Gildo Katz - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Transcrição

Gildo Katz - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X
PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde
1992, à FEPAL e à Associação Brasileira de Psicanálise
v. 5, n. 1, 2003
EDITOR
Gildo Katz
CONSELHO EDITORIAL
Ana Rosa C. Trachtenberg • Elfriede Susana Lustig de Ferrer • João Baptista
Novaes Ferreira França • Leonardo Wender • Samuel Zysman • Sara Zac de
Filc
COMISSÃO EDITORIAL
Ane Marlise Port Rodrigues • Augusta G. Heller • Heloisa Fetter • Silvia S.
Katz
BIBLIOTECÁRIA
Geisa Costa Meirelles
EDITORAÇÃO
Luiz Cezar F. de Lima
LAY-OUT
Josimo Silva Lopes – Speed Press
DIGITAÇÃO
Nilza Cidade Cardarelli
SECRETÁRIA
Antonia Lima Iohann
REVISÃO DE PORTUGUÊS
Professor Antônio Paim Falcetta
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 • E-mail: [email protected]
(55-51) 3333.6857
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
1
Capa:
AMENHOTEP I E AMÓSIS-NOFRETIRI
22
Egito, Novo Império (XVIII Dinastia), provavelmente de
Amenhotep III, 1390-1353 a.C.
Pedra-sabão, 9 x 8,3 cm
3072
A figura principal desta díade fragmentada é o deificado Amenhotep I, que é mostrado usando uma peruca
núbia curta, saiote, braceletes e segurando um mangual em sua mão direita. Está ao lado de sua mãe, a rainha deificada
Amósis-Nofretiri, que usa um elaborado ornamento para cabeça com a forma de um abutre, um vestido justo e um colar
largo. Buracos de encaixe no topo da cabeça de cada uma das figuras tinham provavelmente a função de fixar adornos.
Nas costas da peça estão gravados dois pares opostos de colunas de hieróglifos, uma coluna dupla para cada figura.
No tex to atrás do rei lê-se: “O bom deus, filho de Amon, (...)/ Rei do Alto e Baixo Egito, Djeserkare (...).” A coluna atrás
da rainha pode ser traduzida deste modo: “A esposa do deus, nascida de um deus, a esposa do rei (...)/ sua mãe, a mãe
do rei, Amósis-Nofretiri (...).”
Depois de suas mortes, tanto Amenhotep I, segundo rei da XVIII Dinastia (cerca de 1514-1493 a.C.), quanto
sua mãe Amósis-Nofretiri, esposa do Rei Amósis I (cerca de 1539-1514 a.C.) foram venerados como protetores divinos
da enorme necrópole de Tebas. Desfrutavam de especial popularidade entre os trabalhadores oficiais da necrópole,
instalada no vilarejo de Deir el-Medina. A razão para a devoção prestada ao casal não é de todo clara, embora já se tenha
especulado que Deir el-Medina teria sido fundada durante o reinado de Amenhotep I. Parece que ambos compartilharam
uma sepultura em Dra Abu’l Naga, em uma tumba a princípio preparada para Amósis-Nofretiri e mais tarde ampliada
para um segundo sepultamento. Em 1913-14 esta tumba foi aberta em nome do quinto Conde de Carnarvon por Howard
Carter, o arqueólogo conhecido pela descoberta da tumba de Tutancâmon em 1922.
Sua escultura, que talvez seja proveniente de um pequeno santuário doméstico, está ligada a um grupo de
estatuetas em pedra-sabão esmaltadas que representam a própria Amósis-Nofretiri ou a Rainha Tiye, esposa de
Amenhotep III, o faraó sob cujo reinado esta peça foi provavelmente esculpida..
—CNR
Esta rainha-mãe, retratada afetuosa e intimamente ao lado de seu filho-rei, deve ter atraído Freud, que foi primogênito e
filho favorito. “Se um homem foi, sem concorrência, o filho predileto de sua mãe, conserva ao longo da vida o sentimento
triunfante, a confiança no sucesso, que não raro traz consigo o sucesso real.” (SE, 17, p.156).
Ao longo de sua vida, Freud acompanhou avidamente as notícias de escavações, e certamente deve ter sabido
da descoberta da tumba de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, realizada por Howard Carter. O autor do complexo de Édipo
pode ter ficado intrigado com esta disposição funerária – mãe e filho, dispostos lado a lado em uma tumba comum, para
toda a eternidade.
—FM
Sobre Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver W. Helck et al., Lexikon der Ägyptologie (Wiesbaden, 1972-), I, cols. 102-109,
s.v. “Ahmose Nofretere” (M. Gitton), e ibid., cols. 201-203, s.v. “Amenophis I” (E. Hornung), com referências. Sobre o
sepultamento de Amenhotep I e Amósis-Nofretiri, ver C. N. Reeves, Valley of the Kings: The Decline of a Royal Necropolis
(Londers, 1990), pp.3-5. Para outras esculturas relacionadas, ver C. Aldred, “Ahmose-Nofretari Again”, Artibus Aegypti.
Studia in honorem Bernardi V. Bothmer a collegis amicis discipulis conscripta (Bruxelas, 1983), pp. 7-14.
P975
Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. v. 5, n. 1, 2003.
Porto Alegre: SBPdePA, 2003.
1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre.
ISSN 1518-398X
CDU: 616.891.7
Tiragem: 300 exemplares
Bibliotecária Responsável: Geisa Costa Meirelles
2
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
CRB 10/1110
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional
DIRETORIA
Presidente
Dr. Leonardo A. Francischelli
Tesoureiro
Dr. Antônio L. Bento Mostardeiro
Secretária
Dra. Izolina Fanzeres
Coordenador da Comissão Científica
Dr. Renato Trachtenberg
Vogais
Dra. Silvia Stifelman Katz
Dr. José Facundo Oliveira
Dr. César Antunes
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Diretor
Secretário
Dr. Lores Pedro Meller
Dr. Sérgio Dornelles Messias
Coordenador de Formação
Dr. New ton Aronis
Núcleo de Infância e Adolescência
Coordenador de Seminários
Dr. Gley P. Costa
Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg
PSICANÁLISE – Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Editor
Dr. Gildo Katz
BIBLIOTECA
Diretora
Dra. Silvia Stifelman Katz
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
3
MEMBROS FUNDADORES
Alberto Abuchaim
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Antonio Luiz Bento Mostardeiro
David Zimmermann
Gildo Katz
Gley Silva de Pacheco Costa
Izolina Fanzeres
José Facundo Passos de Oliveira
José Luiz Freda Petrucci
Júlio Roesch de Campos
Leonardo Adalberto Francischelli
Lores Pedro Meller
Luiz Gonzaga Brancher
Marco Aurélio Rosa
New ton Maltchik Aronis
Renato Trachtenberg
Sérgio Dornelles Messias
MEMBRO HONORÁRIO
Dr. David Zimmermann (Falecido)
4
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Revista da SBPdePA
SUMÁRIO
SAUDAÇÕES
Palavras do Presidente • 11
Leonardo A. Francischelli
EDITORIAL
Palavras do Editor
Gildo Katz
•
17
ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES
Pânico: Aspectos Psicanalíticos • 27
Marco Aurélio C. Albuquerque
Figurações da Inveja – o Ódio ao Esforço • 49
Suad Haddad de Andrade
Associações Livres e Pensamento Onírico de Vigília • 65
Antonino Ferro
Novas Perspectivas sobre as Fantasias Inconscientes • 81
James S. Grotstein
O Processo Psicanalítico na Adolescência: Metapsicologia e Clínica • 107
Luis Kancyper
A Universalidade do Complexo de Édipo • 147
Paulo Marchon
O Ateliê do Psicanalista • 171
Renato Trachtenberg
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
5
CONFERÊNCIA na SBPdePA
Epistemologia: um Resumo Crítico sob a Ótica de um Psicanalista, para uso de
Psicanalistas • 187
Paulo Cesar Sandler
DIÁLOGOS PSICANALÍTICOS
Os Afetos: Psicanálise e Neurociência • 221
André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
ENTREVISTA da SBPdePA
SBPdePA Entrevista Virginia Ungar • 245
6
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Revista da SBPdePA
CONTENTS
ARTICLES/ESSAYS/MEDITATIONS
Panic: Psychoanalytic Aspects • 27
Marco Aurélio C. Albuquerque
Configurations of Envy – the Hate to the Ef fort • 49
Suad Haddad de Andrade
Free Association and the Oneiric Thought of Vigil • 65
Antonino Ferro
Some New Perspectives on Unsconscious Phantasies • 81
James S. Grotstein
The Psychoanalytical Process in the Adolescence: Metapsychology and Clinic • 107
Luis Kancyper
The universality of the Oedipus Complex • 147
Paulo Marchon
The Atelier of the Psychoanalyst • 171
Renato Trachtenberg
LECTURE at SBPdePA
Epistemology: a Critical Summary from a Psychoanalyst Viewpoint, for
Psychoanalysts’ use • 187
Paulo Cesar Sandler
PSYCHOANALYTICAL DIALOGUES
Af fects: Psychoanalysis and Neuroscience • 221
André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
INTERVIEW of SBPdePA
SBPdePA Interviews Virginia Ungar • 245
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
7
8
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Saudações
Leonardo A.
Francischelli
A Psicanálise – Revista da
SBPdePA – prossegue seu caminho
com a marca e o estilo do espírito
que a fundou, ou seja, a tenacidade,
a força que vence as resistências
materiais de todo construtor de novas sendas. Fazendo uma retrospectiva dos temas que, de modo habitual, vieram ocupando o mundo internacional, merece destaque a violência e o terrorismo a partir do 11 de
setembro de 2001, data que marca,
ao que parece, um antes e um depois, nos primórdios do século XXI.
Esse acontecimento representaria, talvez, sem exageros histéricos, uma derrota dos valores culturais, ou, mesmo, que a cultura não
fosse continente da destrutividade
natural do homem civilizado.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 11
Leonardo A. Francischelli
Palavras do
Presidente
PALAVRAS
DO
PRESIDENTE
Em certa medida, esse fato alberga, em si mesmo, algo daquilo que
caracterizou as idéias próprias do nazismo e do estalinismo, onde os valores cultivados por séculos do existir humano explodiram como as torres de
Nova York.
O homem do século XXI vive a insegurança dos “tempos modernos”
causada pelo fundamentalismo de toda ordem e pelo pragmatismo dominante nos movimentos sociais, onde já não existe lugar para a subjetividade, constituída ao longo da caminhada do ser na procura da sua condição
de existir.
Por outro lado, talvez pudéssemos trazer esse universo guerreiro,
disjuntivo, onde o viver do homem é sempre ameaçado por ele mesmo,
para o nosso exercício profissional – o campo da saúde psíquica, área onde
haveria um profundo e intenso debate no terreno das idéias e dos conceitos
que sustentam as teorias da patologia do psíquico e, conseqüentemente,
daquilo que é eficaz, que cura os distúrbios da alma humana.
A psicanálise afirma, desde Freud, que a neurose, como conflito pulsional, impede o homem de amar. E, sem isso o homem...
As bases da saúde mental descansam, em uma classificação simples,
na subjetividade, por um lado, e no pragmatismo, pelo outro, definido esse
último como: “a verdade de uma proposição consiste que ela seja útil”.
Seria nessa polaridade – subjetividade / pragmatismo – onde localizaríamos um forte debate, porque não uma guerra sobre aquilo que cura os
distúrbios psíquicos. A subjetividade sustenta que o homem é singular enquanto o pragmatismo generaliza o homem. Os desequilíbrios psíquicos
seriam “químicos, genéticos, dependeriam dos níveis de neuro-transmissores” e não da ordem do ser e do sujeito enquanto processo de subjetividade.
Nessa guerra dos conceitos, como naquela das bombas, admitimos
uma ideologia que defende uma ou outra das posições. O desejável seria
uma integração, como em todas as relações humanas. Porém, algumas vezes surge o confronto. Apesar dele, não podemos perder de vista a identidade psicanalítica, com seus referenciais teóricos e técnicos, na dura controvérsia das idéias sobre o que melhora a saúde psíquica do homem.
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Leonardo Francischelli
Porto Alegre, julho 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 13
Leonardo A. Francischelli
Parece, portanto, que nossa responsabilidade é dupla: teríamos que
abandonar nossos refúgios e dialogar com aqueles que se encontram no
mesmo campo das nossas teorias e nossas técnicas, na condução de uma
cura e, ao mesmo tempo, conversarmos com a comunidade sobre a potencialidade de nosso ofício; admitindo nosso compromisso com a transmissão às novas gerações, desenvolvendo uma sólida fundamentação teórica e
técnica e capacitando ao aprendiz a permanecer vigente no cenário psicanalítico, em permanente exame com outras modalidades terapêuticas.
No universo atual o desemprego é a ameaça. Nos incluímos, psicanalistas, nessa perspectiva?
A cada geração cabe a responsabilidade de viver seu tempo histórico e
na medida de suas forças, criar um futuro que não seja “o futuro de uma
ilusão”.
É nosso compromisso, então, tanto no processo de frear a barbárie que
habita o interior do homem, como na luta das idéias e supostos teóricos de
uma disciplina, privilegiar o intelecto como capaz de operar com o vigor
necessário, intelecto que se desdobra em pensamentos e se expressa em
palavras, pois que, quando esses se ausentam, aparecem as bombas, a violência e as explosões, a morte da cultura.
Essa é a razão pela qual a Psicanálise publica trabalhos de colegas
oriundos de distintos lugares do mundo, para que nossos leitores mantenham-se informados de como os autores pensam a psicanálise, hoje, nesse
conturbado planeta.
Editorial
Gildo Katz
É com muita satisfação que
estamos entregando este novo número de Psicanálise – Revista da
SBPdePA que, como tem sido a tradição nesses cinco anos, contém
contribuições de autores brasileiros,
latino-americanos, norte americanos e europeus com o objetivo de
circular novas idéias, novos conceitos e experiências atuais, que podem sugerir acréscimos ao legado
freudiano para que a psicanálise sobreviva e se mantenha como uma
das principais disciplinas que proporcionam conhecimento e possibilidades de integração desse conhecimento com a prática clínica.
Foi dentro dessa perspectiva
que o nosso colega Marco Aurélio
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 17
Gildo Katz
Palavras
do Editor
PALAVRAS
DO
EDITOR
C. Albuquerque escreveu “Pânico: Aspectos Psicanalíticos”. Nesse excelente trabalho, busca traçar e discutir as origens intrapsíquicas das crises de
pânico, sintoma encontrado em pacientes que buscam tratamentos analíticos, ou mesmo como um evento durante o tratamento. É muito oportuna a
diferenciação que faz entre o modelo psiquiátrico sobre o pânico, visto
como um transtorno, e a teoria psicanalítica, com ênfase na abordagem do
pânico como sintoma merecedor de investigação analítica. Discute, assim,
as diferentes visões etiológicas, estratégias de tratamento e prognóstico
que, por vezes, confundem os psicanalistas porque vêem-se no dilema de
empregar terapia medicamentosa. Às vezes, não ceder ao apelo imediato
da medicação pode se constituir em um esforço muito grande no processo
analítico.
Aliás, é de esforço que trata a psicanalista paulista Suad Haddad de
Andrade em seu artigo “Figurações da Inveja – o Ódio ao Esforço”. A
autora intitula ódio ao esforço à dificuldade de se desenvolver empenho em
atividade importante, seja ela física ou psíquica. Considera essa dificuldade como uma defesa perversa ligada diretamente à emergência da inveja.
Sua principal característica é não ter que fazer qualquer esforço para conquistar o que deseja: tudo pode e deve ser fácil e tranqüilo. Essa incapacidade de se empenhar acarreta inevitavelmente falta de firmeza, de decisão,
de entusiasmo e de autoconfiança. É bem possível que na raiz do que é
invejado esteja, conforme a autora, um objeto idealizado que, ao ser
reintrojetado, mantém dentro do self um objeto interno com características
extremamente onipotentes. Penso que esse artigo é extremamente útil porque é essa onipotência que nos torna frágeis quando lidamos com as difíceis oscilações que ocorrem no campo transferencial e contransferencial e
que paralisa a nossa capacidade de manter a atenção flutuante para sonhar
e associar livremente desenvolvendo nossa criatividade.
Os sonhos e as associações são os temas abordados por Antonino Ferro, eminente psicanalista italiano em seu trabalho “Associações Livres e
Pensamento Onírico de Vigília”. O autor, inspirando-se nos conceitos sobre o funcionamento mental postulados por Bion, considera as associações
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 19
Gildo Katz
livres como um “derivado narrativo” do pensamento onírico de vigília, e as
rêveries, como um acesso direto às imagens desse pensamento onírico. O
material clínico é utilizado para colocar em evidência como tais “derivados
narrativos” podem ser utilizados pelo analista como sinalizações que continuamente o paciente fornece sobre o próprio funcionamento mental no
interior do campo analítico, sinalizações que permitem ao analista modular
sua atividade interpretativa de forma que esta seja fator de transformação,
e não de perseguição. Além da satisfação em tê-lo pela primeira vez como
colaborador em nossa revista, acredito que Ferro aborda o problema da
interpretação dentro de uma perspectiva atual, ou seja, não como uma
“deutung”, que fornece a explicação última para o paciente, mas de uma
forma a possibilitar, através das transformações, o estabelecimento de um
diálogo criativo e aberto entre os integrantes da dupla, sem perder de vista
a assimetria, isto é, as funções de cada um dos integrantes.
As preocupações sobre os papéis é que faz o analista Paulo Marchon,
carioca radicado em Fortaleza, a refletir sobre “A Universalidade do Complexo de Édipo”. Baseado na antropologia e em sua relação com a psicanálise, mostra como a interdição ao incesto aparece nos animais e em várias
culturas, apesar da forte resistência entre alguns pesquisadores. Penso que,
no centro desse importante trabalho, estejam as idéias de Lacan que, seguindo os passos de Levi Strauss , acredita que a origem do problema do
incesto não reside apenas em uma demanda pulsional, como assinalou
Freud, mas também na cultura, a qual é estruturada pela linguagem. Dessa
maneira, a proibição do incesto não se restringe sempre às estruturas elementares de parentesco, mas também à relação social que atribui a certas
pessoas a representação do pai e da mãe. E, conforme Lacan, a criança só
pode ter acesso ao registro simbólico se teve acesso à lei do Pai, que diz
respeito a uma atitude do mesmo em desfazer a ligação mãe-filho, que é o
ponto de partida para futuras relações incestuosas.
Nosso colega Renato Trachtenberg, através de seu excelente trabalho
intitulado “O Ateliê do Psicanalista”, parte do encontro mítico entre o bebê
e a mãe, descrito como o conflito estético por D. Meltzer, para referir-se à
PALAVRAS
DO
EDITOR
fundação dos espaços públicos e privados na mente humana. As noções de
mistério e segredo advindas desses espaços primordiais irão configurar as
diferentes possibilidades de relação do sujeito com o mundo (interno e externo). Entre essas possibilidades, se insere a relação do homem com os
seus objetos estéticos, especialmente com a obra de arte. Contando com
esse “instrumental”, o autor se refere a um espaço mental, por ele denominado ateliê, uma espécie de sala interna de análise, onde é gestado o sonho.
Nessa dimensão estética da psicanálise, o próprio sonho, por sua vez, é um
ateliê: espaço de geração e expansão da criatividade, lugar de misteriosos
renascimentos. Podemos observar como essa contribuição articula-se com
as idéias desenvolvidas por Ferro e Andrade sobre a atividade onírica e a
criatividade. O autor acrescenta o conflito estético de Meltzer como condição para que possa ser criado o ateliê, e foi muito feliz em denominar de
ateliê esse espaço, porque a palavra evoca criatividade, que é condição
necessária ao processo analítico.
Como já foi consagrado em outras edições, a infância e a adolescência
se fazem representar pelo profundo trabalho “O Processo Psicanalítico na
Adolescência: Metapsicologia e Clínica”, do renomado psicanalista argentino Luis Kancyper. Para ele, na adolescência, múltiplos jogos de forças se
contrapõem dentro de um campo dinâmico: os movimentos paradoxais do
narcisismo nas dimensões intra-subjetiva e intersubjetiva, e as relações de
domínio entre pais e filhos e entre irmãos. Através da descrição do processo analítico de um adolescente, enfoca alguns pontos essências para o tratamento de adolescentes: a base metapsicológica do processo; o trabalho
com as auto-imagens narcisistas e com os complexos edípico e fraterno; a
questão do filho-progenitor e do irmão-progenitor; o reordenamento
identificatório; a confrontação geracional; e a ressignificação de traumas
anteriores. Trata-se de um trabalho que merece, por sua densidade e profundidade, uma leitura atenta .
Graças à gentileza do reconhecido psicanalista argentino Hugo
Bleichmar que é diretor de Aperturas Psicoanalíticas – Hacia Modelos
Integradores, uma revista eletrônica de grande difusão, trazemos um inte20
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Gildo Katz
ressante debate entre Jaak Panksepp, um neurocientista, e os psicanalistas
André Green e Clifford Yorke. Com o objetivo de conciliar a psicanálise e
a neurociência, dialogam tendo como pano de fundo a teoria do afeto em
Freud. Penso que uma aproximação é uma experiência útil e necessária,
em função das trocas que poderão ocorrer entre as duas disciplinas. Acima
de tudo, fica claro em Aperturas, que prevalece o desejo de buscar o que é
semelhante nessas disciplinas, e, nesse sentido, é extraordinário comprovar como alguns dos conceitos freudianos básicos da teoria do afeto se
aproximam da visão atual dos neurocientistas, encontrando respaldo nos
dados empíricos disponíveis.
Através de uma conferência intitulada “Epistemologia: um Resumo
Crítico sob a Ótica de um Psicanalista, para uso de Psicanalistas”, o psicanalista paulista Paulo César Sandler sugere que o ser humano consegue
desenvolver, a partir da pura necessidade, alguns modos para se aproximar
ou apreender a realidade ou verdade e a discriminá-las do que não é real ou
verdadeiro, ou do que é falso. Além disso, pode comunicar o que experimentou. Pensa que a arte é o modo mais primitivo de apreender a realidade,
tanto externa como interna. Tendo a concordar com ele quando afirma que
o que é muito complicado em todas as teorias, é que elas dizem como “as
coisas, tanto do mundo como da ciência, devem ser. Mas me parece que a
ciência mesmo, e também qualquer teoria do conhecimento, como intrasessão, para o paciente conhecer-se a si e tornar-se a si mesmo, diz como as
coisas são”. Conclui seu brilhante trabalho salientando que talvez não caiba aos analistas dizerem aos pacientes ou aos colegas o que eles devem ser,
quais são as luzes que devem seguir, mas eles podem dizer aos pacientes
quais são suas próprias luzes, considerando suas necessidades humanas e
possibilidades individuais, mas não seus deveres segundo algum código
externo a eles. A isso ele chama de uma contribuição da psicanálise à
epistemologia e da epistemologia à psicanálise.
A entrevista realizada com a nossa colaboradora Virgínia Ungar, da
Argentina, revela-se de uma utilidade e de uma atualidade impressionantes. Discorre de forma clara e didática, como é a sua característica, sobre a
PALAVRAS
DO
EDITOR
sua formação, suas influências mais importantes que são Melanie Klein e
Donald Meltzer, a análise de crianças e adolescentes, os motivos que levam os analistas a abandonarem essa especialidade, a importância do enquadre, as patologias atuais e a crise econômica que assola a América Latina. É interessante salientar como ela conceitua de forma diferente imaginação e fantasia inconsciente, tema, aliás, de outro trabalho muito interessante de James S. Grotstein, de San Francisco, intitulado “Novas perspectivas
sobre as fantasias inconscientes”. Para Ungar, a fantasia inconsciente tem
mais um caráter defensivo, mais fechado, e a imaginação como a associação livre, verdadeira, mais voltada para a conjectura da exploração do mundo, para a criatividade. Grotstein, por sua vez, tal qual uma confirmação
dos conceitos de Ungar, sustenta que o principal propósito da prática psicanalítica é tratar, isto é, reparar supostas deficiências no funcionamento das
fantasias inconscientes. O corolário de suas idéias é que as fantasias inconscientes constituem a primeira linha de defesa contra o impacto contínuo da evolução do indivíduo no caminho da criatividade. Ou seja, ao
tratarmos as defesas envolvidas nas fantasias inconscientes, abrimos o caminho para a imaginação.
Quando Virginia Ungar discorreu sobre a crise econômica, trouxe à
tona um dos problemas que deveria preocupar a todos que se dedicam à
formação analítica, que diz respeito à falta de pacientes para a análise, e
que se reflete na “síndrome da desocupação do analista”, que descrevi em
um recente trabalho. Nele, enfatizo a “necessidade” que tem um psicanalista de trabalhar em análise, isto é, de poder ser procurado por alguém para
cuidar, reconstruir, reparar objetos danificados pela pessoa que pede ajuda.
Ao ser “convocado” para essa tarefa, o psicanalista se sente aliviado, contente, esperançoso porque, ao mesmo tempo que através do vínculo estabelecido ajuda o seu paciente, pode continuar reparando e reconstruindo objetos do seu mundo interno. Se bem que a intenção manifesta dirigida ao
paciente é vocacional e reparatória, coexiste com um objetivo não espúrio
mas inconsciente e narcisista do terapeuta, que remete à sua necessidade de
compreender-se compreendendo em cada ato analítico. Portanto, mais além
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Gildo Katz – Editor
Julho de 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 23
Gildo Katz
das necessidades do sustento econômico, está a falta (em um primeiro nível) da capacidade de reparação, de um reconhecimento e de uma identidade social. Se tomarmos o valor simbólico dos termos, na sutileza de suas
distintas acepções, estar “des-ocupado” implica em um vazio por não ser
mais possível colocar o Self no lugar de trabalho. Por essa razão, o vazio
interno e a exclusão social dão lugar a um maior risco de morte psíquica.
Trata-se de uma morte relativa que atinge a subjetividade, apesar de que o
juízo de realidade assinale, em geral, que a crise atinge a todos.
Quero deixar meus agradecimentos aos técnicos e ao pessoal de apoio,
em especial à nossa bibliotecária Geisa Costa Meirelles e à nossa secretária, Antônia Lima Ihoann, que se envolveram, como de costume, com muita dedicação na organização e preparo deste número. Também agradeço
aos colegas da Comissão Editorial: Augusta Heller, Heloisa Fetter, Ane
Marlise Port Rodrigues e Silvia Stifelman Katz, que ao longo de quase dois
anos vêm formando um grupo coeso, competente e, principalmente, com
fortes laços de cooperação e amizade, que é essencial para quem exerce o
trabalho psicanalítico.
Desejando uma boa leitura para todos, penso que o trabalho desenvolvido por essa comissão tende a atenuar o vazio da desocupação que atinge
a todos nós. Ajudam a atenuar o vazio, porque continuam pertencendo a
um grupo; sentem-se úteis ao confeccionar uma revista e, de alguma forma, reparam seus objetos internos, na medida que desfrutam da satisfação
de que serão procurados por ávidos leitores, e de que estimularão potenciais escritores. Dessa maneira, creio eu, mantemos, todos nós, autores,
editores e leitores a esperança de que a nossa capacidade de reparação continue ativa, sem cairmos na tentação “milagrosa” dos psicofármacos, bem
como nas promessas de curas rápidas como as que oferecem algumas das
terapias da moda.
Artigos/Ensai0s/Reflexões
Introdução
Marco Aurélio C.
Albuquerque
Médico Psiquiatra, Supervisor e
Professor da Residência de
Psiquiatria da Fundação
Universitária Mário Martins;
Psiquiatra da Divisão de Saúde
Comunitária do Grupo Hospitalar
Conceição; Candidato do
Instituto de Psicanálise da
Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre.
Alguns autores psicanalíticos
descrevem situações de pânico em
seus pacientes, em geral relacionadas a estados mentais aflitivos, que
afloram em momentos de estresse
ou de rompimento de um equilíbrio
defensivo até então utilizado com
sucesso. A psiquiatria, por sua vez,
classificou e circunscreveu o diagnóstico psiquiátrico da síndrome do
pânico nos últimos anos, apoiada,
porém, num referencial teórico bastante
diverso,
de
cunho
fenomenológico, com acentuada
ênfase nos aspectos biológicos e
comportamentais das doenças mentais. Assim, relega os fatores psicológicos a elementos acessórios ou
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 27
Marco Aurélio C. Albuquerque
Pânico:
Aspectos
Psicanalíticos
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
meros desencadeantes da crise de pânico, não atribuindo importância a fenômenos intrapsíquicos inconscientes como estando ligados
etiologicamente às crises de pânico, porque simplesmente não os considera
em seu referencial teórico e técnico.
Num primeiro olhar sobre essa diferença, pode-se dizer que a psicanálise, como campo de investigação e abordagem dos complexos aspectos da
vida mental inconsciente, nunca dedicou ao pânico o status de uma doença
mental, mas sinaliza que, como sintoma, ele pode ser o indicador de que
um movimento importante está se processando no mundo interno do sujeito nem sempre de forma negativa.
O modelo psiquiátrico do transtorno de pânico
Penso que seria interessante, para melhor esclarecer este contraste,
uma breve revisão de como a psiquiatria atual define as crises de pânico.
Estas são descritas como fazendo parte de um transtorno, em geral caracterizado por episódios agudos de terror acompanhados de uma súbita barragem de sintomas físicos, tais como batimentos cardíacos acelerados ou
palpitações, dor torácica, tonturas, náuseas, dificuldade respiratória,
calorões ou calafrios, sudorese, formigamentos ou perda de sensibilidade
nas mãos, distorções perceptuais ou sensações de estar como num sonho,
medo de perder o controle e fazer algo embaraçoso, medo de morrer e sensação de morte iminente.
Em relação às causas, as pesquisas sugerem que o transtorno de pânico tem componentes biológicos e psicológicos em interação, e que alguma
vulnerabilidade genética pode estar envolvida. Estudos sugeriram que pessoas com transtorno de pânico teriam uma tolerância mais baixa às respostas fisiológicas e psicológicas normais ao estresse. Alguns pesquisadores
teorizam que alterações nos mecanismos de adaptação poderiam ser produto de repetidos estresses em indivíduos predispostos, levando eventualmente ao transtorno. Pesquisadores também sugerem que pessoas com
transtorno de pânico podem não ser capazes de utilizar suas próprias substâncias redutoras de estresse. Pode ser, também, que receptores neuronais
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Aspectos psicanalíticos do transtorno de pânico
Não há um modelo fenomenológico na psicanálise que conceitue crises de pânico como um transtorno independente, da forma como ele é descrito pela psiquiatria, e mesmo do ponto de vista psicanalítico não há, na
teoria ou na clínica, um modelo único para o fenômeno.
A literatura psicanalítica sobre o tema começa com Freud, que o descreve desde 1885 com o nome de neurose de ansiedade ou neurose de angústia – um quadro que tem a ansiedade como sintoma central. Daí em
diante encontramos, em relatos de caso de diversos autores, descrições de
crises de ansiedade muito fortes, com sintomas de pânico em pacientes em
tratamento analítico. Nessas situações ele é descrito como um sintoma importante, freqüentemente relacionado a pacientes com organizações defensivas patológicas de personalidade, ou déficits estruturais significativos
pela mobilização de ansiedades arcaicas e pelo rearranjo das forças defensivas dentro do ego antes ou durante o tratamento analítico.
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Marco Aurélio C. Albuquerque
que captam essas substâncias tenham um funcionamento anormal em pessoas com esse transtorno.
É preciso, no entanto, ter em mente que o que acima é chamado de
“psicológico” não se refere necessariamente, como estamos acostumados a
pensar em nosso meio, à psicologia psicanalítica, ou metapsicologia, para
usar um termo utilizado por Freud para diferençar a psicologia que ele estava propondo das outras vigentes em sua época, conforme Sandler (1997).
Quanto ao tratamento e ao prognóstico, o modelo psiquiátrico também difere radicalmente da psicanálise. A psiquiatria, notadamente em sua
vertente mais biologicista, preconiza que o transtorno, uma vez reconhecido, é altamente tratável, podendo reduzir ou prevenir completamente os
ataques de pânico em 70 a 90% dos pacientes – particularmente quando o
transtorno de pânico é reconhecido precocemente. O critério de cura utilizado é a redução ou o desaparecimento dos sintomas, sem preocupação
com causas psicodinâmicas subjacentes. Como veremos adiante, o entendimento psicanalítico é bastante diferente.
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
É preciso assinalar que Freud iniciou suas investigações psicanalíticas
interessado no tratamento de sintomas clínicos da histeria (ansiedades, conversões, etc.), uma vez que eram esses sintomas que traziam os pacientes à
análise. A mudança teórica e clínica mais significativa proposta por ele
mesmo, à medida que ia construindo todo o arcabouço teórico-clínico da
psicanálise, é que ele percebeu que não se podia apenas abordar os sintomas do ponto de vista médico, sem levar em conta a criação de uma metapsicologia, isto é, a relação entre a topografia mental, em seus níveis consciente, pré-consciente e inconsciente, e posteriormente as relações entre as
diferentes estruturas mentais – id, ego e superego – em sua assim chamada
teoria estrutural. Por isso, sua teoria sobre a ansiedade sofreu uma profunda revisão: se antes a ansiedade era causada pela repressão, posteriormente
ele passou a acreditar exatamente no oposto, que era a ansiedade que produzia a repressão (FREUD, 1926).
Mais tarde, a partir da noção de instinto de morte introduzida por
Freud, Klein ampliou consideravelmente o papel da ansiedade na formação do aparelho psíquico, tomando-a como causa e conseqüência de diferentes formas de organização da vida mental, preservando a idéia freudiana
do inter-relacionamento entre as instâncias estruturais (id, ego e superego),
mas posteriormente – em sua teoria das posições – diferenciando as ansiedades paranóides das depressivas, origem de constelações de relações de
objeto distintas, tanto externas quanto internas.
Sem a intenção de fazer uma revisão exaustiva da literatura psicanalítica sobre o tema, busquei pontualmente em determinados autores algumas
idéias e conceitos-chave que demonstrassem a evolução do conhecimento
psicanalítico, a ponto de nos permitir hoje compreender e enfrentar melhor
na clínica alguns tipos particulares de ansiedade. Busquei nesses autores
um suporte à minha visão do pânico não como uma doença, mas como um
sintoma clinicamente muito importante, indicativo de estados mentais mais
primitivos e forma de expressão de ansiedades muito precoces, ligadas à
agressividade excessiva e ao instinto de morte, representando verdadeiras
ameaças à integridade do self e à vida psíquica. Sem essa compreensão dos
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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Marco Aurélio C. Albuquerque
mecanismos mais primitivos envolvidos na gênese do pânico, perde-se talvez a possibilidade de um trabalho analítico que traga modificações estruturais na personalidade, em termos de uma evolução para formas de ansiedade menos primitivas e violentas, que possam finalmente ser integradas,
incorporadas ao patrimônio psíquico do self, e representadas simbolicamente, abrindo caminho ao pensamento.
Embora não tenha sido o primeiro a reconhecer a constelação de sintomas que hoje a psiquiatria designa como pânico, Freud (1895.) foi o primeiro a tentar abordar psicanaliticamente o problema, ainda que com as
limitações teóricas e técnicas da época. Fez isso em sua descrição da neurose de ansiedade e a chamou assim porque todos os seus componentes
podiam ser agrupados em torno do sintoma principal da ansiedade.
Quanto à etiologia, ele dizia que em alguns casos não se descobria
absolutamente nenhum fator causal e nesses casos atribuía o surgimento a
fatores hereditários. Nos demais, via o quadro como sendo de origem basicamente sexual, sendo as perturbações restritivas do comportamento sexual manifesto (masturbação, coito interrompido, etc.) apontadas como
causadoras do quadro de ansiedade. Fatores como o cansaço e o estresse
também eram considerados causais acessórios.
Essas explicações, embora distantes de causas inconscientes no sentido dinâmico, são, no entanto, coerentes com o contexto inicial da psicanálise. Caper (1990) descreve como Freud nessa época estava interessado em
descobrir as causas neurofisiológicas da histeria, dentro de um paradigma
das teorias físicas vigentes – especialmente as relativas à eletricidade – e
estabeleceu um paralelo entre a histeria e a neurose de ansiedade, baseado
em perturbações manifestas da fisiologia sexual, especialmente por sobrecarga de tensão. A excitação sexual não descarregada provocaria uma excitação cerebral que se manifestaria como ansiedade.
Em sua resposta às críticas a seu artigo sobre a neurose de angústia
(1895), ele resumia assim sua compreensão clínica do problema: “O quadro esquemático da etiologia da neurose de angústia me parece seguir o
mesmo padrão [da tuberculose em seu exemplo]: Precondição: Heredita-
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
riedade. Causa específica: Um fator sexual, no sentido de uma deflexão da
tensão sexual para fora do campo psíquico. Causas auxiliares: Quaisquer
perturbações banais – a emoção, o susto, e também o esgotamento físico
devido a doenças ou à estafa”.
Para ele, portanto, o fator causal por excelência era de ordem sexual
manifesta, ficando todos os demais estados emocionais relegados a meros
desencadeantes, encarados como perturbações associadas perifericamente
a este fator primordial. Embora posteriormente tenha mudado sua concepção sobre a origem da ansiedade, Freud nunca associou a agressividade e a
destrutividade internas à neurose de ansiedade, e, portanto, seu modelo
etiológico para a neurose de ansiedade permaneceu incompleto em sua
teorização. Isso é particularmente visível no caso do pequeno Hans
(FREUD, 1909), em que a agressividade deste em relação a seus objetos
não foi percebida por Freud como fundamental na gênese de sua fobia, e
apenas as causas sexuais foram levadas em conta por se encaixarem na
teoria da origem sexual das neuroses.
Klein (1946) via a ansiedade sob um prisma diferente, embora
alicerçado na teoria freudiana a respeito do instinto de morte. Ela concebia
a ansiedade como intimamente ligada a este instinto, e um dos primeiros
movimentos mentais do bebê seria então a sua deflexão, dando início às
ansiedades paranóides pela instalação dos objetos ameaçadores à vida fora
do ego, por via da projeção. Para ela, a ansiedade mais básica era a de
desintegração desse ego rudimentar, com o seu conseqüente aniquilamento, vítima da força do instinto de morte.
Como sabemos, em termos de sintoma, o elemento principal no ataque de pânico é a ansiedade intensa experimentada pelo paciente, que chega à sensação de morte iminente. Essa intensidade da ansiedade é um ponto chave para o diagnóstico e corresponde, em termos psicanalíticos, a uma
ansiedade bastante primitiva, do tipo de desintegração (os diversos órgãos
corporais que parecem estar falhando) ou de aniquilamento (a sensação de
morte iminente). Klein propõe que essa ansiedade esteja intimamente ligada ao instinto de morte.
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Para lidar com essa ansiedade, o bebê usa mecanismos de defesa primitivos, dos quais um é a negação da realidade. Exemplo disso em relação
ao sintoma de pânico são as inúmeras visitas a serviços de emergência e a
médicos de diversas especialidades que, após entrevistas e exames
laboratoriais, por vezes exaustivos, excluem a existência de doença orgânica, mas mesmo assim o paciente não acredita e segue tendo a impressão
avassaladora de que há algo de muito grave acontecendo com seu corpo ou
seus órgãos, talvez até com sua mente, mas continua temendo fortemente a
morte por causas orgânicas, e não psicológicas. De fato, quando lhes é dito
pelos clínicos que seu problema pode ser de ordem emocional, muitos pacientes demonstram não entender como isso poderia ser possível, que relação poderia haver entre seus sintomas, experimentados como orgânicos, e
suas emoções (numa espécie de desarticulação completa entre o subjetivo
e o objetivo, uma incapacidade de representação muito importante). Isso é
tomado por alguns pesquisadores como a prova de uma base fisiológica, e
não psicológica, para o transtorno.
Outros mecanismos de defesa primitivos descritos por Klein, como a
cisão e a identificação projetiva, estão igualmente presentes e atuantes nas
crises de pânico. Como resultado de uma cisão do ego com propósitos defensivos (proteger o self da desintegração), fragmentos do ego relacionados à agressividade e à destrutividade, sentidos como intoleráveis, são
projetados para dentro dos órgãos (ou, melhor dizendo, da representação
mental desses órgãos), que passam então – identificados projetivamente
com esses fragmentos – a hospedar estes perseguidores.
Estes fragmentos do ego, portadores de aspectos persecutórios, também são postos, por via da identificação projetiva, nos objetos externos e
no mundo externo em geral, que então identificado com estes fragmentos
se torna também um local ameaçador, produzindo como resultado a
agorafobia comumente encontrada nesses casos e que é explicada psiquiatricamente de uma forma comportamental como um medo aprendido e evitado daí em diante. Assim o paciente é perseguido por sensações corpóreas
assustadoras, mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo refugia-se nelas em
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
busca de uma explicação médica e socialmente aceitável para o que experimenta de inaceitável dentro de si. Agarra-se tenazmente nos aspectos
objetivos dos sinais e sintomas físicos para assim aumentar a distância dos
sentimentos inaceitáveis. O medo de ser atacado e destruído pelas próprias
projeções, expresso na sensação de morte iminente, corresponde à projeção maciça da própria agressividade e destrutividade temida, que agora
retorna ameaçadoramente. Uma das formas utilizadas para lidar com esse
retorno do inaceitável projetado é a evitação, uma defesa típica dos pacientes fóbicos.
Hanna Segal (1955a) examinou o papel dos mecanismos esquizóides
subjacentes à formação de fobias, mostrando haver uma íntima conexão
entre as ansiedades primitivas e um sintoma neurótico comum. Ela demonstrou como os mecanismos da posição esquizo-paranóide, especialmente a cisão e a identificação projetiva, estão presentes nas fobias. Analisando uma mulher com fobias múltiplas e severas, ela pôde perceber o
quanto esta estava ligada à mãe por identificação projetiva e, portanto, incapaz de separar dela. Por causa disso funcionava transferencialmente nas
sessões como se a analista soubesse tudo dela sem que precisasse falar. As
pessoas numa multidão representavam sua própria desintegração e maldades projetadas, tornando-se perseguidoras em potencial e constituindo-se
assim a agorafobia. Ela conclui mostrando como a formação de uma fobia
está a serviço de proteger contra uma psicose, vinculando ansiedades muito primitivas e catastróficas a situações externas conhecidas, que podem
então ser evitadas. Para ela, é importante então analisar as ansiedades primitivas para dissolver manifestações neuróticas.
Em outro trabalho de 1955, Segal (1955b) nos permite, através de seu
artigo sobre a formação de símbolos, compreender uma outra característica
típica do paciente com pânico, isto é, a concretude extrema que os sintomas adquirem, sem qualquer possibilidade de simbolização que os transforme numa metáfora para um acontecimento do mundo interno. Isto se dá
através do que ela chamou de equação simbólica, em vez do uso do símbolo propriamente dito.
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Ela descreve dois pacientes para os quais o violino tinha conotações
sexuais, mas para um ele era o pênis, e, portanto, não podia ser tocado em
público, e para o outro representava o pênis, o que não impedia sua execução.
De acordo com ela, pacientes com uma relação muito falha com seus
objetos originais, especialmente pai e mãe, não foram capazes de estabelecer as bases para a criação de símbolos, utilizando-os concretamente no
lugar do objeto, em lugar de representar o objeto na ausência deste. Isso é
exatamente o que ocorre numa crise de pânico, em que não há lugar para o
símbolo propriamente dito – o sintoma é tomado pelo seu valor concreto,
que está ali, e não como algo que está em lugar de outra coisa, ausente mas
simbolizada. Pacientes cujo coração é hígido, e eles objetivamente sabem
disso, sentem de forma violenta uma morte iminente de “ataque do coração”, numa completa desarticulação entre o coração-órgão e o coraçãosímbolo. Além disso, o termo freqüentemente utilizado para denominar as
crises – “ataque” – dá uma idéia da agressividade projetada que retorna
persecutoriamente para cobrar seu preço.
Edna O’Shaughnessy (1981) mostra como, do ponto de vista da organização defensiva, a combinação de um ego fraco com ansiedades assoladoras agudas impede a constituição de uma boa organização defensiva,
fazendo com que haja uma constante oscilação entre períodos de exposição
e de restrição. Quando a organização defensiva falha, esses pacientes ficam
expostos a uma intensa ansiedade, originária de seus objetos. Ela relata
extensamente o caso de um paciente que, num primeiro momento dentro
do tratamento, ficava em situação de grande desespero quando sua organização defensiva falhava e ele se sentia exposto a grandes quantidades de
ansiedade que não podia manejar.
Segundo ela, há pacientes que procuram análise num momento em
que têm a expectativa não de ampliar seu contato consigo mesmos ou com
seus objetos, mas ao contrário, para refugiar-se deles, restabelecendo uma
organização defensiva perdida, estabelecida contra objetos internos e externos causadores de uma ansiedade esmagadora. Acrescenta que esses
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
pacientes experimentam ansiedades infantis que não foram modificadas,
isto é, não foram atenuadas e permaneceram intensamente persecutórias.
Esse parece ser exatamente o caso dos pacientes que apresentam sintomas
de pânico que se mostram enormemente perseguidos por seus objetos. Nesse sentido, o tratamento muitas vezes é buscado para erigir novamente as
defesas que ruíram, o que não é necessariamente negativo no curso de uma
análise, podendo inclusive se constituir em uma das fases do tratamento,
antes de evoluir para etapas mais avançadas em que seja possível algum
abandono dessa estrutura defensiva tão arraigada. Pela mesma razão, o tratamento psiquiátrico medicamentoso concomitante algumas vezes tornase necessário, no sentido de aliviar temporariamente esse estado de catástrofe interna, para que o paciente possa beneficiar-se do tratamento analítico.
Fica evidente a importância dessas estruturas defensivas para a sobrevivência do self, assim como seu grau de tenacidade e de organização, o
que inevitavelmente tornará o seu abandono um processo lento e difícil. É
necessário todo um processo de reconstrução do mundo interno na análise,
permitindo a existência de objetos menos persecutórios e mais confiáveis,
para que um passo evolutivo seja dado em direção à integração depressiva.
No entanto, quando isso acontece, os resultados são compensadores, e o
processo analítico como um todo fica mais enriquecido para ambos e mais
tolerável pelo paciente.
Steiner (1997), estudando mais profundamente as organizações defensivas patológicas, descreve a utilização de refúgios psíquicos pelos pacientes, que assim procuram estabelecer uma organização defensiva que os
proteja tanto das ansiedades persecutórias quanto depressivas. Esse refúgio funciona como uma armadura ou esconderijo do qual é muito difícil
sair. Ele usa o termo para se referir a uma família de sistemas defensivos
caracterizados por defesas rígidas que procuram uma fuga da ansiedade
pela evitação do contato com os outros e com a realidade. Isto leva, se
pensarmos em termos de sintomas, à evitação fóbica e ao enclausuramento
não apenas psíquico de muitos desses pacientes, que desenvolvem uma
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agorafobia importante, vivendo no concreto uma impossibilidade interna
de sair de um refúgio defensivo.
Sob essa perspectiva, a crise de pânico pode ser entendida como um
momento de perda ou de ameaça de perda desse refúgio psíquico, com a
conseqüente exposição a uma ansiedade avassaladora, persecutória ou
depressiva, que faz com que imediatamente haja uma retração para dentro
da concha protetora.
Ogden (1989) descreve nitidamente uma dessas perdas do refúgio descritas por Steiner através do relato de uma paciente esquizóide que, em seu
quarto ano de tratamento analítico, depois de um fim de semana, chega em
estado de extrema agitação, acusando-o pesadamente. Ela diz que não sabia o que estava acontecendo, mas que tudo a assustava e que sua mente
estava fora de controle. No final de semana, ela não havia saído de seu
apartamento e tinha ficado aterrorizada de algo entrar ou sair dele. Desligou o telefone, o rádio e a televisão. Não comeu nem bebeu nada, exceto
água mineral, por medo de estar sendo envenenada. Também ficara aterrorizada de ter que urinar ou defecar e imaginara que se fizesse isso iria ver
sangue e intestinos no vaso. Ela contou que ficava apavorada quando estava num cubículo que ficava no porão de uma livraria onde ela costumava
se trancar e passar horas lendo, retirada do mundo, em perfeita paz. Começou a temer que alguém trancasse a porta, e ela ficaria então aprisionada lá.
Também temia que apagassem as luzes e a esquecessem lá, o que a faria
morrer de fome sem que ninguém soubesse. Ela não conseguia evitar as
imagens horríveis que tinha de estar se decompondo lá, em sua escrivaninha.
Essa crise de ansiedade de desintegração intensa e fobia deveu-se à
sensação de perda do refúgio esquizóide e a um maior contato com o analista e a realidade após anos de trabalho analítico árduo.
Danielle Quinodoz (1995), falando da vertigem e dos sintomas
neurovegetativos que a acompanham (os mesmos descritos para uma crise
de pânico), ressalta a ligação dessa com as vicissitudes nas relações
objetais do paciente, desde a capacidade de se diferenciar dele e depois de
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
se separar dele. Nisso ela acompanha os demais autores citados, naquilo
que poderíamos assinalar como outra característica comum aos pacientes
com pânico, isto é, as falhas nas relações precoces com seus objetos, deixando como saldo a incapacidade de lidar bem com os aspectos agressivos,
por falta da instalação no ego de um objeto amoroso reconfortante, do qual
seja possível se separar, conservando-o internalizado ao mesmo tempo.
Essa dificuldade de separação pode ser observada na clínica pela existência do acompanhante fóbico, alguém de quem o paciente não consegue se
separar, às vezes até fisicamente.
Diz ainda que, para ela, o estudo da vertigem é mais importante do que
a observação ou a descrição de um sintoma, mas uma dimensão prototípica
da relação de objeto. Assinala que é fascinante tentar compreender como
uma experiência de sensações sem possibilidade aparente de elaboração
psíquica, que se apresenta como um acúmulo de tensões físicas, pode se
organizar em um plano psíquico ao longo de um tratamento analítico. Se
para o analista é fascinante, para o paciente não o é menos, à medida que
lhe abrem possibilidades de articular o até então desarticulado dentro de si,
dando-lhe acesso a um outro nível de funcionamento psíquico.
Material clínico
Descrevo a seguir três breves vinhetas clínicas de pacientes com pânico apenas para melhor assinalar a importância dos fatores intrapsíquicos na
gênese dos sintomas de pânico.
Mulher de 24 anos procura atendimento psiquiátrico dizendo que há
um mês não consegue engolir nada sólido, apenas líquidos, com medo de
morrer sufocada pelo alimento, e que já foi a vários médicos que constataram a ausência de doença orgânica. Há um mês, também, no dia em que os
sintomas começaram, por volta de uma e meia da manhã, sentiu fome e foi
comer, não conseguindo deglutir e tendo uma sensação crescente de
sufocação, que da garganta se espalhou para o peito, dando-lhe falta de ar,
tonturas, amortecimento dos membros e a sensação de morte iminente. Procurou o setor de Emergência de um grande hospital, onde, após os exames
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de praxe, foi diagnosticada como tendo Transtorno de Pânico, medicada e
orientada a procurar um psiquiatra, porque o problema da não-deglutição
seria de ordem emocional. Não entendeu nem acreditou muito no que o
médico lhe disse, mas procurou ajuda, mais por estar apavorada com o que
tinha lhe acontecido do que por ter relacionado os sintomas a aspectos
emocionais de sua vida atual.
No entanto, ao longo da primeira entrevista, contou que o marido trabalhava à noite e que nos últimos tempos começara a chegar em casa até
cinco horas depois de sua hora habitual. Acreditava que ele a estava traindo. Juntava-se a isso o fato de que sua casa ficava próxima a um ponto de
tráfico de drogas, disputado a tiros por gangues rivais, e num desses tiroteios, por si só já assustadores para ela, foi morto um amigo de infância seu,
de quem gostava muito. Essa morte precedeu em poucos dias o início dos
sintomas. No velório não conseguira chorar, mas sentira-se presa de imensa angústia, com muito medo de também ser morta por um tiro. Acrescenta
que ela ficava sozinha à noite em casa, apenas com uma filha de um ano de
idade, e que por diversas vezes ouvira apavorada os tiros trocados em frente de casa, ouvira barulho de pessoas pulando seu muro, em fuga da polícia, e esta mesmo já havia batido em sua porta em plena madrugada pedindo licença para inspecionar o terreno em busca de marginais. O marido
dizia que ela estava exagerando essas preocupações, não fazendo menção
de trocar seu turno de trabalho ou esboçar desejo de mudar daquela vizinhança, além de negar de forma frouxa e não-convincente a existência de
uma relação extraconjugal, o que a deixava cada dia mais furiosa com ele,
motivos pelos quais vinham tendo brigas diárias. Sua queixa, até então
orgânica, de não conseguir engolir, ficava mais completa à medida que a
entrevista seguia seu curso: “Eu não consigo engolir é essa situação que
estou vivendo, de ser deixada em casa pelo meu marido, só com a nossa
filha pequena e correndo risco de morrer por uma bala perdida, enquanto
ele está por aí comendo alguma vagabunda, chega quase ao meio-dia como
se nada tivesse acontecido, sem dar qualquer importância aos meus sentimentos, exigindo almoço, e eu, quando me sento para comer com ele, estou
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
tão furiosa que a comida nem me desce na garganta”.
Formulada essa interpretação, bem recebida pela paciente, o resultado
foi uma diminuição imediata e acentuada da ansiedade até ali dominante,
com a paciente relaxando na poltrona e parecendo começar de novo a consulta, aliviada e intrigada com esta nova relação existente entre os elementos antes desconexos de sua história, atenta agora a uma nova possibilidade
de entender sua situação, que não lhe era clara até então.
Outro paciente, um homem de 28 anos de idade, passou a ter crises de
pânico associadas à depressão há um ano e meio. Em sua história conta
que, aos 14 anos, levou um tiro no braço defendendo o pai, alcoolista, numa
briga numa boate. No início do ano passado foi novamente alvejado numa
perna, dentro de sua casa, com um tiro que era dirigido ao seu irmão mais
velho, alcoolista como o pai, que tinha comprado briga com marginais que
usavam drogas na praça em frente à casa deles. Dois meses depois, após
uma noite em que ele e o pai beberam muito, encontrou pela manhã o pai
morto no quarto dele, ao lado do seu. O pai era alcoolista pesado, tendo
perdido tudo o que tinha com a bebida, passando depois disso a maltratar a
mulher e os filhos e morrendo aos 49 anos. No dia da morte do pai passou
a ter dores nas pernas e a senti-las fracas, como se tivesse levado um choque elétrico, sintoma que persiste até hoje. Diz que, ao encontrar o pai
morto, duro, com os olhos abertos lhe fitando, ficou em pânico, desesperado, e tentou inutilmente arrumar o braço esquerdo do pai, caído para fora
da cama, o que não conseguiu pelo estado de rigidez cadavérica. Ressalta
que aquele pânico era diferente do que sente hoje.
Um mês depois da morte do pai, após beber demais novamente (identificado com o pai), acordou de manhã tendo a primeira crise de pânico,
com parestesias na face, no braço esquerdo, dores no peito, falta de ar.
Achando estar morrendo exatamente igual ao pai, que tinha vindo buscálo, ficou tão assustado que saiu correndo de casa só de bermuda e camiseta
e foi a um hospital, onde foi medicado para pânico no setor de emergências. Não acreditava em reencarnação, mas temia que o pai quisesse levá-lo
junto, isto é, matá-lo. Esse episódio, pelas fantasias envolvidas, revela a
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imensa ambivalência quanto ao pai, a quem amava e buscava proteger,
inutilmente, e ao mesmo tempo odiava e desejava que morresse, pelos
maus-tratos a que submetia sua mãe e a família.
Desse dia em diante passou a ter crises freqüentes de ansiedade e pânico, associadas à depressão. Procurou atendimento recentemente, pois sua
mulher está grávida e ele quer parar de beber, melhorar da depressão e
parar de ter as crises de pânico, mas principalmente fugir de uma morte
igual à do pai, agora que também vai se tornar pai (reforçando as identificações que já tem com ele). Ainda não elaborou esse luto, e o pai – objeto
morto-vivo dentro dele – vive lhe ameaçando de sorte igual. Quando pôde
ligar um pouco esses fatos todos aos seus sintomas de pânico, sentiu alívio
e evidenciou melhora clínica significativa a seguir, necessitando medicação concomitante.
Outra paciente, uma mulher de 40 anos, contava que havia sido separada contra sua vontade pela mãe, na adolescência, de um namorado por
quem havia sido apaixonada, mediante a mudança da família para outro
estado. Muitos anos depois, já de volta ao estado, reencontrou-o ao tomar
um ônibus urbano. Nessa época ela já estava casada, com filhos, mas se
sentia mal casada, com um homem pobre, sexualmente desinteressante,
morando com a mãe a quem detestava desde o episódio da separação do
namorado. Por causa desse ódio, não conseguia se desligar da mãe, com
fantasias de que esta iria morrer se isso acontecesse, tendo que controlá-la
de perto, para que suas fantasias assassinas não se realizassem.
Nesse breve encontro, o antigo namorado contou-lhe que estava separado, disponível, e deu mostras de querer revê-la, pedindo seu telefone, o
que foi sentido por ela como um convite claramente sexual, que a deixou
extremamente excitada. Nesse exato instante teve a primeira crise de pânico de sua vida.
Este reencontro, carregado de significados inconscientes, reativou
nela antigas fantasias agressivas e de ódio contra a mãe, a quem culpava
por toda a sua infelicidade, pessoal e conjugal.
A instalação dos sintomas de pânico e agorafobia do dia desse encon-
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
tro em diante impedia-a de sair de casa e andar novamente de ônibus e,
portanto, de reencontrar este ex-namorado. Em seus devaneios gostaria de
fugir com ele, deixar toda sua vida medíocre para trás e reviver o romance
interrompido da adolescência, mas o surgimento dessa idéia na consciência a punha em estado de grande ansiedade, seguida de uma crise de pânico, que a imobilizava.
O pânico, exigindo toda sua atenção, a impedia também de entrar em
contato com o ódio violento que sentia da mãe, obrigando-se a se submeter
a ela para aplacar a culpa, e exigindo a presença constante da mãe como
forma de controle, para ver se ela não morreria, vítima das fantasias
destrutivas da filha. Impossibilitada de acessar e processar psiquicamente
todos esses conteúdos mentais, vivia-os na concretude como sintomas de
pânico e agorafobia. Assim, evitou qualquer novo encontro com esse exnamorado, bem como nunca mais foi capaz de andar de ônibus. Por um
instante todo o precário equilíbrio que havia conquistado para a sua vida
esteve a ponto de ruir; quando fantasiava por instantes fugir com o exnamorado e nunca mais voltar para casa, pensava imediatamente no desgosto que daria à mãe (não ao marido ou aos filhos), e que esta poderia
morrer por causa disso. O pânico, mantendo-a em casa, com medo de sair à
rua, resolveu esse problema às custas, no entanto, de profundas limitações.
A proximidade com a mãe permitia controlá-la, porém assim sentia-se também controlada por ela de forma absoluta, o que aumentava sua raiva e
produzia um círculo vicioso aprisionante, perpetuando os sintomas.
Conclusão
O material clínico acima, embora condensado e incompleto, reflete e
representa inúmeros outros pacientes com histórias similares e que têm sua
vida – no âmbito pessoal, social, profissional – profundamente prejudicada
pelo pânico que sentem, uma sensação de morte iminente acompanhada de
intensa ansiedade que vem quando menos esperam, para a qual não há nenhuma explicação plausível, a não ser a falência iminente de algum órgão
vital, e que deixa uma marca de expectativa ansiosa pela próxima crise.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 43
Marco Aurélio C. Albuquerque
Talvez a psiquiatria tenha lhe dado um nome próprio, porque sabemos que
terrores sem nome costumam ser infinitamente mais assustadores do que
terrores com nome. Estes, de certa forma, ficam relativamente circunscritos e localizados ao serem nomeados, enquanto que os terrores disformes e
inominados das fantasias mais primitivas vagueiam soltos pela mente,
motivo pelo qual necessitam defesas muitas vezes radicais, ou o estabelecimento de rígidas organizações defensivas para dar conta deles.
Acredito que os pacientes que apresentam o sintoma de pânico achamse entre aqueles que, devido a problemas precoces e importantes no relacionamento com seus objetos primários, especialmente a mãe, ficam à
mercê de ansiedades muito primitivas pouco modificadas pela experiência
de continência, ou atenuadas pela existência de um objeto bom e apaziguador introjetado, e por isso constróem poderosas organizações defensivas –
de natureza esquizo-paranóide – ou refúgios psíquicos para lidar com tais
ansiedades, ligadas principalmente à agressividade contra estes objetos,
sentidos como maus e persecutórios.
Nesse sentido, o funcionamento mental de tais pacientes pode ser mais
bem entendido à luz das ansiedades psicóticas do que das ansiedades neuróticas, definindo um nível de gravidade maior do que se pensava anteriormente, quando estes pacientes eram considerados neuróticos comuns. Neuróticos talvez, mas com importantes áreas de funcionamento psicótico, e
esta é uma diferença vital para a compreensão, escolha da abordagem e
prognóstico do tratamento.
O comum às vinhetas clínicas descritas acima, além da gênese do pânico localizar-se no mundo interno, mais especificamente nas suas relações com seus objetos internos, é a nítida ligação existente entre um colapso emocional que mobilizou grande quantidade de ansiedade, ligada a ameaças à integridade física ou emocional dos pacientes, à eclosão logo a seguir de uma crise de pânico, como resultado dessa ruptura das estratégias
defensivas até ali utilizadas. A idéia dos fatores intrapsíquicos na gênese
das crises de pânico não é incongruente nem excludente com o surgimento
de fenômenos orgânicos concomitantes (taquicardia, sudorese, etc.), po-
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
rém a ênfase nas causas psicológicas e não nas biológicas é uma importante diferença entre as visões psiquiátricas e psicanalíticas sobre o fenômeno.
Outro ponto a ser realçado é a importância do papel da agressividade
excessiva na gênese do pânico e o estabelecimento de organizações defensivas patológicas para lidar com ela. As organizações defensivas são basicamente utilizadas nesses casos para manter essa agressividade e o ódio
pelo objeto sob controle. Para isso, utilizam-se mecanismos de defesa tais
como a cisão, a fragmentação e a expulsão, via identificação projetiva, dos
fragmentos identificados com os elementos ruins ou destrutivos
rechaçados. Assim, a integridade do self é preservada, embora às custas de
considerável enfraquecimento do ego e empobrecimento da personalidade.
Porém, quando sobre esse ego enfraquecido e essa personalidade
empobrecida recaem exigências pesadas demais, oriundas da realidade interna ou externa (crises em relacionamentos significativos, perdas, situações de grande estresse emocional, etc.), há um fracasso das organizações
defensivas até então relativamente bem-sucedidas, com o conseqüente retorno avassalador daquilo que era mantido cindido e projetado, processos
estes controlados até então pela organização defensiva funcionante.
Essa ruptura, como conseqüência, deixa o ego à mercê de uma grande
carga de ansiedade em estado bruto, para a qual ele não está aparelhado
para manejar satisfatoriamente, em razão do seu empobrecimento e enfraquecimento pelo uso maciço e continuado das defesas contra essas mesmas
ansiedades. O ego experimenta também esse retorno como uma retaliação
por parte dos objetos, contendo suas partes destrutivas projetadas, como
uma ameaça real de desintegração do self, que explodirá violentamente sob
o ataque desses objetos maus. Esse conjunto de ansiedades é experimentado então na forma de sintomas de pânico, verdadeiros ataques retaliatórios
dos objetos contendo os fragmentos destrutivos anteriormente projetados,
agora identificados com órgãos doentes, pessoas perigosas ou lugares inseguros e violentos, sentidos como ameaças letais à integridade do self como
um todo.
Privado momentaneamente da organização defensiva anteriormente
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Marco Aurélio C. Albuquerque
funcionante, sem possibilidades de conter e processar essa ansiedade
(quantitativamente excessiva, qualitativamente persecutória), impedido de
novas cisões e projeções pelo retorno avassalador do projetado, a saída
encontrada pelo ego, para proteger o que resta da integridade do self, é a
florida sintomatologia da crise de pânico, com sua poderosa descarga emocional e física.
O papel da sexualidade genital, inicialmente tido como a hipótese central para a etiologia do pânico (coito interrompido, falta de prazer sexual
genital), não está ausente, embora não da forma proposta por Freud. Obviamente havia questões sexuais presentes nos casos descritos acima, porém
desempenhavam papel secundário ao da agressividade no desencadear os
sintomas de pânico. Havia em pelo menos dois desses pacientes evidências
de um mau funcionamento na esfera sexual genital, porém como conseqüência de perturbações mais profundas nas relações de objeto, e não como
causa última dos distúrbios mais globais. O funcionamento psicossexual,
se levarmos em conta a evolução da libido como proposta por Freud, revela
que estes pacientes não atingiram etapas mais maduras de funcionamento
sexual, ficando fixados a formas de satisfação libidinal mais regressivas.
Para concluir, penso que são necessárias mais algumas observações
em relação às profundas diferenças nas visões psiquiátricas e psicanalíticas
a respeito do tratamento do pânico, bem como de seu prognóstico. Essas
divergências se devem às diferentes concepções quanto à etiologia, à
nosologia e aos parâmetros de tratamento e melhora utilizados. Numa, o
desaparecimento do sintoma em curto espaço de tempo é considerado critério de boa resposta aos tratamentos preconizados, e um consenso sobre o
transtorno de pânico recomenda inclusive a interrupção dos tratamentos
com referencial analítico ou psicodinâmico, se não houver progresso em
seis a oito semanas (Steiner, 1997). Mais atualmente, tem-se questionado,
a partir de estudos de follow-up, as visões mais otimistas com o uso de
medicamentos e terapia cognitivo-comportamental, mostrando que a melhora dos sintomas não melhora necessariamente a qualidade de vida a longo prazo dos pacientes tratados dessa forma.
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
Enquanto a psiquiatria tem uma idéia bastante otimista quanto ao pânico ser altamente tratável, a visão psicanalítica nos sugere que pacientes
com crises de pânico necessitam de um longo e penoso trabalho psíquico
de elaboração para, no dizer novamente de Danielle Quinodoz, passar da
sensação de vazio ao sentimento de vazio, acompanhado de representações. De completo acordo com essa idéia, acredito que a psicanálise ainda
é a melhor e mais completa ferramenta para a compreensão e o tratamento
do pânico, o que não supõe que seja a única existente ou que não possa
contar com o auxílio da psiquiatria no realizar esta longa e penosa tarefa.
Sinopse
O presente trabalho busca traçar e discutir as origens intrapsíquicas das crises de pânico, sintoma encontrado em pacientes que buscam tratamentos analíticos ou psicoterapias de orientação analítica, seja como motivo de busca do tratamento ou como um evento durante o tratamento. Nele é feita brevemente a diferenciação entre o modelo psiquiátrico sobre o pânico, visto como um transtorno,
e a teoria psicanalítica, com ênfase na abordagem do pânico como sintoma merecedor de investigação analítica. Discutem-se assim as diferentes visões etiológicas,
estratégias de tratamento e prognóstico.
Summary
Panic: Psychoanalytic Aspects
This work wants to trace and discuss the intrapsychic origins of panic crisis,
symptom found in patients of analytic treatment or psychodynamic psychotherapy,
as a cause of seeking treatment or as an event during it. A differentiation is made
about psychiatric model of panic disorder and the psychoanalytical theory, with
its emphasis in the approach of the panic as a symptom. Different etiologic visions,
treatment strategies and prognosis are discussed.
Sinopsis
Pánico: Aspectos Psicoanalíticos
El presente trabajo busca trazar y discutir los orígenes intrapsíquicos de las
crisis de pánico, síntoma encontrado en pacientes que buscan tratamientos analíticos o psicoterapias de orientación analítica, sea como motivo de búsqueda o del
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Palavras-chave
Pânico; Etiologia do pânico.
Key-words
Panic; Etiology of panic.
Palabras-llave
Pánico; Etiologia del pánico.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 47
Marco Aurélio C. Albuquerque
tratamiento o como un evento en su transcurso. En él se hace brevemente la
diferenciación entre el modelo psiquiátrico sobre el pánico, visto como un trastorno,
y la teoría psicoanalítica, con énfasis en el abordaje del pánico como síntoma
merecedor de investigación analítica. Se discute así las diferentes visiones
etiológicas, estrategias de tratamiento y pronóstico.
PÂNICO: ASPECTOS PSICANLÍTICOS
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dr. Marco Aurélio C. Albuquerque
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Introdução
Suad Haddad de
Andrade
Membro Titular da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São
Paulo e da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Ribeirão Preto
(Provisória).
Não só a mãe, também a criança tem que desenvolver uma parcela significativa de esforço para conseguir nascer e continuar vivendo.
Não sabemos com precisão quando
começa essa luta, mas sabemos que
a batalha pela sobrevivência biológica e psíquica só acaba com a própria vida.
No entanto, o que verificamos
na clínica é que nem sempre o esforço é aceito ou vivido com naturalidade; acontece mesmo de nos surpreendermos muitas vezes com o
fato, evidente, de toda uma história
de sofrimentos e infelicidades serem simplesmente decorrentes da
reação do paciente de não poder ou,
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Suad Haddad de Andrade
Figurações
da Inveja –
o Ódio ao
Esforço
FIGURAÇÕES
DA INVEJA
–
O
ÓDIO
AO
ESFORÇO
aparentemente, se negar a empenhar-se quando necessário.
Estou me referindo ao desempenho natural, espontâneo, que nos mobiliza a crescer. Há uma natural vitalidade interna psíquica e uma energia
orgânica sempre nos colocando em movimento, verdadeiro fator de sobrevivência do homem na terra. Estou considerando a resistência a essa
mobilização como uma expressão de ataque aos impulsos naturais e fundamentais para a preservação da vida. É diferente do esforço por obrigação,
do esforço superegóico que não respeita as possibilidades de cada um e
representa um ataque às nossas condições naturais e individuais. A exigência de crescer a todo custo, de “vencer”, de superar o pai em força, capacidade e poder expressa a presença de uma distorção da vivência edípica que
compromete o processo de desenvolvimento.
Estou intitulando ódio ao esforço à dificuldade bem específica de a
pessoa empenhar-se em alguma atividade importante, seja ela física ou psíquica. Tento pesquisar um fenômeno que estou considerando um desvio
perverso, mas num sentido muito restrito. Não falo de estrutura perversa
nem de desordem de caráter perverso; também estou me afastando totalmente do conceito de perversão ligado exclusivamente à sexualidade, no
sentido de desvios da atividade sexual. Fico mais próxima do que se considera hoje defesas perversas, à medida que o ódio ao esforço me parece
ligado diretamente à emergência da inveja e representa uma forma de lidar
com ela. Trata-se de uma negação defensiva de um aspecto da realidade
que pode ocorrer em diferentes personalidades, em diferentes situações,
com maiores ou menores conseqüências para a personalidade como um
todo.
Examino então como os aspectos destrutivos, que se manifestam através da inveja e da idealização, podem contribuir para prejudicar a capacidade de construção do mundo interno e a percepção do mundo externo,
enfocando apenas este sintoma, que é a dificuldade em fazer esforços.
A inveja
Para os kleinianos (1991), as diferentes distorções da realidade são
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Suad Haddad de Andrade
manifestações da pulsão de morte, e a inveja é o representante direto do
instinto de morte. Nada ameaça mais do que a inveja – ela é o grande mal,
à medida que é o mal instalado internamente e acionado, atacando quando
menos se espera. Na inveja, o objeto bom incomoda pelo simples fato de
existir; este é o aspecto paradoxal freqüentemente presente na relação com
o psicanalista; o analista incomoda porque oferece rèverie, porque tem condição de acolhimento. Esta condição preciosa do analista é muito
incomodativa porque é a mais desejada pelo paciente que busca fundamentalmente conter seus próprios conteúdos mentais.
Estamos freqüentemente nos protegendo de sentir inveja; nos defendemos dela quando denegrimos o objeto bom e o destituímos de qualidades para não termos por que invejá-lo. O refúgio no narcisismo é uma solução para não se viver a inveja do objeto bem dotado e necessitado e pode
trazer deformações importantes na percepção da realidade.
A inveja primária é esta que surge na relação com o seio materno.
Segundo Steiner (1997), as perversões narcisistas estariam situadas na
dinâmica da relação dual e diretamente relacionadas à inveja primária. Os
sentimentos de ciúme emergem quando da percepção do pai e dos irmãos e
correspondem à inveja secundária. O reconhecimento da cena primária e o
complexo de Édipo estariam relacionados à inveja secundária – as dificuldades na elaboração da situação edípica são as que levariam às perversões
sexuais. As negações fundamentais, nesta constelação, são as das diferenças entre os sexos e entre as gerações; é quando vão ocorrer as idealizações
do ânus e a criação de um mundo anal em que as diferenças são abolidas.
Steiner fala também das perversões românticas da realidade e do
tempo. Estes grupos de perversões que ele descreve têm a ver com a proposta de Money-Kyrle de destacarmos três situações básicas – fatos da vida
– que são negados ou cujo reconhecimento é, muitas vezes, obstruído. A
negação da realidade das perdas e de nossas limitações humanas (passagem do tempo e certeza da morte) seriam as distorções importantes neste
terceiro tipo de perversão.
Essa demarcação precisa entre as experiências narcisistas na relação
FIGURAÇÕES
DA INVEJA
–
O
ÓDIO
AO
ESFORÇO
com o seio e a situação edípica levando a diferentes tipos de perversões não
parece dar conta dos fenômenos clínicos e, por isso, tem sido ampliada. A
situação triangular precoce, com a presença do pai na fantasia da criança
desde as primeiras experiências com a mãe, torna difícil a distinção precisa
entre os dois primeiros grupos de perversões descritos: narcisista e sexual.
É nesta intersecção, quando predomina a relação com o seio (narcisismo),
mas a presença do pai já se configura como uma interdição ou um perigo
(situação triangular), que eu penso podermos localizar os transtornos perversos, eventuais ou não, a que estou me referindo.
Na situação de desprezo pelo esforço ocorre também a negação das
vicissitudes da condição humana e negação do fato de que não contamos
com recursos que nos protejam de danos e perdas.
O que quero assinalar é que é muito difícil delimitar o fenômeno que
descrevo a um único quadro, já que se trata de uma reação patológica que
emerge em diferentes configurações, como a própria inveja.
A criação do objeto idealizado
A inveja é responsável pela criação de um objeto onipotente, fortemente idealizado (o objeto invejado) que, ao ser reintrojetado, cria, dentro
do self, um tipo de objeto interno com características muito peculiares e
que leva também a comportamentos muito específicos. Falo de pacientes
identificados com um objeto idealizado, que tudo podem conseguir no diaa-dia sem se empenharem; esses pacientes não suportam fazer esforço para
pensar, para alcançar conhecimento ou para conseguir desenvolver qualquer atividade. Tudo tem que ser fácil, espontâneo. Acreditam que não
deveriam passar pelas dificuldades de um grande empenho (como para
emagrecer, por exemplo, no caso de obesos, para deixarem drogas ou bebidas, ou para dominarem um conhecimento novo ou uma nova tarefa. A
própria adição a alimentos, bebidas ou drogas é a expressão da necessidade
de atender ao prazer sem qualquer limite e inclui a crença de que têm direito a tudo). Um grande esforço, uma aplicação de si mesmo numa tarefa é
inaceitável, porque tudo deveria ocorrer com facilidade, naturalidade e ale52
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Suad Haddad de Andrade
gria. E se não conseguem dessa maneira, sentem-se lesados. Só que a desvantagem que sentem não é acompanhada de uma avaliação ponderada, de
uma apreciação válida dos recursos de cada um ; é apenas a afirmação de
uma injustiça que é amparada em sentimentos muito hostis. Na verdade
estão impossibilitados de preservarem a capacidade de reflexão e de percepção da realidade externa e das próprias condições pessoais.
Esses pacientes consideram as pessoas que são bem-sucedidas pessoas privilegiadas, e sempre encontram justificativas para explicar que o
outro foi ou está sendo beneficiado de alguma forma. Esta é uma maneira
de denegrir a capacidade do outro e o trabalho imenso que cada tarefa bem
realizada exige. Se o outro consegue é porque tem facilidades e não porque
se empenha e assume as conseqüências de uma escolha. Não conseguem
ver que, se existe uma opção, deve corresponder a ela uma energia que
possibilitará levar adiante o projetado. No âmbito social, essas pessoas
podem infringir princípios éticos, à medida que fazem escolhas, mas não
se sentem obrigadas a lutar por elas.
É necessário muito esforço para enfrentar as cesuras, os rompimentos;
para tolerar as frustrações, tolerar a não-representação até que ela seja possível; para tolerar o sofrimento sem tentar se evadir para um narcisismo
empobrecedor. É necessário esforço para agredir e se indignar sempre que
isto se faça necessário como forma de preservar valores. É preciso força
para suportar agressões, discordâncias, dúvidas; para suportar a atividade
mental elaborativa e trabalhosa; para alcançar objetivos; para manter um
espírito de luta requer confiança em si e nos objetos externos, incluindo o
dar importância a si próprio e aos outros. Há muito esforço no trabalho de
luto, na elaboração das perdas. Suportar o conflito edípico e desenvolver a
capacidade de aprender da experiência emocional também exigem muito
esforço.
Fazendo força e nos empenhando é que nos tornamos fortes. O esforçado é vigoroso, animado, confiante – é o próprio Ulisses da epopéia grega.
Para estes pacientes que idealizam uma vivência sem empenho vital, o
FIGURAÇÕES
DA INVEJA
–
O
ÓDIO
AO
ESFORÇO
pensar é uma tarefa difícil, pesada, para a qual eles estão despreparados.
Para eles, o pensar fica equacionado a ceder ou enfraquecer, à perda de algo
bom; não é para fortificar, para alcançar uma aquisição. Para eles, os conflitos não deveriam existir. Estes pacientes poderiam ser representados pelo
outro herói grego: Achiles.
Os dois poemas homéricos, Ilíada e Odisséia, são considerados, de
certo modo, antagônicos, no sentido do ideal que eles expressam. A Ilíada
conta as glórias militares da guerra de Tróia; o ideal, neste canto, é a fama.
A Odisséia, o retorno, narra a volta de Ulisses a sua terra. De um lado a
busca da glória eterna, de outro a volta ao lar. O helenista Trajano Vieira
(1999) mostra como Achiles, que preferiu a glória longa e a vida breve,
representa o ideal guerreiro; sua escolha foi viver a vida eterna no panteon
dos heróis mortos pela pátria. Ulisses faz a opção inversa: glória breve e
vida longa; escolhe envelhecer junto aos seus.
Ulisses representa a retomada de consciência, a reeducação em termos
humanos. Lutando contra as intempéries e os diferentes obstáculos infringidos pelos deuses, desenvolve seus recursos práticos, sua inteligência e as
mais variadas habilidades para poder sobreviver. “Curiosidade, versatilidade, mobilidade são alguns dos atributos desse herói avesso à melancolia, que irá simbolizar o pensamento especulativo no Ocidente.” Enquanto
vai amadurecendo sua personalidade, nesse difícil retorno, Ulisses vai tomando consciência de quanto os feitos heróicos da guerra nada mais são
que idealizações. Sua descida ao inferno representa o encontro consigo
próprio – é a demanda da posição depressiva, como nos mostra bem
Rezende (1999). Esse percurso interno é tão penoso e difícil em cada um
como a viagem do herói grego.
Escolher a glória, como Achiles, é escolher a morte: ela representa a
rejeição e a fuga dos sentimentos penosos de perda, ausência e fragilidade.
A satisfação plena traz sempre um bem-estar que exclui a possibilidade de
avanços. A gratificação não exige a mobilização de novos recursos. É a
experiência da falta que nos leva a pensar, recordar, usar da experiência:
“A experiência da falta não é um acidente de percurso, mas ela é
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Suad Haddad de Andrade
constitutiva do ser humano” (REZENDE, 1999). Achiles, intitulado O
Divino, só poderia realizar seus desejos de glória e imortalidade com a
própria morte. Em termos psíquicos, é a morte da capacidade de pensar que
ocorre sempre que a onipotência, a voracidade e a inveja nos afastam do
contato com nossa realidade interna.
A dificuldade em suportar as frustrações leva ao ódio, ao esforço que
é exigido para suportá-las. A mobilização que ocorre sempre que sentimos
uma frustração pode nos levar a buscar soluções – é o pensar, como mostra
Bion (1966). Ou a pessoa se empenha para suportar as frustrações e consegue alcançar novas soluções que se provarão enriquecedoras, ou ela deixa
de fazer o esforço necessário. Estou falando que há uma incapacidade em
fazer esforço por comprometimento ou falta de competência para lidar com
as exigências da vida; trata-se, portanto, de um movimento inconsciente,
ditado pela inveja.
A atuação invejosa acarreta dificuldades de contenção e de elaboração
do pensamento e pode provocar distúrbios na atividade da função alfa de
difícil reversibilidade. O bloqueio na construção da barreira de contato é
uma das conseqüências. A barreira de contato, segundo Bion, “delimita o
ponto de contato e de separação entre os elementos conscientes e inconscientes, e dá origem à distinção entre eles. Da natureza da barreira de
contato depende o intercâmbio de elementos do consciente para o inconsciente e vice versa”.
A possibilidade de fazer conexões mentais, de poder associar livremente, de se deixar levar pela imaginação está ligada à crença de que se
pode sonhar sem medo de se perder nos sonhos; existe a crença de que não
se vai enlouquecer, ou ser lançado no infinito informe e sem limites, de
onde não se pode voltar. Esta capacidade de sonhar e de criar um mundo
interno rico e sempre em movimento é protegida pela barreira de contato;
ela é a garantia de que o inconsciente não vai invadir todo o espaço mental.
A proteção da barreira de contato permite o mundo das fantasias, dos sonhos e da criação imaginativa.
Quando alguém se esforça, está sonhando que vai conseguir alcançar
FIGURAÇÕES
DA INVEJA
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ÓDIO
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seus objetivos; confia em que algo novo vai surgir e luta para realizar seus
sonhos. Na análise temos a experiência viva dessa confiança, presente no
analista e no paciente. A confiança maior é a de ser capaz de suportar as
mudanças catastróficas, sempre muito penosas, mas também essenciais,
sempre um passo a frente no processo de desenvolvimento. Quando não
confio e não me empenho, o que está basicamente abalada é a capacidade
de sonhar. A descrença em si próprio e na importância dos esforços a serem
feitos é substituída pela certeza de que nada valioso se vai conseguir. Passa
a existir, então, uma crença, a crença de que se sabe o que vai ocorrer; sabese do insucesso, sabe-se da desvantagem do empenho, sabe-se, enfim, de
tudo o que virá. Não se vive mais o sonho, vive-se as certezas, senhor que
se torna, agora, das “previsões”. Nesta situação não existe a possibilidade
de se defender da loucura, porque ela já está instalada através desse processo alucinatório de tudo saber, do presente e do futuro.
Por que o empenho é tão difícil?
A necessidade do esforço é prova da existência da fragilidade e dos
limites.
A fantasia de uma condição idealizada de poder e força e, principalmente, de um prazer ininterrupto, que nos protegeria dos sentimentos desagradáveis decorrentes de faltas e frustrações, sempre existe. Se esta criação
fantástica predomina ou é muito forte, pode se transformar em uma maneira de se relacionar com o mundo. Nesses pacientes passa a não existir o
desejo de desenvolver recursos para enfrentarem-se as dificuldades. A tendência inata, que nos leva para a frente, é a busca permanente de conhecimento; esta tendência natural fica estancada, e todos os aspectos que mobilizam vida e criatividade são desconsiderados ou tomam uma conotação
negativa.
A realidade de nossa impotência é ao mesmo tempo aceita e negada,
como já nos mostrava Freud no seu trabalho sobre o fetichismo (1927). Na
distorção infantil, a criança sabe que a mãe não tem pênis, mas cria teorias
para negar isso e com astúcia concilia a sua crença à realidade. Então: ela
56
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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Suad Haddad de Andrade
sabe da verdade, mas faz de conta que não sabe. As perversões seguem
esse modelo; para fugir à culpa e à responsabilidade, o perverso não reconhece o seu ódio e seus ataques e considera o que faz natural. A negação de
sua dependência em relação ao objeto é acompanhada da negação de sua
dependência aos esquemas internos que o mantêm afastado da realidade.
Embora todas as experiências, desde o nascimento, sejam experiências de luta para sobreviver, para se desenvolver, para aprender, existe a
negação dessa obviedade e a afirmação da possibilidade de viver descuidadamente. E a perversão consiste em se ficar provando a superioridade desse esquema sobre o outro, do esquema da fragilidade e inércia sobre o do
empenho que leva para a frente.
Quando Meltzer (1991) descreve a idealização das fezes da mãe pelo
bebê, em que as nádegas e os seios do bebê e da mãe são confundidos um
com o outro, e ambos são equacionados ao seio da mãe, ocorre então uma
idealização do reto: “idealização do reto como fonte de alimento e uma
identificação projetiva delirante com a mãe interna – o que apaga a diferenciação entre criança e adulto no que se refere às capacidades e prerrogativas”. Nas situações que estou descrevendo, a constatação da incapacidade natural da criança em relação aos pais também é negada; o paciente
acredita que pode ter tudo o que ambiciona, pode ter todas as capacidades,
direitos e facilidades.
A percepção do estrago interno decorrente dessa idealização fica afastada da consciência, e só quando, na análise, tentamos ajudar o paciente a
se aproximar desses aspectos nocivos ao seu desenvolvimento é que o caráter violento deste objeto interno pode ser vislumbrado. São as identificações com figuras internas fictícias e fascinantes; identificações com a figura combinada ao mesmo tempo poderosa e ameaçadora. É também uma
forma perversa de lidar com a dependência, sejam as dependências infantis
presentes no adulto, sejam as dependências próprias da condição humana.
O que o ódio ao esforço traz, inevitavelmente, é a falta de firmeza, de
decisão, de entusiasmo, de autoconfiança. Essas pessoas são queixosas,
insatisfeitas e se sentem vítimas do infortúnio. Reclamam da vida, quase
FIGURAÇÕES
DA INVEJA
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sempre de uma forma imprecisa, mas podem ter também uma queixa bemestruturada de um objeto ou de vários.
A criança que aceita ser criança tem alegria com o crescimento; cada
aquisição sua é festejada por ela mesma e exibida aos pais e irmãos. Na sua
satisfação consigo própria ela está invariavelmente expondo também sua
satisfação com seus pais, os propiciadores de recursos e de amparo. Já a
criança invejosa não quer aprender a se cuidar, não quer crescer e fica tiranizando os adultos, que têm que supri-la em tudo. Estas crianças sentem o
crescimento como um prejuízo, uma perda. O ter que se responsabilizar
por si mesmas traz a angústia de não serem capazes, de se descobrirem sem
os recursos necessários para se equipararem aos demais. Uma forma de se
protegerem das frustrações que a percepção das desvantagens traz é o
estancamento; e passam a cobrar eficiência dos outros, principalmente dos
pais, que elas precisam expor ao mundo como maus pais. Na análise, essa
situação é muito comum: o paciente não pode se desenvolver, não pode
superar dificuldades porque isto seria uma prova do bom trabalho analítico. E o analista seria o único a se beneficiar disto!
No adulto, uma forma de fugir ao empenho é o excesso de compromissos; pessoas que têm sempre muitas atividades diferentes e vivem divididas, aceleradas entre as múltiplas tarefas. O não fazer discriminações, o
não ter uma escolha precisa do que querem para si é uma forma de encobrir
sua grande fragilidade e seu medo do confronto. O temor maior é de se
empenharem ao máximo e não conseguirem os melhores resultados, aqueles resultados que os colocariam em destaque.
Outro exemplo é o do paciente que tem que dar solução a tantos problemas antes de chegar à análise que não consegue chegar na hora “Não
tem importância, são só cinco minutos”. Considera-se muito sério, empenhado, mas foge do esforço necessário que é o de lidar com o que realmente importa: o sentir-se sufocado pela análise, para a qual transfere as pressões e as exigências internas. A capacidade de desenvolver recursos para
lidar com seus entraves internos passa a ser vivida como dificuldade para
chegar à análise – então chegar na hora ou “só com cinco minutos de atra58
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Situação clínica
O material que estou transcrevendo para ilustrar estas idéias é de uma
colega, que permitiu, gentilmente, que eu o utilizasse.
A paciente é uma jovem estudante universitária; em virtude dos estudos mora fora de casa, em uma cidade próxima; retorna todos os fins de
semana para a casa dos pais. Na sessão relatada ela traz uma fala queixosa,
quase desesperada . Sente-se perdida, pedindo à analista que encontre uma
solução para suas dificuldades, que são inúmeras: está muito gorda e não
consegue perder peso; o irmão e a mãe reclamam que ela passa o fim de
semana em casa trabalhando no computador e não se preocupa com os
gastos de papel e tinta. Ela alega que sai sempre triste de casa e não tem
como se preocupar com as queixas que fazem dela; na verdade fica muito
decepcionada com o fato de eles não reconhecerem sua tristeza e desamparo.
Sempre traz o namorado para casa nos fins de semana e não entende
por que eles reclamam ou por que se sentem constrangidos com o fato de
ele dormir em seu quarto. Ela precisa de mais dinheiro do pai (que não
mora com a família), e ele tem que entender suas necessidades. A paciente
vai fazendo suas queixas enquanto vai argumentando, muito chorosa, que
não sabe o que fazer. Para cada acusação dos familiares ela reage afirmanSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 59
Suad Haddad de Andrade
so” se torna a solução mágica para suas dificuldades internas. E basta falar
do problema, basta discorrermos sobre isto e tudo estará solucionado: nada
se perdeu, nada mais existe de importante com que se preocupar.
Outra reação comum é aquela que ocorre quando mostramos a dificuldade do paciente em se interessar e se empenhar no trabalho analítico, ao
que ele reage dizendo que sua presença já é prova de interesse. Basta ter
enfrentado o trânsito, estar aplicando tanto dinheiro na análise, chegar no
horário todos os dias já são provas suficientes. Esses esforços são realmente feitos, mas servem mais para impedir do que para buscar a verdade interna, à medida que o cuidar é concreto e diz respeito apenas ao setting externo.
FIGURAÇÕES
DA INVEJA
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ÓDIO
AO
ESFORÇO
do que faz o máximo que pode e que são eles os intolerantes e
incompreensivos.
Ela narra um sonho em que o namorado mostrava que a amava muito
e a paparicava; era muito carinhoso, mas no momento seguinte não queria
mais saber dela; era uma situação horrível.
A analista se sente desconcertada, sem saber o que dizer, e seu desconforto dura toda a sessão. Inicialmente se comove com o choro e a tristeza
da paciente, mas aos poucos vai ficando irritada e acaba tendo uma fala
superegóica, em que cobra da paciente mais maturidade e responsabilidades. Em seguida, a analista percebe a inadequação de sua intervenção e se
sente ainda mais impotente e constrangida.
A paciente termina a sessão triunfante: “Sabe, realmente mudou tudo
de repente, como é possível? Eu pensei agora: minha mãe, meu pai, meu
irmão são como são, têm coisas boas e têm coisas ruins; não são eles que
têm que mudar, sou eu que tenho que aceitá-los como são, nos momentos
bons, nos momentos ruins. Isto tudo veio na minha cabeça. Não foi ruim a
sessão, foi bom”. Com esse final inesperado a analista ficou ainda mais
angustiada.
Era esse o objetivo principal da paciente nessa sessão: tornar a analista incompetente e triunfar sobre ela. Ao provar sua independência em relação à analista e às outras pessoas de seu ambiente, ela realiza seu triunfo
narcísico.
O vínculo se reverte no final da sessão, quando é a paciente que tranqüiliza a analista ao lhe dizer: “não foi ruim a sessão, foi bom”. É a paciente que alimenta a analista, tornada fraca e desamparada. Nesse trabalho de
reversão, a paciente fez bem a sua parte: inundou a analista com suas descargas de queixas e rancores, deixou também para ela o confronto com
seus aspectos críticos e superegóicos. Ficar no relato queixoso das dificuldades transcritas é, na sua versão, o máximo que ela pode ou deve fazer.
Seu final de sessão registra a eficiência de suas manobras e a vantagem e utilidade de não ter que elaborar ou viver suas dificuldades. O confronto com sua realidade interna-externa que a situação analítica poderia
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 61
Suad Haddad de Andrade
propiciar foi anulado; a paciente criou uma situação típica, perversa, em
que ficou protegida de examinar e enfrentar suas deformações. A distorção
que ela faz no final da sessão é característica das soluções “astutas” denunciadas por Freud: “Eles têm coisas boas e ruins; não são eles que têm que
mudar, sou eu que tenho que aceitá-los como são”.
A analista ficou danificada: não pôde fazer a parceria interna frutífera
com seus conhecimentos psicanalíticos e não pôde instrumentar a identificação projetiva. A eficiência do ataque invejoso da paciente visava exatamente a isso: impedir uma relação prazerosa e produtiva da analista com
seus recursos psicanalíticos.
O final da sessão, com a negação e o triunfo da paciente sobre a analista, revela o aspecto sadomasoquista presente nas suas relações, tanto nas
que ela relata na sessão como a relação com seus objetos internos; é o
predomínio da negação e dos aspectos destrutivos e hostis da personalidade. A paciente acha mesmo que os outros têm que cuidar do seu computador, de suas finanças e de seu conforto sexual e material. Ela se sente com
todo o direito de não ser molestada, e de fato não o é; permanece na sua
onipotência e na sua infertilidade. Até mesmo a perda de peso não expressa
uma preocupação com sua incapacidade de emagrecer, mas é, antes, uma
queixa, como se ela fosse vítima da condição de estar gorda.
O sonho da paciente expressa bem sua maneira de se instalar no mundo: o outro é sempre o responsável pelo seu conforto ou desconforto. Na
verdade, o namorado do sonho é a parte dela que ora se mobiliza para
atender suas necessidades, ora se nega a assumir responsabilidades. Não
ocorre à paciente que seu bem-estar depende dela mesma. Permanece, o
mais das vezes, numa passividade hostil que encobre uma intensa atividade interior extremamente destrutiva, da qual ela é a mais importante vítima. Faz “vista grossa”, na expressão de Steiner, à sua realidade interior
pobre e dependente e vive dentro de uma situação circular sadomasoquista,
em que, ao anular a analista, anula também sua possibilidade de desenvolvimento.
Essas situações de triunfo, superioridade e descaso para com o perma-
FIGURAÇÕES
DA INVEJA
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ÓDIO
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ESFORÇO
nente esforço que a sobrevivência psíquica exige mostram a distorção típica das perversões; o desprezo ao crescimento, imperativo inexorável do
instinto de vida, e a valorização da permanência e da inércia próprias do
instinto de morte.
Sinopse
A autora intitula ódio ao esforço à dificuldade de se desenvolver empenho
em atividade importante, seja ela física ou psíquica. Considera essa dificuldade
como uma defesa perversa ligada diretamente à emergência da inveja. Ela acarreta a negação de aspectos da realidade externa e interna. Não é o objeto real que é
invejado, mas o objeto idealizado, dotado de extraordinários recursos e que ao ser
reintrojetado mantém dentro do self um objeto interno com características extremamente onipotentes. Sua principal característica é não ter que fazer qualquer
esforço para conquistar o que deseja: tudo pode e deve ser fácil e tranqüilo. Qualquer esforço é odiado e desprezado. Essa incapacidade de se empenhar acarreta
inevitavelmente falta de firmeza, de decisão, de entusiasmo e de autoconfiança.
São pessoas queixosas e insatisfeitas que se sentem lesadas diante de qualquer
dificuldade.
Summary
Configurations of Envy – the Hate to the Effort
The author defines hate towards the effort as the difficulty of committing to
an important activity, either physical or psychic. She considers this difficulty as a
perverse defense directly linked to the envy emergence. It brings about the denial
of aspects of the external and internal reality. It is not the real object that is envied,
but the idealized object, endowed with extraordinary resources and that, when it
is re-introjected, keeps within the self an internal object with extremely omnipotent
characteristics. Its main characteristic is that no effort is required to conquer what
one desires: everything can and must be easy and peaceful. Any effort is hated and
despised. This incapacity of committing to anything inexorably brings about lack
of self-confidence and enthusiasm, decision, and determination. These people are
plaintive and unsatisfied, feeling injured before any difficulty.
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Figuraciones de la Envidia – el Odio al Esfuerzo
La autora intitula odio al esfuerzo a la dificultad de desarrollarse empeño en
actividad importante, sea ella física o psíquica. Considera esta dificultad como
una defensa perversa relacionada directamente a la emergencia de la envidia. Ella
acarrea la negación de aspectos de la realidad externa e interna. No se envidia al
objeto real y sí al objeto idealizado, dotado de extraordinarios recursos y que al
ser reintroyectado mantiene dentro del self un objeto interno con características
extremadamente omnipotentes. Su principal característica es no tener que hacer
cualquier esfuerzo para conquistar lo que desea: todo puede y debe ser fácil y
tranquilo. Se odia y desprecia cualquier esfuerzo. Esta incapacidad de empeñarse
acarrea inevitablemente falta de firmeza, de decisión, de entusiasmo y de
autoconfianza. Son personas quejosas e insatisfechas que se sienten perjudicadas
delante de cualquier dificultad.
Palavras-chave
Perversão; Inveja; Cisão do ego; Objeto interno; Idealização.
Key-words
Perversion; Envy; Splitting of the ego; Internal object; Idealization.
Palabras-llave
Perversión; Envidia; Clivaje del yo; Objeto interno; Idealización.
Referências
BION, W.R. (1966). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1996.
FREUD, S. (1927). O fetichismo. In: ______. Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 21.
KLEIN, M. (1991). Inveja e gratidão: e outros trabalhos, 1946-1963. Rio de
Janeiro: Imago, 1991.
MELTZER, D. (1991). A masturbação anal e sua relação com a identificação
projetiva. In: SPILLIUS, E. B. Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e
da técnica: artigos predominantemente teóricos. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
v.1.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 63
Suad Haddad de Andrade
Sinopsis
FIGURAÇÕES
DA INVEJA
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O
ÓDIO
AO
ESFORÇO
REZENDE, A.M. (1999). Ser e não ser sob o vértice de O. Taubaté. São Paulo:
Cabral E.U., 1999.
STEINER, J. (1997). Refúgios psíquicos. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
VIEIRA, T. (1999). A identidade de Ulissses. Folha de São Paulo, São Paulo, 25
abr. 1999. Caderno Mais.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dra. Suad Haddad de Andrade
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Antonino Ferro
Membro Titular da Sociedade
Psicanalítica Italiana.
Os conceitos de associações livres e de rêverie podem ser repensados fazendo-se referência a um
modelo da mente inspirado em Bion
(1962, 1963, 1965) e em alguns desenvolvimentos de seu pensamento
(Ferro 1998, 1999a, 2002a, 2002b).
Podemos considerar as associações livres como a forma mais
adequada para entrar em contato
com o pensamento onírico de vigília, sempre operante dentro de cada
mente: por parte do paciente, é a
forma de permitir que “os derivados
narrativos” (Ferro, 1999b; 2001) tenham o menor grau possível de deformação; por parte do analista, é a
maneira de se sintonizar com os derivados narrativos de seu pensa-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 65
Antonino Ferro
Associações
Livres e
Pensamento
Onírico de
Vigília
ASSOCIAÇÕES LIVRES
E
PENSAMENTO ONÍRICO
DE
VIGÍLIA
mento onírico. Considero as rêveries como um daqueles momentos felizes
nos quais há o acesso direto à imagem, sem nenhuma mediação (Ferro,
2000).
Ao longo do meu texto farei referência sempre ao aspecto visual, tanto
no que se refere à seqüência de elementos alfa, quanto ao que se refere aos
seus derivados narrativos, assim como para as rêveries. Mas o mesmo poderia ser dito, levando-se em consideração todos os outros vértices de formação dos elementos alfa: acústicos, olfativos, gustativos, sinestésicos e
táteis (Bion, 1962, Di Benedetto, 2000).
Dentre as várias formas possíveis de nos aproximarmos deste tema,
prefiro propor uma reflexão sobre as contínuas sinalizações que os pacientes nos fornecem para que possamos encontrar o caminho mais adequado
para alcançá-los.
A formulação interpretativa, suas diferentes formas e o grau de
exaustividade não podem derivar do nosso “casamento” com uma teoria
forte de interpretação, e sim de uma capacidade cada vez mais afiada de
captar as respostas, o colorido emocional que o paciente introduz no campo após as nossas intervenções (Nissim Momigliano, 2000).
A “escuta da escuta” (Faimberg, 1996) não deve somente nos fazer
refletir sobre como funcionou a mente do paciente após o nosso “estímulo”
interpretativo, mas também nos fazer refletir sobre como nós funcionamos
e como podemos funcionar “aquele dia, com aquele paciente” para favorecer um número cada vez maior de transformações possíveis.
Este modo de interagir de forma “flexível” com o paciente tem, por
trás, uma teoria forte, que é uma expansão das reflexões de Bion referentes
ao funcionamento onírico da mente também no estado de vigília.
A mesma comunicação de um paciente: “Quando eu era criança, meu
pai nunca me dava a mão, pretendia somente que eu fosse bem na escola e,
se isso não acontecia, eram aulas particulares que não acabavam mais e, às
vezes, tapas” pode ser vista, dependendo do modelo predominante do analista, como uma cena da infância que ajuda a reconstruir o romance familiar, como uma fantasia inconsciente persecutória em relação a um objeto
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
1. A palavra studio, em italiano, tem duplo significado: estudo e consultório. (N. do T.)
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 67
Antonino Ferro
interno frio e prepotente (que na ocasião poderia, também, ser “projetado”
no analista e, desta forma, interpretado) ou então como a descrição pontual
do que está acontecendo na sala de análise naquele momento a partir do
vértice do paciente.
Em uma ótica essencialmente relacional, isto poderia ser explicitamente interpretado como referente ao aqui e agora, o que achataria a cena
analítica, a “esticaria” num plano atual, tornando-a bidimensional, num
eixo horizontal, tirando-lhe a profundidade referente ao eixo vertical da
história (Di Chiara, 2001).
Segundo minha maneira atual de pensar, eu, sem dúvida, consideraria
esta comunicação como atinente ao aqui e agora, e como decorrente do
sonho de vigília que o paciente está fazendo naquele instante relacional
(Ferro, 2001). Mas eu me colocaria uma série de perguntas:
– Como posso intervir, para operar uma transformação, de tal forma
que eu não seja mais visto como um pai pouco afetivo, que olha somente
para os resultados, sem dar uma trégua?
– Como posso modificar minha maneira de interpretar, de me colocar
e, também, o meu eixo interno para que esta transformação comece a se
“dar”?
– De onde provém a percepção que o paciente tem de mim?
Provém da “história” do paciente e pode implicar um “assumir o papel” de minha parte, provém das suas identificações projetivas, provém de
um enactment, provém, de qualquer forma, de uma maneira minha de ser
ou de me colocar com ele.
Isto posto, optarei por uma interpretação que será na aparência
“reconstrutiva” ou centrada “na fantasia inconsciente”, ou “na relação”, ou
então simplesmente “enzimática”, prestando a máxima atenção à “resposta” do paciente que virá em seguida à minha intervenção.
Digamos que eu fale: “Ter perto um pai assim não é certamente algo
que favoreça amar o ‘estudo’1, aliás coloca em um estado de constante
preocupação”. É obvio que eu estou “colocando na mesa” uma interpreta-
ASSOCIAÇÕES LIVRES
E
PENSAMENTO ONÍRICO
DE
VIGÍLIA
ção transferencial: “se eu fico ao seu lado desta forma, com certeza não
facilito o trabalho neste consultório”.
O paciente poderia responder: “Ontem fui a uma exposição de fotografias mas achei que todas as fotografias estavam pouco nítidas”, e eu não
poderia deixar de pensar que na minha interpretação faltou “incisividade”,
e eu deveria, então, me preocupar em ter uma maior “nitidez”.
Se, ao contrário, o paciente dissesse: “Ontem estive na casa da minha
tia, onde come-se muito bem, mas sempre em demasia, e é necessário um
dia inteiro para fazer a digestão”, então eu deveria deduzir que aquela formulação, que do meu ponto de vista era suficientemente leve e não
saturada, para o paciente constituía algo ainda “muito pesado”.
Como alternativa, eu poderia considerar útil – em um momento diferente da análise – uma explicitação “forte” de transferência, do tipo: “Você
me sentiu pouco afetivo, mais interessado nos progressos de sua análise do
que em você mesmo, e que não o deixo em paz até que realize estes progressos”.
Aqui também o paciente poderia ter respondido das mais diferentes
formas, desde: “Mas era bom quando eu percebia que meu pai me entendia”, até: “Vi na televisão uma reportagem de como é feito o foie-gras;
enfiam comida goela abaixo, através de uma espécie de funil, naqueles
coitados dos patos até que o fígado deles fica enorme”.
O que eu quero dizer é que, quando estas sinalizações são acolhidas,
permitem progressivos ajustes.
Naturalmente, desde a primeira formulação do paciente, seriam possíveis dezenas de diferentes intervenções por parte do analista, desde: “Podemos compreender agora uma das raízes da sua inibição ao estudo”, até:
“Bem, certamente hoje você prefere estudar com o colega que nunca o
apressa e respeita seus horários”.
Portanto, infinitos os percursos possíveis e infinitos os “mundos” que
podem se abrir.
Entretanto, por trás de qualquer escolha interpretativa, está subentendido um modelo de fator de cura, “tirar o véu do recalcamento”, “captar o
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 69
Antonino Ferro
ponto de emergência da angústia”, descrever “os fantasmas originários” e,
no meu caso, desenvolver a capacidade de pensar do paciente, no sentido
de desenvolver aqueles instrumentos mentais que servem para produzir
processos de pensamento e de formação de emoções a partir de estímulos
sensoriais de qualquer tipo. Preciso usar um jargão – inspirado em Bion –
que me leva a dizer que o objetivo de uma análise é o desenvolvimento da
função alfa do paciente e, portanto, da capacidade de produzir elementos
alfa; o desenvolvimento de
e, portanto, da possibilidade de tecer pensamentos e emoções; o desenvolvimento da oscilação PS↔D e, portanto,
daquela originalidade criativa e do luto; o desenvolvimento da oscilação
entre capacidade negativa ↔ fato selecionado e, portanto, da espera que
um sentido se realize e da renuncia a todos os outros sentidos possíveis em
favor de um escolhido.
Se retornássemos aos exemplos citados, poderíamos imaginar que a
primeira formulação do paciente: “Quando eu era criança, meu pai nunca
me dava a mão, pretendia somente que eu fosse bem na escola e, se isso
não acontecia, eram aulas particulares que não acabavam mais e, às vezes,
tapas” pode ser pensada como um dos derivados narrativos (Ferro, 2001;
2002a; 2000b) (entre os vários possíveis) de uma seqüência de elementos
alfa que poderíamos imaginar pictografada desta forma:
criança no bosque ---- condenado a trabalhos forçados ---- cachorro espancado.
O importante é considerar que a formação dos pictogramas emocionais é contínua (e forma o pensamento onírico de vigília) e que os “derivados narrativos” podem ser os mais diversos possíveis, com o único requisito de que sejam compatíveis com a seqüência de elementos alfa. Por exemplo, o mesmo “clima” emocional poderia ser trazido por um paciente que
tivesse começado a sessão dizendo: “Ontem vi na televisão aquele filme no
qual havia um terrível capitão de navio que tratava muito mal todos os
marinheiros, infligindo-lhes contínuas punições”; ou então: “Fazer amor
com Martina é extenuante porque não circula nenhum afeto, ela fica toda
tomada em alcançar o próprio prazer e nada mais lhe interessa”.
De tudo isso derivam duas conseqüências, a meu ver, importantes:
ASSOCIAÇÕES LIVRES
E
PENSAMENTO ONÍRICO
DE
VIGÍLIA
que “as associações livres” são, na realidade, “associações obrigadas”, no
sentido que derivam, instante após instante, dos fotogramas visuais (ou
pictogramas emocionais) que a função alfa gera continuamente, dando vida
ao “pensamento onírico da vigília”, e que, por outro lado, são absolutamente livres no que se refere “ao gênero narrativo escolhido”, que pode ir
“pescar” em uma infinidade de gêneros expressivos (filmes, lembranças de
infância, pequenos fatos, diário íntimo, etc.).
Os “gêneros literários” são, portanto, infinitos; obrigatória é a coerência entre cada um deles e a seqüência de elementos alfa do pensamento
onírico da vigília que pode ser expressa através desses diferentes gêneros.
Também o sonho narrado na sessão pode ser – quase paradoxalmente
– considerado como um “derivado narrativo” (uma livre associação obrigada) em relação ao momento no qual o sonho é narrado: isto é, como algo
que dá expressividade ao pensamento onírico de vigília que se formou naquele momento. Merece um aprofundamento a comparação entre seqüências de elementos alfa e o conceito de travail de la figurabilité de C. e S.
Botella (2001), proposto como meio de acesso do analista às “memórias
sem lembrança” e como forma de revelar o “negativo do trauma”, isto é, o
aspecto não representável de todo trauma infantil.
Um analista faz uma interpretação refinada e complexa, o paciente
responde dizendo que lembrou de um sonho: estava na escola, e a professora escrevia fórmulas no quadro-negro desenhando figuras que reproduziam algumas murrine2. Ele não entendia, então queria quebrá-las, cheio de
raiva.
Este sonho é, justamente, algo que permite dar expressão às emoções
do paciente no momento no qual ele o conta, é portanto escolhido como
derivado narrativo da sua seqüência alfa. Valor semelhante teria uma comunicação do tipo: “Ontem ouvi uma televisão árabe, sem entender uma
só palavra”, ou então: “Lembro que, quando era criança, nunca conseguia
entender as explicações do professor e ficava muito bravo”.
2. Murrine – preciosas jóias em cristal fabricadas em Murano (Veneza), com desenhos
policromados. (N. do T.)
70
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 71
Antonino Ferro
Merece uma reflexão também a profunda diferença entre o sonho que
é narrado espontaneamente e aquele que é narrado a pedido do analista
(prática esta com certeza não correta, mas bastante freqüente: o analista,
que em um momento de cansaço, de silêncio, pergunta “Você teve algum
sonho?”).
No primeiro caso, o sonho tem um duplo ou triplo valor, isto é: o valor
de testemunhar uma disponibilidade num nível mais profundo de comunicação; o valor da elaboração que foi realizada no sonho; e o valor de ser,
também, um derivado narrativo do pensamento onírico de vigília daquele
momento e, portanto, permitir uma avaliação, em tomada direta, do campo
emocional atual.
A certa altura de uma sessão (a última da semana), Rossella relata que
recebeu, à noite, um estranho telefonema: alguém que dizia ser um antigo
namorado e que lhe perguntava, também, quanto ela calçava; depois relata
ter tido um sonho: havia alguém para o qual o seu cachorro não latia, e ela,
aliás, continuava dormindo; essa pessoa desmontava a maçaneta de uma
porta-janela e, assim, penetrava na casa; depois ela está deitada com esse
“desconhecido na cama”... Tinha muito medo. O sonho acontece num momento no qual Rossella tinha iniciado a análise, mas “cara a cara”, não
tendo ainda aceitado deitar-se no divã, “porque precisava olhar e permanecer atenta” (pouco valeram as interpretações sobre isto). Próximo ao fim da
semana, ela se encontra perdida pelo novo clima emocional que vive: telefonemas inesperados, um interesse que teme possa ser mórbido (ou é o
príncipe encantando?). Ela não está mais tão vigilante (o cachorro dorme),
alguém desmonta suas defesas, e ela se encontra com uma intimidade não
prevista que a assusta, e com a idéia da cama (analítica) que se aproxima.
Isso tudo descreve tanto a elaboração do “tema” quanto a atualidade
do clima relacional: o sonho é também um derivado narrativo do pensamento onírico de vigília, isto é, em outra linguagem, o sonho é também
uma associação livre em relação ao “pensamento onírico de vigília ao qual
permite dar expressão”.
Na segunda-feira seguinte, ao contrário, nossa conversa é muito difí-
ASSOCIAÇÕES LIVRES
E
PENSAMENTO ONÍRICO
DE
VIGÍLIA
cil, longos silêncios, tentativas minhas de interpretar o longo
distanciamento, sem que Rossella dê ganchos, aliás ostentando somente
modalidades de oposição.
Neste ponto pergunto-lhe – para retomar um diálogo – se teve algum
sonho; é como dizer: “Você quer, ou não, retomar a comunicação comigo?”. Rossella responde que sim e conta: estava se separando do namorado
depois de um certo tempo juntos; entrava em casa e o pai via televisão,
depois saía com a intenção – talvez – de um gesto autodestrutivo, voltava
para casa porque esquecera algo, mas nesse momento a mãe retornava,
indo para a cozinha com as compras e era carinhosa com ela. Acrescenta
que o sonho não lhe traz nada à mente; Eu poderia interpretá-lo pelo menos
em relação a alguns significados que me parecem evidentes (a separação, o
sentimento de desespero experimentado, o reencontro), mas me parece uma
leitura intrusiva e decodificatória, uma operação “fria”, feita sobre o relato
do sonho e não sobre o sonho espontâneo e quente.
Fico aguardando até que Rossella, após ter olhado à sua volta, pergunta: “Foi o senhor que pintou este quarto? Está cheio de borrões, como se
quem o pintou estivesse com pressa”. (Eis aqui a associação “quente” ao
sonho; associação que é, por sua vez, um derivado narrativo do pensamento onírico da vigília.). Pergunto-lhe se achou que eu fui pouco profissional
e atrapalhado, especialmente impaciente, ao ter sido “eu” a lhe perguntar
se havia sonhado, a que responde que sim, e acrescenta que está se lembrando agora de um outro sonho: encontrava uma pessoa que tinha um
cachorro, com a qual falava do próprio cão labrador e das complicações
que tinha tido ao decidir cuidar dele: a cadelinha tinha sido abandonada,
tinha apanhado, fôra maltratada e, portanto, não confiava mais em ninguém, era impossível chegar perto dela. Ela tinha tido muito trabalho para
conseguir trazê-la para casa e fazer com que, aos poucos, pudesse confiar.
Digo-lhe que me lembra a situação do filme “Dança com lobos”, de
todo o tempo e cuidado que o soldado tinha tido para conseguir fazer com
que o lobo, que apareceu perto da sua casa, pudesse ter confiança, até à
cena comovente na qual come a comida que ele lhe oferece, finalmente
72
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
A cadeira de rodas de Stefano: associações livres e rêverie
Com Stefano, um jovem e bem-dotado advogado, um leve atraso de
minha parte em responder ao interfone e em abrir o portãozinho que dá
acesso ao meu consultório leva a uma sessão muito intensa, na qual Stefano
“descobre” os afetos de profunda ternura e preocupação que, quando era
pequeno, sentia pelo seu pai: os mesmos que sentiu no breve, mas significativo, intervalo entre o seu tocar a campainha e o meu abrir a porta. Falamos, no final da sessão, da capacidade de Stefano de se vincular muito às
pessoas, mesmo em breve tempo, como está acontecendo ali comigo. Uma
imagem final é aquela da utilidade de um guindaste no prédio onde está o
meu consultório, e de como pelo menos um elevador seria útil caso alguém
“tivesse uma perna quebrada ou a necessidade de uma cadeira de rodas”.
Mesmo sendo um clima emocional bom, com Stefano emocionado e
descobrindo sentimentos de afeto que sente em relação a mim, a imagem
que se forma em minha mente, em relação à “cadeira de rodas”, é aquela de
Tony Perkins no filme Psycho. Naturalmente só posso manter comigo essa
imagem porque não tenho nenhum gancho narrativo, ainda que seja um
personagem que já surgiu em outras sessões.
Antes da sessão do dia seguinte me pergunto o que fazer com Stefano,
em relação à mudança “lira-euro” e se arredondo o câmbio a meu favor,
visto que já faz um certo tempo que não faço aumento de honorários.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 73
Antonino Ferro
sem medo ou desconfiança.
Rossella prossegue dizendo: “E não é preciso nem dizer quem é a
cadelinha abandonada, maltratada, e que aos poucos está aprendendo a confiar”.
Enquanto o primeiro sonho, “extraído”, remete, sim, ao trabalho
onírico e abre em direção a uma retomada da comunicação, o segundo,
“espontâneo”, testemunha também os novos elementos alfa do pensamento onírico de vigília que estão se formando e cuja produção continua nos
derivados que são a minha “associação-interpretação” e a resposta da paciente.
ASSOCIAÇÕES LIVRES
E
PENSAMENTO ONÍRICO
DE
VIGÍLIA
Na sessão seguinte, Stefano inicia dizendo que dormiu muito pouco,
tendo ficado acordado até tarde: teve que atender, como advogado
criminalista, o jovem que tinha, justamente naquele dia, matado uma prostituta negra por questões de dinheiro; acrescenta que o juiz havia permitido
que voltasse para casa, não havendo nem o risco da fuga nem o de poluição
das provas: era uma pessoa normal, casada há três anos, com um filho, e
que tinha agido em um estado de “embriaguêz patológica”. Stefano alonga-se muito no relato deste “caso” que o deixou pensativo, pelo medo de
que, mais do que machucar alguém, ele pudesse machucar a si mesmo pela
culpa, talvez envolvendo também seus familiares. Imediata é, para mim, a
ligação com a minha rêverie do dia anterior relativa à cena da cadeira de
rodas do filme.
Nesse meio tempo, Stefano acrescenta que, “quando era pequeno, tinha quebrado o braço da professora”, e que uma “análise profunda” do
caso lhe parecia inevitável.
Eu pergunto a mim mesmo como avançar. Não posso com certeza dizer-lhe: “O senhor está me falando de uma parte de si mesmo que...”. Isto
corresponderia àquelas interpretações que Guignard (1999) chamou de
interpretations-buchon, cujo efeito é aquele de saturar o sentido e impedir
outros desenvolvimentos narrativos.
Decido então enfrentar o problema “pelas bordas” e digo: “Estou me
lembrando do livro de Perec, A vida: instruções de uso, no qual, em um
condomínio, moram muitas pessoas diferentes e que, no fundo, somente
em dois dias nós estamos passando do mundo dos afetos mais tenros e
intensos àquele de quem perde a cabeça e mata”.
Stefano responde dizendo que conhece “o livro”. Eu continuo dizendo
que é verdade aquilo que nós dizíamos algum tempo atrás, de que a alma
humana é uma harpa com “n” cordas.
“Sim, e não como aquela dos romanos”, responde, “que tinha somente
duas ou três cordas; a propósito, como se chamava?”. “Lira”, respondo e,
nesse ponto, sinto-me autorizado a prosseguir: “Entre as cordas podemos
encontrar a do afeto e a da ternura em relação a mim, como aconteceu
74
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Na situação analítica, os diversos elementos sobre os quais opera o
pensamento (pensamentos, emoções, fantasias) correspondem a um
“Campo” comum. Como conseqüência disso, a transformação referese contemporaneamente a todos os elementos: quando um se modifica, modifica-se todo o conjunto. Uma imagem que dá conta da
globalidade da transformação com a qual opera o pensamento de grupo é aquela do “berço de barbante”.
A brincadeira do “berço de barbante” é praticada com um barbante
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 75
Antonino Ferro
ontem, mas também a que soa dizendo ‘filho da puta, eu mato você por
tudo aquilo que você me custa’ ” e sentado na “cadeira de rodas, podemos
fazer subir no guindaste Tony Perkins com sua ira”.
“Eu pensava que me conhecia”, diz após um breve silêncio, “mas nunca teria imaginado estas coisas de mim; mas é bom acrescentar também
estas ruas à nossa cidade” (retomando uma metáfora nossa).
Esta última situação clínica permite refletir a respeito de todo o arco
das possibilidades em relação à forma pela qual as mentes do analista e do
paciente podem entrar em contato com o “pensamento onírico de vigília”
do campo: há uma cisão que tende a se recompor. De um lado e de outro
temos os “derivados narrativos” do analista e paciente, e do outro também
a rêverie do analista (que testemunha um contato sem mediações com o
pensamento onírico) e que tem que encontrar um tecido narrativo para poder ser traduzida em palavras e compartilhada. O equivalente da rêverie do
analista poderia ser uma rêverie do paciente (“não sei por que, mas surgiu
na minha mente a imagem de...”) ou, em casos mais raros, a projeção ao
externo de um fotograma do pensamento onírico de vigília, através da formação de um flash visual (“Vejo na parede em frente...”) que testemunharia um adequado funcionamento da função alfa e, ao mesmo tempo, uma
falha da capacidade da contenção das imagens (seria como um primeiro
degrau em relação às possíveis transformações em alucinose). A capacidade narrativa de ambas as mentes encontra uma forma sem cesuras de integrar “narrativamente” a cisão, como no belíssimo exemplo de Neri (2000)
do jogo do “berço de barbante”, que merece ser descrito por extenso:
ASSOCIAÇÕES LIVRES
E
PENSAMENTO ONÍRICO
DE
VIGÍLIA
de aproximadamente cinqüenta centímetros cujas pontas foram amarradas. O primeiro jogador entrelaça o barbante entre os dedos das
duas mãos, compondo uma primeira figuração. O segundo jogador
(geralmente se joga com dois jogadores, mas podem ser também mais
de dois) utiliza o mesmo barbante, recuperando-o do anterior e, segundo a maneira como ele faz isso, trará modificação à figuração que
lhe é passada.
A partir do que foi dito, deriva um conjunto de reflexões a respeito das
associações livres. Estas não seriam assim tão livres como poderia parecer
num primeiro momento. No meu dialeto, portanto, considero as associações livres do paciente como derivados narrativos de seu pensamento
onírico de vigília, com diferentes gradientes de transformações e camuflagem dos mesmos.
Uma jovem e bem dotada analista faz uma interpretação complexa a
uma paciente. Esta “responde” à interpretação dizendo que, na noite anterior, havia pensado em ir a uma pizzaria com os amigos; estes, ao contrário,
haviam insistido para ir a um restaurante de luxo onde, inclusive, serviam
porções que a assustavam; depois tinha ficado desorientada na hora de pagar a conta. Na mesma sessão, em outro momento, a analista recolhe, antes
resumindo aquilo que a paciente havia dito, depois colhendo a emoção
dominante na comunicação e, finalmente, propondo-a na transferência. A
paciente “responde” falando a respeito de um tio que havia chorado ao
voltar para casa após um longo período de ausência. Em outro momento da
sessão, a paciente diz que sente que o namorado só a considera quando ele
“a vê e lhe telefona”. Estes breves trechos de sessão permitem sublinhar o
fato de que é somente o paciente – quando pode ser ouvido – que nos fala
continuamente como devemos falar com ele para alcançá-lo. No primeiro
caso, quando a paciente, após a interpretação do analista – e não foi por
acaso que eu chamei isto de “resposta” – fala de como a sua expectativa de
um alimento simples, compartilhado com os amigos (a pizza), tinha sido
frustrada e de como tinha sentido a interpretação “excessiva” e por demais
complexa, ficando atrapalhada. A interpretação não foi, neste caso, um fa76
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sinopse
O autor, inspirando-se nos conceitos sobre o funcionamento mental postulados por Bion, considera as associações livres como um “derivado narrativo” do
pensamento onírico de vigília e as rêveries como um acesso direto às imagens
deste pensamento onírico. O material clínico é utilizado para colocar em evidência como tais “derivados narrativos” podem ser utilizados pelo analista como sinalizações que continuamente o paciente fornece sobre o próprio funcionamento
mental no interior do campo analítico, sinalizações que permitem ao analista
modular sua atividade interpretativa de forma que esta seja fator de transformação, e não de perseguição.
Summary
Free Association and the Oneiric Thought of Vigil
The author, inspired by the concepts on mental functioning postulated by
Bion, considers the free associations as a “narrative derivative” of the paradoxical
sleep thought in vigil and the reveries as a direct access to the images of this
paradoxical sleep thought. The clinical material is used to evidence how such
“narrative derivatives” can be used by the analyst as signals, which are continuously
provided by the patient, about his own mental functioning in the inside of the
analytical field; signals that allow the analyst modulating his interpretative activity
in order to make it a factor of transformation instead of a persecution one.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 77
Antonino Ferro
tor de crescimento ou de transformação.
No segundo caso, ao contrário, a “resposta” à interpretação exprime o
sentimento de encontrar-se novamente em casa, sendo compreendida e
ouvida. O terceiro exemplo nos fala o que, por enquanto, deve “passar”
através da interpretação, “o ser visto e o ser alcançado”.
Para concluir, creio que o trabalho no cotidiano, através das transformações narrativas (Corrao, 1991) que pela sua própria natureza são instáveis e reversíveis, permite não somente expandir os conteúdos pensáveis
(desenvolvimento de conteúdo), mas enriquece os próprios instrumentos
do pensar (desenvolvimento de continente) e permite também a progressiva evolução das microtransformações do aqui e agora em transformações
estáveis e irreversíveis do mundo interno (transformações dos objetos internos) e na re-escrita da História (romance familiar)
ASSOCIAÇÕES LIVRES
E
PENSAMENTO ONÍRICO
DE
VIGÍLIA
Sinopsis
Asociaciones Libres y Pensamiento Onirico de Vigilia
El autor, inspirándose en los conceptos sobre el funcionamiento mental postulados por Bion, considera las asociaciones libres como un “derivado narrativo”
del pensamiento onírico de vigilia y las reveries como un acceso directo a las
imágenes de este pensamiento onírico.El material clínico se utiliza para colocar
en evidencia cómo tales “derivados narrativos” pueden ser utilizados por el analista como señalizaciones que continuamente el paciente da sobre el propio funcionamiento mental en el interior del campo analítico, señalizaciones que permiten
al analista modular su actividad interpretativa de forma que esta sea factor de
transformación y no de persecución.
Palavras-chave
Pensamento onírico; Sonho; Associação livre; Interpretação; Revêrie.
Key-words
Oneiric thought; Dream; Free associaiton; Interpretation; Revêrie.
Palabras-llave
Pensamiento onirico; Sueño; Asociación libre; Interpretación; Revêrie.
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78
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Marta Petricciani (Membro associado da SBPSP)
Revisão da tradução: Augusta G. Heller
Dr. Antonino Ferro
Via Cardano, 77
27100 – Pavia – Itália
Fone: 390382 – 304190
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 79
Antonino Ferro
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Introdução
O meu objetivo com este trabalho é apresentar a idéia de que o
principal propósito da prática psicanalítica é tratar, i.e., reparar supostas deficiências no funcionamento
das fantasias 1 inconscientes. O
corolário desta idéia é que as fantasias inconscientes constituem nossa
primeira linha de defesa contra o
impacto contínuo do eterno evoluir
de “O” (Bion, 1965, 1970). Como
tal, elas constituem, usando uma
James S. Grotstein
Membro Titular da Associação
Psicanalítica Americana
(APsaA). Membro Titular do
Centro Psicanalítico da
Califórnia (PCC).
1. No original em inglês, o autor preferiu empregar a escrita kleiniana phantasy do que a
clássica fantasy, sendo que a primeira designa
suas raízes no sistema Inc. e a última, no sistema Pcs. e Cs. Chegou-se a essa distinção como
uma convenção durante Controversial
Discussions (King e Steiner, 1992).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 81
James S. Grotstein
Novas
Perspectivas
sobre as
Fantasias
Inconscientes
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
metáfora de Alexander Pope, “a brigada ligeira do inferno” (the light
militia of the lower sky). A fim de explicar essa idéia, passarei por outros
aspectos do funcionamento inconsciente para revelar novas perspectivas
no panorama das fantasias inconscientes.
Parte I: Notas sobre o inconsciente
Os psicanalistas são treinados, tradicionalmente, para “tratar” o ego às
custas das fantasias inconscientes, as quais se acredita serem a fonte de
distorções onipotentes e de leituras mal-interpretadas da realidade. Essa
linha de pensamento retorna ao posicionamento de Freud como um observador, ele mesmo, do sistema Ics. a partir do ponto de vista do sistema Cs.
Espero demonstrar que se obtém uma leitura diferente e contrária quando
se inverte esse processo e se visualiza o sistema Cs. do ponto de vista do
sistema Ics. O corolário dessa hipótese é que a psicopatologia é primordialmente uma patologia do id e só secundariamente uma patologia do ego por
falha. Em outras palavras, desde as formulações de Bion da função alfa
(1962, 1965, 1970), de conteúdo/continente e de “transformações em, de e
desde ‘O’ ”, toda a psicopatologia deve ser considerada originária da nossa
habilidade de, com a ajuda de nossos objetos (primeiro externos e depois
internos), conter e sustentar as evoluções de “O” como emoções toleráveis
de serem sentidas. Bion sugeriu mas nunca explicou claramente que uma
das tarefas da função alfa é a de gerar fantasias inconscientes, i.e., sonhos
sobre “O”, a fim de transformar o registro infinito de “O” em trocas binárias opostas controláveis, tais como “boas” ou “más”, etc., em forma de um
mito pessoal ou de uma fantasia onírica. Ele também sugeriu que a função
alfa pode depender de mitos coletivos para desempenhar sua tarefa de ligar
a ansiedade como resultado da confrontação com as evoluções de “O”
(Bion, 1992).
Vitalismo, Teleologia e Enteléquia
Antes de entrar na discussão deste tema, entretanto, gostaria de preparar o caminho para apresentar algumas visões preliminares sobre o incons82
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 83
James S. Grotstein
ciente, anfitrião e panorama das fantasias inconscientes. Desejo sobrepor
as perspectivas de vitalismo e teleologia, especialmente daquele aspecto
conhecido como enteléquia, à concepção tradicional de inconsciente a fim
de emprestar novas dimensões e perspectivas à nossa compreensão sobre o
tema. O conceito de vida mental inconsciente adquire um brilho
transcendental mais apropriado quando é contemplado sob a óptica do
vitalismo, em vez do cientismo, i.e., impulsos, afetos, etc.
O vitalismo afirma que o inconsciente é uma entidade orgânica, como
“Gaia” é para a Terra, e é uma morada habitada por presenças numinosas,
fantasmas e/ou demônios indivisíveis, que constituem o elenco permanente de uma seqüência dramática e contínua de um repertório, também conhecida como fantasias, que realçam e encenam temas ontológicos dos
“cotidianos” de nossas vidas normais em um verdadeiro “quarto de bagunça” cinematográfico. Neste “quarto de bagunça”, também conhecido como
pré-consciente, uma dessas presenças, a do “editor de filme existencial”,
mistura os exemplos do cotidiano ou os ensaios de nossa existência com
seus correspondentes simétricos do nosso coletivo, assim como com os
bancos de dados históricos – tudo contra a tela de fundo de “O”, o pseudônimo arriscado mas mortal de Bion (1965, 1970) para a Verdade Absoluta
sobre a Realidade Última, as coisas em si, os númenos, as pré-concepções
inatas, as Formas Ideais, o caos, o infinito, os elementos beta, Ananke (Necessidade, ou, como traduzi do grego, “a indiferença da circunstância”), a
divindade – todos convergem para “A Vida – Como Ela É”. A Teleologia
afirma que há um destino inato que o indivíduo se sente predestinado a
cumprir, o qual se torna aparentemente confirmado no nascimento via identificação primária com a mãe (Lichtenstein, 1961). A Enteléquia é a realização desse destino. A vergonha é a consciência de nossa privação disso.
Nós sabemos como a enteléquia inexoravelmente a realiza como crescimento, desenvolvimento e maturação.
Portanto, a teleologia é a fantasia aproximadamente mais constante
sobre o destino, e a enteléquia, a sua realização fantasiada. Nós experimentamos o sentido da enteléquia em nossos objetos internos e em nossas orga-
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
nizações patológicas defensivas à medida que acreditamos que, uma vez
criadas, desenvolvem uma vida (enteléquia) própria, externa à corrente de
progressão do amadurecimento (enteléquia) de nossas vidas.
Fantasia Inconsciente e Lógica Consciente
como um Processo Paralelo e Binocular
Seguindo Bion (1970, 1992), darei a noção de que o sonhar e o fantasiar inconscientes constituem ambos um processo paralelo em relação a
devaneios e a processos cognitivos lógicos. Essa idéia de complementaridade é conseqüência da revisão radical de Bion (1970, 1992) do funcionamento da mente, o qual difere significativamente do de Freud. Freud contempla a eterna existência do conflito entre o id e o ego, enquanto Bion os
imagina como parceiros complementares, embora opostos, a mediar “O”.
Portanto, em vez de visualizar a relação entre Sistemas Ics. e Cs. como
conflituosos e ambos se relacionando exclusivamente entre si, emerge uma
nova perspectiva na qual eles são parceiros opostos e complementares na
interceptação das evoluções de “O” – o último em termos de pensamento
racional e o primeiro em termos de sonhos (diurnos e noturnos), i.e., fantasias ou mitos.
Meu tema principal é que a psicopatologia pode ser pensada como
uma quebra no funcionamento dessa complementaridade, principalmente
devido a uma rigidez no fluxo das fantasias inconscientes, i.e., as fantasias
fracassaram, se tornaram “náufragas” e, portanto, afastaram-se do fluxo da
corrente mítica que flui constantemente. Em outras palavras, elas foram
“feridas em combate” e necessitam de reparo – ou confrontaram-se a uma
esmagadora amostra de “O” (como a trajetória de “O” e de seu emissor, o
instinto da verdade2) e necessitavam fantasiar mais. Uma outra maneira de
expressar essa questão é considerar que a função alfa, geradora de fantasias, estragou e necessita de reparo. Esse reparo é suprido pelo funcionamento auxiliar da função alfa da mãe para o bebê, e do analista para o
2. Bion (1992) postulou a existência do instinto de verdade (truth instinct), que suplanta a importância dos impulsos instintivos de Freud.
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Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Os Dois Inconscientes: Um Consenso sobre
o que Denominamos de “O Inconsciente”
Antes de prosseguir, gostaria de comentar a respeito do que se descreve como “o inconsciente”. Freud (1915b) o define como tendo dois maiores componentes, o Sistema Inconsciente e o Pré-consciente, e como funcionando em dois campos, o inconsciente dinâmico e o não-reprimido.
Todas as especificações de Freud sobre o inconsciente pressupõem a existência de um “mundo interno” para a psique individual. Lacan (1966) fez
no mínimo duas importantes revisões desse conceito: (a) o inconsciente é
constituído como uma linguagem e é sócio-histórico-cultural; i.e., “o bebê
nasce em uma ordem simbólica da linguagem em nome do pai”, e essa
ordem simbólica se torna o seu inconsciente; em outras palavras, um inconsciente que é primeiramente externo ao indivíduo, i.e., socio-históricocultural; (b) o Outro é aquele aspecto prematuramente dissociado do self
desde o nascimento que é, em última instância, indistinguível do objeto
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 85
James S. Grotstein
analisando. Quando o último interpreta as fantasias inconscientes relevantes do primeiro, é como se ele(a) reparasse o funcionamento alfa próprio do
analisando e permitisse um fluxo mais constante da corrente míticafantasmástica interna.
A psicanálise trabalha, paradoxalmente, não pela exposição das fantasias a fim de serem corrigidas vis-à-vis realidade externa de modo a
desacreditá-las, mas para confirmar sua atividade completando-as e/ou
expandindo-as, empregando verbalizações ao imaginário pictórico, nãoverbal – de modo que possam reunir seu destino ao ciclo mítico que produz
a coreografia de seu futuro. A partir desse ponto de vista, a psicanálise é
principalmente, se não exclusivamente, preocupada com o destino das fantasias inconscientes e do funcionamento alfa do ponto de vista de sua coerência interna. Colocado de outro modo, é como se, usando uma metáfora
cinematográfica, uma fantasia inconsciente particular ficasse trancada e
precisasse ser “reeditada”, ou seja, uma função reparadora que a interpretação promove.
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
primário. O Outro é o inconsciente também.
Sandler e Sandler (1984, 1987) propuseram a idéia de um inconsciente passado em contraste a um inconsciente presente, mas, em minha opinião, a sua descrição se aplica somente ao sistema Pcs., uma vez que o
inconsciente exposto por Freud é atemporal. Orange, Atwood e Stolorow
(1997), seguindo Husserl, Lévi-Strauss e Piaget, postulam um “inconsciente pré-reflexivo”, bem como um “inconsciente dinâmico” e um “inconsciente não-validado”.
Lacan (1966) nunca se conformou com o fato de que, quando Freud se
interessou mais pelo ego, o agente da repressão, do que pelo reprimido, ele
tinha tudo, mas abandonou a sua maior descoberta, a do inconsciente reprimido. Tenho a impressão de que o que divide significativamente os psicanalistas kleinianos dos psicólogos de ego, dos psicólogos do self, dos relacionais, dos interpessoais e dos intersubjetivistas é que o inconsciente nãoreprimido caracteriza, principalmente3, o pensamento kleiniano, enquanto
que o inconsciente reprimido ou dinâmico caracteriza os analistas das outras escolas. Colocando de outro modo, o “bebê kleiniano” não é somente o
bebê do passado, mas sim, “o-bebê-de-uma-vez-para-sempre” do presente
eterno, como se fosse um “bebê virtual”. As reconstruções, conseqüentemente, são menos características das análises kleinianas. Como Bion muitas vezes dizia (comunicação pessoal), “o passado é boato e é nãoanalisável”. Aqui posso apenas sugerir o que eu exponho em qualquer outro lugar – que o inconsciente não-reprimido é o inconsciente kantianoplatônico de categorias transcendentais a priori que se modelam à medida
que antecipam nossas experiências iminentes. Além disso, penso que o
inconsciente dinâmico pode ser equiparado ao inconsciente passado de
Sandler e Sandler, e esses, por sua vez, podem ser entendidos sob a égide
do Sistema Pcs., que foi subestimado, mesmo por Freud. Para mim, ele é o
“quarto da bagunça” e busca energia nas duas fronteiras, entre o Sistema
3. Eu digo “principalmente” porque os objetos internos kleinianos, que se formam como resultado
da identificação projetiva e, depois, introjetiva, pertencem, claramente, ao inconsciente dinâmico
(reprimido) porque são produtos da experiência real.
86
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sistemas Cs. e Ics. Quando Vistos “Binocularmente”
Bion (1970, 1992) propôs a noção de visão binocular, com a qual ele
designara o que eu chamei de “caminho de mão dupla” para a percepção e
a concepção de fenômenos (Grotstein, 1978). Aqui está como eu concebo o
funcionamento do seu modelo estereoscópico para o inconsciente: primeiro, reduzamos os impulsos de um status primário para um status intermediário – pois eles medeiam algo mesmo mais profundo do que eles próprios, o instinto da verdade, a que inexoravelmente ambos se lançam à procura de seu encontro com “O”, a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última,
etc. – ao que eu acrescentaria aquele aspecto de “O” que é próprio da
enteléquia, que também inexoravelmente se apresenta como “O”. Eu acredito, em outras palavras, que podemos equiparar a enteléquia com as
intercepções emocionais das evoluções de “O” do indivíduo. O Sistema
Ics. se torna um braço* do julgamento de “O” (e gera fantasias inconscientes tanto para se aproximar de como para disfarçar “O”, enquanto o contém). O Sistema Cs., que idealmente é cooperativo e complementar ao Sistema Ics., estende o outro braço para que entre esses dois braços entrelaçados o sujeito que percebe possa obter uma “leitura” informativa,
tridimensional do objeto. O braço do Sistema Ics. é a emoção, e do Sistema
Cs., os sentimentos – em última análise, as emoções (Damasio, 1999). Os
impulsos medeiam as leituras da emoção no Sistema Pcs. Em outras palavras, “O” (a Verdade Absoluta sobre a Realidade [interna e externa] Última), bem como o inexorável aumento da enteléquia, constitui a fonte máxima de desestabilização dentro do inconsciente. Os sonhos e as fantasias
* O autor usou os termos pincer or caliper-blade e sugeriu que se traduzisse a partir de arm
(N. do T.).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 87
James S. Grotstein
Ics. e o Sistema Cs., respectivamente, aos quais ele se interpõe. Com relutância, renunciarei à discussão de um fascinante e importante tema
corolário ao inconsciente, que é o da repressão primária, que merece um
estudo à parte.
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
inconscientes o interceptam e o processam como a primeira linha de defesa
antes do pensamento racional.
Mas há outro grupo de braços, aquele do conceito de Bion (1965) da
inter-relação dialética entre as posições esquizo-paranóide e a depressiva
(EP↔D). Daquela sugestão de Bion, acredito que EP e D constituem uma
função binária oposta, na qual cada uma colabora com e complementa a
outra ao confrontar as inexoráveis evoluções de “O”.
Vitalismo e o Inconsciente: “Algo é perdido na tradução”
Uma paciente de muitos anos afirmou o seguinte:
“Eu gostaria de me permitir escrever para publicar. Eu posso escrever
muito bem para os outros, para relatórios ou dissertações da escola, escritos técnicos quando trabalhava em um emprego que exigia isso, etc. Eu
tenho muito medo de escrever como eu escrevo para mim mesma e me
sujeitar à possibilidade de críticas daqueles que lerão o que eu escrevo.
Será muito auto-revelador”.
Devido ao fato de que repetidamente nos ocupamos com os sentimentos de vergonha e seu conseqüente medo de auto-revelação, adotei uma
tática diferente dessa vez. Eu disse:
“É como relatar um sonho. O sonho que tu experimentas é maravilhoso, indescritível, inefável. Quando, então, tu tens de contar o sonho para
mim, te sentes frustrada por não poder reproduzir o sonho como ele foi.
Teu senso estético agudo sente-se, então, tão traído, principalmente quando tu transferes essa metáfora à tua escrita, que dizes para ti mesmo, ‘Para
que serve?’ Tu és a crítica invisível que, com vergonha, critica tua falha em
ter feito justiça à tua visão interna”.
A paciente respondeu:
“Exatamente!”
O que estou querendo dizer é que a mente e seu funcionamento são
holísticos e holográficos, i.e., vitalistas, mas, para compreendê-los e discuti-los, somos forçados a “analisá-los”, ou melhor, dividi-los em particularidades lineares reconhecíveis. Portanto, o sistema Cs., à revelia, deve recor88
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
4. Deve-se lembrar que esses fantasmas e demônios podem ser primários e inatos (arquetípicos)
ou reconstruções fantasmáticas de seus modelos atuais da realidade.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 89
James S. Grotstein
rer a técnicas científicas não-vitalistas para demolir e arrasar com a estrutura contínua, vital e bela dos sonhos e das fantasias inconscientes, e
desumanizar os fantasmas, demônios e presenças, retirando-os de seus contextos etéreos para fins de “biópsia”. Ao comentar o trabalho de Julien
Jaynes (1976), The origin of consciousness in the breakdown of the
bicameral mind (A origem da consciência na ruptura da mente bicameral),
Heward Wilkinson (comunicação pessoal, 2000) manifestou uma opinião
que, para mim, se constituiu em uma epifania. Ele disse: “Enquanto Freud
via o inconsciente do ponto de vista da consciência, Klein via o mundo
externo da consciência do ponto de vista do inconsciente”.
Agora, usando o instrumento de visão binocular de Bion (ou meu “caminho de mão dupla”), podemos dizer que cada perspectiva é válida e complementar à outra. Portanto, quando vemos o inconsciente do ponto de vista da consciência, formulamos a hipótese dos “impulsos instintivos” e dos
“objetos internos”, enquanto que, quando vemos os objetos da consciência
a partir do domínio do inconsciente, estamos face a face com “fantasmas”4,
“demônios” (ambos positivos e negativos), “anjos” e com todo um léxico
de “presenças” sobrenaturais numinosas, todas holograficamente incluídas
dentro do abraço-sobreposto aos objetos externos. Ao elenco desses cidadãos internos eu acrescentaria, ainda, outra entidade vitalista, o “sujeito
supra-ordenado do ser”, cujo aspecto inconsciente é o “sujeito inefável do
inconsciente” e que é contraposto ao “sujeito fenomenal da consciência”.
Afetando-os e mediando-os está o “sujeito supra-ordenado do ser”
(Grotstein, 1997, 2000). Eles são complementares e se intercomunicam
através de uma rede mística de continuidade descontínua, como na fita de
Möbius. Em meu trabalho mais recente, propus pseudônimos para o sujeito inefável, tais como “o sonhador que sonha o sonho”, “o sonhador que
entende o sonho”, “o sonhador que torna o sonho compreensível”, “o
geômetra infinito”, “o dramaturga numinoso” e, seguindo Bion (1965,
1970, 1992), “divindade” (imanente, não transcendente) (Grotstein, 2000).
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
Nesse trabalho, também postulo que o que tem sido tradicionalmente chamado de “objetos internos” constitui, realmente, “alienígenas” cindidos –
ou “subjetividades desgarradas”, ocultas como em mimetismo dentro da
camuflagem da imagem do objeto externo – e cada um tingido por sua
própria força vital (enteléquia). Além disso, cada “objeto interno” constitui, ipso facto, a experiência do encontro do sujeito com um continente
falho. Conseqüentemente, cada objeto subjetivo internalizado é composto
de: (a) não só da imagem do objeto per se, e (b) daqueles aspectos do
sujeito que são projetados dentro do (na imagem do) objeto, mas (c) os
resultados da experiência com o objeto como um continente falho da experiência de “O” (a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última, i.e., beta
elementos) do sujeito.
Vitalismo Continuado
Vitalismo é uma escola de pensamento que surgiu com Aristóteles, se
não antes, e foi continuada por Leibniz. Contrapõe-se ao mecanicismo e ao
organicismo e explica a natureza da vida como um resultado da força vital
que é única aos organismos vivos e diferente de todas as outras forças fora
das coisas vivas. Essa força vitalista controla a forma e o desenvolvimento
dos organismos vivos. Acredito que o vitalismo é um modo melhor de lidar
com a subjetividade e a intersubjetividade do que a teoria psicanalítica
mecanicista. O vitalismo defende que existe em todas as coisas vivas um
fator intrínseco – ilusório, inestimável e imensurável – que ativa a vida.
Freud (1913) compreendeu os aspectos vitalistas do mundo interno quando
se referiu às características do animismo nos rituais primitivos. Animismo
e personificação (Klein, 1929) são caracterizados pelos cidadãos que habitam o mundo interno da psique.
Enteléquia
Antes de entrar na discussão sobre enteléquia, citarei um verbete sobre ela da Enciclopédia Britânica:
90
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Enteléquia = “O”
Minha intenção, ao invocar tais conceitos aristotélicos arcanos como
vitalismo, enteléquia e teleologia, é a de empregá-los como instrumentos
para compreender o funcionamento do inconsciente de um outro ângulo.
Freud (1915b) se referiu ao inconsciente como um “caldeirão fervente”,
com o que ele queria dizer o potencial explosivo do id e de seus impulsos
dentro da consciência. Eu afirmaria, agora, que os Sistemas Ics. e Cs. opeSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 91
James S. Grotstein
Um fator que pertence ao vitalismo é conhecido, desde Aristóteles,
como enteléquia, o potencial inerente a todos os sistemas vivos que,
por fim, se submete à realização. De acordo com a famosa definição
de Aristóteles, a alma humana é “a enteléquia de um corpo natural
com seus potenciais dentro dele” (On the Soul, II, 412a, 20). A
enteléquia é considerada uma força inerente diretiva e reguladora no
desenvolvimento e funcionamento de um organismo, a realização de
uma causa que dá forma, em contraste com a existência potencial
(com a qual a orientação do futuro está fortemente associada). Derivada do grego, enteléquia é um tipo particular de motivação para autodeterminação, uma força interna e uma força vital dirigindo a vida e
o crescimento para se tornar tudo que alguém é capaz de ser ... Para
Aristóteles, a enteléquia era, efetivamente, “o fim em si” – o potencial
das coisas vivas de se tornarem elas mesmas, e.g., o que uma semente
tem que faz com que ela se torne uma planta, isto é, realidade, em vez
do que poderia, mais tarde, ser expresso de modo frutífero ... Seguindo
Aristóteles, alguns vêem a parte racional da alma como a que abastece as pessoas com seus mais altos propósitos, isto é, sua enteléquia –
parte racional ativa ... é a mais alta enteléquia, mas existe só como um
potencial em muitas pessoas (p.2).
Outras definições incluem: “Segundo Aristóteles: a realização ou
completa expressão de alguma função; a condição na qual a potencialidade se tornou uma realidade” (Oxford University Dictionary,
Oxford University Press, 1933).
“Enteléquia é também um termo técnico usado por Leibniz para a
força ativa primitiva em cada mônada” (Cambridge Dictionary of
Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge, 1995).
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
ram em oposição dialética um com o outro, diretamente e de modo complementar contra a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última, “O”, como eu
já afirmei. O conteúdo do reprimido não são os impulsos per se, mas emoções não processadas sobre a Verdade da Realidade Última. Além disso,
entretanto, o conteúdo do reprimido pode ser entendido como o inexorável
movimento para frente e para cima da enteléquia vitalista de nosso potencial final – sempre na confrontação contínua com a Circunstância (Realidade Última), a qual eu reúno e igualo a “O”. A “semente” não nos incomoda até que ela esteja estranhamente em seu momento de se tornar uma
“planta”. Essa força vitalista pode ser independente da capacidade inicial
do organismo de permitir essas transições explosivas de fase. Tenho a noção de que é isso que Freud (1915c) queria dizer por realização do desejo,
determinismo psíquico e intencionalidade inconsciente. Desse ponto de
vista, o significado do investimento libidinal (catexia) é a atribuição
ontológica, vitalista da “importância” para o objeto, i.e., que o objeto importa. Também acredito que é isso que o conceito de Bion (1962) de conteúdo-continente significa – que o continente materno deve ser movido a
funcionar como um mediador e um regulador acessório das ondas de crescimento independente do bebê e de suas fases de transição. Quando uma
discrepância muito grande se desenvolve entre a enteléquia do bebê e a
capacidade sentida por ele – e a capacidade do continente de aprovar esse
movimento vital e vitalista – ocorre a mudança catastrófica. O fenômeno
da vergonha, em última análise, reflete nosso veredicto emocional a respeito da discrepância que sentimos entre o que achamos que conseguimos e o
que a nossa enteléquia conseguiu realizar por nós. De um ponto de vista
mais pragmático, uma maneira mais óbvia de compreender a enteléquia
expressa-se pelo fenômeno do crescimento, do desenvolvimento e do amadurecimento normal, podendo, cada um deles, ser entendido como
tropismos inexoráveis em expansão que irrompem do inconsciente.
92
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Quando o bebê nasce e, aproximadamente, até os dois anos, o seu
inconsciente consiste principalmente do inconsciente não-reprimido, uma
vez que a repressão primária (Freud, 1915a), que estabelece a separação
entre o funcionamento do inconsciente não-reprimido e do inconsciente
(dinâmico) reprimido, ainda não se estabeleceu. Durante essa fase precoce,
também, o hemisfério cerebral direito5, que é predominantemente visual,
prevalece (Jaynes, 1976, Schore, 1994; Shlain, 1998). Interpreto o significado do que precede da seguinte maneira: o inconsciente não-reprimido é
visual em seu funcionamento; portanto, sonhos e fantasias são codificados
em imagens visuais. Quando o hemisfério esquerdo auditivo (verbal) se
desenvolve, suprime o funcionamento do hemisfério direito e transforma
as imagens visuais do último em imagens verbais (auditivas), como pensamentos. Por questão de espaço, não entrarei em detalhes sobre essa linha
de pensamento. O que eu quero enfatizar com essa articulação, entretanto,
é a pouca importância que foi dada, até agora, à imagem, tanto visual como
auditiva (verbal), na compreensão dos processos inconscientes. Segal
(1957, 1981) aplica o termo “equação simbólica” à imagem visual que é
usada concretamente, enquanto que a imagem verbal designa a capacidade
do bebê de evocar a imagem do objeto na sua ausência. As fantasias, em
geral, e as fantasias inconscientes, especificamente, incluindo os devaneios e os sonhos noturnos, geralmente são visuais, mas podem envolver outros sentidos também.
As contribuições de Matte-Blanco
As contribuições de Ignacio Matte-Blanco (1975, 1981, 1988), que
era um eminente matemático e psicanalista, alteraram, fundamentalmente,
nossa concepção do inconsciente. Tentarei resumir suas principais idéias.
Matte-Blanco enfatizou, primeiro, a diferença entre o inconsciente não5. O hemisfério cerebral direito é dependente de campo, i.e., é orientado espacial e
contextualmente, enquanto que o hemisfério esquerdo é orientado em direção a detalhes. O último
é a “figura” que se assenta sobre o primeiro enquanto “fundo”.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 93
James S. Grotstein
O Inconsciente e a Lateralização do Hemisfério
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
reprimido e o inconsciente dinâmico, afirmando que o primeiro é o mais
importante. Ele afirmou, então, que os indivíduos, como tais, não existem
no inconsciente, apenas como construções. Depois, formulou a hipótese de
que o que realmente constitui a substância do inconsciente não são tanto os
impulsos, como foi postulado por Freud (que Matte-Blanco relega a uma
categoria inferior), mas sua natureza infinita e sua lógica matemática única. Em outras palavras, o inconsciente consiste de grupos mentais infinitos
e emprega um tipo de lógica que ele denomina de “bi-lógica”. Há dois tipos
de lógica: a lógica bivalente aristotélica (que afirma a operação do meio
excluído6), e a bi-lógica, que agora passarei a definir. Junto ao conceito de
infinito e de grupos infinitos, Matte-Blanco apresenta as idéias de simetria
e de assimetria, sendo que a primeira constitui a vida mental inconsciente,
e a última, a vida mental consciente – com algumas exceções. Consideremos o seguinte: imaginemos duas pilhas de discos arrumados verticalmente. Então, imaginemos que o disco da base esteja programado para caracterizar uma simetria absoluta. Imaginemos, depois, que o disco de cima caracterize uma absoluta assimetria. Podemos, agora, imaginar um desenvolvimento ascendente de relações recíprocas que mudam progressivamente
as propriedades de simetria e de assimetria a cada disco sucessivo. De
modo inverso, quanto mais penetrássemos nas profundezas do inconsciente, mais campos simétricos encontraríamos. Suponhamos, também, que
essa pilha de discos constitua uma estrutura variável, que é caracterizada
pela oposição binária (simetria↔assimetria), mas que está sob o domínio
do Princípio da Simetria. Isso é bi-lógica.
A seguir, imaginemos uma outra pilha vertical similar de discos, com
razões variadas entre simetria e assimetria, mas funcionando sob o domínio do Princípio da Assimetria. Isso é lógica bivalente. As similaridades na
lógica bivalente se tornam idênticas na bi-lógica. O pensamento é um produto da lógica bivalente. As distinções, bem como as comparações lógicas,
6. O conceito de meio excluído poderia ser exemplificado com a seguinte afirmação: “Se um
indivíduo é um homem, então ele não pode ser uma mulher”. Em bi-lógica, um homem pode ser
uma mulher.
94
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Parte II: Notas sobre fantasias inconscientes
Isaacs (1952) explicou a teoria das fantasias de Klein. Afirmou que
elas constituíam as representações mentais dos instintos. Em uma contribuição mais recente, Spillius (2001) esclareceu as diferenças entre Freud e
Klein a respeito da compreensão das fantasias. Ela afirmou:
Na visão de Freud, embora haja fantasias no sistema inconsciente, a
unidade básica do sistema inconsciente não é a fantasia, mas o desejo instintivo inconsciente. A formação do sonho e a formação da fantasia são
processos paralelos; poderíamos falar de ‘trabalho da fantasia’ comparanSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 95
James S. Grotstein
devem ser claramente compreendidas. Em bi-lógica, as comparações se
misturam às semelhanças. Os sonhos empregam as perspectivas simétricas
em relação aos objetos. Qualquer ser humano pode representar um outro
ser humano. Alguma assimetria é necessária, entretanto, para dar textura e
distinção à paisagem e à narrativa do sonho. Os afetos tendem, originalmente, a serem infinitos na sua natureza e devem ser transformados em
representações simbólicas (por continência materna ou analítica), de modo
a se tornarem emoções que possamos tolerar sentir.
A importância do que antecede para o tema global que estou desenvolvendo é que o conteúdo do reprimido que garante repressão é menos os
impulsos do que os afetos, que emergem do infinito e dos grupos infinitos
de emoções sobre grupos infinitos de objetos – uma situação que anuncia o
caos. O “caldeirão fervente” de Freud é uma designação mais relevante
para o domínio da simetria e do infinito de Matte-Blanco do que para os
impulsos. Além disso, é congruente com o conceito de “O” de Bion (1965,
1970).
Se nós confrontarmos a capacidade de formação de imagens do hemisfério cerebral direito com a bi-lógica de Matte-Blanco, com todas as
permutações e combinações concebíveis entre o infinitésimo e o infinito,
entre a primeira, a segunda e a terceira dimensões e as dimensões infinitas,
começaremos a entender a extensão das possibilidades mitopoéticas do inconsciente.
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
do-o ao ‘trabalho do sonho’; ambos envolvem a transformação do conteúdo inconsciente primário, e os sonhos são uma transformação disso. Para
Freud, o principal impulsionador, por assim dizer, é o desejo inconsciente;
os sonhos e as fantasias são, ambos, os seus principais derivativos disfarçados. Para Klein, o principal impulsionador é a fantasia inconsciente.
Klein desenvolveu a sua idéia de fantasia gradualmente, de 1919 em
diante, enfatizando particularmente: os prejuízos da inibição da fantasia no
desenvolvimento da criança; a ubiqüidade das fantasias sobre o corpo da
mãe e seus conteúdos; a variedade de fantasias sobre a cena primária e o
complexo de Édipo; a intensidade de ambas as fantasias, agressivas e amorosas; a combinação de várias fantasias para formar o que ela chamou de
posição depressiva ... a posição esquizo-paranóide viria depois ... Basicamente, penso que Klein via a fantasia inconsciente como sinônimo de pensamento e de sentimento inconscientes, e que ela deve ter preferido o termo
fantasia em vez de pensamento porque os pensamentos de seus pacientes
infantis eram mais imaginativos e menos racionais do que se espera que
seja o pensamento do adulto (p.364).
A partir do relato de Spillius pareceria que Klein concedera um papel
mais central às fantasias inconscientes, acreditando que as mesmas constituíam o pensamento inconsciente. Além disso, ela acreditava que todos os
relacionamentos e comunicações fundamentais entre self e self (internamente) e self e os outros (interna e externamente) são conduzidos por fantasias inconscientes – e que mesmo todos os mecanismos de defesa são, em
si, fantasias aproximadamente mais constantes (concretizadas), sejam eles
os mecanismos esquizóides (cisão, identificação projetiva, idealização e
negação mágica onipotente) ou as defesas maníacas (triunfo, desprezo e
controle) e as defesas obsessivas – mesmo a repressão.
As Camadas Arquitetônicas da Fantasia
Há três camadas na vida de fantasia. A mais profunda é aquela da
corrente mítica contínua dentro de nós, um arquétipo, que Jung (1934) denominou de inconsciente coletivo. Lá, sobrevivemos às limitações que os
96
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Parte III: “O Estranho Dentro de Vós”
Os Fantasmas do Inconsciente
Em 1759, em seu trabalho Conjectures on Original Composition,
Edward Young deu este conselho aos autores iniciantes:
“Nós não somos ignorantes apenas a respeito das dimensões da mente
humana em geral, mas até mesmo da nossa própria ... Portanto,
penetrai profundamente em vosso peito; conhecei-vos ... aprendei sobre a profundidade, a extensão, a tendência e a força total da vossa
mente; estabelecei uma plena intimidade com o Estranho dentro de
vós”.
[Citado em Cox (1980). “The Stranger Within Thee”: Concepts of the
Self in Late Eighteen-Century Literature. Pittsburgh, PA: University
of Pittsburgh Press, p.3].
Durante os séculos XVIII e XIX, os romancistas e os psiquiatras expressaram um grande interesse a respeito do misterioso duplo, o
Doppelgänger, o alter ego, o second self, que foi considerado como sendo
o nosso self mais demoníaco e/ou sobrenatural. O Duplo, de Dostoievski,
O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, e Dr. Frankenstein e
Seu Monstro, de Mary Shelley, são apenas alguns de muitos exemplos. Ao
mesmo tempo, os psiquiatras que estudavam a histeria descobriram o fator
da dissociação que caracterizou essa entidade. Breuer e Freud (1893-1895),
em sua monumental monografia sobre o sujeito, incluíram a “dupla consSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 97
James S. Grotstein
mitos colocam sobre nós, e.g., “Gênese”, “A Torre de Babel”, o “Complexo de Édipo”, e outros. São arquetípicos no sentido platônico e categorias a
priori no sentido kantiano. Bion (1992) os visualiza como conjunções
constantes. O segundo nível é aquele da fantasia inconsciente pessoal, que
é construída em si mesma como uma narrativa autolimitada em seu próprio
sentido mítico pessoal. É o diálogo contínuo dos objetos parciais. O terceiro nível da fantasia é aquele de nossa percepção e experiência dos objetos
reais que se tornaram sujeitos por direito próprio.
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
ciência” como uma característica constante das histéricas. Mais tarde, depois de formular os princípios originais da psicanálise, Freud formulou a
teoria topográfica na qual fez uma rotação no eixo dos dois sistemas paralelos de consciência, do vertical para o horizontal, colocando o Sistema Cs.
em cima do Sistema Ics., com o Sistema Pcs. interposto. Depois, quando
ele formulou a teoria estrutural (Freud, 1923), concebeu o id, o ego e o
superego, e o conceito de alter ego ou segundo self como um sujeito por
conta própria ficou completamente perdido na onda do positivismo
mecanicista analítico. Devemos a Lacan, à pesquisa da lateralidade
hemisférica cerebral e à intersubjetividade o declínio dessa onda positivista
em favor de uma concepção mais numinosa, animista e vitalista dos cidadãos do inconsciente.
Podemos também imaginar os habitantes do inconsciente, como afirmei acima, como sendo arquetípicos tanto no sentido platônico como no
sentido junguiano. Cada objeto externo que encontramos, particularmente
a mãe e o pai, não são meramente pessoas por si só que por acaso são
nossos pais. Eles são os “titulares” atuais das funções arquetípicas (Formas
Eternas ou Ideais) apresentadas desde o início dos tempos. As
preconcepções básicas de Platão e os númenos de Kant e/ou as coisas-emsi-mesmas (Bion, 1962) antecipam o seu aparecimento e os designam como
seus complementos fenomenológicos na experiência atualizada/realizada.
Eu já havia aludido a outras presenças ou inteligências no inconsciente, o “sujeito inefável do inconsciente”, que é também o “sonhador que
sonha o sonho”, o “sonhador que entende o sonho” e o “dramaturgo”, mas
esses são apenas alguns dos inúmeros papéis que essa entidade numinosa
desempenha.
O Inconsciente como o “Retrato do Artista”
Llinás (2001), um cientista neurocognitivista, afirmou, com efeito,
que os processos conhecidos como introjeção ou incorporação são
factícios. Ele teoriza que, quando encontramos objetos no mundo externo,
nós não os “colocamos para dentro”. Nós os recriamos de modo imaginário
98
Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
“O Pigmento da Imaginação”
Gostaria de dizer algo mais sobre “o pigmento da imaginação”. Primeiro, permitam-me reintroduzir a teoria de Platão das “Formas Eternas”,
que pode ser entendida como os protótipos para todos os objetos fenomenais, vivos e não-vivos. Então, consideremos o processo de metátese, que
pode ser entendido como uma série de transformações dialéticas
desconstrutivas↔construtivas. Consideremos uma solução química que
contenha HCl (ácido clorídrico) e NaOH (hidróxido de sódio). Suponhamos, então, a decomposição do HCl em H+ e Cl-, e NaOH em Na+ e OH-.
A seguir, imaginemos uma recombinação entre H+ e OH– para criar HOH
ou H2O (água), e uma recombinação entre Na+ e Cl para criar NaCl (sal).
Esse processo de metátese de decompor Formas Ideais e de uma
recombinação imaginativa é apenas um aspecto de como eu imagino que
os processos criativos de sonhar e de fantasiar acontecem no inconsciente.
Parte IV: “Papai, me conta uma história”:
A Psicanálise como “Reparadora de Sonhos”
Estamos agora na época de Harry Potter e o senhor dos anéis e não
precisamos nos perguntar porque essas fantasmagorias maravilhosamente
criadas estão desfrutando de uma aclamação e de uma popularidade sem
iguais. Aqueles de nós que são pais conhecem bem o eterno apelo das crianças que suplicam: “Papai (ou Mamãe), me conta uma história”. Histórias,
lendas, contos de fadas, fábulas, parábolas e mitos são todos versões de
sonhos ou fantasias. Todos eles são narrativas que dão um significado linear (hemisfério esquerdo) aos extravasamentos não-lineares, caóticos do
inconsciente (hemisfério direito). Mais especificamente, se empregarmos
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 99
James S. Grotstein
a partir do barro cru de nossa própria substância interna. Portanto, o inconsciente é um “retrato do artista” que usa os pigmentos da imaginação e
as formas numinosas pré-figuradas, de modo arquetípico, para construir
imagens que finalmente são modelados pela percepção da experiência com
modelos vivos.
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
a minha versão do modelo binocular de Bion, como aludi anteriormente,
podemos propor a seguinte imagem: já mencionei a idéia de braços dos
Sistemas Ics. e Cs. e de P-EP↔D que emocionalmente interceptam a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última, i.e., elementos beta (devido ao
funcionamento do instinto da verdade).
Se pudermos também presumir que o Sistema Ics. e a P-EP funcionam
para estabelecer uma barreira de fantasia inconsciente ou de mito para refrear e, então, miticamente, transformar os beta elementos de “O”, e o outro procura dar uma versão mais realista da Verdade, seguindo a
fantasmalização (mitificação) inicial da Verdade, nós obteremos, então, um
modelo para a importância das histórias para o bem-estar do inconsciente e
para o bem-estar do indivíduo. Histórias, fantasias ou sonhos são a primeira linha de defesa (“a brigada ligeira do inferno”) contra sermos dominados. Devemos, em primeiro lugar, ser capazes de falsificar (alterar) ou atenuar a Verdade a fim de tolerá-la, e, a seguir, devemos personalizá-la como
nossa própria experiência subjetiva que (re-)criamos dentro de nós mesmos a fim de conceder nosso sentido de ação (Grotstein, 2000), após o que,
graças à objetividade oferecida pela posição depressiva, podemos objetivar
sua Alteridade (Otherness).
Permitam-me reafirmar o que eu recém-expliquei de um outro ângulo.
Tradicionalmente, quando os psicanalistas interpretam fantasias inconscientes aos analisandos, o ponto de vista predominante tem sido sempre
aquele da realidade factual externa, ex., “Quando tu estavas na sala de espera e me ouviste ao telefone, tu pensaste que eu estava falando com a
minha amante” (na fantasia7) – sugerindo que, na realidade, eu não estava.
Em outras palavras, as fantasias eram entendidas como as principais causas da patologia, e um desmascaramento das mesmas constituía a cura, i.e.,
através de uma restituição segura da realidade.
Acredito que, embora aquela premissa possa ser válida, exista uma
outra maneira, oposta, de compreender o papel das fantasias. Eu as conce7. Aqui, no original em inglês, o autor escreveu (é a única vez) fantasy com “f”, em vez de com
“ph”, porque está sendo usado em sentido consciente ou pré-consciente, e não inconsciente.
100 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 101
James S. Grotstein
bo como a primeira linha de defesa contra a evolução dos elementos beta
(proto-experiências não-mentais não processadas, “O”). As fantasias capturam o seu impacto, mitificando-os e convertendo-os em narrativas pessoais que flutuam e cascateiam na correnteza mítica do inconsciente. Interpretando fantasias, estamos confirmando a sua importância e a sua verdade
interna – como uma preparação para o processo seguinte, aquele de permitir aos mecanismos da posição depressiva transformar fantasias em afirmações da realidade objetiva. Portanto, uma interpretação de uma fantasia
inconsciente (hemisfério esquerdo) completa verbalmente e, por conseguinte, confirma a fantasia, levando em conta uma transformação da imagem sensual em abstração verbal. Em outras palavras, deve haver um alinhamento entre a fantasia inconsciente e seu descendente consciente, o
pensamento. Além disso, quando Shakespeare disse “O sono tece a manga
desfiada do cuidado” (Sleep knits up the raveled sleeve of care), ele bem
poderia ter dito “os sonhos e/ou as fantasias tecem a manga desfiada do
cuidado” – em preparação para um processo emocional e uma digestão
mental que felizmente culminará no pensamento abstrato ou em transformações ocultas pelo “serviço silencioso” do mundo interno.
O que eu disse acima, provavelmente, é bem conhecido de bebês e
crianças em termos de sua preocupação com contos de fadas e fábulas –
que eles precisam que os pais repitam várias vezes. Sonhos, fábulas, lendas, mitos e/ou fantasias são a linguagem primordial perdida do imaginário
que dominou a vida pré-verbal dos bebês. Eles carregaram as lágrimas da
dor e do cuidado e preservaram a inocência do bebê. Subseqüentemente,
submergiram e cederam ao domínio das palavras, mas podem ainda ser
localizados no mundo inferior de nosso ser como nosso “serviço silencioso”, imagisticamente tocando nossas feridas e ficando à disposição de todos os nossos ritos de passagem e de nossos erros nas mãos da circunstância.
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
Conclusão
Os Sistemas Cs. e Ics. não funcionam em conflito, mas de modo complementar como oposições binárias. O Sistema Ics. tem dois maiores componentes, o Ics. não-reprimido e o Ics. reprimido ou dinâmico, sendo o
primeiro o Ics. platônico inato, e o último, o domínio das memórias reprimidas das experiências reais. O autor postula que o último é o depósito do
processamento mental via sonhos e fantasias que se originam das atividades do primeiro. Os Sistemas Ics. e Cs. funcionam como braços opostos e
cooperativos para interceptar “O” (a Verdade Absoluta sobre a Realidade
Última). A formação da fantasia inconsciente, i.e., o funcionamento da função alfa constitui o pensamento inconsciente. Os “atores” que desempenham as fantasias inconscientes são fantasmas ou demônios diversificados
(ambos positivos e negativos) que representam um papel dramático esperando que, enquanto isso, alguém esteja lá para interpretar a sua pantomima, de modo que eles possam, como a esfinge em Oedipus Rex, ficar livres
e retornar ao repertório. A interpretação psicanalítica da fantasia inconsciente os confirma e os completa, portanto, não desacreditando-os meramente. Sonhos e fantasias inconscientes são o nosso “serviço silencioso”.
Sinopse
O autor propõe novas perspectivas sobre as fantasias inconscientes. Procura
demonstrar que os Sistemas Cs. e Ics. não funcionam em conflito, mas de modo
complementar como oposições binárias. O Sistema Ics. tem dois maiores componentes, o Ics. não reprimido e o Ics. reprimido ou dinâmico, sendo o primeiro o
Ics. platônico inato, e o último, o domínio das memórias reprimidas das experiências reais. O autor postula que o último é o depósito do processamento mental via
sonhos e fantasias que se originam das atividades do primeiro. Os Sistemas Ics. e
Cs. funcionam como braços opostos e cooperativos para interceptar “O” (a Verdade Absoluta sobre a Realidade Última). A formação da fantasia inconsciente, i.e.,
o funcionamento da função alfa, constitui o pensamento inconsciente. Os “atores” que desempenham as fantasias inconscientes são fantasmas ou demônios
diversificados (ambos positivos e negativos) que representam um papel dramático esperando que, enquanto isso, alguém esteja lá para interpretar a sua pantomima, de modo que eles possam, como a esfinge em Oedipus Rex, ficar livres e
102 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Summary
Some New Perspectives on Unsconscious Phantasies
The author proposes some new perspectives on unconscious phantasies. He
tries to demonstrate that Systems Cs. and Ucs. do not function conflictually but
rather complementarily as binary oppositions. System Ucs. has two major
components, the unrepressed Ucs. and the dynamic or repressed Ucs., the former
of which is the inherent platonic Ucs. and the latter of which is the domain of
repressed memories of actual experiences. The author postulates that the latter is
the storehouse for mental processing via dreams and phantasies that originate
from the activities of the former. Systems Ucs. and Cs. function as cooperative
oppositional pincers to intercept “O” (the Absolute Truth about Ultimate Reality).
Unconscious phantasy formation, i.e., the workings of alpha functioning,
constitutes unconscious thinking. The “actors’ who enact unconscious phantasies
are variegated phantoms or demons (both positive and negative) who perform a
dramatic role hoping all the while that someone is there who can interpret their
pantomime so that they can, like the sphinx in Oedipus Rex, be released and return
to repertory. Psychoanalytic interpretation of unconscious phantasy confirms and
completes them, not merely discrediting them. Dreams and unconscious phantasies
are our “silent service”.
Sinopsis
Nuevas Perspectivas sobre Fantasías Inconscientes
El autor propone nuevas perspectivas sobre las fantasías inconscientes. Procura demostrar que los Sistemas Cs. e Ics. no funcionan en conflicto, pero de
modo complementar como oposiciones binarias. El Sistema Ics. tiene dos mayores
componentes, el Ics. no reprimido y el Ics. reprimido o dinámico, donde el primer
Ics. es platónico inherente y el último, el dominio de las memorias reprimidas de
las experiencias reales. El autor postula que el último es el depósito del
procesamiento mental vía sueños y fantasías que se originan de las actividades
del primero. Los Sistemas Ics. y Cs. funcionan como pinzas opuestas y cooperativas para interceptar “O” (la Verdad Absoluta sobre la Realidad Última). La formación de la fantasía inconsciente, o sea, el funcionamiento de la función alfa,
constituye el pensamiento inconsciente. Los “actores” que desempeñan las fantaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 103
James S. Grotstein
retornar ao repertório. A interpretação psicanalítica da fantasia inconsciente os
confirma e os completa, portanto, não desacreditando-os meramente. Sonhos e
fantasias inconscientes são o nosso “serviço silencioso”.
NOVAS PERSPECTIVAS
SOBRE AS
FANTASIAS INCONSCIENTES
sías inconscientes son fantasmas o demonios diversificados (ambos, positivos y
negativos) que representan un papel dramático esperando que, mientras tanto,
alguien esté allá para interpretar su pantomima, de modo que ellos puedan, como
la esfinge en Oedipus Rex, ser libertados y retornar al repertorio. La interpretación
psicoanalítica de la fantasía inconsciente los confirma y los completa, por lo tanto, no desacreditándolos meramente. Sueños y fantasías inconscientes son nuestro
“servicio silencioso”.
Palavras-chave
Fantasia inconsciente; Função alfa; Inconsciente; Evoluções de “O”; Sonho.
Key-words
Unsconscious phantasy; Alpha-function; Unconscious; Evolutions of “O”;
Dream.
Palabras-llave
Fantasia inconsciente; Función alfa; Inconsciente; Evoluciónes del “O”;
Sueño.
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Trabalho originalmente apresentado no painel “Unsconscious Process
& Fantasy: The Other Within & Without” para “Relational Analysts at Work:
Sense and Sensibility”, conferência em memória de Stephen A. Mitchell,
New York, NY, 20 de janeiro de 2002 (Revisado em 30 de abril de 2002).
Tradução: Silvia Stifelman Katz
Dr. James S. Grotstein
522 Dalehurst Avenue
Los Angeles, CA 90024-2516 USA
Fone: 1-310-276-3456
Fax: 1-310-474-8075
E-mail: [email protected]
106 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
1. Introdução
Luis Kancyper
Membro Titular da Associação
Psicanalítica Argentina.
Não é correto o apotegma:
simplex sigillum veri (A simplicidade é o selo da verdade). A adolescência requer uma explicação teórico-clínica de maior complexidade.
Nela se contrapõem múltiplos jogos
de forças dentro de um campo dinâmico: os movimentos paradoxais do
narcisismo nas dimensões intra e
intersubjetiva e as relações de domínio entre pais e filhos, e entre irmãos. O que caracteriza a adolescência é o encontro do objeto
genital exogâmico, a eleição
vocacional, independente dos mandatos parentais, e a recomposição
dos vínculos sociais e econômicos.
O que particulariza metapsicologi-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 107
Luis Kancyper
O Processo
Psicanalítico na
Adolescência:
Metapsicologia
e Clínica
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
camente esse período é que representa a etapa da ressignificação retroativa
por excelência (KANCYPER, 1992b).
A instrumentação do conceito do a posteriori possibilita efetuar fecundas considerações clínicas. Nesse sentido, o período da adolescência
seria, ao mesmo tempo, um ponto de chegada e um ponto de partida fundamentais.
Como ponto de chegada, podemos inferir retroativamente as inscrições e traumas que, em tempo anterior, permaneceram adormecidos em
forma caótica e latente e adquirem, recém nesse período, significação e
efeitos patogênicos. Por isso mantenho que “aquilo que se silencia na infância pode manifestar-se aos gritos durante a adolescência”
(KANCYPER, 1997).
Como ponto de partida, é o tempo que possibilita a abertura de novas
significações e conquistas, dando origem a imprevisíveis aquisições.
Nessa fase, por um lado, ressignificam-se as situações de traumas anteriores, e, por outro, desenvolve-se uma modificação estrutural em todas
as instâncias do aparelho anímico com o reordenamento identificatório no
ego, no superego, no ideal de ego e no ego ideal. Com a elaboração de
intensas angústias pelas quais necessariamente deverá tramitar o adolescente, seus pais e irmãos, possibilita-se o desdobramento de um processo
fundamental para ascender à formação da identidade: a confrontação geracional e fraterna (KANCYPER, 1997). Essa requer, como precondição, a
admissão da alteridade1, do reconhecimento de si mesmo e da semelhança,
tanto nos progenitores como no filho e entre os irmãos. Cada um desses
integrantes necessita atravessar inevitáveis e variados lutos nas dimensões
narcisista, edípica e fraterna.
Essas trocas de objeto originam elevadas tensões caóticas e
desprazerosas devido à simultânea ressignificação da história infantil no
adolescente e dos capítulos congelados e reanimados do passado infantil e
adolescente em seus irmãos e progenitores.
1. Natureza ou condição do que é outro, do que é distinto, que marca a diferença. (N. do T.)
108 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
2. O processo analítico: metapsicologia e clínica
Dentro do vasto leque que esse tema evoca, centrarei esse estudo especificamente nos indicadores clínicos e nos fundamentos
metapsicológicos que orientam sobre a existência de um processo ou de
um não-processo na psicanálise com adolescentes.
A mola propulsora do processo analítico se define como uma repetição transferencial cuja interpretação permite uma rememoração do reprimido e escindido, e sua eventual elaboração. Também ocorre uma
alternância de momentos de processo e de não-processo, como um trabalho de recuperação de obstáculos que determina seu fracasso ou seu êxito.
O não-processo analítico é quando o processo tropeça ou se detém,
sendo essas manifestações mais complexas de descobrir. Indicadores positivos são utilizados para dissimular a existência de um processo que, na
realidade, permanece estereotipado mas se disfarça de movimento.
O processo analítico aponta para uma mudança estrutural do adolescente, para a reestruturação da personalidade por meio da elaboração. Essa
elaboração representa o essencial do processo analítico. Confere ao tratamento seu selo distintivo.
Ainda que o método psicanalítico reconheça como objeto fundamental “o fazer consciente o inconsciente”, esse, em realidade, é o ponto de
partida. Convém não confundir esse começo com a análise toda. A mola
propulsora e o andar do processo de análise ocorrem pelo trabalho de elaboração, pela Durcharbeiten. Freud o considera como o principal fator da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 109
Luis Kancyper
Neste trabalho desenvolverei os seguintes temas, que serão ilustrados
através de um caso clínico:
– O processo psicanalítico: metapsicologia e clínica;
– As auto-imagens narcisistas;
– Os complexos de Édipo e fraterno;
– O filho-progenitor e o irmão-progenitor;
– O reordenamento de identificações e a confrontação geracional.
Esses temas serão ilustrados através de um caso clínico.
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
eficácia terapêutica (Recordar, repetir e elaborar, 1914).
Laplanche e Pontalis definem a elaboração como: “processo em virtude do qual o analisando integra uma interpretação e supera as resistências
que essa suscita. Trata-se de uma espécie de trabalho psíquico que permite
ao sujeito aceitar certos elementos e livrar-se do domínio da insistência dos
mecanismos repetitivos” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1971).
A necessidade da reelaboração baseia-se em poder vencer a força da
compulsão à repetição e a força de atração que exercem os protótipos inconscientes sobre o processo pulsional reprimido. Perguntamo-nos se parte da elaboração também ocorre no analista como meio de ajudar a adquirir
o insight de forma mais duradoura, porque todos sabemos que um insight
isolado não faz verão (BRAIER, 1990). É necessário o trabalho silencioso
e prolongado da elaboração.
Essa pergunta nos leva à confrontação dos diferentes esquemas
referenciais teóricos que originam profundas distinções entre os analistas:
como cada um enfoca a situação analítica na adolescência e os papéis do
analisando, de seus pais e do analista na mesma, e o interjogo que se estabelece entre as realidades externa e psíquica e, dentro dessa última, como
entende a dialética entre o intra-subjetivo e o intersubjetivo.
Alguns analistas privilegiam exclusivamente a dimensão
intersubjetiva sobre a intra-subjetiva, tornando sem efeito um postulado
freudiano fundamental: o postulado que formula que o sintoma é um produto transacional, um efeito do conflito entre os sistemas psíquicos; o conflito, sendo definido pela repressão e, em última instância, pelo caráter das
representações sexuais que operam atacando constantemente o sujeito sob
a forma de compulsão à repetição, ou seja, sob forma de pulsão de morte.
Outros enfatizam em excesso os influxos da realidade externa, podendo
chegar à desconsideração total do caráter intra-subjetivo do conflito psíquico que dá lugar ao sintoma.
110 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Segundo Freud, os indicadores que informam sobre a existência ou
não de um processo analítico se revelam pela recuperação da amnésia infantil, pela recuperação das lembranças reprimidas e escindidas e pela análise sistemática das resistências. Além disso, não esqueçamos que o sentido da história constitui um indicador essencial do que tem de ser descoberto em psicanálise.
O conceito de campo analítico criado por Willy e Madé Baranger
(BARANGER, 1961) aporta valiosos indicadores clínicos para a avaliação
da existência ou não de um processo. Assinalam que “a fluidez de um discurso não basta se não for acompanhada da presença de uma circulação
afetiva dentro do campo”. A vivência pura não cura. Só a convergência de
ambos indicadores (variação do relato e circulação afetiva) nos informa
cabalmente sobre a existência do processo, no qual o analista necessita
escutar o analisando com sua mente e com seus afetos (BARANGER,
1992). A dialética entre produção e resolução da angústia e as transformações qualitativas desta limitam o processo.
O indicador mais valioso são os momentos de insight, mas ainda resta
diferenciar o verdadeiro do pseudo-insight, que visa ao auto-engano do
sujeito e também nos enganar acerca de seu progresso.
O insight verdadeiro se acompanha de uma nova abertura da
temporalidade. A temporalidade circular da neurose se abre para o futuro.
A clínica e a metapsicologia são interdependentes.
As tentativas de simplificação provocam uma severa limitação no alcance explicativo da vasta complexidade dos processos anímicos. A adolescência nos convida à busca e à reformulação da metapsicologia a partir
dos questionamentos que provoca a partir de nossa prática analítica.
Em continuação, com base em meu esquema referencial teórico, exporei os quatro eixos metapsicológicos mais importantes que me orientam
na detecção da existência de um processo ou de um não-processo na psicanálise com adolescentes. Esses guias metapsicológicos ajudam-me a avaliar se foram suficientemente elaborados os seguintes temas:
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 111
Luis Kancyper
2.1. Indicadores clínicos e fundamentos metapsicológicos
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
a) os auto-imagens narcisistas;
b) os complexos materno, paterno e fraterno;
c) o reordenamento das identificações;
d) a confrontação geracional.
a.1) As auto-imagens narcisistas
As auto-imagens narcisistas são suportes figurativos que representam
o “sentimento de si”, o sentimento da própria dignidade (Selbstgefühl)
(FREUD, 1914). Operam como os pontos de partida desde os quais o adolescente se relaciona consigo mesmo, com o outro e com a realidade externa. Intervêm como referenciais constantes que, de um modo contínuo, participam, mediante o a posteriori, na estruturação e desestruturação de sua
singularidade.
Essas imagens persistem e insistem de uma maneira autônoma em
relação à vontade, não cessam de funcionar, ficando o adolescente paradoxalmente girando ao redor de suas próprias auto-imagens, como dando
voltas preso a uma nora2, pois as auto-imagens narcisistas são desconhecidas, fundamentais e singulares para cada sujeito. Desconhecidas por estarem constituídas por uma multiplicidade de processos inconscientes que
permanecem vigentes, obscurecendo, portanto, seu valor dinâmico; fundamentais por serem estruturantes do aparato psíquico; singulares porque
nelas se resume a história psicanalítica que particulariza cada sujeito. Esse
assimila as auto-imagens e se transforma total ou parcialmente sobre o
modelo das mesmas, ou seja, se identifica: ele é tais imagens.
As auto-imagens narcisistas são representações-encruzilhadas que satisfazem o ego em sua necessidade de encontrar e organizar uma
figurabilidade de convergência-coerência.
No ano de 1909, Freud emprega o termo imagem viva de si mesmo,
extraído de Fausto, de Goethe, parte I, cena 5: “Ele vê no ratão inchado,
claro está, a viva imagem de si mesmo”. Descreve, então, o “Homem dos
2. Aparelho para tirar água dos poços, cisternas, rios, cuja peça principal é uma grande roda de
madeira em volta da qual passa uma corda. (N. do T.)
112 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 113
Luis Kancyper
ratos” que “freqüentemente havia sentido compaixão desses pobres ratos.
O mesmo era um tipo asqueroso e mesquinho, que ao ficar furioso podia
morder os demais e ser por isso açoitado terrivelmente. Real e efetivamente podia achar no rato a viva imagem de si mesmo” (FREUD, 1909.).
Considero que todo processo analítico requer que se ponham em evidência e se elaborem as auto-imagens narcisistas que particularizam cada
analisando e suas flutuações, revelando os processos inconscientes que intervieram na constituição das mesmas e o núcleo de verdade histórica, no
singular ou no plural, em torno dos quais foram construídas.
O trabalho analítico requer desmontar as auto-imagens narcisistas e a
polissemia ligada a elas e revelar as crenças psíquicas subjacentes às mesmas. Essas são condições essenciais de nossa tarefa analítica para que o
analisando, ao desativá-las, alcance reestruturar sua biografia. Assim,
transforma-se, em grande medida, em autor suficientemente responsável, e
não em um espectador passivo e inerme, vítima de um imutável destino
(KANCYPER, 1989).
Adrián via no “burro de carga” (burrito carguero) a viva imagem de si
mesmo. Essa era uma de suas auto-imagens narcisistas mais privilegiadas,
na qual convergiam uma multiplicidade de processos inconscientes que
revelavam e mantinham, por sua vez, seu Selbstgefühl, seu sentimento de
autovalorização e de dignidade que satisfazia suas moções narcisistas e
masoquistas. Ele era o que suportava estoicamente o sobrepeso dos mandatos parentais e obrigações fraternais para redimir as angústias e culpas
do meio familiar; ele era o feitor martirizado (LACAN, 1982).
As auto-imagens narcisistas são de complexa edificação e de esclarecimento difícil.
Adrián havia me procurado aos 18 anos, a partir da reiterada insistência de sua mãe devido ao recrudescimento dos acessos asmáticos que já
não respondiam aos tratamentos médicos. Além disso, estava desorientado
em sua escolha vocacional. Cursava naquele momento o último ano de
seus estudos secundários. Havia também a incontrolável violência familiar
que, segundo a versão de ambos pais, se apresentava numa escala de
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
agressividade entre Adrián e Flávia, sua irmã mais velha três anos.
Alejandra, que tinha 12 anos, não participava aparentemente da vida familiar, “ficava de lado” (FREUD, 1921), inibindo de um modo eloqüente seu
crescimento.
O pai (50 anos) e a mãe (48 anos) eram profissionais exitosos e exigentes consigo mesmos. Atarefados pelas demandas econômicas e por elevadas aspirações intelectuais, não podiam governar a violência familiar
que se originava, na maioria das ocasiões, a partir da conduta provocativa,
desestruturada e desestruturante da filha mais velha.
Faltava uma função parental estruturante para sustentar e regular a
angústia transbordante e as passagens ao ato que costumavam precipitar-se
de modo súbito nos progenitores e entre os irmãos.
O conflito fraterno teve efeitos muito relevantes na história do “burro
de carga”. A presença de uma filha e irmã perturbada alterou profundamente a vida anímica de todos os integrantes, ocupando e inundando a
economia libidinal dos espaços mentais parentais e, como conseqüência,
alterando a estruturação psíquica de Adrián e Alejandra. O desafio tanático
fraterno havia sido um dos eixos temáticos mais repetitivos e conflitivos ao
longo de todas as fases desse processo analítico.
Esse caso reafirma que o complexo fraterno não é um mero derivado
do complexo de Édipo, nem tampouco um simples deslocamento das figuras parentais sobre os irmãos. Apresenta sua própria envergadura estrutural. Representa uma “via régia” para ascender a elucidação e
processamento das conflitivas edípica e narcisista com as quais também se
articula.
Assim como cada sujeito possui uma estrutura edípica singular-particular, caso misto da combinação da forma chamada de Édipo positivo e
negativo, configura também um complexo fraterno único, com seus componentes destrutivos e construtivos (FREUD, 1920).
A psicodinâmica da fratria se fez presente desde as primeiras sessões.
Seu trabalho de elaboração se estendeu ao longo de todas as fases do processo analítico, eclipsando o centro da atenção de Adrián.
114 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Eu tenho bronca com os meus pais. Permitem tudo a Flávia, e ela todo
o tempo exige coisas. Eu pago todas as minhas coisas. Minha irmã passa
todo o tempo incomodando, exigindo e pedindo.
Minha mãe toma uma atitude tão trouxa! Não a enfrenta. Jamais lhe
diz nada. Ou então briga horrores com ela, mas depois acaba comprandolhe tudo.
Eu vejo uma injustiça com eles mesmos. Quando, às vezes, propõem a
Flávia algo que ela não aceita, a discussão pode terminar em agressão.
Creio que muitas vezes não lhe explicam as coisas para não brigar e então
é sempre igual. Termina obtendo o que quer e depois eu fico furioso com
ela e com eles. Sinto que meus pais não conseguem dizer não a ela. Eu
trato de tomar parte, mas é muito pouco.
Com minha irmã guardo um conjunto de sentimentos que não consigo
expressar. É algo especial. Não descarrego, nem me alivio.
Interpreto-lhe até que ponto ele, à semelhança daquilo que critica em
seus pais, termina finalmente afogando seus sentimentos e pensamentos e
se submete também aos caprichos de sua irmã, postergando a si mesmo.
Tenho um sentimento de impotência com todos. Como quando tu vês
que no governo conchavam, conchavam e subornam e roubam. Sinto que
cada vez que digo algo a meus pais, é como se não lhes tivesse dito nada,
e minha irmã é impossível. Quando tens uma irmã famosa, que ocupa muito espaço, te dá inveja. Mas quando tens uma como a minha, que cria uma
situação tóxica, te dá vontade que desapareça, ou que vá para bem longe.
Me dá também um pouco de pena por ela, porque está perdendo tudo. Não
estuda, não consegue se ligar afetivamente com ninguém, não toca mais
música, sei lá, anda com essa loucura da indiferença.
Quando estamos bem, compartilhamos muitas coisas. Assim oscilo
com ela, na luta entre a paixão e o ódio. Eu sinto que gosto dela, mas ela é
tóxica, dá para entender? É como um material radioativo que emana constantemente radioatividade e contamina tudo. Que queres que te diga? Sinto-me impotente com ela e com os meus pais.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 115
Luis Kancyper
a.2) Os anúncios em cartaz
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
Assinalo-lhe que talvez seu estado de impotência tenha certa relação
com etapas anteriores compartilhadas com sua irmã, quando ambos eram
pequenos e quando a diferença de três anos de idade marcava também uma
diferença muito grande de poderes e direitos.
Desde pequeno minha irmã me batia muito. Meus pais às vezes intervinham e às vezes não. Eu nunca fiquei de braços cruzados quando ela me
batia. Mas ela era maior e mandava em mim. Lembro-me que tinha que
correr de manhã para ir ao colégio muito cedo porque ela queria sempre
ser a primeira. No quarto ano fiquei sabendo que entravam em aula às
oito e vinte e ela me dizia que era às oito e, se não saíamos bem cedo, fazia
um escândalo, dizendo que por minha culpa ia chegar tarde e eu saía botando o avental com medo e correndo pela rua. Minha irmã me submetia,
me castigava. Ela era muito grande, mas agora não a vejo mais tão grande
e sim como um centro habilidoso de domínio. Dá e tira habilmente para ter
tudo controlado. Ainda é ela quem toma as rédeas em algumas situações.
Agora a situação é completamente diferente de como era antes. Já
posso escapar mais de seu domínio, é uma arte que estou aprendendo aos
poucos e sinto que vou conseguir. Estou entendendo melhor sua forma de
exercer o domínio sobre os demais. (Pausa).
Flávia ganhou a fama de que para ela não se pode pedir nada. Conseguiu isso cagando em todo o mundo. Eu tenho a fama de ser o burro de
carga que se encarrega e soluciona tudo.
A minha irmã Alexandra é outra intocável, não se pode contar com
ela para nada. Se intitulou “pequenina e boba” e não é nem pequena e
nem boba. E os meus pais ainda estimulam essa imagem. Muda o tom de
voz e, com uma mistura de resignação e angústia, diz: Parece que meus
pais não vão mudar a situação das minhas irmãs, mas eu vou mudar a
minha. Sinto-me no meio de um redemoinho e a única solução é sair dele
porque senão vou me afundar.
Nessa sessão, destacam-se a especificidade e a articulação do complexo fraterno com as dinâmicas narcisista e edípica. Seus reflexos se faziam
sentir inclusive na estruturação da hiperseveridade de seu superego e na
116 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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Luis Kancyper
determinação da eleição vocacional. O leit motiv de seus pensamentos era
não ser como Flávia, opondo-se reativamente a ela, em lugar de buscar
ativamente um projeto de desejo próprio.
Como a minha irmã eu não quero ser, repetia em várias sessões. Antes
eu agia em oposição ao jeito de Flávia. Me lembro de até conscientemente
me propor a fazer algo completamente diferente do que ela fazia. O pior
que o meu pai fazia era dizer: tu és igual a tua irmã. Outra variante da
mesma coisa era quando me misturava com ela. Creio que meu pai se
enganou ao misturar-nos. Acho que era um mau recurso para tentar restaurar sua relação com minha irmã. Minha irmã passa o tempo todo pedindo dinheiro e não reconhece nada. É tão cretino o que faz que a mim me
dá muita raiva! Se eu fosse o meu pai, daria uma surra nela. Meu pai não
sabe o que fazer. Se não dá dinheiro, ela diz que vai embora. Se lhe dá, ela
questiona porque recém agora foi dar. Então meu pai faz esta colocação:
não há dinheiro para ninguém; há uma economia de guerra para todos.
Acho que aí fica uma dívida conosco. Não porque nos deva algo, mas porque merecemos o reconhecimento da diferença. Alexandra sofre a mesma
situação que eu. Isso me desperta muita raiva, muito rancor com meus
pais. Eu entendo, mas não está certo. Sei que é uma postura difícil a deles,
porque estão sempre querendo resolver. Tratam de melhorar a relação com
ela e há momentos em que ela se tranqüiliza. Mas, ante qualquer situação,
corre e sai de casa. Está no fim do mundo, telefona dizendo que está morrendo de fome e meus pais vão onde ela está ou mandam o cartão de crédito e, ainda por cima, ela diz que é a excluída da família. Gera sentimentos
de merda e usufrui da situação. Adora filosofar que é um anexo da família.
Mas é ela quem tem um funcionamento totalmente à parte. Vem, entra, sai.
É como um parasita, com a diferença que ainda pede dinheiro. Já faz anos
que luto para me livrar dela, mas ainda não me livrei totalmente. Sempre
me sobrecarrego com um sentimento de culpa por todos.
No terceiro ano do processo analítico, os pais me anunciam que, independentemente do tratamento individual de Adrián, decidiram começar
uma terapia familiar porque a situação estava insustentável. Concordo com
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
a proposta, mas Adrián, inicialmente, resiste a participar.
Acho que meus pais pedem essa terapia porque é uma maneira de
generalizar a situação para não ver que há problemas pontuais. Provavelmente seu problema nos afeta a todos, mas pertence a ela.
Ela é muito intrusiva, se mete em tudo e não dá a mínima atenção
para o que eu faço. Eu sou como o meu pai, muito impulsivo. Quando fico
bravo, fico muito violento. Minha irmã é muito sutil para me tirar do sério.
Me exaspera, me violenta e depois o violento pareço eu.
Após poucos meses de terapia familiar, Adrián decide, independente
de Alejandra, não participar mais das sessões e me relata como enfrentou
Flávia e seus pais na presença do analista.
Então disse a Flávia: não quero que te metas mais no meio, não me
mistures contigo. Tu ficas ignorando os problemas e vives te comparando
a mim. O pai empresta o carro para mim porque sabe que eu o cuido e que
pode confiar em mim. Mas tu o deixas atirado em qualquer lugar, já bateste duas vezes e não assumes as responsabilidades. Então vens para casa e
começas a fazer escândalos: que é injusto, que para mim me dão o carro e
para ti não. Começas a me misturar contigo até que o pai acaba não emprestando também para mim. Então lhe disse: olha, Flávia, se queres ter
as tuas coisas, briga por elas para ti e assume o que é teu, mas não me
metas no meio. Minha relação com o pai é problema meu. Se queres chegar a um acordo com ele, trata de solucionar sozinha. Por favor, nunca
mais me incluas em uma conversação desse tipo. Por favor, não me fodas
mais. Depois, fui embora com meus pais e lhes disse: vocês me dão a responsabilidade de proteger Flávia e Alejandra. Me sinto uma má pessoa
quando não quero assumir essas obrigações. A confusão com tudo isso me
tira do foco. Não quero seguir sendo o responsável por elas. Elas não se
responsabilizam pelo que lhes corresponde. Seguem lavando as mãos e
finalmente me sinto eu um lixo, uma bosta. Eu aqui não venho mais.
A oposição de Adrián em continuar a terapia familiar (Alejandra continuou participando por mais dois anos) despertou ofensas e resistências,
principalmente no pai, começando a atrasar o pagamento do tratamento,
118 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
b) Os complexos materno, paterno e fraterno
Outra das funções básicas do processo analítico é fazer consciente o
inconsciente e fomentar o trabalho de elaboração dos complexos materno,
paterno e fraterno no quebra-cabeça mental de cada analisando – no sentido de como se apresentam, se articulam e se protegem entre si, destacandoSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 119
Luis Kancyper
precisamente num período fecundo de seu processo analítico individual,
quando começava a desidentificar-se da missão redentora do infans – de
carregar sobre suas costas culpas e responsabilidades de outros que não lhe
cabiam. Desidentificação essa que possibilita liberar e “matar” essa criança marmórea que garante a imortalidade própria e a dos outros, para alcançar assim a desidentificação de identificações alienantes.
A “morte” da imortalidade condiciona o nascimento do ego. Leclaire,
ao referir-se a esse assassinato diz que “é necessário e impossível daquela
criança maravilhosa ou terrorífica que fomos nos sonhos dos que nos fizeram ou nos viram nascer. Para viver devo matar a representação tanática do
infans em mim, a fim de que outra lógica apareça, regida pela impossibilidade de efetuar esse assassinato de uma vez por todas e pela necessidade de
perpetuá-lo em toda oportunidade que se fale verdadeiramente, em todo o
instante em que se começa a amar” (LECLAIRE, 1975). A morte do infans
reanima sentimentos de desvalimento e raiva pela perda da fantasia que
assegura a ilusão de alcançar, através da fusão, o amor de eternidade imutável.
Com efeito, a desidentificação do infans põe à prova a estabilidade
dos sistemas narcisistas nos planos intra-subjetivo ou intersubjetivo. Isso
ocorre porque a ameaça de desprendimento, implícito no processo de
desidentificação em ambos sistemas, reativa nos pais e no filho adolescente os lutos do passar do tempo ante a perda do neném que cresce e dos pais
que envelhecem (temporalidade linear). Ao mesmo tempo e fundamentalmente se ressignifica, de forma retroativa, a assunção das próprias
incompletudes que evitavam assumir devido ao filho “tapa-buraco” sempre presente e/ou aos pais protetores e imortais.
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
se o valor estruturante e permanente dos mesmos.
“Um homem” – escreveu Freud a Ferenczi – “não deve lutar para eliminar seus complexos e sim para reconciliar-se com eles, pois são legitimamente os que dirigem sua conduta no mundo”. O processo analítico
requer que se enfatize, o mais detalhada e exaustivamente possível, a interpretação, a construção e a elaboração das distintas posições adotadas pelo
adolescente no assumir e no resolver questões referentes a estruturas
fundantes da subjetividade.
b.1) Filho progenitor-irmão progenitor
“Porque estamos muito próximos, e a criança é o progenitor de quem
o tomou em suas mãos de adulto uma manhã e o alçou no consentimento da luz.”
Yves Bonnefoy (1997)
“O processo de identificação congela o psiquismo em um ‘para sempre’ característico do inconsciente que se qualifica de atemporal. O processo de desidentificação libera o ‘para sempre’ de uma história que aliena o
sujeito da regulação narcisista. Constitui assim a condição que possibilita
liberar o desejo e construir o futuro” (FAIMBERG, 1985).
Durante a desidentificação, é produzida a defusão da pulsão de morte,
pois se dissolvem – desestruturação implícita e transitória em toda elaboração do processo desidentificatório – os laços afetivos com determinados
objetos para possibilitar sua passagem para outros objetos, o que reabre o
acesso à configuração de novas identificações em uma reestruturada dimensão afetiva, espacial e temporal (FREUD, 1923). A desidentificação
pode ser vivenciada em todas as etapas da vida, mas de maneira mais patética durante o período da adolescência, como um desgarramento daquela
pessoa que foi uma parte do si-mesmo próprio. Esse processo leva consigo
a ameaça para o sentimento de si-mesmo, tanto do filho como dos pais, de
perder a sustentação que conserva a regulação da estrutura narcisista. Essa
sustentação se nutre a partir da imagem de pais salvadores e supervaloriza120 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 121
Luis Kancyper
dos que o filho tem e da imagem de filho idealizado e messiânico que os
pais têm. Ambas as partes se conservam mediante uma envolvente administração de oferecimentos e ameaças verbais, materiais e afetivas, numa
prolongada pseudo-individuação de negociações narcisistas com temporalidade ambígua.
Esse ideal de onipotência, que oscila entre o filho adolescente e seus
pais, põe em cena as técnicas de afastamento e aproximação entre credores
e devedores, em seu movimento pendular condicionado às tendências da
agressividade.
Enquanto que a agressividade a serviço de Eros tende à discriminação
do outro, a agressividade a serviço de Tanatos promove a indiscriminação
nefasta com o outro e apaga as fronteiras entre o ego e o não-ego, entre a
realidade psíquica e a realidade material.
A pulsão de morte, liberada durante o processo de desidentificação,
pode sofrer dois destinos: o primeiro seria ligar-se a novas identificações; o
segundo seria permanecer livre e se distribuir para que uma parte fosse
assumida pelo superego, acrescentando sua severidade e se voltando assim
contra o ego, e outra parte exercitando sua atividade muda e nefasta como
pulsão livre no ego e no id.
Tanto as partes ligadas como as não ligadas da pulsão de morte se
manifestam em sentimentos de culpa e de necessidade inconsciente de castigo, acompanhados de um halo inquietante de sentimentos de pânico, horror, incerteza, inércia, orfandade, vazio e morte. Isso corresponde precisamente ao Unheimlich do acionado setor de Tanatos que se subtraiu do domínio logrado mediante a ligação a complementos libidinosos e que segue
tendo como objeto o próprio ser.
A mistura e a combinação muito vastas e de proporções variáveis entre os sentimentos de culpa e de raiva que sobrevem necessariamente como
resultado do processo da desidentificação durante a adolescência podem
expressar-se na clínica como remorsos, ressentimentos, culpa e vergonha,
manifestos e latentes, pré-edípicos e edípicos, básicos e fraternos, primários e secundários (KANCYPER, 1991a, 1991b).
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
O estado de mortificação psíquica, implícito em todo o processo
desidentificatório, adquiriu uma maior dramaticidade durante o terceiro
ano do processo analítico de Adrián. Houve momentos de depressão em
conseqüência do processamento dos lutos narcisistas ante a desidealização
de seu ego ideal e ideal de ego por depor uma relação de poder, desejada e
ao mesmo tempo temida, o que reanimava seu sentimento de onipotência
infantil, enquanto exercida a paradoxal e revertida dependência de seus
pais para com ele (GOLDSTEIN, 1994).
Adrián tinha sido elevado pelas mãos de seus pais à categoria de “a
luz” que ilumina e os mantém: o filho progenitor dos próprios pais a quem
devia fornecer vitalidade e esperança, mas dos quais requeria, por sua vez,
ser mantido e cuidado. Criava-se uma situação paradoxal na qual
superinvestia o seu idealismo com fantasias de autogeração e de
neogeração, às expensas da pulsão. Como conseqüência, sua agressividade,
necessária para confrontar os pais e irmãos, permanecia sufocada, e seus
afetos, hibernados e/ou voltados contra si mesmo, costumavam
exteriorizar-se através de sintomas psicossomáticos e tormentos mentais.
Além disso, recaía sobre o “burro de carga” o peso de outra crença
inconsciente, até esse momento imovível e não questionada: ele, como o
“filho varão e sadio”, tinha a missão de atuar ante suas irmãs como um
vicário duplo parental; era o irmão progenitor. Ambas elogiáveis posições
identificatórias reanimavam a hiperseveridade de seu superego e a desmedida criação de ideais de redenção, perfeição e domínio (KANCYPER,
1992a).
A troca de papéis se mantinha em grande medida pela manutenção de
uma particular fantasia que circulava entre todos os integrantes da família e
que denominei “a fantasia dos vasos comunicantes”.
b.2) Os vasos comunicantes (KANCYPER, 1997)
Essa fantasia está baseada no modelo físico de um sistema hidrostático
composto de dois ou mais recipientes que se comunicam por sua parte inferior.
122 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 123
Luis Kancyper
Nos vasos comunicantes é possível verificar, experimentalmente, o
fato de que, em todos os tubos de formas diferentes, a água ou o líquido
vertido toma o mesmo nível em todos os vasos, já que, na realidade, os
vasos e o tubo de comunicação formam um só recipiente cheio de líquido.
A aplicação desse funcionamento à fantasia fisiológica de
consangüinidade configura a representação dos irmãos como se fossem
vasos comunicantes, relacionados entre si por laços de sangue e unidos ao
tubo de comunicação parental que opera como uma fonte inesgotável que
nutre e que distribui, de modo unitário, a todos os integrantes do sistema,
para que finalmente tudo se mantenha em perfeito equilíbrio.
Esse sistema premia a nivelação e condena a diferença.
Nivelação não é solidariedade. É a negação da alteridade e do direito
de ser a si mesmo. Eclipsa o direito ao desacordo e a abertura de
imprevisíveis possibilidades e realizações que podem surgir a partir da confrontação geracional e fraterna.
Mas toda confrontação requer como condição primária a admissão do
desnível do arco de tensões que marca a diferença de gerações entre pais e
filhos e entre cada um dos irmãos. Mas o princípio da nivelação dessa fantasia hidrostática bipessoal ou multipessoal dos vasos comunicantes, baseado no intercâmbio “arterial e venoso” e no empréstimo mútuo de “órgãos” entre os componentes do sistema, pode desencadear intensos sentimentos de culpa e necessidade de castigo quando se quebra sua
homeostase. Aquele que faz essa quebra se desnivela dos restantes, podendo situar-se – se houver uma elaboração masoquista – na posição da “privilegiada vítima” que permanece presa, à espreita, esperando a desforra do
outro ou dos outros ressentidos que, como vítimas privilegiadas, poderiam
conspirativamente vingar-se dele. Estabelece-se, assim, um pêndulo
retaliativo de recriminações e ocultamentos, de queixas e remorsos.
Esses vínculos conflitivos entre irmãos podem deslocar-se para a relação com os amigos e com o cônjuge. Pode presentificar-se, além disso,
dentro do próprio sujeito, flutuando de um modo repetitivo entre ambas as
posições: de vítima privilegiada a privilegiada vítima com pensamentos e
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
atos de contrição.
Uma preocupação permanente nesse processo era evitar a interpretação e elaboração excessivas da dimensão intersubjetiva sobre a intra-subjetiva. O postulado freudiano fundamental formula que o conflito psíquico
que dá lugar ao sintoma é um produto transacional entre os sistemas e estruturas psíquicas e, em última instância, é a manifestação do enlace e do
desenlace das pulsões de vida e de morte.
Adrián pedia para ser liberado de suas representações obsessivas. A
luta contra essas idéias o impedia de concentrar-se em seus estudos. Argumentos e contra-argumentos em relação à escolha vocacional brigavam
entre si. Assaltavam-no de novo dúvidas sobre se deveria seguir esforçando-se no estudo da mesma profissão que exercia seu pai. Já estava cursando o segundo ano da faculdade de biologia, mas havia fracassado em várias
matérias. Não podia manter o ritmo de estudo de seus companheiros e, no
fundo, assediava-o continuamente um conflito de lealdades em relação ao
complexo paterno. Sentia que devia ser como o epígono do pai e, por sua
vez, se revoltava. Terminava martirizado com toda classe de pensamentos
obsessivos e, simultaneamente, apareciam sanções que tinha que infligirse pelo não cumprimento dos deveres e ideais para a satisfação de suas
necessidades de castigo.
Sempre tenho a sensação de estar fazendo um pouco menos do que
poderia fazer e que posso fazer um pouco mais. A atitude de meu pai me
ativa o dedo com a fita vermelha (era a representação figurativa com que
denominava o acionar da hiperseveridade de sua instância superegóica)
(KANCYPER, 1991b).
Entra meu pai e me diz, o que estás fazendo? Nada, lhe digo. Como
não estás fazendo nada? E ali sinto a pressão e começo a ficar obcecado
porque, na verdade, não estou fazendo nada. Estou perdendo meu tempo e
no momento aparece o dedo com a fita vermelha, sinalizando que é proibido não fazer nada.
Ao contrário, a mãe não é assim. Quando me vê sem fazer nada me
pergunta: que estás fazendo? Nada. Ah que sorte, me diz. Meu pai acredita
124 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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Luis Kancyper
que sua pressão é o melhor. Meu pai e meu tio são de se desesperar pelas
coisas. Começam aos gritos e assim andam os dois, com a pressão alta e
com estresse. Eu também sou assim. Começo a me chicotear. Quando algo
não me sai bem, me recrimino muito. Me mortifico. O que acontece é que
às vezes é a única maneira que tenho para carregar as pilhas. Sem desespero não tem motor e, se não me desespero, não faço nada. Não encontro o
ponto médio.
Ontem não pude estudar nada e me puni. Não me permiti dormir a
sesta por levantar-me tarde. Antes era pior comigo mesmo. Me castigava,
não me permitindo sair no sábado à noite por não haver estudado o suficiente. Não suporto que as coisas me saiam mal. Fico mal. Fico me torturando mentalmente.
Interpreto que ele impõe a si um controle tão severo que acaba asfixiado e cansado e, ao não cumprir com seus próprios ideais de perfeição, vai
para o canto das penitências, tornando-se um verdugo de si mesmo.
(Ele ri.) Sim, muito boa essa. Mas agora estou me aliviando de coisas.
Eu era um fervedouro por dentro e não colocava nada para fora. Agora
estou mais tranqüilo por dentro. Mas ainda sigo sendo muito severo comigo. Não me perdôo, me castigo. Às vezes mordo o meu dedo porque não
consegui tirar alguma coisa na guitarra; ou bato na cabeça com o punho
quando não entendo o que leio, quando a ficha não cai. Aplico um corretivo em mim, um pequeno golpe de ânimo (ri). Às vezes, bato forte com uma
régua de madeira e a cabeça fica doendo. Outras vezes, bato nas portas
que são de carvalho, duras. Elas agüentam porque já foram muito sacudidas. É uma forma de descarregar tensões, dando golpes nas portas. Mas
minha irmã descarrega em todos os que estão ao seu redor. Ela é como um
vulcão que está apagado e deixa sair um fiozinho de fumaça, mas a gente
não sabe quando pode entrar em erupção.
Interpreto que dentro dele existem também certas situações de angústia que, como um vulcão, não as pode dominar e que, quando entram em
erupção, o fazem mais por implosão do que por explosão
(KONONOVICH, 1999), até o extremo de ficar exausto e envolvido por
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
uma avalanche de sanções, de auto-reprovações e de acessos de asma
brônquica.
A flexibilização gradual da figura feroz e cruel de seu superego foi
resultado da análise e da elaboração exaustiva acerca de sua posição na
dialética subjetiva das relações estruturais, acerca de seu posicionamento
ao desejo do desejo do Outro (LACAN, 1999), tanto no Édipo como complexo nuclear da neurose, quanto no complexo fraterno e na dinâmica narcisista do duplo no complexo do semelhante (Nebenmensch).
Agora não me reprovo tanto. Faço as coisas mais de forma consciente
e não por obediência. Faz muito tempo que não tenho notícias do dedo
com a fita vermelha. Vou lhe tirar a fita. Vou trocá-lo por uma agenda.
Nem faço tanto drama pelas coisas. Estou tomando a atitude de não criar
tanto problema, a não ser que seja necessário. Antes me preocupava muito
mas não me ocupava. Agora trato de procurar a solução. Estou mais tranqüilo comigo mesmo. No domingo pude tomar mate sem fazer a lista do
que tinha para fazer. Quisera merecer ter gratificações não como um prêmio, mas como algo natural.
Finalmente Adrián decidiu abandonar a faculdade de biologia e escolheu, depois de vários meses de incerteza, ingressar na faculdade de arquitetura. Essa mudança foi respeitada e apoiada por seus pais. Só aí começou
a desfrutar o estudo, e suas inibições intelectuais cederam.
Sua vida afetiva e social não apresentava maiores dificuldades. Mantinha há alguns anos um relacionamento estável com Mariela, “sua
princesinha de sempre”, com ternura e satisfação sexual. Não temia amar e
permitia ser amado, ao mesmo tempo em que conservava uma relação fluida com seus pares. Praticava esportes e com dois amigos constituiu uma
pequena sociedade. Em pouco tempo surgiram conflitos com o sócio mais
velho, reeditando com ele sua relação de tormento com Flávia. Dissolveuse a sociedade, mas continuou com o outro companheiro e com bons resultados.
Agora me referirei aos outros dois dos quatro eixos metapsicológicos
126 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
c) O reordenamento das identificações
d) A confrontação geracional
O reordenamento das identificações durante a cura analítica atravessa
vários processos e subprocessos de desidentificação e reidentificação, vários subprocessos de desligamento e de novas ligações que se acompanham inexoravelmente de angústias, de fantasias nefastas e de recrudescimentos sintomáticos. Esses subprocessos, inerentes aos processos de
reordenamento do complexo sistema das identificações, facilitam a emergência conjunta de intensas angústias e fantasias também no analista, que
deverá avaliar, segundo seu marco referencial teórico, os movimentos regressivos e progressivos dessas fases elaborativas.
Para adotar um exemplo que consiga ilustrar de que modo a metapsicologia e a observação clínica se fecundam reciprocamente, empregarei
um conceito teórico relacionado com a temporalidade analítica: o a
posteriori, a ressignificação retroativa. Esse conceito teórico funciona
como um guia que tem um valor heurístico nos processos elaborativos de
certas identificações alienantes e que incide, além disso, na avaliação das
diferentes resistências que se opõem às mudanças, resistências que provêm
da realidade psíquica e da realidade externa avassalando o ego.
c.1) Ressignificação e memória
[A memória,] “essa sentinela da alma”.
Shakespeare (1953)
A ressignificação ativa uma memória particular, aquela relacionada às
cenas traumáticas da história secreta reprimida e cindida do sujeito e, por
sua vez, entremeada com as histórias inconscientes e ocultas reprimidas e
cindidas de seus progenitores e irmãos. Essas histórias e memórias
entrecruzadas participaram da gênese e da manutenção de certos processos
identificatórios alienantes.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 127
Luis Kancyper
de referência que me orientam acerca da existência de um processo ou de
um não-processo no tratamento analítico com adolescentes.
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
A memória da ressignificação, “essa sentinela da alma”, abre, em um
momento inesperado, as portas do esquecimento e dá saída para uma vulcânica emergência de um caótico conjunto de cenas traumáticas que foram
longamente suprimidas e não significadas durante anos e inclusive gerações.
A ressignificação do traumático acontece durante todas as etapas da
vida – porque o trauma tem sua memória e a conserva –, mas explode
fundamentalmente durante a adolescência, etapa culminante, caracterizada
pela presença de caos e de crises inevitáveis. Nessa fase do desenvolvimento, precipita-se a ressignificação do não-significado e do traumático de
etapas anteriores à remoção das identificações, para assim poder alcançar o
reordenamento identificatório e confirmar a identidade (KANCYPER,
1985).
É durante a adolescência que as investiduras narcisistas parento-filiais e fraternais que não foram resolvidas e nem abandonadas entram em
colisão. Essas requerem ser confrontadas com o depositado pelos outros
significativos, para que o sujeito logre reordenar seu sistema múltiplo de
identificações, aquele que o alienou no projeto identificatório original. O
identificado (identificação projetiva para uns, depósito e especularidade
para outros) responde sempre ao desmentido, tanto para o depositante
quanto para o depositário (ARAGONÉS, 1999).
Todo sujeito terá de, inexoravelmente, atravessar a angústia de confrontação com seus pais e irmãos nas realidades externa e psíquica para
libertar-se daqueles aspectos desestruturantes de certas identificações. Terá
de defrontar-se com o que o outro (mãe, pai, irmão) nunca alcançou confrontar.
A confrontação coloca o outro (do qual o sujeito depende) na situação
de perder seu depositário, ou seja, acarreta o perigo de desestruturar a organização narcisista do outro. A desestruturação do vínculo patológico narcisista arrasta e desencadeia a desestruturação narcisista do outro. Esse processo, que ameaça com uma dupla ruptura narcisista, pode ir acompanhado
de intensos sintomas e angústias de despersonalização ou desrealização
128 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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por ambas partes do vínculo (KANCYPER, 1992b).
As fantasias de morte que se desencadeiam antes e durante o ato da
confrontação podem ser a manifestação da morte dessas instalações narcisistas e de certas idealizações e ilusões; podem ser a manifestação da queda
em definitivo de sobre-investiduras maravilhosas, e isso pode subjetivar-se
como momentos de tragédia na lógica narcisista.
Aragonés considera que as investiduras narcisistas alteram os papéis
na trama familiar, alterando a configuração do tabuleiro de parentesco (1).
Os filhos não chegam a ocupar o lugar simbólico de filho e de irmão, e os
progenitores não logram libertar-se do primitivo lugar de filho ou de irmãos, dando lugar a identificações alienantes. O filho pode chegar a carregar a sombra de um luto não resolvido por um objeto dos progenitores.
O autor considera que “esse objeto é duplamente inconsciente” (tanto
para o depositário como para o depositante), situação que somente a reconstrução da história (primeiro na mente do analista) pode dar a sua verdadeira representação. O não confrontado dessas identificações alienantes
da adolescência, permanece cindido e, portanto, ativo como costuma estar
aquilo que é inconscientemente cindido. A resolução dessas identificações
alienantes requer ser apreendida desde o conjunto do campo dinâmico
parento-filial e fraterno, fato que se poderá traduzir na teoria da técnica, em
alguns tipos de intervenção com os pais e/ou irmãos para processar os efeitos do cindido.
Nesses processos e subprocessos do reordenamento das identificações
se reativam múltiplas e variadas resistências que se opõem à continuidade
do trabalho elaborativo. Em primeiro lugar, essas resistências requerem
um estudo, o mais preciso possível, para distinguir as cinco formas clássicas da natureza das mesmas assinaladas por Freud, ao final de Inibição,
sintoma e angústia (FREUD, 1926). Três delas são atribuídas ao ego: a
repressão, a resistência de transferência e o ganho secundário da doença,
que se baseia na integração do sintoma no ego, além da resistência do id e
do superego. Em segundo lugar, temos as outras resistências que chegam a
constituir-se no campo dinâmico por uma cumplicidade que engloba tanto
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
a resistência do analisando como a contratransferência do analista; essas
são comunicadas inconscientemente entre si e operam juntas. Em terceiro
lugar, temos a participação de certas resistências geradas pela pressão atuante na realidade externa de certos influxos desestruturantes que avassalam
o ego. São momentos pontuais que demandam uma mudança técnica na
estratégia terapêutica clássica. Essa mudança aponta para a inclusão de
outros significativos da realidade material para dentro do trabalho clínico,
com ou sem a presença do analisando, através da implementação de sessões vinculares de casal, entre irmãos, entre pais e filhos e/ou familiares.
Em função disso, cabe ao analista, que é forçosamente como “o ego
mesmo, uma criatura de fronteira” (FREUD, 1923), revisar separadamente
o acionar da origem e natureza de cada uma dessas resistências – e portanto
necessita fazer um esforço para concebê-las em conjunto – e investigar, ao
mesmo tempo, a íntima relação existente entre elas. Assim, como resultado, fundamenta metapsicologicamente suas modificações técnicas, segundo o particular momento que atravesse esse processo ou não-processo analítico.
No quarto ano do processo analítico, resolvi convidar ambos os pais a
algumas sessões com Adrián, porque a continuidade do tratamento começava a correr riscos. Havia se configurado um prolongado conflito de lealdades parento-filial e comigo, em que participavam resistências geradas
pelos pais e por Adrián.
Minha proposta foi inicialmente rejeitada por Adrián. Não queria
incomodá-los. Considerava que ia poder solucionar a determinação do pai
de um prazo para o pagamento das suas sessões, o que aumentava a dívida
comigo, obstaculizando o prosseguimento do processo, e as dívidas e culpas nele, porque sua diferenciação era equiparada a uma traição que afetava a tradição da ideologia de sacrifício, mantida pela fantasia familiar dos
vasos comunicantes. Suas resistências se exteriorizaram através de reiterados esquecimentos, de momentos de tédio e de silêncios prolongados durante as sessões e também por sua insistente oposição à inclusão dos pai, o
que possibilitou colocar em evidência na reedição transferencial como ten130 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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tava posicionar-se ante mim sendo um filho e um irmão progenitor.
Possuidor de uma ilimitada capacidade de transformar o outro e
agüentá-lo todo sobre suas costas como um “burro de carga”, não avaliava
o preço do sofrimento nem o perigo que lhe proporcionava essa missão
redentora (STEINER, 1991).
Assinalei-lhe que a mim não tinha de salvar e nem cuidar e que eu
considerava que, para manter a continuidade de nosso trabalho conjunto,
era necessário convidar os pais com a finalidade – dentro do possível – de
esclarecer certos obstáculos que estavam atuando no campo analítico.
Finalmente Adrián aceitou minha proposta. Convidei os pais, e ambos
compareceram.
O pai, tenso, começou a falar com irritação, argumentando que, antes
de começar a terapia, seu filho era diferente. Ainda que reconhecesse e
agradecesse que ele quase não apresentava mais acessos asmáticos e que a
troca de faculdade havia sido uma medida adequada, porque estudava com
entusiasmo e com bons resultados, considerava inadmissível seu crescente
egoísmo. Levantou o tom de voz e me disse:
Perdoe-me, doutor, se posso chegar a ofendê-lo com o que vou dizer,
mas será que o senhor não influi para que nosso filho tome essa atitude
com sua irmã e conosco? Em minha família, mesmo que fossem outros
tempos, todos dávamos uma mão quando alguém necessitava. Eu continuo
fazendo isso com meu irmão, e minha mulher, nem lhe conto, ela muito
mais do que eu, com sua irmã, com amigos. Mas Adrián não considera a
presença do outro.
Logo ambos os pais me comentaram acerca da profunda dor que tinham com a filha mais velha pelas viagens intempestivas e ausências reiteradas e relataram suas cenas de angústia.
Assinalei-lhes que essa entrevista era para falar das dificuldades que
ultimamente se haviam apresentado no tratamento de Adrián pelo atraso
do pagamento e porque talvez esse adiamento mantivesse certo nexo com a
brabeza e com o afã de represália ao filho e a mim, por sua oposição em
participar da terapia familiar, mas que eles conheciam os sentimentos soli-
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
dários que Adrián tinha com todos e que sua luta por ser diferente não
significava ser oponente nem inimigo. Nesse momento me ocorreu perguntar-lhes se conheciam a parábola do filho pródigo, porque supus que
através do seu relato poderia fazer-se visível o invisível do terreno secreto
em que transitam as fantasias, os afetos e as relações de poder entre pais e
filhos quando um de seus integrantes adoece e desestrutura os demais.
Não a conheciam. Então me dirigi à minha biblioteca, busquei o Novo
Testamento e comecei a ler.
c.2) Parábola do filho pródigo
“Também disse: Um homem tinha dois filhos.
E o mais moço disse a seu pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me
corresponde; e o pai repartiu os bens.
Não muitos dias depois, juntando tudo, o filho mais moço se foi para
uma província distante; e ali desperdiçou os bens vivendo perdidamente.
E quando havia gasto tudo, veio uma grande fome naquela província
e começou a faltar-lhe.
E foi e se apoiou em um dos cidadãos daquela terra o qual o enviou à
sua fazenda para que criasse porcos.
E desejava encher seu ventre com as alfarrobas que comiam os porcos, mas ninguém lhe dava. E caindo em si disse: Quantos empregados na
casa do meu pai têm abundância de pão e eu aqui padeço de fome!
Me levantarei e irei até meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e
contra ti. Já não sou digno de ser chamado de teu filho; faz-me como um
de teus jornaleiros.
E levantando-se veio a seu pai.
E quando estava longe, viu seu pai e foi movido pela misericórdia e
correu e se atirou sobre seu pescoço e o beijou.
E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e contra ti, e já não sou
digno de ser chamado de teu filho.
Mas o pai disse a seus servos:
Peguem as melhores vestes e vesti-o; e ponham um anel em sua mão e
132 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 133
Luis Kancyper
sapato em seus pés. Tragam o bezerro gordo, matem-no e comamos e façamos festa.
Porque este meu filho estava morto, e reviveu; se havia perdido, e foi
achado. E começaram a regozijar-se.
E seu filho mais velho estava no campo; e quando veio, e chegou perto da casa, ouviu a música e as danças;
E chamando um dos criados lhe perguntou o que era aquilo.
Ele lhe disse: Teu irmão voltou;
E teu pai mandou matar o bezerro gordo por tê-lo recebido bom e são.
Então se enfureceu, e não queria entrar. Saiu, portanto, seu pai e lhe
rogava que entrasse.
Mas ele, respondendo, disse ao pai: Eis me aqui, tantos anos te sirvo,
não tendo te desobedecido jamais, e nunca me deste nem um cabrito para
divertir-me com meus amigos.
Mas quando veio este teu filho, que consumiu teus bens com prostitutas, mandaste matar para ele o bezerro gordo.
Ele então lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todas minhas
coisas são tuas.
Mas era necessário fazer festa e regozijar-nos, porque este teu irmão
estava morto, e reviveu; se havia perdido, e se achou.” (S. Lucas, XV).
O pai entendeu imediatamente a mensagem dessa dinâmica particular
que se tramava entre os irmãos e entre o filho mais velho e ele. Compreendia intelectualmente, mas não aceitava a posição de Adrián, enquanto que a
mãe, depois de secar as lágrimas, me olhou com desesperança e disse:
Compreenda, doutor, que nossa situação é muito difícil e às vezes terrível.
Assinalei-lhes que compreendia e admitia a dolorosa e preocupante
situação, mas que Adrián se opunha a continuar girando ao redor do eixo
de Flávia e das angústias que esta gerava nos pais, pois lhe atribuíam excessivas responsabilidades e culpas que o afetavam mental e fisicamente.
Mas que isso não significava, de nenhuma maneira, uma ruptura de seus
laços solidários para com os componentes da família.
Os pais me cumprimentaram com amabilidade e com dor.
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
Tive mais duas sessões a sós com eles e inferi que lhes resultava quase
impossível processar o luto narcisista, devido ao perigo que acarretava para
a homeostase familiar o abandono da instalação narcisista depositada no
filho homem como o vicário duplo especular deles.
Quando fechei a porta do meu consultório, voltaram a ressoar em mim
as palavras da mãe de Adrián: Compreenda, doutor, que nossa situação é
muito difícil e às vezes terrível.
Nesse momento despertou em mim o desejo de escrever, como um
intento de dar corpo à minha experiência clínica e a às inferências
metapsicológicas acerca dos efeitos que, em certas vidas, pode exercer a
presença de um filho-irmão perturbado ou morto. Recordei a importância
que tiveram os complexos fraternos nos processos identificatórios e
sublimatórios em três eminentes criadores: Vincent Van Gogh, Salvador
Dali e Ernesto Sábato. Lembrei das marcas que deixaram em suas vidas e
em suas obras o infausto acontecimento de terem nascido logo e para substituir um irmão morto e serem, além disso, os portadores do mesmo nome
do duplo consangüíneo falecido, esse ser ominoso e maravilhoso, mortal e
imortal. Perguntei-me, parafraseando Freud quando asseverava que a anatomia é o destino, se a ordem do nascimento dos irmãos também era um
destino. Como resposta me veio uma citação de Freud à mente: “a posição
de uma criança dentro da série dos filhos é um fator relevante para a conformação de sua vida ulterior e sempre é preciso tomá-la em conta na descrição de uma vida” (FREUD, 1916).
Os meses transcorriam, e as resistências do pai cediam muito pouco.
Cada pagamento mensal representava uma batalha que desgastava Adrián
e o processo analítico. No começo do quinto ano da análise, ele recorda em
uma sessão:
Eu quando pequeno tinha uma roupa do Zorro. Era o que impunha a
ordem, a paz e a justiça. Ontem encarei meu pai em um round (ri). Estive
treinando à tarde, socando o saco. Gritamos bastante. Apenas me escutou,
mas creio que já é suficiente.
Minha mãe está do meu lado. Não quer que eu deixe o tratamento. Eu
134 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 135
Luis Kancyper
quero seguir um pouco mais, mas não muito. Ele segue me fodendo com o
dinheiro. Eu sei que não é o dinheiro, mas quem o controla é ele.
Muda o tom de voz e, enquanto manipula seu chaveiro, reflete:
Antes havia seres mais ou menos intocáveis, meus pais e minha irmã.
E agora, olhas para trás e vês que, na realidade, o gigante é um anãozinho.
Vês o verdadeiro ser que estava escondido por de trás desse boneco grandão e intocável.
Eu me sentia impotente, principalmente com minha irmã, que era tão
autoritária e tão monopolizadora. Ela segue sendo e meus pais lavam as
mãos. Foi como descobrir que são todos seres vulneráveis com seus prós e
seus contras.
Antes, eram meio superiores a mim; tinham uma tática para cada situação. Já peguei o jeito deles. E pensar que estava obstinado com a idéia
de que iria mudá-los.
Como podemos apreciar no fragmento dessa sessão, põe-se em evidência a desidealização gradual e não paroxística do objeto, do ego e do
vínculo, processo fundamental sem o qual não existe mudança psíquica ou
crescimento possíveis.
O processo de desidealização conduz à prova de realidade mediante a
retirada do elevado investimento (maravilhoso ou ominoso) que havia recaído tanto sobre o objeto supervalorizado (positiva ou negativamente)
quanto sobre a onipotência do ego, com a conseqüente reestruturação do
vínculo objetal.
A prova de realidade permite diferenciar o que é “simplesmente representado” do que é percebido e, portanto, institui a diferenciação entre o
mundo interior e o mundo exterior. Além disso, possibilita comparar o objetivamente percebido com o representado, com vistas a retificar as eventuais deformações desse último (LAPLANCHE; PONTALIS, 1971) .
A retificação do valor do objeto, do ego e do vínculo entre ambos, que
surge como efeito do processo da desidealização, pode apresentar-se de
forma abrupta (paroxística) ou instalar-se de um modo lento e progressivo
(gradual) (KANCYPER, 1990).
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
c.3) Desidealização paroxística
A desidealização paroxística, produzida quando o processo da
desidealização atinge o que anteriormente tinha papel defensivo para neutralizar o sentimento persecutório, pode levar a um desmoronamento melancólico do Selbstgefühl. Nesses casos, a desidealização acaba por denegrir totalmente o objeto e o ego e não prepara o caminho para aceitar um
novo processo, o da reparação, que conduziria a saldar as dívidas internas e
externas que se personificam nos ressentimentos e remorsos.
c.4) Desidealização gradual
O pagamento dessas dívidas está condicionado a um trabalho prévio,
a um processo de desidealização gradual que implica a discriminação e o
reordenamento da valorização do ego e do objeto.
Essa mudança na atribuição de valores se produz quando o sujeito
consegue assumir que na realidade efetiva aquele objeto original, outrora
supervalorizado e deslocado para múltiplos objetos atuais (o devedor externo), carece dos atributos de perfeição de que o próprio sujeito o havia
investido desde seu princípio do prazer infantil. Ao mesmo tempo, atenuam-se os sentimentos de culpa e as condutas autopunitivas ante os representantes do ideal do ego-superego (credores internos).
A desidealização do poder ilimitado do ego se produz a partir de que o
sujeito aceita resignar-se à inalcançável missão de dar cumprimento aos
ilimitados ideais de perfeição e de completude que provêm de sua autoimagem idealizada e dos ideais parentais, conservando o vínculo com o
objeto segundo pautas mais realistas e estáveis.
Antes havia seres mais ou menos intocáveis, meus pais e minha
irmã ... e pensar que estava obstinado com a idéia de que iria mudá-los.
As condições para atingir a desidealização se produzem somente depois que o sujeito tenha vencido múltiplas batalhas de ambivalência, alcançando desprender-se das amarras provenientes das capturas narcisistas de
seu ego ideal e do ideal de ego, batalha nas instâncias psíquicas ideais da
personalidade onde moram os restos da onipotência divina nos homens
136 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
3. Final de análise
Falar sobre o final da análise na adolescência atualiza uma problemática complexa. Implica considerar os conceitos explícitos e implícitos de
doença e de cura, de analisabilidade e do processo analítico em geral, nesta
fase em particular. Esse conjunto de fatores se reflete na maneira de
categorizar os elementos que se consideram pertinentes como indicadores
clínicos sobre o final da análise.
A literatura dos últimos anos tem se ocupado mais com interrupções e
situações de impasse do que com términos propriamente ditos, quando se
trata de análise com adolescentes. As teorias clássicas sobre o final da análise, em geral, se centravam em questões referentes ao analisando e ao analista, mas, ao incluir-se o conceito de campo analítico na adolescência,
entram em cena os pais do analisando. Antes de mais nada, o final da análise com adolescentes impõe a exigência de um trabalho psíquico adicional
pela necessidade de processar uma multiplicidade de lutos em três dimensões: narcisista, edípica e fraterna, no analisando, nos seus pais e também
no analista.
Podem-se distinguir dois critérios que não são excludentes em relação
ao final da análise: o critério que privilegia o modelo “médico de tratamento”, que supõe a supressão de sintomas e mudanças dos achados patológicos de caráter, e o critério que prefere utilizar o modelo de “processo”, que
aponta a uma modificação estrutural concebida como o essencial do mesmo, em que ocorre a aquisição de novas estruturas de funcionamento que
jamais seriam conquistadas sem a análise.
Não só os indicadores clínicos variam conforme seu lugar de origem.
Também os conceitos teórico-clínicos se modificam de acordo com o nível
escolhido para sua conceitualização. Para considerar a noção de fim de
análise creio ser pertinente fazê-lo desde a noção de processo de mudança
psíquica estrutural, coerente com a perspectiva desde a qual abordo essa
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 137
Luis Kancyper
incumbidos da missão de criar e/ou remodelar o objeto e o ego à sua imagem e semelhança.
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
relação, processo que é um conjunto interminável. O interminável é a permanente reestruturação que enfrenta o analisando em todas suas instâncias
psíquicas em inter-relação permanente com a realidade material e social.
O interminável seria a infinitude do processo, a busca de crescimento
mental e de integração através da análise e da auto-análise ulterior.
No capítulo VII de Análise terminável e interminável, Freud dizia:
“Não tenho o propósito de asseverar que a análise como tal seja um trabalho sem conclusão. O término de uma análise é, opino eu, um assunto prático. Não nos proporemos como meta limitar todas as peculiaridades humanas em favor de uma normalidade, nem demandará que os ‘analisandos
a fundo’ não registrem paixões nem possam desenvolver conflitos internos
de nenhuma índole. A análise deve criar as condições psicológicas mais
favoráveis para as funções do ego, com isso sua tarefa terá seguido todos os
trâmites” (FREUD, 1937).
Por fim, não esqueçamos que a relação entre analista e paciente se
baseia no amor à verdade, ou seja, na aceitação da realidade, livre de toda
ilusão e engano. A busca da verdade e a tolerância à dor psíquica produzida
pelo rechaço de toda ilusão ou engano seriam então uma meta geral da
psicanálise.
Essa divisão instrumental entre metas curativas e transformações estruturais, relacionada à verdade, à dor, ao conhecimento, à aprendizagem e
à identificação, poderia dispor de dados avaliáveis e processáveis.
Mas, no mesmo capítulo VII de Análise terminável e interminável,
Freud mantinha que, além da constituição egóica do paciente, também a
peculiaridade do analista demanda seu lugar entre os fatores que influenciam as perspectivas da cura analítica, facilitando ou dificultando a cura, tal
como o fazem as resistências.
Nesse sentido, seria útil levar em consideração o concernente à personalidade do analista, seus remanescentes neuróticos e/ou psicóticos, o papel da contratransferência e as vicissitudes na interação da dupla pacienteanalista. Seria útil, por exemplo, poder detectar as motivações inconscientes que atuam no analista: seja para querer “reter’ o analisando, prolongan138 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Final da análise como um momento de passagem
diferenciado durante o processo analítico
Sempre que analista e analisando possam estar livres de todo tipo de
pressões, o tema do término surgirá, de forma espontânea e somente no
momento oportuno, como conseqüência natural da interação dinâmica desenvolvida entre ambos os participantes ou da evolução alcançada no processo analítico. Isso requer uma atitude de atenção flutuante frente ao problema do término da análise, já que deverá ser como todo momento do
processo ao qual se chega sem que ninguém o proponha, algo que não está
sujeito a nenhum outro saber que não seja o da escuta. Isso nos confronta
com o fato de determinar a data de finalização da análise a partir do material que nos apresenta o paciente.
Partimos da suposição de que existiu um momento desencadeante a
partir do qual se inicia um período qualitativamente diferente, que inaugura um segmento específico do processo analítico: um período de término.
O desencadeador do processo de término seria como um salto qualitaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 139
Luis Kancyper
do sua análise, seja para desejar o término prematuro desta para “livrar-se”
daquele, ou para apressar o término de uma análise considerada
“satisfatória” por razões narcisistas.
Analisar significa etimologicamente des-ligar, des-atar, romper algum
falso enlace, revelar um auto-engano, destruir uma ilusão ou uma mentira.
O que caracteriza o processo analítico é o movimento conjunto de
aprofundamento dentro do passado e de construção do futuro. Se um trabalho analítico se torna possível, é porque o sujeito e o analista pensam que a
exploração do passado permite a abertura do futuro; pensam que as séries
complementares não constituem um determinismo mecânico e que se pode
sair das fantasias inconscientes pela via da interpretação e de construção do
eterno presente atemporal. Não esquecer que a história do sujeito constitui
uma dimensão essencial do que deve ser revelado em uma análise.
O término da análise aponta por si mesmo a um conceito relacionado
à temporalidade (BARANGER, 1961).
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
tivo que se expressa mediante uma mudança fenomenológica observável
tanto na variação do relato como na diferente circulação afetiva. Coincide
com um clima afetivo muito mais afrouxado e expressivo do que o dos
primeiros anos de tratamento. O relato aponta para experiências que se
“fecham” ou se “terminam”, não expostas de forma manifesta em relação
ao tratamento. Além disso, o analisando retira funções egóicas que havia
depositado no analista e as recria dentro de si, exercendo-as na própria
sessão; reflete, além disso, sobre o transcurso de sua análise (LIBERMAN
et al, 1985).
O final da análise é uma dura prova para o narcisismo do analisando,
dos pais do analisando e do analista e reativa, por sua vez, antigos sintomas.
No mês de maio do seu quinto ano de análise, Adrián manifesta seu
estado de bem-estar e começa a efetuar um olhar retrospectivo acerca de
seu processo analítico.
Aos doze anos tive um forte ataque de asma sem internação e aos
dezoito tive outro episódio agudo, quando me internaram e me deram
corticóides. Foi nesse momento que minha mãe me intimou a me analisar.
Eu não queria, tinha preconceitos. Para mim, os que faziam psicanálise
eram loucos. Agora, depois de cinco anos de tratamento, sinto que está se
fechando um ciclo. É uma sensação, o ciclo se cumpriu e está chegando ao
seu fim.
Ultimamente me dá um pouco de preguiça de vir, não sinto necessidade, me sinto bem.
Eu também percebo uma mudança. Existe uma variação no caráter
dinâmico da situação analítica nos dois níveis: o conteúdo ideativo por um
lado e a circulação afetiva pelo outro. Lembro como ele havia chegado
deformado pela ingesta de corticóides e comparo com sua atual expressão
alegre e diáfana.
Concordo que podemos começar a pensar acerca da finalização dessa
fase e começo a perceber os movimentos inaugurais do trabalho do luto
concernente à finalização de nosso vínculo na tarefa psicanalítica. Começo
140 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 141
Luis Kancyper
a interrogar-me se eu me modifiquei a partir de nossa relação e evidentemente advirto que Adrián gerou mutações em mim.
Sair de casa e me emancipar é toda uma decisão. Necessito conseguir
emancipar-me economicamente. Tenho vontade de fazer um projeto junto
com Mariela. Tenho vontade de ir morar com ela e assumir uma série de
responsabilidades, mas também não sei se quero assumir. Não sei se quero
primeiro ir com Gabriel à Europa por dois ou três meses. Não sei bem o
que quero.
Pergunto-lhe se talvez ele não saiba bem se quer terminar o tratamento
comigo.
Ir embora daqui é como começar uma nova carreira e não é tão definitivo. A gente pode dar marcha a ré, creio que aqui posso voltar, não é
irreversível. Essa situação é diferente que sair e voltar para casa; não
gostaria de voltar a morar com meus pais e com minhas irmãs. Sentiria
isso como uma derrota, enquanto que voltar aqui não o seria, e sim uma
mudança de estratégia simplesmente.
Entretanto, não é pouco o que me custa assumir-me mais adulto; gostaria de me sentir ainda adolescente. Ri com ar velhaco: Eu ainda sou um
adolescente porque quero ser, franca e simplesmente. A gente passa a ser
adulto quando chega a ser adulto e não podes evitá-lo e é irreversível. Não
sei, é preferível que nos separemos antes que a rotina nos coma. A rotina é
destruidora.
Interpreto que hoje começa uma série de despedidas e que talvez ele
prefira pular por cima desse período.
Creio que sim. O problema é que não me resta outro caminho. Sinto
que o ciclo aqui está se fechando, e eu estou tratando de evitá-lo o máximo
possível. São etapas que a gente passa, como te acontece no secundário.
Quando estás no último ano, dizes “quero terminar”, e quando terminas dizes “quero voltar”, mas tenho esses vaivéns também aqui. Minha
vida é como um barco que vai e vem, conforme o jeito que me acordei.
Assinalo-lhe que hoje concordamos em transitar pela última etapa do
processo analítico. Etapa que se estendeu ao longo de quatro meses nos
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
quais se elaboraram alguns dos lutos inerentes à finalização da análise,
tanto nele, quanto em seus pais e em mim.
Duas semanas após a combinação de iniciar a fase do término, a mãe
foi internada em um hospital por uma séria doença. Como encerramento da
apresentação do processo psicanalítico de Adrián, transcrevo a seguir um
fragmento de uma sessão na qual se põe em evidência o trabalho
elaborativo e a superação da fantasia familiar dos vasos comunicantes e a
desativação da auto-imagem narcisista do “burro de carga”.
Uma coisa é ter de dar conta de uma situação, e outra coisa é carregála. Minha mãe adora carregar culpas alheias. Qualquer culpa que ela vê
por aí, a carrega nas costas e a leva como se fosse um burro carregado de
culpa. Ela é muito generosa, não pode dizer não. O máximo que pode dizer
é: vamos ver. Tem um instinto de dizer sim para todos.
A gente tem papéis na medida em que os aceita. Quando esse papel
não satisfaz mais, não devemos nos deixar carregar com todas as culpas.
Eu não quero mais me encarregar dos problemas de minha irmã. Em casa,
entramos em uma confusão na qual, de saída, todos somos culpados de
tudo.
Eu quero terminar com esse conluio. Quero ser direto. Hoje disse à
minha mãe: tu estás doente porque te coube estar, mas não és culpada de
estar doente. Até se sente culpada porque cuidamos dela e estamos tristes.
Eu creio que foi a excessiva preocupação que a deixou doente. Por isso
fico brabo com ela, uma vez que não queria que seguisse se preocupando
tanto.
Se preocupa com tudo e segue se preocupando. Minha mãe é o burro
de carga da família. Eu já não sou mais. Acabou-se. Não sou responsável
pelas atitudes dos outros e sim pelas minhas. Antes qualquer culpa que
flutuava e que não tinha dono eu agarrava. Desta vez não tenho nada que
ver. Basta. Terminou.
142 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Na adolescência, múltiplos jogos de forças se contrapõem dentro de
um campo dinâmico: os movimentos paradoxais do narcisismo nas dimensões intra-subjetiva e intersubjetiva e as relações de domínio entre pais e
filhos e entre irmãos. Através da descrição do processo analítico de um
adolescente com duração de cinco anos, o autor mostra seu começo, sua
fase intermediária e sua finalização. São enfocados, através do caso clínico: a base metapsicológica do processo; o trabalho com as auto-imagens
narcisistas e com os complexos edípico e fraterno; a questão do filho-progenitor e do irmão-progenitor; o reordenamento identificatório; a confrontação geracional; e a ressignificação de traumas anteriores.
Summary
The Psychoanalytical Process in the Adolescence: Metapsychology and
Clinic
In the adolescence, multiples games of power oppose to each other within a
dynamic field: the paradoxical movements of the narcissism in the intra and intersubjective dimensions and the relations of ascendancy between parents and children
and among siblings. Through the description of the 5-year analytical process of
an adolescent, the author portrays its beginning, intermediate phase and its end.
The clinical case focuses on the metapsychological base of the process; the work
with the narcissistic self-images and with the oedipal and fraternal complexes;
the issue of the son-forefather and the brother-forefather; the re-arrangement of
the identity; the confrontation between generations; and the new significance for
previous traumas.
Sinopsis
El Proceso Psicoanalítico en la Adolescencia: Metapsicología y Clínica
En la adolescencia, múltiples juegos de fuerzas se contraponen dentro de un
campo dinámico: los movimientos paradójicos del narcisismo en las dimensiones
intrasubjetiva y intersubjetiva y las relaciones de dominio entre país e hijos y
entre hermanos. A través de la descripción del proceso analítico de un adolescente con duración de cinco años, el autor muestra su inicio, su fase intermediaria y
su finalización. Se enfocan, a través del caso clínico: la base metapsicológica del
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 143
Luis Kancyper
Sinopse
O PROCESSO PSICANALÍTICO NA ADOLESCÊNCIA:
METAPSICOLOGIA E CLÍNICA
proceso; el trabajo con las autoimágenes narcisistas y con los complejos edípico
y fraterno; la cuestión del hijo-progenitor y del hermano-progenitor; el
reordenamiento identificatorio; el confronto generacional; y la resignificación de
traumas anteriores.
Palavras-chave
Adolescência; Processo psicanalítico; Fronteiras geracionais; Complexo fraterno; Clínica; Metapsicologia; Ressignificação.
Key-words
Adolescence; Psychanalytic process; Gerational frontiers; Fraternal complex;
Clinic; Metapsychology; Resignification.
Palabras-llave
Adolescencia; Proceso psicanalítico; Fronteras geracionales; Complejo fraterno; Clínica; Metapsicología; Resignificación.
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Dra. Heloisa Helena Poester Fetter
Revisão da tradução: Dra. Ane Marlise Port Rodrigues
Dr. Luis Kancyper
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146 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
“O complexo de Édipo ofereceu à criança duas possibilidades de satisfação, uma ativa e
outra passiva. Ela poderia colocar-se no lugar de seu pai, à
maneira masculina, e ter relações com a mãe, como tinha o
pai, caso em que teria sentido
o último como um estorvo; ou
poderia querer assumir o lugar
de sua mãe e ser amada pelo
pai, caso em que a mãe se tornaria supérflua.”
(Freud, 1924, p.176).
Paulo Marchon
Membro efetivo da Sociedade
Brasileira de Psicanálise do Rio de
Janeiro, da Sociedade Psicanalítica
do Recife e do Núcleo Psicanalítico
de Fortaleza.
Uma pergunta natural que
direciona os estudos dos antropólogos e também nossa curiosidade seria a de saber como viveram nossos
antepassados, como sobreviveram
naquele meio; claro, como não po-
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Paulo Marchon
A Universalidade
do Complexo de
Édipo
A UNIVERSALIDADE
DO
COMPLEXO
DE
ÉDIPO
deria deixar de ser, com o olho no buraco da fechadura, inquisitivamente,
estaríamos tentando perscrutar a vida sexual deles – afinal, eles são nossos
pais. Iremos começar, então, antes de quando begin the beginning, na companhia de Charles Darwin e de sua lei de seleção natural. Esta lei exprimiria o objetivo, a meta de todos os seres vivos, que é a de, simplesmente,
fundamentalmente, essencialmente, produzir filhos e, através deles,
eternizar a espécie e, assim, nos tornarmos imortais – deuses.
Contrariando totalmente Vinícius de Moraes, maktub, estaria escrito:
“Filhos! Melhor tê-los”. Além de tê-los, dotá-los, se possível, de alguma
mutação favorável a sua vitória e sobrevivência no ambiente. Tal fato explicaria o surgimento de novas espécies, e, então, a imortalidade associarse-ia ao Criador por excelência – um Deus especialíssimo. À Eternidade
somar-se-ia a Criatividade.
Os indivíduos que não tiveram pais dotados do gene encompridador
de pescoço-corpo-e-pernas não conseguiram atingir os brotos do alto das
árvores e morreram sem conseguir ser girafas. Estas mereciam um poema
diferente do que Alberto de Oliveira dedicou às palmeiras, um antiepitáfio:
“Ser palmeira, viver num píncaro azulado...”. Ser girafa, eternizar-se
lamarckianamente comendo brotos...
A aspiração premente de produzir filhos é uma forma de comportamento que “evolui em virtude do que os biólogos chamam de comportamento adaptável, ou seja, aquele que capacita o indivíduo a sobreviver e a
se reproduzir com maior sucesso” (LEAKEY; LEWIN, 1978, p.202).
Estudaremos a relação entre os animais e suas crias. Entre os sapos
não há maior problema em cumprir o destino prolífero. O macho e a fêmea
depositam em algum lugar as células germinais e dão tchau às ditas células.
Não é necessário nenhum cuidado com os girinos-filhotes.
O problema surge quando se torna necessário aos animais cuidar da
cria. Se levarmos em consideração a lei de Darwin, cada um deles só pensaria em largar para o consorte tal função e “se mandar” para fertilizar
outro parceiro: mais filhos, maior garantia da Imortalidade! No mundo animal, as fêmeas perdem esta corrida para os machos. Exceção notável: os
148 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 149
Paulo Marchon
peixes! Os peixes machos têm que aguardar as fêmeas depositarem seus
óvulos, que são bem mais pesados que os espermatozóides deles. Já se viu,
no meio da água – lei da gravidade em ação, densidade maior do óvulo em
relação ao espermatozóide – a triste situação do peixe macho se declara: o
pobre coitado sabe que, se quiser filhos, terá que esperar a esperta consorte
depositar sua parte e, só então, ele poderá lançar a parte dele, enquanto
ela... some! O biólogo Robert Trivers chama esta situação de “enrascada
cruel”. Como se vê, é um pensamento tipicamente machista, afinal ele se
chama Robert Trivers e não Roberta... O peixe macho não pode fugir, pois
precisa de descendência. E, então, algo de extraordinário se passa: abandonado pela fêmea, passa a cuidar dos peixinhos. Dessa forma, a seleção natural favorece o desenvolvimento da afeição paterna em vários tipos de
peixes. E, então, como diz a canção, algo notável se dá: o amor acontece
na vida... O cuidado cria o amor!
Nos pássaros, observam-se algumas diferenças: se eles querem, realmente, ter filhos, em muitos casos, eles têm que ser solidários mesmo, pois
alimentar um filhote é tarefa para dois. Um só não suporta. Por este motivo, o macho coopera, e a monogamia é comum. Antes de tudo, o macho
providencia belas roupagens para conquistar uma consorte. Faz uma corte
à amada com requintes da Belle Époque e, após longo namoro, parece que,
para certificar-se de que ela não esteja grávida de outro, eles se casam.
Afinal, ele precisa ser pai e ter certeza de que ele é o pai; por isso o namoro
seria longo. Vejam como esses bichos sabem de coisas extraordinárias...
Mas o comum mesmo, no reino animal, não é a monogamia – um só
cônjuge –, e muito menos a poliandria – uma fêmea com vários machos. A
natureza, ou Deus, marcou a todos os seres com o “crescei e multiplicaivos”, mas às fêmeas impôs um ônus especial, através de óvulos que contêm uma contribuição energética e protéica bem maior do que o reles e
microscópico espermatozóide e ainda exigiu que elas não pudessem fazer
como os machos, isto é, correr da cena e “se mandar” para continuar a
cumprir o preceito bíblico e darwiniano. Quanto maior o número de filhos,
mais certeza de que um deles irá sobreviver e, assim, você será eterno.
A UNIVERSALIDADE
DO
COMPLEXO
DE
ÉDIPO
Poucas fêmeas tiveram a sorte de ser peixe e deixar o macho na “enrascada
cruel”. Disso resultou o predomínio da poliginia, um macho com diversas
fêmeas. Saibam que entre os primatas somente os gibões acrobatas e os
siamangos são monógamos – gloriosa exceção! É bom esclarecer que estes
símios têm o mesmo tamanho das fêmeas. Eis o motivo da exceção: parece
que tamanho é documento. Daí meu conselho ao sexo frágil: torne-se forte!
Lendo Jane Goodall – Uma janela para a vida – 30 anos com os chimpanzés da Tanzânia –, qualquer um ficará comovido com o cuidado de
Melissa, a amorosa mãe-chimpanzé, para com sua família, bem como com
as atenções dos irmãos entre si, e as diversas e diferentes famílias convivendo. Há também as rivalidades entre os chimpanzés que se tornam adultos, e começam longas lutas para tomar o posto de chimpanzé dominante.
Apesar dessas lutas, vê-se igualmente o reconhecimento da ajuda e participação grupal, uma razoável união entre eles e, por vezes, a partilha de alimentos. Percebe-se a inventividade deles na solução de alguns problemas
de sobrevivência, criando, por exemplo, utensílios. Além disso, Jane
Goodall observa, também, a taxativa proibição, por parte de Melissa – e de
todas as mães chimpanzés –, dos desejos incestuosos do filho. Lendo o
livro da corajosa pesquisadora, pode-se ver, também, um distanciamento
na relação entre Melissa e filho após a investida incestuosa do mesmo. Os
chimpanzés não têm noção de paternidade, pois são sexualmente promíscuos. A promiscuidade provoca certos problemas, tais como o sofrimento
dos pequenos chimpanzés, quando vêem suas mães, nas épocas do cio,
terem relações sexuais com diversos machos. Nessas ocasiões, eles lutam
contra os chimpanzés, tentando, inutilmente, separá-los das mães.
Mas vamos ao tratado de Etologia, de Eibesfeldt (1978, p.428), no
qual ele afirma taxativamente que entre os macacos japoneses o incesto
entre mãe e filho é tabu, forbidden, proibido. O autor comenta a possibilidade de uma base biológica para a interdição do incesto e diz que Bischof
(1972) investigou o assunto, indicando haver uma base inata para tal fato,
universal na espécie humana.
Vendo agora a perspectiva dos fatores ambientais, observa-se inibição
150 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
* Plural de kibutz, fazenda coletiva em Israel.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 151
Paulo Marchon
sexual entre pessoas que cresceram juntas, ou mesmo, nos kibutzim* de
Israel, entre seus habitantes, que não são irmãos.
Deixemos os chimpanzés e examinemos agora nossos outros parentes
mais próximos – os gorilas –, uma vez que o elo que nos une aos nossos
ancestrais não foi encontrado ainda. Na escala animal, contentemo-nos
como primos. Então, observando os gorilas, percebe-se que vivem em
“grupos de 8 a 10 indivíduos, dominados por um grande macho. Os jovens
solteiros perambulam em torno, sozinhos ou em grupos de machos como
eles, aguardando a chance de possuir algumas fêmeas”. Leakey e Lewin
(1978) fazem esta descrição e colocam uma nota: “obviamente, este modelo é muito semelhante àquele imaginado por Freud” (p.209). Este gorila
macho tem o dobro do tamanho da fêmea. Por isto, tome poliginia! Já entre
os chimpanzés-gibões, cujas fêmeas são tão fortes quanto os machos e têm
o mesmo tamanho deles, instaura-se a monogamia. Reforço o que disse há
pouco: tamanho é documento. E ainda complementaria para o sexo frágil:
fundamentalmente, crescei e não tanto multiplicai-vos...
Como seria a vida do homem primitivo?
A fêmea do hominida – o nosso homem da aurora do mundo – provavelmente continuara, com algumas modificações, o que as primas gorilas e
chimpanzés faziam e fazem. Ela fora mobilizada afetivamente em relação
ao seu filhote. A ligação entre mãe e filho fora o núcleo social da pequena
família. Ela tivera que carregá-lo às costas na sua atividade de coleta de
vegetais, frutos e tubérculos, enquanto o pai se empenhara na caça. Os dois
pais se uniriam, portanto, para cuidar do filho. A partilha dos alimentos –
um passo fundamental na economia humana – fora realizada através da
coleta exercida pela mãe e da caça realizada pelo pai. Este foi – insistimos
– um passo fundamental para a evolução do ser humano. Como continuou
o compromisso paterno? Pois, convenhamos, de certa maneira, o hominida
macho foi pescado pela fêmea e pelo filhote e, de alguma forma, virou
peixe... Daí adveio a monogamia? Não sabemos. Porém vê-se em povos
primitivos modernos uma afinidade que engloba pai, mãe e filho.
A UNIVERSALIDADE
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DE
ÉDIPO
O estudo desses povos primitivos que sobrevivem atualmente permitiu o conhecimento de um intrincado conjunto de regras para o casamento.
A instituição da exogamia, isto é, do fato de o casamento não poder ser
realizado entre pessoas do mesmo bando ou clã, mas sim entre as de um
bando e outro, tornou-se uma regra reinante em todas as regiões. Os membros do clã sabem perfeitamente quais são seus parentes e, assim, com
quem podem, ou não, se casar. Os babuínos e os chimpanzés são,
preferentemente, exógamos, mas seria exigir demais deles imaginar que
elaborassem uma cartilha detalhada de parentesco. Evidentemente a
exogamia nos humanos constitui um meio para evitar o incesto. As regras
exogâmicas eram e continuam sendo, entre os povos primitivos, muito estritas e limitantes. Tal se deveria, provavelmente, ao desejo incestuoso que
estaria rodeando a todos e sempre presente na alma humana.
Em Totem e tabu (1913, p.10), entre inúmeras referências aos povos
primitivos, Freud relata o costume de um povo na Melanésia. Lá, um jovem menino, quando crescia, não podia mais conviver na mesma casa com
sua mãe e suas irmãs. Não podia mais vê-las, embora pudesse estar, livremente, com o pai. Não podia sequer falar o nome delas. Freud retirou esse
exemplo e outros, inúmeros outros, semelhantes ou mais severos ainda, da
monumental obra de James Frazer, Totemismo e exogamia, obra de quatro
volumes, totalizando 2.200 páginas!!!
Embora o totemismo esteja hoje desacreditado, e as hipóteses de
Freud sobre o princípio da humanidade estejam muito questionadas, o estímulo que ele deu à antropologia foi tal que o admirado mestre da dessa
ciência Franz Boas, em 1938, afirmou: “É amplamente devido a Sigmund
Freud que nós compreendemos a importância destes esquecidos incidentes
da infância, que permanecem uma força viva através da vida e, quanto
mais intensamente são esquecidos, mais potentes se tornam”.
Logo após a publicação de Totem e tabu, porém, o grande antropólogo
Westermach condenou de forma esmagadora a obra, dizendo, entre outras
coisas: “Que pai ameaçará seu filhinho com a castração porque abraça e
beija sua mãe?” e depois: “Não existe razão alguma para atribuir os atri152 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
A verdadeira solidariedade, no entanto, existe apenas entre os membros de cada subclã. O subclã é uma divisão local do clã; seus membros reivindicam ascendência comum e, portanto, verdadeira identidade de substância corpórea, estando também ligados ao local de onde
emergiram seus antepassados. É a esses subclãs que se aplica a noção
de categoria hierárquica...
No que diz respeito ao parentesco, o principal fato que devemos manter em mente é que os nativos são matrilineares, e que tanto a sucessão na hierarquia como a participação nos grupos sociais e a herança
dos bens materiais são transmitidos em linha materna. O tio materno
de um menino é considerado seu verdadeiro guardião; há, entre o
tio e o sobrinho, uma série de mútuos deveres e obrigações que
estabelece um relacionamento muito estreito e importante entre
ambos. O verdadeiro parentesco, a verdadeira identidade de substância, supõe-se que exista apenas entre o indivíduo e os parentes
de sua mãe. Dos parentes de primeira linha, irmãos e irmãs são considerados os mais próximos. No momento em que sua irmã ou irmãs se
tornam adultas e se casam, o homem passa a trabalhar para elas. Apesar disso, porém, entre eles existe o tabu mais rigoroso que tem início
na infância. Nenhum homem pode gracejar ou falar livremente
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 153
Paulo Marchon
tos entre pai e filho a uma rivalidade sexual”. Marret, outro famoso antropólogo, disse: “é pura história” – “just so story”. E esse comentário desagradou imensamente a Freud, porque ele pensou que fosse feito por um
outro antropólogo, ex-paciente seu. Muitos anos depois, em 1955,
Kluchkoln, um dos mais importantes antropólogos americanos, escreveu
para Ernest Jones: “Estou convencido de que a universalidade do complexo de Édipo e a rivalidade entre crianças já ficaram confirmadas pelos
trabalhos antropológicos”.
Vamos retroceder, no entanto, ao ano de 1922, quando Malinowski
publicou a obra Argonautas do Pacífico Ocidental, após um ano de bemelaborada estadia entre os povos da Ilha Trobriand, vivendo como “um
nativo entre nativos”, segundo a frase de James Frazer, no prefácio. Vamos
ler as próprias palavras do famoso antropólogo:
A UNIVERSALIDADE
DO
COMPLEXO
DE
ÉDIPO
quando na presença da irmã; nem mesmo lhe é permitido olhar
para ela. A menor alusão a assuntos sexuais, ilícitos ou matrimoniais,
referentes a um irmão ou irmã, feita em presença do outro, constitui
grave insulto e motivo de grande mortificação. Quando um homem se
aproxima de um grupo com o qual sua irmã está conversando, ou a
irmã se retira ou ele deve imediatamente afastar-se.
O relacionamento entre pai e filhos é notável. A paternidade fisiológica é desconhecida: não se supõe existir nenhum laço de parentesco entre pai e filho, a não ser aquele entre o marido da mãe e o
filho da esposa. Apesar disso, o pai é o amigo mais próximo e afetuoso de seus filhos. Em muitas ocasiões, pude claramente observar
que, quando a criança – menino ou menina – estava doente ou em apuros, ou ainda quando era necessário que alguém se expusesse a algum
perigo ou se desse a algum trabalho em benefício da criança, era sempre o pai que se preocupava em tomar as devidas providências,
nunca o tio materno. Essa regra é claramente reconhecida pelos nativos, que a expõem de maneira explícita. Em questões de herança e
transmissão de bens materiais, um homem sempre demonstra tendência a fazer o máximo que pode pelos filhos, levando em consideração seus deveres para com a família de sua irmã.
É muito difícil resumir em apenas uma ou duas sentenças as diferenças
existentes entre os dois tipos de relacionamento – de um lado, as relações entre pai e filhos; de outro, as relações entre a criança e seu tio
materno. O melhor modo de resumi-las é dizer que o estreito relacionamento entre a criança e o seu tio materno é considerado válido
por lei e por tradição, enquanto que o interesse e afeição do pai
pelos filhos são devidos a questões afetivas e ao relacionamento
pessoal mais íntimo existente entre eles. É o pai que os vê crescer, é
ele quem auxilia a mulher em muitos dos pequenos e carinhosos
cuidados dispensados à criança, é ele quem carrega os filhos pela
aldeia, é ele quem lhes proporciona a instrução que obtêm observando os mais velhos no trabalho e aos poucos juntando-se a eles. Em
questões de herança, o pai dá aos filhos tudo o que pode – e isso ele
faz espontaneamente e com prazer. O tio materno sob compulsão do
costume dá ao sobrinho aquilo que não lhe é permitido reservar para os
seus próprios filhos (p.67-68) (grifos nossos).
154 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Por dois anos, o menino da Ilha Trobriand dorme com a mãe e é nutrido por ela. Além do mais, a mãe estando submetida ao tabu sexual
neste tempo pode estar obtendo considerável satisfação libidinal deste
arranjo e a sedução inconsciente poderia não ser improvável. Então,
quando o menino atinge três anos – rua! Ao mesmo tempo ela desmama-o e não mais permite que ele durma com ela.
Daí decorre a conclusão de Whiting de que essa situação induziria o
menino a desenvolver um forte desejo de matar e comer a mãe.
O artigo de Wax tem o sugestivo título de Malinowski, Freud and
Oedipus. Apenas sua parte inicial é informativa e interessante.
Nós não precisaríamos, porém, do que Whiting escreveu. Bastaria o
que Malinowski deixou claro, ao descrever o povo da Ilha Trobriand: há o
tabu em relação às irmãs; o pai é o marido da mãe; o pai é o amigo mais
próximo e afetuoso dos filhos; é sempre o pai e não o tio materno – o
avúnculo – que trata as doenças dos filhos; na hora da herança o pai procura “fazer o máximo” pelos filhos; é o pai quem cuida do rebento e o vê
crescer, auxilia a mulher, etc. Precisa mais? Wax acrescenta que a jovem da
Ilha Trobriand, ao se casar, mudava-se para onde residia o marido, ou seja:
avúnculo – tio materno – fora! Só depois dos 6 anos de idade da criança, o
tio materno será chamado a ajudá-la. A autoridade de guardião é do tio,
porém o que nos interessa é a rivalidade erótica entre adulto e criança, e,
nesse aspecto, afetivamente, para a criança que Malinowski descreve, o pai
era o pai. Malinowski e seus seguidores ancoravam-se apenas no fator autoridade como sendo o único a considerar. Logo, se era o avúnculo – tio
materno – que a exercia, Malinowski concluía que não havia complexo de
Édipo. Restringia a função de pai a uma autoridade a partir dos seis anos. É
pouco...
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 155
Paulo Marchon
Tendo em vista o exposto, Malinowski declarou alto e bom som: os
povos da Ilha Trobriand não têm complexo de Édipo; logo, o famoso complexo não é universal. Acrescentemos o que diz J. Whiting, em um trabalho de 1960, “Totem e tabu, uma reavaliação”, transcrito por Murray Wax
(1990. p.51):
A UNIVERSALIDADE
DO
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Dois anos depois do livro de Malinowski, Ernest Jones é convidado a
pronunciar uma conferência na Sociedade Britânica de Antropologia com
o título “Psicanálise e Antropologia”. Ela provocou uma discussão acalorada, a tal ponto que um dos antropólogos não queria admitir nem ao menos a publicação da conferência nos Anais da Sociedade, publicação esta
que era tradição da casa. Meio século depois, em 1977, o antropólogo
Meyer Fortes apresentou um magnífico trabalho com o título “Costume e
consciência na perspectiva antropológica”, a convite da Sociedade Britânica de Psicanálise, na “Conferência em memória de Ernest Jones”. Com
uma grande autoridade conquistada através do valor de seus estudos em
Antropologia, Meyer Fortes afirma, no princípio do trabalho, que a “Antropologia Social não seria o que é hoje sem o desafio da Psicanálise”.
Malinowski desejava substituir o Complexo de Édipo freudiano pelo
“complexo nuclear familiar”, malinowskiano. Segundo este último, por
organizar-se matrilinearmente, a família não se veria submetida às forças
infantis inconscientes de amor e ódio ao pai, com suas raízes no desejo
sexual reprimido pela mãe, fenômenos estes que, então, existiriam apenas
na família comum, a patriarcal.
Meyer Fortes declara taxativamente que trinta anos de trabalhos de
campo, efetuados por diversos antropólogos em muitas partes do mundo,
em famílias do sistema matrilinear, tendem a dar apoio às teses de JonesFreud e não às interpretações de Malinowski. Ele cita especificamente a
pesquisa de Gough entre os Nayars, do sul da Índia, de linhagem
matrilinear, que apresentam o complexo de Édipo “normal”, dirigido para
os pais. Ele menciona também suas próprias pesquisas entre os Ashanti,
também matrilineares, que amplamente confirmaram o trabalho anterior.
Meyer Fortes considera que Malinowski falhou quando interpretou erradamente o papel do pai-Trobriand na socialização de seu filho, daí resultando
não conseguir ele compreender o tipo de autoridade moral e responsabilidade investida no genitor.
Porém Meyer Fortes abre o leque do problema e entroniza a questão
da verificação: “Como pode ser indiscutivelmente mostrado que o costu156 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 157
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me manifesto é um produto de, ou é gerado por, ou mesmo corresponde
diretamente a mecanismos mentais do tipo que é revelado pela Psicanálise?” Trata-se de uma questão importante que nós deixamos aqui em aberto. Logo após, Meyer Fortes afirma taxativamente: “a principal conclusão
é que a mente do homem trabalha essencialmente da mesma maneira
em todas as sociedades humanas. As diferenças seriam devidas ao contexto das relações sociais e ao material cultural à disposição do indivíduo” (grifo nosso). Na opinião dele, o grande resultado da discussão de
Jones versus Malinowski, em 1924, foi que “o recurso às percepções, aos
‘insights’ psicológicos e psicanalíticos tornaram-se indispensáveis”.
Depois cita um estudo de Freeman para comprovar o que dissemos
agora. Trata-se do estudo de um culto do povo Semang, o culto do “Deus
Trovão”, deus este cuja raiva se expressaria através de tempestades terríveis e devastadoras. Freeman se perguntava: por que a raiva do Deus Trovão e sua mulher – friso bem, os dois juntos – era imaginada como sendo
provocada pelo incesto ou outro pecado sexual? Por que a brincadeira de
certos animais ou simplesmente o fato de se ferir um parasita, algo que
poderia ser visto como uma coisa natural, trivial, também despertaria a ira
do Deus Trovão em forma de tempestades aterrorizantes e mortíferas?
Freeman dá uma interpretação psicanalítica ao fato, dizendo que o Deus
Trovão era o “Deus Pai” que representaria “as ameaçadoras e terrificantes
figuras de um superego agressivo”. Em outros termos, Freeman
correlaciona o fato de o povo Semang imaginar que o incesto seria o fator
desencadeante da tragédia, a uma terrificante perseguição efetuada por um
superego demoníaco.
Meyer Fortes comparou essa interpretação de Freeman a uma outra,
elaborada por um antropólogo sem luzes psicanalíticas, a respeito do mesmo culto ao Deus Trovão. Esta última apelava para uma vaga e imprecisa,
insípida e inodora “noção de ‘símbolos naturais’ despertados pelas reações afetivas primordiais diante de impressionantes fenômenos naturais”.
Meyer Fortes continua seu trabalho apresentando diversas pesquisas feitas
em diferentes lugares do mundo. Em primeiro lugar, aponta o estudo do
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antropólogo Tambiah sobre o ritual da entrada de um monge em um mosteiro budista. Meyer Fortes mostra a interpretação antropológica limitada
de Tambiah e a sua, que explicita uma problemática edipiana: submissão à
castração simbólica, através da renúncia à mulher, ao entrar para o mosteiro. Depois, Meyer Fortes descreve longamente seu trabalho de 1934, na
tribo dos Talensi, do Nordeste de Gana. Sobre aquele povo ele diz: “O
incesto com a própria mãe é impensável”.
Lévi-Strauss, sem dizer o nome do “santo”, critica essa posição de
Meyer Fortes, dizendo que, em suas polêmicas com a Psicanálise, ele, LéviStrauss, objetivava evitar que antropólogos, sociólogos ou historiadores se
deixassem levar pelas explicações tipo chave-mestra de que, segundo ele, a
Psicanálise é farta. Nesse sentido, Meyer Fortes teria ouvido o canto da
sereia freudiana... Lévi-Strauss afirma também que Freud e Marx tiveram
um papel capital na sua formação intelectual, mas que se desligou do Marx
político, ficando apenas com o filósofo. Com Freud aprendeu que “mesmo
os fenômenos mais ilógicos podiam ser submetidos a uma análise racional” (LÉVI-STRAUSS; ERIBON, 1990, p.140).
Não obstante suas críticas à Psicanálise, e o fato de ele considerar
Totem e tabu como um mito construído por Freud, “mito belíssimo, aliás”,
segundo suas palavras, a Etnologia é para Lévi-Strauss, antes de mais nada,
uma psicologia: “O que saímos a procurar ... são meios suplementares de
saber como o espírito humano funciona” (p.141). E saber como o espírito
humano funciona é, segundo o grande etnólogo francês, “fundamentalmente, tarefa para a Psicologia”, ou seja, nossa também, diria eu.
Em seu extraordinário livro As estruturas elementares do parentesco,
Lévi-Strauss reflete sobre a oposição fundamental entre natureza e cultura,
que seria, para ele, marcada pela interdição, pela proibição do incesto. Comenta que, à época em que publicou o livro, em 1949, não se conhecia
nenhum estudo que mostrasse, entre os animais, a existência de algo que
pudesse ser equiparado à evitação do incesto, porque se raciocinava em
termos de animais domésticos e estes não o evitavam. Ultimamente surgiram os estudos sobre animais em estado selvagem, e Lévi-Strauss comen158 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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tou: “os grandes símios – e outras espécies também – parecem estabelecer
que as uniões consangüíneas [incestuosas] entre eles são raras, quando
não tornadas impossíveis por determinados mecanismos reguladores”
(p.131). No entanto, pensa que é conclusão prematura o fato de etnólogos
considerarem a interdição do incesto como tendo suas raízes na natureza.
Ele é cético quanto a isso e acha que as interpretações dos fatos observados
é antropomórfica, ou seja, deturpada pela visão do homem.
Considera verdadeiros os fatos narrados pelos pesquisadores, como
Jane Goodall. Discorda é da interpretação dos mesmos. Segundo o grande
etnólogo francês, por exemplo, “a tendência a expulsar os animais jovens
do grupo pode não se dever a uma ‘proibição do incesto’ e sim a vários
outros motivos, entre eles a competição pelos alimentos, que parece a mais
provável” (p.131).
Perguntado, decênios depois, se ele manteria a idéia central de sua
obra de que a proibição do incesto mostra que “o domínio da cultura é o
universo da regra”, ele respondeu: “Se a proibição do incesto tivesse um
fundamento natural, não compreenderíamos bem como as sociedades humanas foram obcecadas por ela e empenharam-se com uma preocupação
maníaca em divulgá-la” (p.131-132) (grifo nosso). Pois bem, apesar desta
“preocupação maníaca”, Lévi-Strauss continua: “Poderíamos organizar
um florilégio dos provérbios e ditos que, nas sociedades sem escrita, revelam a freqüência dos desejos incestuosos” (p.132). E depois, ao comentar
“a paixão endogâmica nas sociedades européias tradicionais”, ele afirma, peremptório: “na França, no decorrer do século XIX, a proporção de
casamentos contraídos num raio de 5 km, no campo, era mais de 80%”
(p.132). Aquelas pesquisas sobre os kibutzim de Israel, que mencionamos
há pouco, ele as aniquila, dizendo que há estudos outros que as contradizem e acrescenta que, além do mais, pode haver uma orientação prévia
sobre o direcionamento da sexualidade entre os jovens moradores dos
kibutzim. O que permanece para nós, de todos esses estudiosos, e eu privilegiei, entre eles, os antropólogos, é que o problema do incesto está nas
proximidades da superfície da consciência e o mito de Édipo é a sua tradu-
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ção mais elaborada. Antes de prosseguirmos, porém, no estudo da terrível
tragédia de Sófocles, motivada pelo incesto, caberia aqui fazer uma pergunta no mínimo sacrílega: por que existe a interdição do incesto?
Podemos iniciar recorrendo a um grande antropólogo, James Frazer,
na sua famosa obra The golden bough (1978) – O ramo de ouro –, monumentais treze volumes, resumidos pelo autor em um conjunto de “apenas”
mil páginas. A antropologia evoluiu muito, e tal obra, hoje, não tem a expressão que teve outrora. O que nos importa, no entanto, é a opinião de
alguém que pensou sobre o incesto e apresentou uma hipótese. Ei-la:
“comumente se supõe que o incesto causa a morte” (p.186).
Frazer não diz uma palavra mais, porém depreende-se, só pode ser a
morte do pai. A sociedade humana estaria, assim, exposta a este perigo. Se
não houvesse esse freio, a interdição, a desordem e o caos imperariam. Não
haveria obstáculo a todo e qualquer prazer, o que culminaria na eliminação
da vida: matar e morrer.
Mas essa solução implicaria, também, não haver medo da morte, fato
que não nos parece ser real. Mesmo ateus convictos, que têm certeza absoluta, total, de que não existe vida após a morte e, assim, vivem em sua
forma mais pura o prazer de viver, evidentemente, exibem, pelo fato de se
manterem vivos, o medo de ver esse prazer interrompido. Seria uma solução ligada ao princípio do prazer-desprazer de Freud: o prazer de viver que
nos permite estar aqui dando nossa solução ao monólogo de Hamlet, “to be
or not to be”, ou seja, mui sabiamente, mui vivamente, vivendo. “Ave,
Cæsar, morituri non te salutant”. Modificamos as palavras dos gladiadores
da Arena Romana que, ao passarem diante do Imperador, diziam: “Ave,
Cæsar, morituri te salutant” – “Salve, César, os que vão morrer te saúdam”. Nós seríamos antigladiadores e diríamos, pelo menos como protesto: “Salve, César, os que vão morrer não te saúdam”. Por outro lado, há
aqueles que acreditam na possibilidade de “bem-aventurança eterna”, mesmo que tenham que realizar um breve estágio no Purgatório. Tais crentes,
então, experimentam esse duplo prazer na vida, o atual e o post mortem. Se
a morte vai permitir a bem-aventurança celeste, a vida nos garante este
160 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 161
Paulo Marchon
atual prazer de viver. De qualquer maneira, vamos nos agarrar ao certo,
pois mais vale um pássaro na mão... Em função disto tudo, em nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo, em nome da Ordem, da Vida, do Estatuto
da Condição Humana, o incesto – o prazer dos prazeres – exige a criação
da regra das regras... Se vocês quiserem atacar esta hipótese aqui delineada,
poderão dizer: mas, Paulo, você não contou o caso da mãe-chimpanzé,
Dona Melissa, uma senhora de vida sexual normal, e que, por isso, não
aceitou as investidas sexuais do seu filho? Você não falou também de outros casos semelhantes apontados por etólogos e pesquisadores de diferentes origens?
A fim de responder a vocês, poderei acrescentar ainda que este filho
rejeitado da Melissa tornou-se o chefão do grupo, derrotando os outros
chimpanzés após quatro anos de lutas memoráveis e botando para correr o
chefe anterior, que era seu antigo protetor. Isso tudo foi realizado sem nenhum assassinato. Pois bem, nem quando o filho se tornou o comandanteem-chefe do bando, ele ousou voltar a tocar na Dona Melissa. Não havia
pai, nem houve assassinato. A mãe resolveu o problema sozinha. A regra
das regras, então, não se deverá a um tipo de amor especial que se desenvolve, um amor como aquele do peixe que se torna pai porque virou pai
mesmo, no momento em que a fêmea foi para outros portos, outros mares,
deixando-o na “enrascada cruel”?
Passemos, agora, dos chimpanzés para os humanos, abordando o que
transcrevemos de Freud em nossa epígrafe, quando lembramos do Édipo
invertido. Então, vamos ao conceito de Complexo de Édipo mais desprezado, o invertido: será que essa maneira de pensar de Freud poderia nos permitir concluir que o incesto, o incesto verdadeiro, verdadeiro mesmo, da
mulher, seria a sua relação homossexual com a mãe, e não a relação sexual
com o pai? Vocês já ouviram falar de algum caso deste tipo? Incesto mãefilha? Eu não. Isto é inimaginável, não obstante toda intimidade que mãe e
filha desfrutam. Claro que o inimaginável pode existir. A realidade da vida
ultrapassa a arte e a imaginação. Mas, realmente, o marcante mesmo é a
relação inicial entre a mãe e a criança. Não podemos deixar de lembrar a
A UNIVERSALIDADE
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impregnação dos noves meses de gestação, que valem tanto para o menino
quanto para a menina. Poderíamos brincar um pouco e dizer que o peixe
macho, provavelmente, mostraria os primórdios de algum “sentimento”
desse tipo, do tipo da mãe que gera e cuida.
Será que isto nos permitiria compreender, não obstante ser uma terrível patologia, a ocorrência mais comum de incesto entre pai e filha? O
incesto entre irmãos era permitido para os faraós egípcios, a realeza
havaiana e também para os príncipes maias. Extraordinário, no entanto, é
saber que o Papa Júlio III, a pedido dos Reis Católicos da Espanha, autorizou a celebração de um casamento entre um príncipe maia e sua irmã. Ugh!
Argh! Se vocês quiserem transformar essa hipótese em algo de pé quebrado, poderão dizer: Paulo, o incesto homossexual entre pai e filho também é
inimaginável e, não obstante isso, pai não carrega o filho durante nove
meses, nem cuida dele com a mesma intensidade com que a mãe o faz...
Este fato nos levaria a ampliar os estudos.
Vejam se não é engenhosa a hipótese paralela do antropólogo francês
Godelier, descrita por Green (1991, p.27-28). Ele vê a interdição como
algo que vem, aos pouquinhos, ascendendo pela escala animal, como alguns pesquisadores pensam também. A centelha que ilumina a hipótese
dele surge quando ele equipara a interdição do incesto ao despertar do
interesse dos machos pelas fêmeas e vice-versa. Perceberam? Lá pelas tantas, dentro da evolução, após um período de indiferenciação, em que os
animais podem estabelecer tanto relações homossexuais quanto heterossexuais, passa a se desenvolver um interesse pelo sexo oposto, possivelmente ligado ao princípio bíblico e darwiniano: “Crescei, multiplicai-vos e tenham filhos!”. Godelier equipara essa modificação de interesse ao paulatino desenvolvimento da interdição do incesto. A restrição, portanto, já
começou antes. Primeiro teria havido uma interdição ao mesmo sexo e
depois uma proibição à mãe.
Será que estes fatores, apontados pelo antropólogo Godelier, poderiam ter a ver com o fato da provável inexistência de incestos homossexuais? Nunca pesquisei a existência de bibliografia a respeito, mas o que
162 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
A história e a realidade têm mostrado que a agressividade e sua forma
deturpada, a destrutividade, é parte inerente do ser humano. Acompanhando, porém, inúmeros autores e, especificamente, a Konrad
Lorenz, criador da Etologia e Prêmio Nobel de Fisiologia, afirmaríamos, com ele, que “se não existissem predisposições inatas para nosso
comportamento ético, se não existissem umas normas obrigatórias a
respeito do que é basicamente bom ou mau para nós como espécie,
programadas por adaptações filogenéticas, nos encontraríamos em
uma situação muito perigosa. A conseqüência seria o relativismo cultural e qualquer norma cultural – incluída aí a mais horrorosa – seria
obrigatória, se a maioria da sociedade a considerasse apropriada
(EIBESFELDT, 1978, p.524).
Transcrevendo as idéias do próprio Lorenz, em A agressão – uma história natural do mal (1979), podemos ler, na página 258, a referência ao
primeiro “Caim” humano que, segundo o autor, após ter ferido um companheiro, teria ficado “embaraçado com as conseqüências do seu ato”. Teria
havido, então, uma consciência e uma forma primitiva de responsabilidade. Continuando com Lorenz:
O homem não é verdadeiramente mau de nascença, como afirma o
Gênesis. Pode mesmo agir muito razoavelmente, quando a situação é
tensa, com a condição de situações semelhantes se terem apresentado
suficientes vezes na época paleolítica para terem criado normas soSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 163
Paulo Marchon
chama a atenção é que, nestes decênios de existência, nada tenha me caído
nas mãos sobre tal assunto.
Estas hipóteses podem nos ajudar a compreender certos fatos, porém
não nos autorizam a desrespeitar, a desconsiderar a opção homossexual
como escolha legítima e autêntica. De maneira geral, poderíamos dizer que
a psicanálise trata de todas as opções conflitivas, sejam elas sexuais ou
não. Portanto, é preciso, de alguma forma, estar estabelecido o conflito. A
limitação dos direitos dos homossexuais é uma triste nódoa a empanar o
mundo atual.
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ciais, filogeneticamente adaptadas, que lhes correspondam. Amar o
próximo como a nós mesmos e arriscar a vida para salvar a dele é
normal se o nosso amigo é o nosso melhor amigo e já nos salvou a
nossa muitas vezes; até o fazemos sem pensar. Mas a situação é completamente diferente se a pessoa pela qual é suposto arriscarmos a nossa vida ou fazermos outros sacrifícios é um contemporâneo anônimo
que nunca vimos sequer. Neste caso, não é o amor por outro ser humano que ativa, em tal circunstância, o nosso comportamento de abnegação, mas o amor de uma norma tradicional de comportamento social
evoluída com a cultura.
Como se observa, Lorenz amplia muito o conceito de inato, incluindo
nesta nova conceituação, segundo Eibesfeldt, toda uma série de situações
que afetam os nossos juízos de valor, estéticos e éticos, que seriam despertados por mecanismos desencadeadores inatos. “Isto pode ser visto no fato
de que a literatura e a arte de todos os povos contêm temas clichês de situações que se repetem sucessivamente: a fidelidade à amizade, o amor à pátria, o amor ao esposo e à esposa e o amor aos pais são os motivos nobres
básicos das ações humanas e os realizamos seguindo uma disposição interna” (p.524). Tal ocorre desde a Antigüidade até os nossos dias.
Diante dessa ampliação que Lorenz realiza, vamos pedir um pouco de
espaço para a Psicanálise. Freud e os psicanalistas observaram e observam,
no tratamento dos pacientes, a constância de alguns princípios
organizadores da realidade psíquica. Vamos logo citá-los: o Complexo
Edipiano, a Cena Primária e o Complexo de Castração. É um conjunto que
se articula e podemos considerá-lo como fonte que determinaria a predominância das fantasias ligadas a eles e, o que é de muitíssima maior importância, determinaria também a ação ou omissão humana que lhe é,
inexoravelmente, afeta.
Se não aceitarmos esta proposta amplificadora, vejamos uma perspectiva diferente, a de Lévi-Strauss. Ela nos parece exprimir a idéia de que
uma criança pequena, nascida não importa onde, sendo criada, por exemplo, numa aldeia yanomami, será ou tornar-se-á um yanomami. Diz ele:
164 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Voltemos, agora, àquela que, como já dissemos anteriormente, é a tradução mais elaborada do problema do incesto: o mito de Édipo. É importante se consignar que, na história, Édipo não foi perdoado porque praticou
o parricídio e o incesto sem saber. A condenação a Édipo foi clara, soubesse ele ou não, conscientemente do que estava fazendo. André Green, em
sua obra O desligamento (1994, p.70), encosta Lévi-Strauss na parede
quando comenta:
Parece curioso que os helenistas mais particularmente ligados à análise dos mitos, e que adotam um grande número de idéias de LéviStrauss, repitam que o mito de Édipo não passa de um entre tantos
outros, embora não invalidem a tese central do antropólogo que vê na
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 165
Paulo Marchon
Nós não sabemos nada, e jamais saberemos algo, sobre a origem primeira de crenças e costumes cujas raízes se aprofundam num passado
longínquo; mas, em relação ao presente, é certo que as condutas sociais não são desempenhadas espontaneamente por cada indivíduo, sob
o efeito de emoções atuais. Os homens não agem, enquanto membros
de um grupo, de acordo com aquilo que cada um sente como indivíduo: cada homem sente em função da maneira pela qual lhe é permitido ou prescrito comportar-se. Os costumes são dados como normas
externas antes de engendrar sentimentos internos e estas normas insensíveis determinam os sentimentos individuais, assim como as circunstâncias em que poderão, ou deverão, se manifestar.
Além disso, se as instituições e os costumes aumentassem sua vitalidade pelo fato de serem continuamente refrescadas e revigoradas por sentimentos individuais, semelhantes àqueles em que se encontrava sua
primeira origem, elas deveriam conter uma riqueza afetiva continuamente renovada, que seria seu conteúdo positivo. Sabemos que não é
assim e que a fidelidade que se lhe atribui resulta, mais comumente, de
uma atitude convencional. Qualquer que seja a sociedade a que pertença, o sujeito raramente é capaz de indicar uma causa para este conformismo: tudo o que sabe dizer é que as coisas sempre foram assim, e
que age como se agiu antes dele. Este tipo de resposta nos parece perfeitamente verídico.
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proibição do incesto “a regra das regras”, uma verdadeira divisória
entre natureza e cultura.
O psicanalista pergunta, então, a estes antropólogos: “O fato de um
mito concentrar o essencial do seu poder de representação na conjunção da
transgressão dessa regra de todas as regras com o parricídio não merece
uma atenção particular, quanto à sua eficácia simbólica?” Ao final, André
Green conclui, de maneira brilhante: “O fato de ter que pôr em primeiro
lugar a condição da proibição da relação sexual com os consangüíneos [incesto] aparece nessa interpretação como uma cláusula que remete toda a
sexualidade à natureza e faz da proibição do incesto um efeito da cultura”
(p.71).
E nós podemos concluir que, por isto, a regra das regras seria universal – ela exprimiria a condição humana.
Sófocles descreve em Édipo o que ele considerou a história do “grande celerado, o mais execrável e odiado pelos deuses, entre os mortais”,
porque, no dizer do próprio personagem, “minha desgraça nenhum mortal
pode suportar, exceto eu”, ou seja, ela extrapola os limites do humano.
Shakespeare, em Hamlet, apresenta a versão inconsciente desses desejos e
a luta incessante com os mesmos, culminando naquele morticínio brutal.
O feito extraordinário de Freud foi haver extraído esta descoberta do
fundo de sua alma: “Descobri também, em meu próprio caso, o fenômeno
de me apaixonar por mamãe e ter ciúmes de papai e agora considero-o um
acontecimento universal, do início da infância” (1986, p.273). Desse
mergulho freudiano decorre, provavelmente, ele ter alçado o vôo da universalidade, transformando a tragédia de Édipo em destino humano comum, “como embrião, na imaginação” de todo ser humano. E este destino
a Psicanálise procura transformar em meio de tratamento dos conflitos
emocionais. Vamos tentar trazer o complexo de Édipo de dentro da sua
universalidade para uma de suas expressões mais comuns. Todos sabemos
que Édipo matou o pai e casou-se com sua mãe. Não há outra maneira de
dizê-lo. Ele estava inconsciente deste fato. Ele não sabia disto. Como po166 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 167
Paulo Marchon
derei dizer a vocês o que não sabemos? Afinal, todos nós somos inconscientes de que desejaríamos estar casados ou que pretenderíamos casar com
nossa mãe, perseguidos pelas fantasias de morte ao nosso pai. Dizer como
isto interferiria em nossas vidas, na minha vida, na vida de vocês, na vida
de nossos pacientes, como dizê-lo se eu sou inconsciente disto? Mas tentemos examinar uma condição de todo ser humano que, por ser humano, não
pode escapar à sua humanização e está mergulhado, além do pescoço, na
regra das regras.
Imaginemos que o ser humano comum, João ou Maria, no caminho
entre Corinto e Tebas, deixe sua amada mãe Mérope e consiga não cometer
o parricídio e, assim, não se casar com a mãe Jocasta. Imaginemos que ele
consiga encontrar uma Mérope que não seja sua própria Mérope e sim uma
Rosa ou Maria qualquer. E, além disto, imaginemos que João possa permanecer ali, satisfeito, com sua Maria, numa felicidade que possa se tornar
“mais do que prometia a força humana” e, juntos, possam edificar “novo
reino”. Podemos deixar Camões de lado, neste momento, e dizer que, simplesmente, João e Maria consigam construir um lar, uma realização que
exprima a evolução, o clímax do sentimento dos dois. É possível que isto
não impeça a admiração às Jocastas e Laios, e o poder ver-lhes a beleza e a
inteligência, porém, em virtude desta evolução emocional, desta satisfação
interior construída a dois por João e Maria, talvez eles se permitam não
desejar ir para a encruzilhada do caminho entre Delfos e Daulis assassinar
o pai para tomar-lhe nossa mãe. Pois, se vocês acreditam mesmo em Édipo,
se ele é universal mesmo, ele estaria dentro de nós e a nós caberia lidar com
ele em todos os momentos de nossa vida.
Repetirei agora as palavras do grande antropólogo Franz Boas, expressas em 1938, e também nas páginas iniciais deste meu trabalho: “É
amplamente devido a Sigmund Freud que nós compreendemos a importância destes esquecidos incidentes da infância, que permanecem uma força
viva, dentro de nós, através da vida, e, quanto mais intensamente são esquecidos, mais potentes se tornam”.
A UNIVERSALIDADE
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Eu complementaria: mais potentes eles se tornam e mais impotentes nos tornamos.
Sinopse
O autor faz uma breve referência à lei de Seleção Natural de Darwin e suas
conseqüências nos diferentes modos de relacionamento de algumas espécies animais. Estuda mais demoradamente os gorilas, utilizando as pesquisas de Jane
Goodall. Ela e outros pesquisadores mostraram que, nos grandes símios e em
outras espécies animais, as uniões incestuosas seriam raras. Detalha a célebre
divergência entre Malinowski e Jones, com dados mais recentes trabalhados pelo
grande antropólogo Meyer Fortes e enfatiza a engenhosa hipótese do antropólogo
Godelier em relação à interdição do incesto.
Summary
The universality of the Oedipus Complex
The author briefly reports Darwin’s Natural Selection Theory and its
implications in the different types of relationships among some animal species.
He pays closer attention to gorillas, using research conducted by Jane Goodall.
She and other researchers have shown that big apes and other animals rarely have
incestuous practices. He details the famous divergence between Malinowski and
Jones with more recent data by the great anthropologist Meyer Fortes and
emphasises the ingenious hypothesis by the anthropologist Godelier concerning
the interdiction of incest.
Sinopsis
La universalidad del complejo de Edipo
El autor hace una breve referencia a la ley de Selección Natural de Darwin y
sus consecuencias en los diferentes modos de relación de algunas especies
animales. Estudia más lentamente a los gorilas, utilizando las investigaciones de
Jane Goodall. Ella y otros investigadores mostraron que en los grandes simios y
en otras especies animales, las uniones incestuosas serían raras. Detalla la célebre
divergencia entre Malinowski y Jones, con datos más recientes trabajados por el
gran antropólogo Meyer Fortes y enfatiza la ingeniosa hipótesis del antropólogo
Godelier con relación a la interdicción del incesto.
168 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Complexo de Édipo; Incesto; Etologia; Antropologia.
Key-words
Oedipus complex; Incest; Ethology; Anthropology.
Palabras-llave
Complejo de Édipo; Incesto; Etología; Antropología.
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Freud and Oedipus. The International Review of Psychoanalysis. New York:
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 169
Paulo Marchon
Palavras-chave
A UNIVERSALIDADE
DO
COMPLEXO
DE
ÉDIPO
MASSON, J. M. (1986). A Correspondência completa de Sigmund Freud para
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of Psychoanalysis, v. 17, p.47-60.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dr. Paulo Marchon
Rua Nunes Valente, 1450/1002
60125-070 Fortaleza – CE – Brasil
Fone/fax: (0xx85) 2261.5574
E-mail: [email protected]
170 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Renato Trachtenberg
Membro titular e didata da
SBPdePA; membro titular de
APdeBA; membro pleno do
CEPdePA.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 171
“... Mona Lisa é a obra de arte
mais mistificada que se conhece.
Ela atrai todos os anos dezenas
de milhares de pessoas que vão
olhá-la dentro de sua caixa de vidro, no Louvre. Na verdade, essas pessoas não a contemplam,
não a vêem: apenas lhe dão uma
olhadela, espiando por cima dos
ombros umas das outras, e seguem em frente, orgulhosas por
acharem que agora conhecem o
célebre quadro.
Apesar disso, Mona Lisa é de fato
uma das mais belas criações da
arte da pintura. Raras vezes um
pintor logrou fixar sobre uma tela
imagem tão plenamente realizada
e tão carregada de significações... Uma interação muda e
mágica entre o homem e o mundo
Renato Trachtenberg
O Ateliê do
Psicanalista
O ATELIÊ
DO
PSICANALISTA
visível, de que resultou, sobre a superfície material da tela, uma pele
tênue de poesia, de expressão humana – a imagem que penetrará a
alma de quem a veja e lá se manterá para sempre, tal é a força dessa
obra onde a figura humana e a natureza, como num sonho, parecem
revelar sua identidade profunda, a sua origem insondável – o mistério
da existência que, nos lábios de Mona Lisa, sorri. Sorri para nós?
Sorri de nós? Sorri conosco.”
Ferreira Gullar
Mona Lisa e o renascimento
a) Um gosto de sonho, ou como foi o meu primeiro encontro com a
Mona Lisa
Numa certa manhã parisiense de um outono que começava a dar seus
primeiros sinais de aproximação, me sentia empurrado por estranhas e
incontroláveis forças ao percorrer corredores e salas de um Louvre apinhado de turistas, tentando chegar a tempo para o meu primeiro e tão aguardado encontro com a Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Ao entrar na sala onde
há muitos anos me esperava, meu olhar, apesar da incomensurável distância que nos separava, imediatamente capturou, e capturado foi, por aqueles
olhos que me sorriam enigmáticos. Apesar de ofuscados ambos pelos flashes voyeuristas de máquinas japonesas, publicamente desafiadoras de
proibições privadas, constatei, surpreso, que nossos olhos nem piscavam.
Ao contrário, como se aquele espoucar de luzes tão brilhantes deixasse
intacta uma trilha, uma clareira de sombras entre nós dois. Não sei como
ocorreu, mas, como que movida por divinos desígnios, a multidão ruidosa
e iluminada parecia haver magicamente desaparecido. Aquele olhar que
me buscava aflito, fascinado e fascinante, saboreando cada centímetro ganho entre nós, ficou registrado para sempre em algum negativo de minha
memória. Agora, como um Rosebud* (entre-nós), retorna despertado do
sono profundo das minhas lembranças.
* Cidadão Kane (Orson Welles).
172 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
O impacto e o conflito estético
Essa conjetura imaginativa nos fala de um encontro primordial do
bebê com os olhos-seios-corpo-mente da mãe como um objeto estético produzindo no bebê (e também na mãe), um impacto estético, gerando um
conflito fundante/funda-mental: o conflito estético (MELTZER, 1986,
1988). “No começo era o objeto estético, o objeto estético era o seio, o
seio era o mundo” (MELTZER, 1986). Esse conflito é produzido pelo contraste entre o que pode ser conhecido, a beleza exterior da mãe, e o mistério
de seu interior, o desconhecido de seu corpo e de sua mente. O bebê humano é capaz de responder ante a beleza do mundo (corpo/mente da mãe) e
ante sua inevitável fragilidade, despertando sua sede de conhecimento tanto como a de leite. É, na verdade, um objeto combinado, materno e paterno,
continente e conteúdo. Esse encontro entre o que está à disposição dos
sentidos e o interior enigmático, que deverá ser construído/intuído mediante a imaginação criadora, produz a grande e terrível dor da incerteza na área
da tridimensionalidade. Existiria correspondência entre esse belo exterior,
captado pela sensorialidade, e aquilo que está oculto? Que podemos saber
de suas intenções, seus sentimentos, sua durabilidade? Seu poder para provocar emocionalidade só é igualado à sua condição de gerar angústia, dúvida, desconfiança. O interior do objeto presente, mais que o objeto ausente,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 173
Renato Trachtenberg
b) As associações, ou de como me dei conta de que o primeiro não era
o primeiro
Recordei (re-cordare: lembrar com o coração) instantaneamente as
idéias de Meltzer sobre o impacto estético, do encontro mítico, primordial,
entre os olhares do bebê e sua mãe. Assim, me dei conta de que o meu
suposto e admirado (olhar/mirar novamente) encontro primeiro com o
olhar da Mona Lisa não era na verdade o primeiro. Adquiriu significado
emocional, então, uma hipótese teórica (impacto/conflito estético) bastante conhecida por mim ao ligar-se, significativamente, aos tesouros fundadores há tanto tempo guardados nos espaços cósmicos dos sonhos ainda
não sonhados: re-natus, renascimento (Leonardo da Vinci).
O ATELIÊ
DO
PSICANALISTA
passaria a ser o mais forte estímulo para o pensar, sendo, em sua natureza,
mais apaixonado que ansioso. Enquanto as angústias engendradas pela ausência tendem a despertar violência a serviço da dominação e controle do
objeto, a paixão ligada ao interior oculto do objeto estético promove o fazer o amor, convida à exploração/investigação. A tolerância balanceada, o
limite possível, o registro da diferença entre o acessível e o inacessível será
o nosso guia na possibilidade de aproximação daquilo que jamais conheceremos em sua plenitude. Suportar a ausência dessa resposta ao enigma,
registrando “apenas” esse mistério essencial do interior do outro, irá definir nossa escolha pelo caminho do crescimento mental. Reciprocamente, o
bebê deve ser sustentado como objeto estético da mãe para que a experiência de seu ato de amor reverbere e aumente em intensidade. O
envolvimento mútuo na experiência estética provavelmente é o que permite que seja tolerável por longo tempo para ambos.
As primeiras noções espaciais, corporais e mentais surgem exatamente a partir desses encontros primordiais em que o exterior perceptível se
contrasta com um interior misterioso, devendo esse outro significativo suportar a construção progressiva das condições de pensabilidade. Bion
(1962a; 1962b) descreve em forma detalhada o papel que joga a mãe
pensante, permitindo que o bebê comece a desempenhar a função de pensar e, com o correr do tempo, chegar a praticá-la, em forma autônoma,
através da internalização de um objeto pensante. As angústias e emoções
primitivas do bebê deverão ser pensadas pela mente pensante da mãe antes
de lhe retornarem com significados passíveis de digestão/assimilação,
inaugurando um modelo metacomunicativo. Em outras palavras, o conhecimento é uma parte do processo e pode ser ensinado/comunicado; porém,
a função essencial parece ser a de transmissão de um modelo. O conhecimento, ao contrário do pensar, pode ser público/publicado.
Esses encontros que irão delineando espaços públicos e privados, radicalmente idiossincráticos, configuram, além desses, um terceiro espaço,
uma terceira zona, diz Winnicott (1971) – a terceira margem do rio, diria
Guimarães Rosa. Espaço esse em que o interno e o externo não são e não
174 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 175
Renato Trachtenberg
devem ser discriminados, suportando o paradoxo. Área do jogo e do brincar, espaço primeiro da criatividade. No dizer de Bion, elos de ligação,
espaços de trânsito, barreiras de contato. Sonho co-gestado, em que o público/cotidiano (restos diurnos) se fertiliza com o desejo privado, singular.
Momento/ponte em que o meu e o teu dão lugar ao nosso de uma construção compartilhada, na qual o inconsciente é vinculo, intersubjetivo, e o
sonho é cópula. Pensar por si mesmo é a rigor um processo de pensar-com,
um com-pensar, modelizando uma conjunção criativa continente/conteúdo, geradora de novos pensamentos/bebês. Os símbolos assim nascidos se
tornam cada vez mais poéticos e idiossincráticos, em contraste com o emprego de símbolos clonados, recebidos. Nos sonhos de indivíduos criativos, a novidade dos símbolos e a complexidade dos entrelaçamentos de
elementos visuais e verbais produzem um verdadeiro impacto estético naquele que se deixa banhar pela sua narrativa. Nos sentimos profundamente
agradecidos pela oportunidade de estarmos ali naquele momento, escutando-a.
Existe uma tal interpenetração entre as áreas públicas e privadas que
separá-las é, muitas vezes, uma missão impossível. Chegaremos sempre a
um ponto de indecidibilidade em que deveremos renunciar a toda tentativa
de definição. Como se isso fosse pouco, ainda temos os tais Big Brother
que, como o personagem de Orwell, voyeuristicamente invadem nossos
espaços privados e nos colocam numa posição de passividade, “assistidos”
pelo instrumento público de dominação. Essa é, talvez, a dimensão mais
perversa: nossa casa privada é seqüestrada pela coisa pública, que se postula como privada, pervertendo o próprio conceito de casa. Por outro lado, a
experiência cotidiana nos mostra constantemente que a necessidade de delimitação entre esses espaços, ainda que imprecisa, é parte essencial da
condição humana. Esses limites irão variar de acordo com as diferenças
culturais, geográficas ou históricas e, especialmente, com a singularidade
última do indivíduo. Todos nós temos um perímetro de relação com o mundo que deve ser respeitado, pois, a partir de determinado ponto, sons, cheiros, toques ou olhares alheios adquirem a condição de molestos invasores.
O ATELIÊ
DO
PSICANALISTA
A ruptura da barreira do contato possível nos estimula a reivindicar o
restabelecimento peremptório das fronteiras: “no pasarán!”
Como acentua Meltzer (1986), no espaço privado qualquer ingresso
deve ser precedido de um convite. Conseqüentemente, os espaços nos quais
ficamos mais expostos, por uma troca de roupas ou fazer sexo, tendem a
ser limitados, trancáveis, permitindo que haja uma atividade silenciosa e
isenta de perturbações externas. Podemos desligar nossos televisores e
impedir que os reality shows penetrem nossas frágeis retinas; podemos resistir à intrusão telefônica deixando o aparelho desligado; podemos folhear
os livros de um amigo em sua biblioteca, mas não vamos espiar dentro das
gavetas de sua escrivaninha. Batemos à porta antes de entrar, mesmo que
sejam as portas fechadas dos banheiros de nossos próprios lares. O estabelecimento dessas fronteiras do privado é convencional e quando as ultrapassamos, sem ter consciência imediata disso, logo desviamos o olhar e
rapidamente retrocedemos pedindo desculpas.
Na esfera pública de nossas vidas no mundo exterior movemo-nos e
adaptamo-nos em conformidade a essas convenções de quando ultrapassar,
e quando não, o privado de outros indivíduos. Tais convenções lubrificam
o movimento social e permitem-nos manter relações casuais com um mínimo de atrito ou de incerteza atormentante. A partir de Bion, Meltzer (1986)
nos diz que, sem nenhuma implicação pejorativa, pareceria razoável rotular essa área de adaptação casual/contratual como sendo uma área caracterizada pela ausência de mente, ou protomental, no sentido de que operamos nessa esfera com signos e não com símbolos formados autonomamente a partir da operação da função alfa e do pensamento onírico inconsciente
sobre as nossas experiências emocionais.
Ao diferenciarmos os espaços públicos dos privados que cada indivíduo possui, continua Meltzer (1988), achamo-nos em posição de fazer a
distinção entre o privado e o secreto, a partir do ponto de vista da intenção:
ou seja, o segredo se dirige a uma audiência externa, enquanto a privacidade indica funções mundanas internas. Desejamos entender mais a respeito
da pessoa privada, mas também desejamos detectar seus segredos. Essas
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 177
Renato Trachtenberg
duas tendências podem ser tomadas como forças agindo em direção à intimidade ou à violência, conforme o caso. Violência entendida, então, como
violação de espaços privados. Também constitui uma dimensão significativa o grau em que o limite da privacidade se demonstra socialmente. Enquanto a privacidade demonstra discretamente suas fronteiras sociais de
classe e status, de tal modo que elas fiquem perceptíveis às pessoas interessadas, uma demonstração mais exuberante de evidências da inserção social
provavelmente dirige-se à curiosidade intrusiva, aparecendo de forma projetada uma provocação às transgressões das fronteiras.
Com isso, podemos detectar também uma diferença entre o mistério e
o segredo. Este último deriva a maior parte de seu prazer do fato de ser
secreto. “Afinal de contas”, pergunta Meltzer (1988), “qual é o prazer de
se ter um segredo se ninguém souber que você tem um segredo?” As crianças, menos sutis que os adultos, demonstram isso de um modo mais ostensivo, proclamando: “Você não sabe o que eu fiz”. Já a postura do adulto é
melhor expressa com frases do tipo: “Me pediram para guardar segredo, se
não, te contaria...”. De qualquer modo, o convite à invasão dificilmente
passará despercebido pelo intruso de plantão.
Ao contrário do segredo, que pede para ser visto, revelado, iluminado,
o mistério ocorre na área das relações humanas íntimas – experiências
emocionais capazes de desencadear o pensamento – e aí deverá ser suportado. Intrínseco ao conflito estético, o mistério é o negativo, o crer para ver,
apenas imaginável e conjeturável. Isso nos conecta com o conceito formulado pelo poeta J. Keats (1987) de capacidade negativa, quando diz que um
homem de gênio, como Shakespeare, deve se manter num estado de tolerância/paciência às incertezas, dúvidas, meias-verdades, sem a procura precipitada/angustiada do fato e da razão/explicação. Espaços vazios, não
saturados, como viajantes paradoxais que, quanto mais estendem suas viagens, menos bagagens deverão carregar. Sustentação dos silêncios eternos
dos espaços infinitos que nos amedrontam, como disse Pascal (2001), esperando emergir do infinito vazio e sem forma, nas palavras de Milton
(1994).
O ATELIÊ
DO
PSICANALISTA
A apreciação estética ou de sonhadores e
sonhados todos nós temos um pouco
Depois desse longo passeio através dos espaços públicos, privados,
secretos e misteriosos, lhes proponho uma nova visita ao Louvre da minha
experiência emocional, na tentativa de entendermos um pouco mais esses
sonhos assombrados em que somos sonhadores e sonhados pelos nossos
objetos estéticos. Solicito a Meltzer (1988) que continue como nosso guia.
A essência da apreciação estética através da congruência simbólica,
ou seja, o encaixe da mente individual com o objeto estético implica uma
diluição de fronteiras ao mesmo tempo que uma afirmação da integridade
independente dos dois parceiros do drama (os mundos interno e externo)
com irradiação de significado. A resposta estética é descrita por Stokes
(MELTZER, 1988) como lembrando e mantendo o “gosto” de um sonho:
“a apreciação é uma maneira de reconhecimento: reconhecemos, mas não
podemos nomear, não podemos relembrar por meio de um esforço de vontade: os conteúdos que nos alcançam em termos de formas estéticas têm o
‘gosto’ de um sonho que de outra maneira fica esquecido ...”.
No centro da apreciação estética está o problema de se poder manter/
sustentar, reconhecer o gosto do sonho que fica evocado entre o sonhador e
o objeto estético. Esta nuvem diáfana de não-saber parece composta de
elementos sólidos com forma e textura, que esperam ser capturados por
uma correspondência simbólica. Assim, manter o sonho tem a ver com
uma congruência ou reciprocidade entre os objetos internos e os externos:
“com pleno reconhecimento de espaço” (MELTZER, 1988). Aquele que
entra em contato com a obra de arte terá, como pré-requisito, uma capacidade negativa que tolere, como o artista criador, a incerteza advinda da
nuvem de desconhecimento originada pelo confronto com o objeto estético, sem uma tentativa irritável de alcançar o fato e a razão; alguma capacidade de olhar flutuantemente para o objeto até que um padrão eventualmente possa emergir.
Na psicanálise, denominamos atenção livremente flutuante essa função do analista quando, na sessão analítica, está apreciando esteticamente
178 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 179
Renato Trachtenberg
o sonho a ser sonhado entre-mentes.
É necessário evitar tanto a curiosidade intrusiva – que converte o objeto estético em um segredo – como também apoiar-se no julgamento e avaliação – como se fôssemos o guardião auto-escolhido do objeto. A penumbra de significados, contornos derretidos do objeto, ao mesmo tempo que
reverenciado em seu inviolável mundo próprio, misturados com seu próprio estado de-mente (confusão/excitação/angústia/espanto/adoração/perturbação), começa a se impor ao observador à medida que ele deixa de ser
um mero observador e adquire a condição de observado/participante. Sentindo-se arrastado para e pelo objeto estético e respondendo às tensões psíquicas capturadas pelas suas qualidades formais, modifica-se inevitavelmente sua própria estrutura mental interior. Como diz Stokes (MELTZER,
1988): “Silêncio rodeia a grande obra de arte. Ela se mantém
palpavelmente ‘lá fora’, mas apesar disto ela nos envolve; não apenas a
absorvemos, mas ficamos absorvidos”. Os dois modos, ou melhor, aspectos da resposta estética – incorporação e envolvimento, observar e ser observado, manter e ser mantido – são complementares e mutuamente
enriquecedores. Isso significa renunciar a explicações, a desenterrar segredos, a decifrar mistérios, a diagnosticar causas ou a psicopatologia do autor, etc.
A obra de arte exige-nos que a conheçamos de um modo mais essencial; ela existe para que a humanidade a utilize, para despertar e dar forma
à nossa necessidade de sermos conhecidos e nos conhecermos. A experiência emocional despertada nesse encontro com a obra de arte precisa ser
integrada dentro da mente sob a forma de um símbolo recíproco tal que seu
significado possa se tornar conhecível/reconhecível. Entretanto, antes de
mais tudo, é necessário encontrar um espaço capaz de conter e pensar essa
experiência. Sugiro denominar ateliê esse espaço onde o pensar e, portanto, o criar encontrarão as melhores condições de germinação.
O ATELIÊ
DO
PSICANALISTA
Casa de artistas
“A estrada me conduziu aos arredores de Budapeste, até um palacete
escondido na vegetação, soberbamente isolado, como num quadro. O aposento onde somos recebidos é iluminado de tal forma que acreditamos estar num ateliê de pintura. Lá fora, as rosas de julho são embaladas pelo
vento. Numa grande poltrona de couro escuro, de costas para a janela,
está sentado Freud.
Seus olhos sombrios, tão inteligentes e que, além da inteligência, deixam adivinhar uma generosidade discreta que prefere se retirar na solidão; estão aí os sinais de uma aristocracia da alma, da verdade límpida da
infância.”
Dessa forma poética, Zsofia Denes (SOUZA, 1995) inicia sua entrevista com Freud em agosto de 1918, na casa de Anton von Freund.
Nos fala de um lugar “soberbamente isolado como num quadro”, onde
o psicanalista fundador, na sua esplendida solidão, parece encontrar o ambiente propício para o repouso e a criação. Esse espaço, por ela denominado ateliê, nos fala de um continente fecundante em que a obra poderá encontrar sua possibilidade de gestação.
A sala de análise, freqüentemente chamada de consultório, sala de esperar o inesperado, o inusitado, o inédito e o inaudito, é o ateliê do psicanalista. Aí aguardamos, como nos sonhos, os visitantes da noite, nossos pensamentos selvagens ainda não, e talvez jamais, domesticáveis.
Os artistas, não os da alma, parecem encontrar nesses espaços significações semelhantes. Para alguns, o ateliê é “extensão do pensamento” ou
algo “alojado na própria cabeça”, “campo de batalha selvagem”, “quarto
de brinquedos” (SOARES, 2001).
Nas palavras de Guto Lacaz: “As paredes de meu ateliê eram muito
ocupadas na minha época de formação ... gostava de conviver com um
lugar saturado, cercado de informações ... Hoje prefiro um espaço despojado ... Meu ateliê é o ecossistema que me permite materializar minhas
concepções” (SOARES, 2001).
“Apesar de técnico, meu ateliê é um espaço simbólico. Procuro no
180 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sinopse
O autor parte do encontro mítico entre o bebê e a mãe, descrito como o
conflito estético por D. Meltzer, para referir-se à fundação dos espaços públicos e
privados na mente humana. As noções de mistério e segredo advindas desses esSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 181
Renato Trachtenberg
meu trabalho o máximo de silêncio, de equilíbrio, de introspecção ... Além
de facilitar o meu trabalho, ele é uma metáfora de um espaço mental de
repouso e reflexão. Procuro criar um espaço de sensibilidade, num trabalho que parte de pequenos estímulos”, nos diz Luiz Paulo Baravelli (SOARES, 2001).
“Meu ateliê é um lugar fora da vida cotidiana, é um estado de suspensão. É o meu duplo, a expansão da minha cabeça, a amplificação de um
espaço mental. Tem mais a ver com a fermentação das idéias, a formulação de projetos, do que com a execução técnica...”, assim o descreve
Carmela Gross (SOARES, 2001).
Para outros, quem sabe, um porão, um sótão, onde as velharias se misturam com o novo ainda não nascido, os achados com os perdidos.
“Gosto de guardar em meu ateliê objetos curiosos, abandonados, descartados; essas coisas significam para mim um renascimento, uma segunda chance, o ato de fazer com que existam de novo”, diz com gosto de
sonho Rochelle Costi (SOARES, 2001).
Ateliê, casa de artistas, espaço onírico onde se escorrem as fronteiras
do eu, deslocando as divisórias que fragilmente separam os diferentes mundos que habitamos, no árduo caminho da simbolização.
Criação concebida nesses ateliês em que vivemos tantas vidas sem
sabê-las, o sonho é, em si mesmo, um ateliê. É contido e continente numa
relação complementar a nunca se completar. Lugar de criação, que se recria
nova-mente em cada criação, transformando o próprio criador. Espaço privilegiado onde nossas experiências emocionais, desejos e tempestades deverão encontrar abrigo e significação, acolhimento e transformação, recepção e narratividade. Sonho: dormitório parental, renovada esperança de
misteriosos renascimentos.
O ATELIÊ
DO
PSICANALISTA
paços primordiais irão configurar, junto com os mesmos, as diferentes possibilidades de relação do sujeito com o mundo (interno e externo). Entre essas possibilidades se insere a relação do homem com os seus objetos estéticos, especialmente com a obra de arte. Contando com esse “instrumental”, o autor se refere a um
espaço mental, por ele denominado ateliê, uma espécie de sala interna de análise,
onde é gestado o sonho. Nessa dimensão estética da psicanálise, o próprio sonho,
por sua vez, é um ateliê: espaço de geração e expansão da criatividade, lugar de
misteriosos renascimentos.
Summary
The Atelier of the Psychoanalyst
The author departs from the mythical encounter between the baby and his/
her mother, described by D. Meltzer as the aesthetic conflict, to refer to the
foundation of public and private spaces in the human mind. The notions of mystery
and secret resulting from these cardinal spaces will configure, along with them,
the different possibilities in the relationship between the subject and the world
(internal and external). The relation between men and their aesthetic objects, especially works of art, is among such possibilities. Counting with these
“instruments”, the author refers to a mental space he has named “atelier”, a type
of internal analysis room, where dreams are conceived. In this aesthetic dimension
of psychoanalysis, the dream itself, on its part, is an atelier: a space for generating
and expanding creativity, the venue of mysterious regenerations.
Sinopsis
El Taller del Psicoanalista
El autor parte del encuentro mítico entre el bebé y su madre, descrito como
el conflicto estético por D. Meltzer, para referirse a la fundación de los espacios
públicos y privados en la mente humana. Las nociones de misterio y secreto venidas
de esos espacios primordiales configurarán, junto con los mismos, las diferentes
posibilidades de relación del sujeto con el mundo (interno y externo). Entre esas
posibilidades se inserta la relación del hombre con sus objetos estéticos, especialmente con la obra de arte. Contando con ese “instrumental”, el autor se refiere a
un espacio mental, por él denominado taller, una especie de sala interna de análisis,
donde se gesta el sueño. En esa dimensión estética del psicoanálisis, el propio
sueño, a su vez, es un taller: espacio de generación y expansión de la creatividad,
lugar de misteriosos renacimientos.
182 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Renato Trachtenberg
Palavras-chave
Espaço; Estético; Sonho.
Key-words
Space; Aesthetic; Dream.
Palabras-llave
Espacio; Estético; Sueño.
Referências
BION, W. (1962a). Uma teoria sobre o processo de pensar. In: ______. Estudos psicanalíticos revisados: (second thoughts). Rio de Janeiro: Imago, 1988.
______. (1962b). Aprendiendo de la experiencia. Buenos Aires: Paidós, 1975.
GULLAR, F. (2003). Relâmpagos. São Paulo: Cosac; Noify, 2003.
KEATS, J. Poemas. São Paulo: Art Editora, 1987.
MELTZER, D. (1986). Metapsicologia ampliada. Buenos Aires: Spatia, 1990.
______. (1988). A apreensão do belo. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
MILTON, J. O paraíso perdido. Belo Horizonte: Villa Rica, 1994.
PASCAL, B. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SOARES, C.C. Casa de artistas. Folha de São Paulo, 23 dez. 2001. Cad. Mais
SOUZA, P.C. de (1995). Freud, Nietzsche e outros alemães. Rio de Janeiro:
Imago, 1995.
WINNICOTT, D. (1971). Realidad y juego. Barcelona: Gedisa, 1979.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Versão modificada do trabalho apresentado na mesa-redonda
“Espaços públicos e espaços privados” do I Congresso Internacional de
Psicanálise e Intersecções – Arquitetura: Luz e Metáfora: um olhar sobre
espaços e significados (promovido pelo GEA), 24/05/2002.
Dr. Renato Trachtenberg
Rua Florêncio Ygartua, 391/402
90430-010 – Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/fax: (0xx51) 3330-6453
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 183
Conferência na SBPdePA
Paulo Cesar Sandler
Utilizo o termo epistemologia
como o estudo das teorias a respeito
do conhecimento1. Penso que é fundamental discernir:
i. uma epistemologia psicanalítica (métodos psicanalíticos de conhecimento): os estudos sobre a
mente humana de Freud, G.
Devereux, E. Erickson, B.
Malinowsky, G. Rohem, F. Redlich,
G. Bachelard e muitos outros, nos
campos que eram tanto psicanálise
aplicada como uma aferição
epistemológica (antropológica) de
concepções psicanalíticas prove-
Membro Efetivo da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de
São Paulo.
1. Diferenciando episteme de doxa (o conhecimento e o discurso sobre ele).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 187
Paulo Cesar Sandler
Epistemologia:
um Resumo
Crítico sob a
Ótica de um
Psicanalista,
para uso de
Psicanalistas
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
nientes do método clínico;
ii. uma epistemologia da psicanálise (métodos de validação das proposições, hipóteses, métodos e conclusões em psicanálise), desenvolvido
por Freud de modo notável; na década de quarenta, por K. Menninger e
teve seu impulso principal com Bion; recentemente, Wallerstein, Kernberg
(na trilha aberta por Menninger) e Green (em parte aproveitando a obra de
Bion e em parte tendo uma visão própria) retomam a questão;
iii. estudos transdisciplinares de epistemologia, entendida como filosofia da ciência, e psicanálise, com avaliações críticas mútuas; parte-se da
pergunta: será útil a nós analistas, saber algo da história da filosofia e da
epistemologia, para não repetirmos certos enganos que, no meu ponto de
vista, talvez já tenham destruído a possibilidade dos filósofos fazerem filosofia, ou feito com que ela tenha se mudado para outros domínios? Conversar a respeito de teoria do conhecimento e de filosofia segundo a experiência (e parcialmente a ótica) de um clínico praticante, para clínicos
praticantes (iii com vistas a incrementar ii) faz parte da história do movimento psicanalítico2;
iv. epistemologia difere de avaliação de resultados de psicanálise (que
2. Foi feito por S. Freud, Theodor Reik, Wilfred Bion, Donald Winnicott, Roger Money-Kyrle e J.
Wisdom. Eles sabiam que os problemas enfrentados pelo epistemólogo, e pelo próprio cientista,
são os mesmos problemas enfrentados pelo psicanalista. Em nosso meio, destaco Virgínia Bicudo
e Lygia Amaral, com sua precisão terminológica e respeito às posturas originais dos autores psicanalíticos, sempre acompanhada de ausência de preconceito em relação ao novo; Laertes Ferrão e
Frank Philips, que trouxeram a essência da epistemologia psicanalítica de Bion, mostrando o nãocientista que existe em cada paciente, quando mergulha em alucinose, e o analista sendo um
cientista at work; Isaías Melsohn, que trouxe contribuições de grandes scholars da teoria do conhecimento, como Ernst Cassirer; Cecil Rezze, Deocleciano Alves, Felix Gimenez, Pérsio Nogueira e Odilon de Mello Franco, que ampliaram as contribuições de Ferrão ao trazerem o vértice
clínico de observação das condições peculiares no aqui-e-agora da sessão; Fábio Herrmann, com
sua teoria de campos e rompimento destes na tentativa de descrever o ethos psicanalítico e
discriminá-lo de qualquer outro; Ignácio Gerber, com tentativas críticas transdisciplinares; Antonio Rezende, com suas contribuições em torno da obra de Bion e J. Derrida; e Paulo Duarte,
trazendo as contribuições de Lakatos, entre aqueles que têm esta preocupação epistemológica, ou
seja, criticar (no sentido do criticismo de Kant) nossos métodos de fazer afirmações, no sentido de verificar seu valor-verdade. Cito apenas alguns dos autores paulistas; a lista ficaria longa
se incluísse autores de outros centros.
188 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
3. Na série que forma atualmente três volumes e constitui reuniões (“curso”) na SBPSP aos sábados, desde 1994, e durante quase dois anos, em Curitiba também.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 189
Paulo Cesar Sandler
pode ser uma avaliação científica); foram populares na década de trinta, até
a de sessenta. Creio que a postura de autocrítica e auto-avaliação de resultados passou a ser uma atitude ética de cada analista, por meio de análise
pessoal e supervisões. Pessoalmente penso ser notável que não sejam citadas hoje;
v. uma escola epistemológica com o todo da teoria do conhecimento,
ou com suas bases. É comum eleger-se alguma corrente dentro da
epistemologia em função de moda, autoridade, contemporaneidade. Pessoalmente me tem sido mais útil perceber as origens e o que é básico e depois
estudar o que de tempos em tempos é apresentado como “a última palavra”, ou “o melhor”. Em iv e v penso valer a observação de Bacon de que
toda novidade não passa de esquecimento.
Tenho sugerido3 que o ser humano consegue desenvolver, a partir
da pura necessidade, alguns modos para se aproximar ou apreender a
realidade ou verdade e a discriminá-las do que não é real ou verdadeiro, ou o que é falso. Além de apreender isto, pode comunicar o que experimentou. Penso que a arte é o modo mais primitivo de apreender a realidade, tanto externa como interna. Dentro dos modos artísticos, que se desenvolveram em métodos, penso que a Música é o mais antigo, seguindo-se a
Pintura, a Escultura e depois os modos verbais: Mitos, Poesia e Literatura.
Estes se sofisticaram com o Teatro, filho direto dos mitos, e com a Filosofia. O modo mais recente me parece ser a Ciência. Minha investigação
sugere fortemente que a obra de Freud tem sua origem na de Kant, embora
isso não tenha sido ressaltado na literatura até Bion trazer Kant aos psicanalistas. Pude observar (e este dado não se encontra disponível na literatura) que Klein, Bion e Winnicott têm sua origem em Hegel; e as influências
de Pascal, Poincaré, Whitehead (um filósofo e matemático do final do século passado), Russell, Berlin (um epistemólogo de talento comunicacional
ainda sem igual), Wittgenstein e Buber sobre a obra de Bion são patentes,
formando o ambiente que ele respirou. Não vou expandir estas influências
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
no momento – se houver interesse, talvez haja tempo para isto durante o
nosso próximo encontro.
Moda, a ardilosa vestimenta do demônio4
Quando não se fica perdido em modas temporais e crenças dependentes de grupos nacionais, religiosos ou culturais, establishments ou autoridades de qualquer tipo, percebe-se a existência de Atemporalidade em algumas apreensões universais-particulares que formam o ethos da atividade
científica e filosófica. Formam bases atemporais por pertencerem ao domínio do belo ou do real. Muitos, como Ítalo Calvino, chamam estas bases de
“clássicos”. Em termos filosóficos dos gregos antigos, principalmente
Platão, e resgatados por alguns, dentre os quais destaco Spinoza e Kant, há
“imanências” e/ou “transcendências”. Não é “ou”, é “e/ou” – o paradoxo
da simultaneidade. O que é “Transcendência”? Aquilo que transcende, ultrapassa o tempo, a cultura, o espaço, o inter e transgrupal, o inter e
transtemporal, profundamente ligado a certos mistérios mais íntimos da
vida, atuantes e utilizáveis, que são intuíveis em sua existência (intui-se
que existem), comunicáveis por experiência e formação, mas não por formulação, não são redutíveis a nenhuma forma ou formulação humana. Em
contraste, diverso mas indissolúvel, formando o paradoxo a ser tolerado,
“Imanência” diz das formas assumidas por estes “mistérios”, através dos
tempos: formulações verbais, acústicas, sensorialmente formuláveis e
apreensíveis, culturais, intragrupais. Séculos de tentativas formaram muitos termos para “cercar” estes fatos, todos eles condenados ao fracasso,
pois não se fala ou nomeia o que requer intuição e experiência para ser
percebido5. Esta impossibilidade de nomeá-los e o fato de nós, seres humanos, parecermos pouco capazes de tolerar tal insatisfatoriedade
4. Fashion – the cunning livery of hell (William Shakespeare, Measure for Measure, III, i, 95).
5. Por exemplo, nos termos de Marx, superestrutura e infra-estrutura; nos termos de Freud, conteúdo manifesto e latente. Há muitas outras formulações que foram resgatando de quando em
quando, da escuridão do esquecimento, aquilo que é real. As mais originais que conheci (isto não
quer dizer que não haja outras anteriores) foram formuladas por Platão: transcendências pertencem ao “domínio” das formas ideais e imanências, ao trabalho de Demiurgo. Nos (continua p.191)
190 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
(continuação p.190) termos gregos resgatados por Kant, noumena e phaenómena. Einstein e
Poincaré captaram algo disto (“velocidade da luz”, transformação de matéria em energia, e a
natureza ao mesmo tempo de partícula e de onda da luz, entre outros).
6. “Little learning is a dangerous thing” (Pouco saber é algo perigoso) (Alexander Pope).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 191
Paulo Cesar Sandler
epistemológica, acrescida da intolerância do paradoxo “monista” que estes
dois fatos são unos e indivisíveis, talvez contribua para que se viva tentando clivá-los para entendê-los. Quando se tenta separá-los, comete-se um
“crime ecológico”. Cinza é a teoria e verde a árvore da vida, na formulação de Goethe, tão querida de Freud; poucos percebem, como uma analista
praticante, que ambos são necessários e fazem estudos em verde e cinza,
sem clivá-los (Ester H. Sandler, 1997). Embora o campo numênico das
transcendências tenha sido re-estabelecido por Kant, ele não adentrou no
mesmo; creio que a psicanálise o fez. Parece-me que uma concepção de
Aristóteles, mais desenvolvida por Locke, a de senso comum, trazida para
a psicanálise por Bion, é de enorme auxílio: temos mais de um sentido em
comum, e se um ou mais sentidos, pontos de vista, apontam para um fato,
pode ser que este fato seja verdadeiro. Penso que não se deve confundir
senso comum com lugar comum ou banalização (confusão feita por grandes pensadores, como Bachelard). Houve alguns problemas sérios com os
usos do termo transcendência e da realidade a que ele tenta se aproximar,
dentre os quais destaco a degeneração do Místico para o Misticismo, que
nada mais é que uma confusão entre a invariância transcendente que
permeia o fato humano e as idéias de “verdades eternas e absolutas”, crença religiosa anticientífica e anticonhecimento.
Vivemos tempos onde há uma busca por modelos alternativos à psicanálise; já vi antes a moda positivista, a moda behaviorista, a moda
sociologista, a moda biologista. Um povo que não conhece sua história
está condenado a repetí-la, observou Santayana; a compulsão à repetição
está na base de fantasias transferenciais, observou Freud. Regados por pouco saber, são perigosos6. Parece-me que pretensões à novidade não passam
de onipotência. Estas várias correntes revivem, e por vezes muito fragmentária e parcialmente, meias-verdades e falso aprendizado, algo que já se
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
conhecia, mas foi olvidado. Modas maravilham o leigo e fazem sorrir o
perito.
A primeira e a segunda “grandes clivagens mundiais”
Aristóteles observou que o homem tem uma “ânsia de saber”, fato
depois desenterrado por Kant. Freud denominou isto “instinto
epistemofílico”, expressado pela mente ao investigar e pensar a respeito de
si mesma e do mundo. A mente pensando sobre si mesma é o nous, uma
espécie de Psicanálise Primeva. Penso que Psicanálise é herdeira tanto de
Platão (onde as formas Ideais e o trabalho do Demiurgo formam a realidade psíquica e material descrita por Freud inicialmente na p. 620,
Interpretation of Dreams) como de Aristóteles (onde o nous é obtido através do exercício da consciência, o órgão sensorial para apreensão da
qualidade psíquica, ou da visão binocular conforme formulada depois
por Bion). Eu estou aqui propondo que consideremos Ciência como
um dos modos de apreender a realidade, na possibilidade aberta por
Platão e desenvolvida por Aristóteles – este último, geralmente considerado como pai da Ciência moderna – e que se re-aviva com Francis
Bacon, com o Iluminismo e se firma com o Movimento Romântico.
Aristóteles não prosseguiu amorosamente o trabalho de seu mestre – como
o próprio Platão fizera com Sócrates. Inaugurou um tipo de rivalidade:
frente à Academia de Platão, resolveu fundar um Liceu, e frente a observações abrangentes de Platão, julgou, por bem, introduzir umas tantas
clivagens que, a meu ver, se inseriram de modo tão violento no pensar
ocidental que até hoje sofremos seus efeitos. Estou me referindo a algo que
chamo, na falta de outro nome, de “Primeira Grande Clivagem Mundial” na história das vicissitudes da apreensão da Realidade. Ele se revoltou sobremaneira com a Teoria das Formas de Platão. Com isto, separou
mente de matéria. São Tomás de Aquino, Maimônides e Avicena usaram
essa separação, que lhes serviu como uma luva para as suas finalidades
religiosas (provar a existência de Deus). Nos séculos seguintes, mentes
robustas como a de um Descartes sucumbiram a esta grande clivagem entre
192 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
7. Isto tem lá sua utilidade ou talvez sabedoria, pois a alternativa seria ficarmos muito confusos ou
nublados ou poluídos, caso enxergássemos as ondas de FM, telefones celulares e TV que povoam
nosso ambiente.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 193
Paulo Cesar Sandler
matéria e mente; a semente do divórcio das humanidades com a ciência
natural estava produzindo um enorme capinzal, mas não uma bela grama,
penso eu. Uma ciência que se acreditou única e real por se apoiar em dados
vistos como objetivos, pois apreensíveis através daquilo que pode apreender algo visto como matéria: o sistema sensorial humano, composto, acreditava-se, de cinco sentidos básicos. Extensões que aumentavam o poder
do aparato sensorial foram criadas: telescópios, microscópios e outros. Os
sentidos pareciam muito confiáveis, e, realmente, o que se baseava neles
produziu muitos resultados para se apreender a realidade: construiu-se toda
uma Matemática de números naturais e inteiros e uma geometria de base
sensorial por Thales, Euclides e outros. Inicialmente atendendo necessidades, mas logo usada para satisfazer desejos, desgarrada da realidade natural, esta abordagem “fisicalista” não cria sonho – produz alucinação. O
“positivismo” é só uma crença: que o ser humano pode apreender a realidade, restringindo-se aos seus órgãos sensoriais. Teria enorme sucesso, em
parte real, por ser capaz de lidar com aquilo que é inanimado de modo
razoavelmente eficaz. Serviu para dividir terras ao longo das margens do
Nilo, para calcular forças que movem os corpos, para fabricar ferramentas
e utensílios, para mandar foguetes e satélites ao espaço muito próximo da
Terra, e quase tudo que serve para destruir, para promover, rápida e eficientemente, o retorno ao inanimado, como máquinas de guerra (há uma hoje
que destrói vida e mantém edificações: a bomba de nêutrons) e para construir coisas inanimadas de todo tipo. Há um sucesso momentâneo na satisfação do desejo que se consegue por meio de objetos inanimados. Contribui esta satisfação para que se esqueça que os órgãos sensoriais humanos
têm um espectro limitadíssimo de apreensão. Vai do vermelho ao violeta,
no caso da visão7. “Vemos” uma estrela, mas ela não existe mais. Não “vemos” bactérias, mas elas existem. Estes obstáculos foram iluminados pela
psicanálise, permitindo-nos discriminar o “ver” (aparato sensorial) do “en-
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
xergar” (realidade psíquica). Mas muitos analistas parecem se satisfazer
com o “ver”, por exemplo, quando se restringem a contar palavras ou tipos
de palavras durante uma sessão de psicanálise, em sua aplicação mais recente, ou ao gravar sessões com aparelhos de videoteipe.
Aristóteles “separou” mente de matéria, entre aspas, pois a separação
é um artefato mental. Seus seguidores, muito tempo depois,
autodenominaram-se “positivistas”. Nome muito apto, pois esta clivagem
negou o par complementar, paradoxal, antitético, do positivo, o par “negativo”. Os positivistas adquiriram o hábito de se julgarem donos da única e
absoluta Ciência e costumam rotular os que respeitam o “negativo” de algo
pejorativo, inferior, como sendo místicos, psicologizantes, anticientíficos
e outros que tais. Abominou-se o motor da ciência e da vida: a falta, a nãolocupletação, a frustração, a não-resposta, a não-explicação, o que não pode
ser nomeado, palpado, cheirado, mas existe e pode ser intuído e “usado”.
Mais ou menos como o navegador “usa” correntes marinhas ou aeronáuticas, ou como o físico usa os pacotinhos de energia quântica no mundo
subatômico ou de energia estelar no grande universo dos buracos negros8,
ou como o ser humano um dia usou o fogo. Aristóteles resolveu escrever os
produtos de sua mente em um capítulo especial, cujo nome, dado por um
editor e não por ele, foi “Depois da Física” (Metafísica) na linguagem da
época9. Talvez tenha sido a primeira epistemologia, a primeira teoria sobre
o conhecimento que surgiu de modo explícito.
Esta separação artificiosa tem conseqüências sérias para o clínico
praticante e principalmente para a saúde de seu paciente e da psicanálise. O clínico praticante pode não percebê-la, pois, inconscientemente,
ela se manifesta agregando dificuldades do praticante quanto à sua
8. Um engano comum, sempre dependente da clivagem e intolerância de paradoxos a que me
refiro, é pensar que os fenômenos descritos pela mecânica quântica são atinentes ao domínio
submicroscópico das micropartículas subatômicas; na verdade, as descobertas da mecânica
quântica servem para o grande universo, para energias tão grandes que não podem ser medidas
mas são conhecidas em sua existência e que formaram o próprio sistema estelar.
9. Um nome senso-concretizado, referente à posição ordinal de um capítulo em um livro, viria a
assumir uma conotação tão diversa...
194 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
10. Esta afirmação talvez demande evidências que não posso expandir agora. Ver A apreensão da
realidade psíquica, v.IV (no prelo); Conversas 9, 10 e 11 do curso com este nome; e também Bion,
o último romântico? – Ribeirão Preto, 1997.
11. Isto já havia ocorrido na década de trinta e, depois, na de sessenta.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 195
Paulo Cesar Sandler
própria relação com o seio materno (explicitada por Bion no cap. V de
Aprendendo da Experiência), com hábitos “cartesianos” da mente,
localizatórios, senso-concretificantes, causais, preditivos, manipulando engenhosamente símbolos. Penso que Freud e muito mais claramente Bion, e, até certo ponto, Jung e Lacan, foram os autores que
mais tentaram apontar os riscos desta atitude intra-sessão.
A crítica aos modos de conhecer e algumas de suas limitações estavam implícitas em Platão. A psicanálise redescobriria com Freud, Bion e
Green, sem os exageros alucinados do Idealismo Alemão que a gerou10, o
“negativo”, claramente descrito por Kant, quando ele mostrou a natureza
negativa dos númena. Não posso expandir isto agora e remeto o leitor tanto
ao texto de Kant (Crítica da Razão Pura), como ao meu texto sobre as
origens da psicanálise na obra de Kant (Imago, 2000, p.43). Demoraria
muito tempo para o ser humano perceber – principalmente com a Física
pós-Einstein – que matéria, que “positiva”, é apenas uma ilusão. Kant,
Goethe, Hegel e Freud percebiam isto; Freud formula uma forma específica de existência, que denominou “realidade psíquica”. Mas, como ocorrera
no Idealismo Alemão, e sem aproveitar esta experiência, e tampouco os
alertas de Freud a respeito, nova clivagem ocorreu e pendeu-se para uma
hipervalorização dos produtos da mente, da imaginação e dos sentimentos.
Como reação ao idealismo ingênuo que se abateu sobre o movimento psicanalítico, apareceram fortes tendências institucionais fascinadas, outra
vez11, pelo realismo ingênuo. Sem fazer jus aos poderosos insights de observadores como Bacon, Locke e Hume, que jamais depreciaram o valor da
intuição e já apontavam as falácias dos métodos indutivos, estes profissionais tentam quantificar a sessão analítica, lançando mão de registros inanimados, contagem de palavras, interpretações mecanicistas, às vezes baseadas em uma semiótica analógica, em correspondências bi-unívocas entre
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
palavras e significados. Talvez alguém estranhe que eu tenha colocado as
tendências atualmente não só aprovadas, mas estimuladas por setores da
IPA, lado a lado com setores da escola francesa. Creio que as duas possuem
a mesma rationale subjacente: uma senso-concretificação do ethos psicanalítico, eivada de racionalidade advocatícia e de relações de causa-efeito.
Desprezadas a investigação clínica e a experiência clínica, a esperança é
que algum tipo de máquina, de engenharia e de estatística possa substituir
por “entendimentos” e explicações algo que a falta de intuição e experiência psicanalítica pessoal não conseguem apreender. Talvez falte considerar
que “a mente é um fardo excessivamente pesado, que a besta dos sentidos
não consegue carregar” (Bion, 1975). Temos aqui uma reedição da proliferação de teorias e suas manipulações ad hoc engenhosas, ocorrida nas
décadas de cinqüenta e sessenta. Advogou-se ativamente que se jogasse a
metapsicologia fora (Modell, Kohut).
Racionalização, causalidade e predição
Uma das manifestações mais notáveis da clivagem mente/matéria me
parece ser o Racionalismo, a doutrina que diz que a Razão pode e deve
prevalecer sobre algo que é difícil nomear, pois todas as denominações
estão muito desgastados (sentimento, instinto, emoção). Apelando para o
que me parece ser o útero da psicanálise, o movimento romântico alemão12,
diria que se advoga que a Razão é superior ao Wille – um tipo de instinto,
de impulso, a origem da intuição. Após estudar o caso do Juiz Schreber,
Freud percebeu origens deste modo de funcionar, a “racionalização”. Os
racionalistas, desde Aristóteles, me parecem ter começado a perceber a
necessidade de disciplinar a “alma concupiscente”, o desejo e a busca incessante e imperiosa de prazer e a evasão do desprazer, nos termos de Bion
e Freud. Mas confundiram Necessidade com Obrigação e confundiram,
como ainda se confunde, desejo com instinto (no sentido da psicanálise). A
12. Esta afirmação também não se encontra disponível na literatura e compõe os volumes IV e V
da série A apreensão da realidade psíquica; um grupo francês, em 1998, começou a investigar
esta relação.
196 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 197
Paulo Cesar Sandler
Obrigação, ao tomar o lugar da percepção de Necessidades, criou enorme
obstáculo à ciência e à verdade: o Juízo de Valor. O “Desejo” passou a ser
visto religiosamente, ora como amigo a ser defendido, ora como inimigo a
ser combatido. Predição científica é uma crença religiosa do
pseudocientista, subserviente ao desejo e que foi demonstrada como falsa.
Este problema persiste no movimento psicanalítico, impedindo que nele se
constituam atividades científicas. Grande parte dos artigos publicados em
periódicos de psicanálise se faz em torno de uma episteme subjacente, a
teoria de causa e efeito traumática, que Freud abandonou em 1898/99.
Ocorrem, também, despercebidas, explicações racionais a priori, onde o
analista entra na sessão com um armamentarium de teorias prévias e enxerga o que já está predisposto a enxergar, ou as teorias a posteriori (ad
hoc), onde se encaixa racionalmente o fato clínico em teorias que estão à
mão. O racionalismo traz intrínseco o juízo de valor, manifesto por critérios de cura, de certo e errado, de bom e mau, e infindáveis clivagens que
abominam o paradoxo. São “manipulações engenhosas de símbolos”, ou
“formalismo”, um sério problema que quase destruiu a matemática no final
do século passado, como apontaram Whitehead, Russell e Gödel, e que
Bion trouxe aos analistas. Freud percebeu que isto iria acontecer, mas não
penso que seus alertas, contidos por exemplo na Interpretação dos Sonhos,
tenham sido levados muito a sério em termos do movimento psicanalítico.
A Racionalização é o triunfo da filosofia do consciente; é pré e, às
vezes, antipsicanalítica, na medida em que nega o inconsciente. Ela se tornou muito popular. A origem do termo é matemática. Os números podiam
ser reduzidos a raízes, e isto criou a palavra que até hoje é brandida como
bandeira e prova de ciência: “racional” – sem que os auto-intitulados “racionais” se perguntem, de onde veio esta palavra, o que ela significa? Descartes, um médico e filósofo, um dos maiores da humanidade, paradoxalmente não agüentaria a dúvida filosófica, que ele mesmo formulou, quando sucumbiu e afirmou o lema dos racionalistas, brado de guerra do formidável exército daqueles que são a favor do consciente, contra a existência
do inconsciente: “Penso, logo existo”. Atrasaria toda uma evolução, até
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
que surgisse um Rousseau, um Hammann – “Sinto, logo existo” – e um
Kant – “O não sei é meu existo?”. Várias clivagens artificiosas, entre
louco e sadio, certo e errado, bem e mal, ímpio e crente, surgiriam.
Bion, que compôs entre aqueles que não tomavam os escritos dos
grandes mestres como verdade absoluta, leu o Discurso do Método e foi
verificar uma coisa que Descartes “provou” ser absurda: se havia “pensamentos sem pensadores” – e com isto retornou às formas Ideais de Platão.
Esta verificação de Bion foi feita na prática psicanalítica. No mundo material, ela é facilmente constatável; por exemplo, na história das invenções,
elas são geralmente feitas por pessoas diferentes, em diferentes épocas e
lugares, em conhecimento mútuo. Mas os racionalistas imaginam que por
lógica, dedução e indução, apesar das iluminações feitas por Hume e Kant,
caminha a ciência.
Na minha analogia, a Primeira Grande Clivagem Mundial deu margem a uma complicação ainda mais séria e destrutiva para a mente, para a
ciência e para a busca de realidade ou verdade: a Segunda Grande
Clivagem, onde se passou a negar a própria existência de
transcendências e, conseqüentemente, da própria realidade. Eu tenho
chamado os dois “partidos” em guerra de “Realismo Ingênuo e Idealismo
Ingênuo”, intolerantes do paradoxo epistemológico e mental básico.
Realismo ingênuo e idealismo ingênuo
Kant cunhou o termo “Realismo Ingênuo” quando criticava a obra de
Bacon e Locke. Refere-se a uma tendência que se geraria nos positivistas:
a crença que podemos apreender a nós mesmos e ao mundo apenas através
do aparato sensorial. Ernst Cassirer e Gaston Bachelard popularizaram o
termo. Penso ter percebido o aparecimento de um “Idealismo Ingênuo”,
cujos adeptos descambaram para a alucinação e tornaram quase impossível
aquilo que tenho proposto denominar, inspirado em Winnicott e Bion, de
“intolerância a paradoxos”. Disfarçados idealismos de nosso século, a meu
ver, inspiram-se em um fragmento das postulações de Kant. Segundo ele, o
observador impõe dimensões de espaço e tempo sobre o fenômeno obser198 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
13. A expansão destas constatações e investigações, feitas ao longo dos últimos 30 anos, aliando
uma certa informação filosófica à prática diária com fenômenos psicóticos em psicanálise, encontra-se nos capítulos “Idealismo” e “Contribuições da Psicanálise para dirimir a controvérsia”,
texto que vai da p.76 até a p.109 do volume III - “As origens da Psicanálise na obra de Kant”, da
série A apreensão da realidade psíquica, Imago, 2000.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 199
Paulo Cesar Sandler
vado. Com o passar do tempo deu combustível ao idealismo que Kant tanto
combateu, como se o observador impusesse sua mente e assim legislasse
sobre o fenômeno e sobre a própria realidade. Acho que isto tem dominado
dois movimentos aparentemente contrários em nosso século, mas que me
parecem unidos: o da pseudociência positivista e o da pseudofilosofia
dissociada da prática. Sua união paradoxal me parece se dar na sua origem
e no seu resultado final: teorias pseudocientíficas de cunho ingenuamente
realista ou ingenuamente idealista13. No Realismo Ingênuo, origem do
Positivismo, a pessoa crê não somente no poder do aparato sensorial,
mas crê que existam relações – sempre concretas – de causa e efeito;
crê que possa se localizar fenômenos (no espaço euclidiano
bidimensional ou cartesiano tridimensional) segundo valores absolutos, como tempo e espaço; que o mundo se resume ao espaço cartesiano
e que se possa prever o desfecho de fenômenos. Talvez seja útil manterse em mente que a noção de causa presume uma seqüência temporal de
eventos e que as causas antecedem os efeitos; a primeira exposição detalhada disto me parece ter sido de Kant.
O problema que vejo aqui é o desprezo ao acaso (ou probabilidade) e
o desprezo à escolha inconsciente; o determinismo é entendido na mais
rígida ordem estabelecida segundo “leis científicas”; acredita-se que o universo obedeça às leis do funcionamento mental do “observador”, visto
como lógico, e presume-se que este observador seja neutro. Wittgenstein,
tomado pelos neopositivistass como modelo em sua análise de linguagem
para testar seu valor verdade, separou-se do grupo. Parece-me que
Wittgenstein tinha uma base mais sólida em Kant, pois ele pensava que os
“objetos” foram a substância do mundo e são elementares, simples; pertencem ao que é transcendente, mas a “configuração”, alcançável pela linguagem, consiste no mutável, no imanente. Ele vai buscar relações entre lin-
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
guagem e pensamento e acha que as proposições da linguagem não parecem ser figurações da realidade, que poderia ser intuível ou alcançável,
caso fizéssemos certas análises da linguagem. É destas análises que surgem idéias sobre as “proposições mais elementares”. Tanto a percepção da
relação entre pensamento e linguagem como o trabalho de isolar “elementos básicos”, quase-atomísticos, um projeto que remonta aos alquimistas e
aos gregos antigos e aparece na obra de Freud, Klein e Bion. Parece-me
que Bion deixa isto mais explícito em seus estudos sobre a origem do pensamento verbal (em Second Thoughts e Learning from Experience) e na
sua busca do “objeto psicanalítico” e dos “elementos de psicanálise”14.
Como Wittgenstein, Bion também abandona este caminho em sua obra
posterior.
Bion observou que o estado de mente deste tipo de cientista equivale
ao estado de mente do psicótico, que dispensa ao animado um tratamento
pertinente ao inanimado. O advento simultâneo da psicanálise (em 1900),
da física quântica (em 1905) e da teoria da relatividade (em 1907) mostrou
que este cientista não era nem mesmo cientista real. Esta situação faz com
que se “senso-concretifique” (Sandler, 1997) tudo aquilo que não é sensorialmente apreensível e nem concreto. Este me parece ser um formidável
obstáculo para a apreensão da realidade. Não descobri até agora se Bion
conhecia a obra de Wittgenstein, mas ele conhecia bem a obra de Popper,
Braithwaite e Carnap, e era crítico ao ponto de rejeitá-las.
Uma última crença positivista é a “neutralidade axiólogica do observador”, usando as palavras de Adorno, Horkheimer e Habermas.
Enfatizo a questão da predição de fenômenos, que encontrou em um aspecto muito parcial da física, a cinemática da época de Newton, sua única
possibilidade teórica de realização. Curiosamente, o desenvolvimento da
ciência para mais além do realismo ingênuo coincidiu com o fato de cientistas serem novamente, como nos tempos dos antigos sábios gregos e dos
renascentistas, pessoas que pensavam sobre sua prática e que se tornaram
14. Dou uma idéia sintetizada destes dois conceitos no apêndice do estudo “Um desenvolvimento
e aplicação clínica do instrumento de Bion, o Grid”. Rev .Bras. Psicanál., v.33, p.13, 1999.
200 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Neopositivismo
Ex-físicos, como Ernest Mach, Moritz Schlick e Philip Frank, outros
interessados em economia, como Otto Neurath, e filósofos na mais estrita
acepção do termo, como Wittgenstein, voltaram-se para verificar o valorverdade contido na linguagem, com um projeto epistemológico, de teoria
do conhecimento, que se auto-intitularia “Neo-Positivismo Lógico”. Seus
expoentes seriam, pouco depois, Rudolph Carnap, Karl Popper e seu discípulo Imre Lakatos. Eles não eram cientistas praticantes, mas comentadores
e críticos da ciência. Os que haviam tido prática científica, a interromperam. Por exemplo, Mach jamais aceitou o trabalho de Max Planck e de
Einstein, pois se recusava a aceitar que a ciência se baseasse em intuições
de cientistas específicos; pois por intuição, mas não por dedução, indução
ou racionalidade lógica, é que podemos lampejar transitoriamente a coisaem-si, os númena, a realidade. Mach parece ter sido o primeiro a afirmar
que a Ciência estudava relações entre as coisas, e não as coisas. O projeto
epistemológico neopositivista, que certa tradição acadêmica erroneamente
vincula aos erroneamente chamados empiristas ingleses como Bacon,
Locke e Hume e à Física, apareceu na realidade com Auguste Comte, que
entronizou de vez as crenças em causas e efeitos relacionadas por
linearidade direta, predições e senso-concretificações. Os neopositivistas
tinham uma atitude honesta cientificamente: de corrigir sua rota à medida que os dados empíricos indicassem esta necessidade, o que me parece ser o ponto mais importante de todos quando se fala em postura
científica, expressando consideração com a verdade além da opiniática esquizo-paranóide ou idealista; o que acabou caracterizando sérias
dificuldades teóricas deste movimento, com dissensões entre seus memSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 201
Paulo Cesar Sandler
depositários de filosofia, talvez tanto ou mais do que os filósofos. Planck,
por exemplo, assim como Heisenberg, Einstein, Schrödinger, Dobzhansky
e, em certa medida, Wittgenstein, que planejava ser engenheiro aeronáutico, e Freud, que havia sido médico, parecem ter abrigado a filosofia com
mais segurança do que a filosofia oficial.
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
bros. Seu projeto não se realiza e às vezes nega a partir dos pontos de
partida em alguns casos, como ocorreu com Carnap. Isto é bem ilustrado
também pelo trabalho de divulgadores como Hempel (que retorna a Hume)
e Braithwaite.
Moritz Schlick pensava poder usar certos critérios lógicos de
testagem. Ele acreditava, como Mach, que todo conhecimento deve ser
verificável e refere-se à experiência. Como descrevê-los? Em primeiro
lugar, com rigor terminológico: Schlick esperava construir uma linguagem
unificada da ciência15. Em segundo lugar, tanto a descrição quanto a investigação requerem instrumentos lógicos. Ele não acha que a filosofia tenha
fracassado, mas simplesmente que seja algo impossível. Pode-se descobrir
o que é real, diz ele, quando se reduz as proposições até se descobrir tudo
aquilo que seja confirmado como falso, que seria rejeitado. O problema
que vejo aqui é que ele acha que pode, no final, assenhorar-se de “O”, à
medida que vai desbastando as falsidades. Trata-se de uma evolução curiosa de sua obra, talvez contraditória, pois em outros momentos ele havia
reservado à filosofia, como Wittgenstein, a tarefa de indicar aquilo que é
inexprimível e nunca a tarefa de ser uma teoria que possa exprimir os
fatos. Como alvo, talvez esta proposta se mantenha, mas como atividade
possível, faz equivaler este projeto ao projeto religioso e ao idealista, de
posse da verdade absoluta, pois ele diferencia filosofia de positivismo.
Schlick acaba tentando descobrir uma linguagem lógica com concordâncias lógicas internas às propostas. Não lhe interessam os objetos de estudo
(na linha de Mach), mas sim a linguagem usada para designar hipóteses e
propostas que os designam. Estudar linguagem e gramática seria o passo
para unificar a ciência; era um pouco inspirado na primeira obra de
Wittgenstein (que, por sua vez, jamais aprovou o uso que os neopositivistas
tentaram fazer de seu Tractatus Logico-philosophicus). Ciência seria algo
cujas propostas mantivessem uma coerência lógica interna, voltando a an15. Em função disto, sugeri na reunião anterior deste ciclo que o Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luís Alberto Hanns, é um trabalho científico. Modificações terminológicas sem
respaldo empírico são, ao contrário, anticientíficas.
202 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
16. Esta expressão – “fatos tais como eles são” – parece-me ter sido criada por Francis Bacon e foi
extensamente usada por Shakespeare, Samuel Johnson, Kant, Hammann, Von Herder, Goethe e
Freud. Parece-me constituir o alvo do trabalho de cientistas como Watson, Crick, Einstein e
Schrödinger, entre vários de outros.
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Paulo Cesar Sandler
tigas posturas de John Locke, para quem o conhecimento era a concordância entre idéias. Schlick, como Popper, acabou ficando pré-Kant. Pois, na
luta desesperada de Kant – e o tempo demonstraria, inglória – contra o
idealismo, e no seu respeito à experiência, aos fatos tais como eles são16, o
solitário mestre de Königsberg percebia que o conhecimento não era a concordância entre idéias, mas sim a concordância entre a idéia e o objeto.
Hume já percebera isto ao questionar: se o conhecimento era a concordância entre idéias, como diferenciar o louco do pensador? A busca de lógicas
racionais e coerências internas em teorias, e sua forma mais atual, de concordâncias entre autores, haveria de ressurgir, acriticamente não observada, nas obras de Kuhn e Lakatos. O que, para mim, configura uma regressão aos tempos pré-Kant e um não aproveitamento de sua contribuição ao
conhecer. Algo será mesmo científico, caso seja coerente com uma lógica
interna a uma determinada teoria? Em psicanálise, tem-se produzido “vastas paramnésias para preencher o vazio de nossa ignorância” (Bion, 1976,
1976, 1977) – inclusive intra-sessão, ou “engenhosas manipulações de
símbolos” (Bion, 1975, p.102). O que me parece ter ficado da contribuição
de Schlick é sua postura inicial em que o significado de uma proposição,
para ser considerado científico, consiste no conjunto de suas condições
empíricas de verificação. Seu rigor nas definições e o evitar ambigüidades
nelas me parece fundamental na ciência. Em psicanálise, rigor semântico e
condições empíricas de verificação fazem a clínica: são as reações do paciente às nossas afirmações, em termos de associações livres. Parece-me
que tanto Bion como Money-Kyrle (que foi aluno de Schlick) mantêm esta
postura, assim como Freud a usou para abandonar algumas de suas conclusões iniciais. Na obra de Money-Kyrle, pode-se ver este caminho no estudo
Desenvolvimento Cognitivo, de 1968. Eu penso que os aspectos que não
ficaram e nem podem ser usados em psicanálise são o caminho lógico-
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
racional que ele advogou e o reducionismo a uma gramática como instrumento de verificação de cientificidade.
O caminho “gramatical”, o exame da linguagem científica, continuaria, apesar da desaprovação de Wittgenstein que se usassem suas idéias
para tanto. Carnap, inspirado por Russell, que via muitos dos problemas
filosóficos clássicos como resultados de análise lógicas defeituosas, toma
de empréstimo do grande matemático uma noção: a de definição
contextual. Ela se refere ainda a uma tentativa que chamo de gramatical, ou
seja, de traduzir a linguagem da experiência imediata em uma linguagem da ciência. Este projeto se complica na medida em que a linguagem
da ciência se transforma em chavão ou jargão e tem os campos semânticos
das palavras muito alterados pelo uso contínuo e pelo descuido. Este fato
foi apontado por Bion em estudos como Evidência (1976). Usando uma
frase de Shakespeare, é como uma cadeira de barbeiro, que serve a qualquer traseiro. Isto nem sempre é um problema da formulação inicial, mas
talvez, quando elas são realmente muito felizes, contendo contrapartes na
realidade e sendo cientificamente válidas na mediada “kantiana” em que o
conceito coincide com o objeto (traduz a linguagem da experiência em
linguagem de ciência), incitem mais ódio e inveja. Se não houver respeito
pelas formulações iniciais, os discípulos, muitas vezes motivados por rivalidade não analisada ou por simples falta de compreensão e experiência, ou
detratores, mudam o conceito e a comunicação, e o valor da formulação vai
se perdendo. O common ground e o common sense se perdem. Carnap tenta, como Wittgenstein, encontrar proposições primitivas e elementares, e
com estas proposições constrói uma série pequena que descreveria qualidades e sensações. Ele parece respeitar “O”, ou os númena, e pensa que a
linguagem referente a dados sensorialmente apreensíveis não é comunicável. Equivale dizer que a coisa em si não é passível de nomeação total. Mas
estes dados podem ser vistos em uma estrutura ou em uma ordenação e
suas relações podem ser estudadas logicamente, ele acreditava, como
Schlick também acreditava. Curiosamente, esta construção, uma vez mais,
aproxima os neopositivistas dos idealistas, pois a linguagem, a construção,
204 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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toma o lugar dos objetos observados. Creio que o “burocrata” da ciência,
sem ser um cientista, acaba tendo com objeto de estudo apenas os métodos
usados para se conhecer algo (como Kant), mas não os próprios objetos.
Talvez apenas a Psicanálise, a Física, a Matemática e a Biologia mantenham a possibilidade de unir uma prática que estude tanto os métodos de
estudar os objetos como os objetos de estudo. Será a epistemologia, quando usada como fim-em-si-mesmo, um corpo que se engendra a si mesmo
também? Carnap desenvolve algumas “concepções protocolares”, como
ele as denomina, e abandona qualquer discussão entre “positivistas” e
“fisicalistas” ou “realistas”, como eram chamados. Os “realistas” são aqueles que afirmam que existem objetos além da experiência sensorialmente apreensível – como Kant, Freud, Klein, Bion –, e agora os positivistas,
que nasceram da experiência sensível, recusam-se a estudá-los, na comunhão final que tento apontar entre realismo ingênuo e idealismo ingênuo. O
mundo passa a ser aquilo que a pessoa vê e não aquilo que é considerado
como inacessível. Carnap tenta verificar como os conceitos científicos
mantêm conexões lógicas com a experiência. Ele tenta, como Hume, deixar de lado a descrição de como tais conceitos são obtidos psicológica ou
intuitivamente por um observador ou cientista individual. Os
neopositivistas jamais se livrariam do problema que eles mesmos criaram:
que os conceitos (enunciados) e os fatos aos quais eles se referem são de
espécies diferentes. Assim, não pode haver correspondência
(contrapartes, na linguagem de Bion) entre eles, mas apenas escolhas de
conveniência do observador – novo apelo ao idealismo. Carnap acabaria
abandonado esta posição; ela me parece estar bem iluminada para os psicanalistas à p.73, cap. VI, Transformações (1965), no que tange a Necessidades Lógicas e Psicológicas. O racionalismo a serviço das paixões não
observadas volta a imperar, provocando um distanciamento em relação aos objetos de estudo. Podemos ver algumas influências de Carnap
em uma fase do trabalho de Bion, principalmente na construção do “Grid”,
em que me parece haver uma aplicação de idéias contidas no livro Sintaxe
Lógica da Linguagem, principalmente no que ele chamou de “regras de
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
formação” e “regras de transformação”. A filosofia é considerada como
uma metalinguagem, uma linguagem que cuida da linguagem. No final de
sua vida, ele preserva sua crença inicial: que a epistemologia tem valor
como estudo destas metalinguagens e que assim teria relevância teórica;
mas que tanto a epistemologia como a filosofia ficam irrelevantes teoricamente caso pretendam competir com a ciência no conhecimento do mundo. Ele jamais abandonaria sua confiança na lógica dedutiva, que permitiria demonstrar cabalmente que uma proposição é verdadeira, a partir da
verdade de outras proposições das quais ela é uma conseqüência lógica: o
auto-engendramento circular a que me refiro e que expando na p.105-117
de A apreensão da realidade psíquica, v.I. Creio que o neopositivismo jamais escapa do formalismo, da “manipulação engenhosa de símbolos”
alertada por Whitehead na matemática e por Bion na psicanálise.
Karl Popper seria aquele neopositivista que gozaria de maior popularidade. Ele levou adiante o projeto de Schlick, que tentou critérios de
verificabilidade das propostas, hipóteses e achados científicos. Estes critérios ficam mais sofisticados e específicos e dividem-se em dois: critérios
de falseabilidade e de reprodutibilidade. Só seria ciência algo que pudesse ser provado como falso e pudesse ser reproduzido. A boa intenção e
as promessas libertárias contidas em juras conscientes (Popper escreveria
um livro sobre a sociedade aberta) escondem a grande clivagem de sua
obra, a “segunda grande clivagem mundial”, uma profunda negação da realidade contida na negação das transcendências. Pois se toda boa teoria,
para ser teoria científica, tem que cair, não há liberdade. O tem que é o
grilhão, seja lá do que for. Muito ao contrário, as boas teorias, ao alcançarem transcendências, mesmo que tosca e parcialmente, não caem. Se
cair, é porque já era falsa, e sua falsidade simplesmente emergiu ou não era
percebida. A roda ou a teoria que a descreve (círculos, cilindros, o número
p) não caíram, continuam vivas, úteis e robustas. Da roda de madeira desenvolveram-se pneumáticos, rolamentos de esferas e outros, mas a
transcendência ou a forma Platônica “roda” está aí. Ao contrário do que o
pouco saber afirma, a Geometria Euclidiana ou a Física formulada por
206 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 207
Paulo Cesar Sandler
Newton não caíram, foram apenas suplementadas pela Geometria de
Riemann e Lobachewsky, e pela Física formulada por Einstein. Se a Psicanálise for verdadeira, ela não vai cair, embora possa se desenvolver. Édipo
vai cair? Talvez quando houver alguma mutação genética que prove ser
mais apta para a sobrevivência, e a reprodução dependente de fêmeas, machos e filhos venha a ser substituída. A bestialidade mudou, dos sáurios até
Hitler? Ou a sublimidade, de Sócrates até Beethoven? Popper, inimigo
acerbo da Psicanálise, percebia que ela não é falseável, mas o seu critério
de reprodutibilidade parece ser “obedecido” por ela. As contribuições de
Popper – como seus alertas sobre constructos ad hoc – me parecem reais;
mas não todas.
Imre Lakatos, nascido Lipsitz, segue as tentativas lógico-racionais de
Popper quanto a delimitar o que é ciência em relação à pseudociência e
apela para um tipo de dialética lógico-discursiva (penso que criativa em
sua forma, de diálogo entre personagens imaginários, como em Sócrates,
Goethe, Diderot e Bion) para examinar certos conhecimentos matemáticos. Ele não chegou a realizar um corpo epistemológico além de um uso
muito particular da palavra “Heurística” – para ele, o raciocínio dialético
em que os conceitos centrais vão mudando à medida que o diálogo progride (o sentido mais comum da palavra “heurística” é um dispositivo psicológico que ajuda a mente humana, muito limitada, a compreender algo
muito difícil). Esta concepção de mudança de conceitos acaba adquirindo
um sentido próximo ao historicismo dialético de Hegel e dá um tom
antitranscendência e antiverdade ao projeto de Lakatos. Uma de suas aplicações foi o que ele chamou de “programa de investigações” (research
program), talvez limitado pelo apelo à lógica e à racionalidade conscientes. Ele não completou seus projetos, pois faleceu muito jovem. Talvez seja
necessário enfatizar que seu estudo mais completo – Proofs and refutations
– se dá como uma epistemologia da matemática, através de uma tentativa
de dar um cunho histórico às posturas científicas. Voltaremos mais adiante
a algo de sua contribuição, que tem pontos de contato, jamais reconhecidos
por ele, com a obra de Thomas Kuhn.
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
Tenho a impressão que os positivistas e o neopositivistas, os advogados da hard science causal, baseada na apreensão sensorial e na
concretização do pensar e do seu modo de ver o mundo, têm tido um outro
hábito mental baseado em uma fantasia de superioridade: eles costumam
dizer que sua abordagem é a única e a verdadeira ciência. Desprezam, no
entanto, a existência da própria realidade e de uma realidade que não é
dada diretamente ao aparato sensorial; desprezam a ciência física e matemática modernas e, obviamente, desprezam a psicanálise.
A epistemologia que não seguiu este programa do círculo de Viena,
neopositivista, desaguou em algumas vertentes. Penso que as principais
delas compuseram uma teoria do conhecimento integrada à própria ciência, com a Psicanálise, a Física Moderna e a Matemática, além de um ramo
nas Ciências Sociais de cunho fortemente crítico-epistemológico, a Escola
de Frankfurt. Mas vamos examinar agora outra vertente, que ficou mais
popular, pelo menos em setores da intelligentsia que se dedica à
Epistemologia: o caminho que denomino “Idealismo Ingênuo”. O que é
isto de Idealismo Ingênuo? Criei este termo ao percebê-lo como par
antitético existente, porém ainda não nomeado do primeiro. Classicamente, na filosofia e na epistemologia, o Idealismo é a idéia de que se apreende o mundo através das idéias da mente; o mundo e o universo e a
própria mente, a realidade mesma, não teriam sua existência própria,
“lá fora”, mas seriam criações da própria mente. Com o tempo, no
Idealismo (também chamado de subjetivismo) abrigou-se a oposição à
idéia de que se apreende o mundo e a mente através do uso dos órgãos
sensoriais. Não havia e nem há para os que assim pensam uma “realidade lá fora” que possa ser apreendida, mas ela é criada pelo ser humano, individual ou socialmente. A história aqui é caracterizada por surpreendentes contradições e seria engraçada caso socialmente não tivesse
sido trágica: tanto o stalinismo como o nazismo são os exageros do Idealismo. Hitler costumava dizer: “a imaginação forma a base do conhecimento”. Kant, por exemplo, assim como Hume, lutaram muito por
desmistificar o idealismo de sua época representado principalmente por
208 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 209
Paulo Cesar Sandler
pensadores como o Bispo Berkeley e Leibniz. Eram dois grandes físicos,
mas parecem ter clivado sua percepção da realidade e recaído no mais individualista idealismo. O termo ‘idealização’, no sentido psicanalítico, de
um objeto idealizado, talvez ilumine o significado filosófico – estar convencido que a mente constrói o mundo. Psicanaliticamente falando, a idealização origina-se do ódio à realidade, ódio ao objeto real tal como é. Portanto, alguém alucina e, alimentado por onipotência, sente que pode criar –
alucinar – outro objeto, um objeto não-frustrante.
Kant e Hume se interessaram pelos métodos humanos de conhecimento, ultra e infra-sensoriais, “metafísicos”, além do objeto a ser conhecido.
Este último é o trabalho da ciência. A imaterialidade e o criticismo que
caracterizaram seu trabalho levaram muitos a tacharem os dois de místicos
e céticos. E, talvez pelo ódio ao conhecimento, a aguda percepção que
ambos tiveram, depois desenvolvida pela Psicanálise e pela Física
quântica, de que o observador interfere no fenômeno observado, pois impõe certas limitações ou características de seus métodos de observação,
levaria a uma negação da própria possibilidade de conhecer e, principalmente, como hoje se pensa, que nem há nada de real para ser conhecido,
pois tudo é obra da mente. O mundo – externo ou interno – seria o que a
mente diz que ele é. Sob a ótica da experiência psicanalítica, percebe-se
uma igualdade essencial do idealismo com o realismo ingênuo. Tal postura, embora aparentemente não sensorializada nem concretizada, é igualmente típica do psicótico. Pode-se traçar uma linha que, exacerbando certos aspectos da obra de Kant, clivando-os do todo, deságua no Idealismo
Alemão, em Fichte e muitos outros, como Beck. Vai ressurgir em solo insuspeito, o solo francês, numa evolução, ou talvez involução: parte de
Bachelard, desvia-se para Derrida e para Canguilhem. Pessoalmente, estes
três pensadores me parecem ter escapado de um mergulho total no idealismo ingênuo, mas descambou-se para tal confusão entre inacessibilidade ao
domínio numênico, ou incognoscibilidade da coisa em si, ou de “O”, para
um princípio da ignorância que legaliza o produto da mente individual. O
princípio da incerteza observado por Heisenberg seria transformado em
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PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
um princípio da ignorância; a crítica à linguagem, que vinha desde Voltaire
e se sofistica com Nietzsche e Wittgenstein, desemboca num textualismo
pós-moderno que idolatra a metáfora como substitutiva da realidade.
Em termos de autores, os epistemólogos que submergiram nestas
águas tão turvas quanto as do realismo ingênuo haveriam de se tornar autores muito populares em nosso meio, provavelmente devido àquilo que o
Professor Paulo Arantes chama de “um departamento francês em Ultramar”: Lyotard, Althusser, Deleuze e, em algumas obras, Michel Foucault.
Mais recentemente ainda, esta linhagem, usando um tipo de historicismo
quase-hegeliano e culpadamente marxista, se corporificou nas tentativas
de Thomas Kuhn – que haveria de tentar remendar sua própria obra e as de
Lakatos. Como assinalei acima, ele tentou uma integração entre o
historicismo de Hegel com as verificabilidades e falseabilidades de Popper,
criando um sistema um tanto confuso e inacabado, em parte pelo seu precoce falecimento.
Thomas Kuhn adquiriu enorme popularidade na década de setenta.
Para ele, a mudança científica não passa de uma conversão mística, que
não é e nem pode ser governada por leis racionais e que se situa totalmente
no âmbito da “psicologia social da descoberta”. Ele teve treinamento em
Física, e parece-me ter tido uma especial sensibilidade histórica, mas o uso
que fez dela é uma outra questão. Tenho a impressão que Kuhn despreza a
diferença entre aquilo que em filosofia da ciência é chamado de “contexto
da descoberta” e aquilo que é chamado de “contexto das justificativas”.
O contexto da descoberta é o processo psicológico pelo qual um cientista
se depara com ou intui uma conjectura: Poincaré o descreveu como fato
selecionado, Bion como invariância, e muitas vezes tem sido resultado de
um sonho ou percepção de uma conjunção constante (no sentido de Hume).
O contexto das justificativas compõe-se das argumentações e experimentações segundo uma conjectura é provada como falsa ou verdadeira – caminhos lógico-racionais na esperança de neopositivistas, às vezes acrescidos
de experimentação empírica, segundo outros. Kuhn despreza isto tudo e
distingue ciências maduras de ciências imaturas; nestas últimas, os cientis210 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 211
Paulo Cesar Sandler
tas se envolvem em debates metafísicos e metodológicos, que compõem
escolas rivais e facções delas. Muitos dados empíricos são coletados, mas
ficam desconexos, pois não há um quadro de referência sob acordo geral
que pudesse distinguir fatos, curiosidades, irrelevâncias e verdades. Diz
Kuhn que, no momento em que surge uma concepção unificada a respeito
de quais são as questões e princípios e hipóteses realmente importantes e
que métodos delas derivados vão valer, uma ciência passa de imatura para
madura. O campo científico se legitima e estabelece problemas e métodos
de um campo de pesquisa. A isto Kuhn denomina “Paradigma”. Eu estou
citando aquele que me parece o conceito mais claro e mais comum desta
palavra na obra de Kuhn, mas na verdade há muitos outros ao longo dela.
Uma pesquisadora, Margareth Masterman, descobriu 22 acepções diferentes do termo! Kuhn acabaria criando um outro termo para resolver esta
confusão, “matriz disciplinadora”, mas eu não estou seguro que ele tenha
mesmo resolvido o problema. De qualquer modo, independe disto uma
conseqüência que eu acho muito séria desta idéia que a teoria de Kuhn traz.
Trata-se dessa admiração temporal, pontual, de grupos de cientistas por
uma teoria destituída de valor verdade, é criar a crença que cada ciência e
cada escola ou paradigma cria seus próprios problemas. Esta crença de
cada ciência, cada escola ou paradigma cria seus próprios problemas ficou
popular, mas apresenta uma situação hipotética e dependente de raciocínios, de plausibilidade e não se encontra na prática. Por exemplo, Freud não
modificou suas teorias em três ocasiões porque ele ou os psicanalistas resolveram, ou para achar socialmente novos paradigmas, mas porque os fatos, a realidade clínica, mostraram esta necessidade. Mas talvez a mente
onipotente, o bebê que insiste que o seio tem que ser o seio que ele imagina, e, por extensão, na vida adulta, a realidade tem que se adequar às leis de
seu funcionamento mental, imagina uma ciência criada na mente das pessoas e uma realidade que se adaptaria a ela. O caminhar da ciência não se
faz pela imposição das leis da ciência à Natureza, mas por um respeito à
Natureza, à Realidade, seja lá como se denomine “O”, que tem precedência
temporal, espacial e existencial sobre nós. No dizer de Fernando Pessoa, “a
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PSICANALISTA, PARA USO DE PSICANALISTAS
DE UM
realidade não precisa de nós”, em flagrante oposição às teorias de Kuhn.
O único modo de a ciência progredir, bastante parecido com Popper, é
quando um paradigma entra em crise, até que outro paradigma unificador
surja; a crise, novamente, não é devida a fatos reais, mas a problemas ou
peculiaridades historicamente determinadas.
Note-se que a concepção de realidade, aqui, é um acordo entre pessoas
em torno de uma ótica comum, e não se chega em nenhuma realidade ou
fato “lá fora”, como diz o matemático Martin Gardner, ou não se lida com
nenhuma transcendência como as que descrevi muito brevemente sob as
formulações “roda” ou “Édipo”, ou a apreensão e a captação de um fato
real, ou um “pensamento sem pensador”, no dizer de Bion. Kuhn reivindica que a coerência de uma ciência madura é devida a uma admiração compartilhada de cientistas por algum exemplo do paradigma e de sua determinação para produzir mais, da mesma coisa. Os cientistas seriam pessoas
que se entretêm, aí, em ficar replicando (no sentido de Popper) o já sabido,
que por sua vez foi fruto de uma escolha social, psicológica, política, cultural ou de mera conveniência que pode ser estética, por exemplo, ou ideológica. Aliás, esta foi a maior diatribe entre Lakatos e Popper contra Kuhn,
pois os primeiros viram com clareza as implicações autoritárias do tipo
stalinista ou nazista envolvidas na teoria de paradigmas de Kuhn. Este tentou contornar o problema, com o êxito que cada leitor pode julgar. Laertes
Ferrão, em seu estudo Eu vi um balão no céu, oferece uma percepção psicanalítica desta postura, que me parece um idealismo redivivo e uma defesa do establishment, de autoritarismos e um ódio à verdade. Popper e
Lakatos criticaram com certa violência a posição de Kuhn, por terem uma
mente libertária e julgarem que as diferenças políticas e sociais jamais poderiam ser resolvidas por força física ou retórica. Mas Popper achava que a
disputa poderia ser resolvida por lógica e plausibilidade e, intrinsecamente, também se afastava de verificações empíricas da realidade.
Embora Kuhn tenha pessoalmente se desentendido seriamente com
Popper e Lakatos, sua obra, caso percebamos que ela faz parte da “segunda
grande clivagem mundial”, negando a realidade e o domínio numênico das
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 213
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transcendências, parece-me em essência ter mais pontos de contato com
estas do que os três possam ter reconhecido ou que as aparências indicam.
O ponto de contato me parece estar na negação da transcendência, da realidade mesma. Ambos acharam que ciência era uma espécie de acordo temporal entre colônias e sociedades de cientistas, da mente deles e da moda
vigente. Tenho evidências que, paradoxalmente, eles brigaram por acreditar na mesma falácia: que a verdade não existe e que Ciência é algo
descartável e renovável, dependente de discursos e retóricas e acordos válidos para certos momentos históricos. Este historicismo reducionista restringe os avanços da ciência a interesses de classe, crenças momentâneas,
distantes de fatos. Tanto em Popper como em Kuhn, embora com terminologias diversas, a essência é que uma boa ciência é aquela que pode ser
demonstrada ser falsa, ou que uma boa ciência é aquela que permite a formação de “paradigmas” que um dia vão cair. O realismo ingênuo iguala-se
ao idealismo ingênuo, na medida em que ambos negam a verdade e a
transcendência intuível, mas jamais alcançável por lógica, racionalidade,
estratégias, acordos entre grupos, explicações, ideologias, teorias a priori
ou ad hoc. Ambos se perderam em imanências retóricas, culturais,
discursivas, de símbolos ou de valores temporais de grupos dominantes,
lugares, etc.
Tenho a impressão que as contribuições de Kuhn são pertinentes a
uma crônica de costumes de certas comunidades científicas e, neste sentido, ela é aguda e útil. Muitas vezes fica difícil julgar se, numa determinada
revolução cientifica, a eleição de um paradigma é um incremento no conhecimento humano real ou se aconteceu por se privilegiar arbitrariamente
uma série de padrões em detrimento de outros. Bion, por exemplo, comenta sobre o triunfo da teoria geocêntrica numa época em que houve um sério
ataque à Mulher; mas chamar pseudociência de ciência me parece confundir as coisas. Kuhn não oferece nenhum progresso em direção à verdade,
pois a nega implicitamente. Verdade aqui é o que a mente ou um grupo
dominante quer dizer que é verdade. Difere de Popper no sentido de dizer
que a ciência cai não por ser provada cientificamente falsa, mas por sair de
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DE UM
moda, moda essa histórica e culturalmente condicionada.
Penso que Kuhn funda um negro relativismo, que será também desenvolvido pelas meias-verdades e aproveitamentos superficiais do pós-modernismo em relação à Física Quântica, como demonstraram Sokal,
Brickmont, Norris, Callinicos e alguns outros autores. Para Kuhn, os cientistas jamais formulam questões fundamentais, ficam apenas realizando
um projeto neopositivista de resolver coerências internas, resolvem enigmas em sistemas simbólicos circulares, criados por um campo fechado que
de vez em quando é substituído – o novo paradigma. “Inconsciente”, neste
sentido, seria uma invenção de um tal de Freud e aceito por alguns de seus
contemporâneos. Harold Bloom, no campo da crítica literária, aplica este
“kuhnismo” quando diz que Shakespeare inventou a personalidade humana, o conceito de personalidade.
Lakatos, o discípulo de Popper, parece ter percebido que a sensibilidade histórica de Kuhn poderia ser útil, caso fosse casada com um empirismo
que a livrasse do irracionalismo idealista. Tanto os “programas de pesquisas” de Lakatos como os critérios de falseabilidade e reprodutibilidade de
Popper e os paradigmas de Kuhn me parecem padecer de uma limitação de
base. Seus proponentes negam a ciência ao não praticá-la. Como o burocrata que administra algo que não domina tecnicamente, talvez os
epistemólogos tenham se perdido em tentar algo que não praticam ativamente. Comparemos a trajetória diferente de outros filósofos que aliaram
prática ao seu pensar epistemológico, como Planck, Heisenberg, Freud,
Einstein, Schrödinger, Dobszhanky, Eddington, Whitehead, Russell,
Penrose, Hawking, Sokal, Brickmont, ou outros que jamais se comprometeram ideologicamente, como comentadores como Isaiah Berlin, ou historiadores como Arnold Toynbee, ou filósofos como Wittgenstein e
Santayana. Não vamos nos alongar na obra de Saussure (da qual se originou o chamado estruturalismo, com Lévi-Strauss e Merleau-Ponty), nem
na de Wittgenstein, que jamais se deixaram levar por um textualismo autoengendrante e autovalidante, pois nosso tempo é limitado. A menção a eles
é porque diferem do exagero quase niilista de negação da existência da
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verdade que penso existir na obra de Thomas Kuhn, parcialmente na obra
de Lakatos e de modo exagerado na obra de Feyerabend. Eles – e nisto me
parecem diferir de Popper – parecem fazer parte de uma vertente que, em
parte, sai da obra de Saussure e dos estruturalistas do início do século, ou
“textualistas”, que consideram a linguagem e o texto com estruturas
autoportantes e parecem julgar que retórica, moda e acordo grupal – em
psicanálise, algo indistinguível de conluio alucinatório – definiriam o que
é um “paradigma científico”. E, assim, ciência seria algo sempre renovável,
sempre descartável, na negação mais profunda de transcendências, de verdade. Seria sempre um eterno esquecimento, e estaríamos negando a história e os avanços anteriores. Parece-me que a arrogância do Realismo Ingênuo, ao desprezar qualquer outra forma de Ciência, originou reação igual e
contrária, a do Idealismo Ingênuo, que diz que a ciência não existe porque
a realidade não existe. Um dia, em Londres, li em uma camiseta (t-shirt)
vistosamente ostentada por um jovem: “Deus está morto – disse Nietzsche.
Nietzsche está morto – disse Deus”.
O common ground buscado por Wallerstein, conforme eu o entendo,
me parece ser muito semelhante à busca de “invariâncias” que Bion observou nos materiais aparentemente dispersos cuja aparência é diversa e sofre
transformações, mas conserva algo que transcende às formas. No entanto,
este common ground pode ser entendido também como uma espécie de
“pax romana”, conforme propuseram tanto Lakatos como Kuhn, embora
com terminologias diversas. Talvez se tenha esquecido, nas “revoluções
científicas” atrás de paradigmas aceitos por grupos ou nos “programas de
pesquisa”, algo que Francis Bacon observou no seu ensaio On the unity of
religion: “all colours agree in the dark”. O acordo obtido por agrupamentos de psicanalistas através de profundas modificações que descaracterizam
as definições originais de contratransferência e identificação projetiva, conforme formuladas originalmente por Freud e Klein, me parece um perigo
contra o valor científico (de apreensão de uma realidade clínica,
empiricamente observável por meio da Observação Participante) das for-
EPISTEMOLOGIA: UM RESUMO CRÍTICO SOB A ÓTICA
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DE UM
mulações e contra a própria psicanálise, configurando muito mais um acordo atinente à política e à alucinação compartilhada do que à ciência.
Pós-modernismo
O nome “era pós-moderna” foi cunhado por um observador científico
da História, Arnold Toynbee, durante os anos trinta (Toynbee, 1947). Talvez inadvertidamente, aproveitando que toda novidade não passa de esquecimento, e sem citar a fonte, durante os anos sessenta, a mesma expressão
foi reutilizada com um sentido muito diverso e originou um “-ismo” profundamente cético, para colocar o assunto de modo suave, e talvez cínico.
Questiona-se a existência de algo verdadeiro em particular e da Verdade
mesma. A realidade seria inabordável e sempre construída; ela não existe
sob forma de fatos observáveis, por “observação participante” (como é feita em psicanálise e em física) ou qualquer outra e demanda então ser
deconstruída, em constante denúncia (Lyotard, 1979). Apenas para
exemplificar os usos que os pós-modernos textualistas fazem de descobertas, podemos citar o princípio da incerteza de Heisenberg, o teorema de
Gödel e a teoria da relatividade de Einstein. Eles consideram um princípio
da incerteza como um princípio da ignorância, que nada pode ser sabido,
nunca. Mas isto está longe da demonstração de Heisenberg, que se refere
apenas ao cálculo preciso de duas variáveis (a velocidade angular e a posição no espaço de uma carga energética intra-atômica). O cálculo pode ser
preciso para uma das variáveis, como demonstrou Schrödinger, mas não
para as duas simultaneamente. Os pós-modernistas distorceram isto, afirmando em complicados constructos idealistas que os cálculos quânticos
nunca podem ser precisos, de forma alguma. Einstein demonstrou que a
velocidade da luz independe do observador, mas os pós-modernistas usaram sua teoria para um relativismo lugar-comum, como a pessoa mal-informada que afirma “tudo é relativo”. Infelizmente, creio que as leituras
pós-modernas fizeram com estes achados de grandes cientistas o mesmo
que a irmã de Nietzsche e os nazistas fizeram com sua obra: tomaram partes do texto fora do todo e as distorceram para seus usos particulares. Os
216 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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textualistas querem que a psicanálise seja uma análise semiótica de textos
e não uma atividade científica que inclua respeito aos fatos. Fatos sequer
existem, então não há por que alcançá-los.
A versão mais recente destes acordos textualistas, baseados em coerências internas lógicas ao discurso e entre grupos políticos, me parece
ressurgir com a obra de Richard Rorty. Ele talvez tenha sido o pensador
que mais se esforçou por introduzir o pós-modernismo nos Estados Unidos. A exemplo de Feyerabend, supõe que verdade e realidade sequer são
problemas do filósofo. Para ele, realidade reduz-se a acordos retóricos historicamente determinados. Bachelard, Canguilhem, Derrida e, até certo
ponto, Althusser jamais se deixaram levar totalmente por estas tendências
extremas de negação da existência da própria realidade, mas certos momentos de suas obras criaram condições para que isto ocorresse. Parece
repetir-se o fato ocorrido na obra de Kant, que volta e meia tinha que reiterar o valor da experiência, ficou ambivalente quanto a ela e deu margem
que fosse justamente dela que ressurgissem os dois pólos cujos perigos ele
tanto alertou, o realismo ingênuo e também o idealismo ingênuo.
O que me parece muito complicado em todas estas teorias tanto do
realismo ingênuo como do idealismo ingênuo, que quase sempre concordam sem sabê-lo, é que elas dizem como as coisas, tanto do mundo como
da ciência, devem ser. Mas me parece que a ciência mesmo, caso não se
divorcie da Natureza, e também qualquer teoria do conhecimento,
como intra-sessão, para o paciente conhecer-se a si e tornar-se a si
mesmo, diz como as coisas são. Neste sentido, Platão, Dante,
Shakespeare, Bacon, Kant, Newton, Johnson, Goethe, Freud, Planck,
Einstein, Heisenberg, Wittgenstein, Klein, Winnicott, Bion me parecem que ajudam.
Não me parece que caiba aos analistas dizerem ao paciente ou aos
colegas o que eles devem ser, quais são as luzes que devem seguir, mas
eles podem dizer aos pacientes quais são suas próprias luzes, transcendentes, a um só tempo deles individualmente e da espécie humana, considerando suas necessidades humanas e possibilidades individuais,
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DE UM
mas não seus deveres segundo algum código externo a eles, social, de
desejo, conveniência ou estético. A isto eu chamaria uma contribuição
da psicanálise à epistemologia e da epistemologia à psicanálise.
Conferência
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218 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Diálogos Psicanalíticos
André Green
Membro Titular da Sociedade
Psicanalítica de Paris.
S.C.B Yorke
Membro Titular da Sociedade
Psicanalítica Britânica.
Jaak Panksepp
Professor Pesquisador de
Psicobiologia, do Departamento
de Psicologia, Bowling Green State
University, Ohio.
O reconhecido psicanalista argentino Hugo Bleichmar1 , residente em Madrid, autor de inúmeras
publicações, é Diretor de Aperturas
Psicoanalíticas – Hacia Modelos
Integradores2, revista eletrônica de
grande difusão que, nas edições de
1. Médico. Menção Honrosa – UBA. Psiquiatra e Doutor – UBA. Professor da Universidade Pontifícia Comillas (Madrid). Psicanalista.
Membro da Associação Psicanalítica Argentina (APA). Membro da Associação
Regiomontana de Psicanálise (México). Diretor do Curso de Especialista universitário em
clínica e psicoterapia psicanalítica (Madrid).
Presidente da Sociedade “Fórum” de Terapia
Psicanalítica. Diretor de Elipsis e Diretor de
Aperturas Psicoanalíticas.
2. www.aperturas.org.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 221
André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
Os Afetos:
Psicanálise e
Neurociência
OS AFETOS: PSICANÁLISE
E
NEUROCIÊNCIA
abril de 2001 (n. 7) e de julho de 2001 (n.8), promoveu um espaço de
interlocução entre a psicanálise e a neurociência.
Com o objetivo de trazer aos seus leitores esse diálogo, que tem a
teoria do afeto em Freud como pano de fundo, a Revista Psicanálise
contatou com a Aperturas Psicoanalíticas.
Começamos incluindo a síntese da teoria do afeto em Freud, retirada
do trabalho de Solms y Nersessian, seguida de um resumo do trabalho de
Panksepp, que é uma tentativa de conciliação entre a psicanálise e a
neurociência, para, finalizando, reproduzir os diálogos Green-Panksepp e
Yorke-Panksepp.
Concordamos com o Dr. Bleichmar que existem dificuldades comuns
a ambas disciplinas, pela falta de uma mesma linguagem, decorrente do
desconhecimento mútuo entre elas. Também consideramos que uma aproximação é uma experiência útil e necessária, em função das trocas que
poderão ocorrer entre as duas disciplinas. Acima de tudo, fica claro em
Aperturas que prevalece o desejo de buscar o que é semelhante, antes das
diferenças e, nesse sentido, é extraordinário comprovar como alguns dos
conceitos freudianos básicos da teoria do afeto se aproximam da visão atual
dos neurocientistas, encontrando respaldo nos dados empíricos disponíveis.
O propósito da revista Psicanálise é enriquecer os leitores com uma
possível compreensão de ambas disciplinas. Boa leitura!
Teoria freudiana do afeto: perguntas para a neurociência
Mark Solms3 e Edward Nersessian4
Os autores elegem para este primeiro intercâmbio um resumo didático
da teoria clássica freudiana do afeto, na tentativa de classificar os correlatos
3. Professor Honorário, Departamento Acadêmico de Neurocirurgia, St. Bartholomew’s and
Royal London School of Medicine. Membro Associado da Sociedade Britânica de Psicanálise.
4. Psicanalista supervisor e formador, Instituto Psicanalítico de New York. Professor clínico associado de Psiquiatria.
222 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 223
André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
anatômicos e fisiológicos das idéias básicas e os conceitos mais gerais da
psicanálise. Evitam, intencionalmente, assinalar desenvolvimentos posteriores e controvérsias teóricas atuais na compreensão psicanalítica do afeto
(centrando-se nos processos emocionais mais elementares). Além disso,
assinalam que, com freqüência, dita teoria está infra-representada e não se
compreende adequadamente, por sua forma de aparição em pequenas partes, ao longo de um extenso período de tempo e que suas diversas formulações nem sempre foram consistentes.
Os autores sintetizam em treze pontos as principais conclusões da teoria freudiana do afeto:
1. As emoções são uma forma de percepção, ou seja, as emoções conscientes são representações perceptivas de processos mentais mais profundos que são, em si mesmos, inconscientes.
2. A modalidade afetiva da consciência difere de outras modalidades
perceptivas (visual, auditiva, somatossensorial, gustativa, olfativa) em um
aspecto crucial: as percepções afetivas registram o estado interno do sujeito, enquanto as outras formas de percepção refletem aspectos do mundo
externo. Inclusive se um afeto se desencadeia por algo que sucede no mundo externo, o que de fato se percebe na modalidade afetiva é a reação do
sujeito ao estímulo externo em questão, não o estímulo em si.
3. A afirmação “O afeto registra o estado do sujeito” significa que
registra a valência pessoal (valor ou significado) para o sujeito de uma
situação concreta, interna ou externa.
4. Dita consignação de valor se calibra em graus de prazer e desprazer,
segundo uma fórmula na qual “mais prazer” equivale a “mais provável que
satisfaça minhas necessidades internas”, e vice-versa. As necessidades em
questão são de vários tipos, mas, em última instância, são reduzíveis a umas
poucas universais, que se agrupam conjuntamente sob a epígrafe do que
Freud denominou “pulsões”.
5. Definem-se as pulsões como “os representantes psíquicos dos estímulos que surgem do interior do organismo e que alcançam a mente, como
uma medida da exigência de trabalho em conseqüência de sua conexão
OS AFETOS: PSICANÁLISE
E
NEUROCIÊNCIA
com o corpo” (1915a). Assim, pois, as emoções são percepções de “oscilações na tensão das necessidades instintivas” (1940). Independentemente da origem de ditas oscilações, as oscilações em si são um evento interno.
6. Quanto ao aspecto motor da teoria freudiana do afeto, está relacionado à expressão das emoções. Segundo o princípio do prazer, as percepções de incremento na tensão pulsional (sensações de desprazer) resultam
em uma descarga de dita tensão. As percepções geradas por esse padrão de
descarga formam parte integral do mecanismo do afeto. Quer dizer, as percepções emocionais (de situações que previamente evocaram as sensações
primárias de prazer ou desprazer) estão conectadas, por associação, a padrões de descarga característicos, que dão lugar a sensações específicas,
que por sua vez caracterizam as emoções básicas.
7. As descargas motoras são de dois tipos: 1) as descargas internas
(processos secretores e vasomotores) que produzem mudanças viscerais; e
2) a motilidade fina (descarga músculo-esquelética) esboçada para efetuar
mudanças no mundo externo, ambas, intimamente conectadas e
freqüentemente indistinguíveis.
8. As manifestações externas das descargas internas (p.ex., choro, rubor) têm uma importante função secundária, a de alertar os observadores
externos do estado interno do sujeito (função comunicativa, por mais que
não seja intencional).
9. Um terceiro aspecto implicado nessa teoria seria o mnêmico. Com
respeito à origem dos padrões de descarga motora, Freud propôs que eram
ou bem uma predisposição hereditária (“memória filogenética”), ou bem
se forjavam no desenvolvimento precoce através de eventos de significação universal.
10. Freud ligou ditas experiências, que “unem firmemente as sensações (de afeto) com suas manifestações (motoras)” e que funcionam como
símbolos mnêmicos, com as “reminiscências” que fundamentam os ataques histéricos. Em outras palavras, ele considerava as emoções básicas
como sintomas de conversão universais, típicos ou inatos.
11. Um aspecto final da teoria seria o executivo ou inibitório. Os pa224 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
drões estereotipados de descarga motora regulados pelo princípio do prazer eram originalmente reações a eventos significativos pessoalmente (e
biologicamente) relevantes, funcionando a partir de então como “símbolos
mnêmicos” e desencadeando-se cada vez que se apresenta uma situação
similar (o qual não é sempre adequado). Por isso, com o amadurecimento
do ego, se desenvolvem mecanismos inibitórios que permitem ao sujeito
retardar a resposta motora. Isso produz um estado de tensão dinâmica, em
que a energia ligada pode empregar-se a serviço do pensamento (em vez de
ser descarregada de forma reflexa). O pensamento redunda em uma descarga diferente, delineada para servir a um propósito útil com relação à situação real atual.
12. O resultado do pensamento, que Freud entendia como uma “forma
experimental de ação” (atividade motora imaginada) está determinado de
maneira crucial pelas descargas afetivas antecipatórias (expressão imaginada das emoções): sinais de afeto que assinalam uma valência prazerdesprazer às diferentes ações motoras potenciais. Isso supõe descargas experimentais de pequenas quantidades de afeto, o que se torna possível pelo
estado de inibição das energias pulsionais subjacentes.
13. Os afetos que provêm de idéias reprimidas não podem inibir-se
por esse mecanismo. Por isso, desempenham um importante papel na
psicopatologia e são capazes de produzir ataques afetivos completos e não
passíveis de serem inibidos.
Finalizando, esclarecem sobre suas intenções de abrir uma segunda
perspectiva de observação das funções subjacentes (inconscientes) que
possa levar a reconsiderar algumas, ou talvez muitas das conclusões teóricas de Freud; mas o valor da original perspectiva de observação da psicanálise não deveria diminuir em nenhum sentido por tal possibilidade. A
perspectiva subjetiva da psicanálise pode (e para os autores deve) suplementar-se por outras perspectivas de observação, mas nunca poderá ser
substituída pelos métodos das ciências físicas, pelo singular fato de que as
emoções só existem como tais na forma de experiências subjetivas.
OS AFETOS: PSICANÁLISE
E
NEUROCIÊNCIA
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226 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
As emoções desde a psicanálise e a neurociência:
um exercício de conciliação5
Jaak Panksepp
Para Panksepp, os neurocientistas cognitivos e afetivos (aqueles que
trabalham em neurociência afetiva, termo proposto pelo próprio Panksepp
para nomear o “lugar onde todas as abordagens podem ‘conciliar-se’ e trabalhar conjuntamente”) se encontram num momento em que podem estabelecer conexões entre entidades neurais concretas e conceitos abstratos
psicológicos e psicanalíticos.
A polaridade existente até a atualidade se põe de manifesto pelo escasso número de trabalhos com abordagens psicanalíticas e cerebrais (40
trabalhos de um total de mais de 240.000 citações) e curiosamente nenhum
em revistas dedicadas à neurociência. Ao contrário, parece que dentro da
psicanálise está se buscando uma aproximação à neurociência sem muita
reciprocidade.
5. Nota: Os termos afeto, sentimento e emoção são utilizados por Panksepp indistintamente.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 227
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OS AFETOS: PSICANÁLISE
E
NEUROCIÊNCIA
Segundo o autor, isso se deve em parte ao fato de que os
neurocientistas mostram em geral certo orgulho de ignorar aspectos de um
alto nível de integração, especialmente alguns como os “estados centrais”,
que só podem ser medidos de maneira indireta. Por outro lado, Freud se
distanciou intencionalmente dos aspectos neurológicos, em boa medida
porque o conhecimento disponível sobre o cérebro era insuficiente para
tentar qualquer aproximação. Um século depois do abandono da aspiração
inicial de Freud de uma psicobiologia coerente, talvez tenha chegado o
momento de se tentar uma adequada síntese entre o pensamento psicanalítico e a neurociência (Bilder, 1998).
Panksepp defende que a falha em submeter suas idéias à avaliação
empírica continua sendo a crítica principal à psicanálise, ainda que ditas
idéias também não possam ser descartadas. Segundo ele, as teses de Freud
ainda não foram avaliadas, o que só poderá realizar-se de maneira efetiva a
partir dos avanços da neurociência, desde a neuro-imagem à
psicofarmacologia. Mesmo assim, propõe distinguir claramente entre as
teses sobre o funcionamento do psiquismo e a teoria da técnica, pois para
Panksepp o fato de que a psicanálise não consiga aliviar certos sintomas
psiquiátricos (como os associados à esquizofrenia ou certos transtornos
autísticos) não limita sua credibilidade no momento de entender a emoção
humana.
Discorre sobre o assunto, dividindo-o em partes intituladas:
– Uma orientação geral à teoria moderna da emoção: premissas e mudanças prevalentes;
– O afeto é um processo neurodinâmico gerado internamente, provavelmente relacionado de forma estreita com os circuitos emocionais
subcorticais;
– Os afetos básicos podem refletir diferentes ressonâncias
neurodinâmicas do self primitivo;
– Os sistemas neuroafetivos cerebrais comandam diversas expressões
internas e externas chamadas afetos básicos.
228 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Panksepp oferece uma série de pressupostos básicos, harmônicos com
os de Freud: os valores biológicos e os processos afetivos neurais por meio
dos quais se manifestam e penetram todas as estruturas cognitivas do cérebro-mente dos mamíferos. O comportamento emocional observável modula-se provavelmente por um efeito de fundo das emoções de nível inferior
(estado de ânimo), e é dentro dessas influências, a longo prazo, que a experiência emocional pode resultar crucial.
Durante as fases precoces da evolução cerebral, criaram-se diversos
mecanismos neurais que permitiram aos animais enfrentar um conjunto
limitado de situações ameaçadoras. Muitos estavam localizados na medula
espinhal e na parte baixa do tronco do encéfalo. Sobre essas capacidades,
relativamente reflexas e previsíveis, a evolução acrescentou funções orquestrais para propósitos mais gerais que puderam coordenar diversas funções corporais para poder enfrentar de forma mais flexível os aspectoschave para a sobrevivência. Alguns desses sistemas de coordenação são os
circuitos emocionais básicos e prototípicos que compartilham todos os
mamíferos, concentrados na linha média do mesencéfalo e diencéfalo e em
zonas mais elevadas, tradicionalmente denominadas de sistema límbico. À
medida que a competição pelos recursos se fez mais intensa, os mecanismos de aprendizagem gerais desenvolveram extratos de flexibilidade
cognitiva, permitindo aos animais conceitualizar suas circunstâncias de
poder comportar-se com graus variáveis de antecipação e reflexão. Essas
capacidades biológicas sutis derivam dos desenvolvimentos evolutivos
mais recentes do cérebro dos mamíferos, como o neocórtex.
No cérebro humano, com um grau muito destacado de desenvolvimento encefálico, os mecanismos reguladores da emoção de ordem elevada (as funções superegóicas) desenvolveram-se tanto, que constitui um
desafio tentar extrair os extratos resultantes de influência e contra-influência. Não obstante, os valores emocionais que foram estabelecidos nas primeiras fases da evolução cerebral permaneceram intimamente coordenados com as funções recentemente adquiridas (em termos evolutivos), entre
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André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
Conclusão
OS AFETOS: PSICANÁLISE
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NEUROCIÊNCIA
elas, as tendências emocionais construídas socialmente que devem sua
existência a funções cognitivas. É impossível imaginar sentimentos como
o ciúme ou a culpa sem a existência de certos pensamentos, por conseguinte, o trabalho de memórias no cérebro. Por outro lado, as emoções básicas
podem sentir-se sem atividade cognitiva que as preceda (ao menos sem
participação cortical), ainda que se produzam numerosas modificações
cognitivas quando se experimenta uma emoção.
O autor assinala a necessidade de que a neurociência moderna incorpore a noção freudiana de que os diversos tipos de afeto são funções intrínsecas de atribuição de valor dos sistemas neurais. Freud fez uma distinção
entre a qualia emergente das modalidades exteroceptivas e os afetos.
Panksepp denomina essas funções cerebrais afetivas de qualia emocional
ou evolutiva (equalia abreviado). As áreas cerebrais que geram as respostas
afetivas devem ser anatomicamente diferentes dos sistemas tálamocorticais que medeiam a qualia básica que deriva das sensações
exteroceptivas. Esses sistemas interatuam com múltiplas zonas do cérebro,
permitindo aos valores biológicos permeabilizar as percepções, à medida
que os estímulos externos acedem aos sistemas internos de valoração para
ajudar a estabelecer padrões de conduta apreendidos mais complexos. Na
amígdala foi onde mais se estudou as conexões adquiridas (LeDoux, 1996),
mas podem-se antecipar numerosas áreas onde esses fenômenos têm lugar.
Por exemplo, grande parte da aprendizagem social e da regulação emocional se dá dentro do córtex frontal e da área anterior do cíngulo, especialmente para a frustração e perdas sociais (Devinsky, Morrel e Vogt, 1995;
Drevets et al., 1997). Documentos recentes apontam que a psicoterapia
pode melhorar a hiperativação de ditas áreas cerebrais (Schwartz et al.,
1996).
Panksepp acredita que a natureza primitiva das emoções, conscientes
e inconscientes, deve partir da premissa de uma compreensão dos processos neurais subcorticais que coordenam certos tipos de disposição à ação,
como, por exemplo, os que se põem de manifesto em diversas descargas
emocionais. Nos humanos, as elevadas funções do ego e do superego po230 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
dem controlar a expressão externa dessas forças eruptivas, mas seu controle quanto à expressão interna é muito menor.
A “grande rede intermediária” do cérebro só poderá ser compreendida
com uma abordagem conjunta desde o molecular à psicodinâmica global.
Para tanto, a psicanálise necessita investir mais intensamente no estudo das
manipulações experimentais, especialmente as psicofarmacológicas, estudando os informes subjetivos das dinâmicas e as experiências internas sob
a indução sistemática de mudanças no grau de ativação de sistemas cerebrais específicos. Para isso, existem instrumentos (técnicas de transcrição
computadorizada, análise espectral e processamento dos dados acústicos...).
Quanto ao esboço de situações experimentais, as hipóteses deveriam
basear-se em linhas de trabalho em investigação animal que sugerissem
formas particularmente claras e seguras de modificar a reatividade emocional. (Nesse sentido, propõe a realização de estudos com opiácios como a
naloxona e sua antagonista, a naltrexona, que foram provados clinicamente
seguros em humanos e com dados procedentes da investigação animal em
que os opióides desempenham um papel fundamental de um “princípio do
prazer” cerebral.)
Os cérebros humanos estão desenhados para projetar afeto (assim
como percepções) de volta ao mundo externo, e inclusive os animais de
estudo parecem envolver-se em eventos ambientais neutros com elementos afetivos, já que exibem um condicionamento contextual com marcada
facilidade.
Quanto ao progresso da investigação, propõe duas linhas paralelas:
por um lado, tentar entender como o cérebro dos animais gera os afetos,
que progridem lentamente, segundo Panksepp, pela cegueira conceitual
auto-imposta por alguns neurocientistas, “os animais não podem sentir”;
por outro, realizar estudos fenomenológicos das experiências emocionais
subjetivas em humanos, em que se choca com o papel “encobridor” que
desempenha o hemisfério esquerdo na comunicação verbal, muito influenciado por fatores sociais. É nesse sentido que a psicanálise pode resultar
OS AFETOS: PSICANÁLISE
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uma bênção para os empenhos empíricos nessa área. Avaliar situações em
que os indivíduos estão desejando confiar sua intimidade pode ajudar a ver
mais claramente os sentimentos profundos sob a superfície do que é desejável socialmente. De fato, aponta que estudos desse tipo poderiam ajudar
a definir a especificidade de ação e a eficácia de agentes psicofarmacológicos.
Na opinião do autor, a compreensão de como a mente emerge das funções cerebrais requer conceitualizar novas entidades coerentes como o self
que ele propõe. Deve-se considerar que o cérebro de todos os mamíferos
pode gerar diversos sentimentos básicos, incluída a alegria. A partir de
aceitar ditas possibilidades, descobriram o que parece uma forma de riso
primitivo em ratos de laboratório (Panksepp e Burgdorf, 1998). Chegou o
momento para os neurocientistas considerarem seriamente a evidência que
aponta para a existência de estados afetivos internos que são eficazes no
domínio da conduta. Deveria procurar-se uma nova conciliação entre todas
as disciplinas que buscam verdadeiramente revelar os estratos mais profundos da natureza humana, tarefa na qual a psicanálise deve ocupar um
lugar destacado, dada a complexidade do funcionamento da mente que escapa às tecnologias da neurociência.
Panksepp critica o conceito hidráulico de pulsão por considerá-lo
vago, o que dificulta que os neurocientistas trabalhem com ele para
relacioná-lo com os componentes inespecíficos, ao dispor de descrições
mais específicas de como esses sistemas operam no cérebro.
Opina que há demasiadas influências diferentes para resumi-las dentro de um conceito único, exceto como um identificador de classe geral.
Além disso, assinala que o termo foi usado de forma excessiva na história
da psicologia para ressuscitá-lo como um conceito explicativo principal
em qualquer sistema. O uso tradicional do termo caiu em desuso quando se
percebeu que era intrinsecamente ambíguo e podia carecer de poder
explicativo (Bolles, 1975). Numa recente revisão, o autor (Panksepp,
1998b) o relegou àquelas funções motivacionais regulatórias específicas
como a fome, a sede, a termoregulação, com elementos detectores
232 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 233
André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
interoceptivos específicos nos estratos mediais do diencéfalo.
Não obstante, o autor reconhece que o uso do termo que Freud fazia é
diferente do seu (diversos estados cerebrais que surgem diretamente de
detectores de necessidades corporais). Para Freud, a pulsão representa uma
tensão ou ativação generalizada que acompanha os diferentes
desequilíbrios homeostáticos. Assim caso se pretendesse reforçar o conceito freudiano com os dados da neurociência moderna, teria que se concentrar nos sistemas de ativação e inibição gerais (glutamato e gaba) e também nos circuitos ascendentes da DA, NA e 5-HT bem conhecidos e outros
menos estudados como os histaminérgicos.
O maior legado de Freud pode ser, segue Panksepp, seu desejo de
conceitualizar quão profundamente os sentimentos se entrosam em nosso
ser e a intensidade com que os processos inconscientes influenciam as experiências conscientes. É uma pena que suas idéias não puderam ser comprovadas empiricamente no momento em que se desenvolveram, mas
apontaram na linha correta deixando um mapa teórico de uma psicologia
profunda com a qual se pode chegar à compreensão dos grandes mistérios
das mentes humana e animal.
Para aqueles que crêem que nunca se compreenderá a natureza da experiência subjetiva, já que a “distância explicativa” é simplesmente demasiado grande, Panksepp faz notar que a “distância previsível” continuará
diminuindo marcadamente, à medida que for crescendo o conhecimento
neurocientífico. A psicanálise pode resultar em um apoio inestimável para
a neurociência, se puder clarificar cientificamente padrões consistentes no
aspecto experiencial da vida. Ao contrário, a neurociência pode proporcionar um conhecimento dos fundamentos, essencial para se compreender o
funcionamento da mente. Certamente, o ingrediente crítico para todas as
modalidades de pensamento será sua capacidade para gerar previsões que
possam ser apoiadas ou descartadas por meio de metodologias cientificamente aceitáveis. Para a psicanálise, o desafio existirá à medida que puder
renovar a teoria freudiana em um modo de pensamento moderno e dinâmico que continue rejuvenescendo a partir da evidência acumulada.
OS AFETOS: PSICANÁLISE
E
NEUROCIÊNCIA
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234 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Green é, incontestavelmente, o psicanalista mais crítico com respeito
aos esforços de conciliação realizados por Solms e Nersessian, por um
lado, e por Panksepp, por outro. De fato, comenta com profundidade o
trabalho dos editores, ainda que o comentário se supõe dirigido ao trabalho
de Panksepp.
Inicia o debate reconhecendo a satisfação que deve produzir em um
psicanalista, em especial àqueles que defendem o intercâmbio de conhecimento com os neurobiólogos e a influência do trabalho de Freud no campo
da neurociência. Valoriza o fato de que haja uma concordância com o papel
central do princípio do prazer, uma aceitação de que os afetos se encontram
intrincados nos processos inconscientes, bem como a adoção da diferença
fundamental entre as modalidades perceptivas do interno e externo. Menciona ainda a admissão da utilidade do conceito de energia ligada, as referências às funções do id e a defesa da influência, a longo prazo, da
afetividade. Salienta também o fato de Panksepp, em seu trabalho, mostrar-se aberto a algumas das opiniões mais especulativas de Freud sobre a
relação entre o afeto e a filogênese. Prossegue assinalando o alívio que
alguns psicanalistas podem experimentar com a crítica que Panksepp realiza a seus colegas: “mostram em geral certo orgulho de ignorar aspectos
de um alto nível de integração, especialmente alguns como os ‘estados
centrais’, que só podem ser medidos de maneira indireta ... etc.”. Pessoalmente, seus pontos de acordo com Panksepp (ainda que assinale, inclusive
nesses escassos, pontos de acordo, numerosas ambigüidades) reduzem-se
à idéia de que os afetos são processos internos. A diferenciação entre energia livre e energia ligada, a oposição entre ego e id, a ênfase nos afetos e na
influência moduladora dos afetos a longo prazo e em sua insistência na
organização motora do cérebro. Assim mesmo, mostra sua aceitação do
conceito de self que Panksepp coloca. Aí acaba a conciliação e começa a
intransigência.
Green critica o apelo de Panksepp aos psicanalistas para que avaliem
as teorias a fim de adaptá-las aos dados científicos. Aponta o rechaço que
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 235
André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
Diálogo Green-Panksepp: conciliação e rigor
OS AFETOS: PSICANÁLISE
E
NEUROCIÊNCIA
Freud mostrava por estabelecer um paralelismo psicofísico. Opina que
ambas disciplinas são independentes e que não podem reduzir-se a uma ou
outra, descartando qualquer esperança de um conhecimento integrado.
Continua assinalando que Solms e Nersessian em seu trabalho recuperam as principais idéias de Freud, omitindo as numerosas contradições que
se encontram em sua obra. O resultado, diz Green, é uma aproximação às
idéias de Freud, acusando-os, além de tudo, de tentar complementar Freud
com a neurociência (incluindo, em cada ocasião possível, referências tomadas da neurobiologia).
Para Green, os textos freudianos têm sua própria consistência, e ainda
deve provar-se que preenchê-lo com material da neurobiologia vai
melhorá-lo. Além disso, duvida da compatibilidade das terminologias de
Freud e de Panksepp. Indica que, por trás dos comentários elogiosos, no
fundo, Panksepp rechaça praticamente toda a teoria psicanalítica, em particular as críticas ao conceito de pulsão que Panksepp realiza. E, falando de
terminologias, critica a ambigüidade de algumas expressões da
neurobiologia, como, por exemplo, “as dinâmicas emocionais surgem dos
tecidos neurais...”, “ressonâncias neurodinâmicas”, ou o termo “valores
biológicos”.
Green propõe a forma em que considera que se deveria ler a obra de
Freud. Tentar ficar com a consistência interna ao invés de considerar os
fatos isolados a que dedicou sua atenção. Para Green, essa é “a verdadeira
precisão, em lugar de tentar encontrar, às pressas, correndo, compromissos impossíveis entre métodos incompatíveis”.
Finalmente, e como corolário, aponta o que os psicanalistas podem
esperar do diálogo com a neurociência: “Ajuda para compreenderem os
padrões gerais do funcionamento cerebral. Não é que isso vá modificar
muito suas formas de trabalhar (a análise), mas pode ampliar suas visões
e satisfazer suas curiosidades, se possuem alguma, sobre o tópico que sempre será de interesse para eles: o problema cérebro-mente”.
Em sua resposta, Panksepp se mostra “comovido pela paixão de Green
por manter as tradições freudianas em sua forma original”. Frisa a necessi236 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Referência
PAKSEPP, J. (1998). Affective neuroscience: the foundations of human and animal emotions. New York: Oxford University Press.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 237
André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
dade da relação entre ambas disciplinas, por mais que o diálogo seja difícil,
e reconhece uma atitude de negação entre alguns neurocientistas (com o
rechaço da investigação das emoções em animais, aspecto que Panksepp
considera essencial para qualquer progresso do conhecimento nesta área),
que compara com a de Green. Reage, “com perplexidade ante a frustração
de Green quando diz: praticamente tudo o que Freud escreveu parece duvidoso de fato aos olhos da neurociência”. Realça o sentido de algumas de
suas afirmações que mais rechaço produziram em Green. Assim, com respeito ao conceito de pulsão, indica que, ao propor que se deixasse como
um conceito seminal, desde que se desenvolvessem outras alternativas, tratava de fazer referência às dificuldades em tentar manter os conceitos
freudianos em sua forma original. Esta seria a forma de alcançar uma conciliação substancial entre neurociência e psicanálise. No entanto, ainda que
acredite que em sua forma original acabará convertido em algo assim como
um identificador de classe sem mais (ao menos desde a perspectiva da
neurociência), afirma que algo como a pulsão existe sem dúvida no cérebro.
Panksepp propõe, assim mesmo, a estratégia para avançar no conhecimento científico nessa área, baseada na tríade composta pelo estudo das
mudanças comportamentais, das funções cerebrais e dos processos psicológicos em animais, para tentar comprovar se existe uma triangulação teórica entre essas linhas de evidência que possam revelar relações previsíveis
entre diferentes espécies. Qualifica os resultados até a data como esperançosos e cita seu trabalho de 1998 para uma revisão da literatura (Panksepp,
1998).
Finalizando, congratula-se pela ressonância de Green com sua
conceitualização, “preliminar e altamente hipotética”, de self.
OS AFETOS: PSICANÁLISE
E
NEUROCIÊNCIA
Diálogo Yorke-Panksepp: afetos, psicanálise e neurociência
Yorke inicia seu comentário assinalando que Freud – em particular
seu conceito de pulsão – é mal compreendido dentro da psicanálise e mal
ensinado devido à escassez de analistas que o compreendam suficientemente para orientar os estudantes através de sua biografia e obra. Em muitos casos se passa por alto a opinião do autor, argumentando que suas concepções têm sido substituídas por contribuições posteriores à psicanálise,
mesmo que os princípios básico de sua teoria do afeto se mantenham, surpreendentemente, apesar de transcorridos sessenta anos de sua morte. Mais
ainda, insiste Yorke, Freud é visto de maneira ambivalente por muitos psicanalistas, para os quais ele representa uma figura paterna na função psicanalítica. Alguém a quem amam e de quem, ao mesmo tempo, querem livrar-se. Por tudo isso, conclui que muitos dos críticos freudianos são, essencialmente, destrutivos não por uma evolução científica desinteressada.
Segue valorizando muito positivamente o esforço dos editores na síntese e compilação da teoria do afeto em Freud, “que reúne todo o material
psicanalítico que os neurocientistas devem ter na mente (diretamente a
investigação sobre as emoções)”.
Nesse contexto, refere-se à crítica de Panksepp ao conceito de pulsão,
afirmando que ele parte de uma compreensão incompleta do sentido e da
significação do mesmo, para em continuidade repassar em detalhes tal conceito na obra freudiana (em trabalhos de 1911, 1915, 1920, 1923 e 1940),
com o objetivo de resolver dita falta de compreensão.
Mais adiante, Yorke aponta seu ponto de vista sobre a ansiedade em
relação ao desenvolvimento, ao entender que pode ser um terreno de interesse mútuo para ambas disciplinas. Comenta como, em 1915, Freud defendia que, quando os representantes das pulsões libidinais eram reprimidos, os derivados pulsionais se transformavam em ansiedade. Existem evidências clínicas que apóiam essa pressuposição e, de fato, alguns analistas
consideram que a posterior teoria da ansiedade de 1926 não substituía completamente a anterior (Freeman, 1998), ainda que Freud assim o pensasse.
Freud considerava, segue dizendo Yorke, as excitações difusas, opres238 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 239
André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
soras para o organismo no ato do nascimento, como o protótipo do estado
de ansiedade. No entanto, Spitz demonstrou que nos partos normais o
neonato só mostra um ligeiro estresse, sobretudo se o deixam tranqüilo
nesse momento, atribuindo à participação do restante do pessoal e de familiares a maior intensidade da resposta do infante. A partir desse momento,
a mãe tem de interpretar e/ou antecipar os sinais de ansiedade e responder
de acordo. Yorke descreve uma linha de desenvolvimento (segundo a definição de Anna Freud, de 1963) da ansiedade. Começaria com as excitações
difusas (e em grande medida somáticas) do neonato; posteriormente uma
fase de “ansiedade automática”, quando o infante é colocado em um estado
indefeso, seguida por uma “ansiedade persistente”, quando o infante teme
o estado indefeso, e termina com uma restrição crescente da ansiedade à
ansiedade sinal descrita por Freud em 1926. As flutuações da ansiedade em
idade precoce significam mudanças desde um nível quase insuportável (indefeso) à tranqüilidade. A ansiedade ante o estranho aparece aos oito meses, evidenciando que as flutuações somáticas de excitação proporcionaram um terreno abundante para as experiências mentais de ansiedade, ainda que as vias de descarga somáticas permaneçam ao longo da vida. Porém, esses e outros passos subjacentes ao longo dessa linha de desenvolvimento demandam as interações entre o id e o ego, à medida que esses se
desenvolvem e se diferenciam paulatinamente: a aquisição do processo
secundário de pensamento; a capacidade concomitante de descarga pulsional retardada através do “ensaio de ação”; e outras aquisições de desenvolvimento assegurarão uma capacidade crescente de controle sobre a ansiedade.
No ponto seguinte, Yorke critica a desafortunada equação que equipara o empirismo (baseado unicamente na observação e experimentação)
com os métodos de investigação que implicam quantificação, elemento que
pode ou não formar parte do processo. Nesse sentido, as limitações da
quantificação em psicologia são óbvias para Yorke, especialmente quando
se tenta medir o que não pode ser medido. Este ponto de vista representaria
um reducionismo nomotético, enquanto que, na opinião de Yorke, o méto-
OS AFETOS: PSICANÁLISE
E
NEUROCIÊNCIA
do idiográfico é de uma aplicação mais ajustada nessa área.
Yorke propõe que os neurocientistas e os psicanalistas, ao explorar os
pontos de encontro entre ambas disciplinas, devam respeitar a abordagem
que parece melhor para uma tarefa dada, e recordar que ambos métodos
aparentemente antagônicos são empíricos. Rechaça superficialmente as
sugestões de Panksepp quanto a manipulações experimentais, por
considerá-las incompatíveis com o método psicanalítico. “Para expô-los
graficamente, não podes “envenenar” teu paciente e em seguida analisar
as vicissitudes de sua agressividade.”
Por último, com relação às conclusões de Panksepp, Yorke achou alentador que ele seja bastante receptivo às formulações freudianas em geral e
acredita que tais idéias “podem ser relacionadas, de maneira aceitável,
com a neurociência moderna”. Afirma ainda que a compreensão de
Panksepp provavelmente contribuirá para o avanço da tarefa comum que
abordam ambas disciplinas.
Panksepp começa sua resposta a Yorke pela sua última colocação, o
rechaço ao emprego de psicofármacos (Venenos?, pergunta-se Panksepp)
na situação analítica. Como o mesmo Yorke aponta, a abordagem psicanalítica tem o potencial de capturar a mente de maneira mais profunda e significativa que as simples escalas de lápis e papel, que são os instrumentos
preferidos dos psicólogos experimentais. Na opinião de Panksepp, nesta
era de psiquiatria biológica necessita-se estudar a fundo como os
psicofármacos, tão amplamente utilizados, modificam as dinâmicas emocionais da personalidade humana e o resto das dimensões da mente. Reforça ainda que os psicanalistas poderiam ajudar a delinear os instrumentos
necessários para tal tarefa.
Seria uma pena, segue Panksepp, que a complexidade da vida emocional não fosse explorada em sua totalidade, à medida que vai se dispondo de
mais e mais agentes químicos recentes. São escassos os estudos sobre o
modo como responde a mente humana a agentes neuroativos específicos
em diversas situações de interesse do ponto de vista emocional.
Panksepp acredita que certas visões emergentes da mente podem en240 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Referência
FREEMAN, T. (1998). But facts exist. London: Karnac.
Diálogos
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução e revisão: Augusta G. Heller e
Heloísa Helena Poester Fetter
Dr. André Green
9 Avenue de L’Observatoire, 75006 Paris – France
Fone: 33143293104 – Fax: 33146339644
E-mail: [email protected]
Dr. S.C.B. Yorke
Fieldings, South Moreton, Near Didcot
Oxon OX119AH England – UK
Fone/fax: 441235814555
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 241
André Green, S.C.B. Yorke, Jaak Panksepp
tender-se como uma mescla dos melhores achados das abordagens
idiográficas e nomotéticas. Para Panksepp, seu próprio esforço de
integração, a “neurociência afetiva”, constitui uma tentativa de estabelecer
pontes entre aqueles que “dividiriam a realidade em seus componentes elementares” e aqueles que reconhecem a importância de aceitar a complexidade do organismo completo. A combinação de ambas visões pode levar a
um materialismo sem nenhum fisicalismo reducionista. De qualquer maneira, Panksepp lembra que nessas tentativas interdisciplinares deveria-se
ter presente que inicialmente é preciso se buscar traços comuns necessários
mais que suficientes entre os níveis de compreensão. Com relação à
quantificação, Panksepp assinala o efeito facilitador de um impacto na comunidade intelectual em sentido amplo. Igualmente recomenda tentar
aproveitar da psicanálise a experiência dos psicólogos experimentais, desenvolvendo escalas para quantificar praticamente qualquer elemento da
vida mental.
Finalizando, Panksepp responde aos esclarecimentos sobre o conceito
de pulsão que Yorke faz em seu comentário, insistindo nos problemas que,
a seu ver, persistem, e repete a maior parte dos argumentos já expostos no
presente artigo, propondo uma revisão do termo partindo, talvez, como
conceito de partida, das energias do id.
Entrevista da SBPdePA
SBPdePA – Para começar a
nossa entrevista, gostaríamos que
nos falasse um pouco sobre a sua
trajetória pessoal e profissional.
Virginia Ungar
Membro Titular da Associação
Psicanalítica de Buenos Aires
(APdeBA).
V. Ungar – O primeiro que me
ocorre dizer é que sou filha de um
médico radiologista que tem 82
anos e que sempre me disse que havíamos escolhido especialidades
parecidas porque somos ambos fotógrafos de interiores.
Estudei medicina, mas, em realidade, antes de começar queria me
dedicar ao campo das ciências sociais; por isso comecei o curso de
antropologia, tendo estudado dois
anos. Foi quando meu país atravessou uma época politicamente muito
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 245
SBPdePA Entrevista Virginia Ungar
SBPdePA
Entrevista
Virginia
Ungar
SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR
complexa, que começou com uma ditadura militar. Nesse momento, a faculdade em que eu estudava, que era de filosofia e letras, ficou devastada.
Aí, voltei-me para um primeiro desejo, que era o de estudar medicina – que
creio que em realidade me metia muito medo. Frente ao que ocorrera com
a minha faculdade, decidi então começar de novo e realizar meu desejo,
com a idéia de dedicar-me à psiquiatria. Para minha surpresa, entretanto,
apaixonei-me pelo estudo da medicina, da vida nos hospitais, e realmente
aquele para mim foi um dos períodos mais felizes da minha vida. Na Argentina, não sei se aqui é igual, os últimos anos da faculdade são feitos em
um hospital. Fazemos os mesmos horários dos médicos. Tive dúvidas sobre a especialidade a seguir até que percebi que gostava de psicanálise, que
comecei a estudar em grupos quando estava no terceiro ano de medicina.
Iniciei minha primeira análise pessoal aos 17 anos, à qual fui levada
por meu pai, que detectara eu estar atravessando um momento difícil da
minha vida, pelo que vou agradecer-lhe sempre. Tive a fortuna de conhecer
quem me fez a primeira entrevista e que me deixou uma marca muito particular, que foi José Bleger. Uma marca para toda a minha vida.
Comecei muito jovem a minha formação, tendo entrado para a sociedade psicanalítica de Buenos Aires no ano em que foi criada, em 1978. Sou
da primeira turma da APdeBA, e vocês vão me entender, porque também
são de uma sociedade jovem. Foram anos de uma formação excelente e de
um entusiasmo intenso, e eu creio que é uma oportunidade única que se
tem de fazer parte de um projeto e de uma aventura desse tipo. Havia, nessa
época, um espírito fantástico de convicção psicanalítica, e digo isso sem
nostalgia, vendo hoje as coisas um pouco diferentes. Tive grandes professores como David Libermman, Horacio Etchegoyen, Fernando Gaiard,
Benito Lopes, Elena Evelson, e muitos outros com quem se consolidaram
grandes amizades.
Desde o início comecei trabalhando com crianças, e em razão disso
me aproximei muito da escola inglesa e do pensamento kleiniano, porque o
meu começo havia sido diferente. Quando me formei, era o auge, e segue
sendo, de alguma maneira, da teoria lacaniana, então comecei a estudar
246 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 247
SBPdePA Entrevista Virginia Ungar
com analistas lacanianos antes de ingressar na APdeBA. Quando me dei
conta, estava criticando Melanie Klein sem conhecer nada de sua teoria.
Então comecei a estudar o pensamento kleiniano e a trabalhar, como faço
até hoje, com crianças, adolescentes e adultos, e acredito que uma parte
importante da minha identidade como psicanalista está ligada ao fato de
ser psicanalista de crianças.
Concorri para a residência de psiquiatria, mas não cheguei a fazê-la,
porque tive meus filhos quando era ainda muito jovem e, quando fui aprovada para fazer a residência no hospital italiano, meu filho tinha cinco
meses. Então decidi que não ia fazer.
Comecei minha formação com 28 anos e terminei com 31. Fiz minha
análise didática com Fernando Gaiard, que foi um analista extraordinário e
morreu muito jovem. Fiz a primeira supervisão da formação com Dario
Sor e a segunda, de crianças, com Ana Kaplan; depois segui fazendo supervisões sempre, e ainda hoje as faço.
Uma influência muito importante na minha vida foi Benito Lopes,
com quem estive 11 anos trabalhando. Foi meu supervisor, professor e foi
quem me apresentou a Donald Meltzer. Ele tinha uma generosidade muito
particular e também morreu jovem, e é uma circunstância bastante dolorosa que na APdeBA tenhamos tido perdas de personalidades muito importantes em psicanálise que morreram muito jovens. Isso foi muito difícil
para mim. Outra influência grande em minha vida foi Horacio Etchegoyen,
uma mente brilhante, com quem sigo estudando, supervisionando, trocando e trabalhando. A supervisão me parece importante como um espaço de
discussão do trabalho clínico que se liga ao aprendizado, o qual eu creio
que não termina nunca. Pensamos que vai terminar quando findam os seminários, mas quando isso acontece apenas ficamos com uma visão panorâmica de tudo o que nos falta aprender.
Meltzer assumiu uma influência muito forte na minha vida não só
profissional como também pessoal. Conhecê-lo me mudou muito, porque
ele tem uma visão que abrange não só a psicanálise, mas também a vida;
uma visão psicanalítica não só ligada à cura do aspecto patológico que
SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR
possa haver em um paciente ou na gente mesmo como paciente, mas também que aposta na possibilidade de desenvolvimento de um ser humano,
como ele mesmo o diz, no Processo Psicanalítico, o que justamente estávamos estudando hoje. Isso faz com que se tenha uma determinada posição
ética de certo compromisso no trabalho e na vida também. Com Meltzer
tenho uma relação pessoal, pois tenho supervisionado muitas vezes com
ele. Na Argentina esteve cinco vezes, sendo que quatro delas na APdeBA.
Fiz parte da comissão organizadora das visitas e cada vez que posso vou
vê-lo em Londres. Com Betty Joseph também supervisionei várias vezes.
Minha influência teórica forte tem sido da escola inglesa. Gosto, sempre
que posso, de ir à Inglaterra – não porque nós na Argentina ou na América
não tenhamos analistas capacitados, mas me parece interessante também
ter uma visão de outra parte do mundo e fazer contato com isso.
SBPdePA – Gostaríamos que nos dissesse, no seu entender, qual a
motivação que leva alguns analistas a se dedicar ao atendimento de crianças.
V. Ungar – Eu creio que a motivação é altamente pessoal. No meu
caso, sempre me interessou o trabalho com crianças e não pude fazê-lo
porque não era professora. Parece que tenho uma particular disposição de
poder interatuar com elas. Eu me divirto muito brincando e atendendo em
uma sessão de análise infantil. Creio que o dia em que isso mudar vou
deixar de atender crianças. Acho que vai chegar um momento em que a
idade não vai mais me permitir, mas, por enquanto, enquanto achar que
posso, que tenho disposição, quero continuar fazendo. O trabalho com
crianças me ajudou muito como analista de pacientes adultos – posso falar
mais do que me acrescentou do que de minhas motivações. Deu-me uma
possibilidade de simplificar bastante, sobretudo o aspecto da linguagem:
tenho uma capacidade de falar muito mais diretamente com os pacientes
adultos e de estar mais atenta a tudo o que seja a transferência infantil
deles. Estou bastante dedicada também à tarefa de observação de bebês.
248 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
V. Ungar – Com 81 anos, Betty Joseph continuava atendendo, há quatro anos, quando a visitei; coisa que me chamou muito a atenção. Vou lhes
dizer que em parte penso que a idade é um estado mental. Isso não quer
dizer que eu vou atender até os 81 anos, porque creio que não vou fazê-lo.
Não é uma crítica que faço a Betty Joseph, mas acho que temos de ter uma
agilidade e uma possibilidade de estar próximos dos movimentos da criança, de tolerar questões que quem sabe mais adiante não vou ter. Quando me
der conta que não vou poder fazer mais isso, vou deixar. Mas creio que a
deserção não tem tanto a ver com a idade. Acho que tem mais a ver com as
dificuldades de se analisar uma criança. No início, pensamos que atender
crianças é mais fácil. Nunca vou me esquecer do meu primeiro paciente
infantil. Quando me perguntaram quanto tinham de me pagar, e eu lhes
respondi, tanto..., me disseram: Mas a senhora cobra tudo isso por uma
criança? Então eu creio que a dificuldade tem a ver com o impacto na
contratransferência, que é muito mais agudo e mais forte do que na análise
de adultos neuróticos. Parece-me que outra questão que complica é a dos
pais. Além da criança, temos de ter relações com eles, com os professores,
com as escolas, tudo isso leva muito mais tempo, temos de ter uma disposição muito particular. Acho, também, que a criança tem muito mais facilidade de despertar as resistências do analista à análise. Mobiliza-as com
muito mais facilidade, por isso penso que todos os analistas deveriam passar, uma vez ao menos, pela experiência de atender uma criança, ainda que
depois não se dediquem, porque acho que acrescenta muitíssimo ao trabalho com adultos. Nesse sentido, minha sociedade tem algo que me parece
importante e que conseguimos há muitos anos, que é fazer com que todos
os candidatos passem pela matéria teórico-clínica de análise de crianças.
SBPdePA – Como é falar diretamente com as crianças, é basear-se
naquela velha linha kleiniana de interpretar o conteúdo, ou nas idéias noSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 249
SBPdePA Entrevista Virginia Ungar
SBPdePA – Por que, na sua opinião, os analistas, em alguns casos,
deixam de atender crianças com o passar do tempo?
SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR
vas de interpretar mais as funções do que propriamente os conteúdos?
V. Ungar – Eu creio que a criança tem uma possibilidade de falar muito mais diretamente sobre as coisas que a preocupam, que quer, que ouve,
que gosta ou não gosta, e que essa possibilidade de falar e entender, à medida que a cultura vai exigindo mais e mais dela, vai se anestesiando. Então
eu penso que não é que nós analistas falemos mais diretamente, como se
diz de Klein, e sim que a criança, com seus jogos e suas falas, nos conduz
mais diretamente ao que estão passando. Mas a pergunta também se referia
às interpretações de conteúdo ou de defesa...
SBPdePA – Sim, porque na verdade houve uma evolução na teoria e
técnica kleiniana; no início se interpretava com uma linguagem mais concreta, entendendo-se por linguagem concreta a que Melanie mantinha com
as crianças quando lhes falava em seio e pênis, e que depois passou-se a
interpretar mais as funções.
V. Ungar – A mim parece que a fala concreta com a criança tem a ver,
na teoria kleiniana, com a concretude da realidade psíquica. Klein diz que
a realidade psíquica tem uma concretude tal, que a presença dos objetos
internos são sentidos corporalmente. Nesse sentido, como sempre, ela estava respaldada por uma teoria que partia da clínica para poder ter crédito e
falar dessa maneira. Creio que o que vocês colocam sobre dirigir o olhar
mais às funções é um aporte de Bion, porque foi ele quem se preocupou
mais com o vínculo. Ele diz que não importam tanto os objetos, inclusive
entende a idéia de objetos parciais não como uma idéia de anatomia, e sim
valorizando a função desses objetos. Para ele, o objeto é parcial porque tem
funções de parcialidade, e não porque é um peito ou um pênis; funções
como a de alimentar, envenenar, amar. Parece-me que esse é o aporte dos
autores pós-kleinianos como Bion e Meltzer.
250 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
V. Ungar – É muito difícil dizer ou fazer uma dissecção para verificar
de onde vem cada coisa, mas me parece que Meltzer põe ênfase no que
para mim é fundamental, que é a atitude analítica. A noção de enquadre,
que estivemos vendo, não ligada aos aspectos formais, como horários, honorários, deitar ou não no divã, deixa claro, na concepção de Meltzer, que
o epicentro do enquadre é o estado mental do analista. Então, se trabalhamos nessa linha, isso nos obriga a ser como um monitor permanente da
relação transferência-contratransferência. Não exagerando, porque, se vamos ao extremo, nos convertemos em um voyeurista – mas sempre muito
atentos a qualquer atividade contratransferencial. Por isso creio na necessidade da supervisão para poder compartilhar o trabalho clínico, que é um
trabalho absolutamente solitário.
Meltzer diz que cada um de nós deve encontrar a maneira pela qual
trabalha melhor. Eu, por exemplo, posso dizer que a essa altura me conheço bem e acho que aprendi a me respeitar. A gente chega a um momento no
qual sabe qual é a nossa melhor maneira. Eu trabalho melhor quanto mais
trabalho, sem intervalos prolongados, porque esses me desconcentram.
Então me parece que isso nos obriga a fazer permanentes reflexões acerca
de nosso lugar como analista, o que eu não encontrei em outras correntes
de pensamento. Entretanto, o centro de tudo isso está na atitude analítica,
na disposição de escutar de uma maneira sem memória e sem desejo. Como
diz Bion, de receber o que o paciente tem para projetar, agrade ou não, de
tratar de entender e devolver de uma maneira que seja introjetável para o
paciente e de poder tolerar o desconhecimento.
Em um congresso da FEPAL que aconteceu em São Paulo, há muito
anos, escrevi com uma colega um trabalho em que postulamos até que ponto o enquadre era a conjunção entre a atenção flutuante do analista e a
associação livre do paciente – desligando completamente do que tenha a
ver com a realidade externa. Então, se estivermos atentos, o que nos tirar
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 251
SBPdePA Entrevista Virginia Ungar
SBPdePA – E como é que se dá na sua prática, na sessão com a criança, a influência de Meltzer?
SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR
do estado de atenção flutuante já será uma perturbação contratransferencial.
SBPdePA – Sobre essa questão da resistência queríamos lhe ouvir
sobre a dos próprios analistas em encaminhar seus filhos para análise,
porque parece que nem mesmo dentro das sociedades psicanalíticas a idéia
de análise de crianças é algo muito tranqüilo, compreendido ou aceito.
V. Ungar – Creio que não, que vocês têm razão. A psicanálise de crianças lutou muitos anos para encontrar um lugar dentro do que poderíamos
chamar de psicanálise institucional oficial. Pensem que CONCAP, o comitê de análise de crianças e adolescentes da IPA, foi criado no ano de 1997,
no congresso de Barcelona. Essa briga por um lugar oficial para a análise
de crianças nas análises institucionalizadas remonta à época da controvérsia de Ana Freud e Melanie Klein em 1927. Tiveram de se passar 70 anos
para que se obtivesse esse lugar. Acho que a resistência à análise de crianças tem a ver com a resistência – todos somos seres humanos – aos aspectos mais infantis e regressivos relacionados ao mais primitivo, ao mais caótico e não só com respeito à agressividade, mas também aos aspectos
libidinais. Parece mentira que ainda nos custa dar lugar, dentro da oficialidade, ao mais primitivo do encontro das mentes.
SBPdePA – E isso poderia estar relacionado à resistência encontrada também para a observação de bebês?
V. Ungar – Claro, eu, sempre que posso, defendo a posição de um espaço cada vez maior nas sociedades, nos congressos, para o trabalho com
crianças, e isso inclui a observação de bebês.
SBPdePA – Gostaríamos de saber como a senhora está vendo a psicanálise na Argentina e principalmente a psicanálise de crianças.
252 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
SBPdePA – E que tipo de crise seria essa?
V. Ungar – Me parece que uma crise vocacional. Não é muito fácil
manter a atitude psicanalítica; exige muito trabalho, muita dedicação e paciência. Estamos emprestando nossa mente e nossa alma, bem como nosso
corpo, quando se trata de crianças. Eu não sou pessimista. Não penso que a
psicanálise esteja morta. Enquanto existir analistas apaixonados pela psicanálise ela não morrerá, mas creio que hoje em dia há menos pacientes se
analisando.
SBPdePA – Ou mais psicanalistas competindo no mercado?
V. Ungar – Eu não me preocuparia tanto com isso. Não me parece que
a psicanálise seja algo para consumo massivo. Ela pode ajudar na compreensão de muitas situações e em muitas especialidades médicas e
educativas que têm a ver com crianças e adolescentes. Acho que é uma
questão de manter o entusiasmo por parte dos analistas.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 253
SBPdePA Entrevista Virginia Ungar
V. Ungar – A psicanálise de crianças teve um desenvolvimento explosivo e impactante na década de cinqüenta, quando Arminda Aberastury
tinha um intercâmbio intenso com Melanie Klein. Eu creio que, além do
seu efeito terapêutico sobre as crianças, teve também um impacto muito
forte em meu país, e vocês poderão me dizer que aqui também, na área da
pedagogia, da educação, da pediatria, tornando-se uma influência muito
boa. Como sempre, a toda época de explosão sobrevem uma época de
retração, mas houve um momento em que era muito comum para uma
criança estar em análise e, em uma escola de um certo nível econômico e
social mais elevado, muitas crianças se analisavam. Creio que a dificuldade atual com a psicanálise de crianças tem a ver com a dificuldade da psicanálise em geral. Seguramente isso que vou lhes dizer é muito polêmico, sei
que a situação econômica está muito difícil, mas eu creio que há mais crise
dos psicanalistas do que da psicanálise.
SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR
Eu creio que a pressão que exerce a sociedade contemporânea também é um fator importante. Vamos falar das crianças e adolescentes. A
maioria das escolas pensa e desenvolve o que se chama de nível ótimo de
excelência, o que, nesse momento, não se refere a formar o melhor ser
humano. Não quero apontar uma visão apocalíptica sobre a situação atual,
porque a mim parece que cada época tem alguma coisa interessante sobre a
qual podemos refletir e da qual tirar algo positivo, mas as escolas de hoje
necessitam produzir adultos contratáveis pelo sistema ao qual estão
encadeadas. O jardim de infância tem de ser de nível ótimo para que possam ingressar na escola primária ótima e na universidade ótima e depois
nas melhores empresas, e isso tem de ser rápido. Então, parece-me que as
escolas, os pais podem se deixar pressionar, mas nós, os psicanalistas, não.
Se nós jogamos a toalha, aí sim que tudo fica mais difícil, por isso eu dizia
que, enquanto houver analistas com convicção na psicanálise, seguirá havendo o processo psicanalítico.
SBPdePA – Afora a paixão, a convicção e o prazer, a senhora mencionou uma capacidade de suportar a dor e o sofrimento que também, talvez, seja uma coisa que nos analistas pode estar em crise.
V. Ungar – É que nós também fazemos parte de uma sociedade que
nos oferece soluções rápidas para qualquer sofrimento, Não escapamos do
bordão da propaganda famosa da Nike – just do it –, que afirma que se tem
de fazer o necessário rapidamente e sem pensar muito a respeito. Nós, analistas, não escapamos, somos seres humanos, mas não podemos esquecer
do que é mais importante e crucial, que é a nossa atitude frente à dor mental. Se a rechaçamos, não podemos trabalhar em psicanálise. E a mim não
parece errado que haja pessoas que abandonem o trabalho; ao contrário,
acho que é uma questão ética, de que, se não podem fazer isso, devem
deixar e fazer outra coisa. Mas os analistas não podem responder a pressões.
254 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
V. Ungar – As patologias têm mudado. Eu posso lhes dizer que nesse
momento, com a crise severa que está atravessando a Argentina, há um
aumento muito importante das patologias somáticas nas crianças –
gastrites, úlceras de estômago e duodeno –, mas isso tem a ver com as
dificuldades da sociedade de conter as situações de dor mental. Se vivemos
em uma sociedade que não pode conter o sofrimento e a dor de pais que
perderam seu dinheiro e seu emprego, que não pode dar conta disso, não
podemos pedir a uma criança que suporte isso. Então estamos todos em um
momento muito delicado, muito complexo. Nós, que trabalhamos com
crianças, vemos situações de profunda depressão que têm estritamente a
ver com situações familiares. Lidamos com adolescentes que sabem que
não vão encontrar trabalho nem um lugar nessa sociedade, então creio que
nós estamos muito mais pressionados nesse momento.
SBPdePA – Falando em mudança de patologias, a senhora acha que
se poderia dizer que nas adolescentes as patologias alimentares substituíram a histeria, porque parece que está havendo quase que uma endemia de
pacientes anoréxicas e bulímicas?
V. Ungar – A incidência da patologia alimentar é impressionante já há
muito anos, e muito mais agora. Minha impressão é de que essa patologia
está ligada a um componente aditivo da personalidade, salvo as mais leves,
que tem a ver com o intento de controlar, de forma obsessiva, intensidades
de tipo confusional. As mais graves estão ligadas a mecanismos psicóticos,
mas têm como fundo uma personalidade aditiva que, nesse momento, está
na primeira linha. A patologia funciona como uma droga, ou álcool, ou, no
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 255
SBPdePA Entrevista Virginia Ungar
SBPdePA – Nesse sentido, o fato de as configurações de patologias
ou configurações de pais ou famílias terem se tornado mais complexas,
diferentes da época da Melanie Klein, também implica uma exigência
maior da capacidade psíquica de lidar com isso. O que a senhora pensa
dessas mudanças de configurações?
SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR
meu país, o doce de leite. Não sei aqui o que poderia ser, para mim não é
importante o tipo de substância, mas a organização da personalidade que se
encontra por trás. Por isso, me parece que, de parte dos analistas, os esforços têm de ser no sentido de procurar trabalhar e estudar com pessoas de
outras áreas que trabalham, por sua vez, com crianças e adolescentes, fazendo grupos – porque a detecção precoce dessas situações muda muito o
panorama. Eu vejo isso como uma obrigação e, nesse sentido, não sei aqui,
mas em nosso país os analistas têm abandonado seus lugares nos hospitais,
saúde pública, universidades, e aos poucos creio que terão de ir retomando
esses lugares.
SBPdePA – Aqui no Brasil também aconteceu de os analistas irem se
afastando dos hospitais, das universidades. A senhora acha que no resto
da América isso também aconteceu, ou essa é uma característica da nossa
região?
V. Ungar – Acho que aqui acontece mais e que se deve ao êxito desmesurado que teve a psicanálise, o que fez com que os analistas se enchessem de muita soberba e arrogância. Acho que temos de repensar isso, pois
perdemos o contato com a sociedade, e isso tem de ser corrigido.
SBPdePA – A respeito do exemplo mencionado de crianças apresentando sintomas somáticos em função da situação problemática que estão
vivendo os seus pais, a indicação de psicanálise não deveria ser o último
recurso, ou seja, não seria mais importante, nesses casos, atender primeiro os pais e depois, caso a situação persistisse, partir para um atendimento à criança? Emendando nessa pergunta, para que tipo de patologias
específicas atuais a senhora indicaria uma análise para a criança ou o
adolescente, sem tentar antes tratar os pais?
V. Ungar – Não o penso como algo excludente. Acho que podemos
tratar a criança e tentar que os pais se tratem. Acho que quando a criança
256 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
SBPdePA – A senhora poderia nos relatar uma situação com alguma
criança em especial que tenha lhe marcado?
V. Ungar – Lembro-me do primeiro paciente que eu tratei. Era uma
criança de cinco anos, que tinha uma gagueira e uma impossibilidade de
fazer qualquer produção gráfica, não conseguia desenhar e não podia escrever. Esteve um ano e meio em tratamento, quatro vezes por semana.
Quando melhorou, começou a desenhar, a escrever, a gagueira cedeu, e os
pais interromperam o tratamento. Foi um dos casos que mais me doeu.
Fizeram uma consulta com outro analista, sem me comunicar, que lhes
disse que era uma barbaridade atender uma criança quatro vezes por semana, e me avisaram que iriam interromper o tratamento com muito pouco
tempo de antecedência. O menino veio à última sessão trazendo fotos.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 257
SBPdePA Entrevista Virginia Ungar
tem um nível de sofrimento que a impede de se desenvolver naturalmente,
passando a apresentar processos importantes de detenção do desenvolvimento, tem de se atuar na criança. Entretanto, com o correr dos anos, tenho
me tornado muito mais cuidadosa na indicação da análise. Não acho que
todas as crianças tenham de se analisar, mas, quando for necessário, é importante que o analista de crianças crie as condições para poder levar adiante um tratamento. Quando vejo o perigo de os pais retirarem uma criança
da análise antes do tempo, trabalho com eles até estabelecer uma relação
com um certo nível de compromisso, porque trazer uma criança para análise implica muitas questões. Primeiro, a ferida narcisista de ter de reconhecer que um filho, que representa muito dos ideais dos próprios pais, tenha
algum problema e, às vezes, problemas muito sérios. Depois, ter de dispor
do dinheiro, do tempo para levá-los, esperá-los, e encarregar-se dos momentos de resistência, transportando, igual, a criança. Acho que se pede
muito aos pais e, se não se faz um bom trabalho com eles, não se pode
pedir-lhes que firmem um compromisso. Temos de explicar muito bem a
eles o risco que é retirar uma criança antes do tempo. Na minha experiência
pessoal, quando comecei a trabalhar assim, não tive mais interrupções.
SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR
Mostrou-as e eu lhe interpretei que estava preocupado com as imagens, de
como eu iria ficar dentro dele ou ele dentro de mim, e então, antes de se
despedir, me perguntou: Virginia, tu vais viver até os cem anos? Respondi
que não sabia e perguntei porque ele queria saber. Disse: porque assim,
quando eu for grande e tiver um filho com problemas, vou poder te trazer.
Lembro-me que nesse momento eu estava supervisionando o caso com
Dario Sor e estava tão assustada e tão triste que fui lhe contar. Ele me disse
que eu deveria ficar tranqüila, porque se uma criança de sete anos é capaz
de dizer isso é porque tem a análise internalizada.
SBPdePA – Poderia nos falar um pouco sobre a especificidade da
análise de adolescentes, se é que pensa que ela existe?
V. Ungar – Sim, creio que a análise de adolescentes tem algumas
especificidades, embora não tanto quanto a de crianças. Parece-me que a
análise de crianças requer um treinamento em uma técnica especial, como
é a técnica do jogo, mas a dos adolescentes também não é igual à dos adultos ou à das crianças. As crianças entram muito mais diretamente na análise. Os adolescentes, às vezes, me levam a fazer períodos de entrevistas
muito mais prolongadas, e o final da análise também é um final bastante
particular. Nesse ponto, não concordo com Melanie Klein quando não diferencia o final da análise de crianças com o da de adolescentes. Penso que,
no caso da criança, ao terminar a análise ela volta para o centro de seu
desenvolvimento que é a família. No caso do adolescente, dependerá do
que se entenda por adolescente. Se for um adolescente tardio, a análise
terminará quando já for um adulto; se for um adolescente inicial, no entanto, lhe faltará ainda tanto por passar que essa análise terá uma
especificidade quanto ao começo, às vezes quanto ao término. Meltzer diz
que os adolescentes se movimentam entre mundos – o das crianças, o dos
adultos e o dos pais – e vão oscilando entre eles.
É muito difícil encontrar um lugar correto para nós como analistas.
Não devemos nos fazer de adolescentes, porque isso é falso – não somos
258 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
SBPdePA – E quais seriam as diferenças fundamentais entre a análise de um adolescente tardio e de um adulto?
V. Ungar – Primeiro, as formas de comunicação são diferentes, porque no adolescente prevalece muito mais a ação do que no adulto. Então
temos de ter um nível muito maior de tolerância, como me aconteceu o
outro dia, em que um adolescente me trouxe o cachorro para a sessão, ou
outra vez, no verão, em que uma paciente veio com os patins nos pés. Não
devemos entrar num clima maníaco, mas também temos de poder tolerar
que neles está muito mais comprometida a ação e ter muito cuidado, porque também nos mobilizam mais facilmente a atuar. Todas as idéias de
Enactment, que são os desenvolvimentos mais atuais da linha kleiniana de
pensamento, falam disso, da capacidade que têm os adolescentes de mobilizar muito mais rapidamente nossa tendência a atuar. Por outro lado, parece-me que temos de estar muito atentos ao fato de que a adolescência é um
processo que tem de acontecer. Atualmente, os processos de latência tendem a ser mais prolongados, impedindo que se faça um processo adolescente, e é preciso ter muito cuidado com isso. Temos de estar atentos ao
adolescente explosivo, atuador, que se droga, que bebe, mas também às
crianças que não fazem um processo adolescente. São os casos muito difíceis, os jovens velhos, e vemos muito isso. Temos de permitir e até facilitar
não que o adolescente faça atuações, mas que possa desorganizar-se e sair
da latência, que é um período da vida em que tem de permanecer armado.
Melanie Klein dizia que a latência infantil é o processo mediante o qual as
partes psicóticas são controladas através, fundamentalmente, da neurose
obsessiva, mas isso tem de ser destruído para dar lugar à adolescência.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 259
SBPdePA Entrevista Virginia Ungar
adolescentes –, nem adquirirmos uma conduta sedutora – comigo vai se
entender, porque os pais são uns broncos que não entendem nada. Assim,
temos de ter muito cuidado para saber de que lugar vamos falar com o
adolescente e ser o mais genuíno possível. Eu gosto muito de trabalhar com
eles. No meu início trabalhei muito pouco porque os temia.
SBPDEPA ENTREVISTA VIRGINIA UNGAR
SBPdePA – Com respeito ao seu trabalho – imaginação fantasia e
jogo –, a fantasia inconsciente ficaria mais ligada a um caráter mais defensivo, mais fechado, e a imaginação mais voltada para a conjectura da
exploração do mundo. Essa configuração da fantasia inconsciente seria
uma formação de compromisso?
V. Ungar – Se for muito rígida, poderá tomar o lugar de uma formação
de compromisso. Se uma fantasia inconsciente surge a partir de uma teoria
forte que o paciente tem e que não põe à prova, acho que nesse caso se pode
falar de um sintoma. São essas teorias que o paciente não pode por à prova.
Essa é uma maneira de ver. Outros autores verão de outras maneiras. Eu
gosto da idéia de brincar com os conceitos de fantasia e imaginação, de
modo a ver a fantasia mais com um caráter defensivo, como algo mais
fechado, e a imaginação como a associação livre, verdadeira. Nesse sentido, eu creio que há jogos que são mais imaginativos e outros em que se
repete, muitas vezes, uma determinada fantasia inconsciente que adquire
um caráter de sintoma. Em Rita*, por exemplo, parece-me que há mais
fantasia do que imaginação quando apresenta o elefantinho e os rituais estando mais ligados ao controle obsessivo, e a análise tem de ajudar uma
pessoa para que ela possa soltar, com muito mais riqueza, a sua imaginação. O tema da criatividade é formidável, dá para se falar horas sobre ele.
SBPdePA – Bom, foi um prazer termos podido discorrer sobre todas
essas questões, algumas sobre infância e adolescência, e principalmente
sobre o que a senhora nos colocou a respeito da atitude analítica. Nesse
sentido, concordamos com a idéia de que a maior dificuldade está na capacidade do analista de poder enfrentar, ao longo dos anos, todas as dificuldades inerentes ao processo analítico. A senhora nos enriqueceu bastante e cabe a nós lhe agradecer....
* Rita, caso atendido por M. Klein e descrito por ela (KLEIN, M. (1926). Princípios psicológicos
da análise de crianças pequenas. In: Amor, culpa e reparação. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Cap.6,
p.153-163). (N. do T.)
260 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
Entrevista
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Dra. Heloísa Helena Poester Fetter
Dra. Virginia Ungar
Billinghurst 2533 3º
1425 Buenos Aires – Argentina
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 261
SBPdePA Entrevista Virginia Ungar
V. Ungar – Não, eu que agradeço a vocês, porque essas conversas não
são somente, não sei se posso chamá-las assim, terapêuticas, mas permitem-nos também percorrer toda a nossa história, porque a gente realmente
não se faz essas perguntas. Eu agradeço a vocês. Muito obrigado.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 263
264 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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de publicação entre parênteses, por exemplo, Freud (1918) ou (Freud, 1918).
266 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003
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por exemplo Marty , de M’Uzan (1963) ou (Marty, de M’Uzan, 1963). Se
houver mais de dois autores, a referência no tex to indicará o primeiro, por
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abreviação grifada da revista, do número do volume, e dos números da
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poder-se-ão consultar os números que já foram mencionados ou no caso de
dúvida, citar o nome por ex tenso.
Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras
maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação.
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a.
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padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre;
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 267
b.
O avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o
c.
mesmo seja mantido pelo próprio avaliador.
d.
editorial estabelecido;
Sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado,
em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de
sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa
Artigos que não forem publicados em 6 (seis) meses, a partir da data de sua
aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha
liberdade de enviá-lo a uma outra publicação.
PS. Para mais detalhes consultar revistas.
268 Psicanálise v. 5, n. 1, 2003