguimos há muitos anos, que é fazer com que todos os candidatos passem pela matéria teórico-clínica de análise de crianças. SBPdePA – Como é falar diretamente com as crianças, é basear-se naquela velha linha kleiniana de interpretar o conteúdo, ou nas idéias noSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 249 SBPdePA Entrevista Virginia Ungar SBPdePA – Por que, na sua opinião, os analistas, em alguns casos, deixam de atender crianças com o passar do tempo? SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR vas de interpretar mais as funções do que propriamente os conteúdos? V. Ungar – Eu creio que a criança tem uma possibilidade de falar muito mais diretamente sobre as coisas que a preocupam, que quer, que ouve, que gosta ou não gosta, e que essa possibilidade de falar e entender, à medida que a cultura vai exigindo mais e mais dela, vai se anestesiando. Então eu penso que não é que nós analistas falemos mais diretamente, como se diz de Klein, e sim que a criança, com seus jogos e suas falas, nos conduz mais diretamente ao que estão passando. Mas a pergunta também se referia às interpretações de conteúdo ou de defesa... SBPdePA – Sim, porque na verdade houve uma evolução na teoria e técnica kleiniana; no início se interpretava com uma linguagem mais concreta, entendendo-se por linguagem concreta a que Melanie mantinha com as crianças quando lhes falava em seio e pênis, e que depois passou-se a interpretar mais as funções. V. Ungar – A mim parece que a fala concreta com a criança tem a ver, na teoria kleiniana, com a concretude da realidade psíquica. Klein diz que a realidade psíquica tem uma concretude tal, que a presença dos objetos internos são sentidos corporalmente. Nesse sentido, como sempre, ela estava respaldada por uma teoria que partia da clínica para poder ter crédito e falar dessa maneira. Creio que o que vocês colocam sobre dirigir o olhar mais às funções é um aporte de Bion, porque foi ele quem se preocupou mais com o vínculo. Ele diz que não importam tanto os objetos, inclusive entende a idéia de objetos parciais não como uma idéia de anatomia, e sim valorizando a função desses objetos. Para ele, o objeto é parcial porque tem funções de parcialidade, e não porque é um peito ou um pênis; funções como a de alimentar, envenenar, amar. Parece-me que esse é o aporte dos autores pós-kleinianos como Bion e Meltzer. 250 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 V. Ungar – É muito difícil dizer ou fazer uma dissecção para verificar de onde vem cada coisa, mas me parece que Meltzer põe ênfase no que para mim é fundamental, que é a atitude analítica. A noção de enquadre, que estivemos vendo, não ligada aos aspectos formais, como horários, honorários, deitar ou não no divã, deixa claro, na concepção de Meltzer, que o epicentro do enquadre é o estado mental do analista. Então, se trabalhamos nessa linha, isso nos obriga a ser como um monitor permanente da relação transferência-contratransferência. Não exagerando, porque, se vamos ao extremo, nos convertemos em um voyeurista – mas sempre muito atentos a qualquer atividade contratransferencial. Por isso creio na necessidade da supervisão para poder compartilhar o trabalho clínico, que é um trabalho absolutamente solitário. Meltzer diz que cada um de nós deve encontrar a maneira pela qual trabalha melhor. Eu, por exemplo, posso dizer que a essa altura me conheço bem e acho que aprendi a me respeitar. A gente chega a um momento no qual sabe qual é a nossa melhor maneira. Eu trabalho melhor quanto mais trabalho, sem intervalos prolongados, porque esses me desconcentram. Então me parece que isso nos obriga a fazer permanentes reflexões acerca de nosso lugar como analista, o que eu não encontrei em outras correntes de pensamento. Entretanto, o centro de tudo isso está na atitude analítica, na disposição de escutar de uma maneira sem memória e sem desejo. Como diz Bion, de receber o que o paciente tem para projetar, agrade ou não, de tratar de entender e devolver de uma maneira que seja introjetável para o paciente e de poder tolerar o desconhecimento. Em um congresso da FEPAL que aconteceu em São Paulo, há muito anos, escrevi com uma colega um trabalho em que postulamos até que ponto o enquadre era a conjunção entre a atenção flutuante do analista e a associação livre do paciente – desligando completamente do que tenha a ver com a realidade externa. Então, se estivermos atentos, o que nos tirar Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 251 SBPdePA Entrevista Virginia Ungar SBPdePA – E como é que se dá na sua prática, na sessão com a criança, a influência de Meltzer? SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR do estado de atenção flutuante já será uma perturbação contratransferencial. SBPdePA – Sobre essa questão da resistência queríamos lhe ouvir sobre a dos próprios analistas em encaminhar seus filhos para análise, porque parece que nem mesmo dentro das sociedades psicanalíticas a idéia de análise de crianças é algo muito tranqüilo, compreendido ou aceito. V. Ungar – Creio que não, que vocês têm razão. A psicanálise de crianças lutou muitos anos para encontrar um lugar dentro do que poderíamos chamar de psicanálise institucional oficial. Pensem que CONCAP, o comitê de análise de crianças e adolescentes da IPA, foi criado no ano de 1997, no congresso de Barcelona. Essa briga por um lugar oficial para a análise de crianças nas análises institucionalizadas remonta à época da controvérsia de Ana Freud e Melanie Klein em 1927. Tiveram de se passar 70 anos para que se obtivesse esse lugar. Acho que a resistência à análise de crianças tem a ver com a resistência – todos somos seres humanos – aos aspectos mais infantis e regressivos relacionados ao mais primitivo, ao mais caótico e não só com respeito à agressividade, mas também aos aspectos libidinais. Parece mentira que ainda nos custa dar lugar, dentro da oficialidade, ao mais primitivo do encontro das mentes. SBPdePA – E isso poderia estar relacionado à resistência encontrada também para a observação de bebês? V. Ungar – Claro, eu, sempre que posso, defendo a posição de um espaço cada vez maior nas sociedades, nos congressos, para o trabalho com crianças, e isso inclui a observação de bebês. SBPdePA – Gostaríamos de saber como a senhora está vendo a psicanálise na Argentina e principalmente a psicanálise de crianças. 252 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 SBPdePA – E que tipo de crise seria essa? V. Ungar – Me parece que uma crise vocacional. Não é muito fácil manter a atitude psicanalítica; exige muito trabalho, muita dedicação e paciência. Estamos emprestando nossa mente e nossa alma, bem como nosso corpo, quando se trata de crianças. Eu não sou pessimista. Não penso que a psicanálise esteja morta. Enquanto existir analistas apaixonados pela psicanálise ela não morrerá, mas creio que hoje em dia há menos pacientes se analisando. SBPdePA – Ou mais psicanalistas competindo no mercado? V. Ungar – Eu não me preocuparia tanto com isso. Não me parece que a psicanálise seja algo para consumo massivo. Ela pode ajudar na compreensão de muitas situações e em muitas especialidades médicas e educativas que têm a ver com crianças e adolescentes. Acho que é uma questão de manter o entusiasmo por parte dos analistas. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 253 SBPdePA Entrevista Virginia Ungar V. Ungar – A psicanálise de crianças teve um desenvolvimento explosivo e impactante na década de cinqüenta, quando Arminda Aberastury tinha um intercâmbio intenso com Melanie Klein. Eu creio que, além do seu efeito terapêutico sobre as crianças, teve também um impacto muito forte em meu país, e vocês poderão me dizer que aqui também, na área da pedagogia, da educação, da pediatria, tornando-se uma influência muito boa. Como sempre, a toda época de explosão sobrevem uma época de retração, mas houve um momento em que era muito comum para uma criança estar em análise e, em uma escola de um certo nível econômico e social mais elevado, muitas crianças se analisavam. Creio que a dificuldade atual com a psicanálise de crianças tem a ver com a dificuldade da psicanálise em geral. Seguramente isso que vou lhes dizer é muito polêmico, sei que a situação econômica está muito difícil, mas eu creio que há mais crise dos psicanalistas do que da psicanálise. SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR Eu creio que a pressão que exerce a sociedade contemporânea também é um fator importante. Vamos falar das crianças e adolescentes. A maioria das escolas pensa e desenvolve o que se chama de nível ótimo de excelência, o que, nesse momento, não se refere a formar o melhor ser humano. Não quero apontar uma visão apocalíptica sobre a situação atual, porque a mim parece que cada época tem alguma coisa interessante sobre a qual podemos refletir e da qual tirar algo positivo, mas as escolas de hoje necessitam produzir adultos contratáveis pelo sistema ao qual estão encadeadas. O jardim de infância tem de ser de nível ótimo para que possam ingressar na escola primária ótima e na universidade ótima e depois nas melhores empresas, e isso tem de ser rápido. Então, parece-me que as escolas, os pais podem se deixar pressionar, mas nós, os psicanalistas, não. Se nós jogamos a toalha, aí sim que tudo fica mais difícil, por isso eu dizia que, enquanto houver analistas com convicção na psicanálise, seguirá havendo o processo psicanalítico. SBPdePA – Afora a paixão, a convicção e o prazer, a senhora mencionou uma capacidade de suportar a dor e o sofrimento que também, talvez, seja uma coisa que nos analistas pode estar em crise. V. Ungar – É que nós também fazemos parte de uma sociedade que nos oferece soluções rápidas para qualquer sofrimento, Não escapamos do bordão da propaganda famosa da Nike – just do it –, que afirma que se tem de fazer o necessário rapidamente e sem pensar muito a respeito. Nós, analistas, não escapamos, somos seres humanos, mas não podemos esquecer do que é mais importante e crucial, que é a nossa atitude frente à dor mental. Se a rechaçamos, não podemos trabalhar em psicanálise. E a mim não parece errado que haja pessoas que abandonem o trabalho; ao contrário, acho que é uma questão ética, de que, se não podem fazer isso, devem deixar e fazer outra coisa. Mas os analistas não podem responder a pressões. 254 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 V. Ungar – As patologias têm mudado. Eu posso lhes dizer que nesse momento, com a crise severa que está atravessando a Argentina, há um aumento muito importante das patologias somáticas nas crianças – gastrites, úlceras de estômago e duodeno –, mas isso tem a ver com as dificuldades da sociedade de conter as situações de dor mental. Se vivemos em uma sociedade que não pode conter o sofrimento e a dor de pais que perderam seu dinheiro e seu emprego, que não pode dar conta disso, não podemos pedir a uma criança que suporte isso. Então estamos todos em um momento muito delicado, muito complexo. Nós, que trabalhamos com crianças, vemos situações de profunda depressão que têm estritamente a ver com situações familiares. Lidamos com adolescentes que sabem que não vão encontrar trabalho nem um lugar nessa sociedade, então creio que nós estamos muito mais pressionados nesse momento. SBPdePA – Falando em mudança de patologias, a senhora acha que se poderia dizer que nas adolescentes as patologias alimentares substituíram a histeria, porque parece que está havendo quase que uma endemia de pacientes anoréxicas e bulímicas? V. Ungar – A incidência da patologia alimentar é impressionante já há muito anos, e muito mais agora. Minha impressão é de que essa patologia está ligada a um componente aditivo da personalidade, salvo as mais leves, que tem a ver com o intento de controlar, de forma obsessiva, intensidades de tipo confusional. As mais graves estão ligadas a mecanismos psicóticos, mas têm como fundo uma personalidade aditiva que, nesse momento, está na primeira linha. A patologia funciona como uma droga, ou álcool, ou, no Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 255 SBPdePA Entrevista Virginia Ungar SBPdePA – Nesse sentido, o fato de as configurações de patologias ou configurações de pais ou famílias terem se tornado mais complexas, diferentes da época da Melanie Klein, também implica uma exigência maior da capacidade psíquica de lidar com isso. O que a senhora pensa dessas mudanças de configurações? SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR meu país, o doce de leite. Não sei aqui o que poderia ser, para mim não é importante o tipo de substância, mas a organização da personalidade que se encontra por trás. Por isso, me parece que, de parte dos analistas, os esforços têm de ser no sentido de procurar trabalhar e estudar com pessoas de outras áreas que trabalham, por sua vez, com crianças e adolescentes, fazendo grupos – porque a detecção precoce dessas situações muda muito o panorama. Eu vejo isso como uma obrigação e, nesse sentido, não sei aqui, mas em nosso país os analistas têm abandonado seus lugares nos hospitais, saúde pública, universidades, e aos poucos creio que terão de ir retomando esses lugares. SBPdePA – Aqui no Brasil também aconteceu de os analistas irem se afastando dos hospitais, das universidades. A senhora acha que no resto da América isso também aconteceu, ou essa é uma característica da nossa região? V. Ungar – Acho que aqui acontece mais e que se deve ao êxito desmesurado que teve a psicanálise, o que fez com que os analistas se enchessem de muita soberba e arrogância. Acho que temos de repensar isso, pois perdemos o contato com a sociedade, e isso tem de ser corrigido. SBPdePA – A respeito do exemplo mencionado de crianças apresentando sintomas somáticos em função da situação problemática que estão vivendo os seus pais, a indicação de psicanálise não deveria ser o último recurso, ou seja, não seria mais importante, nesses casos, atender primeiro os pais e depois, caso a situação persistisse, partir para um atendimento à criança? Emendando nessa pergunta, para que tipo de patologias específicas atuais a senhora indicaria uma análise para a criança ou o adolescente, sem tentar antes tratar os pais? V. Ungar – Não o penso como algo excludente. Acho que podemos tratar a criança e tentar que os pais se tratem. Acho que quando a criança 256 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 SBPdePA – A senhora poderia nos relatar uma situação com alguma criança em especial que tenha lhe marcado? V. Ungar – Lembro-me do primeiro paciente que eu tratei. Era uma criança de cinco anos, que tinha uma gagueira e uma impossibilidade de fazer qualquer produção gráfica, não conseguia desenhar e não podia escrever. Esteve um ano e meio em tratamento, quatro vezes por semana. Quando melhorou, começou a desenhar, a escrever, a gagueira cedeu, e os pais interromperam o tratamento. Foi um dos casos que mais me doeu. Fizeram uma consulta com outro analista, sem me comunicar, que lhes disse que era uma barbaridade atender uma criança quatro vezes por semana, e me avisaram que iriam interromper o tratamento com muito pouco tempo de antecedência. O menino veio à última sessão trazendo fotos. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 257 SBPdePA Entrevista Virginia Ungar tem um nível de sofrimento que a impede de se desenvolver naturalmente, passando a apresentar processos importantes de detenção do desenvolvimento, tem de se atuar na criança. Entretanto, com o correr dos anos, tenho me tornado muito mais cuidadosa na indicação da análise. Não acho que todas as crianças tenham de se analisar, mas, quando for necessário, é importante que o analista de crianças crie as condições para poder levar adiante um tratamento. Quando vejo o perigo de os pais retirarem uma criança da análise antes do tempo, trabalho com eles até estabelecer uma relação com um certo nível de compromisso, porque trazer uma criança para análise implica muitas questões. Primeiro, a ferida narcisista de ter de reconhecer que um filho, que representa muito dos ideais dos próprios pais, tenha algum problema e, às vezes, problemas muito sérios. Depois, ter de dispor do dinheiro, do tempo para levá-los, esperá-los, e encarregar-se dos momentos de resistência, transportando, igual, a criança. Acho que se pede muito aos pais e, se não se faz um bom trabalho com eles, não se pode pedir-lhes que firmem um compromisso. Temos de explicar muito bem a eles o risco que é retirar uma criança antes do tempo. Na minha experiência pessoal, quando comecei a trabalhar assim, não tive mais interrupções. SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR Mostrou-as e eu lhe interpretei que estava preocupado com as imagens, de como eu iria ficar dentro dele ou ele dentro de mim, e então, antes de se despedir, me perguntou: Virginia, tu vais viver até os cem anos? Respondi que não sabia e perguntei porque ele queria saber. Disse: porque assim, quando eu for grande e tiver um filho com problemas, vou poder te trazer. Lembro-me que nesse momento eu estava supervisionando o caso com Dario Sor e estava tão assustada e tão triste que fui lhe contar. Ele me disse que eu deveria ficar tranqüila, porque se uma criança de sete anos é capaz de dizer isso é porque tem a análise internalizada. SBPdePA – Poderia nos falar um pouco sobre a especificidade da análise de adolescentes, se é que pensa que ela existe? V. Ungar – Sim, creio que a análise de adolescentes tem algumas especificidades, embora não tanto quanto a de crianças. Parece-me que a análise de crianças requer um treinamento em uma técnica especial, como é a técnica do jogo, mas a dos adolescentes também não é igual à dos adultos ou à das crianças. As crianças entram muito mais diretamente na análise. Os adolescentes, às vezes, me levam a fazer períodos de entrevistas muito mais prolongadas, e o final da análise também é um final bastante particular. Nesse ponto, não concordo com Melanie Klein quando não diferencia o final da análise de crianças com o da de adolescentes. Penso que, no caso da criança, ao terminar a análise ela volta para o centro de seu desenvolvimento que é a família. No caso do adolescente, dependerá do que se entenda por adolescente. Se for um adolescente tardio, a análise terminará quando já for um adulto; se for um adolescente inicial, no entanto, lhe faltará ainda tanto por passar que essa análise terá uma especificidade quanto ao começo, às vezes quanto ao término. Meltzer diz que os adolescentes se movimentam entre mundos – o das crianças, o dos adultos e o dos pais – e vão oscilando entre eles. É muito difícil encontrar um lugar correto para nós como analistas. Não devemos nos fazer de adolescentes, porque isso é falso – não somos 258 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 SBPdePA – E quais seriam as diferenças fundamentais entre a análise de um adolescente tardio e de um adulto? V. Ungar – Primeiro, as formas de comunicação são diferentes, porque no adolescente prevalece muito mais a ação do que no adulto. Então temos de ter um nível muito maior de tolerância, como me aconteceu o outro dia, em que um adolescente me trouxe o cachorro para a sessão, ou outra vez, no verão, em que uma paciente veio com os patins nos pés. Não devemos entrar num clima maníaco, mas também temos de poder tolerar que neles está muito mais comprometida a ação e ter muito cuidado, porque também nos mobilizam mais facilmente a atuar. Todas as idéias de Enactment, que são os desenvolvimentos mais atuais da linha kleiniana de pensamento, falam disso, da capacidade que têm os adolescentes de mobilizar muito mais rapidamente nossa tendência a atuar. Por outro lado, parece-me que temos de estar muito atentos ao fato de que a adolescência é um processo que tem de acontecer. Atualmente, os processos de latência tendem a ser mais prolongados, impedindo que se faça um processo adolescente, e é preciso ter muito cuidado com isso. Temos de estar atentos ao adolescente explosivo, atuador, que se droga, que bebe, mas também às crianças que não fazem um processo adolescente. São os casos muito difíceis, os jovens velhos, e vemos muito isso. Temos de permitir e até facilitar não que o adolescente faça atuações, mas que possa desorganizar-se e sair da latência, que é um período da vida em que tem de permanecer armado. Melanie Klein dizia que a latência infantil é o processo mediante o qual as partes psicóticas são controladas através, fundamentalmente, da neurose obsessiva, mas isso tem de ser destruído para dar lugar à adolescência. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 259 SBPdePA Entrevista Virginia Ungar adolescentes –, nem adquirirmos uma conduta sedutora – comigo vai se entender, porque os pais são uns broncos que não entendem nada. Assim, temos de ter muito cuidado para saber de que lugar vamos falar com o adolescente e ser o mais genuíno possível. Eu gosto muito de trabalhar com eles. No meu início trabalhei muito pouco porque os temia. SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR SBPdePA – Com respeito ao seu trabalho – imaginação fantasia e jogo –, a fantasia inconsciente ficaria mais ligada a um caráter mais defensivo, mais fechado, e a imaginação mais voltada para a conjectura da exploração do mundo. Essa configuração da fantasia inconsciente seria uma formação de compromisso? V. Ungar – Se for muito rígida, poderá tomar o lugar de uma formação de compromisso. Se uma fantasia inconsciente surge a partir de uma teoria forte que o paciente tem e que não põe à prova, acho que nesse caso se pode falar de um sintoma. São essas teorias que o paciente não pode por à prova. Essa é uma maneira de ver. Outros autores verão de outras maneiras. Eu gosto da idéia de brincar com os conceitos de fantasia e imaginação, de modo a ver a fantasia mais com um caráter defensivo, como algo mais fechado, e a imaginação como a associação livre, verdadeira. Nesse sentido, eu creio que há jogos que são mais imaginativos e outros em que se repete, muitas vezes, uma determinada fantasia inconsciente que adquire um caráter de sintoma. Em Rita*, por exemplo, parece-me que há mais fantasia do que imaginação quando apresenta o elefantinho e os rituais estando mais ligados ao controle obsessivo, e a análise tem de ajudar uma pessoa para que ela possa soltar, com muito mais riqueza, a sua imaginação. O tema da criatividade é formidável, dá para se falar horas sobre ele. SBPdePA – Bom, foi um prazer termos podido discorrer sobre todas essas questões, algumas sobre infância e adolescência, e principalmente sobre o que a senhora nos colocou a respeito da atitude analítica. Nesse sentido, concordamos com a idéia de que a maior dificuldade está na capacidade do analista de poder enfrentar, ao longo dos anos, todas as dificuldades inerentes ao processo analítico. A senhora nos enriqueceu bastante e cabe a nós lhe agradecer.... * Rita, caso atendido por M. Klein e descrito por ela (KLEIN, M. (1926). Princípios psicológicos da análise de crianças pequenas. In: Amor, culpa e reparação. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Cap.6, p.153-163). (N. do T.) 260 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Entrevista Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Tradução: Dra. Heloísa Helena Poester Fetter Dra. Virginia Ungar Billinghurst 2533 3º 1425 Buenos Aires – Argentina E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 261 SBPdePA Entrevista Virginia Ungar V. Ungar – Não, eu que agradeço a vocês, porque essas conversas não são somente, não sei se posso chamá-las assim, terapêuticas, mas permitem-nos também percorrer toda a nossa história, porque a gente realmente não se faz essas perguntas. Eu agradeço a vocês. Muito obrigado. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 263 264 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES NORMAS GERAIS PARA PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS* 1. Os manuscritos que se publicam na Revista devem ajustar-se a alguns requisitos formais: a. O trabalho deve ser inédito (excetuam-se trabalhos publicados em anais de Congressos, Simpósios, Mesas Redondas, ou Boletins de circulação interna b. c. de Sociedades Psicanalíticas; exceções serão consideradas); O trabalho não pode infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem ser feitos de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em relatos clínicos; d. O trabalho deve respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor; e. ofensivo ou difamatório; f. O trabalho não deve conter nenhum material que possa ser considerado O autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegr e ele está transferindo automaticamente o “copyright” para essa, salvo as exceções previstas pela lei; O trabalho não deve estar sendo encaminhado simultaneamente para outra publicação sem o conhecimento explícito e confirmado por escrito do Conselho Editorial. A Revista normalmente não colocará obstáculos a divulgação do artigo em outra publicação, desde que informada previamente. Quaisquer violações destas regras que impliquem em ações legais serão de responsabilidade exclusiva do autor. * Baseado na Revista Brasileira de Psicanálise da Associação Brasileira de Psicanálise. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 265 2. Os trabalhos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada a sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização da Revista. 3. As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão, adequação e procedência das referências e citações bibliográficas, são de exclusiva responsabilidade dos autores. 4. Os originais deverão obedecer as seguintes exigências mínimas: a. b. Os originais enviados para a publicação deverão ser endereçados ao Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, cujo endereço é Quintino Bocaiúva, 1362. Em três vias e cópia em disquete (gerado em Word for Windows); c. enviadas em duplicatas de tamanho adequado. O conteúdo total de ilustrações não deverá exceder ¼ do espaço ocupado pelo artigo; exceções serão consideradas; d. espanhol) e endereço do autor; 5. Referências: Ex tensão máxima de vinte (20) páginas digitadas só na frente, em espaço duplo em papel formato A4. Cada linha deve conter 70 toques e cada página 30 linhas sendo numerado no ângulo superior direito. Tabelas gráficos, desenhos e outras ilustrações sob forma de cópias fotográficas devem ser Os ensaios e reflexões deverão obedecer a seguinte estrutura: título, nome do autor, titulação do autor, tex to, palavras-chave (em português, Inglês e A sinopse deverá conter em torno de 150 palavras e ser capaz de transmitir ao leitor os pontos principais que o autor deseja expressar. As seguintes normas estão baseadas nas publicadas pelo International Journal of Phychoanalysis e na Revista Brasileira de Psicanálise. As referências deverão incluir somente trabalhos estritamente relevantes e necessários, não se deve acumular uma vasta bibliografia. As referências no decorrer do tex to serão dadas citando-se o nome do autor seguido do ano de publicação entre parênteses, por exemplo, Freud (1918) ou (Freud, 1918). 266 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003 Se dois co-autores são citados, os dois nomes deverão ser mencionados, por exemplo Marty , de M’Uzan (1963) ou (Marty, de M’Uzan, 1963). Se houver mais de dois autores, a referência no tex to indicará o primeiro, por exemplo: Rodrigues et al.(1983) ou (Rodrigues et al.,1983). A referência completa das obras citadas figurará na lista das referências bibliográficas, colocada no final do artigo, lista essa que deverá corresponder exatamente às obras citadas, sem referências suplementares. Os autores são mencionados em ordem alfabética e suas obras pela ordem cronológica de publicação. (para as obras de Freud, as datas correspondentes são indicadas entre parênteses na Standard Edition). Se várias obras foram publicadas no mesmo ano, deve-se acrescentar à data de publicação, as letras a, b, c etc. Quando um autor é citado individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde ele é o único autor, seguidas das publicações em que ele é o co-autor. Os nomes dos autores não serão repetidos, mas indicados por um traço. Os títulos dos livros grifados, sendo que as palavras mais importantes serão escritas em letras maiúsculas, o lugar da publicação e o nome do editor serão igualmente indicados. Se uma referência é dada a partir de outra edição que a original, a data da edição utilizada deverá figurar no final da referência. Nos títulos dos artigos (e igualmente nas obras de Freud) somente a primeira palavra figurará em letra maiúscula. O título do ar tigo será seguido da abreviação grifada da revista, do número do volume, e dos números da primeira e da última página. Para as abreviações dos títulos das revistas, poder-se-ão consultar os números que já foram mencionados ou no caso de dúvida, citar o nome por ex tenso. Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação. 6. Procedimentos de Avaliação: a. Todo ar tigo entregue para publicação será avaliado através de critérios padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre; Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 267 b. O avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o c. mesmo seja mantido pelo próprio avaliador. d. editorial estabelecido; Sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado, em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa Artigos que não forem publicados em 6 (seis) meses, a partir da data de sua aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha liberdade de enviá-lo a uma outra publicação. PS. Para mais detalhes consultar revistas. 268 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003