Zona tórrida – certa pintura do Nordeste
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Zona tórrida – certa pintura do Nordeste
Zona tórrida – certa pintura do Nordeste Por Clarissa Diniz e Paulo Herkenhoff Estamos na dourada habitação da luz. Do alto do céu todo o vasto continente brasileiro aparecerá como um diamante a cintilar nas sombras do Infinito... A terra é perpetuamente vestida de luz. A sua refulgência abre no silêncio dos espaços uma claridade inextinguível, fulva, ardente, branda ou pálida. Tudo é sempre luz. Descem do sol as luminosas vagas ofuscantes, que mantêm na terra a quietação profunda. A luz tudo invade, tudo absorve. Chapeia nos cimos das montanhas, derrama-se pelos vales, [...] [a vida] vibra, fulgura o ar incandescido, a terra se volatiza numa pulverização de luz. Desmaiam as cores do mundo e tudo se torna da 1 cor da luz . Graça Aranha. A estética da vida, 1921. Advertência Pintura não é “produto agrícola”, adverte o pintor José Cláudio. Nela, a cor tem ecologia própria. Daí a fotossíntese não obedecer à luz do cânon. Pintura dubitante: isso é moça ou castanha de caju? Galo ou abacaxi? Contra o behaviorismo estético, um olhar se lança a pensar as relações entre luz equatorial e a pintura que emerge dos trópicos. O olho esquiva-se de Newton e Goethe 2 porque “a luz que penetra [na pintura] não se mede com fotômetro”. O en plein air produz sentido quando é captura de luz latitudinal. Seria a luz a energia capaz de “absorção do ser na unidade cósmica” pensada por Graça Aranha? 3 A zona tórrida – área do globo que se estende entre o Trópico de Câncer e o Trópico de Capricórnio, mediada pela Linha do Equador – é uma circunscrição cegada pela extravagância de luz. Zona tórrida guarda uma distância longitudinal estratégica de Greenwich, Paris, Jerusalém, São Petersburgo, ou qualquer outra referência. Longitude é convenção arbitrária. Nosso Norte não é o Sul, como no mapa invertido de Torres-Garcia, nem corre sob Capricórnio, como vendeu 1 2 3 ARANHA, Graça. Estética da vida (1921). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: INL, 1968, p. 625. CLÁUDIO, José. Não há Nordeste. Diário da Noite. Recife, 13 jun. 1961. ARANHA, Graça. Estética da vida (1921). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: INL, 1968, p. 625. Mário de Andrade. Romper com a orientação teocêntrica, heliocêntrica, caipirocêntrica, capricornicêntrica. Na zona tórrida, o Norte é o Nordeste. O pintor aspira a mácula original da 4 latitude. Borrados os limites das latitudes, é na direção oposta àquela do risco de configuração de um regime óptico para certa pintura do Nordeste que se mapeia esta Zona tórrida. O Brasil, ou qualquer uma de suas regiões, é irredutível a um único sistema de cor. Estética da vida O mesmo acontece com a pintura no Nordeste em seus múltiplos sistemas. Nos anos 1980, diz Delson Uchôa que sua preocupação era fazer uma pintura que tivesse uma identidade, e não era nem uma questão de uma identidade brasileira, ou latino-americana, como é percebida hoje em meus trabalhos, mas uma preocupação bem localizada: eu queria que minha pintura remetesse ao 5 Nordeste. Latitude sem a densidade da cultura concreta é só lugar geográfico e explicação física da luz. A estética da vida, do escritor Graça Aranha, é o marco que introduz uma vontade autônoma e própria de cor, pensando uma fenomenologia da luz no Brasil. Graça Aranha foi moderno apesar do modernismo. O escritor problematiza a cor com um regime cultural e projeta uma possível fenomenologia não separada da dimensão etnológica. Graça Aranha deplora a falta de comunhão da “alma brasileira” com a natureza por decorrência do artificialismo das “três raças”: a “melancolia portuguesa”, a “metafísica do terror” dos índios (enchendo de fantasmas os espaços entre o espírito humano e a natureza) e a “infantilidade africana” (“terror 6 cósmico”). O maranhense planta os fundamentos do projeto de cor modernista como modo de enunciação da cultura nova de um país complexo. Urgia transformar sensações da paisagem em arte – cor, linha, planos, massas. No projeto de A estética da vida, existe a unidade e não o império de qualquer província cultural sobre as demais. Na diversidade geográfica do continente brasileiro, a unidade moral, política e histórica da Nação é o efeito espiritual da unidade de raça que é o princípio criador do País. As várias regiões do País são disparatadas e tendem todas a diferentes destinos geográficos, e nenhum aço de ordem geológica as funde para formar com elas 7 um só todo físico. No disparate entre as regiões, o próprio Nordeste é muitos. Em A estética da vida, Graça Aranha afirma que a natureza é uma prodigiosa magia. E no Brasil ela mantém nas almas um perpétuo estado de deslumbramento e de êxtase. [...] No Brasil, o 4 5 6 7 A mácula reúne a maior densidade de células cone do olho, responsáveis pela percepção das cores. UCHÔA, Delson. Delson Uchôa. Milão: Charta, 2009, p. 29. ARANHA, Graça. Estética da vida (1921). In: Obras Completas. Op. cit., p. 620-621. Idem. espírito do homem rude, que é o mais significativo, é a passagem moral, o reflexo da esplêndida e 8 desordenada mata tropical. Há nele uma floresta de mitos. Em 1923, rompidos com Graça Aranha, os dois Andrades não escapam de emular A estética da vida em Paris e São Paulo. Tarsila 9 do Amaral recebia em Paris a lição de Léger quanto à aplicação da “couleur local”. Numa conferência marota na Sorbonne, Oswald apoia-se no tripé étnico da formação brasileira conforme Graça Aranha. Por conta disso, Benedito Nunes argumentou, Oswald operou “uma inversão parodística da filosofia de Graça Aranha”, em que a metafísica bárbara é recuperada em antropofagia. 10 Virgindades Em novembro de 1923, quando Tarsila do Amaral embarcava para São Paulo, um Mário de Andrade inspirado em Graça Aranha convocava a artista a retornar de Paris e a pintar em brasileiro: “volta para dentro de ti mesma. […] Abandona Paris! Tarsila! Vem para a mata 11 virgem”. Mata-virgismo é a tradução/tradição da “metafísica do terror” e da couleur local. Mário pensa a pintura como silvicultura. José Cláudio não pensa como Mário. Tarsila aplica a lição de Léger tão logo volta ao Brasil: Morro da favela e Carnaval em Madureira (1924). A receita légeriana ecoa na paleta empírica de Oswald do Manifesto da poesia pau-brasil (1924): “A poesia nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.” Definitivamente, em fevereiro de 1924, o vernáculo da primeira cor pau-brasil de Tarsila e a ambiência do Manifesto da poesia pau-brasil são urbanos e cariocas na temática e na paleta. Na operação do modernismo paulista, a cor política deveria passar de pau-brasil a caipira, e esta, de regional a símbolo nacional. Já convertida ao projeto, Tarsila, doze anos depois de pintar Morro da favela e Carnaval, reescreve a história e informa que encontrou em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado. Mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante, tudo em gradações mais ou menos fortes, conforme a 8 ARANHA, Graça. Estética da vida (1921). In: Obras Completas. Op. cit., 1968, p. 621. 9 LÉGER, Fernand. Notes sur la vie plastique actuelle (1923). In: Fonctions de la peinture. Paris: Gallimard, 1997. 10 NUNES, Benedito. Prefácio a Obras completas de Oswald de Andrade, vol. VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. XXXII. 11 ANDRADE, Mário. Carta de 15 de novembro de 1923, apud Amaral e Salzstein (op. cit., nota 13 infra, p.145). mistura de branco. Pintura limpa […]. Contornos nítidos, dando a impressão perfeita da 12 distância que separa um objeto de outro. Tudo isso é Léger à brasileira que já estava no Morro da favela: a cor local vernacular, a técnica da formação da cor e o princípio do “contraste das formas” (quando o contorno nítido dos volumes separa um dos outros). Para Gilberto Freyre, em 1925, a virgindade da pintura moderna era outra: não temos ainda produzido um pintor verdadeiramente nosso: a paisagem e a vida do Nordeste brasileiro se acham 13 apenas arranhadas na crosta. Nos seus valores íntimos continuam virgens. Wilson Martins apontou o “célebre tópico” na história da literatura brasileira, o “irreconciliável antagonismo que opunha o mestre pernambucano aos escritores paulistas”. 14 Com ânsia de totalização, a pintura pau-brasil não dava conta do Brasil, fosse ela fundada no léxico cromático do Rio, de Minas Gerais ou de São Paulo. Desde o século XIX, a zona tórrida contava com a vigorosa pintura de Telles Júnior dedicada aos Atlânticos – mata e mar. O território mais urgente para uma invenção simbólica do lugar envolvia atmosferas mais luminosas opostas a um regime de sombras: o sertão, o mar e os manguezais. Na zona tórrida, adotar cegamente a ideia de cor caipira é aceitar um enlatado como outro qualquer. A sensibilidade cromática do regionalismo nordestino (“a seu modo, moderno”, como ressaltava Freyre) seria eminentemente mais tórrida que o regionalismo paulista da cor. Ou não tinha mistura de branco (como no Cícero Dias abstrato) ou era excesso de branco (como na pintura de Vicente Leite). O “mortífero derrame de luz 15 equatorial geraria, diferentemente da nitidez caipira percebida por Tarsila na região de Minas Gerais e São Paulo, “um escândalo de sangue fresco […]; amarelos e roxos espessos, oleosos, gordos, às vezes dando vida a formas que são meios-termos grotescos entre o vegetal e o humano”. 16 Assim, à “perfeita distância que separa um objeto de outro” criada por Tarsila em pinturas de elementos bem definidos, que não se misturam – senão coabitam a imagem –, o pernambucano Cícero Dias responderia com uma mais radical 12 AMARAL, Tarsila. Pintura pau-brasil e antropofagia. In: Revista Anual do Salão de Maio, nº 1. São Paulo, 1939. Revista editada por Flávio de Carvalho. 13 FREYRE, Gilberto. Algumas notas sobre a pintura do Nordeste do Brasil. In: FREYRE, Gilberto et al. Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Recife: Off. do Diário de Pernambuco, 1925. 14 MARTINS, Wilson. Leituras brasileiras (?). Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/wilsonmartins068.html. Acessado em 29 de fevereiro de 2012. 15 ALMEIDA, José Américo. A Paraíba e seus problemas. 3ª ed., rev. (1ª ed., 1923). João Pessoa-Paraíba: Secretaria de Educação e Cultura/A União, 1980. 16 FREYRE, Gilberto. Algumas notas sobre a pintura do Nordeste do Brasil. In: Gilberto Freyre et al. Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Op. cit. hibridização. Frutaria Cícero Dias desponta no Rio de Janeiro nos anos 1920 com incontrastável frescor. Suas aquarelas eram os sonhos eróticos de um menino de engenho fascinado pela metrópole, lugar de realização do desejo. Aparece com seus arranha-céus, transatlânticos, Pão de Açúcar, aqueduto, trânsito e a demanda de um equilíbrio precário do mundo. O desenho deslocou o desejo para uma zona da fantasmática. Cícero Dias veio ao mundo para desandar a cor caipira, a paleta que Mário de Andrade quis ver, a partir de Tarsila, como alavanca para seu projeto bandeirante de predomínio simbólico de São Paulo na formação do Brasil modernista. Já na década de 1920, as aquarelas desse Chagall selvagem rejeitavam o reducionismo do escritor. Há dois Cíceros Dias fundamentais na zona tórrida: o surrealista ingênuo das décadas de 1920 e 1930, e o geométrico indomável de fins da década de 1940. Depois, no retorno à figuração, o pintor torna-se caipira, a custo da perda da solaridade nordestina. O desafio geral da cor tórrida, anticaipira, sempre esteve mais na fenomenologia da cor do que em seu caráter ilustrativo da temática de pintura de gênero prevalecente no modernismo. Mário de Andrade foi apegado a Dias, de quem possuía treze obras (inclusive três cartas ilustradas) que datam de até 1930. Em 1931, Cícero expôs o impactante desenho Eu vi o mundo... Ele começava no Recife (1926-29) no Salão Revolucionário. Mário recalcou a obra com silêncio tático, pois nela pode ter percebido uma oposição a seu projeto geopolítico, já que Dias configurava uma geografia excêntrica. Já em 1928, para o Mário ideológico, o problema de Cícero era não ser paulista, pois lhe faltava “bandeirismo: o longe vago buscado”. Ícone de sua pintura moderna de sexualidade explícita, 18 17 como também de sua relação com o Nordeste e com a história social, o painel Eu vi o mundo... Ele começava no Recife (1926-1929) vivenciaria a temerosa reação do público à libido exposta pelo artista pernambucano. Parcialmente depredado quando exibido no Salão Revolucionário, o painel de aproximadamente doze metros, em sua transparência de forma e tema, profanava o distanciamento da arte diante das sensações e narrativas mais ordinárias. Na grande pintura de Dias – realizada sobre papel kraft, já indício de profanação do métier –, a luminosidade tropical se transforma em clareza do enunciado e, assim, se o pretexto inicial da obra era o de contar a história de Joaquim Nabuco, inevitavelmente 17 18 ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. “29 de novembro, 10 horas [1928]”. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 204. “Não cultivo a penumbra, mas a resplandecência. Nada é obscuro na minha obra”, anota Cícero Dias em sua biografia. In: DIAS, Cícero. Eu vi o mundo: Cícero Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 74. metamorfoseou-se por uma enxurrada de imagens do cotidiano: “Tudo se mexia na minha cabeça. Imagens do começo da minha vida. Tantas coisas: mulheres, histórias fantásticas, escada de Jacó, 19 as onze mil virgens. Levaria todas essas imagens para dentro de um grande afresco?” O intuito épico é atravessado pela experiência da vida; ordinário e mítico se fundem no corpo do artista transformado numa carnalidade pictórica capaz de atrair e repelir, seduzir e revoltar. Cícero Dias sabia que “passava pelo seu corpo toda a história de um Nordeste”. 20 O início do diálogo entre Gilberto Freyre e Cícero Dias foi em 1932, quando o pintor retorna a Pernambuco: “Estaria eu participando de suas ideias?”, pergunta o pintor, “o notável sociólogo jamais poderia encontrar uma pintura onde as afinidades literárias e sociológicas estivessem tão perto das artes plásticas”. 21 Os fantasmas sociais das novas aquarelas – como Condenação dos usineiros (1930) – introduzem contundente crítica ao sistema oligárquico e diferenciam-se da sociologia de conciliação de Tarsila do Amaral e de Gilberto Freyre. Na volta a Pernambuco, o artista paulatinamente deixa a aquarela pela pintura. Desaparece o traço potente do desenho tosco suplantado pelo empaste da pintura. A trajetória de Cícero Dias, exposta em retrospectiva de 1948 na Faculdade de Direito do Recife, incluía quatro pinturas que (con)fundiam imagens e sentidos através de um surrealismo de eixo linguístico: Guarda-chuva ou instrumento de música (1943), Galo ou abacaxi (1946), Moça ou castanha de caju (1946) e Mamoeiro ou dançarino (década de 1940). São justaposições conforme a lógica do Conde de Lautréamont (“encontro casual de uma máquina de costura e um guardachuva numa mesa de operações”). Esses quadros-paradoxos substituíam o fortuito encontro de coisas da sociedade industrial por frutas tropicais – o título, uma espécie de dissimulação verbal do significante, desestabilizava e ativava a recepção. A ambivalência da forma inquietou o Recife. 22 Para Mário Pedrosa, não havia abstracionismo nessas situações, em que o assunto já perdia importância ou desaparecia: dos temas regionais só restou o que era realmente do domínio plástico: certas formas vegetais e arquitetônicas tiradas da paisagem pernambucana, sobretudo 23 recifense e certas cores locais, azuis e amarelos que resistem a qualquer luz. Os trópicos reacendiam a pintura de Dias em seus mais luminosos quadros de alusão vegetal, que retomavam um verde que ele atribuiria à experiência ecológica nordestina, em consonância com o pensamento 19 20 21 22 23 DIAS, Cícero. Eu vi o mundo: Cícero Dias. Op. cit., p. 55. Idem, p. 83. DIAS, Cícero. Eu vi o mundo: Cícero Dias. Op. cit., p. 69-70. Cf. Revista Região. Recife, dezembro de 1948. PEDROSA, Mario. Pernambuco, Cícero Dias e Paris. Recife: Revista Região, dezembro de 1948. freyreano: Teria sido Gilberto o primeiro a mostrar-me os verdes que empregava nos quadros? Os verdes dos mares pernambucanos, quando todos os pintores pernambucanos convencionalmente olhavam os mares azuis. Curioso que os pintores copiadores da natureza ao retratar os verdes os 24 faziam azuis. Ademais, Cícero de então compreendia “a pintura na América” como 25 “demasiadamente anedótica”. Autocentrado, esqueceu-se da antropofagia de Tarsila e mesmo do surrealismo vegetal entre alguns mexicanos. Em evocação a Graça Aranha, ele advoga que para constituir o signo pictórico de um lugar (no caso, Pernambuco), “há elementos pictoriais de primeira ordem [...], em cores e em formas.” 26 O raciocínio intuitivo de Cícero Dias, afetado pela guerra, indica que a abstração geométrica surgia-lhe como sintoma da crise do sujeito do inconsciente que emergiu nos anos 1920. No pósguerra em Paris, ele deixa o surrealismo para ser o mais francês dos geométricos brasileiros e posicionar-se à distância da lógica do suprematismo, do neoplasticismo e da arte concreta. Longe da razão construtiva, atuava conforme a ideia de composição geométrica como lugar da cor. Compunha como francês, coloria como brasileiro. Sua geometria é quase-caos. A cor tem surpreendente espontaneidade das aquarelas dos anos 1920 com sua base intuitiva, quase inculta, inclassificável, indomável. Tinha caráter em seus experimentos estridentes. A paleta retomara a solaridade da obra juvenil e uma audácia antieconômica frontalmente antineoplástica. Em São Paulo, Waldemar Cordeiro, o concretista, foi ácido: “julgamos hedonista o não figurativismo do sr. Cícero Dias porque cria ‘formas novas de princípios velhos’”. 27 Cordeiro não lhe tolerava as relações cromáticas arbitrárias ou o “gosto gratuito”. O pintor nordestino justificava-se de outra forma: “a abstração atende a meu lado espiritual, é preciso lembrar a relação que Santo Agostinho já fazia entre a arte e o número.” 28 Cícero Dias, o precursor, já era geométrico em 1946, época em que, paradoxalmente, Cordeiro ainda era “figurativo” e ainda não pensara a cor com o vigor da década de 1960. Ecologia Já em 1925, Gilberto Freyre pede às artes que atentem para “a paisagem e a vida do Nordeste 24 DIAS, Cícero. Eu vi o mundo: Cícero Dias. Op. cit., p. 69. 25 ASSIS FILHO, Waldir Simões de (org). Cícero Dias – uma vida pela pintura. Curitiba: Editora Simões de Assis, 2002.. p.146. 26 27 28 Idem. CORDEIRO, Waldemar. Ruptura. Correio Paulistano. São Paulo, 11 jan. 1953, p. 3. Entrevista a Napoleão Saboia. Pintura de Cícero Dias alimenta-se de música e poesia. O Estado de São Paulo. São Paulo, 24 jul. 2001. brasileiro” e para não “resvalarem para o caipirismo ou para o separatismo literário ou artístico. Nem para o patriótico, anedótico ou apologético – perigos a evitar nessa fase nova de abrasileiramento da nossa arte e da nossa literatura”. mestiçagem. 30 29 Seu pensamento social e cultural aborda a O processo cultural não se estanca em identidades rígidas – seu movimento é da dinâmica relacional: “precisamos cada vez mais pensar em termos de inter-relação das coisas”. 31 Em longa trajetória, Freyre libera o regionalismo da vinculação única com a região Nordeste. Regionalismo e ecologia confluem-se em suas teorias sobre as relações – biológicas, geográficas, sociais, culturais – que imbricam civilização e ambiente. O “homem do Nordeste” não interessará a Freyre por possíveis características culturais “próprias” ou “essenciais”, mas, sobretudo, pelo modo como continuamente responde às especificidades de seu contexto natural, social e cultural – 32 nas palavras do autor, como “homem situado”. Sob um regime ético-político, o “homem situado” de Freyre alcança uma tríplice dimensão que entrevê a ecosofia de Félix Guattari, a articulação das três ecologias: o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade. 33 O “homem situado” é um pintor tão diverso quanto Lula Cardoso Ayres, Rubem Valentim, Montez Magno, Delson Uchôa, Paulo Meira ou Thiago Martins de Melo. O pensamento ecológico de Gilberto Freyre 34 diferencia-o da perspectiva folclorista de Mário de Andrade ao desestabilizar a concepção regionalista para além do caráter dogmático do modernismo: O que o Regionalismo criou [...] foi apenas uma espécie de atmosfera nova, que fez [...] ver sob uma nova luz a gente e as coisas, a paisagem e o passo de sua região e do seu país; e também os problemas do seu tempo. E essa nova visão, a um tempo regional e universal, da vida e dos problemas humanos, é uma nota identificadora de alguns dos trabalhos mais sérios saídos do 29 FREYRE, Gilberto. Algumas notas sobre a pintura do Nordeste do Brasil. In: FREYRE, Gilberto et al. Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Op. cit. 30 “São vários os exemplos desse vigor híbrido que nos permite ver na floração artística do Brasil de hoje não a negação mas a afirmação de vantagens culturais da mestiçagem tal como a que se vem praticando no nosso país desde os tempos coloniais. Mestiçagem, miscigenação, interpenetração de culturas”. FREYRE, Gilberto. Portinari. O Jornal. Rio de Janeiro, 16 dez. de 1942. 31 FREYRE, Gilberto. A favor da arte popular regional. Diário de Pernambuco. Recife, 27 fev. de 1972. 32 FREYRE, Gilberto. Algumas notas sobre a pintura do Nordeste do Brasil. In: FREYRE, Gilberto et al. Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Op. cit. 33 34 GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990. […] procuramos realizar estudos concretos de ecologia social e não apenas divagar ou delirar a respeito. O ponto de vista da ocupação humana do espaço não nos permite ser rigorosamente fisicistas ou naturalisas no estudo sociológico de uma região: de suas inter-relações. O critério antropocêntrico nos leva a considerar como valores – valores do ponto de vista humano e relativos a condições regionais de vida e economia – rios, composições de solo, animais, vegetais, minerais. FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. p. 27. Nordeste nos últimos vinte ou vinte e poucos anos. [...] Nenhum deles é sectariamente, regionalista. Nenhum deles traz a marca ou o carimbo nítido e inconfundível de uma seita, de uma escola, de um movimento sistematizado, de um nome de mestre ou chefe absorvente de uma data certa de convenção ou de primeira comunhão literária aos pés de um novo messias literário. Mas em todos aqueles trabalhos há um critério ou sentido regional da vida ou da cultura humana que se faz mais adivinhar do que aprender. 35 Mais universal, o pensamento social, que incluía uma agenda estética mais complexa, não preconiza uma “questão central” nem reduz a pauta cromática a uma única versão, fosse caipira ou tropical. Gilberto Freyre não pretendeu alcançar respostas, senão sublinhar o problema das relações do pintor – do pintor, do escultor, do arquiteto – com a luz regional [...]: até que ponto é a arte independente das condições regionais de meio físico e de meio sociocultural em que se desenvolve ou em que se desenvolve o artista? 36 Lula Cardoso Ayres Enquanto Gilberto Freyre imaginava uma pintura do Nordeste que trouxesse a memória canavieira das “fornalhas onde arde a lenha, para avivar o fogo […], e os corpos meio nus em movimento, oleosos de suar, [que] se avermelham à luz das fornalhas, e assumem, na tensão de algumas atitudes, relevos de estátuas de carne”, 37 por sua vez, Lula Cardoso Ayres, filho da aristocracia canavieira de Pernambuco, escolhe outra abordagem para a relação entre corpo e fogo. A carne tocada pelo pintor será – na esteira da paleta de terracota marajoara de Vicente do Rego – a da cerâmica popular produzida no Alto do Moura, em Caruaru, cuja cor e forma são reencenadas pictorialmente. O desenho tátil de Vicente – informado por sua prática escultórica inicial – é ressignificado pela obra de Lula Cardoso Ayres de muitas maneiras. O desejo de efetivamente “pôr a mão” nas imagens nordestinas cujas “crostas achavam-se apenas arranhadas” levaria Lula a frequentar a partir de 1932, no Recife e arredores, terreiros e outros espaços de manifestações populares, bem como a fazer viagens e passeios de pesquisa pela Zona da Mata, registrados em fotografias de caráter antropológico. O método eminentemente vivencial de Lula – que o diferenciava da abordagem de Vicente, baseada em pesquisas realizadas em museus e livros – conferiria uma 35 FREYRE, Gilberto. A propósito de “regionalismo”, “modernismo” e “romance social”. Diário de Pernambuco. Recife, 14 set. 1947. 36 FREYRE, Gilberto. A propósito de Francisco Brennand, pintor, e do seu modo de ser do trópico. In: Vida, forma e cor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. 37 FREYRE, Gilberto. Algumas notas sobre a pintura do Nordeste do Brasil. In: FREYRE, Gilberto et al. Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Op. cit. carnalidade especial às suas pinturas e desenhos, mais espontâneos do que a ordenação estruturadora da obra de seu conterrâneo. Os desenhos que o pintor canavieiro realizara no princípio dos anos 1930, a partir de suas visitas aos xangôs locais, participariam do I Congresso de Estudos Afro-Brasileiros (proposto por Freyre em 1934) e paulatinamente configurariam um repertório imagético e metodológico depois retomado por Abelardo da Hora no Ateliê Coletivo (1952), quando levava os artistas do grupo aos terreiros, mangues, canaviais e periferias com a intenção de que fossem representados por meio de um desenho ágil e performativo, numa técnica que denominou como pose-rápida. Assim, Lula Cardoso Ayres implicaria o corpo do artista na pintura. Tal relação entre carnes, não sendo libidinal como aquela explorada pelo Cícero Dias surrealista ou em Carybé, ou por um pintor da atualidade como Tiago Martins de Melo, delineava, todavia, uma carnalidade francamente social, típica de um modelo estética e culturalmente ecológico: “[...] olhos transferidos para as pontas dos dedos […]. Olhos-dedos de pintor discípulo de ceramistas rústicos. Descobrindo novas relações entre luz tropical e forma. Entre luz tropical e cores. Entre luz tropical 38 e gentes”. É o caso de Frevo (1945), cuja área central do quadro é tomada por um redemoinho de gente, sombrinhas, pés, gestos e cores, que surgem misturados como os híbridos vegetais de Cícero Dias, numa temperatura que, sendo a do calor carnavalesco, é também a da forja da memória de Antônio Bandeira. Ainda que a pintura de Lula Cardoso Ayres pareça tangenciar algumas das soluções do cubismo no que diz respeito à coabitação de múltiplos pontos de vista, o artista não opta por uma decomposição matemática de seu “objeto”. Corpo cúmplice da experiência da cultura popular, a lógica de construção de Frevo será menos uma relação espacial racionalizada, e mais o desejo de trazer à luz a organização dos corpos na bagunça de uma multidão de carnaval. O sujeito – inseparável do “objeto” de sua pintura – está em cena, alimentando a balbúrdia que emerge sobre um cenário de cidade esvaziada, cuja tranquilidade arquitetônica de traços europeus é abalada pela zona do frevo que se intensifica sob um amarelo luminoso de sol nordestino. Em Frevo, as cores primárias (amarelo, vermelho e azul) abundam, balizadas pelo branco que, tomado pelo reflexo da intensidade das cores vizinhas, vai se azulando ou se esverdeando. O jogo de variação entre as primárias – presente nas peças das roupas, nas listras das camisas ou nas sombrinhas de frevo – será visto também em outras pinturas de Lula Cardoso, como nos quadros dedicados aos caboclos de lança, figura central do maracatu de zona rural pernambucano. As faixas de tecido e fita – que, absolutamente vibrantes, identificam as guiadas (lanças) e os chapéus 38 FREYRE, Gilberto. Prefácio. In: VALLADARES, Clarival do Prado. Lula Cardoso Ayres, revisão crítica e atualidade. Rio de Janeiro-Recife: Spala, 1978, p. 11. (cabeleiras) dos caboclos – surgem, nessas pinturas, como estrutura da imagem. Criando uma padronagem que quase se repete entre figura e fundo, diferenciando-se apenas por uma mudança de direção e pela variação do curto repertório cromático, as faixas ritmam o olhar que percorre a pintura, alternando seu foco entre os caboclos e o fundo, descentrado por entre o excesso de cor e de luz. Desse modo, Lula Cardoso Ayres aproxima a experiência da contemplação de sua pintura da própria relação travada diante de um maracatu, cujo esbanjamento cromático ao mesmo tempo seduz e espanta. Bandeira ígneo Em termos da estética de Gilberto Freyre, Bandeira é um artista ecológico. O vínculo ambiental travado em suas cidades é demografia explodida, cartografia de diferenças sociais, desequilíbrio climático e memória subjetiva. Na convivência com os artistas abstratos Camille Bryen e Wols, em Paris, Bandeira vivia a ideia de margem. Ele se via um pintor retirante nordestino e considerava que Wols estivera interno num hospital nazista por quatorze meses. Bryen encontrava em Wols o esforço da improvável totalização da humanidade marcada pelos desastres do nazismo: “ali começa a unidade de um homem habitado pela unidade do mundo” 39 40 (Pour Wols, 1945). Há uma trama na obra dos três que justifica o éthos humanista entre eles e o sentimento de resistência à exclusão. A trajetória de Bandeira tem algo daquela busca de unidade através do quadro, forjado mediante a manipulação da matéria. O signo pictórico experimental de Bandeira – pincelada, chapisco, estêncil, carimbo com objetos como latas, atos ideogramáticos ou escorrimento – é a escrita do sujeito e obra do pintor como homo faber. A experimentação material de Bandeira constituiu um sistema de montagem racional do quadro. Sua inteligência pictórica trabalha a malha desregulada como a cidade. O excesso de sobreposições – como na experiência urbana marginal no Brasil – impede uma geometria matematicamente concebida, alusão à sua vivência entrópica na capital cearense. As linhas de tinta escorrida são a escritura do real através da gravidade, como nas favelas do Rio de Janeiro. É assim com La grande ville bleue (1953), uma paisagem ideogramática. A pintura de Bandeira, como a de Guignard, está baseada no senso da verticalidade. Por vezes, a matéria pictórica não aspira à representação da gravidade porque o discurso simbólico parece desafiar a organização gravitacional do quadro, pois tal qual em mocambos e favelas, a precariedade é parte da lógica do abrigo. A torridez em Bandeira não é unívoca, pois ora é dispêndio, como a energia empregada no 39 40 Permanecem muito frágeis as evidências da formação efetiva e produtiva do grupo Banbrywols que, composto por Bandeira, Bryen e Wols (advém da junção das sílabas iniciais sobrenomes dos integrantes o nome do grupo), teria atuado entre 1947 e 1948. BANDEIRA, Antônio. Pour Wols, 1945. trabalho, ora é entropia e violência, movimentos que perpassam, com força inaugural, o rubor orgânico e metalúrgico de Flamboyant (1949). Como o centro da pintura Cercle de feu (1965), a vermelhidão de Flamboyant é o lugar onde o olho arde e a vista se abrasa. A fenomenologia da visão em Bandeira forjou-se como experiência primal da luz através do corpo vivido (corps vécu), tão próximo do pensamento de Maurice Merleau-Ponty. No texto inédito A árvore da infância, o pintor descreve seu encantamento inaugural por aqueles vermelhos e verdes que ancoram sua relação com a cor: “Quando me apaixonei pelas tintas, meu amor pela árvore cresceu 41 desmesuradamente”. O informe não perde a dimensão simbólica. A árvore, imagina Novalis, não 42 é senão uma chama florescente. A tela revigora a revolta contra a derrubada de uma árvore da espécie que marcara a infância do pintor. Mesmo sem o carvão ardente de Mata reduzida a carvão (c. 1841) de Félix-Émile Taunay, ou a lenha de A derrubada (1913) de Pedro Weingartner, Flamboyant é fogo vivo na história transversal da arte brasileira no registro da desarmonia com a natureza. A vermelhidão de Flamboyant constitui o locus de resposta à violência da vida. A cor se irradia em veios para vivificar o espaço e ativar a memória corporal do calor, da faísca, dando as bases para a pintura que, a partir dos anos 1940, desenvolve o artista – “da fundição aprendi 43 misturas que meu pai nem suspeita”. A forja de Vulcano foi a lição de cor para Antônio Bandeira na infância: a luz ígnea da oficina do pai se reacenderá em pintura como memória da luz e vontade material. “De corpo e alma / ofereço / cadinho de ferro e bronze / (uma lembrança de meu pai) / cadinho de corpo e alma / esse 44 cadinho de raças / Fortaleza,” escreve num poema. A linguagem, quem diz é Gaston Bachelard 45 sobre a fenomenologia do forjador, é uma chama vermelha, pronta a trabalhar o ferro. A matéria em brasa da forja é o informe em busca da forma. Cedo o crítico paraibano Rubem Navarra compreendeu a gestação de uma fenomenologia nessa obra: “Bandeira está lutando entre a 46 dissolução e a construção, a fluidez e a solidez”. A zona tórrida na tela Cidade queimada de sol (Homenagem a Fortaleza) (1959) tem calor e índice da forja e da seca, energia do homo faber e drama social. Também em certa pintura de Jenner Augusto, como Campo vermelho (1963), o 41 42 43 44 45 46 BANDEIRA, Antônio apud RIOS, Dellano. A árvore da infância (déc 1930). In: RIOS, Dellano. Retratos do artista. Diário do Nordeste. Fortaleza, 30 de setembro de 2007. NOVALIS. Les disciples à Saïs. Iéna: Ed. Minor, 1927. vol II, p. 216. BANDEIRA, Antônio. Diálogo sem censura. Revista de Cultura Clã, n. 20, outubro de 1964. p. 109. BANDEIRA, Antônio. Fortaleza. Cidade queimada de sol. Poema de 1961. BACHELARD, Gaston. La Terre et les rêveries de la volonté. Paris: Librairie José Corti, 1947, p. 181. “Um novo pintor se despede”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24 mar de 1946. quadro é vermelhidão tórrida e os acidentes do monocromo primário formam a geografia da inclemência do Sol. O passo seguinte é compreender que, para Bandeira, a percepção fenomenológica é o acesso racional e afetivo à pintura: “Antes era preciso somente o ângulo visual para se olhar um quadro. Hoje necessitamos mais que isso, queremos também o ângulo do sentimento. Buscamos olhos não somente na cara, mas também no cérebro e no coração”. 47 Trópico Houve tropicalismo antes do tropicalismo, porque a cultura brasileira é processo sólido e não uma sequência de achados. É fato que Tropicália (1967) foi, segundo Hélio Oiticica, a primeira “tentativa consciente objetiva, de impor uma imagem obviamente ‘brasileira’ ao contexto [...] da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional”, 48 antecedendo à cunhagem do nome para o movimento cultural que, com Caetano Veloso e outros, articula a Bahia, o Rio e São Paulo. No Recife, no entanto, já havia a Tropicologia (1965), que passara a tratar de maneira científica o tropicalismo em seminário acadêmico. 49 Formalizava-se academicamente a constante preocupação, anterior aos anos 50, do pensamento ecológico de Gilberto Freyre sobre uma região natural e espaço sociocultural. Entendida como “modo de ser dos trópicos”, uma ecologia tropicalista regionalista alimentou leituras diversas acerca das “soluções” do “homem situado”, a exemplo da análise de Freyre, em regionalismo aberto às vanguardas, sobre as ações de Flávio de Carvalho, a quem atribuía uma experiência valorosa no sentido da “solução do problema do 50 vestuário ecológico para o trópico”. Antes ainda, em A estética da vida lê-se na posição de Graça Aranha que “no Brasil, o espírito do homem rude, que é o mais significativo, é a passagem moral, o reflexo da esplêndida e desordenada mata tropical. Há nele uma floresta de mitos”. 47 48 49 50 51 51 BANDEIRA, Antônio. Depoimento. Originalmente publicado por Walmir Ayala no Jornal do Brasil, em 1969. Republicado no jornal O Povo, Fortaleza, em 8 abr de 1995. OITICICA, Hélio. Tropicália. 4 de março de 1968. “O Seminário de Tropicologia, foi criado por Gilberto Freyre em 1965 para confrontar experiências heterogêneas então isoladas nos especialismos. O seminário funcionou na UFPE desde 1966, passou pela Fundação Joaquim Nabuco e hoje está na Fundação Gilberto Freyre. Seminário e Instituto de Tropicologia mantêm o objetivo de contribuir para a compreensão do homem situado nos Trópicos, em seu contínuo desafio de criar formas de vida e cultura sem afronta à ecologia”. Ver Seminário de Tropicologia. Disponível em http://www.fgf.org.br/seminariodetropicologia/seminariodetropicologia.html em 12 de janeiro de 2012. FREYRE, Gilberto. Arte e civilizações tropicais. In: Vida, forma e cor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. ARANHA, Graça. Estética da vida (1921). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: INL, 1968, p. 621. Para Freyre, no entanto, o tropicalismo é tropicalismos. O sociólogo mantém a irredutibilidade das formas sociais a um modelo único, e muito menos a fronteiras políticas. Ademais, à semelhança da expansão da ideia de regionalismo, que avança para além do “movimento regionalista de 1926”, os tropicalismos também não se cristalizariam em “modos de ser” fixos, existindo em deriva constante. Para o sociólogo, “conceitos de tropicalismos estão sendo revistos, para que admitam autênticas expressões de arte tropical, que não correspondem à ideia estereotipada de serem os artistas tropicais sempre mais do que exuberantes, em seu abuso de cores violentas”. 52 Para o autor, não é preciso parecer tropical para ser tropicalista: Nada de fazermos do tropicalismo, em geral, e do brasileiro, em particular, uma seita fora da qual não haja salvação para os homens nascidos nos trópicos. O mundo é vasto e muito diverso nas cores e nas suas formas, nos seus climas e nos seus ambientes. O puro fato de nascer um indivíduo no Brasil tropical não o obriga a ser, como artista, um entusiasta do sol forte, da luz crua e das cores quentes. O seu ideal de luz e de cor pode ser o boreal; e sua vocação pode ser a pintura verlaineana, toda de nuances, de cinzentos, de azuis claros, de cores chamadas frias em oposição às quentes. O que sucede, porém, é que, revoltando-se contra o meio, eles realizam obra de quem não se achando integrado com esse meio, é provocado, excitado, estimulado pelo mesmo meio a reações como que 53 antiecológicas. É nesse sentido que, desde cedo, Gilberto Freyre reconhece o caráter ecologicamente tropical da obra de Vicente do Rego Monteiro. Vicente do Rego Monteiro Em 1922, não havia um ateliê no Brasil, no Rio ou São Paulo, com intensa invenção cultural como naquele dos irmãos Vicente e Joaquim do Rego Monteiro em Paris. 54 Motivos indígenas, três pinturas de 1922 de Vicente exemplificam sua capacidade de substanciar de modo abstrato um léxico cromático e uma paleta arquetípica do Brasil. Ele era então o artista brasileiro da mais bem resolvida obra modernista com sólidos fundamentos em pesquisa realizada nas coleções do Museu Nacional no Rio de Janeiro na década anterior. A reduzida paleta terrosa, montada a partir da pauta cromática da cerâmica arqueológica amazônica tanto apresenta os nativos do Brasil (Motivos indígenas, 1922) quanto a própria Paris (Torre Eiffel, 1922) através de um ensaio de escritura indígena. A cor atávica finca o paradigma telúrico da brasilidade modernista; depois, Portinari 52 53 54 FREYRE, Gilberto. Ouro como cor característica. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 24 abr de 1966. FREYRE, Gilberto. Arte, ciência social e sociedade. Revista da Escola de Belas-Artes de Pernambuco. Recife: Escola de Belas-Artes de Pernambuco, 1958. p. 17-30. Ver 1922, um ano sem arte moderna. Paulo Herkenhoff. Arte brasileira na coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem. Rio de Janeiro: CCBB, 2002, p. 30-67. emprega a terra roxa em Café (1935) e Futebol (1935) para simbolizar seu universo de imigrante na região cafeeira de São Paulo. Os irmãos Rego Monteiro pertencem à primeira geração de artistas que sofre o impacto do telúrico trágico de Canudos (1896-1897) no interior da Bahia, já que o drama social não mobilizou um pintor de gênero como Almeida Jr.. A ecologia da “pairagem impressionante” foi descrita por Euclides da Cunha em Os sertões (1902): “as forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície, sem intervalos na ação 55 demolidora, substituindo-se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região.” A rudeza tórrida do lugar sustenta o discurso da terra na obra de Vicente. De nada lhe bastaria a temática sem a elaboração de signos materiais da pintura. A instância do significante definiria seu programa de brasilidade, segundo o qual uma onça ou uma madona seria igualmente construída com um léxico visual atávico. Além de registrar objetos da arqueologia amazônica no Museu Nacional, também leu Barbosa Rodrigues e Couto Magalhães. 56 Sua pesquisa resultou em dezenas de desenhos e aquarelas que interpretam e representam lendas indígenas, exibidos no Recife, São Paulo e Rio de Janeiro entre 1919 e 1921. O vasto corpus é o primeiro marco sólido da ideia de brasilidade da geração de 22. Tal ângulo de ecologia de Vicente antecedeu o projeto de Graça Aranha em A estética da vida (1921). Algumas daquelas aquarelas formaram a base gráfica do refinado livro Légendes, croyances et talismans des indiens de l’Amazonie (Paris, 1923), de P. L. Duchartre. A cerâmica está na gênese de sua pintura. A partir do modelo da cerâmica amazônica, a terra crua e cozida, mais que crua, é o valor plástico de Vicente do Rego Monteiro em itens como paleta, desenho, volume, forma e redução estrutural da figura. O pintor revoga o modelo de índio do escritor romântico francês Chateaubriand e de seus reflexos sobre a pintura indianista brasileira, como a tela Exéquias de Atalá (1878) de Augusto Rodrigues Duarte. As cores deste Rego Monteiro evocam terra cozida e a pintura em engobo da cerâmica indígena. Suas figuras emergem de uma vontade de volumetria como relevos de cerâmica na fatura de um artista que tanto viu os bonecos de barros do Nordeste quanto o cubismo tubular de Fernand Léger. É mesmo possível retraçar a relação concreta entre peças de cerâmica específicas da Amazônia – a mais complexa em termos técnicos e formais no Brasil – copiadas nos desenhos dos anos 1910, e a reelaboração formal em sua pintura na década seguinte. Em Madona e menino (1924), a anatomia da criança sai de uma cerâmica Santarém de base lunar. Cabeça, orelha, seios, posição dos braços, as pernas dobradas, enfim a pose hierática da senhora seguem os padrões das urnas ossuárias Tapajós-Trombetas de Miracangueira vistas no museu. O 55 56 CUNHA, Euclides da. Os sertões (1902). Belo Horizonte: Itatiaia, 1998, p. 27. Cf. Walter Zanini. Vicente do Rego Monteiro, artista e poeta. São Paulo: Marigo, 1998. hieratismo remete às madonas. As cabeças dos seus personagens religiosos de A crucifixão (1922) ou de O atirador de arco (1925) inspiram-se nas tampas das urnas Maracá. Vicente do Rego Monteiro deve ser proclamado também o inventor da ideia de projeto modernista de cor. Recalque A zona tórrida aguarda por seu mapeamento que elimine regiões de uma rica terra incógnita da 57 arte brasileira: Hic sunt dracones. O desconhecimento sobre a obra de Joaquim do Rego Monteiro (1903-1934) é grave problema historiográfico. Morto prematuramente em Paris, sua obliteração tem razões variadas, que vão de seu internacionalismo à distância física e à escassez de obra. A crítica modernista praticamente viveu um desconhecimento de sua pintura, pois só expôs no Brasil em individual em 1924 e coletiva em 1927. Joaquim, ademais esteve longe da temática regionalista e nacionalista. Por fim, seu diminuto corpus conhecido gira em torno de quinze obras, fato que impede melhor conhecimento e avaliação de seu significado. Portanto, Joaquim do Rego 58 Monteiro é um vácuo na zona tórrida para o modernismo latino-americano. Ausente de coleções públicas (as exceções principais são o Mamam no Recife e o IEB-USP), seus quadros, no entanto, estão em algumas das principais coleções de arte brasileira moderna: Gilberto Chateaubriand, Sérgio Fadel e Luís Antônio de Almeida Braga. O diminuto corpus conhecido da produção deste Rego Monteiro inclui algumas paisagens europeias, uma madona (1930, col. Fadel), duas pinturas com vontade de abstração (col. Tuiuiu) e duas “paisagens” (1927, col. Mamam). Em Cais (1923), o desenho é feito com objeto duro, como a ponta do pincel, para abrir sulcos na camada pictórica como linhas conclusivas da imagem. Esse procedimento não canônico é raro no modernismo brasileiro, pouco dado a experimentos com a materialidade do signo pictórico. Tendo participado da mostra de arte moderna trazida por seu irmão Vicente ao Recife, Rio de Janeiro e São Paulo em 1930, pode-se pensar que a pintura de Joaquim estivesse em acordo com o vocabulário pictórico do panorama então apresentado. Seus quadros América do Sul e La Rotonde (1927, col. Mamam) sugerem um diálogo da pintura de Joaquim do Rego Monteiro com a obra de seu irmão Vicente e de Joaquín Torres-Garcia. Desde 1917 que o bistrô está localizado em Montmartre e sempre foi frequentado por artistas. La Rotonde, segundo Gilberto Freyre, era o café em Paris onde Vicente ganhou a vida dançando. 57 58 59 59 O Aqui há dragões. Era a expressão para imaginar o que existiria em terras não mapeadas na cartografia do século XVI. Cf. Artistas pintores no Brasil (São Paulo: Nacional, 1942, p. 203). Teodoro Braga lista nessa obra quatro artigos sobre o artista. Walter Zanini discutiu as causas do esquecimento do pintor. Introdução. In: BOGHICI, Jean (coord.). Vicente do Rego Monteiro pintor e poeta. 5ª ed. Rio de Janeiro: espaço é raso, diagramático, destituído de alusões à perspectiva. Tudo corre na superfície da pintura. A linguagem cartográfica e de plantas arquitetônicas evoca o livro Quelques visages de Paris (1925) no qual Vicente trabalha a paisagem da capital francesa com um vocabulário de signos. A cor chapada reduz o espaço a lugar de uma escrita que corre verticalmente sobre a superfície do suporte. A cor do chão é de um marrom telúrico. Aqui, Joaquim e Torres-Garcia se aproximam no desenvolvimento de um léxico anatômico. 60 Pessoas e coisas estão reduzidas a sinais, denotativos de suas ações e funções na cena. Em La Rotonde, a anatomia mínima reduz os corpos em movimento em sinais econômicos das ações desenvolvidas no trabalho (músicos, por exemplo) e nas relações sociais (cumprimento e beijo) e uma provável galeria de arte. As pessoas se situam na geometria dinamizada por planos geométricos de retângulos dos quadros e dos círculos dos tampos das mesas. Dos referentes empíricos, este Rego Monteiro produz geometria com olhos de quem viu o neoplasticismo. Nenhum brasileiro parece ter tido uma articulação da superfície concreta do quadro tão radical quanto Joaquim. Congá construtivo Rubem Valentim Nascido num período de repressão policial aos cultos de origem africana, Rubem Valentim levou a 61 arte brasileira a novo patamar simbólico e a novo plano ético. Valentim não é um “primitivista”, mas um projeto de experiência moderna do sagrado. Ele era Obá da Casa de Mãe Senhora e deixou 62 a profissão de dentista para se dedicar à pintura a conselho da Iyalorixá. Ele foi obsessivamente dedicado aos orixás. O machado duplo de Xangô, que corta de dois lados, é a metáfora da arte que se pensa na modernidade construtiva ocidental e incorpora genuinamente as raízes africanas do Brasil. Valentim demarca seus princípios no Manifesto ainda que tardio: Intuindo o meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento – e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos – passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé, nos abebês, nos paxorôs, nos oxés, um tipo de “fala”, uma poética visual brasileira, capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como artista. O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um “design” (que Cor, 1994, p. 32. 60 61 62 A propósito das relações entre a obra dos irmãos Rego Monteiro e Torres-Garcia, cf. Paulo Herkenhoff. Vicente do Rego Monteiro, o primeiro projeto modernista brasileiro. Recife: Mamam, 2006 (no prelo). Este ensaio foi parcialmente publicado em Pincelada: pintura e método no Brasil, projeções da década de 1950. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2009, p. 185. Entrevista de Antônio Olinto ao autor, em 27 de maio de 1996. 63 chamo riscadura brasileira), uma estrutura apta a revelar nossa realidade. Poderíamos dizer que Valentim fez arte possuído pelos orixás. No entanto, ele já não vive a nostalgia da África, mas busca a atualidade do presente afro-brasileiro. Luta no interior de uma sociedade que sofria de um “complexo de inferioridade do passado africano”, em que negro e africano tornaram-se sinônimos de escravo, conforme nota o antropólogo Arthur Ramos. 64 Rubem Valentim, depois dos vínculos com a espiritualidade ioruba, busca uma síntese de símbolos espirituais de vários sistemas religiosos. “No Rio de Janeiro, conhece os pontos riscados da 65 umbanda, inexistentes no candomblé da Bahia”. Tendo como referência o texto Do espiritual na arte de Kandinsky, Valentim aprendeu com Torres-García que a tela é campo da escritura do símbolo. Sua teogonia opera a redução radical dos símbolos religiosos a elementos estruturais e geométricos. Giulio Carlo Argan explica a síntese de Valentim: É necessário expor, antes que eles [os signos simbólicos-mágicos] apareçam subitamente imunizados, privados das suas próprias virtudes originárias, evocativas ou provocatórias: o artista os elabora até que a obscuridade 66 ameaçadora do fetiche se esclareça na límpida forma de mito. Um quadro é um texto cosmogônico contínuo, que mantém seu sentido totêmico, imemorial e sincrético. A importância da obra de Valentim está ainda no código semiológico para uma teogonia construtiva. Admitir o caráter simbólico da geometria aproxima-o dos princípios do neoconcretismo. O historiador Jaime Sodré está desenvolvendo um trabalho de leitura estrutural das formas e cores na obra sacra de Valentim. A julgar por trabalho análogo A influência da religião afro-brasileira na obra escultórica do Mestre Didi (2006), o novo estudo representará um salto no conhecimento da obra de Valentim. Rubem Valentim investigava uma escritura arquetípica, de fundamento junguiano de O homem e seus símbolos. Pela primeira vez, o espaço da arte brasileira tem uma dicção autêntica, autônoma e contemporânea da espiritualidade afro-brasileira. Sua estratégia foi criar uma forma moderna de inscrever esse sistema axiológico. Nesse sentido, antecedeu Mira Schendel, e não foi menos rigoroso do que ela, ao tramar relações entre escritura, linguagem e metafísica. Para Mário 63 64 65 66 O texto é datado como: Bahia, Rio, São Paulo, Brasília. Janeiro 1976. In: Rubem Valentim. São Paulo: Bienal de São Paulo, 1977. Arthur Ramos. Arte negra do Brasil. Cultura, 2:189-212. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949. Depoimento do artista, apud MORAIS, Frederico. Rubem Valentim: construção e símbolo. Rio de Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil, 1994, p. 45. ARGAN, G. C. In: Rubem Valentim. Roma, 1966. Apud VALENTIM, Rubem. 32 objetos emblemáticos e relevos emblemas. Rio de Janeiro: MAM, 1970, não numerado. Pedrosa, Valentim “pertence à mesma família espiritual de Volpi, de uma Tarsila”. 67 Se tivesse analisado mais profundamente, Pedrosa teria notado a diferença entre Tarsila e Valentim. Seu paralelo modernista de autorrepresentação do negro é Di Cavalcanti, que na década de 1920 pinta os gêneros musicais do Rio de Janeiro. Com Valentim, a cultura negra no Brasil retoma seu sentido espiritual original. As religiões afro-brasileiras passam a ser tomadas como sistema de valores, deixando de ser caso de polícia, superstição, objeto antropológico (Nina Rodrigues e Arthur Ramos), cristianização (Tarsila) e diferença folclórica (Mário de Andrade). A África brasileira chega sem intermediações estilísticas, reificação ou apropriações políticas que renunciassem à identidade e a seu exercício. A alvura do monumental Templo de Oxalá (1977) é um ato extremo da relação entre arte e metafísica na produção brasileira. Montez Magno Montez Magno sempre alertou: “sou muitos”. A multiplicidade de obra e pensamento – que se estende para além da diversidade de linguagens, invadindo o campo mesmo da pluralidade dos modos de ver e de operar no processo de criação – dá as bases para uma relação eminentemente ecológica com o mundo. Ao artista não interessa se fixar num tema ou numa identidade poética, mas transitar por entre caminhos múltiplos, em contínua – e, por vezes, paradoxal – variação. Assim, reconhecendo ter sido “sempre camaleônico”, 68 estará aberto e disponível ao mundo, travando com ele uma relação ambiental e de posicionamento político e estético ao longo de sua complexa trajetória. Montez Magno não permitirá, portanto, encapsular-se na etiqueta “artista do Nordeste” no que concerne a uma fixidez identitária, fato que o justifica como artista ecológico – em termos de Gilberto Freyre –, inclusive por fugir a quaisquer determinações específicas como, por exemplo, a de uma possível “paleta de zona tórrida”. O artista compreendeu que o tempo histórico do modernismo havia se concluído. Ciente de que sua sensibilidade cromática pode variar do “lunar ao solar”, 69 do “vernacular” ao “erudito”, o que importará ao artista, para as escolhas sempre pontuais de sua sintaxe estética, serão as relações contextuais entre pintura, mundo, sujeito, história, geografia, política: “o espaço-tempo e a cor-luz serão cada vez mais os 67 68 69 Mário Pedrosa. Contemporaneidade dos artistas da Bahia. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 29 jan 1967. Depoimento em entrevista a Clarissa Diniz, em 6 de março de 2009. “A minha pintura se divide em duas visões – uma lunar, outra solar. Lunares são séries como Morandi, Fachadas do Nordeste, Desconstrução da Geometria e Variações Geométricas. Solares, as séries Negra, Tantra e Barracas do Nordeste. São solares porque são feitas com cores muito vibrantes, fortes, em que há uma luminosidade muito patente. Na pintura lunar há uma paleta mais clara, mais amena, mais tênue”. Depoimento de Montez Magno em entrevista a Clarissa Diniz. Recife, 7 de março de 2009. elementos que os artistas utilizarão em suas obras”. 70 Se o “homem situado” pede uma força criadora em relação – exercício constante de uma libertária produção de subjetividade –, a obra de Magno é um profícuo território de experimentações neste registro. Sua produção dará conta, assim, da problematização das relações do capital no emergente processo de globalização dos anos 1960 – do que são emblemáticos um objeto e dois projetos de interpenetração das formas e das cores das bandeiras do Brasil e dos EUA, de 1969 –, às questões de antropologia visual da cultura de um Brasil pouco conhecido, esforço entrevisto em séries como Barracas do Nordeste (1977-1985), Teares de Timbaúba (1979-1998), Portas de Taquaritinga (1983) e Fachadas do Nordeste (1996), dentre outras. Em qualquer direção, o trabalho é irredutível ao anedótico. Cor e forma impregnam-lhe significado político preciso, pois Montez foi sempre avesso ao clichê midiático “que raramente traz símbolos / e não é metafórico / mas incisivo e direto / sem rodeios, é o que é / a palo seco, enxuta, / faca de ponta no olho / [...] é o outro lado da medalha”. 71 Instâncias privilegiadas do discurso político de Montez Magno, a cor e a forma serão intensamente experimentadas num construtivismo que ocupa lugar singular na história da arte brasileira. Seu projeto não se enquadra confortavelmente em categorias, movimentos ou grupos, razão da singularidade de seu contributo à cultura contemporânea no Brasil, de modo significativo. Em 1985, Aracy Amaral notou com precisão a particularidade cromática das Barracas do Nordeste: as cores cálidas, intensas (os verdes e amarelos-bandeira combinados com vermelho intenso ou azul cobalto) a comunicar uma liberdade total da cor sem a preocupação do bom gosto “civilizado”, porém, atento ao rigor compositivo como diretriz maior deste grande pintor do Nordeste 72 contemporâneo. Na pioneira mostra “O popular como matriz” (MAC-USP, 1985), Amaral articula a vontade visual antropológica de artistas da zona tórrida, como Rubem Valentim, Genilson Soares, César Romero, Emanuel Nassar e Montez Magno, e realça-lhes a dimensão no urgente papel social: “importante [...] forma de expressar uma realidade típica deste continente, em que a massa é praticamente sem voz ou desprovida de articulação com as camadas dominantes”. 73 De fato, Montez e Nassar operam a partir da base vernacular do “Brasil profundo”. As dimensões ecológicas e políticas da obra de Montez Magno estão na pintura como em outros 70 Trecho do Testo e Contesto, texto de Montez Magno, publicado em folder de exposição individual do artista na Petite Galerie. Rio de Janeiro, 1970. 71 MAGNO, Montez. Manuscrito para o livro inédito Barracas do Nordeste. 72 AMARAL, Aracy. O popular como matriz. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da USP, 1985. 73 Idem. experimentos. Dodeskaden (1977) expõe em fotografias as gritantes diferenças sociais de uma favela de Olinda – com título do filme homônimo de Akira Kurosawa –, e forma um corpus da exclusão com Tropicália de Oiticica, certas ações de Lygia Pape e algumas esculturas de Ascânio MMM. Atento ao índice do déficit social do capitalismo, Dodeskaden sublinha contradições da metrópole a partir da economia, circunscrevendo-as em termos da esquizofrenia que se forma no sistema socioeconômico. A partir dos anos 1960, Montez explorou a dimensão participativa do outro na experiência estética porque “a meta da arte é de se reintegrar com a vida, de tal forma que todos possam participar criativamente de tudo o que for feito pelo homem para o homem”. 74 No mesmo período político, Montez ressalta que uma característica da arte de então era seu “poder de levar o espectador a uma ação”, processo que “implica uma tomada de posição filosófica, da parte do artista (e também do público) […], [estendendo-se] a todos e desenvolvendo a nossa capacidade perceptiva”. 75 Cria trabalhos participativos como Caixas (1967), Escultura manipulável (1968 e 1970), Pela fresta (1972) e, em 1969, projetos arquitetônicos nunca construídos, como O Ovo e Museu Mausoléu, dito MMMausoléu. Enquanto o pensamento pictórico da cor-luz é a base da concepção de suas Caixas – série de apropriações de estojos escolares colados e pintados que, na manipulação do público, revelam cores e formas insuspeitas –, O ovo e MMMausoléu representam a negação ao contato com a luminosidade, metáfora da tensa relação sujeito-mundo sob a ditadura. Arquitetura de isolamento e resistência à violentadora realidade, esses projetos denunciam a falência da liberdade nos estados de exceção. Sua obra múltipla resiste à sedução da tropicalidade reduzida à bandeira ideológica e de mercado. Contra a exotização da luz e da cultura brasileiras – ou nordestina –, Montez Magno mantém-se escorregadio, operando em registro que excede qualquer limite geopolítico. Tampouco é desatento à história da arte ocidental. Na série Morandi (1964), ele busca a serenidade cromática do mestre italiano. Antitético à geometria afrancesada de Cícero Dias, pautada por estridente gama de cores “tropicais”, Montez estrutura sua fluida maneira morandiana em suave ordenação racional para 76 tocar a noção de geometria sensível da América Latina, já que privilegia a regência da intuição. Italiana, a série Morandi torna visível o encantamento comovido em terra estrangeira do jovem Montez. Nisso seu pertencimento está próximo da ecologia regional de Gilberto Freyre: “[...] eu não sou nacionalista, nem sou regionalista, nem sou bairrista. [...] Você pode fazer coisas ligadas à 74 75 76 MAGNO, Montez. Depoimento. Folder de exposição individual do artista. Rio de Janeiro: Ibeu, 1968. Idem. Cf. Exposição “Geometria sensível”, curadoria de Roberto Pontual, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1978. região – como eu fiz. […] Mas isso me interessa estando aqui ou, por exemplo, na Cisjordânia”. 77 Almandrade A relação entre a luz da zona tórrida e a produção artística dessa região se dá também em escala urbana, por meio de trabalhos que, instalados a céu aberto, criam uma inteligência própria em diálogo com as condições atmosféricas, sociais e culturais de determinado lugar. Contudo, talvez com alguns paradigmas como Sérvulo Esmeraldo em Fortaleza, Abelardo da Hora no Recife e Mário Cravo Júnior em Salvador – artistas cujas esculturas públicas habitam a cidade –, dada a rarefação econômica do campo da cultura no Nordeste do Brasil, parte significativa dessa inteligência encontra-se adormecida. Por entre ateliês e instituições, restam desenhos e projetos de obras nunca concretizadas, pensadas para o espaço público. É o caso do baiano Almandrade, artista com uma vasta produção pictórica que, porém, adverte que a “escultura e a instalação [o] atraem mais”: “gostaria de fazer trabalhos para dialogar com o espaço urbano, talvez pela minha formação 78 de urbanista”. No entanto, Almandrade não teve essa oportunidade. A latente lógica arquitetônica de sua obra sublinha, portanto, uma fundamental chave de leitura para o seu trabalho: muitos dos objetos e esculturas de Almandrade devem ser compreendidos como maquetes ou projetos para esculturas de dimensões urbanísticas. Assim é que, do plano inclinado amarelo de uma de suas esculturas (2003), resta desconhecido seu pleno potencial – somente uma vez instalada em Salvador, por exemplo, a obra revelaria sua força de imenso rebatedor da luz tropical, instância da experiência sensível do trabalho que, por ora, permanece silenciada, sobrevivendo apenas como projeção. Tal situação de latência é, no entanto, apenas um dos muitos débitos do campo da arte diante da produção de artistas do Nordeste – como, igualmente, de outras regiões do País. Ao manter certo etnocentrismo, a historiografia brasileira não foi ainda capaz de dar conta da contribuição, para o contexto construtivo e conceitual de nossa arte, de artistas como Sérvulo Esmeraldo, José Tarcísio, Montez Magno, Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Rogério Gomes, Martha Araújo, Raul Córdula e Almandrade, dentre muitos outros. Em suas trajetórias – cruzadas, visto que são interlocutores – Montez, Esmeraldo e Almandrade, por exemplo, criaram um lugar profícuo entre a construção e o conceito, irredutível aos genéricos enquadramentos teóricos de um ou outro. Essa posição singular é evidente em Almandrade. Oriundo da poesia visual e do poema processo, na Salvador de meados dos anos 1970, o artista dá início às suas incansáveis investigações, travando uma relação de ambiguidade semântica com o 77 78 Depoimento em entrevista a Clarissa Diniz, em 6 de março de 2009. In: Almandrade, um olhar do artista sobre o seu trabalho. Catálogo de exposição homônima. Museu de Arte Moderna da Bahia, 2011. espaço. Em muitas de suas pinturas, esculturas, objetos ou diagramas, a espacialidade será a base sobre a qual Almandrade problematiza a relação entre significante e significado, constituindo experiências espaciais cujo instável equilíbrio físico de tantas vezes é o eixo sobre o qual se desequilibram os sentidos. Na recente pintura Uma tarde de verão (2011), por exemplo, à tensão do enfrentamento de suas quase-simetrias de linhas e cores – que parecem esforçar-se por manterse estáveis sobre a imensidão de um amarelo vivaz que, como a luz atmosférica, tende a imprimir movimento –, soma-se a instabilidade da sugestão semântica advinda com o título do trabalho. Como já anunciava em seu livro Linguagem (déc. 1970), no qual páginas se sucedem transformando uma linha em onda, a onda em caligrafia, e a caligrafia na palavra que intitula o trabalho, Almandrade está interessado em pôr em jogo as diferentes forças que criam valores na e para além da linguagem, preocupação reforçada constantemente também em sua atuação como crítico de arte. Delson Uchôa Em três décadas de pintura, a “experiência luminosa” de Delson Uchôa no ateliê era resposta “muito natural” à hora afetiva do dia. A harmonia protegida não admitia tratar de temperatura, contrastes ou antagonismos entre cores, mas cabia “adjetivá-las, para humanizá-las”. Surge então, numa pintura que toma paredes, chão e teto da casa, “a alegre luz da manhã, a austera luz do meio79 dia, a saudosa luz da tarde, que dramatiza o mundo, propicia os namoros”. Só depois, percebe a “luz calorosa” ou a “luz orvalhada” em dimensões afetuosas de uma luz meteorológica. Já não se interessava pela ciência da luz, pois a pintura não é exercício da física da luz. “Então, já não conversava mais sobre luz, como um livro de física tentando explicar a luz”. Todo seu esforço de uma episteme transversal da luz converge para a poiesis da luz. A corporeidade da cor toma, em reflexo de sua formação em medicina, dimensão orgânica: vermelho venoso, vermelho arterial, encarnado, verde biliar, amarelo lipoide, roxo cólera; azul linfa; [...] do cultivo do suporte no chão; da reconstrução cirúrgica de minhas telas com transplantes, implantes, enxertos, retalhos 80 de membranas, mucosas; a pele, o couro, o pigmento em coágulo, queloide. Se o pintor empresta seu corpo à pintura, conforme a poesia de Paul Valéry e a fenomenologia de O olho e o espírito de Merleau-Ponty, o corpo é usina de cor na lição de anatomia de Uchôa. Na mente, afirma o pintor, a cor é eletromagnética, fotoelétrica; os fótons não se deslocam no vácuo com a velocidade da luz, e não é a cor a sua matéria. Não se contempla a pintura num campo imaterial de luz, entre o visto 79 80 UCHÔA, Delson. Delson Uchôa. Milão: Charta, 2009, p. 17. Ibidem e a visão. Acho que agora começo a entender o que é a eletricidade da cor; ou não? Não importa, 81 meu sonho colorido vem do espírito, do self. No entanto, essa pintura é ainda mais densa de sentidos ao borrar os limites entre a zona tórrida instintiva e a possível ideia de norma culta da arte. Carybé O discurso simbólico adquire ressonância inédita nas primeiras décadas do século XX por sua capacidade de criar identidades regionais em disputa pela legitimidade nacional. No contexto da publicação de teorias de formação do Brasil – dos quais se destacam Casa-grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1935), de Sérgio Buarque de Holanda –, a arte e a literatura do período inventam o País numa proporção expandida pela política que antecede e, posteriormente, inaugura o Estado Novo. Depois do primeiro ímpeto modernista, no momento seguinte, Freyre tem papel central na construção da ideia de Nordeste, como Jorge Amado ao mesmo tempo inventa e é inventado pela Bahia. A produção artística que dialoga com essas concepções de Brasil busca efetivar uma imagem – social, política, cultural, subjetiva – para a Nação e, mais especificamente, para suas regiões. Rubem Braga, cúmplice desse intensificado poder simbólico da arte, apontaria, em referência ao pintor argentino naturalizado brasileiro, que, “na Bahia […], de repente a gente vê um negro de camiseta branca ou uma baiana de saia rodada ou um sobradinho de telhado escuro ‘imitando’ os desenhos de Carybé”, 82 evidenciação da força de significação da imagem que Mirabeau Sampaio sintetizaria com precisão: “nasci e me criei aqui em Salvador, e posso lhe afirmar: na Bahia, não existia um negro, era uma coisa que ninguém tinha visto aqui, até a chegada de Carybé”. 83 O caráter ideológico da arte e das versões de Nordeste que estavam se construindo calcadas sobre o mito da democracia racial construído por Gilberto Freyre faria da pintura de Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e Carybé um testemunho das virtudes apregoadas por tal sociologia que, transbordando disciplinas, funda o romance de 30 e dá as bases para a segunda geração modernista das artes visuais. No caso de Carybé, sua copiosa produção protagoniza a naturalização da miscigenação e a tolerância racial (A morte de Alexandrina, 1939) num tempo em que Sérgio Buarque de Hollanda concebe o homem cordial. A contundente obra crítica de Carybé nos anos 30 81 Delson Uchôa em e-mail a Paulo Herkenhoff em 16 de abril de 2011. 82 Rubem Braga apud ARAÚJO, Emanoel (org). As artes de Carybé. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 98. 83 Mirabeau Sampaio apud ARAÚJO, Emanoel (org). As artes de Carybé. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 98. o aproxima da pauta marxista do muralismo mexicano ou da obra de seu compatriota Antonio Berni, pelo elogio à força de trabalho pós-escravagista (Beira-rio, 1939). A celebração da cultura afro-brasileira passa pelo mito da sexualidade exacerbada (a ideia de vadiagem), pelos costumes do dia a dia, pela alegria, pela festa (Vadiação, 1965). Os sistemas religiosos afro-brasileiros recebem sua atenção de Carybé (Iconografia dos deuses africanos no candomblé da Bahia, 1981) e, em época de intensa representação simbólica por outros artistas da Bahia (Rubem Valentim, Mário Cravo Júnior, Calasans Neto, Mestre Didi e Agnaldo), cumpriram papel central na legitimação dessa herança na esfera pública. Valentim e Mestre Didi produzem uma rigorosa poética sacra. Através dessa arte o legado africano vivo invade a cidade e a mídia. Artistas e escritores, como Jorge Amado, em que pese sua singularidade, foram apropriados na Bahia, sobretudo no governo de Antônio Carlos Magalhães, para a transformação do “modo de vida” e das especificidades estéticas da zona tórrida em discurso oficial de baianidade em dimensão nacional. Para além da cultura do espetáculo, a penetração social de Carybé – que, na comemoração dos 70 anos de Carybé, o Pelourinho encheu-se de 15 mil pessoas em sua homenagem (1981) –, talvez apenas comparável à de Jorge Amado, que inclusive transformara o pintor em personagem de seu romance Dona Flor (1966). Da obra de Carybé, geralmente interpretada em hipótese consensual e cordial da cultura brasileira, os aspectos conflitivos – como alude Briga de cães (1942) – e de dissenso da obra de Carybé restam ainda desconhecidos. O sistema de arte aguarda a publicação da tese de Marcelo Campos (“Carybé e a construção da brasilidade: arte e etnografia para uma análise para além das representações”, 2001) para que o valor de Carybé, a partir das qualidades simbólicas e plásticas de seu trabalho, possa ser criticamente resgatado do limbo folclorista em que foi submergido. Luzes sazonais Existe uma neve nordestina em pintura. As areias alvas da Lagoa do Abaeté em dia estival têm para Pancetti alguma coisa em comum com uma nevada para Cézanne. Historicamente, os fenômenos atmosféricos e lumínicos são problemas de pintura. Neve, neblina e solaridade excessiva cobram luz do olhar do pintor. Pode-se pensar na paisagem gelada de Geada (1885) de Claude Monet em contraste com a umidade atmosférica na obra de Castagneto no Rio, nas franjas Luz tras mi enramada (1926) do venezuelano Armando Reverón e, finalmente, em imagens da zona tórrida de José Pancetti, Vicente Leite e Flavio-Shiró. O historiador Charles Moffet tomou uma fotografia de E. Loydreau (Effet de neige, 1853) como o ponto de partida para definir o padrão de paisagem invernal impressionista. 84 84 Caspar David Friedrich (Mar de gelo: o naufrágio MOFFET, Charles. Impressionists in winter: effets de neige. Charles Washington, The Phillips Collection, do Hope, 1824) e Gustave Courbet – que pintou inúmeras paisagens (a partir da década de 1850) – apontam caminhos ao impressionismo. Courbet concentrou-se em “efeitos da neve” (effets de neige), uma forma particular de representar a luz, o ar, e as aparências da cor e do frio na paisagem. Os effets de neige povoam a obra impressionista de Monet, Renoir, Guillaumin, Pissarro, Sisley e Caillebotte. A solaridade da zona tórrida deve ser justaposta aos effets de neige da pintura moderna. Na Europa, a homogeneização depois de uma geada pede sutilezas tonais; o sol causticante do Nordeste desbota a paleta do real. Onde quer que estivesse, o branco luminoso das praias de Vicente Leite mantém-se impregnado da luminosidade excessiva e cegante de Fortaleza. José Pancetti pintando nas dunas da Lagoa do Abaeté opera com uma cor severa em que o excesso de luminosidade, como no real, produz a perda do relevo, tornando a pintura puro fenômeno da superfície material. A série branca de Shiró, também pintada na Bahia, guarda uma evocação da neve: “o Japão ficou, a vida toda, para mim como memória de cores – o branco da neve – ou de certos sons – os pés de meu pai pisando a neve, quando me levava nas costas, a caminho dos banhos públicos”. 85 O pintor revela uma precoce e aguda memória sensorial, fator chave no desenvolvimento de sua obra em frequência do tórrido. Justapor as pinturas brancas de Shiró aos effets de neige parece mais paradoxal que surpreendente, pois elas sempre mantiveram uma espessura atmosférica equatorial, referência ao calor úmido de Tomé-Açu, que o crítico francês Georges Boudaille percebeu como umidade amazônica em texto do final dos anos 50. O branco abafado nas pinturas brancas, com luminosidade comedida e matizes cinzas, evoca o ensaio Elogio 86 da sombra (1933) do escritor Jun’ichiro Tanikazi. O Japão é eminentemente a cultura da sombra. No entanto, há um efeito nordestino de neve que oscila entre o real e o simulacro. Leonilson trabalha, em colaboração com Albert Hien, com a própria neve como matéria de um vulcão esfumaçando. Tudo é transitório: a fumaça, a neve mesma e o degelo – a própria economia da arte enfrenta um modelo crítico de volatilidade. Em crítica da importação de cultura, Marepe ironiza com a neve tórrida simulada em algodão nas árvores de Natal nos trópicos. A cegueira do excesso de luz é experimentada como excesso e ausência já que no branco residem, potencialmente, todas as vibrações cromáticas. Essa dupla neve nordestina trabalha a desterritorialização da luz cegante. Na década de 1960, Flávio-Shiró viveu a solaridade na Bahia, que se converte em cor estridente e 1998, p. 19. 85 86 Cf. BRANDÃO, Ignácio Loyola. In: Flávio-Shiró Pinturas. São Paulo: Galeria de Arte São Paulo, 1985, não numerado. In praise of shadows. Trad. Thomas J. Harpter e Edward G. Seidensticker. New Haven: Leetee’s Island Books, 1977. tórrida no retorno à França. Shiró experimentou o mais intenso processo de deslocamento físicogeográfico-cultural, como a figueira brava que se expande em três continentes e muitas ecologias: as memórias infantis da neve no Japão e a pintura matérico-abstrata na França são entremeadas por muitos brasis. A pintura é seu multiculturalismo intrabrasileiro da infância na Amazônia dos cipós e taturanas em Tomé-Açu, da iniciação à arte em São Paulo e da luminosidade do Rio e na Pituba. Não são mudanças de paisagem nem a busca de motivos regionais de um turista. Seu caldeirão antropofágico incorpora diferenças porque sempre foi permeável a impactos e irredutível à expressão de um único lugar para negociar símbolos, ideias plásticas, soluções materiais e agenda conceitual. Depois da estância na Bahia, Shiró elabora a cor tórrida dos Trópicos em Paris. O vermelho assume-se como energia, dor, violência e morte. Há algo simultaneamente tenebroso e político enunciado na passagem radical para fantasmas sociais inadiáveis. A ditadura de 64, as guerras de descolonização da África, a ameaça atômica, o conflito da Guerra Fria, maio de 68 promovem o pano de fundo de seu drama planetário. Por não aludir a lugar algum, o drama se localiza por toda parte. Da estridência cromática de Apocalipse (1966) à pauta ética em Máquina humana (1969), tudo funde meio ambiente, processo social e comoção psíquica em seu corpus de pinturas. Nenhuma zona do quadro se estabiliza e abundam dejetos políticos, sangramentos, bombas, superfícies impactadas, velocidade. Tudo é pulsão pela vida. Em 1965, Flavio-Shiró pintou o políptico As quatro estações. São muitas as Quatro estações da história da cultura ocidental, do barroco à produção contemporânea em arte ou música (com Vivaldi, Haydn, Delacroix, Kandinsky, Chagall, Piazzola e Cy Twombly). No Brasil, enquanto Freyre advogava, em 1925, que “deveríamos, na verdade, ter passado a idade passivamente colonial de decorar edifícios públicos com as figuras das quatro estações do ano que não representam aspectos da nossa vida nem regional nem mesmo brasileira”, quarenta anos mais tarde, o ciclo anual das estações de Flavio-Shiró possibilita uma impossibilidade: reunir dimensões climáticas de três mundos, três continentes e dois hemisférios – opostos simétricos e inconciliáveis no plano astronômico das estações – porque nesses quadrantes geográficos (Europa, Amazônia e Sudeste do Brasil e França) o pintor encontrou os elementos culturais que formam sua pintura. Essas disparidades climáticas são oriundas da vivência do pintor, pois as Quatro Estações (1965) justapõem os sistemas temperados (Sapporo e Paris), equatorial (Tomé-Açu), subtropical (Rio de Janeiro e na São Paulo de Trópico de Capricórnio) e a zona tórrida (Pituba). O ciclo anual não determina a longitude, mas opera uma profusão de fatos astronômicos, geográficos e climáticos. Shiró articula temperaturas frias e quentes (inverno/verão, zonas tórridas/zonas temperadas), cores selvagens e gestos naturais e cultos de um clima imaginário de convívio das diferenças e todas as Estações cabem num único país, nação, etnia ou continente ou cultura. Cada uma é cheia de interstícios das demais, como um caleidoscópio de lugares da cultura e da luz. José Cláudio José Cláudio é um polissêmico na trajetória de seis décadas de ação. Sua formação foi com Cravo Jr., Jenner Augusto e Carybé na Bahia e Di Cavalcanti e Livio Abramo em São Paulo. São escolhas que indicam a proximidade com o ideário marxista predominante nas iniciativas coletivas na época (e. g., Atelier Coletivo no Recife, 1952) no arco ideológico antagônico oscilante entre o trotskysmo de Abramo e a orientação stalinista do Partido Comunista aos Clubes de gravura. Enquanto os Talleres de Gráfica Popular mexicanos, sob a tutela de Leopoldo Mendez, davam as cartas à produção xilográfica nesses ateliês, na representação do trabalho (Mulher fazendo telha, 1952), José Cláudio exibe um monumentalismo anatômico de quem viu o muralismo mexicano. Na década de 60, período de eclosão do pós-moderno, ele experimenta a expansão do campo e a ruptura do cânon, como no uso de carimbos em ações sígnicas. A pintura é a linguagem inatual de José Cláudio para além de noções de contemporaneidade ou sincronia com pautas de qualquer natureza. A pintura é para ele urgência e necessidade. A partir dos anos 80, três grandes nomes encontram-se na ação expressiva de pintor no Brasil: FlávioShiró, Iberê Camargo e José Cláudio. Shiró foi o pintor das fantasmagorias da infância amazônica vertida em sentido trágico da história: taturanas formam seu exército do armagedom atômico no contexto das disputas na Guerra Fria. O olho da consciência é o olhar mais terrível do Angelus novus da história benjaminiana. Os dois outros tocam o patriarcalismo do Brasil. Camargo, depois de cometer um homicídio, retrata-se em trágica auto-condescendência (série Hora, 1984). Tudo o que virá depois é sintoma da incapacidade de estar com o Outro: o “vigor do real” se esvai na impossibilidade de a pintura estabelecer como mal-estar coletivo aquilo que era processo infértil de expiação da culpa pessoal. Daí a melancolia da pintura com pulsão de morte. Com igual força de pincelada, convergência no tônus da pincelada, mas com exarcerbada torridez cromática, José Cláudio, no entanto, está em campo oposto ao de Iberê. O figural em José Cláudio transfigura a matéria do real sustentada pela pulsão de vida. O pintor em plena potência já não mais carrega a culpa social do Atelier Coletivo nem parâmetros de constrição ideológica. O agenciamento da arte engajada havia se esgotado diante da avalanche autoritária de 64. A potência do sujeito desejante move agora numa pintura que ultrapassa o paradigma de erotismo da literatura de Jorge Amado. O signo material estará a serviço da libido; o quadro é uma região erótica da fantasmática. A carnalidade da pintura de José Cláudio esxuda calor como o sujeito em estado de gozo. Thiago Martins de Melo O desejo na obra de Thiago Martins de Melo – fora da simetria entre voyeurismo e exibicionismo – só tem paralelo no Brasil na obra de Maria Martins (L’impossible, 1944), Flávio de Carvalho (Nossa Senhora do Desejo, 1955) e Adriana Varejão (Filho bastardo, 1992). A fotografia de Alair Gomes, por exemplo, é o êxtase do voyeur e a produção de Antônio Dias na década de 60 é a violência do voyeur – são dois regimes econômicos do desejo visível. No entanto, a primeira instância na pintura de Martins de Melo é a exposição de si mesmo. Por isso, a qualidade dessa explicitude não pode ser comparada à recatada Louise Bourgeois. Só Georges Bataille – Histoire d’oeil, Madame Edwarda seguido de El Muerto, L’érotisme – daria conta de tanta complexidade. Fillette (1968) de Bourgeois é o aparato genital do homem (para ela, “o frágil absoluto”) tão exposto como o da mulher em L’origine du monde (1866) de Gustave Courbet e Iris (1890-91), de Auguste Rodin. A exposição hiperbólica, direta e íntima, não é crueza da mecânica, mas a relação afetiva e violenta com o alvo (o alvo sexual está sob o domínio de uma zona erógena). Courbet pintou antes de Freud – a ciência apenas começava a compreender o psiquismo do desejo. Thiago Martins de Melo põe Courbet, Rodin e Bourgeois em sua cena pictórica. Bourgeois esculpe depois de se confrontar com a dúvida de Sigmund Freud (a única pergunta que ele diz não saber responder seria o que deseja uma mulher) e a afirmação de Jacques Lacan (a mulher não existe) e entendê-las a seu próprio modo. A pintura de Martins de Mello desvela tais limites. A pintura de Martins de Melo, como a obra de Antônio Dias ou Tunga, é campo da fantasmática. Incorpora a carnalidade como o corpo sexualizado do pintor transferido à pintura. Sem essa aparente redundância reiterativa da carne não se dará conta das instâncias do desejo e do corpo, do signo material da pintura e da relação fenomenológica entre pintor e pintura lançada por Paul Valéry e conceituada por Merleau-Ponty. O pintor, para Valéry e na fenomenologia de Merleau87 Ponty de L’oeil et l’esprit, empresta seu corpo à pintura. O corpo emprestado pelo pintor Martins de Melo é o corpo sem órgãos, a máquina desejante. 88 O desejo se encarna na vontade material. Essa temperatura de obra compõe certa história do olho: afinal, L’origine du monde não pertenceu a Jacques Lacan? Afinal, Lacan não se casou com Silvia, ex-mulher de Bataille? Esse Thiago, pintor-psicólogo que descrê em pudor moralista em pintura, pode estar no lugar de Jacques ou de Georges, ou dos dois? Não há como classificar o inclassificável. Não há o imencionável, o socialmente indizível por recato, privacidade ou moralidade, mas também não há autoexposição egótica: isto é o próprio território da fantasmática que não vem em imagens mentais nem verbais, 87 88 Maurice Merleau-Ponty. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1986, p. 16. Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: capitalism and schizophrenia. Trad. Robert Hurley, Mark Seem e Helen R. Lane. Minneapolis: Minneapolis University Press, 1998. mas se encarna como pintura. O que se vê é a emergência do possível. Surge com uma violência avassaladora, com uma urgência de visibilidade capaz de construir afasia em resposta ao olhar. Despida de estratégias de dissimulação (a robe mouillée da Vênus de Milo seria o oposto dessa estratégia de enunciação). Um quadro expande as possibilidades visíveis do íntimo. Diante do canibalismo melancólico de Pierre Fédida – o luto antecipado decorrente da vontade de 89 devoração do parceiro no coito – conclui-se ser preciso expulsar a morte. É necessário espancar o esqueleto e não dançar com ele como em Ensor e em toda Todtanz da cultura europeia nórdica. A batalha de tesouras e a linguagem das lâminas, entre a castração e o rompimento do hímen. Sem 90 culpa e sem qualquer vergonha, como se personagens de Georges Bataille se tornassem vivos. Os sentimentos de culpa, vergonha ou repulsa transferem-se para cada espectador, se for o caso. Não há estratégias de choque, mas de presentificação da cena. Fundamentalmente, Martins de Melo pinta dípticos. A separação entre duas telas não decorre da intenção ingênua de produzir um díptico em que duas partes se conjugam na formação de uma imagem, nem provém da penúria (não dispor de uma tela maior). Isto é corte. Daí ser a cisão da superfície uma operação indissociável. A linha orgânica de Lygia Clark reitera a separação do que se deseja unido e uno no quadro, o abismo da falta e fenda da incompletude. Pulsões de vida, movimentos da libido, fantasmas de desejo – o signo pictórico é trabalho libidinal, como na escultura de Bourgeois. O esforço do pintor é manter a imbricação entre o inconsciente – um possível projeto de uma escrita na linguagem do inconsciente e não sua ilustração – e a experiência pulsional do pictórico, do inescapável confronto com o signo material da linguagem. Essa relação mantém a coesão tramada entre significante, significado e significação. Bruno Vilela O universo pop, somado ao caráter catártico e autobiográfico, atravessa as experimentações de Bruno Vilela, cuja intensidade do gesto pictórico é transposta para a colagem, o risco, o pixo, a apropriação. O gesto de abrir e fechar – desvelar – é aludido na série de maletas e livros (2000), que forra o interior desses objetos de referências da cultura visual do mundo globalizado, sobrepostas a pequenas lembranças de sua vida – objetos de infância, fotografias de família, roupas de sua filha. A intersecção entre esses universos se dá de modo conflitivo: a demasiada presença tende a anular singularidades – diversidade e poluição se confundem; os cortes são 89 90 FÉDIDA, Pierre. Le cannibale mélancholique in destins du cannibalisme de Nouvelle Revue de Psychanalyse. Paris: Gallimard, 1978, vol. 6, p. 123-127. BATAILLE, Georges. Guilty. Trad. Bruce Boone. Venice: The Lapis Press, 1988, p. 13. abruptos (rasgos e elementos sequestrados de seus contextos de origem); a temática é a da derrocada da civilização, do indivíduo traumatizado. A cor – amarelos, pretos, vermelhos e roxos – será pano de fundo para as narrativas incompletas e trágicas de Vilela, ao passo que configurará um vislumbre de redenção através da beleza: agrupados também por meio de uma lógica cromática, os objetos pintados do artista seduzem por seu escandaloso apelo visual. Diferentemente da antieconomia cromática de Cícero Dias, as cores do jovem artista se combinam numa gama reduzida de nuances: o esbanjamento de virada de século de Bruno Vilela explora menos a saturação da luz e mais a saturação dos sentidos, dos discursos, das verdades que se ficcionalizam. Paulo Meira A contemporaneidade da pintura realizada na zona tórrida do Brasil acontece a despeito da “nordestinidade”, como também fora da pintura. Concerto para final de milênio (2000), instalação laranja-rubro de Paulo Meira, será emblemática diante do percurso de desconstrução vivida na pós-modernidade: entre cabos de aço tensionados estão elementos do fazer pictórico tradicional – pregos, molduras, telas – e índices daquilo que voa, asas e hélices. Dispostos no espaço, os elementos a um só tempo aludem a um “ritmia” musical – concerto – e a uma desordem funcional, conserto, instaurando uma sensação de instante congelado no espaço-tempo, anúncio e expectativa de um milênio por vir. A força de uma entropia interrompida – sensação de algo que fora implodido (partes por todos os lados), porém apreendido antes da dispersão absoluta – falaria de uma subjetividade em vias de transformação radical, mais ainda devedora de esquemas estruturantes? Na atmosfera de movimento em suspensão de Concerto para final de milênio, o gozo que se realiza é o do prazer da cor. A vermelhidão espacializada impregna o ar e o corpo do outro, experimentando a força da monocromia mesmo quando destituída de seu projeto moderno de autonomia, sensação também atiçada por Coração para amassar (1966), de Antônio Dias, cuja emulação de um semblante pop cria ambiguidades em torno dos sentidos e usos do objeto vermelho, pretensamente macio, e em forma de coração. Presentes também em trabalhos como Alaranjado via e Os flutuantes (2001), a cor saturada e a lógica pictórica da obra de Paulo Meira se mantêm como fundamentais na sua produção recente, inclusive em seus vídeos. Emblemática, nesse registro, é a personagem do palhaço do filme Marco amador – sessão cursos (2007), cujo rosto caricatamente coberto de tinta é retomado na pink pintura The painter, the model and the painting (2008), na qual a face da personagem aparece sendo maquiada, enquanto encara o espectador – ou, anteriormente, como sugerido no título de caráter velazqueano, o próprio pintor. Esse jogo de forças – entre sujeitos, bem como entre a arte e o outro – adquire importância nos últimos trabalhos do artista. Em objetos feitos para a participação do espectador – como o divertido e violento Omphalós (2008) – e por meio da ficção audiovisual, Paulo Meira dialoga com aspectos da cultura popular e midiática, relendo-os crítica e sarcasticamente através de citações e versões que se apoiam, dentre outros aspectos, na alteração e na intensificação da experiência temporal, espacial e cromática às quais estamos acostumados. Antônio Dias O macio e o violento, o despudor e a ética, a palavra e a censura, o amor e a dor, o tátil e o adverso (em terrível estado de mútua reversibilidade), a história e o resto (o Angelus novus contempla o futuro), o capital e o trabalho, o trabalho e o valor de troca (a mais valia), o dilema da Bauhaus entre artesanato e produção industrial, GOD/DOG, duelo, Moebius unilátero, João Cabral, Clarice e poesia concreta, conceitual e sensorial, o abjeto sublime, objeto e sujeito em trânsito de reversibilidade, economia resolvida em densidade, a cultura dos quadrinhos ágrafa. Talvez isso seja pouco para afirmar que Antônio Dias, mais do que paradoxos, inventa contradições e o lugar temporal, entre o começo e o fim especulares, da arte como o caminho mais difícil. Desde seu aparecimento no início da década de 1960, Antônio Dias apresentou-se como a mais veemente ruptura com a abstração geométrica. Com finura intelectual e crueza semiótica, sua arte, no entanto, soube respeitar e dialogar com os desdobramentos da produção dos artistas neoconcretos. Dias é o elo entre a tríade Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape e a segunda tríade Cildo Meireles, Antônio Manuel e Barrio. Sua saída do Brasil para a Europa em 1968, em voluntário exílio da ditadura, foi quase um desastre para o ambiente. Sua presença no Rio teria potencializado ainda mais o grande Molotov intelectual que foram aqueles tempos pós-AI 5. A dimensão materialista da obra inicial de Antônio Dias fricciona pop e Cinema Novo como uma espécie de tropicalismo trágico antecipado. A visceralidade e a carnificina nos anos 60 expõem a subjetividade do afeto e a bruteza social e política. Essa é a beleza convulsa da obra. Esse é o modo brechtiano de montar a cena. Glauber Rocha viu Antônio Dias num ponto de fusão ético-estética da zona tórrida. O eixo inaugural da obra de Dias foi sustentado por Hélio Oiticica e Mário Pedrosa. O artista proclama que, do fundo da adversidade de que vivemos, Notas sobre a morte imprevista (1965), de Antônio Dias, é o turning point do campo pictórico-plástico-cultural no contexto da sociedade brasileira em que formulam os princípios gerados no processo da nova objetividade. 91 Pedrosa, no artigo Do pop americano ao sertanejo Dias, foi agudo na indicação de seu éthos ecológico: “o nordestino, seco e enxuto, que é Antônio Dias, teme qualquer decaída nas concessões mundanas de teor elevado. Seu pensamento artístico (e moral) foge às essências, para não fugir ao substancial”. 92 Há sempre um Nordeste em Dias, algo imemorial como restos insepultos de Canudos, passagens de Vidas secas, mas nunca o discurso do engenho. No predomínio do vermelho e preto ressoa uma heráldica trágica de resistência à República Velha – em lugar da afirmação NEGO, o vermelho e preto da bandeira da Paraíba, momento histórico também aludido em Made in PB – feito em chumbo (2007), pintura do paraibano radicado em Pernambuco, Raul Córdula. A obra replica a bandeira do Estado de origem do artista, transformando sua faixa negra em placa de chumbo, e suprimindo o N inicial de “NEGO”, problematizando assim o violento desejo de afirmação de parte dos sujeitos sociais de uma região que, em 1930, no seio do ambiente político que prenunciava a Revolução de 30, intempestivamente criaram uma nova imagem simbólica para a capital da Paraíba, então batizada de João Pessoa. A obra de Antônio Dias tem uma visitação política da margem – a zona tórrida é margem no colonialismo interno brasileiro – onde quer que ela esteja. Suas franjas são as do capitalismo avançado e do capitalismo selvagem: KasaKosovoKasa, Nepal, o Nordeste mesmo. Por isso, a geometria do retângulo vira a bandeira do território econômico; é sempre o lugar da falta. Um monocromo amarelo é a biografia de Lin Piao. É ali que se inventa um país. Um monocromo vermelho – agora sem o preto da bandeira da Paraíba – é o locus de invenção de um país e, necessariamente, de suas contradições e sem o heroísmo positivista. Todas as cores do homem, ou toda redução ou ampliação, é diálogo “frictivo” ou é acomodação. A história em Antônio Dias é o presente vivido intensamente como violência exposta – neste ponto talhou sua tarefa de artista como agenciamento da história vivida. O pintor encontra duas duplas assimétricas, Brecht e Benjamin e (mas não ou) o opressor e o oprimido. “Esse rapaz só conhece um purismo – o da nua violência”, nota Pedrosa. Não se fala com Deus em português. O pintor assumiu que a língua franca do capital é o inglês. O monocromo preto promove a reversibilidade política entre Deus e cão, entre a metafísica e o real. O palindrômico caminho mais difícil: a reversão da língua e a operação emancipatória proposta por essa obra politicamente tórrida ao olhar do sujeito da história. 91 92 OITICICA, Hélio. “Esquema geral da nova objetividade”. In: Nova objetividade brasileira. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1967, não numerado. PEDROSA, Mário. “Do pop americano ao sertanejo Dias”. In: AMARAL, Aracy (org.). Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 221. Ecologia-luz A Zona tórrida situa-se entre os paralelos de 07° 12’ 35” de latitude sul e 48° 20’ 07” de latitude sul e entre os meridianos de 34° 47’ 30” e 48° 45’ 24” a oeste de Greenwich. Fotógrafo de cinema, Mário Carneiro mede a luz do sol brasileiro: “você está com 8 diafragmas entre a luz e a sombra! É um inferno” (apud Lauro Escorel e Tuca Moraes no site da ABC). Essa luz é o que não se deixa amansar. A caatinga devora cores. O regime ótico-político da luz em Glauber Rocha inclui a luz estourada do Ceará, diz Eduardo Frota. O potiguar Abraham Palatnik, pioneiro da arte cinética, redefine o objeto quadro: pinta por luzes projetadas por lâmpadas contra uma superfície translúcida. Face a excessiva solaridade cegante, a luz só é possível se artifício e artefato industrial. O objeto estofado Coração para amassar (1966) de Antonio Dias resplende em incandescência artificial. O semi-árido abriu “uma fenda de luz, dando o abolicionismo para o Brasil,” aduz Frota, para quem “o lugar mais desassistido historicamente” antecipou a abolição (1884), o que valeu a Fortaleza o epíteto de cidade luz (entrevista a Paulo Herkenhoff, 2009). A plasticidade integra a poesia de Joaquim Cardozo e de João Cabral de Melo Neto; a escritura, a poética visual de Lygia Pape e, logo, a de Schendel, Oiticica, Dias, Maiolino, Duke Lee e Montez. O complexo texto, paisagem e persona em Voilà mon coeur (Eis meu coração, c. 1989) de Leonilson é um claro enigma drummondiano: o coração é a ecologia da dureza, fragilidade e translucidez dos cristais como cor espectral, lágrimas de pedra e gotas de luz em epifania do desejo e homoafetividade. No eixo de poder entre o artista e o crítico, Leonilson mapeia seus limites (Leo não consegue mudar o mundo, 1989) e faz a encomiástica irônica da onipotência da crítica (Para quem comprou a verdade, 1991, inspirada em Ronaldo Brito). Para sobreviver à violência da crítica e dos afetos, o artista erige a “montanha interior protetora” (1989). O sistema de cor de Julio Cesar Leite transtorna a alfabetização visual ao instalar cartazes nas cidades com nome de cores escrita em outra cor que não ela própria: lê-se amarelo em letras garrafais rosas sobre um fundo numa terceira cor. A dissonância entre nome, cor e escrita desafia a percepção. O feixe de fótons desajusta a escritura no confronto entre a razão e o sensorial ao cindir a leitura sob uma barafunda cromático-mental. A cor vive a pane linguística com o corte da lógica entre significante e significado. O vocábulo não se auto-define cromaticamente. A paleta de deslocamentos toma cores indecomponíveis para escrever as componíveis, lida com cores aditivas, subtrativas, quentes, frias, tórridas e temperadas. O comprimento das ondas do espectro eletromagnético desajusta o léxico visual. Se a palavra amarelo grava-se em rosa, a própria amarelidão do amarelo estará deslocada em deriva por uma significação. A escritura-cor suspendeu a racionalidade dos Remarks on colour de Wittgenstein porque o paradoxo da pintura é desconstruir a cor-conceito no desajuste do ver/ler. As ambiguidades admitem e desconfirmam a cisão porque sem ler não se obtém o jogo Gestáltico em que a impressão cromática no sistema nervoso não coincide com a operação cognitiva da leitura. A memória inaugural do reconhecimento das cores ressitua o sujeito em reaprendizado do legível. O modo auto-biográfico de Henry Miller expõe o eu de Trópico de Capricórnio no quiasma entre existência e ação, diferindo do cogito cartesiano. “Fui o mau produto de um mau solo,” escreve. Tal “eu” é o artista na tarefa de ruptura perturbadora do mundo. A solaridade em Joaquim Cardozo e de João Cabral situa-se em outra latitude: O cão sem plumas deste pensa-se em estado de “um não saber sabendo” de um rio que, parecendo ignorar a cor nominada, “nada sabia da chuva azul,/ da fonte cor-de-rosa” porque se posiciona como acercamento ao indizível. Trata-se de uma exologia ibérico-nordestina quase-wittgensteiniana. No regionalismo paulista de Mário de Andrade, Araraquara é uma “natureza tão sincera” que desafia as metáforas. Contra a verdade unívoca no campo do imaginário, a Zona tórrida aponta, com Leonilson, que são tantas as verdades cromáticas. Quem comprou a verdade cromática? Não foi Gilberto Freyre que construiu especificidades e relatividade sócio-ambiental da cor, mas talvez o próprio Mário ao arbitrar a cor caipira como emblema totalizante unívoco de um Brasil plural? A tragédia de Canudos integra a mesma história de exclusão da escravidão na pintura de Almeida Junior. Ser escravo nas condições das obras desse pintor oficial de São Paulo era suave na operação de controle ideológico da representação das bandeiras. Sua pintura legitimoava exclusão dos vencidos da história. É por isso que a voz do Severino retirante no João Cabral emancipatório sabe que o sangue “que usamos tem pouca tinta.” A arte brasileira é uma rede de autonomias que escapa ao modelo geopolítoco dominante. Filho de uma cearense e de um índio da Amazônia peruana, Chico da Silva nasceu no Acre (1910) no ocaso da economia da borracha. Fez o caminho inverso: deixou os seringais do Acre pelo Ceará. A pintura deste “índio arigó” supera os limites da escravidão seringalista e do olhar acadêmico sobre a arte. Com consciência da autonomia da pincelada, seu imaginário articula um bestiário arcaico de monstros míticos, animais da Amazônia profunda e seres abissais atlânticos. Em Sociedade do Espetáculo, Guy Debord aponta como a sociedade que elimina a distância geográfica reproduz a distância internamente como uma separação espetacular. Portanto, a dimensão ecológica da Zona tórrida recusa o exótico como espetacularização do espaço social. A pintura propõe processos de conhecimento tão convergentes quanto dissonantes na individualização de cada ecologia porque são tantas as zonas tórridas.